“Agora Eu Sou Uma Estrela”: Memória E Construção De Identidade Por Elis Regina ∗ ANDREA MARIA VIZZOTTO ALCÂNTARA LOPES
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“Agora eu sou uma estrela”: memória e construção de identidade por Elis Regina ∗ ANDREA MARIA VIZZOTTO ALCÂNTARA LOPES “Agora o braço não é mais o braço erguido num grito de gol. Agora o braço é uma linha, um traço, um rastro espelhado e brilhante. E todas as figuras são assim: desenhos de luz, agrupamentos de pontos, de partículas, um quadro de impulsos, um processamento de sinais. E assim – dizem – recontam a vida. Agora retiram de mim a cobertura de carne, escorrem todo o sangue, afinam os ossos em fios luminosos e aí estou, pelo salão, pelas casas, pelas cidades, parecida comigo. Um rascunho. Uma forma nebulosa, feita de luz e sombra. Como uma estrela. Agora eu sou uma estrela!” Elis Regina, em trecho do espetáculo Trem Azul 1. A trajetória de Elis Regina (1945-1982) é marcada pela constante busca de novos referenciais musicais, em que ela se redefine política e esteticamente pela construção de uma nova “imagem de si”. A relação da artista com a indústria fonográfica, a televisão, a crítica musical e a elite intelectual brasileira será marcada por tensões, ambiguidades e constantes transformações. Em espetáculos realizados a partir de meados da década de 1970 – e também em entrevistas impressas ou audiovisuais –, Elis Regina constrói uma memória sobre a sua trajetória artística em que a relação com os meios de comunicação e as gravadoras de discos era apresentada de forma desigual, com a denúncia de um modelo de exploração dos artistas pela indústria cultural. Em uma entrevista concedida à afiliada da Rede Globo no Rio Grande do Sul (RBS), no programa Jornal do Almoço , em 18 de setembro de 1981, Elis explica o sentido do texto declamado no último espetáculo realizado antes de morrer, Trem Azul , que ela estava divulgando nesse programa televisivo: “quando eu deixo de ser eu é que eu sou uma estrela” 2. Por meio de entrevistas concedidas pela intérprete a jornalistas e produtores culturais, este artigo propõe a discussão desse processo de construção de imagem, permeado de conflitos entre os interesses pessoais da artista e as demandas sociais, marcado pelo inter- relacionamento com o seu público, a imprensa e o meio artístico. Um conceito que orienta a discussão aqui proposta é o de memória, entendida como construída social e individualmente. Michael Pollak mostra a relação entre a memória e um “sentimento de identidade”, que é a imagem que a pessoa – ou um grupo – pretende apresentar para si e para os outros, a maneira como deseja ser percebida pelos outros. ∗ Doutoranda em História Social na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) com apoio da CAPES. 1 Texto escrito por Fernando Faro, diretor de Trem Azul , espetáculo que estreou em 1981. 2 Disponível em: <http://www.youtube.com/watch?v=yTRvBcVqRWI>. Acesso em: 10 jan. 2012. 2 Relacionando memória, identidade social e a construção de uma autoimagem, Pollak observa que esta se define a partir de um “Outro”, em processos de trocas e negociações: A construção da identidade é um fenômeno que se produz em referência aos outros, em referência aos critérios de aceitabilidade, de admissibilidade, de credibilidade, e que se faz por meio da negociação direta com outros. Vale dizer que memória e identidade podem perfeitamente ser negociadas, e não são fenômenos que devam ser compreendidos como essências de uma pessoa ou de um grupo (POLLAK, 1992: 204). O autor mostra o caráter instável da identidade, que é construída e reconstruída de acordo com os interesses do seu presente. A construção de novas identidades esteve presente na trajetória de vários artistas, como Elis Regina, com a intenção de reverter a imagem negativa associada a ela por seu público, ou com a intenção de atingir outros segmentos de mercado, ou seja, visando a uma nova recepção, a um novo público. Além do enquadramento da memória, “há também o trabalho da própria memória em [grifo do autor] si. Ou seja, cada vez que uma memória está relativamente constituída, ela efetua um trabalho de manutenção, de coerência, de unidade, de continuidade, da organização” (POLLAK, 1992: 206). De acordo com Fredrik Barth, “cada pessoa está ‘posicionada’ em virtude de um padrão singular formado pela reunião, nessa pessoa, de partes de diversas correntes culturais, bem como em função de suas experiências particulares” (BARTH, 2000: 137). Considerando que as identidades não são fixas ou essencialistas, mas fluidas e construídas em processos não harmônicos de negociação e hibridização cultural, sempre acompanhados de conflitos e disputas, procuro compreender a complexidade envolvida na criação artística, na produção de significados, entendidos como resultantes de um processo de interação social e em que os atores sociais estão sempre ocupando novas posições de sujeito. Neste artigo, proponho como fontes para a discussão duas entrevistas televisivas concedidas por Elis Regina, em momentos diferentes de sua carreira: o programa MPB Especial , apresentado pela TV Cultura em 1973, e a entrevista concedida ao programa Jogo da Verdade , exibido também pela TV Cultura, em 1982, alguns dias antes da sua morte. Do ponto de vista metodológico o objetivo, ao utilizar as entrevistas televisivas, é articular não só o conteúdo da sua fala, mas também outros elementos formais referentes à inflexão, entonação e expressão dessa mesma voz falada, ao mesmo tempo em que perceber os seus gestos corporais, além da seleção das canções e da interpretação vocal – no caso do MPB Especial –, considerando que todos esses elementos são importantes para a configuração de 3 sentidos. (NAPOLITANO, 2006: 235-289) A distância temporal entre as duas entrevistas permite perceber os diferentes contextos em que elas são realizadas e, nesse sentido, as diferentes motivações para as identidades que estão sendo construídas. A perspectiva relacional orienta a discussão, pois não se trata apenas de apreender a construção de identidade por Elis Regina, mas também perceber as expectativas depositadas sobre ela, as críticas e cobranças a ela realizadas. Tem-se um diálogo e é nessas trocas que procuro entender os diferentes posicionamentos de Elis Regina. O conceito de performance desenvolvido por Paul Zumthor tem ajudado a pensar a trajetória e a interpretação de Elis Regina, sugerindo que o intérprete também produz sentidos quando executa uma obra. De acordo com o autor, “a performance , de qualquer jeito, modifica o conhecimento. Ela não é simplesmente um meio de comunicação: comunicando, ela o marca.” (ZUMTHOR, 2007: 32) Entretanto, esse conceito não se refere apenas à forma de interpretar ou executar uma obra, mas a uma ação complexa em que a música (texto) é simultaneamente transmitida e percebida, colocando em comunicação e confronto emissor, música (texto) e receptor. Com o conceito de performance Zumthor propõe não apenas o entendimento do conteúdo e da forma de uma obra que está sendo executada – ou seja, o que está sendo dito e como –, mas propõe também que se pense o circuito que une emissor e receptor, pois “um texto só existe, verdadeiramente, na medida em que há leitores (pelo menos potenciais) aos quais tende a deixar alguma iniciativa interpretativa”. (ZUMTHOR, 2007: 22) Nesta perspectiva, o objetivo é não isolar os elementos desse circuito – emissor, texto e receptor – mas pensá-los de forma interativa e relacional. Há intenções no texto do autor e na emissão do intérprete – que podem até ser divergentes – que podem não corresponder às interpretações (re)criadas pelo público. Porém, acredito que é nesse jogo e nessa troca que o artista constrói a sua obra. Esse conceito me ajuda a pensar como Elis Regina produz mudanças na sua trajetória, em que ela não perde de vista o público a que dirigirá sua obra. Embora o conceito esteja orientando a minha discussão sobre a interpretação de Elis Regina para canções, acredito que também pode auxiliar a pensar as outras formas de expressão e posicionamento da artista, como nas entrevistas aqui analisadas. O programa MPB Especial intercala entrevistas com a apresentação ao vivo de músicas e por se tratar de um audiovisual devem ser analisados os elementos fílmicos referentes à montagem, aos enquadramentos, aos diferentes tipos de planos, à seleção de perguntas e canções, etc. (KORNIS, 1992: 237-250) Enfim, a narrativa que é construída, em que outros personagens – como apresentadores, entrevistadores, músicos –, também são importantes na análise. 4 A metodologia proposta para a discussão procura entender o filme em sua historicidade, pois de acordo com Marcos Napolitano, todo filme é uma representação e deve ser discutido como um “documento histórico de uma época, a época que o produziu.” (NAPOLITANO, 2007: 67) Para uma análise da recepção do filme, é necessário perceber as especificidades da mídia para a qual ele é destinado, em nosso caso, a televisiva, tanto para o programa MPB Especial quanto para a entrevista Jogo da Verdade . Os dois produtos analisados neste artigo foram realizados pela TV Cultura, emissora pública de São Paulo, e atualmente são comercializados pela gravadora Trama. São programas que tiveram vários entrevistados e cuja fórmula era mantida em cada entrevista. Assim, há uma especificidade em relação à artista entrevistada, mas também aspectos formais que são repetidos para todos os entrevistados. O programa Jogo da Verdade era apresentado pelo jornalista Salomão Esper e contava com a presença de outros entrevistadores. Participaram no de Elis Regina o produtor musical e técnico de som Zuza Homem de Mello e o jornalista e crítico musical Maurício Kubrusly. O programa foi transmitido em 10 de janeiro de 1982, nove dias antes da sua morte. Além da presença fixa desses entrevistadores, outras pessoas participaram inquirindo Elis Regina: o compositor Renato Teixeira, de quem ela gravara com sucesso a canção Romaria ; a psicanalista Maria Rita Kehl, que também trabalhava como comentarista de televisão; o produtor João Leão, com quem Elis tivera contato em seu início de carreira; o pianista Amilton Godoi, do Zimbo Trio, conjunto com quem Elis atuou em meados dos anos 1960.