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Estilhaços da ditadura e de identidades em As Meninas, de

Shrapnel of the dictatorship and of identities In Girls, de Lygia Fagundes Telles

DOI:10.34117/bjdv6n9-351

Recebimento dos originais:08/08/2020 Aceitação para publicação:15/09/2020

Janile Simony Rodrigues Badeira de Aragão Mestranda no Programa de Pós-graduação em Linguagem e Ensino da Universidade Federal de Campina Grande (POSLE – UFCG) Instituição: aluna regular do PPGLE na Universidade Federal de Campina Grande - UFCG Endereço :Rua Tiradentes, 77, Centro - Capina Grande/PB - CEP: 58400-283 E-mail. [email protected]

José Edilson de Amorim Doutor em Letras pela Universidade Federal da Paraíba (UFPB) Instituição :Professor associado da Universidade Federal de Campina Grande - UFCG Endereço :Rua R. Aprígio Veloso, 882 - Universitário, Campina Grande - PB, 58428-830

RESUMO Uma das características mais notáveis na obra As Meninas, de Lygia Fagundes Telles, é a presença do contexto histórico como elemento narrativo: a ditadura militar e as mudanças sociais, culturais e políticas. Escrito em 1973, o romance traça um paralelo entre a vida de três jovens. Com base nessa caracterização geral, este artigo trará um pequeno recorte sobre a produção da autora, em seguida abordaremos a obra sob os reflexos do período ditatorial no percurso das personagens, por fim, realizaremos uma brevíssima análise sobre a categoria de identidade, ancorados em Zigmunt Bauman (2005). Objetivamos, então, realizar um estudo que se propõe a compreender, interpretar e caracterizar as trajetórias das personagens partindo dos fenômenos sociais com base no texto ficcional e no seu contexto histórico, refletindo sobre a identidade das personagens no mundo líquido-moderno, tendo em vista a condição do sujeito contemporâneo.

Palavras-chave: As Meninas, Ditadura militar, Identidades.

ABSTRACT One of the most notable characteristics in the book As Meninas by Lygia Fagundes Telles is the presence of the historical context a narrating element: the military dictator ship and social, cultural and political changes. Written in 1973, the novel draws a parallel between the lives of three young girl. Based on this general characterization, this article brings a short extract of the author’s production; then, we approach the book considering the effects of the dictatorial period on the characters trajectory; finally, we carry out a brief analysis of the identity category, grounded in Zigmunt Bauman (2005). Therefore, we aim to conduct a study that intends to understand, interpret,

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68718 Brazilian Journal of Development and characterize the characters trajectories in the wake of the social phenomena based on the fictional text and its historical context, reflecting on the characters identities in the liquid-modern- world, taking into account the condition of the contemporary individual.

Keywords: As Meninas, Military dictatorship, Identities.

1 INTRODUÇÃO 1.1 LYGIA, A VOZ DOS ESCAMOTEADOS As principais formas de pressionar o regime opressor ocorreram a partir dos anos 1970, no seio dos setores progressistas da Igreja Católica ou, ainda, nos partidos e associações de esquerda. No livro O estranho horizonte da crítica feminista no Brasil (2003), Heloísa Buarque Hollanda corrobora que as importantes conquistas dos militantes brasileiros teriam ocorrido vinculadas à religião ou ao papel familiar da mulher, desvencilhando-se um pouco do modelo patriarcal. As manifestações do movimento feminista desde a década de 1970, como também a inserção das mulheres no mercado de trabalho e na vida acadêmica, desencadearam uma quebra no silêncio das historiadoras. Sobre a produção literária de Lygia Fagundes Telles (L F T), muito já foi dito, aplaudido e criticado, entretanto, seus textos são corpus inesgotáveis de pesquisas. Escritores e pesquisadores como Carlos Drummond, Antônio Candido, José Saramago, , , Regina Dalcastagnè, dentre outros nomes, enveredaram pelas obras lygianas. Em relação às narrativas de Lygia, Bosi (2015, p. 113) afirma que:

Sempre me impressionou o terrível senso de pura imanência que atravessa os contos de Lygia Fagundes Telles. Não há saídas nem para o círculo do sujeito fechado em si mesmo nem para o inferno das relações entre os indivíduos. tudo está submetido a lei da gravidade. Tudo tem peso, já caiu ou está prestes a cair. Natureza, história, Deus ... cifras de alguma forma de transcendência habitam fora e longe do cotidiano dessas personagens sem horizontes para os quais possam dirigir o olhar: um olhar ferozmente centrado nos limites da própria impotência. A tentação imediata que ronda o crítico que pretende, como dizem as vertentes pós-modernas, desconstruir a narrativa de Lygia é fazer, em primeiro lugar, uma leitura psicanalítica.

Bosi ainda corrobora que as narrativas lygianas direcionam o olhar para as relações sociais, os dramas do indivíduo situados na história, os conflitos do sujeito contemporâneo em que a experiência vivida no passado pelo personagem é a causa da ação presente. O corpus desta pesquisa, o romance As Meninas traz sob uma perspectiva da autora o inconformismo representado em algumas produções literárias na década de 1970, devido ao regime ditatorial e as mudanças sociais e culturais, propiciando assim, uma análise sobre a instabilidade nas identidades representadas pelas três protagonistas.

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Objetivamos diante dessa breve apresentação da produção de L F T, evidenciar as tensões e as instabilidades sociais retratadas no percurso das jovens Lia, Lorena e Ana Clara. Tomamos como base os estudos de Flora Süssekind (1985), Regina Dalcastagnè (1996), entre outros, sobre o período do regime militar brasileiro e em seguida, relacionar o estudo do sociólogo Zigmunt Bauman (2005) com o texto ficcional, mais especificamente, com as protagonistas do romance em análise.

2 MEMÓRIAS DE UM TEMPO SOMBRIO: CONTEXTO DA DITADURA O romance As meninas representa aproximações e sentidos entre o destino das personagens e o momento histórico que permeia a narrativa, ou seja, o regime militar iniciado em 1964. Escrita em 1973, por Lygia Fagundes Telles (doravante LFT), a obra traça um paralelo entre as vidas de três jovens – Lorena, Lia e Ana Clara– que vivem em um pensionato de freiras na cidade de São Paulo durante o período ditatorial no Brasil. A narrativa é construída sob a óptica dessas três personagens, com personalidades, histórias de vida, perspectivas e sonhos muito diferentes, que se entrelaçam em um mesmo internato. Monólogos, fluxos de consciência e relatos das personagens trazem marcas do tempo sombrio dos porões da ditadura. A produção literária de LFT mantém relações profundas com essa situação política, social, econômica e cultural. Após o golpe de 1964, as ideias de industrialização, urbanização e modernização passaram a se associar ao período do regime militar, que ofereciam um projeto de progredir com segurança, enquanto isso restringiam a liberdade democrática. Durante vinte anos (1964-1984), a sociedade brasileira viveu uma drástica repressão à democracia, que refletiu não apenas na evolução política, mas também social e cultural. Neste período, houve muitas mudanças, como a intensa busca pela modernização industrial, as perseguições e as torturas a quem se opusesse ao regime ditatorial. Instaurou-se a censura nas redações de jornais, nas emissoras de rádio e na televisão. Na educação, também houve interferência dos militares, os livros didáticos e os professores foram, igualmente, alvos de fiscalização. A censura imposta pelo militarismo e as tentativas de uma espécie de queima de arquivos que não favorecessem ao governo fizeram com que historiadores e jornalistas travassem uma batalha para resgatar memórias individuais e coletivas, produzindo e buscando vestígios de uma realidade passível de sobreposições. “A censura é algo terrível, mas nem usei nem vou usar a censura como pretexto para uma falta de obra, para uma falta de trabalho, disse o cineasta numa entrevista publicada simultaneamente no Estado de São Paulo e no Jornal do Brasil, em setembro de 1978.” (SÜSSEKIND, 1985, p. 34).

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Muitas músicas, textos, reportagens, filmes, dentre outros foram barrados pela censura. Diante disso, inconformados com a falta de liberdade, intelectuais e escritores tentavam representar e registrar o regime opressor, destacando as experiências, os relatos e os testemunhos dos perseguidores, como também dos perseguidos. Nesse momento de profunda crise e de grandes transformações sociais, alguns artistas brasileiros observavam, filosofavam e escreviam sobre as circunstâncias:

A literatura sobre a ditadura se constrói a partir desse palimpsesto e cumpre o papel de suplemento aos arquivos que, ainda quando abertos à população para consulta, são áridos e de difícil leitura. Ao criar personagens, ao simular situações, o escritor é capaz de levar o leitor a imaginar aquilo que, foi efetivamente vivido por homens e mulheres (RICOEUR, 1983, p. 399).

Deste modo, Ricoeur (1983) compara história e literatura, registrando a liberdade do escritor de ficção em relação aos fatos, o que lhe permite usar fontes de pesquisas vedadas ao historiador no que concerne à temporalidade. A prosa de ficção retrata o mal-estar vivido nas décadas da ditadura, trazendo personagens que deram vozes, não apenas de uma forma alegórica, mas representando o conturbado período. Nesse sentido, a literatura não apenas dá voz aos torturadores e torturados, mas traz a tensão e a sensibilidade de uma maneira mais detalhada, com pormenores e, na maioria das vezes, de forma verossímil. Como bem menciona Dalcastagnè (1996, p. 121) a literatura foi uma forma de denúncia e crítica ao período conturbado que se instaurou no país, o romance de L F T traz uma representatividade “de um tempo em que até sonhar poderia ser perigoso.” Para reforçar ainda mais o papel da literatura no resgate de memória, Candido (2004, p. 176) afirma que o texto literário atua em grande parte no inconsciente e no subconsciente. Reside aí a importância da literatura na busca do equilíbrio humano, já que “assim como não é possível haver equilíbrio psíquico sem o sonho durante o sono, talvez não haja equilíbrio social sem a literatura”, sendo esta assinalada pelo mesmo autor como fator indispensável de humanização. “Assim, a rememoração das vítimas não deve ser concebida como lamúria, mas como uma reparação moral e espiritual do sofrimento das gerações passadas.” (LÖWY, 2005, p. 51) No livro História concisa da literatura brasileira (2006), Alfredo Bosi afirma que diante desses acontecimentos políticos e sociais extremamente significativos, alguns escritores militantes, aguilhoados pelo desafio da situação nacional, refaziam a instância mimética, quase fotográfica da prosa documental. Vários autores buscaram registrar as problemáticas do período ditatorial em seus textos e reafirmar vozes, muitas delas abafadas e escamoteadas. Dentre eles, podemos mencionar Caio Fernando de Abreu, Antonio Callado, , Lygia Fagundes Telles, entre outros que produziram contos, autoficção, romances, enfim, textos de literatura e de resistência.

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Neste artigo, nos deteremos ao livro As Meninas, de Lygia Fagundes Telles, que mistura memórias individuais e conflitos do presente tortuoso, formando um “diálogo feito muito mais de questionamentos do que de respostas” (DALCASTAGNÈ, 1996, p.120), aliando à ditadura militar implicações éticas, morais e religiosas, trazendo para o leitor elementos que evidenciam o receio e a insegurança que o homem contemporâneo das grandes cidades vivencia. Em 2008, numa entrevista concedida para a Revista Brasileira de Psicanálise, L F T afirma: “esse romance As meninas foi escrito nos anos de chumbo, plena ditadura militar, 1970; sou, como escritora, uma testemunha desse nosso tempo e dessa nossa sociedade” (TELLES, 2008, p. 20). A narrativa traz representações e denúncias da opressão, da perseguição e do momento caótico por que passava o Brasil, traços bem presentes na trajetória das personagens. As Meninas é um livro publicado há quase cinquenta anos, mas que ainda promove reflexões sobre o estado opressor e sobre a cultura de massa, narrando os encontros e desencontros de três garotas com o conturbado mundo que as cerca. Cada uma, a seu modo, carregando os traumas do passado, vivendo a inconstância do presente, reagindo de maneira diferente, mas sempre se apoiando, dialogando e refletindo sobre o futuro incerto. Trata-se, portanto, de um romance psicológico, existencial, sobre a alma humana, de narração não linear. Esses traços podem ser resquícios do momento conturbado em que se encontrava o país. Para Bosi (2017, p. 448), “o romance As meninas, de 1973, desenhou o perfil de um momento da vida brasileira, em que o fantasma das guerrilhas é apreendido no cotidiano de estudantes burguesas”. Assim, L F T traz a inclusão de diversas vozes textuais, a quebra das fronteiras narrativas e explora a polifonia de vozes urbanas. Esse romance, especificamente, sonda a alteridade a partir da política cultural da década de 1970, na qual o feminismo e a militância política se misturavam. A professora e escritora Regina Dalcastagné, no seu livro O espaço da dor (1996), enfatiza que:

Quem faz a história são mulheres comuns – indivíduos amedrontados que não só possuem outros problemas além daqueles enfrentados num regime autoritário como os explicitam continuamente. A violência nas ruas, a repressão, a censura só fazem agravar existências já conturbadas, trazendo à tona dúvidas e angústias, ou, pelo contrário, escondendo sentimentos que deveriam estar descobertos. [...] Por isso mesmo, entregar a narrativa a uma mulher é olhar a história sob outra perspectiva (DALCASTAGNÉ, 1996, p. 116).

Destarte, L F T conseguiu passar pela censura ao publicar o romance As meninas, no ano de 1973. Através do seu ponto de vista, a autora traz, em sua obra, uma amostragem da sociedade brasileira da cidade de São Paulo, principalmente, de mulheres na juventude durante os anos de chumbo. Os (des)caminhos das personagens demonstram indícios desse período. “Ana Clara fazendo amor. Lião fazendo comício. Mãezinha fazendo análise. As freirinhas fazendo doce, sinto

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68722 Brazilian Journal of Development daqui o cheiro quente de doce de abóbora. Faço filosofia”. (TELLES, 2009, p. 191). Lorena é uma jovem intelectual de classe média-alta; Lia, chamada pelas colegas de Lião, é militante política e feminista; e Ana Clara, apelidada de Ana Turva, é uma loira muito bela, mas que não consegue se libertar ou superar as marcas do passado tortuoso.

3 PERCURSO DAS IDENTIDADES: PENSIONATO X REFÚGIO De forma concisa, com o intuito de contextualizar a obra com a categoria de análise sobre identidades, falaremos sucintamente acerca das trajetórias das personagens do romance. Começaremos pelo espaço físico em que as jovens estão inseridas, esse elemento textual traz uma representatividade do período ditatorial, como também das identidades (des)contruídas pelas jovens. Um pensionato de freiras na cidade de São Paulo, local de devaneio onde as meninas se encontram e buscam proteção contra a violência externa. O fato das jovens estarem em um pensionato religioso coaduna com o que afirma Dalcastagné (1996): esse momento histórico trouxe várias implicações, inclusive religiosas. Ainda, por ser um espaço plural e provisório em qualquer percurso identitário, o Pensionato Nossa Senhora de Fátima é um local destinado a proteger as meninas contra os riscos da cidade de São Paulo e de sua sociedade multifacetada. Em um diálogo de Ana Clara com Max, a jovem diz: “Noivo costuma dar presentes importantes. Podia me dar o casaco de onça, não podia? Por que me dá dinheiro? Pensa que é só pagar um pensionato de pobre e uns alfinetes? Pensa, o bastardo. Tenho minhas dívidas, vou operar as amígdalas.” (TELLES, 2009, p. 127, grifo nosso). Vale refletir que, se Ana Clara define o lugar como um pensionato de pobre, Lorena também está inserida nesse espaço, preferindo o pensionato a ficar na casa da mãe, que tem boas condições financeiras, mas é uma senhora problemática, fútil e tresloucada, por isso o instituto torna-se um local mais agradável para a estudante. No entanto, ressaltamos que os reflexos sociais também estão inseridos no referido internato, posto que não é um casulo intocável, haja vista que sexo, drogas e, inclusive, a morte de Ana Clara, acontecem no espaço interno. As meninas sempre conversam com as freiras, principalmente, com Madre Alix, trazendo os conflitos externos para dentro do pensionato. O fragmento abaixo trata de um diálogo que Lia tem com Madre Alix:

— Não, Madre Alix. Confesso que estou mudando, a violência não funciona, o que funciona é a união de todos nós para criar um diálogo. Mas já que a senhora falou em violência vou lhe mostrar uma — digo e procuro o depoimento que levei para mostrar ao Pedro e esqueci. — Quero que ouça o trecho do depoimento de um botânico perante a Justiça, ele ousou distribuir panfletos numa fábrica. Foi preso e levado à caserna policial, ouça aqui o que ele diz, [...]. Dobro a folha. Madre Alix me encara. Os olhos cinzentos têm uma expressão afável. — Conheço isso, filha. Esse moço chama-se Bernardo. Tenho estado muito com a mãe dele, fomos juntas falar com o Cardeal. Agora é que eu não sei mesmo o

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que pensar. Muito especial, diria a Lorena. Nunca ninguém me deu tanto essa ideia de união de gelo e fogo como ela me dá (TELLES, 2009, p. 148-149).

A acolhida das freiras do pensionato às pensionistas é um indício de sua posição não- autoritária. Elas poderiam ter uma atitude dura em relação à militância de Lia ou à vida desregrada de Ana Clara, que bebe e usa drogas pesadas, mas têm uma atitude relativamente tolerante, uma vez que apenas conselhos são dados a Ana Turva. De acordo com Maria José Rosado Nunes:

Após um primeiro momento de entusiasmo com a instalação dos militares no poder, ela [uma parte da Igreja Católica no Brasil] passou a integrar o movimento civil de resistência ao regime ditatorial militar. Por essa época surgiu um novo pensamento teológico, que procurava fundamentar-se numa análise sociológica da realidade e era respaldado pelo patrimônio ideológico do catolicismo, com o seu ideal de aproximação dos pobres. Trata- se da Teologia da Libertação (NUNES, 2011, p. 503-504).

As freiras se dividem entre a proteção, a educação e o assistencialismo, sem rigidez. No romance, as irmãs que habitam o pensionato - Madre Alix, Irmã Bula, Irmã Priscila e Irmã Clotilde – buscam meios para exercerem as suas funções de modo harmonioso, sem perseguições ou retaliações. Elas citam a Bíblia para, com isso, passarem os seus recados às protagonistas. Observemos, por exemplo, o seguinte diálogo entre Madre Alix e Lia:

Sou forte à beça. — Não, Lia. Vocês são frágeis, filha. Você, Lorena. Quase tão frágeis, quanto Ana Clara. Haja o que houver, não deixe de me dar notícias. Conte comigo. — Vou lhe mandar meu diário, Madre Alix. Ao invés de cartas, um diário de viagem! Ela me acompanha até a porta. — Posso lhe dar uma epígrafe? É de Gênesis, aceita? — pergunta e sorri. Sai da tua terra e da tua parentela e da casa de teu pai e vem para a terra que eu te mostrarei. É o que você está fazendo — acrescentou. Hesitou um pouco: - É o que eu fiz (TELLES, 2009, p. 150).

As religiosas tornam-se conselheiras, acolhem e alertam as meninas, mostrando suas fragilidades e suas limitações. Apresentamos outro fragmento no qual Madre Alix fala para Lia que, apesar de conviver e conversar com as meninas, não consegue enxergar um propósito ou o que elas realmente querem ser. Isso se torna um ponto relevante do romance, o de identidades rasuradas, simuladas e descontruídas1:

Vocês me parecem tão sem mistério, tão descobertas, chego a pensar que sei tudo a respeito de cada uma e de repente me assusto quando descubro que me enganei, que sei pouquíssima coisa. Quase nada — exclamou e abriu as mãos em espanto. — O que sei, afinal? Que é da esquerda militante e que perdeu o ano por faltas? Que tem um namorado preso, que está escrevendo um romance e que está pensando numa viagem que não tenho ideia para onde seja? Que sei eu sobre Lorena? Que gosta de latim, que ouve música o dia inteiro e que está esperando o telefonema de um namorado que não telefona? Ana Clara, aí está. Ana Clara. Como me procura e faz confissões, eu podia ficar com a impressão de que sei tudo a respeito

1 Falaremos mais adiante sobre “identidades”.

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dela. Mas sei mesmo? Como vou separar a realidade da invenção? (TELLES, 2009, p. 143- 144).

O enredo de L F T traz um período ditatorial que gera nessas protagonistas diferentes efeitos. A maior parte do texto é narrada por Lorena, mas as ações perigosas são protagonizadas por Ana Clara e Lia. Ademais, Lorena faz de tudo para que as outras compartilhem sua companhia e histórias íntimas. Também oferece dinheiro emprestado para Ana Clara comprar drogas e empresta seu carro para Lia fazer operações clandestinas. Assim, as jovens personagens, através do fluxo de consciência, expõem turbilhões de pensamentos, sensações, receios, desejos, como também impressões visuais (que resultam em sensações e/ou constatações), olfativas (“cheiro de mijo”, “de pipi”, “de fumo”, “do Doutor Algodãozinho”, “do céu”) e auditivas (músicas ouvidas por Lorena, que também ouve Lia ao subir a escada, etc), (cf. RODRIGUES, 2014). Desta maneira, elas vão se apresentando através dessas características ao leitor, sendo também uma forma de se caracterizarem, haja vista as tentativas de superação do passado, de proteção no presente e de projeção para o futuro. Lorena de Vaz Leme, inicialmente, mostra-se equilibrada, sensível e sensata. Prefere manter- se distante de qualquer posicionamento político, observando tudo do seu mundinho. Interessante ressaltar que a jovem sai apenas duas vezes do pensionato, sendo ali um ponto de refúgio das problemáticas sociais e políticas. Uma jovem delicada, intelectual e burguesa que dedica o seu tempo à faculdade de Direito, a leituras e a ajudar suas colegas dentro do pensionato. A jovem ainda fantasia seu romance com um homem imaginário, um médico casado, Marcus Nemesius, com o qual estabelece uma relação de possível amante, colocando-se na condição de perder sua virgindade com um homem que tem uma esposa e filhos: “— Me mato se ele não telefonar — digo abrindo os braços e indo na ponta dos pés até a geladeira. — tenho uvas e maçãs maravilhosas, querida.” (TELLES, 2009, p.27). Lorena torna-se a conselheira de Lia e Ana Clara. Seu quarto, a concha, torna-se um ponto de apoio para as amigas que sempre a procuram para pedir algo. Inteligente e perspicaz, Lorena não se desequilibra com o momento da hegemonia autoritária em que se encontra o país:

Bom é ficar olhando a sala iluminada de um apartamento lá adiante, as pessoas tão inofensivas na rotina. Comem e eu não vejo o que comem. Falam e eu não ouço o que dizem, harmonia total sem barulho e sem braveza. Um pouco que alguém se aproxime e já sente odores. Vozes. Um pouco mais e já nem é espectador, vira testemunha. Se abre o bico para dizer boa-noite passa de testemunha para participante. E não adianta fazer aquela cara de nuvem para dentro e a janela-guilhotina fechou rápida. Eram laços frouxos? Viraram tentáculos. Ah, que alegria quando fico aqui sozinha. Sozinha. Como chupar escondida um cacho de uvas. ‘E a máquina do mundo, repelida, se foi miudamente recompondo’ — ah, preciso decorar isso, C.D.A. Minha poesia, minha música. Às vezes, os amigos (podiam

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ser menos vezes, ai meu Pai). A presença-ausência de M.N. Dos meus mortos. Rômulo, meu irmão. Paizinho. A lembrança de veludo de Astronauta. (TELLES, 2009, p. 59).

Já Lia de Melo Schultz vive o combate ao militarismo e as descobertas do seu mundo interior. Apesar das críticas que faz à burguesia, Lia sempre recorre à Lorena, jovem burguesa, para conseguir dinheiro, carro, dentre outros recursos para realizar a fuga com seu namorado Miguel, um preso político. Diante disso, percebem-se os impasses da esquerda, oriunda da classe média, em sua opção de luta radical contra a ditadura, mas, na maioria das vezes, tendo que recorrer à colaboração ambígua de setores da burguesia nacional. A personagem Lia, também chamada de Lião, é uma mulher destemida, aguerrida, combativa, que se comove com a situação de opressão do país. No romance, a personagem deixa clara sua revolta contra a burguesia:

Os que não têm carro pedem carona nos carros disponíveis que vão para o mesmo lado. São bem-humorados os intelectuais. Até as piadas. Mas, justiça seja feita, estão vigilantes. Sobretudo informados, pudera, se reunindo como se reúnem [...] A sorte é que o uísque não é nacional. Um ou outro mais fanático se irrita com o tom dos encontros, afinal, ele não reuniu só pro queijo e vinho quando as notícias são as piores possíveis: Eurico continua sendo sumido, foi preso assim que desembarcou e até agora ninguém sabe dele. Desapareceu como personagem de ficção científica, quando o homem metálico emite o raio e o tipo se dissolve com revólver e tudo fica no lugar uma manchinha de gordura. O japona deixou uma maleta na casa do irmão, avisou que ia buscar no dia seguinte. Faz um ano isso, a maleta ainda está lá. (TELLES, 2009, p. 32-33).

São vários os trechos em que Lia se revolta contra o regime instaurado no país, representando o movimento dos estudantes que aconteceu de maneira não muito eficaz durante o referido momento histórico. Lia ainda fala que ela e o namorado deveriam morrer, arrancar o coração para tentar salvar a pátria, mas que isso não adiantaria, pois a própria sociedade, inclusive a grande massa popular que serve à burguesia, não daria relevância. (TELLES, 2009, p. 20). Destarte, Lião traz à tona temas polêmicos para a época da publicação do livro. Temas como masturbação, sexualidade, homossexualidade, traição, dentre outros. A personagem mostra-se forte e desbravadora, lutando não apenas por seus ideais, mas, também, pelos ideais dos apoiadores da esquerda e da democracia brasileira. Isso preenche seu tempo e a jovem decide trancar o curso de Ciências Sociais devido ao número de faltas. Lia também tenta escrever um romance, mas resolve rasgá-lo por achar que ninguém daria relevância ao texto. Mesmo diante da constante luta contra a ditadura, a jovem relata suas experiências, seus desejos, seus sentimentos:

Fico olhando a mirrada pitangueira que nunca deu pitangas. Parece morta. Mas no lá no cerne ainda está viva. Lorena acompanhou a direção do meu olhar. Colheu uma folhinha, triturou-a entre os dedos. Cheirou-a. E inesperadamente deu-me as costas e subiu nos meus pés, “me leva!”. Agarrou-a pela cintura e coladas e lentas vamos indo, xifópagas pela

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alameda, ela me guiando porque com sua cabeça na frente da minha não vejo o caminho. Leve com o perfume de sabonete que sinto nos seus cabelos recém-lavados. Agora eles me cobrem a cara como um lenço aberto no vento. Penso em Carla, por que penso em Carla? Aperto-a mais. Ela ri, sente cócegas. A gente se ama, sim a gente se ama, isto é amor. Não sei explicar mas também amo Pedro. E o Bugre e Ana Turva, amo todos. Sou capaz de todos, Miguel principalmente. Seus pés escorregam em cima dos meus, desequilibra-se. Quase caio por cima dela. (TELLES, 2009, p. 166).

Lia não compartilha alguns desses sentimentos, dissimulando sua construção identitária, que o leitor vai percebendo apenas por meio do fluxo de consciência. A personagem também não fala sobre a infância, mas relembra que seu pai, que é alemão, foi um ex-militar nazista e ela sempre tenta fugir da superproteção da mãe que é baiana. Para suas colegas, Lião mostra-se mais ríspida, articulada, preocupada com a nação e com a prisão do seu namorado. Esse posicionamento pode ser reflexo do espaço em que está inserida. Assim, a jovem revolucionária engaja-se em ações contestatórias ao regime militar, participando de atividades políticas de grupos de esquerda, sempre envolvendo em seus planos o namorado. Ana Clara Conceição ou Ana Turva, como as colegas a chamam, traz consigo as marcas da infância, dos abusos sofridos, da falta de proteção e de referência, haja vista que sua mãe consentia os abusos sexuais. Molestada por um dentista, dentre outros homens, a jovem sempre relembra o tortuoso passado, mostrando o quanto isso foi impactante para ela e deixa aflorar também sua carência afetiva, deseja saber onde está sua avó, pois para ela, talvez, esta pudesse protegê-la dos abusos sofridos: “[...] mas por onde andava minha avó era uma coisa que eu gostaria de saber. Queria ter uma avó como a Madre Alix. Ter uma avó como a Madre Alix é ter um reino. Freira pode ser avó? Responde, pode? (TELLES, 2009, p. 38). A personagem lygiana ainda inicia, por ironia ou não, o curso de Psicologia e a carreira de modelo, mas seu sonho é casar com o “escamoso”, um homem que, apesar da aparência grotesca, é assim que ela o descreve, vai levá-la a ter uma vida na alta sociedade. Entretanto, ao mesmo tempo, a jovem se envolve com um traficante e se afunda no mundo da bebida, prostituição e drogas:

“Que é isso no seu braço? Uma picada?” Picada sim e daí. Paro com tudo quando bem entender. Vou ser capa de revista. Me casar com um milionário. Fique aí embananada porque o ano que vem. Como sou boa posso ainda ajudar você e seus piolhentos ajudo todos. Dou uma casa pras suas reuniões, dou uma casa pra Loreninha que vai ficar sem nada com aquela mãezinha esbordoando a fortuna [...] (TELLES, 2009, p. 90).

A jovem segue uma trajetória de decadência, cheia de conflitos internos e externos. Loreninha, como Ana Clara costuma chamar, torna-se um ponto de apoio para pegar roupas, perfumes e dinheiro emprestados. São raros os momentos que ela as procura apenas para conversar, sem interesse de pedir algo. Em um dos poucos diálogos, Lorena relata que a própria Ana sabe que

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68727 Brazilian Journal of Development sua situação é delicada: “[...] Amar meu próximo como a mim mesma, no caso, amar Ana Turva. ‘Já não estou turva, estou preta’, disse ela num dos seus raros momentos de bom humor.” (TELLES, 2009, p. 47). Sobre isso, Madeira (1999, p. 51) afirma que a personagem vai “refazendo o caminho materno de prostituição, drogas e morte”. No excerto abaixo, Ana Clara conversa com seu amante, relatando seus sonhos distópicos e esbraveja:

— Joias! — grito e sacudo Max que me olha mas continua dormindo. — Max, vou me casar com um escamoso mas não te abandono nunca. Está ouvindo, Max? Posso casar com mil escamosos e não te abandono nunca nunca. [...] Quando o escamoso começar a encher o saco me desquito. Metade das fábricas e estou livre livre. (TELLES, 2009, p. 94).

Esse é o modelo de ascensão que Ana Clara é impelida a seguir. Percebe-se uma digressão, um distanciamento cada vez maior do equilíbrio, e, mesmo estando em um pensionato, recebendo conselhos e ajuda das freiras e das colegas, a jovem decide enveredar por um caminho que não teve volta: “Vai mal a Ana Turva. De manhã já está dopada. E faz dívidas feito doida, tem cobrador aos montes no portão. As freirinhas estão em pânico. E esse namorado dela, o traficante […]” (TELLES, 2009, p. 47). A jovem guarda muito rancor, tem raiva de negros, ódio de Deus, fala mal e debocha das próprias colegas, inventa situações e cria expectativas em torno de sua própria imaginação.

4 IDENTIDADES SIMULADA, DESCARTADA E RASURADA Lorena, Lia e Ana Clara deparam-se constantemente com figuras masculinas. Algumas dessas figuras têm atribuições negativas, mesmo assim as jovens mantêm o desejo de relacionar-se ou pertencer a alguém. Muito provavelmente, na obra, Lygia traz uma crítica ao modelo patriarcal, sendo que, para as jovens “se encontrarem”, precisam se casar: Lorena com Marcus Nemesius; Lia com Miguel e Ana Clara com o escamoso e o caso que mantém com Max. De acordo com Bauman (2005, p.41), os problemas ligados às identidades e aos medos do homem pós-moderno “existem porque a precariedade, a instabilidade e vulnerabilidade são as características mais difundidas das condições de vida contemporânea”. A sociedade vive numa busca desenfreada por moldar-se a padrões em constante mutação, desencadeando, assim, segundo o sociólogo, uma crise identitária, uma subjetividade fragmentada, uma busca de equilíbrio, nem sempre alcançado, de valores já perdidos em um período histórico tão desestruturado. Diante do exposto, percebe-se que as meninas não conseguem acompanhar as evoluções, as truculências, as perturbações e a instabilidade que permeia o momento. Destarte, essa descaracterização pode e deve ser fatores que afetam as identidades instáveis, rasuradas e descartadas, a que a sociedade contemporânea vem se adequando de forma líquida (cf. BAUMAN 2005).

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Em Lorena, temos a mais acabada construção da identidade simulada (o paroxismo de sua simulação é sua insistência em compor e dirigir a dramática cena da vida simulada na morte de Ana); Lorena é uma vida na sombra, que se esconde na sua concha, dentro do internato, vê tudo como uma simples espectadora; Em Ana Clara, temos a dramatização mais crua da identidade descartada; sua curta vida é uma experiência à margem; E, em Lia, temos a representação da identidade rasurada ao ver indo por terra seu projeto militante e ter que fugir; Lia representa o esforço por manter a vida na rua, nos espaços públicos como espaços de convívio solidário. O que se percebe no percurso das três jovens são os percalços. Seja Lorena, que representa a classe burguesa e sonha em ter um relacionamento com um homem casado ao mesmo tempo em que se isola na sua “concha” para fugir de todos os conflitos externos, rasurando completamente sua identidade ao camuflar a morte de sua colega; ou Lia, que tranca a universidade, desistindo de militar contra o regime ditatorial e da idealização da liberdade política, e também de lutar por uma sociedade igualitária e democrática, tendo como opção traçar um plano de fuga para ela e seu namorado, mostrando sua transitoriedade e fragilidade, que até então era encoberta. Deste modo, Lião vê na fuga a única saída, fugir é uma contingência que se impôs. Assim, a rasura da identidade de Lia se inicia na trajetória de uma vida transiente, imposta pelo militarismo, promovendo, desse modo, uma rasura identitária que, segundo Bauman (2005), poderá levar a um caminho de descarte identitário. Não há solidez, não há espaço de conforto para ninguém em um período autoritário; Ana Clara, que sonha com ascensão social, espera casar-se com um homem rico, mas entrega-se ao mundo das drogas e da prostituição, na tentativa de superar ou fugir do seu passado. Seu envolvimento com as drogas afeta, cada vez mais, as suas ações e os seus comportamentos, havendo uma rasura da sua identidade, que perpassa da rasura para a identidade descartada, tendo como desfecho uma perda irreparável, sua própria vida. Assim, cada uma das jovens carrega sequelas da nossa sociedade conturbada e torna-se uma amostragem dos conflitos internos, trafegando por dilemas diferentes. Ancorando-nos no texto Identidades, de Bauman (2005), que fala de experiências transientes como responsáveis por identidades simuladas que, quase sempre, resultam em identidades descartadas, concluímos que, nos três casos estão presentes a experiência individual, familiar e social das personagens, Ora, simular é parecer o que não é; sua outra face é dissimular, ou seja, esconder o que é. Sendo assim, as experiências de traumas, que podem ser também transientes do ponto de vista pessoal, promovem uma memória rasurada que impõe suas marcas sem apagar, totalmente, as marcas anteriores. Evidenciamos isso no percurso da narrativa: a identidade simulada de Lorena, tendo com desfecho a simulação da morte de sua colega; a identidade no limite de Lia e

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68729 Brazilian Journal of Development as etapas no descarte da identidade de Ana Clara. Em síntese, a identidade simulada é uma rasura na história pessoal, mas uma rasura que não é absoluta, uma rasura que ainda permite laços com uma construção identitária anterior que se quer dissimular. A rasura total seria a ruptura com os projetos de maior investimento de energia, de maior empenho afetivo, o ponto a partir do qual a pessoa somente conta com seus próprios e frágeis limites, o caminho aberto para o descarte identitário. Por fim, o sociólogo polonês escolhe o termo “líquido” como metáfora para comparar o estado das mudanças: a sociedade contemporânea que, para ele, é fácil de ser moldada e incapaz de manter suas propriedades originais. As formas de vida moderna se assemelham pela vulnerabilidade e fluidez, incapazes de manter a mesma identidade por muito tempo. As jovens, Lorena, Lia e Ana Clara não conseguem traçar objetivos concisos, perdem-se no meio do caminho: uma planeja a fuga, a outra se autodestrói e Lorena simula, friamente, a morte de Ana Clara e, dissimuladamente, espera por Marcus Nemesius.

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