A MORTE DE ALEXANDRA MCCLEAN Telmo Rodrigues

m Janeiro de 1978, depois de uma digres‑ de suportar mais um ano às voltas com os pa‑ Esão americana, os Sex Pistols separavam‑se.­ péis de Larkin para poder garantir a posição de A banda que tinha começado como golpe publi‑ professor, cansado por saber que nada de novo citário para vender calças da loja Sex, proprieda‑ se seguiria; pelo contrário, quando os biógrafos de de Malcolm McLaren e Vivienne Westwood, vêm animados pelo entusiasmo, tudo no biogra‑ tornara­‑se na representante de um movimento fado parece especial e único. Em 1998, quando se que, originalmente, nem era britânico; com o celebravam vinte anos da morte de Denny, o jor‑ seu fim, cerca de dois anos após o seu primeiro nalista Jim Irvin publicava, na revista Mojo, um concerto, acabavam as esperanças de que na gé‑ longo artigo em que revia a carreira da cantora nese do punk estivesse algum tipo de ideologia. através dos testemunhos de algumas pessoas Em Abril desse ano, Alexandra Elene McClean próximas de Denny. O título do artigo de Irvin, Denny faleceria, alguns dias depois de ter sido «: O Anjo de Avalon» k, não con‑ encontrada inanimada em casa da amiga Mi‑ voca apenas as modas literárias do final da dé‑ randa Ward. O impacto da sua morte seria, na‑ cada de noventa, mas a ideia de que a biografada turalmente, superficial, quando comparado com pertence a um mundo diferente do mundo real. todas as convulsões mediáticas em volta dos Anos mais tarde, inspirado pelo artigo de Irvin e Pistols e do punk. A incapacidade de assegurar o pela agitação em torno de reedições da obra de lugar de destaque a que explicitamente aspirava Denny, Clinton Heylin editaria uma biografia de no mundo da música foi sempre vista como uma Denny. A biografia de Heylin não é tão explícita falha por Denny; o seu último disco a solo, Ren‑ no seu título (Acabaram­‑se os Refrões Tristes), dezvous, editado no Verão de 1977, era um último mas não esconde, desde o prefácio, a ideia de que esforço para obter o reconhecimento pelo seu Denny pertence a um espaço diferente, que não trabalho. A voz de Denny, sujeita durante anos ao é apenas mais uma cantora. Talvez parte do pro‑ abuso de álcool, estava já em decadência; no en‑ blema esteja relacionado com o facto de ambos tanto, seria a agitação em volta dos Pistols e dos começarem por relatar a morte de Denny e de punks, para quem esse ano se tornaria sagrado, esse relato estar intimamente associado à des‑ que ditaria que esse último esforço não passasse crição de Jon Cole. Cole, um amigo que tinha de uma nota de rodapé naquele Verão. ficado de passar por casa de Miranda para ve‑ Philip Larkin imaginava, no poema «Posteri‑ rificar como estava Denny, refere como, nessa ty», o seu biógrafo, entediado, a pensar que teria segunda­‑feira, 17 de Abril, quando se deslocava

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sozinho no carro para o ensaio da sua banda, tradição popular. O ritual de cantar canções tradi‑ já tinha decidido que não valeria a pena ir ver cionais envolvia nomear o título da canção, o local Denny; no entanto, diz que a certa altura nesse onde tinha sido ouvida e a sua origem (referindo­ percurso ouviu uma voz feminina pedir ajuda. ‑se à região onde era originalmente cantada ou, Não sendo dado a ouvir vozes, nas suas próprias em alternativa, ao volume onde se encontrava re‑ palavras, resolveu voltar atrás e passar por casa gistada a versão que ia ser cantada); ignorar este de Miranda, onde encontrou Denny desmaiada processo era ignorar a pureza a que se pretendia à porta da casa de banho. Vestia umas calças de chegar nos cancioneiros que se coleccionavam boca de sino e uma camisola cor­‑de­‑rosa de an‑ e actualizavam como bíblias. Denny, e, de uma gorá. Na sexta‑feira­ seguinte, às oito da noite, forma geral, a sua geração, nunca se preocupou depois de três dias em coma, as máquinas que a muito com estas formalidades, mais impressiona‑ mantinham viva seriam desligadas. da com o sucesso de Dylan do que com variantes Alexandra Denny nasceu em Wimbledon, a 6 arcaicas de canções que ouvira toda a vida; esta de Janeiro de 1947. O nome Sandy, o diminutivo atitude impediu que tivesse acesso imediato ao escocês de Alexandra, pelo qual seria conhecida circuito de pubs londrinos onde os cantores mais quase toda a vida, ter­‑lhe­‑á sido atribuído pela notáveis deste período actuavam. No entanto, avó paterna, orgulhosa das origens escocesas da a agitação em volta da folk dera lugar a um cir‑ família. Revelando sempre um enorme desprezo cuito alternativo de pubs onde os mais jovens e pelas instituições académicas que frequentou, menos dados a certas formalidades podiam can‑ Denny manteve, desde cedo, uma relação pró‑ tar, onde a folk tradicional convivia com o rock. xima com a música, embora os muitos desenhos Foi aí, nesse circuito, que a carreira de Denny que partilham espaço com as letras de canções começou, com um reportório que misturava can‑ nos seus cadernos demonstrem que sempre pro‑ ções tradicionais com canções de compositores curou estar relacionada com outras artes. Terá contemporâneos (nomeadamente americanos). sido a facilidade em lidar com a música, parti‑ A sua reputação foi crescendo e, num mundo de cularmente pela forma intuitiva como a com‑ homens, Denny dava nas vistas tanto pela sua preendia, que a levou a privilegiar essa arte em voz como pela forma como lidava com o álcool. detrimento das outras. A sua breve passagem A facilidade de se movimentar em meios tenden‑ pelo Kingston Art College é outra demonstra‑ cialmente masculinos permitiu‑lhe­ criar uma ção da tentativa de manter uma relação próxima rede de conhecimentos que, fortuitamente, lhe com as artes, em detrimento de profissões mais ia permitindo cantar em espaços mais relevantes. clássicas como a enfermagem, a que se dedicou A rapariga que afirmara ter dificuldade em falhar durante um breve período. Esta displicência notas quando cantava tinha, nessa voz, a arma será central para a sua vida e trará consequên‑ para se impor num meio que fora, desde os pri‑ cias para a sua carreira; não é, contudo, nem uma meiros momentos, adverso. Quando começava a característica que a torne especial nem uma con‑ sobressair neste pequeno meio musical, chegou sequência de ser especial. o convite para ser vocalista dos Fairport Conven‑ Na Londres em que Denny cresceu, os Beatles tion; aceitar este convite seria a primeira decisão e o rock americano partilhavam o espaço com o errada de uma carreira que se fundou sobre mui‑ revivalismo folk. Enquanto nos Estados Unidos a tas decisões erradas. folk compilava nomes de afro­‑americanos desco‑ Com os Fairport, Denny sentir­‑se­‑ia mais nhecidos, no Reino Unido a recolha não se con‑ protegida. O medo crónico de enfrentar o públi‑ centrava em intérpretes, mas sobretudo em reco‑ co acompanhá‑la­ ­‑ia durante toda a carreira, um lher variantes de canções que já faziam parte da medo que o álcool ajudava a debelar, mas que a

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presença de terceiros em palco anulava. Foi com era uma espécie de comuna não oficial, onde os Fairport que as capacidades de Denny como um conjunto de pessoas se movimentava e com‑ compositora se começaram a revelar, embora a portava como se o mundo fora daquele espaço sua participação ainda fosse mais enquanto can‑ estivesse parado. As metáforas pastorais, que tora do que compositora. Tal como a carreira a já marcavam a escrita de Denny, encontravam solo de Denny, a carreira dos Fairport ficaria aqui o seu espaço, a Avalon possível. Denny vi‑ marcada pela constante promessa de ascensão veria aí até aos últimos dias da sua vida, quando ao estrelato e pelas consequentes desilusões que o seu alcoolismo parecia já fora de controlo; os eram os discos (pelo menos no que diz respei‑ habitantes da pequena aldeia queixavam‑se­ do to às vendas). Com os Fairport, Denny gravou seu comportamento errático, particularmente três discos: What We Did On Our Holidays (69) depois de Denny ter sido mãe. A segurança de k, (69)k e Liege & Lief (69)k. Georgia, nascida em Julho de 77, terá sido uma Mais tarde, juntar­‑se­‑ia aos Fairport, noutras das razões para Lucas deixar a mulher, levando condições, para gravar Rising For the Moon (75) consigo a filha. Lucas terá avisado Miranda na k, quando o seu marido, o australiano Trevor quinta­‑feira anterior ao dia em que Denny foi Lucas, passou a fazer parte da banda. Ironica‑ encontrada inanimada, dizendo­‑lhe, por telefo‑ mente, tinha sido Lucas a causa da sua saída ne, que Denny estava descontrolada e pedindo­ dos Fairport quando, já envolvidos numa rela‑ ‑lhe que olhasse por ela. Miranda recolheu a ção intensa que duraria até ao final da vida de amiga em casa e tratou dela durante o último Denny, decidiram formar os . Mais fim­‑de­‑semana. Denny queixava­‑se de dores de uma vez, o sentido de oportunidade de Denny cabeça desde que dera uma queda numa visita falhava; Liege & Lief seria o mais bem sucedido à casa dos pais, alguns dias antes; na altura, não disco dos Fairport e a saída de Denny represen‑ terá sido vista por um médico porque, segundo tava um final abrupto na ascensão da banda. Os Heylin, a mãe se recusara a ser vista com a «filha Fotheringay não chegariam ao segundo disco bêbada». A causa de morte oficial, hemorragia e a eles seguiram‑se­ anos a lutar pelo disco a cerebral, é consistente com estes relatos e afas‑ solo perfeito, uma luta tão displicente como a ta os rumores sobre ingestão excessiva de álcool sua vida académica, confiante de que a sua voz ou drogas; ao que parece, a morte de Denny terá seria, no final, suficiente. A primeira tentativa, sido resultado da decisão de não consultar um que contou com a ajuda de Richard Thompson, médico aquando da primeira queda. seria The North Start Grassman and The Ravens Da descrição da morte de Denny, Irvin e (71)k. Seguir­‑se­‑iam Sandy (72)k, Like an Old Heylin retiveram o aspecto místico da voz que Fashioned Waltz (74)k e Rendezvous (77)k. Cole diz ter ouvido; mas o aspecto central, Talvez o momento crucial da carreira de a pontuar a vida desta cantora, seria destacar o Denny tenha sido uma decisão em nada relacio‑ que ela trazia vestido: umas calças de boca de nada com a música: o seu casamento com Lucas, sino. Quando Denny editou Rendezvous, já não em 1973, e a subsequente mudança do centro havia ninguém para a ouvir, já não havia nin‑ de Londres para a pequena localidade de By‑ guém para reencontrar; como muitas das coisas field. Esta aldeia, e outras nas suas imediações, que estimara e que, de alguma forma, ajudara a albergavam, por esta altura, muitas das figuras criar, Denny fazia parte do conjunto de coisas de proa da geração de Denny. Era uma geração contra o qual a nova geração se rebelava. Quan‑ à procura do seu idílio campestre, na esperan‑ do Denny afirma, acerca das canções que escre‑ ça de poder continuar a viver um estilo de vida via: «[as letras] são autobiográficas, [apesar de] que anunciava o seu colapso nos meios urbanos; só umas dez pessoas conseguirem percebê‑las.­

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Basicamente pego numa história e reduzo­‑a ao cedo, os ingredientes para a fama, num mundo essencial… Não escreveria canções se não sig‑ musical já dominado pela imprensa: relações nificassem nada para mim mas não estou pre‑ com pessoas famosas, como os hipotéticos casos parada para contar a minha vida privada a toda com Pete Townshend ou Frank Zappa, consumo a gente, como faz a Joni Mitchell. Gosto de ser de drogas e álcool em grandes quantidades, um um pouco mais evasiva nesse aspecto» (Heylin, casamento atribulado com muitos casos extra‑ p. 139), estará consciente da dificuldade que as conjugais, ou uma passagem, ainda que breve, pessoas teriam em relacionar­‑se com aquilo que pelas fileiras da cientologia, seriam razões su‑ cantava; imaginar que bastava a sua voz para ficientes para justificar a visibilidade mediáti‑ que as pessoas se pudessem relacionar com as ca que nunca teve. A inquestionável qualidade suas canções terá sido outro dos erros de cál‑ vocal, as competências reconhecidas enquanto culo que Denny terá cometido. Com este tipo compositora e as atribulações pessoais, que mui‑ de escrita, Denny estava condenada a não ser tas vezes bastam para impor nomes ao público, ouvida, particularmente a partir do momento não chegaram para a tornar na figura incon‑ em que uma nova geração se rebelava contra o tornável que parecia destinada a ser. Por vezes, virtuosismo que tinha tomado conta do mundo o reconhecimento advém da capacidade que al‑ da música. Nos anos que precederiam a sua gumas pessoas têm para fazer escolhas certas no morte, os anos do punk, a utilização de metáfo‑ momento certo; por vezes, a escolha de um par ras e subtilezas era um tipo de ofensa grave; se, de calças é mais relevante do que tudo o resto num certo sentido, a sua vida dependia do su‑ e, em 1978, vestir um par de calças de boca de cesso deste último disco, Denny estaria, desde sino era equivalente a falar uma língua morta logo, condenada. que mais ninguém entende: havia outras calças A ironia do insucesso comercial de Denny re‑ à venda que lhe granjeariam um lugar mediático. side no facto de a sua vida conter, desde muito

REFERÊNCIAS

Heylin, Clinton. No More Sad Refrains: The Life and Times of Sandy Denny. 2000. New York: Omnibus Press, 2011.

IMAGENS

1. Sandy Denny numa sessão fotográfica de Keith Morris, 3. Denny fotografada por Anton Corbijn, 1975.k em 1972.k 4. Denny com os Fotheringay, 1970 (fotografia de Barrie 2. Denny e , à porta do registo civil de Fulham, Wentzell).k no dia do seu casamento, em 1973. (sem registo de auto‑ ria)k

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