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Memória, Resistência e Intelectualidade em Jenny

THAIS DOMINGOS DOS SANTOS RODRIGUES*

Resumo: Este artigo tem por objetivo elucidar a potência de resistência e intelectualidade de , colocando em debate o papel da mulher na produção de conhecimento e seus atrofiamentos numa sociedade patriarcal. Utilizamos como metodologia a análise de produções recentes e mais antigas como a biografia de Mary Gabriel – Amor e Capital: A Saga Familiar de e o Nascimento de Uma Revolução (2013), o filme O jovem Karl Marx (2017) de e a biografia de Françoise Giroud: Jenny Marx ou a Mulher do Diabo (1996). A partir dessas obras procuramos elucidar uma Jenny que vai além da esposa, da mãe de sete filhos, da “bela prussiana”, mas com toda sua complexidade de uma grande revolucionária e peça fundamental para a elaboração da teoria marxiana, ou seja, com base nessas três linguagens oriundas de locais diferentes e em conjunto com a revisão bibliográfica analisamos as memórias de Jenny Marx enquanto mulher, comunista e intelectual. Encarando que a memória e o discurso estão sempre em disputa, trazemos o debate da historiografia feminina e a invisibilidade das mulheres na história apontando como meio de possibilidade de emergência de novas narrativas a utilização da história oral.

Palavras-chave: Jenny Marx; Mulheres; História.

Abstract:

This article has as objective clarify the potency of resistance and intellectuality of Jenny von Westphalen, setting in debate the woman role in the production of knowledge and their atrophy in a patriarchal society. We resort as methodology the analysis of recent productions and oldest ones like the biography by Mary Gabiel - Love and Capital: Karl and Janny Marx and the Birth of a Revolution(2013), the movie (2017) by Raoul Peck and the biography by Françoise Giroud: Jenny Marx or la femme du diable(1996). Starting from this productions we sought elucidate a Jenny who goes

*Mestra em Educação pela Universidade Federal de São Carlos campus Sorocaba (PPGed-UFSCar) further the wife, mother of seven children, the " beauty Prussian ", but with all its complexity of a big revolutionary and fundamental piece for the elaboration of Marxian theory, it means, with base on this three languages originating from different places and together with the literature review we analyzed the memory of Jenny Marx qua woman, communist and intellectual. Viewing that the memory and the speech are always in dispute, we bring the debate of the female historiography and the invisibility of women in the history pointing out as a means of possibility of emergence of new narratives and use of the oral history.

Key words: Jenny Marx; Women; History

1. Introdução:

A história das mulheres é como uma sombra tênue no teatro da memória. É através dessa metáfora que Michele Perrot (1989), historiadora francesa, configura o vácuo que temos quando o assunto é a historiografia feminina. A autora também chama atenção em como a própria análise do poder das mulheres, quem elas foram, o que fizeram em suas vidas, como se organizaram, todas essas narrativas estão em constante disputa (idem, 2017). Assim, a busca para sairmos das sombras, preencher o mundo com uma outra história, uma no qual mulheres existem e resistem é também um jogo de poder.

A história de Jenny Marx ou Johanna Bertha Julie Jenny von Westphalen – como é seu nome de nascença – é um desses marcos em disputa. Como uma mulher que dedicou a vida à política, toda sua narrativa não poderia ser outra coisa que não política. Tem quem busque reconstituir sua memória apenas com o intuito de atacar seu marido. A história de Jenny não foge da ideologia de quem a conta. O objetivo deste artigo é outro. Queremos saber de Jenny pela sua própria história, o que a história de um ser humano dotado de complexidade que dedicou a vida na construção de uma sociedade mais justa tem a nos contar. Não nos colocando fora da ideologia mas encarando como a contradição que Teresa de Lauretis (1994, p.218) pontua: “persistamos em fazer a relação imaginária mesmo sabendo, enquanto feministas, que não somos isso, e sim sujeitos históricos governados por relações sociais reais, que incluem predominantemente o gênero”, ou seja, encarando de fora os processos ideológicos mesmo sabendo que estamos contidas neles.

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Para tal jornada utilizamos como fonte trabalhos oriundos das artes. Partimos de duas obras literárias biográficas: Jenny Marx ou a Mulher do Diabo de Françoise Giroud e Amor e Capital: A Saga Familiar de Karl Marx e o Nascimento de Uma Revolução de Mary Gabriel e dentro do âmbito das artes visuais foi utilizado o filme O jovem Karl Marx, lançado em 2017 com direção de Raoul Peck.

O objetivo é a partir dessas três linguagens, oriundas de locais diferentes, e em conjunto com a revisão bibliográfica fazer a análise das memórias de Jenny Marx enquanto mulher, comunista e intelectual. Posteriormente, encarando que a memória e o discurso estão sempre em disputa, trazemos o debate da historiografia feminina e a invisibilidade das mulheres na história, apontando como meio de possibilidade de emergência de novas narrativas a utilização da história oral.

2. Jenny: dos livros para tela – as representações de uma mulher comunista

Quando a história de uma mulher consegue nadar contra a maré de uma historiografia que prioriza homens é possível imaginar sua grandiosidade. Jenny Marx tem furado a bolha do isolamento sobre a história de mulheres e já não é possível falar da história de seu marido, Karl Marx, sem falar de sua importância. Como destaca Mary Gabriel (2013, p. 14), as histórias das mulheres que compõe a vida de Marx – Jenny, Eleonor, Laura, Jennychen - não podem mais permanecer na obscuridade, uma vez que “sem elas não haveria Karl Marx, e sem Karl Marx o mundo não seria como nós o conhecemos.”

A autora Mary Gabriel retrata em seu livro todo o trajeto da família Marx, desde o período da adolescência de Jenny e Karl até o desfecho de suas vidas e o falecimento de suas filhas. Com quase 900 páginas ela já imprimiria a importância de Jenny logo através do título do livro: Love and Capital: Karl and Jenny Marx and the birth of a Revolution. No entanto, a versão brasileira excluiu o nome de Jenny e ficou com o seguinte título: Amor e Capital: a saga familiar de Karl Marx e a história de uma revolução, um apagamento significativo.

A outra biografia utilizada, de autoria de Françoise Giroud (1996), escritora e política francesa, não nega a que veio: atacar Karl Marx através da história de sua esposa. O título do livro: Jenny Marx ou a mulher do diabo - não poderia ser mais tendencioso.

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O objetivo não é falar da pessoa que foi Jenny, mas sim, do próprio diabo, ou seja, Karl Marx. Segundo Gabriel (2013, p.12) é corriqueiro que as biografias de Marx sejam deturpadas, e dessa maneira os “detalhes de sua vida, e por extensão da vida de sua família”, variam conforme “a descrição do santo comunista ou do pecador iludido.” A autora, Giroud, parece a todo momento querer chocar as pessoas que leem seu livro com informações do tipo: você sabia que Jenny e Karl transaram antes do casamento? Que ela era mais velha do que ele? Que ela era rica enquanto Marx vendia a imagem de libertador dos pobres? Que Karl não conseguia ser o homem provedor da casa? E a mais certeira de todas, você sabia que Marx teve um filho fora do casamento? Dessa forma, toda a trajetória da vida de Jenny deixa de ser analisada por si mesma e passa a ser produto de especulação para difamar os escritos de seu marido. O perfil ideológico fica claro em passagens como a seguir:

Jenny e Karl Marx estiveram casados durante 38 anos. Uma longa jornada, e não foi exatamente um caminho de flores. Mas foi um amor e de uma espécie terrível – daquela que acorrenta uma mulher a um homem de gênio. Hoje o ídolo está fracassado. Como substituto da eterna necessidade de crença do homem, o marxismo recuou. Como método de gestão de uma sociedade, está desqualificado. Não se pode negar que em 74 anos de aplicação prática nenhum de seus objetivos foi alcançado e que não proporcionou àqueles que o apoiaram bem-estar, dignidade ou liberdade. (GIROUD, 1996, p. 12).

Para a construção deste artigo, assim como todo o debate sobre a história de mulheres, também se apresentaram algumas armadilhas. Uma delas é cair na ideia de que mulheres puxam os fiozinhos dos bastidores e que manipulam os homens como marionetes, enquanto esses ficam na cena pública (PERROT, 2017). Outro erro é cair nas figurações de uma mulher exclusivamente mãe-suporte-emocional-dos-homens, sempre abnegada e disposta a se colocar em segundo lugar; ou da mulher redentora – que está ali salvando a todos, quase como uma super-heroína.

Quando se trata da história de Jenny os riscos são imensos. Obviamente ela foi mãe e esposa. Também estava ao lado de seu marido nas mais diversas e adversas situações. Nas obras consultadas, todas, em algum momento, destacavam como Jenny conseguia acalmar os nervos de Marx. Também não há produção que não destaque sua beleza: “Jenny Von Westphalen era a moça mais cobiçada de ” diz Mary Gabriel

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(2013, p. 20); Françoise Giroud (1992, p.21) também destaca: “Aos dezoito anos, Jenny, baronesa von Westphalen, era sublime, a mais bela moça de Trier: morena, alta, de olhos verdes, o rosto ovalado perfeito, a pele de jasmim” (1992, p.21). Aparentemente é impossível falar de Jenny sem destacar seus aparatos físicos, o mesmo não ocorre quando se descreve Karl Marx (embora em alguns momentos é lembrado o quanto ele era feio em relação a Jenny).

Jenny era apaixonada por literatura, e antes mesmo de conhecer Karl - já lia e aprovava as ideais dos socialistas, principalmente Saint-Simon. A influência vinha de seu pai, Ludwing von Westphalen, que embora trabalhasse como conselheiro do governo de Trier - sendo assim uma autoridade prussiana - era aficionado por ideais franceses e promovia em sua casa um verdadeiro centro de conhecimento, com leituras de Dante, Shakespeare, Homero, além das conversas em latim e inglês (GABRIEL, 2013). Mesmo com toda essa sede de saber, enquanto Marx viajava aos 17 anos para estudar em Bonn, Jenny, aos 21, permanecia em casa “limitada pelas convenções de seu meio e de sua época” (GIROUD, 1992, p. 45). Em 1835, as mulheres ainda estavam longe das universidades - que só abriram vagas para as mulheres em 1837 nos Estados Unidos, com a criação de universidades exclusivas para mulheres – as women’s college (BEZERRA, 2018).

Que vida teria a prussiana se pudesse ter acesso ao nível superior de educação? É um questionamento inevitável. Todo o mundo conhece a genialidade de Karl Marx, porém é importante ressaltar o que Simone de Beauvoir (2009, p.198) diz: “ninguém nasce gênio: torna-se gênio; e a condição feminina impossibilitou até agora esse torna- se”. Quem sabe não teria sido Jenny a grande pessoa a sistematizar o pensamento sobre o sistema capitalista?

Mas, o fato é que nesse período a vida das mulheres é bastante limitada, sendo o casamento o único futuro disponível. E nesse quesito Jenny fez suas próprias escolhas. Não teve medo de romper um noivado precipitado com Karl von Pennewitz, um tenente com senso de ordem e obediência, e precisou lutar para se casar com o revolucionário, judeu e sem dotes que era Marx. Quando seu pai, Ludwig, morreu ainda precisou enfrentar o paternalismo do irmão, Ferdinand, que era declaradamente contra o casamento. Nesse caso, talvez seja interessante inverter a citação a seguir:

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Ela [Jenny] jamais procurará frear seu ardor político [de Marx]. O instinto a empurra, ao contrário, na mesma direção. Ela lê e admira Feuerbach e escreve para Karl a respeito dele. Na época não deveria haver muitas mulheres com este gênero de leitura. Jenny é a digna parceira do “doutor” Marx, sem esforço ou afetação. (GIROUD, 1992, p. 44)

Foi Karl que não freou o ardor político de Jenny e era um parceiro digno para uma mulher de tal intelecto - que lia livros que não eram corriqueiros entre as mulheres, mas tampouco eram comuns entre os homens.

Mas a escolha de casar-se com Marx será constantemente questionada, como pode uma mulher aristocrata casar com um homem de pele escura e sem títulos? No filme, O jovem Karl Marx, temos uma cena interessante de uma conversa de Engels e Jenny, na qual ela é interrogada mais uma vez sobre suas escolhas:

Friedrich: _Podia ter tido uma vida de riqueza e ociosidade no seu país, com um aristocrata rodeada de luxo e inveja. Jenny: _Sim, escapei de um tédio mortal. Sem revolta não há felicidade. Revolta contra a ordem existente, contra o mundo velho. É nisso que acredito. Espero, muito brevemente, ver este mundo ruir. (O JOVEM Karl Marx. Raoul Peck, 2017)

Com certeza não foi uma vida fácil a que Jenny levou junto a Marx, repleta das mais variadas privações. Mas a parceria com o Mouro – apelido de seu marido – era de um companheirismo intelectual e revolucionário. Estavam juntos para construir uma nova sociedade. Quem em Trier teria essas características? O seu casamento possibilitou uma vida inesperada – marcada principalmente pela pobreza, mas também pela agitação política. De qualquer maneira a realidade é que Jenny ficou na pequena cidade de doze mil habitantes e esperou por seu homem até o dia de seu casamento. Como destaca Beauvoir, a mulher:

Uma vez púbere, o futuro não somente se aproxima, instala-se em seu corpo, torna-se a realidade mais concreta. Conserva o caráter fatal que sempre teve; enquanto o adolescente se encaminha ativamente para a idade adulta, a jovem aguarda o início desse período novo, imprevisível, cuja trama já se acha traçada e para o qual o tempo a arrasta. Já desligada de seu passado de criança, o presente só lhe parece como uma transição; ela não descobre nele nenhum fim válido, mas tão somente ocupações. De uma maneira mais ou menos velada, sua juventude

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consome-se na espera. Ela aguarda o Homem. (BEAUVOIR, 2009, p.431)

Karl também ansiava em ficar junto de sua amada, mas sua vida passou longe de girar sobre isso. Em Bonn era conhecido por sua bebedeira. Em Berlin continuou com os gastos excessivos e seu círculo de amigos hegelianos eram praticamente sua real família. Enquanto isso Jenny esperava por um casamento que só ocorreria quando ela tivesse 29 anos (e ele 25), velha para os padrões da época. Uma espera que exigia confiar em Marx, se ele não quisesse mais se casar seguiria sua vida normalmente, mas e Jenny? Primeiro foi preciso aguardar que ele concluísse os estudos, depois foi necessário que ele arrumasse um emprego. Mas a prussiana aguardou, meses nos quais ele não aparecia, embora quando retornava à cidade as vezes se vissem escondidos, um outro escândalo que ela teria que arcar sozinha com as sérias consequências.

O casamento passa a ser uma carreira cujo encargo é prestar serviço ao esposo (BEAUVOIR, 2009). O homem tem como vocação a ação, vai produzir, criar, transcender e a mulher cabe o papel da casa, de ser o eterno outro. Em uma carta para Marx, fica muito explicito como Jenny terceirizava sua própria vida através das realizações do marido:

Dia e noite vi você ferido, sangrando, mal e, Karl, para lhe dizer bem a verdade, não fiquei tão triste de pensar nisso: pois imaginei claramente que você tinha perdido a mão direita, e, Karl, eu ficava enlevada, em êxtase, pois assim… eu poderia escrever todas as suas ideias, amadas e celestiais, e ser realmente útil para você. (GABRIEL, 2013, p 42.)

Em seus sonhos ela via Karl sem a mão a direita, o que iria impossibilitá-lo de escrever, mas ela estaria ali para ele, sendo sua mão, passando ao mundo suas ideias. O marido nunca ficou impossibilitado de escrever, porém sua letra feia foi um empecilho para qualquer um que pegasse seus manuscritos. A tarefa da transcrição era de Jenny, tornar legível a grande obra marxiana foi uma de suas responsabilidades. Possivelmente fazendo uma revisão geral, afinal a inteligência lhe sobrava e era motivo de grande orgulho para Karl, como destaca sua biógrafa:

Marx tinha orgulho de Jenny – orgulho de sua beleza, que mesmo entre as celebradas mulheres de Paris se fazia notar, mas também de sua inteligência. Desde os primeiros dias de casados, ele considerava Jenny uma intelectual como ele, e isso não era apenas uma concessão sentimental: Marx era impiedoso quando se tratava das coisas da mente,

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e não teria confiado no julgamento de Jenny se não a achasse de fato brilhante. (GABRIEL, 2013, p.61)

Jenny estava na Prússia quando ocorreu a tentativa de assassinar Frederico Guilherme IV, viajara com a filha doente para que a sua mãe lhe ajudasse. Era a primeira vez lidando diretamente com a maternidade e sozinha, sem auxílio de nenhuma empregada ou babá e morando em outro país. Dentre as cartas que enviou ao marido, uma delas Marx achou pertinente publicar. Em seu conteúdo estava a análise do que levou o homem a tentar matar o rei: “Durante três dias esse homem mendigou em vão por Berlim sob constante perigo de morrer de fome – portanto foi uma tentativa social de assassinato! Se alguma coisa começar, virá dessa direção … as sementes de uma revolução social estão aí.” (GABRIEL, 2013, p. 76). A carta foi publicada no jornal Vorwärts! (Avante!) no dia 10 de agosto de 1844 com a assinatura de “Uma senhora alemã” – escolhido por Marx. Não seria a última vez que Jenny teria sua correspondência publicada.

O nome de Jenny era o primeiro na lista de membro da Liga Comunista em Bruxelas. E em seus escritos há várias passagens em que ela relatava sobre as dificuldades em ser uma mulher pobre e mãe de tantos filhos. Podemos destacar uma carta que escreveu enquanto observava sua mãe envelhecer: “Para os homens, pode ser diferente, mas para uma mulher, cujo destino é ter filhos, costurar e remendar, recomendo a infeliz Alemanha” (GABRIEL, 2013, p. 102). Com a consciência do lugar que seu corpo habitava, ela pontua que o mundo pode parecer algo divertido a ser conquistado e desbravado, mas apenas se você for um homem; se você for uma mulher o seu destino será o mesmo em qualquer lugar, então que seja num local tranquilo.

Dentro da intelectualidade de Jenny um momento de grande importância a ser destacada foi sua tentativa de promover O capital – que até então não tinha a repercussão esperada. Para isso enviou uma carta para Johann Philipp Becker, um redator de uma revista, argumentando em prol do livro. Na longa carta, posteriormente publicada, ela explica que talvez fosse mais fácil entender o livro se no lugar de começar na ordem dos capítulos apresentados, se iniciasse a leitura pelo seu fim, a partir dos capítulos dedicados a acumulação primitiva (GIROUD, 1992). Explicação que seria posteriormente apropriada por Luis Althusser nas suas Advertências aos leitores do Livro I d’O capital.

No filme de Raoul Peck, Jenny aparece colaborando para o nome do que seria o primeiro livro de Engels e Marx juntos: A crítica da Crítica crítica (ou A sagrada família).

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Porém, não é possível saber a veracidade desse evento e por isso um dos elementos da crítica de Michael Herinrich (2018), um outro biógrafo de Marx, é que detalhes interessantíssimos contidos no filme são momentos que não temos como saber se de fato ocorreram, fazem parte do objetivo de tornar o roteiro mais interessante.

Outra mulher importante que o filme também trás é a figura de Mary Burns, a radical irlandesa que foi o amor da vida de Engels. Embora ninguém saiba ao certo como eles se conheceram (GABRIEL, 2013; HEINRICH, 2018), a imagem que tentaram passar desse encontro foi de uma funcionária revolucionária que não tinha medo de falar o que pensava. Foi Mary, aos 19 anos, a pessoa que aproximou Engels do chão da fábrica e da realidade do trabalhador inglês, sem essa aproximação as chances do seu tão conhecido livro: A Situação da Classe Trabalhadora na Inglaterra - ter saído seria muito menor, ou poderia ter outra qualidade de escrita. Segundo Gabriel (2013, p. 82) foi Mary quem apresentou a “Pequena Irlanda” e outros bairros operários de Manchester “por onde cavalheiros como ele nunca passavam, nem mesmo para recolher o aluguel.”

Porém, em nenhum momento em sua obra, Engels cita Mary Burns. Assim como em conjunto com Marx (2010) não citam Flora Tristan e sua ideia pioneira de criar uma união nacional e mundial de trabalhadores (BLOCH-DANO, 2001 apud AMARANTE, 2010). No livro A origem da Família, da propriedade privada e do estado, Engels (2010, p. 43) pontua que a “derrota histórica do sexo feminino” está atrelada a consolidação da propriedade privada e que “na família, o homem é o burguês e a mulher representa o proletário”, porém essas ideias também já estavam contidas em escritos de Flora Tristan: “a mulher é a proletária do proletário”. Não há referências, assim como, embora tivessem oportunidades, não chamaram nem ela e nem George Sand para contribuir em seu jornal na França, em 1843, preferindo ficar sem nenhum correspondente local (GABRIEL, 2013, p. 64).

Obviamente que os posicionamentos sobre a condição da mulher e a família, presentes na obra de Engels e Marx, eram incrivelmente avançados para a época. Algo que não se via em seus rivais políticos, um exemplo, é a misoginia escancarada em Proudhon e Lassalle, ambos lutando contra o trabalho feminino e naturalizando a opressão feminina. Da mesma forma como é notável a educação que Jenny e Karl deram às suas filhas, sem nenhuma restrição de gênero.

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Retornando ao filme, até mesmo a aproximação de Karl e Friedrich com a Liga dos Justos – posteriormente Liga Comunista, teria se dado em um primeiro momento através dos contatos da irlandesa. O que não condiz segundo a obra de Mary Gabriel (2013), embora Mary tenha apresentado a Engels diversos radicais irlandeses e ingleses. Contudo, talvez a representação mais polêmica seja a relação não monogâmica que o casal levava abertamente, sendo ambos contra o casamento – uma instituição burguesa. Quando Mary Burns morre, Friedrich assume o relacionamento com sua irmã mais nova, Lizzy.

Nada, porém, será mais devastador na história de Jenny e Karl que o filho que ele teve com , mais conhecida como Lenchen. A filha de padeiros de um vilarejo próximo a Trier que aos 25 anos foi para Bruxelas para ajudar a família Marx na criação de seus filhos. Fora enviada pela mãe de Jenny já que era uma funcionária de confiança porque trabalhava para a família desde os 11 anos. O filho, Henry, assumido por Frederich, mas não criado por nenhum deles, foi adotado por uma família na zona leste de Londres. Como pontua o próprio Engels:

A monogamia nasceu da concentração de grandes riquezas nas mesmas mãos - as de um homem – e do desejo de transmitir essas riquezas, por herança, aos filhos deste homem, excluídos os filhos de qualquer outro. Para isso era necessária a monogamia da mulher, mas não a do homem; tanto assim que a monogamia daquela não constituiu o menor empecilho a poligamia, oculta ou descarada, deste. (ENGELS, 2010, p. 46).

O filho será renunciado, porém Lenchen, que ao longo dos anos negou qualquer proposta de relacionamento de seus pretendentes, permanecerá com a família Marx até o fim de seus dias, sendo enterrada no mesmo cemitério que Jenny e Karl (GABRIEL, 2013).

O filho de Lenchen e Marx irá crescer privado da participação de seus pais biológicos. Já Jenny verá quatro de seus sete filhos morrerem, sendo um imediatamente após o parto - nem se quer será nomeado. A pobreza e as privações fizeram com que tivessem mais filhos mortos do que vivos. Sua beleza tão marcada será comprometida pela varíola e quando ela morre em 2 de dezembro de 1881, nenhum outro livro de Karl Marx será publicado com ele vivo.

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3. Conclusão: pelas histórias que virão

Nesses tempos difíceis, você precisa ser firme e não abaixar a cabeça. O mundo é dos corajosos. – Jenny Marx

Falar sobre a história de Jenny von Westphalen perpassa diversos debates caros ao feminismo. As suas memórias colocam no centro questões como: mulheres na política, maternidade compulsória, mulheres e a produção intelectual, divisão sexual do trabalho, mulheres e a divisão de classe, etc. Seu nome para sempre será atrelado ao de Karl Marx – ainda que a recíproca lamentavelmente não seja verdadeira – contudo, que se lembrem de sua complexidade e não como estereótipo da mulher-coração-sensibilidade que lidava com seu oposto complementar o homem-cérebro-razão-inteligência (PERROT, 2017).

O ofuscamento da vida de Jenny é o processo de criação de uma história masculina escrita por homem. Segundo Beauvoir (2009, p. 211): “a representação do mundo, como o próprio mundo, é operação dos homens; eles o descrevem do ponto de vista que lhes é peculiar e que confundem com a verdade absoluta.” As mulheres no máximo alimentaram as crônicas da pequena história, como pontua Michele Perrot:

Quantitativamente escasso, o texto feminino é estritamente especificado: livros de cozinha, manuais de pedagogia, contos recreativos ou morais [...] trabalhadora ou ociosa, doente, manifestante, a mulher é observada e descrita pelo homem. Militante, ela tem dificuldade em se fazer ouvir pelos seus camaradas masculinos, que consideram normal serem seus porta-vozes. A carência de fontes diretas, ligada a essa mediação perpétua e indiscreta, constitui um tremendo meio de ocultamento. Mulheres enclausuradas, como chegar até vocês? (PERROT, 2017, p. 198)

É preciso encontrar essas mulheres, deixar que falem, que expressem suas opiniões, que transformem o mundo. Nós queremos e temos o direito de saber sobre elas, sobre nosso passado e de escrever nosso presente e futuro. Para isso, uma metodologia cada vez mais utilizada por feministas é a história oral. Se valendo da oralidade e de relatos para a construção da história de mulheres, essa metodologia permite pensar o papel da/o historiadora, questionar a história oficial, ponderar e historicizar quem produz

11 história (SALVATICI, 2005).

A história oral auxilia na busca pelas vozes dos desfavorecidos e cria uma história vinda de baixo. Enquanto feministas, um de nossos deveres é procurar pelas contribuições das mulheres ao longo do tempo e construir uma historiografia feminina. Sendo a história oral uma ferramenta que nos “permite a documentação de pontos de vista diferentes ou opostos sobre o mesmo fato, os quais, omitidos ou desprezados pelo discurso do poder, estariam condenados ao esquecimento” (FREITAS, 2006, p. 47) é fundamental que nos apropriemos dela.

A história das mulheres muitas vezes é considerada menos importante, ou monótona, corriqueira demais. Quem quer saber sobre a história de uma mulher que teve sete filhos em 12 anos? A resposta é que todas as mulheres querem ou deveriam querer. Porque Jenny estava na média de filhos de sua época – uma geração eternamente grávida; e por mais que não seja essa a realidade do século XXI, ela constrói o imaginário da função da mulher até os dias atuais. Biologizadas, encaradas como reprodutoras, a mesma sociedade de Jenny é a que não nos deixa abortar até hoje.

Como destaca Virginia Woolf (2014, p. 95) no seu ensaio - Um teto todo seu, se existe uma mudança que permite com que mulheres escrevam e sejam intelectuais, ela “descreveria com mais detalhes e consideraria mais importante que as Cruzadas ou a Guerra das Rosas”. É preferível histórias reais, de mulheres reais, do que “saber sobre a quinquagésima vida de Napoleão.” Embora a existência de mulheres geniais também seja real, mesmo com todo o apagamento. Woolf ainda complementa:

Quando, porém, lemos sobre o afogamento de uma bruxa, sobre uma mulher possuída por demônios, sobre uma feiticeira que vendia ervas ou mesmo sobre um homem muito notável e sua mãe, então acho que estamos diante de uma romancista perdida, uma poeta subjugada, uma Jane Austen muda e inglória, uma Emily Brontë que esmagou o cérebro em um pântano ou que vivia vagando pelas ruas, enlouquecida pela tortura que seu dom lhe impunha. Na verdade, arrisco-me a dizer que Anônimo, que escreveu tantos poemas sem cantá-los, com frequência era uma mulher. (WOOLF, 2014, p. 73)

Jenny foi uma mulher intelectual, em uma sociedade marcadamente anti- intelectual (HOOKS, 1995), em condições precárias, mãe sete vezes, dona de casa, militante comunista, experimentou a pobreza, viu seus filhos morrerem pela baixa

12 qualidade de vida, soube, porque viveu na pele, o porquê de precisarmos de uma outra sociedade, uma no qual não haverá a exploração do homem sobre o homem, mas também não haverá a dominação dos homens sobre as mulheres.

Referências Bibliográficas AMARANTO, Maria Inês. Flora Tristan: jornalismo militante em tempo de revoltas. Rev. Katál. Florianópolis v. 13 n. 1 p. 110-118 jan./jun. 2010 BEAUVOIR, Simone de. O segundo sexo. 2 ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2009. BEZERRA, Nathalia. Mulher e Universidade: A longa e difícil luta contra a invisibilidade. Anais Conferência Internacional sobre os Sete Saberes. Fortaleza. Disponível em: . Acesso em: 17 abr. 2018.

ENGELS, Friedrich. A origem da família, da propriedade privada e do Estado. Tradução de Leandro Konder. 2ª ed. São Paulo: Expressão Popular, 2010.

FREITAS, Sônia Maria de. História oral: possibilidades e procedimentos. 2ª ed. São Paulo: Associação Editorial Humanitas, 2006.

HEINRICH, Michael. Verdades e mitos sobre o filme “O jovem Karl Marx”, de Raoul Peck. Blog da Boitempo, 18 jan. 2018. Disponível em: < https://blogdaboitempo.com.br/2018/01/18/verdades-e-mitos-sobre-o-filme-o-jovem- karl-marx-de-raoul-peck/>. Acesso em 17 abril 2018.

HOOKS, bell. Intelectuais Negras. Estudos feministas, v. 3, n. 2, p. 464, 1995.

GABRIEL, Mary. Amor e Capital: a saga da família de Karl Marx e a história de uma revolução. Rio de Janeiro: Zahar, 2013.

GIROUD, Françoise. Jenny Marx ou a mulher do diabo. Rio de Janeiro: Record, 1996.

LAURESTIS, Teresa de. A tecnologia do gênero. In: HOLLANDA, H. B. de (org). Tendências e Impasses: o feminismo como crítica da cultura. Rio de Janeiro: Rocco, 1994.

MARX, K.; ENGELS, F. Manifesto do Partido Comunista. Porto Alegre: L&PM, 2010.

O JOVEM Karl Marx. Direção: Raoul Peck. França, Alemanha, Bélgica: Califórnia Filmes, 2017. 1 DVD (118 min). Título original: Le Jeune Karl Marx.

PEIRROT, Michele. Práticas da memória Feminina. Rev. Bras. de História, São Paulo, v.9, n.18, pp. 09-18, ago./set. 1989.

______. Os excluídos da história: operários, mulheres e prisioneiros. 7ª edição. Rio de Janeiro/São Paulo: Paz e Terra, 2017.

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SALVATICI, Silvia. Memórias de gênero: reflexões sobre a história oral de mulheres. História oral, v8, n1, p. 29-42, jan-jun. 2005.

WOOLF, Virginia. Um teto todo seu. São Paulo: Tordesilhas, 2014.

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