“Agora eu sou uma estrela”: memória e construção de identidade por Elis Regina ∗ ANDREA MARIA VIZZOTTO ALCÂNTARA LOPES

“Agora o braço não é mais o braço erguido num grito de gol. Agora o braço é uma linha, um traço, um rastro espelhado e brilhante. E todas as figuras são assim: desenhos de luz, agrupamentos de pontos, de partículas, um quadro de impulsos, um processamento de sinais. E assim – dizem – recontam a vida. Agora retiram de mim a cobertura de carne, escorrem todo o sangue, afinam os ossos em fios luminosos e aí estou, pelo salão, pelas casas, pelas cidades, parecida comigo. Um rascunho. Uma forma nebulosa, feita de luz e sombra. Como uma estrela. Agora eu sou uma estrela!” Elis Regina, em trecho do espetáculo Trem Azul 1.

A trajetória de Elis Regina (1945-1982) é marcada pela constante busca de novos referenciais musicais, em que ela se redefine política e esteticamente pela construção de uma nova “imagem de si”. A relação da artista com a indústria fonográfica, a televisão, a crítica musical e a elite intelectual brasileira será marcada por tensões, ambiguidades e constantes transformações. Em espetáculos realizados a partir de meados da década de 1970 – e também em entrevistas impressas ou audiovisuais –, Elis Regina constrói uma memória sobre a sua trajetória artística em que a relação com os meios de comunicação e as gravadoras de discos era apresentada de forma desigual, com a denúncia de um modelo de exploração dos artistas pela indústria cultural. Em uma entrevista concedida à afiliada da Rede Globo no (RBS), no programa Jornal do Almoço , em 18 de setembro de 1981, Elis explica o sentido do texto declamado no último espetáculo realizado antes de morrer, Trem Azul , que ela estava divulgando nesse programa televisivo: “quando eu deixo de ser eu é que eu sou uma estrela” 2. Por meio de entrevistas concedidas pela intérprete a jornalistas e produtores culturais, este artigo propõe a discussão desse processo de construção de imagem, permeado de conflitos entre os interesses pessoais da artista e as demandas sociais, marcado pelo inter- relacionamento com o seu público, a imprensa e o meio artístico. Um conceito que orienta a discussão aqui proposta é o de memória, entendida como construída social e individualmente. Michael Pollak mostra a relação entre a memória e um “sentimento de identidade”, que é a imagem que a pessoa – ou um grupo – pretende apresentar para si e para os outros, a maneira como deseja ser percebida pelos outros.

∗ Doutoranda em História Social na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) com apoio da CAPES. 1 Texto escrito por Fernando Faro, diretor de Trem Azul , espetáculo que estreou em 1981. 2 Disponível em: . Acesso em: 10 jan. 2012.

2

Relacionando memória, identidade social e a construção de uma autoimagem, Pollak observa que esta se define a partir de um “Outro”, em processos de trocas e negociações:

A construção da identidade é um fenômeno que se produz em referência aos outros, em referência aos critérios de aceitabilidade, de admissibilidade, de credibilidade, e que se faz por meio da negociação direta com outros. Vale dizer que memória e identidade podem perfeitamente ser negociadas, e não são fenômenos que devam ser compreendidos como essências de uma pessoa ou de um grupo (POLLAK, 1992: 204).

O autor mostra o caráter instável da identidade, que é construída e reconstruída de acordo com os interesses do seu presente. A construção de novas identidades esteve presente na trajetória de vários artistas, como Elis Regina, com a intenção de reverter a imagem negativa associada a ela por seu público, ou com a intenção de atingir outros segmentos de mercado, ou seja, visando a uma nova recepção, a um novo público. Além do enquadramento da memória, “há também o trabalho da própria memória em [grifo do autor] si. Ou seja, cada vez que uma memória está relativamente constituída, ela efetua um trabalho de manutenção, de coerência, de unidade, de continuidade, da organização” (POLLAK, 1992: 206). De acordo com Fredrik Barth, “cada pessoa está ‘posicionada’ em virtude de um padrão singular formado pela reunião, nessa pessoa, de partes de diversas correntes culturais, bem como em função de suas experiências particulares” (BARTH, 2000: 137). Considerando que as identidades não são fixas ou essencialistas, mas fluidas e construídas em processos não harmônicos de negociação e hibridização cultural, sempre acompanhados de conflitos e disputas, procuro compreender a complexidade envolvida na criação artística, na produção de significados, entendidos como resultantes de um processo de interação social e em que os atores sociais estão sempre ocupando novas posições de sujeito. Neste artigo, proponho como fontes para a discussão duas entrevistas televisivas concedidas por Elis Regina, em momentos diferentes de sua carreira: o programa MPB Especial , apresentado pela TV Cultura em 1973, e a entrevista concedida ao programa Jogo da Verdade , exibido também pela TV Cultura, em 1982, alguns dias antes da sua morte. Do ponto de vista metodológico o objetivo, ao utilizar as entrevistas televisivas, é articular não só o conteúdo da sua fala, mas também outros elementos formais referentes à inflexão, entonação e expressão dessa mesma voz falada, ao mesmo tempo em que perceber os seus gestos corporais, além da seleção das canções e da interpretação vocal – no caso do MPB Especial –, considerando que todos esses elementos são importantes para a configuração de

3

sentidos. (NAPOLITANO, 2006: 235-289) A distância temporal entre as duas entrevistas permite perceber os diferentes contextos em que elas são realizadas e, nesse sentido, as diferentes motivações para as identidades que estão sendo construídas. A perspectiva relacional orienta a discussão, pois não se trata apenas de apreender a construção de identidade por Elis Regina, mas também perceber as expectativas depositadas sobre ela, as críticas e cobranças a ela realizadas. Tem-se um diálogo e é nessas trocas que procuro entender os diferentes posicionamentos de Elis Regina. O conceito de performance desenvolvido por Paul Zumthor tem ajudado a pensar a trajetória e a interpretação de Elis Regina, sugerindo que o intérprete também produz sentidos quando executa uma obra. De acordo com o autor, “a performance , de qualquer jeito, modifica o conhecimento. Ela não é simplesmente um meio de comunicação: comunicando, ela o marca.” (ZUMTHOR, 2007: 32) Entretanto, esse conceito não se refere apenas à forma de interpretar ou executar uma obra, mas a uma ação complexa em que a música (texto) é simultaneamente transmitida e percebida, colocando em comunicação e confronto emissor, música (texto) e receptor. Com o conceito de performance Zumthor propõe não apenas o entendimento do conteúdo e da forma de uma obra que está sendo executada – ou seja, o que está sendo dito e como –, mas propõe também que se pense o circuito que une emissor e receptor, pois “um texto só existe, verdadeiramente, na medida em que há leitores (pelo menos potenciais) aos quais tende a deixar alguma iniciativa interpretativa”. (ZUMTHOR, 2007: 22) Nesta perspectiva, o objetivo é não isolar os elementos desse circuito – emissor, texto e receptor – mas pensá-los de forma interativa e relacional. Há intenções no texto do autor e na emissão do intérprete – que podem até ser divergentes – que podem não corresponder às interpretações (re)criadas pelo público. Porém, acredito que é nesse jogo e nessa troca que o artista constrói a sua obra. Esse conceito me ajuda a pensar como Elis Regina produz mudanças na sua trajetória, em que ela não perde de vista o público a que dirigirá sua obra. Embora o conceito esteja orientando a minha discussão sobre a interpretação de Elis Regina para canções, acredito que também pode auxiliar a pensar as outras formas de expressão e posicionamento da artista, como nas entrevistas aqui analisadas. O programa MPB Especial intercala entrevistas com a apresentação ao vivo de músicas e por se tratar de um audiovisual devem ser analisados os elementos fílmicos referentes à montagem, aos enquadramentos, aos diferentes tipos de planos, à seleção de perguntas e canções, etc. (KORNIS, 1992: 237-250) Enfim, a narrativa que é construída, em que outros personagens – como apresentadores, entrevistadores, músicos –, também são importantes na análise.

4

A metodologia proposta para a discussão procura entender o filme em sua historicidade, pois de acordo com Marcos Napolitano, todo filme é uma representação e deve ser discutido como um “documento histórico de uma época, a época que o produziu.” (NAPOLITANO, 2007: 67) Para uma análise da recepção do filme, é necessário perceber as especificidades da mídia para a qual ele é destinado, em nosso caso, a televisiva, tanto para o programa MPB Especial quanto para a entrevista Jogo da Verdade . Os dois produtos analisados neste artigo foram realizados pela TV Cultura, emissora pública de São Paulo, e atualmente são comercializados pela gravadora Trama. São programas que tiveram vários entrevistados e cuja fórmula era mantida em cada entrevista. Assim, há uma especificidade em relação à artista entrevistada, mas também aspectos formais que são repetidos para todos os entrevistados. O programa Jogo da Verdade era apresentado pelo jornalista Salomão Esper e contava com a presença de outros entrevistadores. Participaram no de Elis Regina o produtor musical e técnico de som e o jornalista e crítico musical Maurício Kubrusly. O programa foi transmitido em 10 de janeiro de 1982, nove dias antes da sua morte. Além da presença fixa desses entrevistadores, outras pessoas participaram inquirindo Elis Regina: o compositor Renato Teixeira, de quem ela gravara com sucesso a canção Romaria ; a psicanalista Kehl, que também trabalhava como comentarista de televisão; o produtor João Leão, com quem Elis tivera contato em seu início de carreira; o pianista Amilton Godoi, do Zimbo Trio, conjunto com quem Elis atuou em meados dos anos 1960. O formato do programa também era o mesmo, variando os entrevistadores, e com uma proposta de fazer o “jogo da verdade”, ou seja, de que o artista fosse o mais sincero, mesmo frente a perguntas não desejadas ou inconvenientes. O programa exibido com Elis Regina teve a duração aproximada de 49 minutos, mais os intervalos. O entrevistado ficava sentado, no centro, com os dois entrevistadores convidados de um lado, e o apresentador fixo, Salomão Esper, do lado oposto. Além deles, um telão projetava a imagem dos outros entrevistadores com suas perguntas previamente gravadas, ou seja, o diálogo ao vivo – que permitia respostas e novas perguntas – era travado apenas com os entrevistadores e o apresentador presente na cena. Diferente do programa MPB Especial , que privilegiava os closes do artista entrevistado, em Jogo da Verdade esse enquadramento se alternava com o plano médio e primeiro plano e também entre o entrevistado e os entrevistadores. Neste programa, não havia mais a exibição de música, ao vivo ou gravada, e a linguagem e o formato remetia basicamente a programas de telejornais.

5

O programa MPB Especial começou a ser produzido por Fernando Faro na TV Tupi de São Paulo, em 1969, mas com o nome Ensaio . Quando ele foi trabalhar na TV Cultura o título foi modificado para MPB Especial , pois os direitos autorais pertenciam à TV Tupi. Com o fim da emissora, o programa passou a ser veiculado novamente com o seu primeiro nome, que permanece até hoje. Trata-se de um programa de entrevistas intercalado por apresentações ao vivo de canções. O formato do programa foi considerado inovador em sua época, pois não mostrava o apresentador fazendo as perguntas, sugerindo intimidade com o artista ou ainda uma narrativa espontânea e não dirigida. As informações sobre o MPB Especial foram retiradas da entrevista com Fernando Faro, na qual é reproduzida a ideia de que o programa consegue “tirar de quem vai ao programa o que revela de fato a obra e o ser do artista, você consegue fazer a pessoa se soltar” (ENTREVISTA, 2001: 81). No caso da entrevista com Elis Regina, essa percepção de espontaneidade e de sinceridade é reiterada nos comentários feitos pelos espectadores atuais do programa, disponibilizado na internet por meio do youtube . Em relação aos enquadramentos, são utilizados principalmente primeiros planos e closes , contribuindo para essa ideia de intimidade, de proximidade com o artista. As tomadas de cenas não são apenas do rosto dos artistas, mas também das mãos e outras partes do corpo. No caso do programa com Elis Regina são significativos os closes na mão que parece ansiosa, mexendo com o anel, tirando-o do dedo, brincando com o colar. A fala de Elis também contribui para essa impressão de desnudamento, de intimidade e de entrega, pois ela aborda aspectos bastante íntimos, como a relação com o seu pai e possíveis desentendimentos com o compositor . O programa MPB Especial com Elis Regina teve duração aproximada de 1 hora e 35 minutos, mais os intervalos. A fonte utilizada é o programa comercializado pela gravadora Trama. Foi gravado ainda em preto-e-branco, pois a televisão em cores estava sendo introduzida no Brasil neste ano de 1973. Os primeiros programas, ainda na TV Tupi, foram com , , Maria Bethânia e Tom Zé, entre outros. A partir de 1972, na TV Cultura, contou com a participação de Elis Regina, Lupicínio Rodrigues, Ciro Monteiro, Dick Farney e Lúcio Alves. Em todos esses programas o formato é o mesmo, sem o apresentador fazendo as perguntas, com mesmos ângulos e enquadramentos nas tomadas de cenas dos artistas, com a criação de um caráter intimista. Assim, permanece um modelo de programa, mas que permite a individualização pela presença de cada artista entrevistado e que interpreta as canções. Dentro dos limites deste artigo, estabeleci alguns recortes para a análise das duas entrevistas, priorizando a construção da memória por parte de Elis Regina em relação à sua

6

trajetória artística. Assim, serão enfocadas as questões relativas ao início de sua carreira, à sua relação com os meios de comunicação, a imprensa e a classe artística. Pode-se perceber esse processo de construção da memória já em 1965. Nesse ano, em abril, Elis Regina venceu o I Festival Nacional de Música Popular Brasileira. Era um período de intensa produção musical da artista, que também se apresentava no Teatro Paramount, em São Paulo, com outro cantor de popularidade crescente, . Desse primeiro encontro resultaria a gravação de um LP ao vivo, o Dois na Bossa – que vendeu em torno de 500 mil cópias e foi considerado o maior sucesso fonográfico até então –, e o comando do programa O fino da bossa , que estrearia na TV Record em 17 de maio e consolidaria o seu sucesso, agora atingindo outros estados brasileiros por meio do videotape . Ela já havia gravado o long-playing (LP) , eu canto assim – quinto disco solo de carreira – e lançado o compacto simples com o seu mais recente sucesso, Menino das laranjas , de Theo de Barros, junto com Sou sem paz , de Adilson Godói. Quando venceu o concurso, já possuía algum prestígio e reconhecimento como cantora, já tendo sido contemplada com alguns prêmios em 1964, como o de melhor cantora, o Troféu Imprensa de São Paulo e o Roquette Pinto, entre outros. Esse primeiro sucesso inicial e em menor escala foi ampliado para um público maior com a vitória dupla no festival da Excelsior: o primeiro lugar obtido pela canção Arrastão , de Edu Lobo e , e o prêmio de Melhor Intérprete. Nesse momento, Elis assumia em entrevistas novas referências musicais, afirmando que queria cantar “aquela música moderna que dissesse das coisas de seu povo e não as impingidas pelas gravadoras, que, numa conceituação mercantilizada, se limitavam a dar-lhe roques, tuístes e baladas.” 3 Até esse momento ela já havia gravado quatro LPs com um repertório bem mais eclético que o mencionado e que incluía sambalanços e bossa nova. É interessante perceber que é nesta mesma época em que a gravadora Continental lançava o LP Elis (é) Regina 4 compilando suas primeiras gravações, que incluíam “de tudo, até boleros” 5 – aproveitando o sucesso da cantora que apresentava o musical O fino da bossa na TV Record de São Paulo –, que ela negava toda a sua carreira pregressa. Assim, esse repertório que “incluía de tudo, até boleros” tornava-se imposição comercial da gravadora sobre uma cantora

3 ELA vem de Arrastão. O Cruzeiro , 24 jul. 1965, p. 46. 4 Após o primeiro disco, Viva a Brotolândia , a grafia passou a ser Ellis Regina. Apenas no quinto disco voltaria a ser Elis, com um “l” apenas. Em matérias jornalísticas durante os anos de 1964 e 1965, nos jornais e revistas de São Paulo e Rio de Janeiro, é comum a confusão na grafia do seu nome. 5 INTERVALO musical. Intervalo , São Paulo, n. 131, p. 42, 11 a 17 jul. 1965.

7

estreante, tirando-lhe qualquer responsabilidade ou interação afetiva ou artística com o disco. E a fase em que “ela só cantava música americana” era deixada para trás. 6 É significativo que na mesma edição da revista Intervalo 7 seja veiculada tanto a notícia sobre o lançamento da coletânea da Continental – que mostrava uma produção que contrariava o que ela buscava construir musicalmente naquele momento – quanto uma matéria que falava do seu sucesso recente, de conteúdo estético diferente daquele compilado pela gravadora Continental. O “fantasma” da gravação de Viva a Brotolândia – pois os outros discos serão ignorados tanto pela intérprete como pela imprensa – estará presente até a sua última entrevista, no programa Jogo da Verdade . A imposição mercadológica ganhava uma feição mais definida no programa MPB Especial , pois agora Elis Regina afirmava que fora contratada para ser uma nova Celly Campello – cantora contratada pela Odeon – da Continental, o que teria ocasionado o seu descontentamento com a gravadora, pois achava “esse negócio de lançar alguém para combater alguém uma pobreza total, completa e absoluta.” 8 Essa memória que Elis construiu sobre o início da sua carreira acabou tornando-se hegemônica e homogeneizando os quatro primeiros discos da intérprete, que costumam ser desconsiderados pela historiografia e pesquisa musical, reduzidos à fase em que ela foi construída para ser uma nova “Celly Campello”. 9 Entretanto, já em sua última entrevista televisiva, para o programa Jogo da Verdade , ela continuava afirmando que não gostou de ter sido obrigada a ser uma outra pessoa na hora de gravar o disco. Já o repertório imposto pela gravadora era agora classificado como “gostoso” para uma jovem iniciante de 16 anos cantar 10 . É sobre o seu primeiro disco (Viva a Brotolândia ) a primeira pergunta do programa, feita por Renato Teixeira, do qual ele se declara fã, pois era um “grande disco, o maior barato”. Ele é um dos novos compositores “revelados” por Elis Regina, ou seja, que tem uma canção transformada em sucesso, o que possibilitava a abertura de caminho para novos trabalhos. No início de 1982, com o processo de abertura democrática e sem as mesmas cobranças ocorridas durante a década de 1970, por

6 ARRASTÃO de Elis balança o Brasil. Intervalo , São Paulo, n. 131, p. 7, 11 a 17 jul. 1965. 7 Revista dedicada à programação televisiva, com grande espaço para a produção musical. A grafia era InTerValo, destacando já no próprio título a sua orientação temática. 8 Trecho extraído do programa MPB Especial . 9 Essa memória foi mantida pela jornalista Regina Echeverria na biografia Furacão Elis , lançada em 1985, pelo Círculo do Livro e Editorial Nórdica, e reeditada em 1994 e 2007, pela Ediouro. Na primeira edição da biografia, cuja pesquisa discográfica foi realizada por Maria Luiza Kfouri, só constam três discos da fase inicial. Apenas nas novas edições é que foi incluído o seu disco Ellis Regina , de 1963, e também o seu primeiro compacto simples, com Dá sorte e Sonhando. 10 Extraído do programa Jogo da Verdade .

8

uma postura mais crítica do artista perante a ditadura civil-militar e por uma obra que expressasse a realidade social do Brasil, era substituída a crítica pejorativa pela valorização do primeiro disco. O livro Patrulhas Ideológicas Marca Reg. captou o debate entre as chamadas “patrulhas ideológicas” e as “patrulhas odaras” a partir de entrevistas com vários artistas e intelectuais, que seriam, segundo os organizadores, “representativos das mais diversas posições e papéis na área da produção cultural”. (PEREIRA; HOLLANDA, 1980: 12) Nas entrevistas, fica evidente uma disputa pela hegemonia dentro do campo de criação artística e uma crise no pensamento da esquerda. Entre as referências musicais assumidas por Elis Regina ao longo de sua carreira – e também perceptível pela audição de várias de suas interpretações – está Ângela Maria. Embora essa influência já possa ser percebida pela audição dos primeiros fonogramas de Elis Regina, em Viva a Brotolândia , e permaneça em registros realizados em meados dos anos 1960, já pela Philips, será apenas em 1972 que a influência será assumida publicamente. Ao mesmo tempo em que “revelava” o interesse da gravadora em contratá-la para concorrer com a cantora Celly Campelo, o que explicaria o resultado sonoro, os arranjos e o repertório do seu primeiro disco, Elis Regina também apresentava uma das suas primeiras referências musicais: a cantora Ângela Maria. O disco Elis , lançado em 1972, pela Philips, traz algumas mudanças no repertório da intérprete, agora com todos os arranjos feitos pelo pianista , que anteriormente tocara com Wilson Simonal. Ele e Elis promovem mudanças em seus estilos interpretativos, afastando-se da soul music que marcou a música popular brasileira do início da década de 1970, com repercussão nas obras de , Gal Costa, Roberto Carlos, , além de Elis Regina, entre outros. Cantora de enorme popularidade na década de 1950, o sucesso da canção Vida de bailarina , de Chocolate (Américo Seixas) e Dorival Silva, impulsionou o bicampeonato de Ângela Maria como “Rainha do Rádio”, em 1954, em eleição promovida pela Revista do Rádio . Essa canção foi regravada por Elis Regina nesse disco de 1972. Juntas, elas protagonizaram um quadro musical no programa Elis Especial 11 , produzido pela Rede Globo, em 1972, em que primeiro Elis interpreta Vida de bailarina , saindo de cena para Ângela Maria interpretar uma canção do repertório de Elis, Pra dizer adeus , de Edu Lobo e Torquato Neto, gravada no LP Elis , de 1966.

11 Disponível em: http://www.youtube.com/watch?v=fyKUESQV-to. Acesso em: 10 dez. 2011. Tanto no especial da televisão quanto na gravação para o disco Elis , de 1972, a canção teria sua letra cortada pela metade, com as quatro últimas estrofes suprimidas, o que retirava boa parte da carga dramática e o conteúdo conservador da letra.

9

Além da regravação dessa canção, esse disco traz também outro sucesso do rádio, a valsa Boa noite, amor , de José Maria de Abreu e Francisco Matoso, gravada por Francisco Alves e utilizada como prefixo e sufixo de suas apresentações radiofônicas. No programa MPB Especial , Elis afirmava a importância dos intérpretes da Rádio Nacional e, sobretudo, de Francisco Alves. Segundo ela, a família parava para assistir ao seu programa de domingo, ao meio-dia, e a morte trágica do cantor, em acidente automobilístico em 1952, causou impacto em seus pais, que sofreram como se fosse alguém da família que tivesse morrido. Segundo Tinhorão, essa reação foi compartilhada por muitos brasileiros que acompanhavam a Rádio Nacional e teve um caráter de comoção nacional. (TINHORÃO, 1981) Esses dois artistas marcam momentos diferentes da escuta de Elis Regina, que contava com apenas sete anos quando Francisco Alves morreu, enquanto a carreira de Ângela Maria se consolida quando ela realiza suas primeiras apresentações radiofônicas. Elis cantava no programa de auditório Clube do Guri , na Rádio Farroupilha de , os sucessos nacionais e estrangeiros que ouvia no rádio, além de canções do repertório de Ângela Maria. Não são poucos os casos de cantores que começam a carreira de forma mimética, inspirando- se nos seus artistas preferidos até encontrar a sua forma própria de expressão, como Ângela Maria, que se inspirava em Dalva de Oliveira, João Gilberto em Orlando Silva, e vários intérpretes surgidos após João Gilberto, que se inspiravam nele, como o ainda pré-tropicalista . No programa MPB Especial , ao cantar a composição 20 anos blue , de Sueli Costa e Vítor Martins, Elis admite sua identificação com a canção, afirmando que “tem muita coisa a ver comigo, as coisas da letra, eu também tenho mais de vinte muros [...] aquilo ali é muito parecido comigo”. Pela característica do programa torna-se bem mais complexa a construção da sua imagem, que não se dá apenas pela fala discursiva da entrevista, mas também pelas canções escolhidas para compor o repertório da entrevista. Afinal, a letra da canção com a qual se identifica diz “ontem de manhã quando acordei, olhei a vida e me espantei, eu tenho mais de vinte anos, eu tenho mais de mil perguntas sem respostas”. Entra em cena uma jovem que procura refazer o seu percurso, repensar suas escolhas, que ainda tem muitas perguntas e medos a enfrentar. Essas escolhas eram musicais, mas que também se relacionavam com o contexto político da época. Durante o ano de 1972, Elis Regina participou de eventos comemorativos do Sesquicentenário da Independência, nos dias 21 de abril e 7 de setembro, e também apareceu na Rede Globo para convocar a população a comparecer aos eventos e cantar junto. O país passava por um momento mais repressivo da ditadura e alguns intelectuais e artistas de

10

esquerda já vinham cobrando uma postura mais ativa contra o regime, ou pelo menos sem uma atuação que pudesse ser considerada apologética. A atitude de Elis foi considerada como de apoio ao governo e ela foi duramente criticada pelo cartunista Henfil, por meio do seu personagem Cabôco Mamadô, que “chupava o cérebro” e colocava no seu “cemitério dos mortos vivos” vários artistas e intelectuais que não se identificassem com uma postura crítica ao regime militar. Por lá passaram Wilson Simonal, Nara Leão, Elis Regina, Dom e Ravel, e outros, entre os anos de 1970 e 1972, seja por atuarem como jurados no Festival Internacional da Canção, como no caso de Nara Leão, seja por canções ou declarações consideradas ufanistas, como no caso de Elis Regina. Contudo, a crítica a ela – assim como a Wilson Simonal – foi bastante contundente. Ela foi enterrada duas vezes no cemitério dos mortos- vivos, sendo que na segunda, após ter reclamado publicamente da atitude do cartunista, ela é transformada em Maurice Chevalier, que “convidado por Hitler fazia show na Alemanha”, em 1945. (ECHEVERRIA, 1994: 158) Nesse mesmo ano, Elis rescindiu o contrato com a Rede Globo e em outubro é lançado o novo disco Elis, no qual se torna explícita a influência de Ângela Maria. Nesta mudança, a artista procura desvincular-se da emissora que vinha sendo combatida pelos intelectuais de esquerda, por suas ações de apoio e legitimação à ditadura civil-militar. Desde 1964 a intérprete vinha atuando em musicais televisivos, obtendo grande receptividade entre o público, principalmente com o comando de O fino da bossa , entre 1965 e 1967, pela TV Record, e com os programas produzidos pela Rede Globo, entre 1968 e 1972, como o Exportação e o Elis Especial . Ao mesmo tempo em que atingia o sucesso popular tinha sua imagem também ligada à Rede Globo, emissora considerada “oficial” do regime pela esquerda. O programa MPB Especial marca esse momento de redefinição da carreira de Elis Regina, o seu rompimento com a Rede Globo como artista contratada e sem aparecer em programas audiovisuais da emissora. No meio da década ela optaria por atuar na Rede Bandeirantes. Era uma postura assumida também por outros artistas, como Chico Buarque. Porém, o início dos anos 1980 já mostra uma nova fase em que esses mesmos artistas já vinham se relacionando com a emissora. As falas eram menos tensas, pois o país passava por um processo de redemocratização com abrandamento da censura artística. Isso é perceptível nas falas das duas entrevistas. Um caráter intimista e introspectivo é substituído por um tom mais combativo e direto. A ansiedade era demonstrada em pequenos detalhes da câmera que focalizava a mão de Elis Regina, a timidez enfatizada em sua própria fala e no modo de expressão, pois a câmera priorizava o seu rosto em ângulos indiretos, de perfil, como se ela se

11

esquivasse do interlocutor. No Jogo da Verdade já aparece uma artista consagrada pelo público e pela crítica especializada, e lembrada como criadora de frases inspiradas, sendo comparada a Joãozinho Trinta e João Saldanha pelo apresentador Salomão Esper. Já no fim da entrevista, respondendo sobre o cenário musical da época, Elis afirmava “desculpe a falta de modéstia, mas a nossa geração foi o seguinte [...] depois ficou muito pastel, muita feira, mas feijoada mesmo fomos nós que fizemos”. Essa transformação pessoal de Elis se une a mudanças no seu repertório e também na imagem que procura construir na mídia. Entretanto, nesse processo de construção identitária procuro não tomar essas transformações meramente como estratégia publicitária ou tentativa de conquistar novos públicos, mas um processo relacional em que a sua carreira se modifica, bem como a artista, em contato com o público, o convívio profissional, a imprensa. Um processo de trocas e negociações em que demandas sociais se misturam aos anseios pessoais e motivações profissionais da artista.

Referências BARTH, Fredrik. O Guru, o iniciador e outras variações antropológicas . Rio de Janeiro: Contracapa, 2000.

ECHEVERRIA, Regina. Furacão Elis . São Paulo: Globo, 1994.

KORNIS, Mônica Almeida. “História e cinema: um debate metodológico”. In: Estudos Históricos , vol. 5, nº 10, 1992, p. 237-250.

NAPOLITANO, Marcos. A escrita fílmica da história e a monumentalização do passado: uma análise comparada de Amistad e Danton. In: CAPELATO, Maria Helena et al. História e cinema . São Paulo: Alameda, 2007, p. 65-84.

_____. “A história depois do papel”. In: PINSKY, Carla. (Org.) Fontes históricas . 2. ed. São Paulo: Contexto, 2006, p. 235-289.

POLLAK, Michael. "Memória e identidade social”. In: Estudos Históricos , vol. 5, nº 10, 1992.

TINHORÃO, J. R. Música popular – do gramofone ao rádio e TV. São Paulo: Ática, 1981.

ZUMTHOR, Paul. Performance, recepção e leitura . Tradução de Jerusa Pires Ferreira e Suely Fenerich. São Paulo: Cosac & Naify, 2007.

12

Fontes ARRASTÃO de Elis balança o Brasil. Intervalo , São Paulo, n. 131, p. 7, 11 a 17 jul. 1965.

ELA vem de Arrastão. O Cruzeiro, 24 jul. 1965, p. 43-7.

INTERVALO musical. Intervalo , São Paulo, n. 131, p. 42, 11 a 17 jul. 1965.

PEREIRA, Carlos Alberto M.; HOLLANDA, Heloísa Buarque de. Patrulhas ideológicas Marca Reg. : arte e engajamento em debate. São Paulo: Brasiliense, 1980.

POR UMA TV de vanguarda. Revista Comunicação & Educação , São Paulo, n. 21, p. 77-86, maio/ago. 2001. Entrevista.

Entrevista de Elis Regina concedida ao Jornal do Almoço , transmitido pela Rede Brasil Sul (RBS), afiliada da Rede Globo no Rio Grande do Sul. Disponível em: . Acesso em: 10 jan. 2012.

Entrevista concedida ao programa Jogo da Verdade. DVD Elis edição especial . São Paulo: Trama/TV Cultura, 2006.

Elis Regina, MPB Especial. Programa Ensaio. São Paulo: Trama, 2004.

Quadro musical de Elis Regina e Ângela Maria no programa Elis Especial , produzido pela TV Globo. Disponível em: Acesso em: 10 dez. 2011.