v.09.03article | ruy braga 705

sociologia & antropologia

setembro – dezembro 2019 issn 2238-3875 a return of class struggle without class? Sociologia & Antropologia destina-se à UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO 706apresentação, circulação e discussão Reitor Roberto Leher de pesquisas originais que contribuam Vice-Reitor para o conhecimento dos processos Denise Fernandes Lopez Nascimento socioculturais nos contextos INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS SOCIAIS brasileiro e mundial. A Revista está Diretora aberta à colaboração de especialistas Susana de Castro Amaral Vieira de universidades e instituições de PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO pesquisa, e publicará trabalhos EM SOCIOLOGIA E ANTROPOLOGIA inéditos em português e em inglês. Coordenação Sociologia & Antropologia ambiciona Rodrigo Santos Felícia Picanço constituir-se em um instrumento de interpelação consistente do debate contemporâneo das ciências sociais e, assim, contribuir para o seu desenvolvimento.

S678 Sociologia & Antropologia. Sociologia & Antropologia. Revista do Programa de Revista do PPGSA Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia da Programa de Pós-Graduação em Universidade Federal do Rio de Janeiro. – v. 9, n.3 Sociologia e Antropologia (set.-dez. 2019) – Rio de Janeiro: PPGSA, 2011– Largo de São Francisco de Paula 1 sala 420 Quadrimestral 20051-070 Rio de Janeiro RJ t.+55 (21) 2224 8965 ramal 215 ISSN 2238-3875 [email protected] 1. Ciências sociais – Periódicos. 2. Sociologia – sociologiaeantropologia.com.br Periódicos. 3. Antropologia – Periódicos. I. revistappgsa.ifcs.ufrj.br Universidade Federal do Rio de Janeiro. Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia. Publicação quadrimestral aug., 2019 aug., –

Triannual publication CDD 300 Solicita-se permuta Exchange desired 493, may. 493, –

Indexadores EBSCOHOST PROQuEST SCiELO SCOPUS SEER/IBICT Diretórios DOAJ CLASE SUMÁRIOS.ORG Catálogos LATINDEX Portal de Periódicos CAPES sociol. antropol. | rio de janeiro, v.09.02: 469 | rio de janeiro, antropol. sociol. volume 9 número 3 setembro –dezembro de 2019 quadrimestral 707 issn 2238-3875

sociologia & antropologia

ppgsa programa de pós-graduação em sociologia e antropologia ufrj universidade federal do rio de janeiro, brasil CORPO EDITORIAL (Universidade do Estado do Rio de Janeiro/IESP, Brasil) 708Editores José Vicente Tavares dos Santos (Universidade Federal do Rio de Janeiro, Brasil) (Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, Brasil) André Botelho (Editor Responsável) Josefa Salete Barbosa Cavalcanti Antonio Brasil Jr. (Universidade Federal de Pernambuco, Recife, Brasil) Elina Pessanha Leonilde Servolo de Medeiros Marco Antonio Gonçalves (Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, Seropédica, Brasil) Maria Laura Cavalcanti Lilia Moritz Schwarcz (Universidade de São Paulo, Brasil e Princeton University, New Comissão Editorial Jersey, United States) (Universidade Federal do Rio de Janeiro, Brasil) Manuela Carneiro da Cunha Els Lagrou (University of Chicago, Illinois, United States) José Reginaldo Gonçalves Mariza Peirano José Ricardo Ramalho (Universidade de Brasília, Distrito Federal, Brasil) Glaucia Villas Bôas Maurizio Bach Editor Associado (Universität Passau, Bavaria, Germany) Maurício Hoelz (UFRRJ) Michèle Lamont Assistentes Editoriais (Harvard University, Cambridge, Massachusetts, United States) Julia O'Donnell Patrícia Birman Rodrigo Santos (Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Brasil) Peter Fry Conselho Editorial (Universidade Federal do Rio de Janeiro, Brasil) Alain Quemin Philippe Descola (Université Paris 8, Saint-Denis, France) (Collège de France, Paris, France) Anete Ivo Renan Springer de Freitas (Universidade Federal da Bahia, Salvador, Brasil) (Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, Brasil) Brasilio Sallum Junior Ruben George Oliven (Universidade de São Paulo, Brasil) (Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, Brasil) Carlo Severi Sergio Adorno (École des Hautes Études en Sciences Sociales, Paris, France) (Universidade de São Paulo, Brasil) Charles Pessanha (Universidade Federal do Rio de Janeiro, Brasil) Cristiana Bastos PRODUÇÃO EDITORIAL (Universidade de Lisboa, Portugal) Projeto gráfico, capa e diagramação Edna Maria Ramos de Castro a+a design e produção (Universidade Federal do Pará, Belém, Brasil) Glória Afflalo Elide Rugai Bastos Preparação e revisão de textos (Universidade Estadual de Campinas, São Paulo, Brasil) Maria Helena Torres Ernesto Renan Freitas Pinto (Universidade Federal do Amazonas, Manaus, Brasil) Gabriel Cohn (Universidade de São Paulo, Brasil) Guenther Roth (Columbia University, New York, United States) Helena Sumiko Hirata (Centre National de la Recherche Scientifique, Paris, France) Heloísa Maria Murgel Starling © Programa de Pós-Graduação em (Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, Brasil) Sociologia e Antropologia / UFRJ Huw Beynon Direitos autorais reservados: a reprodução integral de artigos (Cardiff University, Wales, United Kingdom) é permitida apenas com autorização específica; citação Irlys Barreira parcial será permitida com referência completa à fonte. (Universidade Federal do Ceará, Fortaleza, Brasil) João de Pina Cabral Apoio (University of Kent, United Kingdom) José Sergio Leite Lopes (Universidade Federal do Rio de Janeiro, Brasil) José Maurício Domingues André Botelho, editor responsável 709

APRESENTAÇÃO

“Tão longe, tão perto: Sociologia & Antropologia no limiar de uma década” abre este volume 9 número 3 da revista, que marca mudanças em sua gestão direta, trazendo um balanço editorial qualificado a partir de mapa semântico e biblio- métrico de sua coleção de artigos produzido por meio de metodologias infor- macionais. Fortalecendo iniciativa que vem singularizando o periódico desde sua criação em 2011 na veiculação da produção científica de ponta no Brasil, o número apresenta um conjunto de textos sobre a obra do antropólogo Keith Hart, que se inicia com entrevista realizada por Federico Neiburg e Fernando Rabossi. Nela, Keith Hart articula sua trajetória intelectual, o impacto de suas pesquisas na África urbana na remodelagem da antropologia econômica e as- pectos de bastidores da história da antropologia anglo-saxã. Na sequência da entrevista, Horacio Ortiz discute a relevância da extensa reflexão de Hart sobre o dinheiro para uma antropologia política da indústria financeira global. Por sua vez, Fernando Rabossi busca reconstituir os caminhos do conceito de in- formalidade, formulado pioneiramente por Hart na década de 1970 e que, des- de então, vem sendo amplamente empregado e desdobrado na análise das eco- nomias dos chamados países em desenvolvimento. Esse conjunto é comple- mentado, na seção de Registros de Pesquisa, por “O dinheiro é como aprendemos a ser humanos”, texto do próprio Hart, em que aponta a convergência atual na internet do dinheiro e da linguagem como meios de comunicação humana; e, ainda, por resenha de Theodoros Rakopoulos sobre o manuscrito inédito de Hart intitulado “Self in the world”. Segue-se na seção Artigos, “The bipolarity of democracy and authorita- dez., 2019 dez., rianism: value patterns, inclusion roles and forms of internal differentiation of –

political systems” de Anna L. Ahlers e Rudolf Stichweh, que propõe uma teoria sociológica da inclusão e diferenciação funcional para analisar as transforma- 710, set. 710,

– ções nos regimes políticos democráticos e autoritários que polarizam a socie- dade mundial hoje. Por sua vez, em “A história de Gigante: conservação e caça no Pantanal”, Felipe Süssekind aborda o primeiro estudo de campo científico sobre a ecologia da onça-pintada, realizado no final dos anos 1970 no Pantanal brasileiro por George Schaller, explorando as tensões, nos relatos dessa experiência, entre um texto conservacionista e um livro escrito por um caçador profissional e guia de safáris. Sergio Pignuoli Ocampo, em “Símbolo y comunicación − hacia un con- cepto de comunicación simbólica desde la teoría general de sistemas sociales”, discute a possibilidade de elaboração de um conceito geral de comunicação simbólica que amplie a teoria luhmanniana dos meios de comunicação simbo- licamente generalizados. sociol. antropol. | rio de janeiro, v.09.03: 709 | rio de janeiro, antropol. sociol. apresentação | andré botelho, editor responsável

710

Em “Women’s war: gender activism in the Vietnam War and in the wars for Kurdish autonomy”, Mariana Miggiolaro Chaguri e Flávia X. M. Paniz debatem a interface entre a produção do gênero, da guerra e das ideias, argumentando, a partir de narrativas desses dois eventos de conflito armado, que a experiência de luta das mulheres pode produzir novas mediações entre gênero e nação. “Gerencialismo e pós-gerencialismo: em busca de uma nova imaginação para as políticas educacionais no Brasil”, de Marcelo Tadeu Baumann Burgos e Caíque Cunha Bellato, argumenta que a literatura “pós-gerencialista” permite aprofundar o debate democrático sobre as políticas educacionais brasileiras com base na Constituição de 1988, afastando-o de questões morais e ideológi- cas que o vêm pautando atualmente. Jorge Machado e Richard Miskolci, em “Das Jornadas de Junho à cruzada moral: o papel das redes sociais na polarização política brasileira”, indicam que a concentração do uso da internet em poucas plataformas afetou as comuni- cações – que antes eram mediadas pelas pessoas em diferentes contextos – no sentido de acentuar oposições binárias e formar consensos polarizados. O leitor encontrará também na seção Registros de Pesquisa o estudo de Enrique Valarelli Menezes sobre o manuscrito inédito “Síncopa”, de Mário de Andrade, que integra uma série de projetos inacabados do escritor sobre músi- ca brasileira e cultura popular. O número se encerra com as seguintes resenhas, além da já citada: de Cultura brasileira hoje: diálogos (2018), livro em três volumes organizado por Flo- ra Süssekind e Tânia Dias, escrita por Eneida Maria de Souza; A sociologia enrai- zada de José de Souza Martins (2018), organizado por Fraya Frehse, escrita por Felipe Maia Guimarães da Silva; e La cruzada de los niños. Intelectuales, infancia y modernidad literaria en América Latina (2018), de Alejandra Josiowicz, por María Carolina Zapiola. Ótima leitura! dez., 2019 dez., –

710, set. 710, – sociol. antropol. | rio de janeiro, v.09.03: 709 | rio de janeiro, antropol. sociol. André Botelho, editor-in-chief 711

INTRODUCTION

“So far, so near: Sociologia & Antropologia at the threshold of a decade” opens Volume 9, Issue 3 of the journal, which marks changes in its direct management, providing a detailed editorial review based on a semantic and bibliometric map of its collection of articles, produced using information methodologies. Strengthening an initiative that has singled out the periodical since its creation in 2011 as an outlet for the latest scientific production in Brazil, the issue presents a set of texts on the work of anthropologist Keith Hart, beginning with an interview conducted by Federico Neiburg and Fernando Rabossi. In this interview, Keith Hart narrates his intellectual trajectory, the impact of his re- search on urban Africa in reshaping economic anthropology, and behind-the- scenes aspects of the history of Anglophone anthropology. Following the inter- view, Horacio Ortiz discusses the importance of Hart’s extensive reflection on money for a political anthropology of the global financial industry. Fernando Rabossi, in turn, seeks to reconstruct the paths taken by the concept of infor- mality, formulated in pioneering fashion by Hart in the 1970s and which since then has been widely employed and developed in the analysis of the economies of so-called developing countries. This set of texts is complemented in the Research Records section by “Money is how we learn to be human,” a text au- thored by Hart himself in which he highlights the current convergence on the internet of money and language as means of human communication, as well as by Theodoros Rakopoulos’s review of Hart’s unpublished manuscript Self in the World. Next comes the article “The bipolarity of democracy and authoritarian- ism: value patterns, inclusion roles and forms of internal differentiation of

dec., 2019 dec., political systems” by Anna L. Ahlers and Rudolf Stichweh, which proposes a –

sociological theory of inclusion and functional differentiation in order to ana- lyse the transformations in the democratic and authoritarian regimes that po- 712, sep. 712, larize today’s global society. Next, in “Giant history: conservation and hunting in the Pantanal,” Felipe Süssekind explores the first scientific field study of the ecology of jaguars, con- ducted at the end of the 1970s in the Brazilian Pantanal by George Schaller, examining the tensions found in the accounts of this experience between a conservationist text and a book written by a professional hunter and safari guide. Sergio Pignuoli Ocampo, in “Symbol and communication: towards a con- cept of symbolic communication based on the General Theory of Social Systems,” discusses the possibility of elaborating a general concept of symbolic commu- nication that expands Luhmann’s theory of symbolically generalized commu- nication media. sociol. antropol. | rio de janeiro, v.09.03: 711– | rio de janeiro, antropol. sociol. introtuction | andré botelho, editor-in-chief

712

In “Women’s war: gender activism in the Vietnam War and in the wars for Kurdish autonomy,” Mariana Miggiolaro Chaguri and Flávia X. M. Paniz de- bate the interface between the production of gender, war and ideas, arguing, based on narratives of these two armed conflicts, that women’s experience of fighting can produce new mediations between gender and nation. “Managerialism and post-managerialism: in search of a new imagination for educational policies in Brazil,” by Marcelo Tadeu Baumann Burgos and Caíque Cunha Bellato, argues that the ‘post-managerialist’ literature enables the dem- ocratic debate to be deepened on Brazilian education policies based on the 1988 Constitution, moving away from the moral and ideological issues that have recently dominated the agenda. Jorge Machado and Richard Miskolci, in “From the June demonstrations to the moral crusade: the role of social media networks in political polarization,” show how the concentration of internet use on a few platforms has altered communications – previously mediated by people in different contexts – by accentuating binary oppositions and forming polarized consensuses. In the Research Records section, readers will also find the study by En- rique Valarelli Menezes on the unpublished manuscript ‘Syncopation’ by Mário de Andrade, which forms part of a series of unfinished projects on Brazilian music and popular culture. The issue concludes with the following reviews, in addition to those already cited: Cultura brasileira hoje: diálogos (2018), a book in 3 volumes organ- ized by Flora Süssekind and Tânia Dias, reviewed by Eneida Maria de Souza; A sociologia enraizada de José de Souza Martins (2018), edited by Fraya Frehse, re- viewed by Felipe Maia Guimarães da Silva; and La cruzada de los niños. Intelectu- ales, infancia y modernidad literaria en América Latina (2018), written by Alejandra Josiowicz and reviewed by María Carolina Zapiola. Enjoy reading! dec., 2019 dec., –

712, sep. 712, sociol. antropol. | rio de janeiro, v.09.03: 711– | rio de janeiro, antropol. sociol. sociologia & antropologia 713

volume 9 número 3 setembro-dezembro 2019 quadrimestral issn 2238-3875

717 TÃO LONGE, TÃO PERTO: SOCIOLOGIA & ANTROPOLOGIA NO LIMIAR DE UMA DÉCADA André Botelho, Antonio Brasil Jr. e Maurício Hoelz

ENTREVISTA 743 ANTROPOLOGIA E ECONOMIA. TENTANDO FAZER UMA CONEXÃO SIGNIFICATIVA: ENTREVISTA COM KEITH HART Federico Neiburg e Fernando Rabossi

ARTIGOS 773 ANTROPOLOGÍA POLÍTICA DE LAS FINANZAS Y ANTROPOLOGÍA DEL DINERO Horacio Ortiz

797 LOS CAMINOS DE LA INFORMALIDAD Fernando Rabossi

819 THE BIPOLARITY OF DEMOCRACY AND AUTHORITARIANISM: VALUE PATTERNS, INCLUSION ROLES AND FORMS OF INTERNAL DIFFERENTIATION OF POLITICAL SYSTEMS Anna L. Ahlers e Rudolf Stichweh

847 A HISTÓRIA DE GIGANTE: CONSERVAÇÃO E CAÇA NO PANTANAL Felipe Süssekind

871 SÍMBOLO Y COMUNICACIÓN − HACIA UN CONCEPTO DE COMUNICACIÓN SIMBÓLICA DESDE LA TEORÍA GENERAL DE SISTEMAS SOCIALES Sergio Pignuoli Ocampo

895 WOMEN’S WAR: GENDER ACTIVISM IN THE VIETNAM WAR AND IN THE WARS THE KURDISH AUTONOMY Mariana Miggiolaro Chaguri e Flávia X. M. Paniz 714

919 GERENCIALISMO E PÓS-GERENCIALISMO: EM BUSCA DE UMA NOVA IMAGINAÇÃO PARA AS POLÍTICAS EDUCACIONAIS NO BRASIL Marcelo Tadeu Baumann Burgos e Caíque Cunha Bellato

945 DAS JORNADAS DE JUNHO À CRUZADA MORAL: O PAPEL DAS REDES SOCIAIS NA POLARIZAÇÃO POLÍTICA BRASILEIRA Jorge Machado e Richard Miskolci

REGISTROS DE PESQUISA 973 O MANUSCRITO INÉDITO “SÍNCOPA” DE MÁRIO DE ANDRADE E SUA BIBLIOTECA Enrique Valarelli Menezes

987 O DINHEIRO É COMO APRENDEMOS A SER HUMANOS Keith Hart

RESENHAS 1019 SELF IN (AND WITH) THE WORLD: KEITH HART’S MEMOIR Self in the world. Unpublished manuscript. Keith Hart Theodoros Rakopoulos

1025 ARQUIVOS EM MOVIMENTO Cultura brasileira hoje: diálogos. (2018). Flora Süssekind e Tânia Dias (orgs.). Rio de Janeiro: Fundação Casa de Rui Barbosa. 3 v. Eneida Maria de Souza

1031 UMA FESTA PARA JOSÉ DE SOUZA MARTINS A sociologia enraizada de José de Souza Martins. (2018). Fraya Frehse (org.). São Paulo: Com-Arte. Felipe Maia Guimarães da Silva

1037 LAS INFANCIAS LATINOAMERICANAS ENTRE EL ARTE Y LA POLÍTICA: UNA ORIGINAL ENCRUCIJADA La cruzada de los niños. Intelectuales, infancia y modernidad literaria en América Latina. (2018). Alejandra Josiowicz. Buenos Aires: Universidad Nacional de Quilmes Editorial. María Carolina Zapiola sociologia & antropologia 715

volume 9 number 3 september-december 2019 triannual issn 2238-3875

717 SO FAR, SO NEAR: SOCIOLOGIA & ANTROPOLOGIA ON THE THRESHOLD OF A DECADE André Botelho, Antonio Brasil Jr. and Maurício Hoelz

INTERVIEW 743 ANTHROPOLOGY AND ECONOMY. TRYING TO MAKE A MEANINGFUL CONNECTION: AN INTERVIEW WITH KEITH HART Federico Neiburg and Fernando Rabossi

ARTICLES 773 THE POLITICAL ANTHROPOLOGY OF FINANCE AND THE ANTHROPOLOGY OF MONEY Horacio Ortiz

797 THE PATHS TO INFORMALITY Fernando Rabossi

819 THE BIPOLARITY OF DEMOCRACY AND AUTHORITARIANISM: VALUE PATTERNS, INCLUSION ROLES AND FORMS OF INTERNAL DIFFERENTIATION OF POLITICAL SYSTEMS Anna L. Ahlers e Rudolf Stichweh

847 GIANT STORY: CONSERVATION AND HUNTING IN THE BRAZILIAN PANTANAL Felipe Süssekind

871 SYMBOL AND COMMUNICATION − TOWARDS A CONCEPT OF SYMBOLIC COMMUNICATION BASED ON THE GENERAL THEORY OF SOCIAL SYSTEMS Sergio Pignuoli Ocampo memórias e experiências de pesquisa na casa das minas de são luís do maranhão

716

895 WOMEN’S WAR: GENDER ACTIVISM IN THE VIETNAM WAR AND IN THE WARS FOR KURDISH AUTONOMY Mariana Miggiolaro Chaguri and Flávia X. M. Paniz

919 MANAGERIALISM AND POST-MANAGERIALISM: IN SEARCH OF A NEW IMAGINATION FOR EDUCATIONAL POLICIES IN BRAZIL Marcelo Tadeu Baumann Burgos and Caíque Cunha Bellato

945 FROM THE JUNE DEMONSTRATIONS TO THE MORAL CRUSADE: THE ROLE OF SOCIAL MEDIA NETWORKS IN POLITICAL POLARIZATION Jorge Machado and Richard Miskolci

RESEARCH RECORDS 973 THE UNPUBLISHED MANUSCRIPT ‘SYNCOPATION’ BY MÁRIO DE ANDRADE AND HIS LIBRARY Enrique Valarelli Menezes

987 MONEY IS HOW WE LEARN TO BE HUMAN Keith Hart

REVIEWS 1019 SELF IN (AND WITH) THE WORLD: KEITH HART’S MEMOIR Self in the world. Unpublished manuscript. Keith Hart Theodoros Rakopoulos

1025 ARCHIVES IN MOVEMENT Cultura brasileira hoje: diálogos. (2018). Flora Süssekind e Tânia Dias (orgs.). Rio de Janeiro: Fundação Casa de Rui Barbosa. 3 v. Eneida Maria de Souza ago., 2019 ago.,

– 1031

A FESTIVAL FOR JOSÉ DE SOUZA MARTINS A sociologia enraizada de José de Souza Martins. (2018). 383, mai. 383,

– Fraya Frehse (org.). São Paulo: Com-Arte. Felipe Maia Guimarães da Silva 1037 LATIN-AMERICAN CHILDHOODS BETWEEN ART AND POLITICS: AN INTERSECTIONAL ORIGINAL La cruzada de los niños. Intelectuales, infancia y modernidad literaria en América Latina. (2018). Alejandra Josiowicz. Buenos Aires: Universidad Nacional de Quilmes Editorial. María Carolina Zapiola sociol. antropol. | rio de janeiro, v.09.02: 365 | rio de janeiro, antropol. sociol. http://dx.doi.org/10.1590/2238-38752019v931

1 Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), 717 Departamento de Sociologia e Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia, Rio de Janeiro, RJ, Brasil [email protected] https://orcid.org/0000-0001-6815-9040 André Botelho I 11 Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Il Departamento de Sociologia e Programa de Pós-Graduação Antonio Brasil Jr. Ill em Sociologia e Antropologia, Rio de Janeiro, RJ, Brasil Maurício Hoelz [email protected] https://orcid.org/0000-0001-8653-668X

111 Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ), Departamento de Ciências Sociais, Seropédica, RJ, Brasil [email protected] https://orcid.org/0000-0002-1392-0645

TÃO LONGE, TÃO PERTO: SOCIOLOGIA & ANTROPOLOGIA NO LIMIAR DE UMA DÉCADA

Apresentamos um mapa semântico e bibliométrico da coleção de artigos de So- ciologia & Antropologia. Revista do PPGSA realizado a partir de metodologias infor- macionais, em particular o uso de certos métodos e técnicas de análise que se vêm difundindo em decorrência dos estudos bibliométricos e cientométricos. Publicada pelo Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (PPGSA/UFRJ), desde 2011, a revista se vem consolidando na última década como um dos periódicos mais impor- tantes de veiculação da produção científica de ponta das ciências sociais no

dez., 2019 dez., Brasil. Nesse relativamente curto período, tanto testemunhou mudanças signi- –

ficativas na sociedade brasileira, e noutras em escala global, como protagonizou mudanças fundamentais no campo das ciências sociais, incluídas as que dizem 739, set. 739,

– respeito às políticas editoriais científicas. Sociologia & Antropologia destina-se à apresentação, circulação e discussão de pesquisas originais que contribuam para o conhecimento dos processos so- cioculturais nos contextos brasileiro e mundial. Faz parte de sua missão, como se pode ler em nossa página oficial, valorizar as oportunidades de intercâmbio entre pontos de vista convergentes e divergentes nesses diferentes campos do conhecimento, mas de modo muito especial nos campos da sociologia e da antropologia. Essa é a proposta expressa pelo símbolo “&”, que, no título da revista, interliga as denominações de nossas duas disciplinas referenciais. Diferente do que ocorreu tradicionalmente em outros contextos, no Bra- sil as três disciplinas das ciências sociais – antropologia, ciência política e so- sociol. antropol. | rio de janeiro, v.09.03: 717 | rio de janeiro, antropol. sociol. atão casa longe, das minastão perto: de são sociologia luís do maranhão& antropologia e a saga no limiar de nã deagontimé uma década

718

ciologia – permanecem, desde suas origens universitárias na década de 1930, ainda hoje bastante ligadas, não obstante vários processos de especialização disciplinar também perpassem suas histórias, sobretudo mais recentemente. No caso de Sociologia & Antropologia, a revista aposta no relacionamento ativado pelo Programa de Pós-Graduação que a publica – hoje o único da região Sudes- te a ter a nota máxima (7) de avaliação na Capes na área da sociologia – e que inspirou e tem inspirado outros programas no Brasil a investir nos diálogos intelectuais entre a sociologia e a antropologia. O mapa que apresentamos é uma aposta nas metodologias informacio- nais. Como veremos, técnicas como as de acoplamento bibliográfico entre arti- gos e cocitação de autores nos ajudam a dar visibilidade e inteligibilidade a dados não apenas quantitativos, mas também qualitativos distintos daqueles produzidos por balanços bibliográficos tradicionais. Embora se trate de uma discussão em aberto, a emergência do chamado Big Data vem suscitando um amplo debate sobre os métodos e técnicas de pesquisa empírica nas ciências sociais (Burrows & Savage, 2014; Savage & Burrows, 2007). A integração da SciELO como uma das bases regionais da Web of Science (WoS) em 2014 (Vélez-Cuartas, Lucio-Arias & Leydesdorff, 2015) – certamente uma das principais bases de dados de artigos científicos no mundo – elevou a um novo patamar as perspectivas de exploração bibliométrica das publicações brasileiras em periódicos. Isso possibilitou a extração rápida e confiável dos principais metadados de cada artigo publicado na base SciELO – título, resumo, palavras-chave, data, instituição, referências bibliográficas etc. – e a modelagem das redes de interação entre artigos a partir de softwares como Pajek, VOSViewer e Gephi. Sem essas inovações fundamentais, tanto no plano das políticas cien- tíficas (Packer, 2014) quanto no aperfeiçoamento de métodos e ferramentas de exploração bibliométrica (Cobo et al., 2011), não seria viável esse tipo de distant reading da produção em artigos que está tensionando e mesmo redefinindo o ago., 2019 ago., dez., 2019 dez.,

– tipo mais tradicional e assentado de balanço bibliográfico.

Para dimensionar o campo problemático em formação e as perspectivas em aberto por essas novas metodologias nas ciências humanas, mais do que 429, mai. set. 429, 739,

– simplesmente para ilustrar nosso argumento, vale rever brevemente algumas questões com as quais nos defrontamos numa de nossas experiências passadas com mapas, levantamentos e balanços bibliográficos qualitativos, isto é, a pes- quisa que fizemos no âmbito das comemorações dos 40 anos da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais, a Anpocs, sobre os balanços bibliográficos promovidos pela própria entidade.1 Na segunda parte do texto apresentamos os dados sobre Sociologia & Antropologia obtidos por meio de métodos informacionais e técnicas bibliomé- tricas de análise. Essa estratégia não é aleatória, uma vez que desejamos justa- mente contrastar abordagens qualitativas (como as que são relatadas na pri- meira parte) e quantitativas (como as que realizamos na segunda), problemati- zando ganhos e perdas em um tipo ou outro. O contraste entre as abordagens, sociol. antropol. | rio de janeiro, v.09.02: 387 v.09.03: 717 | rio de janeiro, antropol. sociol. artigoandré botelho| maria laura , antonio viveiros brasil de jr. castro e maurício cavalcanti hoelz

719

porém, em vez de sugerir a ideia de escolha entre uma delas e a exclusão da outra, quer antes reforçar nossa posição sobre a necessidade de mais ampla complementariedade entre as duas abordagens, até como forma de dar densi- dade a uma hermenêutica dos dados projetados computacionalmente.

BALANÇOS BIBLIOGRÁFICOS: UM GÊNERO EM TRANSIÇÃO? Realizar balanços bibliográficos abrangentes e sistemáticos para mapear ou co- nhecer o estado da arte de uma área de conhecimento, de uma linha de pesqui- sa ou mesmo de um tema ou a trajetória de um conceito tornou-se hoje desafio sem precedentes, também nas ciências sociais – pelo inegável crescimento des- sas disciplinas nas últimas décadas, no Brasil e no mundo, bem como pela multiplicação e relativa fragmentação dos suportes tradicionais de sua veicu- lação e publicação, notadamente do livro monográfico para o artigo publicado em periódicos científicos. Naturalmente, a incorporação cotidiana e crescente das ferramentas digitais ao trabalho acadêmico também aí desempenha seu papel decisivo. E com ambiguidade, sem dúvida, uma vez que ao mesmo tempo em que permite integrar imensa massa de dados e informações antes dispersas, seu caráter extremamente dinâmico também torna necessariamente inacabado todo o trabalho de recuperação, classificação e tratamento qualitativo dos dados. Está-se indo embora, parece, o tempo em que balanços bibliográficos tradicionais, do tipo que resenhavam livros numa área de pesquisa, eram pra- ticados e amplamente aceitos como retratos suficientemente válidos do estado da arte de um tema ou área de pesquisa. Atualmente, fazer balanços bibliográ- ficos abrangentes tornou-se tarefa ainda mais arriscada, e exige muito tempo e espaço para evidenciar minimamente a pluralidade e a diversidade de abor- dagens, temas e questões presentes num universo virtualmente infinito, como o digital. Desafios do mesmo tipo têm levado a recortes que nem sempre dão uma ideia integrada de conjunto das áreas em pauta. Em trabalho sobre os 40 anos da Anpocs (Botelho, Ricupero & Brasil Jr., 2017), discutimos um breve retrato das ciências sociais praticadas no Brasil a partir dessa Associação, analisando de modo mais detido justamente os balan- ços bibliográficos por ela diretamente induzidos ao longo dos últimos 20 anos para as áreas de sociologia e de ciência política. Notamos, primeiro, certas pre- dominâncias temáticas e de enfoque teórico-metodológico que parecem expri- mir as especificidades do modo pelo qual se deu a formação do Estado-nação e de uma comunidade política moderna no país. Segundo, e mais importante ain- da para nosso tema hoje, a notável preocupação recorrente da Anpocs com a situação de suas disciplinas, pois ela tem sido pródiga na indução e mesmo promoção direta desse tipo de pesquisa e material bibliográfico. Suas atividades nessa direção incluem pelo menos dois materiais distintos: periódicos e coletâ- neas. No primeiro caso, incluem-se a Revista Brasileira de Ciências Sociais (RBCS), em cujas páginas podem-se encontrar diferentes balanços sobre a produção das atão casa longe, das minastão perto: de são sociologia luís do maranhão& antropologia e a saga no limiar de nã deagontimé uma década

720

disciplinas, de suas áreas de pesquisa e de seus temas ou fenômenos específicos, ainda que não se delineie em sua política editorial qualquer orientação especí- fica nesse sentido. Mais significativo a esse propósito é um segundo periódico mantido pela Associação desde sua fundação, em 1977, a Revista Brasileira de Informação Bibliográfica em Ciências Sociais (BIB). Como seu título sugere, a propos- ta editorial da BIB é justamente veicular balanços bibliográficos das áreas co- bertas pelas ciências sociais, propósito com o qual se consolidou como uma das principais fontes de referência, sobretudo para estudantes de pós-graduação em fase de pesquisa. Uma terceira publicação da Associação, a Brazilian Review of Social Sciences (BRSS), cujos dois únicos números foram publicados em outubro de 2000, também tem interesse para o problema em questão neste estudo, uma vez que, justamente por ser uma publicação em inglês, busca divulgar a produ- ção das ciências sociais brasileiras num contexto de leitores mais amplo do que o lusófono. Quanto às coletâneas, elas têm reunido sem dúvida balanços os mais exaustivos possíveis sobre áreas de pesquisas, temas e questões das disciplinas, escritos em geral por especialistas de renomada reputação acadêmica em suas respectivas áreas, ainda que em diferentes momentos da carreira. São elas: o anuário Ciências Sociais Hoje, publicado entre 1980 e 1996 com o intuito de reunir os melhores trabalhos apresentados nas reuniões anuais da Anpocs; os quatro volumes intitulados O que ler na ciência social brasileira, publicados os três pri- meiros em 1999, o último em 2002; e, por fim, a coletânea em três tomos, como os três primeiros volumes da coletânea anterior também classificados por dis- ciplinas (antropologia, ciência política e sociologia), publicada em 2010 e inti- tulada Horizontes da Ciência Sociais no Brasil. Essas coletâneas são particularmente importantes já que não constituem modalidades mais espontâneas de reflexão individual ou de um grupo de pes- quisa localizado sobre o estado da arte de um tema; mas, antes, são encomen- ago., 2019 ago., dez., 2019 dez.,

– das que seguem objetivos e parâmetros mais amplos compartilhados institu-

cionalmente numa política editorial da Associação sobre a produção acadêmica de suas disciplinas. Procuram, assim, reunir análises reflexivas e inéditas sobre 429, mai. set. 429, 739,

– a produção intelectual substantiva num conjunto de áreas temáticas relevantes, redigidas por cientistas sociais qualificados selecionados pela Associação junto aos organizadores das coletâneas. Como pudemos discutir no levantamento realizado para a comemoração dos 40 anos da Anpocs, os temas escolhidos em cada disciplina para objeto de levantamentos bibliográficos encomendados pela Associação encontram ressonância e correspondência (ainda que não estrita) com as trajetórias dos seus principais grupos de trabalhos (GTs). A título de esclarecimento, dos mais de 200 grupos de trabalho apresentados à Anpocs ao longo dos seus primeiros 40 anos, trabalhamos com 32 deles, que, nomeados igualmente (ou com poucas variações), estiveram presentes na Anpocs por pelo menos dez anos. sociol. antropol. | rio de janeiro, v.09.02: 387 v.09.03: 717 | rio de janeiro, antropol. sociol. artigoandré botelho| maria laura , antonio viveiros brasil de jr. castro e maurício cavalcanti hoelz

721

Não estamos, obviamente, sugerindo que não exista mais interesse em balanços qualitativos de perfil mais restrito e tradicional, como esses que nós mesmos realizamos. Seu sentido, entretanto, parece, no mínimo, ter sido des- locado num mundo acadêmico informacional. Na verdade, o interesse por esse tipo de narrativa, prioritário ao efeito de verossimilhança mais ou menos pre- tendido, está hoje justamente nos seus limites. São a precariedade com que inevitavelmente operam suas demarcações e sua tendência a lidar com procedimentos estabilizadores e cânones muito parciais, que implicam potencialmente a exclusão de propostas marginais aos grupos organizadores das revisões, que acabam por se tornar objeto de interesse. Afinal, nem sempre os balanços pretendem apontar necessariamente a teoria mais sofisticada ou ajuizar de alguma forma as diferentes posições em jogo, mas sempre permitem justamente captar tendências e, sobretudo, a formação de rotinas intelectuais num campo de debates no interior de uma área de pesquisa que vai, assim, se configurando e se transformando (Botelho & Hoelz, 2016). In- teressante, a esse propósito, é a leitura atenta das introduções dos organizado- res dos volumes, além dos autores dos artigos neles coligidos, nos quais toda sorte de procedimentos, códigos e convenções é mobilizada no sentido de justi- ficar as escolhas inevitáveis nesse tipo de trabalho, sobre o que decidiram co- mentar ou o que ficou excluído. São peças retóricas ricas justamente na forma- ção de rotinas intelectuais. Essa espécie de close reading, para falar como Franco Moretti, não é, no en- tanto, toda a história. É possível substituir a leitura de perto por uma reflexão mais abrangente, vista de longe, uma espécie de, por contraste, distant reading: um “modo de trabalhar em que a distância não é um obstáculo, mas sim uma forma específica de conhecimento. A distância faz com que se vejam menos os detalhes, mas faz com que se observem melhor as relações, os pattern, as formas” (Moretti, 2008: 8). Em suma, o que deixamos de perceber mesmo quando olhamos tão de perto? Padrões, relações, formas, fundamentalmente. Então vamos a eles.2

UMA DISTANT READING DE SOCIOLOGIA & ANTROPOLOGIA Desde sua criação, em 2011, Sociologia & Antropologia (S&A) ambicionava alcançar, em curto e médio prazos, a excelência que caracteriza o Programa de Pós-Gra- duação em Sociologia e Antropologia, que a edita, o que compreenderia desde o projeto gráfico e a identidade visual, passando pela composição do Conselho Editorial e perfil dos colaboradores, a definição das normas editoriais e a criação de página na web para que a revista tivesse acesso efetivamente aberto, até a implementação de uma gestão editorial profissionalizada visando à qualificação, difusão e ao impacto por meio da indexação em bases conceituadas. Em pouco menos de dois anos Sociologia & Antropologia receberia classificação B1 no Qua- lis Periódicos da Capes e seria indexada nas bases CLASE, DOAJ, EBSCOHOST, Latindex, ProQuest e Sumários.org. Em cinco anos, a revista se adequaria às atão casa longe, das minastão perto: de são sociologia luís do maranhão& antropologia e a saga no limiar de nã deagontimé uma década

722

novas regras de internacionalização adotadas pelo SciELO em 2015, tornando-se quadrimestral e passando a publicar também em inglês e, desde então, apenas em formato digital. Em 2016 S&A galgaria o estrato superior na avaliação da Capes, receben- do conceito A1, e passaria a integrar a Coleção SciELO, conquista essa bastante significativa tendo em vista que apenas 5% dos periódicos indexados na SciELO têm menos de 13 anos.3 Desde seu ingresso nessa base, Sociologia & Antropologia vem atingindo regularmente as metas de internacionalização e de distribuição regional e institucional estabelecidas no que se refere tanto à composição do Conselho Editorial quanto à quantidade de artigos em inglês e à filiação institu- cional de autores e revisores, o que a destaca no cenário dos periódicos nacio- nais. A revista tem-se singularizado também por estabelecer diálogo permanen- te entre a sociologia e a antropologia, como discutido, e por promover o enrique- cimento do debate nessas tradições disciplinares mediante a publicação de um conjunto de textos sobre autores relevantes, composto por entrevista e textos inovadores que operam com conceitos propostos pelo autor focalizado. Esse conjunto é publicado regularmente no primeiro e no último número de cada volume anual. Os seguintes autores já foram discutidos em entrevistas e textos inéditos publicados na revista: Max Weber, Claude Lévi-Strauss, Charles Tilly, Edward Sapir, Pierre Bourdieu, Victor Turner, David Harvey, Tim Ingold, Georg Simmel, Stephen Hugh-Jones, Karl Marx, Faye Ginsburg, Michel Foucault, Louis Dumont, Florestan Fernandes, Anthony Leeds, Jeffrey C. Alexander e, no número atual, Keith Hart. Desde 2018, a revista encontra-se também na base Scopus e no início do corrente ano entrou em análise para inclusão na Web of Science. A participação no limiar de uma década nesse empreendimento editorial nos tem impelido a uma reflexão sobre as condições do processo – desigual, mas combinado – de produção do conhecimento nas ciências sociais no Brasil em suas diferentes etapas – da captação de artigos, passando por sua avaliação e ago., 2019 ago., dez., 2019 dez.,

– revisão, até a publicação, divulgação e citação/impacto. Mas também sobre os

desafios constantes do trabalho propriamente intelectual envolvido na ativida- de editorial e o papel fundamental que os periódicos podem desempenhar não 429, mai. set. 429, 739,

– apenas na circulação e divulgação do conhecimento, mas na sua própria con- cepção, recepção e na indução de sua produção. De fato, tradicionalmente a publicação científica é vista como uma atividade de divulgação e apresentação de resultados de pesquisa, isto é, como se se situasse ao fim de uma espécie de cadeia produtiva do conhecimento. Lembrando ainda que, classicamente pela tradição culta ocidental, sobretudo nas ciências humanas, os artigos são vincu- lados aos livros. Sendo também isso, artigos e periódicos científicos, porém, são sociolo- gicamente bem mais do que isso. O que temos aprendido cada vez mais nos últimos anos na editoria de Sociologia & Antropologia é ser preciso estender as concepções de artigos e periódicos científicos para além daquelas habitualmen- sociol. antropol. | rio de janeiro, v.09.02: 387 v.09.03: 717 | rio de janeiro, antropol. sociol. artigoandré botelho| maria laura , antonio viveiros brasil de jr. castro e maurício cavalcanti hoelz

723

te assentadas. As proposições teóricas sobre a abordagem sociológica dos textos, como a de Don McKenzie (1999), Jerome McGann (1991) e as de Roger Chartier (1997, 2001 e 2002), de quem, aliás, já tivemos a oportunidade de publicar um artigo em Sociologia & Antropologia (v. 2, n. 3, de 2012), podem aqui ser lembradas. Elas são decisivas para a percepção social mais ampla sobre como publicações (científicas) modelam de modo decisivo o horizonte de expectativas de leitores e a própria prática do conhecimento (a pesquisa). Como mostra a sociologia dos textos de D. F. McKenzie (1999), por exemplo, não apenas a forma de um texto é crucial na composição de seu sentido, como à medida que textos são reproduzi- dos, reeditados e relidos assumem diferentes formas e significados. Textualida- de e materialidade da escrita estão intimamente associadas, assim como tam- bém forma e conteúdo constituem uma relação indissociável.4 Aproveitando a deixa de McKenzie, para quem a articulação entre texto e paratexto – índices, ilustrações, notas, tabelas – forma instâncias atuantes nos significados interpretáveis que modelam a leitura, trazemos agora, enfim, al- guns dados importantes para compartilhar com nossos leitores a reflexão sobre os nove anos cumpridos de publicação de Sociologia & Antropologia. Esses dados incluem tanto informações dos autores, como filiação insti- tucional (e localização espacial), dos próprios textos, como o idioma de publi- cação, e especialmente das conexões estabelecidas pelos textos de Sociologia & Antropologia entre si, por meio de técnicas bibliométricas como a análise de cocitação e de acoplamento bibliográfico. A produção desses dados, como ad- vertimos no início do texto, foi possível graças à integração da base SciELO como uma das coleções regionais da Web of Science, garantindo a extração rápida e confiável dos metadados (nome dos autores, instituições, idioma de publicação, palavras-chave etc.) e das referências bibliográficas de toda a coleção de Socio- logia & Antropologia. Em primeiro lugar, vamos à distribuição geográfica dos autores da revis- ta. Em relação à sua distribuição entre países – considerados do ponto de vista da filiação institucional do autor, e não de seu país de nascimento –, vemos uma natural concentração no Brasil (213 autores), como era de esperar. Logo em seguida, as principais contribuições vêm de dois países centrais das ciências sociais: França (19) e Estados Unidos (18). Apesar da presença significativa de autores situados na Argentina (12), o baixo número de contribuições dos demais países da América Latina indica que se trata de um desafio para S&A estimular uma frente de cooperação nessa direção – a adoção do espanhol como idioma de publicação nesta edição é indicador de que estamos caminhando nessa di- reção. atão casa longe, das minastão perto: de são sociologia luís do maranhão& antropologia e a saga no limiar de nã deagontimé uma década

724

Figura 1 Distribuição geográfica (por países) dos autores de S&A (afiliação institucional dos autores) Fonte: SciELO/WoS

PAÍSES/REGIÕES ARTIGOS

Brasil 213 França 19 Estados Unidos 18 Argentina 12 Portugal 7 Reino Unido 4 ago., 2019 ago., dez., 2019 dez., –

– Uruguai 2 Alemanha 2

429, mai. set. 429, 739, Canadá 1 – Chile 1 China 1 Cuba 1 Holanda 1 Suíça 1

Tabela 1 Distribuição geográfica (por países) dos autores de S&A (afiliação institucional dos autores) Fonte: SciELO/WoS sociol. antropol. | rio de janeiro, v.09.02: 387 v.09.03: 717 | rio de janeiro, antropol. sociol. artigoandré botelho| maria laura , antonio viveiros brasil de jr. castro e maurício cavalcanti hoelz

725

Em termos de distribuição por instituições brasileiras, vemos, como tam- bém seria de esperar, uma concentração no eixo Rio-São Paulo, o que exprime as desigualdades estruturantes da produção científica brasileira, em geral, e nas ciências sociais, em particular. Vale registrar, porém, a razoável dispersão entre instituições sediadas nas regiões Sudeste, Sul e Nordeste, a despeito da urgen- te necessidade de maior descentramento em relação ao Sudeste. Ainda um de- safio para S&A é a inclusão de mais instituições das regiões Centro-Oeste e Norte, que estão praticamente descobertas à exceção dos casos do Pará e do Distrito Federal.

Figura 2 Distribuição geográfica (por estados brasileiros) dos autores de S&A (afiliação institucional dos autores) Fonte: SciELO/WoS atão casa longe, das minastão perto: de são sociologia luís do maranhão& antropologia e a saga no limiar de nã deagontimé uma década

726 INSTITUIÇÕES REGISTROS ESTADO

UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO 65 RJ UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO 33 SP UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS 27 SP UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO 20 RJ UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE 12 RJ UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL 7 RS FUNDAÇÃO OSWALDO CRUZ 6 RJ FUNDAÇÃO GETULIO VARGAS 5 RJ PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DO RIO DE JANEIRO 5 RJ UNIVERSIDADE DE BRASÍLIA 5 DF UNIVERSIDADE FEDERAL DE SÃO CARLOS 5 SP UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS 5 MG UNIVERSIDADE FEDERAL RURAL DO RIO DE JANEIRO 4 RJ UNIVERSIDADE FEDERAL DE JUIZ DE FORA 3 MG UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARÁ 3 PA UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA 2 BA UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ 2 PR CENTRO DE ESTUDOS DE CULTURA CONTEMPORÂNEA 1 SP CENTRO ESTADUAL DE EDUCAÇÃO TECNOLÓGICA PAULA SOUZA 1 SP CENTRO FEDERAL DE EDUCAÇÃO TECNOLÓGICA DO RIO DE JANEIRO 1 RJ INSTITUTO BRASILIENSE DE DIREITO PÚBLICO 1 DF PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO 1 SP PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DO RIO GRANDE DO SUL 1 RS SÃO PAULO FACULTY OF TECHNOLOGY 1 SP UNIVERSIDADE FEDERAL DE CAMPINA GRANDE 1 PB UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO 1 PE ago., 2019 ago., dez., 2019 dez., –

– UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINA 1 SC UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA MARIA 1 RS

429, mai. set. 429, 739, UNIVERSIDADE FEDERAL DE SERGIPE 1 SE – UNIVERSIDADE FEDERAL DO ABC 1 SP UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEARÁ 1 CE UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESPÍRITO SANTO 1 ES UNIVERSIDADE FEDERAL DO MARANHÃO 1 MA UNIVERSIDADE VILA VELHA 1 ES

Tabela 2 Distribuição geográfica (por estados brasileiros) dos autores de S&A (afiliação institucional dos autores) Fonte: SciELO/WoS sociol. antropol. | rio de janeiro, v.09.02: 387 v.09.03: 717 | rio de janeiro, antropol. sociol. artigoandré botelho| maria laura , antonio viveiros brasil de jr. castro e maurício cavalcanti hoelz

727

S&A tem feito esforços consistentes no sentido de promover canais de in- ternacionalização da produção em ciências sociais no Brasil. Um desses canais se expressa no idioma de publicação. Quase 1/5 dos textos publicados na revista saiu em inglês, preferencialmente textos de autores brasileiros vertidos para esse idioma, na expectativa de aumentar o impacto de nossa produção em ou- tros contextos nacionais. Mais recentemente, estamos incluindo também textos de autores com afiliação estrangeira em inglês, revelando a progressiva integra- ção de S&A aos principais circuitos de publicação em ciências sociais no mundo. Por fim, um último indicativo relevante, em relação aos aspectos demo- gráficos da população de autores de S&A, é sua distribuição por gênero. A dis- tribuição encontrada – 56% de homens e 44% de mulheres como primeiros au- tores – indica, é certo, um desequilíbrio (embora não muito pronunciado) entre os gêneros, que deverá ser levado em conta para os próximos dez anos da re- vista e, na medida do possível, corrigido pelo trabalho editorial.

homens

mulheres 56% 44%

Figura 3 Distribuição da autoria dos artigos de S&A por gênero, considerando os primeiros autores. Fonte: Elaboração própria dos autores.

Como vem sendo discutido no campo interdisciplinar dos estudos ciento- métricos, as citações científicas criam relações em dois níveis interligados, mas distintos. De um lado, elas revelam citações entre autores ou instituições, isto é, criam redes sociais entre atores científicos que se citam (mutuamente ou não). De outro, as citações igualmente estabelecem conexões entre textos, ou melhor, criam redes textuais como subproduto da atividade citante dos produtores de arti- gos científicos, livros etc. Dito de outra maneira, a prática rotineira de citação de autores produz simultaneamente, em um nível reflexivo e emergente, uma rede de textos que se ligam entre si, com graus distintos de intensidade, a depender da variável relacional escolhida (Leydesdorff, 1998). Uma técnica há muito utili- zada, para esse fim, é o acoplamento bibliográfico, que nada mais é senão uma atão casa longe, das minastão perto: de são sociologia luís do maranhão& antropologia e a saga no limiar de nã deagontimé uma década

728

matriz de similaridade entre artigos que mensura o quanto cada texto comparti- lha com outro referências bibliográficas (Weinberg, 1974). Quanto maior o grau de compartilhamento, maior o peso das relações entre os textos (e vice-versa). Essa matriz fundamenta a modelagem de uma rede entre textos, em que a proximida- de ou o afastamento de seus diferentes “nós” (os artigos) exprime justamente o maior ou menor peso de suas “arestas” (a intensidade do compartilhamento de referências), conforme a notação que se convencionou utilizar na network theory (Borgatti & Halgin, 2011). A técnica do acoplamento bibliográfico possibilita situar S&A no interior das ciências humanas brasileiras e, mais especificamente, nas ciências sociais aqui praticadas. A fim de termos um contexto comparativo, extraímos igualmen- te as referências completas de toda a coleção SciELO “Ciências Humanas” entre 2002 e 2019 e classificamos as 90 revistas que integram essa coleção em áreas dis- ciplinares.5 Na imagem abaixo, vemos os artigos de S&A (em preto e em destaque) acoplados bibliograficamente na região nordeste da rede de artigos formada por essa coleção,6 integrando-se mais fortemente às publicações de ciências sociais (em verde) e de antropologia (em roxo), com alguma abertura para as áreas de his- tória (em laranja) e ciência política (em amarelo). Por outro lado, os artigos de S&A se desacoplam com maior nitidez, como esperado, das áreas de psicologia (em rosa), de saúde pública (em vermelho) e das revistas interdisciplinares (em azul escuro). Porém, esse contexto mais geral nos faz perder as especificidades de S&A no interior das ciências sociais, onde ela efetivamente se localiza. ago., 2019 ago., dez., 2019 dez., –

429, mai. set. 429, 739, –

Figura 4 Rede de acoplamento bibliográfico entre artigos da Coleção Ciências Humanas/SciELO Brasil (S&A em destaque). Fonte: SciELO/WoS. Visualização: VOSViewer e Gephi (algoritmo de visualização: ForceAtlas2) sociol. antropol. | rio de janeiro, v.09.02: 387 v.09.03: 717 | rio de janeiro, antropol. sociol. artigoandré botelho| maria laura , antonio viveiros brasil de jr. castro e maurício cavalcanti hoelz

729

Por essa razão, fizemos outro experimento detectando as formas de aco- plamento bibliográfico de S&A no contexto de 15 publicações em ciências sociais na base SciELO no mesmo período. Isso nos permite visualizar como os artigos de S&A se acoplam ou se desacoplam em relação aos demais periódicos científi- cos das ciências sociais, embora esse exercício não tenha qualquer pretensão de uma investigação exaustiva. Podemos fazer essa análise de acoplamento usando diferentes unidades de análise: a partir dos artigos (como fizemos acima) ou to- mando a própria revista como unidade. No último caso, apesar de aplainar as muitas arestas internas a cada publicação, o acoplamento bibliográfico entre re- vistas tem a vantagem de permitir a visualização da posição estrutural de cada periódico a partir de suas referências compartilhadas. Na próxima imagem, usa- mos o algoritmo de detecção de comunidades [modularity class] a fim de calcular quais revistas possuem maior probabilidade de compartilhar referências no in- terior do conjunto por elas formado (Blondel, 2008) – estabeleceram-se duas co- munidades, uma “socioantropológica”, em vermelho, e uma “sociopolítica”, em verde. Houve ainda uma partição relativa entre as regiões à direita e à esquerda da parte superior da rede, formadas grosso modo por publicações da ciência polí- tica e da antropologia, respectivamente; e outra partição entre os segmentos su- perior e inferior, com as revistas de sociologia e/ou ciências sociais se concen- trando de modo mais nítido no último. Observa-se que S&A, como era de esperar, está localizada na comunidade “socioantropológica” e, na topologia da rede, opera um papel de mediação entre as publicações da antropologia e as da socio- logia e/ou ciências sociais – daí sua posição ao centro e deslocada à esquerda.

Figura 5 Rede de acoplamento bibliográfico entre revistas de ciências sociais. Fonte: SciELO/WoS. Visualização: VOSViewer e Gephi (algoritmo de visualização: ForceAtlas2) atão casa longe, das minastão perto: de são sociologia luís do maranhão& antropologia e a saga no limiar de nã deagontimé uma década

730

Se quisermos agora descer ao nível dos artigos – o que permite capturar a heterogeneidade interna às publicações –, vemos destacados (em preto) na imagem abaixo os artigos de S&A no contexto dos demais artigos das 15 revis- tas. Os artigos das revistas de antropologia estão em azul, e os veiculados em periódicos da ciência política, em vermelho – polarizando a rede em seu eixo horizontal. Mediando as duas áreas, estão os artigos de revistas que reúnem sociologia e ciência política (em laranja), os das revistas de ciências sociais (em verde) e os que estão em publicações mais estritamente sociológicas (em ama- relo). Verificamos evidente concentração dos artigos de S&A à esquerda, fruto de seu significativo acoplamento com textos publicados em revistas da antro- pologia; por outro lado, há significativa presença dos artigos de S&A nas áreas em que se situam as revistas de sociologia e de ciências sociais, além de ser possível identificar algum acoplamento com os textos dos periódicos da ciência política. O dado que mais chama nossa atenção, porém, é a densidade da con- centração dos artigos de S&A justamente na fronteira entre a antropologia e a sociologia/ciências sociais, o que demonstra o sucesso de nosso empreendimen- to editorial – voltado para a comunicação e irritação mútua entre essas disci- plinas – e, além disso, a posição estrutural única da revista na publicação cien- tífica brasileira. ago., 2019 ago., dez., 2019 dez., –

429, mai. set. 429, 739, –

Figura 6 Rede de acoplamento bibliográfico entre artigos publicados em revistas de ciências sociais (S&A em destaque). Fonte: SciELO/WoS. Visualização: VOSViewer e Gephi (algoritmo de visualização: ForceAtlas2) sociol. antropol. | rio de janeiro, v.09.02: 387 v.09.03: 717 | rio de janeiro, antropol. sociol. artigoandré botelho| maria laura , antonio viveiros brasil de jr. castro e maurício cavalcanti hoelz

731

Outra técnica comumente usada nos estudos cientométricos é a análise de cocitação (White & Griffith, 1981). Trata-se de estabelecer relações entre dois autores citados em um mesmo documento – no nosso caso, nos artigos de S&A. Quanto maior a citação de um autor, maior o tamanho do “nó” que ele represen- ta; e quanto mais frequentemente um autor aparece citado ao lado de outro, maior é a espessura da “aresta” que representa graficamente suas relações. Abai- xo, temos visíveis os nomes de todos os autores citados pelo menos dez vezes em S&A – a rede subjacente foi criada a partir da ocorrência mínima de três vezes. Encontramos uma notável mescla de generalidade e especificidade aqui: temos tanto os autores que costumam ser muito citados nas ciências sociais brasileiras – em particular, Bourdieu, Foucault e os autores “clássicos” – quanto alguns nomes menos óbvios, que ganharam destaque em função dos números especiais em torno de certos autores da sociologia e da antropologia. São os casos, por exemplo, de Georg Simmel (embora clássico, não costuma ser tão ci- tado quanto Weber, Marx e Durkheim), Jeffrey Alexander, Victor Turner, Anthony Leeds, Florestan Fernandes, entre outros. Esse esforço ativo de discutir de modo qualificado, reunindo especialistas brasileiros e estrangeiros, autores funda- mentais (tanto os mais citados quanto outros menos lembrados atualmente) das nossas ciências sociais tem sido uma das marcas fundamentais de S&A.

Figura 7 Rede de com citação de autores, com destaque para os autores citados pelo menos 10x. Fonte: SciELO/WoS. Visualização: VOSViewer e Gephi (algoritmo de visualização: ForceAtlas2) atão casa longe, das minastão perto: de são sociologia luís do maranhão& antropologia e a saga no limiar de nã deagontimé uma década

732

Por fim, também podemos ensaiar aqui uma leitura distante, na verdade lexical, do conteúdo dos artigos de S&A por meio de seus resumos. A análise fatorial de correspondência (AFC) é técnica estatística que permite identificar uma estrutura latente em uma totalidade de relações na qual múltiplas variá- veis agem concomitantemente. Cada uma dessas variáveis recebe um valor es- pecífico, e a proximidade entre elas cria conjuntos de variáveis aos quais cor- respondem os dois eixos do plano fatorial. O gráfico de análise de correspon- dência abaixo foi gerado pelo software Iramuteq, interface para análise textual do pacote estatístico R, e mostra como as categorias mais recorrentes dos resu- mos se aproximam e se distanciam umas das outras conforme a força gravita- cional dos eixos (Camargo & Justo, 2013). Dada essa proximidade entre as cate- gorias, o software estipula comunidades, distinguidas pelas cores. Vemos no plano fatorial abaixo quatro quadrantes e seis comunidades, revelando concen- trações e dispersões vocabulares nos resumos de S&A. Nos dois quadrantes à direita, nas cores cinza, verde e azul, percebemos nas regiões superior e inferior termos claramente vinculados ao debate em teoria sociológica e teoria antro- pológica, respectivamente, debate promovido sobretudo (embora não exclusi- vamente) por nossos números especiais dedicados a certos autores-chave de nossas disciplinas. Nos dois quadrantes à esquerda, nas cores azul-claro, rosa e vermelho, vemos uma ampla gama de termos que descrevem temas de pes- quisa, com destaque para as categorias ligadas aos estudos urbanos, aos mer- cados, aos trabalhadores, à produção cultural (incluindo museus, modernismo, musical, artista etc.), à memória, à família, entre outros, incluindo igualmente marcadores espaciais, como regional, nacional, brasileiro, Portugal e africanos. A análise dos termos revela, de novo, a combinação de generalidade (os termos são comuns às ciências sociais aqui praticadas) e de especificidade (há forte presença dos termos ligados à produção teórico-intelectual e à pesquisa sobre a cultura em S&A). Talvez seja mesmo uma marca de S&A, por sua iniciativa de ago., 2019 ago., dez., 2019 dez.,

– interpenetrar sociologia e antropologia, promover um rico debate, ao mesmo

tempo teórico e empírico, plural e descentrado, sobre as formas simbólicas da vida social e suas conexões com as práticas e os processos sociais. 429, mai. set. 429, 739, – sociol. antropol. | rio de janeiro, v.09.02: 387 v.09.03: 717 | rio de janeiro, antropol. sociol. artigoandré botelho| maria laura , antonio viveiros brasil de jr. castro e maurício cavalcanti hoelz

733

Figura 8 Análise Fatorial de Correspondência por Classificação Hierárquica Descendente dos resumos dos artigos de S&A. Fonte: Base SciELO/WoS. Visualização: Iramuteq

* * * Ao concluir este texto, aproveitamos a oportunidade para anunciar mu- danças na gestão direta de Sociologia & Antropologia a partir do próximo número, a ser publicado em 2020. atão casa longe, das minastão perto: de são sociologia luís do maranhão& antropologia e a saga no limiar de nã deagontimé uma década

734

André Botelho, editor responsável nos últimos dois anos (2018-2019) e editor desde o início, em 2009, se despede da editoria da revista. Antonio Brasil Jr., editor desde 2018, passará a responder a partir do próximo número como editor responsável. Maurício Hoelz que, trabalhando conosco desde 2007-2008 no projeto que originou a revista, já tendo passado pelas funções de assistente editorial e de editor executivo, passa à de editor associado já no presente nú- mero. Despedem-se da editoria, também, as colegas Maria Laura Viveiros de Castro Cavalcanti, a editora responsável anterior de Sociologia & Antropologia (2015-2017) e Elina Pessanha, editora desde o início da revista. Os três editores, Botelho, Cavalcanti e Pessanha, passarão a integrar a Comissão Editorial da revista. É o momento, então, de alguns agradecimentos em nome de toda a equi- pe editorial atual. Em primeiro lugar aos autores e autoras, revisores e revisoras (pareceristas), leitores e leitoras de Sociologia & Antropologia que têm conferido sentido a uma aventura tão estimulante quanto desafiadora, como a de criar e editar um periódico científico de excelência na área das ciências humanas no Brasil da última década. Comprometida, sobretudo, com o debate teórico da sociologia e da antropologia, a revista tem conquistado seguidores nesta última década, no curso da qual se tornou referência nas ciências sociais. Agradecemos também à Comissão Editorial da revista, composta por Els Lagrou, Glaucia Villas Bôas, nossa primeira editora responsável (2009-2014), José Reginaldo Gonçalves e José Ricardo Ramalho. Nomeando-os, pensamos em cada um dos membros do colegiado do PPGSA nos últimos dez anos e lhes agrade- cemos a confiança com que nos entregaram o desafio de compartilhar, a partir de uma publicação científica, a marca distintiva do nosso programa e o relacio- namento entre as duas disciplinas que o compõem. Estudantes e egressos do PPGSA têm igualmente deixado sua marca em nossa história. ago., 2019 ago., dez., 2019 dez.,

– Queremos agradecer ainda aos membros do Conselho Editorial que em

diferentes momentos, alguns delicados, nos auxiliaram diretamente com orien- tações, mas também souberam celebrar conosco cada uma de nossas conquis- 429, mai. set. 429, 739,

– tas. Nomeando Charles Pessanha, referência incontornável na história dos pe- riódicos científicos no Brasil, estendemos nossos agradecimentos a todo o Con- selho Editorial. E também aos colegas editores de outros periódicos científicos do Brasil e do exterior, especialmente das ciências sociais, pela interlocução permanente tão importante para Sociologia & Antropologia. No mesmo sentido, consignamos nosso reconhecimento pelo trabalho crucial, e desafiador, desen- volvido pelo SciELO na garantia do acesso aberto no Brasil. Por fim, mas não menos importante, devemos um agradecimento muito especial aos que integram e integraram a equipe de assessoria técnica de Socio- logia & Antropologia nesses anos: à designer Glória Afflalo, às revisoras Maria sociol. antropol. | rio de janeiro, v.09.02: 387 v.09.03: 717 | rio de janeiro, antropol. sociol. artigoandré botelho| maria laura , antonio viveiros brasil de jr. castro e maurício cavalcanti hoelz

735

Helena Torres, Beth Cobra; e também aos assistentes editoriais Carlos Douglas Martins, Guilherme Marcondes, José Luiz Soares e Maurício Hoelz. A partir do próximo número Antonio Brasil Jr e Marco Antonio Gonçalves assumem a editoria de Sociologia & Antropologia. Rodrigo Santos e Julia O’Donnell continuarão o importante trabalho de assistência editorial que já vêm realizan- do no último ano. A eles se junta, como dissemos, Maurício Hoelz agora na condição de editor associado. Desejamos à nova equipe toda fortuna e força para enfrentar os muitos desafios que se anunciam também para as publicações científicas neste momento.

Recebido em 1/10/2019 | Aprovado em 16/10/2019

André Botelho é professor-associado do Departamento de Sociologia e do Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Editor responsável de Sociologia & Antropologia, é ainda pesquisador (1C) do CNPq e Cientista do Nosso Estado da Faperj. Autor, entre outros, de O retorno da sociedade. Política e interpretações do Brasil (Vozes, 2019).

Antonio Brasil Jr. é professor adjunto do Departamento de Sociologia e do Programa de Pós-graduação em Sociologia e Antropologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Editor de Sociologia & Antropologia. Jovem Cientista do Nosso Estado (JCNE/Faperj). É autor de Passagens para a teoria sociológica (2013).

Maurício Hoelz é professor adjunto do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro. Editor associado de Sociologia & Antropologia. É autor de A violência que nos une (no prelo). atão casa longe, das minastão perto: de são sociologia luís do maranhão& antropologia e a saga no limiar de nã deagontimé uma década

736

NOTAS

1 Criada em 1977 no contexto de formulação de um programa nacional de pós-graduação como política pública de Estado, a Anpocs conta hoje com mais de 100 instituições de ensino de pós-graduação e de pesquisa como associados. Desde sua fundação, a Associação vem realizando encontros anuais que, especialmente a partir de seus Grupos de Trabalho, or- ganizam parcela considerável dos debates dessas três disci- plinas no Brasil. Sua centralidade na comunidade científica das ciências sociais também se evidencia pelo esforço con- tínuo com que vem promovendo reflexões e balanços biblio- gráficos das várias áreas disciplinares, e esse material per- mite traçar um painel bastante representativo da produção acadêmica brasileira. 2 Alguns dados gerais aqui trabalhados foram inicialmente apresentados em comunicação de Antonio Brasil e André Botelho na mesa-redonda “Balanços bibliográficos em questão”, no encontro da Anpocs de 2018. 3 Ver . 4 A própria equiparação da intenção autoral à autoridade tex- tual na atividade editorial é um processo histórico e dinâmi- co, como sugere McKenzie (1999). Hoje, a concepção de autor como entidade unitária vem sendo problematizada crescen- temente pela percepção de um processo complexo que envol- ve etapas como as primeiras revisões do autor, as revisões editoriais, a realização das provas, a publicação, a reimpres- são. São, portanto, as relações entre elementos do próprio ago., 2019 ago., dez., 2019 dez.,

– texto e entre este e diferentes atores sociais – leitores e edito-

res –, bem como com convenções intelectuais e linguísticas de uma época, que constroem o significado de um texto. 429, mai. set. 429, 739, – 5 Esse trabalho foi realizado em parceria por Lucas Carvalho (UFF) e Antonio Brasil Jr. (UFRJ) para artigo ainda não publi- cado dedicado à análise da coleção de artigos de ciências humanas da base SciELO. 6 Para fins de cálculo e visualização, os artigos com pouco ou nenhum compartilhamento de referências com os demais textos da coleção são excluídos da rede de acoplamento bi- bliográfico. A advertência deve ser feita também com rela- ção à outra imagem de rede aqui apresentada. Ou seja, tra- balhamos aqui apenas com a “componente principal” [giant componente] da rede de acoplamento bibliográfico formada pelos artigos selecionados. sociol. antropol. | rio de janeiro, v.09.02: 387 v.09.03: 717 | rio de janeiro, antropol. sociol. artigoandré botelho| maria laura , antonio viveiros brasil de jr. castro e maurício cavalcanti hoelz

737

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

Blondel, V. D. et al. (2008). Fast unfolding of communities in large networks. Journal of Statistical Mechanics: Theory and Experiment, 10, p. P10008. Borgatti, S. P. & Halgin, D. S. (2011). On Network Theory. Organization Science, 22/5, p. 1168-1181. Botelho, A. & Hoelz, M. (2016). Sociologias da literatura: do reflexo à reflexividade. Tempo Social, 28/3, p. 263-287. Botelho, A.; Ricupero, B.; Brasil Jr., A. (2017). Cosmopolit- ism and localism in the Brazilian social sciences. Cana- dian Review of Sociology/Revue canadienne de sociologie, 54/2, p. 216-236. Burrows, R. & Savage, M. (2014). After the crisis? Big Da- ta and the methodological challenges of empirical sociol- ogy. Big Data & Society, 1/1, p. 2053951714540280. Burt, R. S. (2009). Structural holes: the social structure of com- petition. [s.l.]: Harvard University Press. Camargo, B. V. & Justo, A. M. (2013). Iramuteq: um sof- tware gratuito para análise de dados textuais. Temas em psicologia, 21/2, p. 513-518. Chartier, R. (2002). Os desafios da escrita. Trad. M. L. Mo- retto. São Paulo: Edunesp. Chartier, R. (2001). Práticas de leitura. Trad. Cristiane Nas- cimento. 2 ed. São Paulo: Estação Liberdade. Chartier, R. (1997). A ordem dos livros. Trad. Leonor Graça. Lisboa: Vega. Cobo, M. J. et al. (2011). Science mapping software tools: review, analysis, and cooperative study among tools. Jour- nal of the American Society for Information Science and Tech- nology, 62/7, p. 1382-1402. Leydesdorff, L. (1998). Theories of citation? Scientometrics, 43/1, p. 5-25. McGann, J. Jerome. (1991). The textual condition. Princeton: Princeton University Press. McKenzie, D. F. (1999). Bibliography and the sociology of texts. London: Cambridge University Press. Moretti, Franco. (2008). A literatura vista de longe. Porto Alegre: Arquipélago Editorial. atão casa longe, das minastão perto: de são sociologia luís do maranhão& antropologia e a saga no limiar de nã deagontimé uma década

738

Packer, A. L. (2014). SciELO Citation Index no Web of Scienc- eSciELO em Perspectiva. Disponível em: . Acesso em 14 mar. 2019. Savage, M. & Burrows, R. (2007). The coming crisis of em- pirical sociology. Sociology, 41/5, p. 885-899. Vélez-Cuartas, G.; Lucio-Arias, D. & Leydesdorff, L. (2015). Regional and global science: Latin American and Carib- bean publications in the SciELO Citation Index and the Web of Science. arXiv preprint arXiv:1510.02453. Weinberg, B. H. (1974). Bibliographic coupling: a review. Information Storage and Retrieval, 10/5, p. 189-196. White, H. D. & Griffith, B. C. (1981). Author cocitation: a literature measure of intellectual structure. Journal of the American Society for Information Science, 32/3, p. 163-171. ago., 2019 ago., dez., 2019 dez., –

429, mai. set. 429, 739, – sociol. antropol. | rio de janeiro, v.09.02: 387 v.09.03: 717 | rio de janeiro, antropol. sociol. artigoandré botelho| maria laura , antonio viveiros brasil de jr. castro e maurício cavalcanti hoelz

739

TÃO LONGE, TÃO PERTO: SOCIOLOGIA & ANTROPOLOGIA NO LIMIAR DE UMA DÉCADA Palavras-chave Resumo Sociologia & Antropologia; O texto apresenta um mapa semântico e bibliométrico da Periódicos científicos; coleção de artigos de Sociologia & Antropologia. Revista do Análise bibliométrica; PPGSA realizado a partir de metodologias informacionais. Big data; Publicada pelo Programa de Pós-graduação em Sociologia Distant reading. e Antropologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro, desde 2011, a revista se vem consolidando como um dos periódicos mais importantes de veiculação da produção científica de ponta das ciências sociais no Brasil. Ao mesmo tempo em que registra e reflete sobre a nossa publicação na última década, oferecendo uma visão de conjunto dos artigos, o mapa que apresentamos é também uma aposta no chamado Big Data no debate mais amplo sobre os mé- todos e técnicas de pesquisa nas ciências sociais.

SO FAR, SO NEAR: SOCIOLOGIA & ANTROPOLOGIA ON THE THRESHOLD OF A DECADE Keywords Abstract Sociology & Anthropology; The text presents a semantic and bibliometric map of the Scientific journals; collection of articles published by Sociologia & Antropologia. Bibliometric analysis; Revista do PPGSA, making use of information methodologies. Big data; Published by the Postgraduate Program in Sociology and Distant reading Anthropology of the Universidade Federal do Rio de Janei- ro since 2011, the journal has become established as one of the most important periodicals for disseminating the latest scientific production in the social sciences in Brazil. At the same time as registering and reflecting on our pub- lication over the last decade, offering an overview of the articles, the map presented here also explores the potential of so-called Big Data in the broader debate on research methods and techniques in the social sciences. 740 741

ENTREVISTA memórias e experiências de pesquisa na casa das minas de são luís do maranhão

742 ago., 2019 ago., –

383, mai. 383, – sociol. antropol. | rio de janeiro, v.09.02: 365 | rio de janeiro, antropol. sociol. http://dx.doi.org/10.1590/2238-38752019v932 entrevista com sergio ferretti | vagner gonçalves da silva

1 Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Programa de Pós- 743 Graduação em Antropologia Social (PPGAS), Rio de Janeiro, RJ, Brasil [email protected] https://orcid.org/0000-0002-9917-8604 ii Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Programa de Pós-Graduação Federico Neiburg I em Sociologia e Antropologia (PPGSA), Rio de Janeiro, RJ, Brasil II [email protected] Fernando Rabossi https://orcid.org/0000-0003-1227-5258

Antropologia e Economia. Tentando fazer uma conexão significativa: Entrevista com Keith Hart

Keith Hart é um antropólogo que sempre desafiou os moldes da disciplina, tanto em seus formatos institucionais quanto em suas práticas de conheci- mento. A entrevista que publicamos neste número de Sociologia & Antropologia, realizada por nós na ocasião de sua participação no Colóquio Novas Perspec- tivas em Etnografia Econômica, no Museu Nacional, em 2011, apresenta os múltiplos engajamentos, questionamentos e apostas de um antropólogo que encarna um momento da antropologia e do mundo, mas que o faz de forma extremamente singular, tanto por sua trajetória como por sua perspectiva e

dez., 2019 dez., suas apostas intelectuais, que transcendem a antropologia enquanto discipli- –

na acadêmica. Conhecido como o autor que formulou o conceito de informalidade – e 770, set. 770, – por esse motivo reconhecido fora dos círculos antropológicos –, Hart inicia-se na etnografia na década de 1960 na recém-independente Gana. Orientado por Jack Goody, pertence a uma geração de antropólogos que observa e participa de um mundo em transformação, produto da descolonização e da consolidação do “capitalismo de Estado” (Hart, 1992).1 Geração que produzirá uma renovação da antropologia britânica, não sem conflitos, com figuras de referência tais como Meyer Fortes e Evans-Pritchard. A entrevista ilumina essas tensões ge- racionais de forma primorosa. Originário dos setores populares de Manchester, Keith Hart carrega o orgulho de quem chegou por seu próprio mérito na tradicional Cambrigde – primeiro na escola, depois na universidade –, mas também guarda as marcas deixadas pelo sacrifício necessário para estar e se manter nesse espaço de sociol. antropol. | rio de janeiro, v.09.03: 743 | rio de janeiro, antropol. sociol. memórias e experiências de pesquisa na casa das minas de são luís do maranhão

744

elites e elitista, sem “precedente algum”. Como ele mesmo diz, a experiência em Gana, em particular a vida dinâmica e pulsante do bairro popular onde realizou pesquisa de campo em Accra, o ajudou a dimensionar o conservado- rismo e a hierarquia de Cambridge. Além de ter sido professor na Grã-Bretanha nas universidades de Man- chester, Cambridge, Norwick, Aberdeen, Londres (London School of Economics and Political Science), ensinou durante muitos anos nos Estados Unidos e na Jamaica, e criou e coordenou ao longo de mais de uma década um programa de pesquisas em Economia Humana na África do Sul. Desde 1997, reside em Paris e tem realizado pesquisa, docência e consultorias em diversos países. A experiência de vida em todos esses lugares e a reflexão intelectual a partir deles constituem uma das características na sua forma de enxergar o mundo e a raiz de uma perspectiva comparativa implícita que potencia suas análises. A entrevista também nos apresenta de forma detalhada o mundo das ruas e as práticas econômicas que embasam a discussão sobre informalidade, mostrando concomitantemente a participação do autor nesse universo, levan- tando importantes questões sobre as formas de conhecimento e a vida dos setores populares. Por outro lado, sua participação no mundo do desenvolvi- mento, como professor, consultor e analista, permite compreender a formula- ção e a circulação do próprio conceito. Em artigo publicado neste número, Fer- nando Rabossi analisa o contexto de surgimento do conceito de informalidade e sua trajetória institucional no âmbito da Organização Internacional do Tra- balho, elementos que nos permitem compreender a difusão e popularização de uma noção que se institui como chave descritiva e normativa do mundo contemporâneo. A participação do autor no mundo do desenvolvimento também é abor- dada a partir de um retrato inédito na elaboração do plano de desenvolvimen- to de Papua Nova Guiné no momento de sua independência, mostrando as ago., 2019 ago.,

– tensões e as possibilidades abertas no cenário pós-colonial, atravessado por

disputas entre mineradoras, governos, agências internacionais e diversos outros atores locais. 383, mai. 383,

– Combinando uma perspectiva baseada na antropologia econômica, na economia política e na história econômica, Keith Hart tem uma prolífica pro- dução que inclui trabalhos sobre agricultura na África Ocidental (1982), migra- ções rurais-urbanas, dinheiro, mercantilização, mercados e história da antro- pologia econômica, bem como incursões pioneiras sobre o desenvolvimento do capitalismo digital (2000). A produção de Hart está ligada à renovação dos estudos sociais do dinheiro (1986), tendo produzido um olhar inovador tanto do ponto de vista analítico quanto das consequências políticas da monetização da vida social e da proliferação de moedas (2000). Seu artigo publicado na seção Registro de Pesquisa deste número apresenta suas principais ideias em relação ao dinheiro e ao envolvimento com movimentos sociais e com experi- sociol. antropol. | rio de janeiro, v.09.02: 365 | rio de janeiro, antropol. sociol. entrevista com sergio ferretti | vagner gonçalves da silva

745

mentações intelectuais. Essa trajetória é uma das entradas ao projeto Economia Humana, que busca articular formulações e alternativas econômicas em an- damento ao redor do mundo, e que podem se constituir em alternativas ao modelo de desenvolvimento vigente (Hart, Laville & Catani, 2010). Também neste número, o professor da East China Normal University (Shanghai) e pes- quisador do CNRS (Université Paris-Dauphine) Horacio Ortiz analisa de forma detalhada a contribuição de Hart nos campos da antropologia das finanças e do dinheiro e da sociologia econômica. Para compreender a afirmação do início desta apresentação sobre o caráter desafiador dos formatos institucionais da disciplina antropológica, des- tacamos duas iniciativas que mostram a criatividade e os engajamentos de Keith Hart, além daquelas descritas até aqui, como o projeto da Economia Humana. Em 1993, junto com Anna Grimshaw, começou a publicar os Prickly Pear Pamplhets, inspirados na figura dos panfletos de ativistas radicais do século XVIII, em que apareceram textos que se tornariam clássicos como Wai- ting for Foucault, de Marshall Salhins (1993), e The Relation, de Marilyn Strathern (1995), entre vários outros.2 Em 2009, com alunos e colegas, criou a Open An- thropologist Cooperative, uma plataforma online que conta hoje em dia com mais de 18.000 membros. A entrevista foi realizada em 23 de maio de 2011 no Museu Nacional e foi revisada e modificada em 2018 por Keith Hart para publicação nesta revis- ta. A tradução foi realizada por Ricardo Coelho Netto da Silveira e por nós revisada.

Federico Neiburg. Você fez seu PhD em antropologia em Cambrigde, tendo estudado antes latim e grego. Como você chegou à antropologia?

Keith Hart. Eu amava literatura clássica. Eu estava pronto para ser um crítico literário no estilo da disciplina, e, naquela época, 80% de toda a avaliação dos alunos era tradução. Eu amava tradução, em ambos os sentidos. Ganhei um prêmio uma vez por traduzir Dante em hexâmetro homérico. Mesmo agora, eu diria que a maior atividade intelectual é a tradução. Não entre línguas, mas no sentido de que cada vez que um de nós tenta se comunicar isso envolve algum tipo de tradução entre a sua experiência e a minha, e se alguma coisa realmente acontece é meio que acidental. O que eu amo da humanidade é a extraordinária boa vontade que trazemos para a comunicação, enquanto, na verdade, comunicamos muito pouco. Ainda assim, acreditamos firmemente que o que acabei de dizer está agora na sua cabeça. Retornando a sua questão, os clássicos eram muito restritivos naquele tempo. Eu estava interessado em tragédia grega e poesia lírica latina, mas não havia nenhuma chance de que eu pudesse fazer um PhD sobre esse assunto. O objetivo da crítica literária era consolidar a tradição, e a maioria dos principais autores já estava consolidada, memórias e experiências de pesquisa na casa das minas de são luís do maranhão

746

pelo que estávamos presos a cultivar as margens. Outra questão era que bri- lhantes garotos ambiciosos faziam clássicos e matemática. Desse modo, em Cambridge havia todos esses garotos brilhantes como eu, que eram também fascinados por latim e grego. A competição era bastante substancial, embora o mercado de clássicos estivesse em declínio. Assim, fui sempre realista, eu aspirava fazer uma carreira profissional. Ao mesmo tempo, nos anos 1960, as ciências sociais estavam se expandindo. Então eu pensei que seria melhor mudar de clássicos para ciência social. A primeira coisa que pensei, obviamen- te, foi sociologia.

F.N. Se pudéssemos ir um pouco mais para trás, como, de Manchester, você chegou em Cambridge?

K.H. A casa de minha família sempre foi em Manchester. Fui para a Manches- ter Grammar School, que era a melhor escola do país naquela época. Eu era especializado em clássicos. A Manchester Grammar School tinha uma bolsa, a Patchett, para St John’s College, em Cambridge; um dia meu professor disse, “é claro que você receberá a Patchett”. Isso significava que eu podia entrar em Cambridge sem passar pelos exames. Foi assim que entrei lá.

F.N. Eu ouvi você dizer que encontrava alguns paralelos entre Cambridge e uma igreja.

K.H. Quando tinha oito anos, fizemos uma viagem a Cambridge. “Por que tem tantas igrejas aqui?” perguntei, e eles me responderam “não são igrejas, são escolas”. Eu disse “quando crescer, eu quero ir para uma escola que pareça uma igreja”. Isso se tornou uma mitologia familiar. “Keith quer ir para Cam- bridge.” Então, eu estava completamente fixado durante minha adolescência ago., 2019 ago.,

– em passar para Cambridge.

F.N. Quem estava em Cambridge quando você chegou? 383, mai. 383, –

K.H. Meu treinador de remo (eu era timoneiro, dirigia um barco a remo de oito pessoas) era Claudio Vita-Finzi, um geógrafo de Turim, da aristocracia judaica. Ele costumava passar todos os invernos no mediterrâneo estudando a erosão do deserto, como as cabras fazem isso na Sicília ou no Líbano, e depois ele vol- tava na primavera para treinar remo e fazer suas coisas. Eu pensei, isso é mui- to bom, essa não é uma má maneira de viver. Depois ouvi que antropologia social era sociologia com viagens inclusas. Mas o que me decidiu foi Jack Goody, que era da minha faculdade, e ambos éramos bebedores regulares. Um dia ele disse que estava oferecendo um seminário sobre clientela, isso foi em 1962, que era um tema bastante popular. Eu disse ao Jack que lhe entregaria um artigo sobre clientela em Roma. Depois esqueci. Um dia, ele disse, “lembre-se de que sociol. antropol. | rio de janeiro, v.09.02: 365 | rio de janeiro, antropol. sociol. entrevista com sergio ferretti | vagner gonçalves da silva

747

você está confirmado com seu artigo no seminário desta quarta-feira”. Se eu estivesse escrevendo um ensaio sobre a clientela romana, eu teria que ler todos os textos existentes no original e construir o ensaio a partir de citações originais. Meu tutor não teria aceitado qualquer outra coisa. Mas eu não tinha tempo. Fui para a biblioteca e peguei o Cambridge Ancient History e algumas fontes secun- dárias e montei algo verdadeiramente vergonhoso, construído a partir de fontes secundárias, apenas lendo livros em inglês. E fiz essa palestra. Estava realmen- te preocupado. E eles adoraram, comentando: “isso é tão sofisticado, tão pers- picaz”. Pensei: essas pessoas não têm padrões intelectuais de forma alguma. Eles não veem que estou blefando. Eu era um estudante treinado profissional- mente, mas se eu fizesse antropologia eu poderia estudar qualquer coisa, por- que os antropólogos podem levantar qualquer pergunta, sem limites; exatamen- te o oposto dos clássicos. Nos clássicos, o tipo de pergunta com que eu estava envolvido era: “esta letra em um manuscrito espanhol do século XII é um alfa ou um eta”. Era bem assim, delimitado, e as pessoas gastariam 15 minutos dis- cutindo isso em um seminário. Havia um incrível senso de foco e especificida- de. Eu percebi que a antropologia me permitiria fazer qualquer pergunta de que eu gostasse. E que não tinha padrões acadêmicos. [Risos.] Isso era brilhante.

Fernando Rabossi. Então, você mudou para a antropologia pelas mãos de Jack Goody?

K.H. Na verdade, Jack Goody foi o único professor com que tive uma relação mais pessoal, porque, quando mudei de clássicos para antropologia social, ele ficou responsável por mim na faculdade e se tornou meu orientador da gra- duação. Depois ele foi meu orientador no doutorado. Tive também uma relação próxima com Audrey Richards, porque ela era a diretora do Centro de Estudos Africanos e deu um curso sobre urbanização e migração na África, que era meu tema favorito. No início de minha carreira eu só queria trabalhar sobre migra- ção. Na verdade, meu trabalho de campo do doutorado foi sobre migrantes para a cidade.

F.N. Quem eram seus colegas?

K.H. Johnny Parry, Caroline Humphrey, Enid Schildkrout que mais tarde traba- lhou no American Museum em Nova York, várias pessoas. Porém, Meyer Fortes como chefe do departamento não sabia quem diabos eu era, porque eu nunca aparecia no seu seminário. Quando fui fazer pesquisa em Gana, decidi estudar os Tallensi, que era seu povo. Escrevi cinco cartas para ele antes que ele me respondesse. Anos depois ele me falou que achava que Jack Goody tinha me enviado para minar seu trabalho. Fortes tinha assumido a antropologia social de Cambridge em uma fase realmente medíocre e construiu o melhor depar- memórias e experiências de pesquisa na casa das minas de são luís do maranhão

748

tamento do país. Mas, naquela época, com a expansão da sociologia, tinha um novo departamento de ciências sociais e políticas, e Jack apoiava a integração da antropologia social a esse departamento. Meyer queria que a antropologia social permanecesse como era e sabia que Jack seria seu sucessor como chefe de departamento. Jack estava escrevendo artigos em revistas nacionais dizen- do, “que seria a antropologia social se não fosse sociologia comparativa?”. En- tão, Meyer era profundamente desconfiado do meu papel nesse jogo. E ele levou um longo tempo para superar suas suspeitas.

F.N. Qual era sua relação com Audrey Richards?

K.H. Eu sempre permaneci próximo de Audrey. Ela era uma ótima fofoqueira. Ela me disse uma vez que Jack tinha perguntado a ela sobre o que eu estava escrevendo em minha tese, porque ele nunca tinha lido. Eu estava convencido de que eu não tinha aprendido nada com ele. Muitos anos depois, ele lançou sua série de livros comparando a Eurásia e a África, o primeiro se chamava Production and reproduction e tem um pequeno prefácio, em que ele enuncia os princípios de sua abordagem. Li o primeiro e disse “sim, eu concordo com isso”. Em seguida, no segundo, eu disse “eu concordo com isso”. No terceiro, também concordei... Pensei, não pode ser acidental que eu realmente partilhe dos prin- cípios de Jack Goody, no final das contas, talvez ele tenha me ensinado. Mas essa era a nossa geração, os anos 1960, quando todos nós pensávamos que éramos órfãos, que não devíamos nada a nossos pais e professores, que está- vamos construindo o mundo do começo, por nós mesmos. Finalmente percebi que Jack tinha me moldado. De fato, todo o trabalho que estou fazendo vem de uma tentativa de ser como Jack. Ele me ensinou pelo exemplo, mesmo que eu não estivesse consciente do que estava aprendendo concretamente com ele. ago., 2019 ago.,

– F.R. E Meyer Fortes?

K.H. Ele foi o examinador interno da minha tese de doutorado e foi muito, 383, mai. 383,

– muito positivo. Me ofereceu um pós-doc no King’s College para estudar os Tallensi com ele. Disse que eu seria o próximo professor em Cambridge e que poderia ensinar economia primitiva e camponesa, como Raymond Firth. Isso era muito assustador para mim. Eu pensei que fosse terminar nesse círculo restrito de “ganalogistas”, no qual não havia intenção de generalizar porque todos sabiam as mesmas coisas locais. Em vez de aceitar sua proposta, aceitei um emprego em estudos do desenvolvimento em uma nova universidade, East Anglia, em Norwich. Meyer nunca me perdoou por isso. Contaram-me depois que ele foi a Chicago e alguém perguntou “alguém estudou os Tallensi depois de você?”, e ele disse: “Bem, tinha um cara, mas ele desistiu de tudo para es- tudar turismo nas Antilhas”. A mim disse muito explicitamente que pensava sociol. antropol. | rio de janeiro, v.09.02: 365 | rio de janeiro, antropol. sociol. entrevista com sergio ferretti | vagner gonçalves da silva

749

ser o dinheiro a única razão pela qual eu estava fazendo isso e que eu era apenas mais um desses tipos utilitários de Manchester, interessados exclusi- vamente em análise de custo/benefício. Uma vez, ele me escreveu uma carta de sete páginas em que dizia: “Sempre achei que você fosse um benthamita3 com qualidades hedonistas. Eu não esperaria que alguém superficial como você entendesse a noção de piedade familiar.” Coisas desse tipo. Ele realmen- te me matou. Nessa altura, eu pensei que não haveria nenhum modo de es- crever sobre os Tallensi por intermédio de Fortes. Decidi, então, mudar para o tema do desenvolvimento para não entrar em competição direta. Ele interpre- tou essa recusa como meu desejo de ficar rico entrando para o Banco Mundial. Há uma conclusão para essa história. Eu estava lecionando em Chicago pelo período de um ano e recebi um cartão-postal de Meyer Fortes. Eu tinha publi- cado um artigo na série Research in Economic Anthropology sobre as condições econômicas da história social dos Tallensi no período colonial (Hart, 1978). E basicamente tomei o lado de Fortes no seu debate com Leach e Worsley acer- ca das condições econômicas do parentesco. É um bom artigo, eu diria. É o único artigo que publiquei sobre os Tallensi. De alguma forma, ele o conseguiu e me enviou um cartão com a pintura Adoração dos Magos, de Rubens, que está na capela do King’s College. Nele, me escreveu: “Eu estava errado sobre você, Keith. Você era sério, afinal. E você deu uma contribuição original para a aná- lise econômica do norte de Gana”. Tudo está perdoado, em outras palavras. Mas quando recebi esse cartão, ele estava morto. Ele havia escrito do hospital, e quando tentei entrar em contato com ele, me disseram “Oh, Meyer Fortes mor- reu na semana passada”. Você pode imaginar uma coisa dessas?

F.N. Foi uma relação intergeracional complexa...

K.H. Sim, de certa forma. Eu tenho a forte sensação de que Fortes e Evans-Pri- tchard pensavam que todos nós, minha geração, éramos uma perda de tempo. Que não havia como nos levar a sério, porque nós tínhamos nossa própria agen- da, não estávamos escutando, apenas queríamos virar tudo de cabeça para baixo. Então eles cultivaram o fato de ser conservadores. Meyer manteve esse registro comigo ao longo de dez anos. Não consegui ter uma conversa séria com ele. En- tendi mais tarde o porquê, porque ele achava que eu era um espião de Jack Goody. Jack naquele tempo encorajava todos os seus estudantes a estudar fenô- menos sociais modernos: ensino, governo local, comércio. Meyer Fortes sentia que eu também estava do outro lado: nós éramos os modernizadores, nós não nos importávamos muito com a estrutura social tradicional. Um dia, eu lembro disso muito vividamente, Fortes me levou para almoçar. Nós falávamos não lembro sobre o que, e usei a palavra “tempo”, e ele perguntou: “o que você quer dizer com ‘tempo’?”. Em dois minutos, estava imerso, quero dizer, estávamos em águas filosóficas e científicas realmente profundas. Meyer Fortes inventou esta- memórias e experiências de pesquisa na casa das minas de são luís do maranhão

750

tísticas psicológicas com Karl Pearson. Conhecia Freud e Marx de trás para a frente. Evans-Pritchard era um mestre em filosofia e história racionalista inglesa. Eles decidiram enviar os estudantes para fora, para fazer trabalho de campo, mas não esperavam que entendessem alguma coisa. Fiquei muito chateado porque eles não ensinaram a história intelectual da disciplina que eles tinham dominado, mas eles não achavam necessário compartilhar isso conosco. Se me tornei um historiador intelectual – muito do que eu escrevo é sobre história intelectual, na verdade – é porque eles nos negaram o acesso a isso. Claro que, porque Meyer Fortes foi tão rude comigo, eu acabei venerando-o, porque você precisa ser duro comigo para obter o meu respeito, e ele o fez. Ele era realmente um cretino. Comecei a escrever um livro de memórias a respeito dele, e a pri- meira parte foi um artigo sobre seu trabalho publicado em 1940 . O melhor tra- balho dele focalizou o ciclo de desenvolvimento em grupos domésticos:4 como se pode ter uma ordem social quando ela é baseada na vida, nas pessoas, nas- cimento, copulação, morte? é tudo tão caótico. A ideia é que as formas são im- postas nos rituais do ciclo da vida, casamento, funerais e assim por diante. Ele uma vez me contou que tomou a ideia de D’Arcy Thompson, um cientista dedi- cado à forma e ao desenvolvimento, autor do livro On growth and form”, que é antidarwinista. O argumento é: “Ok, evolução é sobre microvariações, mas se isso é tudo, por que todos os membros de uma espécie se parecem? Por que você pode falar que uma folha de carvalho se parece com todas as outras? O que é responsável por essa consistência da forma?” Esse era o negócio do Meyer. Ele costumava dizer, quando éramos estudantes, “vocês, tudo o que vocês querem é a mudança, mas o que importa é a continuidade. Essa é a parte difícil”. Por que as espécies são tão estáveis em suas formas? Se a evolução se sustenta na va- riação, como a forma persiste apesar do fluxo da vida? O livro The web of kinship, que é bastante estatístico e baseado em redes, e especialmente o trabalho sobre os Ashanti, Time and social structure, foram os seus maiores feitos. Eu gostaria de ago., 2019 ago.,

– escrever um livro sobre isso, porque é aí que sua formação científica e seu tra-

balho de campo se juntam. Suas notas de campo são incríveis. Ele ouvia as pa- lavras de forma muito mais sutil do que eu… ele entendia a etimologia. Muitas 383, mai. 383,

– de suas notas de campo são escritas em talni, e sua compreensão da língua era incrível.

F.N. Quando você começou a pensar em ir para a África?

K.H. Realmente acreditava, como eu acho que muitos de nós pensávamos na- quela época, que a política pós-colonial tinha uma importância global. Fui para lá com um projeto político em mente. Estava indo para estudar migrantes para a cidade e para olhar sua relação com a política, com a cidadania, formas de associação, e assim por diante. Mas quando cheguei lá descobri que era um Estado policial, ninguém falava sobre política porque estavam todos com me- sociol. antropol. | rio de janeiro, v.09.02: 365 | rio de janeiro, antropol. sociol. entrevista com sergio ferretti | vagner gonçalves da silva

751

do. Então eu tive que repensar meu tema. Notei quão viva era a economia de rua, então decidi estudar isso. Mas fui para lá sobretudo com uma agenda política. Gana era importante porque foi o primeiro país africano a declarar independência. Havia muito mais disponibilidade em Gana, porque foi o epi- centro da revolução anticolonial.

F.R. Foi nesse contexto que você começou a formular suas ideias sobre infor- malidade. Como esse assunto se desenvolveu no início de seu trabalho em Gana?

K.H. Por volta de 1970, tornou-se muito claro para todos que o boom de pós- guerra tinha acabado. O projeto de desenvolvimento para fazer com que os países pobres ficassem ricos tinham falhado. Esse foi o momento em que a teoria do subdesenvolvimento, a teoria dos sistemas mundiais, a teoria da dependência e assim por diante foram todas aparecendo na América Latina e no Oriente Médio, e havia uma espécie de pânico nos Estados Unidos, espe- cialmente em instituições como o Banco Mundial, quando notaram que as cidades do Terceiro Mundo estavam crescendo muito rápido, mas nelas não parecia existir qualquer emprego real. Quem tinha emprego real era uma por- ção muito pequena do número total de pessoas que tinham vindo para viver na cidade. Então, eles imaginavam que as pessoas que não tinham empregos estavam desempregadas no modelo da década de 1930, homens quebrados perdendo empregos na fábrica, parados nas esquinas. Havia um medo do de- semprego como desestabilizador, como uma fonte de rebelião ou revolução. Essa era a problemática por volta dos anos 1970. Quando entrei nos estudos de desenvolvimento como o único antropólogo, todo mundo estava falando sobre o que fazer com o problema do desemprego. Alguns defendiam enviar de volta para o campo aquelas pessoas, onde poderiam causar menos danos. Esse era o contexto. Eu pensava, “desemprego?” Finalmente me dei conta de que elas não estavam desempregadas, elas estavam trabalhando! Estavam tra- balhando de uma maneira que não era reconhecida pelos funcionários do Ban- co Mundial. Então escrevi para dizer que essas pessoas tinham muito mais à sua disposição do que parecia. Só porque não tinham empregos formais não significava que elas não tinham nada (Hart, 1973). Peguei do Weber a ideia de que formal queria dizer regular, regrado, e que informal significava irregular, não sujeito a regras. Mas, desde o início, percebi esses conceitos dialeticamen- te interconectados.

F.N. De quando é seu primeiro trabalho ou primeiro artigo sobre esses temas?

K.H. Eu o produzi em Sussex, em 1971, para uma conferência sobre desemprego urbano na África. Dois economistas organizaram a conferência: Richard Jolly e memórias e experiências de pesquisa na casa das minas de são luís do maranhão

752

Hans Singer. Meu trabalho foi um grande sucesso. Mas esses economistas se mantiveram indiferentes a ele. Dizia-se que haveria um livro sobre a conferên- cia. As mesmas pessoas foram para Quênia e produziram um relatório para a OIT em 1972, cujo argumento principal era a importância do setor informal, como eles o chamaram. E não fizeram nenhuma referência a mim. Logo depois eles anunciaram que haviam cancelado o livro da conferência. Algumas pessoas que tinham estado na conferência começaram a escrever artigos dizendo “Keith Hart inventou o setor informal”. O editor do Journal of Modern African Studies, David Kimball, me escreveu dizendo: “se você me der o trabalho, vou publicá-lo rapida- mente”. Foi o que ele fez. O trabalho foi publicado em 1973. O relatório da OIT te- ve como objetivo algo diferente do meu. Meu objetivo era usar minha experiên- cia etnográfica para corrigir falsas impressões sobre o que as pessoas estavam fazendo. Eu não estava interessado em inventar um conceito. Só queria que os economistas do desenvolvimento reconhecessem que estava errado o modo co- mo eles imaginavam que as pessoas estavam trabalhando. Os outros queriam um conceito burocrático. Assim, a ideia teve uma dupla procedência, burocracia e as pessoas, economia e etnografia. Nessa época me converti ao marxismo, e os marxistas odiavam o setor informal, que preferiam chamar de pequena produ- ção mercantil. Então deixei isso de lado durante 15 anos. No final da década de 1980, quando o mundo estava mudando – o muro de Berlim, Mandela etc. – me perguntei o que teria acontecido com a questão informal. Ela ainda estava bem forte. E achei que era hora de reestabelecer a propriedade. [Risos]

F.N. Naquele tempo, você sabia alguma coisa sobre antropologia do desenvolvi- mento e a sociologia na América Latina? Por exemplo a monografia escrita em 1975 por Larissa Lomnitz Cómo sobreviven los marginados? (Lomnitz, 1993).

K.H. Conheci Larissa Lomnitz pessoalmente, mas não tinha lido seu livro nessa ago., 2019 ago.,

– ocasião. Havia muitas pessoas escrevendo nessa época. Clifford Geertz escreveu

sobre a economia de bazar em 1963 (Geertz, 1963). Havia um geógrafo chamado Terry McGee, que trabalhou no Sudeste Asiático, que publicou um livro em torno 383, mai. 383,

– de 1971, lançando mão de Geertz para falar sobre a economia empresarial e a eco- nomia de bazar (McGee, 1971). Foi o momento em que eles perceberam que a mo- dernização não funcionava. Então, o que, diabos, está acontecendo? Também era o momento em que os americanos estavam perdendo a guerra no Vietnã, o regi- me de pós-guerra de Breton Woods colapsou, esse foi o ponto de mudança do mundo moderno. Depois, em 1973, foi a Guerra de Yom Kippur, a Opep, o aumento do preço do petróleo, a crise energética. Esses primeiros anos da década de 1970 foram realmente um enorme ponto de virada. O neoliberalismo, como o chama- mos hoje, foi o que aconteceu depois disso. Levou o resto dos anos 1970 para se resolver, mas no final dos anos 1970 Thatcher e Reagan estavam no poder. sociol. antropol. | rio de janeiro, v.09.02: 365 | rio de janeiro, antropol. sociol. entrevista com sergio ferretti | vagner gonçalves da silva

753

F.N. Como foi fazer trabalho de campo em Gana naquela época? Foi uma ex- periência muito original naquela ocasião. Como você conseguiu fazer trabalho de campo sobre migração, economia rural e urbana no meio dos anos 1960? Você já escreveu sobre seu trabalho de campo, não é?

K.H. Sim, em 2005, o texto Africa on my mind (Hart, 2008). Tenho sido um apos- tador profissional desde os meus 12 anos. Estive muito envolvido com corrida de cavalos em Cambridge. Entrei no submundo de Cambridge por intermédio do gerente de cozinha da minha faculdade. Nossa amizade surgiu dos cavalos. Naquela época o submundo de Cambridge estava construído, principalmente, em torno da comida, o que queria dizer que os gerentes da cozinha roubavam a comida das faculdades e a vendiam para os donos de restaurante cipriotas. Esse era o elemento principal. Havia também um novo tipo de máfia italiana, baseado na construção, cimento e pizza. Também tinham os trapaceiros das corridas de cavalos, além da polícia, claro, a polícia sempre está envolvida. Cos- tumávamos nos encontrar em um clube de strip-tease na Newmarket Road. Jack Goody queria que eu estudasse as corridas locais. Eu sabia que poderia acabar morto e disse: “de jeito nenhum, eu não vou fazer isso”. Porém, eu também cresci em uma parte de Manchester onde ninguém poderia esperar que a polí- cia fosse o exemplo dos princípios da lei e da ordem. Eles eram violentos e corruptos. Com oito anos de idade, eu estava pegando doces de pedófilos sem ir para os arbustos com eles. Esse era o tipo de mundo em que eu cresci. Então eu fui para as favelas de Accra porque os Frafra estavam lá.5 Um pequeno gân- gster me ofereceu moradia e me levou para a casa dele. Minhas primeiras se- manas foram muito difíceis porque ninguém parecido comigo tinha vivido nesse tipo de lugar, e eu tinha a polícia secreta, seis deles, me vigiando perma- nentemente. Eles batiam nas pessoas com que eu conversava para tentar des- cobrir o que eu realmente estava fazendo ali. Toda aquela região pertencia às “terras ruins” que a polícia invadia ocasionalmente com caminhões, armas e cães. Eles ameaçavam as pessoas e iam embora. Aí vinham as acusações de bruxaria: quem foi que deu a informação? E eles acabavam apontando para mim por ser de fora, o homem branco. Aquilo foi ficando fora de controle. Fui até um professor de sociologia da universidade para pedir-lhe uma carta dizen- do que não era da CIA. Ele disse: “como eu vou saber que você não é?”. Então foi ficando perigoso. Eu decidi que deveria cruzar a linha. Não podia mais ficar em cima do muro. Com o objetivo de fazer essas pessoas perceberem que eu estava do seu lado, eu tinha que ser tão vulnerável quanto eles eram. Então decidi me tornar um fora da lei e me associei ao meu locador. Ele estava sempre sem dinheiro, e eu tinha minha bolsa, que, naquelas circunstâncias, era bas- tante coisa, e então botei o dinheiro num empreendimento, ele fornecia os contatos e o conhecimento, dividíamos o lucro 50-50 e eu obtinha minhas notas de campo. Como você descobre sobre o empréstimo de dinheiro se você não é memórias e experiências de pesquisa na casa das minas de são luís do maranhão

754

um agiota? Eu já tinha lido muitas coisas estúpidas de antropólogos sobre o empréstimo de dinheiro (Hart, 2017). Eles sempre falavam sobre quão grande é a taxa de juros, mas a questão é a taxa de inadimplência: como você recebe o dinheiro de volta das pessoas? Nenhum agiota vai falar para você sobre inadim- plência porque ele deve fingir que nunca acontece. Eu descobri a maioria des- sas coisas fazendo-as. Vou lhes dar um exemplo. Decidimos ir ao campo com o proprietário do meu apartamento, que não sabia nada do campo, para comprar grãos pensando na escassez no futuro. Notamos que o preço era mais baixo na época da colheita, em setembro, e em março o preço dobrava. Então pensamos, o que poderia ser mais fácil? Nós compramos um monte de sacos de milho e os vendemos seis meses depois pelo dobro do preço. Nós compramos 50 sacos de milho. Os carregadores na parada de caminhões cobravam 5 xelins por saco somente para tirar um saco do caminhão. Depois havia outros custos, como mexer o grão, caso contrário ele pega besouros. E tem que comprar inseticida. Manter milho por seis meses nos trópicos não é brincadeira. Quando havíamos conseguido dar conta de tudo isso e estávamos prontos para vender, os ameri- canos despejaram milho no país como ajuda e levaram o preço de volta ao nível da colheita. [Risos.] Se tivéssemos sorte, nós ganharíamos o que pagamos por isso. Porém, nós tivemos todas essas outras despesas no meio. A única forma de fazer alguma coisa era por meio da venda a crédito. Mas, como você consegue receber o dinheiro de volta? Você tem que mandar algum cara para quebrar algumas pernas [Risos] e ele precisa ser pago, e assim por diante. Assim é que funciona. Eu não sei como você pode fazer trabalho de campo nessas áreas sem ser parte ativa disso.

F.N. Por quanto tempo você fez trabalho de campo em Accra?

K.H. Dois anos e meio. Eu não fiquei só em Accra. Também passei um tempo no Norte. Fiquei vários meses na aldeia em que Meyer Fortes trabalhou. E também fui preso quatro vezes: duas pelo Exército e duas pela polícia. Uma ago., 2019 ago.,

– delas foi realmente difícil. Eu escrevi sobre isso naquelas memórias (Hart, 2008).

Tive que pensar muito sobre como se faz um suborno. Você já pensou sobre isso? Não é apenas jogar dinheiro na mão de alguém que te pede. Você tem 383, mai. 383,

– que achar alguém grande o suficiente para controlar os peixes miúdos, mas que não seja muito caro. No British Colonial Police Service esse era o superin- tendente assistente da polícia. Ele era o cara que controlava os peixes peque- nos e recebia os subornos. Nesse momento, estávamos reciclando drogas apre- endidas pela polícia para voltar ao mercado. Algumas vezes eu tinha cinco libras de maconha no teto do meu quarto. Eu estava sob pressão constante vinda de soldados e da polícia, e decidi me proteger guardando os registros do maior nível de corrupção que eu conhecia. Escrevi isso em triplicatas e enviei para minha mãe, que pirou quando leu aquilo tudo. [Risos.]

F.N. Você foi preso pelo Exército, não? sociol. antropol. | rio de janeiro, v.09.02: 365 | rio de janeiro, antropol. sociol. entrevista com sergio ferretti | vagner gonçalves da silva

755

K.H. Fui preso pelo Exército depois do golpe contra Nkrumah; eles me pegaram por um final de semana e enfiaram uma baioneta na minha perna, pisotearam minhas mãos e quebraram minhas unhas. Tudo que eu conseguia pensar era, “eu espero que isso não signifique que o meu PhD vai ser adiado!”. É difícil imaginar quão carreirista acadêmico eu era. Eu não podia pensar em outra coisa para minha vida que não fosse me tornar um acadêmico. Mas, da mesma forma, eu não queria depender da academia. Então, eu fiz essa série de coisas. Trabalhei para The Economist, para o Banco Mundial, tive a opção das apostas, especulei em habitação…

F.N. Oportunidades formais e informais de ganhar a vida. [Risos.]

F.R. Você mencionou uma conversão marxista, mas trabalhou para o Banco Mundial… Como foi trabalhar para o Banco Mundial?

K.H. Foi ótimo, na verdade. O grupo de Norwich para o qual trabalhava foi contratado para escrever um programa de desenvolvimento para a indepen- dência da Papua Nova Guiné [PNG] com o Banco Mundial como agente do Pro- grama das Nações Unidas para o Desenvolvimento e para o governo da Aus- trália. Éramos quatro. Um estava encarregado da estratégia financeira e de desenvolvimento, outro estudava agricultura, outro estudava mineração, e eu tinha o resto – trabalho, política social, educação, desenvolvimento rural, tudo isso. Nós ficamos na Papua Nova Guiné durante três meses e também paramos na Austrália. Foi uma época muito interessante porque o governo da coalizão do Partido Liberal e do Partido Nacional tinha estado no poder ao longo de 23 anos, e era amplamente esperado que o Partido Trabalhista sob Gough Whitlam pudesse chegar ao poder. Havia a sensação de as coisas estarem virando. Foi uma experiência maravilhosa, que nos levou por toda parte. Eu fui para as ilhas Trobriand, Nova Irlanda, o rio Sepik, Goroka, as terras altas da Nova Guiné, foi como um tour na antropologia clássica. Mas nos metemos em um conflito; naquela época, a mina de cobre de Bougainville era a maior mina de ouro do mundo. Era gerida por uma subsidiária australiana da Rio Tinto Zinc, e aquilo era um roubo completo. PNG poderia ter sido outro Congo, pois já tinha tido três movimentos de secessão: um em Bougainville, um em Nova Irlanda, e o terceiro em algum outro lugar. Mike Faber (o líder da equipe) e eu sentíamos que se a Papua Nova Guiné iria ter alguma chance, eles tinham que maximizar seus retornos de alguns enclaves de exportação: mineração, silvicultura, pesca etc. e usar o dinheiro para incluir a periferia rural por meio de redistribuição. Essa foi a política no geral. Mas essa mina da Rio Tinto estava fomentando ativamente a rebelião lá, tal como a União Minière em Katanga. A diferença era que os franceses, os belgas e os americanos apoiaram a União Minière, mas o governo australiano via a Papua Nova Guiné como a sua fronteira do Pacífi- co. A última coisa que eles queriam era que se fragmentasse em um monte de ilhas administradas por empresas multinacionais. Então, eles disseram para memórias e experiências de pesquisa na casa das minas de são luís do maranhão

756

Conzinc Riotinto of Australia, “se vocês não ficarem espertos e seguirem nos- sa linha, nós vamos confiscar suas minas de níquel em Queensland”. Em outras palavras, “temos maneiras de impedir vocês de minerar na Austrália, que é a sua base”. Então tudo mudou muito rapidamente. A ideia da integridade da Papua Nova Guiné foi realmente um dos grandes pilares da política australia- na, e não havia sido para os poderes imperiais no Congo. A mina de Bougain- ville não estava dando receita ao Estado como deveria. Tinha sido um regalo. Então nós insistimos na renegociação do tratado. Nesse ponto, os outros dois caras, os especialistas em agricultura e mineração, renunciaram porque acha- vam que suas carreiras como consultores estavam indo para o espaço. O Ban- co Mundial estava contra nós, o Departamento de Territórios Externos e a ad- ministração colonial também. Todo mundo estava contra nós. Mas nós não teríamos ficado a menos que alguém nos apoiasse. Faber era conhecido por ter inventado a nacionalização do 51% do cobre na Zâmbia da Anglo-American. Então, por que nomear alguém cuja fama foi construída a partir da nacionali- zação do cobre, quando todos os interesses consolidados em PNG pareciam estar contra isso? O cara do Banco Mundial era o mais hostil a isso tudo. Isso foi tão ruim, que eu peguei bronquite. Atravessei uma porta de vidro no hotel e quebrei meus óculos [Risos]; daí tive que usar meus óculos escuros. Eu difi- cilmente conseguia falar, era uma mistura de tosse, estava usando óculos es- curos e estava rouco, tive que defender nossas recomendações contra todos. Uma tarde, no bar, um cara vem até mim e diz: “Deixe-me pagar uma bebida Keith, você está fazendo um grande trabalho”. Descobrimos que toda a inspi- ração para a missão veio do Tesouro australiano, e ele era seu principal fun- cionário. Papua Nova Guiné era um instrumento para reciclar impostos aus- tralianos para três grupos de interesse: os funcionários públicos, os comer- ciantes e os fazendeiros, porque eles estavam despejando excedentes de pro- dutos lácteos e arroz na Nova Guiné – é daí a coalizão Liberal-Partido Nacional... ago., 2019 ago.,

– O Departamento de Territórios Externos sempre esteve na mão do Partido

Nacional, que era o partido dos fazendeiros. Não parece muito agora, mas 500 milhões de dólares australianos de impostos estavam sendo desviados para 383, mai. 383,

– esses três grupos por intermédio de Papua Nova Guiné. O Departamento do Tesouro da Austrália decidiu tornar Papua Nova Guiné independente e acabar com esse acordo de compadres. Então nossa política de dizer para renegociar o acordo de mineração em Bougainville, conseguir o máximo de dinheiro que puder, usar o dinheiro para fortalecer a integridade territorial do país, construir relações de clientela com a periferia, tudo isso era exatamente o que os caras do Tesouro queriam. Acontece que eles, na verdade, nos nomearam. Mas nós nunca soubemos que tínhamos amigos em algum lugar. Nos cinco anos se- guintes, desde a publicação de nosso programa, os líderes dos três movimentos separatistas estavam no gabinete nacional! Produzimos um relatório prelimi- nar entre viagens, e eles tiveram eleições para estabelecer o autogoverno. Pan- sociol. antropol. | rio de janeiro, v.09.02: 365 | rio de janeiro, antropol. sociol. entrevista com sergio ferretti | vagner gonçalves da silva

757

gu, o partido vencedor, tinha divulgado algo chamado “Os oito pontos de de- senvolvimento”, que tinham tirado do nosso relatório preliminar. Quando voltamos, Faber e eu nos encontramos com Michael Somare, o novo primeiro- ministro. Ele disse: “Senhores, obrigado. Antes de vocês chegarem, fomos in- formados pelo Banco Mundial e outros que o desenvolvimento significava apenas uma coisa, incrementar a renda monetária daqueles que mais têm. Agora sabemos que há, pelo menos, um outro método”. E nesse momento, o cara do Banco Mundial e o diretor de planejamento do governo colonial apa- receram, “essas pessoas estão apenas falando o que nós estivemos falando o tempo todo [Risos] e nós esperamos que você nos dê a tarefa de implementar o seu programa de desenvolvimento”.

F.R. Essa foi a época em East Anglia, não foi? Você permaneceu por lá?

K.H. Não, eu fui para Manchester e lá dei aulas durante quatro anos. Eu também trabalhava como consultor de desenvolvimento e, em meia jornada, para o The Economist. O incrível é que Manchester não tinha ninguém para ensinar antro- pologia urbana. Isso devia ser em 1971. Eu estava indo bem, estava casado, tive um filho, minha mulher tinha um emprego em uma universidade próxima, tí- nhamos uma ótima casa. E então aconteceu algo que me levou a brigar com o chefe do departamento, Ermys Peters. Então, a esse ponto, eu escrevi para qua- tro universidades americanas: Yale, Harvard, Chicago e Northwestern para dizer que eu estava disponível no mercado. Fui entrevistado em Yale e Chicago, e ambas me ofereceram emprego. Em Yale eles disseram, “nós queremos nomeá- -lo professor-associado. Mas, não sabemos se com ou sem tenure”.6 Eu disse: “vocês devem estar brincando se pensam que eu vou atravessar o Atlântico sem tenure”. Eu não tinha um livro publicado ainda, não tinha escrito nada exceto esse artigo sobre a economia informal. Mas eles me deram o tenure. Eu achava que o tenure fosse o que era na Inglaterra – você arruma um emprego, trabalha por dois anos e consegue o tenure. Mas em Yale, é questão de vida ou morte, mas eu não sabia nada dessas coisas. Fiquei por lá até 1979.

F.N. Como foi a sua experiência nos Estados Unidos?

K.H. Foi a época mais difícil da minha vida, porque minha família se separou, surtei várias vezes, renunciei e tive que me vender em contratos de curto prazo. Foi muito, muito difícil. Eu amo a América. Eu sou um grande fã da sociedade e da cultura americana. Mais tarde transferi esse afeto para o Brasil, mas nesse momento a América preenchia meu anseio por bom esporte, boa música popular, boa comida. Um país surpreendente, grande e diverso. Quan- do surgiu a oportunidade de ir para a América, eu queria aceitar a oferta, mas minha esposa não queria. Depois de três meses de angústia, eu escrevi duas memórias e experiências de pesquisa na casa das minas de são luís do maranhão

758

cartas, uma dizendo sim, outra dizendo não. Eu coloquei um selo nas duas e levei ambas para o correio, eu enviei uma delas e rasguei a outra. A que eu enviei dizia sim. Mas eu sentia um grau de compulsão para ir que eu nunca havia experimentado antes ou desde então. Uma sensação de que toda minha vida dependia de ir para lá naquele momento. Retrospectivamente, eu acho que não é difícil de entender. Os americanos desenvolvem isso em você. Eles dizem, “Ok garotão, mostre-nos suas coisas. Faça o que você gosta, você está aqui, você é nossa estrela, vá fundo”. E você pensa, “é foda, não é como a In- glaterra”. Na Inglaterra, eles diriam, “menos, garoto”. [Risos.] Então, eles te dão um grande estímulo. Mas quando as coisas não funcionam, não há ninguém lá. Me lembro de estar em uma esquina em Chicago e o vento estava entrando nas minhas entranhas, era inverno, e eu pensei, “não há ninguém em 1500 milhas que me entenda”. Eu estava completamente sozinho. Esse era o outro lado da moeda. Por um lado, você vai para lá, faz o que gosta. Depois, se você se quebra, você está por sua conta. Por muitos anos, a Inglaterra me deprimia, me deixava para baixo, a América me estimulava. Mas por outro lado, eu esta- va sozinho na América e quando voltei à Inglaterra foi muito confortável ter pessoas a minha volta que me conheciam e eram próximas de mim. Então eu voltei para Cambridge e logo consegui um emprego como professor-assistente. Com 32 anos tinha um tenure em Yale, com 41 estava começando como profes- sor-assistente na base da hierarquia, sem estabilidade e com um salário mui- to baixo.

F.N. Foi nessa época que você escreveu o artigo sobre dinheiro? Eu vejo muitas conexões entre a sua etnografia em Accra e o seu trabalho sobre dinheiro, co- meçando pelo artigo sobre os dois lados da moeda (Hart, 1986).

K.H. Isso foi um pouco mais tarde, na minha primeira década de volta a Cam- ago., 2019 ago.,

– bridge, nos anos 1980. Até certo ponto, o par Estado/Mercado no meu artigo

sobre dinheiro, é um primo do formal/informal. Há uma lógica hegeliana que eu gosto. Nenhuma ideia é abarcadora ou forte o suficiente para dar conta do 383, mai. 383,

– que as pessoas realmente fazem. Sempre há esse desborde. Ainda, e continu- ando com Hegel, a mais poderosa ferramenta analítica ocorre quando a gran- de ideia produz, como sua negação, outra ideia que deve captar o que esta não é. Entre elas, obtém-se um pouco mais desse todo, mas ainda não tudo. Então essa ideia de caras e coroas, Estados e mercados veio no início do período neoliberal, quando Friedman havia derrubado Keynes; então havia uma sen- sação dessa oscilação louca entre administração estatal do dinheiro e sua li- beração. A palestra7 tinha (como tem o artigo) três seções, e essa organização era a principal mensagem para mim: “Nós estamos aqui para celebrar Malino- wski, e Malinowski nos deu um gênero particular de trabalho etnográfico, do qual todos nós temos vivido, de certa maneira”. Mas na primeira seção, digo sociol. antropol. | rio de janeiro, v.09.02: 365 | rio de janeiro, antropol. sociol. entrevista com sergio ferretti | vagner gonçalves da silva

759

que os antropólogos têm de ser mais conscientes sobre a história do mundo do qual nós fazemos parte, como essa passagem de Keynes para Friedman. Isso tem que influenciar aquilo que nós pensamos sobre o dinheiro. Então, mesmo se apenas ingenuamente, nós temos que nos engajar no mundo em que estamos vivendo e refletir como isso influencia as questões que formula- mos. Em segundo lugar, nós não podemos entrar em disputas econômicas usando ideias reducionistas vulgares, como o Homo Economicus, tal como Ma- linowski fez, quando a história monetária é muito rica e variada e há alterna- tivas bem desenvolvidas para olhar. Não é muito difícil descobrir quais são elas. Nesse sentido, History of economic analysis, de Schumpeter (1954) é bastan- te legível. Eu argumento que, em vez de brigar com as versões usuais das ideias econômicas ocidentais, deveríamos ser capazes de aprender com algumas de- las. Existe a história do dinheiro estatal, do dinheiro comunitário, do dinheiro de mercado e assim por diante. Vamos ver se podemos colocá-las juntas em um conjunto, em vez de ir de um extremo para outro. A terceira seção dizia, “se nós olharmos para o que os economistas têm para nos oferecer e pensarmos um pouco sobre o nosso lugar na história, podemos produzir uma análise mais sofisticada sobre as ilhas Trobriand do que a de Malinowski, analisando de cima para baixo e de baixo para cima as formas de organização dos intercâm- bios de peixes e inhames, por exemplo. Essa era a mensagem. Mas essa parte da palestra nunca foi realmente considerada. Jane Guyer, Robert Foster e alguns outros parecem ter captado a mensagem. Mas eles nunca adotaram as duas primeiras seções, com suas sugestões de que nós temos que ter uma visão histórica que é contemporânea e que devemos passar mais tempo com os especialistas. Você não poderia estudar direito sem dar atenção à história da jurisprudência. Por que você pensaria que pode estudar os mercados e o di- nheiro sem dar atenção à economia? Mas muitos antropólogos não o fazem. Johnny Parry e Maurice Bloch (1989) produziram o seu Money and morality of exchange um pouco mais tarde. Eu provavelmente exagerei o contraste entre o que eu faço e o projeto deles, mas eles pensavam que estavam fazendo algo similar. Em seu livro, as pessoas nas sociedades não capitalistas ao redor do mundo não são reféns do dinheiro no mesmo grau como nós estamos em so- ciedades capitalistas; e eles colocaram o dinheiro para o uso de longo prazo como reprodução social. Tudo bem. Mas o que eles não consideram é como e por que o dinheiro passou supostamente a ter vida própria nas sociedades capitalistas. Por que é que o pagamento em dinheiro transforma uma relação para nós? Eles não abordam isso. Johnny é meu melhor amigo, nós criamos nossas filhas adolescentes juntas. Demos as palestras Malinowski consecuti- vamente, e elas foram publicadas no mesmo ano; a dele, sobre a dádiva india- na (Parry, 1986), é mais famosa do que a minha. Na Conferência Mauss vivant, em Cerisy,8 falei que estava indo com Johnny Parry, e eles disseram: “você quer memórias e experiências de pesquisa na casa das minas de são luís do maranhão

760

dizer “o” Johnny Parry? Da dádiva indiana?” Eu pensei que meu livro The memory bank (Hart, 2000) era significativo, mas dez anos mais tarde percebo que qual- quer coisa que eu escrevi não é tão importante quanto o artigo de 1986. Tem alguma coisa realmente profunda lá, de que, provavelmente, não estava cien- te. Ainda ganho mais o revisitando do que voltando para meu livro.

F.N. Eu sou fascinado pelas conexões entre o artigo sobre cara e coroa (Estado e mercado) e seus desenvolvimentos posteriores sobre o tema do dinheiro e dos negócios que, como você diz, são sempre pessoais e impessoais. O que você pensa sobre essa ligação?

K.H. Continuo voltando a essas perguntas, mas os termos nos quais as coloco mudam, se alimentando daquilo que havia escrito anteriormente. Assim, nos últimos dez anos, como resultado de The memory bank, o par-chave para mim tornou-se pessoal/impessoal. O pequeno livro The hit man’s dilemma (Hart, 2005) é minha mais completa tentativa de explorá-lo. Mas sim, certamente, há um envolvimento persistente com pares dialéticos que podem nos ajudar a enten- der algumas perguntas persistentes. Torna-se difícil separá-los. É formal/infor- mal, pessoal/impessoal, Estado/mercado, virtual/real? Acredito que a razão fundamental pela qual eu sou antropólogo vem da minha experiência como adolescente tentando passar nos exames para entrar em Cambridge. Não podia suportar o sistema de avaliação impessoal. Primeiro de tudo, eu não tinha ne- nhum apoio familiar. Meus pais estavam muito orgulhosos de mim, mas eles não podiam me aconselhar. Fui o primeiro dos bairros populares do Centro da cidade a entrar na Manchester Grammar School. É como no Brasil, a maioria das pessoas que entram para a Manchester Grammar School vem da educação pri- vada. São treinadas para passar nos exames. Todo ano há 10.000 concorrentes de uma área que se estende em um raio de 40-50 milhas do Centro da cidade. ago., 2019 ago.,

– Você só pode fazer o exame se seu diretor o recomendar. Assim, você tem 10.000

escolhidos de professores vindos de toda a região. Eles reduzem de 10.000 para 2.000 na primeira etapa, e você faz um segundo exame, e eles tiram 200 de 2.000. 383, mai. 383,

– E é isso. Eu saí na capa do jornal local por ter ganho uma vaga. Eu não tinha precedente algum. Eu não sabia quanto trabalho tinha que fazer para chegar onde queria. Então eu trabalhei em excesso. Com 18 anos, eu já tinha lido qua- se tudo o que existe em latim e grego, só não sabia quando parar. Eu havia sa- crificado tudo para fazer isso. Mas os exames eram avaliados anonimamente. Em outras palavras, você preenche o exame e ele vai não sei aonde. Alguém que você nunca conheceu lê o seu exame. Eu sabia que havia trabalhado o suficien- te para passar nos exames, mas e se o cara que está corrigindo meu trabalho o faz mal? Eu tinha que influenciá-lo de alguma maneira. A primeira coisa que fiz foi ler sobre caligrafia. Inclinada para a frente é extrovertido e introvertido inclinada para trás, e grandes voltas é psicótico − todo esse tipo de coisa [Risos]. sociol. antropol. | rio de janeiro, v.09.02: 365 | rio de janeiro, antropol. sociol. entrevista com sergio ferretti | vagner gonçalves da silva

761

Eu então desenvolvi um estilo de caligrafia que é regular, mas característico e facilmente legível. Assim pelo menos o cara pode dizer, “obrigado, Deus, uma escrita que eu consigo ler!” Mas eu sou um romancista fracassado, eu imaginei um cara nos seus 50 anos que está no seu quarto whisky, é uma hora da manhã, e ele tem 50 trabalhos para examinar. Que acontece se ele diz, “ah foda-se, eu vou dar um B e sigo em frente”. Como eu vou conseguir sua atenção? Eu decidi colocar uma piada no primeiro parágrafo. Ou ele gosta da piada, nesse caso eu estaria à frente, ou não gosta da piada, mas pelo menos está lendo. Essa é a experiência central que me fez um antropólogo. Eu não consigo suportar depen- der de uma sociedade impessoal. Eu tenho que fazer uma conexão pessoal que me dê mais chances. Na ausência de qualquer contato real, vou criar uma ficção que preencha essa distância. Todo esse negócio sobre a economia informal e caras e coroas, pessoal e impessoal, é reduzível a esta única questão: como diabos eu, o pequeno Keithy de Old Trafford, vou lidar com tudo isso que está lá fora? Minha vida depende disso. Eu lembro de um filme chamado Billy Elliot, que é sobre um garoto da mineração que era dançarino.9 Tem um momento em que ele é entrevistado para a escola nacional de ballet e depois ele tem que esperar por uma resposta em casa. Um envelope marrom chega por debaixo da porta com a resposta: ele está dentro ou está fora? Ele não quer abri-lo na fren- te da família. Prefere não saber do que saber o pior. Eu entendo esse sentimen- to tão bem. Minha vida depende do que está dentro desse envelope marrom. Eu definitivamente quero ter as coisas mais do meu lado do que elas estavam quando comecei, mas eu quero fazer isso de uma maneira que também possa ajudar aos outros, para preencher a enorme distância entre a imensidão das forças que nos esmagam e nossa própria personalidade com seus desejos. Como podemos trazê-los para perto um do outro, fazer algum tipo de conexão signi- ficativa? O intercâmbio com o examinador imaginário quando era adolescente foi a origem disso.

F.R. Esse é o espírito da Open Anthropology Cooperative, não é? Preencher a distância? Construir pontes?

K.H. Sim, a Open Anthropology Cooperative é muito interessante. Era um grupo de pessoas, a maioria delas estudantes de graduação, que se encontraram no Twitter, e começamos a trocar ideias sobre como seria bom ter uma associação online. Esse grupo do Twitter se mudou para o meu website para criar um fórum de discussão, e então alguém disse, você já tentou Ning? Então eu fui, procurei Ning e comecei. [Ela tem 22.000 membros em 2018] Ninguém me delegou essa função, eu não estava trabalhando para ninguém, eu nem mesmo sabia que, depois de ter colocado meu endereço de e-mail, eu seria para sempre identifi- cado como o fundador dessa coisa. Mas é daí de onde ela vem. Eu estive envol- vido em tentar auto-organizar comunicações desde os anos 1990. Eu formei em memórias e experiências de pesquisa na casa das minas de são luís do maranhão

762

Cambridge algo chamado de Associação Antropológica Amadora [Amateur An- thropological Association] ou a pequena Triple A (você sabe, não o grande Triple A [AAA]),10 e isso se tornou uma lista de endereços depois de um tempo. Há um potencial tremendo nesses sites de redes sociais. Tendo estado nisso por 20 anos, estou convencido de que as habilidades necessárias para fazer o melhor uso desses meios são cada vez mais sociais do que técnicas. Quando eu comecei, dependia dos nerds porque eu não entendia nada disso. Cada vez está se tor- nando mais fácil se conectar e usar. Neste momento, as reais habilidades em- preendedoras são sociais. Sei que eu as tenho, mas a OAC também coincidiu com minha aposentadoria. Talvez estivesse criando minha própria universidade no meu laptop para compensar o fato de que eu não estava mais trabalhando em uma universidade. As três palavras do nome são significativas. Uma é “open access”, essa é bastante fácil. A segunda, “anthropology”, nós temos que repen- sar, deixamos muitas antropologias florescerem. A mais difícil das três é “coo- perative”, porque o verdadeiro potencial dessa aposta é a colaboração. Isso é difícil de alcançar. É difícil conseguir que as pessoas sejam ativas, mas ser ativos juntos é mais difícil ainda. Começamos uma série de publicações, intitulada Open Anthropology Cooperative (OAC) Press () e publicamos trabalhos em andamento, geralmente para seminários online. Fa- zemos um seminário durante duas semanas e produzimos um artigo previa- mente, a discussão é arquivada e é acessível permanentemente. Agora temos todo esse material em e-books. Fizemos uma série chamada Interventions, que é de ensaios reciclados ou novos de antigos nomes, incluindo dois trabalhos de Sidney Mintz e outro de Jean La Fontaine. Dependemos muito dos estudantes de pós-graduação, e os estudantes de pós-graduação têm dois problemas: que- rem ser antropólogos profissionais, o que significa que são bastante conserva- dores, e pensam que o que fazem online é uma distração do que deveriam estar ago., 2019 ago.,

– fazendo, sua tese. Então é difícil conseguir que as pessoas se comprometam

como eu o faço. A segunda língua dos participantes é português, de Portugal e do Brasil. 383, mai. 383, –

F.N. Todas essas novas formas de diálogo e plataformas de rede parecem re- fletir o que está acontecendo com a antropologia no mundo hoje. Qual é a sua percepção? O que está acontecendo na disciplina agora, nos centros tradicionais como a França, Inglaterra e América e nos “emergentes”, como o Brasil e mui- tos outros?

K.H. Um dos problemas com a OAC é que quase metade dos visitantes é dos EUA e da Inglaterra. Nossos membros são incrivelmente globais. É realmente emocio- nante, eles vêm de todas as partes, Mongólia, de qualquer lugar que você possa imaginar. É simplesmente incrível. Então de alguma forma as barreiras ao acesso sociol. antropol. | rio de janeiro, v.09.02: 365 | rio de janeiro, antropol. sociol. entrevista com sergio ferretti | vagner gonçalves da silva

763

para pessoas de fora não são proibitivas. Mas as pessoas que demonstraram o pri- meiro e o maior entusiasmo foram os lusófonos. Os franceses não são realmente muito entusiasmados com isso, eles também não participam da Easa. A França acabou sendo o terceiro maior visitante, mas isso principalmente por minha cau- sa! Ela conta todas as minhas visitas ao site como França.11 [Risos.] Eu sempre sen- ti que a antropologia profissional deveria se abrir para a troca com pessoas inte- ressadas vindas de fora da disciplina. Eu realmente acredito que a antropologia é mais conservadora e até redundante nos antigos centros imperiais, na França, In- glaterra e América. Tenho enorme satisfação com as variações regionais e nacio- nais na antropologia. Sempre cito a Escandinávia – Finlândia, Suécia, Noruega e Dinamarca. Duas coisas. A primeira é que o modelo social-democrata não foi eli- minado lá, e a segunda, os antropólogos lá têm um senso de responsabilidade pú- blica por causa desse modelo social-democrata. A Noruega publicou uma lista dos dez melhores intelectuais públicos e três deles eram antropólogos. O número um era Thomas Hylland Eriksen, e o número cinco, antes de ela falecer, era Marianne Gullestad, o número sete era Unni Wikan, a mulher de Frederik Barth. Em Estocol- mo, Ulf Hannerz foi uma estrela quando tinha 14 anos, ao receber um prêmio de TV por identificar um peixe exótico. Mas ele foi também um herói nacional pelo seu PhD quando apresentou Soulside (Hannerz, 1969). Um examinador era Michael Banton, um sociólogo inglês, o outro era um antropólogo sueco, e o sueco rejeitou a tese, argumentando não ser boa o suficiente para um PhD. Os estudantes mani- festaram-se nas ruas em favor de Ulf, então ele foi para a televisão mais uma vez. Você sabe a história sobre o peixe? Isso foi nos anos 1950, quando todo mundo via TV no domingo à noite; a pergunta valia 64,000 dólares, e ele chegou na rodada fi- nal. A Suécia inteira estava assistindo a esse garoto de 14 anos, e eles lhe dão uma série bem complicada de questões. Ele responde certo na primeira, certo na se- gunda, certo na terceira, certo na quarta, e então eles dão uma lista de cinco coi- sas, e ele identifica as cinco coisas, e o apresentador diz: “ah, sinto muito, você cometeu um erro”. E esse garoto de 14 anos, Ulf, meu amigo, diz: “Eu acho que você vai descobrir que estou certo”. Então eles, em seguida, apanharam livros e desco- briram que havia dois nomes para esse peixe, ele deu um deles, o programa o ou- tro. Assim, primeiro a Suécia inteira ficou “ah, o garoto quase conseguiu, mas fa- lhou!” e depois, “mas o garoto ganhou!!”. Então ele virou um herói nacional, lite- ralmente. E depois, em 1968, houve estudantes marchando nas ruas para defen- der seu PhD. Sempre achei que tenho um mercado na Escandinávia, o que é ótimo, porque eu acho que eles gostam de discurso direto, há algo na minha personalida- de, minha perspectiva política, meu estilo de comunicação, que eles gostam. Quanto ao Brasil, uma questão importante para identificar as possibilidades para a antropologia em determinados países é olhar para a divisão acadêmica do tra- balho nas ciências sociais. Então, por exemplo, na Inglaterra, a sociologia é muito católica e universal, a ciência política é muito restrita, sobre governo e assim por diante. Na América, a ciência política é católica e a sociologia é muito restrita e memórias e experiências de pesquisa na casa das minas de são luís do maranhão

764

formal. Eu não sei isso tão bem quanto vocês, mas meu entendimento do Brasil é que a sociologia e a ciência política ficaram presas a um estilo bastante rígido e antiquado, marxista ou qualquer outra coisa do tipo, e assim isso abriu para os antropólogos a possibilidade de se voltar para a sociedade urbana contemporâ- nea, assim como manter seu reduto amazônico. Assim, as possibilidades para a antropologia aqui são enormes. Obviamente a antropologia social floresceu na Inglaterra antes da guerra porque não havia realmente uma sociologia viável. A classe dominante britânica decidiu que eles não queriam uma sociologia da Grã- Bretanha, mas uma sociologia do império colonial, o que significou que os antro- pólogos sociais tiveram um escopo muito mais amplo para dirigir-se ao público do que teriam se eles fossem competir com uma sociologia bem estabelecida. Es- se tipo de coisa importa, quais circunstâncias permitem antropólogos assumir uma presença mais expansiva e pública? O ponto principal, entretanto, é que a antropologia não é mais uma coisa. É muitas coisas. Não é sempre progressista. Tem países enormes, como a Índia e a Nigéria, onde muitos antropólogos estão focalizando os chamados estudos tribais. Tenho certeza de que isso envolve um bom trabalho, original, mas as questões mais amplas da sociedade contemporâ- nea são negligenciadas. Alguns dos antigos assentamentos do Império britânico, como África do Sul, Nova Zelândia, Austrália e Canadá, têm antropologias bem vivas. Em parte, eu refiz minha vida na África do Sul. Sempre tem sido um lugar muito importante para a antropologia, e agora estou organizando pesquisas na maior universidade de lá, que é Pretoria, um antigo bastião dos africânderes, onde o bantustão e as políticas de apartheid foram formadas. As universidades liberais como a da Cidade do Cabo e a Witwatersrand University, de Johanesburgo, pensa- vam estar no lado certo na luta antiapartheid enquanto consideravam que os afri- cânderes estavam perseguindo uma antropologia antiquada, racista e alemã. Na verdade, os antropólogos ingleses da África do Sul tendiam a argumentar naquela época que os africanos eram rurais ou tribais e as cidades eram brancas, enquan- ago., 2019 ago.,

– to os antropólogos africânderes, inspirados em Thrasher e na sociologia america-

na da dinâmica das ruas, estavam dizendo que essas pessoas eram iguais a eles e que havia muitos mais deles. Estavam propondo enviá-los de volta ao campo, com 383, mai. 383,

– base em uma interpretação muito moderna de que os africanos não eram subs- tancialmente diferentes de nós. A África do Sul tem sido sempre uma fonte muito importante de antropólogos − pessoas como Max Gluckman, Radcliffe-Brown, Fortes, Schapera e Hilda Kuper.

F.R. E agora você está trabalhando não só com sul-africanos, mas com pessoas vindas de outras partes do mundo.

K.H. Sim, para o livro The human economy, eu peguei um discurso que era exclusi- vamente francófono e latino-americano e adicionei autores escandinavos, britâ- nicos e americanos, traduzindo uma grande quantidade desse material para o sociol. antropol. | rio de janeiro, v.09.02: 365 | rio de janeiro, antropol. sociol. entrevista com sergio ferretti | vagner gonçalves da silva

765

inglês. Mas quando foi concluído, ficou evidente que nele não havia africanos e asiáticos. Portanto, esse é um processo contínuo, em que cada passo empurra o barco um pouco mais longe. A próxima etapa será trazer mais contribuições afri- canas e asiáticas, em diálogo com a América Latina. Penso em mim como re- montando um homem Ibsa, que é um acrônimo para a associação de Índia, Bra- sil e África do Sul. Faz um tempo que venho acumulando conexões no Brasil e na Índia, e considero esses três países os lugares mais promissores do planeta. Sempre tenho gostado da Índia, também acho a África do Sul um lugar esperan- çoso e fico triste pela reputação global que tem por causa do crime e da violência. Há conflitos, mas todas as classes e raças têm um lugar na nova África do Sul. Os brancos estão melhor do que poderiam esperar, talvez muito bem; os indianos estão muito presente nas profissões e nos serviços públicos; os negros sul-afri- canos são cidadãos plenos na economia africana mais forte; e os africanos que vieram de fora sabem que eles estão com melhores chances. Há, é verdade, con- flitos importantes entre os dois tipos de África, os brancos estão começando a dar por garantida a sua superioridade e os seus privilégios, e o governo da ANC possui muitas falhas. Mas esse país tem apenas 100 anos de idade. A África do Sul foi formada em 1910, tornou-se uma república racista em 1961, e teve um go- verno de maioria africana em 1994. Pouco tempo, no final das contas. O país é jo- vem, é bonito, e as pessoas são calorosas. Brancos, pardos, negros, eles são calo- rosos. Não há comparação perto da França ou da Inglaterra. As pessoas do Norte são deprimidas. Vivendo em Paris, tenho que ir para a África do Sul para escapar da depressão. Lembro-me de conversar com uma mulher francesa que me per- guntou, “Sobre o que é o seu livro?” “Eu estou escrevendo um livro sobre o futuro urbano africano, onde haverá importantes melhorias econômicas.” Ela estava olhando feio para mim, então eu finalmente disse: “Bem, claro que grande parte da África é uma bagunça”. Ela disse: “Sim, é uma bagunça”. Então eu perguntei, “Você já esteve lá?” Ela disse: “Não, não, eu nunca estive lá.” Para ela e para mui- tos a ela semelhantes, os negros pobres e sem esperança são a prova permanen- te de que ser francês é melhor. Na Inglaterra também. Tenho pensado em um li- vro que vai ser difícil realizar, mas cuja mensagem é que o jogo acabou.12 O Oci- dente esteve obtendo rendimentos vindos do resto do mundo durante 500 anos, e os outros não estão mais dispostos a pagar. Os europeus nem podem reprodu- zir-se, mas quando eles trazem essas pessoas da África, do Oriente Médio e da Europa Oriental para trabalhar a fim de que possam se aposentar, eles os odeiam por isso. O livro é para os africanos em primeiro lugar, mas também é para os eu- ropeus, dizendo que isso é para vocês, o jogo acabou. [Risos.]

F.N. Obrigado pela entrevista. O jogo acabou.

Recebida em 17/4/2019 | Aprovada em 29/10/2019 memórias e experiências de pesquisa na casa das minas de são luís do maranhão

766

Federico Neiburg é professor do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social, Museu Nacional, UFRJ. Pesquisador do CNPq. Coordena o Núcleo de Pesquisas em Cultura e Economia (www. cultura-economia.org). Desenvolve pesquisas na área de antropologia econômica sobre os temas moedas, mercados, dinâmicas familiares e ago., 2019 ago., políticas, mobilidade e circulação de pessoas, objetos e dinheiro. –

Publicou os livros: A cultural history of money. The Age of Empire (1820- 1920) (com Dood, N.) (2018); Norbert Elias. Escritos e Ensaios 1 − Estado, 383, mai. 383,

– processo, opinião pública (com Waizbort, L.) (2006); Empires, nations, and natives: anthropology and state-making (com L’estoile, B.; Sigaud, L.) (2005) e Los intelectuales y la invención del peronismo. Estudios de antropología social y cultural (1998).

Fernando Rabossi é professor do Departamento de Antropologia Cultural e do Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia da UFRJ. Sua pesquisa focaliza a relação entre regras e práticas econômicas. É autor do livro En las calles de Ciudad del Este: una etnografía del comercio de frontera (2008) e de diversos artigos sobre economias e políticas informais, processos de formalização, mercados, fronteiras, circulação e etnografia. sociol. antropol. | rio de janeiro, v.09.02: 365 | rio de janeiro, antropol. sociol. entrevista com sergio ferretti | vagner gonçalves da silva

767

NOTAS

1 De acordo com o autor, o capitalismo de Estado (State ca- pitalism) foi a configuração predominante durante a Guer- ra Fria na qual o Estado, e não o mercado, teve papel pre- ponderante na estruturação do capitalismo, papel que é resultado da convergência da burocracia estatal e do ca- pitalismo industrial. Nessa formulação, Hart recupera as discussões de C.L.R. James (James, Dunayevskaya & Lee, 1950), o historiador e intelectual trinitário que teve in- fluência decisiva no seu pensamento. C.L.R. James (1963) é o autor de Black jacobins, de 1938, hoje um clássico sobre a independência haitiana. [N.T.] 2 Os textos estão disponíveis em: . Acesso em 22 out. 2018. A partir de 2001, passaram a ser editados por outros sites, como o Prickly Pradigm, disponível em: . Acesso em 22 out. 2018. [N.T.] 3 Seguidor de Jeremy Bentham, filósofo e economista con- siderado o pai do utilitarismo. [N.T.] 4 O livro The developmental cycle in domestic groups foi editado por Jack Goody (1958). Ele explorava as ideias de Meyer Fortes a respeito do ciclo de mudanças dos grupos domés- ticos e as consequências para a dinâmica social destaca- da em seu artigo Time e Social Structure: an Ashanti case study (Fortes, 1949). [N.T.] 5 Na época, a categoria étnica frafra incluía quatro grupos, sendo um deles os Tallensi. [N.T.] 6 Tenure é o direito de estabilidade no cargo como professor universitário. [N.T.] 7 “The two sides of money” foi apresentado por Keith Hart como uma palestra em memória a Malinowski, na London School of Economics, em 13 de março de 1986. [N.T.] 8 O colóquio Mauss vivant, de 2009, foi organizado por Alan Caille e Keith Hart, reunindo um conjunto significativo de participantes que abordaram a relevância contempo- rânea dos escritos de Marcell Mauss. Sobre o legado de Mauss, ver o texto de Keith Hart e Wendy James (2014). [N.T.] memórias e experiências de pesquisa na casa das minas de são luís do maranhão

768

9 Billy Eliot, dirigido por Stephen Daldry, 2000. [N.T.] 10 Se refere à sigla da American Anthropological Association (AAA). [N.T.] 11 Keith Hart vive com sua família em Paris desde 1997. 12 Africa 2100: A history of the future (ainda em preparação). 12 palestras (MP3s) sobre “África na história mundial”, disponível em: . Acesso em 22 out. 2018.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

Fortes, Meyer. (1949). Time and social structure: an Ashan- ti case study. In: Fortes, Meyer (ed.) Social structure: studies presented to A.R. Radcliffe-Brown. Oxford: Clarendon, p. 54-84. Geertz, Clifford. (1963). Peddlers and princess: social change and economic modernization in two Indonesian towns. Chicago/ London: The University of Chicago Press. Goody, Jack. (1958). The developmental cycle in domestic groups. Cambridge: Cambridge University Press. Hannerz, Ulf. (1969). Soulside: inquiries into ghetto culture and community. New York: Columbia University Press. Hart, Keith. (2017). Greybacks. In: Maurer, Bill & Swartz, Lana (eds). Paid: tales of dongles, checks, and other money stuff. Cambridge, MA: The MIT Press, p. 211-222.

ago., 2019 ago., Hart, Keith. (2008) [2005]. Africa on my mind. Disponível –

em: . Acesso em 22 out. 2018. 383, mai. 383, – Hart, Keith. (2005). The hit man’s dilemma: or business, per- sonal and impersonal. Chicago: University of Chicago Press/ Prickly Paradigm Press. Hart, Keith. (2000). The memory bank: money in an unequal world. London: Profile Books. (Republicado em 2001 como Money in an unequal world. New York/London: Texere). Hart, Keith. (1992). Market and State after the Cold War: the informal economy reconsidered. In: Dilley, Roy (ed.). Contesting markets: analyses of ideology, discourse and prac- tice. Edinburg: Edinburg University Press, p. 214-227. Hart, Keith. (1986). Heads or tails? Two sides of the coin. sociol. antropol. | rio de janeiro, v.09.02: 365 | rio de janeiro, antropol. sociol. entrevista com sergio ferretti | vagner gonçalves da silva

769

Man, 21/4, p. 637-656. Hart, Keith. (1982). The political economy of West African agriculture. Cambridge: Cambridge University Press. Hart, Keith. (1978). The economic basis of Tallensi social history in the early twentieth century. In: Dalton, G. (ed.). Research in economic anthropology, v.1. Greenwich, CT: JAI Press, p. 185-216. Hart, Keith. (1973). Informal income opportunities and urban employment in Ghana. Journal of Modern African Studies, 11/3, p. 61-89. Hart, Keith & James, Wendy. (2014). Marcel Mauss: a living inspiration. Journal of Classical Sociology, 14/1, p. 3-10. Hart, Keith; Laville, Jean-Louis & Cattani, Antonio David (eds). (2010). The human economy: a citizen’s guide. Cambrid- ge: Polity Press. James, C.L.R. (1963) [1938]. The black jacobins: Toussaint L’Ouverture and the San Domingo Revolution. New York: Vin- tage. James, C.L.R.; Dunayevskaya, R. & Lee, G. (1950). State ca- pitalism and world revolution. Chicago: Charles H. Kerr. Lomnitz, Larissa Adler de. (1993) [1975]. Cómo sobreviven los marginados. Mexico: Siglo XXI Editores. McGee, Terence. (1971). The urbanization process in the Third World. London: G. and Sons, Ltd. Parry, Jonathan. (1986). The gift, the Indian gift and the “Indian gift”. Man, 21/3, p. 453-473. Parry, Jonathan & Bloch, Maurice (eds). (1989). Money and the morality of exchange. Cambridge: Cambridge University Press. Salhins, Marshall. (1993). Waiting for Foucault. Cambridge: Prickly Paradigm Press. Schumpeter, Joseph A. (1954). History of economic analysis. London: Allen & Unwin. Strathern, Marilyn. (1995). The relation: issues in complexity and scale. Cambridge: Prickly Paradigm Press. memórias e experiências de pesquisa na casa das minas de são luís do maranhão

770

ANTROPOLOGIA E ECONOMIA. TENTANDO FAZER UMA CONEXÃO SIGNIFICATIVA: ENTREVISTA DE KEITH HART Resumo Palavras-chave Keith Hart narra sua trajetória intelectual desde seus primei- Antropologia; ros cursos em letras clássicas até sua conversão à antropolo- informalidade; gia. Acentua a mudança de perspectiva teórico-conceitual dinheiro; provocada por sua geração e os impactos dessas novas pes- África; quisas realizadas na África urbana, o que, por sua vez, deu desenvolvimento. outra feição à antropologia econômica que, ao se afastar dos modelos clássicos, avança para uma antropologia dos merca- dos, do trabalho informal, do dinheiro e das novas relações sociais instituídas pelas migrações que formam a nova faceta do mundo urbano contemporâneo. A entrevista é, também, uma fonte importante para a história da antropologia anglo- -saxã ao tratar de seus bastidores, da relação entre Keith Hart e Jack Goody e das tensões e distanciamentos com a geração de Meyer Fortes e de Evans-Pritchard. Também revela os vai- véns dos debates sobre desenvolvimento, a constituição dos novos espaços pós-coloniais e as experimentações contem- porâneas na economia e na antropologia.

ANTHROPOLOGY AND ECONOMY. TRYING TO MAKE A ME ANINGFUL CONNECTION: INTERVIEW WITH KEITH HART Abstract Keywords Keith Hart recollects his intellectual trajectory from his early Anthropology; undergraduate courses in Classics to his conversion to anthro- informality; ago., 2019 ago.,

– pology. He highlights the shift in theoretical perspective un- money;

leashed by his own generation and the impacts of the new Africa; studies carried out in urban Africa. These, in turn, added an- development. 383, mai. 383,

– other dimension to economic anthropology, which, moving away from classical models, advanced towards an anthropol- ogy of markets, informal work, money and the new social rela- tions instituted by migrations that form the new face of the contemporary urban world. The interview is also an important source of behind-the-scenes information on the history of Anglophone anthropology, including the relationship be- tween Keith Hart and Jack Goody, and the tensions and dis- tances in relation to the generation of Meyer Fortes and Evans- Pritchard. It also reveals the ups and downs of development debates, the constitution of new postcolonial polities, and contemporary experiments in economics and anthropology. sociol. antropol. | rio de janeiro, v.09.02: 365 | rio de janeiro, antropol. sociol. artigo | maria laura viveiros de castro cavalcanti

771

ARTIGOS a casa das minas de são luís do maranhão e a saga de nã agontimé

772 ago., 2019 ago., –

429, mai. 429, – sociol. antropol. | rio de janeiro, v.09.02: 387 | rio de janeiro, antropol. sociol. http://dx.doi.org/10.1590/2238-38752019v933 artigo | maria laura viveiros de castro cavalcanti

1 Research Institute of Anthropology, East China Normal University, 773 Shanghái, China Université Paris-Dauphine, PSL University, CNRS, IRISSO, París, Francia [email protected] https://orcid.org/0000-0001-7751-2854 Horacio Ortiz I

Antropología política de las finanzas y antropología del dinero

Este texto propone abordar algunos de los puntos más importantes de la re- flexión que Keith Hart hace sobre el dinero desde los años 1980, y mostrar su relevancia para una antropología política de la industria financiera.1 Hart se interesó en una multitud de prácticas e instituciones monetarias, pero nunca llevó a cabo una investigación basada en el trabajo de campo en bancos, em- presas de seguros, casas de corretaje u otro tipo de organizaciones que com- ponen, de manera más o menos difusa, una industria financiera global. Sin

dic., 2019 dic., embargo, por lo menos dos direcciones tienen relevancia directa en su reflexión –

para este tipo de estudio. Por un lado, el análisis de la manera en que el dine- ro, en tanto forma de relación social, va desde lo más íntimo de la práctica 795, sep. 795, – cotidiana hasta las relaciones globales de interdependencia; por otro lado, la insistencia en la importancia de comprender procesos globales políticos de desigualdad y violencia monetaria a partir de la multiplicidad de las prácticas concretas, sin caer en abstracciones reductoras.2 Solo se puede entender el aspecto político de las prácticas de la indus- tria financiera si se problematizan los lazos monetarios que se establecen a través de la emisión e intercambio de activos financieros en tanto relaciones de poder que producen, mantienen y transforman jerarquías sociales y des- igualdades. Este aspecto es muchas veces dejado de lado en la antropología de las finanzas, lo que reduce su capacidad crítica. En lo que sigue, abordaré algunos puntos fundamentales de la antropología del dinero de Keith Hart, sociol. antropol. | rio de janeiro, v.09.03: 773 | rio de janeiro, antropol. sociol. a casa das minas de são luís do maranhão e a saga de nã agontimé

774

para luego resaltar la importancia de estos aspectos en el estudio de las prác- ticas en la industria financiera.

El dinero en la obra de Keith Hart: individuo y sociedad, lo cotidiano y lo global Desde su texto sobre “las dos caras del dinero” Hart (1986) no ha dejado de enfatizar que se debe tener una visión del dinero que conjugue el análisis del rol que tiene en las prácticas cotidianas y su aspecto holístico: el hecho de que sólo hay dinero cuando hay un lazo social en un grupo de personas suficien- temente grande. Hart notaba así que las dos grandes teorizaciones que se oponen en la política monetaria contemporánea sólo insisten en, y buscan legitimar, una sola de las caras. Por un lado, la economía neoclásica y mone- tarista insiste en que el dinero surge como solución técnica a las limitaciones del trueque y que es, por ende, esencialmente un instrumento de relación entre individuos cuyo único lazo es un intercambio comercial que puede con- cluirse definitivamente después de cada transacción.3 El número que figura en las monedas metálicas suele representar este aspecto del dinero: un instru- mento de medida dentro de relaciones comerciales individuales. Por otro lado, la teoría keynesiana insiste en el rol fundamental de las autoridades políticas para la existencia del dinero y su distribución adecuada en la sociedad (Keynes, 1997). Esta visión se inspira en teorías holistas que conciben la nación como unidad social fundamental. Las mismas suelen considerar que el dinero surge primordialmente de una regla compartida por todos los participantes del in- tercambio – la aceptación de un estándar común – que sólo puede ser produ- cido y estabilizado por una autoridad supraindividual.4 En la moneda metálica, este aspecto suele estar presente con un estampado de algún símbolo de la comunidad política (un rey, un animal, un paisaje, una flor etc.). ago., 2019 ago.,

– El dinero como lazo político entre lo íntimo y lo global

La originalidad de la propuesta de Hart en este debate se puede poner en re- lieve a través de un diálogo con Marcel Mauss y Georg Simmel. Analizando la 429, mai. 429, – relación dialéctica a través de la cual individuo y sociedad se constituyen mu- tuamente, Hart (1986, 2000) insiste en que, en lugar de considerar una sola de las facetas, estas deben comprenderse como las dos caras necesarias de la teoría social.5 Esta relación dialéctica en la existencia del dinero fue teorizada de manera sistemática por Georg Simmel (1978) en su Filosofía del dinero. En este libro, Simmel considera que el dinero permite la realización de la libertad personal a través del poder que da a quién lo tiene. Como mediador abstracto entre el deseo y cualquier objeto, es un instrumento de libertad individual extremadamente general. Al mismo tiempo, el dinero solo es aceptado en una transacción, porque quien lo recibe espera poder entregarlo a otra persona cuando lo de en forma de pago. Es decir que la existencia del dinero está ba- sociol. antropol. | rio de janeiro, v.09.02: 387 | rio de janeiro, antropol. sociol. artigo | maria laura viveiros de castro cavalcanti

775

sada en esta norma compartida por personas que no se conocen ni se cono- cerán jamás. Las normas sociales de utilización del dinero son, así, la condición ne- cesaria para la realización de la libertad individual. En una óptica hegeliana, Simmel comprende esta relación entre libertad y dependencia, individuo y sociedad, como fundamento de un proceso dialéctico histórico, en el que la expansión del dinero como conector abstracto entre individuos a nivel mundial hace que cada persona sea cada vez más libre y a la vez más interdependien- te. El horizonte político y moral de esta dialéctica es, según Simmel, una so- ciedad mundial de individuos libres. Las desigualdades, injusticias y violencias en la distribución actual del dinero deben entonces comprenderse como parte de esa dialéctica histórica. Este es un tema fundamental en la manera en que Hart (2015) desarro- lla la idea de que el dinero es la manera de constituir una sociedad mundial democrática y la importancia que tienen las relaciones monetarias para indexar al individuo dentro de una red de relaciones, que son tanto relaciones de me- moria sobre quién uno fue, como las promesas sobre quién uno puede ser (Hart, 2000, 2014a). Sin embargo, en ciertos aspectos Hart se acerca mucho más a la obra de Marcel Mauss, en particular a su interpretación del rol del intercambio en la constitución del individuo y la sociedad dentro de un proyecto socialista redistributivo (Hart, 2014a, 2014b). En su Ensayo sobre el don, Mauss (1995a) propone una definición extrema- damente amplia del dinero, considerado como cualquier elemento que permita articular la relación moral – que Mauss considera universal – en la cual todos estamos obligados a dar, recibir y devolver en relaciones jerárquicas de recipro- cidad. Es a través de estas relaciones, en las que el dinero juega un papel fun- damental, que se constituyen las identidades sociales, según imaginarios reli- giosos, políticos, económicos y de otras índoles, que se combinan y se confun- den. La persona, las jerarquías dentro de los grupos y entre grupos se constitu- yen y definen a través de los derechos y deberes que tienen en estos intercam- bios (Mauss, 1995b). Contrariamente a Simmel, que enfoca el análisis en el rol del dinero como abstracción, Mauss se interesa en las especificidades de cada forma mo- netaria y sus potenciales transformaciones. Pero Mauss comparte con Simmel la visión universalista, al considerar que el dinero permite la extensión de los lazos sociales más allá de los límites de cualquier grupo, con la sociedad glo- bal como horizonte. La reflexión de Hart sobre el dinero, en particular el pro- grama de la Economía Humana (Human Economy), desarrolla estas ideas, ana- lizando las prácticas concretas del dinero – con sus reglas, desigualdades, in- terdependencias y constitución dinámica de jerarquías sociales – de posibles e imposibles, con la sociedad mundial como punto de partida y horizonte del análisis (Hart, 2017a). a casa das minas de são luís do maranhão e a saga de nã agontimé

776

Hart considera al dinero como una relación política global entre todos los individuos. La distribución desigual del dinero y la multiplicidad de reglas que organizan su utilización en diferentes marcos más o menos instituciona- lizados articulan jerarquías sociales en un espacio global. El acceso desigual al dinero distribuye de manera desigual la capacidad de actuar de cada perso- na y las reglas de utilización del dinero suelen tener elementos morales, polí- ticos y religiosos que justifican la manera en que es utilizado y distribuido. Así, Hart extiende la visión holista de Simmel y Mauss sobre las relaciones de poder que establecen las diferencias dentro de los grupos y entre grupos a la sociedad humana como unidad política, como grupo social de referencia para el análisis crítico. Pero Hart se acerca más a la obra de Mauss que a la de Sim- mel por la importancia que le da al estudio de las prácticas concretas del di- nero, situando la reflexión sobre la sociedad mundial en un análisis de la multiplicidad de identidades y jerarquías sociales que contribuye a constituir.

El estudio concreto de las prácticas monetarias: crítica y multiplicidad Al mismo tiempo en que insiste en el aspecto políticamente constructivo del dinero, Keith Hart desarrolla un discurso crítico de la distribución actual de los recursos monetarios en un diálogo constante con el marxismo y el pensa- miento anti-colonial y post-colonial, basado en su propia experiencia de in- vestigación y en su cercanía con personas como CLR James (Hart, 2000). La reflexión de Hart sobre el potencial del dinero para constituir una sociedad democrática global parte de un análisis histórico de los últimos tres siglos, marcados por la expansión colonial, y por la relación a la vez simbiótica y de competencia entre Estados y grandes empresas privadas, a la cual Hart (2000, 2017b) suele referirse como “capitalismo nacional”. La tensión entre Estados y empresas que se desligan del control estatal limitado a un territorio, pero que a la vez se apoyan en la soberanía estatal para reforzar su capacidad de com- ago., 2019 ago.,

– petencia es, según Hart, central para entender la desigualdad y la reproducción

de formas de dominación, explotación, violencia y miseria. En este sentido, contrariamente a los análisis del dinero que distinguen 429, mai. 429,

– entre una lógica capitalista global y una multiplicidad de lógicas locales que le resistirían (Akin & Robbins, 1999; Parry & Bloch, 1989), Hart insiste en ver la multiplicidad en todos los niveles, así como las jerarquías y violencias de ca- da caso, estando atento a los híbridos y las formas nuevas. La explotación descrita por Marx (2016; Marx & Engels, 2018), crítica tanto con los Estados como con las empresas, no es considerada como una lógica universal, sino como un marco analítico de una gran riqueza para entender una gran cantidad de prácticas monetarias. Cualquier postura política cuyo horizonte quede en- marcado en las fronteras geográficas o imaginarias de lo nacional, lo étnico, lo religioso, lo racial o lo regional tenderá así a reproducir la violencia que ya se encuentra en el capitalismo nacional, que poco tiene que ver con la visión sociol. antropol. | rio de janeiro, v.09.02: 387 | rio de janeiro, antropol. sociol. artigo | maria laura viveiros de castro cavalcanti

777

idealizada del mercado en el cual se encuentran individuos libres en relación de igualdad. Pensando la caída de los imperios coloniales en el siglo XX y las transformaciones tecnológicas, sobre todo internet y la integración financiera a nivel global, Hart ve una posibilidad de salir del marco del capitalismo na- cional a través de la creación de nuevas relaciones monetarias (Hart, 2000; ver también Maurer, 2015). Este aspecto de su pensamiento del dinero lo ancla en el empirismo como metodología de investigación y de renovación política. Keith Hart comenzó su carrera como antropólogo efectuando un largo trabajo de campo en los barrios pobres de Accra, en Ghana. Esto lo llevó a proble- matizar cómo las múltiples prácticas económicas que pudo observar eran invi- sibles para el pensamiento económico de la época. Su propuesta era anclar el pensamiento económico en las prácticas concretas observables, y no en mode- los abstractos que corresponden a visiones idealizadas de la humanidad com- partidas por círculos académicos y de definición de políticas públicas que tien- den a excluir o reprimir aquello que no se corresponde con su visión. En este sentido, la obra de Hart conecta directamente con los análisis del dinero pro- puestos por Viviana Zelizer (1997, 2010) y sobre todo por Jane Guyer (2004, 2016), quienes insisten en comprender la multiplicidad de las prácticas monetarias como base de la constitución de marcos institucionales híbridos y cambiantes (ver también por ejemplo Peebles, 2010; Sahlins, 2013; Wilkis, 2018a, 2018b). Esta importancia del empirismo para la observación de las prácticas monetarias toma en el pensamiento de Hart sobre el dinero un rol fundador, tanto para el análisis como para la imaginación política. Para Hart, el potencial revolucionario del dinero para la constitución de una sociedad global demo- crática que se deshaga del capitalismo nacional no pasa por una dialéctica histórica más o menos imparable, como lo prevén diferentemente Marx y Sim- mel, sino por un análisis de los cambios reales que se están produciendo, a partir de los cuales una visión activa y creativa de la transformación social puede llevar a cabo procesos revolucionarios, que Hart prefiere inspirados en Gandhi antes que en Lenin. El peso político del empirismo fundamenta la noción de economía hu- mana y los proyectos de investigación financiados dentro de ese marco bajo la dirección de Hart. Se trata de explorar, a través del mundo entero y con metodologías diversas que se mantengan cerca de las prácticas concretas, los múltiples usos e imaginarios del dinero, las tensiones, los conflictos y las trans- formaciones con final abierto (Hart et al., 2010; Hart & Sharp 2014, 2015, Hart, 2017a). Este entusiasmo por lo emergente en las prácticas concretas explica la atención que le prestó Hart al desarrollo de las nuevas tecnologías de infor- mación, y en particular a internet, al final de la década de 1990. La posibilidad que le da internet a personas del mundo entero de entrar en relaciones de intercambio personales le pareció, desde aquella época, una puerta abierta a nuevas formas de producción y distribución del dinero. a casa das minas de são luís do maranhão e a saga de nã agontimé

778

Keith Hart aporta con su reflexión a una renovación profunda de la antropología económica (Hahn & Hart, 2011). Partiendo del dinero como conec- tor con potenciales múltiples dentro de un horizonte político universalista basado en la observación de la multiplicidad de las prácticas, y de un análisis crítico del capitalismo considerado como serie de relaciones concretas y no como estructura, su obra contribuye a liberar a la antropología de la oposición entre formalismo y substantivismo, producción y circulación, centro y perife- ria, Norte y Sud o Este y Oeste. En sintonía con la antropología política que se interesa en las relaciones de poder más allá de instituciones como el Estado (Escalona Victoria, 2016; Foucault, 1976; Miller & Rose, 2010), Hart propone entender el dinero como relación de poder en un espacio social global. Las jerarquías y desigualdades establecidas a través de las prácticas monetarias son el resultado de interdependencias globales. Dentro de esas interdependen- cias, el capitalismo nacional tiene un rol importante, pero no es el único de- terminante, ya que son el producto de una multiplicidad de prácticas que están en permanente mutación. El autor sugiere que las desigualdades globa- les establecidas a través del dinero se pueden sobrepasar a través de la crea- tividad de prácticas monetarias concretas, cuya riqueza va más allá del aná- lisis lógico de cualquier supuesta dialéctica histórica, y cuyo horizonte prác- tico solo puede ser la humanidad, definida como realidad social. Esta reflexión abre puertas en muchas direcciones. A continuación, me concentraré en los estudios de las prácticas en la industria financiera.

Una antropología política de la industria financiera: prácticas cotidianas de distribución jerárquica de recursos monetarios en un espacio social global En los últimos 20 años la antropología de la industria financiera ha crecido considerablemente. Varias monografías han propuesto descripciones y análisis ago., 2019 ago.,

– muy desarrollados sobre los centros financieros globales como Nueva York

(Abolafia, 1996; Ho, 2009), Chicago y Londres (Zaloom, 2006), París (Godechot, 2016; Ortiz, 2014a), Zürich (Leins, 2018), Tokyo (Miyasaki, 2013), São Paulo (Mü- 429, mai. 429,

– ller, 2006) o Shanghái (Hertz, 1998), o prácticas como la finanza islámica (Mau- rer, 2005). Al mismo tiempo, varias publicaciones colectivas han estudiado las prácticas de la reglamentación financiera (Jessop et al., 2015; Huault & Richard 2012; Young et al., 2011), las lógicas organizacionales de la industria financie- ra (Boussard, 2018), o una combinación de varios aspectos (Chambost, Lenglet & Tadjeddine, 2018; Jessop et al., 2015; Knorr-Cetina & Preda, 2012). Todos estos estudios permiten establecer comparaciones entre empresas, localidades, tipos de relaciones financieras y procesos históricos. Sin embargo, en muchos casos, estos estudios se limitan a espacios organizacionales restringidos, como lo que ocurre dentro de las empresas o entre empresas, y rara vez analizan de mane- ra concreta las relaciones de poder globales que se establecen a través de las prácticas de la industria financiera. sociol. antropol. | rio de janeiro, v.09.02: 387 | rio de janeiro, antropol. sociol. artigo | maria laura viveiros de castro cavalcanti

779

En los párrafos que siguen, intentaré mostrar cómo las reflexiones de Keith Hart sobre el carácter político del dinero contribuyen a desarrollar una antropología política de las finanzas, analizando a la industria financiera glo- bal como un espacio institucional político. Mostraré primero la importancia de entender a esta industria como una parte fundamental de una producción y distribución jerarquizada de los recursos monetarios en un espacio global, haciendo eco a la insistencia de Hart de entender las jerarquías monetarias globales como relaciones de poder dentro de una misma sociedad global. En segundo lugar, pondré de relieve la importancia de comprender las prácticas dentro de la industria financiera, partiendo a la vez de su carácter estandari- zado y procesual, y de su carácter lábil y contradictorio, conectando con la insistencia de Hart en situar los procesos globales de interdependencia mone- taria en las prácticas concretas de las personas.

La industria financiera dentro de la distribución global de recursos monetarios Muchos análisis antropológicos sobre lo que ocurre dentro de las empresas de la industria financiera se ven ante la dificultad de establecer un lazo entre lo que se observa y una circulación de dinero cuya geografía es global y por ello imposible de contrastar a través del trabajo de campo (Hart & Ortiz, 2014). Ello implica que los antropólogos que llevan a cabo estas observaciones necesitan situarlas dentro de un diálogo interdisciplinario con la economía heterodoxa en particular (Montagne & Ortiz, 2013). Esto debería permitir establecer, aunque sea de manera general, qué relaciones monetarias globales se están observan- do y a qué tipo de jerarquías sociales contribuyen, sin caer en las simplifica- ciones teóricas limitadas a una sola lógica de conjunto. En muchos casos, los antropólogos se contentan con evocar el capitalismo, el neoliberalismo, la fi- nanciarización o alguna versión poco desarrollada del marxismo para consi- derar que el mundo financiero no pertenece a la esfera de la producción. Esta consideración se lleva a cabo sin un análisis concreto de la manera en que las prácticas observadas en una oficina de una empresa financiera se conectan con prácticas fuera de ella. La propuesta de Keith Hart de entender las rela- ciones monetarias como relaciones de poder globales establece una orientación para investigar qué roles juega la industria financiera dentro de la multiplici- dad de prácticas que constituyen este espacio político global. Los términos como neoliberalismo o financiarización ya han sido criti- cados por su carácter demasiado abstracto con respecto a prácticas concretas, y también porque pueden ser usados para describir procesos demasiado dife- rentes, desconectados o incluso contradictorios (Chong, 2018; Van der Zwan, 2014; Venugopal, 2015). Por un lado, es un hecho que la reglamentación finan- ciera estatal de los últimos 30 años en Estados Unidos (Krippner, 2011), Europa (Abdelal, 2007), Japón (Amyx, 2004), India (Reddy, 2009), China (Hertz, 1998), a casa das minas de são luís do maranhão e a saga de nã agontimé

780

Brasil (Müller, 2006) y muchas otras jurisdicciones (Aglietta & Rebérioux, 2004; Eichengreen, 1996; Stiglitz, 2006) ha seguido una serie de conceptos comunes, según los cuales la distribución de recursos monetarios se beneficiaría de la creación de “mercados” en los que se encontrarían los “inversores”, pero con una organización que da a bancos, empresas de seguros, fondos de inversión, casas de corretaje y agencias de notación un rol central en su funcionamiento (Clark, 2000; Montagne, 2006). Los conceptos de “inversor”, “mercado” y “valor”, entre otros, tienen así un carácter técnico en los procedimientos y la regla- mentación, pero también un componente político y moral, ya que sirven para justificar las prácticas de los empleados de la industria financiera y los efectos distributivos de esta industria, en nombre de la adjudicación óptima de los recursos sociales (Ortiz, 2013a, 2014b). Esta relativa homogeneidad de los principios de la reglamentación fi- nanciera, a la que hay que adjuntar la gran homogeneidad de las metodologías financieras dentro de la industria financiera global, debe ser problematizada a través de las grandes desigualdades en la producción, distribución y acumu- lación de dinero a nivel global, y de los roles muy diferentes que puede tener ese dinero en dispositivos institucionales y situaciones distintas. Por un lado, hay una clara concentración del dinero administrado por la industria financiera en ciertas zonas geográficas y ciertas actividades. El PBI mundial en 2017 fue 80,6 billones de USD (World Bank Group, 2018), siendo el presupuesto total de los Estados para ese año de 23,7 billones (Central Intelli- gence Agency, 2018). El PBI del territorio de Estados Unidos era de 19,4 billones, el de la zona euro de 12,6 billones y el del territorio de China de 12,2 billones (World Bank Group, 2018). El presupuesto estatal anual en Estados Unidos fue de 6,3 billones, el en China de 3,1 billones y en la zona euro de 6,1 billones (Central Intelligence Agency, 2018). A final de ese mismo año, las 400 mayores empresas de gestión de fondos de inversión controlaban alrededor de 63,3 billones (Invest- ago., 2019 ago.,

– ment & Pensions Europe, 2018). El precio total de las acciones cotizadas en bolsa

era de 85,7 billones (World Federation of Exchanges, 2018), el de las obligaciones 112,5 billones y el de productos derivados de 11 billones (Bank of International 429, mai. 429,

– Settlements, 2018). Los bonos emitidos por el Estado estadounidense tenían un precio total de 18 billones, los emitidos por el Estado japonés 10 billones, por el Estado chino 4,6 billones y por los Estados de la zona euro 8,5 billones (Bank of International Settlements, 2018). A pesar de los problemas epistemológicos y políticos que plantea utilizar estos números agregados (Bear, 2014; Guyer, 2010; Hart, 2010), los mismos permiten poner en relieve grandes tendencias y des- igualdades globales articuladas a través de la industria financiera. Por otro lado, la bolsa de acciones de empresas, la emisión de bonos estatales, y la utilización de productos derivados basados sobre crédito banca- rio, productos primarios o divisas, pueden tener roles sociales extremadamen- te diversos, según los diferentes dispositivos institucionales. En Estados Unidos, sociol. antropol. | rio de janeiro, v.09.02: 387 | rio de janeiro, antropol. sociol. artigo | maria laura viveiros de castro cavalcanti

781

la emisión de acciones cotizadas en bolsa y de obligaciones, juega un rol mayor en el financiamiento de las empresas así como en las relaciones intergenera- cionales, ya que el sistema de pensiones está basado en la compra y venta de activos financieros. En China, los bancos, que pertenecen en su mayoría al Es- tado, juegan un rol mayor que las acciones y obligaciones en el financiamiento de las empresas. Tanto en China como en la zona euro, el sistema de pensiones no se basa fundamentalmente en el intercambio de activos financieros. Para el Estado de Estados Unidos, la emisión de obligaciones permite un financiamiento a partir de los ahorros y fondos existentes en el mundo entero, sin negociación política directa. Los Estados chino y japonés emiten obligaciones compradas esencialmente por empresas dentro de los territorios nacionales, dentro de negociaciones políticas enmarcadas por esos territorios. Otros Estados, como lo acaba de recordar el caso del Estado argentino, pueden tener que negociar los detalles de su política pública con un pequeño número de organizaciones acreedoras controladas por otros Estados o empresas. Estos pocos ejemplos muestran que lo que parece ser una misma relación monetaria, por ejemplo la emisión de acciones por parte de una empresa, puede, en rea- lidad, formar parte de relaciones muy variadas dentro de jerarquías sociales y relaciones de poder muy distintas. Es importante, pues, tener una visión de conjunto de estas relaciones, adicionándolas; comprendiendo sus interacciones y la multiplicidad que las caracteriza. Los discursos sobre el neoliberalismo o el capitalismo global, o sobre la crisis financiera global de 2007-2008, no permiten ver esta diversidad; simpli- fican la relación de fuerzas que la organiza y, de esa manera, desaprovechan parte del potencial crítico concreto al que aspiran. Sin perder de vista grandes regularidades en las relaciones de poder financieras, es importante recordar, como lo hace Keith Hart en el caso del dinero, cuáles son las relaciones con- cretas que se establecen a través de cada instrumento financiero, de cada empresa de la industria financiera, dentro de los marcos institucionales de los Estados y dentro de las geografías globales de distribución, discriminación y violencia en el acceso al dinero. La “crisis global” de 2007-2008 no fue exactamente “global”. El Estado chino duplicó el crédito bancario en cuatro años desde 2008 para continuar con fuertes crecimientos anuales del PIB y con políticas redistributivas, mien- tras para los más de 800 millones de personas que viven en estado de malnu- trición, esos años no cambiaron gran cosa (FAO et al., 2018). Cuando, por ejem- plo, un empleado de una empresa de fondos de inversión compra acciones cotizadas en bolsa en Estados Unidos con dinero de una empresa de seguros situada en Europa, el financiamiento de la empresa emisora depende de los ahorros de los compradores de pólizas en Europa, y la cobertura de estos mis- mos depende de la inversión en estas acciones por parte de otros fondos de inversión y del pago de dividendos de esta empresa. a casa das minas de são luís do maranhão e a saga de nã agontimé

782

La jerarquización en lo que concierne a qué empresa recibe el financia- miento y a quién tiene derecho a comprar una póliza de seguros está ligada a esta interdependencia establecida por la industria financiera. Pero no se trata simplemente de un capitalismo o una financiarización que desplegaría su ló- gica unitaria de manera homogénea sobre el espacio social global, sino de una geografía de circulación y jerarquización particular, con reglas, territorios y poblaciones que difieren de otros casos. Situar la práctica concreta dentro del espacio global de las relaciones monetarias, con su multiplicidad, permite po- ner de relieve las relaciones de poder que se establecen en cada relación fi- nanciera. El tipo de pensamiento del dinero propuesto por Keith Hart permite así plantear preguntas necesarias para situar las observaciones que se pueden hacer dentro de la industria financiera, en una serie de relaciones sociales globales que determinan lo que se observa en el trabajo de campo.

Prácticas cotidianas e imaginarios financieros Las prácticas de evaluación e inversión para acciones, bonos, créditos bancarios, contratos de seguro y productos financieros derivados, entre otros, se articulan hoy en día a través de una serie de metodologías, fórmulas de cálculo, razo- namientos y discursos estandarizados. Esta estandarización se observa en los contenidos de la enseñanza de la finanza en las escuelas de negocios y pro- gramas universitarios (Fourcade & Khurana, 2013), y de la formación profesio- nal para la obtención de títulos como Chartered Financial Analyst o el Certified International Investment Analyst. Estos contenidos se produjeron en el último siglo, en una circulación entre medios académicos, profesionales y de la regla- mentación (De Goede, 2005; MacKenzie, 2006; Preda, 2009; Whitley, 1986). Todas las fórmulas y razonamientos se refieren a los conceptos fundamentales de la economía neoclásica, según la cual la evaluación y la inversión deben hacerse ago., 2019 ago.,

– desde el punto de vista de un individuo independiente que busca maximizar

su utilidad personal, y se encuentra con otros individuos en mercados libres y eficientes desde el punto de vista informacional. En este marco, eso signifi- 429, mai. 429,

– ca que los precios reflejan toda la información disponible sobre el objeto del intercambio y pueden servir como señales para una adjudicación óptima de los recursos sociales. Desde finales del siglo XIX, este marco se conjugó con la utilización de las estadísticas en una óptica según la cual las regularidades matemáticas correspondían a leyes naturales. De esta manera, el cálculo de promedios y correlaciones entre precios y otros datos financieros y económicos empezó a cobrar el sentido de una descripción de movimientos naturales del mercado y la sociedad. Este desarrollo conceptual es fundamental para la existencia de índices bursátiles, por ejemplo (De Goede, 2005; Hart, 2010; MacKenzie, 2006; Maurer, 2002; Preda, 2009). sociol. antropol. | rio de janeiro, v.09.02: 387 | rio de janeiro, antropol. sociol. artigo | maria laura viveiros de castro cavalcanti

783

Se pueden notar dos tensiones fundamentales en este corpus teórico (Muniesa et al., 2017; Ortiz, 2014a). Por un lado, la teoría de la eficiencia de los mercados supone que si éstos son eficientes y el precio de un activo refleja toda la información disponible sobre él, el precio es una fuente de información fidedigna y no vale la pena hacer una nueva evaluación del activo. Sin embar- go, el precio solo es parte de esa información si hay gente que cree que el mercado no es eficiente y que es necesario hacer la evaluación. Esta tensión se vuelve una contradicción en una gran cantidad de fórmulas y razonamien- tos que retoman precios de mercado para integrarlos en la evaluación de los activos, considerando que el mercado es y no es eficiente al mismo tiempo. Por otro lado, la teoría de la eficiencia considera que no se puede prever lo que será el precio futuro, porque depende de información que aún no está disponible. Pero la utilización de estadísticas para establecer las estrategias de inversión más comunes, según la Teoría moderna del portafolio,6 implica una determinación de promedios de precios en el tiempo, el cálculo de des- viaciones estándar (la llamada volatilidad) y de correlaciones, lo que presupo- ne que el futuro no será muy distinto del pasado, es decir, que sí se puede prever. Esta contradicción entre el uso de un aparato estadístico y el presu- puesto de la imposibilidad de prever el futuro con las probabilidades, se en- cuentra, a su vez, en las fórmulas de cálculo y los razonamientos estandari- zados. Dichas tensiones y contradicciones conceptuales, así como el conteni- do moral y político de conceptos como “mercado”, “inversor”, “eficiencia”, “riesgo” y “valor”, entre otros, hace que, a partir de una descripción abstracta de los razonamientos financieros, no se pueda extrapolar a una conclusión sobre lo que sería la financiarización, el capitalismo o el neoliberalismo. Es necesario estudiar las prácticas concretas, para entender cómo estos razona- mientos son utilizados efectivamente en la constitución de jerarquías y des- igualdades sociales concretas. Las observaciones en las oficinas de las empresas de la industria finan- ciera muestran que los empleados utilizan estas metodologías de maneras diversas, que dependen del tipo de profesión y de empresa (Boussard, 2018). Los analistas financieros, traders, gestores de fondos, consultores para empre- sas de gestión, vendedores de productos financieros, controladores de riesgo y otras profesiones utilizan algunos razonamientos más que otros, y pueden llegar a oponerse entre sí al hacer énfasis en diferentes definiciones del mer- cado eficiente o del valor financiero, según las tensiones descritas más arriba. Las relaciones de fuerzas entre empleados y profesiones son también, en par- te, relaciones de fuerza entre diferentes aspectos de las metodologías. Esto puede tener un impacto importante sobre la manera en que se distribuye el dinero invertido, por ejemplo dándole más importancia a cierto tipo de activos (acciones contra bonos) o a cierto sector de actividad o geográfico. a casa das minas de são luís do maranhão e a saga de nã agontimé

784

A esta complejidad del uso de las metodologías financieras dentro de las empresas, se agrega el hecho de que estas empresas no trabajan solas, sino que lo hacen dentro de vastas redes de relaciones comerciales. Hoy en día, cuando una persona deja sus ahorros en una institución financiera para que los invierta, la decisión de adjudicar ese dinero a tal o cual actividad o sector se produce de manera diseminada: se utilizan varias fuentes de infor- mación, y hay varias etapas de delegación. Un ejemplo de esto es cuando una empresa de seguros le da el dinero a una empresa de gestión de fondos que utiliza los consejos de una consultoría externa y distribuye los fondos entre varias otras empresas especializadas en diferentes activos y estrategias, lo- grando que ninguna empresa o empleado tenga un gran poder de decisión sobre cómo se distribuye el dinero (Arjaliès et al., 2017; Ortiz, 2103b). Esto implica que el análisis de las prácticas dentro de estas empresas debe tomar en cuenta su carácter burocrático y estandarizado – que le da legitimidad hacia el exterior – a la vez que su carácter lábil, contradictorio y difuso me- diante el cual los empleados desarrollan sus estrategias de carrera o se posi- cionan los unos con respecto a los otros, en relaciones que son competitivas, jerárquicas, y colaborativas, al mismo tiempo (Abolafia, 1996; Godechot, 2016; Leins, 2018; Ho, 2009; Ortiz, 2014a; Zaloom, 2006). El análisis de las prácticas del personal en la industria financiera mues- tra las tensiones y contradicciones entre las metodologías y las relaciones complejas entre empleados y entre empresas. Estos aspectos no se pueden separar, tienen que entenderse juntos. Los aspectos morales o políticos de los conceptos de “eficiencia”, “inversor”, o de las previsiones basadas en el uso de probabilidades, pueden formar parte de las luchas de poder entre empleados, pero también pueden ser considerados como elementos puramente técnicos dentro de la aplicación estandarizada de reglas institucionalizadas en la re- glamentación y los contratos laborales y comerciales. La manera en que el ago., 2019 ago.,

– dinero es distribuido por estos empleados en sus prácticas cotidianas depen-

de de cómo se aplican estas metodologías, con sus tensiones y contradicciones, en cada caso concreto. De esta manera, se puede entender que aunque en 429, mai. 429,

– general la inversión se haga en nombre de la maximización de la utilidad de los inversores, suponiendo la eficiencia de los mercados, la distribución con- creta del dinero depende de las lógicas organizacionales y profesionales a través de las cuales se aplican y transforman las metodologías. La antropología política de la finanza propuesta en estas páginas parte de la idea de que el análisis debe enfocarse en el conjunto de relaciones mo- netarias globales, entendidas como relaciones de poder a través de las cuales se establecen y legitiman jerarquías sociales. La antropología del dinero de Keith Hart es muy útil a este respecto, ya que plantea el análisis en el marco de una sociedad humana global. Tomar este enfoque como punto de partida permite evitar los límites de análisis que se centran únicamente en lógicas sociol. antropol. | rio de janeiro, v.09.02: 387 | rio de janeiro, antropol. sociol. artigo | maria laura viveiros de castro cavalcanti

785

organizacionales dentro de las empresas, sin analizar su rol en relaciones de poder fuera de sus muros, y de análisis que se limitan a espacios nacionales, olvidando la historia de relaciones de poder globales en las cuales se inscribe, y sigue transformándose, la industria financiera actual. Al mismo tiempo, la antropología política explorada en este texto dia- loga directamente con la antropología y la sociología que indagan sobre la diversidad de las prácticas y de los sentidos del dinero. Esto permite no sim- plificar la pluralidad de prácticas dentro de la industria financiera, incluso cuando se caracteriza por la estandarización burocrática de sus procedimien- tos. La importancia de la contribución de Keith Hart es que esta atención a la multiplicidad de la práctica cotidiana del dinero se hace a partir de un cues- tionamiento sobre las relaciones globales de poder; cuestionamiento que, no sólo no se pierde de vista cuando se analizan los detalles de lo cotidiano, sino que organiza la mirada analítica misma con la cual se abordan esos detalles. La insistencia de Keith Hart en prestar atención a la particularidad y la mul- tiplicidad de las prácticas problematizando relaciones de poder globales sin presuponer una lógica única que las abarque es un aporte fundamental para una antropología política de la industria financiera en un espacio global.

Conclusión La antropología del dinero de Keith Hart propone estudiar las relaciones jerár- quicas de producción, distribución y consumo, partiendo del lazo social que implica una interdependencia entre el individuo y la sociedad. La sociedad no está en este caso definida por un concepto de cultura, pueblo o nación, sino que, siguiendo a Simmel y Mauss, se trata del conjunto abierto y cambiante de personas que participan en el intercambio monetario. La crítica del “capi- talismo nacional”, inspirada en los movimientos anticoloniales y el marxismo, pone en relieve la simbiosis entre Estados y grandes empresas en la organiza- ción de desigualdades y violencias globales. Sin embargo, no se trata de una lógica universal que se impondría de manera unívoca en la vida de todos los seres humanos, sino de una serie de prácticas, que están a su vez dentro de una multiplicidad de prácticas monetarias marcadas por el cambio y la crea- tividad. Keith Hart propone así salir de las divisiones entre producción y circu- lación, y entre centro y periferia, sin perder un horizonte político universalis- ta. De este modo, el empirismo es tanto una base analítica como política para pensar la realidad monetaria y sus posibles transformaciones, en pos de una mayor integración democrática dentro de una sociedad global. Esta antropo- logía del dinero ofrece importantes pistas para una antropología política de la industria financiera. Por un lado, insiste en considerar cada trabajo de campo como la observación de relaciones monetarias con geografías y jerarquías es- pecíficas dentro de relaciones globales que implican múltiples instituciones, a casa das minas de são luís do maranhão e a saga de nã agontimé

786

reglas y relaciones de poder. Esto supone no simplificar la problematización política sobre la distribución de recursos monetarios con discursos generales sobre el capitalismo, el neoliberalismo o la financiarización. El análisis de las relaciones de interdependencia monetaria puede, por el contrario, dar mayor cuenta de las formas de dominación y violencia concreta ligadas a cada prác- tica financiera. Por otro lado, permanecer atentos a la multiplicidad de senti- do de las prácticas, a las contradicciones, tensiones y ambigüedades de lo cotidiano permite entender el rol de las reglas organizacionales y de las tra- yectorias personales de los empleados y de la manera en que se apropian y reproducen el sentido técnico, moral y político de las metodologías financieras y los discursos sobre inversores, mercados y valor que las articulan. La obra de Keith Hart se fue transformando con las nuevas tecnologías y los aportes de investigaciones situadas en diferentes lugares del mundo. Los cambios tecnológicos en las relaciones monetarias continúan, con el desarro- llo de las llamadas Fintech, el uso del Big data en el desarrollo de modelos y productos financieros y la expansión de métodos de pago electrónicos. La an- tropología política de la finanza se enriquece si se inspira de una antropología del dinero atenta a las interdependencias y jerarquías globales que se realizan en la multiplicidad de las prácticas monetarias.

Recibido 17/9/2019 | Aprobado 19/9/2019 ago., 2019 ago., –

429, mai. 429, –

Horacio Ortiz es investigador del Centre National de la Recherche Scientifique, Francia, y profesor asociado de la East China Normal University, China. Investiga la industria financiera global desde el punto de vista de la antropología política. Ha hecho trabajo de campo en New York, París y Shanghái, en empresas de corretaje, fondos de inversión, consultores en fusiones y adquisiciones y escuelas de negocios. Es autor del libro Valeur financière et vérité. Enquête d’anthropologie politique sur l’évaluation des entreprises cotées en bourse (2014). sociol. antropol. | rio de janeiro, v.09.02: 387 | rio de janeiro, antropol. sociol. artigo | maria laura viveiros de castro cavalcanti

787

NOTAS

1 En primer lugar, quiero agradecer los comentarios muy útiles e incisivos de los lectores anónimos de la revista Sociología & Antropología. Este texto también se benefició de los intercambios ocurridos en un panel de la conferen- cia anual de EASA sobre la obra de Keith Hart, organizado en 2018; particularmente las contribuciones de los orga- nizadores – Catherine Alexander y Huon Wardle – y de Sophie Chevalier, Gabriel Gbadamosi, Vito Laterza, Chris Hann, Ulf Hannerz y Theo Rakopoulos. Todos los errores son exclusivamente míos. 2 Mi conexión personal con Keith Hart comenzó en el año 2005 cuando yo aún era estudiante de doctorado. Nuestro intercambio tomó la forma de una gran amistad y de co- laboraciones académicas de distinto tipo, ya sea con pu- blicaciones en común (Hart & Ortiz, 2008 y sobre todo Hart & Ortiz, 2014) o a través de mi participación en los proyectos que inició con el programa Human Economy (Ortiz, 2015, 2017). 3 Este análisis ya es fundamental en la reflexión de Adam Smith (1991), por ejemplo. 4 Este enfoque es resaltado por algunos autores contem- poráneos como Aglietta y Orléan (2002) e Ingham (2004). Para un análisis histórico crítico ver Helleiner (2003). 5 La idea de combinar diferentes teorías del dinero, en vez de basarse solo en una, es fundamental en The social life of money donde Nigel Dodd (2014) insiste en el hecho de que cada teoría describe un aspecto fundamental de la vida social del dinero. Este enfoque múltiple se encuentra también en la riqueza de las contribuciones de Money talks, libro editado por Nina Bandelj, Fred Wherry y Viviana Zelizer (2017). 6 Por la cual su autor, Henry Markovitz, obtuvo el premio Nobel. a casa das minas de são luís do maranhão e a saga de nã agontimé

788

REFERENCIAS BIBLIOGRÁFICAS

Abdelal, Rawi. (2007). Capital rules. The construction of glo- bal finance. Cambridge, MA: Harvard University Press. Abolafia, Mitchel. (1996). Making markets. Opportunism and restraint on Wall Street. Cambridge, MA: Harvard University Press. Aglietta, Michel & Orléan, André. (2002). La monnaie entre violence et confiance. Paris: Éditions Odile Jacob. Aglietta, Michel & Rebérioux, Antoine. (2004). Dérives du capitalisme financier. Paris: Albin Michel. Akin, David & Robbins, Joel (orgs.). (1999). Money and mo- dernity: State and local currencies in Melanesia. Pittsburgh: University of Pittsburgh Press. Amyx, Jennifer. (2004). Japan’s financial crisis. Institutional rigidity and reluctant change. Princeton: Princeton Univer- sity Press. Arjaliès, Diane-Laure et al. (2017). Chains of finance. How investment management is shaped. Oxford: Oxford University Press. Bandelj, Nina; Wherry, Fred & Zelizer, Viviana (orgs.). (2017). Money talks. Explaining how money really works. Prin- ceton: Princeton University Press. Bank of International Settlements. (2018). Statistics. Dis- ponible en: . Acceso el 20 dic. 2018.

ago., 2019 ago., Bear, Laura. (2014). Capital and time: uncertainty and –

qualitative measures of inequality. British Journal of Socio- logy, 65/4, p. 639-649. 429, mai. 429,

– Boussard, Valérie (org.). (2018). Finance at work. New York: Routledge. Central Intelligence Agency. (2018). The World Factbook. Disponible en: . Acceso el 20 dic. 2018. Chambost, Isabelle; Lenglet, Marc & Tadjeddine, Yamina (orgs.). (2018). The making of finance. Perspectives from the social sciences. New York: Routledge. sociol. antropol. | rio de janeiro, v.09.02: 387 | rio de janeiro, antropol. sociol. artigo | maria laura viveiros de castro cavalcanti

789

Chong, Kimberly. (2018). Best practice: management consul- ting and the ethics of financialization in China. Durham/Lon- don: Duke University Press. Clark, Gordon. (2000). Pension fund capitalism. Oxford: Ox- ford University Press. De Goede, Markieke. (2005). Virtue, fortune and faith. A ge- nealogy of finance. Minneapolis/London: University of Min- nesota Press. Dodd, Nigel. (2014). The social life of money. Princeton: Prin- ceton University Press. Eichengreen, Barry. (1996). Globalizing capital. A history of the international monetary system. Princeton: Princeton Uni- versity Press. Escalona Victoria, José Luis. (2016). Anthropology of po- wer: beyond state-centric politics. Anthropological Theory, 16/2-3, p. 249-262. FAO et al. (2018). The state of food security and nutrition in the world 2018. Building climate resilience for food security and nutrition. Rome: FAO. Foucault, Michel. (1976). Histoire de la sexualité 1. La volon- té de savoir. Paris: Éditions Gallimard. Fourcade, Marion & Khurana, Rakesh. (2013). From social control to financial economics: the linked ecologies of economics and business in twentieth century America. Theory and Society, 42/2, p. 121-159. Godechot, Olivier. (2016). Wages, bonuses and appropriation of profit in the financial industry. The working rich. London: Routledge. Guyer, Jane. (2016). Legacies, logics, logistics. Essays in the anthropology of the platform economy. Chicago: The Univer- sity of Chicago Press. Guyer, Jane. (2010). The eruption of tradition. On ordina- lity and calculation. Anthropological Theory, 10/1-2, p. 121- 131. Guyer, Jane. (2004). Marginal gains. Monetary transactions in Atlantic Africa. Chicago: Chicago University Press. Hahn, Chris & Hart, Keith. (2011). Economic anthropology. History, ethnography, critique. Cambridge: Polity Press. a casa das minas de são luís do maranhão e a saga de nã agontimé

790

Hart, Keith. (2017a). Introduction: Money in a human eco- nomy. In: Money in a human economy. New York/Oxford: Berghahn Books, p. 3-14. Hart, Keith. (2017b). Capitalism in our moment in the his- tory of money. In: Money in a human economy: New York/ Oxford: Berghahn Books, p. 15-40. Hart, Keith. (2015). Introduction. In: Economy for and against democracy. New York/Oxford: Berghahn Books, p. 1-15. Hart, Keith. (2014a). Entrevista a Oliven, Ruben George & Damo, Arlei Sander. Horizontes Antropológicos, 22/45. Dis- ponible en . Acceso el 20 dic. 2018. Hart, Keith. (2014b). Marcel Mauss’s economic vision, 1920-1925: anthropology, politics, journalism. Journal of Classical Sociology, 14/1, p. 34-44. Hart, Keith. (2010). Models of statistical distribution. A window on social history. Anthropological Theory, 10/1-2, p. 67-74. Hart, Keith. (2000). The memory bank. Money in an unequal world. London: Profile Books. Hart, Keith. (1986). Heads or tails? The two sides of the coin. Man, 21, p. 637-656. Hart, Keith & Ortiz, Horacio. (2014). The anthropology of money and finance: between ethnography and world his- ago., 2019 ago.,

– tory. Annual Review of Anthropology, 43, p. 465-482.

Hart, Keith & Ortiz, Horacio. (2008). Anthropologists in the financial crisis. Anthropology Today, 24/6, p. 1-3. 429, mai. 429, – Hart, Keith & Sharp, John (orgs.). (2015). Economy for and against democracy. New York/Oxford: Berghann Books. Hart, Keith & Sharp, John (orgs.). (2014). People, money and power in the economic crisis: perspectives from the global South. New York/Oxford: Berghahn Books. Hart, Keith et al. (orgs.). (2010). The human economy: a citizen’s guide. Cambridge: Polity Press. Helleiner, Eric. (2003). The making of national money. Terri- torial currencies in historical perspective. Ithaca/London: Cornell University Press. sociol. antropol. | rio de janeiro, v.09.02: 387 | rio de janeiro, antropol. sociol. artigo | maria laura viveiros de castro cavalcanti

791

Hertz, Ellen. (1998). The trading crowd. An ethnography of the Shanghai stock market. Cambridge: Cambridge Univer- sity Press. Ho, Karen. (2009). Liquidated. An ethnography of Wall Street. Durham/London: Duke University Press. Huault, Isabelle & Richard, Christelle (orgs.). (2012). Fi- nance: the discreet regulator. How financial activities shape and transform the world. New York: Palgrave MacMillan. Ingham, Geoffrey. (2004). The nature of money. Cambridge: Polity Press. Investment & Pensions Europe. (2018). Top 400 Asset Ma- nagers 2018. Investment & Pensions Europe, p. 21-23. Dis- ponible en . Acceso el 20 dic. 2018. Jessop, Bob et al. (orgs.). (2015). Financial cultures and crisis dynamics. New York: Routledge. Keynes, John Maynard. (1997) [1936]. The general theory of employment, interest and money. New York: Prometheus Books. Knorr-Cetina, Katerina & Preda, Alex (orgs.). (2012). The Oxford handbook of the sociology of finance. Oxford: Oxford University Press. Krippner, Greta. (2011). Capitalizing on crisis. The political origins of the rise of finance. Cambridge: Harvard University Press. Leins, Stefan. (2018). Stories of capitalism. Inside the role of financial analysts. Chicago: University of Chicago Press. MacKenzie, Donald. (2006). An engine not a camera. How financial models shape markets. Cambridge, MA: The MIT Press. Marx, Karl. (2016) [1872]. El capital, tomo I. Ciudad de Mé- xico: Siglo XXI. Marx, Karl & Engels, Friedrich. (2018) [1848]. Manifiesto del partido comunista. Ciudad de México: Siglo XXI. Maurer, Bill. (2015). How would you like to pay? How techno- logy is changing the future of money. Durham/London: Duke University Press. a casa das minas de são luís do maranhão e a saga de nã agontimé

792

Maurer, Bill. (2005). Mutual life, limited. Islamic banking, al- ternative currencies, lateral reason. Princeton: Princeton University Press. Maurer, Bill. (2002). Repressed futures: financial derivative’s theological unconscious. Economy and Society, 31/1, p. 15-36. Mauss, Marcel. (1995a) [1923-1924]. Essai sur le don. Forme et raison de l’échange dans les sociétés archaïques. In: Sociologie et anthropologie. Paris: Presses Universitaires de France, p. 143-279. Mauss, Marcel. (1995b) [1938]. Une catégorie de l’esprit humain: la notion de personne, celle de “moi”. In: Socio- logie et anthropologie. Paris: Presses Universitaires de Fran- ce, p. 331-362. Miller, Peter & Rose, Nicholas. (2010). Political power be- yond the State: problematics of government. The British Journal of Sociology, 61/1, p. 271-303. Miyazaki, Hiro. (2013). Arbitraging Japan. Dreams of capita- lism at the end of finance. Berkeley: University of California Press. Montagne, Sabine. (2006). Les fonds de pension. Entre pro- tection sociale et spéculation financière. Paris: Éditions Odile Jacob. Montagne, Sabine & Ortiz, Horacio. (2013). Sociologie de l’agence financière: enjeux et perspectives. Sociétés Con- temporaines, 93, p. 7-33. Müller, Lucia. (2006). Mercado exemplar: um estudo antropo- ago., 2019 ago.,

– lógico sobre a Bolsa de Valores. Porto Alegre: Editora Zouk.

Muniesa, Fabian et al. (2017). Capitalization. A cultural gui- de. Paris: Presses des Mines. 429, mai. 429, – Ortiz, Horacio. (2017). Cross-border investment in China. In: Hart, Keith (org.). Money in a human economy. New York/ Oxford: Berghahn Books, p. 147-166. Ortiz, Horacio. (2015). What financial crisis? The global politics of the financial industry: distributional conse- quences and legitimizing narratives. In Hart, Keith & Sharp, John (orgs.). Economy for and against democracy. New York/Oxford: Berghann Books, p. 39-57. sociol. antropol. | rio de janeiro, v.09.02: 387 | rio de janeiro, antropol. sociol. artigo | maria laura viveiros de castro cavalcanti

793

Ortiz, Horacio. (2014a). Valeur financière et vérité. Enquête d’anthropologie politique sur l’évaluation des entreprises cotées en bourse. Paris: Presses de Science Po. Ortiz, Horacio. (2014b). The limits of financial imagina- tion: free investors, efficient markets and crisis. American Anthropologist, 116/1, p. 38-50. Ortiz, Horacio. (2013a). Financial value: economic, moral, political, global. HAU Journal of Ethnographic Theory, 3/1, p. 64-79. Ortiz, Horacio. (2013b). Investir: une décision disséminée. Enquête de terrain sur les dérivés de crédit. Sociétés Con- temporaines, 93, p. 35-57. Parry, John & Bloch, Maurice (orgs.). (1989). Money and the morality of exchange. Cambridge: Cambridge University Press. Peebles, Gustav. (2010). The anthropology of credit and debt. Annual Review of Anthropology, 39, p. 225-240. Preda, Alex. (2009). Framing finance: the boundaries of mar- kets and modern capitalism. Chicago/London: University of Chicago Press. Reddy, Yaga Venugopal. (2009). India and the global financial crisis. Managing money and finance. London: Anthem Press. Sahlins, Marshall. (2013). On the culture of material value and the cosmography of riches. HAU: Journal of Ethnogra- phic Theory, 3/2, p. 161-195. Simmel, Georg. (1978) [1900]. The philosophy of money. Tr. Frisby, D. London: Routledge. Smith, Adam. (1991) [1776]. An inquiry into the nature and causes of the wealth of nations. New York: Prometheus Books. Stiglitz, Joseph. (2006). Making globalization work. London: Penguin Books. Van der Zwan, Natascha. (2014). Making sense of finan- cialization. Socio-Economic Review, 12, p. 99-129. Venugopal, Rajesh. (2015). Neoliberalism as concept. Eco- nomy and Society, 44/2, p. 165-187. Whitley, Richard. (1986). The transformation of business finance into financial economics: the roles of academic expansion and changes in U.S. capital markets. Accounting, Organizations and Society, 11/2, p. 171-192. a casa das minas de são luís do maranhão e a saga de nã agontimé

794

Wilkis, Ariel. (2018a). The moral power of money. Morality and economy in the life of the poor. Standford: Standford Uni- versity Press. Wilkis, Ariel (org.). (2018b). El poder de (e)valuar. La produc- ción monetaria de las jerarquías sociales, morales y estéticas en la sociedad contemporánea. Buenos Aires: UNSAM Edita. World Bank Group. (2018). Database. Disponible en . Acce- so el 20 dic. 2018. World Federation of Exchanges. (2018). Statistics. Dispo- nible en . Acceso el 20 dic. 2018. Young, Brigitte et al. (orgs.). (2011). Questioning financial governance from a feminist perspective. New York: Routledge. Zaloom, Caitlin. (2006). Out of the pits, traders and techno- logy from Chicago to London. Chicago: The University of Chicago Press. Zelizer, Viviana. (2010). Economic lives. How culture shapes the economy. Princeton: Princeton University Press. Zelizer, Viviana. (1997). The social meaning of money. Pin money, paychecks, poor relief, and other currencies. Princeton: Princeton University Press. ago., 2019 ago., –

429, mai. 429, – sociol. antropol. | rio de janeiro, v.09.02: 387 | rio de janeiro, antropol. sociol. artigo | maria laura viveiros de castro cavalcanti

795

ANTROPOLOGIA POLÍTICA DAS FINANÇAS E ANTROPOLOGIA DO DINHEIRO Palavras-chave Resumo Dinheiro; Este texto apresenta a antropologia do dinheiro de Keith finanças; Hart e sua relevância para uma antropologia política da Keith Hart; indústria financeira. Hart considera que o dinheiro arti- poder; cula hierarquias sociais e desigualdades que conectam a global. experiência pessoal íntima com o resto da humanidade, e que a multiplicidade da violência e do potencial liberador dessas interdependências não corresponde a uma lógica única, contrariamente ao que propõem as teorias econô- micas abstratas, críticas ou não. Esse enfoque oferece gran- de contribuição a uma antropologia política das finanças, que analisa a multiplicidade das práticas concretas na indústria financeira a partir do papel que desempenham na constituição de relações monetárias globais de poder, ao produzir e transformar hierarquias sociais pelo modo como distribuem dinheiro e justificam essa distribuição.

The political anthropology of finance and the anthropology of money Keywords Abstract Money; This text presents Keith Hart’s anthropology of money and finance; its importance for a political anthropology of the financial Keith Hart; industry. Hart argues that money articulates social hierar- power; chies and inequalities that connect intimate personal ex- global. perience with the rest of humanity, and that the multiplic- ity of violence and the liberating potential of these inter- dependences does not correspond to a single logic, con- trary to what abstract economic theories propose, critical or otherwise. This approach makes a major contribution to a political anthropology of finance, analysing the multiplic- ity of practices in the financial industry from the perspec- tive of how they participate in the constitution of global monetary power relations, producing and transforming social hierarchies through their distribution of money and their justification of this distribution. os encantados nas festas do divino: estrutura e antiestrutura

796 ago., 2019 ago., –

451, mai. 451, – sociol. antropol. | rio de janeiro, v.09.02: 431 | rio de janeiro, antropol. sociol. http://dx.doi.org/10.1590/2238-38752019v934 artigo | joão leal

1 Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Departamento 797 de Antropologia Cultural, Rio de Janeiro, RJ, Brasil [email protected] https://orcid.org/0000-0003-1227-5258

Fernando Rabossi I

Los caminos de la informalidad

Durante mi trabajo de campo en Ciudad del Este (Paraguay) con diversos trabaja- dores envueltos en la actividad comercial, la categoría “informal” fue utilizada por algunos de ellos para autodefinirse. Sin embargo, qué significaba eso no era evidente. Para algunos, lo fundamental era el trabajo en relación de no-depen- dencia.1 Para otros, lo definía el no-pago de impuestos.2 Cada una de estas formas de concebir la informalidad sugería otras cuestiones vinculadas a actores, rela- ciones y contenidos particulares. Algunos elementos que surgieron bajo la figura

dic., 2019 dic., de informalidad en el campo y en la literatura me ayudaron en el desarrollo de lo –

que después sería mi tesis de doctorado (Rabossi, 2004). No obstante, la informa- lidad no fue clave para su construcción ni tampoco uno de los ejes de discusión. 818, sep. 818, – Sentía que la discusión sobre informalidad en ciencias sociales estaba pautada por una serie de presupuestos de los cuales quería desprenderme para poder presentar una discusión sobre el material etnográfico sin visiones normativas y dicotómicas. Aun así, la informalidad estaba en la calle, siendo utilizada para definir y autodefinirse. El presente trabajo aborda algunas de las discusiones que fueron mol- deando el concepto de informalidad como un primer paso para comprender su difusión y utilización; elementos que nos permiten comprender cómo actores en lugares tan distantes como Nairobi, Nueva Delhi o Ciudad del Este se autoi- dentifican como “informales”. Para eso, presentaré los trabajos donde éste fue inicialmente formulado, su incorporación en la Organización Internacional del sociol. antropol. | rio de janeiro, v.09.03: 797 | rio de janeiro, antropol. sociol. os encantados nas festas do divino: estrutura e antiestrutura

798

Trabajo, y la historia institucional particular que lo transforma y amplifica. Recuperar algunos aspectos de la historia de la noción de informalidad permi- te retomar las discusiones sobre su desarrollo desde un nuevo ángulo y reflexio- nar sobre el gobierno de la economía, abriendo nuevos caminos de indagación histórica sobre las formas de modernización en la segunda mitad del siglo XX y las maneras de concebirlas.3 Si bien el punto de partida de este trabajo es etnográfico, el interés teó- rico es comprender la relación entre ideas económicas – aquellas producidas por especialistas – e ideas y prácticas ordinarias (Motta et al., 2014: 50). Con- fluencia entre una sociología de las ideas, los estudios sociales de la ciencia y de la economía y las etnografías económicas, el esfuerzo aquí emprendido tra- ta de

describir la construcción social de las teorías económicas y los complejos me- canismos que les otorgan legitimidad social y permiten que se diseminen más allá del círculo de especialistas [y] comprender los procesos mediante los cuales estas teorías convergen con otras dimensiones de la cultura y otras formas de conceptualizar las relaciones entre las personas y la vida social 4 (Neiburg, 2006: 630).5

Los caminos del concepto de informalidad – que, como veremos, empie- zan con las “oportunidades informales” de empleo para desembocar en el “sec- tor informal” – transcienden el campo de la economía y colocan en relación etnografías, estudios de caso, antropólogos, economistas y organismos inter- nacionales. En este trabajo privilegio dos actores en particular: Keith Hart y Paul Bangasser. El primero, antropólogo, escribiendo desde su trabajo de cam- po en Ghana; el segundo, miembro de la Organización Internacional del Traba- jo, testigo privilegiado de la trayectoria institucional del concepto en dicha organización. A partir de ellos, reconstituiremos una historia muchas veces contada, pero que puede ganar nuevos matices desde las posiciones singulares ago., 2019 ago.,

– elegidas para contarla.

Keith Hart y la formulación de la informalidad 451, mai. 451, – Como toda historia conceptual, la de la informalidad tiene sus detalles poco conocidos, al menos para muchos antropólogos, porque muchos economistas – especialmente aquellos dedicados al desarrollo – conocen la disciplina y la persona asociada al surgimiento del concepto: el antropólogo Keith Hart, cuya etnografía en Ghana sirvió como plataforma de despegue del mismo. Publicado en 1973,6 el trabajo señalado como el primero en desarrollar la idea de informalidad, fue presentado por Keith Hart en septiembre de 1971, en una conferencia sobre desempleo urbano en África. El mismo se desprende de la investigación del autor sobre un grupo del norte de Ghana, los Frafra, algunos de los cuales habían migrado a las ciudades del sur del país. El trabajo describe y analiza las estrategias de generación de ingresos de los inmigrantes en Accra sociol. antropol. | rio de janeiro, v.09.02: 431 | rio de janeiro, antropol. sociol. artigo | joão leal

799

– a quienes Hart denomina subproletariado urbano –, especialmente en el distri- to de Nima, donde realizó parte importante de su trabajo de campo. Como los salarios no alcanzaban, las personas recurrían a diversas alternativas como crédito de familiares y de amigos, duplicación del trabajo asalariado, y diversos medios “informales” para incrementar los ingresos. Es precisamente este último mundo de actividades económicas, fuera de la “fuerza de trabajo organizada”, que constituye el centro del artículo. Para Hart, la distinción entre oportunidades formales e informales de ingreso está basada en la diferencia entre trabajo asalariado y autoempleo, siendo la variable principal de diferenciación el grado de racionalización del trabajo (Hart, 1973: 147). Esa característica inscribe diferencialmente aquellas actividades que son enumerables en los relevamientos – constituyendo el “sec- tor moderno” – y aquellas que escapan a la enumeración – lo que era descrito por otros autores como sector de baja productividad, ejército de reserva de subempleados y desempleados, o sector urbano tradicional. Estás últimas son definiciones que, según el autor, llevaban implícitas una descripción que de hecho debía ser demostrada. Hart desarrolla una tipología que le permite presentar la amplitud de oportunidades de ingresos informales, distinguiendo entre actividades legítimas e ilegítimas; una distinción derivada de la ley, pero vinculada de forma gené- rica a lo que un “respetable ciudadano” piensa que es legítimo. La variedad de actividades de producción y servicios, distribución y transferencias privadas que aparecen a la luz de ese ejercicio tipológico, le permite a Hart explorar las causas y las dinámicas de esa diversidad: la distribución desigual de las opor- tunidades para los diferentes grupos étnicos, la diferente exposición a las reglas coloniales y a la educación occidental, los patrones restrictos de circulación de la información, y la conformación de nichos étnicos. Después de presentar descriptivamente estos aspectos y de detenerse en el estudio de un caso,7 Hart señala tres direcciones en las cuales deberían ser reorientados los trabajos. En primer lugar, debemos reformular las pregun- tas. Por ejemplo, no preguntarnos “¿cómo podemos hacer para crear empleo para los desempleados?” sino, “¿queremos colocar el énfasis en la dirección del empleo formal porque es bueno en sí?, ¿por qué queremos reducir las activi- dades socialmente desaprobadas? o ¿por qué queremos acabar con la ineficien- cia de esos trabajos?” (Hart, 1973: 157). En segundo lugar, debemos cuestionar las suposiciones que hasta entonces guiaron las propuestas de generación de empleo y de desarrollo en sentido más general. Por ejemplo, es absurdo pensar empírica y teóricamente en un proceso de transición del desempleo y subem- pleo a una situación de pleno empleo a través de la mera generación de empleo en la fuerza de trabajo organizada (Hart, 1973: 158). En tercer lugar, debemos pensar abordajes que permitan dar cuenta de las estructuras de ingresos for- males e informales en forma conjunta.8 os encantados nas festas do divino: estrutura e antiestrutura

800

Hart concluye su artículo llamando la atención sobre dos cuestiones. Accra no es única en las características descritas a lo largo del trabajo, por lo que se impone la necesidad de un abordaje comparativo de las economías ur- banas que tome en consideración las estructuras formales e informales. A su vez, esto debe reconfigurar la agenda con la que se piensa el desarrollo. En sus palabras, “Llegó la hora para que el lenguaje y el abordaje de la economía del desarrollo tome esto en cuenta” (Hart, 1973: 162). Vemos así que el interés de Hart era establecer un diálogo con los economistas del desarrollo para intro- ducir un universo de actividades que generalmente eran desconsideradas o consideradas marginales al proceso económico.9 Tal como el propio autor lo formulara algunos años más tarde,

[L]a idea de una ‘economía informal’ surgió del deseo de comunicarme con los economistas del desarrollo a inicios de los años 1970, desde la perspectiva de mi investigación etnográfica en un barrio de una ciudad de África Occidental. [...] Mi objetivo era mostrar que las actividades económicas autoorganizadas, emer- giendo de la vida cotidiana de las personas, por más irregulares e inadecuadas que pudieran parecer, deberían modificar las percepciones de la economía pre- sente en el discurso del desarrollo (Hart, 2006: 1).

Sin embargo, el debate en el cual el concepto se inscribe se revela a la luz de otra vertiente donde el mismo se desarrolla: la Organización Interna- cional del Trabajo. En ella me detendré seguidamente.

La OIT y la popularización del concepto10 Si hay una institución vinculada al concepto de sector informal, esa es la Or- ganización Internacional del Trabajo (OIT).11 Para algunos, es considerada tan- to la partera, como su principal hogar institucional. Para comprender esa rela- ción es necesario trazar algunos desarrollos de la OIT que ayuden a entender la proyección que la noción de sector informal alcanzó en dicha institución.

ago., 2019 ago., Después de la Segunda Guerra Mundial y tras los esfuerzos de recons- –

trucción de Europa y Japón, varias instituciones comienzan a pensar en una estrategia similar para los países del Tercer Mundo. El bienestar material apa- 451, mai. 451,

– recía como un ideal de proyección universal, y la forma en que la OIT podía ayudar a alcanzarlo era colaborando en la gestión del proceso de transición económica que iba de una situación definida como tradicional a otra “moderna” donde ese bienestar podía ser garantizado. En el contexto de la Guerra Fría, y dado el compromiso resultado de la presencia de países de diversas orienta- ciones en la OIT, lo fundamental para gerenciar esa transición era una planifi- cación del desarrollo, ya sea dentro de un modelo socialista, capitalista o “no alineado”. En todos los casos, el objetivo central era la formación de capital y la promoción de exportaciones, ya que la cuestión del empleo se resolvería con el crecimiento de ambos elementos. El mercado de trabajo encontraría un equili- brio, con una demanda en crecimiento que utilizase de forma eficiente la mano sociol. antropol. | rio de janeiro, v.09.02: 431 | rio de janeiro, antropol. sociol. artigo | joão leal

801

de obra, y con una oferta de empleados calificados, por eso los planes de la sección de Gerencia de Desarrollo – Management Development Branch –, y los planes de la sección de Formación Vocacional – Vocational Training Branch – res- pectivamente.12 Junto a estas dos secciones, la encargada de la Planificación de Mano de Obra – Manpower Planning Branch – era la tercera columna del Depar- tamento para el Desarrollo de Recursos Humanos. Es aquí donde uno de los problemas centrales de esa versión del desarrollo comenzó a revelarse de forma sistemática: los puestos de trabajo (modernos) creados no alcanzaban a cubrir a la totalidad de la población. El modelo se escudaba en la variable temporal: esa desproporción iría siendo superada a medida que las sociedades atravesasen los diferentes estadios de desarrollo.13 Ese desfasaje, consecuencia de la transición postulada entre los diferen- tes estadios de crecimiento, empezó a revelarse como algo más que temporario. Aun incorporando las previsiones más favorables de inversiones y crecimiento, la transición no iría a suceder de forma automática. Es entonces que el énfasis cambia y, en 1969, la OIT lanza el Programa Mundial de Empleo – World Emplo- yment Programme (WEP) –, que tiene por objetivo colocar la generación de empleo en el centro de la planificación nacional y de los esfuerzos de desarro- llo.14 Con esa mudanza de énfasis suceden también algunos cambios institu- cionales y operacionales. La oficina que se ocupaba de la planificación de la mano de obra sale del Departamento de Desarrollo de Recursos Humanos y gana estatuto de Departamento dentro de la OIT, con el nombre de Departa- mento de Planificación y Promoción de Empleo. Tres ramas componen dicho departamento: investigación, proyectos sec- toriales y misiones de empleo. Estas misiones fueron una innovación para la época y una de ellas jugará un papel fundamental en la formulación del sector informal. Estaban centradas en análisis y diagnósticos en vez de restringirse a la asistencia técnica – forma hasta entonces prevaleciente. Eran equipos mul- tidisciplinarios con especialistas de diversas instituciones y de diversos oríge- nes, trabajando dos o más meses en cada lugar. La primera misión comprehensiva de empleo fue la de Kenia en 1972, coordinada por Hans Singer y Richard Jolly. En el informe Employment, incomes and equity: a strategy for increasing productive employment in Kenya, publicado aná- lisis de la situación en dicho país. Tal como Keith Hart, el informe de Kenia cues- tiona el punto de partida asumido para pensar el problema del empleo; esto es, comenzar los análisis de empleo a partir de aquello que es registrado como tal. Como aparece en la introducción, “El problema con el empleo es que las estadís- ticas están incompletas omitiéndose un espectro de asalariados y personas au- toempleadas, tanto hombres como mujeres, en aquello que llamamos ‘sector informal’” (ILO, 1972a: 5). Sector que, lejos de ser marginalmente productivo, es económicamente eficiente y generador de ganancias, a pesar de ser pequeño en escala y estar limitado por tecnología simple, por la escasez de capital y por la os encantados nas festas do divino: estrutura e antiestrutura

802

falta de relaciones con el otro sector de la economía (“formal” aparece entre pa- réntesis en el original). Pero ¿qué son esas actividades? Veamos la cita del informe que se tor- naría parámetro estándar de definición del sector informal:

Las actividades informales no están confinadas al empleo en la periferia de las ciudades principales, a determinadas ocupaciones o inclusive a actividades eco- nómicas. Por el contrario, las actividades informales son una manera de hacer las cosas, caracterizada por (a) facilidad de entrada, (b) dependencia de recursos in- dígenas, (c) propiedad familiar de las empresas, (d) pequeña escala de operación, (e) trabajo intensivo y tecnología adaptada, (f) destrezas adquiridas fuera del sis- tema escolar formal, y (g) mercados desregulados y competitivos. (ILO, 1972a: 6).

El informe de Kenia pone el acento en la forma determinada en que las actividades son realizadas. Resalta de manera positiva el sector informal, rescatando la eficiencia, el carácter innovador y la resistencia del mismo. Destaca la falta de reconocimiento gubernamental – a veces su clara hosti- lidad hacia el sector –, y coloca la necesidad de incorporar dicho sector den- tro del cuadro y de cualquier estrategia de desarrollo, en particular aquella que aparece formulada en el informe y que después se haría famosa en la discusión sobre desarrollo: la “redistribución con crecimiento”.

Las vueltas de las ideas A diferencia de otros conceptos utilizados en la descripción y gerenciamiento de lo social, la precisión con que es narrada la historia de la informalidad, en términos de autoría y momento de surgimiento, es algo que siempre me llamó la atención. Las decenas de artículos que trazan su historia y definición vuelven siempre sobre Keith Hart y la OIT en su misión de Kenia a principio de los 1970. Sin embargo, al cotejar esas dos trayectorias aparece una cierta inconsistencia, que puede ser una cuestión anecdótica, pero tal vez nos ayude a entender la

ago., 2019 ago., forma en que determinadas historias fueron contadas y los silencios que esas –

narrativas continúan produciendo. La versión estándar es la que conté. Hart presenta el concepto en una 451, mai. 451,

– conferencia en 1971; en el 1972, la misión de empleo de la OIT a Kenia lo toma y populariza y, en 1973, Hart publica en forma de artículo el paper de la confe- rencia de 1971. Lo que no se cuenta es que en el informe de la misión de Kenia, en una nota al pie de página, la idea del sector informal es presentada como habiendo surgido del trabajo y staff del Institute of Development Studies de la Universidad de Nairobi. Si es así, ¿dónde entra Hart? La conferencia Urban Unemployment in Africa fue realizada en el Insti- tuto de Estudios del Desarrollo de la Universidad de Sussex, organizada por Richard Jolly y Rita Cruise O’Brien.15 Como vimos anteriormente, Richard Jolly coordinará junto a Hans Singer la misión de empleo de la OIT en Kenia; siendo figuras fundamentales en la historia de la economía del desarrollo. sociol. antropol. | rio de janeiro, v.09.02: 431 | rio de janeiro, antropol. sociol. artigo | joão leal

803

Uno de los participantes de la conferencia, el economista John Weeks, presenta el trabajo “The problem of urban imbalance”, donde analiza la desigual distribución de empleo y oportunidades en las ciudades africanas. Para dar cuenta de todos aquellos que no tienen una relación salarial, pero que trabajan y obtienen ingresos, Weeks utiliza la expresión “the unnumerated sector”. Según Keith Hart, en comunicación personal, Weeks encontró la idea de oportunida- des informales de generación de ingresos presentada por él como muy útil – más apropiada que “sector no-enumerado” – y lo felicitó por el trabajo, así como lo hicieron dos participantes del Instituto de Estudios del Desarrollo de Nairobi. John Weeks va a formar parte del equipo convocado por Singer y Jolly para realizar la misión a Kenia y, según Hart, es él quien se sorprende al ver en el informe final la utilización del concepto de sector informal sin darle ningún crédito y mencionando a los investigadores de Nairobi como los creadores de la idea. Sorpresa que hará pública en una pequeña nota al respecto. A lo anterior se sumará la cancelación del libro planeado por los orga- nizadores con los papers presentados en la conferencia, por lo que el paper de Hart quedaría relegado en los archivos de las conferencias. El director del Jour- nal of Modern African Studies, al tomar conocimiento de la historia, le propone a Hart publicar enseguida su artículo. Según Hart, todo este pequeño escánda- lo consiguió que muchas personas que comienzan a utilizar el concepto se encarguen de repetir que fue él quien acuño el término, algo que de otra ma- nera no hubiera sucedido.16 Sólo para agregar otra voz en este relato, en la memorial lecture proferida por Richard Jolly en homenaje a Hans Singer, al comentar cuáles fueron los tres elementos que garantizaron el amplio impacto del informe sobre empleo de la misión de Kenia que coordinaran de forma conjunta, Jolly señala que uno de ellos fue la utilización del concepto de informalidad. Esto sucede meses después que Keith Hart lo reportara en su trabajo sobre Ghana, aclarando en una nota al pie que el mismo fue presentado en la conferencia organizada por él y Rita Cruise O’Bien, en septiembre de 1971 (Jolly, 2006: 5-6). Aquello que no había sido mencionado en el informe de 1972, aparece reconocido por uno de los directores de la misión al homenajear a su colega. Además de este “efecto de autoría” – el posterior reconocimiento de los autores del concepto –, algo más importante sucede a raíz de estas idas y vuel- tas: la modificación de la naturaleza del concepto. Tal como Hart lo describiría:

La ironía de todo esto es que el informe de la OIT fue responsable por el hecho de acuñar un concepto que nunca fue mi intención de nombrar como tal. Yo simplemente hablé de oportunidades formales e informales de ingresos e inser- té el término “sector informal” en la versión publicada de mi paper como resul- tado del uso del informe de la OIT con el cual yo estaba bien familiarizado por entonces.17 os encantados nas festas do divino: estrutura e antiestrutura

804

Claro que, aun utilizando la noción de sector informal, el paper de Hart no está construido desde una lógica que reifica al sector informal. Son varios los autores que van a señalar las diferencias entre la forma en que Hart utiliza el concepto y la forma que asume en el informe de la OIT.18 De acuerdo con Lisa Peattie, quien a mitad de los 1980 realiza una revisión del concepto de informalidad, en Hart sirve para dar cuenta de una variedad de actividades en la economía de los pobres urbanos, y aparece junto a otras categorías de la economía política en donde adquiere sentido. Por su lado, dice Peattie (1987: 854), “Cuando la OIT adopta el término, se transforma en una forma de descri- bir la estructura de la economía como un todo en la terminología de los plani- ficadores económicos”. La introducción de la figura de “sector” trae una rigidez que inscribe a la idea de informalidad en la genealogía de los dualismos que influenciaron el pensamiento económico, no como herramientas conceptuales, sino como categorías de descripción de lo real, tal como antes funcionaba la dicotomía entre Moderno/Tradicional. Es tal vez por esto que la teoría de la racionalización de Weber, que Hart reivindica como la inspiradora de la distinción entre formal e informal, quedó opacada en la utilización del concepto. Esta genealogía weberiana del concep- to de informalidad, que Hart explorará posteriormente (1987 y 2006), subraya el crecimiento de la organización burocrática y el cálculo de ganancias y riesgos en las instituciones económicas occidentales; i.e. la emergencia del Estado racional-legal como garantía y soporte de espacios del universo social que ad- quieren un creciente grado de formalización.19 Es frente a esta dinámica que lo informal aparece iluminando todo aquel universo que queda fuera de visión a la luz de esa formalización. Si la inscripción dentro del pensamiento dualista es una de las cuestio- nes que van a quedar adheridas al concepto como resultado de sus condiciones de surgimiento, la otra cuestión que merece ser destacada es aquella que se ago., 2019 ago.,

– revela en la frase utilizada por John Weeks como “sector no-enumerado”, pues

precisamente muestra el interés por categorizar aquello que se escapaba a los números y que, como veremos, se transformará en objeto de cuantificación. 451, mai. 451, – Claro que la noción de informalidad se superpone con otras nociones utilizadas para describir lo que aparece fuera de las cuentas oficiales, retratado bajo el concepto de informalidad. Por ejemplo, la noción de underground economy desa- rrollada por el economista Vito Tanzi (1982),20 traducida como economía subte- rránea o como economía clandestina por diferentes investigadores. Algunos autores van a utilizar la expresión subterranean economy (Gutmann, 1977). Otras conceptualizaciones muy comunes son black economy (mercado negro) y hidden economy (economía oculta). Un economista reconocido por sus propuestas para medir el fenómeno, Edgar L. Feige, utilizó a lo largo de su carrera las nociones de economía irregular (Feige, 1979), sector no-observado (Feige, 1981) y econo- mía subterránea e informal (Feige, 1990). En esa búsqueda, la categoría de in- sociol. antropol. | rio de janeiro, v.09.02: 431 | rio de janeiro, antropol. sociol. artigo | joão leal

805

formal consiguió formalizarse de un modo tal que conceptos alternativos no lograron. Y, como muchas otras historias de formalización, la del concepto de informalidad está asociada a las trayectorias institucionales por las que fue desarrollándose.

Formateando lo informal Una vez desembarcado en la OIT, la suerte del concepto de sector informal no fue nada lineal. El área de investigaciones sobre pobreza urbana – una de las líneas de investigación del Programa Mundial de Empleo – será el espacio don- de el concepto se afiance y crezca. Años más tarde se constituirá en un progra- ma de investigaciones en sí mismo, el “programa de investigaciones en el sec- tor informal urbano”. Harold Lubell, quien ingresa en 1971, y S.V. Sethuraman, quien lo hace en 1973, van a ser dos figuras fundamentales en la apropiación y difusión del concepto. Si bien no gana autonomía como tema principal de investigación, durante los años 1970 el “sector urbano informal” reemplazó el foco de los estudios sobre “desempleo urbano”.21 Sin embargo, el concepto no es completamente asumido por la OIT, ni siquiera por equipos de investigación o misiones que lidiaban con “temas” informales.22 En la década del 1980, la categoría de sector urbano informal se difunde, transformándose en uno de los cinco temas globales delineados por la OIT (plan 82/87), y entra a formar parte de la agenda de otros departamentos. Al final de la década es uno de los temas interdepartamentales prioritarios. Sin embargo, las prácticas institucionales habían cambiado: el énfasis se volvió al abordaje de acciones de intervención en contraposición con el carácter de diagnóstico y recomendación de las misiones. Concebidas como remedios, las intervenciones difícilmente funcionaron con el sector informal. Las características de funcionamiento de la OIT son fun- damentales para entender esas dinámicas. Por un lado, la manera en que se realizan la programación y el presupuesto reproduce formas de hacer indepen- dientemente de los resultados.23 Por otro lado, en el patrón de representación característico de la OIT – trabajadores, empleadores y gobierno –, el sector infor- mal no tuvo un “defensor natural” en ninguna de las partes (Bangasser, 2000: 15). De acuerdo con Bangasser, el grupo de los trabajadores se opuso consis- tentemente al trabajo sobre el sector informal desde los 1970 hasta 1984, año en que es aprobada la primera resolución llamando a los sindicatos a tomar un papel más activo en relación al sector informal. Los empleadores, aunque hoy suscriben una visión más positiva sobre el sector informal, continúan cuestio- nando su competencia desleal. La OIT desarrolló un trabajo que, si bien no desafió a esos sectores, tampoco aceptó su negativa a abordar el sector informal. Sin embargo, no fue un logro institucional (como el trabajo sobre género) sino por la perseverancia y perspicacia de algunos profesionales (Lubell y Sethura- man, Victor Tokman, George Niham y Carlos Maldonado). os encantados nas festas do divino: estrutura e antiestrutura

806

En la historia institucional del concepto de informalidad en la OIT, Paul Bangasser (2000: 16) caracteriza de forma crítica el abordaje centrado en inter- venciones que remediasen la situación de los informales:

al concentrar su atención en ‘ayudar’ a aquellos que sufren de la informalidad (esto es, al concentrar en remediar los síntomas en vez de corregir las causas del sector informal), hemos conseguido reivindicar por tres décadas que está- bamos respondiendo a esa enfermedad social virulenta sin tener que cambiar nuestro propio modus operandi ni arriesgar transformar en obsoletas las capa- cidades técnicas desarrolladas a lo largo de los años por la oficina.

Independientemente de las propuestas desarrolladas para el sector infor- mal,24 el trabajo de la OIT sobre dicho sector asumió otra dimensión en la década del 1990, cuando consigue incorporarlo en la discusión general de la organiza- ción y tornarlo una ‘realidad’ a ser registrada de forma sistemática. Incluida co- mo aspecto principal en la agenda de la Conferencia Internacional de Trabajo en 1991, la discusión sobre el sector informal es presentada en el reporte elaborado por el director general, The dilemma of the informal sector (Report of the Direc- tor General, International Labour Conference, 78th Session, 1991). Por primera vez, empleadores, trabajadores y gobernantes tuvieron que exponer sus posicio- nes sobre el tema, dejando así, de ser una discusión exclusivamente de especia- listas. La respuesta del director a las diferentes posiciones relevadas subraya tres cuestiones que van a orientar las acciones de la institución: la aplicación igualitaria de estándares fundamentales de derechos humanos para todos, la utilización de reglas y leyes simples como prerrequisitos para la legalización gradual del sector informal, y la necesidad de acondicionar la ley sin hacerla re- troceder en términos de garantías. Los esfuerzos por sistematizar las formas de registro del sector informal se cristalizan en las discusiones de aquellos que tornan numéricamente reales las abstracciones de los conceptos. En 1982, en la 13a Conferencia Internacional ago., 2019 ago., – de Estadísticos del Trabajo (en adelante utilizaré su sigla en inglés, ICLS), se había sugerido que cada país desarrollase metodologías y programas para la recolección de estadísticas sobre el sector informal. En 1987, durante la 14a ICLS, 451, mai. 451, – la resolución de la conferencia informa que sería desarrollado un marco con- ceptual que delineará herramientas para registrar sistemáticamente las “formas no estandarizadas de empleo e ingresos”. Esta resolución colocó al sector in- formal en la agenda de la 15a ICLS que tuvo lugar en enero de 1993, lo que exigió la realización de un reporte para dicha conferencia.25 Paralelamente, se estaba haciendo una nueva versión del System of Na- tional Accounts (SNA); marco conceptual utilizado por los sistemas estadísticos financieros y económicos para calcular el producto bruto de cada país y otras figuras comparativas. Después de una década de trabajo, la revisión del SNA en 1993 bajo la dirección de la comisión estadística de la ONU, con la partici- pación de Eurostat, el FMI, el Banco Mundial, la OECD y varias otras agencias, sociol. antropol. | rio de janeiro, v.09.02: 431 | rio de janeiro, antropol. sociol. artigo | joão leal

807

incorporó la distinción de los sectores formal e informal. Reconociendo el pa- pel de la OIT como experta en el asunto, el SNA incluyó como anexo la resolu- ción de la 15a Conferencia Internacional de Estadísticos del Trabajo (ICLS) rea- lizada meses antes, la cual fue adoptada formalmente y recomendada por el Consejo Económico y Social de la ONU. Desde 1993, transformado en algo mensurable y oficializado internacio- nalmente como parte del universo que cada país debe observar y registrar, el sector informal pasó a tener una realidad que será regularmente confirmada en cada censo y en cada lugar. Claro que para eso debemos tener las herra- mientas adecuadas, algo cuya definición incluye discusiones y cuestionamien- tos sobre el contenido de dicho sector. Habiendo alcanzado un estatus real, el trabajo en los últimos años consistió en calibrarlo, tal como puede ser inter- pretada la creación en 1997 del Grupo de Expertos en Estadísticas del Sector Informal, el Grupo Delhi, con el objetivo de preparar el manual para mediciones del sector informal, el cual es finalmente presentado en 2013 (ILO, 2013).

Reflexiones desde América Latina La difusión del concepto de informalidad en América Latina en los formatos hasta ahora descriptos estuvo vinculada a la actividad del Programa de Recu- peración de Empleo en América Latina (PREALC), el cual expresa la posición de la OIT en la región. Un análisis pormenorizado de los desarrollos de la catego- ría en estos lados del mundo significaría otro trabajo, especialmente porque es uno de los espacios donde ingresa en debates que van a tener un profundo impacto en la discusión internacional. No solo a partir de América Latina, sino del continente americano en general. Los trabajos de Victor Tokman y Vanesa Cartaza, son fundamentales para entender la articulación de las discusiones internacionales con el contexto americano; de gran importancia son los traba- jos de Alejandro Portes, Robert Castells y Saskia Sassen que reorientaran la mirada sobre la informalidad como fenómeno característico de los países sub- desarrollados, incorporando a la discusión los procesos de reestructuración económica en países desarrollados. También el trabajo de Hernando de Soto sobre la informalidad como respuesta popular al mercantilismo rígido de es- tado y la idea que se tornaría clave posteriormente a propósito de los costos de la legalidad. La historia singular del concepto de informalidad, que no es otra cosa que la narrativa que tenemos de ella y que es reproducida recurrentemente en artículos, libros, tesis y seminarios, presenta una singularidad especial al ser comparada con otros conceptos utilizados en el análisis social: una precisión particular sobre el momento y los actores vinculados a su formulación. Si a la luz del material hasta aquí presentado podemos concluir que esa precisión está vinculada a ciertas disputas o afirmaciones autorales sobre el concepto, lo cierto es que las mismas tuvieron un efecto canónico sobre el relato que os encantados nas festas do divino: estrutura e antiestrutura

808

seguimos contándonos. No dar por sentado ese relato tal vez nos permita re- cuperar otras genealogías a partir de las cuales formular nuevas preguntas. Una formulación paralela y convergente con la de Keith Hart la encon- tramos en la tesis de maestría de Luiz Antonio Machado da Silva (1971), Merca- dos metropolitanos de trabalho manual e marginalidade, con fecha de mayo de 1971 y defendida en el Programa de Postgrado en Antropología Social del Museo Nacional (Universidad Federal de Rio de Janeiro) bajo la dirección de Roger B. Walter. En ella, Machado da Silva analiza el mercado de trabajo de las metró- polis brasileñas a la luz de los subsistemas denominados “mercado formal” y “mercado no-formalizado”. La dicotomía formal/informal presentada por el au- tor, nos coloca en el mismo terreno sobre el que desarrolla sus ideas Keith Hart: la discusión sobre empleo y su relación con el marco jurídico-institucional de los universos sociales analizados. Y así, como en Hart, el abordaje etnográfico que permite presentar un universo diversificado de trabajos no-formalizados entre los sectores populares urbanos también ilumina, de acuerdo con Mariana Cavalcanti (2018: 80), como “lo formal y lo informal se conectan y combinan en lo cotidiano”.26 Muchas páginas podrían ser escritas a la luz de ese material, sin embar- go, quiero concluir señalando la razón del ejercicio hasta aquí realizado. Por un lado, es fundamental considerar seriamente la historia institucional de las ideas para comprender los efectos que ellas tienen en los universos sociales sobre los que trabajamos. Efectos que van desde la implementación de políticas específicas, hasta la incorporación de determinadas ideas que influyen en las formas de construir la propia identidad de las personas. Por otro lado, las his- torias institucionales e institucionalizadas a partir de las trayectorias singula- res de la vida social de las ideas no necesariamente son las únicas que podría- mos contarnos.27 Indagar en esas otras historias tal vez nos permita superar algunos impases en que a veces nos colocan ciertos desarrollos conceptuales. ago., 2019 ago.,

– En este sentido, ubicar la discusión sobre informalidad en el histórico de los

debates sobre marginalidad, sobre las dicotomías urbano-rural, tradición-mo- dernidad y otras formas en las cuales fueron discutidas las transformaciones 451, mai. 451, – del mundo contemporáneo, puede ser renovador.

Recibido 17/4/2019 | Aprobado 7/10/2019

Fernando Rabossi es profesor del Departamento de Antropología Cultural y del Programa de Posgrado en Sociología y Antropología de la Universidad Federal de Rio de Janeiro. Su foco de investigación es la relación entre reglas y prácticas económicas. Es autor del libro En las calles de Ciudad del Este: una etnografía del comercio de frontera (2008) y de varios artículos sobre economías y políticas informales, procesos de formalización, mercados, fronteras, circulación y etnografía. sociol. antropol. | rio de janeiro, v.09.02: 431 | rio de janeiro, antropol. sociol. artigo | joão leal

809

NOTAS

1 Por ejemplo, el presidente de una de las asociaciones de vendedores de la calle (mesiteros, tal como son llamados), describiendo la asociación que presidía, señalaba: “Vos sabés que la asociación le sirve... especialmente para no- sotros, como nosotros somos trabajadores informales, ¿verdad? No dependemos de ningún patrón, nosotros mis- mos es patrón, y... también es empleado, ¿verdad?” (En- trevista con Gregorio Villalba, 28.6.2001, Ciudad del Este). 2 La descripción del presidente de una asociación de cam- bistas después de haber sido reconocidos por el Banco Central del Paraguay para operar con cambio, era la si- guiente: “los trabajadores cambistas de la calle, no sola- mente de acá sino de todo el país, dejó de ser un trabaja- dor informal y entonces pasa a ser un trabajador formal, porque estamos tributando al Estado paraguayo” (Entre- vista con Mario Sánchez, 15.5.2001, Ciudad del Este). 3 La primera versión de este trabajo fue presentada en el VIII Congresso Argentino de Antropologia Social, 2006 (Salta, Argentina) y retrabajada para el XXVII Internatio- nal LASA Congress, 2007 (Montreal, Canada). Muchas de las ideas han sido discutidas con los colegas del Núcleo de Pesquisas em Cultura e Economia (NuCEC), en parti- cular en el curso Economias Populares e Formas de Go- verno, dictado en 2012 en el PPGSA y el PPGAS de la UFRJ, junto a Federico Neiburg, Eugenia Motta y Daniel Hirata. Desde 2013, con Daniel Hirata estamos trabajando las dis- cusiones sobre informalidad a partir de los procesos de formalización y escribiendo la segunda parte de este ar- tículo: Os caminhos das formalizações. La bibliografía sobre informalidad es inmensa y no es objetivo de este artículo hacer una revisión de ella. En el caso brasileño, merecen ser destacados los trabajos de Luis Antonio Ma- chado da Silva – algunos de los cuales serán abordados en este texto –, Claudio Salvadori Dedecca, Maria Cristina Cacciamali Souza, Jacob Lima, y Roberto Véras de Olivei- ra y sus grupos de investigación. Alexandre Barbosa (2011) aborda vários elementos aquí desarrollados, insertos en el contexto más amplio de las discusiones en Brasil. Adal- berto Cardoso (2016) aborda de una forma novedosa los procesos de formalización que estamos analizando com Daniel Hirata. os encantados nas festas do divino: estrutura e antiestrutura

810

4 La relación entre ideas económicas eruditas y ordinarias es uno de los ejes de investigación del Núcleo de Pesqui- sas em Cultura e Economia (NuCEC) del PPGAS/Museu Nacional y del PPGSA/IFCS de la Universidad Federal de Rio de Janeiro. Ver, por ejemplo, Pantaleón, 2004; Neiburg, 2006; Braum 2009; Motta, 2010 y 2019; Onto, 2014 y 2016; Rabossi, 2018. El interés en este eje de investigación tiene diversas inspiraciones. En mi caso, deriva de la confluen- cia de los estudios sobre dispositivos y artes de gobierno (Foucault, 2006), sobre cuantificación (Desrosières, 1993; Porter, 1995) y, en particular, sobre la relación entre co- nocimiento económico y economía (Callon, 1998; Mitchel, 2005). 5 El resto de las citas en idioma extranjero fueron traduci- das por el autor. 6 En el Jornal of Modern African Studies, 11/1, p. 61-89. El tex- to original aún no ha sido traducido al portugués. 7 El caso de Atinga, un ex-soldado que por unos años man- tiene un bar (Hart, 1973: 155-156). 8 Por ejemplo, propondrá un abordaje de input-output sobre el flujo de ingresos formales e informales para analizar el peso relativo de cada uno de ellos y el grado de preponde- rancia en distintos sectores sociales (Hart, 1973: 159). 9 Después de distanciarse de la discusión sobre informalidad, el autor volverá a discutir el concepto en diversas ocasio- nes, recuperando el contexto de su formulación, las inspi- raciones intelectuales que lo influenciaron y las transfor- ago., 2019 ago., – maciones ocurridas en los últimos tiempos que han mo- dificado la agenda de la discusión y el alcance del concep- to. Ver Hart, 1992, 2006 y 2015. 451, mai. 451, – 10 El relato que sigue está basado en el texto de Paul Ban- gasser (2000) sobre la historia institucional del concepto de informalidad en la OIT. Como miembro de dicha orga- nización, el relato de Paul Bangasser es extremamente interesante, combinando un análisis institucional con su experiencia personal y la de sus colegas de trabajo. Para una visión comprensiva de la historia intelectual de las Naciones Unidas en general y de la OIT en particular, ver Ward, 2004; Emmerij, Jolly & Weiss, 2005; Jolly, Emmerij & Weiss, 2005; Jolly, 2006. sociol. antropol. | rio de janeiro, v.09.02: 431 | rio de janeiro, antropol. sociol. artigo | joão leal

811

11 La OIT emerge de los acuerdos internacionales posteriores a la Primera Guerra Mundial. En 1919 se crea la constitu- ción de la OIT, anexada al Tratado de Versalles como su Parte XIII. Fue formada con el objetivo de abordar las con- diciones y los problemas del trabajo, a través de conven- ciones y sugestiones y de la estandarización de las condi- ciones de trabajo. Posee una estructura tripartita (patro- nes, trabajadores y gobernantes). Cada país – de los 185 que son miembros – está representado por dos miembros del gobierno, un miembro de las organizaciones de em- pleadores y un representante de las organizaciones de trabajadores. En 1946 fue incorporada dentro de la Orga- nización de las Naciones Unidas, siendo su primera agen- cia especializada. Sobre la trayectoria de la OIT em Brasil, ver Barroso, 2017. 12 Ambas secciones pertenecen al Departamento para el De- sarrollo de Recursos Humanos, siendo las piezas princi- pales en la cooperación ofrecida en aquel entonces por la OIT. Esos dos programas crecen enormemente con los recursos del recién creado PNUD. 13 El clásico de esa formulación es el libro de Walt Rostow (1960) sobre las etapas del crecimiento económico. 14 Paul Bangasser (2000: 10), miembro de la OIT, señala a propósito de las posiciones que estaban en disputa: “To be sure, this ‘residual self-regulating labour market’ thesis ne- ver sat well with much of the ILO community, both within the Office and among the constituents (especially on the workers group side). But it was a widely held view among respectable mainstream economists; and economists tended to dominate the development debate. The WEP was, in effect, a direct attack on this conventional economists’ wisdom. The basic WEP counter thesis was that employment should be seen as a central compo- nent of development efforts, not as an eventual result of them. It should figure prominently both at the planning as well as the implementation stages and at the macro as well as the micro levels”. 15 Para una descripción de la conferencia, ver O’Brien, 1972. 16 Este relato está basado en un intercambio con Keith Hart a raíz de mi pregunta sobre la inconsistencia entre el re- conocimiento público de su persona como autor del con- os encantados nas festas do divino: estrutura e antiestrutura

812

cepto y la indicación en el informe de Kenia de la OIT de que el concepto habría sido forjado por miembros del staff de la Universidad de Nairobi. Narrar el episodio desde nuestro dialogo me permitió iluminar una cuestión que fue tornándose para mi en una intriga: ¿por qué la auto- ría del concepto de informalidad aparece recurrentemen- te ratificada en la introducción al tema? Un trabajo más profundo, obviamente, necesitaría algunas entrevistas y un trabajo de archivo sistemático. 17 Comunicación personal. 15 septiembre 2006. 18 Ver por ejemplo Rempel & House, 1978; Peattie, 1987. 19 En “Market and State after the Cold War: the informal economy reconsidered”, Hart (1992) interpreta el concep- to de “economía informal” emergiendo en el África pos- colonial durante los 1960s para denotar un aspecto de la relación entre el Estado y el mercado. State capitalism – capitalismo estatal – es el concepto clave utilizado por el autor para dar cuenta de la centralidad del Estado – y no del mercado – en la reproducción de las relaciones capi- talistas de producción durante el siglo XX, producto de la convergencia de la burocracia estatal y el capitalismo in- dustrial corporativo. 20 Para una re-evaluación de lo realizado en los 20 años pos- teriores a la presentación de The underground economy in United States and abroad, ver Tanzi, 1999. Vito Tanzi fue por 30 años director del Departamento de Asuntos Fisca- les del Fondo Monetario Internacional, siendo considera- ago., 2019 ago.,

– do uno de los creadores de los principios de la tributación

moderna. 21 Un estado de la cuestión a inicio de los 1980 desde la 451, mai. 451, – óptica de la OIT, está en ILO, 1984. 22 Tales como las misiones de Irán (ILO, 1972b) y Filipinas (ILO, 1974). 23 ¿Por qué la apuesta a los mismos remedios a pesar de la falta de resultados? Otra vez, las palabras de Paul Ban- gasser son iluminadoras. Según él, el funcionamiento y la estructura de la OIT nos permiten entender un poco el porqué de esa permanencia. Cada dos años hay que for- mular una programación y un presupuesto, aparentemen- te un proceso técnico orientado por las demandas de los sociol. antropol. | rio de janeiro, v.09.02: 431 | rio de janeiro, antropol. sociol. artigo | joão leal

813

miembros constituyentes. Cada oficina hace un pedido que, de hecho, son tres: uno con los gastos actuales, otro con más y otro con menos (esos pedidos son llamados de shopping lists). El contenido técnico es elaborado por el staff y por la estructura organizacional que ya estaba en base a la distribución de recursos existentes. Cuando los Estados miembros votan (seis meses antes que expire el actual presupuesto), hay poco margen de maniobra para concebir alternativas (Bangasser, 2000: 14-15). 24 El Proyecto Interdepartamental 1994-1995 de la OIT sobre el sector informal estuvo centrado en mejorar la produc- tividad de las actividades de ese sector, luchar por la pro- tección social adecuada a los estándares internacionales para trabajadores y productores, y promover y reforzar sus organizaciones e instituciones. Para ello, realizaron cursos de entrenamiento y seminarios en tres ciudades: Bogotá, Dar es Salaam y Manila. 25 En dicho reporte se establece la unidad económica (em- presa) como medida más apropiada para definir al sector informal (no el trabajador). 26 La tesis de maestria de Luiz Antonio Machado da Silva fue recientemente publicada en el libro O mundo popular: trabalho e condições de vida, que reúne los trabajos de so- ciología económica del autor, organizado por Mariana Cavalcanti, Eugênia Motta e Marcella Araujo (Machado da Silva, 2018). 27 Para seguir la discusión, deberíamos analizar el desem- barque del concepto de informalidad en el Banco Mundial en los años 1990 y la importancia que adquirió en la últi- ma década en dicha institución. Desembarque y expan- sión paralelos al cambio de referente normativo que pau- ta las discusiones sobre informalidad y los procesos de formalización: del trabajo a la empresa. Junto con Daniel Hirata, desarrollamos una primera aproximación y des- cripción de esos referentes en el texto “Comércio ambu- lante no Rio de Janeiro: entre formalizações e a informa- lidade” (Hirata & Rabossi, 2017). os encantados nas festas do divino: estrutura e antiestrutura

814

Referencias bibliográficas

Bangasser, Paul E. (2000). The ILO and the informal sector: an institutional history. Employment Paper, 9. Barbosa, Alexandre de Freitas. (2011). O conceito de tra- balho informal, sua evolução histórica e o potencial ana- lítico atual: para não jogar a criança fora junto com a água do banho. In: Oliveira, Roberto Véras de; Gomes, Darcilene & Targino, Ivan (orgs.). Marchas e contramarchas da informalidade do trabalho: das origens às novas abordagens. João Pessoa: Editora da UFPB, p. 105-159. Barroso, Márcia Regina Castro (2017). A OIT e o mundo do trabalho no Brasil: trajetória e ações institucionais em períodos democráticos. Tese de Doutorado. PPGSA/Universidade Fe- deral do Rio de Janeiro. Braum, Pedro. (2009). O estado da ciência e a ciência do Es- tado: A FGV e a configuração do campo das ciências econômicas no Brasil. Dissertação de Mestrado. PPGAS/Universidade Federal do Rio de Janeiro. Callon, Michel. (1998). Introduction: The embeddedness of economic markets in economics. In: Callon, Michel (org.). The laws of the markets. Oxford: Blackwell Publishers, p. 1-57. Cardoso, Adalberto. (2016). Informality and public policies to overcome it. The case of Brazil. Sociologia & Antropologia, 6/2, p. 321-349. Cavalcanti, Mariana. (2018). O cotidiano do trabalho na ago., 2019 ago.,

– cidade. In: Machado da Silva, Luiz Antonio. O mundo po-

pular: trabalho e condições de vida. Rio de Janeiro: Papéis Selvagens, p. 77-82. 451, mai. 451, – Desrosières, Alain. (1993). La politique des grandes nombres. Paris: Éditions Découverte. Emmerij, Louis; Jolly, Richard & Weiss, Thomas G. (2005). Economic and social thinking at the UN in historical pers- pective. Development and Change, 36/2, p. 211-235. Feige, Edgar L. (1990). Defining and estimating under- ground and informal economies: the new institutional economics approach. World Development, 18/7, p. 989-1002. Feige, Edgar L. (1981). The UK’s unobserved economy: a preliminary assessment. Economic Affairs, 1/4, p. 205-212. sociol. antropol. | rio de janeiro, v.09.02: 431 | rio de janeiro, antropol. sociol. artigo | joão leal

815

Feige, Edgar L. (1979). How big is the irregular economy? Challenge, 12, p. 5-13. Foucault, Michel. (2006) [1978]. Seguridad, territorio, pobla- ción: Curso en el College de France: 1977-1978. Buenos Aires: Fondo de Cultura Económica. Gutmann, Peter. (1977). The subterranean economy. Fi- nancial Analyst Journal, 35, p. 26-28. Hart, Keith. (2015). How the informal economy took over the world. In: Mörtenböck, Peter et al. (eds.). Informal mar- ket worlds reader. Amsterdam: NAI010 Publishers, p. 33-44. Hart, Keith. (2006). IE + IT = ED? Is informal economy plus informational technology a path towards economic de- mocracy? Workshop Clusters, Network Organization and the Informal Economy (Serie Rethinking Economies), Bo- logna. Hart, Keith. (1992). Market and State after the Cold War: the informal economy reconsidered. In: Roy Dilley (ed.). Contesting markets: analyses or ideology, discourse and prac- tice. Edinburg: Edinburg University Press, p. 214-227. Hart, Keith. (1987). Informal economy. The New Palgrave − A Dictionary of Economic Theory and Doctrine, v. 2. Hart, Keith. (1973). Informal income opportunities and urban employment in Ghana. Journal of Modern African Studies, 11/1, p. 61-89. Hirata, Daniel & Rabossi, Fernando. (2017). Comércio am- bulante no Rio de Janeiro: entre formalizações e a infor- malidade. Estudo Estratégico, 13. ILO. (2013). Measuring informality: a statistical manual on the informal sector and informal employment. Geneva: ILO Publi- cations. ILO. (1984). Urbanisation, informal sector and employment: a progress report on research, advisory services and technical cooperation. Geneva: ILO World Employment Programme. ILO. (1974). Sharing in development: a programme of employ- ment, equity and growth for the Philippines. Geneva: ILO Pu- blications. ILO. (1972a). Employment, incomes and equity: a strategy for increasing productive employment in Kenya. Geneva: ILO Pu- blications. os encantados nas festas do divino: estrutura e antiestrutura

816

ILO. (1972b). Employment and income policies for Iran. Gene- va: ILO Publications. Jolly, Richard. (2006). Hans Singer: the gentle giant. Memo- rial lecture presented in Geneva, International Labor Or- ganization. Jolly, Richard; Emmerij, Louis & Weiss, Thoms G. (2005). The power of UN ideas: lessons from the first 60 years. New York: United Nations Intellectual History Project. Machado da Silva, Luiz Antonio. (2018). O mundo popular: trabalho e condições de vida. Org. Mariana Cavalcanti, Eu- gênia Motta & Marcella Araujo. Rio de Janeiro: Papéis Selvagens. Machado da Silva, Luiz Antonio. (1971). Mercados metropo- litanos de trabalho manual e marginalidade. Dissertação de Mestrado. PPGAS/Universidad Federal de Rio de Janeiro. Mitchell, Timothy. (2005). The work of economics: how a discipline makes its world. European Journal of Sociology, 46, p. 297-320. Motta, Eugênia. (2019). Resistência aos números: a favela como realidade (in)quantificável. Mana, 25/1, p. 72-94. Motta, Eugênia. (2010). Trajetórias e transformações no mun- do da economia solidária. Tese de Doutorado. PPGAS/Uni- versidade Federal do Rio de Janeiro. Motta, Eugênia et al. (2014). Foreword – Ethnographies of Economy/ics: Making and Reading. Vibrant – Virtual Bra- zilian Anthropology, 11/1, p. 50-55. ago., 2019 ago., – Neiburg, Guillermo F. (2006). Inflation: economists and economic cultures in Brazil and Argentina. Comparative Study of Society and History, 48/3, p. 604-633. 451, mai. 451, – O’Brien, Rita Cruise. (1972). Urban unemployment in Afri- ca. The Journal of Modern African Studies, 10/1, p. 109-112. Onto, Gustavo Gomes. (2016). O mercado como um con- texto: delimitando o problema concorrencial de uma aqui- sição empresarial. Horizontes Antropológicos, 22, p. 155-184. Onto, Gustavo Gomes. (2014). The market as lived expe- rience: on the knowledge of markets in antitrust analysis. Vibrant, Florianópolis, 11, p. 159-190. Pantaleón, Jorge F. (2004). Uma nação sob medida: Estatísti- cas, economia e planificação na Argentina (1918-1952). Tese sociol. antropol. | rio de janeiro, v.09.02: 431 | rio de janeiro, antropol. sociol. artigo | joão leal

817

de Doutorado. PPGAS/Universidade Federal do Rio de Ja- neiro. Peattie, Lisa. (1987). An idea in good currency and how it grew: the informal sector. World Development, 15/7, p. 851- 860. Porter, Theodore. (1995). Trust in numbers: the pursuit of objectivity in science and public life. Princeton: Princeton University Press. Rabossi, Fernando. (2018). Reaching the “Bottom of the pyramid”: entrepreneurial strategies at the margins of Brazil. Cartografie Sociali: Rivista di Sociologia e Scienze Uma- ne, 6, p. 57-72. Rabossi, Fernando. (2004). Nas ruas de Ciudad del Este: vidas e vendas num mercado de fronteira. Tese de Doutorado. PPGAS/Universidade Federal de Rio de Janeiro. Rempel, Henry & House, William J. (1978). The Kenya em- ployment problem: an analysis of the modern sector labour market. Nairobi: Oxford University Press. Rostow, Walt Withman. (1960). The stages of economic growth: a non-communist manifesto. Cambridge: Cambridge University Press, Tanzi, Vito. (1999). Uses and abuses of estimates of the underground economy. The Economic Journal, 109, p. 338- 347. Tanzi, Vito (ed.). (1982). The underground economy in United States and abroad. Lexington, Mass.: Lexington Book. Ward, Michael. (2004). Quantifying the world: UN ideas and statistics. Bloomington/Indianapolis: Indiana University Press. os encantados nas festas do divino: estrutura e antiestrutura

818

OS CAMINHOS DA INFORMALIDADE Resumo Palavras-chave Desde a década de 1970, uma das chaves de análise das Informalidad; economias dos chamados países em desenvolvimento tem OIT; sido o conceito de informalidade. A adoção desse conceito historia conceptual; por organismos internacionais e sua utilização para dar trayectoria institucional. conta dos processos econômicos e sociais desses países é um campo frutífero para observar os processos de concei- tualização, medição e construção de determinados fenô- menos/objetos como focos de políticas. Surgido no campo da antropologia e do desenvolvimento, a vida social do con- ceito de informalidade está vinculada a sua circulação por diversas disciplinas. O trabalho proposto apresenta um ba- lanço do desenvolvimento do conceito de informalidade, seu contexto de surgimento, sua incorporação a agendas de diversas agências internacionais e as tentativas atuais de novas formulações que deem conta do campo anteriormen- te retratado pelo conceito. O caso da informalidade permi- te refletir sobre a relação entre diversas linguagens disci- plinares e a economia como disciplina, bem como sobre a ampliação dessas linguagens para abordar diversos aspec- tos do mundo contemporâneo.

THE PATHS TO INFORMALITY Abstract Keywords Since the 1970s, one of the key concepts used to analyse the Informality; economies of so-called developing countries has been infor- ILO; mality. The adoption of this concept by international organ- conceptual history; ago., 2019 ago.,

– izations and its use to account for the economic and social institutional trajectory.

processes of these countries is an ideal field in which to observe how certain phenomena are conceptualized, meas- 451, mai. 451,

– ured and constructed as focal policy issues. Emergent from the field of anthropology and development, the social life of the concept of informality is linked to its circulation through various disciplines. In this paper, I present the concept of informality, the context of its emergence, its incorporation into the agendas of various international agencies, and the current attempts to re-formulate it. The case of informality presents interesting aspects to reflect on the relationship between various disciplinary languages ​​and economics as a discipline, as well as the expansion of these languages to​​ address various facets of the contemporary world. sociol. antropol. | rio de janeiro, v.09.02: 431 | rio de janeiro, antropol. sociol. http://dx.doi.org/10.1590/2238-38752019v925 article | ruy braga

1 University of Oslo, Department of Culture Studies and 819 Oriental Languages, Oslo, Norway [email protected] https://orcid.org/0000-0003-1072-8823

11 University of Bonn, Bonn, Germany Anna L. Ahlers I [email protected] Il https://orcid.org/0000-0002-4028-0970 Rudolf Stichweh

The bipolarity of democracy and authoritarianism: value patterns, inclusion roles and forms of internal differentiation of political systems

Introduction A Recession of Democracies? There are conflicting signals concerning the global political landscape in the twenty-first century. When looking at the vehement political protests seen worldwide since 2000 and especially in the early 2010s, most importantly the ‘colour revolutions’ in the successor states of the former Soviet Union, the Arab Spring revolts, mass rallies in Brazil and Chile, clashes in Turkey, umbrella pro-

dec., 2019 dec., tests in Hong Kong – not a few observers came to diagnose a ‘fourth wave of –

democratization.’1 Only a few years later, however, as we finalise this manuscript in October 2019, the latest rounds of political protest are found not to have 846, sep. 846, – resulted in any notable increase in democratic political regimes worldwide. On the contrary, the international media, as well as the social science research community, are diagnosing a new ‘wave of authoritarianism.’ This seems to be symbolized by the return to a highly personalized and uncompromising type of autocracy in countries such as Venezuela, Russia, Turkey and China, the recur- rence and astonishing success of nationalist populist governments in Europe and lately the Americas, the authoritarian-leaning re-emergence of one-party dominance in Japan, and the full transformation back to authoritarianism after a relatively short democratic period of countries of the so-called ‘third wave,’ such as Egypt, Kenya, Thailand and the Philippines. Some major international political barometers have even come to note a ‘recession of democracy.’2 sociol. antropol. | rio de janeiro, v.09.03: 819 | rio de janeiro, antropol. sociol. a return of class struggle without class?

820

During the 1970s and 1980s, more than 30 countries shifted from authoritarian to democratic political systems. In recent years, the post-1970s wave of demo- cratisation has slowed or been reversed. […] We expect that political upheavals will affect other authoritarian regimes in future. These may not all be success- ful and not all will necessarily take the form of mass popular uprisings. The outlook for democratic transition is, however, uncertain. As in recent years, the- re are historical examples of major reversals of democratisation. […] Democracy’s proponents have become increasingly circumspect about the prospects of a fur- ther wave of democratisation (Economist Intelligence Unit, 2014: 15-16.). In addition, several bestselling books now talk about the ‘death of democracy.’” (Levitsky & Ziblatt, 2018; Runciman, 2018).

Bipolarity: Trends in the Classification of Political Regimes? Besides the ups and downs of democracies (and authoritarian regimes), an- other regime discontinuity can be observed. There are no longer any totalitar- ian regimes (North Korea may be the exception), and socialism and communism no longer really matter as genuine terms for political regimes, as the discussion about their applicability to the largest remaining example, the one-party rule of the Communist Party in China, strikingly illustrates.3 It is this discontinu- ity that gives a new prominence to the bipolar structure of democracy and authoritarianism on which the argument of this paper centres. Interestingly enough, regime differences alone no longer seem to constitute a life and death issue in international relations and have mostly been replaced by other cleav- ages and conflicts. Especially since the end of the Cold War and its strict ide- ological bifurcations from which cooperation or conflict followed quasi ‘de- ductively,’ binational and multinational cooperation across regime types have become more common in recent decades. In particular, issue-based interna- tional cooperation and global governance, most prominently in the field of nuclear non-proliferation and climate change mitigation, seem possible with- aug., 2019 aug.,

– out much fuss about the regime labels of the systems involved. Classification

becomes very relevant, however, when governments of liberal democratic coun- tries seek reliability and predictability in cooperation, as well as legitimation 493, may. 493,

– for the latter from their publics. This recently became vividly apparent in Eu- rope’s ‘refugee crisis,’ when affected publics discussed whether it is appropri- ate to collaborate with – or even become dependent on – non-democratic ‘des- potic’ regimes or ‘failing states’ in the Bosporus and North-Africa in trying to stem the influx of migrants to their countries. At the same time, there seems to be a resurgence of scholarly interest in the description and analysis of political regimes. Beyond arguing for viable classificatory schemes and the most suitable forms of tracing transformation(s), intellectual discussions have centred especially on regime qualities – that is, the effects, or even efficiency, of certain modes of rule. Notwithstanding con- cerns about human rights records, the performance sheets of some of the re- sociol. antropol. | rio de janeiro, v.09.02: 469 | rio de janeiro, antropol. sociol. article | ruy braga

821

silient modern autocracies – most notably China, Singapore and perhaps Sau- di Arabia – have led some analysts to discern ‘models’ of authoritarian effec- tiveness. Diagnoses such as ‘developmental autocracy’ or ‘authoritarian capi- talism,’4 the ‘Beijing Consensus,’ (Ramo, 2004)5 or the successful ‘segmented clientelism’ of rentier states (Hertog, 2011) reflect the observation that some goals may be (better) achieved by authoritarianism. Especially when it comes to issue-based analyses, the performance ‘advantages’ of different regime types, including some very specific structures and procedures of their political sys- tems, are held against each other, as in the ‘democratic environmentalism’ versus ‘authoritarian environmentalism’ debate.6 This means that, following the collapse of the capitalism/socialism divide, there is a certain inescapabil- ity of the democracy/autocracy bifurcation – as long as no alternative distinc- tion arises. Therefore, it is established as the most important distinction in observing structures of political decision making. And it is used by both aca- demic observers and political actors themselves, acquiring a significant se- mantic complexity.

Paradoxes of Regime Bipolarity Internal to and b eyond the Nation State Conventional studies in comparative political science map the diverse land- scape of regimes found in today’s global society. Their large and meticulous data sets are a treasure trove and, among other things, have helped to throw into question the almost teleological undertone or ‘democracy bias’ of some earlier political science research.7 But is this country-to-country comparison really the ultimate diagnostic instrument to understand macro-political de- velopments? Do regime characteristics accumulated and identified at the na- tion state level help us understand all the traits of political evolution in world society?8 By focusing on national-level regime features, some dynamics and structures may go unnoticed. It is obvious that the bipolarity of democratic vs. authoritarian structures and processes is not only relevant on the level of the national-territorial states. There may exist authoritarian enclaves in an oth- erwise democratic polity and islands of democracy in an authoritarian environ- ment. This reflects a general feature of sociological differentiation theory. As soon as a system produces a hierarchy of levels of horizontally differentiated subsystems (national states and regional states and local government and village polities) there are no a priori theoretical reasons why relevant proper- ties should only exist on one of these levels. One has to study the similarities and discontinuities across levels and the intra-level oscillations between the two poles of the bipolar distinction democracy and autocracy. Interesting cases for study are the oft-lamented ‘democracy deficit’ in European Union politics at supra state level,9 or the brief dominion of the so-called Islamic State (ISIL) whose rule and public infrastruc- ture and rule temporarily stretched across the territories of several different a return of class struggle without class?

822

states (Birke, 2015), the authoritarian enclaves identified by political scientists in the ‘deep South’ of the otherwise democratic United States and in Argen- tina and Mexico (Mickey, 2015; Giraudy, 2015), the outsourcing of decision mak- ing on core policies in many democracies to non-majoritarian institutions such as central banks or courts,10 the retreat of parliaments in exemplary Scandi- navian democracies as they cede to decision making informed by technocrat- ic committees of experts,11 the global Occupy movement and its claims to act (sometimes violently) on behalf of the majority of the world population, and the many localized or national protest movements in the OECD world (post- Brexit, post-Trump) which act on the basis of the same claims and obviously see no means – and sometimes may have no interest – to push for their de- mands via formal democratic institutions (see Roberts, 2012), the recent admit- tance of women to participate in elections and run for office in Saudi Arabia’s municipal elections (see Al Jazeera, 2015), or finally the village-level demo- cratic elections in present-day China (see Schubert & Ahlers, 2012), to name just a few paradoxes and discontinuities. All these examples point to the dy- namics built into the distinction of democracy and authoritarianism, which seems to inform oscillations between these two poles of political spaces. To the divergences across levels and the oscillations between demo- cratic and autocratic tendencies internal to political units we have to add a third form of structural ambivalence built into political systems. It may be the case that political systems are always built from institutions some of which have an inherent democratic or authoritarian character and which then func- tion as components in systems with different labels. There is the institution of the (directly elected) president in a democracy who has often been compared to a monarch (Washington, De Gaulle). There is the military which has mostly been based on authoritative decisions. A bureaucracy is another institution which is not easily democratised. On the other side of this distinction of dem- aug., 2019 aug., – ocratic and autocratic institutions we locate collegial structures of decision making and the parliament as a deliberative institution. 493, may. 493,

– A Novel Analytical Approach to the Bipolarity of Democracy and Authoritarianism In this article we try to move from a purely descriptive understanding of democ- racies and autocracies to an analytical and genetical interpretation. Therefore, we argue for an approach to the bipolarity of political regimes that rests on a sociological theory of functional differentiation and political inclusion. There are three parts to our argument. First, we base our analysis on the hypothesis of a divergent stance towards societal values and value formation present in different po- litical systems. And this divergent stance towards values is related to different relations between polities and the other function systems in society which clearly distinguish between democracies and autocracies. Second, we note that sociol. antropol. | rio de janeiro, v.09.02: 469 | rio de janeiro, antropol. sociol. article | ruy braga

823

independent of the recurrent “waves of democratization and authoritarianism,” there is an underlying theme and tendency in modern society: the relevance of individual inclusion into forms of collectively binding decision making. Put even more succinctly, we propose that there is an inclusion imperative that is increasingly observable in self-descriptions and institutional configurations of almost all political regimes. While democracy can be regarded as the ideal type of univer- sal political inclusion, we argue that under conditions of modernity, global com- plexity and mutual comparison, even non-democratic political systems have come under increasing pressure to allow for the political inclusion of individu- als. A major question for modern social theory is where exactly this strong im- perative of individual inclusion in modern society comes from. Since these de- velopments are not sufficiently visible when looking solely at the macro patch- work of country units on a global map, we conclude by, thirdly, suggesting an approach towards embedding and deepening both aforementioned observations. Based on an interpretation of political systems informed by sociological systems theory, we propose and test explorations of the ways in which the challenges of the inclusion imperative are dealt with at varying vertical levels of the polity as a function system12 and in its different horizontal subsystems. We argue that such an approach, by fully taking into account the internal differentiation of contem- porary political systems, will provide more accurate understandings of the com- ponents of democracy and autocracy present in political systems than those achieved by an analysis that remains limited to the nation state level.

I. Value Patterns of Democratic and Authoritarian Regimes Among the myriad attempts to categorize political regimes, the most common catalogues are based on a scale oriented to an ideal type, with the most ‘desir- able’ regimes, the democracies, located at one end of the continuum, and the latecomers, failing, defective and yet-to-be transformed non-democracies at the other. Under these premises, only a ‘negative’ understanding of authori- tarianism exists, defined by the properties that authoritarian regimes lack. Most typologies follow a strictly institutionalist approach and concentrate on aspects such as free and fair elections, freedom of speech, and rule of law, as observable at the national level.13 Depending on the number of variables in- cluded, these catalogues often also list numerous subcategories of regime types ‘with attributes’ (e.g. ‘competitive authoritarianism,’ ‘electoral authoritarianism,’ ‘defective democracies,’ ‘illiberal democracy,’ or simply ‘hybrid regimes’) (Lev- itsky & Way, 2010; Schedler, 2006; Merkel, 2004; Zakaria, 1997; Diamond, 2002). While the analysis of authoritarian regimes is now in vogue again and the resilience of many of these regimes is increasingly acknowledged, most of these indices nonetheless seem to be driven by the teleological expectation that, in the long run, all political entities will eventually converge on one of the forms of democracy. a return of class struggle without class?

824

We agree with the observation that in today’s world society we can basically distinguish between democratic and non-democratic/authoritarian political regimes. But for us authoritarianism is not a residue, nor a negative category primarily defined by those elements that are absent. It is instead a distinct category of political regimes. Democracy and authoritarianism thus become the two poles on a continuum of political alternatives. Notwithstand- ing the many insights realized by existing strands of the literature, we shall not try to delimit our contribution by joining in the common endeavour to label and count regimes quantitatively. Instead, we suggest qualitative distinc- tions between these two main regime types that are capable of grasping what is observed in country analyses, as well as phenomena perceived on trans-state and sub-state levels in the formation of ‘polities.’14 At the same time, we look to base our approach on a strictly descriptive stance and to refrain from nor- mative judgments such as ‘progress’ or ‘improvement.’ This does not mean, however, that we do not see certain trends and even commonalities within and across regime boundaries, as the section II of this article will elaborate in particular. We believe that the political landscape of regimes, such as observable today, can be apprehended and explained by the different choices taken on the path of functional differentiation. Functional differentiation means that the closed social collectivities of pre-modern society, such as estate, caste and class, are pushed back by comparatively open communication systems, such as law, religion, education, the polity and the economy in modern society – communication systems created around specific topics and complexes of mean- ings. Whereas in pre-modern society each individual person was a member of one and just one of these stratified social collectivities, and the individual’s integration into a collectivity of this type defined and limited all the participa- tions and activities available to this person, the modern situation is complete- aug., 2019 aug., – ly different. Every person is now partially involved in the operations of many (even potentially all) of the function systems of society. As one of these mod- ern social systems, the polity holds ready the capacity to take collectively bind- 493, may. 493,

– ing decisions (Luhmann, 2002). In this context, democratic and authoritarian regimes should be regarded as alternative options within the spectrum of po- litical structures that enable collective decisions to be taken. As will be ex- plained here and in the following section, in modern political systems the main distinctions characterizing regimes concern differences in the value pat- terns and inclusion formulas that inform this decision making.

Contingent and Non-Contingent Values As the first variable underlying a distinction between democracy and autoc- racy, value patterns point to where and how values are respectively located and created in a society.15 Whereas in an authoritarian regime policy making is ori- sociol. antropol. | rio de janeiro, v.09.02: 469 | rio de janeiro, antropol. sociol. article | ruy braga

825

ented towards external values of diverse societal origins (‘heterogenesis’), democracies create values within the political process itself (‘autopoiesis’). This implies that in the most fundamental understanding of what a democracy means, every possible issue can be subjected to an open-ended decision-making process on the input side. While for an autocracy values mostly function as premises and no doubts can arise regarding the validity and bindingness of these values, democracies function in a different way. Democratic political processes are observers of changes in societal values and, for them, it is a matter of continuous political deliberation if and how to translate value changes into legislative and political initiatives. Sometimes there are decisions and referenda that explicitly decree on values. In this respect, Switzerland might be regarded as a relatively pointed example of a political system in which national direct plebiscitary decision making (referenda) can even overrule internationally ratified human rights, as was probably the case with the ‘minaret ban’ incorporated into the Swiss constitu- tion in 2009 following such a referendum. This decision may conflict with in- ternational human rights treaties signed and ratified by Switzerland and we do not yet know how the Federal Supreme Court of Switzerland (Bundesgericht, Tribunal Fédéral) in Lausanne would adjudicate were it asked to decide on a building permission for a future minaret. What this example shows, moreover, is that there may be a kind of oscillatory movement observable in democratic political systems: in processes of endogenous value production, a political system can overstep its bounds and encroach on the terrain of another function system. In other cases, the self-limitation of democratic systems is a remarkable property that they often display: accepting the autonomy of other societal systems and even respecting their functional primacy on some issues – for example, involving the economy, law, the system of science or higher education. Then there is the other extreme: cases in which the openness of a democratic system to any value statement whatsoever is so strong that this liberality endangers its own survival – cases in which a democracy gives its adversaries such a free rein that it runs the risk of these enemies taking over and abolishing the same system to which they owe their existence and the possibility of articulation.16 At the authoritarian end of the spectrum, we characteristically encoun- ter values that are external to the political system – i.e. they have not been created within it – and which steer the political process towards achieving a predetermined, or at least pre-envisioned, goal. Such non-contingent values often also entail a claim to be able to control ‘the future’ or the conditions under which decision making will have to happen at any given later moment – an aspect that is usually absent in political systems without exogenous values (Luhmann, 2002: 140-169). These external values may be religious in kind or may be based on non-religious traditional/moral principles. As a further vari- ant of values, one could think of forms of knowledge that are perceived as a return of class struggle without class?

826

important and non-contingent in political processes and as indispensable for the political system’s adaptability. Available knowledge then decides among political alternatives, resulting in expertocracy or technocracy as a regime type. Finally, regimes may be based on a specific sociopolitical ideology, crucially pre-structuring responses to societal problems, as in socialist/communist/fas- cist one-party-regimes, or perhaps in the ethno-nationalist regimes that may become more prominent in the near future (tendencies towards ethno-nation- alism can be discerned even in seemingly well-established democracies such as India and Israel). In all these cases of authoritarianism, the political process is not a value or an end in itself and is not appreciated because of the open- ness of its outcomes, but it is, rather, a means towards a preordained goal. Although values are different, at the level of the institutional structure and internal differentiation of the political system, modern authoritarian re- gimes often look quite like modern democratic regimes, featuring presidents, prime ministers, governors and mayors, governmental cabinets, parliaments, elections, parties, and associations. But these autocracies do not grant institu- tions and processes the ultimate autonomy to bring about just any imaginable result – a result that in a democracy will be accepted so long as it is produced by means of the representative and direct democratic processes institutional- ized within the respective system. The possibility of endogenous self-negation and ultimately even self-destruction – a potentiality and sometimes a reality in democratic regimes – is not inherently probable under authoritarianism. What is also striking is that in authoritarian contexts the political system is often seen to claim authority and primacy (on the basis of non-contingent values) over other function systems, by rejecting the ultimate validity and autonomy of the law, or the complete self-organization of science or other foundations of autonomous knowledge. This is readily observed among popu- lists, who typically refuse to consider the autonomous knowledge basis of aug., 2019 aug., – other function systems. For them, there exist solely political statements that use the legitimacy of science and law as a veil. Populists seem to know the language of political power alone (power being the ultimate resource to either 493, may. 493,

– acquire or lose) and often fail to understand that other people speak the lan- guages of other function systems and other value relevances.

Authoritarian and Democratic Value Patterns in the Light of Functional Differentiation Functional differentiation is the most important, most constitutive feature of modern world society. Yet, as just mentioned, an authoritarian political regime regularly aims to establish a hierarchy of function systems in society in which the political system reserves for itself the capacity to enforce its non-contingent values over the values of other systems and, above all, can interfere in the operations of these other systems. This presumed legitimacy of intervention sociol. antropol. | rio de janeiro, v.09.02: 469 | rio de janeiro, antropol. sociol. article | ruy braga

827

refers to even the most basic principles of inclusion in and exclusion from the other function systems. Democracy, therefore, may plausibly appear as the modern embodiment of the political system in a functionally differentiated society as it recognizes no values external to itself and, in this way, claims and realizes functional autonomy. Only the ultimate valuation of individuality is non-contingent, even for democracies, and this includes the valuation of human rights that protect and contextualize modern individuality. Furthermore, democracy includes and accepts the political collectivities to which all individuals belong, and which are specifically modern collectivities. ‘People’ and ‘nation’ are the major terms for these modern political collectivities. Once again, though, these two terms indicate a commonality between modern democracies and autocracies as both regime types claim to be based on them. What distinguishes democracy and authoritarianism is that the latter system often inverts the primacy between individuals and the respective collectivities. Authoritarian systems claim to be based on the will of the people (as a collective unit often speaking with one voice) whereas democracies must go back to the articulation of interests by each individual member of a political system. As these articulations of interests will be diverse, pluralism is another value inherent to a democracy – a value that is a consequence of individuality and a valuation normally not shared with authoritarianism. Beyond individuality (and the protective core of human rights around it) in a democracy only those values created by a polity’s members within its constitutive democratic political processes are considered to matter and to be values internal to the polity itself. Only so long as a political system is able to respond to stimuli stemming from its social environment – finding solutions that seem adequate in content and claiming the amount of time necessary to find these solutions, solely via its own processes – can we consider it a demo- cratic regime. It does not take much to imagine where and when alternatives could come into play. As soon as there is any value that functions as a precon- dition to the political process or is envisioned as the ultimate goal that cannot be altered during the political process, a tendency exists towards an authori- tarian mode of politics. This also explains why ‘populism’ should be considered an intermediary stage or a precursor to authoritarianism. Populism comes about as a shift from the self-organization of the decentralized and pluralistic democratic collectiv- ity towards claims to offer more immediate representation of the ‘will of the people’ made by a populist candidate and/or a populist movement. The latter claim to know the ‘will of the people’ and to be capable of immediately for- mulating this will. The populist usually comes from beyond the centre of the respective political system. He/she (for some reason, rarely a ‘she’) will often be an outsider and a newcomer unburdened by a history of compromises, pre- a return of class struggle without class?

828

vious erroneous decisions or less successful earlier stints in public office. The immediate appeal to the ‘will of the people’ will have to be confirmed, at least once, by an often unexpected success in a political election, and thus still represents a democratic takeover of power by the populist/populist movement. But after this first success, populism will still claim its immediate and unme- diated expression of the will of the people and will seek to avoid the possibil- ity of being disconfirmed by later electoral defeats by a disappointed populace. There is a tendency, therefore, to rig future elections – and this indicates the path that leads from populism arising within a democracy to an authoritarian regime coming on its heels. This may be combined with the rise of values that become non-contingent – for example, efficiency and effectiveness in tackling economic downturns or rampant corruption, or values such as national sov- ereignty, territorial integrity and domestic stability and security, religious or ethnic purity – values that then explain the ongoing claim of the populist/ populist party to political domination and representation of the people. Populism thus arises as a possibility when certain problems move to the centre of communicative attention and are perceived as so crucial that a) the time span usually needed to reach decisions through the established (self- organized) institutions of collective, fair and equal decision making appears to be too arduous and long, and b) the proposed solutions, or those that might be expected as outcomes of the usual policy-making process, are considered insufficient or inadequate. The offer of more immediate solutions based on other sources of authority (the populist party or strongman) and other types of expertise promising responsiveness to the perceived problems may then become attractive. This includes the fact that in the process of building an authoritarian regime, the decentralized, pluralistic, diversity-seeking search structures characteristic of a democracy become more or less completely dis- mantled (Stichweh, 2016b: 24-27). aug., 2019 aug., –

II. The Career of Individual Political Inclusion: The Different Con- stitution of Political Roles in Democratic and Authoritarian 493, may. 493,

– Political Systems We have pointed to formulas of political inclusion as another core element of our approach to capturing regime bifurcations. This will require some further explanation. The global emergence of democratic regime types is usually seen as equivalent to the emergence of a historically new order of inclusion in politics. As the equal inclusion of all individuals is the internally created, underlying principle for democratic political regimes, democracies appear as the almost ideal embodiment of modernity in politics. But does this coupling of democ- racy and universal political inclusion provide an argumentative basis for ex- pectations concerning the ultimate advance of democracy, as has been postu- lated in the more teleologically inclined research on democratization? Alter- sociol. antropol. | rio de janeiro, v.09.02: 469 | rio de janeiro, antropol. sociol. article | ruy braga

829

natively: how can we make sense of the resilience of alternatives to democ- racy? We argue that, as such, the imperative of individual inclusion must be re- garded as the most fundamental innovation – representative of modernity – that is the undertone of all political development in world society. While we would agree with the claim that a democratic regime, in theory, represents the full implementation of this idea, the career of individual inclusion is observable even across regime types. To trace this career, we suggest refining once again our definition of political inclusion, since it appears that both popular and scientific discourses lack a nonbiased perspective on – and a concept of – ‘po- litical inclusion’ that is not immediately used interchangeably with ‘democ- racy.’ Without evaluating their legitimacy or meaningfulness, it is first of all interesting and necessary to observe that there are not only differences in what we call inclusion formulas between different regime types, but also among regional variants of the ‘same’ regime type.17

Political Individuality and Political Inclusion Roles As is true for all the function systems of world society, the political system defines its own concept of individuality, and does so in a way specific to the function system, thereby producing semantics and variants of political indi- viduality that form the starting point for defining inclusion roles in different political regimes. Two major aspects of political individuality can be meaning- fully distinguished. Once more we are dealing with a bipolar structure that separates a mental pole from an action pole of political individuality.18 On the mental (experiential) side, the political individual is primarily seen as an ob- server who contributes interests and opinions to political processes. On the opposite side, which can meaningfully be described as the action aspect of political individuality, an individual is primarily an actor (endowed with agen- cy) contributing action and active engagements to the ongoing events consti- tutive of the political process. The early modern distinction of interests and virtue somehow reconstructs (and, of course, anticipates) this bipolarity of political individuality (see Pocock, 1975). This bipolarity of political individuality is matched by the two alterna- tive and complementary versions of political inclusion roles. In each function system of society we find public roles (which may also just be observer roles if there is a certain prevalence of passivity) and performance roles (roles for pro- ducers of system defining activities) (see Stichweh, 2016a). In some cases, only the public role is accessible to most of the individuals included in the respective function system. The health system is a good example: everybody will become a patient (meaning someone who has to be patient in suffering) at some point in his or her life, while most persons will never be a doctor (working to remedy the patient’s problems). This is clearly an asymmetrical role structure: there are those who do people-processing and those who are processed. Modern politics, especially in its democratic version, is quite dif- a return of class struggle without class?

830

ferent. The concept of democratic political individuality seems to demand the potentiality of inclusion in both types of political inclusion roles. Everybody is an observer of the ongoing events in their own system (and of all the other systems worldwide) and can therefore opt for the elementary possibilities avail- able to participation through public roles (interest-based voting, communica- tion of opinions, participation in protests). Yet, at the same time, everybody is able and legitimized to switch over to the other side of the disjunction in political roles and emerge as an actively engaged and virtuous political actor to whom, in principle, any performance role is accessible. Everybody, without exception, can become the ‘President’ of the United States or the ‘Chancellor’ of the Federal Republic of Germany – and recent history has demonstrated that this is not a virtuality but a reality in both countries. This non-exclusionary universal inclusion into both role types of the political system seems to result from modern political individuality and to be a non-negotiable aspect of dem- ocratic political systems. But there are interesting alternatives to be observed, which, as alternatives, define different political regimes. Firstly, there is the possibility – and the historical reality – of a political system in which the public role of an observer with privatized interests is not provided for (and perhaps not seen as legitimate). In such systems, everybody involved in politics must assume a performance role, that is, participate as an active citizen endowed with public virtue (which pushes back private interests). From an ideological point of view, this kind of system is definable as republi- canism and, in structural and historical terms, its realization is only conceiv- able as an aristocracy formed by a significant number of bearers of performance roles whose interrelations are defined by equality towards one another. The number of active role bearers in such an aristocratic republic is not necessar- ily small, but it is clearly limited quantitatively. The inclusion of everyone is neither intended nor indeed permitted. An aristocratic elite is, by definition, aug., 2019 aug., – always a minority in the political system, which it governs in aristocratic fash- ion. Aristocracies were a very prominent type of political regime in early mod- ern Europe (sixteenth to eighteenth century),19 but they seem to have disap- 493, may. 493, – peared from the present-day world. This suggests that aristocracies are prob- ably incompatible with the inclusion imperative of modernity.

The Possibility of Modern Inclusive Authoritarianism Two alternatives remain. First, there is a political system that realizes univer- sal inclusion in public and performance roles. This is democracy, and again there are many variants. In some democracies the switch from a public to a performance role is a distant possibility, one rarely realized at a later point in a citizen’s life. In other democratic systems – perhaps Switzerland is the best example – all performance roles are designed in such a way that the universal- ity of inclusion in performance roles is maximized.20 sociol. antropol. | rio de janeiro, v.09.02: 469 | rio de janeiro, antropol. sociol. article | ruy braga

831

Finally, coming back to the major distinction explored in this paper, we have autocracies or authoritarian regimes, which do not admit universal inclu- sion in performance roles. This would represent a risk they cannot afford to take. Performance roles are reserved to a small segment of the population, considered to consist of the guardians of the value principles on which the authoritarian regime is based. This may be a party, a kind of clerisy (religious or otherwise ideologically unified) or any other social structure apt to assume this role of guardianship. But authoritarian systems are also modern in allow- ing and being based on universal inclusion of everyone in public roles. They claim to act in the interest of everyone, the paths for exercising influence (elections, petitions, protests) are open to everyone, except to members of stig- matized and thus excluded populations that conflict with the value principles of the authoritarian regime. Regarding the processes of mutual influence be- tween performance roles and public roles, authoritarian regimes once again tend to invert the direction of flows of influence. They often conduct mass mobilizations from the top of the political system and, in this way, replace the possibilities for each single individual to participate in the system with strat- egies designed to control the population via mass mobilization. This switch from individualized participation (beginning with individual role bearers) to processes of mass mobilization – trying to include each and every individual – is one of the reasons why autocracies prefer the modern collectivities (i.e. nation, people) to which the many individuals are supposed to belong, in con- tradistinction to the potential for influence resting on individual role bearers. Of course, mass mobilization does differ between different authoritarian re- gimes. Only in the case of totalitarian types of authoritarianism (such as fas- cism or Stalinism) is mass mobilization actually based on the compulsory in- clusion of everyone. Modern authoritarianisms do not need everyone. They can withstand a certain amount of indifference and also pluralism. Moreover, they can shift their mode of legitimation from the mobilisation and participation of the whole populace to inclusion in the outputs of political processes. In other words, while access to performance roles remains largely restricted, in the case of modern authoritarianism, more equal inclusion into public roles (recipients of welfare benefits and the like) can be observed, which again de- notes the inclusion imperative germane to modern society. Finally, as mentioned earlier, modern autocracies attempt to legitimate themselves by claiming the superiority and effectiveness of the authoritarian regime compared to ‘messy’ and ineffective democracies. If and when effectiveness tangibly fails, they may revert to mass mobilization, which may well prove to be their demise.21 a return of class struggle without class?

832

III. Forms of Internal Differentiation of Democracies and Autocracies: Vertical Levels and Horizontal Subsystems Up to this point, this paper, in comparing democracies and autocracies in the contemporary world, has analysed the production, change and invariability of the value patterns characteristic of democracies and autocracies, along with the modern inclusion imperative, which is found as an operative principle in all the function systems of world society. An analytical interest in forms of political inclusion turns out to be a good instrument to capture the modernity even of autocracies in a world which has often been described by the revolution in dem- ocratic inclusion beginning in the eighteenth century. A third form of compari- son of the two regime types, with which we shall conclude this article, pertains to another core aspect of political modernity: the enormous complexity of mod- ern political systems, as shown in their multiple forms of internal differentia- tion. Once more our question is: in what ways does the bipolarity of democracy and authoritarianism become visible when we examine this core dimension, the ongoing internal differentiation of contemporary political systems?

A. Multilevel Structure of Contemporary Political Systems The contemporary system of approximately 200 nation states is still the dominant level for the identification and analysis of political regime types in today’s world society. Growing transnational cooperation and global governance do not signifi- cantly challenge this observation. Why is this so? One possible argument is that decision making that is binding for an identifiable collectivity of individuals still primarily occurs within the scope of a single country’s jurisdiction, combined with the fact that citizenship – and with it the rights essential to meaningful political participation and to political outputs – are still tied to the nation state. Nonetheless, even if we focus on the nation state, a multitude of levels of decision making can be identified within any nation state and, at all these levels, the semantics and roles aug., 2019 aug., – of political inclusion arise and diversify political systems. It is common to integrate various subnational and supranational perspec- tives into research on democratic politics. This is reflected, for instance, in the old 493, may. 493,

– and extensive debate on size and democracy. In the early 1970s, Robert A. Dahl and Edward R. Tufte, among others, took up the strands found in traditional political philosophy to ask: “how large should a political system be in order to facilitate ra- tional control by its citizens?” (Dahl & Tufte, 1973: 1) and “what is the appropriate political unit for expressing one’s identity as a member of a community” (Dahl & Tufte, 1973: 3) during an era of increasing complexity and diversity in an urbanizing and globalizing world? Today, more than forty years after their seminal publication, these questions still remain pertinent and, as mentioned above, translate into re- search on community participation and local self-administration, the appropriate design of constituencies, representation in and control of transnational and inter- national unions, and many other aspects (see, for example, Denters et al., 2014). sociol. antropol. | rio de janeiro, v.09.02: 469 | rio de janeiro, antropol. sociol. article | ruy braga

833

Empirical comparative research on authoritarianism, however, does not usually explore questions concerning the complexity of the modern polity. Analy- ses are mostly anchored at the level of the nation state and the top echelons of po- litical power structures.22 This is rather surprising, since it is a prominent feature of autocracies that they distinguish between different tiers of the political system, which are then related to different principles and degrees of inclusion in collec- tively binding decision making. For instance, while the national political leadership is unchallenged and inaccessible, and its decisions determinate, modern variants of output-oriented ‘adaptive authoritarianism’ often heavily rely on local (some- times experimental) adjustments of policies, including different forms of participa- tion by the ‘affected’ parts of the population. It could, therefore, easily be assumed that the more local the perspective, the more opportunities for individual participa- tion would arise – i.e. the more inclusive politics should become, even in autocra- cies. This has been, for instance, vividly described for the People’s Republic of China (see, for example, Ahlers, 2014; He & Thøgersen, 2010; Schubert & Ahlers, 2012) and Russia (see Moser, 2015, forthcoming). More research that goes beyond the nation- al level23 in the study of autocracies and authoritarianism is needed to test this hypothesis.

Exemplary levels of the polity with relevance for collectively binding decision making, and related categories and organizations of inclusion

global e.g., IAEA, UNODA, UNHRC, Climate Conferences, interest association

international (issue based; not necessarily territorial) e.g., NATO, OPEC, KOM–INTERN, ISIS/Muslim Brotherhood transnational (spatial component) e.g., ASEAN, EU, CCNR (Central Commission for Navigation on the Rhine) UAS, party, interest association

national e.g., citizenship, ethnicity, religion, national government/assembly, party, interest association

local/regional/subnational e.g., ethnicity, religion, local levelgovernment(s)/assembly, party, interest association

communal/grassroots e.g.,initiative, self administration, party, interest association a return of class struggle without class?

834

Without claiming to present a complete list, we suggest that a study of the different levels of a polity should be open to accommodate any institu- tional configuration in which collectively binding decision making occurs: for example, at grassroots/community, regional, trans-regional and trans-bound- ary, national, international and global levels. Important questions to be asked in each case should include: – What is decided upon and why (based on contingent or non-contingent value patterns)? – Who is included in the decision-making process, on what basis, and in what way, i.e. in a public role or a performance role? (e.g. form of rep- resentation; direct or indirect election into performance roles, etc.). – How, and with what effect are decisions taken? (e.g. majority overrules minorities; experts overrule ‘non-knowledgeable’ voters/majorities; col- lective integrity overrules individual integrity, or vice versa; law overrules elections/referenda/majorities/protests, or vice versa). From a general perspective, a core question will certainly be: how do autocracies deal with the control/effectiveness bipolarity built into the dif- ferentiation of decision-making levels? Having multiple levels of decision mak- ing always entails a potential loss of control for higher levels, a fact usually welcome in democracies (think of the ‘subsidiarity principle’) but which may be problematic in autocracies. On the other hand, a plurality of levels seems to promise a higher degree of effectiveness in terms of realizing policies, based on the capacity for more adequate local adjustments: something with appeal for autocracies insofar as they try to win legitimacy by claiming to be more effective than democracies.

B. Horizontal Differentiation of Subsystems and the Plurality of Access Points for Inclusion aug., 2019 aug., – Looking at the vertical differentiation of levels helps us transgress the limita- tion of analysis to the nation state level in research on political regimes, but it still rests on an understanding of inclusion as access to and representation 493, may. 493,

– in formal – and one might say, conventional – institutions of ultimate decision making, usually the ‘legislative’ and the ‘executive.’ But there are more – and more complex – structures within any given political system that need to be considered. In close connection with this openness to the existence of multi- level variation, we also need to identify and describe relevant political subsys- tems and other elements of horizontal differentiation. In the classical understanding of horizontal differentiation of the po- litical system, we distinguish political subsystems, which comprise party pol- itics, government and public administration, from the public sphere (‘Öffen- tlichkeit’) (cf. Luhmann, 2002). Aside from these classical cases, there is also the military as a partially autonomous organization, and social movements as sociol. antropol. | rio de janeiro, v.09.02: 469 | rio de janeiro, antropol. sociol. article | ruy braga

835

the relatively recent emergence of a new social form. In authoritarian systems, membership in parties and mass organizations is often very important. Below, we briefly discuss some examples that, in our view, can serve as a fruitful basis for future empirical research on the bipolarity of authoritarian- ism and democracy: The possibility and characteristics of inclusion via party membership and mass organizations. It must be examined whether in historical and contemporary one-party regimes, party membership is really obligatory (for performance roles), and how important and effective it is for political inclusion. Interestingly enough, in communist/socialist regimes, party membership does foster elitist as well as inclusive structures. The Communist Party of China, for instance, has shown how membership can be ideologically – and indeed functionally – modified, since it now also welcomes private entrepreneurs and claims to represent them (see, for example, Dickson, 2008).24 Authoritarian regimes usu- ally also seek to penetrate society via other mass organizations with compul- sory membership, including youth leagues and trade unions. On the opposite side, democracies seem not to rely to the same degree on (freely chosen) mem- bership in political parties, since, besides the complex processes internal to parties and the party system, there exist further milieus (publics) relevant to political agenda setting and decision making. In democratic systems, privi- leges for party members in some ways conflict with the universality of inclu- sion in the possibilities for participation and, therefore, they often try not to institutionalize such privileges to such a degree that it becomes a principle of exclusion (consider, for example, the organization of primaries in the United States). Inclusion into administration via extended client and secondary performance roles.25 In modern societies, it seems that access to performance roles in ad- ministration, as well as interaction with these roles from the perspective of public roles, is increasing, while at the same time the differentiation and asym- metry of these two role types is becoming less pronounced. This applies to the general structures of administrative communication (the former ‘subjects’ of public administration become ‘clients’) and also to participation in specific processes – via deliberative practices, for instance (see, for instance, Dryzek, 2006). Interestingly enough, this seems to be a dynamic largely independent of the political context, i.e. the regime type, and also a trend detectable around the globe, as self-descriptions and the repertoire of modern administration become similar (see Pollitt & Bouckaert, 2004; Treutner, 1994). Inclusion via trans-regional and trans-national networks and organizations. In some cases, there may exist trans-regional and trans-national networks and organizations that have distinct relevance for collectively binding decision making and for the distribution of public goods, yet are in conflict with other institutions established within the political system. These may take, for instance, a return of class struggle without class?

836

the form of a ‘parallel/grey state,’ as has been claimed regarding the Muslim brotherhood (see Roy, 2013). We might also include Catholic organizations like ‘Opus Dei’ or the Jesuit Order as other prominent examples. Inclusion via social movements. Social movements can encompass par- ticipatory publics or outright protest through formal channels (e.g. debate, pe- titioning) or informal, even illegal, means (violent protest, riots, occupation). Again, the potential for inclusion in the form of extra-parliamentary and some- times even extra-legal claims or correctives would seem to be a paradigmatic context for studying traits of democratic or authoritarian politics. The further virtualization of inclusion through the increasing and increas- ingly autonomous relevance of ‘public opinion.’ The virtualization of inclusion, as well, is a tendency observable largely independent of regime type. Tradition- ally relevant for the anticipation of election results in democratic contexts, traditional and new (social) media debates and other representations of a di- verse population, ‘public opinion’ has also found its place in authoritarian politics as a means of information gathering, a feedback mechanism, and for indirect agenda setting. This is especially true for regimes that live in constant fear of stability-eroding opposition and are thus interested in acting at least partially in response to public demands (see Wang, 2008). The extreme promi- nence of public surveys, for instance, in US and – albeit to a lesser degree – European politics, as well as the massive – and recently much more than ever outward-oriented – efforts to politically control public debate and the media in authoritarian contexts (in particular, in China, Singapore, Russia, Egypt and Saudi Arabia, for example) seem to be interesting starting points for research in this area (see Diamond, Plattner & Walker, 2016).

Conclusion Classifying political regimes remains a crucial, yet quite complex endeavour in aug., 2019 aug., – world society. We have suggested that the main distinction between regimes in the political space today can be found in the two poles of democracy and authoritari- anism. Furthermore, with the seeming ‘return of authoritarianism,’ or 493, may. 493,

– at least the resistance to and reinforcement of authoritarian claims to rule, a topic often neglected is the global career of political inclusion. We therefore critically revisited the analytical distinctions political be- tween regimes and proposed an alternative that allows for extensive investiga- tions both inside and beyond the boundaries of the nation state unit. After introducing an approach to political regime bipolarity that rests on value pat- terns in modern political systems, we have suggested a closer analysis through tracing different forms of political inclusion and its evolution in both democ- racies and autocracies. At the same time, we have argued that both demo- cratic and authoritarian traits can co-exist in one and the same political system. sociol. antropol. | rio de janeiro, v.09.02: 469 | rio de janeiro, antropol. sociol. article | ruy braga

837

The article did not provide causal explanations for why particular types of autocratic regimes have come into being and persist. Also, we do not attempt to advance authoritarian forms of political inclusion as full-fledged alterna- tives to democracy. We do claim, however, that their critical comparative as- sessment can contribute to a more complete understanding of modern polities and politics and their dynamics. Altogether, we tend to see paradoxes and oscillations between two poles of a political space in today’s world society. The clearest divisions seem to exist between political inclusion based on individu- ality versus political inclusion either conditioned by social categories or un- derstood collectively – an observation that has yet to be corroborated by further studies. This dimension is complemented by the distinction of universal inclu- sion into public roles and selective or universal inclusion into performance roles, which again correlates with the distinction between democracy and au- thoritarianism. While our proposals regarding the distinction between democracy and authoritarianism probably appear simplified compared to the taxonomies pro- posed by the usual regime research literature, our suggestions for empirical analyses propose complexity not simplicity. They demand a thorough under- standing of the political system, its (historical) semantics of belongingness and citizenship as a semantics of inclusion, its institutionalized value patterns, and finally the different levels of the polity and political subsystems. We believe that these explorations represent a fruitful undertaking, not only in terms of encouraging insightful empirical analyses, but also for furthering the theo- retical acuity of research on political system bifurcation and political evolution in world society.

Received 16/9/2019 | Approved 20/10/2019

Anna L. Ahlers is a professor in the Department of Culture Studies and Oriental Languages at University of Oslo. She published, among others, Rural Policy Implementation in Contemporary China. New Socialist Countryside (2014).

Rudolf Stichweh is Dahrendorf professor for “Theory of Modern Society” at the University of Bonn, and director of the associated Forum Internationale Wissenschaft. His publications include: Inklusion und Exklusion [Inclusion and Exclusion] (2. rev. ed. 2015) and Der Fremde [The Stranger] (2010). a return of class struggle without class?

838

NOTES

1 See, for example, discussions in Diamond (2011), Markoff (2015), Lehoucq (2010). 2 Also see Diamond (2015). However, some debate exists regarding the validity of this observation, based as it is on different indicators and numbers; see, for instance, Levitsky and Way (2015). For a review of the latest, more philosophical literature on the “trap, tragedy or crisis” of democracy, see Hobson (2016). 3 We find extreme differences between the continuing self- description of the regime, by CCP ideologues, as “socia- lism with Chinese characteristics” and the various con- trasting labels employed by external observers. 4 See, for example, Pei Minxin (2006); Gat (2007). Also see Bueno de Mesquita et al. (2005); Shen (2007); Wintrobe (1998). 5 See too the countless publications on the ‘China Model’ – for example, the critical account contained in the special issue “Debating the China Model of Modernization” of the Journal of Contemporary China (He & Thøgersen, 2010). Or the recent reemergence of the debate on the ‘Singapore model’ following Lee Kuan-Yew’s death in March 2015 (Caryl, 2015). 6 See, for example, Beeson (2010). 7 See the comprehensive review of the state of the field in Albrecht and Frankenberger (2010). aug., 2019 aug., – 8 The notion of evolution, as used here, implies no teleology and no set trajectory, but rather a constant adaptation. See also the long tradition in political science of discus- 493, may. 493,

– sing and applying evolution “seriously or metaphorically,” reviewed in Ma (2014). 9 See the contributions in the Journal of European Integration (2013). 10 See the collection of articles in West European Politics (2002). 11 Illuminating examples can be found in Sejersted (2011). 12 Function systems are global communication systems built around specific types of social problems that are not dealt with in other systems (Stichweh, 2013). sociol. antropol. | rio de janeiro, v.09.02: 469 | rio de janeiro, antropol. sociol. article | ruy braga

839

13 See, for instance, the summarizing matrix in Møller and Skaaning (2013), in which the indicators competitive elec- tions, inclusive elections with high integrity, civil liberties, and rule of law determine a ranking of democracies, as well as the separation of democracies from non-democracies. 14 Our approach to the bipolarity of democratic and autho- ritarian regimes is part of an ongoing research program at the ‘Forum Internationale Wissenschaft,’ University of Bonn, available at: . More detailed analyses will be presented in a forthcoming book (Ahlers et al., 2020). 15 We define values with Kluckhohn and Parsons as “concep- tions of the desirable type of society” (Parsons & Shils, 1951). 16 This danger is most often discussed in connection with democracy being in principle open to the rise of demago- guery and populism, as will be taken up again below. The fact that democracy is the “rule of the majority” and re- lated worries about the danger of a highly exclusive “ty- ranny of the majority” have troubled ancient philosophers, early political analysts (such as Tocqueville) and contem- porary historians alike; see, for instance, Lukacs (2005); Mudde and Kaltwasser (2012). 17 It may even be argued that in the political system, inclu- sion formulas are a bit more complex to grasp and cate- gorize than in other social systems. However, systems always tend to claim that they are more complex, more multi-stranded, than other systems (Fox, 1978). 18 In terms of sociological systems theory, this corresponds to the distinction between Erleben and Handeln (experien- ce and action); see Luhmann (1981). 19 For Poland-Lithuania as a prominent example, see Davies (2005). 20 Switzerland calls this the ‘Milizprinzip.’ Since a militia is a type of military organization in which every citizen can take an active role, the Milizprinzip implies the ge- neralization of this pattern to other societal sectors. The Milizprinzip also entails that there are only part-time performance roles. There are no – or nearly no – full-time a return of class struggle without class?

840

political professionals. The Swiss ‘Nationalrat’ with its part-time parliamentarians is a good example. 21 The last two days of the Ceausescu regime (December 21- 22, 1989) are a good example; see Sebestyen (2009, Ch. 48). 22 Most often it is institutional change at this level that cap- tures the attention of comparative studies of political re- gimes. For what are regarded as modern types of authori- tarian regimes or political subsystems, for example, it is acknowledged that rulers have been able to establish structures of rule that outlived their founders and that led to institutionalized forms of leadership transition, as do- cumented in cases such as China, Saudi Arabia, Russia, Iran and some countries in South Asia and Sub-Saharan Africa. 23 Moreover, this may even go both ways, sub-national and supra-national, as there is an emerging body of research pointing towards an “international cooperation of author- itarian regimes”; see, for example, Erdmann et al. (2013). 24 For a more general view, see especially Heberer’s (2016) recent and very thorough reflections on the concept of rep- resentation and its application to and within China. 25 Secondary performance roles are performance roles tem- porarily or partially assumed by lay people/amateurs or non-professionals. They can also be defined as activist al- ternatives to pure public roles; see Stichweh (2016a, Ch. 1). aug., 2019 aug., – BIBLIOGRAPHY

Ahlers, Anna L. (2014). Rural policy implementation in contem-

493, may. 493, porary China: new socialist countryside. London: Routledge. – Ahlers, Anna L. et al. (2020). Sociology of contemporary poli- tical systems: differentiation and inclusion. Bielefeld: Trans- cript. Al Jazeera (n.a.). (2015). Saudi Arabia Elects Its First Female Politicians. Available at Accessed 24 Feb. 2016. Albrecht, Holger & Frankenberger, Rolf. (2010). Autorita- rismus Reloaded: Konzeptionelle Anmerkungen zur Ver- gleichenden Analyse politischer Systeme. In: Albrecht, sociol. antropol. | rio de janeiro, v.09.02: 469 | rio de janeiro, antropol. sociol. article | ruy braga

841

Holger & Frankenberger, Rolf (eds.). Autoritarismus Reloa- ded. Neuere Ansätze und Erkenntnisse der Autokratieforschung. Baden-Baden: Nomos, p. 37-60. Beeson, Mark. (2010). The Coming of Authoritarian Envi- ronmentalism. Environmental Politics 19/2, p. 276-294. Birke, Sarah. (2015). How ISIS Rules. The New York Review of Books, 62/2. Bueno de Mesquita, Bruce et al. (2005). The logic of political survival. Cambridge: The MIT Press. Caryl, Christian. (2015). Africa’s Singapore Dream. Why Rwanda’s president styles himself as the heir to Lee Kwan Yew. Foreign Policy. Available at . Accessed 2 Apr. 2015. Dahl, Robert Alan & Tufte, Edward R. (1973). Size and demo- cracy. Stanford: Stanford University Press. Davies, Norman. (2005). God’s playground. A history of Po- land. The origins to 1795. New York: Columbia University Press, rev. ed. Denters, Bas et al. (2014). Size and local democracy. Chelte- nham: Edward Elgar Publishing. Diamond, Larry J. (2015). Facing up to the democratic re- cession. Journal of Democracy, 26/1, p. 141-155. Diamond, Larry J. (2011). A fourth wave or false start: de- mocracy after the Arab Spring. Foreign Affairs, 22. Availa- ble at . Accessed 3 Jan. 2016. Diamond, Larry J. (2002). Thinking about hybrid regimes. Journal of Democracy, 13/2, p. 21-35. Diamond, Larry; Plattner, Marc F. & Walker, Christopher. (2016). Authoritarianism goes global: the challenge to demo- cracy. Baltimore: A Journal of Democracy Book. Dickson, Bruce. (2008). Wealth into power. The Communist Party’s embrace of China’s private sector. Cambridge: Cam- bridge University Press. Dryzek, John. (2006). Deliberative Democracy in Different Places. In: He, Baogang & Leib, Ethan J. (eds.). The search for deliberative democracy in China. New York: Palgrave Mac- millan, p. 23-36. a return of class struggle without class?

842

Economist Intelligence Unit. (2014). The EIU Democracy In- dex for the Year 2014. Available at . Accessed 3 Jan. 2016. Erdmann, Gero et al. (2013). International Cooperation of Authoritarian Regimes: toward a conceptual framework. Giga Working Papers, 229. Available at . Accessed 10 Feb. 2015. Fox, Renée C. (1978). Why Belgium? European Journal of So- ciology, 19/2, p. 205-228. Gat, Azar. (2007). The return of authoritarian great po- wers. Foreign Affairs, 48/4, p. 59-69. Giraudy, Agustina. (2015). Democrats and autocrats. Path- ways of subnational undemocratic regime continuity within de- mocratic countries. New York: Oxford University Press. He, Baogang & Thøgersen, Stig. (2010). Giving the people a voice? Experiments with consultative authoritarian insti- tutions in China. Journal of Contemporary China, 19/66, p. 675-692. Heberer, Thomas. (2016). Reflections on the concept of re- presentation and its application to China. Working Papers on East Asian Studies, 110. Hertog, Steffen. (2011). Princes, brokers, and bureaucrats: oil and the State in Saudi Arabia. Ithaca: Cornell University aug., 2019 aug., Press, reprint. –

Hobson, Christopher. (2016). Democracy: trap, tragedy or crisis? Political Studies Review. Online first, doi: 493, may. 493,

– 10.1177/478929916663756. Journal of European Integration. (2013). Does one come at the expense of the other? Special Issue, 35/5 – Representation and Democracy in the EU. Lehoucq, Fabrice. (2010). The third and fourth waves of democracy. In: Haynes, Jeffrey (ed.). Routledge handbook of democratization. London: Routledge, p. 273-286. Levitsky, Steven & Way, Lucan. (2015). The myth of demo- cratic recession. Journal of Democracy, 26/1, p. 45-58. sociol. antropol. | rio de janeiro, v.09.02: 469 | rio de janeiro, antropol. sociol. article | ruy braga

843

Levitsky, Steven & Way, Lucan. (2010). Competitive authori- tarianism: hybrid regimes after the Cold War. Cambridge: Cambridge University Press. Levitsky, Steven & Ziblatt, Daniel. (2018). How democracies die. New York: Broadway Books. Luhmann, Niklas. (2002). Die Politik der Gesellschaft. Frank- furt: Suhrkamp. Luhmann, Niklas. (1981). Erleben und Handeln. In: Niklas Luhmann. Soziologische Aufklärung 3. Opladen: Westdeuts- cher Verlag, p. 67-80. Lukacs, John. (2005). Democracy and populism: fear & hatred. New Haven: Yale University Press. Ma, Shu-Yun. (2014). Taking evolution seriously, or meta- phorically? A review of interactions between historical institutionalism and darwinian evolutionary theory. Poli- tical Studies Review, 14/2, p. 223-234. Markoff, John. (2015). Waves of democracy: social movements and political change. Boulder: Taylor & Francis Ltd, 2. rev. ed. Merkel, Wolfgang. (2004). Embedded and defective demo- cracies. Democratization, 11/5, p. 33-58. Mickey, Robert. (2015). Paths out of Dixie. The democratiza- tion of authoritarian enclaves in America’s Deep South, 1944- 1972. Princeton: Princeton University Press. Møller, Jorgen & Skaaning, Svend-Erik. (2013). Regime ty- pes and democratic sequencing. Journal of Democracy, 24/1, p. 142-155. Moser, Evelyn. (2015). Postsowjetische Transformationen in der Weltgesellschaft: Politische Dezentralisierung und wirts- chaftliche Differenzierung im ländlichen Russland. Bielefeld: Transcript. Moser, Evelyn. Forthcoming. The logic of the Soviet orga- nisational society. Political control, the Soviet village, and world society. In: Hayoz, Nicolas & Stichweh, Rudolf (eds.). Soziale Systeme – Sonderband. Variants of differentiation in the regions of world society. Mudde, Cas & Kaltwasser, Cristóbal Rovira (eds). (2012). Populism in Europe and the Americas: threat or corrective for democracy? Cambridge: Cambridge University Press. a return of class struggle without class?

844

Parsons, Talcott & Shils, Edward (eds.). (1951). Toward a general theory of action. Cambridge, Mass.: Harvard Univer- sity Press. Pei, Minxin. (2006). China’s trapped transition. The limits of developmental autocracy. Cambridge: Harvard University Press. Pocock, John G. A. (1975). The machiavellian moment. Floren- tine political thought and the Atlantic Republican tradition. Princeton: Princeton University Press. Pollitt, Christopher & Bouckaert, Geert. (2004). Public ma- nagement reform: a comparative analysis − new public manage- ment, governance, and the neo-weberian State. Oxford: Oxford University Press, 2 ed. Ramo, Joshua Cooper. (2004). The Beijing consensus. The Foreign Policy Center. Available at . Accessed 10 Jul. 2016. Roberts, Alasdair. (2012). Why the Occupy Movement fai- led. Public Administration Review, 72/5, p. 754-762. Roy, Olivier. (2013). There will be no Islamist revolution. Journal of Democracy, 24/1, p. 14-19. Runciman, David. (2018). How democracy ends. London: Profile Books. Schedler, Andreas (ed.). (2006). Electoral authoritarianism. The dynamics of unfree competition. Boulder/London: Lynne Rienner. Schubert, Gunter & Ahlers, Anna L. (2012). Participation aug., 2019 aug., – and empowerment at the Grassroots: Chinese village elections in perspective. Lanham: Rowman & Littlefield.

493, may. 493, Sebestyen, Victor. (2009). Revolution 1989. The fall of the So- – viet Empire. London: Weidenfeld and Nicolson. Sejersted, Francis. (2011). The age of social democracy: Nor- way and Sweden in the twentieth century. Princeton: Prince- ton University Press. Shen, Ling. (2007). When will a dictator be good? Economic Theory, 31/2, p. 343-366. Stichweh, Rudolf. (2016a). Inklusion und Exklusion. Studien zur Gesellschaftstheorie. Bielefeld: Transcript. sociol. antropol. | rio de janeiro, v.09.02: 469 | rio de janeiro, antropol. sociol. article | ruy braga

845

Stichweh, Rudolf. (2016b). Politische Demokratie und die funktionale Differenzierung der Gesellschaft. FIW Wor- king Paper Series, 3. Bonn. Available at . Accessed 10 Aug. 2016. Stichweh, Rudolf. (2013). The history and systematics of functional differentiation in sociology. In: Albert, Mathias et al. (eds.). Bringing sociology to international relations. World politics as differentiation theory. Cambridge: Cambridge Uni- versity Press, p. 50-70. Treutner, Erhard. (1994). Verwaltung und Publikum. In: Dammann, Klaus; Grunow, Dieter & Japp, Klaus P. (eds.). Die Verwaltung des politischen Systems. Neuere systemtheore- tische Zugriffe auf ein altes Thema. Opladen: Westdeutscher Verlag, p. 215-227. Wang, Shaoguang. (2008). Changing models of China’s po- licy agenda setting. Modern China, 34/1, p. 56-87. West European Politics. (2002). Non-Majoritarian Institu- tions in Europe. Special Issue, 25/1 – The Politics of Dele- gation. Wintrobe, Ronald. (1998). The political economy of dictator- ship. Cambridge: Cambridge University Press. Zakaria, Fareed. (1997). The rise of illiberal democracy. Fo- reign Affairs, 76/6, p. 22-43. a return of class struggle without class? A BIPOLARIDADE DE DEMOCRACIA E AUTORITARIS - 846 MO: PADRÕES VALORATIVOS, INCLUSÕES DE PAPEIS E FORMAS DE DIFERENCIAÇÃO INTERNA DOS SISTE - MAS POLÍTICOS Resumo Palavras-chave O artigo começa com a observação de que a sociedade mun- Democracia; dial de hoje exibe uma bipolaridade em seu regime político autoritarismo; e sugere uma interpretação baseada nas teorias sociológicas inclusão; da inclusão e diferenciação funcional. Assim, (1) distingui- valores sociais; mos os regimes políticos entre democráticos e autoritários, diferenciação interna. identificando os padrões valorativos subjacentes às decisões coletivamente vinculantes em cada caso. A democracia é entendida como um regime político baseado na 'autopoiese' de seus valores constitutivos, ao passo que em regimes au- toritários observamos uma 'heterogênese' de seus valores. Com isso, acrescentamos (2) a ideia de que os estados mo- dernos são caracterizados pelo imperativo da inclusão política individual; ao mesmo tempo, novos padrões surgem para a inclusão de coletividades. Concluindo, (3) postulamos que essa abordagem permite o estudo das transformações em curso nos processos de diferenciação nos dois tipos de regi- mes, fechando o argumento com a apresentação de uma vi- são geral da hierarquia de níveis nos processos políticos modernos e a diferenciação horizontal de subsistemas e or- ganizações. The bipolarity of democracy and authoritarianism: value patterns, inclusion roles and forms of internal differentiation of political systems Abstract Keywords The paper begins with the observation that today’s world Democracy; society exhibits a political regime bipolarity and suggests an authoritarianism; interpretation, based on the sociological theories of inclu- inclusion; aug., 2019 aug., – sion and functional differentiation. We (1) distinguish demo- societal values; cratic and authoritarian political regimes by identifying the internal differentiation. different value patterns underlying collectively binding deci- 493, may. 493,

– sion making. Democracy is understood as a political regime based on the ‘autopoiesis’ of its constitutive values, while in authoritarian regimes we observe a ‘heterogenesis’ of values. To this we (2) add the idea that modern states are character- ized by the imperative of individual political inclusion. At the same time new patterns arise for the inclusion of collectivi- ties. Concluding (3), we postulate that this approach allows the study of ongoing transformations of differentiation in both types of regimes. In this part, we present an overview of the hierarchy of levels of modern polities and the horizon- tal differentiation of subsystems and organizations. sociol. antropol. | rio de janeiro, v.09.02: 469 | rio de janeiro, antropol. sociol. http://dx.doi.org/10.1590/2238-38752019v936 artigo | vinícius zanoli

1 Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio), 847 Departamento de Ciências Sociais, Rio de Janeiro, RJ, Brasil [email protected] https://orcid.org/0000-0002-9899-1230

Felipe Süssekind I

A história de Gigante: conservação e caça no Pantanal1

Em 1977, o já então renomado naturalista e zoólogo norte-americano George Schaller chegou à Fazenda Acurizal, na região centro-oeste do Pantanal,2 para dar início ao que seria o primeiro estudo de campo científico sobre a onça-pin- tada em seu ambiente natural. O estudo foi viabilizado por parceria entre a New York Zoological Society (atual Wildlife Conservation Society) e o Instituto Brasi- leiro de Desenvolvimento Florestal (IBDF), órgão ambiental do governo brasilei- ro na época (Crawshaw, 2006b). Seria um dos primeiros trabalhos científicos a

dez., 2019 dez., utilizar no país a radiotelemetria, método característico da moderna biologia da –

conservação, baseado na captura de animais e no uso de transmissores de rádio acoplados a coleiras.3 A onça, ou jaguar (Panthera onca), era até então o menos 869, set. 869, – conhecido dos grandes felinos, e Schaller (1972) trazia na bagagem trabalhos importantes com grandes mamíferos, entre eles um estudo de referência sobre os leões do Serengueti.4 A pesquisa resultou em artigos científicos pioneiros sobre a ecologia da onça pantaneira e de suas presas, em particular a capivara (Schaller & Crawshaw, 1980; Schaller & Vasconcelos, 1978). Além da produção estritamente científica, entretanto, Schaller sempre trabalhou também com relatos de suas experiên- cias de campo, textos para um público não especializado, de divulgação cien- tífica. Nesse âmbito, escreveu dois relatos curtos a partir de sua estada no Brasil – um sobre a onça e outro sobre a capivara – nos quais descreve a expe- riência de campo e comenta alguns dos resultados e as dificuldades enfrenta- das durante o projeto no Pantanal (Schaller, 2007). sociol. antropol. | rio de janeiro, v.09.03: 847 | rio de janeiro, antropol. sociol. “mais ativista do que gestora”: ativismo institucional no campo do movimento lgbt em campinas

848

O texto sobre o jaguar, publicado originalmente em 1980, é o que nos interessa aqui. Trata-se de um relato pessoal que descreve as tentativas iniciais do pesquisador de capturar onças para a colocação de coleiras de rádio. A narrativa é pontuada por dois grandes problemas. O primeiro deles se refere ao processo de captura dos felinos; o segundo à resistência da comunidade local diante da ideia de conservação de um animal visto como ameaça ou fonte de prejuízos. Para o primeiro problema, Schaller encontra uma solução; para o segun- do, como veremos adiante, não. Em relação às tentativas de captura, ele afirma:

Os jaguares não só me enganavam, como pareciam realmente zombar dos meus esforços: uma fêmea passou vagarosamente pelas nossas redes enquanto dor- míamos, e um macho depositou sua presa – uma capivara não comida – a 100 metros do acampamento. [...] Uma vez que minhas tentativas para capturar um jaguar tinham falhado, recorri aos métodos brasileiros tradicionais de caça (Schaller, 2007: 69).5

Ao longo da primeira metade do século XX, eram bastante comuns no Pantanal os “safáris”, nos quais visitantes em busca do jaguar contratavam caçadores profissionais para expedições guiadas. Essa prática regional está documentada em uma série de relatos escritos por caçadores naturalistas, e a seu respeito falarei adiante. Nessa situação peculiar, se desenvolveu um sis- tema especializado de caça em torno do uso de cães farejadores e das habili- dades de caçadores nativos conhecidos como zagaieiros. Os conhecimentos desses caçadores, humanos e caninos, acabaram sen- do fundamentais na captura de onças para o estudo científico, o que se evi- dencia no trecho em que Schaller (2007: 69-70) faz referência àqueles que o auxiliaram em seu projeto:

Richard Mason, um expatriado britânico, possuía a melhor matilha de cães ca- çadores do oeste do Brasil, onde acompanhava clientes estrangeiros em caçadas, ago., 2019 ago.,

– até que uma lei federal de 1967 protegendo o jaguar afetou seu negócio. Ele con-

cordou em ajudar e chegou em Acurizal com cinco cachorros e seu mateiro, Ma- nuel Dantas, que como caçador e guia tinha passado 25 anos no Pantanal. 517, mai. 517, – A caça é regulamentada no Brasil desde 1967, quando foi declarada proi- bida para qualquer espécie da fauna silvestre nativa.6 A lei vigente foi modi- ficada pela última vez em 1998, estabelecendo punições mais severas para os infratores.7 Na prática, porém, muitos proprietários rurais pantaneiros conti- nuam até hoje a reivindicar o direito de abater animais que atacam o gado, usando como argumento a brecha que existe na legislação no que se refere aos chamados “animais nocivos”.8 Em uma situação em que a atitude dos pro- prietários rurais determina o que acontece dentro das fazendas, sendo a fis- calização quase nula, a caça é apontada, no campo da conservação, como a principal ameaça para a espécie no nível regional (Cavalcanti et al., 2010; Sil- veira et al., 2008; Morato et al., 2006). sociol. antropol. | rio de janeiro, v.09.02: 495 | rio de janeiro, antropol. sociol. artigo | vinícius zanoli

849

Nas práticas locais, tais como se consolidaram historicamente, os cães farejadores são elementos cruciais. Cachorros “onceiros” têm a reputação, no Pantanal, de ser capazes de rastrear os predadores a partir das trilhas de ol- fato deixadas em carcaças de animais ou “batidas” (rastros ou pegadas). Não por acaso, portanto, um dos principais personagens da captura narrada por Schaller (2007: 70) é um cão:

O cão líder, Gigante, um mestiço amarelo, castrado, ia na frente, examinando a floresta em busca de rastos frescos de jaguar. Os outros cães ganiam e se agita- vam em suas guias enquanto seguíamos um latido ocasional de Gigante. Dantas ia na frente, abrindo uma picada com golpes curtos de seu facão. “Hup, brrriii,” Richard gritava de vez em quando, incentivando Gigante a prosseguir e deixan- do que ele soubesse que ainda estávamos com ele.

Os cães especializado nesse tipo de perseguição são designados regio- nalmente como “mestres”. São reconhecidos por só seguir o rastro da onça e o de nenhum outro animal – o que tem implicações no valor dado ao cachorro e também na reputação do caçador.9 O sentido do faro é o que possibilita o rastreamento, sendo que a comunicação se dá por meio de mensagens sonoras – o “barruar” do cão, de um lado, e os sons produzidos pelos caçador, de outro. A narrativa continua seguindo o mestre canino:

Um dia estávamos na região mais remota de Acurizal, um desfiladeiro sombrio, coberto de mata. Gigante estava na frente – seus latidos nos diziam que ele estava interessado em alguma trilha recente, [...] enquanto nós nos demorávamos no leito seco de um riacho, sem saber onde procurar em seguida. De repente, ele latiu vá- rias vezes, como se estivesse sendo atacado. Depois, silêncio (Schaller, 2007: 70).

O que torna possível uma caçada desse tipo é a relação de aliança estabe- lecida entre humanos e cães. Estes últimos sozinhos não seriam capazes de aba- ter uma onça (ao contrário, muitas vezes são eles é que dela se tornam vítimas), ao passo que, sem os cães, os caçadores humanos seriam incapazes de localizar o felino.10 Acuadas pelos latidos e pela perseguição, as onças em geral sobem na copa das árvores, onde se tornam alvos fáceis para os caçadores armados. Schaller (2007: 70) relata então a soltura do restante da matilha e o encontro da onça acuada:

Corremos atrás dos cachorros, esbarrando em galhos de palmeira e caindo em buracos, até chegar onde eles estavam reunidos, em volta de uma árvore incli- nada sobre o leito do rio. Excitados, pulavam sobre o tronco e mordiam as lianas nele penduradas.

Até aqui, o texto se assemelha a um típico relato de caça. É somente no encontro com a onça que o contraste com os métodos tradicionais se oferece:

Deitada em um galho cerca de sete metros acima do caos estava uma onça-pinta- da, uma fêmea jovem, estranhamente calma enquanto olhava inexpressivamen- te para nós e os cachorros histéricos. “Finalmente nos encontramos”, disse para mim mesmo. Enquanto eu enchia uma seringa com uma droga para dormir, Dan- “mais ativista do que gestora”: ativismo institucional no campo do movimento lgbt em campinas

850

tas tirou os cachorros dali e os amarrou numa árvore a algumas dezenas de me- tros de distância (Schaller, 2007: 70-71).

Nesse caso, o “caçador” não atira. Em vez disso ele prepara o anestésico. Depois descreve a espera pelo efeito da droga e o encontro da onça adormeci- da cem metros adiante do local onde foi atingida. Por fim, observa:

Para recompensar Gigante por seu excelente trabalho, nós o levamos até o felino. Embora aquelas garras o tivessem ferido poucos minutos antes, ele olhou para o corpo imóvel sem expressão. Nós não sabíamos na hora que essa seria a última caçada do cão, que sua vida estava se esvaindo lentamente (Schaller, 2007: 71).

O comentário final é o obituário de Gigante. Ferido gravemente durante a perseguição, ele não resiste e acaba morrendo por conta de uma hemorragia. A morte do cão aponta, nesse caso, para um novo paradigma: ela é apenas uma fatalidade, enquanto a onça não só sobrevive, como recebe uma coleira de rádio e passa a ser seguida por meio de dispositivos associados a toda uma nova gama de atores. Este outro trecho se refere ao estranhamento do caçador nativo diante da novidade. Em seguida, Schaller (2007: 72) registra os dados tomados na captura:

Em outras caçadas, o felino já estaria morto há muito tempo. “Eu estaria tirando sua pele agora”, Dantas comentou enquanto nós nos preparávamos para registrar seus dados vitais.11 Ela pesou 70 quilos e mediu quase dois metros da ponta do nariz à ponta do rabo – um animal pequeno pelos padrões do Pantanal, onde jaguares são maiores do que em qualquer outro lugar na América do Sul. Richard, que pesa cuidadosamente troféus, me disse que uma fêmea adulta pesa em mé- dia 90 quilos e que seu macho mais pesado chegou a 120 quilos. (...) Peter e eu colocamos o colar de rádio.

Desde 1978, mediante um convênio entre o IBDF e a Fundação Brasilei- ra para a Conservação da Natureza (FBCN), o projeto no Pantanal contou com ago., 2019 ago., – a participação de Peter Crawshaw, biólogo brasileiro que se tornaria referência na consolidação da pesquisa e conservação de carnívoros no país. Escrevendo,

517, mai. 517, em uma perspectiva histórica, sobre a conservação da onça-pintada, Crawshaw – chama atenção para o fato de que o conhecimento produzido sobre a história natural da espécie antes da vinda de Schaller ao Brasil, em 1977, era embasa- do principalmente na experiência de caçadores, viajantes ou naturalistas. A principal referência mencionada por ele é o livro Jaguar hunting in Mato Grosso, de Antonio de Almeida, publicado em 1976 – apenas um ano antes da chegada do pesquisador norte-americano (Crawshaw, 2006b: 18). Lançado pela editora britânica Safari Press, Jaguar hunting é um misto peculiar de his- tória natural e narrativa de aventuras, com caçadas nas quais o autor acom- panha visitantes de diversas partes do mundo. O livro traz uma série de ob- servações acerca do comportamento e dos hábitos alimentares das onças, in- cluindo dados sobre conteúdos estomacais, medidas dos crânios e peso de sociol. antropol. | rio de janeiro, v.09.02: 495 | rio de janeiro, antropol. sociol. artigo | vinícius zanoli

851

cada um dos animais caçados. Produz, com isso, dados quantitativos que ser- viram de referência para estudos científicos posteriores. Além de ser uma referência bibliográfica, contudo, Antonio de Almeida é também mais um participante da captura da onça-pintada narrada acima por Schaller. Ele vinha a ser associado do “expatriado britânico” Richard Mason (Schaller, 2007) no agenciamento de caçadas guiadas para turistas interessados em ter o jaguar como troféu.12 Em meio às caçadas narradas em Jaguar hunting, reencontramos nosso cão mestre:

Foi aqui que encontramos Gigante, um cão mestiço castrado que pertencia a um vaqueiro local e que nos acompanhou como guia durante essa caçada. Gigante nos seguiu de perto durante os primeiro três dias, perto demais, de fato, sem demonstrar nenhum interesse em caçar (Almeida, 1976: 117).

Do desinteresse inicial do cão, o autor relata a seguir sua incorporação ao grupo de onceiros a partir das experiências vividas naquela caçada:

Um dia soltamos a matilha num rastro de puma, e todos exceto o mestiço estavam latindo a cerca de 200 metros a nossa direita. Então começamos a ouvir um lati- do fraco à esquerda e olhando melhor vimos um puma em cima de uma árvore, com Gigante parado sozinho embaixo. Depois disso, é claro, nós o olhamos com muito respeito e, à medida que ele ia ficando cada vez melhor durante essa ca- çada, na qual mais três felinos foram mortos, nós mais ou menos obrigamos o vaqueiro a nos vendê-lo (Almeida, 1976: 117).

A conclusão desse trecho do livro é em tom de homenagem, resumindo bem a importância do cão para o autor. Chama atenção, nesse caso, o uso da locução verbal indicando a continuidade da ação no presente; ou seja, o fato de que ele escreve com Gigante ainda vivo: “Desde então, o latido desse eunu- co magro tem sido sempre um sinal seguro do rasto fresco de um felino” (Al- meida, 1976: 117). O livro de Almeida se inscreve, como veremos adiante, em uma linhagem de caçadores-naturalistas que remonta à publicação do relato de Theodore Roosevelt sobre sua visita ao Brasil, no qual abundam narrativas de caçadas de onças. O texto de George Schaller sobre sua experiência com o jaguar no Pan- tanal, por sua vez, estabelece um marco temporal para um novo gênero. Junta- mente com os artigos científicos que publicou com seus colaboradores na pes- quisa, ele se situa no início de uma produção consistente sobre a onça-pintada no Pantanal que se estabeleceu na área da biologia da conservação ao longo dos últimos 40 anos. Quando aproximamos os dois autores, um dos elementos que se torna visível é a mudança de paradigma em relação à onça: a fera ameaçadora do passado sendo substituída pela espécie ameaçada do presente. A aproximação, porém, revela-se mais complexa do que isso. Personagem dos textos de Almei- da, o caçador, e de Schaller, o biólogo da conservação, Gigante atravessa uma “mais ativista do que gestora”: ativismo institucional no campo do movimento lgbt em campinas

852

fronteira problemática. Em um primeiro momento, afinal, os autores estariam em campos opostos no que se refere a suas práticas. De um lado, aqueles que trabalham pela conservação da espécie; de outro, aqueles que trabalham para sua eliminação. A ideia de uma fronteira estável, contudo, não descreve bem o que se passa no Pantanal, especialmente quando olhamos para as múltiplas interações colocadas em jogo nessas práticas.

Em 1913, Theodore Roosevelt, então ex-presidente dos Estados Unidos,13 participou de uma expedição na companhia de Cândido Rondon que tinha como objetivo desbravar uma região ainda não cartografada do oeste brasilei- ro. A viagem foi tema do livro Nas selvas do Brasil, publicado em 1914 nos EUA (Roosevelt, 1976). Além das intempéries enfrentadas na navegação pelo rio da Dúvida,14 o livro narra uma série de caçadas de onça durante a passagem do autor pelo Pantanal. Analisando o que batizou com precisão, em um texto de 1984, de Teddy Bear Patriarchy,15 Donna Haraway apresenta Roosevelt como o grande patrono do Museu Americano de História Natural em Nova York. A figura do ex-presidente, nesse contexto, está ligada a um ideal no qual a caça esportiva se associa a um projeto naturalista em que os exemplares abatidos são taxidermizados e preservados em coleções zoológicas.16 Haraway tem a capacidade admirável de articular questões socioculturais, políticas e ecológicas, em uma leitura em quem humanos e não humanos, cientistas e não cientistas, são igualmente protagonistas de uma histó- ria conjunta. Ela mostra, nesse caso, como o estilo literário de Roosevelt remete a uma aliança peculiar entre desbravamento das fronteiras, refinamento pessoal e desenvolvimento científico, reforçando a imagem paternalista do autor como che- fe da nação. O livro do ex-presidente norte-americano é o mais antigo da série de rela- ago., 2019 ago.,

– tos que estou apresentando aqui, os quais se voltam para as “selvas” brasileiras

tendo o Pantanal como cenário e a onça como protagonista em histórias de caça. Uma série que se encerra, de certa forma, com a publicação de Jaguar hunting in 517, mai. 517, – Mato Grosso, já nos anos 1970 – livro no qual, não por acaso, a figura de Roosevelt é evocada de forma reverente em diversas passagens. Outro exemplo literário conhecido, no que se refere a narrativas de caçadas, é Sasha Siemel, um caçador nascido na Letônia que viveu na região sul do Pantanal na primeira metade do século XX. O primeiro livro autobiográfico de Siemel (Tigre- ro, de 1953), traz como elemento central de sua trama o encontro do autor com o índio Joaquim Guató, o detentor dos segredos da técnica única de caça, ligada ao uso de uma lança denominada zagaia; técnica que Siemel seria o “primeiro homem branco” a experimentar. Há um contraste, formulado no livro, entre as imagens do índio corrompido pela bebida, de um lado e, de outro, o perfeito caçador, dotado de “qualidades e instintos quase sobre-humanos” (Siemel, 1953: 27). sociol. antropol. | rio de janeiro, v.09.02: 495 | rio de janeiro, antropol. sociol. artigo | vinícius zanoli

853

O caçador branco, nesse caso, admira o “tigre”17 como um inimigo hon- rado, e enfrenta-o extrapolando o código da nobreza esportiva, colocando em risco a própria vida. Ao mesmo tempo, apresenta em segundo plano o sacrifí- cio do animal como algo necessário, um serviço para a comunidade. A descri- ção do animal nocivo aparece, por exemplo, quando o autor é questionado pela futura esposa, em Nova York, sobre a importância de se preservar os ani- mais selvagens: “Eu expliquei […] que também não gostava de matar animais; e que minha caçada era para abater um animal assassino, do mesmo modo que um policial seria capaz de matar um assassino humano” (Siemel, 1953: 274). Neste outro trecho, argumenta: “O puma era um destruidor de gado e um dos raros animais da selva que matam unicamente por matar. [...] Eles [pumas] são covardes” (Siemel, 1953: 276). Os termos usados para descrever animais – “assassino”, “covarde” – con- trastam, entretanto, com as características de nobreza, bravura e honra da fera enfrentada pelo zagaieiro. “Você vai ver que o tigre não responde à lógica humana, e não entende o significado de piedade. [...] O tigre é um dos inimigos mais honrados que você irá encontrar” (Siemel, 1953: 16). A ambiguidade entre o animal nocivo e o adversário de valor atravessa toda a narrativa de Siemel, e é essa ambiguidade que define a identidade heroica do caçador como alguém capaz de eliminar uma ameaça e ao mesmo tempo sobrepujar um “inimigo honrado”.18 A onça é o adversário contra o qual o autor prova suas qualidades e preenche seu espírito, bem de acordo com o modelo de história natural preco- nizado por Roosevelt e analisado por Donna Haraway. Partindo da escultura com a figura patriarcal do ex-presidente na entrada do Museu de História Na- tural, Haraway se volta para o trabalho de Carl Akeley, o caçador, naturalista, escultor e taxidermista que deu forma às exposições públicas do acervo.19 De acordo com ela, as esculturas em bronze de Akeley representando os caçadores de leão nandi, do leste da África, somadas às filmagens desse tipo de caça, se traduzem em uma imagem que representaria, na narrativa do museu, a essên- cia da caçada. Algo que viria a embasar, em uma perspectiva evolucionista, o modelo do “homem caçador” como protagonista da história humana (Haraway, 1989: 28).20 O livro de Sasha Siemel parece nos fornecer uma imagem do mesmo tipo. Nele, o autor descreve sua transformação em um tipo especial de caçador, o zagaieiro, que enfrenta sozinho o “tigre”, armado apenas com uma lança. O “homem contra a natureza nos mais primitivos termos” (Siemel, 1953: 27). A essência da caçada. O sentimento evocado é de comunhão com a natureza e intimidade com o território, extrapolando em muitos aspectos o elemento prag- mático da eliminação de animais. Assim como Siemel, Antonio de Almeida é caçador profissional e guia de safáris internacionais. Seu Jaguar hunting, publicado duas décadas depois “mais ativista do que gestora”: ativismo institucional no campo do movimento lgbt em campinas

854

do Tigrero!, de Siemel, é influenciado diretamente pelo estilo de seu predeces- sor, além de voltado para o mesmo público de caçadores esportivos e entusias- tas da caça. A ambiguidade não formulada entre admiração e eliminação é própria de um determinado espírito de época, evocado por Almeida em tom nostálgico. As citações de Roosevelt e de Siemel no livro repetem sempre uma mesma fórmula: “Roosevelt himself”, “Sasha Siemel himself”, o que demonstra a autoridade e a distinção moral conferidas a essas figuras pelo autor. O capítulo “O papel do caçador” (Almeida, 1976) opõe a “caça esportiva” (sport hunting) e a “caça furtiva” (poaching), expressando também uma hierarquia cujos aspectos etnocêntricos permanecem não questionados. A posição assu- mida por ele frente aos “ecologistas de poltrona”, por sua vez, aponta para o que seria uma decadência da sociedade moderna urbana contra a qual o ca- çador esportivo estabelece seu código moral na qualidade de defensor da vida selvagem. O livro traz também uma ambiguidade eloquente entre a arma e a câ- mera. Quando fala sobre os equipamentos utilizados no campo, Almeida (1976: 145) cita sua marcas preferidas de armamentos: “Quanto às armas, o revólver Smith & Wesson, é claro, já tem uma longa tradição em Mato Grosso, onde nenhum homem cavalga desarmado” e, na sequência do mesmo capítulo, acres- centa suas câmeras prediletas: “Não é de espantar, portanto, que minhas duas Pentaxes tenham tido sua quota de mergulhos” (Almeida, 1976: 148). Nesse caso, como observa Donna Haraway a respeito de Akeley, atirar e clicar (em inglês usa-se o mesmo verbo, to shoot) são expressões do mesmo desejo de documentação. Sobre os escritos de Carl Akeley, Haraway observa ainda que, quando fala a respeito dos caçadores de leão africanos que esculpiu em bronze, Akeley se refere a eles como “homens”, sendo que “em todas as outras circunstâncias, ele se refere aos africanos adultos como rapazes (boys)” (Haraway, 1989: 28). O ago., 2019 ago.,

– papel do nativo no relato do caçador branco é, nesse caso, quase sempre o de

um auxiliar tratado de forma paternalista, a não ser nos momentos em ele representa um tipo ideal, uma figura do homem em estado natural. 517, mai. 517,

– Em Jaguar hunting, todos os caçadores nativos que trabalham com Al- meida, homens adultos e caçadores experientes, são tratados de forma seme- lhante. Como nesta passagem: “…antecipando a caçada do dia seguinte, ou- vindo o zumbido dos insetos, as vozes abafadas, sonolentas dos rapazes [boys] em suas redes” (Almeida, 1976: 163-164), ou então nesta outra: “Se tivemos um rapaz [boy] mais corajoso do que Raimundo, foi Gonçalo” (Almeida, 1976: 166, grifos meus). O paternalismo presente nesses trechos, assim como o protagonismo dos caçadores “brancos”, não anula, porém, a admiração do autor em relação a seus colaboradores locais. Almeida não se cansa, nesse sentido, de chamar a atenção para as habilidades dos pantaneiros na caça. Descreve em detalhes o modo sociol. antropol. | rio de janeiro, v.09.02: 495 | rio de janeiro, antropol. sociol. artigo | vinícius zanoli

855

como lidam com os cães, assim como os instrumentos sonoros fabricados com cabaças para imitar o som das onças. Os caçadores nativos, antigos zagaieiros, apresentam, no entanto, sempre essa ambiguidade fundamental: ora eles apa- recem como heróis idealizados, ora como auxiliares subalternos do caçador branco.21 No que se refere à relação do autor com os modos de vida locais, Jaguar hunting pode ser aproximado, em sua dimensão propriamente etnográfica, a alguns dos poucos trabalhos antropológicos voltados para a vida nas fazendas do Pantanal. O melhor exemplo, nesse caso, talvez seja a etnografia de Álvaro Banducci (2007), realizada com vaqueiros do Pantanal da Nhecolândia, na qual a economia das relações locais é descrita a partir de uma articulação entre os pares bravo e manso, doméstico e selvagem. Banducci (2007: 125) observa, a esse respeito, que no “Pantanal, a onça é a criatura que melhor realiza essa repre- sentação ‘pura’, ‘extrema’, de selvageria”. As onças encarnam, de acordo com ele, uma espécie de tipo ideal da selvageria ou da braveza, sendo que uma das consequências que tira disso é o fato de que “os indivíduos que conseguem capturá-la são distinguidos entre seus pares por sua coragem e ousadia” (Ban- ducci, 2007: 125). Há aqui, portanto, pelo menos aparentemente, uma convergência entre os valores regionais e aqueles do caçador naturalista representado pelo Jaguar hunting de Almeida. Nesse caso, a ambiguidade em relação aos colaboradores nativos repercute aquela que se constitui com as onças. Os primeiros são toma- dos ora como subalternos, incivilizados, ora como ideais de uma certa mascu- linidade ligada ao enfrentamento do elemento natural. E as onças, por sua vez, são caracterizadas ora como nobres inimigas, representantes de uma natureza a ser subjugada, ora como animais nocivos que devem ser eliminados. Em todo caso, à dimensão do enfrentamento com a natureza selvagem, soma-se, em ambos os casos, a dimensão “científica” de uma história natural que se propõe a preservar para a posteridade exemplares, ou espécimes, tomados como tipos ideais.

Diante de uma rede de relações locais na qual a caça é o modo de rela- cionamento privilegiado com as onças, podemos imaginar as dificuldades que George Shaller enfrentou quando chegou ao Pantanal para implantar seu pro- jeto, em 1977. A própria situação do campo era complicada. Por um lado, a Fa- zenda Acurizal, que lhe servia de base, oferecia as condições ideais para a pes- quisa, com a infraestrutura de uma propriedade rural situada em pleno territó- rio do jaguar.22 Um sistema de estradas e caminhos, edificações, animais de montaria, moradores locais com conhecimento do terreno, tudo isso permitiu o desenvolvimento da logística complexa implicada nas atividades de campo. Por outro lado, entretanto, a percepção das onças por parte da comunidade “mais ativista do que gestora”: ativismo institucional no campo do movimento lgbt em campinas

856

local era estruturalmente negativa. E o pesquisador aprendeu de forma traumá- tica como as onças podiam ser vistas como fonte de prejuízo ou como ameaça, ou ainda como uma prova de coragem para os vaqueiros. De fato, a situação de conflito se tornou tão intensa que acabou impossibilitando a continuidade do projeto depois que as onças monitoradas pelos pesquisadores foram mortas pelos próprios funcionários da fazenda. A respeito desses eventos, Schaller (2007: 72) afirma:

Um dos vaqueiros relatou que as ordens para atirar em todos os jaguares tinha sido dada por Geraldo, o gerente que verificava o rancho de tempos em tempos em nome do proprietário ausente. Na opinião de Geraldo, o gado e as onças não podiam coexistir.

A relação de conflito entre onças e fazendeiros repercutia, assim, em um segundo conflito, dessa vez entre ambientalistas e moradores locais. De- siludido com os acontecimentos, ele conclui: “Duas onças-pintadas foram mor- tas. Se não houver uma mudança nas atitudes locais, apenas um grande parque nacional pode salvar a onça do Pantanal” (Schaller, 2007: 75). Depois de encontrar uma nova área de pesquisa, ao sul do Pantanal, Schaller deixaria o projeto, em 1980, com um sentimento explícito de frustra- ção. Seriam dois colegas, Peter Crashaw e Howard Quigley, que dariam conti- nuidade à pesquisa e conseguiriam por fim desenvolver um estudo consisten- te nos anos seguintes. Refletindo sobre os acontecimentos que levaram ao abandono da Fazenda Acurizal, Crawshaw (2006b: 19) observa:

Quando uma vez eu perguntei se [Schaller] escreveria um livro sobre seus estu- dos no Brasil (como havia feito em todos os outros projetos que realizou), ele respondeu que provavelmente não o faria, porque seria muito triste.

Em termos dos resultados objetivos, o projeto esclareceu aspectos im- portantes da ecologia das onças. Schaller já havia observado, em seu trabalho

ago., 2019 ago., com os leões do Serengueti, que eles eram predadores oportunistas cujos há- –

bitos alimentares estavam relacionados à disponibilidade e acessibilidades das presas. E isso podia ser medido em termos da biomassa23 disponível de cada 517, mai. 517,

– uma delas no ambiente (Schaller, 1972). O modelo elaborado a partir do leão africano serviria de base para os estudos no Pantanal, os quais incluíram pes- quisas com algumas das principais presas silvestres das onças, como capivaras e jacarés, investigando como a predação afetava a dinâmica populacional des- ses animais. No caso pantaneiro, o pesquisador concluiu que o gado doméstico, co- existindo com os animais selvagens, era de longe a espécie mais disponível para as onças. A quantidade de gado foi estabelecida como sendo aproxima- damente dez vezes maior, em termos de sua biomassa, do que a soma de todas as espécies nativas das quais as onças se alimentavam. Confirmou-se então, com dados quantitativos e sem grandes surpresas, que o gado havia se con- sociol. antropol. | rio de janeiro, v.09.02: 495 | rio de janeiro, antropol. sociol. artigo | vinícius zanoli

857

vertido no principal item na dieta das onças-pintadas em grande parte do Pantanal (Schaller & Crawshaw, 1980).24 Em 1980, a antiga fazenda Miranda Estância,25 localizada na confluência dos rios Miranda e Aquidauana, na região sul do Pantanal, proporcionou final- mente um ambiente favorável para o desenvolvimento do projeto idealizado por Schaller. A fazenda foi pioneira na adoção de medidas conservacionistas, assim como na implantação do ecoturismo nessa região, e, entre 1980 e 1984, Crawshaw e Quigley nela estabeleceram uma base sólida para a pesquisa. A estrutura produzida por eles envolvia o apoio dos administradores e uma re- lação cooperativa com vaqueiros e moradores locais, muitos deles com expe- riência de caça. O relatório final do projeto afirma:

Até 1966, a fazenda Miranda Estância contratava caçadores profissionais para diminuir o número de felinos e a sua predação no gado. Um desses caçadores matou, em um período de 8 anos (1959-1966), 68 pintadas e 275 pardas, apenas na área da fazenda. [...] Embora essa atividade tenha sido proibida a partir de 1966, o controle é difícil, e, ocasionalmente, alguns animais são mortos para “diversão” dos peões e para treinar cachorros, uma vez que um bom cachorro onceiro e um revólver 38 são os maiores símbolos de status entre os pantaneiros (Crawshaw & Quigley, 1984).

A paisagem socioambiental do Pantanal é marcada por essa associação histórica entre criação do gado e caça. Crawshaw relata que, com o tempo, se formou na Miranda Estância uma estrutura que contava com os próprios ca- valos e com cachorros para as capturas – cães que conseguiram com morado- res locais, outros que eles próprios treinaram a partir daí (comunicação pes- soal em outubro de 2007). Os pesquisadores conseguiram assim capturar e rastrear uma quantidade significativa de onças, usando pequenas aeronaves ultraleves para sobrevoar a área de estudo com equipamento de rádio. Com isso produziram um trabalho que se tornaria uma referência. De fato, desde as primeiras capturas de onças no âmbito de projetos científicos no Pantanal, o método tradicional da caçada com cães mostrou-se mais eficaz do que qualquer outro, tendo sido até hoje o mais utilizado.26 No início dos anos 2000, por exemplo, três novos projetos voltados para o estudo da espécie se instalaram na mesma região em que Crawshaw e Quigley traba- lharam, e todos eles contaram com a participação de caçadores nativos e cães onceiros (Azevedo & Murray, 2007; Cavalcanti et al., 2010; Silveira, 2004). É significativo, nesse sentido, que um desses projetos tenha implantado um ca- nil – o Canil Jaguaretê – no qual os pesquisadores criam e treinam cães espe- cificamente para a captura de onças.27 O tema, porém, é controverso. Em artigo sobre os métodos de campo para o estudo das onças, Furtado et al. (2008: 41) afirmam: “A captura de onças-pinta- das com cães treinados é atualmente o método de captura mais frequente”, mas observam que “é importante se considerar que a caçada de onças-pintadas é “mais ativista do que gestora”: ativismo institucional no campo do movimento lgbt em campinas

858

proibida na maior parte dos países em que a espécie ocorre e que a contratação de caçadores e cães de caça viola princípios legais e éticos” (Furtado et al., 2008: 42). Há, nesse caso, uma interface evidentemente problemática entre a caça e a conservação, que diz respeito ao fato de que as onças foram historicamente per- seguidas e eliminadas por fazendeiros intermediados por caçadores e com uso de cães (e em muitos lugares continuam sendo, apesar da proibição). Ao mesmo tempo, porém, como vimos, esses mesmos cães, assim como os conhecimentos dos caçadores nativos, foram decisivos na constituição dos estudos sobre a onça pantaneira. Esses estudos envolveram, de fato, a conso- lidação gradual de uma trama28 na qual onças, cães, pesquisadores, caçadores, tranquilizantes e armas de ar comprimido, transmissores de rádio, gado, va- queiros, rastros e sinais de diversos tipos, tudo isso adquire uma configuração particular. Uma rede complexa de relações a partir da qual se produzem dados sobre o comportamento das onças e ao mesmo tempo se tecem alianças ne- cessárias para a conservação da espécie.

Mas retomemos, ainda uma última vez, as caçadas narradas por Antonio de Almeida em Jaguar hunting. Há uma história que costura o livro todo, con- ferindo-lhe uma estrutura narrativa. Trata-se do embate do caçador com um determinado animal, devidamente nomeado, individualizado e condenado co- mo matador de gado (stock killer); um fora da lei e ao mesmo tempo um adver- sário de valor. Neste trecho ele é apresentado ao leitor:

O jaguar que fugiu tinha uma das maiores pegadas que eu já tinha visto, medin- do quinze centímetros de largura. Daquele dia em diante ele foi apelidado de Big Richard pelos vaqueiros (...) em homenagem aos pés de Richard [Mason, sócio do autor]. Muitas vezes nós tentamos encontrá-lo enquanto caçávamos com clien- tes nos anos seguintes, mas ele sempre fugia para o mato fechado, aleijando e matando cachorros e indo embora quando os homens se aproximavam (Almeida, ago., 2019 ago., – 1976: 50).

Big Richard é citado estrategicamente ao longo dos capítulos, à medida 517, mai. 517,

– que o cenário para o embate com esse inimigo animal é construído, até o clímax nas páginas finais do livro. Usando recursos que remetem ao estilo de Sasha Siemel – que lhe serve de referência –, na passagem a seguir Almeida inter- rompe a sequência de eventos ligados à perseguição da onça para recortar um quadro estático, antecipando o desfecho da narrativa:

Uma incrível visão primitiva foi iluminada: a vinte metros de distância, com a cabeça perto do chão, Big Richard estava emitindo seu último chamado. As notas roucas ecoaram [...] por toda a floresta pantanosa que tinha, por tanto tempo, sido o seu reino (Almeida, 1976: 192-193).

O registro da morte é seguido pela medição do crânio do animal, quando o caçador se dá conta de que está diante de um prêmio maior do que esperava: sociol. antropol. | rio de janeiro, v.09.02: 495 | rio de janeiro, antropol. sociol. artigo | vinícius zanoli

859

Antes que Thornton pudesse perceber o seu erro, ele disparou o tiro. [...] Uma das balas tinha atingido o cérebro, interrompendo instantaneamente sua carrei- ra. [...] O rei estava morto. [...] Eu pude ver que sua cabeça era fora do comum, mas não percebi na hora que tínhamos conseguido um novo recorde mundial (Almeida, 1976: 193).

Por fim, um resumo daquilo que pode ser tomado como um tipo ideal dentro do que o livro representa:

Pareceu-me perfeitamente adequado que esse velho jaguar, que tinha por tanto tempo medido forças conosco, tivesse quebrado o recorde e que agora, totalmen- te reconstituído pelo grande taxidermista Mario Aguilar, na Cidade do México, estivesse imortalizado para a posteridade, para um dia tomar seu lugar em um museu público (Almeida, 1976: 194).

O modelo de história natural preconizado pelo autor encontra aqui um exemplo perfeito: o adversário de valor, enfrentado em seu habitat, é imorta- lizado pela ciência. O abate de Big Richard é uma experiência de comunhão com a natureza e, ao mesmo tempo, um novo recorde para os registros cientí- ficos; uma caçada de tirar o fôlego e um belo exemplar para um museu de história natural. Como contraste temos o texto de George Schaller visto na primeira par- te deste artigo, que traz também a narrativa da perseguição de uma onça, cap- turada com a participação de Gigante. Dessa vez, porém, o objetivo é a colo- cação de um colar de rádio. Schaller refere-se, ainda no mesmo texto, a uma segunda onça equipada com radiocolar, que havia sido capturada com o uso de uma armadilha de caça e que estava acompanhada de uma filhote, também fêmea. Nos momentos finais do projeto, os pesquisadores constatariam que estas duas onças, mãe e filhote, haviam sido mortas a mando do capataz da fazenda. No trecho a seguir, Schaller (2007: 76-77) descreve o momento em que encontram a pele desta última:

A nosso pedido, um funcionário do serviço florestal visitou Acurizal para inves- tigar a matança de onças. Ele também confiscou a pele de onça-pintada que Aníbal tinha escondido na casa dele. Agora, pela primeira vez eu a vejo – o jovem animal que me enganou em vida. A pele com sua triste beleza, seus olhos vazios, seu buraco de bala – eu não queria guardar esta lembrança.

O contraponto é notável em relação ao tipo ideal de animal de caça formulado por Antonio de Almeida. Big Richard, uma síntese eloquente da tradição à qual ele pertence, é o exemplar ideal preservado por taxonomia.29 A pele de onça encontrada por Schaller, por sua vez, é de uma jovem fêmea abatida pelos vaqueiros da fazenda, um animal cuja morte evidencia as difi- culdades implicadas na conservação da espécie. Frágil, ameaçada pelas ativi- dades humanas, ela não poderia oferecer um contraste maior em relação à figura do grande macho dominante. “mais ativista do que gestora”: ativismo institucional no campo do movimento lgbt em campinas

860

No trabalho que me serviu aqui como referência, Donna Haraway mos- tra como as representações realistas de animais no Museu Americano de His- tória Natural estão impregnadas de um ideal de dominação moralizante, pa- ternal e colonialista. Tanto a imagem da natureza selvagem quanto a do “ho- mem” – em suas várias expressões indígenas e locais – estão inseridas, no caso, em uma narrativa histórica subordinada aos preceitos norte-americanos da conquista do Oeste, a fronteira selvagem. O ideal naturalista de ver tudo de lugar nenhum, de verdades científicas puras, indisputadas, é um legado dessa tradição, assim como a busca por um tipo ideal de animal. O antídoto formu- lado por Haraway para essa visão purificadora é uma abordagem que procura recolocar, camada após camada, os elementos de mediação que fazem parte da construção das cenas idealizadas em que os animais são expostos no museu. Partindo dessa referência, minha intenção, na análise da literatura sobre caçada às onças, foi tornar visíveis, de um lado, os pressupostos não marcados da figura dos caçadores-narradores como homens, brancos e pertencentes a uma determinada classe social, e, de outro, a imagem da natureza como ele- mento a ser enfrentado, subjugado. Essa concepção da natureza, tomada como separada e sujeita ao domínio humano, é algo que fundamenta as concepções da humanidade e da animalidade que procurei abordar aqui. A subordinação da natureza repercute, nesse caso, de diversas maneiras. Por um lado, ela remete a uma ligação entre animalidade e servidão. Os animais, nesse contexto, ora são tratados como coisas (propriedade de alguém), ora como máquinas produtivas, ora como fontes de prejuízo a ser eliminadas. Por outro lado, remete também às relações de poder que separam os homens e justificam os privilégios de uma elite que sempre reivindica para si a posição de conhecimento. Vale lembrar que estamos falando, nesse caso, de uma sociedade rigi- damente hierarquizada, em que o corte econômico entre patrões e empregados ago., 2019 ago.,

– se replica em um corte racial evidente, entre fazendeiros brancos e vaqueiros

indígenas e negros. Um mundo no qual um vaqueiro pode no máximo aspirar ao posto de capataz, digamos, mas provavelmente nunca será um fazendeiro. 517, mai. 517,

– É nessa mesma chave que podemos ler o tratamento dispensado aos caçadores nativos por parte de seus empregadores brancos. Eles são empurrados para o outro lado da fronteira, são retratados como guiados por “instintos”, ou então são tratados de forma paternalista (como “boys”). É essa lógica do “macho adul- to branco sempre no comando”,30 a qual opera dos dois lados da fronteira humano/animal, que Haraway (1989) descreve tão bem a tradição do natura- lismo ilustrado ligada a Theodore Rosevelt. Os pressupostos dessa tradição de caçadores-naturalistas caracterizam um modo de representação da onça-pintada que vai ser colocado em xeque, em muitos de seus aspectos, no caso do Pantanal, a partir dos novos paradigmas ecológicos que se estabelecem com a entrada em cena dos projetos conserva- sociol. antropol. | rio de janeiro, v.09.02: 495 | rio de janeiro, antropol. sociol. artigo | vinícius zanoli

861

cionistas na região. Nesse sentido, as duas onças capturadas por George Schal- ler, enquanto ainda estavam vivas, equipadas com os dispositivos de rastrea- mento da biologia da conservação, abriram caminho para a escrita de um novo tipo de história natural, assim como um novo paradigma na produção de co- nhecimento científico. A ideia de que esse novo paradigma substituiu o anterior, entretanto, é limitada. Primeiro, porque a caça, seja ela definida em termos culturais seja em termos utilitários, é uma realidade que persiste e com a qual a conservação da onça pantaneira, na prática, precisa necessariamente lidar. E, por fim, no sen- tido de que, na aproximação entre caça e conservação, o tema do conflito pare- ce não oferecer uma definição final das relações em curso. Trata-se antes de um contexto de efetuação entre outros, incluindo alianças e linhas de continuidade como aquelas que podemos observar na história do cachorro Gigante.

Recebido 6/1/2019 | Revisto 4/4/2019 | Aprovado 8/5/2019

Felipe Süssekind é professor do Departamento de Ciências Sociais da PUC-Rio. Doutor em Antropologia Social pelo Museu Nacional- UFRJ e mestre em história pela PUC-Rio. Autor de O rastro da onça: relações entre humanos e animais no Pantanal (2014). Áreas de interesse: estudos multiespécies; antropologia das ciências; estudos socioambientais. “mais ativista do que gestora”: ativismo institucional no campo do movimento lgbt em campinas

862

NOTAS

1 Agradeço ao professor Eduardo Viveiros de Castro, orien- tador no Doutorado. Ao CNPQ, que financiou a pesquisa. A Peter Crawshaw pela entrevista concedida. 2 Pantanal é o bioma formado pelas planícies alagáveis da região central da América do Sul, ao longo da bacia do rio Paraguai. É uma região conhecida pela biodiversidade que abriga, incluindo uma das maiores densidades de onças- pintadas do continente. O local de pesquisa de Schaller era próximo ao atual Parque Nacional do Pantanal Mato- grossense. 3 Para um histórico da telemetria no Brasil, ver Crawshaw (2006a). 4 George Schaller trabalhou, numa perspectiva conserva- cionista, com algumas das espécies mais icônicas dos grandes mamíferos no mundo. Ele foi um dos primeiros zoólogos a estudar os gorilas-das-montanhas, na África Central (Schaller 1964) e, depois do Pantanal, iria traba- lhar com o panda-gigante, na China (Schaller 1985). 5 Nessa e nas demais citações de originais em idioma es- trangeiro as traduções são minhas.

6 Lei de Proteção à Fauna (lei no 5.197, 1967). 7 Lei de Crimes Ambientais (lei no 9.605, de 1998). 8 A legislação vigente afirma: “§ 2° - “Será permitida, me- diante licença da autoridade competente, […] a destruição de animais silvestres considerados nocivos à agricultura

ago., 2019 ago., o

– ou à saúde pública” (lei n 5.197, 1967). Disponível em:

. Acesso em mar. 2018. 517, mai. 517, – 9 O administrador de uma das fazendas que visitei em mi- nha pesquisa de campo no Pantanal me disse: “antiga- mente tinha muita onça [...] naquele tempo, um bom ca- chorro onceiro valia vinte cabeças de gado, quando era cachorro bom mesmo, mestre” (Süssekind, 2014). 10 A submissão ao julgo humano, no caso dos cães de caça, aponta para um processo mais de doma do que de domes- ticação. Eles precisam preservar seus instintos de caça, mas, ao mesmo tempo, têm seu lado selvagem controlado pela ação dos caçadores. Um cão mestre que não corres- sociol. antropol. | rio de janeiro, v.09.02: 495 | rio de janeiro, antropol. sociol. artigo | vinícius zanoli

863

ponder a expectativa do seu dono e perseguir outro ani- mal que não a onça, por exemplo, será duramente casti- gado, com uma violência que encontra paralelos na “doma bruta” usada com os animais de montaria no Pantanal. Ver, a esse respeito, Süssekind (2017; 2014) 11 O couro das onças era muito valorizado no Pantanal até a caça comercial ser proibida. Sua gordura costumava ser aproveitada na medicina popular, e mesmo a carne era comida com certa frequência (Roosevelt, 1976; Almeida, 1976). 12 Ver a esse respeito: . Acesso em 20 fev. 2018. O post em questão, de autoria de Bert Klineburger, reporta que Almeida e Mason se conheceram durante uma caçada guiada por este último em Angola, e que a partir de então começaram a organizar expedições no Brasil. Foi publi- cado em um blog chamado Hunt Forever, ligado ao Safari Club International, organização sediada em Tucson, no Arizona que advoga pela prática e divulgação da caça es- portiva.. 13 Roosevelt cumpriu dois mandatos como presidente dos EUA até perder as eleições de 1912. 14 O rio da Dúvida foi posteriormente renomeado rio Roose- velt. Ver, a esse respeito, o ótimo livro de Candice Millard (2007). 15 A tradução em português seria algo como “Patriarcado do urso de pelúcia”. Na tradução se perde a ligação que esses brinquedos têm, nos EUA, com a figura do ex-presidente. Eles se popularizam com esse nome a partir de uma série de caricaturas publicadas na imprensa norte-americana, no início do século XX, representando uma situação de caça em que Roosevelt teria poupado um filhote de urso. Disponível em: . Acesso em 26 dez. 2018. 16 Os dados sobre animais abatidos na expedição de Roose- velt à África são estonteantes: “Ao todo, Roosevelt e com- panheiros mataram e caçaram mais de 11.397 animais, desde insetos e toupeiras a hipopótamos e elefantes. [...] Toneladas de animais e suas peles em sal foram enviados para Washington”. Disponível em:

864

org/wiki/Theodore_Roosevelt#cite_note-SIA-52>. Acesso em 20 fev. 2018 17 Escrevendo em inglês, Siemel usa, estranhamente, o ter- mo “tigre”, em espanhol, em vez de “jaguar” ou “onça”, que são os termos usados em português. Almeida (1976, p. 61) comenta a esse respeito o seguinte: “O nome usado para o jaguar em todo Brasil é ‘onça’ [...] A palavra ‘tigre’ nunca é usada no Brasil. Por que, em todos os seus livros, Sasha Siemel sempre se refere ao jaguar como ‘tigre’, con- siderando que ele nunca caçou fora do Brasil, é uma ques- tão que sempre me intrigou”. De acordo com minha hipó- tese, isso se deve à vinculação da obra de Siemel aos li- vros de aventura referentes à conquista do Oeste nos EUA. 18 Uma coleção de fotografias do acervo de Sasha Siemel encontra-se exposta na pousada da Fazenda San Francis- co, em Miranda (MS), na qual fiz parte de meu trabalho de campo (Süssekind, 2014). O caçador com a mulher e o filho, sorridentes, aparecem nelas portando zagaias, es- pingardas ou arco e flecha, quase sempre agachados atrás do corpo de um animal selvagem, na maioria dos casos onças-pintadas. A coleção inclui também instantâneos de uma filmagem em que o caçador enfrenta uma onça usan- do uma zagaia. Essas filmagens foram realizadas em um cercado construído na fazenda Miranda Estância, onde Siemel viveu, e ajudaram na divulgação de seus livros, publicados nos EUA (Benevides & Leonzo, 1999) 19 Akeley criou os famosos dioramas do Natural History Mu-

ago., 2019 ago., seum, com animais empalhados expostos com simulação –

de movimento em cenários realistas. 20 Haraway refere-se aos dez anos de desenvolvimento de 517, mai. 517,

– câmeras que Akeley teve que esperar para filmar com sucesso a caçada do leão com a lança, imagem que seria fundamental na constituição de um ideal do homem pri- mitivo que ficou conhecido como Man, the Hunter (Hara- way, 1989: 28). 21 O caráter ambíguo desses personagens tende a ser rede- finido, de alguma forma, no campo da biologia da conser- vação, quando caçadores são incorporados aos projetos de campo científicos como mateiros, guias ou “práticos” de campo. Abordei esse tema de forma mais sistemática em trabalhos anteriores (Süssekind, 2014, 2017). sociol. antropol. | rio de janeiro, v.09.02: 495 | rio de janeiro, antropol. sociol. artigo | vinícius zanoli

865

22 Havia na época um acordo firmado entre o proprietário da fazenda e o órgão ambiental do governo brasileiro (IB- DF), pelo qual a área seria comprada por este último e transformada em reserva ambiental. Peter Crawshaw re- porta que a negociação não deu certo na época, sendo que apenas 20 anos depois o processo se concretizou: “em 1995, essa fazenda foi comprada pela Nature Concervancy (NC), sob responsabilidade da Fundação Ecotrópica, em Cuiabá, MT, como uma reserva privada; ela é hoje uma extensão virtual do Parque Nacional adjacente” (Cra- wshaw 2006b). 23 Biomassa é a medida usada na biologia para estimar a soma da massa do conjunto dos indivíduos de uma espé- cie. 24 Em linhas gerais, o que as pesquisas apontaram é que não é a falta de presas naturais que faz as onças atacarem o gado, mas antes a disponibilidade de um novo recurso alimentar mais fácil e acessível do que as espécies de presas nativas (Crawshaw & Quigley 1984, Azevedo & Murray 2007, Cavalcanti et al., 2010). Mais de 95% da área do Pantanal é ocupada por propriedades privadas, habi- tadas atualmente por uma quantidade aproximada de quatro milhões de cabeças de gado, de acordo com dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). 25 A Miranda Estância tem sua origem ligada a um grande empreendimento inglês de exportação de carne bovina e foi nacionalizada de forma forçada em 1952, sendo com- prada por empresários brasileiros (Benevides & Leonzo 1999: 149). 26 O uso de armadilhas com laços, considerado mais segu- ro e eficaz, tem sido empregado em capturas de onças para estudos recentes realizados no Brasil, substituindo em muitos casos o uso de cães farejadores. 27 O Projeto Onça-Pintada no Pantanal, sediado na Fazenda Caiman (MS), é desenvolvido pelo Instituto Onça-Pintada, uma ONG conservacionista que atua em diversas partes do Brasil. Informações a respeito do canil estão disponíveis em: . Acesso em 5/1/2019. 28 Recorro ao termo “trama”, neste caso, pensando no modo como Donna Haraway (2016) se apropria da imagem da “mais ativista do que gestora”: ativismo institucional no campo do movimento lgbt em campinas

866

brincadeira da cama de gato (string figures ou simplesmen- te SF). SF é a figura conceitual a partir da qual propõe uma releitura tanto para a ideia da “rede”, desenvolvida no âmbito da teoria-ator-rede (Latour, 2012; Law, 2009), quanto para a ideia da “malha” (meshwork), proposta cri- ticamente por Ingold (2015). 29 Sobre a relação de Carl Aekeley com os espécimes cole- tados por ele, expostos nos dioramas do Museu America- no de História Natural, Donna Haraway (1989: 34) afirma: “O conhecimento científico anulou a morte; só a morte antes do conhecimento era final, um ato abortivo na his- tória natural do progresso”. 30 “O macho adulto branco sempre no comando, e o resto ao resto”, diz Caetano Veloso na canção “O Estrangeiro”. In: O Estrangeiro. Phillips, 1989.

Referências bibliográficas

Almeida, A. de. (1976). Jaguar hunting in Mato Grosso. [s.l.]: Stanwill Press. Azevedo Fernando Cesar Cascelli Murray, Dennis L. (2007). Evaluation of potencial factors predisposing livestock to predation by jaguars. The Journal of Wild Life Management,

ago., 2019 ago., 71/7, p. 2379-2386. –

Banducci Jr., Álvaro. (2007). A natureza do pantaneiro. Cam- po Grande, MS: Ed. UFMS. 517, mai. 517, – Benevides, Cezar & Leonzo, Nanci. (1999). Miranda Estância. Ingleses, peões e caçadores no Pantanal mato-grossense. Rio de Janeiro: FGV Editora. Cavalcanti, Sandra M. C. et al. (2010). Jaguars, Livestock, and People in Brazil: Realities and Perceptions Behind the Conflict. Staff Publications. Paper 918. Lincoln: USDA Na- tional Wildlife Research Center. Crawshaw, Peter G. (2006a). Histórico da radiotelemetria no estudo de felinos no Brasil. I Simpósio de Radioteleme- tria do Brasil. Floresta Nacional de São Francisco de Paula, sociol. antropol. | rio de janeiro, v.09.02: 495 | rio de janeiro, antropol. sociol. artigo | vinícius zanoli

867

RS. Ibama. Disponível em: . Acesso em 7 maio 2018. Crawshaw, Peter G. (2006b). The history of carnivore re- search in Brazil. In: Morato, Ronaldo Gonçalves et al. (orgs.). Manejo e conservação de carnívoros neotropicais. São Paulo: Edições Ibama, p. 15-38. Crawshaw, Peter G. & Quigley, Howard B. (1984). A ecolo- gia do jaguar ou onça-pintada (panthera onca palustris) no Pantanal mato-grossense. In: Estudos bioecológicos do Pan- tanal mato-grossense – relatório final – parte I. Brasília: Ins- tituto Brasileiro de Desenvolvimento Florestal. Furtado, Mariana M. et al. (2008). Studying jaguars in the wild: past experiences and future perspectives. Cat News, special issue 4, The Jaguar In Brasil. Bern: Jaguar Conser- vation Fund, p. 41-47. Haraway, Donna. (2016). Staying with the trouble: Making Kin in the Chthulhucene. Durham/London: Duke University Press. Haraway, Donna. (1989). Teddy bear patriarchy taxidermy in the garden of eden, New York City, 1908-1936. In: Pri- mate visions: gender, race, and nature in the world of modern science. London: Routledge, p. 26-58. Ingold, Tim (2015). Estar vivo: ensaios sobre movimento, co- nhecimento e descrição. Petrópolis: Vozes. Law, J. (2009). Actor network theory and material semiotic’s. In: Turner, Bryan S. (ed.). The new Blackwell companion to social theory. 3rd ed. Oxford: Blackwell, p. 141- 158. Latour, Bruno. (2012) [2005]. Reagregando o social: uma in- trodução à Teoria Ator-Rede. Salvador/Bauru: Edufba/Edusc. Millard, Candice. (2007). O Rio da Dúvida – A sombria viagem de Theodore Roosevelt e Rondon pela Amazônia. São Paulo: Companhia das Letras Morato, Ronaldo G. et al. (orgs.). (2006). Manejo e conser- vação de carnívoros neotropicais. São Paulo: Edições Ibama. Roosevelt, Theodore. (1976) [1914]. Nas selvas do Brasil. Rio de Janeiro: Itatiaia. “mais ativista do que gestora”: ativismo institucional no campo do movimento lgbt em campinas

868

Schaller, George B. (2007). A naturalist and other beasts: tales from a life in the field. San Francisco: Sierra Club Books. Schaller, George. (1985). The giant pandas of Wolong. (Com Hu Jinchu, Pan Wenshi & Zhu Jing). Chicago/London: The University of Chicago Press. Schaller, George. (1972). The Serengeti lion. A study of pre- dator-prey relations. Chicago/London: The University of Chicago Press. Schaller, George. (1964). The year of the gorilla. Chicago: The University of Chicago Press. Schaller, G.B. & Crawshaw, P.G. (1980). Movement patterns of jaguar. Biotropica, 12, p. 161-168. Schaller, G.B. & Vascooncelos, J.M.C. (1978). Jaguar preda- tion on capybara. Z. Saugetierkunde, 43, p. 296-301. Siemel, Sasha. (1953). Tigrero! New York: Ace Books. Silveira, Leandro. (2004). Ecologia comparada e conservação da onça-pintada (panthera onca) e onça-parda (puma con- color), no cerrado e pantanal. Tese de Doutorado. PPGBA/ Universidade de Brasília. Silveira, Leandro et al. (2008). Management of domestic livestock predation by jaguars in Brazil. Cat News, special issue 4, The Jaguar In Brasil. Bern: Jaguar Conservation Fund, p. 26-30. Süssekind, Felipe. (2017). Onças e humanos em regimes de ecologia compartilhada. Horizontes Antropológicos, Por- ago., 2019 ago., – to Alegre, 23/48, p. 49-73. Süssekind, Felipe. (2014). O rastro da onça: relações entre

517, mai. 517, humanos e animais no Pantanal. Rio de Janeiro: 7Letras. – sociol. antropol. | rio de janeiro, v.09.02: 495 | rio de janeiro, antropol. sociol. artigo | vinícius zanoli

869

A história de Gigante: conservação e caça no Pantanal Palavras-chave Resumo Caça; Este artigo aborda o primeiro estudo de campo científico conservação; sobre a ecologia da onça-pintada, realizado no final dos onça-pintada; anos 1970, no Pantanal brasileiro. O ponto de partida é um Pantanal; texto escrito por George Schaller, responsável por aquele conflito. estudo, no qual podemos acompanhar a história do cão chamado Gigante. Trata-se de um personagem que atraves- sa fronteiras difíceis entre práticas de conservação e prá- ticas de caça ou entre um texto conservacionista e um livro escrito por um caçador profissional e guia de safáris. Ao transitar pelas fronteiras entre essas narrativas, a trajetó- ria de Gigante revela diferentes imagens da natureza sel- vagem, as quais se traduzem nas figuras de onças amea- çadoras ou ameaçadas.

GIANT STORY: CONSERVATION AND HUNTING IN THE BRAZILIAN PANTANAL Keywords Abstract Hunting; This article retraces the first scientific field study on the conservation; ecology of jaguars, conducted in the late 1970s in the Bra- jaguar; zilian Pantanal. The starting point is a text written by Pantanal; George Schaller, responsible for the research in question, in conflict. which we can follow the story of a dog called Gigante (Gi- ant). The protagonist traverses the problematic boundaries between the practices of conservation and hunting, or be- tween a conservationist text and a book written by a safari guide and professional hunter. In crossing the boundaries between these narrative genres, Gigante’s trajectory re- veals different images of wild nature, which translate into the figures of threatening or threatened jaguars. “mais ativista do que gestora”: ativismo institucional no campo do movimento lgbt em campinas

870 ago., 2019 ago., –

517, mai. 517, – sociol. antropol. | rio de janeiro, v.09.02: 495 | rio de janeiro, antropol. sociol. http://dx.doi.org/10.1590/2238-38752019v937 artigo | bruna della torre

1 Consejo Nacional de Investigaciones Científicas y 871 Técnicas (CONICET), Universidad de Buenos Aires (UBA), Instituto de Investigaciones Gino Germani (IIGG), Buenos Aires, Argentina [email protected] https://orcid.org.0000-0002-9918-0931 Sergio Pignuoli Ocampo I

Símbolo y comunicación – Hacia un concepto de comunicación simbólica desde la Teoría General de Sistemas Sociales

Introducción En este trabajo examinamos los conceptos de símbolo y de simbolización de la Teoría General de Sistemas Sociales de Niklas Luhmann (en adelante: TGSS) con el propósito de conectarlo de manera sistemática con el concepto general de comunicación. Subrayamos, por tanto, desde un comienzo, que la TGSS cuenta con un concepto de símbolo. Esto podría sorprender a primera vista, pues la raigambre del concepto en la antropología filosófica o en visiones interpretati- vas, comprensivas o discursivas del mundo social podría llevar a la suposición

dic., 2019 dic., de que es repelido por las posiciones sistémicas. Lo cierto es que Luhmann y –

Parsons, así como otros tantos destacados autores inscriptos en la sociología de sistemas, elaboraron sus propios conceptos de símbolo. En el caso de Luh- 893, sep. 893, – mann, el símbolo qua concepto es alojado en las entrañas de la teoría de los Medios de Comunicación Simbólicamente Generalizados (en adelante: MCSG) y queda inscripto así en la teoría general de la sociedad. Esta ubicación privile- giada, orientada por cierto a un objeto tan vasto y complejo como la sociedad, no debería, sin embargo, hacernos perder de vista el hecho de que la sociedad es un objeto específico de la TGSS, y, más allá de la pretensión de generalidad de la teoría abocada a ella, toda definición dada en su seno es una definición es- pecífica, no una general. Esto concierne a todos los conceptos, incluido el de símbolo y el de simbolización (también irónicamente al de generalización). Es indispensable dar una definición general de ellos y, a tal efecto, debe situárselos al nivel de la teoría general de sistemas sociales. sociol. antropol. | rio de janeiro, v.09.03: 871 | rio de janeiro, antropol. sociol. adorno, leitor de marx

872

Esto no significa que Luhmann haya desatendido el concepto de sím- bolo; su aparición es recurrente en textos de distintas etapas de su carrera. Si bien tempranamente fue asociado con la generalización de sentido, en mate- riales anteriores a los años 1980 no se aprecia en el término una conceptuali- zación específica. Ya iniciada esa década tiene lugar una primera elaboración conceptual.1 Así leemos en Soziale Systeme (Luhmann, 1998: 106): “Símbolos, que − a diferencia de las denominaciones a algo distinto − son aquello mismo que designan”. Estas pocas palabras contienen el núcleo singular del concepto: designa la unidad de la remisión a sí mismo de algo que es capaz de remitirse a sí mismo, es decir, indica una identidad en el marco de un programa explícita- mente dedicado a la diferencia.2 En trabajos posteriores, y hasta el fin de los días del autor, este núcleo será conservado. Así, a propósito de la distinción entre signo y símbolo, agregará un tiempo después:

Originariamente, el symbolon fue la representación o el testimonio de la unidad de dos piezas separadas que combinaban entre sí, sobre todo en los casos de ad- quisición de un determinado status a través de la hospitalidad. En estos términos, el symbolon representaba una unión mediante una separación. En el contexto se- miótico esto puede tratarse únicamente a partir de la distinguibilidad (Unterschie- denheit) entre significado y significante, un hecho suficientemente comprehendi- do (designado) por el concepto de signo. Se puede hablar de símbolos en aquellos casos en que el signo designa la propia función de puesta en unidad (Vereinheitli- chung) de lo separado. El símbolo sería, por tanto, la auto-designación (Selbstbe- zeichnung) del signo. Los signos simbólicos no son solo señales orientadoras que apuntan en dirección a otra cosa. Tampoco son meros portadores (Träger) de una referencia significante o de materializaciones del significante, sino que implican, además de todo eso, la indicación de la propia función, la indicación de la propia unidad recién formada del sentido del signo. De esta manera, los símbolos degra- dan la materialización de la puesta en signo hasta convertirla en un mero com- ponente incapaz de actualizar por sí mismo el “sentido que tiene en realidad” el

ago., 2019 ago., signo. Solo a través de la simbolización se hace posible distinguir el signo propia- – mente dicho del significante (Luhmann, 1993: 67, trad. propia).3

Como se ve, a partir de aquella formulación el símbolo dejó de ser una 541, mai. 541, – palabra en la TGSS y se convirtió en un concepto. Con esta definición tendrá dos usos en los trabajos de Luhmann. Un primer uso, que denominamos uso ampliado porque está referido a la teoría del sentido, cuya función será indicar la unidad de las generalizaciones de sentido; y un segundo uso, que denomi- namos uso reducido porque está referido a los MCSG de la sociedad moderna, cuya función será indicar la unidad generalizada de las codificaciones binarias en referencia a la improbabilidad de la aceptación. Ninguno de ambos usos ofrece una definición general del símbolo y de las simbolizaciones en relación con la comunicación. El uso ampliado está indeterminadamente referido al sentido. Por este motivo, primero, carece de referencias a la comunicación y es incapaz de establecerlas por sí mismo, ya sociol. antropol. | rio de janeiro, v.09.02: 519 | rio de janeiro, antropol. sociol. artigo | bruna della torre

873

que simplemente no se puede diferenciar sistemas psíquicos de sistemas so- ciales en el medio del sentido, porque allí participan por igual comunicaciones y consciencias, y, segundo, requiere una operación de reespecificación que co- necte al símbolo con la operación comunicativa y lo situe así en el terreno de la teoría general de sistemas sociales. El uso reducido está excluyentemente concentrado en la sociedad mo- derna funcionalmente diferenciada, por tanto, primero, no está disponible pa- ra sociedades no modernas o para sistemas parciales no funcionales, tampoco lo está para organizaciones, interacciones y/o sistemas de protesta,4 y, segun- do, requiere una operación de generalización que permita situarlo en el terreno de la teoría general de sistemas sociales. En suma, a la conceptualización de símbolo y de simbólico realizada por Luhmann le falta una conexión general con la comunicación qua operación de sistemas sociales. Ello no quita, sin embargo, que sus contribuciones sean altamente significativas y ofrezcan ele- mentos para operar la conexión faltante. Consideramos así que, al estudiarse la conexión entre simbolizaciones y comunicación, se debe atender la formación y el funcionamiento comunica- tivos de los símbolos; si hay símbolos o procesos simbólicamente relevantes más allá (o más acá) de los MCSG y de la sociedad; si junto a los símbolos o simbolizaciones generalizados hay símbolos o simbolizaciones no generaliza- dos o particularizados; e incluso, dentro del reducido ámbito de los MCSG, si hay simbolizaciones generalizadas cuya diferenciación (Ausdifferenzierung) no sea funcional.5 En vista de la heurística positiva (Lakatos, 1974: 25-26) que abren estos interrogantes, entendemos que la tarea de definir en general la conexión del símbolo con la comunicación requiere precisar el concepto con el mayor grado de abstracción posible en relación con la comunicación, seña- lar las condiciones comunicativas de su formación y de su extinción, e indicar tanto sus referencias problemáticas como sus orientaciones funcionales. Como se ve, la tarea excede largamente el marco de este trabajo. Nuestro objetivo aquí será examinar el uso restringido del símbolo en relación con los MCSG y ensayar la operación de generalización, ya que en este uso hay muchos más elementos relativos a la comunicación que en el primero, especialmente en lo relativo a la orientación a la aceptación, donde hay indicios de un intento de generalización ensayado por el propio autor. Con ello se aportará un primer esquema general que permita conectar símbolo y comunicación al nivel de la teoría general de sistemas sociales. Conservaremos sin embargo al primer uso en el horizonte de trabajo, no lo descartaremos, ya que nos servirá para contro- lar las propuestas. Nuestra hipótesis sugiere que, en relación con la improbabilidad de la aceptación, la comunicación estiliza las expectativas frente a decepciones me- diante la introducción de símbolos y simbolizaciones. A esta simbolización de adorno, leitor de marx

874

la comunicación la denominaremos estilización simbólica de las expectativas de aceptabilidad y de rechazabilidad. Con ella designamos procesos pertene- cientes al nivel de la teoría general de sistemas sociales aptos para ser rees- pecificados en los diversos planos de la diferenciación vertical (sociedades, organizaciones, interacciones, sistemas de protesta) y horizontal (sistemas parciales de la sociedad) de planos sistémicos. Cabe una importante aclaración de la hipótesis, pues ella impacta de lleno en la teoría de los MCSG. De acuerdo con nuestra premisa, dicha teoría afronta dos opciones: o bien, (a) ella es generalizada e ingresa a la teoría ge- neral de sistemas sociales, volviéndose reespecificable en todos los niveles verticales y horizontales,6 o bien (b) permanece reducida a la teoría específica de la sociedad. Si se opta por (b), se afrontarían de todos modos dos sub-op- ciones, o bien (b.i) es ampliada al sistema de la sociedad en general y se inda- gan diferenciaciones de MCSG no-modernas y/o no funcionales, o bien (b.ii) permanece reducida a la teoría específica de la sociedad moderna y de la di- ferenciación funcional. Si bien Luhmann elaboró muchas de sus posiciones en dirección a b.ii, dejó indicios de las otras opciones y sub-opciones. En cualquier caso, según nuestra hipótesis, ni a la sociedad moderna ni a los sistemas parciales ni a los MCSG se les podrá atribuir ya pretensiones de exclusividad sobre la comunicación simbólica. A propósito de esto, para saldar debidamente cuentas con el nuestro punto de partida, ensayaremos una sub-hi- pótesis, o hipótesis auxiliar, en la línea de la opción (a), según la cual, los MCSG constituyen una formación especial de comunicación simbólica asociada con códigos binarios y símbolos de mayor alcance, y donde la generalización es equivalente funcional de la normatividad. Así pues, no sólo los MCSG pueden orientarse a la improbabilidad de la aceptación en cualquiera de los planos verticales, sino que también pueden hacerlo hacia problemas de aceptabilidad tanto funcionales, como de estratificación, segmentación y centro-periferia, ago., 2019 ago.,

– con independencia del primado que eventualmente adquirieran modalidades

tanto en la forma primaria de la diferenciación de la sociedad y de los sistemas parciales de ella, como en las organizaciones, interacciones y protestas. 541, mai. 541,

– La exposición seguirá este orden: ensayaremos la generalización del con- cepto de símbolo de la teoría de los MCSG y luego la conectaremos con la teoría de las estructuras de expectativas, puntualmente con el concepto de estilización ante decepciones. Tras ello, saldaremos cuentas con la teoría de los MCSG y am- pliaremos el concepto de comunicación simbólica resultante en los planos de la diferenciación vertical y horizontal de sistemas sociales. Finalmente, discutire- mos los resultados alcanzados y extraeremos las conclusiones. sociol. antropol. | rio de janeiro, v.09.02: 519 | rio de janeiro, antropol. sociol. artigo | bruna della torre

875

Generalización de la función de los símbolos en relación con la aceptación de la comunicación Cada vez que sistematizó la teoría de los MCSG, Luhmann destacó la impor- tancia del concepto de “medio” (Luhmann, 1974, 1981, 1984, 1997). Este designa el sustrato dónde el proceso de generalización simbólica es posible, así como su naturaleza. Sobre él descansa la arquitectura de la teoría y está encadena- do con los otros pilares del fundamento operativo: los conceptos de sistema y de evolución. La sociología es entramada en las otras dos propiedades del concepto: lo “simbólico” y lo “generalizado”. Mientras lo “generalizado” articu- la una dimensión de extensión o alcance − no técnica-propagativa − y una normativa, lo “simbólico” carga la dimensión comunicativa del concepto. To- memos las palabras de Die Gesellschaft der Gesellschaft:

En el contexto del concepto “medios de comunicación simbólicamente genera- lizados”, por “simbólico” se entiende − como en Parsons − que estos medios superan una diferencia y dotan a la comunicación con perspectivas de aceptación […] Los medios simbólicamente generalizados transforman, de manera asombrosa, las probabilidades del no en probabilidades del sí; por ejemplo, al hacer posible ofrecer pagos por bienes o servicios que se desean obtener. Son ‘simbólicos’ en cuanto utilizan la comu- nicación para producir el acuerdo que de por si es improbable. Pero son, al mis- mo tiempo, diabólicos en cuanto que al realizar este cometido producen nuevas diferencias. Así, un problema de comunicación especifico se resuelve mediante un nuevo arreglo de unidad y diferencia: quien puede pagar obtiene lo que desea; quien no, no... (Luhmann, 2007: 248, primer y último énfasis nuestros).

Como se ve, la función primordial de probabilizar la aceptación recae exclusivamente en lo simbólico. A dicha propiedad remitimos entonces los interrogantes generales ¿Qué es, comunicativamente hablando, un símbolo, y qué lo caracteriza como tal? ¿Cómo se forma socialmente y cómo logra tratar exitosamente la improbabilidad de la aceptación? Volvamos a las palabras del autor:

El concepto de “símbolo, simbólico” se utiliza − sobre todo desde el siglo XIX − en un sentido muy general y difuso; muchas veces casi como sinónimo de “signo” (Zeichen). Pero con eso se haría a sí mismo superfluo. Para reponerle su sentido preciso lo limitamos a aquel caso en que el signo designa a su vez su propia función, cuando se vuelve reflexivo. Por ‘propia función’ entendemos: representación (Darstellung) de la unidad de significante y significado (Bezeichnendem und Bezeichnetem). Me- diante la simbolización se expresa (y por eso se hace comunicable) que en la diferen- cia reposa una unidad y que lo separado está unido, de tal suerte que se puede utilizar el significante en representación de lo significado − y no tan solo como alusión a lo significado (Luhmann, 2007: 247-248, énfasis nuestro)

Esta definición establece, en primer lugar, que hay signos y que estos pueden volverse reflexivos, en cuyo caso devienen símbolos. En segundo lugar, no hay signos inmanentemente simbólicos, sino que es imprescindible una operación de reflexión que los conforme como tales, y por esa misma razón ningún símbolo escapa a la posibilidad de volverse signo en la medida en que adorno, leitor de marx

876

dicha reflexión, ora fracase (no se logra establecer unidad entre significante y significado), ora deje de utilizarse. En tercer lugar, en caso de formarse, el símbolo es funcional y produce una unidad significante denominada simboli- zación.7 Sobre este último punto no debemos, sin embargo, precipitarnos. La definición de símbolo es general, pero la descripción de su función no, sólo concierne a la sociedad. Por tanto, antes de pasar de una a la otra, cabe pre- guntarse ¿Qué sucede cuando la comunicación en general (re)introduce sim- bolizaciones? Dicho de una manera menos elíptica ¿Hay comunicación simbó- lica en general, es decir ajena a los MCSG? En lo que sigue, las citas de Luhmann solo nos ofrecerán apoyaturas parciales, pues no fue un tema que el autor alemán profundizara. Examinemos otros pasajes:

Son medios autónomos en relación directa con el problema de la improbabilidad de la comunicación, aunque presuponen la codificación si/no del lenguaje y se hacen cargo de la función de hacer esperable la aceptación de una comunicación (die Annahme einer Kommunikation erwartbar zu machen) en aquellos casos donde el rechazo es lo probable. No surgen sino hasta que hay escritura − con la cual el rechazo de las pretensiones de sentido se hace todavía más probable. Estos medios responden al problema de que más información significa normalmente menos aceptación (Luhmann, 2007: 245).

De acuerdo con lo indicado, la función simbólica es “hacer esperable la aceptación”, es decir, su función es elaborar aceptabilidad mediante simboli- zaciones bajo condiciones lingüísticas de rechazabilidad. Los símbolos ni fuer- zan ni imponen la aceptación, sino que modifican la distribución lingüística de expectativas y refuerzan la expectabilidad de aceptación. Luhmann sugiere asimismo una relación entre la simbolización y la información, ya que, si el incremento de información debilita la aceptabilidad, la reintroducción de sím- bolos contraría esa tendencia y refuerza la aceptabilidad bajo esa condición.8

ago., 2019 ago., A propósito de esto, se lee en la misma obra: –

Aceptación y rechazo desencadenan recursiones diferentes. Esta reflexión ex- plica que en uno de los caminos – propiciado por los rechazos – surgen institu-

541, mai. 541, ciones de superación de los conflictos que deben focalizarse sobre casos parti- – culares imprevisibles de divergencia de opiniones y antagonismo; mientras en el otro camino surge una semántica positiva del sentido aceptado, que – por decirlo así – madura en el proceso de la reutilización, de la condensación, de la abstracción […] Los medios simbólicamente generalizados son uno de los resultados de este proceso. (Luhmann, 2007: 246, énfasis nuestro)

En relación a reforzar la aceptabilidad, o a hacerla menos improbable, en condiciones informacionales que la debilitan, recogemos del pasaje anterior que los elementos asociados a la función simbólica son la reutilización, la condensación y la abstracción, cuyo contexto de emergencia es la semántica. En este sentido, en la medida en que la reflexión del signo es operada en la comunicación, la formación y recursión (i.e. la dinámica) simbólica son actua- sociol. antropol. | rio de janeiro, v.09.02: 519 | rio de janeiro, antropol. sociol. artigo | bruna della torre

877

lizadas cuando son actualizadas, carecen de existencia exterior y suponen sistemas y procesos autorreferenciales. Así pues, la orientación funcional de la simbolización es formar reflexivamente una unidad significante en cuyo horizonte interno la reutilización, la condensación y la abstracción hacen es- perable la aceptación de la comunicación. Esta orientación funcional desemboca en la especial vinculación entre selección y motivación de la comunicación simbólica. Al respecto indica el autor:

El problema combinatorio es resuelto a través de la solución de la relación cir- cular entre selección y motivación (una condiciona a la otra), es decir a conse- cuencia de que el condicionamiento de la selección es convertido en factor de motivación. Se puede aceptar una comunicación sobrecargada de exigencias (zugemutete Kommunikation) si se sabe que su elección obedece a determinadas condiciones; y, al mismo tiempo, quien comunica tales exigencias desmesuradas puede – siguiendo estas condiciones − acrecentar la probabilidad de aceptación y con ello alentarse a sí mismo a la comunicación. De esta manera se resuelve – o al menos se normaliza − el doble problema de la decepción (Täuschung) y de la aceptación (Akzeptanz). La seguridad de que tales condiciones se tomen en cuen- ta aumenta, aunque ellas son por su parte altamente selectivas y de ningún modo abarcan la constelación deseada por completo; se señala esta autodetermi- nación (Selbstfestlegung) mediante el empleo de los símbolos correspondientes, los que atestiguan el uso del médium, de manera tal que se gana la perspectiva de la aceptación de la comunicación (Luhmann, 2007: 249, énfasis nuestro, trad. leve- mente modificada).

La relación circular entre selección y motivación surge cuando se logra motivar selectivamente y seleccionar motivadamente. Es indispensable para ello que la comunicación designe inequívocamente la incorporación de la ex- pectativa de selección entre las condiciones de la motivación. La simbolización es la encargada de tal designación y de distribuir, gracias a ello, las expectati- vas de aceptabilidad reforzadas con este peculiar factor de motivación selec- tivo. En la cita, la idea es derivada del concepto de médium de los MCSG, pero en la medida en que concierne a la constelación Alter ego/alter Ego, cabe ge- neralizarla. Nos quedamos con el principio de que la simbolización altera y redistri- buye las expectativas de aceptabilidad simbolizadas mediante su unidad signi- ficante, y coloca la aceptación bajo un horizonte interno de expectabilidad circular entre selecciones y motivaciones simbólicamente orientadas a la reu- tilización, la condensación y la abstracción de los signos reflexivamente dis- puestos a tales efectos. Así pues, tanto la selección como la motivación se vuel- ven esperables en tanto simbolizadas. Esto se debe a que el símbolo dona unidad significante al reforzamiento selectivo-motivacional de la aceptabilidad. Es decir, las expectativas simbolizadas, orientadas a reforzar la aceptabilidad, for- man un doble círculo entre la circularidad significante (unidad del símbolo) y la circularidad selectiva (motivaciones selectivas, selecciones motivadas). El adorno, leitor de marx

878

lugar central que ocupa la expectabilidad de aceptación nos sugiere continuar el desarrollo en el terreno de la teoría de las expectativas comunicativas de la TGSS.

Estilización de las expectativas de aceptación Hasta aquí indicamos que la simbolización, cuando es introducida en referen- cia a la improbabilidad de la aceptación, se orienta, por un lado, a desplazar el umbral de rechazabilidad en las expectativas de empalme y, por otro lado, a convertir las posibilidades problemáticas de la aceptabilidad en posibilidades abiertas. Para esto último son reforzados simbólicamente determinados signos, condiciones y expectativas en el horizonte de la selección. En estos términos, proponemos considerar que la simbolización establece una relación con la decepción de expectativas y con la explotación de la incertidumbre y la inse- guridad.9 Acerca de la decepción, el aseguramiento y la estilización de expectati- vas en general expresó Luhmann (1998: 268) lo siguiente:

La formación de expectativas iguala un gran número de acontecimientos alta- mente heterogéneos al denominador común de la decepción de la expectativa, y designa así líneas de tratamiento. Uno se ve prácticamente obligado a reaccionar ante la decepción. Esto se puede hacer adaptando la expectativa a la situación de la decepción (aprendizaje) o exactamente al revés, sosteniendo la expectati- va a pesar de la decepción e insistiendo en una conducta de expectativa. Se puede preestructurar, en el interior del sistema, cuál modo de reacción se esco- ge, y sólo de allí depende hasta dónde y en qué dirección uno debe ocuparse de los orígenes de la discrepancia.

El planteo de Luhmann, que sigue aquí muy estrechamente el planteo original de Johan Galtung (1959: 216ss),10 procura encauzar el tratamiento de reacciones y anticipaciones ante decepciones a través del concepto de estili- zación de expectativas. Se habla entonces de decepción de expectativas cuan- ago., 2019 ago., – do un elemento no las satisface y se abre un horizonte de reelaboración orien- tado a reabosorber inseguridades en nuevas expectativas, siendo así estilizadas

541, mai. 541, frente a la posibilidad de decepción. – Ensayaremos a continuación una caracterización de la simbolización como estilización de las estructuras de expectativas relativas a la decepción. A tal efecto debemos primeramente contradecir a Luhmann (2007: 245, trad. levemente modificada), quien indicó que “Los medios de comunicación sim- bólicamente generalizados (sobre todo el derecho) no sirven primariamente para asegurar (Absicherung) las expectativas contra las decepciones (Enttäus- chungen)”. En rigor, desde la perspectiva de la TGSS, nada sirve a tal efecto, ya que simplemente no es posible alcanzar semejante protección o aseguramien- to, más bien se trata de identificar y, eventualmente, explotar la inseguridad, volviendo, por ejemplo, segura o relativamente cierta la aparición de decep- ciones. Y si bien es cierto que ni las generalizaciones simbólicas en particular sociol. antropol. | rio de janeiro, v.09.02: 519 | rio de janeiro, antropol. sociol. artigo | bruna della torre

879

ni las simbolizaciones en general forman expectativas normativas o cognitivas respecto de las decepciones, no es menos cierto que el esquema de Galtung y de Luhmann es cuestionable. Lindemann (2009: 194ss) señala al respecto que el planteo de Luhmann, al igual que el de Galtung, ofrece poca plasticidad para el análisis teórico y empírico de la relación entre decepción y estilización, particularmente en lo concerniente a las expectativas cognitivas.11 Suscribimos el cuestionamiento y agregamos que tampoco luce exhaustivo, ya que hay al menos una opción – no descartamos que haya otras – de reabsorción de decepciones no contem- plada en él, a saber, la opción reflexiva: estilizar expectativas para decepcionar a la decepción. En ese punto, no sólo la inseguridad esperable es estilizada en seguridad esperable, sino que además las expectativas relativas a la aceptabi- lidad ganan precisión dentro del horizonte de expectativas. Es decir, la simbo- lización hace esperable que la decepción sea rechazada a nivel operativo y sea decepcionante a nivel estructural. Lo dicho, la simbolización establece una relación con la decepción de expectativas. Aclaramos ahora que tal relación es negativa, pues consiste en difuminar la decepcionabilidad. Esta difuminación se realiza mediante una elaboración mucho más precisa en materia significante de la aceptabilidad en el horizonte de expectativas. De esta manera, se observa que el doble círculo de las simbolizaciones explota la incertidumbre propia de las expectativas inseguras y redistribuye tales expectativas a los efectos de disparar procesos de estilización dirigidos específicamente a las decepciones por un lado, y de fijar y precisar mediante dicha estilización el predominio de un tratamiento reflexivo de las expectativas por otro lado. En otras palabras, la introducción de simbolizaciones en la regulación de la improbabilidad de la aceptación es- tá orientada a decepcionar la decepción. Para ello forma mediante símbolos un umbral de decepcionabilidad para las decepciones. Entendemos entonces que, en relación con la improbabilidad de la acep- tación, la introducción de símbolos y de simbolizaciones dispara procesos que transforman las inseguridades esperables dadas y la reabsorción anticipada de decepciones establecida. En este sentido, la simbolización orientada a de- cepcionar las decepciones participa de la reelaboración de expectativas y de su estilización. La unidad significante del símbolo fija y precisa de manera novedosa las referencias de las posibilidades de aceptación. Gracias a la alte- ración y la estabilización repentina del horizonte de expectativas que logran las simbolizaciones, las decepciones esperadas enfrentan un hasta entonces inexistente umbral simbólico de inseguridad; sus posibilidades abiertas se convierten en posibilidades problemáticas, ya que se vuelven imprecisas y sus empalmes se difuminan. Al mismo tiempo y de manera concomitante, los sím- bolos fijan y precisan otras referencias de empalme, haciendo que las expec- tativas para su aceptación muden sus posibilidades remotas o problemáticas adorno, leitor de marx

880

en posibilidades abiertas. En consecuencia, entendemos que la estilización de expectativas que logra la simbolización consiste en redistribuir reflexivamen- te la expectatibilidad de la decepción en el horizonte de expectativas. Como se ve, la simbolización no actúa positivamente en pos de la acep- tación, sino que actúa negativamente en contra del rechazo. Simplifica la codi- ficación no-lingüística de la aceptación y complejiza la codificación lingüística y no-lingüística del rechazo. De esa manera, facilita indirectamente la acepta- ción dificultando directamente el rechazo, y esto último es posible porque el rechazo ya no está orientado solo a la codificación del lenguaje, sino que tam- bién lo está hacia la codificación de los símbolos introducidos comunicativa- mente. En tal sentido, la diferencia específica de la decepción no es establecida en referencia a expectativas inseguras – como sugieren Luhmann y Galtung para las normas y las cogniciones –, sino que los símbolos hacen que la decep- ción remita a sí misma y ésta ve transformarse repentinamente su horizonte interno, volviéndose ella propiamente insegura, ya que la negación lingüística y el rechazo simbólico acaban diferenciándose como posibilidades de empalme negativo distintas: en el primer caso, la negación se difumina ante la precisión reflexiva del símbolo, mientras que, en el segundo caso, surge un umbral sim- bólico de contenido mínimo decepcionante para el rechazo. Antes de dar el siguiente paso, recordemos que Luhmann, al igual que Habermas, no define la aceptación comunicativa de manera positiva, sino que lo hace mediante una doble negación: aceptar es rechazar el rechazo. Entonces, la diferenciación de posibilidades de decepción entre rechazo lingüístico y rechazo simbólico implica que, al introducir símbolos en las remisiones a expectativas orientadas a la decepción, la comunicación refuerza la decepción de la decep- ción y hace menos improbable el rechazo del rechazo (= la aceptación). De eso se trata, a nuestro entender, la estilización simbólica de las expectativas. Los símbolos elaboran la decepción de manera decepcionante en el ho- ago., 2019 ago.,

– rizonte de expectativas, es decir estilizan la diferencia como símbolo decepcio-

nante y estilizan su rechazo. Así, gracias a la estilización simbólica, las expec- tativas de decepción se vuelven inseguras, pues vuelven al rechazo decepcio- 541, mai. 541,

– nante, y, por tanto, inseguro e inestable. Esto implica que la decepción de la decepción es estabilizada simbólicamente como rechazable en el plano de las expectativas, y que la distribución asimétrica de la rechazabilidad del símbolo decepcionante hace menos improbable el rechazo del rechazo en los empalmes y en las informaciones. De esta manera, la simbolización reelabora las expec- tativas hasta lograr que la decepción sea la diferencia, pero no a la inversa. Antes de cerrar el apartado queremos volver un momento al umbral sim- bólico de contenido mínimo decepcionante. Lo dicho, la simbolización, a través de su estilización de la decepción, introduce en la comunicación una codifica- ción secundaria del rechazo. De manera que, una vez introducidas las simboliza- ciones, el rechazo y la decepción lingüísticos permanecen como posibilidades, sociol. antropol. | rio de janeiro, v.09.02: 519 | rio de janeiro, antropol. sociol. artigo | bruna della torre

881

pero se forma un umbral de expectativas de rechazabilidad nuevo que involucra al símbolo y establece que el rechazo de la simbolización es más efectivo si la involucra a esta negativamente. O incluso, en una dinámica más compleja, es más efectiva aún si introduce nuevas simbolizaciones que rechacen simboliza- ciones precedentes.12 Esto contiene un potencial espiralado, ya que se abre la posibilidad de contradicciones y de conflictos simbólicos en la comunicación. Con esto último queremos dejar indicado que las simbolizaciones forman nuevas condiciones para la aceptabilidad, pero hacen lo propio también con las condiciones de la rechazabilidad, y que, por tanto, la indagación conjunta del pro- ceso abre un auspicioso campo de trabajo tanto teórico como empírico para la TGSS.

Comunicación simbólica en general, MCSG en particular, y dife- renciación vertical y horizontal En base a lo expuesto en el apartado anterior, cabe preguntarse ¿cuál es el impacto de un concepto general de comunicación simbólica en la teoría de los MCSG? Como es sabido, el tratamiento teórico general de los medios simbóli- camente generalizados encuentra su origen en Parsons y tiene en Habermas y en Luhmann a sus continuadores más notables. Durante las últimas dos décadas su elaboración se ha consolidado y ofrece actualmente uno de los objetos de estudio más novedosos para la sociología de la modernidad, afir- mándose incluso que su investigación constituye por derecho propio un pro- grama (Chernilo, 2002; Mascareño, 2009). Luhmann estableció una relación fuerte entre MCSG y sociedad moder- na y privilegió el tratamiento de los primeros en conexión con esta última. Por lo dicho hasta aquí, entendemos que ese tratamiento teórico de los MCSG debe corregirse. Primero, es necesario establecer una relación general entre estos medios y la comunicación simbólica. Se requiere para eso, una generali- zación del concepto de medios de comunicación simbólicamente generalizados amén la cual queden situados en la teoría general de sistemas sociales; gracias a esto se alcanzará una definición estrictamente comunicativa de ellos, pudién- doselos tratar como medios de comunicación antes que como medios de la so- ciedad. Segundo, es necesario establecer un conjunto de reespecificaciones conectadas con los distintos planos de la hoy día denominada diferenciación vertical de sistemas sociales. Con la formulación general en la mano, los MCSG son reespecificados en cada plano vertical: sociedades (incluida la moderna), organizaciones, interacciones, sistemas de protesta. Hasta aquí se trata entonces de replicar, en una escala menor, el doble movimiento de generalización y reespecificación que aplicamos a la comuni- cación simbólica. Sin embargo, una vez vinculados los MCSG con el plano de las sociedades, hay que operar una segunda reespecificación, que los ponga en relación con la sociedad funcionalmente diferenciada. Ese movimiento nos devolverá al punto de partida de Luhmann. adorno, leitor de marx

882

En cuanto al primer movimiento, la generalización del concepto de MCSG, entendemos que fue Luhmann el primero en esbozar su tratamiento en dos niveles, ora en la teoría general de sistemas sociales, ora en la teoría especí- fica de la sociedad (moderna). Este esbozo quedó plasmado en un texto de 1981 dedicado a las improbabilidades de la comunicación, lo que significa que el antecedente directo es previo al “giro comunicativo”. Aquel planteo será luego integrado en el marco de referencia de la TGSS, ya que en Soziale Systeme (1984), los MCSG quedan estrictamente referidos a la tercera improbabilidad de la comunicación, esto es, en referencia a la improbabilidad de que una comuni- cación sea aceptada como premisa de la comunicación subsiguiente. Según sus palabras:

Los desarrollos técnicos del lenguaje y de la propagación volvieron ciertamente más dudoso el éxito de la comunicación, es decir, cuál comunicación puede mo- tivar la aceptación. Hasta bien entrada la modernidad se reaccionó ante esta improbabilización creciente con redoblados esfuerzos dedicados a las técnicas de persuasión, a la elocuencia como fin educativo, a la retórica como doctrina específica, a la exposición y discusión como arte del conflicto y de la imposición. La invención de la imprenta no logró que estos esfuerzos se volvieran obsoletos, sino que los reforzó aún más. El éxito no descansó sin embargo en tales tenden- cias conservadoras, sino en el desarrollo de medios de comunicación simbólicamen- te generalizados, los cuales están funcionalmente referidos a este problema.

Con simbólicamente generalizados queremos designar aquellos medios que em- plean generalizaciones para simbolizar la relación entre selección y motivación, es decir, para representarla como unidad. Ejemplos importantes de esto son: la verdad, el amor, la propiedad/el dinero, el poder/el derecho, y hasta cierto punto también la fe religiosa, el arte y hoy día tal vez los “valores básicos” civilizatoria- mente estandarizados. En todos estos casos, de muy diversas maneras y en refe- rencia a muy diferentes constelaciones de interacción, se trata de condicionar de tal modo la selección de la comunicación que ésta accione como medio de moti- vación a la vez. Así la observancia de la propuesta selectiva puede quedar sufi- ago., 2019 ago., – cientemente asegurada. En la sociedad de nuestros días la más exitosa y exten- dida comunicación se desenvuelve sobre estos medios de comunicación y dirigen las oportunidades de formación de sistemas sociales hacia las funciones corres-

541, mai. 541, pondientes. Una discusión ulterior de esto debe quedar en manos de la teoría de – la sociedad (Gesellschaftstheorie). La teoría general de los sistemas sociales y de sus procesos comunicativos, sin embargo, puede servir para llamar la atención sobre el carácter altamente selectivo de estos modos de comunicación funcional- mente privilegiados (Luhmann, 1998: 159, trad. levemente modificada).

Se ve aquí con claridad que el tratamiento de la improbabilidad de la aceptación pertenece a la teoría general de sistemas sociales, pues concierne a la comunicación qua unidad sintética de tres selecciones, y que el tratamien- to de la formación de sistemas parciales funcionalmente orientados por los MCSG pertenece a la teoría de la sociedad. En este planteo de Luhmann está in nuce la generalización que queremos ofrecer, y cuya pregunta inicial es por tanto la siguiente ¿cuál es la especificidad de los MCSG? sociol. antropol. | rio de janeiro, v.09.02: 519 | rio de janeiro, antropol. sociol. artigo | bruna della torre

883

La respuesta tiene dos líneas de trabajo. Por un lado, resaltar la propiedad de medio generalizado, a la que el propio Luhmann se abocó, y para cuyo plan- teo no tiene nuestro desarrollo consecuencias mayores, y por otro lado, ligado estrechamente con nuestras afirmaciones, entendemos que lo propio de ellos es estabilizar la comunicación simbólica orientándola a problemas relativos a fórmulas de contingencia y estabilizando un código de dos valores, es decir un código binario en relación a un símbolo (verdad, poder, dinero, amor). La dispo- sición de dos valores para un símbolo genera una nueva distribución de las posibilidades comunicativas, pues éste tiene ahora un horizonte de aceptabili- dad más preciso y complejo, pues cuenta con posibilidades de empalme y re- flexivas del código. Así la decepción de la decepción, ya no tiene un valor sim- bólico, sino dos y coordina ahora dos reflexiones: la del signo y la del código. En cuanto al segundo movimiento, la vinculación de los MCSG en rela- ción con los planos de la diferenciación vertical, constituye una respuesta teórica a las consecuencias implicadas por la adquisición de una definición general de MCSG, a saber, ya no se trata sólo de una formación medial de la sociedad, sino de una formación de estructura general. Razón por la cual es necesario asociar aquella definición con un esquema que permita operar todas las reespecificaciones que el caso demande y donde la sociedad esté incluida. El candidato natural dentro de la TGSS a tomar este lugar es la diferen- ciación vertical de planos de los sistemas sociales. Se trata de un esquema de larga data al que Luhmann elaboró y reelaboró con distintas denominaciones y conformaciones, y se lo considera el paso de la TGSS como programa teórico general a la TGSS como sociología aplicada. Típicamente la diferenciación ver- tical establece tres planos específicos e irreductibles entre sí de sistemas so- ciales: las sociedades, las organizaciones y las interacciones. De esto se sigue que tanto la improbabilidad de la aceptación como la reespecificación de la comunicación simbólicamente generalizada se dan en las interacciones, en las organizaciones, en las protestas y, por supuesto, en la sociedad. A las reespe- cificaciones en el plano de la sociedad y de la sociedad moderna nos dedica- remos en los movimientos tercero y cuarto. Pero ¿cómo tratar a los MCSG cuando no están necesariamente referidos ni a los sistemas parciales de la sociedad ni a la sociedad? Hay que partir del pasaje ya citado donde Luhmann indica que los MCSG no suponen, ni única ni primordialmente, referencias a problemas funcionales de la sociedad, sino, en términos generales, la referencia a la improbabilidad de la aceptación imputada por Luhmann a toda comunicación como tal. Entonces, donde haya problemas de aceptación procesados de acuerdo al reforzamiento de la selectividad, por medio de la codificación binaria de la comunicación simbólica, estaremos ante problemas propios de MCSG. A este respecto, para mostrar la factibilidad y la pertinencia de nuestra propuesta e indicar algunos de los caminos que entrevemos para ella, nos apoyaremos en los indicios, hi- adorno, leitor de marx

884

pótesis auxiliares y ejemplos que el mismo sociólogo alemán presentó para las organizaciones, para las interacciones, y también para la sociedad moderna, recién volveremos a intervenir con la reespecificación de la sociedad, y segui- remos la posición de Estrada Saavedra (2015) para las protestas. En cuanto a las organizaciones formales, son definidas por Luhmann como sistemas sociales cuya cerradura operativa está basada en la comunica- ción de decisiones, están conformados por membresía y su estructuración se orienta a la búsqueda de objetivos. La comunicación de decisiones explicita su contenido (la dirección adoptada) a la luz de las posibilidades descartadas (las direcciones factibles que se decidió no tomar). Son consideradas adquisiciones evolutivas de la modernidad, ya que suponen determinados rendimientos del sistema jurídico (personerías, contratos), del sistema económico (mercado la- boral, salarios, pago dinerario) y del sistema educativo (certificaciones), que recién se conforman con el primado de la diferenciación funcional (Luhmann, 2010: 438). Luhmann observó la especificidad y complejidad de la relación de las organizaciones con los MCSG. A propósito de ella introdujo una hipótesis notable, pero aún poco considerada, a saber: la diferenciación funcional de los MCSG genera interdependencias entre estos medios de consecución y las or- ganizaciones profundizan la diferenciación funcional mediante la fractura de tales interdependencias (Interdependenzunterbrechungen) (Luhmann, 2010: 452ss). Esto se debe a que las organizaciones son sistemas autopoiéticos, no estruc- turas de la sociedad, y por lo tanto tienen sus maneras específicas de afrontar la improbabilidad de la aceptación. Esto significa que las organizaciones pro- cesan la comunicación simbólicamente generalizada mediante decisiones, y observan los contextos comunicativos de los sistemas parciales funcionalmen- te diferenciados como un entorno interno distribuido en términos de explota- ción de la incertidumbre. En cuanto a las interacciones, son sistemas sociales basados en la co- ago., 2019 ago.,

– presencia simultanea de los participantes. Están especialmente orientados por

la distinción temas/aportes y su auto-organización es particularmente lábil, careciendo sus estructuras de expectativas de la capacidad de transformarse 541, mai. 541,

– sin transformar al sistema como tal. Si bien Luhmann no se dedicó expresa- mente a su relación con los MCSG, en diversas ocasiones identificó interaccio- nes específicamente relacionadas con tales medios de consecución, a saber, las transacciones donde bienes o servicios son ofrecidos y adquiridos y donde un pago es realizado, las reuniones políticas de tipo mitin donde se discuten cursos de acción posible, las discusiones dentro de un congreso científico, o las declaraciones de parte o incluso los careos dentro de un proceso jurídico, o las clases dentro de una institución educativa (Luhmann, 1986: 97ss). En cuanto a las protestas, seguimos a Estrada Saavedra (2015) quien las caracterizó mejor que el autor alemán, al establecer que estos sistemas por su constitución y reproducción mediante comunicaciones están orientadas al sociol. antropol. | rio de janeiro, v.09.02: 519 | rio de janeiro, antropol. sociol. artigo | bruna della torre

885

conflicto. Tales comunicaciones se expresan temáticamente como movilizacio- nes de protesta en contra de diferentes oponentes (como el gobierno, las orga- nizaciones eclesiales, las empresas, los medios de comunicación) o de las con- secuencias no previstas de las organizaciones de los sistemas funcionales de la sociedad (como la política, el derecho, la economía, la ciencia o el arte). Esto ancla las referencias problemáticas en las estructuras del mundo de la vida, y no en una “colonización” de él por los sistemas funcionales, lo cual modifica el enfoque sobre la relación entre protesta y MCSG, ya que los sistemas de protes- ta convierten problemas reconocidos en demandas contestatarias. De esta mane- ra, se inicia una comunicación de conflicto que cuestiona las operaciones de organizaciones, de los sistemas funcionales o, en su caso, las exclusiones que generan las distinciones trazadas por estos últimos que ponen en peligro o subordinan al sistema de protesta. Esto estabiliza la relación entre sistemas de protesta y conflicto social. Es una relación selectiva con elementos funcionales específicos: constelación estabilizada de oponentes, estrategias y disputas de recursos, catalización de problemas en demandas y semánticas propias centra- das en narraciones contestatarias. Dicho lo cual ingresamos al tercer movimiento, la reespecificación de los MCSG en el plano vertical de las sociedades. La sociedad es definida como un sistema social omniabarcador, en cuyo nivel operativo no tiene un sistema social que la abarque. Se trata de un sistema cerrado operativamente, auto- poiético y autorreferencial, capaz de autoobservación. Su operación específica es la comunicación y su función es la regulación de la diferenciación sistémi- ca entre comunicación y no-comunicación. Desde los albores de su programa, Luhmann procuró distanciarse de Parsons en relación a los medios simbólicamente generalizados. Su principal operación al respecto fue alejarse de esquemas de tipo explanans-explanandum entre sociedad y MCSG, evitó así deducir a los MCSG a partir de la sociedad, y optó por explorar la diferenciación de ellos en relación a problemas, luego improbabilidades, de aceptación específicos. Subrayamos esto: la orientación es hacia problemas de aceptación, por tanto, más allá de que Luhmann se concentró en los problemas funcionales de la modernidad, nada impide que haya formación de MCSG en relación a otro tipo de problemas de referencia en otras sociedades. De hecho, es el mismo autor quien, primero, sugiere re- petidamente que la magia, la religión y la moral son medios de consecución simbólicamente generalizados (Luhmann, 2007: 177ss, 310ss, 402), y, segundo, identifica en sus análisis de la relación entre semántica y estructuras societa- les, simbolizaciones generalizadas relativas a la dominación señorial durante el Sattelzeit (Luhmann, 1980: 29, 32, 75ss). En estos ejemplos del propio Luhmann cabe indicar la existencia de consecución simbólicamente generalizada no fun- cionalmente diferenciada, cuya referencia societal es más amplia que la so- ciedad moderna. adorno, leitor de marx

886

Esto permite explorar medios de consecución con referencias proble- máticas tanto funcionales como no funcionales. Así se evita una asociación excluyente entre modernidad y MCSG, pero sobre todo se abre el panorama de investigación de MCSG para MCSG no funcionalmente diferenciados, sino es- tratificados, segmentarios o centro/periféricos, u otras variantes propias de ellos. Y esta indagación puede darse en todas las sociedades, sea en la moder- na, sea en formaciones ya extintas. Así vistos, no sólo la magia, la religión y la moral serían casos, sino también otras formas de diferenciación de medios como la estratificación (los juramentos feudo-vasalláticos, la posesión de ca- ballo o de determinado armamento entre caballeros, la manualidad del traba- jo), la segmentación (los matrimonios, las agremiaciones por oficio), la centro/ periferia (las luchas por la continuidad de la esclavitud en tierras haitianas libradas por los revolucionarios franceses, la conformación de virreinatos como regímenes de gobierno y administración en las posesiones coloniales de la corona castellana). La investigación regional, incluidas aquellas consagradas a América Latina, ya no encontrarán en los MCSG un criterio de oscilación entre lo moderno y lo no moderno, ya que ahora se pueden abordar problemas funcionales, pero también problemas de estratificación, segmentación, etc… Y esto puede ser replicado, además, en la misma sociedad funcionalmente dife- renciada junto a las estructuras de los MCSG funcionalmente diferenciados. Incluso en la diferenciación interna de los sistemas parciales funcionales glo- bales, se observa MCSG orientados a la estratificación (la subordinación en esquemas jerárquicos) o a la segmentación (la diplomacia en las relaciones entre Estados), particularmente en los sucesivos procesos de diferenciación interna de ellos. En síntesis, la reespecificación de los MCSG con la sociedad debe evitar tanto la deducción como la reducción modernista, para así observar la simbo- lización generalizada y la codificación de la aceptación ante problemas estra- ago., 2019 ago.,

– tificados, segmentarios, centro/periféricos y/o funcionales, entre otros. En

este movimiento debe contemplarse seriamente la posibilidad de que la teoría de la sociedad de la TGSS se convierta en una teoría de sistemas y de medios. 541, mai. 541,

– En cuanto al cuarto y último movimiento, la segunda reespecificación de los MCSG dirigida a conectarlos con la sociedad moderna, representa la teoría canónica de Luhmann respecto de los MCSG. Desde muy temprano en la evolución de su programa de investigación, Luhmann estableció que la prin- cipal referencia sistémica de los MCSG es el sistema de la sociedad, más pun- tualmente el de la sociedad mundial funcionalmente diferenciada. Solo indi- caremos que la teoría sistémica de la sociedad considera a los MCSG forma- ciones de estructura comunicativa específicamente orientados a la consecución frente a problemas funcionales de referencia. Sus características distintivas son: sociol. antropol. | rio de janeiro, v.09.02: 519 | rio de janeiro, antropol. sociol. artigo | bruna della torre

887

integrar motivación y selección en un mismo esquema, de manera tal que fren- te al problema de referencia y su consecución la selección misma sea la motiva- ción,

conformar y estabilizar un código binario con valores asimétricos, pero con igual valor de empalme, gracias al cual las comunicaciones referidas al problema son distribuidas y codificadas de manera que la velocidad y el tempo de la distribución favorezca la consecución.

estabilizar la consecución en la variación, es decir reestabilizar de forma per- manente empalmes novedosos ante decepciones frecuentes

catalizar la formación de sistemas funcionalmente diferenciados

estabilizar el código binario como esquema de observación de segundo orden, tanto del sistema como del entorno del sistema, integrando las relaciones inter- sistémicas.

En virtud de la asociación fuerte entre las características de los MCSG y las características de la diferenciación funcional de la forma primaria de diferenciación de la sociedad, aquéllos son consagrados a estructuras funda- mentales de ésta. Su relación, tanto con los sistemas parciales funcionalmen- te diferenciados como con los procesos estructurales de diferenciación funcio- nal de la sociedad, la colocan en un sitio privilegiado dentro de la teoría luh- manniana de la sociedad. Su ejemplificación fue abundantemente ofrecida por el propio Luhmann, tanto en las monografías sobre sistemas parciales como en los trabajos sobre el sistema de la sociedad, pero también en los estudios, inscriptos en la sociología del conocimiento sobre la relación entre estructura de la sociedad y semántica.13

Conclusiones A lo largo de este trabajo delineamos una versión parcial de un concepto ge- neral de comunicación simbólica desde las premisas revisadas de la TGSS de Niklas Luhmann. Nuestro eje de trabajo fue la relación entre símbolo y sim- bolizaciones y la improbabilidad de la aceptación, dejando abierta la posibili- dad para otras elaboraciones en dirección a la improbabilidad del entendimien- to. Para su elaboración operamos una generalización de los elementos signo/ símbolo, la aceptabilidad, los atributos de reutilización, condensación y abs- tracción, y la vinculación circular entre selección y motivación del concepto de MCSG del sociólogo alemán. Luego proyectamos el esquema resultante de la generalización en el terreno de la teoría de las expectativas qua estructura de sistemas sociales del autor. En ese ámbito establecimos una conexión entre anticipación de insegu- ridad, decepción reflexiva y aceptabilidad, que nos condujo a un concepto de simbolización que designa un tipo de estilización de las estructuras en relación a la decepción, que se caracteriza por precisar las expectativas de aceptabilidad adorno, leitor de marx

888

y difuminar las de rechazabilidad, aumentando mediante las codificaciones adicionales del símbolo la probabilidad del rechazo del rechazo (= aceptación) en el empalme de operaciones. Tras ello, a fin de saldar cuentas con nuestro punto de partida, proyectamos esta elaboración conceptual en la teoría de MCSG y logramos una considerable ampliación de ella: generalizamos también el concepto de MCSG, al que entendimos como una formación especial de comunicación simbólica asociada con códigos binarios y símbolos de mayor alcance, y planteamos un conjunto significativo y heurísticamente positivo de reespecificaciones tanto verticales como horizontales. Los distintos resultados alcanzados se han mostrado congruentes con las hipótesis iniciales principal y auxiliar. La evaluación final nos indica que la versión preliminar del concepto de comunicación simbólica que alcanzamos se muestra útil para introducir nuevas distinciones, tanto en la investigación sistémica de la comunicación en general como de los MCSG en particular, sien- do apto entonces para usos empíricos o aplicados y para desarrollos concep- tuales y teóricos ulteriores referidos al problema estudiado.

Recibido 16/5/2019 | Revisado 20/8/2019 | Aprobado 28/8/2019 ago., 2019 ago., –

541, mai. 541, – Sergio Pignuoli Ocampo es doctor en ciencias sociales de la Universidad de Buenos Aires. Actualmente se desempeña como investigador de carrera del Consejo Nacional de Investigaciones Científicas y Técnicas con sede en el Instituto de Investigaciones Gino Germani y como docente regular de la cátedra “Niklas Luhmann y la sociología de la modernidad”. Desarrolla investigación en teoría sociológica, teoría y epistemología de sistemas sociales y teoría de la comunicación y es investigador responsable del PICT 2015-0071: “La tensión entre diadismo y dualismo en las teorías sociológicas contemporáneas. Un estudio sistemático de los programas de Luhmann, Latour, Habermas, Schütz, Garfinkel, Giddens y Archer”, financiado por BID y ANPCyT. sociol. antropol. | rio de janeiro, v.09.02: 519 | rio de janeiro, antropol. sociol. artigo | bruna della torre

889

NOTAS 1 De acuerdo con nuestro relevamiento, no es necesario reconstruir la evolución de las apariciones del término símbolo (Symbol) en la obra de Luhmann, pues, previos a Soziale Systeme, los usos del término son similares al des- cripto en el cuerpo. Así lo muestran, por caso, los prime- ros tres volúmenes de Soziologische Aufklärung [Ilustración sociológica] y los primeros dos de Gesellschaftsstruktur und Semantik [Estructura de la sociedad y semántica]. Quizá las investigaciones del Luhmann-Archiv ofrezcan en un futuro materiales para enriquecer su análisis diacrónico. Agradezco a uno de los árbitros anónimos la posibilidad de hacer esta aclaración. 2 Algo similar ocurre con el concepto tardío de Eigenwert [auto-valor] (Luhmann, 1997: 394ss), aunque aquí optamos por un abordaje de tipo comunicativo y por tanto no lo ensayamos, es posible desarrollar el concepto sistémico de símbolo como Eigenwert. 3 Debo esta referencia al Prof. Antonio Brasil Jr. A propósi- to del pasaje, cabe agregar que Luhmann empalmó su concepto de símbolo con la tesis de Novalis sobre la co- nexión entre simbolización y mistificación. 4 Seguimos el concepto de sistema de protesta de Estrada Saavedra (2015), quien revisa y reformula el concepto de movimiento de protesta de Luhmann (1996a). 5 Luhmann empleó el concepto Ausdifferenzierung [literal- mente, diferenciación hacia afuera] mayormente en rela- ción a sistemas, pero también lo hizo en relación a los MCSG y sus códigos (por caso Luhmann, 1974: 240-1). Es- to permite indagar en qué medida ambas formaciones, sistemas y medios, se diferencian con principios propios, y cómo ambas diferenciaciones pueden converger (hipó- tesis “catalítica” entre medios y sistemas), pero también pueden divergir. 6 En este aspecto sería conveniente revisar las confronta- ciones sistemáticas entre las teorías de medios de Luh- mann y Parsons, ya que la propuesta de este último con- templaba ya una vasta generalización de los medios y los símbolos en el plano general de la acción, y es factible pensar que el papel de concepto de intercambio sea más apropiado que el de comunicación para esa avanzada adorno, leitor de marx

890

orientación general. Debo esta sugerente idea a uno de los árbitros anónimos que juzgó el artículo. 7 Ciertamente, este pasaje echa luz a la distinción entre sim- bólico y diabólico del párrafo anterior. Los MCSG introdu- cen simbolizaciones mediante las cuales logran reorientar, gracias a la unidad significante de estas, las improbabilida- des de aceptación en problemas de codificación binaria, a través de la diferencia tecnificada de tales códigos. 8 Esto incorpora las simbolizaciones al análisis de autorre- flexiones, autosimplificaciones y autodescripciones y se- mánticas, pues se asume que no es ajeno a la función de los símbolos modificar la distribución de expectativas, prime- ro informacionales, luego semánticas, de un sistema social, siendo capaces de formar altas expectativas relativas al contenido (Zumutungsgehalt en los términos de Soziale Syste- me (Luhmann, 1984: 267ss), Sinnzumutungen en los de Die Ge- sellschaft (Luhmann, 1997: 316)). 9 En Soziale Systeme Luhmann (1984: 440-441; 1998: 295) afir- mó que el derecho y la ciencia son sistemas orientados a la decepción y, a propósito del primero, agregó que se trataba de una “disposición inmunitaria” (Immuneinrichtung). La misma posición se observa en La ciencia de la sociedad (Luh- mann, 1996b: 104-105) y en El derecho de la sociedad (Luh- mann, 2005: 127ss), aunque aquí ya se aprecia una oscila- ción. Hubiera sido enriquecedor que el autor justificara su cambio de mirada en 1997. 10 Debemos a Lindemann (2009: 194) la explicitación de la re- ago., 2019 ago.,

– cepción dada por Luhmann de los trabajos de Galtung.

11 A partir de este déficit, Lindemann (2009: 200ss) propuso una conexión con la “etno-teoría” [Ethno-Theorie], profundi- 541, mai. 541, – zó, diferenció y amplió el concepto de expectativa, logran- do un catálogo y un esquema operacional más vasto. 12 Esto ya está insinuado por Luhmann (1980: 79-80) en el con- cepto de “contrasimbolización” [Gegensymbolisierung], aun- que se centra casi exclusivamente en la semántica. 13 Catálogos de propiedades más amplios y exhaustivos se en- cuentran disponibles en Navas (1990), Chernilo (2002) y Mascareño (2009). Las características de los MCSG funcio- nales fueron objeto de interesantes críticas y ampliaciones. Por el lado de las ampliaciones, el propio Luhmann dejó abierto el número de MCSG, y así hicieron, por caso, Baec- sociol. antropol. | rio de janeiro, v.09.02: 519 | rio de janeiro, antropol. sociol. artigo | bruna della torre

891

ker (1994) que analizó en esos términos la asistencia social, Stichweh (2016) hizo lo propio con el deporte de alto rendi- miento y Lewandowski (2012) con la pornografía. Por el la- do de las críticas destacan los planteos de Künzler (1987), quién cuestionó las debilidades entrañadas en ella por la marginalización del lenguaje, y las objeciones de García Ruiz (1997) respecto del normativismo de base que Luh- mann no pudo extirpar de los supuestos parsonsianos. Otra línea crítica pertenece a la TAC que cuestionó, desde una teoría alternativa de los MCSG, la homogeneización de los medios qua funcionalmente diferenciados (Habermas, 1981-II: 267ss).

Referencias bibliográficas

Baecker, Dirk. (1994). Soziale Hilfe als Funktionssystem der Gesellschaft. Zeitschrift für Soziologie, 23/2, p. 93-110. Chernilo Steiner, Daniel. (2002). La Teoría de los Medios Simbólicamente Generalizados como Programa Progresi- vo de Investigación. Revista Mad, 7. Estrada Saavedra, Marco. (2015). Sistemas de protesta. Es- bozo de un modelo no accionalista para el estudio de los movi- mientos sociales. Tomo I. Ciudad de México: CES-COLMEX. Galtung, Johan. (1959). Expectations and interaction pro- cesses. Inquiry, 2/1-4, p. 213-234. García Ruiz, Pablo. (1997). Los medios simbólicos ¿de co- municación o de intercambio? El legado parsoniano en Luhmann. Revista Anthropos, 173-174, p. 100-113. Habermas, Jürgen. (1981). Theorie des kommunikativen Han- delns. 2 Bde. Frankfurt: Suhrkamp. Künzler, Jan. (1987). Grundlagenprobleme der Theorie symbolisch generalisierter Kommunikationsmedien bei Niklas Luhmann. Zeitschrift für Soziologie, 16/5, p. 317-333. Lakatos, Imre. (1974). Historia de las ciencias y sus recons- trucciones racionales. Madrid: Tecnos. Lewandowski, Sven. (2012). Die Pornographie der Gesells- chaft. Bielefeld: Verlag. Lindemann, Gesa. (2009). Das Soziale von seinen Grenzen her denken. Weilerswist: Velbrück. adorno, leitor de marx

892

Luhmann, Niklas. (2010). Organización y decisión. Ciudad de México: Herder. Luhmann, Niklas. (2007). La sociedad de la sociedad. Ciudad de México: Herder. Luhmann, Niklas. (2005). El derecho de la sociedad. Ciudad de México: Herder. Luhmann, Niklas. (1998). Sistemas sociales. Barcelona/Ciu- dad de México/Bogotá: Anthropos/Iberoamericana/CEJA. Luhmann, Niklas. (1997). Die Gesellschaft der Gesellschaft. 2. Bde. Frankfurt a.M.: Suhrkamp. Luhmann, Niklas. (1996a). Protest: Systemtheorie und soziale Bewegungen. K-U. Hellmann (Hrsg.). Frankfurt a.M.: Suhr- kamp. Luhmann, Niklas. (1996b) La ciencia de la sociedad. Ciudad de México: Iberoamericana. Luhmann, Niklas. (1993). Zeichen als Form. In: Baecker, D. (Hrg.). Probleme der Form. Frankfurt a.M.: Suhrkamp, p. 45-69. Luhmann, Niklas. (1986). Systeme verstehen Systeme. In: Luhmann, N. & Schor, K. E. (Hrsg.). Zwischen Verstehen und Intransparez. Frankfurt a.M.: Suhrkamp, p. 72-117. Luhmann, Niklas. (1984). Soziale Systeme. Frankfurt a.M.: Suhrkamp. Luhmann, Niklas. (1981). The improbability of communica- tion. International Social Science Journal, 33/1, p. 122-131. Luhmann, Niklas. (1980). Gesellschaftsstruktur und Semantik.

ago., 2019 ago., Studien zur Wissenssoziologie der modernen Gesellschaft. Bd. 1. –

Frankfurt a.M.: Suhrkamp. Luhmann, Niklas. (1974). Einführende Bemerkungen zu ei- 541, mai. 541, – ner Theorie symbolisch generalisierter Kommunikations- medien. Zeitschrift für Soziologie, 3/3, p. 236-255. Mascareño, Aldo. (2009). Medios simbólicamente generali- zados y el problema de la emergencia. Cinta Moebio, 36, p. 174-197. Navas, Alejandro. (1990). La teoría sociológica de Niklas Luh- mann. Navarra: EUNSA/Ediciones Universidad de Navarra. Stichweh, Rudolf. (2016). Die soziologische Theorie der Inklusion und das Funktionssystem Sport. In: H. Meier, L. Riedl y M. Kukuk (Hrsg.). Migration, Inklusion und Integration. Bretten: Schneider, p. 37-47. sociol. antropol. | rio de janeiro, v.09.02: 519 | rio de janeiro, antropol. sociol. artigo | bruna della torre

893

Símbolo e comunicação − Rumo a um conceito de comunicação simbólica a partir da Teoria Geral dos Sistemas Sociais Palavras-chave Resumo Símbolo; Nesse artigo, examinamos a conexão geral entre símbolo comunicación; e comunicação na Teoria Geral dos Sistemas Sociais de Teoría General de Sistemas Niklas Luhmann e a problematizamos no sentido de ela- Sociales; borar um conceito geral de comunicação simbólica a par- aceptación social; tir dessa perspectiva. Analisam-se as possibilidades de tal medios de comunicación elaboração, tendo-se optado por uma generalização do simbólicamente conceito de meios de comunicação simbolicamente gene- generalizados. ralizados (MCSG) devido à sua orientação para a improba- bilidade de aceitação. Sugere-se a hipótese de que, em referência à improbabilidade da aceitação, a comunicação estiliza as expectativas de aceitabilidade, introduzindo símbolos e simbolizações. O esquema resultante é então projetado na teoria dos MCSG, e uma forte extensão da mesma é alcançada.

Symbol and communication − Towards a concept of symbolic communication BASED ON THE General Theory of Social Systems Keywords Abstract Symbol; In this paper we examine the general connection between communication; symbol and communication in Niklas Luhmann’s General General Theory of Social Theory of Social Systems and problematize this connection Systems; in order to elaborate a general concept of symbolic com- social acceptance; munication based on this approach. This aim in mind, we symbolically generalized analyse the possibilities afforded by such an elaboration, media of communication. opting to extend the concept of symbolically generalized communication media (SGCM) through its orientation to- wards the improbability of acceptance. We advance the hypothesis that, in reference to the improbability of ac- ceptance, communication stylizes the expectations of ac- ceptability by introducing symbols and symbolizations. The resulting schema is then projected onto the SGCM theory, enabling a strong extension of the latter. adorno, leitor de marx

894 ago., 2019 ago., –

541, mai. 541, – sociol. antropol. | rio de janeiro, v.09.02: 519 | rio de janeiro, antropol. sociol. http://dx.doi.org/10.1590/2238-38752019v938 artigo | marco antonio gonçalves

1 Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), Department of Sociology, 895 Postgraduate Program in Sociology, Campinas, São Paulo, SP, Brasil [email protected] https://orcid.org/0000-0002-5201-360X

11 Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), Postgraduate Program Mariana Miggiolaro Chaguri I in Sociology, Campinas, São Paulo, SP, Brasil Il [email protected] Flávia X. M. Paniz https://orcid.org/0000-0002-2056-1636

Women’s War: gender activism in the Vietnam War and in the wars for Kurdish autonomy 1

Introduction

Those who would codify the meanings of words fight a losing battle, for words, like the ideas and things they are meant to signify, have a history (Joan Scott).

This paper discuss women’s activism in two contexts of war, focusing on their participation in the Vietnam War (1954-1975) based on a research carried out by Mariana M. Chaguri in the archives of the Vietnamese Women’s Museum in

dec., 2019 dec., 2 –

Hanoi and in the Kurdish struggle for autonomy, studied in the doctoral re- search currently being undertaken by Flávia X. M. Paniz, who is working with local and transnational Kurdish women’s organizations in London. 918, sep. 918, – Referring to women’s participation in these two wars − one of them still in course − immediately refers to the symbolism usually implicit in debates on wars, that is, an allusion to the idea that war is primarily masculine, waged by men, thus allowing women just to participate in it. Exploring a similar top- ic, Svetlana Alexievich reconstructs the memory of women’s participation in the Red Army during the Second World War (1939-1945), observing that

There have been a thousand wars − small and big, known and unknown. And still more has been written about them. But… it was men writing about men − that much was clear at once. Everything we know about war we know with “a man’s voice”. We are all captives of “men’s” notions and “men’s” sense of war. “Men’s” words. Women are silent […] When women speak, they have nothing or sociol. antropol. | rio de janeiro, v.09.03: 895 | rio de janeiro, antropol. sociol. o sorriso de nanook e o cinema documental e etnográfico de robert flaherty

896

almost nothing of what we are used to reading and hearing about: How certain people heroically killed other people and won. Or lost: What equipment there was and which generals. Women’s stories are different and about different things. “Women’s” war has its own colors, its own smells, its own lighting, and its own range of feelings. Its own words (Alexievich, 2018: 23-25, our emphasis).

What it is at stake here is not essentializing and superimposing subject and origin by naturalizing categories of representation such as “male” and “female”. Instead, the author draws our attention to how gender pervades what may be taken usually as an universalizable narrative about war. By adressing women’s experience in war and their narratives about it affords the possibil- ity of “redefining and enlarging traditional notions of historical significance” (Scott, 1986: 1054).3 This wider approach entails the theoretical and empirical articulation of “gender”, “nation”, and “war”. Indeed, the literature on these topics4 includes some substantial reviews, such as the book Feminism and war: confronting US imperialism (Riley, Mohanty & Pratt, 2008)5 which tease out three basic perspec- tives on the articulation of these topic within literature, namely: (1) the contrast between masculinities and militarisms, symbolized by the use of force, and the correlation of femininity with pacificism as a premise symbolically representa- tive of women, usually opposed to war; (2) the double role played by the rhetoric of women’s rights and freedoms, used to justify foreign occupation of periph- eral countries (and the work of international organizations in these spaces), and to justify discriminatory policies at domestic level; and (3) an ambivalence concerning racial and gender mediations, in which we find the American foreign war policy characterized on the one hand by the military actions of white men, and their respective rhetoric that support salvationist and civilizatory missions which liberate women of colour (black, brown, yellow etc.) in peripheral coun- tries and/or women from ethnic minorities, and on the other hand, national ago., 2019 ago.,

– domestic policies that criminalize and marginalize men of colour, defending

white women’s freedom as a main argumentative strategy. Comparing the articulations among gender, nation, and war examined 575, mai. 575,

– in this paper enables us to point our two distinct modes of representing and mobilizing the agency of peripheral women in war contexts that converge on a central point: women’s agency in these contexts involves tensions and ne- gotiations over the definitions of what is “public” or “private”: within a nation. Hence, in the dynamics of the struggle marked by gender activism (Badran, 2009), the correlation between the national and the domestic must be retought. In the case of Vietnam, for instance, the representation of the role of caring for the home and family becomes a synonym for caring for the nation. In their turn, the Kurdish women involved in the war performed a double role through their dispute for symmetrical power and spaces of leadership within the Kurdish struggle itself, and its reorganization of collective life (again cor- sociol. antropol. | rio de janeiro, v.09.02: 543 | rio de janeiro, antropol. sociol. artigo | marco antonio gonçalves

897

relating the internal space of the nation with domestic space), and through their external activities in the armed militias on the frontline of combat with enemies (against ISIS, the Turkish Gendarmerie and other paramilitary groups operating in the region). The results of our research show a collective endeavor to produce other narratives of visibility concerning the participation of women in the conflicts, shifting the role performed by them towards an effective contribution sym- metrically equal to men’s. To this end, at least two movements have been un- dertaken: (1) the enlargement of spaces for debates on gender in research, ar- chives and museums on war contexts by making visible women’s activities and demands; (2) the production of distinct narratives – theoretical, museological, literary and visual – about war, thus making it possible to observe how discus- sions on gender issues appear only when women’s participation is mobilized. However, it is not a case of “prov[ing] either that women had a history or that women participated in the major political upheavals of Western civili- zation” (Scott, 1986: 1055), but rather of pointing out that their experiences, participations and demands lived for a long time on the fringes of the produc- tion of ideas and the ways in which nations were imagined.6 Consequently, the first effort to break the silence must be in the theo- retical dimension by expanding concepts and categories to cope with a heter- ogenous set of feelings, notions and ideas that mark women’s participation and activisms. Moreover, there must be concepts and categories able to name dif- ferent forms of violence (Das, 2007) and to offer new selective and differenti- ated framings about women and about wars themselves (Butler, 2015). With this aim in mind, it is crucial to observe that a key element of the modes of perceiving, telling and making visible women’s participation in wars are their shared experiences which makes it possible to explore processes of differentiation and identification, both central to the constitution of a collec- tive action and of forms of activism.7 Regarding this paper, the comparative analysis of different times, spac- es and contexts of war will show how the reorganization of gender roles draws the meanings of wars and configures what we call a woman for the times of war, that is, a woman who moves across spaces of public confrontation, armed conflict, and domesticity. Also, in war contexts, the clash between the public and private spheres that defines the feminine differently (Perrot, 1998; Scott & Keates, 2004) are remade or repositioned – depending on the case.

Women’s activism in Vietnam Here we reconstruct the mobilization and participation of Vietnamese women8 in the Vietnam War and some earlier conflicts, as the French Indochina War (1946-1954), through a set of manifold documents that ranges from posters, photos, newspapers of that epoch, to letters, diaries, and interviews. A major o sorriso de nanook e o cinema documental e etnográfico de robert flaherty

898

part of this material is in the collection of the Vietnamese Women’s Museum, responsible for safeguarding the material and displaying part of it in a perma- nent museum exhibition. Both will be analysed throughout this paper. The temporalities, spatialities, and demands that underpin these mo- bilizations are diverse, because they cross over wars, conflicts, and disputes that left thousands dead and injured, and marked the trajectories and experi- ences of families, individuals, the State itself and its territory. In what follows, many fronts and networks of women’s activism converge indirectly and di- rectly on countless battlefronts. From the 1930s and on, different groups of women, schooled or not, established initiatives and funds for actions in areas including social welfare, political mobilization around a variety of entities like the Communist Party of Vietnam (CPV), local community associations or professional orders, especial- ly lawyers and journalists. This way, different anticolonial and, gradually, anti- imperialist causes gathered together in organizations, such as the Women’s National Salvation Group, Women’s Association for Liberation, Women’s As- sociation for Democracy, Women’s Association for National Safety, and Women’s Anti-Imperialist Association. A fundamental point of reference for the activism of this period is the foundation of the Women’s Union (WU) in 1935. Linked to the CPV, founded just five years earlier, a significant number of the associations cited above converged on the leadership of the WU, which brought together a heterogenous set of women’s associative activities,9 fostering a gradual articulation for an- ticolonial struggle, communism and female autonomy. In particular, it created objective possibilities for the stabilization of a network of associations that supported the actions and struggles of women until (at least) 1975, when the country was reunified. Over the years, although their activities remained diverse, one observes ago., 2019 ago., – that women’s demands increasingly orbit around three elements: people, sov- ereignty, and cultural heritage/legacy. Such notions have been disputed and reconstructed after 1975 when the Vietnamese nation became “imagined” pri- 575, mai. 575, – marily through the activism surrounding the CPV. Regarding the issues discussed here, we suggest that gender and nation became disputed terms within this network of activisms. Both terms defined and problematized each other. Gender regards not only women, but also mas- culinities − which, in this case, entails the destabilization of the association among war, virility, and the defense of national sovereignty. The polarity between gender and nation not only affords meaning to the terms gender and nation, but also converts them together into categories for the political mobilization of women insofar as it enlarges the meanings attributed to the notions of people, sovereignty and cultural heritage/legacy. In this manner, it promotes new axes of differentiation that, in a way, reposition gender roles. sociol. antropol. | rio de janeiro, v.09.02: 543 | rio de janeiro, antropol. sociol. artigo | marco antonio gonçalves

899

Analytically, ideas regarding people, sovereignty and cultural heritage/ legacy also turn to be characterized by attributes like care, patience and per- severance, what rearticulated the shared experiences of women, whether peas- ants, workers or liberal professionals. Nay, their domestic roles as wives, daugh- ters or mothers gain strength when shaping a woman for the times of war, because it means that they were the ones who provided patient and tenacious protec- tion for the family and, at a large, for the defense of the nation. In this sense, gender and nation come to qualify each other insofar as the latter also transforms into the extended family of all those involved in the war effort, amplifying the ties of solidarity, the possibilities and range of mo- bilization. There are two key contexts for this. The first, between 1946 and 1954, known as the “period of civil resist- ance”,10 strengthened the networks of women’s activism created in the previous decade, which spread over the north of the country through campaigns like ‘Winter clothing,’ ‘Gold piece for saving the nation’ and many other rice donation campaigns – most of them happened under the leadership of Ho Chi Minh. During this period, woman used to raise, feed and dressing people, es- pecially the men at the fronts. These key activities were characterized by gen- der roles associated with care. Although a significant number of women also took part in combat,11 they performed just complementary roles. Thus, asso- ciations between feminine and care and, the masculine and force were common. Nonetheless, women’s activism also points to fairly unexpected dimen- sions in terms of the range and impact of this kind of collective action. In the case at stake, women carry out a network to convey objects, food, resources and information, which, in this particular context, had the unequalled capacity to articulate local and regional bodies with the national command. Thus, it enabled to create political and cultural spaces previously non-existent or quite invisible. These spaces were fundamental to the mobilization and confrontation within conflicts and disputes that began in 1955 with the outbreak of the armed conflict with the United States. A year earlier, in 1954, the Geneva Conference brought to an end the Indo- china War (1947-1954) and divided the Vietnamese territory into two zones. In the north, the Democratic Republic of Vietnam and in the south, the Republic of South Vietnam. The first had its capital in Hanoi, it was proclaimed eight years earlier, in 1946, in the wake of the ample Việt Minh movement of national libera- tion led by Ho Chi Minh. While the agreement marked the consolidation of the Democratic Republic of Vietnam and the anticolonial struggle against the French, it also founded the State of Vietnam in the zone to the south, under the leader- ship of the former emperor Bảo Đại. A little more than a year later, in November 1955, Đại was deposed and the Republic of South Vietnam was proclaimed under the leadership of Ngô Đình Diệm with its capital in Saigon, today Ho Chi Minh City. o sorriso de nanook e o cinema documental e etnográfico de robert flaherty

900

In the Cold War context, the political and military disputes between the two zones of the Vietnamese territory quickly escalated, aligning the super- powers of the USSR and the USA with the forces of the north and south, re- spectively. The conflicts steadily intensified and the US military forces began to fight on land against the national liberation forces organized in the north under the leadership of the CPV and Ho Chi Minh.12 After that, the scope of women’s activism and mobilization expanded significantly. This included not only their substantial participation on the bat- tlefronts, but also the complexification of the previous network. The network grew beyond the earlier campaigns focused on caring for troops and it embraced political and cultural initiatives, as well as an international solidarity initiative driven by the attempt to challenge the (mostly) foreign narratives and percep- tions about the war.13 The robust chain of face-to-face contacts built by the earlier activism increasingly became associated with new kinds of mobilizations, led by a gen- eration of women who were mostly training or had trained in universities. Wom- en also started to join war because and their professional positions, what broad- ened the possibilities for competing for the production and circulation of ideas that helped ascribe meaning to the conflict and to issues and values at stake. These women were students, journalists, lawyers, and teachers (mostly but not only) who organized associations analogous to local committees of women student’s movements − one of the most prominent being the “Saigon movement”. Other associations formed during the period were the Women’s Committee for the Right to Live in Peace and Dignity, and the Vietnamese Women Demand Living Rights, as well as hundreds of local Women’s Union committees. Even, editorial initiative has spread around, such as the Women’s Voice and Speech newspapers, along with the production of propaganda mate- rial, books and leaflets especially designed to mobilize women (see Do Thi & ago., 2019 ago., – Brennan, 2015). It is worth emphasizing, however, that the previous activism associated with the sphere of care did not vanish, but gathered momentum, especially through the strengthening of initiatives like the innumerable local 575, mai. 575,

– and regional committees of the Soldier’s Mothers Associations.14 After 11 years of conflict, women’s activism was reorganized and ac- quired a new center of gravity, the Three Responsibilities Movement, launched on March 22, 1965 during the Women’s Union Annual Congress. The launch was made in the presence of Ho Chi Minh whose speech extolled Vietnamese women as “heroic, indomitable, faithful and responsible” (see the exhibition at the Vietnamese Women’s Museum). The three responsibilities evoked in the movement’s name were to: 1) fight against the enemy (by performing support functions or at the front), while also encouraging men from the family to do the same; 2) engage in agricul- tural or industrial production; 3) continue to provide care to the family, sup- sociol. antropol. | rio de janeiro, v.09.02: 543 | rio de janeiro, antropol. sociol. artigo | marco antonio gonçalves

901

porting elderly members, educating children and feeding family members (Werner, 2009). According to the accounts of CPV militants of the archive of the Vietnamese Women’s Museum, the Three Responsibilities Movement’s mem- bership extended to around 1.7 million Vietnamese women (folder 98, document 234). Amid this movement, the first of the three responsibilities began to in- crease as the years passed and the conflicts intensified, fomenting the or- ganization of female battalions that became part of the People’s Army.15 Significant examples include the Dong Phuong Hong Women Military Platoon (founded approximately in 1964 with 32 women), the Luoi Guerrilla Group (composed of 160 women), the Long-Haired Army (which formed part of the National Liberation Front in zones controlled by the United States in Saigon), and the Ngu Thuy Female Artillery Company (active between 1967-1977 and having as many as 98 combatants) (Giáo, 2008: 152-153).16 Another sig- nificant women’s movement during the period was the Anti-American Young Volunteers Force, responsible for the mobilization of approximately 60,000 women dedicated to repairing roads after aerial bombardments, providing medical care, establishing communications between battalions and troops, and driving combat trucks transporting weapons or soldiers (injured or not). Between February and October 1968, there was an intense escalation of the conflict by US armed forces, which launched the Toan Thang (or Complete Victory) Operation, and Vietnamese forces through the Tèt Offensive. The inten- sification of the conflict, as well as the increase in the networks of international pressure to end the war, led the US president Lyndon Johnson to order, in March 1968, a scaling back of the bombing of north Vietnam and a complete ceasefire in the region in October the same year (see Nguyễn, 2017; Logevall, 2018). As indicated above, the Vietnam War was marked by the organization of a broad network of women’s activisms through which letters, documents, weapons, ammunition, medicines, and food were conveyed (Giáo, 2008). It was in 1968, however, that the presence of women on the different fronts became widespread and they began to occupy the battlefronts in large numbers, as revealed, for example, by the actions of the Trang Liet Women’s Guerrilla Group and the 8th March Women’s Artillery Group, whose war efforts included shoot- ing down US airplanes and retaking relevant territories (see the exhibition at the Vietnamese Women’s Museum). Not by chance, by taking part in major acts of war like shooting down airplanes, for instance, the months of April and May 1968 became known in Vietnam as the Spring of Women (Giáo, 2008: 164). According this paper’s, we have indicated the main types of activism regarding the participation of Vietnamese women in the conflicts fought in their territories, especially between the 1930s and 1970s. We now turn to an analysis of aspects of conflicts linked to the Kurdish Question, in order to interpret these activisms and participations in a comparative analysis by laying full stress to a common dimension: the construction of an ideal of “woman for times of war”. o sorriso de nanook e o cinema documental e etnográfico de robert flaherty

902

Women’s activism in Kurdish conflicts Although a substantial document archive exists at the Institutes of Kurdish Culture in Paris and Brussels and the European Centre of Kurdish Studies, lo- cated in Berlin, there is no museological narrative at a national level specifi- cally addressing Kurdish women’s activism, as in the case of Vietnam. This may be because the conflicts remain ongoing, or because the narratives them- selves on the history and protagonism of these women are a matter open to dispute. Consequently, the sources used for this analysis come from digitized documents in the archives, materials produced and/or disseminated by differ- ent Kurdish women’s organizations in the media and on social networks (texts, images, and videos), accounts gathered through interviews, and an analysis of the literature on the theme. The conflict known as the Kurdish Question began in the second half of the 1910s with the signing of the Sykes-Picot Agreement (1916), followed by the Treaty of Sèvres (1920) and the Treaty of Lausanne (1923), which, among other things, redivided the territories predominantly inhabited by Kurdish com- munities among four emerging countries: Iran, Iraq, Syria and Turkey (Mojab, 2001). The conflict reaches the present moment and it had diverse repercus- sions, including the foundation of the Iraqi Kurdistan Regional Government, the fight for autonomy in regions, such as Kobane, Afrin and Raqqa, and the dynamics of the fight for rights in the contexts of the abovementioned States. The time span covered by the analysis in this paper, however, com- mences in the 1970s, the period when women’s protagonism began to be in- cluded as a topic of study and analysis within the broader context of the con- flict’s history. This does not mean women did not effectively participate in earlier conflicts, but it is from this period onwards that the silence about their participation was broken, and their activities became registered as effective within the militant spaces (Dryaz, 2011). ago., 2019 ago., – In the historiography of the Kurdish struggle over the course of the 20th Century, competing narratives appeared regarding the notions of territory, time, people and their respective political agendas. Nevertheless, all of them can be 575, mai. 575,

– synthesized through some shared characteristics of most of the reference works. They are (a) the importance of recognizing ethnic, cultural and religious het- erogeneity among the region’s diverse Kurdish minorities, and (b) the disputes concerning the meanings of the ideals of freedom. The historiographic debates about the conflicts in the first half of the 20th Century are marked primarily by reflections concerning the recognition of their territorial autonomy; a right based on the argument of the ancestral inheritance of the land (Yildiz, 2005). The formation and respective independ- encies of Iran, Iraq, Syria and Turkey as nation states initiated a series of meas- ures aimed at expropriating land from Kurdish communities, especially in 1945, the period when the conflicts for the territories broadened and intensified. sociol. antropol. | rio de janeiro, v.09.02: 543 | rio de janeiro, antropol. sociol. artigo | marco antonio gonçalves

903

With the expropriation of land, the absence of constitutional recognition and the consequent marginalization of diverse ethnic minorities, the Kurds among them, ethnicity became integral to the dynamic of disputes for rights within the States. The proclamation of the Self-Determination of Peoples, one of the prin- ciples outlined in the Atlantic Charter of 1941 and ratified in the Charter of the United Nations in 1946, promoted an international political context favora- ble to a policy in support of the freedom and ethnic autonomy of diverse peoples in conflict situations. When it came to the Kurdish Question, the de- fense of an idea of the Kurdish people emerged and began to find the central argument of their ceaseless struggle for autonomy. One observes this movement, for instance, in the document “The Kurdish Question”, produced by W. G. El- phinston (2009), an officer of the British intelligence service for the Middle East, in which he drew on the Atlantic Charter to request a solution from the UN to promote the freedom of the Kurdish peoples. In the document, Elphinston emphasizes what, in his view, were the qualities of the Kurds as a people, such as their own literary production, their own social, cultural, religious and political organizations distinct from other ethnic groups, and archaeological evidences that corroborated the historical presence of the Kurds in the region (Elphinston, 2009).17 The disputes surround- ing a representative idea of the Kurdish people are discussed in the study made by Strohmeier (2003), whose research showed how the production of this cat- egory enabled diverse reflections on political hierarchies and dynamics re- lated to the access and representativity in the Kurdish publishing market, fo- menting the critique of a supposed condition of Kurdish ethnic homogeneity. The defense of the idea of a Kurdish people as a political movement is undone as the ethnic, cultural and religious multiplicity of the different Kurd- ish and non-Kurdish communities becomes recognized, along with the respec- tive impacts of their relations in the region after the 1960s (Strohmeier, 2003; Yavuz, 2004: 126). Hence, the hypothesis defended here is that the debates on gender emerge as a possibility for reorganizing the common political agenda in the 21st Century, claimed by different women’s collectives and organizations, which has enabled a new approximation between Kurdish communities that had branched out, especially from the 1970s onwards. The production of a new relationship between gender and nation, which has been fomented within these collectives and organizations, is promoting a renegotiation of the meanings of the very idea of freedom in order to frame the political agenda of women as an issue central to the struggle for autonomy of all Kurdish communities. This movement has been possible thanks to three main elements: (1) the movements of Kurdish women in local bodies, such as armed organizations, political parties and diverse community associations, fol- lowed by men joining; (2) a favorable international context in which issues re- o sorriso de nanook e o cinema documental e etnográfico de robert flaherty

904

lated to gender, feminism and women’s reorganization against diverse forms of violence have given rise to new ways of looking at politics, at the media and at social, labour and family relations; (3) the articulation between local and trans- national organizations driven principally by the intellectual production and activism produced in the diaspora. It should be observed, however, that differences within the communities themselves produce distinct hierarchies and expectations, whether in the dy- namics of the fight for autonomy or in the debates on broadening rights and ethnic recognition within the nation-states constituted in the region. In any event, the meanings of the idea of freedom for the different women’s collec- tives and organizations started to become disputed. Consequently, the ideas of freedom, in the context of the dynamic of the conflicts over Kurdistan, became relational and contextual, having to encompass multiple meanings, depending on where, how and by whom they are enunciated. In the second half of the 20th Century, the political organizations of the different Kurdish communities developed chiefly in the set of relations estab- lished with the respective States contained in their territories. In this context, different political parties, collectives and groups were formed, such as the Justice Party (Adalet Partisi/AP) (1960-1980), the True Path Party (Dokru Yol Partisi) (1983 to the present), the Democratic Union Party (2003 to the present) and the Justice and Development Party (Adalet ve Kalkınma Partisi/AKP) (2001 to the present). They also included those groups that joined political move- ments on the borders of Iran, like Kurdish Hizbullah (Army of Allah) (KH), and those that followed a Marxist strand, like the People’s Toiling Party (Halkın Emek Partisi/HEP) (1990-1993), Democracy Party (Demokrasi Partisi/DEP) (1993- 1994), People’s Democracy Party (Halkın Demokrasi Partisi/HADEP) (1994-2003), Democratic Society Party (Demokratik Toplum) and Kurdistan Workers Party (PKK) (Heper, 2007: 114). ago., 2019 ago., – According to Heper, the latter organization, the PKK, was founded in the 1970s by a group of young left-wing intellectuals from Ankara, among them the political scientist and Kurdish activist Abdullah Öcallan, who also helped 575, mai. 575,

– found the Kurdistan Liberation Front in 1984. After circa nine years of men and women disputing agendas within the PKK, the women from the party founded, in 1987, the Patriotic Women Union of Kurdistan (YJWK), which later adopted the name Free Women’s Movement of Kurdistan (TAJK) (Dryaz, 2011). The wom- en’s movements thus grew from the denunciations of men’s “sexism, patriar- chalism and chauvinism” (used here as emic categories) by women from the PKK and their need to organize themselves in autonomous form (Mojab, 2001). Gradually, women started to produce manifestos and organize meetings at national congresses. In 1995, the Union of the Free Women of Kurdistan (YJAK) was founded, the first official military and political organization of Kurdish women. Five years later, in 1999, on the occasion of the National Meeting of sociol. antropol. | rio de janeiro, v.09.02: 543 | rio de janeiro, antropol. sociol. artigo | marco antonio gonçalves

905

Women on the March, the organization would become autonomous from the PKK, adopting the name of the Women Workers’ Party of Kurdistan (PJKK). In his study on the emergence of women’s participation in the Kurdish conflicts, Massoud Dryaz (2011) argues that Abdullah Öcalan, leader of the PKK, had revisited his writings on the movement and oriented the restructuring of the party’s agendas to promote an egalitarian political approach to gender de- bates. According to the author, the rumor was that this change had been influ- enced by his wife, Kesire Yıldırım, a member of the PKK’s central committee until 1983. Öcalan was captured in Kenya and handed over to the Turkish state forces in 1999. After that, he had been kept in a maximum security prison on the island of İmralı, from where he wrote his texts. His books, Prison writings: the roots of civilisation (2007), Prison writings volume II: the PKK and the Kurdish question in the 21st Century (2011) [2008], Democratic confederalism (2011), Mani- festo for a democratic civilization (2015) and Liberating life: women’s revolution (2018) [2016] present his reflections on the elaboration of a political model that meets the historical specificities and demands of the peoples who inhabit the regions mostly recognized as territories with Kurdish majorities, placed in the border region which divides Syria and Turkey. Recently, he also has been addressing the freedom of women as a central point of his argument on the autonomy of Kurdish peoples. Öcalan’s works and face compose the backdrop to the sets of photographs and texts disseminated by the websites of the female Kurdish army units from the north of Syria (YPJ) and the male units (YPG) today, as well as the centres of solidarity and support for the Kurdish peoples. Besides that, he is present in the texts of activists like Dilar Dirik (2005), who refer to him as the mentor of the contemporary Kurdish struggle. In 2014, the female Kurdish army units became known for their direct armed confrontations with the terrorist group known as the Islamic State (ISIS). However, the formation of female battalions had begun in 2012 and their goals went beyond retaking their territories and expelling ISIS from the region: they sought to promote political autonomy in the regions of Kobane, Afrin, Jinwar and Raqqa. As well as the YPJ, there are diverse other cores of women’s resist- ance, such as the organizations composed of Yazidis women, and other wom- en’s associations whose activities are not limited to the armed struggle, like the Saturday Mothers movement, and/or those that do not necessarily iden- tify with the causes promoted by the aforementioned organizations, like the different Kurdish feminist movements and groups of Iraqi Kurdistan and Iran. Specifically addressing the women’s organizations in Kobane to the north of Syria, however, the focal point of the present analysis, the proclamation of the canton’s autonomy by them in October 2014, along with the organization of local councils run by the women, were an outcome of demands for power symmetry between the categories of ethnicity and gender in the articulation of Kurdish national policy. o sorriso de nanook e o cinema documental e etnográfico de robert flaherty

906

According to the women, in the traditional agenda of the Kurdish po- litical movements, predominantly organized by men, women’s freedom was projected to a post-independence future. According to the study made by Mo- jab (2001), the women also pointed out that Kurdish men from the PKK made pacts agreeing to promote the re-Islamization of women during negotiation processes for the release of political leaders and campaigns in the 1970s. Thus, making women’s political demands effective necessarily involved convincing men about their own needs. Tired of their causes being conditional on convinc- ing men, and also concerned by the intensification of violence against women and children in the region, women recount that they decided to take up arms to defend their own bodies. In this context, the base of the Kurdish national political cause has become reworked, and gender equality has turned into a foundational premise. The slogan Jîn, Jyîan, Azadî (women, life, freedom) became the tripod of the nation and its politics, a mark of the process of converting the women’s cause into a collective cause, instituting a notion of equality between national free- dom and the freedom of women. Thus, democratic confederalism and libertarian municipalism – models of political organization elaborated by Abdullah Öcalan and organized politi- cally through the Democratic Union Party (PYD), TEV-DEM and other local or- ganizations – take as fundamental premises for the construction of a stateless- nation, gendered and ecologically driven, whose local political directives are produced through collective consensus. Fomented by theoretical and episte- mological debates, focused primarily on postcolonial and anticolonial politics, the Jineology Centre was founded on January 2, 2018, in Manbij. The institution’s objective is to promote a scientific epistemology designed to reflect on debates on the importation, appropriation and negotiation of philosophical and po- litical categorizations and to elaborate collective projects that meet the de- ago., 2019 ago., – mands corresponding to the context and the social, cultural and political spe- cificities of Kurdish women’s experiences. Today, jineology workshops are run in various countries, including Ar- 575, mai. 575,

– gentina, Colombia, Holland, the UK, Chile, France, among others, by activists and intellectuals involved in the dynamics of the Kurdish women’s struggle in their different contexts.18 The material produced by those women has been translated into English, Portuguese, Spanish, German, French and other lan- guages, showing that the activism produced in the Kurdish diaspora goes beyond the frontiers of the conflict and has reconfigured its spatial dimension to en- compass the transnational field. The circulation of texts and images on the activities of Kurdish women reflects the amplification of the space of war to virtual social networks, making cyberactivism a fundamental medium in the dynamic of divulgation and the search for political support among the inter- national community. sociol. antropol. | rio de janeiro, v.09.02: 543 | rio de janeiro, antropol. sociol. artigo | marco antonio gonçalves

907

According to the study conducted by Ann-Kristin Kowarsch and Nursel Kilic (2007) on the traumatic experiences suffered by Kurdish women emigrat- ing to the European Union and the psychological consequences of their ordeals, the collective sharing of experiences of violence helped produce closer bonds between them. This sense of collectivity provides insight into the factors that led to the joint construction of women’s demands. The act of sharing feelings can be identified as a factor explaining the collective association of women who respond conjointly to physical, political and moral violence. In the case of Kurdish women, the naming of violence, the women argue, set off a reflec- tion on the asymmetries between ethnicity and gender within the national narrative on the Kurdish movements and the dimension of the new context enabled the reorganization of these experiences in their memories and narra- tives, reconstructed, as Avtar Brah (2006) suggests, through the relations es- tablished between the originary social fabric and the fabric established in the new country. There are many academic productions in the field of ‘Kurdish Studies’ based at the School of Oriental and African Studies at the University of London, at the Universities of Exeter, Sussex and Middlesex, and in the transnational network of researchers on the theme, the Kurdish Studies Network, which has more than 1,300 members. In this way, the production of a Kurdish diasporic in- telligentsia has become the central axis for the circulation of ideas and the pro- duction of debates aiming to break with the Orientalist, Arab-centred, Islamic- centred perspectives prevailing in the historiographic production on the Middle East over the 20th Century. Recent research on the interface of gender studies and Kurdish studies has, in turn, looked to construct a historical narrative that shifts the role of women from the category of participation, treated as lateral and complementary, to fundamental within the context of the nation (Al-Ali, 2007).

Beyond Vietnam and Kurdistan: women in wars and the wars of women Throughout this article, we have made some observations on the participation of women in the Vietnam War and the war for Kurdistan, highlighting the amplitude and variety of their forms of activism. Despite the significant con- textual differences between the two cases, it is worth emphasizing a similar- ity between them: the polarity between gender and nation helped to shape how the wars were lived, perceived and narrated. Even when fighting against the same enemy, the participation of women in the conflicts demonstrates that they move through a war that had its own temporality, traverses diverse spatialities and it is mobilized via a network of relations and activisms with a local diffusion and a transnational range. Shared experiences of women in Vietnam or the different Kurdistan cantons and their diasporic communities are rearticulated by the conflicts, producing specific axes of differentiation that somehow reposition gender roles. o sorriso de nanook e o cinema documental e etnográfico de robert flaherty

908

This is evident, for instance, when we take the Vietnamese Three Re- sponsibilities Movement or the Kurdish slogan Jîn, Jîan, Azadî (life, woman, freedom). In both cases, the intersection between the time of the front and the time of care craft the modes and meanings of the participation of women in war by organizing agency and producing experience. Similarly, the women who participate in war are permanently moving between spaces of public disputes, armed conflict and domesticity, whether in reference to direct care of their own home or of family members, or in a kind of domestic space remade on the fronts which involves caring for the injured, producing food, organizing arsenals, documents, uniforms and so on. Both in Vietnam in the mid 20th Century and Kurdistan at the beginning of the 21st Century, the heterogeneity of spacialities and temporalities that marks women’s activism by producing a “woman for the times of war” with specific moral obligations and attributes. It helps to produce a transnational movement. By taking the first consequence, the “woman for the times of war”, we observed that the Vietnamese women had three responsibilities during the war period: fighting, producing and caring. For that, they must gender roles that, at once, draw from the traditional associations between the “female” and “care”, and highlighted the non-separation between domestic and public spheres. One can read this convergence as a contingency of the times of war, which enforce woman of all ages, family backgrounds and kinds of life to engage in the na- tional war endeavour. Coined by Ho Chi Minh, the movement’s slogan, “good at housework and working for the state,” provides an insight for reshaping gender roles in Vietnam under the CPV’s leadership – that is, women equally available for the work at home or for the State. However, the equivalence in value between them, instead of entailing gender equity or an equal relationship, it indicates that ago., 2019 ago., – fighting, producing and caring turn to be interconnected parts of the same responsibility that women had in relation to the nation. In the case of the conflicts over Kurdistan, it is not a question of the 575, mai. 575,

– shift between private life and public life, but the reconstruction of an ideal of a global liberational subject through images of Kurdish women. War, episodes of violence with the communities and the fear of genocide forced women to organize their resistance which led a rework of the concept of life rooted in the life of women, as well as national freedom itself. The latter cannot happen without the freedom of women. This is brought to the surface by their own slogan Jîn, Jyîan, Azadî. Weap- ons, headscarves and smiles reorient the typical masculine imagery towards a war in the 21st Century, the war and revolution of women. The pun fre- quently used to report the death of female combatants at the front (they ever ‘rests in peace,’ they ‘rest in power’) unravels the analogy and the power of the sociol. antropol. | rio de janeiro, v.09.02: 543 | rio de janeiro, antropol. sociol. artigo | marco antonio gonçalves

909

role played by these women and position them inside the narrative of the his- tory of this conflict without succumbing to a romanticization of resistance (Abu-Lughod, 1990). While Öcalan’s image appears as the backdrop to diverse sets of images and montages, accompanied by his words, the photographs of women are con- veyed as central to the struggle and, when combined, compose a visual narrative of the conflict itself. Women from different ethnic minorities from the region, wearing military uniforms, colorful headscarves and smiling, sometimes with children and animals on wearing military clothes and carrying their wepons in the mountains, form a symbolic image that presents a new ideal parameter for representation of the Kurdish struggle. Side-by-side with their male comrades from the YPG, therefore, they mean the promotion of equality through the rep- resentation of symmetry between gender and ethnicity in the struggle for au- tonomy. Moreover, they evoke the territorial dimension and the region’s ethnic multiplicity. Finally, the activism of the Vietnamese and Kurdish women is also part of and influenced by various repertoires, struggles and disputes promoted by different women’s movements around the world. While many committees of solidarity scattered across the continents proof the extense of this network, it is also important to lay full stress on the images and narratives of these wom- en for the time of war conveyed transnationally aware the public to ceasefires at specific moments and in specific regions, and to the need of humanitarian corridors, for example (see Frazier, 2017; Nguyễn, 2016). Within the scope limit of the topics and issues here discussed, we con- cluded that making the participation of women in the war internationally vis- ible was – and still is for in the Kurdish case – a strategy implemented by themselves through a broad and heterogenous transnational network of support and protection. Comparing the two cases, especially in the United States and Vietnam war’s case, helped catalyze and connect different feminist, anticolonial, anti- imperialist and antiracist struggles in a movement that can be understood as a “manifestation of structural contradictions, aggravated by problems of con- jecture” (Galvão, 2011: 112) – in this case, the war itself. In other words, by participating in the war as combatants, activists or intellectuals, women have ended up confronting, actively and interconnectedly, some of the central prob- lems for the ideological organization of their societies. Both cases challenge the opposition between equality and difference, making the concepts interdependent, albeit held in tension. As pointed by Joan Scott (1996), fighting for equality through the affirmation of gender difference is a key indication that women have only a paradox to offer. In this scenario, by connecting anti-systemic struggles, expressed in anti-war and anti-impe- rialist causes, to demands for the expansion of citizenship through recognition o sorriso de nanook e o cinema documental e etnográfico de robert flaherty

910

of women’s rights, women activism’s disputes worldviews and behaviors related to gender roles, as well as the political action related to them. Thus, on the paths along which books, ideas and people circulate, the ex- periences in war are named, and the future beyond the war is imagined. Whether in local circuits or transnational networks, giving a name to acts of violence (in- cluding those that precede the outbreak of war) becomes primarily a collective practice, simultaneously a narrative and a concrete endeavour to review the sub- stantive contents that support the imagination of the nation and the production of gender, one in relation to the other.

Received 15/5/2019 | Reviewed 20/8/2019 | Approved 22/8/2019 ago., 2019 ago., –

575, mai. 575, –

Mariana Miggiolaro Chaguri. Ph.D. in Sociology, Associate Professor on the Department of Sociology and the Postgraduate Program in Sociology of State University of Campinas. Her main topics are related to social thought, and post-colonial studies, and recently has published the book Rumos do Sul: a atualidade da periferia no pensamento social (with Mário Medeiros) (2018).

Flávia X. M Paniz. MS in Sociology, Ph.D. candidate in Sociology, State University of Campinas, and research for the Middle East and Muslim World Workgroup of the Institute of International Relations of the University of São Paulo. CAPES award holder. sociol. antropol. | rio de janeiro, v.09.02: 543 | rio de janeiro, antropol. sociol. artigo | marco antonio gonçalves

911

Notes

1 The authors would like to thank the anonymous reviewer for their thoughtful comments and efforts towards im- proving our manuscript. The authors are also thankful to David Rodgers and Veridiana Domingos Cordeiro for the translation and revision of this text. 2 The museum was founded in 1987 and it is maintained by the Women’s Union (WU). According to its director, Nguyễn Thị Bích Vân, its aims are to research, collect and exhibit the culture and history of Vietnamese women and their contribution to the building of the nation and the protec- tion of its cultural heritage and legacy (interview with Mariana M. Chaguri, 7.1.2018). The WU was founded in 1935, five years after the creation of the Communist Party of Vietnam to which it is formally linked. 3 On this topic, see Hooks, 2017; Collins, 1993. 4 On this topic, see Lorentzen & Turpin, 1998; Elshtain, 1995; Waller & Rycenga,2004. 5 The book was a result of the ‘Feminism and War’ confe- rence held on October 2006 at the Department of Women and Gender Studies of the University of Syracuse (USA). Bringing together 28 researchers, both women and men, the event focused on the way in which gender issues had been mobilized in the 23 wars in which the USA had par- ticipated since the Second World War: “China (1945-1946, 1950-1953), Korea (1950-1953), Guatemala (1954, 1967-1969), Indonesia (1958), Cuba (19591960), the Belgian Congo (1964), Peru (1965), Laos (19641973), Vietnam (1961-1973), Cambodia (1969-1970), Grenada (1983), Libya (1986), El Sal- vador (1980s), Nicaragua (1980s), Panama (1989), Iraq (1991-2001), Bosnia (1995), Sudan (1998), Yugoslavia (1999), Afghanistan (2001-), and now, again, Iraq (2003-)”. (Roy, cited in, Riley, Mohanty & Pratt, 2008: 2). 6 Here we cite Benedict Anderson’s definition of the nation as an imagined political community: “imagined as both inherently limited and sovereign. It is imagined because the members of even the smallest nation will never know most of their fellow-members, meet them, or even hear of them, yet in the minds of each lives the image of their communion” (Anderson, 2008: 6). In the author’s argu- o sorriso de nanook e o cinema documental e etnográfico de robert flaherty

912

ment, the notion of “simultaneity” must work to organize time. But as Chatterjee (1993) observes in his critique of this point of Anderson’s argument, “simultaneity” cannot be interpreted as a synonym of homogeneity. Instead, it is essential to take into account the heterogeneity of pro- cesses and actors that contribute – or not – to imagining the nation. 7 For the debate on mobilizing action and collective action, see Tilly, 2010. For the debate on experience, see Scott, 1998; Brah, 2006. 8 For an analysis of the participation of American women in the Vietnam War, see Marshall, 1987; Norman, 1990; Stur, 2011. 9 The convergence around the WU and, consequently, the approximation with the CPV, can be explained by the fact that a significant portion of these female activists were linked to the Youth Union, led by Ho Chi Minh, the em- bryo of the CPV. Documents contained in folder 23, 1930/1945, archive of the Vietnamese Women’s Museum. 10 This resistance led to the foundation of the Democratic Republic of Vietnam under the leadership of Ho Chi Minh. 11 Prominent female combatants during this period include Hồ Thị Bi (1916-2011), Mạc Thị Bưởi (1927-1951); Nguyễn Thị Chiên (1930-2016), Hoàng Ngân (1921-1949) and Võ Thị Sáu (1933-1952) (see folders 23, 25, 27, 29 1947/1954; exhibition at the Vietnamese Women’s Museum).

ago., 2019 ago., 12 The conflict was extensive in time and space, occupying – both territories of Laos and Cambodia. The impact of the conflict on the US armed forces, as well as on its domes-

575, mai. 575, tic politics, was pronounced. Official data produced by – the US National Archive indicates a total of 58,214 soldiers (male and female) killed in combat in Vietnam between 1956 and 1975 (see National Archives, 2008). On the Viet- namese side, the statistics are less precise, but there is some degree of consensus on estimating, for the same period, the total number of deaths at 2,509,000, more than 1 million in the north (see Rummel, 1997). 13 These actions were organized around what became known as People’s Diplomacy. For a detailed analysis of the par- ticipation of Vietnamese women in war diplomacy, see Frazier, 2017. sociol. antropol. | rio de janeiro, v.09.02: 543 | rio de janeiro, antropol. sociol. artigo | marco antonio gonçalves

913

14 An association in scope, constituted by diverse local com- munity organizations initially dedicated to assisting mothers who had lost children in combat. As the war pro- gressed, the networks of contacts and communications organized by the women were also used by troops, help- ing the circulation of information or facilitating their ter- restrial advances (see Giáo, 2008: 134-136). This network also organized international collaborations with cam- paigns like “1 yen for Vietnam” promoted by the Japanese Women’s Union or the Movement Against the American Invaders in Vietnam and Giving Support to Vietnamese Women and Teenagers, led by the Osaka and Tokyo Moth- er’s Association (see folder 89, documents 345 to 389, ar- chive of the Vietnamese Women’s Museum). 15 The first effort led by Ho Chi Minh to organize a revolu- tionary army dates back 1941. The decision to use violence as a counter-revolutionary instrument in the struggle for national liberation was taken during the eighth plenary session of the CPV’s Central Committee. Between 1941 and 1944, the army went through different names: The National Defense Brigade, the National Army of Vietnam, and finally, by decision of the Permanent Commission of the CPV’s Central Committee, on December 22, 1944, it became known as the People’s Army (see Hòng & Hà, 2012). 16 On this theme, see Taylor, 1999; Werner & Huynh, 2015. 17 The cited document, “The Kurdish Question”, was found in the Elphinston Collection, belonging to the archive of the Middle East Centre of Saint Anthony’s College at the Uni- versity of Oxford, published in the journal International Affairs. The documents were produced by Colonel W. G. Elphinston, an officer in the British intelligence service for the Middle East, who worked in the Jazira region between 1918 and 1919, having been a member of the armed British mission in Iraq between 1925 and 1928, of the Quillian bri- gade, in Cairo, and who participated in the campaign against Rashid Ali al-Kailani in Iraq and in the British oc- cupation of Syria and the Lebanon during the Second World War. 18 For more information, see , ac- cessed most recently November 12, 2018. o sorriso de nanook e o cinema documental e etnográfico de robert flaherty

914

Bibliography

Abu-Lughod, Lila. (1990). The romance of resistance: tra- cing transformations of power through bedouin. Women American Ethnologist, 17/1, p. 41-55. Al-Ali, Nadje. (2007). Iraqi women: untold stories from 1948 to the present. London/New York: Zed Books. Alexievich, Svetlana. (2018). The unwomanly face of war: an oral history of women in World War. London: Penguin Clas- sics. Anderson, Benedict. (2008) [1983]. Comunidades imaginadas. Reflexões sobre a origem e a difusão do nacionalismo. São Pau- lo: Companhia das Letras. Badran, M. (2009). Feminism in Islam: secular and religious convergences. Oxford, England: Oneworld Publications. Brah, Avtar. (2006). Diferença, diversidade, diferenciação. Cadernos Pagu, 26, p. 329-376. Available at . Accessed October 13, 2019. Butler, Judith. (2015). Quadros de guerra. Quando a vida é passível de luto? Rio de Janeiro: Civilização Brasileira. Chatterjee, Partha. (1993). The nation and its fragments: co- lonial and postcolonial histories. Princeton: Princeton Uni- versity Press. Collins, Patricia Hill. (1993). Toward a new vision: Race, class, and gender as categories of analysis and connec-

ago., 2019 ago., tion. Race, Sex & Class, 1/1, p. 25-45. –

Das, Veena. (2007). Life and words. Violence and the descent into the ordinary. Berkeley: University of California Press. 575, mai. 575,

– Dirik, Dilar. (2005). Kurdish women’s radical self-defense: armed and political. Published by English Telesur. Do Thi, Van Hanh & Brennan, Marie. (2015). Complexities of Vietnamese femininities: a resource for rethinking women’s university leadership practices. Gender and Edu- cation, 27/3, p. 273-287. Dryaz, Massoud Sharifi. (2011). Women and nationalism: how women activists are changing the Kurdish conflict. The Middle East. Ph.D. students conference at SOAS. Sta- te, society, and economy in the Modern Middle East. sociol. antropol. | rio de janeiro, v.09.02: 543 | rio de janeiro, antropol. sociol. artigo | marco antonio gonçalves

915

Elphinston, W.G. (2009) [1946]. The Kurdish question. In- ternational affairs, 22/1, p. 91-103. Elshtain, Jean Bethke. (1995). Women and war. Chicago: University of Chicago Press. Frazier, Jessica M. (2017). Women’s antiwar diplomacy during the Vietnam War era. Chapel Hill: The University of North Carolina Press. Galvão, Andréia (2011). (2011). Marxismo e movimentos sociais. Crítica Marxista, 32, 107-126. Giáo, Mai Quynh. (2008). Everlasting memories. Hanói: Wo- men’ Publishing House/The Vietnamese Women’s Mu- seum. Heper, Metin. (2007). The State and Kurds in Turkey: the ques- tion of assimilation. New York: Palgrave Macmillan. Hòng, Trinh Vuong & Hà, Nguyen Manh. (2012). How the Vietnamese people’s Army was founded. Hanói: The Guói Pu- blisher. Hooks, Bell. (2017). Ensinando a transgredir: a educação como prática da liberdade. São Paulo: WMF Martins Fontes. Kowarsch, Ann-Kristin & Kilic, Nursel. (2007). Psychologi- cal consequences of trauma experiences on the development of Kurdish migrant women in the European Union. Final results and background of a survey in five European countries and Turkey. Rotterdam: International free women’s foun- dation. Logevall, Fredrik. (2018). Why Lyndon Johnson dropped out. The New York Times. Available at . Accessed October 20, 2018. Lorentzen, Lois Ann & Turpin, Jennifer E. (1998). The wo- men and war reader. New York: NYU Press. Marshall, Kathryn. (1987). In the combat zone: an oral history of American women in Vietnam, 1966-1975. Boston: Little Brown. Mojab, Shahrzad. (2001). The solitude of the stateless: Kurdish women at the margins of feminist knowledge. In: Women of the non-state nation: the Kurds. Costa Mesa: Mazda publishers, p.1-22. o sorriso de nanook e o cinema documental e etnográfico de robert flaherty

916

National Archives. (2008). Vietnam Conflict Extract Data File. Vietnam War U.S. Military Fatal Casualty Statistics. Avai- lable at . Acces- sed on October 31, 2018. Nguyễn, Lien Hang. (2017). North Vietnam had an anti-war movement, too. The New York Times. Available at . Accessed October 20, 2018. Nguyễn, Thị Bích Vân. (2018). Entrevista a Mariana Miggio- laro Chaguri, Hanói. Nguyễn, Việt Thành. (2016). Nothing ever dies. Cambridge, MA: Harvard University Press. Norman, Elizabeth M. (1990). Women at war: the story of fifty military nurses who served in Vietnam. Philadelphia: University of Pennsylvania Press. Perrot, Michelle. (1998). Mulheres públicas. São Paulo: Edi- tora Unesp. Riley, R. L.; Mohanty, C. Talpade & Pratt, M. Bruce. (2008). Fe- minism and war: confronting US imperialism. London: Zed. Rummel, R. J. (1997). Statistics of Vietnamese democide estimates, calculations, and sources. Statistics of democide. Charlottesville: Center for National Security Law, School of Law, University of Virginia. Scott, Joan. (1998). A invisibilidade da experiência. Proje- to História, 16, p. 297-325. Available at . Ac- cessed on October 18, 2018. Scott, Joan. (1996). Only paradoxes to offer: French feminists 575, mai. 575, – and the rights of man. Cambridge, MA: Harvard Univer- sity Press. Scott, Joan W. (1986). Gender: a useful category of histo- rical analysis. The American Historical Review, 91/5. Avai- lable at . Accessed on October 18, 2018. Scott, J. W. & Keates, D. (2004). Going public: feminism and the shifting boundaries of the private sphere. Urbana: Univer- sity of Illinois Press. sociol. antropol. | rio de janeiro, v.09.02: 543 | rio de janeiro, antropol. sociol. artigo | marco antonio gonçalves

917

Strohmeier, Martin. (2003). Crucial images in the presenta- tion of a Kurdish national identity: heroes and patriots, traitors, and foes. Leiden: Brill Academic Publishers. Stur, Heather Marie. (2011). Beyond combat: women and gen- der in the Vietnam war era. Cambridge, UK: Cambridge Uni- versity Press. Taylor, Sandra C. (1999). Vietnamese women at war: fighting for Ho Chi Minh and the revolution. Lawrence: University Press of Kansas. Tilly, Charles. (2010). Regimes and repertoires. Chicago: Uni- versity of Chicago Press. Waller, Marguerite & Rycenga, Jennifer. (2004). Frontline feminisms: women, war, and resistance. New York: Routledge. Werner, Jane. (2009). Gender, household, and state in post- -revolutionary Vietnam. New York: Routledge. Werner, Jayne & Huynh, Lu Doan. (2015). The Vietnam War: Vietnamese and American perspectives. New York: Routledge. Yavuz, M. H. (2004). Provincial ethnic federalism in Iraq. Middle East Policy, 11/1, p. 126-131. Yildiz, Kerim (2005). The Kurds in Syria: the forgotten peo- ple. London: Pluto Press in association with Kurdish Hu- man Rights Project. o escravo vai à ópera: ópera e escravidão no rio de janeiro ao redor de 1850

918

A GUERRA DAS MULHERES: ATIVISMOS DE GÊNERO NA GUERRA DO VIETNÃ E NAS GUERRAS PELA AUTONOMIA DO CURDISTÃO Resumo Palavras-chave Este artigo problematiza a participação e debate o ativismo Gênero; de mulheres em dois eventos: a Guerra do Vietnã (1954- guerra; 1975) e as guerras pelo Curdistão (1923 em diante). Como hi- nação e nacionalismo; pótese, sustentamos que tais lutas podem ser lidas a partir feminismo pós-colonial. do esforço comum de tornar inteligível e nomear um con- junto variado de experiências que, reorganizadas a partir ou em função do conflito armado, produzem novas mediações entre gênero e nação. O artigo está dividido em três partes: nas duas primeiras, são apresentados aspectos dos dois conflitos apontando eventuais convergências e diferenças; na sequência, observam-se as variadas formas de participa- ção e de ativismo de mulheres existentes nos dois casos; fi- nalmente, são debatidas as interfaces entre a produção do gênero, da guerra e das ideias, percorrendo uma multiplici- dade de narrativas, experiências e relatos que apontam para a dimensão heterogênea das guerras, das nações e, portanto, do regime de ideias que deve acompanhá-las.

Women’s War: gender activism in the Vietnam War and in the wars for Kurdish autonomy Abstract Keywords This paper debates women’s activism in two events: the Vi- Gender; etnam War (1954-1975) and the historical Kurdish struggle war; for autonomy (known as “Kurdish question”). We hypothe- nation and nationalism; ago., 2019 ago., post-colonial feminism. – size that the reorganization of gender roles during the con-

flicts marks the meanings of wars and configures what we call a woman for the times of war, that is, a woman who tran- 613, mai. 613,

– sits across the spaces of public confrontation, armed con- flict and domesticity. The approach outlined here is struc- tured into three parts: the first and the second ones present aspects of both conflicts by pointing to possible convergenc- es and differences between them; we also present the varie- ty of networks of participation and activism of women in both cases. In the third and final part, we discuss the inter- faces among the production of gender, war, and ideas, cross- ing a manifold of narratives, experiences, and stories that reveal different dimensions of wars and nations, and the di- versity of the regimes of ideas that attached to them. sociol. antropol. | rio de janeiro, v.09.02: 597 | rio de janeiro, antropol. sociol. http://dx.doi.org/10.1590/2238-38752019v939 artigo | marcelo diego

1 Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio), 919 Departamento de Ciências Sociais, Rio de Janeiro, RJ, Brasil [email protected] https://orcid.org/0000-0001-9766-8848

11 Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio), Marcelo Tadeu Baumann Burgos I Departamento de Ciências Sociais, Rio de Janeiro, RJ, Brasil Il [email protected] Caíque Cunha Bellato https://orcid.org/0000-0001-9984-5190

GERENCIALISMO E PÓS-GERENCIALISMO: EM BUSCA DE UMA NOVA IMAGINAÇÃO PARA AS POLÍTICAS EDUCACIONAIS NO BRASIL

Introdução A estrada que nos conduziu ao universo de questões deste artigo foi a da pesquisa sobre a relação entre educação escolar e democracia, bem como a da compreensão de que essa agenda, onde quer que ela se coloque, necessa- riamente interpela a relação entre Estado, sociedade e mercado. Do ponto de vista mais propriamente sociológico, tal agenda reclama levar a sério a dis- cussão sobre o destino da escola enquanto instituição e o modo como, no

dez., 2019 dez., caso brasileiro, ela ocupa lugar central no trabalho de formação das novas –

gerações, muito especialmente de crianças das classes populares. O fato de o debate atual sobre educação estar fortemente dominado 943, set. 943, – por enfrentamentos puramente ideológicos, quando ainda enfrentamos graves problemas de acesso à aprendizagem, é um forte sintoma daquilo que neste artigo estamos caracterizando como um vazio de imaginação, que se teria seguido ao esgotamento do gerencialismo enquanto referencial conceitual e político que dava sentido às agendas reformistas implementadas nas últimas décadas. Por isso, a fim de contribuir para o desenvolvimento de uma imagi- nação capaz de sustentar o aprofundamento dos importantes avanços con- quistados no país na área de educação, propomos, neste artigo, uma nova constelação de premissas conceituais que conformam aquilo que, na falta de melhor termo, denominamos pós-gerencialismo. A questão da relação entre o gerencialismo e a reforma educacional nos chegou como um desdobramento analítico que, a certa altura, nos pareceu sociol. antropol. | rio de janeiro, v.09.03: 919 | rio de janeiro, antropol. sociol. o escravo vai à ópera: ópera e escravidão no rio de janeiro ao redor de 1850

920

incontornável, já que ficava evidente a necessidade de se enfrentar o que se afigurava como um dilema entre, de um lado, a tomada de medidas de gestão para se tentar fazer valer o direito à aprendizagem, e, de outro, o compromis- so da escola com uma cultura democrática, aberta à plena participação da comunidade escolar, a começar pelos próprios estudantes. Foi nesse percurso que “topamos” com uma literatura internacional ainda pouco difundida entre nós e que, em seu conjunto, enfrenta exatamente o mesmo dilema. Com a ressalva de que, no seu caso, esse dilema foi originalmente colocado pela percepção do esgotamento do modelo burocrático do Welfare State para asse- gurar os direitos conquistados em contextos de socialdemocracia. As políticas públicas educacionais implementadas no Brasil a partir dos anos 1990, tanto pelo governo federal quanto por estados e municípios, têm sido fortemente atravessadas pelo debate em torno da sua maior ou me- nor porosidade à influência do gerencialismo. Nesse sentido, pode-se mesmo afirmar que, mais do que um paradigma no sentido conceitual, o gerencialis- mo se torna no país uma categoria política.1 Na sua origem, o gerencialismo remete à reação conservadora iniciada na Inglaterra contra o modelo burocrático do Welfare State. De modo muito sintético, pode-se entender o gerencialismo como uma doutrina de reforma do Estado inspirada em princípios importados do mercado e que tem como principais características o planejamento e a elaboração de políticas com ên- fase em metas de desempenho para nortear o funcionamento do setor públi- co. No Brasil, a entrada do gerencialismo ganha força, sobretudo a partir do período de Fernando Henrique Cardoso (1994-2002), servindo como um mo- delo de gestão pública para a reforma do Estado, com vistas a torná-lo mais eficiente e voltado para os interesses dos cidadãos (Paes de Paula, 2005). Apesar disso, nem na Inglaterra e nem no Brasil o gerencialismo chega a romper com o modelo burocrático que pretendia superar, tendo muita difi- ago., 2019 ago.,

– culdade de se afastar da concepção tecnocrática tão criticada por aqueles que

reclamavam mais participação nos processos decisórios sobre questões de interesse público. Essa marca de origem está presente, de certo modo, na 613, mai. 613,

– forma como o gerencialismo se converte em categoria política no Brasil. Im- portado como chave teórica para informar o sentido da reforma administra- tiva, o gerencialismo logo se torna uma influente doutrina para a administra- ção pública do país, estimulando e moldando a imaginação reformista nos mais diversos setores da vida brasileira. E aqui, com ainda mais ênfase do que em seu contexto de origem, o gerencialismo fundamentará a ação de elites políticas reformistas animadas pelo projeto de modernização dos mais dife- rentes serviços públicos. Na área da educação, essa presença se faz especial- mente relevante e, como argumenta Dusi (2017), influencia grande parte das políticas educacionais implementadas pelos estados brasileiros entre finais dos anos 1990 e o início da década de 2010. sociol. antropol. | rio de janeiro, v.09.02: 597 | rio de janeiro, antropol. sociol. artigo | marcelo diego

921

Além de orientar políticas reformistas de muitos estados da federação, o gerencialismo também define boa parte das controvérsias políticas e dou- trinárias travadas no país nesse mesmo período acerca da administração pú- blica. De especial relevância, nesse caso, é a questão da maior ou menor aber- tura à participação da sociedade e dos “burocratas de nível de rua” no proces- so decisório e na implementação das políticas.2 Bem como a discussão acerca dos mecanismos de controle, responsabilização e prestação de contas em face da efetividade, eficácia e eficiência de uma determinada política. Como demonstra Paes de Paula (2005), a influência gerencialista pola- riza o debate público no Brasil desde os anos 1990, e, segundo a autora, já no primeiro governo Lula, do Partido dos Trabalhadores (2003-2006), ganha corpo uma antinomia entre dois modelos, aqui entendidos como tipos ideais. De um lado, o modelo gerencialista, em sua busca por eficiência e eficácia, mas ain- da preso a um viés tecnocrático, e, de outro, um modelo que, em nome da valorização da cidadania e sem abandonar explicitamente o compromisso com a eficiência e a eficácia, pretende investir na “participação no nível das instituições”, enfatizando “a elaboração de estruturas e canais que viabilizem a participação popular” (Paes de Paula, 2005: 41). Apesar de reconhecer a continuidade das práticas gerencialistas no governo petista, Paes de Paula chama atenção para o fato de que o modelo de “administração pública societal” permanece como tendência latente, e para isso concorre o fato de a Constituição de 1988 ter acolhido anseios − que, em seu entendimento, teriam sido gestados desde os anos 1960 − de se assegurar maior participação popular na gestão pública. De fato, na área da educação, a emergência do gerencialismo significou um duro combate à aposta na valorização da participação como dimensão fundamental do controle social da gestão escolar, e boa parte das tensões e contradições que acompanham as reformas educacionais desde os anos 1990 tem a ver com esse enfrentamento entre as duas modelagens. Daí a sugestão, presente neste artigo, de que a tendência que estamos caracterizando como pós-gerencialista aponta, de algum modo, para uma certa convergência desses dois modelos.3 Nesse sentido, nossa proposta é a de que a noção de pós-gerencialismo seja reservada para caracterizar um processo que, na verdade, não pode ser tratado como antítese do gerencialismo, mas sim como uma tendência que ressignifica diversos aspectos daquele modelo, ao mesmo tempo em que in- corpora a dimensão da participação sob nova perspectiva, ao emprestar maior ênfase à cultura profissional como dimensão fundamental para se assegurar a qualidade do serviço público. Para desenvolver nosso argumento, adotamos como fonte de inspiração uma literatura internacional, boa parte dela anglo-saxônica, e tomamos como referência três dimensões que, segundo nosso entendimento, sintetizam bem o escravo vai à ópera: ópera e escravidão no rio de janeiro ao redor de 1850

922

os pontos cardeais da ultrapassagem do gerencialismo. Em primeiro lugar, a dimensão da discussão em torno da perspectiva top-down e bottom-up. Essas duas categorias têm sido utilizadas para comparar diferentes desenhos de po- líticas públicas, sendo a primeira cara a políticas de reforma mais verticais, e a segunda, a políticas concebidas de modo mais horizontal. Como veremos, mais do que propor uma inversão ou a exclusão de uma das duas perspectivas, a tendência pós-gerencialista procura definir formas novas de equilíbrio entre elas. Disso se segue uma segunda dimensão, que remete à valorização da cul- tura profissional, e ao desenvolvimento de novas formas de cooperação. A ten- dência pós-gerencialista empresta especial atenção às formas coletivas de or- ganização, associadas a uma ética de responsabilidade com a produção de re- sultados escolares. Por fim, uma terceira dimensão pode ser caracterizada como uma nova valorização da figura da liderança, ou melhor, de um sistema capaz de produzir lideranças em diferentes níveis do sistema escolar. A aposta no líder necessariamente remete aos atributos pessoais, por isso, a fim de evitar os evidentes limites do personalismo, o modelo pós-gerencialista procura corrigi- -lo por meio de uma concepção que valoriza o exercício da liderança como um elemento que é, ao mesmo tempo, pessoal e sistêmico. Antes de apresentarmos de modo mais aprofundado essas três dimen- sões, importa fazer algumas rápidas considerações sobre a recepção do ge- rencialismo no Brasil e de como ele estaria se esgotando como fonte de ima- ginação, deixando-nos, momentaneamente, desarmados para pensar a refor- ma educacional.

O gerencialismo no Brasil A chegada do gerencialismo no Brasil é um marco importante da reforma do Estado brasileiro realizada durante o período FHC. Sua recepção foi fartamen- te associada ao que se anunciava como “o fim da Era Vargas”, isto é, a um ago., 2019 ago.,

– modelo de articulação entre Estado, mercado e sociedade que, segundo a abor-

dagem defendida por seu principal formulador, o então ministro da Adminis- tração Federal e Reforma do Estado, Bresser Pereira, poderia ser qualificado 613, mai. 613,

– como a via mais segura para permitir a superação do “patrimonialismo”. Não deixa de ser significativo, como nota Brunet (2017), que o documen- to de apresentação da reforma administrativa de FHC considere a reforma realizada em 1967, no início do regime militar, a “primeira reforma gerencia- lista do Brasil”, por ter rompido com o modelo burocrático herdado das refor- mas realizadas por Vargas, cuja “pulsão centralizadora” teria “perpetuado o patrimonialismo sob a forma do clientelismo e da cooptação”.4 No entanto, ainda segundo Brunet, diversamente do que teria sido feito a partir da reforma de 1967, a reforma de FHC pretendia investir intensivamente na formação de uma elite burocrática altamente profissionalizada. sociol. antropol. | rio de janeiro, v.09.02: 597 | rio de janeiro, antropol. sociol. artigo | marcelo diego

923

Assim é que a expectativa era a de que os vícios da modernização var- guista, interpretada segundo a noção weberiana de patrimonialismo, tal como no amplamente influente diagnóstico formulado por Faoro (1989), poderiam ser corrigidos pelo gerencialismo. Nesses termos, o gerencialismo faria nascer uma nova concepção do racional-legal entre nós, o qual teria sido obstruído pela cultura patrimonialista que, segundo Faoro, estaria presente desde a for- mação do país, por influência do absolutismo português. E o diagnóstico era o de que essa cultura patrimonialista teria sido em alguma medida reiterada pela Constituição de 1988 que, como pontua Brunet (2017: 93), é vista pela coalizão reformista do governo de FHC como antagônica à modernização ad- ministrativa, “na medida em que teria irradiado para toda a administração indireta federal e também para os demais entes da federação um modelo baseado em controles excessivamente rígidos e burocráticos”. Ainda que seja uma questão em si mesma interessante − a de se pen- sar esse truque retórico, que faz com que o gerencialismo seja deslocado dos embates entre trabalhistas e conservadores na Inglaterra, cuja disputa se da- va no terreno da reforma do Estado welfareano britânico, para pousar nos trópicos como categoria aliada do racional-legal −, não é esse o ponto que aqui nos interessa mais de perto. O que sim importa no momento é salientar que o gerencialismo entra no Brasil como uma doutrina que associa a moder- nização do Estado à introdução de um padrão de gestão orientado por critérios de eficiência e eficácia tomados de empréstimo do mercado. Por aí, também, é que ele será facilmente associado por seus críticos ao neoliberalismo. De fato, a reforma administrativa do Estado então proposta é percebida como parte de uma reforma mais ampla, que também inclui mudanças na legislação trabalhista, na presença do Judiciário nas relações de trabalho, além de várias medidas voltadas para a desregulamentação/flexibilização da economia. E a isso também se somava uma agenda de privatização de empresas estatais e de redefinição da divisão do trabalho entre Estado, mercado e sociedade. Por isso, não seria exagero afirmar que mais do que doutrina de uma reforma administrativa, o gerencialismo se confunde no Brasil com um esforço de profunda reforma da ordem social.5 No entanto, como esse movimento não encontra maior ressonância na sociedade, seguiu sendo um processo condu- zido a partir de cima, por uma elite política reformista. Ainda assim, repre- sentou o principal esforço de modernização do Estado desde a redemocrati- zação do país, produzindo impactos em diferentes áreas do serviço público. Na área da educação, importa ressaltar que, em seu contexto original, o gerencialismo pode ser tomado como um ingrediente que se soma ao mo- vimento reformista que vinha ocorrendo em boa parte dos países do Ociden- te a partir do final da década de 1960. Tal processo está relacionado, sobretu- do, à complexificação do sistema educacional decorrente da massificação do ensino médio no contexto do pós-guerra. Assim é que, bem antes da emer- o escravo vai à ópera: ópera e escravidão no rio de janeiro ao redor de 1850

924

gência da doutrina que se convencionou chamar de gerencialismo, já estava em curso todo um esforço de construção de um campo da gestão escolar que, pode-se dizer, desloca a prevalência da sociologia da educação, e de sua mé- trica, associada ao estudo da relação entre educação e desigualdade social, como seria demonstrado por uma sociologia voltada para estudos da relação entre escolarização e estrutura social (Bourdieu & Passeron, 2014). Em seu lugar, entra em cena uma nova geração de autores, do campo da ciência da administração, da estatística, da psicologia, da economia e da ciência política, que se irão debruçar na formulação de novos desenhos de políticas educacio- nais, novas formas de gestão e novas formas de mensuração da aprendizagem. De fato, a emergência da gestão escolar pode ser associada à aposta no poder da escola enquanto agência capaz de produzir resultados mesmo quan- do diante de contextos difíceis. Com isso, ganha força outro tipo de métrica, que valoriza o resultado do trabalho escolar, mensurado pelo desempenho acadêmico do aluno. No caso brasileiro, diversamente do anglo-saxônico, talvez não seja exagero afirmar que a valorização da gestão escolar já nasce sob o impacto da influência do gerencialismo. Nesse sentido, a valorização da gestão escolar, de um lado, e o modelo gerencialista, de outro, ainda que sejam processos distintos, no Brasil eles se apresentam como fenômenos simbioticamente ar- ticulados, o que ajuda a explicar por que, não raro, a crítica à noção de gestão escolar se apresenta como uma crítica ao gerencialismo, e vice e versa. Fato é que tal simbiose passa a informar a imaginação reformista do sistema edu- cacional no Brasil, para a qual não faltou, aliás, um forte impulso de institui- ções privadas, muitas delas ligadas ao sistema financeiro, que passaram a formular e a implementar programas de ação voltados para o fortalecimento da cultura de gestão nas escolas. Em seu já citado estudo sobre as políticas públicas educacionais, Cristina Dusi (2017) apresenta um quadro descritivo ago., 2019 ago.,

– bastante convincente quanto à convergência gerencialista no período, deixan-

do evidente que os mais bem sucedidos Estados em termos educacionais en- tre meados dos anos 1990 e 2014 se valeram de instrumentos tipicamente 613, mai. 613,

– gerencialistas, tais como política de metas, sistemas de incentivos como pre- miação e bonificação salarial, e sistemas de monitoramento e avaliação em larga escala. Esse reformismo animado pelo gerencialismo, porém, tem dado sinais de esgotamento. Dois tipos de desafios explicitam bem esse esgotamento. O primeiro tem a ver com a dificuldade em face da resistência à mudança de comportamento profissional, que costuma ser forte na área da educação. De fato, apesar dos avanços no esforço de qualificação e certificação profissional dos diretores, a onda reformista realizada pelos estados e municípios não transformou senão parcialmente a cultura profissional de tipo personalista que caracteriza a relação dos diretores com as escolas (Burgos & Canegal, 2011), sociol. antropol. | rio de janeiro, v.09.02: 597 | rio de janeiro, antropol. sociol. artigo | marcelo diego

925

os quais, diga-se, ainda são, em boa parte das redes do país, indicados politi- camente para o cargo. Entre os professores, o investimento de algumas redes na formação continuada, associado ao uso intensivo de mecanismos de mo- nitoramento e avaliação, tem produzido resultados interessantes no sentido de alterar padrões de comportamento docente, aumentando sua responsabi- lidade com o resultado escolar. Mas mesmo nesses casos de sucesso relativo, sua sustentabilidade depende de que o modelo gerencialista se transforme em formas mais horizontais de gestão do trabalho escolar.6 O segundo desafio tem a ver com as dificuldades de se produzirem alterações mais consistentes no desempenho dos estudantes, em especial nos anos finais do ensino fundamental e no ensino médio. A questão da melhoria dos resultados escolares esbarra, entre outros fatores, na dificuldade de se conceberem escolas mais responsivas em relação aos seus alunos, com mais foco no estudante e em sua realidade, e maior abertura à sua participação, condições que, no mínimo, exigiriam muitas mudanças na proposta de se nortear a busca de resultados segundo a lógica das metas, incentivos e boni- ficação por resultados. Do fato de esses desafios não terem sido vencidos, não se segue que não tenha havido nas últimas duas décadas um significativo avanço na orga- nização do sistema educacional no país; indica, isso sim, que o modelo ge- rencialista parece não oferecer mais horizonte para o aprofundamento das reformas educacionais. Talvez a melhor evidência desse esgotamento tenha sido produzida pelo movimento de ocupação das escolas públicas de Ensino Médio, que ocorre em quase todos os estados da federação entre 2015 e 2016, com especial força em São Paulo, Rio de Janeiro e Paraná. Protagonizado por estudantes secundaristas, boa parte deles de classes populares, esse movi- mento representa um inédito momento de luta estudantil em defesa de uma escola pública de qualidade e, sobretudo, de uma escola aberta à sua partici- pação. Nesse sentido, questiona frontalmente o modelo tecnocrático que ca- racterizara a história recente de reformas educacionais. Com as ocupações, os estudantes passam a disputar com os professores e seus sindicatos, mas também com a direção da escola e as burocracias das secretarias de educação, a prerrogativa de definir o sentido da escola, reivindicando que sua voz seja ouvida e considerada. Os efeitos desse processo ainda não foram plenamente sentidos, mas é inegável que a força do movimento de ocupações coloca em xeque premissas e procedimentos que tinham se cristalizado como parte da cultura de gestão. De especial importância é o duro questionamento que os estudantes fazem da atuação dos diretores escolares, criticados, sobretudo, pela falta de transparência e de diálogo (Campos, Medeiros & Ribeiro, 2016; Camasmie, 2018). Uma segunda evidência que denota o esgotamento da simbiose entre o gerencialismo e a cultura de gestão veio do próprio governo federal. Logo o escravo vai à ópera: ópera e escravidão no rio de janeiro ao redor de 1850

926

após a deposição de Dilma Rousseff, o novo governo, presidido por Michel Temer (2016-2018), aproveita a divulgação do IDEB de 2015, que indica uma estagnação nos resultados do Ensino Médio, para acusar o “atual modelo de Ensino Médio como uma tragédia”.7 Forja-se em pouco tempo uma narrativa da “catástrofe”, que desqualifica todo o esforço realizado pelos estados até então. Em seguida, como uma resposta a esse diagnóstico o governo apresen- ta, em forma de medida provisória, a chamada “reforma do Ensino Médio”. Com isso, ataca frontalmente a aposta que vinha sendo feita até então, de se construir um novo modelo de gestão capaz de melhorar os resultados esco- lares. O foco da questão se desloca: o difícil avanço na melhoria do Ensino Médio não é mais encarado como um problema de gestão; é o modelo todo que está errado, e que precisa ser alterado. Em curtíssimo prazo, o Congresso Nacional aprova a medida provisória, convertendo-a na lei no 13.415/2017. Sua tônica é a flexibilização do currículo, e não a melhoria da gestão escolar e muito menos a ampliação da participação estudantil. A tal ponto a nova lei ignora a acumulação anterior que, na verdade, oferece como novo horizonte para a gestão um cenário de caos administrativo. Afinal, como imaginar que as escolas públicas estaduais, muitas vezes já fragilizadas, conseguirão res- ponder à necessidade de oferecer diferentes itinerários para seus alunos? Embora não se possa arriscar o que irá acontecer com a nova lei, não estando mesmo descartada uma espécie de desobediência civil em face dela, sua apro- vação, feita sob um clima de urgência, é em si mesma um sintoma forte de que o consenso criado em torno da simbiose entre gerencialismo e cultura de gestão se desfez. Em seu lugar, o que se tem hoje é um quadro de muitas incertezas, que a emergência com relativa força do movimento/programa “Es- cola Sem Partido” não deixa de exprimir (Frigotto, 2017). A relação simbiótica entre gerencialismo e cultura de gestão foi, sem dúvida, um capítulo importante para a construção de um sistema educacional ago., 2019 ago.,

– pautado pela ideia de eficácia, por isso, se a hipótese de que esse modelo se

esgotou fizer sentido, será necessário estimular uma nova imaginação para pensar a reforma educacional, de modo a se seguir avançando na direção tra- 613, mai. 613,

– çada por todo um arcabouço institucional que aponta a importância da edu- cação para a democracia no país, tal como previsto na Constituição de 1988 e no Estatuto da Criança e do Adolescente (1990), e estabelecido pela Lei de Diretrizes e Bases da Educação (1996) (Burgos, 2014). Para esse fim, pode ser muito bem-vinda a revisão de uma literatura que, há mais de uma década, tem explorado teoricamente o problema dos limites do gerencialismo e construído novos conceitos que, mais do que sim- plesmente romper com o modelo anterior, pretendem se afirmar como uma contribuição para a articulação entre a busca por eficiência na garantia dos direitos de aprendizagem dos estudantes e o papel da escola na formação da cultura democrática. Por essa via, a incursão nessa literatura também permi- sociol. antropol. | rio de janeiro, v.09.02: 597 | rio de janeiro, antropol. sociol. artigo | marcelo diego

927

te encontrar pontos de comunicação com o modelo de participação societal de que fala Paes de Paula (2005).

Tendências da literatura pós-gerencialista A perspectiva adotada no livro Change Wars, organizado por Fullan e Hargre- aves (2009), é a de que para uma mudança educacional acontecer é preciso, além da prescrição política, a participação ativa e o comprometimento daque- les que fazem parte das instituições de educação e estão mais próximos da realidade da sala de aula. Mas é no Second International Handbook of Educational Change (Hargreaves et al., 2010a), livro que reúne mais de 40 autores de dife- rentes partes do mundo, que essa linha de argumentação ganha maiores al- cance e densidade. Em suas mais de mil páginas, o Handbook organiza um debate que, a nosso ver, sintetiza as mudanças pelas quais a imaginação re- formista no campo da educação vem passando desde a primeira década do século XXI. A partir de suas experiências como pesquisadores, profissionais da educação, consultores ou ainda implementadores de políticas públicas, os autores que participam dessa coletânea apresentam distintas possibilidades de mudança educacional, mas convergem em torno da aposta na iniciativa e criatividade individual dos profissionais da educação, bem como no investi- mento em sua formação. Não se trata apenas de uma questão tática, mas sim de uma compreensão de que a mudança não pode ser concebida a partir de cima, em abstrato, sendo necessário valorizar o contexto e a participação. O desafio focalizado por essa literatura, que estamos chamando de pós-geren- cialista, é conciliar reforma educacional de larga escala com uma abordagem democrática que oriente o processo de mudança e valorize o envolvimento da base. O equilíbrio entre as perspectivas top-down e bottom-up, a ênfase no profissionalismo e na cooperação e a concepção de um novo tipo de lideran- ça são dimensões dessa abordagem da reforma educacional, que busca recon- ciliar o reformismo com um ideal democrático de educação. A aposta na participação da sociedade e dos “burocratas do nível de rua”, marca da perspectiva pós-gerencialista, não dispensa formas de coordenação e avaliação que provaram ser importantes em outro momento. A crítica ao mode- lo burocrático do Welfare State, e a valorização de um modelo de eficiência ba- seado em critérios gerenciais, cede terreno a uma reflexão que procura valorizar a dimensão participativa no processo educacional. A ideia de eficiência, nesse cenário, já não pode estar referida apenas a resultados pontuais conferidos por avaliações externas que mensuram o aprendizado dos alunos, ignorando o con- texto escolar e, de uma perspectiva mais ampla, a própria missão da instituição escolar em uma sociedade democrática. Hoje, a questão seria encontrar pontos de equilíbrio, que assegurem que processos de mudança não cancelem a respon- sabilidade e o compromisso com a escolarização, tampouco a criatividade e a o escravo vai à ópera: ópera e escravidão no rio de janeiro ao redor de 1850

928

valorização do contexto, o que pressupõe a participação dos diferentes segmen- tos que compõem a comunidade escolar. Por outro lado, essa bibliografia se mostra muito preocupada em não perder de vista que, ainda que se abra mais espaço para a discricionariedade, processos de reforma educacional precisam ser conduzidos de modo sistêmi- co. Segundo Fullan (2010: 129), os sistemas escolares são conhecidos pela fal- ta de coesão e pela fragmentação. Nessas condições, existiria muito espaço para inércia. Pressões positivas seriam então necessárias para mobilizar os profissionais e conduzir de forma sistêmica o processo de mudança educa- cional, mas sem perder de vista a necessidade de se levar a sério a agenda de estudos sobre formas complementares e mais participativas de responsabili- zação pelos resultados. Apesar da valorização da mensuração do aprendizado como necessário para identificar se as escolas estão cumprindo ou não sua função educativa, a revisão da literatura pós-gerencialista sugere que avaliações externas são limitadas e em alguns casos podem esconder importantes questões contex- tuais. Certo descompasso entre os critérios de melhoria adotados pelo gover- no e a agenda de aprendizagem das escolas apontaria, conforme MacBeath (2010), para a necessidade de combinar instrumentos de avaliação externa com formas de avaliação interna. Ao propor essa combinação, o autor ques- tiona em que medida o ímpeto para a mudança se dá por sistemas de inspe- ção ou pressão. A autoavaliação é aqui valorizada como um processo contínuo de reflexão, que deve abarcar, além da performance do estudante em testes periódicos, o reconhecimento de que os aprendizados do aluno e do professor estão integralmente conectados ao aprendizado organizacional. A abordagem gerencialista alterou o foco dos analistas para a questão do resultado escolar. Com isso, mais do que efeitos sociais, diminuição de desigualdade ou mobilidade social (questões caras à sociologia da educação), ago., 2019 ago.,

– o eixo da pergunta passou a ser o do desempenho. Mesmo reconhecendo a

relevância dessa abordagem, Teddlie (2010) sustenta que a adoção descontex- tualizada de parâmetros de avaliação poderia desestimular processos de me- 613, mai. 613,

– lhoria justamente nas escolas mais sensíveis.8 O que mais importa reter é que a busca por um novo balanceamento que permita a melhoria escolar nos dias atuais vai além da mera inversão entre as abordagens que priorizam soluções mais top-down ou bottom-up. E também a preocupação em conciliar métodos distintos de apreensão da rea- lidade escolar e de formulação de soluções para seus problemas, articulando as experiências pessoais às evidências empíricas produzidas por sistemas de monitoramento e avaliação (Hargreaves et. al., 2010b).9 Outra linha de argumentação em defesa de uma concepção sistêmica que não seja inconciliável com maior abertura à participação é a formulada por Hopkins (2010). Para ele, existe uma tendência de as iniciativas de reforma sociol. antropol. | rio de janeiro, v.09.02: 597 | rio de janeiro, antropol. sociol. artigo | marcelo diego

929

em larga escala apresentarem um sucesso inicial seguido de estagnação e falta de compromisso com o projeto. É que o foco em habilidades-chave ten- de a produzir uma rápida melhora nos padrões de aprendizagem que, em médio prazo, não se mostram sustentáveis. Seria preciso uma abordagem sis- têmica da melhoria escolar para garantir um avanço sustentável. Argumenta o autor que, a menos que as estratégias de reforma abordem o contexto do ensino e da aprendizagem, bem como a capacitação no nível escolar, as ex- pectativas que as sociedades têm de melhoria para seus sistemas educacionais nunca serão realizadas. Segundo Hopkins (2010: 745), a reforma de larga es- cala usa a avaliação como espelho e tem uma visão de curto prazo. Com isso, não se altera nada mais profundamente no sistema. Diversamente, mudanças sistêmicas assumem que o que está em jogo é construir capacidades que possam impactar o desempenho de forma mais sustentável. Mais do que me- dir a melhoria apenas pela performance dos alunos a partir do vértice de uma rede educacional, Hopkins destaca a importância de se desenvolver a capaci- dade profissional no nível da escola como forma de assegurar mais sustenta- bilidade da melhoria dos resultados. Como já se observou, o reconhecimento dos limites da utilização de dados para guiar os projetos de reforma tem colocado em cena a discussão sobre a importância da experiência cotidiana dos profissionais da educação para promoção da melhoria escolar. Disso se segue a valorização da discricio- nariedade e da criatividade (pontos centrais nesse novo equilíbrio entre abor- dagens verticais e horizontais de reforma) que, por seu turno, passa pela aposta no profissionalismo e na cooperação, com o que se pretende superar a antinomia entre políticas top-down e políticas bottom-up. Boa evidência des- sa tendência aparece no trabalho de Joan Talbert (2010: 560), que acusa a ênfase nos ganhos de curto prazo e nos resultados dos testes de impor um ritmo de mudança que mina o desenvolvimento de comunidades profissionais de aprendizado. A construção de uma comunidade profissional, como carac- teriza a autora, não se dá meramente a partir de trabalho colaborativo entre os professores. Segundo Talbert, os sistemas centralizados diluem a respon- sabilidade coletiva já que a preocupação é com a conformidade e não com o efeito da ação do profissional. Por outro lado, o desenvolvimento da respon- sabilidade mútua dos professores se daria a partir da valorização da categoria profissional, bem como de sua articulação com a comunidade. Essa aposta no profissionalismo e na cooperação remete à valorização de uma perspectiva mais em rede do que hierárquica, bem como à construção de capacidade e responsabilidade mais do que de controle.10 Na mesma linha, Hargreaves (2009) observa que cada vez mais o que tem sustentado mudanças na área da educação não são intervenções e políti- cas governamentais, mas sim pessoas trabalhando juntas como uma equipe em torno de propósitos comuns e objetivos claros que tenham um sentido o escravo vai à ópera: ópera e escravidão no rio de janeiro ao redor de 1850

930

real para elas. O desafio atual para os projetos de reforma seria fazer com que diferentes pessoas trabalhem cooperativa e efetivamente por uma causa co- mum. A aposta do autor é a de que a difusão de um padrão de mudanças po- deria se dar a partir da ideia de profissionalismo. Uma reforma educacional de sucesso dependeria de profissionais altamente qualificados que dispuses- sem de uma representação profissional eficaz e propositiva e que participassem de uma comunidade de aprendizagem dedicada a melhorar no longo prazo o aprendizado dos alunos. Hargreaves fala sobre o desenvolvimento de um sen- so de responsabilidade profissional, e um compromisso ético com o ensino, que poderia viabilizar a construção da melhoria a partir da base ainda que orientada pelo topo. A ênfase sobre a responsabilidade profissional, em vez da vigilância constante, preservaria, segundo ele, a criatividade e a possibilidade de customização em face de diferentes realidades. Deve-se sublinhar que tal proposição evidencia uma diferença impor- tante dessa perspectiva em relação à abordagem gerencialista. A ideia agora não é mais a da criação e recrutamento de uma elite bem treinada apta a gerir de forma padronizada o sistema escolar, mas sim o desenvolvimento da competência associada à formação de redes de profissionais. Como defende Linda Darling-Hammond (2009), não há políticas capazes de melhorar as es- colas se os professores não tiverem os conhecimentos e habilidades necessá- rios. Segundo ela, a lição de investir em professores foi aprendida pelas nações no topo dos rankings educacionais internacionais, que costumam preparar de maneira extensiva seus docentes – por meio de longa formação que possa criar uma ética profissional e intelectual – e pagar-lhes bons salários em re- lação às profissões concorrentes. Nessa perspectiva, os formuladores de po- líticas que desejem reformar o sistema para uma melhor performance devem investir em uma forte preparação inicial e no desenvolvimento contínuo dos profissionais, tendo como base o comprometimento com os alunos e com o ago., 2019 ago.,

– conhecimento necessário para a prática pedagógica. Apesar de reconhecer

que a padronização traz alguma eficiência, Darling-Hammond afirma que es- tas “regulamentações sem rosto” acabam se tornando o bode expiatório do fra- 613, mai. 613,

– casso escolar, já que ninguém no sistema assume a responsabilidade pelos seus efeitos sobre os alunos, ao passo que o incremento do profissionalismo, por sua vez, poderia promover uma melhora contínua da prática ao substituir a ideia de conformidade pela de responsabilidade. Afinal, o trabalho docente é muito complexo para ser prescrito de longe; por isso, o controle não deve vir de cima, mas, sobretudo, dos mecanismos de incentivo e sanção decorren- tes da responsabilidade em face dos pares e da reputação profissional. O profissionalismo, portanto, melhoraria a prática e aumentaria a res- ponsabilização ao criar formas de garantir a competência e o comprometi- mento de cada um com suas obrigações. É importante esclarecer que essa abordagem não propõe um abandono dos mecanismos de gestão e supervisão sociol. antropol. | rio de janeiro, v.09.02: 597 | rio de janeiro, antropol. sociol. artigo | marcelo diego

931

da escola, e sim o fortalecimento da capacidade de regulação pelos próprios profissionais. Trata-se de um deslocamento, portanto, da configuração na qual a burocracia estatal chama para si a tarefa de planejar e implementar políti- cas educacionais, cabendo aos sindicatos dos profissionais da educação a ta- refa de tentar impor limites ao que considera atentar contra os interesses da categoria que representa. Nesse tipo de arranjo, a dimensão da responsabili- dade propriamente profissional costuma ser deixada em segundo plano em favor de conflitos sindicais que, frequentemente, acabam capturados por uma lógica corporativista, nem sempre compatível com o objetivo de melhorar a capacidade da escola de ensinar e de educar. Em contraste com esse modelo centralizado de responsabilização que, em geral, tem como contraface os sindicatos, essa nova concepção aponta para a construção de uma comunidade profissional, na qual todos trabalham juntos para melhorar o ensino e a aprendizagem. Em síntese, pode-se afirmar que enquanto o modelo burocrático dilui a responsabilidade individual em favor da ideia de conformidade, e o gerencialismo valoriza o protagonismo de uma elite profissionalmente bem treinada e apta a gerir os processos de re- forma, o pós-gerencialismo propõe o desenvolvimento de uma cultura profis- sional lastreada em uma ética da responsabilidade mútua em relação à per- formance dos alunos e ao desenvolvimento da comunidade. Nesse novo cená- rio, os sindicatos de modo algum perderiam sua importância, mas com cer- teza teriam seu papel redimensionado, assumindo-se mais claramente como porta-vozes de uma categoria profissional, cujos interesses não necessaria- mente coincidem com os dos demais segmentos escolares. A emergência do tema do profissionalismo, aí incluída a ênfase na co- operação profissional, revela a valorização das formas coletivas de organiza- ção em torno do mundo da escola – sobretudo daquelas comprometidas com uma melhoria sustentável.11 Para a abordagem pós-gerencialista, a cooperação e a valorização de uma perspectiva em rede são importantes para a inovação. A prioridade passa a ser a ligação e a comunicação entre os profissionais, bem como a valorização do controle a partir de uma ética profissional, e não mais a conformidade aos desígnios burocráticos ou à vontade exclusiva de uma elite modernizadora. Outra marca importante dessa literatura é a de que a aposta no profis- sionalismo e na cooperação pressupõe a ressignificação da ideia de liderança como figura-chave a articular as diferentes dimensões do processo de reforma educacional. De fato, nota-se uma convergência de diferentes autores em tor- no de uma concepção ampliada da ideia de liderança: um sistema de lideran- ças que aumente a responsabilidade coletiva, mais do que um líder como fiador de uma vontade oriunda do vértice. Em contraste com a ética compe- titiva inerente ao gerencialismo, agora a liderança deve estar atenta ao con- texto e engajar-se em uma perspectiva sistêmica, compreendendo a interde- o escravo vai à ópera: ópera e escravidão no rio de janeiro ao redor de 1850

932

pendência entre as esferas educacionais. Além do comprometimento com o sucesso do estudante e com o desenvolvimento da escola, nessa nova abor- dagem compreende-se que a melhoria contínua das escolas só é possível com o avanço de todo o sistema. Para essa concepção, portanto, a liderança deve ser capaz de assumir um comprometimento moral em uma escala mais larga, sem descuidar da relação com a vida local e a comunidade escolar. Bill Mulford (2010), entre outros pesquisadores, vem tentando construir uma passagem do modelo gerencialista de liderança educacional para uma nova concepção mais ligada à ideia de rede e de comunidade de aprendizagem. O au- tor opõe um modelo mais vertical a outro que encara o diretor como articulador e construtor de comunidades, defendendo que abordagens para a melhoria esco- lar devem ser construídas localmente. A liderança, nessa perspectiva, precisa compreender as necessidades locais ainda que tenha em mente a conformidade com ordens externas. O líder, portanto, tem que articular as ideias de aprendiza- do em rede com políticas centralizadas de reforma. “A liderança educacional bem-sucedida precisa ser capaz de ver e agir sobre o todo, bem como sobre os elementos individuais, e sobre as relações entre eles ao longo do tempo” (Mul- ford, 2010: 199). Exerce, portanto, um importante papel de mediação. Com isso, desloca-se a ideia de um gestor detentor de um saber técnico, em favor de uma liderança que, além de domínio técnico, tem seu papel coletivamente legitimado a partir de interações que se dão no contexto local. Nesse sentido, seu compro- misso não é apenas técnico, envolve também uma dimensão política. Moralmen- te comprometido com o seu contexto, esse líder é quem irá adaptar as estraté- gias de mudança para a realidade particular de sua escola. Decisiva de um modo geral, a atuação dessa liderança atenta às ques- tões locais seria ainda mais fundamental em estratégias de melhoria em es- colas com dificuldades crônicas – especialmente aquelas em contextos desa- fiadores. Após rever a literatura sobre melhoria de escolas desse tipo, Alma ago., 2019 ago.,

– Harris (2010), identifica a tendência entre os autores de valorizar um perfil

de liderança que precisa incorporar em sua atuação uma abordagem mais sociológica e antropológica do que estritamente técnica, e que deve se afirmar 613, mai. 613,

– como agente capaz de equilibrar prescrição e discricionariedade, animando os profissionais em torno da ideia de cooperação. É esse o espírito de uma literatura que, sobretudo no contexto anglo-sa- xônico, vem buscando reconciliar o projeto de reforma do sistema educacional com critérios afins à construção de sociedades democráticas. Talvez se pudesse dizer que o equivalente desse esforço em contextos como o da França pode ser encontrado em referências como Touraine (2003) e Dubet (2008), entre tantos outros, quando buscam saídas para o que muitas vezes tem sido denominado crise da escola republicana. E é interessante que na França, ainda que com mui- tas variantes, esse debate siga sendo fortemente dominado pela sociologia das instituições, ao passo que no contexto anglo-saxônico o diálogo com o campo sociol. antropol. | rio de janeiro, v.09.02: 597 | rio de janeiro, antropol. sociol. artigo | marcelo diego

933

da ciência da administração seja mais intenso. Isso não deixa de colocar luz no fato de que para este último contexto a dimensão do público é menos dominada pelo Estado e, por isso mesmo, um campo mais aberto a mudanças e inovações; bem como mais poroso à lógica dos interesses. Para a literatura pós-gerencialista, reconectar a escola com a democra- cia pressupõe uma espécie de volta a princípios abandonados nesse percurso de mais de três décadas, quando se partiu em busca de um modelo adminis- trativo capaz de conciliar tantas expectativas contraditórias em face do sis- tema escolar; uma volta aos fundamentos que, para boa parte desses autores, remete à tradição deweyana, que afinal tem a escola como uma instituição umbilicalmente vinculada à construção de uma sociedade democrática, que não pode se render às razões de um Estado tecnocrático e muito menos a uma ética mercantil que aposta na competição como vetor capaz de produzir efi- ciência e eficácia. Uma volta a velhos ideais, que fariam da escola uma das agências modernas mais importantes para a democracia, fonte de igualdade, autonomia, liberdade, solidariedade (fraternidade), cooperação e empatia.12 Uma volta aos princípios da escola democrática que, como adverte Hargreaves (2009), deveria se dar sem prejuízo da retomada dos aspectos considerados preciosos dos diferentes períodos da reforma educacional, tais como a apos- ta em um ambiente propício à inovação, a valorização da definição de dire- trizes amplamente divulgadas e dos avanços técnicos das avaliações externas, a busca de equidade, e o uso de dados e evidências empíricas para informar gestores e professores em suas intervenções.

Considerações finais Enquanto momento de inovação da organização do Estado, o gerencialismo, com todas as suas tendências e variações nacionais, pode ser considerado um divisor de águas na reflexão a respeito da administração pública. Posto que se compromete com a qualidade dos serviços públicos, poderia, com justiça, ser encarado como uma forma de dar continuidade às promessas do Welfare State, como pretendeu o New Labour britânico, afirmando-se como uma alter- nativa “pós-burocrática” e mais eficiente de gestão de serviços públicos (Hall & Gunter, 2015). O problema é que essa marcação passa por cima do fato de que a onda gerencialista acaba cancelando não tanto algumas das principais promessas do Welfare, mas sim as da democracia em seu sentido mais pleno. Por isso, talvez o principal problema com o gerencialismo seja justamente o fato de ele responder de modo mais imediato às críticas de viés mais conser- vador feitas ao Welfare State, ignorando ou deixando em plano secundário as críticas que vinham sendo formuladas por segmentos mais progressistas e que, mais do que da ineficiência do Estado burocrático, reclamavam de sua falta de transparência e, sobretudo, de seu excessivo tecnocratismo e baixa abertura à participação dos cidadãos. o escravo vai à ópera: ópera e escravidão no rio de janeiro ao redor de 1850

934

Por outro lado, é verdade que o papel hegemônico que o gerencialismo assumiu em muitos contextos nacionais, com destaque para o Brasil, também reflete um vazio de alternativas ao tema da gestão, que o modelo societal não foi capaz de suprir. Esse quadro foi ainda mais comprometido pelo fato de que muitas vezes os críticos limitavam-se a acusar o gerencialismo de ser uma extensão do neoliberalismo, sem reconhecer a validade dos problemas que aquela matriz de reforma pretendia resolver no terreno da administração pública.13 Daí a importância de recuperar alguns dos pontos fundamentais das críticas progressistas ao Welfare sem perder de vista a importância da dimensão da gestão. Acreditamos que seja essa a melhor forma de ler a lite- ratura que aqui chamamos de pós-gerencialista, a qual, sem deixar de reco- nhecer a importância do gerencialismo, procura confrontá-lo com uma agen- da reformista que recupera elos perdidos da crítica democrática ao Welfare. De modo mais específico, este artigo parte da premissa de que uma boa maneira de estimular o debate em torno dessa agenda no Brasil é a interpela- ção de seu sistema educacional a partir das três vertentes que procuramos valorizar na leitura que fizemos da bibliografia pós-gerencialista, a saber: a busca de novas articulações entre os modelos top-down e bottom-up, a valori- zação da profissionalização e de formas de cooperação profissional, e a refle- xão sobre como formas inovadoras de liderança podem ser conciliadas com aspectos institucionais característicos de cada país. Nossa aposta é a de que a afirmação dessa nova imaginação muito ga- nhará caso se desenvolva um diálogo mais intenso entre os campos da ciência política e da ciência da administração, tradicionalmente dedicados ao estudo das políticas públicas, e uma sociologia da educação voltada para a escola, mas preocupada com os nexos entre a dimensão institucional e teorias da ação so- cial, tal como vem propondo há algum tempo François Dubet (1994; Dubet & Martuccelli, 1996). Acreditamos que essa articulação seja fundamental, justa- ago., 2019 ago.,

– mente por favorecer uma abordagem menos ingênua da administração (e da

administração escolar em especial), a qual, como nos lembra Guerreiro Ramos (1981) em seu estudo clássico sobre o assunto, é sempre devedora de uma ciên- 613, mai. 613,

– cia social que, por seu turno, nem sempre é reflexiva em face de suas repercus- sões sobre as teorias das organizações. Com base na argumentação proposta neste artigo, pode-se afirmar que a valorização das esferas de participação de professores e de estudantes na construção do espaço escolar, e a sua relação com a melhoria da aprendizagem, passa fundamentalmente pela reflexão sobre o desenho de políticas educa- cionais voltadas para a mudança, que incluam, entre outros, aspectos tais como a ênfase na formação docente continuada comprometida com os resul- tados escolares; a aposta no desenvolvimento de uma nova vida associativa profissional, capaz de estimular o surgimento de comunidades de aprendiza- gem entre gestores e entre docentes; e a organização de um sistema de lide- sociol. antropol. | rio de janeiro, v.09.02: 597 | rio de janeiro, antropol. sociol. artigo | marcelo diego

935

ranças que estimule entre nós novas formas de responsabilidade individual pelo trabalho coletivo na educação. De uma perspectiva normativa, essas são apenas algumas das dimen- sões fundamentais que a literatura pós-gerencialista aporta à constituição de uma nova imaginação para as políticas educacionais no Brasil e que, muito além do estéril debate animado pelo chamado “escola sem partido”, precisa- rá conformar um modelo de gestão mais compatível com os desafios culturais e institucionais que precisarão ser enfrentados para a realização das neces- sárias mudanças em um sistema educacional que ainda precisa avançar mui- to na afirmação do direito à aprendizagem, bem como na promessa de formar sujeitos dotados de autonomia. Como procuramos sustentar neste artigo, essa nova imaginação guarda afinidade eletiva com uma sociologia da educação que vem se empenhando em ultrapassar os marcos do dilema entre uma sociologia da reprodução (ampla- mente influenciada por Bourdieu), cética em relação ao poder transformador da escola, e o chamado “otimismo pedagógico”, que parece atribuir poderes quase mágicos à força da gestão (López, 2005). Desse ponto de vista, pode-se afirmar que a abordagem pós-gerencialista aponta para uma tendência de maior socio- logização da gestão escolar, à medida mesmo que as práticas e as experiências passam a contar mais como dimensões constitutivas da vida institucional. E essa tendência não deixa de encontrar solo fértil na vida educacional do Brasil, justamente pelo tipo de conflito que aqui se estabeleceu entre o gerencialismo, de um lado, e o modelo participativo, de outro. Uma boa evidência disso aparece quando se considera especificamen- te a questão da eficácia escolar, que inclui o uso de sistemas de avaliação externa e instrumentos de gestão voltados para a responsabilização da esco- la e de seus profissionais pelos resultados dos alunos. Apesar de muito cara ao modelo gerencialista, essa agenda de modo algum se confunde com ele, e é particularmente interessante observar como tem sido costumizada no país, adequando-se às diversas realidades das redes, escolas e seus diferentes con- textos. Ao tratar desse tema, Passone (2019), que realiza uma análise da pro- dução bibliográfica brasileira sobre o assunto na última década, constata a valorização do enfoque na realidade local das escolas, verificando um acú- mulo crescente de conhecimento sobre esses contextos. Com base nessa ten- dência, o autor identifica a afirmação de uma abordagem mais participativa para fazer frente aos obstáculos que precisam ser superados para a melhoria da eficácia escolar. No entanto, a tirar pelo que vem se passando no país, ao menos desde 2016 e, sobretudo, a partir do governo Bolsonaro, há sérios riscos de que nos desviemos desse caminho, reduzindo-se a escola não aos desígnios tecnocrá- ticos típicos ao gerencialismo, e com o qual se pretendeu romper com o que se identificava como o caráter patrimonialista do Estado e de seus serviços o escravo vai à ópera: ópera e escravidão no rio de janeiro ao redor de 1850

936

públicos, mas agora à lógica estrita da racionalidade instrumental cara ao mercado. É curioso constatar que, mais do que nunca, faz sentido para nós a advertência feita por Guerreiro Ramos (1981), no início da década de 1980, quando acusava uma certa “ciência social e administrativa” de nada mais do que “uma ideologia legitimadora da sociedade centrada no mercado”. Nossa proposição é a de que a abordagem pós-gerencialista pode ser lida, portanto, como um convite a uma reflexão mais profunda sobre o papel do Estado e do serviço público, que tem na área da educação talvez a sua mais fundamental dimensão.

Recebido 7/3/2019 | Revisto 18/8/2019 | Aprovado 28/8/2019 ago., 2019 ago., –

Marcelo Burgos é doutor em sociologia pelo Iuperj e professor e pesquisador do Departamento de Ciências Sociais da PUC-Rio. Tem 613, mai. 613, – realizado pesquisas nas áreas da sociologia urbana, sociologia do direito e sociologia da educação. Entre outros trabalhos, publicou os livros A utopia da comunidade. Rio das Pedras, uma favela carioca (2002), Corpo e alma da magistratura brasileira (1997), Judicialização da política e das relações sociais no Brasil (1999). De modo mais específico, na área da sociologia da educação publicou, além de artigos, os livros A escola e a favela (2009), e A escola e o mundo do aluno (2015).

Caíque Bellato é doutorando em ciências sociais pelo PPGCIS/PUC-Rio e mestre em ciências sociais pela mesma instituição. Tem realizado pesquisas nas áreas da sociologia da educação e da sociologia da religião. Pesquisador do CAEd/UFJF, entre 2015 e 2018. sociol. antropol. | rio de janeiro, v.09.02: 597 | rio de janeiro, antropol. sociol. artigo | marcelo diego

937

NOTAS

1 Assim, concordando com Abrucio (1997: 28), antes de ser um paradigma, o gerencialismo se caracteriza por “um pluralismo organizacional sob bases pós-burocráticas vinculadas aos padrões históricos (institucionais e cultu- rais) de cada nação”. 2 Como observa Gabriela Lotta (2015: 43), adotando a carac- terização de Michael Lipsky, os “burocratas de rua são funcionários que trabalham diretamente no contato com os usuários dos serviços públicos, tais como policiais, pro- fessores e profissionais da saúde”. Por isso mesmo, con- clui a autora, estão “no foco da controvérsia política, ten- do em vista que são pressionados pelas demandas de serviços para aumentarem a efetividade e a responsivi- dade, ao mesmo tempo em que são pressionados pelos cidadãos para aumentarem a eficiência e a eficácia”. 3 Antes de nós, João Pedro Schmidt (2007) utiliza a noção de pós-gerencialismo para pensar mudanças no campo da administração pública no Brasil a partir dos anos 2000, em especial a partir do primeiro governo Lula. Sua carac- terização converge com a nossa em vários aspectos, mas é claro que Schmidt não teria como se apropriar da mas- sa crítica gerada por uma bibliografia internacional pro- duzida justamente no contexto em que ele esboçava sua caracterização do que entendia ser o “pós-neoliberalismo” e o “pós-gerencialismo”. 4 Como nota Brunet (2017: 92), “Os paradigmas moderniza- dores que o Plano Diretor [da reforma administrativa in- tentada por FHC] enaltece na reforma administrativa de 1967 são, principalmente, a descentralização de funções para a administração indireta e a flexibilização dos cri- térios de seleção de pessoal e de aferição de metas de desempenho no âmbito daqueles entes administrativos”. 5 Foi também, como bem assinala Brunet (2017), um supor- te para as reformas macroeconômicas orientadas para a implantação de uma política de estabilidade monetária e justificadas pela necessidade de tornar o país competiti- vo em face das novas exigências da globalização. 6 Uma boa evidência desse tipo de política voltada para a transformação da cultura docente é a experiência do Pro- o escravo vai à ópera: ópera e escravidão no rio de janeiro ao redor de 1850

938

grama de Alfabetização na Idade Certa, desenvolvida no Ceará. Para conhecer esse programa e seu impacto no comportamento docente, ver Rossi (2010). 7 “Não vamos fazer de conta que essa tragédia não existe”, declarou, à época, o recém-empossado ministro da Educa- ção, Eduardo Mendonça Filho. Disponível em . Acesso em 12 set. 2017. 8 Alma Harris (2010) afirma que a imposição de modelos padronizados de intervenção escolar pode ser contrapro- ducente em escolas localizadas em contextos vulneráveis e que um programa de melhoria escolar contextualizado precisaria de flexibilidade e diversidade para atender às necessidades dos alunos. 9 Para esses autores, seria preciso respeitar o valor dos da- dos em oposição à intuição subjetiva, mas desde que se reconheça que, às vezes, a evidência é insuficiente e que para o avanço do sistema é necessário dar atenção à ex- periência daqueles profissionais envolvidos diretamente com o contexto escolar (Hargreaves et al., 2010b: xvii). 10 Para Talbert (2010 :559), as comunidades profissionais de aprendizado vibrantes, que continuamente aprendem a melhorar o desempenho dos alunos, são conectadas em rede com colegas de universidades locais e redes profis- sionais dentro e fora do sistema escolar. Elas desenvolvem seus conhecimentos e habilidades pela experimentação, ago., 2019 ago.,

– bem como por meio de intercâmbios. Tais comunidades

criam e compartilham ferramentas e materiais eficazes em suas salas de aula, circulam e discutem leituras e 613, mai. 613,

– usam protocolos para aprender juntas. 11 Louise Stoll (2010), por exemplo, defende o desenvolvi- mento de capacidades para mudanças sistêmicas que são geradas por meio de comunidades de aprendizagem co- nectadas. Contra a ideia de que a mudança vem de cima, Stoll aponta a inovação como resultado da comunidade de aprendizagem e a sustentabilidade da mudança sistê- mica como produto de um processo contínuo de aprendi- zado dos indivíduos. 12 O livro de John Dewey (1979) Democracia e educação, origi- nalmente publicado em 1916, segue sendo uma referência sociol. antropol. | rio de janeiro, v.09.02: 597 | rio de janeiro, antropol. sociol. artigo | marcelo diego

939

fundamental ao debate político do campo da educação, sobretudo para os países de língua inglesa. Para uma boa evidência desse tipo de posição deweyana no debate con- temporâneo, ver Apple & Beane (2001). Para uma discus- são sobre a importância da cooperação e da empatia para as sociedades contemporâneas, ver Sennet (2012). 13 Com boa dose de razão, o ex-ministro Bresser Pereira (2010) sustenta que as reformas gerencialistas foram, no Brasil, a melhor defesa do Welfare State, uma vez que ga- rantiam, no seu entendimento, a “eficiência do consumo coletivo”. Por isso, para ele, seria um equívoco vincular a reforma gerencial implementada no país em 1995 com o neoliberalismo: “podemos pensar na reforma gerencial não como a consequência, mas como o instrumento do Estado do bem-estar social e como fator fundamental de sua legitimação” (Bresser Pereira, 2010:116).

Referências bibliográficas

Abrucio, Fernando. (1997). O impacto do modelo gerencial na Administração Pública: um breve estudo sobre a expe- riência internacional recente. Cadernos ENAP [online], 10. Disponível em . Acesso em 8 set. 2017. Apple, Michael & Beane, James. (2001). Escolas democráticas. São Paulo: Editora Cortez. Bourdieu, Pierre & Passeron , J.C. (2014) [1964]. Os herdeiros: os estudantes e a cultura. Florianópolis: Editora da UFSC. Bresser Pereira, L.C. (2010). Democracia, Estado social e reforma gerencial. Revista de Administração de Empresas, 50/1, p. 112-116. Disponível em . Acesso em 16 set. 2017. Brunet, Emiliano. (2017). Reforma do Estado no governo Fer- nando Henrique Cardoso (1995-2002): Ideologia reformista, eco- nomicismo e direito em uma época de mudanças. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris. Burgos, Marcelo (coord.). (2014). A escola e o mundo do aluno. Rio de Janeiro: Garamond. Burgos, M. B. & Canegal, A. C. (2011). Diretores escolares em um contexto de reforma da educação. Revista Pesquisa e Debate em Educação, 1/, p. 21-43. o escravo vai à ópera: ópera e escravidão no rio de janeiro ao redor de 1850

940

Camasmie, Mariana Junqueira. (2018). O movimento de ocupa- ção das escolas e as novas formas de fruição da juventude escolari- zada nas classes populares do Brasil. Dissertação de Mestrado. PPGCS/Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Campos, Antônia; Medeiros, Jonas & Ribeiro, Márcio M. (2016). Escolas de luta. São Paulo: Veneta. Darling-Hammond, Linda. (2009). Teaching and the chan- ge wars: the professionalism hypothesis. In: Hargreaves, Andy & Fullan, Michael (eds.). Change wars. Bloomington: Solution Tree, p. 45-68. Dewey, John. (1979). Democracia e educação. São Paulo: Com- panhia Editora Nacional. Dubet, François. (2008). O que é uma escola justa?. São Paulo: Editora Cortez. Dubet, François. (1994). Sociologie de l’expérience. Paris: Edi- tions Du Seuil. Dubet, François & Martuccelli, Danilo. (1996). À L’école. So- ciologie de l’expérience scolaire. Paris: Editions Du Seuil. Dusi, Cristina Sayuri Cortes Ouchi. (2017). Os efeitos da ges- tão para resultados na educação: uma análise das políticas públi- cas educacionais de sete estados brasileiros. Tese de Doutorado. PPGCS/Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Faoro, Raymundo. (1989). Os donos do poder: formação do pa- tronato político brasileiro. Rio de Janeiro: Globo. Frigotto, Gaudêncio (org.). (2017). Escola “sem” partido: esfin- ge que ameaça a educação e a sociedade brasileira. Rio de Janei- ago., 2019 ago., – ro: Uerj /LPP. Fullan, Michael. (2010). Positive pressure. In: Hargreaves,

613, mai. 613, Andy et al. (eds.). Second International Handbook of Educatio- – nal Change. [s.l.]: Springer Science + Business Media (Sprin- ger International Handbooks of Education, 23), p. 119-130. Fullan, Michael & Hargreaves, Andy (eds.). (2009). Change wars. Bloomington: Hawker Brownlow Education. Hall, David & Gunter, Helen M. (2015). A nova gestão públi- ca na Inglaterra: a permanente instabilidade da reforma neoliberal. Educação & Sociedade, Campinas, 36/132, p. 743- 758. Hargreaves, Andy. (2009). The fourth way of change: to- wards an age of inspiration and sustainability. In: Har- sociol. antropol. | rio de janeiro, v.09.02: 597 | rio de janeiro, antropol. sociol. artigo | marcelo diego

941

greaves, Andy & Fullan, Michael (eds.). Change wars. Bloo- mington: Hawker Brownlow Education, p.11-44. Hargreaves, Andy et al. (eds.). (2010a). Second International Handbook of Educational Change. [s.l.]: Springer Science + Business Media (Springer International Handbooks of Edu- cation, 23) Hargreaves, Andy et al. (2010b). Introduction: Ten years of change. In: Hargreaves, Andy et al. (eds.). Second Internatio- nal Handbook of Educational Change. [s.l.]: Springer Science + Business Media (Springer International Handbooks of Edu- cation, 23), p. xi-xxi. Harris, Alma. (2010). Improving schools in challenging contexts. In: Hargreaves, Andy et al. (eds.). Second Interna- tional Handbook of Educational Change. [s.l.]: Springer Science + Business Media (Springer International Handbooks of Education, 23), p. 693-706. Hopkins, David. (2010). Every school a great school – reali- sing the potential of system leadership. In: Hargreaves, Andy et al. (eds.). Second International Handbook of Educatio- nal Change. [s.l.]: Springer Science + Business Media (Sprin- ger International Handbooks of Education, 23), p. 741-764. López, Néstor. (2005). Equidad educativa Y desigualdad social. Desafíos a la educación en el nuevo escenario latinoamericano. Buenos Aires: Instituto Internacional de Planeamiento de la Educación/Unesco. Lotta, Gabriela Spanghero. (2015). Burocracia e implementa- ção de políticas de saúde: os agentes comunitários na Estratégia Saúde da Família. Rio de Janeiro: Fiocruz. MacBeath, John. (2010). Self-evaluation for school impro- vement. In: Hargreaves, Andy et al. (eds.). Second Internatio- nal Handbook of Educational Change. [s.l.]: Springer Science + Business Media (Springer International Handbooks of Edu- cation, 23), p. 901-912. Mulford, Bill. (2010). Recent developments in the field of educational leadership: the challenge of complexity. In: Hargreaves, Andy et al. (eds.). Second International Handbook of Educational Change. [s.l.]: Springer Science + Business Media (Springer International Handbooks of Education, 23), p. 187-208. o escravo vai à ópera: ópera e escravidão no rio de janeiro ao redor de 1850

942

Paes de Paula, Ana Paula. (2005). A administração pública brasileira entre o gerencialismo e a gestão social. Revista de Administração de Empresas, 45/1, p. 36-49. Disponível em . Acesso em 25 set. 2017. Passone, Eric Ferdinando Kanai. (2019). Gestão escolar e democracia: o que nos ensinam os estudos de eficácia es- colar. Laplage em Revista. Sorocaba, 5/2, p. 142-156. Ramos, Alberto Guerreiro. (1981). A nova ciência das organi- zações. Uma reconceituação da riqueza das nações. Rio de Ja- neiro: FGV. Rossi, Jocelaine Regina Duarte. (2010). Entre o estável e o fortuito: a formação continuada em serviço e as rotinas pedagó- gicas em alfabetização. Tese de Doutorado. PPGEB/Universi- dade Federal do Ceará. Schmidt, João Pedro. (2007). Gestão de políticas públicas: elementos de um modelo pós-burocrático e pós-gerencia- lista. In: Direitos sociais e políticas públicas: desafios contempo- râneos, 7. Santa Cruz do Sul: Editora Edunisc. Sennet, Richard. (2012). Juntos: os rituais, os prazeres e a polí- tica da cooperação. Rio de Janeiro/São Paulo: Record. Stoll, Louise. (2010). Connecting learning communities: capacity building for systemic change. In: Hargreaves, Andy et al. (eds.). Second International Handbook of Educatio- nal Change. [s.l.]: Springer Science + Business Media (Sprin- ger International Handbooks of Education, 23), p. 469-484.

ago., 2019 ago., Talbert, Joan E. (2010). Professional learning communities –

at the crossroads: how systems hinder or engender change. In: Hargreaves, Andy et al. (eds.). Second International Hand- 613, mai. 613,

– book of Educational Change. [s.l.]: Springer Science + Busi- ness Media (Springer International Handbooks of Educa- tion, 23), p. 555-572. Teddlie, Charles. (2010). The legacy of the school effective- ness research tradition. In: Hargreaves, Andy et al. (eds.). Second International Handbook of Educational Change. [s.l.]: Springer Science + Business Media (Springer International Handbooks of Education, 23), p. 523-554. Touraine, Alain. (2003). Poderemos viver juntos? Iguais e dife- rentes. 2 ed. Petrópolis: Vozes. sociol. antropol. | rio de janeiro, v.09.02: 597 | rio de janeiro, antropol. sociol. artigo | marcelo diego

943

GERENCIALISMO E PÓS-GERENCIALISMO: EM BUSCA DE UMA NOVA IMAGINAÇÃO PARA AS POLÍTICAS EDUCACIONAIS NO BRASIL Palavras-chave Resumo Educação e democracia; Após cerca de duas décadas de predomínio da perspectiva reforma educacional; gerencialista como referência para o reformismo no sistema gerencialismo; educacional brasileiro, verifica-se uma crise de imaginação, gestão escolar. a qual não deixa de produzir um vazio que ajuda a explicar o atual protagonismo de questões relacionadas à moralidade e a clivagens ideológicas no debate sobre educação. E isso em um país que ainda encontra sérios problemas para assegurar o direito básico de aprendizagem. Na literatura internacional, a crise do gerencialismo já se encontra fartamente mapeada, animando o desenvolvimento de novos pressupostos e con- ceitos que procuram incorporar suas principais virtudes e avançar em relação a seus limites. Denominamos essa litera- tura “pós-gerencialista”, sustentando que sua leitura pode ser de grande valia para fomentar a inovação nas políticas educacionais, tendo em vista a necessidade de aprofundar- mos as promessas da Constituição de 1988, que faz da escola uma âncora fundamental para a democracia brasileira.

MANAGERIALISM AND POST-MANAGERIALISM: IN SEARCH OF A NEW IMAGINATION FOR EDUCATIONAL POLICIES IN BRAZIL Keywords Abstract Education and democracy; After approximately two decades in which the managerial educational reform; perspective has predominated as the main framework for managerialism; reformism in the Brazilian educational system, a crisis of school management. imagination has emerged, generating a void that helps ex- plain the current prominence of issues relating to morality and the ideological schisms now found within the education debate. Moreover, this situation has occurred in a country that still encounters serious problems ensuring the basic right to education. In the international literature, the crisis in managerialism has already been densely mapped, en- couraging the development of new premises and concepts that seek to incorporate its main virtues and advance be- yond its limitations. We refer to this literature as ‘post-man- agerialist,’ arguing that its reading can be valuable to foster- ing innovation in educational policies, recognizing the need to deepen the promises of the 1988 Constitution, which makes schooling a basic foundation of Brazilian democracy. o escravo vai à ópera: ópera e escravidão no rio de janeiro ao redor de 1850

944 ago., 2019 ago., –

613, mai. 613, – sociol. antropol. | rio de janeiro, v.09.02: 597 | rio de janeiro, antropol. sociol. http://dx.doi.org/10.1590/2238-38752019v9310 artigo | tarcila soares formiga

1 Universidade de São Paulo (USP), Escola de Artes, Ciências 945 e Humanidade (Each), São Paulo, SP, Brasil [email protected] https://orcid.org/0000-0002-1231-6665

11 Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), Departamento Jorge Machado I de Medicina Preventiva, São Paulo, SP, Brasil Il [email protected] Richard Miskolci https://orcid.org/0000-0002-6405-5591

Das Jornadas de Junho à cruzada moral: o papel das redes sociais na polarização política brasileira

Qual foi o papel desempenhado pelas redes na criação das polarizações polí- ticas que marcam a vida política brasileira desde as Jornadas de Junho? De que modo elas se relacionam com a cruzada moral que vivemos nesses dias? Nes- te artigo, buscamos compreender o papel político das redes sociais no acirra- mento de disputas políticas e morais no Brasil desde 2013. A crise política parece ter disparado elementos que estavam latentes, mas que ainda não en- contravam terreno propício à sua expressão. Embora o êxito político de grupos

dez., 2019 dez., com agenda moral conservadora tenha raízes nas contradições históricas do –

país, buscamos neste texto compreender como as redes sociais acentuaram esse processo. Analisamos a disseminação das redes sociais enquanto uma 970, set. 970, – tecnologia catalisadora de um processo histórico. O artigo se insere na linhagem analítica da moldagem social da tecno- logia (Williams, 2015), portanto busca manter uma perspectiva crítica aos de- terminismos tecnológicos: tanto os que atribuem à tecnologia todos os males contemporâneos quanto os que se assentam em expectativas de soluções téc- nicas para questões sociais. Assim, consideramos fundamental evitar a mera culpabilização de plataformas de rede social ou alguma de suas funcionalida- des pelos resultados do que identificamos sociologicamente como uma dispu- ta cognitiva nas redes visando projetar para o indivíduo uma experiência de realidade direcionada e motivada por objetivos econômicos e políticos subja- centes à própria estrutura social. sociol. antropol. | rio de janeiro, v.09.03: 945 | rio de janeiro, antropol. sociol. projetos afetivos e estéticos: os vínculos entre o crítico de arte mário pedrosa e o artista alexander calder

946

Compreender o papel das redes sociais no contexto político brasileiro contemporâneo exige associar diferentes perspectivas analíticas. Neste artigo, articulamos duas pesquisas: uma sobre o controle econômico das redes e outra envolvendo seu uso na disseminação de pauta moralizante na esfera da sexua- lidade e do gênero. A partir da revisão da bibliografia disponível sobre o uso das redes e da observação sistemática da aliança de grupos políticos de extrema- -direita que se forjou a partir de 2013, construímos a base empírica de nossa re- flexão. A observação dos grupos se deu de duas formas: qualitativamente por meio da seleção, acompanhamento e análise dos perfis e postagens daqueles que se aliaram desde 2013 em torno de uma agenda política comum; e, de modo complementar, em termos quantitativos, também pelos dados disponibilizados nos relatórios semanais do Manchetômetro1 sobre os posts mais compartilhados nas redes sociais. As transformações proporcionadas pela internet já foram avaliadas sob perspectivas distintas, como “capitalismo cognitivo” (Boutang, 2005; Hardt & Negri, 2004); “economia da atenção” (Goldhaber, 1997; Davenport & Beck, 2001), que visa manter o usuário conectado o maior tempo possível, tanto para coletar dados como para vender anúncios; “capitalismo da vigilância” (Foster & McChes- ney, 2014; Zuboff, 2015), no qual o comportamento do usuário na rede, assim como dados ambientais coletados pelos sensores dos smartphones e geolocaliza- ção, alimenta os big data vendidos a terceiros com propósitos diversos – incluído o de manipulação política; outros chamam a atenção sobre processos emocio- nais-cognitivos que o uso da rede tem causado nos sujeitos – segundo Sherry Turkle (2011) ela nos conecta na mesma proporção em que nos afasta, criando uma nova forma de solidão. O “efeito bolha” das redes sociais (Pariser, 2011), em que as visões de mundo acabam sendo reforçadas entre grupos específicos, também tem sido foco de preocupação pelo fato de formar consensos polariza- dos. Mais recentemente, análises chamam a atenção para a coleta massiva de ago., 2019 ago.,

– dados comportamentais, a aplicação de aprendizado de máquina, inteligência

artificial e ciência de dados para aprimoramento algorítmico contínuo com fins de perfilamento e predição comportamental dos usuários2 (Zuboff, 2016; Rou- 636, mai. 636, – vroy & Berns, 2015). É certo que todas essas perspectivas nos permitem formar um quadro maior do poder invisível das redes – controladas por poucas empresas – sobre bilhões de pessoas, cujo prospecto de lucros se baseia na vigilância e venda de dados pessoais com propósitos diversos. Atualmente, poucas empresas con- centram o poder de coletar o máximo de informações sobre os indivíduos – antes fragmentadas e distribuídas na internet – de modo a fazer predições comportamentais e influenciar a formação de opiniões, valores e processos de tomada de decisão. Nesse mercado de dados, o que interessa não é um indivíduo “fragmen- tado”, anônimo ou escondido sob pseudônimos (Ramos, 2015), mas sim um sociol. antropol. | rio de janeiro, v.09.02: 615 | rio de janeiro, antropol. sociol. artigo | tarcila soares formiga

947

indivíduo unificado, reconhecível, coerente, monitorável e previsível. Quanto maior a precisão, mais se pode extrair “valor de mercado” do cidadão-consu- midor conectado. Não foi por acaso que nos últimos anos o centro da economia capitalista global passou a ser o mercado de informação, expresso pelas pri- meiras cinco posições das empresas de tecnologia como as mais valiosas do mundo3 (Parra et al., 2018: 66). Os interesses econômicos aliados ao grande volume de dados não deixa- riam de se traduzir em interesses políticos. Compreender as lógicas de uso das redes sociais envolve também identificar sua maneira de se associar às mídias de massa prévias e o modo como tais interesses se relacionam. Ainda é preciso, portanto, analisar melhor tal convergência tecnológico-midiático-política como mais do que mera incorporação e disseminação dos conteúdos das antigas mí- dias pelas novas: a difusão – de forma nunca antes vista – de sua cultura da popularidade. As relações por meio das redes sociais atraem e cativam ao inse- rir seus usuários em uma economia midiática do reconhecimento regida pela busca de atenção. Como meio escasso, a popularidade nesses ambientes é disputada mol- dando interações competitivas que tendem a premiar os mais bem sucedidos em angariar apoio a suas postagens, as quais agregam seguidores ao usuário, conferindo-lhe o grau máximo de sucesso online: a condição de influenciador digital, “protagonismo” ou apenas satisfação de tornar-se o centro momentâneo das atenções. Nesse meio, explicações simplistas com apelos morais encontram potencial de difusão. De acordo com Frank Pasquale (2017: 18), a seleção de conteúdo a partir de sua “viralização” tende a favorecer uma diversidade pobre de temáticas em vez de um pluralismo positivo e democratizante. Segundo o autor, a relevância dada a esse conteúdo com base em métricas de atenção popular “verificada pelo número de visualizações, curtidas e compartilhamen- tos contribui para a disseminação de conteúdos independentemente de sua veracidade, integridade ou qualidade”. Interesses econômicos, políticos e também consequências inesperadas do uso das redes sociais são exploradas a seguir. Iniciamos com uma breve reconstituição histórica dos usos da internet por grupos políticos de direita e esquerda, digressão necessária para inserir as Jornadas de Junho de 2013 no Brasil num contexto mais amplo. A partir disso traçamos uma timeline, com os eventos históricos significativos. A seguir apresentamos elementos empíricos e analíticos para apoiar conclusões sobre o papel das redes sociais na conso- lidação de uma gramática moral em suas disputas políticas.

Os usos da Internet por grupos políticos de direita e esquerda As raízes históricas do pensamento e da mobilização na internet desde seu surgimento como rede comercial na década de 1990 nos ajudam a compreen- der os grupos mais extremos do espectro político à esquerda e à direita (Ma- projetos afetivos e estéticos: os vínculos entre o crítico de arte mário pedrosa e o artista alexander calder

948

chado, 2007). Tal empreitada se justifica pela clara relação entre as pautas conservadoras de grupos como Movimento Brasil Livre (MBL), Endireita Brasil, Instituto Millenium, Vem pra Rua e Revoltados Online com ideólogos que há cerca de duas décadas propagavam seu ideário por meio das TICs (tecnologias de informação e comunicação). Podemos reconstruir, na história da internet, uma cronologia desse pen- samento que levou à polarização atual. Os grupos de esquerda foram os pri- meiros que conseguiram fazer uso da rede com maior impacto na opinião pública, como atesta a mobilização internacional em torno do movimento za- patista (1998), em que a figura do herói anônimo mascarado chamado de sub- comandante Marcos se disseminou mundialmente apoiada em grupos de jovens de esquerda (Ortiz, 2005). A revolução popular surgida na província mexicana de Chiapas alcançava a mídia pela mobilização de hackers, movimentos sociais, partidos de esquerda e grupos autonomistas. Eles consideravam Chiapas uma nova expressão de uma organização social de base agrária, indígena, que dava nova cara a um socialismo humano no contexto da então chamada Nova Ordem Mundial.4 As primeiras manifestações antiglobalização em Seattle (1999) marcaram também o surgimento de uma mídia independente, dentro da qual se desta- cava a Indymedia ou Independent Media Center (IMC), que formava uma rede alternativa de jornalistas – espécie de precursora da Mídia Ninja (Pickard, 2006). Essa denominação era também alusiva a um movimento musical jovem de finais do século XX que se distinguia do mainstream. Os protestos durante a cúpula da Organização Mundial do Comércio (OMC), em Seattle, resultaram em batalhas nas ruas com a polícia, que impediam o deslocamento na cidade dos delegados e da imprensa. As imagens que chegavam no noticiário da grande mídia eram aquelas disponibilizadas nas redes pelos jornalistas independen- tes articulados pela Indymedia. Com isso, o mundo inteiro conheceria a Indy- ago., 2019 ago.,

– media, que até então não passava de uma rede global alternativa articulada

pela internet e apoiada no voluntarismo. Os baixos custos operacionais e de comunicação da internet beneficia- 636, mai. 636,

– ram tanto a rede de jornalistas independentes como coletivos de ativistas do mundo inteiro. Naquela época, a internet era praticamente estática – ao con- trário da interativa Web 2.0, pois não havia Facebook nem Twitter. E o Google era apenas um mecanismo de busca entre outros. A Indymedia emergiu como centro da mídia alternativa que fazia frente à tradicional. Seus textos não eram escritos apenas por jornalistas, mas também por qualquer ativista, mesmo sob anonimato, já que sua publicação não passava por nenhuma forma de mode- ração; qualquer um podia usar o site – editado em várias línguas – para difun- dir notícias, ideias, eventos. Dessa forma, a plataforma permitia que vídeos e fotos pudessem ser livremente postados, com proteção de sigilo da fonte – uma vez que o servidor era controlado por ativistas e tinha seus conteúdos encrip- sociol. antropol. | rio de janeiro, v.09.02: 615 | rio de janeiro, antropol. sociol. artigo | tarcila soares formiga

949

tados. Naqueles tempos, sem redes sociais comerciais e com os blogs ainda em sua infância, uma rede global alternativa para difundir notícias e mobilização parecia algo revolucionário para fazer frente à grande mídia. A Indymedia passou gradualmente a ser alvo de ataques de grupos de di- reita no mundo todo. No Brasil, na segunda metade dos anos 1990, Olavo de Car- valho já despontava com seu site, em que publicava textos defendendo teses conservadoras, nas quais articulava a obra de pensadores de direita visando ressignificá-los para cativar o público brasileiro. Com isso, Carvalho dava um verniz de suposto fundo filosófico a suas ideias políticas, atraindo um grande número de seguidores, em especial jovens brancos de classe média e alta. Olavo de Carvalho – inspirador das principais lideranças dos grupos de direita na rede, como MBL e Vem Pra Rua, e guru ideológico do governo Bolso- naro – foi um dos pioneiros do ativismo de direita na internet, com suas críti- cas ácidas e sarcásticas a grupos e partidos progressistas. Isso o tornou alvo de ativistas de esquerda. A Indymedia servia de palco frequente para os ataques e piadas a ele dirigidos. Como resposta, Carvalho criou em 2002 sua própria rede de informação alternativa: a Mídia sem Máscara (MSM). Visando fazer frente aos meios de comunicação de esquerda, a MSM engajava uma rede de colaboradores para apresentar suas visões dos fatos a partir de uma perspec- tiva de direita (Patschiki, 2012). O website viria a se tornar epicentro para a tradução de análises políticas de pensadores conservadores da América Latina, da Europa e dos Estados Unidos. Além disso, abordaria sob uma perspectiva moralista temas como homossexualidade, gênero, direito ao uso de armas, de- fesa da propriedade privada e “esquerdismo”. A MSM servia de ponta de lança para ataques à esquerda e de difusão da ideologia da direita e, em especial, dos textos de seu próprio fundador. Tanto a MSM como a Indymedia viriam a perder muito de sua força com a migração gradual do público para as redes sociais. Tal fenômeno não seria possível sem a explosão do número de pessoas com acesso à internet e, em especial, sua entrada em plataformas como o Facebook, com funcionalidades que prendiam muito mais a atenção dos usuários. Segundo dados da Interna- tional Telecommunication Union (ITU), agência especializada das Nações Uni- das sobre TICs, é possível reconhecer que o número de usuários da internet aumentou associado à popularização do acesso por smartphones, portanto na década de 2010.5 Na visão de autores como Van Dijck (2016), a explosão do número de usuários da internet e a chegada dos serviços de redes sociais co- merciais modificaram a rede de um espaço de conexões mais abertas para um ecossistema reduzido de plataformas que concentra a maior parte do tráfego online. O radicalismo à esquerda e à direita na internet não foram, portanto, uma novidade da década de 2010, pois já se desenvolvia em um meio ainda menos consolidado comercialmente e com maior espaço para conexões menos projetos afetivos e estéticos: os vínculos entre o crítico de arte mário pedrosa e o artista alexander calder

950

automáticas como as de nossa era regida pelas plataformas de rede social de fundo algorítmico. Naquela época, havia uma profusão de perfis online, o uso de pseudônimos era recorrente, e o ambiente aparentemente anárquico con- tribuía para dificultar a formação de polarizações visíveis e massivas. Com a emergência das redes sociais, os usos políticos da Web 2.0 origi- nariam grandes manifestações como os da chamada Primavera Árabe (2010), Occupy Wall Street (2011) e Indignados (2011). Tais mobilizações apoiavam-se na facilidade de compartilhar conteúdos, na popularidade de perfis pessoais e, sobretudo, no poder dos algoritmos em atrair a atenção, agregar apoio às causas, induzindo à ação política. No Brasil, embora tenham surgido fenôme- nos como “rolezinhos” – jovens da periferia que marcavam grandes encontros em shopping centers – ou as marchas da maconha e das vadias, ambos organi- zados pelo Facebook, foi só em 2013, com as chamadas Jornadas de Junho, que o uso político das redes sociais comerciais alcançou impacto em toda a socie- dade. Desde então, linhas de força políticas indissociáveis de seu caráter tec- nológico-comunicacional marcaram a inflexão para uma nova gramática de disputas, mais conflitiva e moralista. As redes sociais e demais plataformas comerciais online têm gerado não apenas os já estudados fenômenos das bolhas de opinião ou a disseminação de fake news, mas algo mais radical e preocu- pante enquanto elemento central da ação política: a privatização da política e sua inserção em uma gramática moral. A seguir, trazemos alguns elementos para discutir como ao invés de o pessoal ter-se alçado ao político, como na clássica asserção feminista da década de 1960, vemos – nas redes sociais con- temporâneas – o político ser reduzido ao pessoal. Tal privatização da política gera ação coletiva frequentemente anti-institucional com potencial de deses- tabilizar contextos democráticos. ago., 2019 ago., –

Quadro Evolução da internet e polarização política 636, mai. 636, – sociol. antropol. | rio de janeiro, v.09.02: 615 | rio de janeiro, antropol. sociol. artigo | tarcila soares formiga

951

1995 Internet comercial

1997 Olavo de Carvalho (site)

1998 Movimento zapatista na internet

1999 Indymidia // Surgimento dos bloggers

2002 Midia Sem Máscara

2006 Surgimento da Web 2.0

2007 Surgimento do Facebook

2010 Primavera Árabe // Botão de curtir Facebook // Declínio dos blogs (cf. Google trends)

2011 Movimentos Indignados (Espanha) e Occupy Wall Street (EUA) // Reconhecimento das uniões homossexuais pelo STF no Brasil/ Bolsonaro articula movimento contra a distribuição de material anti-homofobia (Kit Gay)

2012 Consolidação da Web 2.0 // Oligopolização da internet por cinco empresas

2013 Jornadas de Junho // 18 anos da web // revelações de Snowden // STF iguala uniões homossexuais ao casamento // Comissão de Direitos Humanos do Congresso fica sob controle da bancada evangélica

2014 Protestos contra Copa do Mundo //Acesso à internet passa a ser principalmente por smartphones // Votação do Plano Nacional de Educação

2015 Protestos por impeachment de Dilma // Surgem MBL e Vem Pra Rua // Campanha contra ideologia de gênero nos planos estaduais e municipais de educação

2016 Impeachment de Dilma//Olimpíadas//Início de Operações da PF mirando universidades públicas

2017 Facebook supera 2bi usuários//Protestos contra e a favor da prisão de Lula//Cruzadas morais contra artistas e intelectuais//Suicídio do reitor da UFSC//Perseguição a Judith Butler

2018 Prisão de Lula//Ações judiciais e da justiça eleitoral nas universidades// Eleição de Bolsonaro e de outros políticos da extrema-direita

2019 Denúncia do uso do WhatsApp por financiamento ilegal//Ataques à im- prensa//Corte de verba das universidades e órgãos de financiamento à pes- quisa//Fim das políticas voltadas para as minorias

Fonte: Elaborado pelos autores. projetos afetivos e estéticos: os vínculos entre o crítico de arte mário pedrosa e o artista alexander calder

952

A privatização da política e a emergência de novas cruzadas morais A história do uso das mídias sociais com propósitos democráticos e de orga- nização de movimentos sociais se deu paralelamente à criação de outro uso, mais afeito aos grupos autoritários, que buscavam defender o status quo ou propagar o pensamento conservador. Na década de 2010, há um barateamento e consequente popularização dos smartphones, o que explica a já mencionada explosão do número de usuários da internet que, no Brasil, segundo dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios do IBGE, tornou o acesso via celular o preponderante a partir de 2014.6 Segundo Van Dijck (2016), é também nesta década que a rede passa a funcionar como um ecossistema concentrado de plataformas, que substituíram de vez a conexão relativamente independente do usuário por uma sociabilida- de induzida por algoritmos mediante o processamento de seus dados e “pre- ferências” pessoais. Os algoritmos das plataformas de rede social “guiam” os usuários sugerindo-lhes amigos, expondo-os a determinados conteúdos – e não a outros −, assim como induzindo-os a se manifestar sobre certos temas. Algoritmos funcionam como regras de racionalidade que substituem os julga- mentos autocríticos da razão. São as empresas donas das plataformas que definem, segundo seus interesses, o funcionamento dos algoritmos. Não ha- vendo forma de os regular − fazem parte do chamado segredo de negócio –, caracterizam-se por ser opacos, enviesados, obscuros e inescrutáveis (O’Reilly 2013). Segundo Introna e Nissenbaum (2000), ainda podem ser discriminatórios e, na visão de Gillespie (2013), servir à vigilância. É nesse contexto que os recém-chegados ao mundo digital foram aco- lhidos em serviços comerciais de rede social que se tornaram também portais de entrada à internet delimitando seus usos. A rede, portanto, deixou de ser a aparente janela para o mundo que conheceram seus primeiros (e privilegiados) ago., 2019 ago.,

– usuários das classes-médias profissionais do Ocidente para se tornar predomi-

nantemente um ambiente comercial, controlado e vigiado por corporações. Assim, chegamos a um contexto em que um punhado de plataformas como 636, mai. 636, – Facebook, YouTube, Instagram, Twitter e Google7 promovem uma sociabilidade induzida por algoritmos que visam reter o máximo da atenção diária de usuá- rios em todo mundo. A chamada Web 2.0 – comercialmente anunciada como uma web mais interativa e social – acentuou gradualmente o lado mais comer- cial da rede a partir da segunda metade da década de 2000 em um processo de convergência com a grande indústria do entretenimento. Controlada por cor- porações do Vale do Silício, sua hegemonia é indissociável da quase ubiquida- de dos serviços comerciais de rede social, dos quais o Facebook é o mais popu- lar e poderoso. Criado em 2007, o Facebook alcançou, dez anos depois, dois bilhões de usuários no mundo todo. É uma plataforma privada em que os usuários são sociol. antropol. | rio de janeiro, v.09.02: 615 | rio de janeiro, antropol. sociol. artigo | tarcila soares formiga

953

“criadores”, ou ao menos compartilhadores, de conteúdo. Desde 2010, com a in- trodução do botão “curtir” (like em sua versão original) e do Open Graph, a rede ganhou suas características mais importantes: 1. o botão “curtir” introduziu a lógica da popularidade e da competição por atenção na rede social intensifican- do as conexões e 2. o Open Graph permitiu que sítios externos usassem as in- formações que a plataforma colhe de seus usuários criando “experiências per- sonalizadas” em suas próprias páginas (cf. Van Dijck, 2016: 82). Criavam-se, as- sim, as condições para que – poucos anos depois – começassem a se tornar perceptíveis os aspectos conflitivos advindos do uso da plataforma. O próprio acesso dos usuários a uma rede social como o Facebook ocor- re por meio do uso individualizado de dispositivos. Uma vez na plataforma, algoritmos influenciam as interações entre os usuários, sem que eles conheçam seu funcionamento. Tal fenômeno constitui um verdadeiro “inconsciente tec- nológico” (Thrift, 2004; Burrows & Beer, 2013) que tem papel decisivo nas rela- ções forjadas por meio desses equipamentos e plataformas. Seu aspecto som- brio não se resume ao controle e/ou à vigilância das grandes corporações, mas também às consequências subjetivas do uso contínuo dessas tecnologias. O uso das TICs incentiva a reiteração de convicções que induzem à polarização de perspectiva, além da consequente modulação das relações so- ciais que alguns, como Sherry Turkle (2011), veem como empobrecendo os laços sociais e que, em nossa análise, buscamos compreender em suas consequências políticas. A modulação das relações sociais envolve tanto as funcionalidades introduzidas pelas novas tecnologias que permitem a seleção de contatos, mais impessoalidade nas interações e até o bloqueio de alguns quanto à preferência crescente dos usuários por mensagens editadas em relação às interações aber- tas ao acaso e às reações inesperadas de um interlocutor, como nos telefone- mas. Tal “costumização” da comunicação permite editar a visão da realidade do sujeito e até mesmo privatizar o espaço público quando, por exemplo, fala em público ao telefone ou grava mensagens de voz na rua como se estivesse sozinho em casa. Cabe acrescentar que, para reunir o máximo de informações e perfilar seu público, empresas como o Facebook e o Google desenvolveram formas de centralizar a informação dos indivíduos, incentivando o uso da plataforma para “logar”8 em outros sites. Isso foi gerando uma unificação das identidades/ perfis online. Identidade é aqui compreendida como o expresso por um perfil na comunicação por plataformas online. Antes da oligopolização da internet, cada sujeito podia ter perfis adaptados segundo cada plataforma e/ou contex- to, mas os interesses de controle de dados e exploração comercial levaram à unificação atual. Uma forma de entender as consequências disso é lembrar que antes as pessoas se comunicavam de formas diferentes com familiares, amigos, namorada/o, colegas de trabalho, parentes mais distantes e mesmo com estra- projetos afetivos e estéticos: os vínculos entre o crítico de arte mário pedrosa e o artista alexander calder

954

nhos. Em plataformas como o Facebook, comunicam-se com todos da mesma forma.9 Isso potencializa o chamado “colapso contextual” (Marwick & Boyd, 2010). A contextualização era importante, pois possibilitava ao usuário dire- cionar a mensagem ao interlocutor adequado, mantendo assim, de certa forma, diversas “identidades” que permitiam modular a comunicação. Os contextos se colapsam quando, ao se comunicar com todos, comunica-se de forma igual àquela usada para se comunicar individualmente. O uso de plataformas de comunicação online introduziu o usuário em um contexto altamente individualizado em que as relações mesmo sendo di- retas ganham impessoalidade. Comportamentos e opiniões que não seriam tolerados em relações face a face passam a se expressar gerando apoios e rejeições para se tornar consensos polarizados. No que se refere à plataforma em questão, seu algoritmo que cria relações, indica “amigos” e oferece “expe- riências personalizadas”, acrescenta condições para que o usuário passe a vi- ver dentro de uma “bolha de opinião” que reforça suas convicções e amplia suas divergências em relação a outras não apenas no que se refere a temas macropolíticos, mas sobretudo comportamentais. Acessadas individualmente – e por meio de um perfil que cria uma espécie de self online – as redes sociais operam em uma lógica de competição em que pautas coletivas ganham mais apoio quanto mais se traduzem em um repertório moral. A construção de um perfil online envolve a incorporação de expedientes midiático-comerciais para expressar uma suposta identidade ma- terializável em um estilo de vida que é, também, inseparável de valores. Parte da “mágica” das redes sociais – sua eficácia comercial – está em criar a ilusão de alçar qualquer usuário à esfera do sucesso e do prestígio, mas também de premiar o senso comum como eixo de afinidade e construção de redes e, mes- mo, de ação coletiva. Hoje poucos questionam o poder de mobilização das redes sociais, mo- ago., 2019 ago.,

– bilização compreendida no sentido de que efetivamente quem usa uma plata-

forma de socialização tende a se sensibilizar por causas de algum tipo a pon- to de compartilhar conteúdos sobre elas e até sair às ruas em protesto. Tais 636, mai. 636,

– causas podem ser coletivas, como a luta contra a corrupção, mas nas redes elas tendem a serem lidas em chave personalística. Isso deu margem para o sensacionalismo e a emergência das fake news10 como estratégia de formação de opinião e mobilização. As plataformas tendem a incentivar um tipo de as- sociação política que frequentemente induz à vigilância alheia criando ondas de denúncias, perseguições e até linchamentos online. Sobretudo, uma ação coletiva fundada em valores individualistas e sob uma perspectiva privatizada da política que tende a colocar instituições sob suspeita e, eventualmente, voltar-se contra elas. Os acontecimentos históricos tendem a corroborar a hipótese de que, inicialmente, o uso da internet por vertentes políticas radicais foi potenciali- sociol. antropol. | rio de janeiro, v.09.02: 615 | rio de janeiro, antropol. sociol. artigo | tarcila soares formiga

955

zado no contexto inaugurado pelos serviços comerciais de rede social baseados na conectividade. O fato de que eventos como Occupy, Primavera Árabe e In- dignados foram organizados, ao menos em parte, por meio dessas plataformas levou a reforçar as expectativas de que as TICs teriam um efeito de reforço e ampliação de forças políticas transformadoras até que, em 2013, esse tipo de mobilização social chegou ao Brasil. As chamadas Jornadas de Junho começaram com protestos organizados pelo Movimento Passe Livre (MPL) – frente de muitos movimentos sem uma linha política definida (Pomar, 2013) – contra o aumento da tarifa de ônibus na cidade de São Paulo. Um dos slogans das Jornadas era “não me representa”, o que simultaneamente expressava uma crença na ação direta (via internet e nas ruas) e desacreditava a base da democracia representativa, os partidos e os políticos.11 As manifestações organizadas pelo MPL, com a pauta unificada con- tra o aumento do transporte público de São Paulo em “20 centavos”, atraíram um grande número de jovens, muitos dos quais saíam às ruas para manifestar- -se politicamente pela primeira vez. Logo, muitos ativistas e grupos de orienta- ção ideológica distintas e até divergentes foram se juntando, tentando colar sua própria pauta e imprimir uma identidade às manifestações. É nesse momento que começam as manifestações contra o governo do Partido dos Trabalhadores (PT) e o clamor “Fora Dilma”. Grupos ligados a par- tidos políticos passaram a ser hostilizados, e as cores verde e amarela da ban- deira – historicamente usadas pela direita – tornaram-se mais presentes nos protestos. Ao reconhecer a infiltração de grupos conservadores nas manifes- tações e temendo que o movimento tomasse um sentido não desejado, o MPL decidiu parar com os protestos.12 No entanto, eles continuaram, desta vez sob a batuta de grupos e lideranças mais à direita no espectro político, com o apoio de artistas que deram maior dimensão midiática a esse movimento. Frases de efeito das jornadas foram “emprestadas” à publicidade, como o slogan “Vem pra rua, vem” retirado de uma propaganda de automóvel. Os protestos de 2013 podem ser tomados como o ponto de inflexão histórico a partir do qual disputas políticas passaram a se dar dentro de uma retórica antipartidária, que aos poucos foi se aproximando de uma gramática moral que alimentaria uma cruzada “saneadora” contra a corrupção. Uma rede de websites de perfil político conservador emergiu angariando um número con- siderável de seguidores nas redes sociais que repercutiam suas notícias – in- cluído o que hoje é chamado de fake news – levando-os às ruas – o que até então era muito mais frequente por parte de grupos progressistas, como de- monstrado, por exemplo, pela Marcha da Maconha, pela Marcha das Vadias, pelo Movimento do Passe Livre etc. A partir de 2013, “político” deixou de ser substantivo e passou a ser um adjetivo usado negativamente para desqualificar pessoas, ideias, análises. Pa- ralelamente a isso, foi emergindo um vocabulário que rechaça a ideia de lide- projetos afetivos e estéticos: os vínculos entre o crítico de arte mário pedrosa e o artista alexander calder

956

rança, prioriza a ação direta (até violenta) em detrimento das formas de diá- logo e da negociação política. Observa-se nesse ponto, a extrapolação para a vida cotidiana offline de um acirramento das posições que parece espelhar o fenômeno das bolhas de opinião das redes sociais. Desde então, tais bolhas e as manifestações divergentes nas ruas passaram a se retroalimentar e se di- gladiar. Foi na esteira do legado das Jornadas de Junho de 2013, nos primeiros meses de 2015, que as manifestações e protestos contra o governo Dilma Rous- seff começaram a se apresentar como supostamente apartidárias e até como “não políticas”, e aos jovens se juntaram outros segmentos etários. Gradual- mente, grupos descontentes com os 12 anos de governo petista e com os es- cândalos envolvendo a Petrobras passaram a tomar as ruas se adensando e atraindo seguidores com outras pautas, incluindo algumas comportamental- mente autoritárias e economicamente neoliberais. O uso político-midiático da Operação Lava-Jato permitiu que grupos de interesse organizados primária e/ ou predominantemente por meio das redes sociais se associassem à grande imprensa, gerando manifestações massivas pelo Brasil, abrindo caminho para o impeachment de Rousseff e culminando na troca de governo em maio de 2016. Esse contexto foi afeito ao fortalecimento dos movimentos de direita que apoiaram o impeachment, como Vem pra Rua e MBL, e as lideranças religio- sas descontentes com os avanços no que se refere à igualdade de gênero e direitos sexuais. Discursos anti-institucionais foram se tornando mais pode- rosos, em especial por correntes que transformam adversários em inimigos por meio da oposição simplificadora entre “pessoas de bem” contra as supos- tas encarnações do “Mal”. A retórica anticorrupção progressivamente foi sen- do associada e/ou substituída por pautas moralistas/moralizantes no que se refere a gênero e sexualidade, que passaram a se fortalecer, como ocorre até os dias atuais. Um exemplo disso pode ser expresso pelo número de seguido- ago., 2019 ago.,

– res e compartilhamentos de posts de “empreendedores morais” – religiosos e

agnósticos. Em meados de 2018, as fanpages do deputado evangélico Feliciano e do 636, mai. 636,

– então candidato a presidente Bolsonaro, contavam 4,5 e 5,5 milhões de segui- dores respectivamente. Algumas de suas postagens alcançaram mais de 100 mil compartilhamentos. Grupos como MBL e Vem pra Rua tinham no mesmo período 2,8 e dois milhões de seguidores, respectivamente. No entanto, no final de julho, o Facebook removeu 196 fanpages e 87 perfis do MBL em combate às fake news abalando sua rede, o que talvez possa explicar o foco da campanha eleitoral de Bolsonaro no uso do aplicativo de mensagens Whatsapp e, como aponta investigação de um grupo de pesquisadores da Universidade de Harvard, na disseminação de vídeos no YouTube.13 Os dados compilados pelo Manchetômetro do Iesp/Uerj sobre os posts mais compartilhados e/ou curtidos das redes sociais permitem identificar uma sociol. antropol. | rio de janeiro, v.09.02: 615 | rio de janeiro, antropol. sociol. artigo | tarcila soares formiga

957

ascensão dos empreendedores morais. Essa nova direita que se articula após 2013 evita discutir substancialmente temas como crescimento econômico, de- semprego, meio ambiente, educação ou saúde. Em vez disso, seu foco está na disseminação do medo, recorrendo ao expediente de criação de pânicos morais – como os do fantasma da “ideologia de gênero”14 ou de um possível retorno do “comunismo”. Nesse sentido, as redes sociais têm tido papel fundamental na atuação de grupos conservadores que precisam angariar eleitores e apoio sem expor sua agenda econômica impopular que envolve reformas como da previ- dência, a redução de direitos trabalhistas e privatização de empresas públicas. O uso de fake news se explica pela necessidade desses grupos de interesse de manipular dados e informações assim como construir teorias e narrativas que permitam modelar a opinião pública a seu favor. As redes sociais dão a falsa impressão de que a horizontalidade das interações equivaleria a um contexto mais democrático, mas diversos pesqui- sadores (Alcântara, 2016; Merclé, 2011; Miskolci & Balieiro, 2018) mostraram que redes são contextos desiguais e hierárquicos em que alguns exercem o papel de formadores de opinião, enquanto a maioria apenas repercute. Em uma rede como o Facebook, a maior parte dos usuários demonstra ser suscetível a formadores de opinião que reduzem disputas políticas a uma gramática moral, aproximando-as de uma concepção individualizada de mundo. Assim, grupos de interesse, líderes populistas e até celebridades ganham poder na vocaliza- ção de interpretações simplificadoras e polarizadas da realidade social. O fenômeno aqui analisado mostra, entre vários aspectos, como ao con- trário de diagnósticos repetidos nas últimas décadas, as TICs não tomaram o lugar tampouco tiraram o poder da mídia mainstream, aqui compreendida como a de massas, em especial a televisão e a impressa. Embora as redes sociais possam pautar a grande mídia, o que se observou foi a convergência delas com as mídias de massa como definidoras de disputas políticas e mobilizações. As TICs têm promovido, ao mesmo tempo, a individualização e o aumento da exposição aos conteúdos da mídia, o que – em termos históricos – reconhece- mos como o capítulo mais recente iniciado com a passagem da tela grande do cinema para a da televisão até chegar aos smartphones. Do entretenimento público passou-se ao doméstico e, deste, ao indivi- dual. De uma eventual visita ao cinema, passando pela audiência diária à TV, chegou-se à crescente exposição à mídia por meio dos smartphones, numa in- teração permanente via esse dispositivo (Miskolci & Balieiro, 2018: 148). Tal nível de exposição à mídia passa a moldar as ideias e a própria gramática relacional desenvolvida dentro e fora das redes sociais, o que explica a intro- dução – no vocabulário político – de noções como “protagonismo”, que se baseia na lógica de popularidade online. Da mesma forma, a construção de heróis ou inimigos públicos revela a hegemonia de expedientes narrativos da imprensa sensacionalista. projetos afetivos e estéticos: os vínculos entre o crítico de arte mário pedrosa e o artista alexander calder

958

Em meio ao cenário de antipolítica – recusa dos partidos e dos políticos “tradicionais” e a suspeita com relação à democracia representativa –, grupos de interesse que se afirmam apartidários passam a pautar disputas (políticas) dentro de uma gramática moral afeita à construção, perseguição e destruição de supostos inimigos. Segundo Messenberg (2017: 637): “Os supostos inimigos podem ser desde organizações, partidos, ou grupos específicos: os comunistas, os negros, os gays, as feministas e todos aqueles que não partilham de seu universo mental”. Ainda segundo a socióloga, a visão de mundo dos adeptos dessa corrente que segue grupos de interesse conservadores se caracteriza por defender causas anti-igualitárias e soluções autoritárias para temas polêmicos. Em uma sociedade que tende a ser identificada com a opinião pública moldada pelas redes sociais, disputas entre grupos de interesses diversos ten- dem a ser interpretadas em termos de oposições binárias entre o bem e o mal, heróis e bandidos, certo ou errado. Instâncias mediadoras de conflito ou pro- dutoras de análises críticas passam a ser também recusadas e até perseguidas, traduzidas por ataques a educadores, artistas e intelectuais (Balieiro, 2018). A horizontalidade das redes online permite que amadores e diletantes – assim como grupos de interesse – ataquem o jornalismo ou a ciência, instâncias cujos discursos se assentam na averiguação de fatos e na construção de teorias baseadas em evidências. Trata-se de uma disputa em que os empreendedores das redes encontram uma janela de oportunidades para moldar a experiência da realidade dos outros usuários segundo seus interesses. Como já mencionado, a disputa política nas mídias tende a um tipo de polarização estabelecido por uma gramática moral que divide os adversários em binários maniqueístas que facilmente passam de uma pauta macrossocial para o foco na moral ou ética de um grupo ou indivíduo. Assim, a disputa política online pode resvalar para a vigilância comportamental, como nos fre- quentes casos de denúncias que se confundem com o desejo não de justiça, ago., 2019 ago.,

– mas de punição imediata e sem mediações. Fenômeno que se dá tanto na

disputa entre grupos conservadores e progressistas quanto dentro deles, cons- tituindo uma privatização da política no sentido de que as redes sociais favo- 636, mai. 636,

– recem uma agência política baseada na busca de soluções pessoais para pro- blemas sistêmicos, tendência contemporânea mais ampla já reconhecida por diversos sociólogos, como apontam Hamlin e Peters (2018), mas que Paton (2014) mostra ser potencializada pelo caráter anti-institucional de redes cria- das em plataformas online. Grupos políticos tiram vantagem do ecossistema das plataformas para manipular notícias, estabelecer agendas e propagandear suas ideias, aumen- tando a desinformação e promovendo a polarização (Marwick & Lewis, 2017). Tais forças políticas são particularmente significativas na criação de conteúdos capazes de influenciar e persuadir eleitores indecisos e mal informados, exa- tamente as pessoas mais propensas a reverter os resultados das eleições (Pas- sociol. antropol. | rio de janeiro, v.09.02: 615 | rio de janeiro, antropol. sociol. artigo | tarcila soares formiga

959

quale, 2006). Assim, as plataformas tecnológicas permitem que campanhas sejam deflagradas na forma histórica das antigas cruzadas morais potenciali- zando ganhos políticos para grupos de interesse que se apresentam online co- mo defensores da família ou das crianças, mas cujos objetivos são bem terre- nos, como conquista de seguidores para pautas políticas e econômicas, vitórias eleitorais ou definição de políticas públicas (Miskolci & Pereira, 2019).

Conclusões Conforme vimos no início do texto, os embates políticos entre setores de es- querda e direita envolvendo um certo nível de polarização, longe de ser uma característica recente ou produto dos serviços de redes sociais, já estava pre- sente na internet desde a década de 1990. Ainda que não se possa atribuir responsabilidade exclusiva às redes sociais – ou ao Facebook em particular –, sua forma de funcionamento catalisa e aprofunda conflitos já existentes. Se- guindo a linha sociológica da moldagem social da tecnologia, atribuir às TICs a criação dos conflitos e oposições constituiria determinismo tecnológico só sendo possível reconhecer que – segundo os dados empíricos – elas apenas os visibilizam, amplificam e radicalizam − entre outras razões, porque as redes sociais propiciaram a revelação da diferença, de ideologias, de opiniões e pen- samentos antes não expressos publicamente e que, agora reconhecidos, geram substratos para conflitos.15 O fato acima é indissociável da consolidação do oligopólio de empresas do Vale do Silício que mantém a hegemonia do ecossistema de plataformas de rede social do presente. Antes que a internet se concentrasse nas mãos de pou- cas empresas, era comum que as pessoas usassem um grande número de sites, tivessem vários perfis específicos e usassem, portanto, a rede para se comunicar de diferentes formas com diferentes públicos. Eram essas as diferentes identi- dades/perfis que se possuía na rede, que não se comunicavam entre si e que praticamente tinham vida própria, proporcionando uma situação que dificulta- va monitoramento e vigilância comportamental. Existiam “silos de informação” que não se comunicavam, dando uma sensação de relativo anonimato e permi- tindo uma segmentação das interações menos propensa a conflitos. O controle econômico da rede, por empresas como o Facebook e o Goo- gle, gerou o profiling de cada indivíduo que se conecta à rede, consequente- mente uma crescente unificação dos perfis que equilibravam uma gama va- riada e diversa de relacionamentos. Os diferentes contextos de relacionamen- tos, nos quais negociávamos nossa identidade e nos ajustávamos de alguma forma ao interlocutor, acabou se colapsando. Soma-se isso ao fato de se tratar de uma comunicação rápida e individual que gera registros contínuos, levando a um risco alto de incompreensões e produção de divergências. Assim, colap- sam também as formas de mediação predominantes no off-line ou na época dos perfis segmentados e, entre elas, as convenções que demandavam empatia projetos afetivos e estéticos: os vínculos entre o crítico de arte mário pedrosa e o artista alexander calder

960

e/ou respeito à alteridade, liberando comportamentos e opiniões negativos e até agressivos em relação àqueles dos quais se diverge. O modo de funcionamento do Facebook gera bolhas de opinião em tor- no de certos consensos, os quais, por sua vez, se consolidam por meio de oposições a outras “bolhas”/grupos sociais. O colapso contextual tende a expor diferenças, gerar atritos, incentivar respostas indignadas, apoios apaixonados ou mesmo rechaços baseados na projeção de preconceitos. Numa escala mais ampla e repetida ao longo do tempo, essa dinâmica rompe pactos sociais si- lenciosos de tolerância, destrói as formas de mediações preexistentes e coloca temas complexos num debate raso e simplificador em que todos são juízes ou réus do pensamento alheio. Ao mesmo tempo, as redes digitais expõem ma- niqueísmos já presentes na sociedade, permitindo transformá-los em objeto de análise científica. Neste artigo, buscamos contribuir para uma reflexão necessária sobre o papel das redes sociais na inflexão política que vivemos, no Brasil e no resto do mundo, a partir de 2013. Segundo as fontes históricas consultadas é possível não apenas reconhecer esse ponto de inflexão, mas também associá-lo a uma convergência entre momento histórico e maior socialização por meio de plata- formas. O extremismo conflitivo desse novo ambiente tem sido mais bem ex- plorado por vertentes políticas conservadoras já que o cenário global, desde a crise de 2008, criou temores sobre o futuro. Assim, idealizam-se passados su- postamente melhores, mais estáveis e prósperos. Esse medo do futuro alimen- ta lideranças populistas em uma gramática política que cria bodes expiatórios em cada contexto nacional. Assim se vê, por exemplo, no slogan vitorioso de Donald Trump do “Make America Great Again” e sua retórica anti-imigrantes. O papel das redes sociais nesse contexto tem sido central tanto por suas características tecnológicas – como a indução algorítmica de interações – quanto pela maneira como também elas induzem seus usuários a incorporar ago., 2019 ago.,

– modelos midiático-comerciais na construção de seus perfis e, a partir deles,

de sua agência online e off-line. Acessadas individualmente, as redes apresentam ao usuário uma visão “customizada” e parcial da realidade, incentivando lei- 636, mai. 636,

– turas individualistas de questões sistêmicas ou estruturais, além de expô-lo a narrativas e interpretações criadas e disseminadas de forma organizada por grupos políticos que fazem uso de expedientes de manipulação para alcançar seus objetivos. Nas redes sociais, quanto mais simples e baseadas em valores arraigados as pautas tendem a angariar mais apoio, criando redes de mobilização política assentadas em uma espécie de empreendedorismo moral. No Brasil, as men- cionadas características tecnológicas e midiáticas abriram uma janela de opor- tunidades nas redes sociais para a criação de uma aliança circunstancial de grupos de interesse em torno de uma plataforma moral, que abarca desde a luta contra a corrupção, uma suposta ameaça comunista até o fantasma da sociol. antropol. | rio de janeiro, v.09.02: 615 | rio de janeiro, antropol. sociol. artigo | tarcila soares formiga

961

“ideologia de gênero”. Os candidatos da extrema-direita eleitos em 2018 com- portaram-se como empreendedores morais evitando discutir temas substanti- vos como educação, saúde e desemprego. Além da agenda conservadora e au- toritária nos costumes, a maioria compartilha um projeto econômico neolibe- ral que dificilmente teria tido o mesmo apoio se tivesse sido apresentado como plataforma eleitoral. Uma pauta conservadora com origens em setores religiosos tornou-se predominantemente agnóstica a partir do momento que passou a se centrar no referente “ideologia de gênero”, expressão afeita à associação simplista e enganosa entre esquerda e feminismo, criando um inimigo comum para uma verdadeira aliança entre grupos de interesse com histórias e objetivos tão di- versos como o MBL e o Escola sem Partido. Desde então, têm-se associado oportunisticamente a empreendedores morais históricos como a Igreja católi- ca e vertentes evangélicas neopentecostais em campanhas contra educadores, artistas e intelectuais (Miguel, 2016). Tais forças revelaram-se bem-sucedidas ao impedir a introdução de uma perspectiva de gênero nos planos educacionais ou medidas contra a discriminação sexual nas escolas, mas sobretudo por angariar apoio eleitoral para a extrema-direita, culminando na eleição de Jair Bolsonaro para presidente − aquele que iniciou a cruzada moral ao criar uma campanha contra o material educacional anti-homofobia nominado por ele kit gay, em 2011, e, em 2016, dedicou seu voto pelo impeachment de Dilma Rousse- ff, nossa primeira presidente mulher, ao seu torturador. As fontes históricas e sociológicas provam que as redes sociais, em es- pecial o Facebook, foram decisivas para que as Jornadas de Junho de 2013 te- nham constituído um ponto de inflexão na vida brasileira, um ponto que mo- dificou as relações políticas tornando-as não apenas mais polarizadas e con- flitivas, mas também moldadas por uma gramática moral e anti-institucional. A formação de redes polarizadas induzidas pela mídia alcançou seu extremo mais conhecido na era dos smartphones, da conexão perpétua e da sociabilida- de por plataformas comerciais produzindo “bolhas” na mesma proporção em que gera perseguição e ataques a quem não se identifica completamente com essas redes. De forma menos visível – e talvez até mais poderosa – esse con- texto passou a definir os contornos de nossa visão de mundo e de nossa ação política. Recebido 20/2/2019 | Revisto 28/8/2019 | Aprovado 19/9/2019 projetos afetivos e estéticos: os vínculos entre o crítico de arte mário pedrosa e o artista alexander calder

962

Jorge Machado é professor-associado da Escola de Artes, Ciências e Humanidades da Universidade de São Paulo. É um dos coordenadores do Co-Laboratório de Desenvolvimento e Participação. Foi professor convidado da Zeppelin Universität, Alemanha (2017). Atua na área de políticas públicas, dedicando-se principalmente aos seguintes temas: políticas de informação, políticas acesso ao conhecimento, participação política e temáticas associadas à tecnologia de informação e direitos. ago., 2019 ago.,

– Publicou recentemente o artigo “Infraestruturas, economia e

política informacional”, em que discute com outros autores as consequências do controle das infraestruturas de informação 636, mai. 636, – globais por corporações.

Richard Miskolci é professor-associado de sociologia da Unifesp, pesquisador do CNPq e coordenador do Quereres – Núcleo de Pesquisa em Diferenças, Direitos Humanos e Saúde. Foi coordenador adjunto da área de sociologia na Capes entre 2015 e 2018. Doutor em sociologia pela USP, fez estágios sêniores em departamentos de estudos feministas da Universidade de Michigan e da Universidade da Califórnia. Tem desenvolvido investigações na sociologia digital, área em que organizou dossiê, publicou diversos artigos e o livro Desejos digitais: uma análise sociológica da busca por parceiros online (2017). sociol. antropol. | rio de janeiro, v.09.02: 615 | rio de janeiro, antropol. sociol. artigo | tarcila soares formiga

963

NOTAS

1 O Manchetômetro é um website de acompanhamento da co- bertura das grandes mídias e das redes sociais sobre temas de política e economia produzido pelo Laboratório de Estu- dos de Mídia e Esfera Pública (Lemep) do Iesp/Uerj. Disponí- vel em . Acesso em 19 ago. 2018. 2 O escândalo envolvendo a Cambridge Analytica na eleição dos Estados Unidos mostra o uso da rede para manipulação da opinião pública com fins políticos a partir da análise de dados comportamentais e de valores dos usuários e, com isso, o emprego de micro-targeting. A atuação da Cambridge foi exitosa por se concentrar nos estados norte-americanos em que havia pouca vantagem dos democratas, atingindo grupos de leitores específicos com propensão à mudança de votos na abordagem de temas sensíveis, como direito ao aborto e porte de armas. 3 Apple, Google, Microsoft, Facebook e Amazon passaram a ocupar, em 2017, as cinco primeiras posições no ranking das companhias mais valiosas do mundo, deixando para trás gigantescas corporações globais, que durante décadas ti- nham posições de liderança como Exxon, Nestlé, Samsung, General Electric e Johnson & Johnson. Em pouco mais de dez anos, empresas que praticamente não produzem bens físi- cos e que têm o big data como um de seus principais ativos, “tornaram-se as maiores da história do capitalismo global, superando as corporações multinacionais da indústria au- tomobilística, petrolífera e de alimentos. Essas mesmas em- presas – com exceção da Amazon – se tornaram atores fun- damentais para o programa de vigilância PRISM, conforme os vazamentos de Edward Snowden” (Parra et al., 2018: 66). 4 “Nova ordem mundial” foi a expressão empregada por Geor- ge H. W. Bush (1989-1993) para definir a governança global depois da Guerra Fria, com a liderança mundial centraliza- da nos Estados Unidos da América a partir da Guerra do Gol- fo (1990-1991). 5 O primeiro smartphone foi o iPhone da Apple, lançado em 2007. Em 2008, são lançados os sistemas operacionais iOS e Android e, a partir de 2009, são criadas as condições para o acesso celular à internet por meio de conexão mais rápida, geolocalização e o desenvolvimento de aplicativos por ter- projetos afetivos e estéticos: os vínculos entre o crítico de arte mário pedrosa e o artista alexander calder

964

ceiros. Dados de acesso global – e também regional ou por país – podem ser acessados no website da ITU e seus relató- rios, disponível em . Acesso em 19 ago. 2018. 6 Pesquisa Nacional de Amostragem por Domicílio (IBGE, 2014) – Acesso à internet e à televisão e posse de telefone móvel celular para uso pessoal. Disponível em . Acesso em 19 ago. 2018. 7 Aqueles que acessaram a internet comercial desde seu lan- çamento em meados da década de 1990, tinham a impressão de acessar o mundo, ainda que – efetivamente – o mais pro- vável é que os sites disponíveis refletiam os interesses e pro- viam conteúdos de segmentos sociais privilegiados em ter- mos culturais e econômicos. O acesso era caro, assim como os equipamentos. Além disso, os sites visitados não eram vistos como “bolhas” porque ainda não era possível perceber as segmentações existentes de forma tão clara como atual- mente percebemos dentro de uma mesma plataforma de re- de social. 8 “Logar” é um neologismo que se refere ao ato de acessar sites online por meio de um nome de usuário e senha, os quais têm convergido para uma identidade digital única de cada indi- víduo. O usuário voluntariamente tende a usar o mesmo email/nome de usuário e senha para navegar entre diferen- tes portais e sítios devido à praticidade que isso confere à navegação e supostos benefícios como o de uma “navegação

ago., 2019 ago., personalizada” e a integração de suas “preferências” nas vi- –

sualizações. 9 Embora existam ferramentas no Facebook para segmenta- 636, mai. 636,

– ção do público a quem se publica, elas ainda são pouco utili- zadas pelos usuários, prevalecendo na plataforma como uma comunicação com todos praticamente ao mesmo tem- po. 10 Fake news são notícias falsas disseminadas online visando promover boatos, má-informação e/ou desinformação. As fake news podem emergir a partir de interesses, desejos e perspectivas de indivíduos, empresas ou grupos políticos. Elas podem ser convincentes a ponto de ser aceitas como verdade, gerando efeitos sociais e políticos. Atualmente, grupos de interesse defendem as fake news por meio da tese sociol. antropol. | rio de janeiro, v.09.02: 615 | rio de janeiro, antropol. sociol. artigo | tarcila soares formiga

965

de chegada de uma “política da pós-verdade” ou “política do pós-fato”, termos que servem para justificar ataques a ins- tituições como a imprensa e a ciência no intuito de distorcer fatos e evidências para conquistar apoio de segmentos so- ciais. 11 Para uma análise das Jornadas de Junho como expressão contemporânea do fenômeno histórico da ação direta, con- sulte Barreira, 2014. 12 Disponível em . Acesso em 19 ago. 2018. 13 O jornal Folha de S. Paulo denunciou, no início de 2019, um suposto esquema de financiamento de disparo de mensa- gens no Whatsapp que teria favorecido a campanha de Bol- sonaro e aliados nas eleições de 2018. No segundo semestre de 2019, Jonas Kaiser e Yasodara Córdova, pesquisadores do Berkman Klein Center for Internet and Society da Universi- dade de Harvard, divulgaram dados que apontam que o al- goritmo do YouTube no Brasil teria contribuído para a ex- pansão da extrema-direita (cf. Fisher & Taub, 2019). 14 “Ideologia de gênero” é expressão criada na década de 1990 por intelectuais e ativistas (religiosos e laicos) que se opõem aos estudos de gênero e às demandas políticas dos movi- mentos feministas e LGBT como a igualdade entre homens e mulheres, casamento entre pessoas do mesmo sexo, aces- so às tecnologias reprodutivas, contracepção e interrupção da gravidez, educação sexual e criminalização da homofo- bia. Para uma genealogia completa do termo e da formação de um movimento contra os direitos sexuais e reprodutivos, ver Miskolci 2018. 15 Agradecemos a um dos pareceristas por nos auxiliar a che- gar a essa constatação.

Referências Bibliográficas

Alcântara, Lívia M. de. (2016). Ciberativismo e a dimensão comunicativa dos movimentos sociais: repertórios, organi- zação e difusão. Política e Sociedade, 15/34, p. 315-338. Balieiro, Fernando de Figueiredo. (2018). ‘Não se meta com meus filhos’: a construção do pânico moral da criança sob ameaça. Cadernos Pagu, 53. Disponível em

966

scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104- -83332018000200406&lng=pt&nrm=iso&tlng=pt>. Acesso em 19 ago. 2018. Barreira, Irlys. (2014). Ação direta e simbologia das “jorna- das de junho”: notas para uma sociologia das manifesta- ções. Contemporânea − Revista de Sociologia da UFSCar, 4/1, p. 145-164. Boutang, Yann M. (2005). Riqueza, propiedad, libertad y ren- ta en el capitalismo cognitivo. In: E. Rodríguez, E. & Sánchez, R. (org.). Capitalismo cognitivo, propiedad intelectual y creación colectiva. Madrid: Traficantes de Sueños. Disponível em . Acesso em 19 abr. 2018. Burrows, Roger & Beer, David. (2013). Rethinking space: ur- ban informatics and the sociological imagination. In: Or- ton-Johnson, K. & Prior, N. Digital sociology. London: Palgrave MacMillan, e-book. Davenport, Thomas H. & Beck, J. C. (2001). The attention eco- nomy: understanding the new currency of business. Boston: Har- vard School of Business. Disponível em . Acesso em 19 abr. 2018. Fisher, Max & Taub, Amanda. (2019). How YouTube radicali- zed Brazil. The New York Times. Disponível em . Acesso em 19 ago. 2018.

636, mai. 636, Foster, John Bellamy & McChesney, Robert. (2014). Surveil- – lance capitalism: monopoly-finance capital, the military- -industrial complex, and the digital age. Monthly Review, 66/3. Disponível em . Acesso em 19 abr. 2018. Gillespie, Tarleton. (2013). The relevance of algorithms. In: Gillespie, Tarleton; Boczkowski, Pablo & Foot, Kirsten (eds.). Media Technologies, p. 167-194. Cambridge, MA: MIT Press. Goldhaber, Michael H. (1997). The attention economy and the Net. First Monday, 2, p. 4-7. Disponível em . Acesso em 19 abr. 2018. sociol. antropol. | rio de janeiro, v.09.02: 615 | rio de janeiro, antropol. sociol. artigo | tarcila soares formiga

967

Hamlin, Cynthia & Peters, Gabriel. (2018). Consumindo co- mo uma garota: subjetivação e empoderamento na publici- dade voltada para mulheres. Lua Nova, 103, p. 167-202. Hardt, Michael & Negri, Antonio. (2004). Multidão: guerra e democracia na era do Império. Tradução de Berilo Vargas. Rio de Janeiro: Record. Introna, Lucas D. & Nissenbaum, Helen. (2000). Shaping the web: why the politics of search engines matters. The Infor- mation Society, 16/3, p. 169-185. Machado, Jorge Alberto S. (2007). Ativismo em rede e cone- xões identitárias: novas perspectivas para os movimentos sociais. Sociologias, 18, p. 248-285. Disponível em . Acesso em 19 ago. 2018. Marwick, Alice E. & Boyd, Danah. (2010). I tweet honestly, I tweet passionately: twitter users, context collapse, and the imagined audience. New Media & Society, 13/1, p. 114-133. Disponível em . Acesso em 19 ago. 2018. Marwick, Alice E. & Lewis, Rebecca. (2017). Media manipu- lation and disinformation online. Data & Society Research Institute. Disponível em . Acesso em 19 abr. 2018. Merclé, Pierre. (2011). Sociologie des reseaux sociaux. Paris: La Découverte. Messemberg, Debora. (2017). A direita que saiu do armário. Sociedade e Estado, 32/3, p. 621-647. Disponível em . Acesso em 19 abr. 2018. Miguel, Luis Filipe. (2016). Da “doutrinação marxista” à “ideo- logia de gênero” – Escola sem Partido e as leis da mordaça no parlamento brasileiro. Direito & Práxis, 7/15, p. 590-561. Dispo- nível em . Acesso em 19 abr. 2018. Miskolci, Richard. (2018). Exorcisando um fantasma: os in- teresses por trás do combate à “ideologia de gênero”. Cader- nos Pagu, 53, epub. Disponível em . Acesso em 19 abr. 2018. projetos afetivos e estéticos: os vínculos entre o crítico de arte mário pedrosa e o artista alexander calder

968

Miskolci, Richard & Balieiro, Fernando de Figueiredo. (2018). Sociologia digital: balanço provisório e desafios. Revista Bra- sileira de Sociologia, 6/12, p. 132-156. Disponível em . Acesso em 19 ago. 2018. Miskolci, Richard & Pereira, Pedro Paulo Gomes. (2019). Edu- cação e saúde em disputa: movimentos anti-igualitários e políticas públicas. Interface: Comunicação, Saúde, Educação, 23, epub. Disponível em . Acesso em 14 ago. 2019. O’Reilly, Tim. (2013). Open data and algorithmic regulation. In: Goldstein, Brett (ed.). Beyond transparency: open data and the future of civic innovation. San Francisco: Code for America Press, p. 289-300. Ortiz, Pedro H. F. (2005). Das montanhas mexicanas ao cibe- respaço. Estudos Avançados, 19/55, p. 173-186. Disponível em: . Acesso em 19 abr. 2018. Pariser, Eli. (2011). The filter bubble: what the internet is hiding from you. London: Penguin Books. Parra, Henrique et al. (2018). Infraestruturas, economia e política informacional: o caso do Google Apps For Educa- tion. Mediações − Revista de Ciências Sociais, 23/1, p. 63-99. Pasquale, Frank. (2017) A esfera pública automatizada. Líbe- ro, 39. Disponível em: . Acesso em 19 abr. 2018. ago., 2019 ago., –

Pasquale, Frank. (2006). Rankings, reductionism, and res- ponsibility. Cleveland State Law Rev, 54, p. 115-139. Disponível 636, mai. 636,

– em . Acesso em 19 abr. 2018. Paton, Nathalie. (2014). School shooting: la violence à l’ère de YouTube. Paris: Éditions de la Maison des sciences de l’homme. Patschiki, Lucas. (2012). Os litores da nossa burguesia: o Mídia sem Máscara em atuação partidária (2002-2011). Dissertação de Mestrado (História). Universidade Estadual do Oeste do Pa- raná. sociol. antropol. | rio de janeiro, v.09.02: 615 | rio de janeiro, antropol. sociol. artigo | tarcila soares formiga

969

Pickard, Victor. (2006). United yet autonomous: indymedia and the struggle to sustain a radical democratic Network. Media, Culture & Society, 28/3, p. 315-336. Disponível em . Acesso em 19 abr. 2018. Pomar, Marcelo. (2013). Não foi um raio em céu azul. In: Ju- densnaider, E.; Lima, L. & Ortellado, P. (orgs.). Vinte centavos: a luta contra o aumento. São Paulo: Editora Veneta. Ramos, Jair. (2015). Subjetivação e poder no ciberespaço: da experimentação à convergência identitária na era das redes sociais. Vivência, 45, p. 57-76. Disponível em . Acesso em 19 abr. 2018. Rouvroy, Antoinette & Berns, Thomas. (2015). Governamen- talidade algorítmica e perspectivas de emancipação: o dís- par como condição de individuação pela relação? Revista ECO-Pós, 18/2, p. 36-56. Disponível em . Acesso em 19 abr. 2018. Thrift, Nigel. (2004). Remembering the technological un- conscious by foregrounding the knowledges of position. En- vironment & Planning: society and space, 22/1, p. 175-190. Turkle, Sherry. (2011). Alone together: why do we expect more from technology and less from each other? New York: Basic Books. Van Dijck, Jose. (2016). La cultura de la conectividade. Buenos Aires: Siglo Veinteuno. Williams, Raymond. (2015). Televisão: tecnologia e forma cultu- ral. São Paulo: Boitempo. Zuboff, Shoshana. (2016). The secrets of surveillance capita- lism. Frankfurter Allgemeine Zeitung, caderno Feuilleton. Disponível em . Acesso em 19 abr. 2018. Zuboff, Shoshana. (2015). Big other: surveillance capitalism and the prospects of an information civilization. Jounal of Information Technology, 30, p. 75-89. Disponível em . Acesso em 19 abr. 2018. projetos afetivos e estéticos: os vínculos entre o crítico de arte mário pedrosa e o artista alexander calder

970

Das Jornadas de Junho à cruzada moral: o papel das redes sociais na polarização política brasileira Resumo Palavras-chave O objetivo deste texto é compreender o papel desempe- Jornadas de Junho; nhado pelas redes sociais na polarização política. Na pers- polarização política; pectiva da moldagem social da tecnologia, desenvolve uma internet; análise sociológica e histórica das características da so- redes sociais e disputas ciabilidade por meio de plataformas num contexto de uso morais. individualizado de dispositivos de conexão. Os protestos de 2013 são tomados como ponto de inflexão a partir do qual disputas políticas passaram a se dar por meio de uma gramática moral. O artigo analisa como a concentração do uso da internet em poucas plataformas afetou as comu- nicações que antes eram mediadas pelas pessoas em di- ferentes contextos, unificando-as de forma a acentuar oposições binárias e a formação de consensos polarizados.

From THE June Demonstrations to the moral crusade: the role of social MEDIA networks in political polarization Abstract Keywords The aim of this paper is to understand the role of social Demonstrations of June; media networks in political polarization. From the view- political polarization; point of the social shaping of technology, it develops a so- internet; ciological and historical analysis of on-line sociability in a digital social networks context defined by individualized use of connective de- and moral disputes. vices. The 2013 demonstrations are taken as the turning ago., 2019 ago.,

– point after which political disputes began to unfold through

a moral grammar. The article analyses how the concentra- tion of internet use on a few platforms has altered com- 636, mai. 636,

– munications previously mediated between people in dif- ferent contexts, unifying them in a way that accentuates binary oppositions and the shaping of polarized consen- suses. sociol. antropol. | rio de janeiro, v.09.02: 615 | rio de janeiro, antropol. sociol. registros de pesquisa | edilson pereira

971

REGISTROS DE PESQUISA as imagens encarnadas entre mortos e vivos: notas etnográficas sobre ritual e retrato

972 ago., 2019 ago., –

663, mai. 663, – sociol. antropol. | rio de janeiro, v.09.02: 638 | rio de janeiro, antropol. sociol. http://dx.doi.org/10.1590/2238-38752019v9311 registros de pesquisa | edilson pereira

1 Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), 973 Instituto de Artes, Campinas, SP, Brasil [email protected] https://orcid.org/0000-0002-0895-0313

Enrique Valarelli Menezes I

O manuscrito inédito “Síncopa” de Mário de Andrade e sua biblioteca

É conhecida a descrição que Mário de Andrade faz de seu próprio desdobra- mento em “trezentos, trezentos e cinquenta”, em um celebrado poema que inspira ainda hoje títulos para biografias sobre o autor, coletâneas, dissertações, programas de rádio, entre outros. Menos célebres são as consequências que o escritor sentia nesse desdobrar-se, que confessava a amigos. Em carta a Pedro Nava escreve:

Meu ideal é uma vida especializada num ramo só de arte […] e no entanto escre- dez., 2019 dez., –

vo sobre tudo, dou alarma de tudo porque se eu não der os outros não dão, faço crítica de tudo, faço verso faço jornalismo faço romance faço conto escrevo his- tórias musicais gramatiquinhas de língua, estéticas gerais, críticas literárias,

985, set. 985, tudo forçado pelas circunstâncias sem nada de profundo sem nada de bem pen- – sado, pura vulgarização... (Andrade, 1982: 75).

E no manuscrito da Gramatiquinha da fala brasileira, resume: “Fui obri- gado a me meter num despropósito de assuntos e por isso a ficar na epiderme de todos eles. Sobre poesia, poética, estética, arquitetura, música, prosa, psi- cologia, pintura e até linguagem escrevi!” (Pinto, 1990: 314). Aquele que quiser atestar a verdade dessas palavras, o gigantismo e a obstinação da empreitada desse polígrafo poderá, além de ler sua enorme obra publicada, consultar o Arquivo Mario de Andrade do Instituto de Estudos Bra- sileiros da Universidade de Sao Paulo (IEB/USP), em que é possível ter acesso a uma enorme quantidade de documentos que pertenceram ao autor, desde sociol. antropol. | rio de janeiro, v.09.03: 973 | rio de janeiro, antropol. sociol. as imagens encarnadas entre mortos e vivos: notas etnográficas sobre ritual e retrato

974

sua biblioteca pessoal até suas anotações, esboços, versões manuscritas e pensamentos diversos sobre aquele “despropósito de assuntos” pelos quais se interessou e escreveu. Identificando em si mesmo uma memória ruim (cf. Andrade, 1972: 6) , para se orientar nesse mar de anotações e levar a cabo seus projetos – que não eram poucos e nem modestos –, o escritor experimentou arrumações diversas, procurando sempre manter fichamentos organizados e rigorosos na medida do possível. Para as anotações do dia a dia, pode-se encontrar no Arquivo muitas folhas de cadernetas de bolso, nas quais anotava ideias, pensamentos, páginas de livros, expressões ouvidas pela rua, entre outras coisas que o auxiliavam em um tipo de fichamento característico. Vista a quantidade de anotações feitas nessas folhinhas, pode-se supor que raramente o poeta saía de casa sem sua caderneta de bolso. Também em suas leituras, ao se deparar com uma informa- ção ou assunto de interesse, era seu costume grifar, fazer observações à margem da folha, indicações etc. (cf. Toni, 1999). Para que esse diálogo não se perdesse no despropósito, anotava em sua caderneta de bolso uma palavra-chave, junta- mente ao número atribuído ao livro em sua biblioteca e o número da página na qual se encontrava a anotação ou grifo. Por exemplo, ao encontrar uma passa- gem de seu interesse sobre a síncopa, marca a passagem e anota em sua cader- neta: “Síncopa 612, 100”. Essa anotação indica que há algo interessante sobre síncopa na página 100 do livro Elementos de folclore brasileiro de Flausino Vale (livro que está em sua biblioteca pessoal, indicado por no 612, em um manuscri- to intitulado “Bibliografia de leituras iniciadas pra Pancada do Ganzá”). A folha de caderneta, com as informações, era destacada e ajuntada a outras sobre o mesmo assunto em um envelope, que trazia em sua face a palavra-chave de uma determinada pesquisa em andamento. Esse envelope, então, ia guardando e lo- calizando, ao longo dos anos, seus diálogos, em um assunto específico, com os autores que estavam sendo lidos e estudados. ago., 2019 ago., –

663, mai. 663, – sociol. antropol. | rio de janeiro, v.09.02: 638 | rio de janeiro, antropol. sociol. registros de pesquisa | edilson pereira

975

Envelope no 13, “Síncopa”. (Foto do autor)

Esse foi seu modo de organizar ao menos um de seus interesses – um pretendido ensaio ou livro sobre a síncopa – que aparece anunciado, em 1928, no seu Ensaio sobre a música brasileira: “a síncopa, mais provavelmente impor- tada de Portugal que da África (como de certo hei-de mostrar num livro futu- ro) [...]” (Andrade, 2006: 26). Sabe-se que esse livro não foi escrito, e os diálo- gos e referências sobre a síncopa e suas especificidades na música brasileira permaneceram dentro daquele envelope, guardado entre muitos outros. Junto a ele, na mesma caixa do Arquivo do IEB/USP, encontram-se diversos outros, nomeados “Música brasileira”, “O no Brasil”, “Música em S. Paulo”, “Aves noturnas”, alguns com capacidade de ser desenvolvidos em artigos, outros vazios. O envelope sobre a “síncopa”, no caso, tem em sua face o número 13 escrito na parte superior esquerda a lápis vermelho e sua palavra-chave “sín- copa” escrita a lápis na parte central; nele há 89 documentos manuscritos diversos, constando:

– 67 folhas de papel manuscritas, destacadas de caderneta, medindo 10,4cm x 7,8cm; – 26 folhas de papel manuscritas, medindo 14,1cm x 10,1cm. – 3 folhas de papel manuscritas medindo 30,8cm x 11,5cm; – 1 folha única de papel manuscrita medindo 28,6cm x 24,4cm; – 1 folha única de papel manuscrita medindo 23,1cm x 16cm. as imagens encarnadas entre mortos e vivos: notas etnográficas sobre ritual e retrato

976

Nota no 62, destacada de caderneta, 10,4cm x 7,8cm. (Foto do autor)

Essa nota, por exemplo, foi escrita enquanto o autor lia o no 379 da sua “Bibliografia de leituras iniciadas pra Pancada do Ganzá”, um texto de Artur Ramos de Araújo Pereira intitulado Notas de Ethnologia. Anota então que ali há transcrição de “ritmos negros” que não têm síncopa, “embora o autor fale muito em síncopa”. Ou seja, anota um problema, que tem possibilidade de ser ago., 2019 ago., –

combinado a outros e desenvolvido. Sabe-se que, além de sua produção literária e dos livros publicados sobre música, Mário de Andrade idealizou ainda outros projetos ambiciosos 663, mai. 663, – sobre música brasileira que não chegaram a ser publicados em vida: além do livro sobre síncopa (anunciado no Ensaio sobre música brasileira em 1928), anun- cia a obra monumental “Na pancada do ganzá” no livro Compêndio sobre histó- ria da música, de 1929, e anuncia os livros “Música dos brasis” e o também monumental “Dicionário musical brasileiro” no livro Modinhas imperiais, de 1930. Nenhum desses quatro projetos anunciados foi finalizado pelo autor, mas muitos de seus manuscritos foram preparados, editados e publicados posteriormente: o cancioneiro Na pancada do ganzá foi preparado por Oneyda Alvarenga em seis volumes: Danças Dramáticas do Brasil (três volumes), Música de feitiçaria do Brasil, Os cocos e As melodias do boi e outras peças. O livro “Músi- ca do brasis” não foi desenvolvido por Mário de Andrade, mas seu embrião, sociol. antropol. | rio de janeiro, v.09.02: 638 | rio de janeiro, antropol. sociol. registros de pesquisa | edilson pereira

977

“Quatro cantos terenos”, foi incorporado à publicação de As melodias do boi e outras peças. A edição e publicação do Dicionário musical brasileiro foi coorde- nada por Oneyda Alvarenga e Flávia Toni. O livro sobre síncopa, projeto que não tinha nome e nem uma redação tão avançada quanto os outros, não che- gou a constar em qualquer plano de obras “a serem publicadas” do autor, vi- vendo apenas naquela pequena frase do Ensaio sobre música brasileira e no envelope de número 13 de seu arquivo. Posteriormente, algumas notas do envelope serviram de base para a redação do verbete “síncopa”, que hoje in- tegra o Dicionário musical brasileiro. Esses projetos todos são irmanados ainda em outro ponto importante: eles partilham uma mesma bibliografia, reunida no manuscrito “Bibliografia de leituras iniciadas pra Pancada do Ganzá”, datado de 23/08/1929. Ali constam 837 títulos, relacionados à música de diversas formas, com nome e sobrenome de cada autor, nome da obra, editora e ano da publicação. O número dado a cada título nessa Bibliografia é o mesmo que está anotado na página de rosto do livro que pertencia a sua biblioteca particular. Como no exemplo dado acima, o livro no 612 dessa Bibliografia é Elementos de folclore brasileiro, de Flausino Vale; o no 48 é El folklorismo en la musica cubana, de Eduardo Sanchez de Fuentes. Se o volume não consta em sua biblioteca pessoal, pertencendo a um amigo ou instituição, há uma indicação especial.

Autores de referência Dentro dessa extensa bibliografia, o manuscrito sobre a síncopa reúne refe- rências a 36 títulos e quatro partituras que pude localizar na biblioteca pes- soal de Mário de Andrade. Nos livros há também anotações e observações do escritor nas margens, que em conjunto com as notas formam algo como uma expansão desse manuscrito − ou um “grande manuscrito”. Analisando as obras consultadas pelo escritor, percebe-se uma “meto- dologia” bastante avançada, não observável em seus escritos publicados: uma tentativa extremamente sofisticada de compreender a sincopação presente na música de países americanos por meio da análise combinada de informa- ções disponíveis sobre a música dos respectivos colonizadores europeus e de povos africanos escravizados e deportados para a América. No caso do Brasil e seus colonizadores, podem ser encontrados em seu arquivo diversos fascículos numerados de melodias tradicionais portuguesas transcritas por César da Neves,1 que foram impressos e comercializados em Portugal em fascículos quinzenais. O autor abriu para eles uma pasta indivi- dual em seu fichário analítico: a de número 15, nomeado “Cancioneiro César das Neves”, próxima ao envelope “síncopa”, que leva o número 13. Esses fas- cículos foram depois reunidos (em Portugal) em três volumes sob o título de Cancioneiro de músicas populares (Braga, Neves & Campos, 1893-1899).2 Os fas- cículos, que se inserem na pesquisa sobre literatura e tradição oral portugue- as imagens encarnadas entre mortos e vivos: notas etnográficas sobre ritual e retrato

978

sa realizada por Teófilo Braga, têm coordenação da parte musical realizada por César das Neves e coordenação da parte poética realizada pelo folclorista Gualdino de Campos (1847-1919). Outra coleção de melodias − não tão volu- mosa quanto essa, mas que Mário de Andrade também estuda − é Fados e canções de Portugal, de João do Rio, com transcrições para canto e piano. Con- sidera ainda de grande valor analítico os artigos de Rodney Gallop (1933a, 1933b), em que encontra indícios de práticas musicais idas “naturalmente por intermédio do Brasil”, assim como cantigas portuguesas “originárias do Brasil negroide”. O autor está em busca de indícios que sustentem sua percepção de que há uma dupla via na lógica colonizadora, na qual a música brasileira também exerce influência sobre a música portuguesa. Sobre a presença de tradições musicais africanas no Brasil, o manus- crito de Mário de Andrade tem poucas referências, entre elas textos de Artur Ramos como As culturas negras no novo mundo e um artigo de Manoel Querino não especificado, publicado na Revista do IHGB, sobre instrumentos africanos no Brasil. Analisa também a produção que surgia sobre a música tradicional de povos africanos – que vão “colonizar” não só o Brasil mas toda a América (aqui “colonização” tem apenas o sentido imigratório) – em particular os es- tudos dos alemães que estavam criando a “musicologia comparada” e o Pho- nogrammarchiev de Berlim, como o clássico African negro music, de Erich M. Hornbostel, e Die Anfange der Musik, de Carl Stumpf. Sobre música africana em geral estuda ainda Negro musicians and their music, de Maud Cuney Hare; Mu- sique Negre, de Stephen Chauvet, e Babel negra, de Simoes Landerset. Sobre a África Central examina, de Heli Chatelain, Folk-tales of Angola e, de Gaston Perier, Negreries et curiosités congolaises, além de consultar o número de junho de 1936 da revista Bantu Studies. Com relação a temas mais gerais inclui Mu- siques pittoresques; promenades musicales à l’exposition de 1889, de Jean-Baptiste Tiersot, e transcrições de melodias africanas do compositor Samuel Coleridge- ago., 2019 ago.,

– -Taylor em “Twenty-four negro melodies”, op.59 e “African suíte”, op. 35.

Para compreender a síncopa na América do Norte, o escritor estuda principalmente as coletâneas organizadas por Granville Bantock e Helen Ho- 663, mai. 663,

– pekirk (One hundred songs of England, One hundred folksongs of all nations e Se- venty Scottish songs), e publicadas pela Oliver Ditson Company,3 nas quais busca dados sobre as síncopas da música inglesa e escocesa, a fim de estudar se delas há indícios nos processos de sincopação norte-americanos. Seu fim particular é o de averiguar se há raízes sólidas na música dos colonizadores europeus, podendo assim criar uma antítese à tese mais aceita de que ela seria de origem africana. Bantock inclui no volume One hundred songs of England peças do período elisabetano, da música sacra inglesa e de compositores con- temporâneos, e no volume One hundred folksongs of all nations canções folcló- ricas inglesas e europeias; e Hopekirk recolhe 70 canções escocesas tradicio- nais com arranjos para piano. sociol. antropol. | rio de janeiro, v.09.02: 638 | rio de janeiro, antropol. sociol. registros de pesquisa | edilson pereira

979

Mário de Andrade segue o mesmo raciocínio ao buscar informações, entre outros, nos livros de Natalie Curtis Burlin (para a influência da música negro-americana) e Frances Densmore (para a influência da música indígena norte-americana). O escritor tem em sua biblioteca os livros de Curtis Burlin Negro folk-songs, em quatro volumes publicados entre 1918 e 1919 que incluem spirituals e canções de trabalho, e Songs and tales from the dark continent, cole- tânea publicada em 1920, encontrando aí pistas e indícios claros da centrali- dade do tambor e de seu universo rítmico na música africana. Sobre a América Central, Cuba em particular, Mário de Andrade estuda Eduardo Sanchez de Fuentes y Veláez, em cujos livros El folklorismo en la mu- sica cubana, de 1923, e Folklorismo, de 1928, o autor apresenta uma breve his- tória da música cubana, também levando em conta suas influências e o fluxo imigratório mundial. Mário de Andrade aponta, nesse manuscrito, particular- mente a figura rítmica do cinquillo, lendo em Sanchez de Fuentes sobre “o típico sincopado do danzón, que é no que se diferenciam as [habaneras] nas- cidas à sombra de nossas verdes palmeiras das importadas da velha Espanha” (Sanchez de Fuentes y Peláez, 1923: 41). Como Mário de Andrade, Sanchez de Fuentes buscava dados e análises que pudessem diferenciar a cultura de seu país da de seus colonizadores, na trilha da afirmação de uma identidade na- cional. Seu nacionalismo, entretanto, em boa medida alucinado, chega a mi- litar pela extirpação da influência da colonização africana, em formulações abertamente racistas. Descontadas as muitas diferenças, há um ambiente no qual circularam formulações similares de Sanchez de Fuentes y Peláez (1928: 113, tradução minha), como “já sabemos que as canções de um país encerram sua alma, sua vida inteira, e são as verdadeiras fontes de inspiração de seus artista” e de Mário de Andrade (2006 [1928]: 13) “uma arte nacional já está feita na inconsciência do povo. O artista tem só que dar pros elementos já existentes uma transposição erudita que faça da música popular, música ar- tística”. Para a análise da música ameríndia sul-americana, Mário de Andrade anota passagens de um compositor argentino, Vicente Forte, em sua peça “La Conquista”, na qual faz uso de material musical atribuído por ele a povos ameríndios da América do Sul. Forte ainda assina a seção “considerações ge- rais” do primeiro volume de El canto popular, volume esse também analisado por Mário de Andrade em sua busca de dados sobre a música dos povos au- tóctones da América Latina. Faz referência ainda ao artigo da musicóloga francesa Marguerite Béclard d’Harcourt na Encyclopédie de la Musique et Diction- naire du Conservatoire, intitulado “La musique indienne”, e ao livro da mesma autora intitulado Mélodies populaires indiennes: Équateur, Pérou, Bolivie, que não foi localizado em sua biblioteca pessoal. No caso da música ameríndia brasileira, a principal fonte de nosso escritor nesse manuscrito é o antropólogo Edgard Roquette-Pinto, em seu livro as imagens encarnadas entre mortos e vivos: notas etnográficas sobre ritual e retrato

980

Rondônia, que também realizou gravações de música indígena em cilindros de cera com um “fonógrafo portátil”, depois depositados no Museu Nacional do Rio de Janeiro. Alguns desses cantos foram utilizados como material compo- sicional por Villa-Lobos, Luciano Gallet e Lorenzo Fernandez, e o próprio Má- rio de Andrade neles se inspira para escrever o poema “Pai do mato”.

Sobre o manuscrito “síncopa” Em relação ao trabalho de Mário de Andrade como musicólogo, a análise do manuscrito “síncopa” indica uma interessante inversão. Se em sua obra mu- sicológica publicada o autor tende a formulações afirmativas (“a síncopa, mais provavelmente importada de Portugal que da África”, entre tantas outras) e não raro contraditórias, provavelmente dirigidas por aquela urgência de dar “alarma de tudo porque se eu não der os outros não dão”, esse manuscrito expõe o processo “negativo”, não publicado e não urgente, que inclui um tipo de metodologia mais profunda e exigente, paciente a ponto de durar décadas, que subjaz à obra musicológica do autor mas que não está aparente. O escritor sacrifica essa metodologia para se meter “num despropósito de assuntos e por isso [...] ficar na epiderme de todos eles”, tentando moldar alguns conceitos basilares e organizadores que pudessem servir de referência para a ainda incipiente e desorganizada musicologia brasileira. O “outro mé- todo” ensaiado nesse manuscrito, gênese de seu pensamento sobre o tema, impressiona por estar marcado pela paciência e pela incerteza, atributos que são o negativo da urgência com que o autor vai expondo conceitos em sua obra publicada. Nesse outro modo de trabalho, o escritor vai construindo sem pressa e mediante a progressiva análise de partituras, discos e livros especia- lizados, cruzando-os de forma aberta e experimental (ainda que seja muito clara a prevalência da tradição livresca sobre a escuta e as análises de parti- turas e discos). ago., 2019 ago.,

– Trata-se, a saber, também de um modo de aprofundar a análise e des-

confiar daquele mito originário baseado na triangulação de “três raças tristes”: no Ensaio sobre música brasileira (Andrade, 2006: 20) o musicólogo fixava uma 663, mai. 663,

– fórmula – positiva – sobre as fontes originárias da música brasileira, “a ame- ríndia em porcentagem pequena; a africana em porcentagem bem maior; a portuguesa em porcentagem vasta”, fórmula ela mesma express e superficial, a referida “epiderme” do assunto, que por sua vez ecoava Karl Philipp von Martius, Capistrano de Abreu, Olavo Bilac e Paulo Prado, entre outros. A vida desse manuscrito, ao contrário, é questionar em certa medida essa origem mítica e colocá-la sob perspectiva analítica, escapando àquela confessa superficialidade. Ao contrário da simples e propagada gradação en- tre as “três raças”, o conjunto dessas notas vai exigindo cada vez mais análi- ses que considerassem as múltiplas dimensões do fenômeno, articulando de forma crítica dados como tempo, história, economia, forma, entre outros. A sociol. antropol. | rio de janeiro, v.09.02: 638 | rio de janeiro, antropol. sociol. registros de pesquisa | edilson pereira

981

articulação dessas dimensões permitiria de fato sustentar uma interpretação mais integrada sobre a música que surge do cruzamento transcultural ame- ricano, abrindo a possibilidade de formular conceitos menos superficiais que organizassem e incorporassem, nesse caso, a grande quantidade de dados recolhidos por nosso escritor. Como método mais dinâmico, uma das exigências surgidas ao longo das anotações é a de analisar o fluxo, refluxo e influência entre as culturas colonizadas e colonizadoras no contexto da expansão comercial moderna e, dentro desse fluxo/refluxo, a necessidade de identificar continuidades, des- continuidades e resultantes de processos cruzados entre as características das músicas ameríndias, europeias e africanas. Processos esses que fariam parte de uma história “atlântica” da colonização, entendida em contexto glo- bal. Posto frente a essa perspectiva, o mito fundador das três raças revela-se simplório e insuficiente, confrontado à falta de dados que se impunha: como alguém – e Mário de Andrade se coloca nesse lugar – poderia falar em maior ou menor presença da música africana ou indígena no Brasil se pouco ou nada conhecia sobre os processos musicais na África ou entre os ameríndios? Qualquer estudioso que quisesse se remeter a essas “influências originais” teria que completá-las com uma larga dose de imaginação desejante (de uma África imaginária ou um indígena sonhado). No caso de um músico ou musi- cólogo contemporâneo, que dispõe de estudos mais detalhados, o método de Mário de Andrade ainda tem muito a dizer, em especial sobre a necessidade de análise das transformações desses processos musicais, no contexto das transposições de culturas realizadas no fluxo atlântico multissecular das co- lonizações, seus embaralhamentos, continuidades e destruições. Começa a se delinear, assim, ao longo do manuscrito “Síncopa”, um pro- cedimento investigativo: coletar e estudar dados mais precisos sobre os proces- sos da música de europeus, africanos e ameríndios em contexto pré-colonial, para então poder estudar as transformações ocorridas em processos transnacio- nais, a partir da interação dinâmica e complexa desses povos no “novo conti- nente”, já em contexto colonial. Mário de Andrade considera esse pressuposto válido para todo o território americano. No conjunto do manuscrito, em um primeiro nível de compreensão, o problema ainda está formulado em uma espécie de operação funcional, em que estão colocados em oposição elementos “brancos”, “negros” e “ameríndios”, sendo que a síncopa viria de um ou de outro: a “origem” da síncopa seria ou branca ou negra ou ameríndia. Em um segundo nível de compreensão, mais interessante, Mário de Andrade complexifica de forma exponencial sua mu- sicologia ao ir incorporando à análise formal de melodias uma perspectiva de análise histórica e socioeconômica: assim, parece propor que a síncopa das Américas em geral não seria simplesmente dos negros, dos brancos ou dos ame- ríndios, ou seja, uma transposição direta e preservada de tradições deslocadas, as imagens encarnadas entre mortos e vivos: notas etnográficas sobre ritual e retrato

982

mas sim uma dinâmica complexa que envolve colonizadores, colonizados e deportados em uma espécie de “rede rítmica” transatlântica na qual as mu- sicalidades tradicionais de diversas culturas do mundo são deslocadas e res- significadas dentro do complexo sistema surgido das modernas expansões comerciais transcontinentais. Ao constatar que a “síncopa” é um processo musical diferente em cada uma das culturas pesquisadas, o que entra em jogo é a própria movimentação da rede: o encontro e o convívio, conflituoso ou não, sincrético ou não, das figuras – sincopadas ou não – dos sistemas originais. Esse movimento dispa- ra processos dinâmicos de transformação nas figuras tradicionais, desenhados pela movimentação geral dessa “rede rítmica”, que podem se modificar ou se manter em diferentes proporções. É operando nesse segundo nível de com- preensão – não publicado – que Mário de Andrade consegue fugir à reificação do termo “síncopa” e do consequente esvaziamento de seu sentido: até então o termo parecia apenas técnico, congelado, como se pudesse flutuar inaltera- do ao longo do tempo e do espaço, como se pudesse existir para fora da his- tória e viajar intacto ao longo do Atlântico. A procura – digamos, um tanto mecânica – por síncopas de colcheia entre semicolcheias no compasso de dois por quatro – ainda hoje presente – reflete essa reificação. Ao considerar o contexto mais largo das diferentes camadas, sua interpretação da síncopa nesse manuscrito contém, potencialmente, a possibilidade de abandonar seu estado figural de dicionário e ganhar a vida dos eventos reais, complexos, dinâmicos e multidimensionais.

Recebido 11/4/2018 | Revisto 14/1/2019 | Aprovado 31/5/2019 ago., 2019 ago., –

663, mai. 663, –

Enrique Valarelli Menezes é flautista, doutor e mestre em musicologia pela Universidade de São Paulo, pós- doutorando em etnomusicologia pela Universidade de Campinas, graduado em composição pela Escola de Comunicações e Artes/USP. Procura relacionar a prática musical à reflexão acadêmica, atuando em diferentes ambientes musicais: popular, tradicional e experimental. sociol. antropol. | rio de janeiro, v.09.02: 638 | rio de janeiro, antropol. sociol. registros de pesquisa | edilson pereira

983

NOTAS

1 O Arquivo César das Neves informa que o autor, nascido César Augusto Pereira das Neves, em Lisboa (1841-1920), viveu no Porto, onde estudou violino com o professor Ba- doni e composição, harmonia e contraponto com o maes- tro Giovanni Franchini. Por sugestão desse professor, fun- da a primeira oficina tipográfica de música de Portugal e, em contato com Teófilo Braga, passa a recolher cantos populares, do que resultam três volumes do Cancioneiro de músicas populares. 2 A página de rosto desse conjunto de transcrições informa que se trata de um “Cancioneiro de músicas populares contendo letra e musica de canções, serenatas, chulas, danças, descantes, cantigas dos campos e das ruas, fados, romances, hinos nacionais, cantos patrióticos, cânticos religiosos de origem popular, cânticos litúrgicos popula- rizados, canções políticas, cantilenas, cantos marítimos, etc. e cançonetas estrangeiras vulgarizadas em Portugal”. 3 O editor, Oliver Ditson, é um americano de ascendência escocesa, que sucedera Elgar como professor na Birmin- gham University entre 1908 e 1934, onde idealizou esses dois volumes, com o objetivo de contribuir para o acesso de seus alunos ao repertório da canção inglesa erudita e da canção popular europeia em geral.

Referências bibliográficas

Andrade, Mário de. (2006). Ensaio sobre música brasileira. Belo Horizonte: Itatiaia. Andrade, Mário de. (1982). Correspondente contumaz: cartas a Pedro Nava, 1925-1944. Org. Fernando da Rocha Peres. Rio de Janeiro: Nova Fronteira. Andrade, Mário de. (1972). Namoros com a medicina. São Paulo: Martins. Braga, Teófilo; Neves, César das & Campos, Gualdino. (1893-1899). Cancioneiro de músicas populares. 3 v. Porto: Typ. Occidental. Gallop, Rodney. The fado. (1933a). The Musical Quarterly, London, 19/2, p. 199-213. as imagens encarnadas entre mortos e vivos: notas etnográficas sobre ritual e retrato

984

Gallop, Rodney. (1933b). The folk music of Portugal. Music & Letters, London, 14/4, p. 343-354. Pinto, Edith Pimentel. (1990). A gramatiquinha de Mário de Andrade: texto e contexto. São Paulo: Duas Cidades. Sánchez de Fuentes y Peláez, Eduardo. (1928). Folklorismo; artículo, notas y críticas musicales. La Habana: Molina. Sánchez de Fuentes y Peláez, Eduardo. (1923). El folk-lor em la música cubana. La Habana: Siglo XX. Toni, Flávia Camargo. (1999). Introdução. In: Andrade, Mário de. Dicionário musical brasileiro. Coord. Oneyda Al- varenga e Flávia Camargo Toni. Belo Horizonte: Itatiaia. ago., 2019 ago., –

663, mai. 663, – sociol. antropol. | rio de janeiro, v.09.02: 638 | rio de janeiro, antropol. sociol. registros de pesquisa | edilson pereira

985

O MANUSCRITO INÉDITO “SÍNCOPA” DE MÁRIO DE ANDRADE E SUA BIBLIOTECA Palavras-chave Resumo Palavras-chave Imerso em um longo estudo sobre a cultura popular brasi- Síncopa; leira, o escritor Mário de Andrade publicava, em 1928, duas Mário de Andrade; de suas obras mais lidas: Macunaíma – o herói sem nenhum manuscrito inédito; caráter e o Ensaio sobre música brasileira. Na segunda, ao se música brasileira. aprofundar em uma das questões sobre a rítmica, promete a seus leitores um livro sobre seu ponto central: “a síncopa, mais provavelmente importada de Portugal que da África (como de certo hei-de mostrar num livro futuro)”. Passa a integrar, assim, a série de projetos em música brasileira que o escritor não chegou a completar, sendo um irmão de pro- jetos como Na pancada do ganzá (posteriormente organizado e publicado por Oneyda Alvarenga) e o Dicionário musical brasileiro (organizado e publicado por Oneyda Alvarenga e Flavia Toni). O livro sobre síncopa não chegou a ser organi- zado para publicação e sobreviveu apenas como um conjun- to de notas manuscritas sobre o assunto. O presente artigo trata de uma análise do conjunto desse manuscrito inédito, que hoje está no Arquivo Mário de Andrade do Instituto de Estudos Brasileiros, IEB-USP.

THE UNPUBLISHED MANUSCRIPT ‘SYNCOPATION’ BY MÁRIO DE ANDRADE AND HIS LIBRARY Keywords Abstract Syncope; Immersed in a lengthy study of Brazilian popular culture, Mário de Andrade; the writer Mário de Andrade published two of his most unpublished manuscript; remarkable works in 1928: Macunaíma – o heroi sem nenhum Brazilian music. caráter and Ensaio sobre música brasileira. In the second, in a passage concerning rhythm, Andrade promises his readers a book on Brazilian music’s most striking rhythmic device: “syncopation, more likely imported from Portugal than from Africa (as I shall certainly show in a future book).” This ‘fu- ture book’ is a sibling of other uncompleted projects like Na pancada do ganzá (later organized and published by Oneyda Alvarenga) and the Dicionário musical brasileiro (organized and published by Oneyda Alvarenga and Flavia Toni). Not as developed as these, the book on syncopation was never edited for publication and survived only as a set of hand- written notes on the subject. The present article provides an analysis of this unpublished manuscript in its entirety, now held at the Arquivo Mário de Andrade of the Instituto de Estudos Brasileiros, IEB – Universidade de São Paulo. as imagens encarnadas entre mortos e vivos: notas etnográficas sobre ritual e retrato

986 ago., 2019 ago., –

663, mai. 663, – sociol. antropol. | rio de janeiro, v.09.02: 638 | rio de janeiro, antropol. sociol. http://dx.doi.org/10.1590/2238-38752019v9312 registros de pesquisa | felipe magaldi

1 University of London, Goldsmiths, London,England 987 [email protected] https://orcid.org/0000-0001-5453-6394

Keith Hart I

O dinheiro é como aprendemos a ser humanos1

A ideia de uma economia humana repousa em juntar duas ideias: que as pes- soas ganhem mais controle sobre seus assuntos cotidianos; e que se reconhe- ça o fato de que nossa situação social envolve a humanidade como um todo. Como, então, desenvolver conexões práticas e significativas entre as duas? Sociedades locais aspiram à autossuficiência, mas elas sempre dependem de pessoas de fora para alguns aspectos essenciais. O dinheiro, em uma grande variedade de formas, é um universal humano, cuja função principal é estender dez., 2019 dez., – o alcance das sociedades além de seus limites locais (ver o trabalho de Marcel Mauss, 2016 e Karl Polanyi, 1975; ver também Hart, 2014a, e Hann & Hart, 2009 e 2011). Isso cria uma tensão permanente em qualquer economia, entre a ne- 1015, set. 1015, – cessidade interna de manter sistemas locais de direitos e obrigações e a expan- são das relações com o mundo exterior por meio do dinheiro e do comércio. O dinheiro contém em seu caráter a capacidade de se mover entre os polos da existência humana, abrir nossas associações mais inclusivas e ajudar a fechar formas sociais limitadas. Seu movimento une esses extremos, trazen- do para um relacionamento dinâmico dimensões universais e particulares de nossa existência, combinando abstrato e concreto, análise e síntese. A humanidade está fazendo agora (e possivelmente desfazendo) uma sociedade mundial cujos princípios estão muito além da experiência normal. Nos envolver com dinheiro é como aprendemos a ser humanos nos sentidos local e global. Experimentos democráticos com novas formas de dinheiro são fontes poderosas de educação política. sociol. antropol. | rio de janeiro, v.09.03: 987 | rio de janeiro, antropol. sociol. a psicanálise contra a parede: entrevista com gilberto velho

988

O projeto de economia humana2 Origem Morar em Paris me permitiu conviver com sociólogos econômicos, historiado- res, antropólogos, filósofos políticos e economistas institucionais franceses que me enriqueceram como em nenhum outro lugar. A fluidez do intercâmbio pelas fronteiras disciplinares na busca de agendas políticas e intelectuais com- partilhadas era especialmente atraente. Jean-Louis Laville (e.g., 2016), um pro- lífico sociólogo da economia com fortes laços políticos com a esquerda na Europa e na América Latina, foi particularmente importante. Após o primeiro Fórum Social Mundial, realizado em Porto Alegre em 2001, uma rede transnacional se propôs a publicar um manual resumindo o conhecimento de conceitos-chave e debates relevantes para a construção de uma economia mundial alternativa, um movimento hoje conhecido como al- terglobalização (Pleyers, 2009). Uma série de compilações foi publicada em espanhol, francês, português e italiano sob o título Dictionary of the other economy. Uma edição francesa completa (Laville & Cattani, 2006), com artigos sobre bens públicos globais, comércio justo, moedas complementares, economia solidária e muito mais, foi resenhada por mim muito positivamente (Hart, 2007a). Juntei- -me aos editores desse volume para preparar a primeira versão inglesa da série: The human economy: a critical guide (Hart, Laville & Cattani, 2010). Tínhamos três razões para mudar o título: “dictionary” era muito acadêmico se pretendíamos alcançar ativistas; “other” e “alternative” implicavam uma ruptura com a economia atual, e queríamos enfatizar que a substância de uma economia democrática já existia a nosso redor. O discurso político latino frequentemente opunha a economia social ao individualismo de mercado, enquanto a visão de Durkheim (1964) e Mauss (1979, 2016) do homo duplex contemplava indivíduos e sociedade em qualquer “economia humana”, incluindo os mercados (Kwon, 2014). Escrevendo no rescaldo da crise financeira, nos sentíamos mais otimistas ago., 2019 ago.,

– em deter ou, mesmo, derrotar o neoliberalismo. Nossa iniciativa foi um manual

para a construção da democracia econômica em todo o mundo. A ideia não era apenas identificar discursos individuais, mas, justapondo-os – uma vez que tanto 678, mai. 678,

– se sobrepõem –, desenvolver uma linguagem comum para falar sobre a emancipa- ção econômica humana. O neoliberalismo, a partir de 1979-1980, foi uma contrar- revolução à revolução global que ocorreu após a Segunda Guerra Mundial, quando as sociedades industriais ocidentais, o bloco soviético e os governos pós-coloniais se comprometeram com a expansão dos serviços públicos e do poder de compra dos cidadãos. Esse foi o único momento em que a política econômica esteve volta- da para o bem-estar dos trabalhadores e a redução da desigualdade. As coisas são radicalmente diferentes agora. Nosso objetivo de aumentar o número de contribuições de falantes de in- glês foi alcançado; mas, dos 15 países representados, apenas um estava na África e na Ásia, onde vivem atualmente 3/4 da humanidade. No ano seguinte, John Sharp sociol. antropol. | rio de janeiro, v.09.02: 665 | rio de janeiro, antropol. sociol. registros de pesquisa | felipe magaldi

989

e eu estabelecemos o Human Economy Program de pós-doutorado na Universidade de Pretória, na África do Sul, e, em seguida, um programa de doutorado africano e a série de livros The Human Economy.3 Esse nó africano da rede de alterglobaliza- ção acrescentou um diálogo Sul-Sul ao eixo Norte-Sul que havia lançado o projeto.

Princípios O projeto de economia humana enfatiza as atividades da população local em um contexto que, em última análise, abrange toda a humanidade. É sobre o que as pessoas fazem para si e para o gerenciamento da vida na Terra. A ideia de uma economia humana não é um sonho ou uma utopia. Existe prática e teoricamente ao nosso redor, mas muitas vezes foi obscurecida, marginalizada ou reprimida pelo modelo dominante de economia. Nós diferimos da esquerda revolucionária por acreditar que a sociedade pode progredir dando uma nova direção e ênfase ao que as pessoas já estão fazendo. Para ser humana, uma economia deve ser quatro coisas. Ela é feita e refeita pelas pessoas em sua vida cotidiana, pelo que o conhecimento econômico deriva- do de seu estudo deve ser de utilidade prática para essas pessoas. Em segundo lugar, a economia humana aborda situações particulares em todas as suas varia- ções e complexidades; portanto, a nossa é essencialmente uma abordagem insti- tucional que geralmente evita termos genéricos como capitalismo e socialismo. As economias humanas podem ser vistas em toda parte como variações de alguns temas comuns. Terceiro, nossa abordagem baseia-se em uma concepção mais ho- lística das necessidades e dos interesses das pessoas do que a encontrada na eco- nomia de livre mercado. Finalmente, devemos abordar a sociedade mundial que estamos criando em relação a suas particularidades. O global e o local coexistem mesmo se a ideologia os separar. A economia humana não precisa ser feita do zero. A estratégia de uma economia deveria ser reproduzir a vida humana e tudo o que a sustenta. Desde a Idade do Bronze, o trabalho humano tem sido explorado e degradado para manter o estilo de vida de alguns poucos privilegiados. Sob o ca- pitalismo, a vida humana tornou-se um meio secundário de ganhar dinheiro. Co- mo resultado, os antropólogos algumas vezes se inspiraram nas práticas de povos menores, mais igualitários. Agora precisamos levar esse projeto adiante para ex- plorar as forças sociais de nosso mundo (globalização, internet etc.) que podem empurrar as possibilidades de economia para uma nova ênfase na produção de seres humanos, em vez de produzir coisas por intermédio dos seres humanos.

Objetivos A ideia de uma economia humana reúne muitas receitas sociais em uma visão unificadora expressa em linguagem comum para o progresso. Combina o que cada um de nós faz em nossa vida com o que podemos nos tornar como espé- cie. Em outras palavras, precisamos de uma economia que possa operar em ambos os níveis, bem como entre eles. Meu trabalho sobre dinheiro (Hart, 1986, a psicanálise contra a parede: entrevista com gilberto velho

990

2000, 2017a) concebe isso como a mediação entre esses extremos. Georg Simmel (1978) percebeu esse potencial do dinheiro para tornar a sociedade universal, ao mesmo tempo em que se baseia na vida cotidiana. O objetivo é inserir na prática econômica normas democráticas que estejam ancoradas em instituições capazes de combinar formas de associação estabelecidas e novas. Democracia implica aprender como conciliar liberdade e igualdade − não é fácil. No século passado, a sociedade de mercado gerou extrema desigualdade em nome da liberdade individual, enquanto sociedades desvinculadas do mercado instalaram em nome da igualdade as burocracias mais coercitivas conhecidas na história. Devemos evitar recair nessa lógica da Guerra Fria. O mercado, em nossa opinião, é um bastião legítimo da economia huma- na. Muitos pensadores sociais clássicos acreditavam que os mercados fossem progressistas − eles nos tiram de nossa tradicional insularidade, estendem a sociedade para torná-la mais inclusiva, fornecem uma medida de liberdade para indivíduos e minorias. Os mercados sem limites, contudo, como nas últi- mas quatro décadas, ameaçam a própria democracia. Mercados devem ser limi- tados por instituições sociais. O Estado tem o importante papel de coordenar atividades de grande esca- la, garantindo os direitos sociais dos cidadãos e atuando como mecanismo redis- tributivo. Iniciativas populares não podem fazer tudo sozinhas. As garantias es- tatais desse tipo, no entanto, devem ser compatibilizadas com a auto-organiza- ção voluntária baseada em diferentes formas de solidariedade, e essas são as áreas que investigamos mais de perto. Liberdade e igualdade não surgem apenas dos contratos no mercado e da cidadania, mas também da mutualidade e do igualitarismo das pessoas que vivem juntas. O que os antropólogos fazem senão tentar ver como as próprias pessoas fazem as coisas funcionarem? Duas grandes ideias guiaram a história moderna e estão inseparavel- ago., 2019 ago.,

– mente ligadas: democracia e ciência. A primeira diz que sociedades adequadas

para os seres humanos viverem devem garantir direitos básicos para todos os cidadãos, a fim de que as pessoas possam se autogovernar. A segunda diz que 678, mai. 678,

– tais sociedades só podem florescer se nelas o conhecimento se baseia em sa- ber o que é objetivamente real. Uma sociedade democrática tem de quebrar barreiras intrínsecas a seu próprio desenvolvimento − pobreza, ignorância, injustiça. Para isso, precisa de ciência. A necessidade de combinar os trabalhos teórico e prático está no cerne do projeto de economia humana. Eles devem sempre estar bem articulados. O Fórum Social Mundial de 2009, em Belém, no Brasil, reuniu ativistas e pesquisadores em torno da ideia de combinar demo- cracia e ciência. Nosso projeto baseia-se em uma conversa entre experimentos sociais bem-sucedidos em muitas partes do mundo e em reflexões teóricas em várias línguas. Por isso, ao publicar o livro The human economy, ficamos empolgados sociol. antropol. | rio de janeiro, v.09.02: 665 | rio de janeiro, antropol. sociol. registros de pesquisa | felipe magaldi

991

por saber o que aconteceria quando os falantes de línguas latinas chegassem ao mundo de língua inglesa. Mas não percam seu tempo esperando. Derrubar os compartimentos linguísticos da sociedade mundial é um processo lento. Talvez essa seja uma das justificativas para o inglês ser uma língua mundial.

Fazedores e tomadores de dinheiro Oswald Spengler (1991) afirmou que o poder de separação e de despersonali- zação dos números e do dinheiro foi fundamental para nossa compreensão da história da civilização. Para os antigos gregos, número era magnitude, a essên- cia de todas as coisas perceptíveis aos sentidos. Para eles, a matemática esta- va preocupada com a medição no aqui e agora. Tudo isso mudou com René Descartes, cuja nova ideia numérica foi a função – um mundo de conexões entre pontos num espaço abstrato. Assim, dominou uma apaixonada tendência faustiana para o infinito, casada com formas matemáticas abstratas que se libertaram da realidade concreta, para melhor a controlar. Na vida econômica, houve uma guinada paralela entre pensar em termos de bens e pensar em termos de dinheiro. Quando um homem de negócios assina um papel para mobilizar forças remotas, esse gesto mantém uma relação abstrata com o po- der do trabalho e do maquinário, só assumindo a forma de números monetários num processo retroativo de contabilidade. Pensar em dinheiro gera dinheiro. Transforma o mundo em sujeitos e objetos – alguns homens de dinheiro e aqueles que eles exploram como tra- balhadores, consumidores ou pequenos proprietários. Você pode se juntar à força do dinheiro, mas a maioria das pessoas faz parte de suas vítimas. Existe uma diferença crucial entre como os “mestres do universo” abordam o dinhei- ro e os hábitos das pessoas que têm muito pouco dele. Estas últimas o consi- deram cuidadosamente como medida, enquanto os primeiros entendem que seu potencial é menos tangível. Precisamos distinguir, portanto, entre partici- pantes ativos no que Spengler chamou de a força do dinheiro e o resto. Vamos chamá-los de “fazedores” e “tomadores” de dinheiro. Existem duas modificações nessa grosseira divisão. Primeiro, fazedores de dinheiro não operam em um mundo próprio – ambos fazem o mercado e têm que aceitá-lo. Segundo, apos- tar em grande e pequena escala reduz o contraste. Para as pessoas que não são ricas, fazer apostas substitui o papel de espectador passivo pela partici- pação ativa na força do dinheiro, mesmo se elas perderem (e algumas vezes ganharem). Os fazedores de dinheiro, pelo menos segundo Frank Knight (1921), foram capazes de distinguir entre ameaças futuras que são calculáveis (risco) e aque- las que não são (incerteza). Enquanto para você e para mim um celeiro incen- diando é um desastre imprevisível, companhias de seguro podem avaliar a possibilidade de um evento como esse e compartilhar o risco entre aqueles dispostos a pagar um prêmio. Esse princípio elementar foi esquecido no recen- a psicanálise contra a parede: entrevista com gilberto velho

992

te boom de crédito quando, mais notoriamente, o gigante de seguro AIG assumiu responsabilidades que seus ativos não poderiam cobrir num acidente. Os bancos de investimento chegaram a se achar invencíveis, e o capita- lismo ocidental assumiu uma forma insustentável. Verdades consolidadas es- pecialmente em mercados imobiliários foram esquecidas, como “tudo o que sobe, desce”, na pressa por supersalários e bonificações. A crença na eficiência do “livre mercado”, reproduzida por um exército de economistas, jornalistas e políticos, assumiu o comando, especialmente na classe dos fazedores de dinhei- ro. Gillian Tett (2009) conta como foi denunciada como antipatriota por figuras importantes do centro financeiro de Londres e por seus patrões do Financial Times ao publicar dúvidas sobre a solidez do mercado de derivativos de crédito.

Uma nota sobre apostas e religião Para entender a força social da religião, temos que entrar nas mentes dos crentes. Pesquisar a fonte do poder do dinheiro é como perguntar como Deus nos faz acreditar nele. É claro que nós o inventamos, assim como inventamos o dinheiro. Como tudo o que podemos saber é o passado, por que alguém acei- taria a garantia de um futuro incognoscível? Mas nós aceitamos, porque temos que aceitar – a fé é a cola que une o passado e o futuro no presente. Simmel (1978) sugeriu o motivo por que o dinheiro poderia fazer essa reivindicação espúria. Como todas as transações que desejamos calcular são feitas por meio do dinheiro, elas parecem ser mais estáveis do que as outras, embora saibamos que isso não é verdade. A margem do rio parece ser sólida, mas consiste em depósitos em movimento lento feitos pela rápida movimentação da água. O físico sabe que as partículas estão se movendo; mas se estamos nos afogando, nos contentamos com sua relativa estabilidade. A maioria das pessoas reluta em adotar novas abordagens para o di- nheiro. O dinheiro convencional lisonjeia nossa sensação de autodeterminação: ago., 2019 ago., –

com um pouco, já podemos exercer poder sobre o mundo. No entanto, há algum consolo na noção de que o dinheiro não está sob nosso controle. O fato de encarnar uma força exógena de necessidade, de maneira análoga ao número, 678, mai. 678, – sustenta a clareza do julgamento e da ação, quando, de outro modo, o mundo ficaria assustadoramente em aberto. Existe um paralelo com a escravidão.4 As pessoas sentem que o mono- pólio da moeda nacional deve ser inevitável, pois ninguém a escolheria livre- mente. Aceitar o fato de que existem alternativas a isso revela o absurdo de termos desperdiçado a vida com um sistema que não traz recompensas. Então nós nos agarramos ao que conhecemos como a única possibilidade. Falamos muito sobre querer ser livre, mas escolhemos a ilusão da liberdade sem sua real responsabilidade. Esse é o motivo de preferirmos que o dinheiro não seja da nossa própria responsabilidade. Nós o gastamos, mas nunca temos o sufi- ciente porque “eles” o mantêm escasso. Esse é o fundamento subjacente pelo sociol. antropol. | rio de janeiro, v.09.02: 665 | rio de janeiro, antropol. sociol. registros de pesquisa | felipe magaldi

993

qual os esquemas sensatos de dinheiro do tipo “faça você mesmo” têm baixa adesão. Um excelente projeto para circuitos de troca utilizando moedas comu- nitárias não é suficiente. As pessoas precisam comprar a ideia; e isso envolve confrontar suas mais profundas crenças. A racionalidade funciona melhor para o passado, como racionalização. O futuro é incognoscível, mas as sociedades modernas treinam seus membros na expectativa de o controlar. O cálculo preciso dos resultados futuros foi a principal causa do colapso de 2008. Aplicar a razão para explicar eventos pas- sados recorrentes é o método científico. A extrapolação do passado para o futuro só funciona se estiverem envolvidas constantes, e a economia de mer- cado não é nada senão contínua mudança. Conhecimento e experiência podem nos ajudar a gerir futuros incertos. Apostar é uma forma de adquirir tal expe- riência. Eu comecei a apostar em cavalos quando tinha 12 anos, para o caso de fracassar nos exames visando às profissões liberais (Hart, 2013). Isso foi um dos pilares das minhas finanças pessoais na universidade. Parece pouco ve- rossímil agora que sobrevivi, ainda menos porque prosperei um pouco. O que me salvou de meu sistema formal de apostas foi meu empiricismo. Eu sabia bastante sobre cavalos. Provavelmente teria feito muito mais dinheiro sem o sistema, mas todos nós precisamos de alguma coisa para nos apoiar. Eu levei esse lado paralelo de apostas para outros campos quando me tornei adulto; mas nunca aposto em alguma coisa que eu não conheça muito bem. Não acei- tei ser inevitavelmente uma vítima da economia de mercado, e isso conse- quentemente moldou minhas excursões na antropologia econômica. Aprendi pela prática. Apostar pode nos ensinar algo sobre dinheiro, e me levou mais tarde a refletir sobre o dinheiro como uma forma de vida religiosa (Hart, 2011a). A religião pertence a um conjunto de termos que também inclui arte e ciência. Ciência, originalmente oposta ao misticismo religioso, agora é contras- tada mais frequentemente com as artes. Se a ciência, simplificadamente fa- lando, é o caminho para conhecer o mundo de modo objetivo e a arte um meio de autoexpressão subjetiva, a religião aborda ambos os lados da relação sujei- to/objeto, por meio da conexão do que está dentro de cada um de nós com algo fora. A religião nos liga a uma força externa, à medida que nos capacita a agir; estabiliza nossas interações significativas com o mundo, fornecendo uma âncora para a nossa volatilidade (Durkheim, 1965). O argumento de Durkheim pode ser assim resumido: o que conhecemos bem é a vida cotidiana, mas ela é sujeita a forças maiores, cuja origem não conhecemos. Desejamos desesperadamente influenciar essas causas desco- nhecidas de nosso destino ou, pelo menos, estabelecer uma conexão com elas. A religião é a tentativa organizada de conectar o conhecido e o desconhecido em nossas vidas, entre um mundo profano da experiência ordinária e um mun- do sagrado extraordinário, localizado fora dessa experiência. Em última ins- a psicanálise contra a parede: entrevista com gilberto velho

994

tância, o que é desconhecido para nós é o nosso ser coletivo na sociedade. Por meio do ritual, cultuamos nossos poderes não realizados de existência com- partilhada, a sociedade, e os chamamos de Deus. O caos da vida cotidiana alcança alguma estabilidade à medida que é informado por crenças sobre os fatos sociais de nossa existência compartilhada. O ritual instila essas repre- sentações em cada um de nós. Roy Rappaport (1999) não acreditava que a religião devesse repousar sobre uma divisão acentuada entre sagrado e profano; nem eu. Para ele, a reli- gião é como nós entramos em contato com a totalidade das coisas (santidade). Agora reconheço as qualidades redentoras do dinheiro e as relaciono à ideia de uma economia humana (Hart, 2017a). Devemos nos juntar às pessoas onde elas moram e descobrir o que elas fazem, pensam e querem. A partir daí, precisamos construir pontes para o dilema comum da humanidade. A ideia de sociedade deve ser estendida via economia para incluir o mundo como um todo. Apostar, visto dessa perspectiva, é uma forma ritualizada de engaja- mento com a sociedade por meio do dinheiro. A diferença entre um apostador de rua e um operador de derivativos de Wall Street (Ayache, 2010) é de grau, não de tipo. Apostar introduz alguém ao dinheiro e aos mercados como um agente que o toma e o faz ao mesmo tempo. Há alguma satisfação nisso, in- dependentemente de perdas e lucros. Muitos jogos de cartas, a dinheiro ou não, oferecem uma experiência similar que, com repetição, pode ter aplicações bem além da mesa de jogos. Fazemos história, mas não sob circunstâncias de nos- sa escolha (Marx, 2017). Eu sou um criador. Então, somos todos criadores (Aya- che, 2008).

O dinheiro revelado por suas crises Um dos privilégios de viver em Paris por duas décadas foi fazer parte do re- nascimento local da sociologia da economia (Vatin & Steiner, 2013). Em nenhum ago., 2019 ago.,

– setor isso foi mais bem desenvolvido do que no campo do dinheiro. Desde que

o Tratado de Maastricht lançou o projeto de união monetária europeia, em 1992, um grupo interdisciplinar de estudiosos – economistas institucionais, histo- 678, mai. 678,

– riadores, filósofos, sociólogos e antropólogos – realizou seminários regulares sobre dinheiro. Numerosas publicações proeminentes emergiram a partir dis- so, notavelmente La monnaie souveraine, de Michel Aglietta e André Orléan (1998), e os dois magistrais volumes de Bruno Théret (2008) que deram a essa seção seu título. Nassim Nicholas Taleb é um filósofo nativo e um operador financeiro bem-sucedido. Seu livro The black swan (Taleb, 2007) argumenta que eventos inesperados de grande importância desempenham um papel dominante na história dos mercados. Eventos de difícil previsão e de alto impacto são mais significativos do que as flutuações rotineiras. A probabilidade desses eventos raros não é computável utilizando métodos científicos, mas podemos nos pro- sociol. antropol. | rio de janeiro, v.09.02: 665 | rio de janeiro, antropol. sociol. registros de pesquisa | felipe magaldi

995

teger contra eles. Vieses psicológicos tornam a maioria das pessoas cega para a incerteza e ignorante para o papel fundamental de raros eventos na história. Elie Ayache (2010), um operador francês em Nova York, questionando Taleb, argumenta que não vale a pena calcular tendências nos preços de mer- cado ou mesmo se proteger contra eventos raros. O cisne não é preto nem branco, mas uma folha em branco na qual o operador proativo escreve seu derivativo. Ayache quer restabelecer a contingência sobre a probabilidade, po- sição pela qual tenho certa simpatia. Tendo perdido meu avô, mãe e irmã para probabilidades estatisticamente remotas em hospitais do National Heal- th Service, do Reino Unido, não preciso lembrar o poder da contingência. Cer- ta vez, uma cirurgia de próstata me foi recomendada, e eu a recusei, alegando que poderia acabar morto. Ao ser informado de que a chance era pequena, respondi que sim, mas nesse caso, estaria morto. Em um pequeno artigo, I am a creator (Ayache, 2008; a referência é pa- ra o filme dos irmãos Coen, Barton Fink), Ayache traz uma abordagem dialética ao modelo Black-Scholes-Merton que a maioria dos operadores usa quando avalia opções. O que importa, ele diz, é fazer o mercado enquanto estiver nele, ser um “operador dinâmico”. Tal pessoa

pode ao mesmo tempo ser um autor original e ainda estar no mercado… Criado- res de mercado são pensadores e criadores… Porque eles criam mercados, pre- cisam determinar os preços como resultados dos modelos de precificação. No entanto, como o mercado é o exterior que eles devem sempre alcançar, eles tam- bém precisam que os preços sejam os insumos de seus modelos ... Um criador de mercado só determina um preço à medida que o mercado o faz.

Fortune’s formula, de William Poundstone (2005), que tem por subtítulo A história não contada do sistema de apostas científicas que venceu os cassinos e Wall Street, abrange a última metade do século XX, incluindo Claude Shannon, que inventou a teoria da informação no Bell Labs e apostava em ações, a máfia dos golpes das corridas de Chicago, o famoso Paul Samuelson e seu livro didático, a cruzada de Rudy Guiliani contra as informações privilegiadas, o esquema de títulos podres de Milliken e, claro, Black-Scholes-Merton cuja firma, Long-Term Capital Management, afundou na crise financeira de 1997-1998. Três histórias são correntes há muito tempo nos círculos de fazedores de dinheiro: a crença dos economistas de que você não pode vencer os mer- cados; a crença de que você pode fazê-lo com conhecimento privilegiado (o que é ilegal); e uma terceira que estabelece que os métodos científicos garan- tem lucros constantes de apostas nos preços dos ativos. Poundstone mostra que os ricos dependem fortemente de conhecimentos e contatos pessoais, mesmo que as disciplinas acadêmicas relevantes representem a sociedade co- mo sendo governada por forças impessoais. Os pais de classe média protegem seus filhos da experiência direta com o dinheiro; mas os pais pobres não se podem dar ao luxo de isolar seus filhos dessa vivência. a psicanálise contra a parede: entrevista com gilberto velho

996

Paul Samuelson (2009 e várias edições posteriores à original, de 1948) apresentou seu livro didático de sucesso, Economics, com uma parábola: 10 milhões de nova-yorkinos vão dormir todas as noites confiantes de que a eco- nomia ainda estará lá na manhã seguinte; mas como eles sabem? J. K. Galbrai- th (1975) conta a história de um membro da administração de Kennedy sendo recompensado com a direção de um banco. Depois de sua primeira reunião, ele foi visto andando por Wall Street, entorpecido e murmurando “Eu nunca soube. Eu nunca soube”. O que ele não sabia? Galbraith supõe que ele aprendeu o primeiro princípio do sistema bancário moderno: pegar dinheiro de uma parte e emprestá-lo a outra, depois persuadir ambas de que ainda o possuem. The wonderful wizard of Oz, de Paul Baum (1900), é uma alegoria do le- vante populista dos empobrecidos sul e oeste americanos contra o capital do leste nos anos 1890. Oz = onça [ounce] = ouro (padrão) = preços agrícolas de- preciados. Talvez o dinheiro seja realmente um fantasma invocado por magos inescrupulosos. Se assim for, a maioria de nós prefere não saber. Preferimos acreditar que estamos em terra firme, que o dinheiro com o qual vivemos é real e não irá embora. Na falta disso, pagamos especialistas para cuidar do problema e somos tranquilizados pelo seu jargão técnico. Em ambos os casos, a compreensão é desnecessária. A inflação é perturbadora porque, quando o valor do dinheiro se recusa a se manter estável, o que mais há para confiar? Para as massas e até para os ricos, o medo do desconhecido gera uma busca paralela por certeza nos assuntos monetários (Ouroussoff, 2010). A maioria das pessoas se apega às suas próprias visões malformadas do sistema monetário. E se recusa a considerar alternativas viáveis ao trabalho por salários e pensões, tais como apostas científicas ou circuitos comerciais do tipo “faça você mesmo”. Os capitalistas de sucesso recorrem a grandes re- servas e fazem pequenas apostas com frequência; mas a maioria dos aposta- dores tenta ganhar muito ocasionalmente e perdem − daí o dogma de que a ago., 2019 ago.,

– banca ou cassino sempre ganha. Crenças como essa ajudam a tornar o normal

parecer inevitável. 678, mai. 678,

– Comunidade e moedas complementares Agora me volto para meu engajamento com dinheiro enquanto antropólogo econômico nas últimas três décadas. O dinheiro tem sido uma obsessão por toda a minha vida. Sempre tive mais vontade de entendê-lo do que ter muito dele. Em meados da década de 1980, quando fui convidado para dar uma pales- tra pública, escolhi a questão do dinheiro. Trouxe muita experiência pessoal para o assunto, mas não a expus na apresentação oficial. Chamei-a de Cara ou coroa, referindo-me aos dois lados da moeda, um representando o dinheiro como um aspecto da sociedade política, o outro seu valor como mercadoria de troca. Meu argumento era que os dois lados, Estado e mercado, eram indispen- sáveis ao dinheiro, mas havíamos sido submetidos a oscilações tendenciosas sociol. antropol. | rio de janeiro, v.09.02: 665 | rio de janeiro, antropol. sociol. registros de pesquisa | felipe magaldi

997

entre teorias que enfatizavam um lado, excluindo o outro. A palestra foi publi- cada em Man (Hart, 1986). Nela, fiz referência à invenção dos LETS (Local Exchange Trading Syste- ms) na Columbia Britânica no início dos anos 1980. Essa pode ter sido a primeira referência aos LETS em uma revista acadêmica. As moedas comunitárias são circuitos comerciais locais que utilizam sua própria forma de dinheiro e são fe- chados a não membros. Moedas complementares são geralmente emitidas por empresas capitalistas para vincular clientes a seus produtos (milhas aéreas, cartões de fidelidade e cupons). As moedas comunitárias (abreviando, CCs) po- dem ser complementares quando são aceitas como parte do pagamento pelas empresas listadas. Todas as CCs (ver Blanc, 2011) aumentam o poder de compra com pouco ou nenhum custo. As noções de comunidade ou lealdade são basea- das nas transações econômicas cotidianas. No LETS, membros individuais emi- tem o dinheiro sempre que aceitam a responsabilidade pela dívida contraída ao receber um serviço sem pagamento imediato. A participação ensina às pessoas uma atitude mais responsável em relação à vida econômica, aprendendo a ge- renciar crédito e dívida de novas maneiras. Na década de 1990, me interessei mais e conheci Michael Linton, funda- dor do LETS, em um pub em Manchester. Eu havia pensado no LETS como um circuito de comércio alternativo independente, em plena fuga da economia capitalista dominante, às vezes assediado por agências governamentais, mas incorporando o espírito do socialismo utópico em pequenas comunidades locais. Michael rapidamente esboçou uma visão diferente do potencial do LETS. Ele o via em cidades como Manchester ligando indivíduos a vários circuitos de troca, refletindo seus diferentes interesses. Esses, por sua vez, seriam totalmente integrados aos regimes normais de comércio e impostos. Avanços na tecnologia da informação (a World Wide Web havia sido lançada nessa época) trariam a revolução do plástico para o LETS. Nós poderíamos fazer nosso próprio dinhei- ro e mercados dentro do capitalismo, mas em uma base ética muito diferente. Me mudei de Cambridge para Paris. O primeiro resultado foi um livro sobre dinheiro (Hart, 2000). Me perguntei o que interessaria às futuras gerações sobre nós; no auge da explosão das pontocom, a resposta óbvia foi: os nossos esforços para iniciar a revolução digital. Meu tema era sua relação com a mu- dança das formas de dinheiro e troca. Argumentei que mercado e dinheiro têm características redentoras, especialmente se organizados em bases não capi- talistas. Refletindo a ideologia neoliberal e tecnoutópica da época, tomei os Estados como ameaça maior do que o capitalismo. Isso contradizia minha conclusão anterior de que os Estados e os mercados são indispensáveis ao dinheiro (posição à qual voltei mais tarde, como neste artigo). Argumentei, então, que o dinheiro eletrônico permite uma mudança de poder de seus pro- dutores para os usuários (Dodd, 2005: 401-406; 2014: 305-309). Referi-me exten- sivamente ao LETS, mas ainda duvidava de que circuitos de troca em pequena a psicanálise contra a parede: entrevista com gilberto velho

998

escala, afetando apenas algumas pessoas nos países ricos, pudessem enfrentar os problemas econômicos do mundo. Michael Linton, seu parceiro Ernie Yacub e eu concordamos em começar a escrever um livro juntos sobre LETS. Eu queria ter um acesso mais próximo à experiência teórica e prática do que eles agora chamavam de “dinheiro aber- to”,5 e eles imaginaram que eu poderia trazer algumas habilidades de escrita para o projeto. Esporadicamente, em 2000-2002, começamos a trabalhar juntos e trocamos ideias e materiais para um livro, “Common wealth: building com- munity and economic democracy with open money”. Isso não deu em nada, mas me diverti e aprendi muito participando do mundo deles. Acabamos envolvidos no Japan Open Money Project e em uma revista ligada à segunda maior agência de publicidade do Japão, a Hakuhodo. Eu me perguntava se as revoluções liberais que inauguraram o mundo moderno, com- binando firmas capitalistas com movimentos populares nos Estados Unidos, França, Itália e Alemanha, poderiam ser revividas hoje. Se assim fosse, o Japão seria um dos principais candidatos a essa revolução. Encontrei membros de seu New Association Movement (NAM) e me aproximei de Makoto Nishibe, um economista cujo trabalho sobre LETS e dinheiro do trabalho (Nishibe, 2006) achei inspirador. Mais tarde, ajudei-o a traduzir seu maravilhoso livro, The Enigma of Money: Gold, banknotes, bitcoin (Nishibe, 2016). Kojin Karatani (2005) também foi uma influência. Baseando-se em Kant e Marx, ele defende uma estratégia de resistência discreta ao capital, combinando LETS (Linton) e boi- cotes de consumidores (Gandhi), um panteão com o qual poderia me identifi- car. Ambos são menos vulneráveis à repressão violenta do que greves e mani- festações. Nossos esforços não se limitaram ao Japão. Michael e eu participamos do evento “Wizards of OS” − open source, evocando o clássico populista de Baum (1900) −, em Berlim, onde exploramos a relação entre dinheiro aberto e o mo- ago., 2019 ago.,

– vimento de software livre/open source. Michael buscou uma variedade impres-

sionante de links, desde pequenos pagamentos eletrônicos internacionais na Comissão Europeia a escolas em Londres e a cena emergente e expansiva de 678, mai. 678,

– clubes de troca na Argentina − essa era a época da crise do peso e a ascensão do escambo (Hart, 2002a). Fiz consultoria para o ministério da cultura francês sobre a economia informal. O Le Monde argumentou que os sistemas locais de intercâmbio (SEL) eram a face mais promissora da socialdemocracia. Assim, o movimento em direção ao dinheiro aberto parecia estar ganhando ritmo depois do milênio. A diferença estava diminuindo entre os problemas que enfrentamos como humanidade e nossas tentativas de abordar esses problemas por meio de iniciativas baseadas em LETS. Em 2003, fiz o discurso de abertura em uma conferência em Bangkok sobre “Comércio de produtos orgânicos”, organizada pela Federação Interna- cional de Movimentos da Agricultura Orgânica (IFOAM). O organizador malaio sociol. antropol. | rio de janeiro, v.09.02: 665 | rio de janeiro, antropol. sociol. registros de pesquisa | felipe magaldi

999

lera The memory bank e achou que eu poderia resolver seu problema mais ur- gente. Certificar alimentos como orgânicos era caro, e só a Europa e os Estados Unidos tinham consumidores dispostos a pagar pelos custos mais altos. Mas entrar nesse mercado era difícil: 95% do comércio internacional de produtos orgânicos era fornecido por cinco empresas lideradas pela Nestlé. Os membros da IFOAM vieram do Japão, Alemanha, estado de Nova York e Tailândia, onde moedas comunitárias e mercados de faça-você-mesmo6 já haviam florescido. Talvez a IFOAM possa promover uma moeda verde global vinculada a redes estabelecidas para o comércio justo e orgânico. Poderia ser chamada de eco − o dinheiro das pessoas para uma economia ecológica. As moedas comunitárias, os pequenos mamíferos peludos do nosso mundo, vivem apenas nas fendas deixadas pelos dinossauros, os Estados e corporações que engordam com o dinheiro convencional. Não sabemos como podem funcionar em redes virtuais remotas. Uma moeda baseada em valores alimentares e orgânicos − proteção contra forças de mercado desconhecidas, integração da produção e do consumo, da cidade e do campo − poderia se tornar um produto popular essencial da economia alternativa. Nós comemos regularmente; a comida é um símbolo importante de outros valores; controlar o abuso do mercado de alimentos tem virtude econômica; e assim por diante. A confiança mantida entre uma comunidade de adeptos poderia reduzir os custos da certificação. Como essa moeda alimentar pode se desenvolver em direção ao comércio internacional justo? Fiz algumas sugestões com base na prática japonesa. A rede de LETS online de Nishibe, “Q”, já havia realizado algum limitado comércio internacio- nal. Isso incluía o comércio justo de bananas orgânicas de uma ilha localizada entre o Japão e as Filipinas. Alguns membros importavam azeite e sabonetes palestinos por intermédio de um grupo de ação chamado Power to the people. Produtos orgânicos como arroz e café já eram trocados entre consumidores urbanos e produtores de aldeias no próprio Japão. O discurso foi publicado em uma revista ecológica como “Comércio orgânico: rumo a uma moeda verde global” (Hart, 2004a). Essa foi uma borboleta que não desencadeou um furacão. Nós três nos esforçamos para promover maior igualdade e liberdade, mostrando a milhares de pessoas como organizar circuitos fechados de inter- câmbio modelados no LETS. A maioria dos habitantes do mundo quase não tem nenhum dinheiro para gastar. Quanto melhoraria se nós fizéssemos nos- so próprio dinheiro e votássemos com ele? Uma nova abordagem do dinheiro era a maneira mais direta de restaurar a participação democrática na socieda- de. Aproveitar o potencial da internet era essencial para que esses esforços fossem bem-sucedidos; e Michael dedicou muito esforço ao desenvolvimento do software e da tecnologia para fazer isso acontecer. A tarefa urgente era ligar as moedas comunitárias a sistemas mais amplos. O ideal seria que os bancos fizessem isso, mas por enquanto tínhamos que prosseguir sozinhos. a psicanálise contra a parede: entrevista com gilberto velho

1000

Um provedor de serviços monetário adequado permitiria que os usuários criassem seus próprios sistemas no espaço disponível e lhes daria acesso a outros sistemas similares. Uma moeda comunitária independente é como um rádio ou TV que só pode sintonizar uma estação, um computador com apenas um programa. O suporte ao comércio entre pessoas que mantêm suas contas em diferentes moedas exige que os registros se comuniquem entre si por meio de uma rede de compensação cruzada. Isso seria operado principalmente pela Internet, usando seu próprio sistema de nomes de domínio monetário, Money Domain Naming System (MDNS) em uma hierarquia com domínios nacionais responsáveis pelo registro de subdomínios regionais e comunidades locais que fizessem. Essa facilidade seria aprimorada por sistemas de cartão inteligentes “multi-CC”. Os cartões já produzidos poderiam transportar até 15 moedas dife- rentes, offline e anônimas, e foram projetados para facilitar a adoção de ccs pelo setor de varejo. A combinação de sistemas de compensação de registro cruzado e de sistemas de cartão inteligente criaria uma plataforma para pra- ticamente qualquer moeda. Quando um núcleo de protocolos de plataforma cruzada pudesse definir a plataforma integrada de qualquer aplicativo, ele se tornaria um software de código aberto; em outras palavras, dinheiro aberto. Mas não havia ninguém preocupado com o estabelecimento de padrões. Há um paradoxo no uso dos termos “aberto” e “fechado”. Para a maioria das ccs, o princípio definitivo é que um circuito de troca é fechado, enquanto os mercados que usam dinheiro convencional são redes abertas de extensão ilimi- tada, de modo que o dinheiro escoa para centros de poder invisíveis, e nada po- demos fazer a respeito. A ideia central do LETS era promover a produção interna, em vez do padrão de importação/exportação típico dos mercados convencionais. Mas os circuitos comerciais comunitários podem ser ampliados para uma asso- ciação online muito maior. O controle de redes de circuito fechado pode ser com- pensado por uma abordagem de software livre para o software necessário a operar ago., 2019 ago.,

– o dinheiro da comunidade. Essa dialética da comunidade local e da rede global

tem sido uma característica constante da abordagem de Michael Linton; e esta- mos apenas a menos de três décadas do início da internet pública. 678, mai. 678, –

Da burocracia controladora à democracia de base O colapso do capitalismo nacional deveria representar uma oportunidade pa- ra as moedas comunitárias; mas muitas delas inconscientemente mantêm sua forma básica como uma unidade territorial autônoma e um comitê de volun- tários atuando como seu banco central. A abordagem da “economia humana” expressa uma visão econômica que potencialmente preenche a lacuna entre a vida cotidiana (o que as pessoas sabem) e a crise comum da humanidade, que é inevitavelmente impessoal e está além do ponto de vista do ator (o que elas não sabem). Pequeno pode ser bonito, e uma preferência por iniciativas baseadas em realidades sociais locais é incontestável, mas burocracias de lar- sociol. antropol. | rio de janeiro, v.09.02: 665 | rio de janeiro, antropol. sociol. registros de pesquisa | felipe magaldi

1001

ga escala, sejam governos ou corporações empresariais, também são essenciais para alcançarmos algum grau de democracia econômica. Portanto, temos que construir pontes entre os interesses locais e o novo humano universal, a so- ciedade mundial. Ser humano é não ser apenas uma personalidade viva, mas alguém que depende e deve entender as condições sociais impessoais. A sociedade mundial é deprimentemente descoordenada, e o impulso para a auto-organização local é forte em todos os lugares. A resistência à so- ciedade desigual que construímos muitas vezes encoraja a difamação das ins- tituições burocráticas dominantes − o Estado e o capitalismo são os favoritos − em favor da promoção de grupos e redes auto-organizados de pequena esca- la. No entanto, é inconcebível que qualquer sociedade futura neste século pos- sa dispensar as principais formas sociais que nos trouxeram até esse ponto. Como, então, os Estados, as cidades, o dinheiro e o resto poderiam ser seleti- vamente combinados com as iniciativas dos cidadãos para promover uma so- ciedade mundial mais democrática? Combinar o fluxo da democracia de base com a rigidez e a longevidade de grandes burocracias é diabolicamente difícil; mas essa estratégia oferece perspectivas mais duradouras para o sucesso do que seguir sozinho com alguns poucos companheiros de viagem. Eu nunca vi uma iniciativa de base que pudesse lançar satélites de comunicação, menos ainda mantê-los funcionando. Os armadores de Nantes e Bordeaux forneceram forte apoio à revolução francesa, os industriais de Milão e Turim à revolução italiana (Hart, 2018). O experimento queniano líder mundial em dinheiro móvel, M-pesa, foi lançado por uma subsidiária da Vodacom. A noção de economia popular surgiu na América Latina desde os anos 1990, trazendo grupos díspares (camponeses, trabalhadores urbanos informais, sindicatos) para coalizões com governos pro- gressistas. Como forma de promover a economia social e solidária, o governo brasileiro sob o comando de Lula introduziu um sistema de bancos comunitá- rios de desenvolvimento com mais de 50 filiais enquanto contratava a IBM para converter burocracias públicas para o Linux. Esses bancos combinam mi- crocrédito e moedas comunitárias com forte contribuição democrática local. O governo do Uruguai patrocinou o circuito 3C de troca e crédito para PMEs, em que instalações federais e repartições fiscais locais ancoram a circulação de faturas não pagas como moeda, aceitando-as no pagamento de contas. Todos devem pagar por telefones e impostos locais. Meu último exemplo conheço em primeira mão. Acelerador de Pagamento é o nome de um sistema de validação de fa- turas eletrônicas. Foi uma criação de Neville Kerdachi, um libanês nascido na África do Sul, agora na casa dos 70 anos. Ele era gerente no porto de Durban, comprando em dinheiro e com desconto faturas de remessas (contra atrasos no pagamento e o risco de falta de pagamento). A nova empresa está integra- da ao sistema bancário da África do Sul como uma plataforma que liga com- a psicanálise contra a parede: entrevista com gilberto velho

1002

pradores, vendedores e bancos. Seu presidente é meu amigo, Vishnu Padayachee. Uma vez que uma fatura tenha sido colocada no sistema pelo vendedor e re- conhecida pelo comprador, ela é validada pelo banco, que pode emitir imedia- tamente até 80% de seu valor para o provedor de serviços, aumentando o flu- xo de caixa de uma empresa, permitindo a compra de mais estoque, construin- do equilíbrio de caixa etc. Isso resolve o problema do pagamento lento de grandes compradores a pequenos fornecedores, ao mesmo tempo em que oferece ao primeiro um método mais barato e eficiente para lidar com suas próprias faturas. O sistema pode ser instalado em qualquer lugar do mundo e ganhou aprovação e interesse do Banco de Compensações Internacionais e do Banco Mundial. Essa inovação atende às necessidades tanto de um grande número de PMEs (existem 200.000 PMEs negras na África do Sul) quanto de grandes corpo- rações como Nestlé e Walmart. Administrar pequenas contas é sempre traba- lhoso e gradual, enquanto um contrato com uma grande corporação pode ajudar a financiar a construção da rede de faturas eletrônicas. No comércio global da internet, as operadoras mais bem sucedidas (Amazon, iTunes) combinam best- -sellers de grande sucesso com um milhão de itens pequenos (a cauda longa) que compõem metade da receita total da Amazon. Escrevi longamente sobre as armadilhas do controle corporativo da sociedade mundial (por exemplo, Hart, 2005b, 2015c). No entanto, as necessidades das pequenas empresas não são mais bem satisfeitas pela formação de redes de organizações semelhantes em um nível apartado das grandes empresas e do governo. Geralmente são necessárias inovações de alta tecnologia que estão além do alcance das redes de base. Mes- mo assim, os benefícios para os pequenos operadores podem ser substanciais. A história do LETS e da IFOAM fornecem contraexemplos. Uma abordagem de economia humana deve, de alguma forma, estender o alcance e a compreensão da vida nas bases pela extensão do local para o ago., 2019 ago.,

– global. Não podemos chegar instantaneamente a uma visão geral, mas devemos

nos engajar mais concretamente com o mundo que está além das instituições que asseguram nossos direitos e interesses locais. Mercados e inovações em 678, mai. 678,

– dinheiro, como todos os proponentes do ccs sabem, são particularmente ade- quados para esse propósito, uma vez que abrangem os extremos da experiên- cia humana. A explosão de dinheiro, mercados e comunicações nas últimas décadas foi e é profundamente perigosa; mas também nos aproximou de uma sociedade mundial baseada em princípios humanos universais, expressos pe- la mídia universal. Como Simmel (1978) observou, o dinheiro é o símbolo con- creto de nossa habilidade humana de construir uma sociedade universal, e as moedas comunitárias são o oposto disso. Uma federação de moedas limitadas do tipo proposto por Michael Linton é claramente o caminho a percorrer, mas, quando eu estava ativo no movimen- to, alguns ativistas dispersos careciam dos recursos necessários para uma co- sociol. antropol. | rio de janeiro, v.09.02: 665 | rio de janeiro, antropol. sociol. registros de pesquisa | felipe magaldi

1003

ordenação eficaz em larga escala. Ccs tomaram a forma de unidades defensi- vas, oferecendo um refúgio temporário à devastação do capitalismo. Tais gru- pos enfatizavam a confiança pessoal entre os membros, a moralidade compar- tilhada em contraste com a impessoalidade cruel do lado de fora. Alguns ba- searam sua moeda no tempo (dólares de tempo, horas de Ithaca), colocando assim distância entre seu circuito e a economia nacional. Grande parte do movimento ccs permanecerá em pequena escala e face a face. Mas as relações virtuais a distância e a interação face a face não são divergentes; elas podem se complementar e de fato o fazem. Tanto os proponentes quanto os detratores do dinheiro do tipo faça-você- -mesmo geralmente se ocupam em saber se os circuitos comerciais têm sucesso comercial e por quanto tempo. Mas eles são também uma ótima fonte de educa- ção política para os participantes. A marcha de Londres contra a guerra do Ira- que, a Praça Tahrir e o Occupy Wall Street não cumpriram o que prometeram; mas eles mudaram minha perspectiva política e a de muitas pessoas. Experi- mentar a política das multidões, assim como as redes auto-organizadas, faz a diferença na aparência do mundo. Pensar no dinheiro como uma coisa é intrín- seco às sociedades com moedas monopolistas nacionais. Essas abordagens al- ternativas ao dinheiro abrem os olhos de seus membros para novas possibilida- des. Isso, mais do que sua fraqueza organizacional, é o legado progressista de iniciativas como o LETS.

Dinheiro para uma economia humana Certa vez, publiquei um pequeno artigo no The Big Issue, um jornal produzido pelos sem-teto na Grã-Bretanha e vendido do lado de fora dos supermercados (Hart, 2010a). Fui convidado a contribuir com o “Rei por um Dia” (se você fosse rei e pudesse fazer um decreto, o que seria?):

Se eu fosse rei, faria do dinheiro uma disciplina obrigatória nas escolas. Não há nada de errado com a missão da economia, apenas com os economistas. Todos nós gostaríamos que nossas perguntas sobre a vida econômica fossem respon- didas de maneira confiável e razoável. Mas não podemos encontrar qualquer reflexo de nossas próprias vidas nos modelos e quantidades impessoais publi- cados pelos economistas e pela mídia financeira. Precisamos urgentemente criar maneiras de pensar e falar sobre a economia que façam sentido para as pessoas.

O mercado é democraticamente aberto a todos: tudo o que você precisa é o di- nheiro, e a maioria de nós não o tem suficiente. É uma esfera impessoal manti- da separada de casa − uma zona protegida em que as relações íntimas predomi- nam. Alguns adultos saem para trabalhar, para “fazer” o dinheiro com o qual a unidade doméstica subsiste. A economia doméstica gasta esse dinheiro e reali- za afazeres sem pagamento. Esse é o fundamento moral e prático da sociedade capitalista.

As crianças de classe média pertencem à vida fora do mercado. Sua exposição ao dinheiro é cuidadosamente controlada. Nós compramos para elas coisas que a psicanálise contra a parede: entrevista com gilberto velho

1004

chamamos de presentes. Se elas puserem as mãos em algum dinheiro, ele não estará normalmente relacionado ao trabalho. Na adolescência, a relação com o dinheiro estende-se com ocupações de meio período, mas os ganhos não contri- buem para o orçamento familiar. A infância consiste em adiar nossa relação com o dinheiro; e essa dependência financeira é estendida indefinidamente até a idade adulta jovem. A educação que nossas crianças recebem na escola perpetua sua separação do mundo do dinheiro. Isso deve acabar junto com a divisão eco- nômica que a sustenta.

O poder social do dinheiro vem da fluência de sua mediação entre os extremos da existência humana. Não é suficiente enfatizar os controles que as pessoas já impõem ao dinheiro na sua prática pessoal. Esse é o mundo cotidiano tal como a maioria de nós o conhece. Nós também precisamos de maneiras de alcançar as partes da economia que não conhecemos. Se o dinheiro separa as esferas econômicas e fragmenta a experiência humana, ele também pode unir o que foi dividido. Ajuda o fato de que o di- nheiro é fundamental tanto para a casa como para o trabalho. Os mercados não são apenas sobre abstração universal, mas também sobre essa determina- ção mútua do abstrato e do concreto. Se você tem algum dinheiro, quase não há limite para o que você pode fazer com ele; mas, assim que você compra algo, o ato de pagamento dá uma finalidade concreta à sua escolha. O signifi- cado do dinheiro, portanto, está na síntese que ele promove da abstração im- pessoal e do significado pessoal, da objetivação e da subjetividade, da razão analítica e da narrativa sintética. Seu poder social vem da fluência de sua mediação entre potencial infinito e determinação finita. O dinheiro está intimamente ligado à democracia como um princípio político, porque sua impessoalidade dissolve as diferenças entre as pessoas. Então votamos com o nosso dinheiro sempre que compramos alguma coisa. Mas esse sistema de votação é vastamente desigual. O dinheiro pode ser con- cebido como um terreno durável para se sustentar, ancorando a identidade em ago., 2019 ago., – uma memória coletiva que ele simboliza, ou como um processo mais criativo em que cada um de nós gera o crédito pessoal que nos liga à sociedade. Quan- do a maioria das pessoas perceber que o dinheiro é tanto uma dimensão da 678, mai. 678, – nossa própria personalidade, como a linguagem, e a cola social que nos per- mite ampliar nossos horizontes, talvez destronemos o Deus arcaico do capita- lismo no qual ele se tornou. Ser humano envolve participar dos círculos mais amplos da humanida- de, na sociedade mundial. O dinheiro abre as sociedades locais para interde- pendência com os estrangeiros, mas a pressão para reafirmar o controle local persiste. Uma economia humana deve procurar construir pontes entre dife- rentes níveis de associação; portanto, os mercados e o dinheiro são intrínsecos a uma economia humana. A dimensão social do dinheiro não está na separação das esferas locais e globais, mas no movimento entre elas. O dinheiro − algumas formas mais do que outras − reflete nossa humanidade universal enquanto sociol. antropol. | rio de janeiro, v.09.02: 665 | rio de janeiro, antropol. sociol. registros de pesquisa | felipe magaldi

1005

nos ancora no cotidiano. Todos os mercados são mercados mundiais, mas nem todo dinheiro é dinheiro mundial. Tendemos a pensar no dinheiro como uma coisa, um monopólio local. Mas essa situação é historicamente anômala − o símbolo central do capitalis- mo nacional apenas desde meados do século XIX. O dinheiro tomou muitas formas, e tem sido comum a circulação paralela de várias. Desde que o dólar dos EUA se desvinculou do ouro, um mundo de múltiplas moedas retornou. Todos nós podemos agora participar de experimentos monetários em todos os níveis, do local ao global. Talvez eles nos ensinem como fazer sociedades mais plurais e igualitárias. Uma economia humana mediaria os dois pares − Estado e mercado, ca- sa e mundo − que enquadravam a forma social dominante do século passado, o “capitalismo nacional”. Nossa crise econômica hoje é o colapso desse siste- ma. Em vez de opormos os polos de ambos os pares, devemos tentar sintetizá- -los por meio da focalização pragmática do que as pessoas fazem e desejam. Três coisas contam em nossas sociedades − pessoas, máquinas e dinheiro. Mas o dinheiro compra as máquinas que controlam as pessoas. Nossa tarefa polí- tica − era a de Marx (1970) também − é reverter essa ordem; não para ajudar as pessoas a escapar das máquinas e do dinheiro, mas para encorajar seu desenvolvimento por meio de máquinas e dinheiro. Revoluções são baseadas em contrastes digitais, mas as sociedades humanas são construídas em pro- cessos analógicos. O dinheiro é um grande equalizador, mas também alimenta a desigual- dade. O dinheiro como memória liga indivíduos a suas comunidades; passado, presente e futuro; fato e ficção; local e global (Hart, 2000). Não podemos em- poleirar-nos em um polo só; em vez disso, devemos aprender a combinar dia- leticamente os dois lados na sociedade. A troca de significados pela linguagem e a troca de objetos pelo dinheiro estão convergindo agora em uma única rede de comunicações, a internet. A revolução digital pode fazer avançar a conver- sação humana sobre um mundo melhor. O dinheiro é como podemos aprender a ser verdadeiramente humanos.

Recebido 11/4/2019 | Aprovado 29/8/2019 a psicanálise contra a parede: entrevista com gilberto velho

1006 ago., 2019 ago., –

678, mai. 678, –

Keith Hart é antropólogo, diretor internacional do Programa de Economia Humana da Universidade de Pretória. Sua principal pesquisa foi em antropologia econômica, na África e na diáspora africana. Lecionou em várias universidades (Universidade de Yale, Universidade de Chicago) e mais significativamente em Cambridge, onde foi diretor do Centro de Estudos Africanos. Contribuiu com o conceito de economia informal para estudos de desenvolvimento e publicou amplamente sobre antropologia econômica. Dirige o website Memory Bank (também conhecido como dinheiro em um mundo desigual: http://thememorybank.co.uk/keith/). sociol. antropol. | rio de janeiro, v.09.02: 665 | rio de janeiro, antropol. sociol. registros de pesquisa | felipe magaldi

1007

Notas

1 Tradução de Clara Ramos, Nathalia Colodete, Pedro Tei- xeira, Ricardo Coelho e Yasmin Turini (Órgana Oficina de Tradução, UFRJ). Revisão de Pedro Teixeira e Fernando Rabossi. 2 A declaração mais abrangente até o momento é a intro- dução a Hart (2015a), disponível em . Acesso em 10 out. 2018. 3 Disponível em: e . 4 Ver passagem controversa de Hegel (1978) sobre a dialé- tica senhor/escravo em Phenomenology of spirit. 5 Disponível em: . Acesso em 10 out. 2018. 6 Na literatura internacional são conhecidos como do-it- -yourself markets (DYT markets). (N.T).

Referências bibliográficas

Para referências a citações de Hart (2000-2018), ver Apên- dice. Aglietta, Michel & Orléan, André (eds.). (1998). La monnaie souveraine. Paris: Odile Jacob. Ayache, Elie. (2010). The blank swan: the end of probability. New York: Wiley. Ayache, Elie. (2008). I am a creator. Disponível em: . Acesso 10/10/2018 Baum, Paul. (1900). The wonderful wizard of Oz. Chicago: George M. Hill. Blanc, Jérôme. (2011). Classifying “CCs”: community, com- plementary and local currencies’ types and generations. International Journal of Community Currency Research, 15/D, p. 4-10. Dodd, Niggel. (2014). The social life of money. Princeton: Princeton University Press. a psicanálise contra a parede: entrevista com gilberto velho

1008

Dodd, Niggel. (2005). Laundering money. European Journal of Sociology, 46/3, p. 387-411. Durkheim, Émile. (1964) [1893]. The division of labor in so- ciety. Glencoe: Free Press. Durkheim, Émile. (1965) [1912]. The elementary forms of the religious life. Glencoe: Free Press. Galbraith, John K. (1975). Money: whence it came, where it went. New York: Penguin. Hart, Keith. (1986). Heads or tails? Two sides of the coin. Man, 21/4, p. 637-656. Hegel, Georg W. Friedrich. (1978) [1807]. The phenomenology of spirit. Open Library/Galaxy Books. Karatani, Kojin. (2005). Transcritique: on Kant and Marx. Cambridge: MIT Press. Knight, Frank. (1921). Risk, uncertainty and profit. New York: Houghton Mifflin. Kwon, Heonik. (2014). Spirits in the work of Durkheim, Hertz and Mauss: reflections on post-war Vietnam, Jour- nal of Classical Sociology, 14/1, p. 122-131. Laville, Jean-Louis. (2016). L’économie sociale et solidaire: théories, pratiques, débats. Paris: Seuil. Laville, Jean-Louis & Cattani, Antonio David (eds.). (2006). Dictionnaire de l’autre économie. Paris: Gallimard. Marx, Karl. (2017) [1852]. The eighteenth brumaire of Louis Bonaparte. Createspace Independent Publishing Platform. ago., 2019 ago.,

– Marx, Karl. (1970) [1867]. Capital: the critique of political eco-

nomy (3 v.). London: Lawrence & Wishart. Mauss, Marcel. (2016) [1925]. The gift: expanded edition. Ja- 678, mai. 678, – ne Guyer trans. Chicago: University of Chicago Press. Mauss, Marcel. (1979) [1904-1905]. Seasonal variations of the Eskimo: a study in social morphology. London: Routledge. Nishibe, Makoto. (2016). The enigma of money: gold, bankno- tes, bitcoin. Singapore: Springer. Nishibe, Makoto. (2006). The theory of labor money: im- plications of Marx’s critique for the Local Exchange Tra- ding System (LETS). In: Uchida, Hiroshi (ed.). Marx for the 21st Century. Abingdon: Routledge, p. 89-103. Ouroussoff, Alexandra. (2010). Wall Street at war: the secret struggle for the global economy. Cambridge: Polity. sociol. antropol. | rio de janeiro, v.09.02: 665 | rio de janeiro, antropol. sociol. registros de pesquisa | felipe magaldi

1009

Pleyers, Geoffrey. (2009). Alter-globalization: becoming an actor in the global age. Cambridge: Polity. Polanyi, Karl. (1975) [1944]. The great transformation. New York: Octagon Books. Poundstone, William. (2005). Fortune’s formula: the untold story of the scientific betting system that beat the casinos and Wall Street. New York: Hill and Wang. Rappaport, Roy. (1999). Ritual and religion in the making of humanity. Cambridge: Cambridge University Press. Samuelson. Paul. (2009) [1948]. Economics. New York: Mc- Graw-Hill. Simmel, Georg. (1978) [1900]. The philosophy of money. Lon- don: Routledge. Spengler, Oswald. (1991) [1918]. The decline of the West. Docklands, Australia: Oxford University Press ANZ. Taleb, Nassim N. (2007). The black swan: the impact of the highly improbable. New York: Random House. Tett, Gillian. (2009). Fool’s gold: how unrestrained greed cor- rupted a dream, shattered global markets and unleashed a ca- tastrophe. New York: Abacus. Théret, Bruno (ed.). (2008). La monnaie dévoilée par ses cri- ses (2 v.). Paris: Editions EHESS. Vatin, François & Steiner, Philippe. (2013). Traité de socio- logie économique. Paris: Presses Universitaires de France.

Apêndice

Livros e artigos publicados por Keith Hart sobre dinheiro e economia (2000-2018)

(2000). The memory bank: money in an unequal world. London: Profile Books, ix, 340p. Re-published 2001 as Money in an unequal world: Keith Hart and his memory bank. New York / London: Texere. Disponível em . (2000). (com Vishnu Padayachee). Indian business in South Africa after apartheid: new and old trajectories. Comparative Studies in Society and History, 42/4, p. 683-712. (2001). Money in an unequal world. Anthropological Theory, 1/3, p. 307-330. Disponível em . a psicanálise contra a parede: entrevista com gilberto velho

1010

(2002a). A tale of two currencies. Anthropology Today, 18/1, p. 21-22. (2002b). World society as an old regime. In Shore, Chris & Nugent, Stephen (eds.). Elite cultures: anthropological perspecti- ves. London: Routledge, p. 22-36. Disponível em . (2002c). Anthropologists and development. Norsk Antropolo- gisk Tijdskrift, 13/1-2, p.14-21. (2002d). Quelques confidences sur l’anthropologie du déve- loppement. ethnographiques.org, 2. Disponível em . (2004a). Towards a global green currency. Ecology & Far- ming. Disponível em . (2004b). Notes towards an anthropology of the internet. Ho- rizontes Antropológicos, 10/2, p. 15-40. (2004c). The political economy of food in an unequal world. In: Lien, Marianne & Nerlich, Brigitte (eds.). Politics of food. Oxford: Berg, p. 199-220. Disponível em . (2004). (Editor com John Bryden). A new approach to rural deve- lopment in Europe: Germany, Greece, Scotland, Sweden. Lewiston NY: Edwin Mellen Press. (Mellen Studies in Geography, 9). (2005a). The hit man’s dilemma: or business, personal and imper- ago., 2019 ago.,

– sonal. Chicago: Prickly Paradigm Press.

(2005b). Money: one anthropologist’s view. In: Carrier, Ja- mes (ed.). Handbook of economic anthropology. Cheltenham: 678, mai. 678, – Edward Elgar, p. 160-175. Disponível em . (2006a). Bureaucratic form and the informal economy. In: Guha-Khasnobis, Basudeb; Kanbur, Ravi & Ostrom, Elinor (eds). Linking the formal and informal economies. Oxford: Oxford University Press, p. 21-35. Disponível em . (2006b). Richesse commune: construire une démocratie économique à l’aide des monnaies communautaires. In: sociol. antropol. | rio de janeiro, v.09.02: 665 | rio de janeiro, antropol. sociol. registros de pesquisa | felipe magaldi

1011

Blanc, Jérôme (ed.). Exclusion et liens financiers – “Monnaies sociales”. Paris: Economica, p. 135-152. (2007a). Towards an alternative economics: the view from France. Social Anthropology, 15/3, p. 369-374. (2007b). Money is always personal and impersonal. Anthro- pology Today, 23/5, p. 16-20. (2007c). Interview: Keith Hart answers questions on econo- mic anthropology. European Economic Sociology Newsletter, 9/1, p. 11-16. (2007d). Money and anthropology: object, theory and me- thod. In: Baumann, Eveline et al. (eds.). Argent des anthropo- logues, monnaie des économistes. Paris: Harmattan. (2008). The human economy. Disponível em . (2008). (com Horacio Ortiz). Anthropology in the financial crisis. Anthropology Today, 24/6, p. 1-3. (2009a). The persuasive power of money. In Gudeman, Ste- phen (ed.). Economic persuasions. Oxford: Berghahn. Dispo- nível em . (2009b). Money in the making of world society. In: Hann, Chris & Hart, Keith (eds.). Market and society. Cambridge: Cambridge University Press. (2009). (Editor com Chris Hann). Market and society: the great transformation today. Cambridge: Cambridge University Press. (2010a). King for a day. The Big Issue, 912, p. 5-10. (2010b). Mauss et sa vision de l’économie dans les années 1920-25, Revue du MAUSS, 36, p. 34-48. (2010c). The legal order of gift-giving (resenha de Richard Hyland Gifts: A study in comparative law, Oxford, 2009). Euro- pean Journal of Sociology, 51/3, p. 559-564. (2010d). Africa’s urban revolution and the informal eco- nomy. In: Padayachee, Vishnu (ed.). The political economy of Africa. London: Routledge, p. 371-388. (2010). (Editor com Jean-Louis Laville & Antonio D. Catta- ni). The human economy: a citizen’s guide. Cambridge: Polity Press. a psicanálise contra a parede: entrevista com gilberto velho

1012

(2010a). (com Vishnu Padayachee). Introducing the Afri- can economy. In: Padayachee, Vishnu (ed.). The political economy of Africa. London: Routledge. (2010b). (com Vishnu Padayachee). South Africa in Africa: from national capitalism to regional integration. In: Pa- dayachee, Vishnu (ed.). The political economy of Africa. Lon- don: Routledge. (2011a). Money as a form of religious life. Religion and So- ciety: Advances in Research, 1, p. 156-163. (2011b). The financial crisis and the end of all-purpose money. Economic Sociology: the European Electronic Newsletter, 12/2, p. 4-10. (2011c). Building the human economy: a question of va- lue? Suomen Antropologi: Journal of the Finnish Anthropologi- cal Society, 36/2, p. 5-17. (2011d). After the financial crisis: towards a human eco- nomy. Norsk Antropologisk Tidsskrift, 3-4, p. 181-193. (2011). (com Chris Hann). Economic anthropology: history, ethnography, critique. Cambridge: Polity Press. (2012a). Anthropology, economics and development. In: Fardon, Richard et al. (eds.). The Sage handbook of social anthropology, v.1. London: Sage, p. 154-167. (2012b). Money in twentieth century anthropology. In: Carrier, James G. (ed.). A handbook of economic anthropology. Cheltenham: Edward Elgar, p. 166-182. (2012c). The financial crisis and the history of money. In: ago., 2019 ago., – Carrier, James G. (ed.). A handbook of economic anthropology. Cheltenham: Edward Elgar, p. 626-637.

678, mai. 678, (2013). Making money with money: reflections of a betting – man. In: Cassidy, Rebecca; Pisac, Andrea & Loussouarn, Claire (eds.). Qualitative research in gambling: exploring the production and consumption of risk. London: Routledge, p. 15-27. (2013). (com Vishnu Padayachee). A history of South Afri- can capitalism in national and global perspective. Trans- formation, 81-82, p. 55-85. (2014a). Marcel Mauss’s economic vision, 1920-1925: an- thropology, politics, journalism. Journal of Classical Socio- logy, 14/1, p. 34-44. sociol. antropol. | rio de janeiro, v.09.02: 665 | rio de janeiro, antropol. sociol. registros de pesquisa | felipe magaldi

1013

(2014b). Jack Goody: the anthropology of unequal society. Reviews in Anthropology, 43/3, p. 199-220. (2014c). The rise and fall of Europe. Economic and Political Weekly, 49/34, p. 27-30. (2014d). (com Horacio Ortiz). The anthropology of money and finance: between ethnography and world history. Annual Review of Anthropology, 43, p. 465-482. (2014e). (com John Sharp & Vito Laterza). South Africa in world development: prospects for a human economy. An- thropology Today, 30, p. 13-17. (2014). (Editor com John Sharp). People, money and power in the economic crisis: perspectives from the Global South. New York: Berghahn. (2015a). (Editor). Economy for and against democracy. New York: Berghahn. (2015b). How the informal economy took over the world. In: Mörtenböck, Peter et al. (eds.). Informal market worlds reader: the architecture of economic pressure. Rotterdam: NAI010 Publishers, p. 33-44. (2015c). Money in the making of world society. In: Lovink, Geert; Tkacz, Nathaniel & Vries, Patricia de (eds.). Money- lab reader: an intervention in digital economy. Amsterdam: Institute for Network Cultures, p. 19-31. (2015). (com John Bryden). Money and banking in Scotland and Norway. In: Bryden, J.; Brox, O. & Riddock, L. (eds.). Northern neighbors: Scotland and Norway since 1800. Edin- burgh: Edinburgh University Press, p. 164-187. (2016a). The anthropology of debt. Journal of the Royal An- thropological Institute, 22/2, p. 415-421. (2016b). Recent transformations in how anthropologists study money. Journal of the Royal Anthropological Institute, 22/3, p. 712-716. (2017a). (Editor). Money in a human economy. New York: Berghahn. (2017b). Capitalism and our moment in the history of mo- ney. In: Hart, Keith (ed.). Money in a human economy. Capí- tulo 1. (2017c). Gudeman, Stephen. Anthropology and the eco- nomy. Anthropological Forum, 27/3, p. 287-289. a psicanálise contra a parede: entrevista com gilberto velho

1014

(2017d). Greybacks. In: Maurer, Bill & Swartz, Lana (eds.). Paid: tales of dongles, checks and other money stuff. Cambrid- ge: MIT Press, p. 211-220. (2018). After 2008: market fundamentalism at the cross- roads. Cultural Anthropology, 33/4, p. 536-546. (2018). (com Ravinder Kaur & John Comaroff). Southern futures: thinking through emerging markets. Comparative Studies of South Asia, Africa and the Middle East, 38/2, p. 365-376. ago., 2019 ago., –

678, mai. 678, – sociol. antropol. | rio de janeiro, v.09.02: 665 | rio de janeiro, antropol. sociol. registros de pesquisa | felipe magaldi

1015

O DINHEIRO É COMO APRENDEMOS A SER HUMANOS Palavras-chave Resumo Dinheiro; Ao longo de milênios, o dinheiro foi demonizado por ideó- antropologia logos do complexo agrário-militar, e isso sobreviveu como econômica; um aspecto da crítica socialista do capitalismo. Tornou-se economia humana; um símbolo de desumanidade para muitos. Mas o dinheiro capitalismo. é um meio de comunicação humana como a linguagem, e os dois estão atualmente convergindo na internet.

MONEY IS HOW WE LEARN TO BE HUMAN Keywords Abstract Money; For millennia, money has been demonized by ideologues economy of the agrarian-military complex, a legacy that has survived anthropology; as an aspect of the socialist critique of capitalism. Money human economy; became a symbol of inhumanity for many. But money is capitalism. actually a medium of human communication like language and the two are currently converging on the internet. a psicanálise contra a parede: entrevista com gilberto velho

1016 ago., 2019 ago., –

678, mai. 678, – sociol. antropol. | rio de janeiro, v.09.02: 665 | rio de janeiro, antropol. sociol. RESENHAS

http://dx.doi.org/10.1590/2238-38752019v9313

1 University of Oslo Ringgold Standard Institution, Social Anthropology, Oslo, Norway [email protected] https://orcid.org/0000-0003-1902-0274

Theodoros RakopoulosI

Self in (and with) the world: Keith Hart’s memoir

Hart, Keith. (2018). Self in the world. Unpublished manuscript, 240 pages.

To ‘educate’ means ‘to lead out,’ to with Keith Hart’s book of his life. An- lead the self on the voyage of life in- thropology has been attacked for its to the world’s affairs. The Germanic colonial past and praised for propos- intellectual world has mastered the ing a real connection of self and oth- idea of writing about one’s education er, taking other people’s voices seri- as Bildung, and the modern bourgeois ously when trying to listen to and form taken by this kind of confes- understand our own. This is such a dec., 2019 dec., – sional writing was the Bildungsroman. narrative. A reasoned endeavour, but one thor- A good memoir can offer an ana- oughly rooted in a romantic take on lytical narrative of places in the self’s 1025, sep. 1025, – the self in the world. Contemplating journey, but also the shift in the forma- Mediterranean ruins provided the tion of that very self by the end of that mind with perspective, establishing a journey. This end is reached through relationship in time and with time, writing: it is the finishing point of a as well as a relationship between the trip and a completion, an aim achieved. self and the world over time. I shall accentuate some threads that The journey of an anthropologist weave together Keith’s intellectual who has followed the movement of placement of self in the world, drawing Africans across the world, making on his life story (“in the world,” two- himself as mobile as them, is an en- thirds of the book) rather than his gen- tirely different story. This is the case eral reflections “on the world.” sociol. antropol. | rio de janeiro, v.09.03: 1019 | rio de janeiro, antropol. sociol. self in (and with) the world: keith hart’s memoir

1020

Being human in the world neces- of our existence rather than consider sarily sits in places. One of them is human personality and humanity as a whole. his Durban flat. It contains the entire works of Mohandas K Gandhi, who And so the philosophical human- lived in the city for two decades. ism that inspires Keith Hart has been Alongside all of Lenin’s works and a replaced by a Boasian cultural rela- poster of Kwame Nkrumah, who fell tivism. from power in a coup d’état while the “Self in the world” is not a swan young ethnographer was undertaking song, but rather a forward-looking fieldwork in Accra’s slums. Michael proposal by a peripatetic scholar for Caine’s autobiography is there too, autobiography to be assumed as a where he celebrates his own journey central method in any truly global in the world, his love for movement anthropology. For that to happen we and America, and his Cockney ori- must abandon rooted conceptions of gins. The connections with Keith’s the self for a life of movement, im- story are strong. Above all, he is a agination, collaboration and ambi- teacher, one of the greatest I have tion. The result is cosmopolitan par- known, and his book cannot help be- ticipation in the world. To such a pro- ing didactic in part: “This book is an ject Hart brings a political focus on account of my education, an excava- economic anthropology’s perennial tion of memory for the purposes of theme: unequal society as the driver self-knowledge, if you like. But its of uneven development. Our author aim is also to allow readers to reflect started out from a background that on their own education”. lacked privilege, but succeeded in The book’s theme is the making rubbing shoulders with some who of world society in our times, as seen embodied it. The escalator he rode to through one man’s journey. Keith Cambridge University and beyond was one of the first anthropologists was provided by Manchester Gram- dec., 2019 dec., – to note the internet’s powerful role in mar School. Britain in the 1960s, its this historical process. His interest in cultural revolution marked by the integrating world affairs into anthro- Beatles, offered more chances for up- 1025, sep. 1025, – pology has brought him more recog- ward mobility than our present. Not nition outside the discipline than much is left today of the post-war so- within it. British, American and even cial consensus that gave Keith his French anthropology has embraced start in life. Nor has Cambridge been narrow localism at the expense of weaned off its role as a breeding any kind of cosmopolitan endeavour: ground for the national elite. A work- ing-class kid from Manchester made The social sciences have focused on the types of social organization and examination-passing in classics his divisions of class, race, gender, reli- profession and used Cambridge as a gion and nationality that mediate the launch pad for world travel as an an- personal and impersonal dimensions thropologist. But his classical train- sociol. antropol. | rio de janeiro, v.09.03: 1019 | rio de janeiro, antropol. sociol. review | theodoros rakopoulos

1021

ing as a teenager never left him and They both engaged with the world he soon gave up ethnographic field- intellectually and politically, while work to read old books and write combining restless movement and about them. historical awareness of its tensions. As in Hart’s life, the book of his Transatlantic capitalism has trag- life is also laden with literary inven- ically moulded the lives of many peo- tiveness and the ability to tell a good ple, brown and white, but especially story always with imagined society black. in the foreground. The whole text is For much of my professional life, I ha- an exercise in “scaling down the ve shadowed the African diaspora th- world and scaling up the self.” The rough an Atlantic world whose defi- classical writers of social theory are ning moment was slavery. I trace my his means for this undertaking. Karl self-reinvention in mid-life to a spell in Jamaica during the 1980s. Marx appears 54 times in the version I read (Durkheim only twice, and We- The years around 1990, when the ber four times, Fanon 15 times). Soviet Union collapsed, China and In- Marx’s imprint on the world goes dia emerged as world powers and the well beyond scholarship and indeed internet went public, saw Keith’s extends into the realms of real, lived emergence as a public intellectual. We history that Hart participates in need to look tragedy in the face and throughout the book. His account of still retain hope. Keith Hart will be re- this history is no celebration. Indeed, membered as the main source for the he counts the anti-colonial revolu- “informal economy” in development tion, and the uneven development studies (see his reflections in the mid- that followed, to be more formative 1980s on a decade of usage of the term: of his thinking than anthropology. Hart, 1985). It revealed the agency and Keith’s letter to the Trinidadian creativity of Africans underneath the writer and revolutionary C L R James picture of dull uniformity generated (“the only fan letter I ever wrote”) is by official statistics. A chapter on his a good case study of his attitude to fieldwork in Ghana reveals his own them both. It is an honest, passion- checkered experience there along with ate and spontaneous attempt to en- the life histories of enterprising local gage with someone wholeheartedly. people. A later stint in Jamaica pro- James, mentioned more than 60 vides more insightful snapshots of lo- times, is the real deal here. The rea- cal life and musings on method (how sons for this are many. Neither James to read and take part in history). Both nor Marx were academics. They em- of these experiences fed his last at- body the dialectic of this book – nar- tempt at generalization, “the human ration of personal life events and economy,” realised in South Africa as meditative reflection upon them – a research program replete with PhD and stand at the core of Keith’s un- and post-doc researchers from every- derstanding of his life and times. where (see Hart, 2017). self in (and with) the world: keith hart’s memoir

Leonardo Octavio Belinelli de Brito é doutorando em Ciência 1022 Política pela Universidade de São Paulo (USP). Seus temas de pesquisa estão vinculados ao campo do pensamento político e social brasileiro. É autor de Dilemas do patrimonialismo brasileiro – as interpretações de Raymundo Faoro e Simon Schwartzman Keith is a historian of ideas, an lantic has some claim to being the (Alameda, 2019) e de “RaymundoNOTA Faoro e as linhagens do intensely – but never loudly – politi- crucible of modern world history; but pensamento político 1 brasileiro”Exemplo disso (2018). é a resenha publicada cal person and world citizen, always it is not the world. Nor is movement por Celso Rocha de Barros (2018) no keenly aware that he stands on the in the world the world itself”. número 12 da revista Quatro cinco um. shoulders of giants. He works with That movement has had bumps anti-colonial revolutionaries as a hu- in the road. The poignant pages de- manitarian scholar (see Hart, 2009). scribing a brilliant mind’s collapse in This cosmopolitan outlook is pro- the midst of a stunning career at Yale found, but it also has deep roots in are enthralling. At this time, Keith working-class Manchester. “I come turned to writing poetry, some of from Manchester” is the title of his which is reproduced here. opening chapter. When accused in Ja- There may be too much detail maica of being a beneficiary of Eng- here on academic conflicts. But the lish enrichment at their ancestors’ glimpses of institutional life in the expense, he replies, “I am not English, Ivy League and Midwest have their I’m from Manchester.” This answer interest. Here is a Chicago party for speaks to a refusal of nation-state his 40th birthday: methodology. Until then I imagined I could be The language of the book is the anything – a politician, businessman, oral Keith, obvious to anyone who journalist. At that party I told myself knows him, perhaps not to everyone “Who are you kidding, Keithy? You ha- else. It is ironic that people get to ve now reached the mid-point of your write their autobiographies when life and have been in school for all of it. If you were ever going to get out, it they become septuagenarians. Maybe would have been long before now.” we should write two of them, one in This revelation gave me a tremendous our 40s, when we are closer to our surge of freedom. Once I accepted the youth, and the other in our 70s. In necessity of being an academic, there fact, Keith did write one in his 40s, were so many different ways that it dec., 2019 dec.,

– could be realized. I soon found out but was told not to publish it, since it what that meant. was “too brutal.” His accounts of his early years are vivid and moving. He Returning to Britain, he reflects 1025, sep. 1025, – never mentions psychoanalysis or on where to go and decides on Cam- similar approaches. Yet he clearly be- bridge: “I was an intellectual more lieves that childhood is formative. He than a United supporter.” And an in- came from a family of singers and tellectual of varied output, much of it music is a foundation of his person- still concealed – and some revealed ality. He credits listening to Dvořak’s in this book (like the beautiful late New World Symphony as a boy with ethnography of Accra). A good mem- the appeal of America later. oir reveals the author manqué or the Movement in the North Atlantic secret writer; the back pages of one’s has inspired and rejuvenated him life and works. Among many hidden throughout his life: “The North At- treasures here, I would pick out a sociol. antropol. | rio de janeiro, v.09.03: 1019 | rio de janeiro, antropol. sociol. review | theodoros rakopoulos

1023

documentary on Rousseau; the poet- the sense of dedicating one’s own ry; archaeological reflections; a se- time in this world to producing, al- ries of youthful essays that ended up locating and consuming resources. on a pyre. The book’s title, “Self in the Keith suffered from mental ill- world,” is a profoundly current and ness from 35 to 50, when it cleared timely – even urgent – way to think up. These years were very difficult, about engaged anthropology. These and I find it amazing that he can be are the memories of a man in his so open about being bipolar, so genu- mid-70s; most readers are likely to be ine about mental health. “I was now younger and live in a harder world. convinced that I was suffering from But Keith’s personal engagement of- an objective, scientifically identifia- fers us a methodology. Anthropology ble disease. I would take my pills re- is about caring and understanding; ligiously and hope to get over it all the two are inseparable. Bildung, eventually.” surely, but also Verstehen, under- “Jamaica radicalized me,” Keith standing. writes. It turned him towards an ex- Take the economy, for instance, plicitly engaged and political anthro- with its numeric coldness. Keith first pology, building on his experience of came up with an idea that stems the developmental industry in the from direct observation of life. Then 1970s. He co-wrote the development he came up with the idea of money program for Papua New Guinea’s in- as the unity of politics and econom- dependence and a handbook on West ics (“heads or tails,” Hart, 1986). Next, African agriculture for USAID. In the he came up with the theoretical and 1990s, he took on the Nigerian mili- practical impossibility of disentan- tary and brought together the op- gling the personal from the imper- posed sides in Angola’s war. This en- sonal. Meanwhile, with Anna Grim- gagement is the lifeblood of the book shaw, he launched Prickly Pear Pam- and the driving force of his life. It phlets as snappy, comprehensible might come as a surprise to many texts written for an educated lay au- that someone who was long subject dience. E.P. Thomson wrote that CLR to depression and never joined a po- became more radical as he grew old- litical party would choose a life of er. Maybe Keith got the idea from such commitment to making a differ- him. ence. But there we are. Keith’s website, The Memory Bank, Some of Keith’s choices reveal a is where he puts everything he deep humanity: for example, ditching writes. He hates the idea of intellec- the best job offer he ever had to tual property and calls digital capi- spend time with C L R James and An- talism “informational feudalism.” As na Grimshaw sheds light on the idi- director of the Cambridge African osyncratic form of Hart’s engage- Studies Centre, he “attempted to ment. His is a real human economy, in place it in the historical relationship self in (and with) the world: keith hart’s memoir

1024

between the West and Africa.” This Keith has spent the last two dec- led him to excavate Cambridge’s cen- ades in Paris with a new family, while tral role in the abolition movement remaining highly mobile. He calls it around 1800. “at home in the world.” The internet, Keith is a real enlightenment to which he has given great effort, is thinker with a utopian vision, one of the machine that bridges difference the few ecumenical minds remaining and distance, the virtual and the real. in anthropology. Movement is his key The inventive self meets the general virtue: creativity of the collective machine that is the web. So what stopped the graduate students that I met from engaging with the Keith Hart has lived a life among world through Cambridge? World so- and with others, in completely an- ciety is being formed in our times. This thropocentric fashion. He ponders is when the world became unified for his influences, methods and aims good or ill. We are all connected th- here, in ways that are decidedly hu- rough a single network for exchanging goods, services and information. Our manist. generation has discovered universal connection and movement. We just Received 9/4/2019 need to find the forms of association Approved 19/9/2019 that can put them to good use.

In other words, we must learn how to care for world society and not just ourselves. Keith is an “engaged intellectual.” He became an intellectual historian rather than remain an ethnographer of Africa. It led him to excavate the history of industrial Lancashire as a dec., 2019 dec., – way of understanding the class sys- tem in which he grew up. He came to understand North Atlantic societies 1025, sep. 1025, – as a ‘cubist’ network: “West Africa seemed familiar: it was an old society, like Britain, where people knew who they were. America was new alright, but I still had not digested its signifi- cance. The Caribbean was all of the other three combined”. In shadowing the African diaspora, Keith has crossed the Atlantic several times, like a pendulum in world his- tory and anthropology’s development. sociol. antropol. | rio de janeiro, v.09.03: 1019 | rio de janeiro, antropol. sociol. review | theodoros rakopoulos

1025

BIBLIOGRAPHY

Hart, Keith (ed). (2017). Money in a human economy. New York, Oxford: Berghahn. Hart, Keith. (2009). An anthropologist in the world revolution, Anthropology Today, 25/6, p. 24-25. Hart, Keith. (1986). Heads or tails? Two sides of the coin. Man, 21/4, p. 637-656. Hart, Keith. (1985). The informal eco- nomy. The Cambridge Journal of Anth- ropology, 10/2, p. 54-58. Hart, Keith. The Memory Bank: A New Commonwealth. Available at . Ac- cessed 13, October 2019.

Theodoros Rakopoulos is a professor in the Department of Social Anthropology at University of Oslo. He published, among other books, Towards an Anthropology of Wealth: Imagination, substance, value (co-editor, with Knut Rio) (2019) and From clans to co-ops: Confiscated mafia land in Sicily (2017).

http://dx.doi.org/10.1590/2238-38752019v9314

1 Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Faculdade de Letras, Belo Horizonte, MG, Brasil [email protected] https://orcid.org/0000-0002-5018-4931

Eneida Maria de Souza I

Arquivos em movimento

Süssekind, Flora; Dias, Tânia (orgs.). Cultura brasileira hoje: diálogos. Rio de Janeiro: Fundação Casa de Rui Barbosa, 2018. 3 v.

A publicação de três vultosos volumes experiências e possíveis entrosamentos intitulados Cultura brasileira hoje: diálo- já existentes ou por existir, registra-se a gos, pela Fundação Casa de Rui Barbosa, rica contribuição dessa publicação para traduz um esforço coletivo em entregar o público leitor. ao público um painel significativo da O envolvimento de enorme contin- produção artística e intelectual da atu- gente de pessoas – entre organizado- alidade. Como resultado de eventos or- res, entrevistadores, autores, revisores, dec., 2019 dec., – ganizados em torno de depoimentos e bolsistas, pesquisadores da obra ico- debates realizados na instituição entre nográfica e fotográfica – fornece a di- 2004 e 2017, aos artistas, escritores e crí- mensão da edição dos volumes em 2018, 1031, sep. 1031, – ticos, reunidos em duplas, lhes foi dada compondo-se de 2.000 laudas e 2.440 a oportunidade de expor experiências e notas de pé de página. Minibiografias metodologias de trabalho. A original or- de nomes citados durante os diálogos ganização das exposições e debates reu- refletem e justificam, nos rodapés, o niu representantes de diferentes áreas, empenho pelo trabalho arquivístico e como literatura, artes plásticas, cinema, pelo teor historiográfico da publicação. fotografia, arquitetura, dança, teatro, ce- Trata-se de um repertório de referên- nografia, música e crítica. Na proposta cias de alto nível acadêmico, respeitan- apresentada, motivada pela necessida- do-se a multiplicidade e a heterogênea de de criar um diálogo entre manifes- produção artística da atualidade, que se tações artísticas distintas, pela troca de projeta no interior de uma instituição sociol. antropol. | rio de janeiro, v.09.03: 1027 | rio de janeiro, antropol. sociol. arquivos em movimento

1028

pública de renome, responsável pela ou nos encontros, guiados por afinida- preservação de arquivos de escritores e des estéticas, converte-se na exposição intelectuais: um Museu que se revitali- de diversos saberes que circulam e cir- za, abrindo as portas para a comunida- cularam nas últimas décadas no país. de. Os relatos de vida, a experiência co- Diante do número significativo de mum entre pessoas de iguais e diferen- convidados aos diálogos interdiscipli- tes gerações, o encontro inusitado entre nares, reunidos na publicação em três aqueles que nunca se haviam encon- volumes (62 autores, organizados em trado, a aproximação entre técnicas e 31 duplas), a leitura deverá obrigatoria- processos criativos transformam-se em mente se efetuar com vistas à escolha atraentes narrativas biográficas, de lei- de cada um. A participação desenvolta tura agradável e instrutiva. As aventu- e oralizada dos depoimentos não impe- ras relatadas pelos protagonistas, sejam de ter a edição aspecto enciclopédico, elas em estágios, exílios voluntários ou pela pretensão de englobar tendências não no exterior, perseguições políticas distintas e heterogêneas no âmbito ar- ou ampliações do campo de pesquisa tístico e noutras áreas, ao oferecer um artística com parcerias em outras áreas, painel cultural de relevância para o en- endossam o deslocamento como base tendimento da complexa situação das de um painel cultural em movimento, artes nos dias de hoje. O aspecto en- revelador de potencialidade e vigor pro- ciclopédico, contudo, afasta-se de um dutivo. conceito fechado, ilustrativo e globali- Merece ainda ser ressaltado o fórum zante, ao se inscrever como aleatório de debates criado por ocasião dos even- e fragmentário, em que são discutidos, tos, em que especialistas de múltiplos entre muitos, os procedimentos criati- campos de saber foram convocados ao vos; os níveis de aprendizagem entre os diálogo, resultando no aprimoramento pares; a pesquisa referente ao trabalho das relações interdisciplinares, uma vez de criação; o engajamento da obra como que o espaço de discussão se distinguia reflexão nacional, aliado ao compromis- dez., 2019 dez., – dos apressados locais reservados aos so com o olhar cosmopolita. O número encontros em festivais, feiras ou con- de autores implica, portanto, a varieda- gressos mais especializados. A oportu- de infindável de temas e conceitos aí 1031, set. 1031, – nidade reservada aos autores quanto à focalizados, o que permite considerar exposição e reflexão sobre os exercícios a publicação texto de referência para o criativos encontrou solo propício para infindável contingente de leitores. descobertas inauditas, coincidências no Na seleção dos autores, as organiza- tratamento de procedimentos artísticos doras justificam a ausência de nomes e literários, além de tornar pública sua das várias regiões do país, em virtude metodologia de trabalho, com as inquie- de dificuldades financeiras da institui- tações e empecilhos aí inerentes. Com- ção, da recusa aos convites por parte partilhar com o leitor momentos de de muitos artistas, por não admitirem a extrema produtividade, principalmente discussão de seu trabalho artístico. Nes- originada nos bastidores das conversas se sentido, o núcleo de participantes se sociol. antropol. | rio de janeiro, v.09.03: 1027 | rio de janeiro, antropol. sociol. resenha | eneida maria de souza

1029

restringiu ao eixo Rio-São Paulo, em- não deixa de ser atividade contemporâ- bora a questão geográfica não pudesse nea, junção de criação e crítica, ficção e servir de parâmetro, uma vez que mui- ciência, experimentação e procedimen- tos deles vieram de outras estados e se to, ensaio e filme, documento e ficção. estabeleceram nas capitais. Tal restrição, O primeiro volume se inicia com a entretanto, não deixa de ser exclusiva presença do escritor Silviano Santiago com determinada parcela dos represen- em parceria com Anna Maria Maiolino, tantes das artes no Brasil. No entanto, artista plástica e poeta, registrada em percebe-se que a historiografia artística 2004; o último, em 2017, fechando a sé- não se pauta mais por classificações de rie, com o diálogo entre o crítico de ci- ordem temporal e espaçogeográfica, de- nema Carlos Alberto Mattos e Erick Ro- sobedecendo critérios cronológicos e se cha, diretor de cinema (por sinal o mais impondo no fluxo anacrônico das ma- longo dos textos). A distância temporal nifestações. A composição dos diálogos entre todos os depoimentos não lhes em duplas, embora não tenha seguido diminui a importância, pois, registran- obrigatoriamente representantes da do diferentes momentos da situação mesma geração, conseguiu reordenar cultural do país, acenam para uma vi- tendências, agrupar escritores com ar- são englobante e contrastiva, incluindo tistas plásticos, cineastas com críticos aí um repertório de gerações bastante literários, cenógrafos/diretores de tea- diversificadas. Por se constituir enquan- tro com poetas, fotógrafos com escrito- to publicação de múltiplas entradas, res, e assim por diante. Se o perfil reca- Cultura brasileira hoje: diálogos atende a ísse na produção de uma historiografia interesses distintos, o que comprova ortodoxa, a organização do evento iria o aspecto enciclopédico e englobante manter as áreas separadas, a estrutura dos volumes. Entre poetas, escritores, cronológica, a conformidade geracional artistas plásticos, críticos literários, te- e a semelhança de estilos. atrais, artísticos, cenógrafos, cineastas, Se fosse solicitado definir um eixo músicos, diretores de fotografia, arqui- teórico/temático para as discussões teto, dançarinos, cientista, diretores te- e para a proposta em geral, o termo atrais, encena-se um diálogo polifônico, deslocamento poderia ser o escolhido, no qual prevalece o esforço em discutir acompanhado do desejo dos autores de escolhas estéticas e mecanismos em- registrar o procedimento artístico/críti- pregados na criação.1 Configuram-se, co de suas realizações. O deslocamento em todos os depoentes, o compromis- de áreas específicas em direção a outras, so com a palavra política e a imagem a quebra da autonomia autoral e, conse- transgressora, a performance artística quentemente, da obra, o apelo à alteri- como prova de engajamento com a pro- dade e à múltipla contaminação de dis- posta social, a pesquisa sempre renova- cursos se aliam ao movimento contínuo da com os materiais de criação. das viagens em direção ao desconheci- No desenrolar dos depoimentos e do e ao novo. Expor as experiências e os questões levantadas pelos participan- bastidores da produção artística/crítica tes, destacam-se alguns temas comuns: arquivos em movimento

1030

o trabalho artístico como resultado do Bernardo Carvalho (2018, v.1: 124), ao empenho arquivístico, da pesquisa em assumir a mudança na sua maneira de torno de novos/antigos objetos, forma- criar ficção: “O que aconteceu com Nove ção responsável pela concepção da arte noites foi um processo muito particular: como artifício e experimentação. Em quando li um artigo de jornal, tive uma consonância com o espaço reservado espécie de epifania. Não sei por que o aos debates − a Fundação Casa Rui Bar- artigo bateu de um jeito muito forte. bosa, guardiã de arquivos e bibliotecas −, Com este livro, comecei a pesquisar a reflexão sobre o tema reforça a impor- para fazer ficção, o que nunca tinha fei- tância de se considerar o processo cria- to antes”. Carlos Alberto Mattos (2018, v. tivo de forma crítica e teórica. Silviano 3: 687), crítico de cinema, discorre sobre Santiago, professor, escritor e ensaísta, o filme-ensaio, o qual, diferentemente transita entre lugares discursivos, o dos documentários convencionais, re- ensaio e a ficção, a pesquisa e o arqui- trata a busca de um cinema político, de vo, o que confirma seu perfil de escritor invenção, “que trabalha com imagens crítico. Rosângela Rennó, “colecionado- de arquivo, que reativa a memória, que ra compulsiva” de material fotográfico, reinterpreta o passado de modos sur- realiza um trabalho de apropriação do preendentes, que reinventa o passado e material que recolhe, transformando- o presente”. -o em arte própria. Carlos Vergara, na Ao leitor, a oportunidade de entrar sua aventura artística, sai em busca dos nesse arquivo-texto, de modo atento minérios, dos pigmentos do Brasil em e disposto a usufruir do rico material Minas Gerais, materiais importantes bibliográfico que tem em mãos. Oca- para o entendimento de sua pintura, siões como essas, promovidas por ór- um trabalho marcado pela apropriação gãos de pesquisa e de divulgação de e a recriação. Sílvio Tendler, possuidor saberes multidisciplinares, acontecem de arquivo inestimável de imagens ci- raramente no meio acadêmico, devido nematográficas, é conhecido como “co- à constante precariedade orçamentá- dez., 2019 dez., – lecionador de imagens”, acervo impres- ria aliada à má vontade em incentivar cindível na confecção de muitos de seus debates culturais e políticos dessa na- documentários. E assim se comportam tureza. 1031, set. 1031, – igualmente outros entrevistados, en- tendendo serem os ofícios resultados Recebida 20/8/2019 de pesquisa e manuseio de materiais de Aprovado 19/9/2019 toda sorte. No cômputo geral dos depoimen- tos publicados, constata-se o efeito de deslocamento do objeto artístico de sua autonomia, registrado, por exemplo, por Sérgio Sant’Anna (2018, v. 1: 434), “O tex- to está querendo ser visual, dramático. Buscar algo que esteja fora da literatu- ra é minha obsessão textual”; ou por sociol. antropol. | rio de janeiro, v.09.03: 1027 | rio de janeiro, antropol. sociol. resenha | leonardo nóbrega da silva

1031

NOTA REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

1 Os participantes foram organizados Carvalho, Bernardo. (2018). Angelo em duplas, seguindo, na publicação, Venosa/Bernardo Carvalho. In: Dias, a seguinte ordem: Volume 1: Anna Ma- Tania; Süssekind, Flora. (Orgs.). Cultu- ria Maiolino/Silviano Santiago; Ana ra brasileira hoje: diálogos. Rio de Janei- Carolina/Antonio Dias; Angelo Veno- ro: Fundação Casa de Rui Barbosa, v. 1. sa/Bernardo Carvalho; Rodrigues/Zé Mattos, Carlos Alberto. (2018). Carlos Celso Martinez Corrêa; Mario Novel- Alberto Mattos/Erik Rocha. In: Dias, lo/ Paulo Mendes da Rocha; Rosange- Tania; Süssekind, Flora.(Org.). Cultura la Rennó/Sergio Sant’Anna; Nuno brasileira hoje: diálogos. Rio de Janeiro: Ramos/Vilma Arêas. Volume 2: André Fundação Casa de Rui Barbosa, v. 3. Sant’Anna/Bia Lessa; Anna Bella Gei- ger/Juliana Carneiro da Cunha; Bea- Sant’Anna, Sérgio. (2018). Rosângela triz Bracher/Carlito Carvalhosa; Car- Rennó/Sérgio Sant’Anna. In: Dias, Ta- lito Azevedo/Waltercio Caldas; Carlos nia; Süssekind, Flora.(Org.). Cultura Süssekind/Mário Carneiro; Carlos brasileira hoje: diálogos. Rio de Janeiro: Zilio/Cássio Loredano; Eduardo Esco- Fundação Casa de Rui Barbosa, v. 1. rel/Paulo Henriques Brito; Elizabeth Jobim/João Saldanha; Milton Macha- do/Rodolfo Caesar; Sílvio Tendler/ Walnice Nogueira Galvão. Volume 3: Antonio Manuel/Jean-Claude Berna- det; Antonio Geraldo Figueiredo Fer- reira/ Luiz Costa Lima; Antônio Araú- jo/ Sílvio Ferraz; Daniella Thomas/Lu Menezes; Eduardo Sued/Paulo Sergio Duarte; Flávia Meireles/Marília Gar- cia; Hélio Eichbauer/Tato Taborda; José Resende/Ronaldo Brito; Laura Vinci/Murilo Salles; Milton Hatoum/ Verônica Stigger; Carlos Alberto Mat- tos/Erick Rocha.

Eneida Maria de Souza é professora emérita e titular da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), tendo como áreas de interesse: teoria da literatura, literatura comparada e modernismo brasileiro. É autora de Janelas indiscretas(2011); coautora, com Marília Cardoso, de Modernidade toda prosa (2014) e organizadora de Mário de Andrade & Henriqueta Lisboa − correspondência (2010).

http://dx.doi.org/10.1590/2238-38752019v9315

1Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), Departamento de Ciências Sociais, Juiz de Fora, MG, Brasil [email protected] https://orcid.org/0000-0001-8184-7040

Felipe Maia Guimarães da SilvaI

Uma festa para José de Souza Martins

Frehse, Fraya (org.). A sociologia enraizada de José de Souza Martins. São Paulo: Com-Arte, 2018.

José de Souza Martins certamente me- tório. Os textos ali reunidos celebram rece uma festa, ou muitas festas! E por Martins pensando com ele, reconsti- isso vem a calhar a publicação desse tuindo aspectos e momentos diversos “festschrift”, nas palavras de sua orga- de sua produção intelectual e de sua nizadora, Fraya Frehse, que reuniu os trajetória, e, ao fazê-lo, oferecem um trabalhos apresentados no seminário olhar externo, que indica algumas das em comemoração dos 75 anos de Mar- possibilidades de recepção de seu tra- dez., 2019 dez., – tins, na Universidade de São Paulo. A balho ao mesmo tempo em que suge- expressão de origem alemã indica um re novos sentidos, alguns surpreen- “escrito de festa”, que é um modo de dentes, talvez até para o próprio autor. 1037, set. 1037, – celebrar o autor e sua obra, tornando No conjunto, apresentam uma das público o reconhecimento de sua im- trajetórias mais ricas e criativas da portância, de sua influência intelectu- sociologia brasileira. Martins estudou al e, igualmente, dos afetos que emer- temas distintos, tais como os confli- gem dos muitos diálogos constituídos tos no campo, a imigração, as frontei- ao longo de uma vida de pesquisa ras de povoamento ou de expansão sociológica. O caminho para tanto é o do capitalismo, a fotografia, os so- de uma reflexão que assume aqui um nhos, a música caipira ou linchamen- caráter menos agônico ou adversarial tos. Esse caleidoscópio aparece no li- que o costume entre os sociólogos, vro pelas mãos de especialistas que mas nem por isso meramente lauda- se concentram em um ou outro dos sociol. antropol. | rio de janeiro, v.09.03: 1033 | rio de janeiro, antropol. sociol. uma festa para josé de souza martins

1034

grandes estudos de Martins para de- marxista e das tradições interpretati- bater seus argumentos e suas possibi- vas oriundas da fenomenologia e do lidades interpretativas. Como argu- interacionismo simbólico, que muito mentam alguns autores, porém, a es- se inspira no trabalho de Henri Lefeb- colha dos temas em Martins não é vre, embora a ele não se restrinja. O fortuita, é antes produto de uma ima- sociólogo português José Machado ginação sociológica que procura sur- Pais inventaria algumas dessas estra- preender os enigmas do “social” por tégias de Martins e mostra seu modo ângulos inesperados, de modo que de constituir a concepção de “cotidia- aquilo que parece irrelevante para nidade” do autor, uma realidade apa- muitos sociólogos é justamente o que rentemente insignificante, mas que o fascina. Assim também personagens conjuga rotinas e rupturas, fenômeno da vida social que parecem “ínfimos” aparente e processos históricos – o tornam-se chaves para investigar re- que lhe permite acessar dimensões lações e processos mais amplos. Fraya ocultas da vida social e o aproxima de Frehse argumenta que essa perspecti- grandes autores que também desen- va é um desdobramento do modo co- volveram uma “hermenêutica da sus- mo o “grupo da USP”, que se organi- peita”, explorando “o hiato entre o zou em torno de Florestan Fernandes, que as pessoas fazem e o que creem articulava a compreensão de proces- fazer” (Pais, 2018, p. 167), território de sos sociais mais amplos a partir do um inconsciente social entretecido fragmento ou do “corte”, conferindo historicamente e que cabe à pesquisa importância recíproca aos fenômenos sociológica desvendar. Martins, entre- e aos processos. Os trabalhos de Mar- tanto, não se orienta a partir de es- tins se inscrevem então em uma li- quemas teóricos rígidos e formulados nhagem da qual também fazem parte, a priori, que dispensam a experiência entre outros, os estudos de Fernando e o conhecimento do vivido. O desve- Henrique Cardoso e Octavio Ianni so- lamento é antes o ponto de chegada dez., 2019 dez., – bre a escravidão ou de Maria Sylvia de um método que leva a sério o co- Carvalho Franco sobre os homens li- nhecimento dos homens simples e a vres na ordem escravocrata. Neles, riqueza do que “há de comum no sen- 1037, set. 1037, – aquilo que acontece nas “margens” da so comum”, o conhecimento compar- sociedade, que afeta os homens sim- tilhado que torna possível a interação ples, aparentemente alheios aos gran- social e seus significados. A consciên- des processos históricos, torna-se me- cia do homem comum, quando bem todologicamente revelador das con- situada, diz mais do que aparenta e tradições e dos limites da transforma- se torna a porta de entrada para lidar ção social. com os processos históricos mais am- Os autores do livro mostram como plos. Marília Sposito (2018) mostra co- em Martins essa perspectiva ganha mo essa criatividade teórica enrique- cores próprias, a partir de uma combi- ceu o marxismo de Martins, alargan- nação teórica criativa da dialética do a visão dos processos de produção sociol. antropol. | rio de janeiro, v.09.03: 1033 | rio de janeiro, antropol. sociol. resenha | felipe maia guimarães da silvai

1035

e reprodução da vida social, com suas compreensão da sociedade brasileira contradições, para além das relações mais ampla, por um caminho que re- de trabalho. No “cotidiano” descobre- jeita o dualismo urbano – rural, carac- -se o que muda, o que não muda e por terístico de certas teorias da moderni- que não muda. Para tanto, ele combi- zação e da “sociologia rural” tradicio- na a noção de processo com a de ex- nal. Em vez disso, sobressaem os en- periência, reintroduzindo os atores trelaçamentos, as origens rurais do sociais e seus conhecimentos na aná- capitalismo brasileiro, com a marca da lise, sem perder a referência às estru- presença constante da renda da terra turas em que se inserem. E a partir como uma categoria central no proces- daí emerge também a perspectiva crí- so de acumulação e reprodução do tica do autor, que se torna capaz de capital; a aliança política entre capita- reconhecer em seus personagens e listas e proprietários de terra que sin- em suas falas as dimensões de “recu- gulariza os processos de modernização sa” de relações sociais e modos de vi- no país e finca limites a sua democra- da que lhes são impostos, de modo a tização; as relações do campesinato rearticulá-las para descobrir virtuali- com a política, permeada pela presen- dades emancipatórias. ça de instituições e mediadores sociais Dos sociólogos brasileiros, Martins de extração urbana, os sociólogos in- é um dos que mais valoriza a relação cluídos. A partir desses estudos vai-se com a história, tema decisivo dos ar- constituindo uma verdadeira “teoria tigos que compõem a primeira parte da sociedade brasileira” e de seus pro- do livro. Leonilde Medeiros abre sua cessos de modernização, que se reve- contribuição citando um trecho de lam singulares em comparação com a Martins em seu A sociologia como aven- bibliografia internacional e, por vezes, tura, no qual argumenta que o que dá inacabados ou superficiais. Martins unidade a sua obra “é a investigação compreende essa modernização como da historicidade nas diferentes dimen- uma dialética entre “tempos históricos sões da vida social” (Martins apud Me- desencontrados”, na qual a afirmação deiros, 2018, p. 21). Seus vários estudos do capitalismo não dispensa e até re- sobre a história da cidade de São Ca- cria relações de produção não capita- etano, sobre a sociabilidade fabril ou listas com ressonâncias amplas na sobre a imigração dão testemunho sociabilidade, nos conflitos sociais e dessa abordagem. É contudo especial- nos modos de representação dos ato- mente no trato com o mundo rural e res de suas situações ou de suas pos- agrário que a sociologia histórica de sibilidades. Martins alcança seus maiores frutos. Essa interpretação do Brasil ganha Como sustentam em seus artigos Me- uma dimensão particularmente interes- deiros, Zander Navarro e Élide Rugai sante nos ensaios fotográficos de Mar- Bastos, o interesse de Martins pelo tins, que motivaram a análise de Etienne agrário não está no desenvolvimento Samain (2018). Seus objetos podem ser de uma sociologia específica, mas na a última jornada de trabalho em uma uma festa para josé de souza martins

1036

fábrica de tecidos, a estação “terminal” diferenças de perspectiva orienta a de trem na cidade de Paranapiacaba ou busca da comunicação e da solidarie- as ruínas de uma fábrica de cerâmica. dade entre o pesquisador e as popula- Eles aparecem como marcas do que “fo- ções que estuda. ra e já não era”, meditações visuais sobre Com contribuições tão vastas, re- a passagem do tempo e as transmuta- gistro apenas uma certa timidez nos ções do espaço, questões que aparecem artigos em acessar dimensões mais e reaparecem nos escritos sociológicos polêmicas dos escritos de Martins, em e podem ser vistas em certa continuida- especial seus debates mais contempo- de com eles, sem subtrair seu valor in- râneos sobre os movimentos sociais e trínseco. Neles Martins percebe a sobre- a política brasileira, que exploram ar- posição de temporalidades distintas, gumentos importantes para lidar com como o trem de ferro que já foi símbolo a conjuntura recente. Por fim, sugiro maior do progresso e depois se torna à leitora ou ao leitor que aproveite marca de um passado que sobrevive co- desde o início a belíssima trilha sono- mo memória ou como ruína de uma mo- ra, feita de modas de viola e oferecida dernidade que não sabe o que fazer com por Ivan Villela à festa de Martins, seus resíduos, com sua história. Ele cap- compondo um dos capítulos do livro, ta o fugaz, o desperdício, o abandono, que pode ser escutada por meio de com um olhar crítico a respeito da vio- um hiperlink de internet, num desses lência que isso implica e de virtualidades encontros entre a tradição e o moder- perdidas, mas talvez não inteiramente. no que tanto inspiraram a sociologia Outro ponto alto do livro é a reim- enraizada de José de Souza Martins! pressão de um ensaio de Alfredo Bosi (2018), dedicado a Martins, sobre um Recebida 20/5/2019 conto de Camus, que relata a viagem Aprovada 9/7/2019 de um engenheiro francês à vila de Iguape no interior de São Paulo e as dez., 2019 dez., – relações que ele estabelece com a po- pulação local. No conto, o estranha- mento que decorre do encontro de 1037, set. 1037, – temporalidades e perspectivas distin- tas, − a presença intimidante da téc- nica moderna e de sua racionalidade própria − vai cedendo lugar à empatia, à comunicação e, por fim, à solidarie- dade entre os personagens que, para Camus, é o que dá sentido à vida e que permite resistir – o que sugere uma analogia com um éthos de pes- quisa sociológica que Martins pode inspirar, no qual o conhecimento das sociol. antropol. | rio de janeiro, v.09.03: 1033 | rio de janeiro, antropol. sociol. resenha | felipe maia guimarães da silvai

1037

Referências bibliográficas

Bosi, Alfredo. (2018).Camus na festa do Bom Jesus. In: Frehse, Fraya (org.). A sociologia enraizada de José de Souza Martins. São Paulo: Com-Arte, p. 291- 304. Medeiros, Leonilde. (2018). Singula- ridades do capitalismo brasileiro no mundo rural. In: Frehse, Fraya (org.). A sociologia enraizada de José de Souza Martins. São Paulo: Com-Arte, p. 21- 46. Pais, José Machado.(2018).A interro- gação sociológica: Modos de olhar e desvendar. In: Frehse, Fraya (org.). A sociologia enraizada de José de Souza Martins. São Paulo: Com-Arte, p. 157- 182. Samain, Etienne. (2018). Atravessar o espelho das aparências. In: Frehse, Fraya (org.). A sociologia enraizada de José de Souza Martins. São Paulo: Com- -Arte, p. 209-228. Sposito, Marília. (2018). Uma contri- buição pioneira às relações entre so- ciologia e vida cotidiana. In: Frehse, Fraya (org.). A sociologia enraizada de José de Souza Martins. São Paulo: Com- -Arte, p. 233-248.

Felipe Maia Guimarães da Silva é doutor em Sociologia pelo Iesp-Uerj, com pós-doutorado no Cpdoc-FGV. É professor e pesquisador do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF). Tem atuação nas áreas de teoria social, pensamento social brasileiro e sociologia política. É autor da tese de doutorado Questão agrária e modernização no Brasil e de artigos publicados em revistas científicas. Atualmente coordena o projeto de pesquisa “Crises e críticas: intelectuais, teoria e processos sociais”, com recursos da Fapemig.

http://dx.doi.org/10.1590/2238-38752019v9316

1 Universidad Nacional de General Sarmiento (UNGS), Instituto de Ciencias, Buenos Aires, Argentina [email protected] https://orcid.gov/0000-0003-2662-8771

María Carolina ZapiolaI

Las infancias latinoamericanas entre el arte y la política: una original encrucijada

Josiowicz, Alejandra (2018). La cruzada de los niños. Intelectuales, infancia y modernidad literaria en América Latina. Buenos Aires: Universidad Nacional de Quilmes Editorial, Buenos Aires.

Durante los últimos 20 años, la histo- to de las artes, los medios de comu- ria de la infancia se constituyó en un nicación o el mercado – en la defini- fructífero campo de investigación en ción de las representaciones sociales América Latina. El grueso de las inda- de la infancia, y de las identidades y gaciones se orientó a ponderar el pe- experiencias infantiles (Bontempo, so de las instituciones estatales y de 2012; Raffaini, 2016; Sosenski, 2013; las disciplinas científicas en la defi- Szir, 2006). Sin embargo, hasta hoy, dic., 2019 dic., – nición de modelos normativos de in- han sido inusuales en dicho campo, fancia que se demostraron esenciales, tanto los intentos por conectar ambas

1044, sep. 1044, a su vez, para la cristalización de los vertientes de análisis, como la presen- – órdenes socio-políticos, económicos y cia de expertos en estudios literarios. culturales hegemónicos de las nacio- Por fortuna, La cruzada de los niños nes modernas (Arend, 2011; Aversa, viene a remediar esa doble ausencia. 2015; Carli, 2002; Cosse, 2006; Freiden- La original propuesta de Alejandra raij, 2015; Stagno, 2011; Rizzini, 2002; Josiowicz busca restituir las interre- Speckman Guerra, 2005; Vianna, 2007; laciones entre arte y política desde el Villalta, 2012; Zapiola, 2019). Pero al- mirador de la niñez. Asumiendo la gunas otras repararon en la centrali- perspectiva de la historia cultural y dad que también tienen los discursos apoyándose en la crítica literaria, la y las prácticas de actores no estatales historia del libro y la lectura, y en la – provenientes, por ejemplo, del ámbi- historia de la vida privada y la socio- sociol. antropol. | rio de janeiro, v.09.03: 1039 | rio de janeiro, antropol. sociol. las infancias latinoamericanas entre el arte y la política: una original encrucijada

1040

logía de la cultura, Josiowicz nos su- tol, monarca y maestro de su hija y merge en un exhaustivo y revelador de su esposa, Cuba – y a las lecturas recorrido que abarca textos emblemá- simplificadoras de su obra que la en- ticos, y otros tantos no estudiados – o tienden como expresión de la ideolo- incluso desconocidos – de José Martí, gía machista y patriarcal. Por el con- Horacio Quiroga, Mário de Andrade y trario, en Ismaelillo (1882), en la revis- Clarice Lispector. Su hipótesis es que ta La Edad de Oro (1889) y en las cartas estas figuras paradigmáticas de la mo- a su hija María Mantilla, Martí encar- dernidad literaria latinoamericana na en la infancia un modelo de ciuda- generaron discursos específicos sobre danía revolucionaria y de filiación la infancia. En sus obras, el niño es, a republicana, y reemplaza la relación su vez, un modo de concebir el senti- paterno-filial basada en la autoridad do de lo político, es decir, de reflexio- jerárquica por otra fundada en el lazo nar acerca del orden social vigente y afectivo entre el padre y su hijo ado- sobre los horizontes de transforma- rado. Cabe destacar que en Martí y en ción, y una vía para expresar y expe- Quiroga, la exploración de las repre- rimentar nuevos lenguajes estéticos sentaciones de la paternidad y de la y para vincularse con los mercados filiación desde el punto de vista mas- editoriales. culino constituye un valioso aporte Siguiendo esta línea argumental, para la historiografía latinoamericana, el libro se organiza en cuatro capítulos que apenas ha comenzado a indagar que retoman las “articulaciones sim- en esas cuestiones. bólicas” a través de las cuales la in- Finalmente, Josiowicz devela una fancia se bosquejó en el imaginario activa intervención de Martí en el de esos escritores. La primera se sitúa emergente campo de publicaciones en las últimas décadas del siglo XIX, periódicas y literarias para niños y cuando en diferentes ciudades lati- adultos en los Estados Unidos. Reve- noamericanas y entre las clases me- lación que la lleva a concluir que la dic., 2019 dic., – dias en formación, cristalizó una nue- estética del modernismo no puede ser va concepción del niño como fuente pensada solo en los términos de arti- de afectividad lúdica en el entorno ficiosidad, refinamiento y distinción 1044, sep. 1044, – familiar, requerido de protección para que ha tendido a atribuirle la crítica preservar su pureza e inocencia, para literaria, sino también en su relación desarrollarse físicamente y para con el nuevo mundo de la tecnología transformarse en ciudadano. En ese impresa, la ampliación del público y contexto, a horcajadas entre Cuba y la exposición del autor. Estados Unidos, Martí desarrolló una La segunda articulación se ubica concepción particular sobre la infan- en las dos primeras décadas del siglo cia, cuya reconstrucción sugiere cla- XX, cuando el niño se convierte en un ves interpretativas diferentes a las del sujeto cívico central para los estados imaginario mítico nacionalista – que nacionales rioplatenses. A partir del lo ha representado como padre, após- análisis de los textos infantiles de Ho- sociol. antropol. | rio de janeiro, v.09.03: 1039 | rio de janeiro, antropol. sociol. revisión | maría carolina zapiola

1041

racio Quiroga (cuentos publicados en cas que superaron la dicotomía que diarios y revistas, Cuentos de amor, de oponía el “niño” al “menor” y aposta- locura y de muerte, 1917; Cuentos de la ron a la educabilidad de la naturaleza selva para los niños, 1918; El desierto, infantil. En ese marco, las preocupa- 1924; Suelo natal, 1931 y Más allá, 1935) ciones estéticas y políticas de un in- desatendidos hasta hoy por la crítica telectual como Mário de Andrade se literaria, Josiowicz reconstruye su dis- engarzaron en torno a la infancia; así curso sobre la “crisis” de la infancia y lo muestran los análisis de su produc- la paternidad. Al hacerlo, demuestra ción literaria – en prosa y poesía – y que Quiroga intervino vivamente en su desempeño como director del De- los debates sobre la paternidad, la partamento de Cultura y recreación educación y el rol del Estado en rela- de San Pablo (1935-1938). Andrade ción a la infancia, a través de una li- concibió a los niños y jóvenes como teratura que propone una pedagogía protagonistas de su proyecto de crea- masculina y paterna de la aventura y ción del “hombre brasilero”, por lo que el peligro en la selva como respuesta incentivó a los pequeños paulistas de al monopolio estatal de la educación, diversas etnias y clases sociales a par- la maternalización de la crianza y la ticipar de programas artísticos cuyos urbanización de la existencia. resultados estudió en su búsqueda de Sin embargo, otros aspectos del las bases de una “cultura brasileña” vínculo entre infancia y modernidad que enlazara el universo popular y el fueron abrazados por Quiroga. Así, en letrado. medio de un proceso de expansión de Josiowicz sostiene que ese proyec- la cultura impresa y de diversificación to de renovación cultural atravesado del mercado editorial, Josiowicz lo por preocupaciones sociales se com- descubre como un pionero de la in- plementó en Andrade con una explo- corporación de los niños al mercado ración experimental y radical de lo de consumo a través de una profusa estético. Lo que la lleva a formular una producción publicada en revistas, dia- interpretación de las vanguardias la- rios, libros y textos escolares, que se tinoamericanas diferente a la de la expandió por Argentina, Uruguay y crítica: no dicotómica ni capaz de ser Estados Unidos. discernida en etapas según el peso del La tercera articulación se emplaza vínculo con las problemáticas nacio- en el Brasil de las décadas 1920 a 1940, nales o con las vanguardias interna- cuando el desarrollo de un movimien- cionales, sino en simultáneo y com- to occidental posbélico en favor de los plejo diálogo, tanto con las vanguar- derechos del niño, el ascenso del var- dias artísticas y psicoanalíticas euro- guismo y el surgimiento de los Pione- peas, como con las realidades locales. ros de la Educación Nueva colocaron La cuarta articulación se vincula a la infancia en el centro de los deba- con las transformaciones en los roles tes sobre la nacionalidad y la cuestión de género y en los modelos de crianza social, redundando en políticas públi- acaecidas durante las décadas de 1960 las infancias latinoamericanas entre el arte y la política: una original encrucijada

1042

y 1970. En los entornos urbanos y de cumental es demasiado rico y el aná- clase media de Latinoamérica, co- lisis exquisito, por lo que resultan mienza a pensarse a la mujer fuera inabarcables en estas pocas líneas. del horizonte exclusivo del matrimo- Baste decir entonces, para concluir, nio y la maternidad; se divulga el psi- que La cruzada de los niños es un libro coanálisis y la educación de los hijos esencial para los estudios culturales, se discute desde nuevos parámetros. y para la historia cultural y de la in- En ese contexto, el niño ya no es con- fancia. Su abordaje de las vanguardias cebido únicamente como un objeto de literarias nos ofrece un valioso mode- cuidados físicos, médicos y nutricio- lo para repensar los complejos víncu- nales; también interesan su desarrollo los entre política y cultura, en tanto psíquico y su exitosa inserción social su trazado de escalas espaciales en que la madre/mujer moderna debe función de las trayectorias de vida de garantizar. los autores, de la circulación transna- Josiowicz aborda las tensiones en- cional de ideas, de las redes editoria- tre esas nuevas ideas y las ideologías les en las que se insertaron y de los familiarista e higienista aún vigentes públicos que imaginaron o alcanzaron, en Brasil en una serie de textos poco nos alerta acerca de lo inadecuado estudiados de Clarice Lispector: sus que resulta encorsetar los procesos columnas en revistas femeninas, sus culturales dentro de las fronteras na- crónicas en diarios y sus cuentos in- cionales. Por último, atravesando la fantiles (O mistério do coelho pensante, obra, está el deleite de descubrir a los 1967; A mulher que matou os peixes, íconos de la modernidad literaria la- 1968; A vida íntima de Laura, 1975 y tinoamericana desde un ángulo in- Quase de verdade, 1978). Esa lectura le usual, como lo es el de la infancia, y permite descubrir la negociación en- a partir de textos poco conocidos o tre la experimentación estética y las valorados. Con esta propuesta, Jo- demandas del mercado de bienes cul- siowicz nos hace sentir que los leemos dic., 2019 dic., – turales, expresada en Lispector en un por primera vez. juego de conexiones y contradicciones entre la escritura destinada al público Recibida 28/11/2018 1044, sep. 1044, – de los circuitos literarios y los textos Aprobada 15/3/2019 destinados a un público ampliado, por un lado; y, entre el modelo de mujer convencional – madre y esposa pen- diente del deseo masculino – y el de mujer independiente y transgresora de los límites, por otro. Hasta aquí, una presentación su- cinta de algunos de los principales tópicos y argumentos desplegados por Josiowicz. El recorrido temático y do- sociol. antropol. | rio de janeiro, v.09.03: 1039 | rio de janeiro, antropol. sociol. revisión | maría carolina zapiola

1043

María Carolina Zapiola es doctora en historia por la Facultad de Filosofía y Letras de la UBA, magíster en Sociología de la Cultura y Análisis Cultural por la Universidad Nacional de General San Martín y profesora de historia por la Facultad de Filosofía y Letras de la UBA. Se desempeña como profesora adjunta a cargo de la materia historia latinoamericana I y como investigadora en el Instituto de Ciencias de la Universidad Nacional de General Sarmiento y forma parte del Comité Académico en la Maestría en Historia Contemporánea de la UNGS. Actualmente dirige el Proyecto “Mundos de infancia: trabajo, consumo, lecturas e identidades. Argentina, siglo XX” y es miembro fundadora de la Red de Estudios de Historia de las Infancias en América Latina (REHIAL). Referencias bibliográficas Sosenski, Susana. (2013). El niño con- sumidor: una construcción publicita- Arend, Silvia Fávero. (2011). Histórias ria de mediados de siglo XX. In: Ace- de abandono: infância e justiça no Brasil vedo, Ariadna & Caballero, Paula (década de 1930). Florianópolis: Mu- López. Ciudadanos inesperados. Espacios lheres. de formación de la ciudadanía ayer y hoy. Aversa, María Marta. (2015). “Un mun- Ciudad de México: El Colegio de Mé- do de gente menuda”: el trabajo infantil xico. tutelado, ciudad de Buenos Aires, 1870- Speckman Guerra, Elisa. (2005). In- 1920. Tesis de Doctorado. FFL/Univer- fancia es destino. Menores delin- sidad de Buenos Aires. cuentes en la Ciudad de México Bontempo, Paula. (2012). Los niños de (1884-1910). In: Agostoni, Claudia & Billiken. Las infancias en Buenos Ai- Speckman Guerra, Elisa. De normas y res en las primeras décadas de siglo transgresiones. Enfermedad y crimen en XX. Anuario del Centro de Estudios His- América Latina (1850-1950). Ciudad de tóricos Prof. Carlos S. A. Segreti, Córdo- México: UNAM. ba, 12/12. Stagno, Leandro. (2011). Una infancia Carli, Sandra. (2002). Niñez, pedagogía aparte. La minoridad en la Provincia de y política. Transformaciones de los dis- Buenos Aires (1930-1943). Buenos Ai- cursos acerca de la infancia en la historia res: FLACSO/Libros Libres. de la educación argentina entre 1880 y 1955, Buenos Aires: UBA/Miño y Dá- vila. Szir, Sandra. (2006). Infancia y cultura visual. Los periódicos ilustrados para Cosse, Isabella. (2006). Estigmas de niños (1880-1910). Buenos Aires: Miño nacimiento. Peronismo y orden familiar y Dávila. – 1946-1955. Buenos Aires: FCE. Vianna, Adriana. (2007). El mal que se Freidenraij, María Claudia. (2015). La adivina. Policía y minoridad en Río de niñez desviada. La tutela estatal sobre Janeiro 1910-1920. Buenos Aires: Ad- niños pobres, huérfanos y delincuentes. -Hoc. Buenos Aires, 1890-1919. Tesis de Doc- torado. FFL/Universidad de Buenos Villalta, Carla. (2012). Entregas y se- Aires. cuestros. El rol del Estado en la apropia- ción de niños. Buenos Aires: Ediciones Raffaini, Patricia. (2016). A Voz da In- del Puerto. fância: um jornal escrito para as crian- ças pelas crianças. Trashumante, 8. Zapiola, María Carolina. (2019). Exclui- dos de la niñez. Menores, tutela estatal e Rizzini, Irene. (2002). The Chile-Sa- instituciones de reforma. Buenos Aires, ving Movement in Brazil: ideology in 1890-1930. Buenos Aires: Ediciones the late nineteenth and early twen- UNGS. tieth centuries. In: Hecht, Tobias (ed.). Minor omissions. Wisconsin: Uni- versity of Wisconsin. INSTRUÇÕES PARA OS AUTORES

ESCOPO E POLÍTICA EDITORIAL

Sociologia & Antropologia busca contribuir para a divulgação, expansão e aprimoramento do conhecimento sociológico e antropológico em seus diversos campos temáticos e perspectivas teóricas, valorizando a troca profícua entre as distintas tradições teóricas que configuram as duas disciplinas. Sociologia & Antropologia almeja, portanto, a colaboração, a um só tempo crítica e compreensiva, entre as perspectivas sociológica e antropológica, favorecendo a comunicação dinâmica e o debate sobre questões teóricas, empíricas, históricas e analíticas cruciais. Reconhecendo a natureza pluriparadigmática do conhecimento social, a Revista valoriza assim as oportunidades de intercâmbio entre pontos de vista convergentes e divergentes nesses diferentes campos do conhecimento. Essa é a proposta expressa pelo símbolo “&”, que, no título da revista Sociologia & Antropologia, interliga as denominações das disciplinas que nos referenciam.

Sociologia & Antropologia aceita os seguintes tipos de contribuição em português e inglês: 1) Artigos inéditos (até 9 mil palavras incluindo referências bibliográficas e notas) 2) Registros de pesquisa (até 4.400 palavras). Esta seção inclui: a. Apresentação de fontes e documentos de interesse para a história das ciências sociais b. Notas de pesquisa com fotografias c. Balanço bibliográfico de temas e questões das ciências sociais 3) Resenhas bibliográficas (até 1.600 palavras). 4) Entrevistas dez., 2019 dez.,

– Manuscritos originais podem ser submetidos em português, espanhol,

inglês e francês, porém os textos somente serão publicados em português, espanhol e inglês. Se necessário, o autor se responsabilizará pela tradução. 1050, set. 1050,

– Excepcionalmente será concedido auxílio financeiro.

A pertinência para publicação será avaliada, numa primeira etapa, pela Comissão Editorial no que diz respeito à adequação ao perfil e à linha editorial da revista e, se aprovados, numa segunda etapa, por pareceristas ad hoc brasileiros e estrangeiros, sempre doutores, de reconhecida expertise tema no que diz respeito ao conteúdo e à qualidade das contribuições.

A revista funciona sob o princípio do duplo anonimato: os artigos serão submetidos a dois pareceristas ad hoc e, em caso de pareceres contraditórios, uma terceira avaliação será requerida. Sendo identificado conflito de interesse da parte dos pareceristas, o texto será sociol. antropol. | rio de janeiro, v.09.03: 1045 | rio de janeiro, antropol. sociol. 1046

reencaminhado para avaliação. Os artigos serão avaliados de acordo com os critérios de qualidade e rigor dos argumentos, validade dos dados, oportunidade e relevância para sua área de pesquisa, atualidade e adequação das referências.

A editoria demanda de todos os autores e avaliadores que declarem possíveis conflitos de interesse relacionados a manuscritos submetidos a Sociologia & Antropologia. Entende-se conflito de interesse como qualquer interesse comercial, financeiro ou pessoal relacionados a dados ou questões do estudo de um ou mais autores que levem a potenciais conflitos entre as partes envolvidas. Conflitos de interesse podem influenciar os resultados e conclusões de um estudo e do processo de avaliação. A sua existência não impede a submissão de um artigo ou sua publicação na revista, porém, os autores deverão explicar a razão do conflito aos editores, que tomarão uma decisão sobre o encaminhamento do manuscrito.

A revista encaminhará, em prazo estimado de aproximadamente (6) seis meses, uma carta de decisão sobre o artigo recebido, anexando, de acordo com cada caso, os devidos pareceres. Um dos seguintes resultados será informado: (a) aceito sem alterações; (b) aceito mediante pequenas revisões; (c) reformular e reapresentar para nova avaliação; e (d) negado. Ao revisar os manuscritos aceitos para publicação, os autores devem marcar todas as alterações feitas no texto e justificar devidamente quaisquer eventuais exigências ou recomendações de pareceristas não atendidas.

O periódico segue as diretrizes dos Códigos de Ética do Committee on Publication Ethics (COPE) (), do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (

– www.cnpq.br/web/guest/diretrizes>) e da Fundação de Amparo à

Pesquisa do Estado de São Paulo (). 1050, set. 1050,

– NORMAS PARA APRESENTAÇÃO DE COLABORAÇÕES Forma e preparação de textos

O texto completo não deverá conter os nomes dos autores e deverá incluir notas substantivas (de fim de texto) em algarismos arábicos; referências bibliográficas; título e resumo (entre cem e 150 palavras) acompanhado de cinco palavras-chave, em português e inglês; e, quando for o caso, os créditos das imagens utilizadas. Agradecimentos e notas biográficas dos autores (de até 90 palavras) incluindo formação, instituição, cargo, áreas de interesse e principais publicações deverão ser enviados em arquivo separado. sociol. antropol. | rio de janeiro, v.09.03: 1045 | rio de janeiro, antropol. sociol. 1047

Desenhos, fotografias, gráficos, mapas, quadros e tabelas devem conter título e fonte, e estar numerados. Além de constarem no corpo do artigo, as imagens deverão ser encaminhadas em arquivo separado do texto, em formato .tiff (de preferência) ou .jpg e em alta resolução (300 dpi), medindo no mínimo 17cm (3.000 pixels) pelo lado maior. No caso de imagens que exijam autorização para reprodução, a obtenção da mesma caberá ao autor.

Os textos deverão ser escritos em fonte Times New Roman, tamanho 12, recuo padrão de início de parágrafo, alinhamento justificado, espaçamento duplo e em páginas de tamanho A4 (210x297cm), numa única face.

As notas devem vir ao final do texto, não podendo consistir em simples referências bibliográficas. Estas devem aparecer no corpo do texto com o seguinte formato: (sobrenome do autor, ano de publicação), conforme o exemplo: (Tilly, 1996)

No caso de citações, quando a transcrição ultrapassar cinco linhas deverá ser centralizada em margens menores do que as do corpo do artigo; quando menor do que cinco linhas, deverá ser feita no próprio corpo do texto entre aspas. Em ambos os casos a referência seguirá o formato: (sobrenome do autor, ano de publicação: páginas), conforme os exemplos: (Tilly, 1996: 105) (Tilly, 1996: 105-106)

As referências bibliográficas em ordem alfabética de sobrenome devem vir após as notas, seguindo o formato que aparece nos seguintes exemplos (os demais elementos complementares são de uso facultativo): 1. Livro Pinto, Luis de Aguiar Costa. (1949). Lutas de famílias no Brasil: introdução ao seu estudo. São Paulo: Companhia Editora Nacional. 2. Livro de dois autores Cardoso, Fernando Henrique & Ianni, Octávio. (1960). Cor e mobilidade social em Florianópolis: aspectos das relações entre negros e brancos numa comunidade do Brasil meridional. São Paulo: Companhia Editora Nacional. 3. Livro de vários autores Wagley, Charles et al. (1952). Race and class in rural Brasil. Paris: Unesco. 4. Capítulo de livro Fernandes, Florestan. (2008). Os movimentos sociais no “meio negro”. In: A integração do negro na sociedade de classes. São Paulo: Globo, p. 7-134 (vol. 2). 1048

5. Coletânea Botelho, André & Schwarcz, Lilia Moritz (orgs.). (2009). Um enigma chamado Brasil. São Paulo: Companhia das Letras. 6. Artigo em coletânea organizada pelo mesmo autor Gonçalves, José Reginaldo Santos. (2007). Teorias antropológicas e objetos materiais. In: Antropologia dos objetos: coleções, museus e patrimônios. Rio de Janeiro: Iphan, p. 13-42. 7. Artigo em coletânea organizada pelo autor em conjunto com outro Villas Bôas, Glaucia. (2008). O insolidarismo revisitado em O problema do sindicato único no Brasil. In: Villas Bôas, Glaucia; Pessanha, Elina Gonçalves da Fonte & Morel, Regina Lúcia de Moraes. Evaristo de Moraes Filho, um intelectual humanista. Rio de Janeiro: Topbooks, p. 61-84. 8. Artigo em coletânea organizada por outro autor Alexander, Jeffrey. (1999). A importância dos clássicos. In: Giddens, Anthony & Jonathan Turner (orgs.). Teoria social hoje. São Paulo: Ed. Unesp, p. 23-89. 9. Artigo em Periódico Lévi-Strauss, Claude. (1988). Exode sur exode. L’Homme, XXVIII/2–3, p. 13-23. 10. Tese Acadêmica Veiga Junior, Maurício Hoelz. (2010). Homens livres, mundo privado: violência e pessoalização numa sequência sociológica. Dissertação de Mestrado. PPGSA/Universidade Federal do Rio de Janeiro. 11. Segunda ocorrência seguida do mesmo autor Luhmann, Niklas. (2010). Introdução à teoria dos sistemas. Petrópolis: Vozes. Luhmann, Niklas. (1991). O amor como paixão. Lisboa/Rio de Janeiro: dez., 2019 dez., – Difel/Bertrand Brasil. 12. Consultas on-line Sallum Jr., Brasílio & Casarões, Guilherme. (2011). O impeachment de 1050, set. 1050, – Collor: literatura e processo. Disponível em . Acesso em 9 jun. 2011. sociol. antropol. | rio de janeiro, v.09.03: 1045 | rio de janeiro, antropol. sociol. 1049

ENVIO DE CONTRIBUIÇÕES

Sociologia & Antropologia não assume responsabilidade por conceitos emitidos pelos autores, aos quais solicita que declarem responsabilidade pelo conteúdo do manuscrito submetido, bem como que especifiquem, em caso de coautoria, a participação de cada um na sua versão final, da pesquisa à redação.

Os trabalhos enviados para publicação devem ser originais e inéditos, não sendo permitida sua apresentação simultânea em outro periódico. O sistema Plagius é utilizado para identificação de plágio.

A revista não cobra taxa de submissão, avaliação e processamento dos artigos e tem acesso aberto, seguindo o princípio de que disponibilizar gratuitamente o conhecimento científico ao público proporciona maior democratização mundial do conhecimento.

Possíveis modificações de estrutura ou de conteúdo, por parte da Editoria, serão previamente acordadas com os autores, e não serão admitidas após os trabalhos serem entregues para composição.

Contribuições deverão ser submetidas eletronicamente através do sistema ScholarOne acessando o link:

A revista solicita aos autores que registrem um identificador digital ORCID.

Autores que publicam em Sociologia & Antropologia (1) mantêm os direitos autorais e concedem à revista o direito de primeira publicação, com o trabalho simultaneamente licenciado sob a Licença Creative Commons Attribution que permite o compartilhamento do trabalho com reconhecimento da autoria e publicação inicial nesta revista; (2) têm autorização para assumir contratos adicionais separadamente, para distribuição não exclusiva da versão do trabalho publicada nesta revista (ex.: publicar em repositório institucional ou como capítulo de livro), com reconhecimento de autoria e publicação inicial nesta revista; e (3) têm permissão e são estimulados a publicar e distribuir seu trabalho online (ex.: em repositórios institucionais ou na sua página pessoal e sistemas de auto arquivo), já que isso pode aumentar o impacto e a citação do trabalho publicado (veja O efeito do acesso aberto em ).

1050

Para mais informações, consultar os editores no Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia:

Sociologia & Antropologia Revista do PPGSA Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia/UFRJ Largo de São Francisco de Paula, 1, sala 420 20051–070 – Rio de Janeiro – RJ – Brasil Telefone/Fax +55 (21) 2224–8965 ramal 215 [email protected] sociologiaeantropologia.com.br revistappgsa.ifcs.ufrj.br scielo.br/sant

The guidelines for submitting manuscripts are available in English at our website dez., 2019 dez., –

1050, set. 1050, – sociol. antropol. | rio de janeiro, v.09.03: 1045 | rio de janeiro, antropol. sociol. Preâmbulo. O valor e os benefícios provenientes da pesquisa dependem essencialmente da sua inte- gridade. Embora haja diferenças entre países e entre disciplinas na maneira pela qual a pesquisa é organizada e conduzida, há também princípios e responsabilidades profissionais comuns que são fundamentais para a integridade da mesma, onde quer que seja realizada. PRINCÍPIOS Honestidade em todos os aspectos da pesquisa. Responsabilização na condução da pesquisa. Respeito e imparcialidade profissionais no trabalho com outros. Boa gestão da pesquisa em benefício de outros. RESPONSABILIDADES 1. Integridade: Os pesquisadores devem assim como, em todas as atividades de assumir a responsabilidade pela revisão. confiabilidade de suas pesquisas. 10. Comunicação pública: Os pesquisadores 2. Cumprimento com as regras: Os devem limitar seus comentários profissionais à pesquisadores devem estar cientes das regras sua própria área de especialização e políticas de pesquisa e segui-las em todas as reconhecida quando participarem em etapas. discussões públicas sobre a aplicação e 3. Métodos de pesquisa: Os pesquisadores relevância de resultados de pesquisa, e devem devem utilizar métodos de pesquisa distinguir claramente entre comentários apropriados, embasar as conclusões em uma profissionais e opiniões baseadas em visões análise crítica das evidências e relatar os pessoais. achados e interpretações de maneira integral 11. Notificação de práticas de pesquisa e objetiva. irresponsáveis: Os pesquisadores devem 4. Documentação da pesquisa: Os notificar às autoridades competentes qualquer pesquisadores devem manter documentação suspeita de má conduta profissional, inclusive clara e precisa de suas pesquisas, de maneira a fabricação e/ou falsificação de resultados, que sempre permita a averiguação e plágio e outras práticas de pesquisa replicação do seu trabalho por outros. irresponsáveis que comprometam a 5. Resultados: Os pesquisadores devem confiabilidade da pesquisa, tais como compartilhar seus dados e achados pronta e desleixo, inclusão inapropriada de autores, abertamente, após assegurarem a negligência no relato de dados conflitantes ou oportunidade de estabelecer a prioridade e uso de métodos analíticos enganosos. propriedade sobre os mesmos. 12. Resposta a alegações de práticas de 6. Autoria: Os pesquisadores devem assumir pesquisa irresponsáveis: As instituições de plena responsabilidade pelas suas pesquisa, assim como as revistas, contribuições em todas as publicações, organizações profissionais e agências que solicitações de financiamento, relatórios e tiverem compromissos com a pesquisa em outras representações de suas pesquisas. A questão devem dispor de procedimentos para lista de autores deve sempre incluir todos responder a alegações de má conduta e outras aqueles (mas apenas aqueles) que atendam os práticas de pesquisa irresponsáveis, assim critérios de autoria. como proteger aqueles que, de boa fé, tenham 7. Agradecimentos na publicação: Nas denunciado tais comportamentos. Quando for publicações, os pesquisadores devem confirmada a má conduta ou outra prática de reconhecer os nomes e papéis daqueles que pesquisa irresponsável, devem ser tomadas as fizeram contribuições significativas à pesquisa, medidas cabíveis prontamente, inclusive a inclusive redatores, financiadores, correção da documentação da pesquisa. patrocinadores e outros, mas que não atendem 13. Ambientes de pesquisa: As instituições de aos critérios de autoria. pesquisa devem criar e sustentar ambientes 8. Revisão de pares: Ao participar da que incentivem a integridade através da avaliação do trabalho de outros, os educação, políticas claras e normas razoáveis pesquisadores devem fornecer pareceres para o progresso da pesquisa, ao mesmo imparciais, oportunos e rigorosos. tempo em que fomentam ambientes de 9. Conflitos de interesse: Os pesquisadores trabalho que apóiem a integridade da mesma. devem revelar quaisquer conflitos de interesse, 14. Considerações sociais: Os pesquisadores sejam financeiros ou de outra natureza, que e as instituições de pesquisa devem reconhecer possam comprometer a confiabilidade de seu que têm uma obrigação ética no sentido de trabalho nos projetos, publicações e pesar os benefícios sociais contra os riscos comunicações públicas de suas pesquisas, inerentes apresentados pelo seu trabalho.

A Declaração de Singapura sobre Integridade em Pesquisa foi desenvolvida como parte da II Conferência Mundial sobre Integridade em Pesquisa, realizada de 21 a 24 de julho de 2010, em Singapura, como guia global para a condução responsável de pesquisas. Não é um documento regulatório, nem representa as políticas oficiais dos países e organizações que financiaram ou participaram na Con- ferência. Para informações sobre políticas oficiais, normas e regras na área de integridade em pesquisa, devem ser consultadas as agências nacionais e organizações apropriadas. A Declaração original em inglês está disponível em: .

Revista Dados – 2010 – Vol. 53 no 4 1ª Revisão: 06.01.2011 Cliente: Iuperj – Produção: Textos & Formas