Biblioteca Digital da Câmara dos Deputados Centro de Documentação e Informação Coordenação de Biblioteca http://bd.camara.gov.br

"Dissemina os documentos digitais de interesse da atividade legislativa e da sociedade.” Câmara dos Deputados Memória do Servidor Memória do Servidor

Tarcísio Holanda Este livro baseia-se no testemunho de Paulo Affonso Martins de Oliveira Nasceu a 28 de junho de 1936, em Paulo Affonso Martins de Oliveira sobre acontecimentos marcantes da Fortaleza. Autodidata, começou a história contemporânea do Brasil, da carreira jornalística na imprensa do Constituinte de 1946 à de 1988, para a Ceará, em 1952. Em 1962, transferiu- qual tanto contribuiu como assessor se para o , trabalhando e eminência parda do presidente da na Última Hora e no Jornal do Brasil, Câmara dos Deputados e da Consti- onde ficou por quase 20 anos. Repór- Paulo de Oliveira Martins Affonso O Congresso em Meio Século tuinte, essa figura extraordinária que ter político no Rio, mudou-se para foi o deputado Ulysses Guimarães. Depoimento a Tarcísio Holanda | 2a Edição Brasília, em julho de 1975, aqui atuan- Paulo Affonso exerceu o serviço públi- do até hoje, como mediador de deba- co de 1946 a 1997, 42 anos na Câmara tes na TV Câmara. Muitas vezes, indagava-me se teria o direito de revelar fatos de que tomei conhe- dos Deputados, 23 dos quais no cargo cimento e dos quais participei em razão de ofício, de um lado, e, de outro, graças à Teve longa carreira na televisão: de Secretário-Geral. Ao longo desse honrosa confiança que em mim depositaram aqueles com os quais tive o privilé- acompanhou o Jornal de Vanguarda, tempo, conviveu com alguns dos mais gio de trabalhar. Não se trata, portanto, de livro de memórias, mas do testemunho de Fernando Barbosa Lima, a quase brilhantes políticos brasileiros do sécu- de alguém que viveu intensamente período político de grande relevância para a todas as estações do Rio, na época, in- lo passado, revelados pela Constituinte compreensão da história política contemporânea. clusive à TV Globo, da qual foi chefe de 1946, muitos deles gerados no ven- de reportagem (1965/1966). Também tre do Estado Novo, quando não nas faculdades, nas redações dos jornais participou do programa Abertura, de Paulo Affonso Martins de Oliveira e nas ruas do país, nas lutas travadas Barbosa Lima, transmitido nacional- em Meio Século O Congresso mente pela TV Tupi, em 1979. contra a ditadura de Getúlio Vargas. Da gávea privilegiada em que se si- tuava, assistiu ao nascimento de três Constituições (as de 46, 67 e 88), e a toda a turbulenta crônica que vai do suicídio de Vargas à renúncia de Jânio, à resistência e posse do presiden- te João Goulart e sua deposição em março/abril de 1964, ao ocaso da di- tadura, à redemocratização, incluin- | do a doença e morte de Tancredo e a 2 a

E posse de Sarney. E, aqui, ele também

dição traça o perfil de cada um dos 13 pre- sidentes com os quais teve oportuni- dade de conviver.

4 Brasília – 2009 Câmara dos Deputados Memória do Servidor Memória do Servidor

Tarcísio Holanda Este livro baseia-se no testemunho de Paulo Affonso Martins de Oliveira Nasceu a 28 de junho de 1936, em Paulo Affonso Martins de Oliveira sobre acontecimentos marcantes da Fortaleza. Autodidata, começou a história contemporânea do Brasil, da carreira jornalística na imprensa do Constituinte de 1946 à de 1988, para a Ceará, em 1952. Em 1962, transferiu- qual tanto contribuiu como assessor se para o Rio de Janeiro, trabalhando e eminência parda do presidente da na Última Hora e no Jornal do Brasil, Câmara dos Deputados e da Consti- onde ficou por quase 20 anos. Repór- Paulo de Oliveira Martins Affonso O Congresso em Meio Século tuinte, essa figura extraordinária que ter político no Rio, mudou-se para foi o deputado Ulysses Guimarães. Depoimento a Tarcísio Holanda | 2a Edição Brasília, em julho de 1975, aqui atuan- Paulo Affonso exerceu o serviço públi- do até hoje, como mediador de deba- co de 1946 a 1997, 42 anos na Câmara tes na TV Câmara. Muitas vezes, indagava-me se teria o direito de revelar fatos de que tomei conhe- dos Deputados, 23 dos quais no cargo cimento e dos quais participei em razão de ofício, de um lado, e, de outro, graças à Teve longa carreira na televisão: de Secretário-Geral. Ao longo desse honrosa confiança que em mim depositaram aqueles com os quais tive o privilé- acompanhou o Jornal de Vanguarda, tempo, conviveu com alguns dos mais gio de trabalhar. Não se trata, portanto, de livro de memórias, mas do testemunho de Fernando Barbosa Lima, a quase brilhantes políticos brasileiros do sécu- de alguém que viveu intensamente período político de grande relevância para a todas as estações do Rio, na época, in- lo passado, revelados pela Constituinte compreensão da história política contemporânea. clusive à TV Globo, da qual foi chefe de 1946, muitos deles gerados no ven- de reportagem (1965/1966). Também tre do Estado Novo, quando não nas faculdades, nas redações dos jornais participou do programa Abertura, de Paulo Affonso Martins de Oliveira e nas ruas do país, nas lutas travadas Barbosa Lima, transmitido nacional- em Meio Século O Congresso mente pela TV Tupi, em 1979. contra a ditadura de Getúlio Vargas. Da gávea privilegiada em que se si- tuava, assistiu ao nascimento de três Constituições (as de 46, 67 e 88), e a toda a turbulenta crônica que vai do suicídio de Vargas à renúncia de Jânio, à resistência e posse do presiden- te João Goulart e sua deposição em março/abril de 1964, ao ocaso da di- tadura, à redemocratização, incluin- | do a doença e morte de Tancredo e a 2 a

E posse de Sarney. E, aqui, ele também

dição traça o perfil de cada um dos 13 pre- sidentes com os quais teve oportuni- dade de conviver.

4 Brasília – 2009 Câmara dos Deputados Memória do Servidor Memória do Servidor

Tarcísio Holanda Este livro baseia-se no testemunho de Paulo Affonso Martins de Oliveira Nasceu a 28 de junho de 1936, em Paulo Affonso Martins de Oliveira sobre acontecimentos marcantes da Fortaleza. Autodidata, começou a história contemporânea do Brasil, da carreira jornalística na imprensa do Constituinte de 1946 à de 1988, para a Ceará, em 1952. Em 1962, transferiu- qual tanto contribuiu como assessor se para o Rio de Janeiro, trabalhando e eminência parda do presidente da na Última Hora e no Jornal do Brasil, Câmara dos Deputados e da Consti- onde ficou por quase 20 anos. Repór- Paulo de Oliveira Martins Affonso O Congresso em Meio Século tuinte, essa figura extraordinária que ter político no Rio, mudou-se para foi o deputado Ulysses Guimarães. Depoimento a Tarcísio Holanda | 2a Edição Brasília, em julho de 1975, aqui atuan- Paulo Affonso exerceu o serviço públi- do até hoje, como mediador de deba- co de 1946 a 1997, 42 anos na Câmara tes na TV Câmara. Muitas vezes, indagava-me se teria o direito de revelar fatos de que tomei conhe- dos Deputados, 23 dos quais no cargo cimento e dos quais participei em razão de ofício, de um lado, e, de outro, graças à Teve longa carreira na televisão: de Secretário-Geral. Ao longo desse honrosa confiança que em mim depositaram aqueles com os quais tive o privilé- acompanhou o Jornal de Vanguarda, tempo, conviveu com alguns dos mais gio de trabalhar. Não se trata, portanto, de livro de memórias, mas do testemunho de Fernando Barbosa Lima, a quase brilhantes políticos brasileiros do sécu- de alguém que viveu intensamente período político de grande relevância para a todas as estações do Rio, na época, in- lo passado, revelados pela Constituinte compreensão da história política contemporânea. clusive à TV Globo, da qual foi chefe de 1946, muitos deles gerados no ven- de reportagem (1965/1966). Também tre do Estado Novo, quando não nas faculdades, nas redações dos jornais participou do programa Abertura, de Paulo Affonso Martins de Oliveira e nas ruas do país, nas lutas travadas Barbosa Lima, transmitido nacional- em Meio Século O Congresso mente pela TV Tupi, em 1979. contra a ditadura de Getúlio Vargas. Da gávea privilegiada em que se si- tuava, assistiu ao nascimento de três Constituições (as de 46, 67 e 88), e a toda a turbulenta crônica que vai do suicídio de Vargas à renúncia de Jânio, à resistência e posse do presiden- te João Goulart e sua deposição em março/abril de 1964, ao ocaso da di- tadura, à redemocratização, incluin- | do a doença e morte de Tancredo e a 2 a

E posse de Sarney. E, aqui, ele também

dição traça o perfil de cada um dos 13 pre- sidentes com os quais teve oportuni- dade de conviver.

4 Brasília – 2009 1 Paulo Affonso Martins de Oliveira O Congresso em Meio Século

Depoimento a Tarcísio Holanda | 2a Edição Mesa da Câmara dos Deputados 53ª Legislatura 3ª Sessão Legislativa 2009

Presidente 1o Vice-Presidente 2o Vice-Presidente Antônio Carlos Magalhães Neto 1o Secretário Rafael Guerra 2o Secretário Inocêncio Oliveira 3o Secretário Odair Cunha 4o Secretário Nelson marquezelli

Suplentes de Secretário 1o Suplente Marcelo Ortiz 2o Suplente Giovanni Queiroz 3o Suplente Leandro Sampaio 4o Suplente Manoel Junior

Diretor-Geral Sérgio Sampaio Contreiras de Almeida Secretário-Geral da Mesa Mozart Vianna de Paiva Câmara dos Deputados

Memória do Servidor

Paulo Affonso Martins de Oliveira

O Congresso em Meio Século

Depoimento a Tarcísio Holanda | 2a Edição

Centro de Documentação e Informação Edições Câmara

Brasília, 2009 Câmara dos Deputados Câmara dos Deputados Centro de Documentação e Informação – Cedi Diretoria Legislativa Coordenação Edições Câmara – Coedi Diretor Afrísio Vieira Lima Filho Anexo II – Praça dos Três Poderes CENTRO DE DOCUMENTAÇÃO E INFORMAÇÃO Brasília (DF) – CEP 70160-900 Telefone: (61) 3216-5809; fax: (61) 3216-5810 Diretor Adolfo C. A. R. Furtado [email protected] COORDENAÇÃO Edições câmara Diretora Maria Clara Bicudo Cesar Projeto gráfico Suzana Curi Capa e diagramação Marina Mendes da Rocha a 2005, 1 edição Fotos Arquivo pessoal do Dr. Paulo Affonso e Arquivo da Câmara dos Deputados. Revisão Seção de Revisão e Indexação

SÉRIE Memória do servidor n. 4

Dados Internacionais de Catalogação-na-publicação (CIP) Coordenação de Biblioteca. Seção de Catalogação.

Oliveira, Paulo Affonso Martins de. O Congresso em meio século / Paulo Affonso Martins de Oliveira ; depoimento a Tarcísio Holanda. – 2. ed. – Brasília : Câmara dos Deputados, Edições Câmara, 2009. 229 p. – (Série memória do servidor ; n. 4)

ISBN 978-85-736-5616-9

1. Oliveira, Paulo Affonso Martins de, memórias. 2. Brasil. Congresso Nacional, história. 3. História política, Brasil. I. Holanda, Tarcísio. II. Título. III. Série.

CDU 342.53(81)(091)

ISBN 978-85-736-5616-9 (brochura) ISBN 978-85-736-5247-5 (e-book). Sumário

Apresentação ...... 7 Prefácio...... 9 Introdução...... 13 Capítulo I A Carta de 46...... 15 Capítulo II A República do Galeão...... 33 Capítulo III Os Anos JK ...... 51 Capítulo IV A Renúncia de Jânio Quadros...... 59 Capítulo V Ascensão e Queda de Jango ...... 69 Capítulo VI Nasce o Regime Militar ...... 87 Capítulo VII A Crise do AI-5 ...... 101 Capítulo VIII Colégio Eleitoral...... 127 Capítulo IX Doença e Morte de Tancredo...... 139 Capítulo X A Constituinte de 1987/1988...... 153 Capítulo XI Presidentes da Câmara dos Deputados...... 181 Fotos...... 223 Dados Biográficos...... 228 Apresentação

A Câmara dos Deputados traz à sociedade a segunda edição desta obra de indiscu- tível valor histórico, que oferece ao leitor uma visão precisa de fatos que marcaram o Legislativo brasileiro.

O livro baseia-se no depoimento de Paulo Affonso Martins de Oliveira, que foi ser- vidor do quadro de pessoal da Câmara por 42 anos. Por 23 anos exerceu o cargo de Secretário-Geral da Mesa e teve a oportunidade de conviver com treze presidentes da Câmara dos Deputados.

O objetivo da obra é fornecer ao leitor um entendimento da história do Con- gresso Nacional, baseado na visão de quem testemunhou importantes momentos políticos, como o movimento das Diretas Já e a Assembleia Nacional Constituinte que promulgou a Constituição Federal de 1988.

Paulo Afonso: o Congresso em meio século é uma obra de leitura imprescindível para pesquisadores, estudantes, políticos e cidadãos que buscam compreender a essência do nosso Parlamento.

Deputado Michel Temer Presidente da Câmara dos Deputados

 O Congresso em Meio Século | 2a Edição

Prefácio

Vários de meus contemporâneos, entre eles jornalistas, vinham-me sugerindo, reiteradamente, escrever sobre meu longo período como servidor da Câmara dos Deputados (1946/1988). Completei 42 anos de atividades estritamente legislativas, 23 dos quais como Secretário-Geral da Mesa (1965/1988), quando tive oportuni- dade de conviver, na intimidade, com treze presidentes da Câmara, do reservado e sóbrio Bilac Pinto à figura complexa e marcante de Ulysses Guimarães. Nos deze- nove anos restantes, exerci funções em gabinetes de membros da Mesa Diretora, fui assessor de liderança e auxiliar e substituto eventual do então Secretário-Geral da Mesa, desde o início da carreira, iniciada como datilógrafo, ainda no velho Palácio Tiradentes, no Rio de Janeiro. Essa longa trajetória deu-me oportunidade de viver alguns dos mais importan- tes acontecimentos de uma fase turbulenta da História do Brasil, visto que sem- pre atuei em área de influência política e nunca no setor administrativo. Filho de imigrantes portugueses, ingressei na Câmara dos Deputados e, simultaneamente, na Faculdade Nacional de Direito, oriundo do tradicional Colégio Pedro II, onde cursei o ginasial e o colegial, enquanto fazia o serviço militar no CPOR (Centro de Preparação de Oficiais da Reserva), no Rio. O Brasil vivia a euforia do término da Segunda Guerra Mundial e da ditadura de oito anos do Estado Novo de Getúlio Vargas. Durante minha carreira de servidor da Câmara dos Deputados, vivi três Constituintes (1946, 1967 e 1988), assim como a promulgação de inúmeras emendas constitucionais, que promoviam, não raro, pro- fundas alterações no texto da nossa Lei Maior, muitas vezes de forma casuística. Tive oportunidade de experimentar as angústias e aflições próprias de período agi- tado e sempre imprevisível de nossa História – aquele que marcou a deposição do presidente João Goulart e os 21 anos do regime de exceção, que se seguiu. Vivi, então, o trauma de situações dramáticas para o funcionamento do Congresso e do Poder Judiciário, com a edição, intermitente, dos vários atos institucionais, que sus- pendiam todo o elenco de franquias democráticas e das liberdades individuais. Nesses instantes, ocorrem os entrechoques de ideias, surgem as incompreensões, as ambições, os donos da verdade, os mais bem informados, aqueles que revelam maior sensibilidade em contraste com os que exibem surpreendente frieza e pragmatismo, os mais intransigentes, em relação a uma ou outra situação. Diante de matérias que

 Prefácio

suscitam grande controvérsia, consomem-se dias e noites, dependendo da urgência, para chegar-se, se não a ponto de vista comum, pelo menos a um consenso. Muitas vezes, indagava-me se teria o direito de revelar fatos de que tomei conhe- cimento e dos quais participei em razão de ofício, de um lado, e, de outro, graças à honrosa confiança que em mim depositaram aqueles com os quais tive o privilégio de trabalhar. Não se trata, portanto, de livro de memórias, mas do testemunho de alguém que viveu intensamente período político de grande relevância para a com- preensão da história política contemporânea. Nunca fui filiado a partido político. Entendia que, em razão das funções que exer- cia, não podia comprometer minha independência e a linha de isenção absoluta no trabalho de assessoria ao presidente em exercício da Câmara dos Deputados. Tinha sempre em vista o prestígio da instituição que me abrigava e a que servi esses anos todos com zelo e lealdade, assim como seu conceito perante a opinião pública, certo de que eventuais erros e falhas cometidos por seus integrantes não a atingiam, pois ela é eterna e seus integrantes temporários. Congresso e democracia não vivem um sem o outro. O eminente jurista e parla- mentar João Mangabeira, em conferência pronunciada na Fundação Getúlio Var- gas, em 8 de setembro de 1952, sobre Organização do Poder Legislativo nas Cons- tituições Republicanas, advertia: Não se deve maldizer o Poder Legislativo, tão exposto a censuras injustas e calúnias imerecidas. Ele é o mais popular de todos os poderes; é o único que representa o povo em todas as suas correntes de opinião, em todos os seus aspectos de vida. O Poder Legislativo deve ser amado pelo que faz e, sobretudo, pelo mal que evita ser feito. O Poder Legislativo é o único que encarna realmente a liberdade. Os outros poderes podem viver sem ela. O Poder Legislativo, não. Quando ele morre, ela se extingue. É isso que se vê através de todos os povos e de todas as épocas. É pela supressão do Po- der Legislativo que se mede a degradação de um povo, na perda total da liberdade. E, então, tateando nas sombras e aguardando o futuro, a Nação, entristecida, olha para o presente como um cativeiro vil e para o passado como um bem perdido. Em todos esses anos, tive oportunidade de trabalhar com os seguintes presidentes: Bilac Pinto (1965), Adaucto Lúcio Cardoso (1966), Batista Ramos (1967/1968), José Bonifácio (1968/1970), Geraldo Freire (1970/1971), Pereira Lopes (1971/1973), Flá- vio Marcílio (1973/1975), Célio Borja (1975/1977), (1977/1979), Flávio Marcílio (1979/1981), Nelson Marchezan (1981/1983), Flávio Marcílio (1983/1985) e Ulysses Guimarães (1985/1989), eleito em 1987, simultaneamente, para a Presidência da Constituinte (1987/1988), na qual também exerci a Secretaria-Geral.

10 O Congresso em Meio Século | 2a Edição

Acabei rendendo-me à insistência de meus amigos jornalistas Rubem de Azevedo Lima, Tarcísio Holanda e Clóvis Sena, com eles reunindo-nos, inúmeras vezes, na Biblioteca da Câmara dos Deputados, para gravação em fita de nossas conversas informais. Tivemos o apoio inestimável do diretor-geral, Dr. Adelmar Sabino; da diretora do Centro de Documentação e Informação, Dra. Suelena Pinto Bandeira; e da diretora do Departamento de Taquigrafia, Revisão e Redação, Dra. Odete Piccoli. Foi um trabalho intenso, que pude realizar graças à colaboração desinte- ressada daqueles amigos e técnicos. Podemos considerar este livro repositório de lembranças sacadas da memória. É re- trospecto feito por quem viveu, bastante de perto, durante mais de quatro décadas, a política brasileira, anotando passagens relevantes, nos momentos de grandeza e de miséria. O que posso dizer é que tudo valeu a pena. Contribuí, modestamente, com meu esforço, sempre motivado pela intenção de fortalecer o Poder Legislativo e manter lealdade aos meus chefes. Este registro de tempos vividos representa parcela significativa de minha vida, mas não a sua integralidade. Por certo muitos fatos perderam-se no tempo e provavel- mente na memória. Caso o tempo me permita relembrá-los, serão revelados. Peço desculpas por possíveis falhas e por interpretações que passaram por mim, graças à natureza das minhas atividades funcionais e, às vezes, em respeito às amizades. Não sou iconoclasta. Os países e os povos vivem de seus mitos. Por que revelar aconte- cimentos, conversas reservadas, incidentes pessoais, se os fatos tornados públicos tiveram outra interpretação? Uma coisa é o que se passa nos bastidores políticos, outra é o que se torna público. Que me perdoem por algum silêncio. Ao finalizar, apresento um profundo preito de agradecimento e de homenagem ao jornalista Tarcísio Holanda. Em razão das constantes interrupções por mim provocadas e também porque não estava plena- mente convencido de que deveria escrever algumas páginas sobre a minha longa vivência na Câmara dos Deputados, Tarcísio Holanda foi o factótum para me con- vencer e me estimular até o término não conclusivo destas singelas memórias. Entrego às novas gerações este depoimento de alguém que dedicou toda uma vida ao serviço público e ao país, quer no Poder Legislativo, quer no Tribunal de Contas da União.

Paulo Affonso Martins de Oliveira

11 Introdução

Este livro nasceu da insistência com que alguns amigos de Paulo Affonso Martins de Oliveira – o escritor e poeta Clóvis Sena, o excelente jornalista e escritor Rubem de Azevedo Lima e eu – se empenharam para que ele prestasse depoimento sobre tantos acontecimentos importantes que presenciara como funcionário da Câmara dos Deputados, durante 42 anos, 23 dos quais ocupando a importante e estratégica posição de Secretário-Geral.

Paulo Affonso acabou se rendendo. Tudo começou no dia 23 de fevereiro de 1999, no Centro de Documentação e Informação da Câmara, quando se iniciaram as gra- vações, graças à prestimosa colaboração da então diretora, Suelena Pinto Bandeira, e de suas auxiliares. O trabalho de tomada de depoimentos se encerrou no dia 3 de maio de 1999, com mais de 13 horas de gravações, cumprindo-se um roteiro de fatos e acontecimentos que elaborei, desde a Constituinte de 1946 até a promulgação da Carta de 1988, perpassando todas as crises que se registraram no curso desse tempo.

Começamos a trabalhar em cima de um texto com 390 laudas. Era diamante bruto que reclamou paciente trabalho de lapidação. Em anos de trabalho intermitente, até o segundo semestre de 2004, com a presença constante de Paulo Affonso, re- escrevemos esse texto dezenas de vezes, ao mesmo tempo em que o depoente, um perfeccionista, trazia novos e importantes documentos, logo incorporados nos di- ferentes trechos do livro.

Mas, só no início de 2004, o trabalho ganhou forma e ares de livro, quando rees- crevi todos os capítulos, um a um, e a cujo texto final fizemos, eu e Paulo Affonso, novas correções. Finalmente, submetemos o resultado ao exame do experiente edi- tor, jornalista e filólogo Joaquim Campelo, que se dedicou à tarefa com atenção inexcedível, contribuindo para o apuro da redação. Não podia deixar de agradecer, também, ao veterano e conceituado jornalista e escritor Rubem de Azevedo Lima, que também ajudou na correção do texto. Aos dois, nossos agradecimentos.

O livro ainda foi submetido a uma leitura do jornalista Carlos Chagas, ao lado de quem atuei na reportagem política do Rio de Janeiro, durante a década de 60, e que também vivenciou muitos dos acontecimentos aqui narrados. Chagas ajudou-nos a corrigir alguns enganos.

13 Introdução

O livro é uma reconstituição de meio século de história política do Brasil, se- gundo a ótica de um observador isento, porque não integrante de nenhuma das facções políticas que se entredevoravam na disputa pelo poder. Espero ter con- tribuído para dar o merecido tratamento ao depoimento de Paulo Affonso. Ao leitor, caberá a palavra final.

Tarcísio Holanda

14 Capítulo I A Carta de 46

No dia 29 de outubro de 1945, Getúlio Vargas foi deposto por tropas do Exército comandadas pelos mesmos homens que sustentaram o Estado Novo – os generais e Pedro Aurélio de Góis Monteiro. Assumiu a Presidência da República o presidente do Supremo Tribunal Federal, ministro José Linhares, que baixou a Lei Constitucional no 13, de 12 de novembro de 1945, declarando que os eleitos a 2 de dezembro daquele ano, para a Câmara dos Deputados e o Senado Federal, reunir-se-iam em Assembleia Constituinte para votar, com poderes ilimi- tados, uma nova Constituição.

O pleito que escolheu a Constituinte elegeu presidente da República o marechal Eurico Gaspar Dutra, candidato do PSD (Partido Social Democrático), derrotando o brigadeiro , candidato da UDN (União Democrática Nacional). Em março de 1946, quando se realizavam as primeiras sessões da Constituinte, tornei-me funcionário da Câmara dos Deputados, aos dezenove anos, lotado no Departamento de Taquigrafia, como datilógrafo.

Graças à natureza do trabalho, tive contato com todos aqueles políticos que chega- vam para participar da elaboração da nova Constituição. Os parlamentares eram, na sua maioria, homens de meia idade. Havia exceções, como Aluísio Alves, da UDN do Rio Grande do Norte, que tinha 25 anos e era o mais jovem. Ou o depu- tado Tarcílo Vieira de Melo, de 33 anos, que, na década seguinte, viria a se revelar orador e polemista brilhante quando assumiu o cargo de líder do governo na Câmara dos Deputados.

Vargas exerceu o poder, de forma contínua, durante quatorze anos e onze meses, des- de o Governo Provisório instalado em 3 de novembro de 1930. Houve um período de normalidade constitucional: de 17 de junho de 1934, quando Getúlio Vargas foi eleito, por via indireta (pela Assembleia Constituinte), por 175 votos em um universo de 214 parlamentares, ao advento do Estado Novo, em 10 de novembro de 1937.

À moda e ao estilo dos caudilhos, Vargas substituiu as atividades políticas por ações paternalistas, ao mesmo tempo em que tutelava as vocações políticas que identificava. Não se interessava pela renovação de lideranças, o que talvez explique o fato de que os candidatos às eleições de dezembro de 1945 eram quase todos políticos que surgiram com a Constituinte de 1934 ou que vinham de antes de 1930 – da República Velha.

15 A Carta de 46

O mesmo fenômeno se repetiria, vinte anos depois, com o regime militar instaurado em 1964, particularmente depois da edição do Ato Institucional no 5, que ceifou mui- tas lideranças que despontavam no cenário nacional, promovendo cassações que se- pultaram promissoras carreiras políticas. É o estilo de atuação preferido dos regimes totalitários, que precisam eliminar os adversários para garantir a sua hegemonia.

A vitória dos aliados na Segunda Guerra Mundial, com a participação da Força Ex- pedicionária Brasileira, exibiu o anacronismo da ditadura getulista entre nós. Mas o processo de redemocratização tornou-se tortuoso em face das táticas dissimuladas do ditador, que fazia tentativas desesperadas para se manter no poder através de novo golpe – a exemplo do que fizera em 1937, sufocando o processo da sucessão que estava nas ruas com as candidaturas do paraibano José Américo de Almeida, virtual candi- dato da situação, e do paulista Armando de Sales Oliveira, candidato das oposições.

No dia 10 de novembro de 1937, Vargas deu o golpe que implantou o Estado Novo, invocando o perigo comunista, quando o país e o mundo experimentavam a efer- vescência criada pelas preliminares da Segunda Guerra Mundial. Fechou o Con- gresso e se tornou ditador justificando a grave decisão com esta proclamação:

O Presidente da República dos Estados Unidos do Brasil, atendendo às legítimas aspirações do povo brasileiro, à paz política e social, profundamente perturbada por conhecidos fatores de desordem, resultantes da crescente agravação dos dissídios partidários que uma notória propaganda demagógica procura desnaturar em luta de classes, e da extremação de conflitos ideológicos, tendentes, pelo seu desenvolvimento natural, a resolver-se em termos de violência, colocando a Nação sob a funesta iminência de guerra civil; atendendo ao estado de apreensão criado no país pela infiltração comunista, que se torna dia a dia mais extensa e mais profunda, exigindo remédios de caráter radical e permanente; atendendo a que sob as instituições anteriores não dispunha o Estado de meios normais de preservação e de defesa da paz, da segurança e do bem-estar do povo; com o apoio das Forças Armadas e cedendo às inspirações da opinião nacional, umas e outras justificadamente apreensivas diante dos perigos que ameaçam a nossa unidade, e da rapidez com que se vem processando a decomposição das nossas instituições civis e políticas: resolve assegurar à Nação a sua unidade, o respeito à sua honra e à sua independência e ao povo brasileiro, sob o regime de paz política e social, as condições necessárias à sua segurança, ao seu bem-estar e à sua prosperidade, decretando a seguinte Constituição, que se cumprirá, desde hoje, em todo o país.

Nascia a “Polaca”, como ficou conhecida a Constituição do Estado Novo, de 1937, concebida pelo jurista mineiro Francisco Campos, o Chico Ciência (o cronista Ru- bem Braga dizia que, sempre que se acendia uma luz na cabeça de Campos, ocorria

16 O Congresso em Meio Século | 2a Edição

um curto-circuito nas instituições democráticas do Brasil). Em 1945, ao final da Segunda Guerra Mundial, com a vitória dos Aliados, o movimento pela restauração da democracia no país ganhou a agitação das ruas e das praças públicas. Getúlio Vargas baixou a Lei Constitucional no 9, de 28 de fevereiro de 1945, que constitui peça de singular significado na nossa história política:

Considerando que a eleição de um parlamento, dotado de poderes especiais para, no curso de uma legislatura, votar, se entender conveniente, a reforma da Constituição, supre com vantagem o plebiscito de que trata o artigo 187 desta última, e que, por outro lado, o ponto plebiscitário implicitamente tolheria ao parlamento a liberdade de dispor em matéria constitucional.

A Lei Constitucional no 9, de 28 de fevereiro de 1945, previa a posse dos eleitos para o parlamento a 13 de maio de 1946 e que, no prazo de noventa dias, nova lei fixa- ria a data das eleições para o segundo período presidencial e de governadores dos estados, bem como para o Congresso e assembleias legislativas. Isso significava que Vargas continuaria no exercício do poder com um parlamento em funcionamento e ainda sob o império da Constituição de 1937. A palavra de ordem dos getulistas era “a Constituinte com Getúlio”, ou mais precisamente o movimento denominado Queremismo, que recebeu o surpreendente apoio dos comunistas.

Contudo, não foi isso o que aconteceu. O Exército depôs Getúlio Vargas, a 29 de outubro de 1945, com as tropas comandadas pelos mesmos homens que serviram ao seu Estado Novo, à frente os generais Eurico Gaspar Dutra e Pedro Aurélio de Góes Monteiro. Chamado a exercer o poder, na qualidade de presidente do Supre- mo Tribunal Federal, o ministro José Linhares baixou a Lei Constitucional no 13, de 12 de dezembro de 1945, estabelecendo que

o Tribunal Superior Eleitoral interpretou como sendo constituintes os poderes que, nos termos da Lei Constitucional no 9, de 28 de fevereiro de 1945, a Nação vai outorgar ao parlamento, nas eleições convocadas para 2 de dezembro de 1945 [...] Os representantes eleitos a 12 de dezembro de 1945 para a Câmara dos Deputados e o Senado Federal reunir-se-ão no Distrito Federal, sessenta dias após as eleições, em Assembleia Constituinte, para votar, com poderes ilimitados, a Constituição do Brasil.

A Assembleia Nacional Constituinte instalou-se em 1o de fevereiro de 1946, no Palácio Tiradentes, no Rio de Janeiro, sede da Câmara dos Deputados, em sessão solene presidida pelo ministro Waldemar Falcão, presidente do Tribunal Superior Eleitoral, integrada por 320 congressistas, sendo 177 do PSD, 87 da UDN, 24 do

17 A Carta de 46

PTB, 15 do PCB e 17 de outros partidos. Abertos os trabalhos, um episódio mar- caria indelevelmente a Constituinte. A UDN, que representava a corrente liberal em oposição ao Estado Novo, propôs, com o apoio dos comunistas, que, enquanto a Constituinte estivesse funcionando, deveria cumprir-se a Constituição de 1934, não a de 1937, resultante de um golpe de Estado. Foi o primeiro grande embate entre as duas correntes.

Dutra queria a vigência da Constituição do Estado Novo; a UDN, o Partido Comu- nista e os liberais defendiam a de 1934, e esses foram derrotados por larga margem de votos. Prevaleceu, com os votos do PSD e do PTB, a Carta de 1937 até a pro- mulgação da nova Constituição. Essa fórmula, considerada “solução tranquilizado- ra”, nada mudou durante a Constituinte. Tal fato funcionou como um verdadeiro divisor de águas, isto é, a UDN colocou-se em oposição intransigente ao governo Dutra, diversamente do PSD, que o apoiava sem restrições.

Outra decisão de singular importância: enquanto era elaborado o projeto da nova Constituição, a Constituinte não exercia atividade legislativa. O presidente da Re- pública continuou governando através de decretos-leis, a exemplo do ditador de- posto. Em pleno regime democrático vigorou, durante cerca de nove meses, o mes- mo regime jurídico que formalizara a ditadura, ainda que o poder fosse exercido por um presidente da República eleito pelo voto direto e universal. O marechal Dutra continuou baixando, discricionariamente, decretos-leis, tal como antes fizera o ditador Getúlio Vargas.

Enquanto isso, nas sessões diárias da Assembleia, os constituintes eram absorvidos pela apresentação de requerimentos de informação ao Poder Executivo, indicações, moções; promoviam homenagens; e, em momentos especiais, ocorriam debates acalorados, com ácidas análises do período ditatorial e acusações ao governo do ex- presidente Getúlio Vargas. A atividade de elaboração ocorria na chamada Grande Comissão, integrada por 37 parlamentares, à qual foi entregue a tarefa de elaborar o projeto da nova Constituição, cujo ponto de partida foi a Constituição de 1934.

A Grande Comissão era presidida pelo deputado , do PSD de , enquanto ocupava a Vice-Presidência o deputado Prado Kelly, da UDN do Rio de Janeiro, e o relator-geral foi o deputado Costa Neto, do PSD, profes- sor emérito da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. A propósito: Nereu seria eleito, em 19 de setembro de 1946, indiretamente, pela Assembleia, por 178 votos (contra 139 dados a José Américo de Almeida), vice-presidente da República do então presidente Dutra.

18 O Congresso em Meio Século | 2a Edição

A comissão era integrada, entre outros, como representantes do PSD, pelos de- putados Agamenon Magalhães (PE), Ataliba Nogueira (SP), Ivo D’Aquino (SC), Adroaldo Mesquita da Costa (RS), Cirillo Júnior (SP), Gustavo Capanema (MG), Artur de Sousa Costa (RS), Atílio Vivácqua (ES), Benedito Valadares (MG), Acúrcio Torres (RJ); da UDN, por Aliomar Baleeiro (BA), José Ferreira de Sousa (SP), Mil- ton Campos (MG), Hermes Lima (RJ), Flores da Cunha (RS) e Soares Filho (RJ); do Partido Trabalhista Brasileiro, por Baeta Neves (RJ) e Guaraci Silveira (SP); do Partido Republicano, por Artur Bernardes (MG); do Partido Libertador, por Raul Pilla (RS); do Partido Democrático Cristão, por Monsenhor Arruda Câmara (PE); do Partido Republicano Progressista, por João Café Filho (RN); do Partido Popular Sindicalista, por Deodoro de Mendonça (PA); do Partido Comunista Brasileiro, por Milton Caíres de Brito (SP).

Foi eleito presidente da Assembleia Nacional Constituinte o senador Melo Viana, de grande tradição política em , homem de temperamento calmo e paciente. Procurava contornar os problemas que surgiam, impondo-se aos seus pares com sua autoridade política e moral. O trabalho foi dividido em diversos capítulos e em sub-relatorias. Coube à Grande Comissão elaborar o projeto da nova Constituição, recebendo sugestões e emendas dos constituintes, e, depois de decan- tar tudo isso, encaminhar o texto final para votação em plenário.

Era natural que, depois de quase oito anos de perseguições e violências praticadas pelo regime ditatorial, a Constituinte se instalasse sob o signo da desconfiança e do medo de que aqueles acontecimentos voltassem a se repetir. A maioria dos cons- tituintes compunha-se de políticos militantes de antes de 1937, muitos dos quais guardavam mágoas e ressentimentos do regime de exceção.

Tudo contribuía para avivar essa memória. O próprio Palácio Tiradentes, sede da Câ- mara dos Deputados, onde funcionou a Constituinte, fora fechado pela polícia e cer- cado pelos cavalarianos da Polícia Militar, assim como o Palácio Monroe, onde funcio- nava o Senado Federal. Sem qualquer comunicação, em 1937, deputados e senadores haviam sido proibidos de entrar em seus respectivos locais de trabalho. Instaurada a ditadura, o Palácio Tiradentes serviu de sede ao Departamento de Imprensa e Propa- ganda, o famigerado DIP, como o chamavam, para exercer a censura sobre a imprensa, de forma implacável, enquanto o Palácio Monroe se tornou sede do Ministério da Justiça, ocupado então pelo professor Francisco Campos, o jurista do Estado Novo.

19 A Carta de 46

O próprio presidente da Câmara dos Deputados, , foi impedido, pela força policial, de entrar no Palácio Tiradentes. Imediatamente, redigiu ao presiden- te da República o seguinte telegrama:

Com amarga surpresa verifiquei, hoje, que o edifício da Câmara dos Deputados foi ocupado por Forças Armadas. Divulgaram-se logo depois notícias de que o governo da República havia expedido decreto de dissolução do Poder Legislativo. Não conheço os fundamentos de tão grave ato. Impedida materialmente de funcionar e/ou tomar consequentemente qualquer deliberação sobre assuntos de tanta relevância, a Câmara dos Deputados não pode levar a V.Exa. uma palavra que represente o pensamento da maioria, e não da totalidade dos seus membros. Por isso, na qualidade de Presidente da Câmara dos Deputados, poder que se constitui nas puras fontes da vontade do povo brasileiro, sinto-me no dever de levar até V.Exa. o meu protesto contra os referidos atos e espero que o Brasil saberá fazer justiça à honestidade, à lisura, à fidelidade, à operosidade e ao patriotismo de seus legítimos representantes.

Pedro Aleixo solicitou a um de seus auxiliares do gabinete da Presidência da Câ- mara dos Deputados que despachasse pelo Correio o referido telegrama, no que foi impedido. Ante a recusa, o telegrama foi enviado diretamente ao Palácio do Catete em envelope e por emissário do presidente da Câmara dos Deputados.

Os parlamentares de modo geral, mesmo aqueles que receberam atenções do Esta- do Novo, guardavam mágoas da dependência humilhante imposta pelo autoritaris- mo e aproveitaram a oportunidade da elaboração constitucional para criar antído- tos contra a sedução da violência. Esses fatos marcaram o espírito da maioria dos constituintes e certamente contribuíram para que a Assembleia de 1946 revelasse generalizado interesse em reduzir os poderes do Executivo e reforçar e ampliar os do Legislativo, a fim de que não se voltasse aos tempos obscuros do autoritarismo.

Tal dicotomia marcou o texto da Constituição de 1946, desequilibrando os poderes, não em favor do Executivo, como fizera a Carta de 1937, mas agora do Legislativo. Isso levou – ministro da Justiça, em 1954, quando do suicídio de Vargas, e líder do governo, em 1964, na deposição de João Goulart – a sustentar que as disposições constitucionais da Carta de 46 comprometiam a ação do Executivo e a governabilidade. “A ruptura em 1964 resultou do esgotamento das instituições da Carta de 1946” – resumia Tancredo Neves.

Embora fosse notória a aversão ao retorno do autoritarismo, havia ampla maioria a favor de Getúlio Vargas, tanto na Constituinte quanto nas ruas, como se compro- varia quatro anos depois, em 1950, quando o ex-ditador se elegeu presidente da Re-

20 O Congresso em Meio Século | 2a Edição

pública, com votação consagradora, sem que o governo do marechal Dutra pudesse opor qualquer resistência a esse retorno. Sempre se disse no Brasil que “governo não perde eleição”. Era tal a confiança nesse axioma que o candidato oficial do dutrismo a presidente da República foi, nas eleições de 1950, o deputado Cristiano Machado, respeitável homem público, mas conhecido apenas nos limites de Minas Gerais, sem nenhuma projeção nacional.

Amaral Peixoto, presidente do PSD, explicava que o marechal Dutra não aceitava o nome de Cristiano Machado porque este tinha “um irmão comunista”, o escritor Aní- bal Machado. Abertas as urnas, verificou-se que a candidatura de Cristiano Machado não passara de manobra do PSD para encobrir o interesse do partido em apoiar Ge- túlio Vargas, em detrimento do candidato oficial. Tanto assim que se criou na políti- ca brasileira um neologismo: “cristianização”, do nome de Cristiano, para designar o abandono à própria sorte de candidatos pelos partidos que os lançam.

Iniciados os trabalhos propriamente ditos, logo se verificou que a Assembleia Constituinte que deveria restaurar a democracia no Brasil era dominada por políti- cos procedentes do Estado Novo, com ele, portanto, identificados. O PSD, sozinho, detinha a maioria, com uma bancada de 154 parlamentares, na qual despontavam algumas das figuras mais brilhantes da política brasileira no século passado. O partido teve, então, o papel de verdadeiro “rolo compressor”, expressão cunhada, à época, pelo deputado Nereu Ramos, uma de suas figuras paradigmáticas (“maioria não discute, maioria vota”, costumava dizer). Curioso é que, durante todo o pro- cesso constituinte, nenhuma legislação impunha disciplina partidária, mas todos seguiam a linha de orientação do partido.

O Partido Social Democrático (PSD) exprimia os interesses do patriciado rural. A União Democrática Nacional (UDN) representava a classe média urbana, que co- meçava a surgir com o início da urbanização. Pontificavam nessa bancada figuras que se notabilizaram como “os bacharéis da UDN”, conhecidos por integrarem a chamada “Banda de Música”, um grupo coeso e atuante na linha de frente da Cons- tituinte. Quem exprimia as posições políticas de Getúlio o Partido Tra- balhista Brasileiro (PTB), cujo presidente, à época, era o senador gaúcho Salgado Filho, o primeiro ministro da Aeronáutica, Ministério que ajudou a fundar.

Na iminência da redemocratização, Vargas estimulou a criação dos dois grandes par- tidos: o PSD (fundado em 17 de julho de 1945), conservador, e o PTB (fundado em 15 de maio de 1945), destinado a ocupar posição mais à esquerda, para se contrapor aos comunistas. Essa aliança mostrou-se imbatível na primeira eleição pós-Estado

21 A Carta de 46

Novo. Elegeu-se presidente da República o marechal Eurico Gaspar Dutra (3.251.507 votos), antigo Condestável do Estado Novo, que venceu o candidato da UDN (funda- da em 7 de abril de 1945), brigadeiro Eduardo Gomes (2.039.341 votos). A esse pleito foram também candidatos Fiúza de Castro, pelo PCB, e Rolim Teles, pelo Partido Agrário Nacional. Só duas legendas revelavam preocupações doutrinárias ou ideo- lógicas: o Partido Libertador, que defendia a introdução do sistema parlamentarista de governo, e o Partido Comunista Brasileiro, (PCB), que lutava pela implantação da ditadura do proletariado.

Os dois grandes partidos, PSD e UDN, exprimiam posições ideológicas coinci- dentes, de tal sorte que, vinte anos mais tarde, na primeira metade dos anos 60, acabaram praticamente se unindo contra o presidente João Goulart. Lembra-se, a propósito, que o então secretário-geral do PSD, deputado José Martins Rodrigues (CE), diante da bizarra insurreição de cabos e marinheiros da Marinha do Brasil, advertira: “Há um soviete na Marinha!”

A Constituinte de 1946 refletia a distribuição espacial da população brasileira e, embora o eleitorado rural fosse muito superior ao eleitorado urbano, ainda não se colocava a questão da reforma agrária. As populações do interior eram extrema- mente conformadas com o abandono em que viviam em cidades precárias, sem serviços de saneamento e energia, tudo contribuindo para o isolamento desses contingentes humanos, politicamente dominados pelos chamados “coronéis” e, em raros casos, por “bacharéis” liberais.

A grande atração era o Partido Comunista Brasileiro, com seus quinze parlamenta- res, que explorava a figura legendária do “Cavaleiro da Esperança”, Luís Carlos Pres- tes, eleito senador pelo Rio de Janeiro, naquela época Distrito Federal. Os deputados comunistas eram Gregório Bezerra, Alcedo Coutinho e Agostinho de Oliveira, de ; Carlos Marighella, da Bahia; Claudino da Silva e Alcides Sabença, do Rio de Janeiro; Joaquim Batista Neto, João Amazonas e Maurício Grabois, do Distrito Federal; José Maria Crispim, Osvaldo Pacheco da Silva, e Milton Caíres de Brito, de São Paulo; Abílio Fernandes, do Rio Grande do Sul.

O respeito que revelavam os integrantes do PCB ao líder Luís Carlos Prestes traduzia- se por irrestrita obediência. Quando Prestes se levantava, nas votações simbólicas, postura de discordância, a bancada inteira acompanhava seu voto; quando ele per- manecia sentado, sinal de concordância com as matérias em votação, todos ficavam sentados. O contraponto à direita, nessas ocasiões, os antigos integralistas, abriga- vam-se na legenda do inexpressivo PRP (Partido de Representação Popular).

22 O Congresso em Meio Século | 2a Edição

Ao contrário dos comunistas, que se beneficiaram da integração da União Soviética à aliança com os Estados Unidos e a Inglaterra no combate ao nazismo, os integra- listas eram estigmatizados como fascistas brasileiros, e precisavam do disfarce de uma sigla que não os marcava ideologicamente. Eram representantes oriundos dos estados do Sul – São Paulo, Rio de Janeiro, Espírito Santo, Rio Grande do Sul, Para- ná e Santa Catarina. Um pequeno grupo e de fraca atuação, só apareceu organizado após a Constituinte, com a volta ao Brasil de Plínio Salgado, após exílio em Por- tugal. Plínio se elegeria para a Câmara dos Deputados nas eleições parlamentares realizadas em outubro de 1948. Em 1934, Plínio recebeu um voto para presidente da República, nas eleições indiretas pela Constituinte deste ano, composta de 214 deputados, sendo 40 não eleitos, os chamados classistas, indicados pelo governo, quando se elegeu Getúlio por 173 votos contra 59 dados a Borges de Medeiros.

A Constituinte de 1946 era dominada pelo governismo, que pesava mais do que o fato de ser formada por antigos e fiéis servidores da ditadura. O presidente Eurico Gaspar Dutra dispunha de sólida base política e parlamentar, composta, em sua maioria, pela coligação PSD-PTB, a que se somavam alguns integrantes da UDN. Ministro da Guerra do Estado Novo, o marechal Dutra foi eleito presidente da República com o apoio tardio de Vargas, a quem havia deposto um mês antes. A Vargas não restava alternativa, pois o outro candidato era o brigadeiro Eduardo Gomes, apoiado pelos seus acérrimos inimigos da UDN.

Seis dias antes das eleições presidenciais, graças a gestões desenvolvidas por Ade- mar de Barros e João Neves da Fontoura, que foram visitar o ditador, em sua fazenda em São Borja, Getúlio concordou em apoiar a candidatura do seu antigo ministro da Guerra. Tal fato só contribuiu para aguçar as desconfianças, pois ninguém conseguia esquecer que o marechal fora a figura tutelar da ditadura instaurada em 10 de novembro de 1937. Temia-se que tramasse outro golpe de Estado em benefício próprio, agora que era o presidente da República e estava com a faca e o queijo na mão. Essa desconfiança gerava tensões na Constituinte e era reforçada pelo apoio irrestrito que a aliança parlamentar hegemônica do PSD com o PTB emprestava ao governo de Dutra.

O presidente Eurico Gaspar Dutra tinha estilo, cacoetes e preferências e aos poucos os foi manifestando. Anticomunista visceral, não tolerava os esquerdistas. Rompeu com o PTB e o getulismo e se compôs com a UDN, graças a uma bem-sucedida articulação dos deputados Soares Filho e Otávio Mangabeira, que viria a ser eleito governador da Bahia (1947/1951), depois da Constituinte. Soares Filho, um dos personagens proeminentes da Assembleia, era exímio articulador político. Líder da

23 A Carta de 46

UDN e oriundo do Rio de Janeiro, articulou as negociações entre o seu partido e o presidente Eurico Dutra, acordo que justificou a presença no governo de udenis- tas marcantes, como Clemente Mariani, ministro da Educação (1946/1950), e Raul Fernandes, ministro das Relações Exteriores (1946/1951).

Câmara e Senado se separariam e funcionariam normalmente, uma vez concluído o trabalho constituinte, respectivamente no Palácio Tiradentes e no Palácio Mon- roe. A grande vantagem da Câmara era o registro de frequência sempre alta. Àquela época, o avião era meio de transporte precário, o que de certo modo contribuía para reter os deputados na então capital do país. Os deputados de estados distantes, como Rio Grande do Sul, Bahia, Ceará ou Amazonas, viajavam de navio. A grande maioria dos deputados residia, de fato, no Rio de Janeiro, o que garantia quórum e debates políticos constantes e de alto nível.

O Palácio Tiradentes situava-se, como ainda hoje, a meio caminho entre o centro da cidade e a Praça XV, onde se localizava a estação das barcas que cruzavam a Baía da Guanabara em direção a Niterói e a outras ilhas, como a do Governador, pois ainda não havia a ponte do Galeão. Populares chegavam mais cedo para ocupar os melhores lugares nas galerias, a fim de assistir aos discursos que eram pronunciados durante as sessões. Os jornais anunciavam previamente o dia e o horário em que determinados oradores ocupariam a tribuna. Os que despertavam maior interesse eram os irmãos João e Otávio Mangabeira, Hermes Lima, , Aliomar Baleeiro, Gustavo Capanema, Nereu Ramos, Nestor Duarte e Carlos Lacerda.

Também tiveram grande destaque na Constituinte o relator-geral Costa Neto, pro- fessor de Direito, em São Paulo, o também paulista poeta Menotti Del Pichia, o so- ciólogo pernambucano Gilberto Freire e o gaúcho Flores da Cunha, orador fluente e versado em literatura francesa, general provisionado nas lutas intestinas do Rio Grande do Sul. Os discursos despertavam grande interesse popular. Frequentemen- te, os jornais extraíam deles as suas manchetes. As galerias, então, acostumaram-se a respeitar as normas regimentais e se mantinham em silêncio. O Palácio Tira- dentes reservava a chamada Tribuna de Honra, sempre repleta, para autoridades brasileiras e estrangeiras.

A grande estrela da Constituinte, no entanto, até pela ausência física, foi Getúlio Vargas, senador pelo PSD do Rio Grande do Sul, que abriu mão de outros seis man- datos, uma vez que também fora eleito senador por São Paulo, além de deputado federal em cinco estados (Rio Grande do Sul, Rio de Janeiro, Minas Gerais, Bahia, Paraná e Distrito Federal), obtendo mais de um milhão de votos, o que corres-

24 O Congresso em Meio Século | 2a Edição

pondia a 40% dos sufrágios obtidos por Dutra. Já instalada a Constituinte, Vargas prestou juramento. Encerrada a cerimônia, o deputado udenista Aliomar Baleeiro proferiu discurso para criticar o senador Getúlio Vargas, então presente, por sua omissão e ausência dos trabalhos preliminares da Constituinte.

Antes do final da sessão, Getúlio Vargas subiu à tribuna para declarar que ali estava para discutir e votar a nova Constituição, acatando as posições de todos, inclusive dos adversários, mas deixou claro que exigia respeito às suas opiniões. Finalizou a oração advertindo: “Não pensem, porém, que tenho medo. E, como prova disso, declaro que, se algum dos presentes tem contas a ajustar comigo, estou à disposição lá fora deste plenário”.

Quando Vargas desceu da tribuna, sob vaias e aplausos, o deputado Euclides Fi- gueiredo (UDN-DF) – general e pai do ex-presidente João Baptista de Figueiredo, perseguido e exilado pelo Estado Novo – disse, exaltado, que aquele era o lugar menos apropriado para desafios daquela natureza. E dirigiu-se agressivamente a Vargas, desafiando-o para desforço físico, no que foi impedido por vários de seus colegas. Getúlio Vargas não perdeu a dignidade. Retirou-se do Palácio Tiradentes e seguiu a pé pela Rua São José. Seu nome não consta entre os signatários da Consti- tuição, que foi promulgada no dia 18 de setembro de 1946.

Ao início dos trabalhos normais do Senado, o senador Getúlio Vargas teve opor- tunidade de proferir alguns discursos da tribuna em defesa de seu governo, reco- lhendo-se, posteriormente, à sua fazenda, em São Borja, no Rio Grande do Sul. Só abandonou o retiro forçado, em 1950, para se envolver na campanha eleitoral que o levaria de volta ao Palácio do Catete e ao suicídio. Os constituintes de 1946 tive- ram o cuidado de encaminhar o projeto da nova Constituição, após sua aprovação, ao exame do renomado professor de português Sá Nunes, filólogo e estudioso do idioma, para conferir a devida coordenação e propriedade ao texto. Esse trabalho foi acompanhado, pessoalmente, pelo então deputado Paulo Sarasate.

Exame atento da redação da Constituição de 1946 não terá dificuldade em verificar que ela é perfeita em termos de análise, de propriedade, de concatenamento e de articulação. Tem começo, meio e fim. O que é profundamente criticado na Consti- tuição de 1946, e com razão, são as chamadas Disposições Constitucionais Transi- tórias, que concederam favores escandalosos, tais como efetivação de funcionários, perdão de dívidas dos cafeicultores e pecuaristas, isenção do imposto de renda para jornalistas, entre outras concessões.

25 A Carta de 46

As Cassações

O grande assunto político do Congresso, que marcou profundamente a primeira sessão legislativa ordinária, foi o cancelamento do registro do Partido Comunis- ta Brasileiro, em 1947, com a consequente cassação dos mandatos dos parlamen- tares comunistas. Foi um acontecimento histórico. Na época, Luís Carlos Prestes, secretário-geral do PCB, proferia longos e cansativos discursos. Não era orador parlamentar. Lia discursos muito bem formulados, mas demasiadamente longos e enfadonhos, e não admitia apartes.

O deputado Barreto Pinto (PTB-DF) costumava provocar Prestes: “Não permite aparte, tem medo de apartes, quer falar sozinho.” Certo dia, diante da provocação, Prestes interrompeu o discurso, virou-se para o presidente da sessão, enquanto caía pesado silêncio no plenário, e disse: “Senhor Presidente, quero comunicar a V.Exa. que tenho o prazer e a honra de receber apartes de todos os meus colegas, menos de deputado de quinhentos votos, que não representa o povo”. Prestes provocou risos no plenário, deixando Barreto Pinto em situação de grande constrangimento.

Ao final da Segunda Guerra Mundial, voltaram a predominar os valores da demo- cracia representativa, o que levava os liberais a questionar os regimes comunistas instalados no leste da Europa. Em aparte a Prestes, que ficou famoso, o deputado Ju- raci Magalhães (UDN-BA, 1946/1951) indagou, maliciosamente, se, numa guerra em que, de um lado, estivesse o Brasil e, do outro, a União Soviética, com quem ele ficaria. Prestes acabou aceitando a provocação, segundo interpretação corrente na época.

Registrou-se o seguinte debate, transcrito textualmente do Diário do Congresso:

O Senhor Juraci Magalhães – O orador consente outro aparte? Creio definir bem a diferença de pontos de vista entre V.Exa. e o humilde aparteante, lendo trecho de carta recebida de um correligionário de V.Exa.: “Agora, pergunto a V.Exa., se determinados fatores históricos nos levassem a uma guerra contra as grandes democracias do mundo, como sejam, os Estados Unidos da América, a Inglaterra, o Canadá, a Austrália, que faria V.Exa.?” A essa carta respondo: Iria com o Brasil para a guerra fosse contra que Nação fosse! Esta a nossa diferença fundamental.

O Senhor Carlos Prestes – O Brasil não faz guerra imperialista, como diz V.Exa., e, na sabatina que levantou tão grande celeuma, eu mesmo disse: Acreditamos, porém, que nenhum governo tentará levar o povo brasileiro contra o povo soviético numa guerra imperialista.

26 O Congresso em Meio Século | 2a Edição

O Senhor Juraci Magalhães – O perigo reside na interpretação do que seja guerra imperialista; nós, democratas brasileiros, vimos como os comunistas interpretam a guerra das democracias contra a Alemanha como guerra imperialista, para, mais tarde, se tornarem contrários a ela.

Os adversários dos comunistas descobriram que o PCB tinha um regimento inter- no clandestino, secreto e diferente do regimento interno levado ao conhecimento da Justiça Eleitoral, quando da solicitação formal do registro do PCB. O processo exigia uma documentação que se compunha dos estatutos e do programa. Formu- lada a denúncia ao Tribunal Superior Eleitoral, constituiu-se o processo para can- celamento do registro do PCB. O mundo vivia o início da chamada “guerra fria”.

Reunido, o Tribunal Superior Eleitoral resolveu determinar o cancelamento do re- gistro do Partido Comunista Brasileiro, através da Resolução no 1.841, de 7 de maio de 1947. Presidiu a sessão o ministro Carlos Lafaiete de Andrada, estando presentes os ministros J. A. Nogueira, que funcionou como relator, Álvaro Moutinho Ribeiro da Costa (que votou contra), Cândido Lobo, Rocha Lagoa (voto vencedor), F. Sá Filho (vencido) e Alceu Barbedo, procurador ad hoc. Em decisão tomada no dia 18 de maio de 1949, o Supremo Tribunal Federal julgou improcedente a arguição de inconstitucionalidade sustentada em mandado de segurança impetrado pelos comunistas, nos termos de voto do relator, ministro Hanemann Guimarães.

A Câmara dos Deputados ratificou a decisão da Justiça aprovando projeto de reso­ lução declarando a perda de mandatos dos 14 deputados comunistas, na sessão do dia 7 de janeiro de 1948, tendo votado a favor 169 deputados e 74 contra. No dia 10 de janeiro de 1948, a Mesa Diretora da Câmara dos Deputados declarou a perda dos mandatos. Ao projeto de resolução que cassou os mandatos dos parlamentares comunistas e que tinha dois artigos, foram apresentadas mais de mil emendas. O relator, deputado Fausto Cardoso (PSD-RS), emitiu parecer sustentando que, se o Partido Comunista não mais existia, não poderia existir a sua representação. So- bre tal ponto, os comunistas usavam argumento contrário: “Trata-se de equívoco, porque o preâmbulo da Constituição diz o seguinte: ‘Nós, representantes do povo brasileiro [...]’”– porque eles, comunistas, haviam sido constituintes. “Então, não somos representantes de partido, mas representantes do povo, tanto assim que vo- tamos a Constituição” – afirmavam. Contudo, esse argumento não alterou a decisão da Câmara, que ratificou a cassação dos mandatos.

Diante das vagas abertas, discutia-se como se devia proceder para preenchê-las. O PSD sustentou que o preenchimento deveria caber ao partido majoritário, enquanto

27 A Carta de 46

outros entendiam que as vagas não deveriam ser preenchidas, reduzindo-se o quó- rum para deliberação. Prevaleceu o acordo celebrado entre os grandes partidos. A Constituição estabelecia um teto de representação. Pelo entendimento entre as prin- cipais lideranças, todos os partidos se beneficiaram na distribuição dessas vagas. Vale a pena ler em especial os discursos do deputado Hermes Lima, que pertencia à Es- querda Democrática da UDN e que reagia com veemência contra a tese do PSD.

Àquele tempo, havia preocupação em preservar a compostura e a boa convivência nas relações entre parlamentares de diferentes partidos e posições ideológicas. Os adversários podiam usar da maior veemência no debate, mas essas divergências não comprometiam uma convivência civilizada. Quando o orador descia da tribu- na, o aparteante ia cumprimentá-lo. Os parlamentares cumpriam as regras do jogo parlamentar, atentos ao princípio de que a luta política, por mais encarniçada que fosse, não envolvia aspectos pessoais. O debate se desenvolvia sempre com elegân- cia sem descambar para o terreno das agressões.

Otávio Mangabeira elegeu-se governador da Bahia, em 1947. Em razão de desavenças com o chefe político da UDN da Bahia, Juraci Magalhães, rompeu com o partido e se transferiu para o PL (Partido Libertador), de Raul Pilla. Ao deixar o governo da Bahia, Otávio Mangabeira decidiu residir no Hotel da Bahia, que havia construído.

Elegeu-se senador, já com a saúde abalada, no pleito de 1958. Quando se despediu da Câmara dos Deputados para assumir a cadeira no Senado Federal, proferiu discurso profundamente emocionado, enquanto um médico dava plantão abaixo da tribuna. Mangabeira viria a falecer no dia 29 de novembro de 1960, na cidade do Rio de Janeiro.

Seu irmão, João, seguia linha política e ideológica oposta. Publicista, advogado, pro- fessor de Direito, é autor de biografia clássica sobre Rui Barbosa, e um dos fundadores da chamada Esquerda Democrática da UDN, a qual veio a se transformar no Partido Socialista Brasileiro (PSB), de que foi o primeiro presidente. Durante o parlamentaris- mo, criado para evitar a guerra civil e garantir a posse do vice-presidente João Goulart na Presidência da República, foi ministro das Minas e Energia (gabinete Brochado da Rocha) e, posteriormente, já sob o sistema presidencialista, ministro da Justiça.

Duas décadas antes, João Mangabeira desempenhara papel importante na demis- são do ministro da Fazenda do presidente Eurico Gaspar Dutra, cujo filho se en- volvera em obscuro episódio. Conforme relato dos jornais da época, o filho do ministro Correia e Castro espalhara boatos em Londres garantindo que o governo brasileiro não honraria a sua dívida externa, o que levou a cotação dos papéis da

28 O Congresso em Meio Século | 2a Edição

dívida a grande queda nas bolsas internacionais. O filho de Correia e Castro com- prou grande quantidade desses papéis, na baixa. Logo a seguir, seu pai, o ministro da Fazenda, publicou nota oficial desautorizando os rumores que circulavam e as- segurando que o Brasil pagaria todas as suas dívidas. O valor das ações voltou a subir e obviamente o filho do ministro foi favorecido.

O deputado João Mangabeira ocupou a tribuna, usando a sua memória prodigiosa, em que citou todos os ministros da Fazenda, ao longo da história republicana, enu- merando as realizações de cada um e os atos mais marcantes da respectiva gestão, até chegar ao ministro Correia e Castro, a quem criticou duramente. Desmoraliza- do, Correia e Castro foi demitido pelo presidente Dutra.

Era legendária a memória dos irmãos Mangabeira. Quando trabalhava na taquigra- fia da Câmara dos Deputados, no Rio de Janeiro, fui testemunha de episódios que demonstram esse talento prodigioso dos dois irmãos. João Mangabeira, em razão de espasmo cerebral que sofreu, articulava as palavras com grande dificuldade e, não raro, de difícil entendimento. Os taquígrafos, muitas vezes, tinham dificuldade em compreender o que ele dissera da tribuna. Ao traduzir as notas taquigráficas, os taquígrafos procuravam reconstituir o que o orador havia dito, deixando alguns espaços em branco quando não entendiam o trecho. Sabedor disso, João Manga- beira dirigia-se à taquigrafia em companhia do deputado Hermes Lima, que relia o discurso pausadamente, permitindo que o grande baiano reconstituísse para os taquígrafos os espaços em branco. Isso demonstra que Mangabeira memorizava mesmo os discursos pronunciados de improviso.

Há um fato curioso que convém lembrar. O deputado Monsenhor Arruda Câmara (PDC-PE) tinha um sobrinho entre os deputados comunistas, Diógenes Arruda, eleito em pleito suplementar em São Paulo pelo PSP. Pernambucano de nascimento, como seu tio, Diógenes não foi cassado, porque não se elegeu pelo Partido Comu- nista. O duelo verbal entre tio e sobrinho foi sempre vigoroso, chegando os dois quase às vias de fato. Em certa oportunidade, provocado e insultado pelo sobrinho, Monsenhor Arruda Câmara ameaçou sacar pequena faca que sempre portava, sen- do contido por terceiros.

Na insurreição comunista de 1935, em Pernambuco, Monsenhor Arruda Câmara combatia os comunistas quando foi ferido gravemente. Fingiu-se de morto para não ser executado. Conseguiu sobreviver, apesar da gravidade dos ferimentos. Monsenhor residia na SQS 108, em apartamento de dois quartos. Certo dia, distraído, adormeceu deixando o cigarro cair no estofado em que se achava, o qual começou a pegar fogo.

29 A Carta de 46

Alarmados pela fumaça que saía do apartamento, os vizinhos chamaram o Corpo de Bombeiros, que teve de arrombar a porta para debelar o fogo. Felizmente, nada aconteceu com o deputado e religioso.

Dias depois, Monsenhor Arruda Câmara procurou-me, uma vez que eu era en- tão encarregado de administrar os imóveis funcionais da Câmara dos Deputados, solicitando um apartamento maior. Alegava que, para chegar à entrada social do apartamento, era obrigado a passar por um corredor no qual seus vizinhos esten- diam roupas íntimas para secar, criando-lhe grande constrangimento. Consegui reservar-lhe apartamento de três quartos em outra quadra.

A Constituinte e a Imprensa

Não se pode falar do processo de elaboração constitucional e da legislatura inicia- da em 1946 sem mencionar o trabalho da imprensa credenciada junto à Câmara dos Deputados. Havia premência de espaço no Palácio Tiradentes. No plenário, em nichos, à direita da Mesa, havia a Tribuna de Honra e, à esquerda, a Tribuna da Imprensa. Diante de insistentes apelos dos jornalistas, foi colocada, entre as duas tribunas, no plenário, arquibancada em forma de anfiteatro com cerca de trinta lugares. Os jornalistas ganharam ampla visão dos trabalhos que se desenvolviam no plenário. Não podiam circular. Ficavam sentados. Quando um parlamentar cha- mava um jornalista, os dois se retiravam para conversar. Encerrada a conversa, o jornalista voltava para o seu lugar.

Esses lugares eram ocupados pelos mais antigos e respeitados jornalistas. O rela- cionamento dos dirigentes e dos principais líderes de bancadas da Câmara com a imprensa era institucional e sempre muito respeitoso. A cobertura tinha alto nível de qualidade, certamente pela experiência dos profissionais, alguns de idade pro- vecta. Era raro jornalista jovem ali. Cobrir política nas duas Casas do Congresso era tarefa que se atribuía aos mais experientes, conhecedores dos segredos da profissão, alguns editorialistas dos grandes jornais.

Lembro-me de muitos dos que fizeram a cobertura da Constituinte de 1946, como Joel Silveira, Pedro Motta Lima, Hélio Fernandes (ainda hoje em plena ativida- de), Neto, Rafael Correia de Oliveira, Osvaldo Costa e Carlos Lacerda. Mais tarde, quando a Câmara dos Deputados passou a funcionar nor- malmente, na segunda metade de 1950, lá estavam alguns jornalistas importantes, como Esperidião Ésper Paulo, de O Estado de São Paulo – parlamentarista e dis- cípulo do ideólogo do parlamentarismo, Raul Pilla (andava com broche na lapela com as insígnias do PL) –, Carlos Castelo Branco, o Castelinho, Hélio Fernandes,

30 O Congresso em Meio Século | 2a Edição

Otacílio Lopes, apelidado de “Cara de Onça” pelos seus companheiros, Benedito Coutinho, da revista O Cruzeiro, Vilas-Bôas Correia, José Wamberto, do Diário de Notícias, presidente do Comitê de Imprensa, quando da transferência para Brasília, em 1960, e que veio a ser secretário de Imprensa do presidente Castello Branco, e Carlos Chagas, que era dos mais jovens.

Jornalistas importantes eram Neiva Moreira, que assumiu a editoria política da re- vista O Cruzeiro, Marcelo Pimentel, hoje conceituado e atuante advogado, e Doutel de Andrade, todos de O Jornal, dos Diários Associados. Também trabalhavam, a esse tempo, Arnon de Mello, pai do ex-presidente Fernando Collor, Heráclio Sales, do Correio da Manhã (depois do Jornal do Brasil), e o jornalista J. E. de Macedo Soares, do Diário Carioca, por muitos considerado um dos maiores escritores polí- ticos do Brasil na segunda metade do século XX.

Não posso esquecer o jornalista Aderson Magalhães, de texto refinado, que escrevia na segunda página do Correio da Manhã, usando, alternadamente, os pseudônimos de Mister X e Al Right. Outro grande jornalista, Carlos Lacerda, foi trabalhar em O Jornal e no Correio da Manhã, depois de seu rompimento com o Partido Comunis- ta Brasileiro. Em seguida, viria a fundar seu próprio jornal, a Tribuna da Imprensa, cuja direção entregou a Aluísio Alves, ao se exilar em Nova York, após o contragol- pe do general Teixeira Lott, a 11 de novembro de 1955, para afastar as ameaças de golpe contra a eleição e posse do presidente Juscelino Kubitschek de Oliveira.

Outro grande jornalista atuante àquele tempo era Maurício Waitsmann, do Diário de Notícias, meu amigo pessoal. Também tinham relevo outros jornalistas políti- cos importantes, como Osório Borba e Rafael Correia de Oliveira. Recordo-me de Francisco de Assis Barbosa, dos Diários Associados e do Última Hora, historiador de renome, que acabou membro da Academia Brasileira de Letras.

Na época houve fato de grande repercussão na imprensa. Em 1959, o jornalista Hélio Fernandes, jovem e impetuoso repórter, foi agredido, nas proximidades do plenário, pelo deputado Ari Pitombo, do PTB de Alagoas, quarto-secretário da Mesa da Câmara, com um murro no rosto, provocando sangramento em seu na- riz. O presidente da Câmara instituiu uma comissão de sindicância para apurar as causas da agressão, presidida pelo segundo-vice-presidente, deputado Nestor Jost (PSD-RS), e na qual atuei como secretário.

O deputado Ari Pitombo alegou em sua defesa que fora atingido em sua honra por Hélio Fernandes, que o acusara de praticar atos de corrupção na direção do Ipase. A agressão era grave. Contudo, o inquérito foi arquivado.

31 Capítulo II A República do Galeão

Trancado em seus aposentos, no Palácio do Catete, o presidente Getúlio Vargas suicidou-se, atirando contra o próprio coração, decorridos alguns minutos das 8 horas da manhã do dia 24 de agosto de 1954. O presidente se recolhera, às 4h30 daquele dia, depois de tensa reunião ministerial, em que se tornou evidente que perdera o apoio militar, ao ficar demonstrada a responsabilidade do chefe de sua guarda pessoal, tenente Gregório Fortunato, pelo atentado contra o deputado e jor- nalista Carlos Lacerda, de que resultou a morte do major Rubens Florentino Vaz, da Aeronáutica.

O atentado ocorreu no dia 5 de agosto de 1954, na Rua Tonelero, em frente ao edifício onde residia Carlos Lacerda, que ficou ferido no pé. O major Rubens Florentino Vaz se revezava, com outros oficiais da FAB, na segurança ao líder oposicionista. Do hospital em que se internou para curar o ferimento, Lacerda mandou artigo para seu jornal, a Tribuna da Imprensa, no qual afirmava, a certa altura: “[...] acuso um só homem como responsável por este crime. É o protetor dos ladrões, cuja impunidade lhes dá audácia para atos como o desta noite. Esse homem chama-se Getúlio Vargas”.

A Oposição na Câmara dos Deputados reagiu com grande vigor. Os discursos se sucediam, propondo a renúncia ou o impedimento de Getúlio Vargas. O deputado Aluísio de Castro (PL-BA) ia mais além: entendia que o Congresso Nacional pode- ria licenciar o presidente da República, de ofício, uma vez que não tinha condições intelectuais para governar o país.

O Plenário da Câmara vivia o tenso e dramático clima daquele momento históri- co. Os grandes oradores desfilavam na tribuna. Um deles, Afonso Arinos de Mello Franco, líder da UDN e figura que teve longa e gloriosa trajetória na vida pública brasileira, viria a proferir marcante discurso em que exigia a renúncia do presidente Getúlio Vargas, como a única saída digna para aquele momento. No dia 9 de agosto de 1954, a apenas quinze dias do suicídio do presidente Getúlio Vargas, Arinos fez discurso em que dizia:

Por isso, Senhor Presidente, eu falo a Getúlio Vargas. Eu falo a Getúlio Vargas, como Presidente e como homem. Eu falo a Getúlio Vargas, como Presidente, e lhe digo: Presidente, lembre-se V.Exa. das incumbências e das responsabilidades do

33 A República do Galeão

seu mandato; lembre-se dos interesses nacionais que pesam, não sobre a sua ação somente, mas sobre a sua reputação. Eu lhe digo: Presidente, houve um momento em que V.Exa. encarnou, de fato, as esperanças do povo; houve um momento em que V.Exa. se irmanou com as aspirações populares. Premido pelo povo, V.Exa., que tinha sido fascista e partidário dos fascistas, foi à guerra democrática. Levado nos ombros do povo, V.Exa. oprimiu o povo e esmagou o povo, e entrou, pela mão do povo, no Palácio do Catete.

Mas digo a V.Exa.: preze o Brasil que repousa na sua autoridade; preze a sua autori- dade, sob a qual repousa o Brasil. Tenho a coragem de perceber que o seu governo é, hoje, um estuário de lama, um estuário de sangue; observe que os porões de seu Palácio chegaram a ser um vasculhadouro da sociedade; verifique que os desvãos de sua guarda pessoal são como subsolos de uma sociedade em podridão. Alce os olhos para o seu destino e observe as cores da bandeira, e olhe para o céu, a cruz de estrelas que nos protege e veja como é possível restaurar a autoridade de um gover- no que se irmana com criminosos, como é possível restabelecer-se a força de um Executivo caindo nos últimos desvãos da desconfiança e da condenação.

Mais adiante, Afonso Arinos concluía:

Senhor Presidente Getúlio Vargas, eu lhe falo como Presidente: reflita na sua responsabilidade de Presidente e tome, afinal, aquela deliberação que é a última que um presidente na sua situação pode tomar.

Eu falo ao homem. Eu falo ao homem Getúlio Vargas e lhe digo: lembre-se da glória de sua terra e dos ímpetos de seu povo; lembre-se das arremetidas da penada solta e do tropel dos baguias pelas campinas heroicas do Rio Grande; lembre- se do flutuar dos pombos e do relampejar das lanças; lembre-se do entrechoque da poeira dos combates memoráveis; lembre-se, homem, de que em seu sangue corre, como no meu, o sangue dos heróis e não se acumplicie com os crimes dos covardes e com a infâmia dos traidores!

E digo ao homem, que é pai, que tem filhos e irmãos: lembre-se das famílias; lembre- se se tem realmente o coração cordato e a alma cristã a que ontem se referiu, de estar sendo olhado e surpreendido pelo povo como um sileno gordo, pálido e risonho; indiferente ao sonho derramado; lembre-se, homem, de que é preciso levantar o coração dos homens; lembre-se, homem, de que é preciso dar esperança aos homens e mulheres deste país. E eu lhe digo, homem: ponha bem alto o seu coração. Eu lhe solicito, homem, em nome do que há de mais puro e mais alto no coração do meu povo; lembre-se, homem, pela luz do céu; lembre-se, homem, pelas folhas e pelas flores que começam a brotar neste princípio de primavera; lembre-se, homem, pelas igrejas da minha terra, que ontem bateram os sinos contra a sua voz; lembre-se, pelos olhos azuis da Irmã Vicência, que se curva, hoje, com seus oitenta anos, no Convento de Diamantina, rezando pelo bem do Brasil; lembre-se, homem, pelos

34 O Congresso em Meio Século | 2a Edição

pequenininhos, pelos humilhados, pelos operários e pelos poetas: – lembre-se dos homens e deste país e tenha coragem de ser um desses homens, não permanecendo no governo se não for digno de exercê-lo.

Antes do suicídio, os carros de reportagem e de distribuição dos jornais Última Hora e os de propaganda do PTB eram apedrejados e incendiados, nas ruas do Rio de Janeiro, por multidões enfurecidas, que exigiam a renúncia do presidente da República. Anunciada a morte do presidente, inverteu-se a situação: os carros de reportagem e de distribuição de jornais da Tribuna da Imprensa e de O Globo e de propaganda eleitoral da UDN é que passaram a ser apedrejados e incendiados, assim como o prédio da embaixada dos Estados Unidos, no centro da cidade.

Já era mais de meia-noite do dia 23 para 24 de agosto, quando o general Zenóbio da Costa, ministro da Guerra, comunicou a Vargas que as Forças Armadas reclama- vam a renúncia do presidente da República. Getúlio convocou reunião ministerial, que começou às 3 horas da madrugada, terminando às 4h30. Como não se chegou a qualquer conclusão, Vargas encerrou-a falando em morte:

Já que o Ministério não chega a nenhuma conclusão, eu vou decidir. Determino que os ministros militares mantenham a ordem pública. Se conseguirem, eu apresentarei o meu pedido de licença. Em caso contrário, os revoltosos encontrarão aqui dentro do Palácio o meu cadáver.

O ministro da Justiça, Tancredo Neves, redigiu a seguinte nota, transmitida por todas as emissoras de rádio, a partir da madrugada do dia 24 de agosto:

Deliberou o Presidente Vargas, com integral solidariedade dos seus ministros, entrar em licença, passando o governo a seu substituto legal, desde que seja mantida a ordem, respeitados os poderes constituídos e honrados os compromissos solenemente assumidos perante a Nação pelos oficiais-generais das nossas Forças Armadas. Em caso contrário, persistirá inabalável no seu propósito de defender as prerrogativas constitucionais com o sacrifício, se necessário, da própria vida.

Quando Alzira Vargas do Amaral Peixoto tentou levar ao conhecimento do pai a nota redigida por Tancredo e aprovada pelos ministros, verificou que a porta do quarto estava trancada e ouviu uma voz dizer, numa resposta curta e seca: “Façam o que quiserem. Não a quero ler. Já estou dormindo.” Passava das oito horas da ma- nhã, quando ecoou o tiro que Getúlio Vargas disparou contra o próprio peito. Em uma mesinha de cabeceira jazia um envelope branco, encontrado pelo marido de Alzira, Ernâni do Amaral Peixoto, contendo a Carta-Testamento.

35 A República do Galeão

A Carta-Testamento, dirigida ao povo brasileiro, dizia textualmente: Mais uma vez as forças e os interesses contra o povo coordenaram-se e novamente se desencadeiam sobre mim. Não me acusam, insultam; não me combatem, caluniam, e não me dão o direito de defesa. Precisam sufocar a minha voz e impedir a minha ação, para que eu não continue a defender, como sempre defendi, o povo e principalmente os humildes. Sigo o destino que me é imposto. Depois de decênios de domínio e exploração dos grupos econômicos e financeiros internacionais, fiz-me chefe de uma revolução e venci. Iniciei o trabalho de libertação e instaurei o regime de liberdade social. Tive de renunciar. Voltei ao governo nos braços do povo. A campanha subterrânea dos grupos internacionais aliou-se à dos grupos nacionais revoltados contra o regime de garantia do trabalho. A lei de lucros extraordinários foi detida no Congresso. Contra a justiça da revisão do salário mínimo se desencadearam os ódios. Fiz criar a liberdade nacional na potencialização das nossas riquezas através da Petrobras e, mal começa esta a funcionar, a onda de agitação se avoluma. A Eletrobrás foi obstaculada até o desespero. Não querem que o trabalhador seja livre. Não querem que o povo seja independente. Assumi o governo dentro da espiral inflacionária que destruía os valores do trabalho. Os lucros das empresas estrangeiras alcançavam até 500% ao ano. Nas declarações de valores do que importávamos existiam fraudes constatadas de mais de 100 milhões de dólares por ano. Veio a crise do café, valorizou-se o nosso principal produto. Tentamos defender seu preço e a resposta foi uma violenta pressão sobre a nossa economia, ao ponto de sermos obrigados a ceder. Tenho lutado mês a mês, dia a dia, hora a hora, resistindo a uma pressão constante, incessante, tudo suportando em silêncio, tudo esquecendo, renunciando a mim mesmo, para defender o povo, que agora se queda desamparado. Nada mais vos posso dar, a não ser o meu sangue. Se as aves de rapina querem o sangue de alguém, querem continuar sugando o povo brasileiro, eu ofereço em holocausto a minha vida. Escolho esse meio de estar sempre convosco. Quando vos humilharem, sentireis minha alma sofrendo ao vosso lado. Quando a fome bater à vossa porta, sentireis em vosso peito a energia para a luta por vós e vossos filhos. Quando vos vilipendiarem, sentireis o pensamento da força para a reação. Meu sacrifício vos manterá unidos e meu nome será a vossa bandeira de luta. Cada gota de meu sangue será uma chama imortal na vossa consciência e manterá a vibração sagrada para a resistência. Ao ódio respondo com o perdão. E aos que pensam que me derrotaram respondo com a minha vitória. Era escravo do povo e hoje me liberto para a vida eterna. Mas esse povo de quem fui escravo não mais será escravo de ninguém. Meu sacrifício ficará para sempre em sua alma e meu sangue será o preço de seu resgate. Lutei contra a espoliação do Brasil. Lutei contra a espoliação do povo. Tenho lutado de peito aberto. O ódio, as infâmias, a calúnia não abateram meu ânimo. Eu vos dei a minha vida. Agora vos ofereço a minha morte. Nada receio. Serenamente dou o primeiro passo no caminho da eternidade e saio da vida para entrar na História.

36 O Congresso em Meio Século | 2a Edição

Pode-se imaginar o clima dramático que presidiu a sessão da Câmara dos Depu- tados, na tarde do dia 24 de agosto, quando subiu à tribuna o líder da Maioria, deputado Gustavo Capanema (PSD-MG), que, visivelmente emocionado, analisava as razões do gesto extremo do presidente Getúlio Vargas, sublinhando que, para ele, naquele instante, o exercício do poder se tornara secundário. O que lhe parecia fun- damental era a defesa da honra e da dignidade da própria Presidência da República. A certa altura, assinalava o político mineiro:

Conheci de perto o grande presidente. Conheci a sua inteligência profunda, larga e sutil, inteligência política como nunca vi tão grande, capaz de discernir as melhores soluções nos momentos mais intrincados, capaz de divisar no plano dos interesses do país as soluções salvadoras, capaz de encontrar, em todas as circunstâncias em que estivesse em jogo a felicidade, o prestígio, a honra, o destino da Nação, o rumo popular e o rumo histórico, aqueles rumos verdadeiramente cheios de sabedoria. Ele tinha essa inteligência alta e notável.

Em seu denso e marcante pronunciamento, o deputado Gustavo Capanema dava um testemunho pessoal sobre algumas qualidades do presidente Vargas:

Nunca divisei nele, nem mesmo nas horas em que o ímpeto era justificável, o gesto ou a atitude de vingança. Ao contrário, o que constituía uma preocupação constante do seu coração era encontrar a fonte por onde chegar à alma do adversário ou do inimigo. Certa vez, Emil Ludwig perguntou-lhe se era grande o número de seus inimigos. A resposta é conhecida: “Eu não tenho nenhum inimigo do qual não possa amanhã tornar-me amigo”.

Sobre as qualidades que o distinguiam como estadista, afirmou Capanema:

Neste ponto é que nele surge o traço fundamental da mentalidade do homem de Estado. Homem de Estado não há de ser aquele que apenas tem um grande coração, não há de ser aquele que apenas tem uma grande inteligência. O homem de Estado tem de possuir uma grande, firme e poderosa vontade, a vontade própria a fazer face às situações mais difíceis e a alcançar os objetivos visados. Era dessa natureza a sua vontade.

Capanema identificava no suicídio a preocupação essencial de Vargas em defender a sua honra:

Do que neste momento devo falar não é da sua morte. Se a sua vida foi marcada pelo ideal, a sua morte foi marcada pela honra.

37 A República do Galeão

O longo processo de desgastes a que o governo Vargas foi submetido, desde a cria- ção da chamada Comissão Parlamentar de Inquérito do Banco do Brasil, acelerou- se a partir do atentado a Carlos Lacerda. No dia 23 de agosto, véspera da morte de Vargas, o vice-presidente Café Filho – também presidente do Senado – deu um discurso como lido em que analisava a crise político-institucional, quando sugeriu que ambos – ele e o presidente Getúlio Vargas – renunciassem como forma de pa- cificar a Nação. Dizia Café:

Fui levar-lhe não só as impressões recolhidas do contacto com os chefes militares e os políticos de maior responsabilidade, mas propor-lhe, também, uma fórmula concreta que me pareceu capaz de abrir margem a uma solução alta e impessoal, em que, acima de quaisquer sentimentos pessoais ou partidários, se colocassem os sagrados interesses nacionais. Essa fórmula consiste na renúncia simultânea do presidente e do vice-presidente da República, de modo a permitir, de acordo com a Constituição, a eleição de um novo presidente, dentro de trinta dias, para o término do período presidencial.

Ao tomar conhecimento do discurso, Vargas comentou para os íntimos: “É. Café definiu-se: está com os golpistas!”

Porém, a verdade é que Vargas sofreu dano irreparável com o atentado da Rua To- nelero. Ainda no dia 22 de agosto, sua posição tornou-se insustentável, quando a Ordem dos Advogados do Brasil emitiu nota oficial preconizando a renúncia do presidente da República como solução para a crise. O ministro da Aeronáutica, bri- gadeiro Nero Moura, no dia 12 de agosto de 1954, resolveu instaurar Inquérito Poli- cial Militar para apurar a responsabilidade pela morte do major Rubens Florentino Vaz. Logo depois, o brigadeiro Nero Moura pediu demissão, sendo substituído pelo brigadeiro Epaminondas Santos no Ministério da Aeronáutica.

O IPM era presidido pelo coronel João Adil de Oliveira, que recebeu poderes extra- ordinários para apuração do crime, o que incluía ampla liberdade nas investigações, na convocação de testemunhas e na indicação dos possíveis culpados. A atuação do encarregado do IPM e seus auxiliares ganhou tal desenvoltura que invadiu as atri- buições do próprio Poder Judiciário, ao mesmo tempo em que acuava os demais Poderes. Como o IPM funcionava na Base Aérea do Galeão, logo ficou conhecido pela alcunha de “República do Galeão”.

Um fato que agravou situação, já crítica, e teve grande responsabilidade na decisão do presidente de acabar com a própria vida foi a intimação do coronel João Adil de Oliveira para que seu irmão, Benjamim Vargas, o Bejo, nomeado chefe de Polícia

38 O Congresso em Meio Século | 2a Edição

do Distrito Federal, prestasse depoimento sobre a morte do major Vaz. Vargas não admitia que o irmão fosse convocado pelo encarregado do IPM.

O drama do presidente Getúlio Vargas começou quando a Câmara dos Deputados constituiu Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) para investigar generosos fi- nanciamentos concedidos pelo Banco do Brasil ao jornal Última Hora, de Samuel Wainer, que revolucionara a imprensa brasileira, incomodando a concorrência. Com base nas investigações, Carlos Lacerda abriu campanha contra o jornal e o governo Vargas, contando com o apoio de O Globo e da Rádio Globo, bem como dos jornais e emissoras de rádio da cadeia de , os Diários Associados.

A segurança pessoal do presidente Getúlio Vargas foi apontada, na pessoa de seu chefe, tenente Gregório Fortunato, como responsável pelo atentado ao deputado e jornalista Carlos Lacerda, de que resultou a morte do major Vaz. Antes desses fatos, a Câmara dos Deputados criou a Comissão Parlamentar de Inquérito com o obje- tivo de investigar a concessão de dois financiamentos irregulares pelo presidente do Banco do Brasil, Ricardo Jafet, ao jornal Última Hora. Tratava-se de emprésti- mos para a empresa jornalística Érika S/A, a Editora Última Hora e outras. A CPI foi criada pela Resolução no 313, de 3 de junho de 1953, seu autor foi o deputado Armando Falcão, tendo como presidente o deputado Castilho Cabral e relator o deputado Frota Aguiar.

Ao financiar o jornal de Wainer, Vargas provocou uma briga com a grande im- prensa. Os trabalhos da CPI criaram a ideia do “mar de lama”, a ponto de levar o deputado Afonso Arinos, em junho de 1954, a encaminhar pedido de impeachment contra o presidente Vargas, alegando conivência com atos criminosos, corrupção e imoralidade. O pedido foi rejeitado por 136 votos a 35. Só a comoção pública, provocada pelo atentado e a morte do major Vaz, acabaria por acuar o presidente Getúlio Vargas e levá-lo ao suicídio.

39 A República do Galeão

A Crise de Novembro

Ainda no dia 24 de agosto de 1954, o vice-presidente Café Filho enviou ofício ao presidente da Câmara dos Deputados, Flores da Cunha, para comunicar que estava assumindo a chefia do Poder Executivo, em face do falecimento do presidente Vargas e do que prescrevia a Constituição. Café convocou para o governo algumas das mais eminentes figuras da UDN. Por uma dessas ironias da História, nomeou para mi- nistro da Guerra, a conselho do marechal Juarez Távora, o general Henrique Duffles Batista Teixeira Lott, militar distante da política e dedicado às tarefas profissionais.

Café Filho era deputado federal quando irrompeu o golpe de 10 de novembro de 1937, que fechou o Congresso Nacional. Começou sua carreira política pelo mo- vimento sindical. Mais tarde, já retirado da vida pública, escreveria livro de me- mórias intitulado Do sindicato ao Catete. Retornou à Câmara dos Deputados na Constituinte de 1946 pelo Partido Social Progressista (PSP), de Ademar de Barros. Combatia o governo Vargas e, em geral, terminava seus discursos sublinhando: “Lembrai-vos de 37”. Oriundo do Rio Grande do Norte, sem grandes qualidades de orador parlamentar, acabou candidato a vice-presidente da República, na chapa de Vargas, indicado por Ademar de Barros. Àquele tempo, os candidatos a vice-pre- sidente eram votados separadamente dos candidatos à Presidência da República. Vargas alcançou, nas eleições de 3 de outubro de 1950, 3.849.040 votos, e Café Filho 2.520.790 votos.

O mesmo grupo que tentou depor Vargas voltaria a disputar o poder contra a alian- ça PSD-PTB em novembro de 1955. Perdeu esse lance, mas se preparou e ganhou o jogo em março de 1964, quando da deposição do presidente João Goulart. Com Café Filho, o Brasil haveria de viver dias turbulentos. A contragosto, Vargas aceitou a indicação de Café. Teria preferido vice de maior densidade política e eleitoral.

Café assumiria o poder sob as desconfianças do PSD e do PTB, assim como da Igreja Católica, que o considerava agnóstico. O cardeal-arcebispo do Rio de Janeiro, Dom Jaime de Barros Câmara, só o atendia por imposição do protocolo. Café Filho tudo fez para se aproximar da Igreja, chegando a inaugurar, no Largo do Machado, no Rio de Janeiro, imagem de Nossa Senhora, que lá se encontra até hoje. Nunca obteve as boas graças da Igreja Católica.

O país vivia, então, clima de campanha eleitoral. Juscelino Kubitschek, ex-gover- nador de Minas Gerais, era o candidato da aliança PSD-PTB a presidente da Re- pública, tendo como vice João Goulart, presumido herdeiro político de Vargas e

40 O Congresso em Meio Século | 2a Edição

figura de confiança do movimento sindical, enquanto o marechal Juarez Távora era o candidato da UDN.

Realizadas as eleições, quando a apuração se achava em pleno curso, mas já se ti- nha certeza da derrota de Juarez, o deputado Aliomar Baleeiro, em nome da UDN, levantou a tese de que o presidente eleito, Juscelino Kubitschek, teria de conquistar a maioria absoluta dos votos. Tratava-se de mudança radical das regras do jogo, quando este se achava praticamente concluído. A exigência era absurda, pois não constava da Constituição de 1946, como foi posteriormente reconhecido pelo Tri- bunal Superior Eleitoral. Porém, era uma demonstração de que a UDN não aceitava a vitória eleitoral de Juscelino.

O clima era de grandes tensões, mas um fato ainda haveria de elevar a temperatura a ponto crítico. No enterro do general Canrobert Pereira da Costa, no Cemitério do Caju, dia 31 de outubro de 1955, o coronel Jurandir de Bizarria Mamede surpre- endeu os presentes, inclusive o ministro da Guerra, general Teixeira Lott, ao sacar do bolso discurso escrito, que leu e em que qualificava de “farsa eleitoral” o pleito que dera a vitória à coligação PSD-PTB, ao mesmo tempo em que pregava solução extraconstitucional para evitar a posse de Juscelino Kubitschek, assegurando ao morto, de forma patética, que “os caídos de 1954 não voltariam ao poder”.

A certa altura de seu discurso, o coronel Mamede sublinhou:

Mas também vimos – aqui e principalmente – para responder, ante os teus despojos, à mensagem corajosa de verdade e de civismo que, em dias de agosto último, abandonando o teu leito de enfermo, dirigiste a todos nós e a toda a Nação, num último alerta contra a insensatez e o desvairo das paixões desenfreadas, que ameaçam de ruína os próprios destinos do país. Ressoam, ainda, em nossos ouvidos, com todo o vigor de sua emoção concentrada e de uma convicção inabalável, aquelas palavras imperativas de fé: “Estejais certos, camaradas, de que nós, vossos chefes, não vos decepcionaremos.”

A tese sustentada pelo coronel Jurandir de Bizarria Mamede chocava-se com a orien- tação legalista que o general Lott imprimira como ministro da Guerra, segundo a qual deveria tomar posse aquele que fosse proclamado vitorioso pela Justiça Eleitoral. O ministro considerou o discurso intolerável gesto de indisciplina e insubordinação, solicitando ao presidente Café Filho a punição do coronel Mamede, que, lotado na Escola Superior de Guerra e subordinado ao Emfa (Estado Maior das Forças Arma- das) e à Presidência da República, estava fora do alcance de sua autoridade.

41 A República do Galeão

Café Filho adoeceu, alegando problemas cardíacos. Muitos achavam que seu in- ternamento, no dia 3 de novembro de 1955, não passava de uma forma de fugir às pressões que sofria de figuras importantes da UDN para dar um golpe e evitar a posse de Juscelino Kubitschek. Licenciou-se da Presidência da República, no pe- ríodo entre 8 a 11 de novembro, sem decidir sobre o pedido de Lott. Transferiu o problema para seu substituto legal, o presidente da Câmara dos Deputados, , que, embora filiado ao PSD mineiro, mantinha melhores relações com figuras da UDN do que com os seus correligionários pessedistas.

Carlos Luz não simpatizava com a candidatura de Juscelino por questões políticas de Minas e aceitava a ideia de um regime de exceção para o Brasil. Quando Carlos Luz comunicou ao Plenário que assumiria a Presidência da República, no dia 8 de novembro de 1955, o deputado José Maria Alkmin, líder da Maioria, proferiu dis- curso premonitório, lembrando ao ilustre conterrâneo a necessidade de preservar a ordem constitucional, ao mesmo tempo em que o alertava para o risco de ser envolvido por forças interessadas em provocar ruptura institucional, o que levaria o país para crise de consequências imprevisíveis.

O ministro Teixeira Lott insistiu com o novo mandatário que a disciplina militar impunha a punição do coronel Mamede. No dia 10 de novembro de 1955, o presi- dente Carlos Luz convocou o ministro da Guerra ao Palácio do Catete, deixando-o mais de duas horas na sala de espera, o que foi interpretado como ato de humilha- ção. Recebeu-o, finalmente, para comunicar que seria substituído no Ministério da Guerra pelo general Fiúza de Castro, também presente ao encontro. Lott não esboçou qualquer resistência.

Chegou a indagar de Fiúza, na presença de Carlos Luz, se ele desejava assumir ain- da naquela noite. Fiúza respondeu que preferia tomar posse no dia seguinte. Lott retirou-se para a residência oficial do Ministério da Guerra, situada na Avenida Maracanã, no Rio de Janeiro. Foi dormir. Na residência oficial do Comandante do I Exército, vizinha à do ministro da Guerra, o general Odílio Dennys recebia vários generais. Reagiu imediatamente, sustentando que o Exército fora humilhado na pessoa de seu ministro e que estava em andamento um golpe contra as instituições. Acordou Lott pelo telefone, aconselhando-o a comandar a resistência a fim de evi- tar que se instaurasse quadro de indisciplina na força terrestre.

Tanques e soldados de infantaria ocuparam pontos estratégicos da capital da Re- pública e das principais cidades do país, logo no começo da madrugada do dia 11

42 O Congresso em Meio Século | 2a Edição

de novembro, caracterizando ampla manobra militar de que resultou o contragolpe que garantiu a eleição e a posse do presidente Juscelino Kubitschek.

A propósito, vale a pena lembrar que, na noite do dia 11 de novembro, o deputado Afonso Arinos levou de carona, em seu automóvel, ao Meyer, o jornalista Prudente de Morais Neto. Quando passaram pelo Palácio Duque de Caxias, na Praça da Re- pública, observaram, felizes, que o prédio estava feericamente iluminado, julgando que em apoio ao golpe planejado pelo grupo militar ligado à UDN. Ao retornar à sua residência na Rua Dona Mariana, em Botafogo, Zona Sul do Rio, Afonso Arinos tomou conhecimento de que a movimentação no Ministério da Guerra era parte de um contragolpe patrocinado pelos generais Teixeira Lott e Odílio Dennys contra o governo Café Filho e Carlos Luz.

Os Ministérios da Marinha e da Aeronáutica e a entrada da Ilha do Governador, que dá acesso à Base Militar do Galeão, foram cercados. Carlos Luz, presidente da República em exercício, refugiou-se no cruzador Almirante Tamandaré, sob o comando do almirante Pena Boto, sendo acompanhado por ministros de Estado e chefes militares e vários parlamentares da UDN, entre eles o deputado e jornalista Carlos Lacerda.

O Congresso Nacional considerou que o presidente da República se achava em lugar incerto e ignorado – uma vez que era impossível determinar a posição do cruzador Tamandaré –, o que levou o vice-presidente do Senado Federal, no exer- cício da Presidência, Nereu Ramos, a assumir a Presidência da República, com o apoio do Exército. Depois de intensas articulações, o deputado Carlos Luz enviou carta ao presidente da Câmara em exercício (Flores da Cunha), com data de 14 de novembro de 1955, nos seguintes termos:

Exmo. Sr. Presidente da Câmara dos Deputados, em exercício. Venho comunicar a V.Exa. que, conforme deliberação por mim tomada, em reunião realizada a bordo do cruzador Tamandaré, na noite de 11 do corrente, resolvi renunciar a presidente desta Casa do Congresso Nacional, tendo em vista o que aqui ocorreu naquela data.

Houve acordo para que o renunciante proferisse discurso da tribuna da Câmara dos Deputados. Luz discursou, sem permitir apartes, perante plenário e galeria lo- tados e ruidosos, que o vaiaram em várias passagens de sua oração. Ao terminar o discurso, retirou-se do edifício. Assumiu a Presidência da Câmara o primeiro-vice- presidente, deputado Flores da Cunha (UDN-RS).

43 A República do Galeão

O deputado Carlos Luz não se desligou do PSD mineiro, por cuja legenda seria re- eleito em 1958 para a legislatura seguinte, falecendo no dia 9 de fevereiro de 1961, na cidade do Rio de Janeiro. Após sua morte, fui procurado por um de seus filhos, que desejava entregar as chaves do apartamento funcional, localizado na SQS 105, em Brasília, que ele ocupava. Pedia-me que a Câmara designasse funcionário para verificar pessoalmente as condições do imóvel e seus pertences. Respondi-lhe que a verificação era dispensável, pois eu conhecia o comportamento ético de seu pai. Como insistisse, fiz com que se procedesse a essa verificação.

Todas as personalidades que fizeram a viagem barra fora no cruzador Tamandaré desembarcaram no Arsenal de Marinha. Entre elas, o deputado e jornalista Carlos Lacerda, que se asilaria, em seguida, na embaixada de Cuba, de onde saiu para re- sidir em Nova York. Descobriu-se, posteriormente, que Lacerda não havia comuni- cado sua ausência do país à Mesa da Câmara, conforme determinação regimental. Seus amigos, contudo, simularam requerimento, que foi aceito pela Mesa. Ninguém revelou interesse em penalizar Carlos Lacerda.

Ao tomar conhecimento do contragolpe e da renúncia de Luz, o presidente João Café Filho, ainda internado no Hospital dos Servidores do Estado, no Rio de Ja- neiro, comunicou ao Congresso, no dia 21 de novembro de 1955, que reassumiria a Presidência da República, ao mesmo tempo em que apresentava documento assi- nado pelo médico Aluísio Sales, atestando que estava em condições de saúde para exercer o mandato. Pressionada pelo ministro da Guerra, a Câmara dos Deputados decretou, na madrugada do dia 22 de novembro de 1955, o impedimento do presi- dente João Café Filho, pelo quórum de 185 votos a favor e 72 contra, registrando-se o comparecimento de 257 deputados.

A resolução aprovada e redigida pelo deputado Gustavo Capanema, líder da Maio- ria e do PSD, era a seguinte:

A Câmara dos Deputados, tomando conhecimento dos graves acontecimentos que, desde ontem, se desenrolam no país, e considerando a situação de fato pelos mesmos criada, reconhece a existência de impedimento previsto no artigo 79, parágrafo 1o, da Constituição Federal, para cuja solução o mesmo dispositivo prevê o chamamento do vice-presidente do Senado Federal ao exercício da Presidência da República. Em 11 de novembro de 1955.

Assinaram José Maria Alkmin (PSD), Fernando Ferrari (PTB), Hugo Napoleão (PSD), Arnaldo Cerdeira (PSP), Luís Campagnoni (PRP), Manuel Novais (PR), Emílio Carlos (PTN), Armando Falcão (PSD) e Loureiro Júnior (PRP). Coube ao deputado Gustavo Capanema proferir discurso da tribuna para justificar a decisão

44 O Congresso em Meio Século | 2a Edição

da Câmara dos Deputados de declarar o impedimento do presidente João Café Filho. A certa altura, dizia o saudoso político e humanista mineiro:

Não é preciso que eu insista na minha afirmação de que estamos em face de uma situação de fato, que se caracteriza por um levante militar de grande envergadura e extensão, porque, como se diz, abrange todo o Exército Nacional, a essa altura reunido com a solidariedade das forças policiais e estaduais em torno do ministro da Guerra [...] Estamos, Senhor Presidente, nesta alternativa: ou tomamos uma providência adequada ou então cairemos na ditadura militar. O Exército assumirá, desde logo, o governo, porque, como disse o senhor deputado João Agripino, estamos em face de um novo governo constituído. Então, a Nação estará sob uma ditadura militar, organizada pelo Exército, solidário, esta manhã, em torno do ministro da Guerra [...] Isso posto, cabe-nos proclamar a necessidade da aplicação imediata do preceito constitucional que cuida do chamamento de determinada autoridade, substituta, sem reconhecer a existência ou a ilegalidade do poder, simplesmente lhe declarando o impedimento.

Conforme a Constituição de 1946, a Presidência do Senado era exercida pelo vice- presidente da República. Na sua vacância, assumiu o cargo o primeiro-vice-presi- dente. Cabia, assim, ao senador Nereu Ramos exercer a Presidência da República, o que fez de 12 de novembro de 1955 até o término do quinquênio presidencial, a 31 de janeiro de 1956.

O presidente Café Filho dirigiu ao presidente da Câmara dos Deputados, Flores da Cunha, no dia 16 de novembro de 1955, a seguinte comunicação:

Senhor Presidente, ao retirar-me do Hospital dos Servidores do Estado, onde me recolhera em virtude das minhas condições de saúde, e no momento em que inicio, na Clínica de Repouso São Vicente, um período de convalescença e recuperação, venho trazer à Câmara dos Deputados, por intermédio de V.Exa., os meus agradecimentos pelos votos de restabelecimento manifestados por este órgão do Congresso Nacional, através das honrosas e gratas visitas que me fizeram as comissões para isso designadas e constituídas dos ilustres líderes e sublíderes de todos os partidos. Renovo a V.Exa. protestos de elevada consideração e estima. João Café Filho.

No dia 21 de novembro de 1955, Café Filho dirigiu ao presidente da Câmara dos Deputados o seguinte ofício:

Senhor Presidente, tenho a honra de encaminhar a V.Exa. que acabo de dirigir ao Exmo. Sr. Doutor Nereu Ramos, vice-presidente do Senado no exercício da Presidência da República, a seguinte comunicação:

“Tendo cessado os motivos do impedimento que me levaram a afastar-me do exercício da Presidência da República, tenho a honra de comunicar a V.Exa. que,

45 A República do Galeão

nesta data, a partir do momento em que lhe faço essa comunicação, reassumo para os devidos fins o exercício daquela função. Nesta oportunidade, reitero-lhe os protestos de minha consideração e estima. Queira V.Exa. receber a expressão do meu alto apreço. João Café Filho.”

As lideranças do PSD estavam atentas, redigindo a seguinte comunicação – ratifi- cando o impedimento de Café Filho e de Carlos Luz – endereçada à Câmara dos Deputados e assinada pelos principais líderes de bancadas:

A Câmara dos Deputados,

Considerando que, por deliberação tomada na sessão da Câmara do dia 11 do corrente, e na mesma data homologada pelo Senado, reconheceu o Congresso Nacional a existência do impedimento previsto no artigo 79, parágrafo 1o, da Constituição Federal, e apontou a solução do chamamento ao exercício da Presidência da República do vice-presidente do Senado Federal;

Considerando que, assim agindo, à vista de fato criado pelos graves acontecimentos desenrolados no país, exercitou o Congresso Nacional poder político que lhe é irrecusável, o de decidir, na presente emergência, sobre os impedimentos, quer do então presidente da Câmara dos Deputados, quer do vice-presidente da República, este por ter sido envolvido pelos mesmos acontecimentos sob imperativo de condições notoriamente irremovíveis de ordem pública e institucional, sem possibilidade de assumir o pleno exercício do cargo, assegurando a sobrevivência do regime e em consequência a tranquilidade da Nação;

Considerando que, tendo convocado ao exercício da suprema magistratura do país o vice-presidente do Senado Federal, por reconhecer o impedimento ocorrido com as autoridades anteriores referidas, só ao Congresso cabe, soberanamente, resolver sobre a cessação de tal impedimento;

Considerando que ao Congresso Nacional cabe o dever institucional de preservar o regime agora, como antes, ameaçado, resolve declarar que permanece o impedimento anteriormente reconhecido até deliberação em contrário do Congresso Nacional.

Sala das Sessões, em 21 de novembro de 1955.

Vieira de Melo (PSD), Hugo Napoleão (PSD), Armando Falcão (PSD), Arnaldo Cerdeira (PSP), José Maria Alkmin (PSD), Fernando Ferrari (PTB). [Seguem-se mais 122 assinaturas de deputados.]

No dia 14 de dezembro de 1955, decorrido mais de um mês do contragolpe do dia 11 de novembro de 1955, o Supremo Tribunal Federal julgou mandado de seguran- ça (no 3.557) impetrado em favor de João Café Filho. O STF não tomou conheci- mento do mandado de segurança em razão de o país achar-se sob estado de sítio,

46 O Congresso em Meio Século | 2a Edição

nos termos da Lei no 2.654, de 25 de novembro de 1955. Essa lei foi sancionada pelo senador Nereu Ramos, quando se achava no exercício da Presidência da República. O parágrafo 2o do referido diploma legal estabelece:

A suspensão do habeas corpus restringe-se aos atos praticados por autoridades federais e a do mandado de segurança aos emanados do presidente da República, dos ministros de Estado, do Congresso Nacional e do executor do estado de sítio.

Café Filho impetrou o Habeas Corpus no 33.908, perante o Supremo Tribunal Fe- deral, no dia 31 de novembro de 1955, para garantir o seu retorno ao poder. Na- quelas circunstâncias havia uma situação de fato, que a Suprema Corte certamente não ignorava. O processo foi distribuído ao ministro Afrânio Ribeiro da Costa. O Supremo Tribunal Federal proferiu a seguinte decisão, no dia 21 de dezembro de 1955, conforme consta de ata:

Conheceram do pedido, contra os votos dos ministros Nelson Hungria, Mário Guimarães, que julgaram prejudicado o mesmo, contra o voto do ministro Ribeiro da Costa, que concedeu a ordem, tendo os ministros Lafaiete de Andrada e Orozimbo Nonato entendido dever ser suspenso o julgamento. Deixou de comparecer, por se achar em gozo de licença especial, o ministro Barros Barreto, substituído pelo ministro Afrânio Costa. Não tomou parte do julgamento o ministro Macedo Ludolf, substituto do ministro Luís Gallotti, que se achava em exercício no Tribunal Superior Eleitoral. Impedido o ministro Rocha Lagoa. Acórdão: Vistos, etc. Acordam os ministros do Supremo Tribunal Federal, por maioria, conhecer do pedido e dá-lo por prejudicado, conforme o relatório e notas taquigráficas. Rio de Janeiro, 21 de dezembro de 1955. Orozimbo Nonato, presidente (substituição), Afrânio Ribeiro da Costa, relator.

Até o dia 31 de janeiro de 1956, quando o presidente eleito em 3 de outubro de 1955, Juscelino Kubitschek de Oliveira, tomou posse, a Câmara dos Deputados vi- veu momentos de grande agitação. Continuou sendo presidida pelo deputado Flo- res da Cunha, figura humana singular e polêmica, em torno da qual se construiu verdadeira legenda.

Flores abandonou a UDN gaúcha, ingressando no PTB. Na eleição seguinte, em 1958, ficou na quarta suplência. Para garantir sua presença na Câmara, o então governador Leonel Brizola convocou vários deputados para o seu secretariado. Flores abandona- ria o mandato, em razão de doença, vindo a falecer no dia 4 de novembro de 1959.

Os dias tempestuosos que o Brasil viveu ao longo daquele mês de novembro de 1955 refletiam-se no plenário da Câmara, palco de troca de insultos e desagravos entre

47 os parlamentares. Flores da Cunha presidia as sessões agitadas, de lenço branco em volta do pescoço, não raro fumando um puro havana. Vale a pena lembrar incidente que envolveu Flores da Cunha, na Presidência da Câmara, com o deputado Aliomar Baleeiro, um dos mais talentosos parlamentares da “Banda de Música” da UDN.

Quando a Câmara discutia, em sessões plenárias sucessivas, o pedido de impedi­ mento do presidente Café Filho, que cumpria formalizar, a UDN promovia obstru- ção sistemática, na desesperada tentativa de evitar a votação. Numa dessas sessões, o deputado Aliomar Baleeiro censurou a Presidência de Flores da Cunha, acusan- do-o de conduzir a sessão com parcialidade. Flores reagiu ao que considerou uma impertinência de Baleeiro, ao comentar sua atitude na Mesa com um companheiro, sem saber que os microfones estavam ligados. Disse ter aconselhado “aquele mulato baiano pernóstico a calar a boca”.

“Não lhe reconheço autoridade para me dar lições” – gritou o parlamentar gaúcho.

Flores recebeu dezenas de telegramas de protesto de todo o país, mas, sobretudo, da Bahia, contra sua atitude preconceituosa, considerada mais grave porque partida do presidente da Câmara dos Deputados. Em sessão pública, da Presidência da Câmara dos Deputados, Flores da Cunha viu-se obrigado a apresentar um pedido formal de desculpas ao deputado Aliomar Baleeiro e aos baianos.

Só quem teve oportunidade de assistir àqueles momentos viveu o clima de ten- sões e de radicalismo que dominava a política brasileira. Os dois lados em que se dividia a política não eram adversários, mas inimigos irreconciliáveis. À frente da aguerrida UDN, o talento vulcânico de Carlos Lacerda imprimia a linha de orientação, pregando regime de exceção da tribuna da Câmara, o qual seria exer- cido pelas Forças Armadas com a UDN. O regime proposto suspenderia a Cons- tituição de 1946, “até que o país voltasse à normalidade”, o que tinha o objetivo de evitar a vitória eleitoral de Juscelino Kubitschek. Lacerda acabaria atingindo seu objetivo, em março/abril de 1964, mas ele e o país pagaram um alto preço pelo seu extremado radicalismo.

Cumpre lembrar, antes de encerrar este capítulo, que, entre a renúncia de Carlos Luz à Presidência da Câmara dos Deputados e a votação do impedimento do pre- sidente Café Filho, o Brasil foi governado pelo general , du- rante algumas horas, cabendo ao então ministro da Guerra transferir o poder ao vice-presidente do Senado, Nereu Ramos.

48 Entre as grandes figuras da Câmara dos Deputados, vale a pena destacar o deputado Afonso Arinos, que foi, também, um dos nossos maiores oradores parlamentares. Na crise de agosto de 1954, seus discursos contra Getúlio Vargas são peças de irrecusável valor histórico e parlamentar. Na véspera da morte de Vargas, Arinos proferiu discur- so dramático em que parecia profetizar o fim trágico do ex-presidente.

Posteriormente, talvez por sua profunda formação religiosa, através de artigos pu- blicados, Afonso Arinos procurou penitenciar-se das duras críticas que dirigira a Getúlio Vargas. Impressionara-o o gesto patético de Vargas e advertia aos amigos que não queria assumir, perante a História, nenhuma parcela de responsabilidade pela sua morte. Mais tarde, Afonso Arinos reconheceu que Getúlio Vargas assumira dimensão de estadista.

Em conversa com o jornalista e escritor Clóvis Sena, a esse tempo presidente do Comitê de Imprensa da Câmara dos Deputados, o grande mineiro revelaria pensamento original, redimindo Vargas por ter dado o golpe de Estado de 1937. Vargas teria prestado relevantes serviços ao país, até com a decisão de instalar o Estado Novo. Na verdade, para Arinos, Vargas afastou a ameaça, que parecia inevitável, de uma ditadura do Exército, que se anteciparia a 1964, chefiada pelo general Pedro Aurélio de Góis Monteiro. Informado dos passos de Góis, Getúlio trabalhou em outra direção. Antecipando-se ao golpe de Góis, que seria dado no dia 15 de novembro, data da Proclamação da República, ele desferiu o seu no dia 10 de novembro de 1937.

O deputado Vieira de Melo impôs-se à admiração de seus pares e da imprensa quando exerceu a liderança do governo do presidente Juscelino Kubitschek. Após o movimento de 64, quando importantes lideranças militares criticavam a aliança de inimigos irreconciliáveis, como os ex-presidentes Juscelino Kubitschek e João Goulart e o ex-governador Carlos Lacerda, para o lançamento da Frente Ampla, falando-se em “conluio dos contrários”, Vieira de Melo ocupou a tribuna da Câmara para fazer uma brilhante análise da delicada situação que o Brasil vivia, advertin- do que aquelas lideranças esqueceriam, momentaneamente, suas divergências em nome do objetivo maior, que era a restauração da democracia no Brasil. Atingido tal objetivo, os três voltariam às suas posições originais.

49 Capítulo III Os Anos JK

Candidato favorito a presidente da República pelo PSD (Partido Social Demo­ crático), o ex-governador de Minas Gerais Juscelino Kubitschek enfrentou forte pressão exercida pela mais brilhante oposição que se constituiu em toda a his- tória republicana – a da UDN. Era a “Banda de Música” da União Democrática Nacional, na qual pontificavam, além de Carlos Lacerda, Milton Campos, Pedro Aleixo, Bilac Pinto, Adaucto Lúcio Cardoso, Guilherme Machado, Aliomar Ba- leeiro, Oscar Correia, para citar os mais destacados. Baleeiro era um dos mais agressivos na defesa da tese de que o futuro presidente da República teria que ser eleito por maioria absoluta.

A Constituição de 1946 não exigia quórum de maioria absoluta. Previa a vitória do candidato por maioria simples. A maioria absoluta foi bandeira desfraldada pela UDN que serviu para promover grande agitação no país, mas não teve êxito. Na verdade, era uma tentativa de golpe. Os adversários da UDN no Congresso e na imprensa acusavam alguns de seus principais líderes de cortejarem os quartéis, já advertidos de que o partido não teria condições de despertar apoio na sociedade para conquistar o poder central. Juscelino Kubitschek ganhou a eleição, como se esperava, e tomou posse, contrariando as vozes agourentas que se levantavam no parlamento e na imprensa contra sua escolha.

Logo após a posse, em 31 de janeiro de 1956, irrompeu a sedição militar de Jaca- reacanga, comandada pelo major Haroldo Veloso, da Aeronáutica. Juscelino teria oportunidade de revelar, nesse episódio, toda a sua grande habilidade, concedendo anistia aos participantes do movimento sedicioso. Era evidente que o presidente desejava evitar que seu governo fosse perturbado pelo ódio e o sentimento de vin- dita. O tempo haveria de mostrar que ele estava certo.

Outro episódio que provocou grande agitação no parlamento e na imprensa surgiu quando Juscelino tentou criar a figura do senador vitalício, inspirando-se no mode- lo que existiu durante o Império, agora reservado aos ex-presidentes da República. O presidente empenhou todo o peso de seu prestígio para que o Congresso refe- rendasse a ideia, mas a UDN conseguiu evitar a aprovação. A Constituição de 1946 sofreu pouquíssimas emendas: de 18 de setembro de 1946 a 24 de janeiro de 1967, data da promulgação de nova Constituição, recebeu 21 emendas.

51 Os anos JK

Proposta de emenda constitucional precisava ser votada em dois turnos, em duas sessões legislativas ordinárias (dois anos). A UDN ergueu obstáculo intransponível à criação do senador vitalício, promovendo obstrução parlamentar sistemática. A tal ponto que parlamentares que não tinham hábito de fazer discurso liam discur- sos escritos por terceiros para ajudar na ação obstrucionista.

A UDN voltaria a exibir todo o vigor de sua atuação parlamentar quando o presi- dente Juscelino Kubitschek decidiu dar os primeiros passos concretos no sentido de mudar a capital do país do litoral para o planalto central, como já estava previsto nas Disposições Transitórias da Constituição de 1946 (art. 4o), mudança esta estabelecida na Constituição republicana de 1891. Porém, aí, por mais brilhantes que tivessem sido seus principais expoentes, a UDN não teve êxito. Com firme obstinação, JK ga- rantiu a aprovação do projeto de lei do deputado Emival Caiado (PSD-GO), fixando a data de 21 de abril de 1960 para concretizar a mudança da capital.

A elite política e econômica do Rio de Janeiro, a imprensa e o mundo intelectual combatiam radicalmente a mudança da capital. O presidente Juscelino Kubitschek enfrentou com galhardia a campanha movida pelos antimudancistas, à frente a “Banda de Música” da UDN, que fazia uma sucessão de denúncias de corrupção. Competente, JK colocou na direção da Novacap algumas figuras expressivas da UDN, como Íris Meinberg e, posteriormente, Virgílio Távora. Quando da trans- ferência da capital, o então deputado Virgílio Távora, que viria a ter importante atuação na Câmara e no Senado (foi governador do Ceará em três oportunidades), ocupou o cargo de tesoureiro da Novacap.

Juscelino sabia angariar amizades e apoios importantes. Atendeu pedido de Nio- mar Moniz Sodré, dando-lhe o terreno onde foi construído o Museu de Arte Moderna (MAM). Logo, o Correio da Manhã passou a apoiá-lo. Álvaro Lins, edi- torialista do jornal e apontado, àquela época, como o mais importante crítico literário do Brasil, passou a redigir os seus discursos, ao lado do poeta e empresá- rio Augusto Frederico Schimidt. Juscelino revelava o dom de escolher as pessoas certas para os lugares certos.

Conheci-o deputado federal. Não chegou a se destacar como orador parlamentar e legislador. Sua vocação era administrativa, como demonstrou ao longo da sua vida. Tanto que cresceu no Executivo, revelando excepcionais qualidades de liderança. Já havia demonstrado sua competência administrativa como prefeito de Belo Horizonte e governador de Minas Gerais. Provou possuir grande capacidade de trabalho, tem-

52 O Congresso em Meio Século | 2a Edição

peramento obstinado, encanto pessoal e simpatia irradiante. Seu governo foi marca- do por fase excepcional de otimismo e tolerância, incutindo no espírito do brasileiro médio a ideia de que era possível fazer o Brasil crescer cinquenta anos em cinco.

A Mudança da Capital

A capital do Brasil recebeu o nome de Brasília no artigo 33 da Lei no 2.874, de 19 de setembro de 1956, antes mesmo de existir. A mudança foi estabelecida na Lei no 3.273, de 1o de outubro de 1957, cujo artigo 1o declara expressamente: “Em cumprimento do artigo 4o e seu parágrafo 3o do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, será transferida, no dia 21 de abril de 1960, a capital da União para o novo Distrito Federal, já delimitado no planalto central do país.” Posteriormente, a Constituição de 1988, em seu artigo 18, parágrafo 1o, afirmou: “Brasília é a Capital Federal”.

Quando o presidente Juscelino Kubitschek promoveu a transferência da capital para Brasília, entre os motivos invocados estava sempre o de evitar a pressão de interesses corporativos sobre os parlamentares. Na ocasião, como o transporte aé- reo era incipiente e as ligações rodoviárias precárias, Brasília ficava distante dos grandes centros urbanos, o que dificultava a mobilização de pessoas e corporações dispostas a pressionar os parlamentares. Hoje, os grupos de pressão são facilmente identificáveis em Brasília. Não aparecem aos olhos do grande público, mas são nú- cleos bastante conhecidos dos políticos, funcionários e jornalistas.

As galerias já não se enchem de populares, como no velho Palácio Tiradentes, salvo em raras ocasiões. As facilidades de transporte e a eficiente organização de enti- dades de classe permitem, hoje, que se coloquem milhares de pessoas em Brasília em algumas horas. Nesses momentos, as galerias são lotadas por público ruidoso e, muitas vezes, agressivo. Houve, em passado recente, casos de populares lançarem objetos sobre o Plenário, ameaçando a integridade física dos parlamentares. O ar- quiteto Oscar Niemeyer, por recomendação da Mesa da Câmara, projetou vidros que isolaram as galerias do plenário, de forma a proteger os parlamentares. Nas galerias foi instalado sistema de som permitindo que a assistência acompanhasse as sessões, sem interferir no desenvolvimento dos trabalhos. Esses painéis de vidro foram retirados, recentemente.

Houve grande preocupação em preservar os parlamentares contra a pressão das multidões e dos interesses corporativos. Contudo, nada se fez para conter a atuação sub-reptícia do lobby em verdadeiro corpo a corpo nos gabinetes de Brasília, mui-

53 Os anos JK

tas vezes a salvo de olhares indiscretos. O Regimento Interno da Câmara tentou disciplinar o lobby, permitindo que entidades de classe credenciassem representan- tes junto à Casa (art. 259 do Regimento Interno). Não houve interesse nesse cre- denciamento. O verdadeiro lobby, pela sua própria natureza, sobretudo no Brasil, prefere não ser publicamente identificado.

Juscelino Kubitschek não promoveu, apenas, a mudança da capital, o que foi verda- deira epopeia. Expandiu a siderurgia, dinamizou a indústria naval, criou a indústria automobilística e rasgou o território nacional com grandes rodovias-troncos, como a Belém-Brasília, chamada por Jânio Quadros de “estrada das onças” e em cujo eixo vivem, hoje, milhões de brasileiros. Dotado de espírito muito forte e caráter obstinado, Juscelino enfrentou todos os vendavais para alcançar as grandes metas de seu governo.

Os que analisam com superficialidade a construção de Brasília costumam se colo- car contra a mudança da capital, argumentando que seu custo acelerou a inflação e foi um dos fatores que justificaram a intervenção militar de 1964 – a mais lon- ga, profunda e abrangente intervenção castrense na História do Brasil. Essa visão apressada ignora que a mudança da capital marcou a interiorização do desenvol- vimento, forçando os brasileiros a abandonar o conforto do litoral para ocupar os imensos vazios geográficos do interior.

Hoje, ao se olhar o panorama da região Centro-Oeste, Juscelino se afirma como verdadeiro profeta. Graças aos avanços científicos e tecnológicos promovidos pela Embrapa (Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária), o cerrado (um quarto do território nacional, 2 milhões e 500 mil quilômetros quadrados, envolvendo Minas, Goiás, Piauí, Maranhão, Bahia e Tocantins) deixou de ser constituído por terras im- prestáveis para a agricultura. Importantes economistas, como o deputado Delfim Netto, dizem que esta é a mais promissora região agrícola do mundo, que se dá ao luxo de manter para o país uma reserva de cerca de 90 milhões de hectares de terras planas e agricultáveis.

Apesar de ter comandado um governo tão dinâmico, que fomentou o desenvolvi- mento econômico e devolveu o otimismo e a esperança aos brasileiros, o presidente Juscelino Kubitschek morreu pobre. A UDN e muitos dos seus adversários lança- ram a suspeita de que tivesse enriquecido ilicitamente. O deputado Carlos Lacerda atacava a sua honra pessoal, através de artigos na Tribuna da Imprensa e em discur- sos da tribuna da Câmara dos Deputados.

54 O Congresso em Meio Século | 2a Edição

Hoje, sabe-se que o ex-presidente pouco deixou de herança para seus descendentes, além de seu próprio nome. JK foi acusado de manter relações de natureza econô- mica com o industrial Sebastião Pais de Almeida, detentor do monopólio do vidro plano no Brasil e que teria cedido ao ex-presidente apartamento de luxo na Avenida Vieira Souto, no Rio de Janeiro – denúncia nunca confirmada. A Câmara tentou constituir uma CPI para apurar os favores concedidos à indústria do vidro plano, mas a iniciativa não teve êxito em razão da retirada de assinaturas. O episódio provocou reforma regimental determinando que, publicado o requerimento, não se admitiria a retirada de assinaturas.

Ostracismo

Depois da Revolução de 1964, quando seus principais inimigos tomaram o poder, o ex-presidente Juscelino Kubitschek sofreu os rigores de longo e penoso ostracismo e muitas perseguições. IPMs foram constituídos tentando envolvê-lo em atividades subversivas e atos de corrupção. Nenhuma dessas denúncias foi provada, mas todas serviram para aumentar as atribulações de JK, obrigando-o a um exílio forçado no exterior, quando enfrentou notórias dificuldades de sobrevivência.

Depois da deposição do presidente João Goulart, passou a ser costume na Câma- ra comemorar a data de fundação e mudança da capital. Em uma dessas datas, a Câmara destacou conhecido deputado mineiro para proferir discurso em homena- gem à construção de Brasília. Esse parlamentar logrou a façanha de falar durante mais de trinta minutos elogiando a construção da nova capital, sem se referir ao nome de Juscelino Kubitschek uma única vez.

O governo de Juscelino Kubitschek foi marcado pelo otimismo e a confiança no fu- turo do Brasil. Criou o Plano de Metas destinado a fazer com que o Brasil crescesse cinquenta em cinco anos. Os conservadores, à frente o economista Eugênio Gudin, chamavam-no de visionário e irresponsável, acusando-o de promover o desenvol- vimento à custa da inflação.

O Plano de Metas foi elaborado pelo economista Lucas Lopes com uma equipe de especialistas do mais alto nível. Juscelino convocou o almirante Lúcio Meira para cuidar do Plano de Metas nas áreas automobilística e naval. O ex-presidente sabia se cercar de assessores e auxiliares de reconhecida competência. Basta dizer que seu chefe da Casa Civil, depois de Álvaro Lins, foi o jurista Vitor Nunes Leal (posterior- mente ministro do Supremo Tribunal Federal, responsável pela criação da Súmula do

55 Os anos JK

Supremo, que é a consolidação reiterada da jurisprudência de nossa mais alta corte de Justiça). Deve ser destacado, também, o papel primordial desempenhado por Israel Pinheiro na construção de Brasília, comandando as obras com mão de ferro.

Poucas pessoas sabem que Israel Pinheiro – que viria a ser eleito governador de Minas Gerais, em 1965, por voto direto, o que provocou a crise militar que resul- tou no Ato Institucional no 2 – foi o auxiliar do Interventor mineiro Benedito Va- ladares, o legendário chefe pessedista, encarregado por ele de construir o Grande Hotel do Barreiro, em Araxá, uma das poucas grandes estações termais do Brasil de nível internacional.

O movimento de 64 instituiu a eleição indireta pelo Congresso Nacional para esco- lha do presidente da República, com voto a descoberto, para impedir que Juscelino Kubitschek voltasse ao poder. Não satisfeito com isso, cassou-lhe o mandato de senador por Goiás e suspendeu seus direitos políticos por dez anos. Logo depois da cassação, o então deputado Luiz Viana Filho, chefe da Casa Civil do presidente Cas- tello Branco, em declarações aos jornais, revelou que a cassação do ex-presidente da República tivera razões eminentemente políticas.

Como presidente da República, Juscelino teve uma característica que até hoje é mo­ tivo de inveja da parte dos presidentes que o sucederam: as excelentes relações que mantinha com o Congresso. Ele recebia, em um dia da semana, os parlamentares que queriam conversar, independentemente de solicitação de audiência. Recebia qualquer um, por mais modesto que fosse. Os líderes de bancadas eram recebidos a qualquer hora do dia ou da noite.

Creio que dois homens garantiram papel de relevo na História contemporânea do Brasil: Getúlio Vargas, modernizador do país, que lançou as bases da infraestrutura que iria permitir o intenso desenvolvimento da década de 50, e Juscelino Kubits- chek, que usou o processo inflacionário como instrumento para alavancar a pou- pança de que o país necessitava a fim de crescer cinquenta anos em cinco. Aos dois, o Brasil deve o desenvolvimento e a modernização.

Pode-se considerar que Juscelino Kubitschek encerrou sua carreira política com o discurso de doze minutos, que proferiu da tribuna do Senado Federal, em 3 de ju- nho de 1964, quando tomou conhecimento de que seu mandato seria cassado. Em poucas palavras e dominado por profunda emoção, Juscelino fez breve retrospecto de sua vitoriosa vida pública para declarar, logo no início:

56 O Congresso em Meio Século | 2a Edição

Senhor Presidente, Senhores Senadores, na previsão de que se confirme a cassação dos meus direitos políticos, que implicaria na cassação do meu direito de cidadão (ser candidato do Partido Social Democrático ao futuro pleito presidencial) e de representante do povo de Goiás, julgo de meu dever dirigir, desta tribuna, algumas palavras à Nação brasileira. Falo-o agora para que, se o ato de violência vier a consumar-se, não me veja eu privado do dever de denunciar o atentado que na minha pessoa vão sofrer as instituições livres. Não me é lícito perder uma oportunidade que não me pertence, mas pertence a tudo o que represento nesta hora.

Mais adiante, diria o ex-presidente:

Não tenho de que me defender. Pela própria mecânica do Ato Institucional, aos fulminados não é dado acesso às peças acusatórias. Voltam-se, assim, os revolucionários do Brasil, contra as mais sagradas conquistas do Direito. Não sei exatamente do que me acusam; só recolhi boatos e murmúrios de velhas histórias já desfeitas e desmoralizadas por contestações irretorquíveis. Já a Nação vive sob os efeitos do terror. E aqui expresso a minha solidariedade aos que estão sofrendo processos de inquirição que lembram os momentos mais dramáticos por que passou a humanidade.

E concluiu com a seguinte exortação:

Diante do povo brasileiro, quero declarar que me reinvisto de novos e excepcionais poderes neste momento para a grande caminhada da liberdade e do engrandecimento nacional.

57 Capítulo IV A Renúncia de Jânio Quadros

Quando o presidente Jânio Quadros renunciou, no dia 25 de agosto de 1961, o Con- gresso Nacional viveu dias de tensão e angústia, enquanto a Câmara dos Deputados transformava-se em autêntica panela de pressão. Havia um estado de permanente confronto entre Executivo e Legislativo. Nesse clima de apreensões, o governador do então Estado da Guanabara, Carlos Lacerda, acusou o governo de conspirar contra as instituições.

Lacerda ocupou uma cadeia de televisão, no Rio de Janeiro, na noite do dia 24 de agosto de 1961, para denunciar que Jânio Quadros tramava o fechamento do Congresso no bojo de um golpe de Estado, cuja senha seria a intervenção federal no Estado da Guanabara. Dias antes, Lacerda estivera em Brasília e, depois de ins- talado em um dos aposentos do segundo andar do Palácio da Alvorada, a convite do presidente Jânio Quadros, teve suas malas de viagem jogadas na portaria, por razões até hoje obscuras.

O ministro da Justiça, Oscar Pedroso Horta, foi intimado a prestar depoimento perante o Senado Federal para responder sobre essa suposta intenção golpista do presidente da República. Os acontecimentos se precipitaram ganhando ritmo ver- tiginoso. O ministro da Justiça prontificou-se a ir ao Senado esclarecer que o presi- dente Jânio Quadros não cogitava de intervir na então Guanabara e que o resto da história não passava de fantasia engendrada por Lacerda.

No dia 25 de agosto, chegou à Câmara dos Deputados a notícia de que o minis- tro Oscar Pedroso Horta tinha visitado o presidente do Senado, Auro de Moura Andrade, não para fazer a anunciada exposição aos senadores, mas para entregar a carta de renúncia do Sr. Jânio da Silva Quadros à Presidência da República. No momento em que entregou esse documento a Auro de Moura Andrade, Pedroso Horta, advogado de renome em São Paulo, proferiu breve discurso:

Senhor Presidente do Congresso Nacional, cumpro o mais grave ato de minha vida pública. Compareço diante de V.Exa. para, na forma constitucional, dar-lhe ciência de um fato que terá profunda repercussão e se inscreverá nas páginas de nossa História. Ainda agora, falo na condição de ministro da Justiça, mas, cumprida essa missão, no exato momento em que o haja feito, já não serei ministro. Passo às mãos de V.Exa. o documento de renúncia do Senhor Jânio da Silva Quadros da Presidência da República.

59 A Renúncia de Jânio Quadros

Eis a íntegra da lacônica carta-renúncia do presidente Jânio Quadros, entregue a Auro de Moura Andrade pelo ministro da Justiça:

Nesta data, e por este instrumento, deixando com o ministro da Justiça as razões de meu ato, renuncio ao mandato de Presidente da República. Brasília, 25 de agosto de 1961, Jânio Quadros.

São as seguintes as razões invocadas pelo Sr. Jânio Quadros para justificar sua decisão:

Fui vencido pela reação e, assim, deixo o Governo. Nestes sete meses, cumpri o meu dever. Tenho-o cumprido, dia e noite, trabalhando infatigavelmente, sem prevenções, nem rancores. Mas baldaram-se os meus esforços para conduzir esta Nação pelo caminho de sua verdadeira libertação política e econômica, o único que possibilitaria o progresso efetivo e a justiça social, a que tem direito o seu generoso povo.

Desejei um Brasil para os brasileiros, afrontando nesse sonho, a corrupção, a mentira e a covardia que subordinam os interesses gerais aos apetites e às ambições de grupos ou indivíduos, inclusive do exterior. Sinto-me, porém, esmagado. Forças terríveis levantam-se contra mim e me intrigam ou infamam, até com a desculpa da colaboração.

Se permanecesse, não manteria a confiança e a tranquilidade, ora quebradas, indispensáveis ao exercício da minha autoridade. Creio, mesmo, que não manteria a própria paz pública.

Encerro, assim, com o pensamento voltado para a nossa gente, para os estudantes e para os operários, para a grande família do Páis, esta página da minha vida e da vida nacional. A mim, não falta a coragem da renúncia.

Saio com um agradecimento e um apelo. O agradecimento é aos companheiros que comigo lutaram e me sustentaram dentro e fora do governo e, de forma especial, às Forças Armadas, cuja conduta exemplar, em todos os instantes, proclamo nesta oportunidade. O apelo é no sentido da ordem, do congraçamento, do respeito e da estima de cada um dos meus patrícios para todos; de todos para cada um.

Somente assim seremos dignos deste País e do mundo. Somente assim seremos dignos da nossa herança e da nossa predestinação cristã.

Retorno, agora, ao meu trabalho de advogado e professor. Trabalhemos todos. Há muitas formas de servir nossa Pátria.

Brasília, 25 de agosto de 1961. Jânio Quadros.

60 O Congresso em Meio Século | 2a Edição

Em seguida, viajou para São Paulo, onde recebeu a visita de seu ministro do Tra- balho, Francisco Carlos de Castro Neves, que lhe vinha comunicar a disposição de sindicatos e outras forças populares de promover manifestação em favor de seu retorno ao poder. Jânio ponderou: “Não, senhor. Não devemos tomar qualquer ini- ciativa. Não dê palavra alguma. Não quero assumir a responsabilidade de incendiar o país.” E assim completou, revelando o que lhe ia no fundo da alma:

Não farei nada para voltar, mas considero minha volta inevitável. Dentro de três meses, se tanto, estará na rua espontaneamente o clamor pela reimplantação do nosso governo. O Brasil, no momento, precisa de três coisas: autoridade, capacidade de trabalho, coragem e rapidez nas decisões. Atrás de mim, não fica ninguém, mas ninguém que reúna esses três requisitos. Pode ser que o processo demore, mais do que o previsível, ou anos, até dois. Mas é inevitável.

Os Fatos

Após a cerimônia comemorativa do Dia do Soldado, no dia 25 de agosto de 1961, por volta das 10 horas da manhã, o presidente Jânio Quadros retornou ao Palácio da Alvorada e dirigiu sua carta-renúncia ao presidente do Senado Federal, senador Auro de Moura Andrade (PSD-SP), embarcando, em seguida, para São Paulo, no avião presidencial, juntamente com a esposa, dona Eloá.

O motorista particular de Jânio, indicado para o cargo pelo senador Dinarte Mariz, da UDN potiguar, informara ao político nordestino que dona Eloá tivera a preocu- pação de arrumar as malas, para a viagem a São Paulo, “com pouca coisa”. Como o motorista que a ajudava a acomodar a bagagem estranhasse esse procedimento, ela ponderou que Jânio Quadros ainda esperava retornar ao poder.

Os ministros militares, ao tomarem conhecimento da notícia, fizeram apelo ao pre- sidente para que reconsiderasse sua atitude. Jânio mostrou-se intransigente, irritan- do-os, profundamente, e os chefes militares se consideraram traídos. A retaliação da alta hierarquia castrense a essa atitude de Jânio Quadros foi a inclusão de seu nome, dois anos e quase oito meses depois, na primeira lista de cassação assinada pelo Comando Supremo da Revolução, após a decretação do Ato Institucional de 9 de abril de 1964.

Inteirado dos acontecimentos, o deputado José Maria Alkmin, ao se encontrar com o deputado Dirceu Cardoso, do PSD do Espírito Santo, que se preparava para ocu- par a tribuna da Câmara, comunicou-lhe que o presidente Jânio Quadros havia renunciado e que era preciso levar o fato ao conhecimento da Nação. Vale a pena

61 A Renúncia de Jânio Quadros

lembrar que o conflito do governo de Jânio dava-se mais intensamente com a alian- ça PSD-PTB, que estava na Oposição e se constituía na maioria parlamentar. Uma vez na tribuna, Dirceu Cardoso advertiu que tinha “comunicação urgente” a fazer, revelando para um Plenário estupefato que Jânio Quadros acabara de renunciar.

No primeiro instante, a notícia da renúncia não mereceu crédito, tal o espanto e a perplexidade que causou, apesar de conhecido o surpreendente temperamento de Jânio. Aos poucos, o fato começou a ser assimilado pelos parlamentares, até que ganhou caráter oficial, dissipando qualquer dúvida. Affonso Arinos, ministro das Relações Exteriores, reassumiu, imediatamente, a cadeira de senador pela UDN do Rio de Janeiro para proferir discurso em que sustentava que a renúncia deveria ser submetida ao exame do Plenário do Congresso Nacional. A tônica de sua oração era de que o Congresso não podia aceitá-la, preliminarmente. Em aparte, o deputa- do Gustavo Capanema sustentou:

A renúncia é, por definição, ato unilateral. Irretratável. A renúncia, portanto, não está aceita. É um acontecimento histórico. Não temos competência constitucional para aceitá-la, recusá-la, para aplaudi-la, para tomar qualquer pronunciamento em face dela. A única coisa que nos cabe é tomar conhecimento. Nessas condições, o que se segue é a aplicação pura e simples da Constituição. Assume o governo o vice-presidente da República, pelo resto do período.

O senador Auro de Moura Andrade convocou sessão do Congresso, no plenário da Câmara dos Deputados, à tarde do mesmo dia, a fim de dar ciência à Nação do documento recebido. Alguns parlamentares da UDN, empenhados em evitar que se consumasse o afastamento de Jânio Quadros, alegavam que a carta, como documento oficial, padecia de grave deficiência de natureza formal: não tinha re- conhecimento de firma, considerado indispensável em qualquer documento. Tal tese não foi levada em consideração em face do argumento de que se tratava de ato unilateral e insusceptível de exame por outrem.

O próprio Jânio Quadros, posteriormente, em conversa telefônica tida com o jorna- lista Rubem de Azevedo, que fizera a ligação de meu gabinete, estranhou que, no Bra- sil, um país de cartórios, o Congresso aceitasse um documento particular, sem firma reconhecida. Jânio disse a Rubem que estava se divertindo pintando quadros...

As principais lideranças da UDN censuraram o fato de o ministro Oscar Pedroso Horta ter entregado o documento, de modo imediato, ao presidente do Congresso Nacional, dando por consumada a renúncia, quando poderia ter retardado a sua entrega ou até mesmo tê-lo inutilizado. O que muito se discutia era se o ministro

62 O Congresso em Meio Século | 2a Edição

da Justiça e outros auxiliares imediatos do presidente, como o secretário particular, José Aparecido de Oliveira, ou o secretário de imprensa, jornalista Carlos Castelo Branco, teriam conhecimento do que o presidente tramava.

Percebeu o pragmático PSD que chegara o momento de seu retorno ao poder, depois de breve ostracismo, dado que caberia ao presidente da Câmara dos De- putados, o pessedista Paschoal Ranieri Mazzilli, assumir o cargo, uma vez que o vice-presidente João Goulart se encontrava em viagem oficial à China Comunista, detalhe que certamente não escaparia a nenhum observador atento do cenário que então se armava. Como principal partido que apoiava Jânio Quadros, a UDN não queria deixar o poder, embora sofresse natural constrangimento diante dos confli- tos provocados pelo governador Carlos Lacerda.

Instalada a sessão do Congresso à tarde de 25 de agosto, o presidente Auro de Mou- ra Andrade fez o convite formal para que o presidente da Câmara dos Deputados, Paschoal Ranieri Mazzilli, assumisse a Presidência da República. Fez mera e proto- colar comunicação à Casa, dando conhecimento dos fatos, não fora ele pessedista de São Paulo e notório adversário de Jânio. Encerrada a sessão, reuniram-se no ga- binete do presidente da Câmara dos Deputados, com o próprio Mazzilli, o senador Auro de Moura Andrade, presidente do Senado, e os deputados Amaral Peixoto, presidente do PSD; Martins Rodrigues, líder da bancada do partido na Câmara; José Maria Alkmin e Gustavo Capanema.

Mazzilli indagou dos “cardeais do PSD”, reunidos em seu gabinete, se deveria assumir, desde logo, a Presidência da República, ou se seria mais conveniente aguardar a evolução dos acontecimentos. Todos opinaram que ele deveria as- sumir o cargo imediatamente. PSD e PTB achavam que Jânio não renunciara gratuitamente. Concebera a renúncia como meio de voltar ao Palácio do Pla- nalto nos braços do povo, fechando o Congresso e assumindo plenos poderes. No mundo político e no país prevaleceu o pragmatismo inspirado na frase dita por Juraci Magalhães, “rei morto, rei posto”. A frase exprimia mágoas e ressen- timentos acumulados por Juraci Magalhães, cuja candidatura à Presidência da República fora preterida pela indicação de Jânio Quadros na convenção nacional da UDN, no Palácio Tiradentes, no Rio de Janeiro que o escolhera seu candidato à eleição presidencial de 3 de outubro de 1960 (Jânio conquistou 5.636.623, o que correspondia a 48% do eleitorado votante).

Mazzilli assumiu a Presidência da República sem a cerimônia protocolar. Decla- rou simplesmente aos microfones das emissoras de rádio e televisão que estava

63 A Renúncia de Jânio Quadros

assumindo o cargo. A seu lado, além das principais lideranças do PSD e do Con- gresso Nacional, os três ministros militares – marechal Odílio Dennys, do Exér- cito, brigadeiro Grun Moss, da Aeronáutica, e almirante Sílvio Heck, da Marinha. Assumiu a Presidência da Câmara o primeiro-vice-presidente, deputado Sérgio Magalhães, do PTB do Rio de Janeiro.

Cauteloso, como era de seu estilo, o deputado Ranieri Mazzilli pediu a amigos que não se retirassem do Palácio do Planalto: alimentava o receio de que lhe pudesse “acontecer alguma coisa” e reclamava a presença e a solidariedade de todos. Antes de deixar a sede do governo, confirmou os três ministros militares e nomeou o de- putado Martins Rodrigues (PSD-CE) ministro da Justiça, o general , chefe da Casa Militar, o deputado Getúlio Moura (PSD-RJ), seu amigo pessoal, che- fe da Casa Civil, e secretário de imprensa o jornalista Reinaldo Gonçalves Ribeiro, então diretor da sucursal do Correio da Manhã, em Brasília.

O clima era de tanta insegurança e intranquilidade, naquelas circunstâncias dramáti- cas, que Mazzilli foi aconselhado a dormir, cada noite, em local diferente, mantido em rigoroso sigilo. Havia rumores de que ele poderia ser assassinado. Mazzilli viria a re- petir o mesmo ritual cuidadoso por ocasião da deposição do presidente João Goulart, em março/abril de 1964, quando lhe tocou, também, assumir a Presidência da Repú- blica, até que o marechal Castello Branco, eleito pelo Congresso, assumisse o cargo.

Mazzilli pediu aos amigos que o mantivessem informado dos acontecimentos. Fazia questão, por isso, de estar ao alcance de cada um deles. Residia na SQS 107, com a esposa, dona Sílvia, que era profundamente religiosa. Quando o marido viajava, ela sempre acendia uma vela, que só apagava quando ele lhe comunicava, por telefone, ter chegado ao destino. O edifício em que residia era o mesmo em que moravam os deputados José Bonifácio e Neiva Moreira. O deputado Sérgio Magalhães, que havia assumido a Presidência da Câmara, residia na SQS 105, pois ainda não havia uma residência oficial do presidente daquela Casa.

Permaneceu Mazzilli no exercício da Presidência da República até a posse de João Goulart, depois de lento e penoso processo de negociação, do qual resultou a instituição do sistema parlamentarista de governo, mediante modelo singularís­ simo, logo considerado “híbrido” pelo deputado Gustavo Capanema. No dia se- guinte, 26 de agosto, sob o impacto que a notícia tivera no país, os governadores Carvalho Pinto (São Paulo), Magalhães Pinto (Minas Gerais), Mauro Borges Tei- xeira (Goiás), Carlos Lindenberg (Espírito Santo), Nei Braga (Paraná) e Chagas

64 O Congresso em Meio Século | 2a Edição

Rodrigues (Piauí), reunidos em Brasília, endereçaram ao presidente do Senado Federal o seguinte telegrama:

Os governadores dos Estados do Espírito Santo, de Goiás, de Minas Gerais, do Paraná, do Piauí e de São Paulo, ora reunidos nesta capital, depois de pessoalmente haverem levado, sem sucesso, seu apelo ao presidente Jânio Quadros para que retire a sua mensagem de renúncia dirigida ao Congresso Nacional, exortam a Câmara dos Deputados e o Senado Federal que recusem a aludida renúncia, tendo em vista a necessidade da preservação da normalidade democrática e os superiores interesses da Nação.

Confronto entre os Poderes

Vinte e oito anos após a sua renúncia, quando venceu a disputa que travou com o então senador Fernando Henrique Cardoso pela prefeitura de São Paulo, Jânio Quadros escreveu artigo no jornal O Globo, edição do dia 21 de junho de 1989, in- titulado “Antes que seja tarde”, no qual analisava a situação política do Brasil quan- do renunciou à Presidência da República, dando as suas razões:

Em poucos meses do exercício do poder, tomei consciência de que se tornava im­ possível governar, no cumprimento das promessas eleitorais, sem apoio dos adver­ sários. E esse apoio teria de ser barganhado numa troca de atendimentos que impli­ caria obviamente renúncia a ideais, não só de minha parte como da parte dos congres­ sistas majoritários. Isso significava traição. Entre a renúncia a ideais e a renúncia a cargos, não havia dúvida. Tinha de prevalecer a última. Renunciei. Iniciou-se, então, um trágico período de experiências de governos de confronto entre os poderes.

Na verdade, o temperamento peculiar de Jânio Quadros causava apreensão entre os políticos. Podemos citar dois casos que revelam a surpreendente característica de seu estilo. Ao término do mandato de governador de São Paulo, Jânio elegeu-se deputado federal pelo PTB do Paraná, ainda que conservasse o domicílio eleitoral em São Paulo, o que a legislação da época permitia.

Tomou posse como deputado federal na legislatura 1959/1963, exercendo o mandato até o início de 1961, ano em que assumiu a Presidência da República. Tive oportu- nidade de assistir ao encontro de Jânio com o seu suplente, deputado Maia Neto, na biblioteca da Câmara dos Deputados, ainda no Palácio Tiradentes, em 1959. Ele orientava o suplente a respeito dos procedimentos que devia adotar para não entrar em conflito com as ideias e os interesses políticos do titular do mandato.

65 A Renúncia de Jânio Quadros

Indicado candidato pela Convenção Nacional da UDN, realizada no Rio de Janeiro, no dia 8 de novembro de 1959, Jânio logo se mostraria inconformado com a com- panhia do vice indicado pelo partido, o político sergipano Leandro Maciel. Como não fora ouvido sobre essa indicação, ele renunciou à sua candidatura presidencial em carta que dirigiu ao presidente da UDN, deputado Magalhães Pinto:

Nesta data renuncio à minha candidatura à Presidência da República. Não consegui, como é do conhecimento de V.Exa. e da opinião pública, reunir em torno de meu nome as diversas legendas e correntes políticas que procuram imprimir novos rumos ao país, com a unidade e a harmonia indispensáveis ao êxito de nossa jornada. Quero agradecer a V.Exa. e à UDN o apoio que recebi, em memorável Convenção, e esses agradecimentos são extensivos ao PL, ao PTN e ao PDC, que também adotaram meu nome.

Se nesta fase é difícil, assim, coordenar os esforços e somar os anseios dos homens de bem que militam nos vários partidos, impossível será governar no atendimento das reivindicações do povo e das necessidades brasileiras. Receba, presidente, as expressões do meu respeito.

Esse documento foi entregue ao presidente da UDN vinte dias após a Convenção Nacional que o consagrara candidato.

A UDN substituiu, então, Leandro Maciel pelo deputado Milton Campos. Pois, ape- sar de tanto empenho pela escolha do candidato a vice-presidente em sua chapa, os correligionários comentavam que Jânio resolvera apoiar, discretamente, o candida- to a vice-presidente da República pelo PTB, o polêmico João Goulart, companheiro de chapa do seu principal adversário, marechal Henrique Teixeira Lott.

Procedentes ou não tais rumores, o certo é que foi lançada uma grande campanha nacional de propaganda da chapa Jan-Jan (Jânio-Jango), apoiada, inclusive, pelo então governador gaúcho Leonel Brizola, em sigilo, conforme revelaria, mais tarde, o deputado Getúlio Dias, do PTB do Rio Grande do Sul. O resultado eleitoral dessa disputa foi o seguinte: João Goulart, 4.547.010 votos; Milton Campos, 4.237.719 votos; e Fernando Ferrari, 2.137.382 votos.

Eleito com votação até então inédita na história das eleições presidenciais (obteve 5.636.623 votos, o que correspondia a 48% dos votos nominais, contra 3.846.825 votos destinados ao marechal Lott), Jânio Quadros viveu em constante conflito com o Congresso. Frequentemente, vetava proposições aprovadas pelo Legislati- vo, enquanto a maioria parlamentar derrubava sistematicamente os seus vetos,

66 O Congresso em Meio Século | 2a Edição

criando-se conflito insuperável, sendo fácil prever, em termos institucionais, no que isso poderia resultar.

Um fato bizarro ilustra a realidade preocupante das relações conflituosas que mantinham o Legislativo e o Executivo, àquele tempo. O Congresso encaminha- ra, ao Palácio do Planalto, projeto de lei que aprovara, dispondo sobre a estabili- dade dos empregados da Companhia Urbanizadora da Nova Capital (Novacap), autarquia do governo do Distrito Federal. Jânio Quadros vetou a proposta e o Congresso rejeitou o veto, devolvendo-a para a sanção do presidente da Repúbli- ca, nos termos da Constituição. O presidente proferiu inusitado despacho: “San- ciono, mas que vergonha!”

O estilo imprevisível de Jânio Quadros já vinha causando preocupações aos nú- cleos mais conservadores da sociedade brasileira, em especial, às Forças Armadas. Esse foi o caso da outorga da Grã-Cruz da Ordem Nacional do Cruzeiro do Sul ao então ministro da Economia de Cuba, Ernesto Che Guevara, no dia 19 de agosto de 1961. Ao agradecer a condecoração, em discurso sucinto, Che Guevara afirmou:

Senhor Presidente, como revolucionário, estou profundamente honrado com esta distinção do povo e do governo brasileiros. Porém, não posso concebê-la nunca como uma condecoração pessoal, mas sim como uma condecoração ao povo e à nossa Revolução. E assim a recebo, comovido com a saudação desse povo que V.Exa., pessoalmente, representa e a transmitirei com todo o desejo de estreitar as relações entre os nossos dois países.

Em represália ao ato de Jânio, o então governador da Guanabara, Carlos Lacerda, um dia depois, condecorou o líder anticastrista Manuel Derona, no Rio, em busca de apoio à Frente Revolucionária Democrática de Cuba.

Se o presidente Jânio Quadros imaginava o retorno triunfal nos braços do povo, em uma cidade como Brasília, em 1961, estava completamente iludido. A nova capital estava isolada, no meio do cerrado, não tinha massa popular, vivendo apenas dos servidores federais. A cidade tinha, então, pouco mais de 100 mil habitantes, entre trabalhadores de obras e servidores públicos.

Para dificultar qualquer plano de mobilização, não havia transporte público e as estradas eram precárias. Brasília era uma ilha. Basta dizer que a viagem da capital a Goiânia, hoje feita em menos de duas horas, em rodovia asfaltada, durava mais de quatro horas àquele tempo. O transporte aéreo era precário e irregular. Jânio ignorou essa peculiaridade da nova capital.

67 Capítulo V Ascensão e Queda de Jango

Qualquer pessoa percebia que a atmosfera política, no Brasil, estava carregada de eletricidade após a renúncia de Jânio Quadros. Os três ministros militares dirigi- ram ofício ao deputado Ranieri Mazzilli, então no exercício da Presidência da Re- pública, comunicando a inconveniência da posse do vice-presidente João Goulart. No dia 27 de agosto de 1961, o presidente em exercício da Câmara dos Deputados, Sérgio Magalhães, divulgou a seguinte mensagem:

Na defesa da Constituição que rege a legalidade democrática, não entro em conchavos e não transijo na Presidência, ainda que eventual. Não receberei, não darei prosseguimento, não despacharei qualquer emenda constitucional. A Constituição, segundo seu próprio texto, não se reforma em regime de anormalidade ou de crise. Prefiro a guerra civil à desmoralização do Poder Legislativo, que é a viga mestra no regime democrático.

Diante da reação do deputado Sérgio Magalhães, que estava no exercício da Presi- dência da Câmara, Mazzilli encaminhou ao presidente do Senado, o senador Auro de Moura Andrade, em 28 de agosto, a seguinte mensagem:

Eu tenho a honra de encaminhar a V.Exa. que, na apreciação da atual situação política criada pela renúncia do presidente Jânio Quadros, os ministros militares, na qualidade de chefes das Forças Armadas, responsáveis pela ordem interna, manifestaram a absoluta inconveniência, por motivo de segurança nacional, do regresso do presidente da República João Belchior Marques Goulart.

O movimento contra o veto militar a Jango e favorável à posse do vice-presidente constitucional cresceria no país, a partir do momento em que foi anunciado um manifesto de repúdio à atitude assumida pelos ministros militares, do ex-ministro da Guerra, marechal Henrique Baptista Teixeira Lott, nos seguintes termos:

Aos meus camaradas das Forças Armadas:

Tomei conhecimento, nesta data, da decisão do senhor ministro da Guerra, marechal Odílio Dennys, manifestada ao representante do governo do Rio Grande do Sul, deputado Rui Ramos, no Palácio do Planalto, em Brasília, de não permitir que o atual presidente da República, Senhor João Goulart, entre no exercício de sua função e, ainda, de detê-lo no momento em que pise no território nacional. Mediante ligação telefônica, tentei demover aquele eminente colega da prática de semelhante violência, sem obter resultado.

69 Ascensão e Queda de Jango

Embora afastado das atividades militares, mantenho compromisso de honra com a minha classe, com a minha Pátria e com as instituições democráticas e constitucionais. E por isso sinto-me no indeclinável dever de manifestar o meu repúdio à solução anormal e arbitrária que se pretende impor à Nação. Dentro dessa orientação, conclamo todas as forças vivas do país, as forças da produção e do pensamento, os estudantes e intelectuais, os operários e o povo em geral, para tomar posição decisiva e enérgica pelo respeito à Constituição e preservação integral do regime democrático brasileiro, certo, ainda, de que meus nobres camaradas das Forças Armadas saberão portar-se à altura das tradições legalistas para manter a sua história nos destinos da Pátria.

O clima político no Congresso e no país entrou em ebulição. O deputado Rui Ra- mos, do PTB gaúcho, em veemente discurso da tribuna da Câmara, no dia 28 de agosto de 1961, propôs a constituição de uma comissão de deputados para efetuar a prisão do ministro do Exército, marechal Odílio Dennys, “por ato de insubordi- nação à ordem constitucional”. Disse, enfático, o deputado gaúcho:

Então, eu quero repetir perante o Congresso: se, em 48 horas, o presidente da República não demitir o seu ministro da Guerra e não recolhê-lo a uma prisão, pelo que está praticando contra as liberdades e a segurança constitucional, nomeie um grupo de parlamentares que acreditam na força das minorias desarmadas e vá prender pessoalmente o marechal Dennys. De modo que, deste instante em diante, ficam convocados todos os parlamentares de todos os partidos, de todas as ideologias, que acreditam nas forças das minorias desarmadas contra a prepotência e o arbítrio das maiorias armadas. Convoco todos para, nas próximas 48 horas, comparecermos incorporados ao gabinete do ministro da Guerra a fim de prendê-lo como agressor do Rio Grande do Sul e das instituições republicanas.

O deputado Adaucto Lúcio Cardoso propôs o enquadramento do presidente da República em exercício, deputado Ranieri Mazzilli, do marechal Odílio Dennys, ministro da Guerra, do brigadeiro Grun Moss, ministro da Aeronáutica, e do almi- rante Sílvio Heck, ministro da Marinha, por crime de responsabilidade, nos termos da Lei no 1.079, de 10 de abril de 1950, arrolando como testemunhas os deputados San Tiago Dantas, Rui Ramos, César Prieto, Almino Affonso e Batista Ramos.

O requerimento que formulou, na sessão do dia 28 de agosto de 1961, era o seguinte:

Adaucto Lúcio Cardoso, advogado e deputado federal, representante eleito pelo povo do Estado da Guanabara, no cumprimento dos deveres do mandato que exerce, vem oferecer contra o Senhor Ranieri Mazzilli, presidente da Câmara dos Deputados, ora no exercício da Presidência da República, contra o marechal

70 O Congresso em Meio Século | 2a Edição

Odílio Dennys, ministro da Guerra, contra o brigadeiro Grun Moss, ministro da Aeronáutica, e contra o almirante Silvio Heck, ministro da Marinha, representação na forma da Lei no 1.079, de 10 de abril de 1950, cujo artigo 13, item I, estatui serem crimes de responsabilidade dos ministros de Estado os atos nela definidos, quando por eles praticados ou ordenados.

A essa época, a guerra fria dividia o mundo em dois blocos. A hipótese da guerra ci- vil abria, pela primeira vez ao longo da História do Brasil, a perspectiva concreta do derramamento de sangue e da divisão do país. Para afastar esse risco, importantes lideranças políticas resolveram dar curso à tramitação de Emenda Constitucional no 16, de 1961, que instituía o sistema parlamentar de governo. As lideranças apro- varam o requerimento subscrito pelos líderes José Maria Alkmin (PSD), Meneses Cortes (UDN) e Geraldo Guedes (PL), dispondo sobre a tramitação da referida emenda, desrespeitando as normas estabelecidas no Regimento Interno da Casa. A fundamentação do requerimento era a seguinte:

Requeremos sejam aprovadas, imediatamente, as seguintes normas de emergência sugeridas pela comissão mista do Congresso Nacional, para a tramitação de emenda constitucional, instituindo o regime parlamentar dentro dos moldes que mais se adaptam às condições do Brasil, nos termos do que foi aprovado pelo Congresso.

Em seu artigo 2o dizia: “Estas normas entrarão em vigor imediatamente, depois de aprovadas, revogadas as disposições em contrário e dispensada a publicação da redação final ou quaisquer outras formalidades regimentais”.

A emenda foi aprovada na Câmara dos Deputados, em clima de grande tumulto, e encaminhada à apreciação do Senado, que a aprovou sem qualquer alteração. Em seguida, promulgada, sob o no 4, em 9 de setembro de 1961, a emenda, aceita pelos ministros militares, assegurou a posse negociada do vice-presidente João Goulart.

A Comissão de parlamentares designada pelo presidente do Senado e do Congres- so Auro de Moura Andrade teve papel decisivo nessa negociação e na definição da emenda constitucional aprovada. Ela era composta pelos deputados Nelson Car- neiro, Ulysses Guimarães, Oliveira Brito, Elói Dutra, Geraldo Freire, Paulo Lauro, Manuel Novais, Plínio Salgado e , e os senadores Jefferson de Aguiar, Alô Guimarães, Paulo Fernandes, Heribaldo Vieira, Padre Calazans, Ar- gemiro Figueiredo, Nogueira da Gama e Novais Filho.

O deputado Nelson Carneiro, eleito presidente da comissão, designou o deputado Oliveira Brito (PSD-BA) para relator da proposta de emenda, o qual veio a ser um

71 Ascensão e Queda de Jango

dos grandes articuladores políticos da solução parlamentarista. A comissão tomou por base emenda constitucional que o deputado pró-parlamentarista Raul Pilla (PL-RS) apresentava a cada início de legislatura instituindo tal sistema de governo no Brasil. Essa era a sua bandeira e o ideal de seu partido – o Partido Libertador. Mas, contrafeito, Pila aceitou a fórmula engendrada, um parlamentarismo híbrido, para evitar o confronto e a guerra civil. O parlamentar gaúcho assim justificou a concessão que fizera:

Se eu fosse, apenas, um doutrinário do parlamentarismo, neste momento, votaria contra a emenda que institui o sistema parlamentar. Votaria contra o sistema que tenho defendido em toda a minha vida, porque, após setenta anos de formação presidencialista, seria submetê-lo a uma rude e perigosa prova, instituí-lo na presente situação.

Apóstolo do parlamentarismo, Raul Pilla aceitou a solução esdrúxula, que, a seu ver, constituía uma heresia em matéria de princípios doutrinários vinculados à história do regime de gabinete, como saída política imperativa. O modelo concebido era de tal modo insólito que a dissolução do parlamento – recurso clássico do sistema parlamentarista de governo – só poderia ocorrer na hipótese de aprovação, por três vezes consecutivas, da moção de desconfiança. Mas essa fora a concessão que os formuladores da emenda fizeram à maioria da Câmara dos Deputados, desfiguran- do o sistema. Disse Raul Pilla:

Voto a favor da emenda parlamentarista – embora, como defensor do sistema clássico, pudesse, sem grande contradição, votar contra ela nesta oportunidade. Voto a favor porque desnatural seria sacrificar o fim, que é o bem comum, ao instrumento que, por natureza, é secundário. Espero, Senhor Presidente, que todos nós, parlamentares e não parlamentares, tenhamos o mesmo interesse e lealdade no bom funcionamento do sistema presidencial, agora definitivamente condenado. Esta é, Senhores Deputados, se não a minha certeza, pelo menos a minha patriótica esperança.

Essa era a solução política, uma vez que se organizara no Sul a resistência do gover- nador do Rio Grande do Sul, Leonel Brizola, formando a Cadeia da Legalidade, ao mesmo tempo em que o Comandante do III Exército, general Machado Lopes (cuja guarnição, àquele tempo, detinha 60% dos efetivos da força terrestre) se declarara em confronto aberto com o ministro da Guerra e pela posse do vice-presidente da República como presidente constitucional.

A fórmula de regime parlamentar concebida pela emenda foi negociada com o vice-presidente João Goulart, que já se achava no Rio Grande do Sul. O principal

72 O Congresso em Meio Século | 2a Edição

negociador da solução política encontrada foi o deputado Oliveira Brito (PSD-BA), que deu à emenda a forma racional e inteligente que tinha. Participaram, porém, das negociações com os ministros militares e o vice-presidente João Goulart figu- ras de realce do PSD, como o presidente Amaral Peixoto, e os deputados Gustavo Capanema, José Maria Alkmin e Tancredo Neves.

A emenda foi aprovada por 233 votos a favor e 55 contra, no total de 281 presen- tes, sendo promulgada em 2 de setembro de 1961, quando foi instituído o sistema parlamentarista de governo. A solução afastou a ameaça de guerra civil, admitida no manifesto dos ministros militares, de 30 de agosto de 1961, assegurando a posse do substituto constitucional e, ao mesmo tempo, a permanência no poder dos três grandes partidos: PSD, UDN e PTB.

O condomínio desses partidos no poder estava evidenciado na composição do Ministério: primeiro-ministro, Tancredo Neves (PSD-MG); Agricultura, Armando Monteiro Filho (PSD-PE); Educação, Oliveira Brito (PSD-BA); Indústria e Comér- cio, Ulysses Guimarães (PSD-SP); Relações Exteriores, San Tiago Dantas (PTB- MG); Saúde, Estácio Souto Maior (PTB-PE); Trabalho, Franco Montoro (PDC-SP); Minas e Energia, Gabriel Passos (UDN-MG); Viação e Obras Públicas, Virgílio Távora (UDN-CE); Fazenda, Walter Moreira Sales; Aeronáutica, brigadeiro Clóvis Travassos; Marinha, almirante Ângelo Nolasco; Exército, general Segadas Viana; Casa Civil, Hermes Lima; Casa Militar, general Amauri Kruel.

O ministro das Minas e Energia, Gabriel Passos, não seguia a orientação da UDN, seu partido. Nas questões nacionais, votava sob orientação da Frente Parlamentar Nacionalista, cujo presidente era o deputado Bento Gonçalves, do PTB de Minas Gerais. Fora amigo de Getúlio Vargas, que o nomeara procurador-geral da Repú- blica, em 1936. Mesmo assim, sua permanência na UDN era considerada uma sin- gularidade. No horário reservado aos líderes, de até sessenta minutos, era o líder do PTB quem lhe reservava espaço no horário da liderança, não o da UDN. Se tivesse vivido mais alguns meses, Gabriel Passos teria sido cassado certamente, como o foi seu filho, o deputado federal Celso Passos, pelo Ato Institucional no 5, de 1968.

Obrigado a se desincompatibilizar para disputar a reeleição em Minas Gerais para a Câmara dos Deputados, o primeiro-ministro Tancredo Neves renunciou com todo o Ministério. Tal fato demonstra o artificialismo do sistema parlamentarista adotado no Brasil, uma vez que, no verdadeiro parlamentarismo, o primeiro-mi- nistro e seus companheiros de gabinete não precisam se afastar dos cargos para concorrer às eleições.

73 Ascensão e Queda de Jango

Teve de ser constituído novo Ministério. O primeiro-ministro do segundo gabinete foi o professor Francisco Brochado da Rocha (12/7/1962 a 18/9/1962). Sua com- posição era a seguinte: ministro da Justiça, professor Cândido de Oliveira Neto; ministro das Relações Exteriores, Affonso Arinos de Mello Franco (UDN-RJ); mi- nistro da Fazenda, Walter Moreira Salles; ministro da Viação e Obras Públicas, Hé- lio de Almeida (PTB-RJ); ministro da Agricultura, Renato Costa Lima; ministro da Educação, professor Roberto Tavares de Lira; ministro do Trabalho, Hermes Lima (PSB-RJ); ministro da Saúde, Manuel Cordeiro Vilaça (PTB-RN); ministro da In- dústria e Comércio, Ulysses Guimarães (PSD-SP); ministro das Minas e Energia, João Mangabeira (PSB); chefe da Casa Civil, Hermes Lima (PSB-RJ); e chefe da Casa Militar, general Amauri Kruel.

Diante da recusa do Congresso em aprovar, pela segunda vez, pedido de delega- ção de poderes especiais formulado pelo primeiro-ministro Francisco Brochado da Rocha, este renunciou com todo o Ministério, no dia 14 de setembro de 1962. Finalmente, o terceiro e último gabinete (18/9/1962 a 24/1/1963), considerado pro- visório, uma vez que estava em pleno curso o retorno ao presidencialismo, foi che- fiado pelo professor Hermes Lima, que acumulava a função de primeiro-ministro com a de ministro das Relações Exteriores, e era composto pelos seguintes titulares: ministro da Justiça, João Mangabeira (PSB-RJ); ministro da Marinha, almirante de esquadra Pedro Paulo de Araújo Suzano; ministro da Guerra, general de divisão Amauri Kruel; ministro da Aeronáutica, brigadeiro Reynaldo Joaquim Ribeiro de Carvalho Filho; ministro da Fazenda, Miguel Calmon Du Pin de Almeida Sobri- nho; ministro da Viação e Obras Públicas, Hélio de Almeida (PTB-RJ); ministro da Agricultura, Renato Costa Lima; ministro da Educação e Cultura, Darci Ribeiro; ministro do Trabalho e Previdência Social, João da Silva Pinheiro Neto; ministro da Saúde, Eliseu Paglioli; ministro da Indústria e do Comércio, Otávio Augusto Dias Carneiro; ministro das Minas e Energia, Eliezer Batista da Silva; ministro de Esta- do Extraordinário do Planejamento, Celso Monteiro Furtado; chefe da Casa Civil, Hermes Lima; chefe da Casa Militar, general Albino Silva; chefe do Estado-Maior das Forças Armadas, general Osvaldo de Araújo Mota; consultor-geral da Repúbli- ca, Gilvan Correia de Queirós.

Durante a experiência daquele modelo de sistema parlamentarista, nenhum dos primeiros-ministros governou, de fato. Era o presidente João Goulart quem deti- nha o poder. Tancredo Neves, o primeiro deles, confessava não ter condições de ga- rantir uma nomeação, sequer. Com o descrédito público do governo parlamentar, que não funcionava face aos embaraços criados pelo presidente, abriu-se caminho para o plebiscito que haveria de restaurar o presidencialismo, em janeiro de 1963.

74 O Congresso em Meio Século | 2a Edição

Como primeiro-ministro, o professor Francisco Brochado da Rocha teve atuação peculiar. No discurso que fez perante a Câmara dos Deputados, no momento de sua indicação, defendeu um elenco de reformas, incluindo a polêmica delegação de poderes. Ofereceu ao exame do Congresso numerosas proposições que não eram votadas. Mais tarde, inconformado com as rígidas limitações ao exercício de suas funções, em pronunciamento dramático, perante o Congresso, renunciou ao ga- binete, argumentando que não era capaz de aceitar o cargo de primeiro-ministro apenas para constar.

Um dos nomes indicados pelo presidente João Goulart para substituir Tancredo Neves, antes da nomeação de Brochado da Rocha, tinha sido o do deputado e pro- fessor San Tiago Dantas, admirado pela sua cultura humanista e visão de estadista. Parlamentarista convicto, San Tiago era encarado com desconfiança pelos chama- dos trabalhistas históricos. Bem representativa de seu valor e de sua precocidade intelectual foi a circunstância de que ele, aos 28 anos, fora aprovado em concurso público de títulos e provas para a cátedra de professor de Direito Civil da Faculdade Nacional de Direito da Universidade do Brasil.

Chanceler quando do reatamento das relações entre o Brasil e a URSS (União das Repúblicas Socialistas Soviéticas), participando da Conferência de Ministros das Relações Exteriores dos Países Americanos, em Punta del Este, no dia 7 de setem- bro de 1962, como representante brasileiro, San Tiago teve brilhante atuação ao combater a proposta de expulsão de Cuba da OEA (Organização dos Estados Ame- ricanos), apresentada pelo secretário de Estado dos Estados Unidos, Dean Rusk.

Antes de ser votada sua indicação para primeiro-ministro, San Tiago Dantas pro- feriu brilhante discurso da tribuna da Câmara dos Deputados, apresentando a pla- taforma de governo com que pretendia consolidar o sistema parlamentarista no Brasil. Tal objetivo colidia com a intenção do presidente João Goulart de reaver as prerrogativas próprias do presidencialismo. Um dos pontos da plataforma de governo de San Tiago era a delegação de poderes extraordinários, que solicitava ao Congresso, algo intolerável para o presidente João Goulart.

A rejeição do nome de San Tiago foi fato emblemático da situação artificial que se vivia com aquela forma de parlamentarismo. O presidente João Goulart indi- cou seu nome para primeiro-ministro, enquanto articulava ostensivamente nos bastidores a derrubada da indicação. O professor trabalhou intensamente para captar simpatias e votos na Câmara dos Deputados, de tal forma que concordou em criar o cargo de oficial de chancelaria no Ministério das Relações Exteriores

75 Ascensão e Queda de Jango

para nomear pessoas indicadas pelos parlamentares. Assim mesmo, a Câmara dos Deputados negou-se a ratificar a sua indicação: com 174 votos a favor e 110 contra, não alcançou o quórum de maioria absoluta.

O presidente João Goulart havia submetido ao Congresso Nacional o nome do senador Auro de Moura Andrade, do PSD de São Paulo, mas antes julgou con- veniente ter uma conversa com ele, a quem solicitou que não opusesse qualquer resistência ao retorno do presidencialismo. Com seu nome já aprovado pela Câmara dos Deputados, Auro de Moura Andrade ficou muito decepcionado com a conversa do presidente João Goulart. Quando começou a conversar, iso- ladamente, com vários generais, para escolher o ministro da Guerra, sem con- sultar o presidente da República, Jango mandou seu líder na Câmara, Almino Affonso, divulgar carta de renúncia assinada antecipadamente por Auro, no momento em que fora convidado.

Em seu livro póstumo de memórias, intitulado Um Congresso contra o arbítrio – atitude e ação do Congresso Nacional e de seu presidente nas crises políticas e sociais do Brasil de 1961 a 1963 e de 1964 a 1967 (Nova Fronteira) – o senador Auro de Moura Andrade transcreve carta que endereçou ao general Olimpio Mourão Filho, datada de dezembro de 1970, relatando o episódio histórico e apontando as razões da renún- cia à indicação, depois de aprovado seu nome pelo Congresso. Eis o relato:

Tomo a liberdade de esclarecer que minha indicação para primeiro-ministro não se deu nas 48 horas subsequentes à demissão coletiva do gabinete Tancredo Neves. Antes, ocorreu a designação do deputado San Tiago Dantas, que não foi aprovada pela Câmara, como deve estar recordado.

Como era natural, o Sr. San Tiago Dantas, correligionário do presidente da República, informado em tempo de que seria indicado àquele posto, já havia tomado várias medidas referentes à organização do Ministério.

A recusa de seu nome traumatizou determinadas áreas políticas e militares mais ligadas à situação e aos movimentos reivindicatórios, que na época se processavam através de greves e outras manifestações que intranquilizavam o país. A indicação do meu nome, em seguida à recusa ao nome do Sr. San Tiago Dantas, criou uma crise entre o presidente da República e muitas daquelas áreas.

Assim, o PTB e o Partido Socialista, que haviam sustentado e defendido o Sr. San Tiago Dantas, colocaram-se frontalmente contrários à minha indicação, e os que haviam combatido o Sr. San Tiago Dantas (UDN, parte do PSD, PL, PR)

76 O Congresso em Meio Século | 2a Edição

colocaram-se ao meu lado. Houve, desse modo, uma transformação completa na colocação do problema de formação governamental.

Assim é que as anteriores previsões de formação determinando um tipo de governo inverteram-se repentinamente para a formação de um gabinete que teria por bases principais a UDN, a maioria do PSD, o PL, o PR. O sistema parlamentar impunha a formação do gabinete com base nos partidos que haviam aprovado o primeiro-ministro e que garantiriam a formação do governo e sua permanência.

O presidente João Goulart, digo a bem da verdade, esforçou-se junto às áreas inconformadas, no sentido de abrandar as resistências, porém elas rapidamente aumentaram com a postulação do general Osvino Ferreira Alves ao Ministério da Guerra. Eu me fixara no general Nélson de Melo, que também era aceito pelo presidente João Goulart, como forma de harmonização.

Na oportunidade, era o general Osvino Comandante do I Exército e, portanto, formalmente qualificado para o exercício daquela Pasta. Eu, entretanto, embora procurasse contornar todas as dificuldades possíveis, não tinha condições de assegurar maioria parlamentar em torno de um gabinete em que figurasse aquele distinto general, pois as forças que me apoiavam no Congresso eram contrárias àquela nomeação. Não havia entre mim e o Dr. João Goulart nenhum compromisso prévio sobre o assunto. A crise que se estabelecera, fruto das circunstâncias narradas, não apenas nos envolvera os dois – ao presidente da República e a mim – como também ameaçava a sobrevivência do regime parlamentar.

Ora, sendo eu, naquela época, o presidente do Congresso Nacional, tinha o dever de impedir que o regime parlamentarista sucumbisse em minhas mãos, ou por minha causa. Por esse motivo, adotei a única medida cabível em tais circunstâncias, e que por sinal ocorre com relativa frequência nesse sistema de governo. Declarei não ter condições para a formação do governo e devolvi a indicação ao presidente da República, a fim de que ele apontasse outro primeiro-ministro. Com isso esperava eu dar continuidade ao regime e aliviar o país da crise político-militar.

Não houve, pois, quebra de nenhum compromisso na escolha de ministros. Houve, sim, impossibilidade de minha parte em formar um governo em desacordo com as bases parlamentares que me sustentavam e também a impossibilidade do então presidente dissentir das bases políticas e militares que o apoiavam.

77 Ascensão e Queda de Jango

O presidente João Goulart dirigiu, no dia 6 de julho de 1962, o seguinte bilhete ao senador Auro de Moura Andrade:

Meu caro Auro,

Li com estupefação e revolta a versão caluniosa divulgada com relação à sua renúncia e que nem seria capaz de propor, nem tu serias de aceitar, o que exclusivamente resultou, como bem posso testemunhar, do fato de o ilustre amigo não ter podido, conforme me comunicou na madrugada da sua decisão, organizar o gabinete.

Renovo-te a ti o sentimento de meu apreço por seu comportamento digno nesse episódio. Com abraço, Jango.

Como é fácil de verificar, a fórmula parlamentarista adotada desmoralizou institui­ ção que se mostrara tão importante ao Brasil, durante o Império. O deputado Raul Pilla, paladino na luta pela adoção do parlamentarismo, viu-se obrigado a fazer concessões doutrinárias na esperança de contribuir para o Brasil optar, definitiva- mente, pelo sistema de governo que pregou durante toda a sua vida pública.

O presidente João Goulart nunca escondeu sua antipatia ao parlamentarismo, que via como uma forma de usurpação de seus poderes. Conspirava ostensivamente contra o sistema adotado, o que explica por que o parlamentarismo teve vida efê- mera. A Lei Complementar no 2, de 16 de setembro de 1962, determinou a antecipa- ção do plebiscito como referendo popular para o dia 6 de janeiro de 1963.

Realizada a consulta plebiscitária, em 6 de janeiro de 1963, votaram 11.531.030 de um total de 18 milhões de eleitores. Foram 9.457.448 os eleitores que se manifesta- ram pelo retorno ao presidencialismo, contra 2.073.582, que preferiram o sistema parlamentarista de governo. O voto não era obrigatório. Em razão de tal resultado, o Congresso Nacional aprovou a Emenda Constitucional no 6, de 23 de janeiro de 1963, revogando a Emenda Constitucional no 4, de 2 de setembro de 1961, que ha- via introduzido o sistema parlamentarista de governo.

O Palácio do Planalto patrocinou intensa campanha contra o parlamentarismo e pelo retorno ao sistema presidencialista. Infelizmente, o presidente João Goulart não se revelou à altura do momento histórico que o país vivia, mostrando-se frágil, sem gosto pelo exercício do poder, inseguro, sem autoridade e cercado de falsos amigos. Cabe ressaltar, contudo, que o presidente João Goulart teve uma atitude que só o engrandece perante a História, ao se negar a avalizar a resistência que cer- tamente teria levado o país à guerra civil de consequências imprevisíveis.

78 O Congresso em Meio Século | 2a Edição

A Rebelião dos Sargentos

Insurreição militar emblemática foi a Revolta dos Sargentos, que eclodiu em 12 de setembro de 1963, com a participação de sargentos, suboficiais, cabos e praças, de modo especial da Marinha e da Aeronáutica, por motivos estritamente políticos. A Constituição de 1946 vedava a participação de sargentos e praças no processo eleitoral. A primeira reação ocorreu quando o Tribunal Superior Eleitoral negou recurso ao sargento Aimoré Cavalheiro, que havia sido eleito deputado estadual no Rio Grande do Sul e teve o mandato anulado, em 1962.

O sargento Antônio Garcia Filho elegeu-se, nesse mesmo ano (legislatura 1963/1967), deputado federal pelo PTB do Rio de Janeiro, o que foi comemorado como fato político importante pela Frente Parlamentar Nacionalista. O registro do deputado-sargento carioca acabou impugnado na Justiça Eleitoral. Da tribuna da Câmara, os oradores proclamavam a legitimidade da candidatura, da eleição e da posse de Garcia, uma vez que ele estava reformado, ainda que permanecesse como líder da categoria. Essa impugnação produziu surpreendente rebelião armada, em Brasília, obrigando o então ministro da Guerra, general Jair Dantas Ribeiro, a co- mandar a repressão, pessoalmente, de seu gabinete.

Durante a campanha eleitoral, o sargento Garcia comprometeu-se a assumir o man- dato, fardado, ainda que estivesse reformado. Tal fato causou surpresa e irritação na alta hierarquia das Forças Armadas. O marechal Ângelo Mendes de Morais, que também havia sido eleito deputado federal pelo PSP da antiga Guanabara, amea- çou envergar o uniforme de marechal, se o sargento viesse fardado para a Câmara. Felizmente, os dois não assumiram o mandato fardados.

Deflagrada a Revolta dos Sargentos, em uma Brasília que tinha menos de 200 mil habitantes, foram cortadas as comunicações do Plano Piloto com o restante do país. Contudo, localizava-se no Núcleo Bandeirante o sistema de rádio pertencente à Novacap, que garantiu a comunicação imediata da cidade com o Quartel-General do Exército, no Rio de Janeiro, permitindo o deslocamento de tropa de elite do Núcleo de Paraquedistas, comandada pelo general Hugo Abreu, que não chegou a entrar em ação, pois a revolta fora abafada pela tropa aquartelada em Brasília.

A essa época, ainda não existia o atual Quartel-General do Exército, no Setor Militar Urbano, denominado Forte Apache, na capital federal. Os ministérios militares fun- cionavam na Esplanada dos Ministérios e foi lá que ocorreu intenso tiroteio envol- vendo o pessoal do Exército, da Marinha e da Aeronáutica. A rebelião irrompeu pela manhã, quando ainda era pequeno o movimento na Câmara dos Deputados. Estava no exercício da Presidência o deputado Clóvis Mota, do Rio Grande do Norte, vez

79 Ascensão e Queda de Jango

que o titular, deputado Ranieri Mazzilli, assumira, interinamente, a Presidência da República, em razão de viagem ao exterior do titular, presidente João Goulart.

Quando o deputado Clóvis Mota passava em frente ao Ministério da Justiça, o au- tomóvel oficial da Presidência da Câmara, que o transportava, foi detido e condu- zido ao gabinete do ministro da Justiça, por não ter sido reconhecido. Depois de se identificar, Clóvis Mota foi libertado. Voltando à Câmara, assumiu a Presidência da sessão e fez um relato do fato ao Plenário. A chamada “Revolta dos Sargentos” foi rapidamente controlada. Esse fato marcou o processo político, uma vez que ele que- brara o princípio da disciplina e da hierarquia. Os militares continuaram a envol- ver-se na política e esse foi um dos fatores que explicam a deposição do presidente João Goulart, em março/abril de 1964.

A rebelião dos sargentos aspirava a transformar-se em grito de liberdade política e de afirmação de sargentos e subalternos, mas acabou custando aos rebeldes um preço muito alto. Após a intervenção militar que depôs o presidente João Goulart, em 1964, o deputado-sargento Garcia teve o mandato cassado e suspensos os direitos políticos (ato de 10 daquele ano), sendo recolhido à prisão. Sargentos, cabos e marinheiros foram demitidos depois de submetidos a sumários inquéritos policiais militares.

Sem dúvida, foi a partir da rebelião dos sargentos, iniciada em Brasília, que a dis- ciplina militar, encarada como um dogma, começou a ser questionada em seu âmago, permitindo-se que outros acontecimentos mais graves surgissem, como a sublevação dos cabos e marinheiros, na Guanabara, em 1964, que tanto contri­ buiu para deteriorar a imagem da ordem e da disciplina que todo governo, consti­ tucionalmente, é obrigado a defender, até em prol de sua própria sobrevivência.

Outro episódio emblemático da inquietação que se vivia no Brasil de então: a tenta- tiva frustrada de sequestro do governador da Guanabara, Carlos Lacerda. O coronel Francisco Boaventura Cavalcanti, irmão do deputado udenista e coronel Costa Ca- valcanti, denunciou que, como oficial do Núcleo de Paraquedistas, cujo comandante era o general Alfredo Pinheiro, apelidado de “Faz-Tudo”, recebera ordem de integrar uma tropa de assalto destinada a sequestrar o governador Carlos Lacerda.

A Câmara dos Deputados, através da Resolução de no 37, de 19 de outubro de 1963, a requerimento do deputado Padre Godinho, criou Comissão Parlamentar de Inquérito para investigar responsabilidades pela tentativa de prisão, sequestro ou eliminação do governador do Estado da Guanabara. O deputado Bias Fortes (PSD-MG) foi eleito presidente e relator o deputado Costa Rego (PSD-PE). A CPI não concluiu os seus trabalhos.

80 O Congresso em Meio Século | 2a Edição

Fim Melancólico

A situação do presidente João Goulart agravou-se quando ele encaminhou ao Con- gresso as chamadas “reformas de base”, que provocaram forte reação de núcleos conservadores e poderosos da sociedade brasileira. As que provocaram reação mais virulenta foram as reformas agrária e urbana, nas quais se incluía o princípio da desapropriação por interesse social, prevendo-se indenização com títulos da dívi- da pública, e não pagamento antecipado, à vista e em dinheiro, conforme exigia a Constituição. O presidente João Goulart propunha a realização de reforma agrária ao longo do eixo das estradas federais, construídas ou em construção, sem escla- recer, porém, de que maneira seria feita a ocupação dessas áreas, o que provocou grande inquietação.

Na Mensagem encaminhada ao Congresso pelo presidente da República, na aber- tura solene da sessão legislativa, a 15 de março de 1964, lê-se:

No quadro das reformas básicas que o Brasil de hoje nos impõe, a de maior alcance social e econômico, porque corrige um descompasso histórico, a mais justa e humana, porque irá beneficiar direta e imediatamente milhões de camponeses brasileiros, é, sem dúvida, a reforma agrária.

E acrescentava:

Para atender velhas e justas aspirações populares, ora maré montante que ameaça conduzir o país a uma convulsão talvez sangrenta, sinto-me no grave dever de propor ao exame do Congresso Nacional o conjunto de providências, a meu ver indispensáveis, e já agora inadiáveis, para serem afinal satisfeitas as reivindicações de 40 milhões de brasileiros.

Além da reforma agrária, propunha, ainda, entre outras reformas, as da política e a universitária, a delegação legislativa e o plebiscito para que o povo ratificasse a aprovação das mudanças pelo Congresso.

A esmagadora maioria da bancada de Minas Gerais, incluindo deputados do PSD que apoiavam o governo, manifestou-se contra as reformas de base. O senador Jus- celino Kubitschek dera explicações aos jornalistas, no café da Câmara, para justi- ficar sua oposição à reforma agrária: “Minas Gerais não aprova reforma agrária e, em vez de reforma agrária, construirei mais duzentas Brasílias.” Das três maiores bancadas, duas delas, as do PSD e da UDN, insurgiam-se contra a reforma agrária. Só a do PTB a apoiava, mas o partido era minoritário na Câmara. Vale ressaltar que

81 Ascensão e Queda de Jango

o PTB ofereceu emenda à Constituição de 1946 dispondo sobre a reforma agrária. A Comissão Especial destinada ao exame da matéria acolheu parecer do deputado Aliomar Baleeiro, rejeitando a proposta, em 13 de maio de 1963.

Ao mesmo tempo, sucediam-se as Marchas da Família com Deus pela Liberdade, patrocinadas pela Igreja e por forças conservadoras. O presidente da República tor- nou mais agressiva a atuação de seu governo em favor das reformas. A tal ponto que assinou decreto estatizando as refinarias particulares de Capuava, em São Paulo; Ipiranga, no Rio Grande do Sul; e Manguinhos, no Rio de Janeiro. A Lei no 2.004, de 3 de outubro de 1953, que instituiu o monopólio estatal de petróleo, criando a Petrobras, estabelecia que essas refinarias não poderiam produzir mais de 10 mil barris diários de petróleo, mantido o regime jurídico privado.

Na fase conspiratória mais aguda do movimento militar que veio a depor o presi- dente João Goulart, foram criados três órgãos que tiveram papel saliente na política contemporânea brasileira: o Ipês (Instituto de Pesquisas Econômicas e Sociais), o Ibad (Instituto Brasileiro de Ação Democrática), que tinha caráter operacional e foi fundado em maio de 1959, e a Adep (Ação Democrática Parlamentar), criada no primeiro trimestre de 1961, “com o objetivo de combater a infiltração comunista na sociedade brasileira” e cujo presidente era o deputado baiano João Mendes.

Para se ter ideia da importância desses organismos criados em fase de grande agi- tação da política brasileira, basta dizer que a Adep contava com aproximadamente 150 membros na Câmara dos Deputados, entre os quais parlamentares de grande expressão, como Raul Pilla, Munhoz da Rocha, Padre Nobre, Hamilton Prado, Alde Sampaio e Geraldo Freire.

Naquele ambiente de agitação e desconfiança, atribuiu-se papel importante ao Ibad nas eleições de 1962, quando apoiou e financiou ostensivamente candidatos que se opunham à esquerda em todos os estados, com o objetivo de formar uma bancada atuante no Congresso. O Ibad nascia em decorrência da ação do Ipês, no qual atua- vam o general Golbery do Couto e Silva, o embaixador , o geólogo Glycon de Paiva, e seu principal fundador, Ivan Hasslocher (figura importante nos meios publicitários). Os recursos obtidos, estimados em 5 bilhões de cruzeiros an- tigos, eram depositados no Royal Bank of Canada.

Dada a celeuma que surgiu a respeito de numerosa lista de candidatos que rece- beram financiamentos do Ibad e do Ipês, foi constituída Comissão Parlamentar de Inquérito, no dia 22 de maio de 1963, através da Resolução no 10, destinada a apurar a origem dos haveres e a atuação política do Ibad e do Ipês, por iniciativa do

82 O Congresso em Meio Século | 2a Edição

deputado Paulo Tarso (PDC-SP). Para a nova CPI foi eleito presidente o deputado Ulysses Guimarães, sendo designado relator o deputado Pedro Aleixo (UDN-MG), ambos, como os demais componentes, sem qualquer relação com o Ibad.

Dela faziam parte os deputados Adaucto Lúcio Cardoso, Franco Montoro, José Ma- ria Alkmin, José Aparecido de Oliveira, José Richa, Cantídio Sampaio, Elói Du- tra, Nilo Coelho e outros. A CPI ouviu numerosos depoimentos, inclusive de Ivan Hasslocher, o principal executivo do Ibad, que compareceu debaixo de vara, uma vez que se recusou a atender à convocação. Mas depois, como indiciado, ficando, portanto, desobrigado de responder a questões que o comprometessem. Naquela oportunidade, o deputado Pedro Aleixo elaborou relatório de grande profundidade jurídica e política, que foi aprovado através do Projeto de Resolução no 35, de 1963, o qual foi arquivado sem qualquer decisão da Câmara dos Deputados.

Os intelectuais de esquerda tinham seu núcleo principal de atuação no Instituto Superior de Estudos Brasileiros (Iseb). Lá pontificavam figuras expressivas da inte- ligência brasileira, como Roland Corbisier, Álvaro Vieira Pinto, Barbosa Lima So- brinho, , Guerreiro Ramos, Hélio Jaguaribe e também o embaixador Roberto de Oliveira Campos. O Iseb foi fundado com o objetivo de se contrapor à Escola Superior de Guerra, que se havia inspirado no National War College, dos Estados Unidos. O marechal Cordeiro de Farias fez questão de instalar o Minis- tério do Interior, no governo Castello Branco, na antiga sede do Iseb, na Rua das Palmeiras, em Botafogo, no Rio de Janeiro. Criador da Escola Superior de Guerra, Cordeiro levou para aquela instituição a riquíssima biblioteca do Iseb.

O presidente João Goulart era também combatido pela esquerda radical, que o acusava de praticar um governo de conciliação. Suas fraquezas e hesitações acaba- ram levando-o a perder o apoio de correntes políticas importantes que o apoiavam, como o PSD, que abandonou o governo. Sem base política e militar, o presidente ficou inteiramente isolado. Sua queda era esperada pelo país. Carlos Lacerda apro- veitava o momento apelando aos quartéis para depor o presidente, a quem acusava de aliado do comunismo internacional.

Líder da Maioria e do governo, o deputado Tancredo Neves ficava em silêncio sem- pre que o presidente João Goulart era atacado pelos seus ferrenhos adversários da UDN. Defendiam abertamente o governo na Câmara os deputados Almino Affon- so e Doutel de Andrade, da liderança do PTB, e, no Senado, o líder do governo e do PTB, senador Artur Virgílio, todos três cassados, posteriormente.

83 Ascensão e Queda de Jango

O ano de 1964 começou sob o signo de grandes agitações políticas e sociais, que es- pantavam a Nação e fortaleciam a convicção de que a situação se tornava insustentá­ vel. Depois da Revolta dos Sargentos, da sublevação de cabos e marinheiros, do comício da Central do Brasil, no dia 13 de março, surgiram faixas com slogans que pregavam a insurreição social. O ambiente era de grandes apreensões. Havia a im- pressão consensual de ser iminente a deposição do presidente João Goulart, mesmo entre seus próprios correligionários.

Tivera grande repercussão a presença do presidente da República, ao lado do mi- nistro da Justiça, Abelardo Jurema (cassado em 10/4/1964), e do chefe da Casa Mi- litar, general Argemiro de Assis Brasil, em reunião comemorativa do aniversário da Associação dos Suboficiais e Sargentos da Polícia Militar da Guanabara (também compareceram sargentos das Forças Armadas), no Automóvel Clube do Brasil, no dia 30 de março de 1964. Discursos radicais foram pronunciados por sargentos e pelo presidente da República. Ao lado do presidente, o general Argemiro de Assis Brasil (transferido para a reserva em 11/4/1964, suspensos seus direitos políticos em 14/4/64 e demitido em 29/9/64) dizia que o dispositivo militar estava pronto para ser utilizado, bastando apertar o botão...

Logo depois da reunião no Automóvel Clube, o presidente João Goulart viajou do Rio de Janeiro para Brasília, onde teve oportunidade de verificar que já não conta- va com apoio no Congresso e havia perdido sua base militar. O presidente e dona Maria Teresa residiam na Granja do Torto. Conta-se que, quando chegou à Granja, Maria Teresa mandara embrulhar seus pertences em lençóis, de forma apressada, uma vez que não tivera tempo de arrumar as malas. João Goulart decidiu viajar para Porto Alegre, onde pretendia instalar o governo. Naquela época, a Presidência da República não dispunha de avião de grande porte. Como o presidente estava em situação de notória fragilidade, a Varig alegou que o seu avião Coronado – o mais moderno na época – sofrera pane. Dadas as circunstâncias dramáticas, Jango requisitou avião à FAB, sendo obrigado a viajar em um Avro, aparelho lento, sem pressurização e com baixa autonomia de voo.

Se o presidente João Goulart insistisse em permanecer no Distrito Federal, ha- veria deslocamento de tropas de Goiás e de Minas Gerais para depô-lo. Tendo em vista seu embarque para o Rio Grande do Sul, na noite do dia 1o de abril de 1964, o presidente do Senado, Auro de Moura Andrade, convocou o Congresso Nacional para sessão extraordinária, quando, já de madrugada, comunicou for- malmente a ausência do presidente da República da capital federal. Ao mesmo

84 O Congresso em Meio Século | 2a Edição

tempo, determinou que fossem colocados obstáculos na pista do aeroporto a fim de impedir a saída ou a chegada de aviões.

Nesta mesma sessão, em decisão pessoal, o senador Auro de Moura Andrade declarou vaga a Presidência da República, alegando que o presidente se achava em lugar incerto e não sabido. Partidários de João Goulart exigiram que Moura Andrade desse conhecimento da carta que lhes havia sido dirigida pelo chefe da Casa Civil, professor Darci Ribeiro. O presidente do Congresso, a princípio, resis- tiu em autorizar a leitura. Em face dos veementes protestos dos correligionários de Goulart, principalmente dos deputados Doutel de Andrade e Sérgio Maga- lhães, Moura Andrade determinou ao secretário da Mesa, deputado Aniz Badra, a leitura da carta, que é a seguinte:

Brasília, 2 de abril de 1964.

Senhor Presidente,

O Senhor Presidente da República incumbiu-me de comunicar a V.Exa. que, em virtude dos acontecimentos nacionais, das últimas horas, para preservar de esbulho criminoso o mandato que o povo lhe conferiu, investindo-o na chefia do Poder Executivo, decidiu viajar para o Rio Grande do Sul, onde se encontra à frente das tropas militares legalistas e no pleno exercício dos poderes constitucionais com o seu Ministério.

Atenciosamente, Darci Ribeiro, Chefe do Gabinete Civil.

O presidente Moura Andrade prosseguiu com a sessão, declarando:

O Senhor Presidente da República deixou a sede do governo, deixou a Nação acéfala, numa hora gravíssima da vida brasileira, em que é mister que o chefe de Estado permaneça à frente de seu governo.

O Senhor Presidente da República abandonou o governo. A acefalia continua. Há necessidade de que o Congresso Nacional, como poder civil, imediatamente, tome a atitude que lhe cabe, nos termos da Constituição, para o fim de restaurar na Pátria conturbada a autoridade do governo, a existência do governo. Não podemos permitir que o Brasil fique sem governo, abandonado. Recai sobre a Mesa a responsabilidade pela sorte da população do Brasil em peso. Assim sendo, declaro vaga a Presidência da República. Nos termos do artigo 79 da Constituição Federal declaro investido no cargo o presidente da Câmara dos Deputados, Sr. Ranieri Mazzilli.

85 Ascensão e Queda de Jango

Em seguida, encerrou a sessão.

Generalizou-se, então, o tumulto no plenário, quando expressivo grupo de deputados fiéis ao governo de João Goulart tentou reabrir a sessão, de qualquer maneira. Ante os protestos ruidosos que se seguiram, sugeriu-se a Auro que se retirasse por uma porta que havia atrás da Mesa do plenário, mas ele recusou a sugestão, dizendo que haveria de sair, como o fez, por onde entrara.

Após a deposição do presidente João Goulart pelos militares, em 1964, o deputado Sérgio Magalhães pronunciou discurso em sua defesa, da tribuna da Câmara, sus- tentando que nenhum outro presidente da República possibilitara maior debate democrático no Brasil sobre a necessidade das reformas sociais. Discutiram-se vá- rias reformas: a agrária, a urbana, a cambial, a judiciária, a universitária, a política externa independente, o direito de voto aos sargentos, cabos e praças, o voto em cé- dula única de votação, entre outras matérias importantes. Poucos dias depois desse pronunciamento, o deputado Sérgio Magalhães seria cassado.

86 Capítulo VI Nasce o Regime Militar

A maioria do Congresso foi solidária com o movimento militar que depôs o pre- sidente João Goulart, em março/abril de 1964, embora nutrisse a esperança de que a intervenção fosse transitória, como tantas outras que se verificaram ao longo de nossa história. Estavam todos enganados, como os fatos posteriores vieram a de- monstrar. A edição do Ato Institucional (sem número) de 9 de abril de 1964 seria a mais nítida demonstração de que o movimento militar viera para ficar.

Redigido pelo professor Francisco Campos – “homem do Estado fechado”, como o definira, certa vez, seu contemporâneo, o saudoso político mineiro Gustavo Ca- panema –, o Ato estabelecia que a Revolução vitoriosa legitimava o Congresso, e não este a ela. A convicção das principais lideranças políticas era a de que, caso o Congresso não declarasse a vacância da Presidência da República, as Forças Arma- das o fariam. Àquela altura, Brasília era uma cidade sitiada: estava cercada por um batalhão de Goiás e por outro da cidade mineira de Paracatu. A Base dos caças Mi- rage ficava localizada, como ainda hoje, na cidade de Anápolis. Não havia a menor possibilidade de resistência.

Antes da outorga daquele Ato Institucional – depois denominado AI-1 – lide- ranças políticas importantes, principalmente da UDN e do PSD, participaram de reuniões para discutir o que fazer após a deposição de João Goulart. Lá estiveram Pedro Aleixo, Bilac Pinto, Adaucto Lúcio Cardoso, João Agripino, Ernani Sátiro, Gilberto Marinho, Rui Palmeira, Daniel Krieger, Dinarte Mariz, José Cândido Ferraz, da UDN, e Amaral Peixoto, Benedito Valadares, Filinto Muller, Gustavo Capanema, José Maria Alkmin, Tancredo Neves, Ulysses Guimarães, Martins Ro- drigues, do PSD, entre outros.

Reunidos no Rio de Janeiro, muitas vezes no Hotel Serrador, os políticos discutiam uma saída para a crise, quando surgiram as divergências – cada um apontava solu- ção diferente. Como não surgisse uma solução naquele foro político que julgassem adequada para o momento, os chefes militares, reunidos no Ministério da Guerra, convidaram o presidente em exercício da República, Ranieri Mazzilli, a comunicar que resolveram baixar um ato institucional.

Mais tarde, líderes políticos expressivos da UDN garantiam que o deputado Ulys- ses Guimarães chegara a propor a suspensão dos direitos políticos por vinte anos

87 Nasce o Regime Militar

daqueles que estavam comprometidos com a situação deposta. Em conversas que comigo manteve, a esse respeito, o deputado Ulysses Guimarães sempre repudiou essa versão, que atribuía a intrigas criadas por seus adversários políticos. Como os protagonistas destes fatos estão mortos, não há como comprovar a procedência ou não dos rumores. Ulysses assegurava que as lideranças políticas haviam sugerido um ato institucional bem mais benigno do que o que foi afinal outorgado, o qual previa a convocação de eleições para escolha de novo presidente da República.

O Ato não dissolveu o Congresso, mas dele retirou todas as competências e prer- rogativas, transferindo-as ao Poder Executivo, ao mesmo tempo que proclamava que a Revolução se legitimava a si própria. Tratava-se de documento considerado superior a todos os éditos baixados posteriormente pelo regime militar, tanto em termos jurídicos quanto de redação.

Previa a eleição indireta do presidente da República, em sessão do Congresso Nacio­ nal, mediante votação pública e nominal. Também atribuiu aos detentores do po- der discricionário a decretação do recesso do Congresso Nacional, quando fosse julgado conveniente. Nessa hipótese, concedia ao presidente da República todas as competências, privativas ou não do Congresso, inclusive a de legislar, além de auto- rizar a cassação de mandatos de parlamentares e a suspensão de direitos políticos de qualquer cidadão, por dez anos.

As cassações de mandatos representaram um grande golpe nas antigas e novas li- deranças políticas que estavam se formando, a partir da Constituição de 1946. Só vinte anos mais tarde, quando se achava em pleno curso o processo de reabertura democrática, em 1985, é que se teve oportunidade de verificar o tamanho do mal causado pelo autoritarismo no corpo político da Nação.

A indicação do marechal Humberto de Alencar Castello Branco para ocupar a Presidência da República só veio a aparecer dias depois da decretação do AI-1. A conversa era que os chefes militares iriam devolver o poder ao Congresso, resta- belecendo o regime democrático e o império do poder civil. Os generais estavam convencidos de que haviam impedido a instalação de um regime comunista no Brasil. Só posteriormente é que os novos detentores do poder, com a colaboração da imprensa, desfraldaram a bandeira do combate à corrupção e à subversão, por- que o movimento inicial tivera caráter tipicamente conservador e defensivo.

Os militares sempre se orgulharam de não ter fechado o Congresso nem o Judici- ário, no Brasil, ao contrário de seus colegas argentinos, o que facilitaria as coisas, caso houvesse necessidade de reabertura do processo democrático. Mas, mantive-

88 O Congresso em Meio Século | 2a Edição

ram ambas as instituições sob severa tutela. Instituiu-se o Comando Supremo da Revolução, composto pelos ministros Arthur da Costa e Silva, da Guerra, almirante Augusto Hamman Radmacker Grunewald, da Marinha, e brigadeiro Francisco de Assis Correia de Melo, da Aeronáutica, organismo que funcionou, de forma osten- siva, até a posse do marechal Castello Branco na Presidência da República.

Os três ministros militares assumiram de fato o comando político-militar do país, desde a intervenção em março/abril – e isso com o Congresso, o Judiciário, as As- sembleias Legislativas e Câmaras Municipais em pleno funcionamento. Na funda- mentação do Ato Institucional outorgado no dia 9 de abril, os ministros militares afirmavam que “a Revolução vitoriosa se investe no exercício do poder constituinte. Esse se manifesta pela eleição popular ou pela Revolução”. E mais adiante: “Assim, a Revolução vitoriosa, como poder constituinte, se legitima por si mesma. Ela desti- tuiu o governo anterior e tem a capacidade de construir o novo governo.”

Proclamavam ainda que os militares assumiram o poder da República “pela Re- volução vitoriosa, representada pelos comandos em chefe das três Armas, que res- pondem, no momento, pela realização dos objetivos revolucionários”. Faziam uma concessão, contudo: “Para demonstrar que não pretendemos radicalizar o processo revolucionário, decidimos manter a Constituição de 1946, limitando-nos a modi- ficá-la.” O autor desse texto foi o jurista Francisco Campos, também artífice da Constituição de 1937, do Estado Novo.

O Comando Supremo da Revolução governou o país até a eleição indireta e posse do presidente Humberto de Alencar Castello Branco, no dia 15 de abril de 1964. Em 1961, quando da renúncia do presidente Jânio Quadros, os chefes militares aceita- ram a solução política apresentada pelas principais lideranças partidárias, que foi o parlamentarismo híbrido, como forma de viabilizar a posse do vice-presidente constitucional. Em 1964, a alta hierarquia militar não aceitou qualquer solução po- lítica, optando pela ação cirúrgica do Ato Institucional. Esta foi a diferença marcan- te entre aquelas duas datas históricas.

Desde a deposição do presidente João Goulart, em 31 de março, os três ministros militares exerceram poder discricionário, cassando mandatos, suspendendo di- reitos políticos, por dez anos, instaurando Inquéritos Policiais Militares (IPMs), ainda que os indiciados fossem civis, e criando a CGI (Comissão Geral de Inves- tigação), presidida pelo marechal Taurino de Resende, que detinha poderes ili- mitados no exercício de suas funções. Só no primeiro ato do Comando Supremo da Revolução, baixado a 10 de abril 1964, foram cassados quarenta deputados,

89 Nasce o Regime Militar

além dos ex-presidentes Jânio Quadros e João Goulart – todos com os direitos políticos suspensos por dez anos.

Entre os parlamentares cassados, destacavam-se Almino Affonso (PTB-SP),minis- tro do Trabalho; Abelardo Jurema (PSD-PB), ministro da Justiça; Francisco Julião (PSB-PE); Bocaiúva Cunha (PTB-RJ); Paiva Muniz (RJ), presidente nacional do PTB; Elói Dutra (PTB), vice-governador do Estado da Guanabara; Sérgio Magalhães (PTB-RJ), primeiro-vice-presidente da Câmara dos Deputados; Leonel Brizola (PTB-RJ); José Aparecido de Oliveira (UDN-MG); e Plínio de Arruda Sampaio (PDC-SP).

O Ato Institucional funcionou como verdadeiro divisor de águas. A partir de sua outorga, o Brasil começou a ser dominado pelos militares. Lembro-me de que, nos primeiros tempos, o assessor parlamentar do Exército era o coronel Rui Castro, que tinha formação radical. Oficial de gabinete do ministro da Guerra, general Arthur da Costa e Silva, Rui Castro não fazia qualquer reserva – achava que a Revolução fracassara na medida em que não fechara o Congresso, não dissolvera o Supremo Tribunal Federal e não prendera, imediatamente, corruptos e subversivos, que dizia serem bastante conhecidos. De posição tão extremada, acabou por se incompati- bilizar com o ministro da Guerra e os principais chefes militares, sendo removido para a guarnição de Ijuí, no Rio Grande do Sul.

Durante o exercício desse poder discricionário, foram mais de 4.700 as cassações de mandatos e suspensões de direitos políticos por dez anos. As punições também incluíam confisco de bens, reformas, transferências para a reserva, cassações de aposentadorias, demissões do serviço público, intervenções em sindicatos e entida- des de classe com perda de mandatos – tudo isso sem processo formal em que fosse assegurado o exercício do direito de defesa.

Os cidadãos atingidos por essas sanções estavam impedidos de manter contas em estabelecimentos oficiais de crédito e de fazer qualquer tipo de transação com o Es- tado. Também estava proibida a concessão de passaporte, uma vez que eram consi- derados proscritos. Caso estivessem no exterior, não tinham direito a receber vistos em seus passaportes para retornar ao Brasil.

Foram aplicadas severas sanções disciplinares aos praças integrantes da Marinha e da Aeronáutica, envolvidos nas sublevações de cabos e marinheiros, ocorridas nos dias 25, 26 e 27 de março de 1964, no Rio de Janeiro: na Marinha, foram atingidos por atos de expulsão, condenação ou licenciamento 1.437 marinheiros e fuzileiros navais; na Aeronáutica, foram expulsos ou licenciados 86 cabos. Os atingidos que constavam das listas de punição eram informados pelos boletins

90 O Congresso em Meio Século | 2a Edição

radiofônicos da Voz do Brasil. Não podiam sair do país. Eram banidos dentro do próprio território nacional.

Em razão do açodamento com que foram praticadas as diferentes sanções discri- cionárias, ocorriam, inclusive, enganos. O pior é que, consumado o erro, não havia como retificá-lo. O acusado não tinha direito de recorrer. Há vários exemplos. Bas- ta citar o do deputado Guerreiro Ramos (PTB-GB), sociólogo de reputação inter- nacional, cassado por engano.

O presidente do PTB, deputado Paiva Muniz, que não hostilizava o regime, tam- bém foi vítima de engano: confundido como um homônimo, sofreu cassação e não pôde recorrer. O deputado Josué de Castro (PTB-PE), sociólogo conhecido internacionalmente pelo seu livro Geografia da fome, foi outro político e intelec- tual importante cassado por engano. Ficou tão magoado, que se mudou para a França, onde viria a falecer.

Castello Branco

No discurso de posse na Presidência da República, em 15 de abril de 1964 – de- pois de eleito indiretamente pelo Congresso Nacional – o presidente Humberto de Alencar Castello Branco assegurou que a intervenção militar fora praticada em nome da democracia, sendo compromisso inarredável das Forças Armadas o seu caráter transitório e corretivo. Destinado a cumprir o resto do mandato do presi- dente João Goulart, Castello, porém, teve o seu prorrogado pela Emenda Constitu- cional no 9, de 22 de julho de 1964.

No discurso de posse, proferido perante o Congresso Nacional, afirmou em certo trecho: “Meu procedimento será o de um chefe de Estado sem tergiversações no processo para a eleição de um brasileiro a quem entregarei o cargo a 31 de janeiro de 1966”. Não foi o que aconteceu. Seu mandato foi prorrogado por um ano, em votação dramática de emenda de iniciativa do senador João Agripino (UDN-PB) à proposta de emenda constitucional em votação de iniciativa do próprio presidente, aprovada por apenas um voto, que assegurou o quórum da votação.

Castello ganhou um ano, concluindo seu mandato a 15 de março de 1967, quando transmitiu o poder ao marechal Costa e Silva. A sessão do Congresso que aprovou a referida emenda foi presidida pelo senador Auro de Moura Andrade. O processo de votação foi nominal e a descoberto. Como primeiro-secretário da Câmara, o deputado Henrique La Rocque (PSP-MA) fazia a chamada dos deputados, anotava a natureza de cada voto e proclamava o resultado. Como era míope, pediu-me que

91 Nasce o Regime Militar

o ajudasse na chamada indicando o nome de cada votante. Ao término da chamada, verificou-se que faltava um voto para atingir o quórum exigido para aprovação de emenda constitucional, que era, àquele tempo, de maioria absoluta. Moura Andra- de suspendeu a sessão aguardando a chegada de algum votante.

Pelas normas do Regimento Comum, o presidente do Congresso deveria ter declara- do que a emenda estava prejudicada, mandando arquivá-la. Naquelas circunstâncias, era impossível o cumprimento do Regimento, o que traria consequências imprevisí- veis. Observou-se da Mesa, onde me achava, que o senador Daniel Krieger conduzia o deputado Luís Bronzeado (Arena-PB), solicitando que Moura Andrade reabrisse a sessão. Bronzeado declarou ao microfone que, tendo de atender a uma ligação te- lefônica, foi à Mesa e comunicou pessoalmente ao secretário-geral, eu próprio, que quando seu nome fosse anunciado informasse que votaria pela prorrogação.

Moura Andrade voltou-se para mim e indagou se o fato era verdadeiro. Alguém, que não identifiquei, sussurrou ao meu ouvido: “Confirma, Paulo, sob pena de fe- charem o Congresso Nacional”. A expectativa era grande à minha volta. Não tive alternativa. Disse ao senador Auro de Moura Andrade que o fato era verdadeiro, o que o levou a proclamar a aprovação da emenda constitucional e a encerrar a ses- são. Creio que tive, no momento, uma “restrição mental”, como afirmou o marechal Lott, ao justificar seu silêncio sobre o contragolpe que desferiu na madrugada do dia 11 de novembro de 1955. A Emenda Constitucional no 9 foi promulgada a 22 de julho de 1964.

Essa decisão tinha graves implicações políticas. Em primeiro lugar, suprimia, como suprimiu, a eleição direta (presidencial) para realizar-se em 3 de outubro de 1965 e para a qual eram candidatos notoriamente lançados o governador Carlos Lacer- da e o ex-presidente Juscelino Kubitschek. O próprio Castello incluiu na emenda dispositivo vedando expressamente a sua reeleição. Tal fato precipitou a sucessão presidencial, permitindo que se impusesse a candidatura do ministro da Guerra, general Arthur da Costa e Silva, que ultrapassou a liderança de Castello Branco. Ao viajar para o exterior, Costa e Silva afirmou, o que foi interpretado como uma provocação a Castello, que iria e voltaria ministro de Estado.

Em 24 de agosto de 1964, quando se registrava o décimo aniversário do suicídio do presidente Getúlio Vargas, o deputado Doutel de Andrade (SC), líder do PTB, procurou-me, durante a sessão, para declarar que desejava ler manifesto lança- do pelo ex-presidente João Goulart, exilado no Uruguai, em que analisava a sua posição em face do regime militar. Disse a Doutel, de quem era amigo pessoal,

92 O Congresso em Meio Século | 2a Edição

que essa leitura poderia levar à cassação de seu mandato. Retrucou-me que não poderia deixar de ler o documento, pela sua condição de líder e, mais ainda, de compadre do ex-presidente da República.

No manifesto, o presidente João Goulart analisava o seu governo, as reformas de base que propusera ao Congresso Nacional e a reação que sofrera até a deposição. Referia-se, ainda, à longa conspiração que terminou por depô-lo e revelava que não concordara com a resistência para não impor mais sacrifícios ao povo e nem favo- recer a divisão do país. Vale a pena transcrever algumas de suas afirmações:

Dominam a Nação o arbítrio e a opressão. Mas ela vai animada, brasileiros, da mesma fidelidade aos ideais de uma democracia pela qual sempre lutei, democracia de todos e para todos, e por isso contra o sistema da mistificação tecnicamente orientada, que, através de longa e insidiosa conspiração, assaltou o país e hoje o infelicita e o humilha.

E mais adiante:

Duas vezes preferi o sacrifício pessoal de poderes constitucionais à guerra civil e ao ensanguentamento da Nação. Duas vezes evitei a luta entre irmãos. Só Deus sabe quanto me custou de força interior a deliberação que me impus e pude impor a milhões de patriotas.

Em outro trecho do manifesto, diz o ex-presidente:

Este ano, no dia 1o de abril, depois de saber que o Congresso Nacional declarara abusivamente vaga a Presidência da República, enquanto no território nacional se encontrava notoriamente o seu titular legítimo; depois de recusar-me à renúncia, que nunca admiti, ou aceitar a desmoralização de trair os ideais que sempre defendi, resolvi pelo conhecimento real da situação militar não consentir no massacre do povo. Não só porque contrariava a minha formação cristã e liberal, mas porque eu sabia que o povo estava desarmado. Eu sabia que a subversão fartamente anunciada e muito bem paga na profusão de rádios, jornais e televisão, pela má-fé da reação e por seus interesses subalternos, era o preparo da mentira do perigo comunista que iria constituir o ponto de partida para a concretização da quartelada, a fim de que, assim, pudessem esmagar as justas aspirações populares que meu governo defendia.

Logo em seguida à leitura desse manifesto do ex-presidente da República deposto, o ministro da Guerra, marechal Costa e Silva, reagiu à sua leitura, distribuindo nota oficial à imprensa. Na sessão do dia 27 de agosto, o deputado Doutel de Andrade ocupou a tribuna para afirmar:

93 Nasce o Regime Militar

Serenamente, tranquilamente, de consciência limpa, aqui me encontro para correr o meu destino. Se o preço porventura a ser exigido de mim pela luta em que me empenho visando ao restabelecimento da ordem legal e constitucional no país for o meu mandato, for a minha cabeça, estou pronto a pagá-lo. A vida, Senhor Presidente, por vezes, é apenas um detalhe, um detalhe secundário, irrelevante, no processo de luta dos povos pela sua emancipação social e econômica e, mesmo na hipótese de que tão dura e pesada sanção sobre mim venha a recair, fique V.Exa. certo, fique a Casa certa e fique também a Nação convicta de que outros me substituirão na liderança do Partido Trabalhista Brasileiro.

Nas eleições diretas para governador, de 3 de outubro de 1965, em doze estados, a Oposição elegeu o embaixador Francisco Negrão de Lima, na antiga Guanaba- ra, e Israel Pinheiro, em Minas Gerais. No dia seguinte, o ex-presidente Juscelino Kubitschek chegava do exterior, sendo convocado a depor na Polícia do Exército, no Rio de Janeiro. Inconformados com o resultado eleitoral, oficiais da linha-dura se sublevaram, na Vila Militar, no Rio de Janeiro, e em guarnições de Minas Gerais, no dia 5 de outubro de 1965.

Em 8 de outubro, Carlos Lacerda ocupou microfones e câmeras das estações de televisão, no Rio de Janeiro, para romper com o presidente Castello Branco, a quem acusou de “traidor da revolução”, ao mesmo tempo em que fazia um apelo para que as Forças Armadas se colocassem “a serviço do povo”. Também renunciou à sua candidatura a presidente da República. No dia 11, o senador Milton Campos de- mitia-se do Ministério da Justiça, sendo substituído, interinamente, por Luiz Viana Filho, e depois por Juraci Magalhães.

Carlos Lacerda exigia que não fosse dada posse a Negrão de Lima, que derrotara seu candidato, o professor Flexa Ribeiro, e a Israel Pinheiro, na Guanabara e em Mi- nas Gerais, respectivamente. Seu vice-governador, Rafael de Almeida Magalhães, fora visto em Campinho, no Rio de Janeiro, conversando com oficiais, quando da sublevação que irrompeu na Vila Militar. Curioso é que o AI-2, exigência de Lacer- da e da linha-dura, acabou se virando contra ambos.

O presidente Castello Branco havia solicitado ao Congresso, no dia 13 de outubro, a aprovação de proposta de emenda constitucional, denominada Estatuto dos Cas- sados, que impunha limites aos poderes dos governadores, nas áreas econômica e de segurança, e transferia da Justiça comum para a Justiça militar o julgamento de civis acusados de prática de crimes contra a segurança nacional.

Na madrugada do dia 26 de outubro, percebendo que não haveria quórum para aprovar aquela emenda constitucional, o senador Filinto Muller postou-se na por-

94 O Congresso em Meio Século | 2a Edição

taria do Congresso para recomendar que voltassem às suas casas os parlamentares que estavam chegando para participar da votação. A sessão foi encerrada por falta de quórum, não havendo deliberação. O governo retirou a emenda do Congresso.

Comandante da Divisão Blindada, o general de brigada Plínio Pitaluga colocou os carros de combate em formação, em Campinho, como se estivessem prontos para descer rumo ao centro da cidade do Rio de Janeiro. O ministro da Guerra, general Costa e Silva, acompanhado dos oficiais de seu gabinete, foi pessoalmente à Vila Militar abafar a sublevação contra o governo Castello Branco, o que lhe valeu a futura indicação para sucedê-lo na Presidência da República, conforme consenso que se formou à época.

Naquela fase, a fermentação militar chegou a produzir várias propostas de atos institucionais nas guarnições. No dia 27 de outubro, o presidente Castello Branco baixou o AI-2, que alterou profundamente a Constituição de 1946 – que o AI-1 mantivera – fortalecendo os poderes do presidente da República. Também mo- dificou a composição do Supremo Tribunal Federal, ampliando-a de onze para dezesseis ministros, além de extinguir os partidos políticos e estabelecer a elei- ção indireta do presidente da República (Congresso), dos governadores (Assem- bleias) e prefeitos (Câmaras Municipais). O AI-2 feriu de morte a candidatura de Juscelino Kubitschek e Carlos Lacerda e representou a capitulação de Castello à linha-dura, ao mesmo tempo que consolidou a candidatura de seu ministro da Guerra, general Costa e Silva.

Também dispôs que a Justiça Militar teria competência para julgar civis acusados de praticar atos contra a segurança nacional. Já no dia 20 de novembro de 1965, o Ato Complementar no 4 impunha o bipartidarismo, prevendo a criação de apenas dois partidos políticos: a Arena (Aliança Renovadora Nacional) e o MDB (Movi- mento Democrático Brasileiro), criados posteriormente. Nos termos do referido Ato, deputados e senadores que deixassem de subscrever documentos de criação dos dois partidos não poderiam ser candidatos. Eis o seu texto:

Art. 1o Aos membros efetivos do Congresso Nacional, em número não inferior a 120 deputados e 20 senadores, caberá a iniciativa de promover a criação, dentro do prazo de 45 dias, de organizações que terão, nos termos do presente Ato, atribuições de partidos políticos enquanto estes não se constituírem.

95 Nasce o Regime Militar

O artigo 13 advertia:

Os nomes, siglas, legendas e símbolos dos partidos extintos não poderão ser usados para a designação das organizações de que trata este Ato, nem utilizados para fins de propaganda escrita ou falada.

Parágrafo único. É vedada a designação ou denominação partidária bem como a solicitação de adeptos com base em credos religiosos ou em sentimentos regionalistas de classe ou de raça.

O artigo 18 estabelecia que eram proibidas alianças ou coligações entre as duas novas organizações partidárias – a uma cabia o papel de apoiar o governo e à outra de fazer oposição. O AI-2 é muito mais severo do que aquele que foi outorgado a 9 de abril de 1964, quando afirma que

a autolimitação que a Revolução se impôs no Ato Institucional de 9 de abril de 1964 não significa, portanto, que, tendo poderes para limitar-se, se tenha negado a si mesma por essa limitação ou se tenha despojado da carga de poder que lhe é inerente como movimento.

O presidente Castello Branco instituiu a chamada chapa única na eleição de pre- sidente e vice-presidente da República, governador e vice-governador, prefeito e vice-prefeito, o que significava que os parlamentares de um partido não podiam votar em candidato de outro partido – salvo se a agremiação não tivesse candidato. Foi baixado o Ato Complementar no 16, de 18 de julho de 1966, que assim estabe- lecia, no artigo 1o, letra a:

Será nulo o voto de senador ou deputado federal que, inscrito numa organização partidária, por ocasião da respectiva convenção para escolha de candidato a presidente e vice-presidente da República, sufrague candidato registrado por outra organização partidária.

A reação do sistema demorou, mas veio. Em 12 de outubro de 1966, o presiden- te Castello Branco cassou os mandatos de seis deputados: Doutel de Andrade (PTB-SC), Humberto El-Jaick (PSD-RJ), Abraão Fidélis de Moura (PTB-AL), Cé- sar Prieto (PTB-RS), Adib Chamas (PSD-SP) e Sebastião Pais de Almeida (PSD- MG). Os presidentes da Câmara e do Senado, Adaucto Lúcio Cardoso e Auro de Moura Andrade, reagiram a essas cassações, enquanto os punidos decidiram permanecer em Brasília.

96 O Congresso em Meio Século | 2a Edição

O presidente Castello Branco comunicou ao presidente da Câmara dos Deputa- dos que havia baixado os atos de cassação de mandatos daqueles deputados. Na qualidade de presidente da Câmara, Adaucto Lúcio Cardoso entendeu que devia submeter o comunicado ao plenário, mesmo porque, na sessão de 16 de agosto de 1966, havia declarado: “[...] posso reafirmar a esta Casa aquilo que venho afirman- do solenemente desde que assumi a Presidência: nenhum mandato será cassado na Câmara dos Deputados sob minha Presidência”.

Ponderei que os atos revolucionários eram insusceptíveis de exame por parte do Congresso ou do Poder Judiciário. Adaucto insistiu em seu propósito de levar o problema ao exame do Plenário da Câmara, o que obrigou o presidente Castello Branco a decretar, por trinta dias, o recesso do Poder Legislativo, através do Ato Complementar no 23, de 20 de outubro, até 22 de novembro de 1966, ou seja, sete dias depois das eleições legislativas (até então, haviam sido cassados mais de 20% dos mandatos conquistados nas eleições de 1962).

Castello assim justificou sua decisão, considerando que se constituíra

naquela Casa do Congresso Nacional, por motivo e ausência justificada da grande maioria de seus membros, um agrupamento de elementos contrarrevolucionários, com a finalidade de tumultuar a paz pública e perturbar o próximo pleito de 15 de novembro, embora comprometendo o prestígio e a autoridade do Poder Legislativo.

Dada a intransigência de Adaucto, intolerável para o regime, aconselhei-o a subme- ter a questão ao exame da Comissão de Constituição e Justiça da Câmara, o que foi feito. A CCJ aprovou parecer sustentando que decisões tomadas com fundamento nos atos institucionais não eram passíveis de exame, devolvendo o processo à Mesa. A matéria foi distribuída ao deputado Batista Ramos, primeiro-vice-presidente, que apresentou voto, posteriormente, ratificando a decisão da CCJ.

Isolado na posição que adotou, Adaucto Lúcio Cardoso comunicou-me, no início da Ordem do Dia da sessão do dia 28 de novembro de 1966, que estava decidido a renunciar à Presidência da Câmara, mostrando-se interessado em conhecer os pro- cedimentos regimentais pertinentes. Lembrei que havia orador na tribuna e que, uma vez encerrado o discurso, ele poderia comunicar ao Plenário a sua decisão, suspendendo, em seguida, a sessão, a fim de ser convocado o primeiro-vice-presi- dente e substituto legal, para reabri-la.

97 Nasce o Regime Militar

Alertei os deputados Raimundo Padilha, líder do governo e amigo íntimo de Adaucto, e Batista Ramos, primeiro-vice-presidente. Aflitos, ambos procuraram Adaucto na tentativa de demovê-lo daquele propósito. Voltaram otimistas da conversa, garantin- do que ele se convencera da inconveniência da renúncia. Qual não foi a surpresa de ambos e do Plenário quando Adaucto leu documento da Presidência renunciando ao cargo e suspendendo a sessão. Assumiu a Presidência o deputado Batista Ramos, que completou o restante do mandato e se reelegeu presidente em 1967.

Não obstante o constrangimento causado ao governo, o presidente Castello Branco nomeou Adaucto Lúcio Cardoso ministro do Supremo Tribunal Federal, em 14 de fevereiro de 1967, véspera da transmissão do poder ao marechal Costa e Silva. Era evidente o caráter insólito de tal nomeação, dada a intolerância do regime com atos de rebeldia como os praticados por Adaucto. O senador Daniel Krieger, que acumulava a presidência da Arena com a liderança do governo no Senado, disse que Castello entendia ser questão de honra cumprir o compromisso assumido an- teriormente com Adaucto e seus amigos da UDN.

Nas eleições de 15 de novembro de 1966, registraram-se 7% de votos nulos e 14% de votos em branco. A Arena conquistou 277 cadeiras na Câmara dos Deputados, 23 a mais do que as 254 de antes, enquanto a bancada do MDB se reduzia de 149 para 132. Foi um verdadeiro rolo compressor.

Embora de espírito autoritário, por força de sua formação militar, Castello Branco revelou maior sensibilidade política do que o sucessor, marechal Costa e Silva. Seu discurso de posse não fora longo, mas era peça politicamente importante, dando a entender claramente que a intervenção militar seria transitória. Contudo, não teve condições de lutar pelo restabelecimento do regime democrático. Castello morreria logo depois de deixar o poder, em desastre de aviação. Muito se especulou a respeito de uma conspiração para eliminar o ex-presidente, mas até hoje nada ficou provado.

Castello revelava preocupação em eleger um civil para sucedê-lo, sendo atropela- do pela candidatura impositiva de seu ministro da Guerra. Não obstante, empe- nhou-se pessoalmente pela aprovação da nova Constituição que substituiu a de 1946, a Constituição outorgada de 1967. Em 7 de dezembro de 1966, baixou o Ato Institucional no 4, convocando extraordinariamente o Congresso Nacional para, no período de 12 de dezembro de 1966 a 24 de janeiro de 1967, votar o projeto de Constituição que estava enviando.

O projeto havia sido elaborado pela Comissão Especial de Juristas, com base no Decreto no 58.198, de 15 de abril de 1966. Compunham a referida comissão o

98 O Congresso em Meio Século | 2a Edição

jurisconsulto Levy Carneiro (presidente), os ministros Orozimbo Nonato e Sea- bra Fagundes, e o professor Temístocles Brandão Cavalcanti. Concluído, o traba- lho foi encaminhado com exposição de motivos ao presidente da República pelo ministro da Justiça, Carlos Medeiros da Silva. A nova Constituição, que retirou do Congresso competências privativas, ampliando as prerrogativas do Poder Execu- tivo, entrou em vigor a 15 de março de 1967, no mesmo dia em que o presidente Costa e Silva tomava posse.

O Ato Institucional no 4, que convocou o Congresso para votar o projeto de Cons- tituição do governo Castello, previa a aprovação tácita da proposta original, com as emendas que fossem aprovadas, se não se concluísse a sua votação até o dia 24 de janeiro de 1967. A matéria entrou em Ordem do Dia, em sessão do Congresso Nacional, exatamente nesse dia. A discussão e votação prolongaram-se por longo tempo, ficando evidente que o projeto constitucional não seria aprovado no prazo previsto. Diante disso, o senador Auro de Moura Andrade, que presidia a sessão, chamou-me para determinar que os três relógios existentes no plenário, à época, fossem paralisados. Estranhei seu procedimento, mas ele insistiu na determinação. Comuniquei o fato ao diretor-geral, Luciano Brandão.

Após alguns minutos, muitos parlamentares perceberam que os relógios estavam paralisados, pouco antes da meia-noite, e começaram a protestar. Auro de Moura Andrade não tomou conhecimento. Decorridas mais de duas horas, até que fosse completado o processo de votação, inclusive da redação final, Moura Andrade cha- mou-me para determinar que os relógios voltassem a funcionar. Ponderei-lhe que haveria necessidade de acertá-los das 23h50 para as 2 horas da madrugada, o que estarreceria mais ainda o Plenário. Auro concordou comigo e encerrou a sessão.

99 Capítulo VII A Crise do AI-5

Após a morte do estudante Edson Luís, durante passeata estudantil que começou no restaurante do Calabouço, na cidade do Rio de Janeiro, no dia 28 de março de 1968, o ambiente político ficou também agitado na Universidade de Brasília e nos cur- sos públicos de segundo grau. Era reitor da UnB o professor Caio Benjamim Dias, e vice-reitor o professor José Carlos Azevedo. No dia 29 de março, foi realizada grande passeata de protesto na Avenida W-3, em Brasília, da qual participaram numerosos parlamentares, entre eles os deputados Martins Rodrigues (CE), Mário Covas (SP), Hélio Navarro (SP), que durante a manifestação foram agredidos pela polícia.

Em 2 de abril de 1968, nota da prefeitura do Distrito Federal comunicava que não seria mais tolerada qualquer manifestação, inclusive no campus da Universidade de Brasília. Em consequência, no dia 3, o reitor baixou a Portaria no 375 proibindo reuniões na UnB, “inclusive dos órgãos de representação estudantil”.

Em 11 de julho de 1968, o campus da Universidade de Brasília foi invadido por tropas militares com o objetivo de dissolver manifestação estudantil e a pretexto de resgatar um militar que seria refém dos estudantes. A repressão foi extremamente severa. Alguns parlamentares federais, posteriormente cassados, sofreram espan- camento, assim como os estudantes que lá se achavam reunidos. Estavam entre os agredidos os deputados Martins Rodrigues (CE), Mário Covas (SP), David Lerer (SP), Mário Gurgel (ES), Doin Vieira (SC), Brito Velho (RS), e os senadores Aurélio Viana (GB) e Argemiro Figueiredo (PB).

Outro acontecimento houve que concorreu para agravar as relações do Congres- so com os militares: a constituição de uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) para estudar a situação do ensino no Brasil. Diante do episódio da invasão do campus da UnB, a CPI passou a investigar aquelas violências, convidando para prestar depoimento o coronel Alzir Nunes Gay, que fora o comandante da tropa invasora da Universidade.

No dia em que foi convocado, o governo homenageava a Rainha Elisabeth II, da In- glaterra, então visitando o Brasil. O coronel Alzyr Nunes Gay compareceu, às 19 ho- ras, à reunião da CPI, com farda de gala e condecorações, pois era convidado para o banquete de gala oferecido à Rainha da Inglaterra. Depois de horas de interpelação, o

101 A Crise do AI-5

coronel solicitou ao presidente da comissão, deputado Celestino Filho, que abreviasse seu depoimento, para que pudesse comparecer à recepção.

O presidente e todos os membros da CPI concordaram, educadamente, porém as perguntas foram se sucedendo de tal forma que o coronel solicitou permissão para telefonar e pedir à sua esposa que comparecesse ao banquete acompanhada de um casal amigo. Os trabalhos da comissão prosseguiram e o coronel só terminou seu depoimento no início de manhã.

A atmosfera era pesada e intranquila. Encontrava-me na Mesa que presidia a sessão da Câmara, no dia 3 de setembro de 1968, quando o deputado Márcio Moreira Al- ves proferiu seu famoso discurso no “pinga-fogo” (Pequeno Expediente). Lembro- me como se fosse hoje. Foi esse discurso que serviu de pretexto para o processo que os ministros militares moveram no Supremo Tribunal Federal contra o parlamen- tar, por iniciativa do presidente da República, e do qual resultou a eclosão da mais grave crise político-institucional, desde o advento do regime militar, cujo desfecho foi a edição do Ato Institucional no 5, a 13 de dezembro de 1968.

Como se trata de peça importante no processo de “endurecimento” do regime militar, embora o autor tenha se retratado, julgo que o discurso merece ser transcrito na íntegra:

Senhor Presidente e Senhores Deputados, todos reconhecem, ou dizem reconhecer, que a maioria das Forças Armadas não compactua com a cúpula militarista que perpetra violências e mantém este país sob regime de opressão. Creio haver chegado, após os acontecimentos de Brasília [referia-se à invasão do campus da UnB], o grande momento de união pela democracia.

Este é, também, o momento do boicote: as mães brasileiras já se manifestaram; todas as classes sociais clamam o seu repúdio à violência. No entanto, isto não basta. É preciso que se estabeleça, sobretudo por parte das mulheres – como já começou a se estabelecer nesta Casa por parte de mulheres de parlamentares da Arena – o boicote ao militarismo.

Vem aí o Sete de Setembro. As cúpulas militaristas procuram explorar o sentimento de patriotismo do povo e pedirão aos colégios que desfilem junto com os algozes dos estudantes. Seria necessário que cada pai, cada mãe, se compenetrasse de que a presença de seus filhos nesse desfile é um auxílio aos carrascos que os espancam e os metralham nas ruas.

Portanto, que cada um boicotasse esse desfile. Esse boicote pode passar, também – sempre falando de mulheres – às moças, àquelas que dançam com os cadetes e namoram os jovens oficiais. Seria preciso fazer hoje no Brasil com

102 O Congresso em Meio Século | 2a Edição

que as mulheres de 1968 repetissem as paulistas da Guerra dos Emboabas e recusassem entrada à porta de sua casa àqueles que vilipendiam a Nação, recusassem aceitar aqueles que silenciam e, portanto, que se acumpliciam. Discordar em silêncio pouco adianta. Necessário se torna agir contra os que abusam das Forças Armadas, falando e agindo em seu nome.

Creio, Senhor Presidente, que é possível resolver essa farsa, essa “democradura”, esse falso entendimento, pelo boicote. Enquanto não se pronunciarem os silenciosos, todo e qualquer contacto entre civis e militares deve cessar. Porque só assim conseguiremos fazer com que este país volte à democracia.

Só assim conseguiremos fazer com que os silenciosos que não compactuam com os desmandos dos seus chefes publicamente se manifestem contra o ato ilegal e arbitrário dos seus superiores.

Presidia a sessão o deputado Henrique La Rocque (Arena-MA). O discurso não despertou maior interesse, como, aliás, costuma acontecer com os que são pro- nunciados no Pequeno Expediente, com duração máxima de cinco minutos. A re- percussão no meio militar surgiu depois do ocorrido. Posteriormente, diante do impacto negativo que teve no regime o curto pronunciamento de Márcio Moreira Alves, o deputado Henrique La Rocque receou ser acusado de omissão, por não ter cassado a palavra do orador. Ele desfrutava de grande conceito, pelo temperamento humano e conciliador. Era incapaz de praticar qualquer gesto enérgico, como cas- sar palavra de colega.

O presidente da República encaminhou, porém, ao Supremo Tribunal Federal, através do procurador-geral da República, a representação dos ministros milita- res para processar o deputado Márcio Moreira Alves, por aquele discurso, consi- derado ofensivo às Forças Armadas. Ao chegar à Câmara, o pedido de licença foi despachado para a Comissão de Constituição e Justiça, sendo designado relator o deputado Lauro Leitão. O processo tramitou com velocidade acima dos proce- dimentos tradicionais.

Em poucos dias, o deputado Lauro Leitão entregava seu parecer favorável à con- cessão da licença pela Câmara dos Deputados a fim de que o parlamentar fosse processado pelo Supremo Tribunal Federal, nos termos da Lei de Segurança Nacio- nal. Assumiu a liderança do governo o deputado Geraldo Freire (Arena-MG), em substituição ao deputado Ernani Sátiro (UDN-PB), que havia adoecido.

Ao tomar conhecimento de que a maioria dos parlamentares governistas, na Co- missão de Constituição e Justiça, votaria contra a concessão da licença pedida pelo Supremo Tribunal Federal, o deputado Geraldo Freire promoveu a substituição de

103 A Crise do AI-5

todos eles em processo inédito na história da Casa. O deputado Guilherme Machado, uma das mais brilhantes figuras da UDN mineira, pediu ao líder o seu desligamento da comissão, alegando que votaria contra. O líder não concordou em substituí-lo. Pediu, apenas, que não trabalhasse contra a aprovação do parecer de Lauro Leitão. Um conhecido deputado mineiro, meu amigo pessoal, fez idêntico pedido, que levei ao líder. Geraldo mostrou-se surpreso, pois contava o seu voto como certo.

Informei ao deputado da surpresa que tivera o líder ao tomar conhecimento de seu pedido. O parlamentar explicou-me que não pediu desligamento da comissão por- que julgava mais conveniente aos seus interesses políticos a destituição, que teria maior repercussão na imprensa mineira. Diante disso, o líder do governo substituiu referido deputado, ao mesmo tempo que começou a fazer levantamento minucioso junto à bancada do governo para saber com precisão quem votaria a favor e quem se manifestaria contra a concessão da licença para processar Moreira Alves. Como o voto era secreto, havia sempre dúvidas a respeito da sinceridade das respostas.

Os militares, a essa altura, pressionavam de modo ostensivo, argumentando que, se a Câmara não aprovasse a licença, a alternativa seria o fechamento do Congresso. Por isso, estavam preocupados com a votação do parecer na comissão. Muitos des- ses militares pediram-me que fizesse uma avaliação sobre o resultado da votação. Também conversavam com as lideranças sondando o terreno. Naquele momento a situação ainda era de equilíbrio.

Reunida em 11 de dezembro de 1968, a Comissão de Constituição e Justiça aprovou o parecer do deputado Lauro Leitão, favorável à concessão da licença, pela dife- rença de um voto. O discurso de maior destaque foi pronunciado pelo deputado Oscar Pedroso Horta, que enumerou os fundamentos constitucionais e éticos que recomendavam negar a licença.

Ao proclamar o resultado da votação na Comissão de Constituição e Justiça, o presidente, deputado Djalma Marinho (Arena-RN), que não precisava votar, pro- nunciou discurso em que anunciava posição contrária e renunciava ao cargo, ter- minando por invocar o teatrólogo espanhol Calderón de La Barca, para declarar: “Ao rei tudo, menos a honra”.

O governo atribuiu tanta relevância à posição política assumida pelo deputado Os- car Pedroso Horta, que o presidente Costa e Silva propôs a cassação de seu mandato, em reunião do Conselho de Segurança Nacional, após a edição do Ato Institucio- nal no 5. Coube ao vice-presidente Pedro Aleixo, no entanto, manifestar-se contra a cassação do mandato do parlamentar paulista, argumentando que se tratava de

104 O Congresso em Meio Século | 2a Edição

cidadão de conduta ilibada, além de uma das maiores e mais legítimas expressões de nosso mundo jurídico e intelectual.

O presidente Costa e Silva acabou por endossar a veemente defesa que o vice-presi- dente Pedro Aleixo fez de Oscar Pedroso Horta, mandando arquivar o processo con- tra ele, ainda que fizesse comentário irônico: “Em razão de todos esses méritos, quase que o governo foi derrotado na votação da comissão.” As mais importantes lideranças do Congresso estavam advertidas de que haveria resposta militar diante da provável decisão do Plenário da Câmara dos Deputados negando o pedido de licença.

A Tentativa de Evitar o AI-5

O vice-presidente Pedro Aleixo sugeriu projeto de resolução permitindo à Câma- ra dos Deputados aplicar sanção interna corporis ao deputado que exorbitasse no exercício do mandato. Foi uma tentativa para evitar o agravamento da situação política, gerada pelo discurso do deputado Márcio Moreira Alves, mas a iniciativa frustrou-se, por falta de apoio da Oposição parlamentar, que considerou cerceador de direitos constitucionais dos representantes do povo.

No relato dos acontecimentos que resultaram na edição do AI-5 confere-se pouca importância a essa iniciativa política do vice-presidente, que se tornou o Projeto de Resolução no 75, de 1968, subscrito pelo deputado Leonardo Mônaco (Arena-SP). Esse projeto é um primor de formulação, em termos jurídicos e de redação.

O processo era sumário. Apresentada a defesa, a Comissão Especial convocaria reu- nião para ouvir não mais que cinco testemunhas. Finda a inquirição das testemunhas e cumpridas as diligências, no prazo de dez dias, o relator era obrigado a apresentar seu parecer sobre o qual se pronunciariam, no prazo de três dias, verbalmente ou por escrito, os demais membros da Comissão Especial. Discutido, o parecer seria votado e remetido à Mesa da Câmara dos Deputados, no prazo de três dias.

O presidente da Câmara convocaria sessão para discutir e votar o parecer até oito dias após o seu recebimento. No prazo de três horas, o parecer seria objeto de dis- cussão, oferecendo-se ao acusado uma hora para a apresentação de sua defesa, de- pois do que seria encerrado o debate. O parecer seria votado imediatamente em sessão secreta. Declarado o procedimento do deputado incompatível com o decoro parlamentar, pelo voto de dois terços, mediante votação secreta, seria a resolução promulgada pelo presidente da Casa e publicada no Diário do Congresso Nacional, prevendo-se a convocação do suplente.

105 A Crise do AI-5

O vice-presidente Pedro Aleixo – que também redigiu, do próprio punho, densa e fundamentada justificativa para esse projeto de resolução – pediu-me que procu- rasse, em seu nome, o líder da Oposição, deputado Mário Covas (MDB-SP), para encarecer seu apoio à iniciativa da Câmara dos Deputados de punir Moreira Alves, a fim de evitar o desfecho desagradável.

Covas insurgiu-se contra a proposta do vice-presidente da República, sendo apoia- do por numeroso e agitado grupo de deputados que se achava em seu gabinete. Não houve meio de convencê-lo a aceitar a fórmula que tentava evitar que o Brasil mer- gulhasse na escuridão institucional. Covas repudiava a saída, encarando-a como uma humilhação que o governo e o regime impunham ao parlamento. E assim frustrou-se a única iniciativa política consistente destinada a evitar o apelo ao radi- calismo, implícito no Ato Institucional editado a 13 de dezembro de 1968.

Não se pode afirmar que essa proposição, uma vez aprovada, evitasse o salto do país na escuridão do arbítrio, mas era uma tentativa que fazia a cúpula política do partido que apoiava o governo, através de suas figuras mais representativas. Como se teve oportunidade de constatar, posteriormente, a doença e morte do presidente Costa e Silva, que sucedeu à outorga do AI-5, tornou inevitável o aprofundamento da intervenção militar, institucionalizando a violência como norma de ação do Es- tado. A intensificação dos atos de contestação por parte de organizações clandesti- nas serviu de pretexto para a ruptura da ordem constitucional.

Para Pedro Aleixo, a época que o Brasil vivia estava marcada por “profundo senti- mento de angústia universal”, por isso propôs:

Para que qualquer país atinja o desenvolvimento, sobretudo em ritmo acelerado, como é preciso que alcancemos a fim de afastarmos as ameaças que nos cercam, imprescindível se torna um mínimo de estabilidade política.

O vice-presidente advertia:

Assim, pois, como o Congresso delibera, solenemente, sobre a Constituição, verificando os poderes dos seus membros, cabe-lhe, igualmente, definir e fixar, de maneira definitiva e peremptória, os termos em que devem ser concebidos ou entendidos os seus privilégios e prerrogativas.

Socorria-se o vice-presidente da República do Grande dicionário da língua por- tuguesa, de Morais e Silva, para definir decoro: “Beleza moral resultante da hones­

106 O Congresso em Meio Século | 2a Edição

tidade e decência; compostura, correção moral; honra, pundonor; dignidade: quem despreza as leis do decoro expõe-se a todas as acusações.”

Vale a pena transcrever as conclusões feitas pelo vice-presidente no referido projeto de resolução:

1) Acreditamos que bem claro está nosso pensamento de que a inviolabilidade é indispensável à instituição parlamentar, uma vez que sem as garantias consagradas em nossa tradição constitucional deixaria praticamente de existir – atingida que estaria no que lhe seria mortal;

2) Da mesma forma achamos que abusos e crimes praticados por membros do Poder Legislativo não podem permanecer na impunidade absoluta, a priori, sob pena de desmoralização da instituição, da transformação da prerrogativa parlamentar em privilégios odiosos e insustentáveis, que afrontam a Democracia, a Lei, a Moral, terminando por se originar de tudo isso grave ameaça à democracia.

3) Compete ao próprio Poder Legislativo impor limites e punir o procedimento daqueles que, por abusos e crimes, se revelam incompatíveis com o decoro parlamentar e, dessa forma, com a democracia.

O projeto de resolução chegou a ser incluído na Ordem do Dia, sendo adiada sua discussão e votação em face de requerimento apresentado pelo líder da Oposição, Mário Covas. Não obteve êxito a única iniciativa política que poderia ter evitado o recurso ao arbítrio e à violência institucional.

O Golpe Anunciado

Era tal o interesse por uma rápida decisão da Câmara dos Deputados a respeito do pedido de licença, que o governo, por precaução, convocou o Congresso Nacional, extraordinariamente. Era praxe, àquela época, a recepção oferecida pelo presidente da República quando se aproximava o término da sessão legislativa. No início de dezembro de 1968, poucos dias antes da decisão da Câmara, o presidente Costa e Silva exprimiu a vários parlamentares, na recepção que ofereceu aos que o apoia- vam, o receio de que a sessão legislativa se encerrasse sem deliberação.

Naquela oportunidade, o presidente pronunciou veemente discurso, dizendo es- perar que a Câmara dos Deputados aprovasse o pedido de licença do Supremo Tribunal Federal para processar Márcio Moreira Alves. Não poucos parlamentares identificaram no discurso do presidente insinuação de que algo de anormal deveria acontecer, caso a Câmara negasse a concessão da licença.

107 A Crise do AI-5

Consoante análise que se tornara consensual no Congresso e na opinião pública, a iniciativa de processar o deputado Márcio Moreira Alves no Supremo Tribunal Federal, com base na Lei de Segurança Nacional, tivera o objetivo de criar, de forma deliberada, conflito insuperável entre o Congresso e o Poder Executivo, em pre- juízo do poder desarmado, como sempre ocorreu ao longo da história republica- na. Parlamentares que conversaram com o presidente Costa e Silva, dele ouviram: “Respeitarei a decisão que o Congresso adotar”.

Posteriormente, muitos dos que votaram contra a concessão da licença se julgaram enganados pelo presidente. Assim como todos os deputados que participaram de passeata de protesto, de braços dados, na Avenida W3-Sul, em Brasília, tiveram os mandatos cassados e os direitos políticos suspensos. Entre eles, estavam os deputa- dos Martins Rodrigues (cassado em 17/1/69), Mário Covas (cassado em 17/1/1969), líder do MDB, Doin Vieira (em 17/1/1969), Mário Gurgel (em 10/2/1969), David Lerer (em 30/12/1968) e Alencar Furtado (em 30/6/1977).

Em 12 de dezembro de 1968, a matéria foi levada à sessão plenária da Câmara dos Deputados. Em face do ambiente tenso e agitado que se vivia no Congresso, o presi- dente da Câmara, José Bonifácio, convocou as lideranças para prévio entendimento sobre a ordenação dos trabalhos a fim de evitar agitações nas galerias lotadas e tumultos no plenário. Bonifácio receava o que poderia acontecer depois, diante da certeza de rejeição do pedido de licença pela maioria esmagadora da Câmara.

O deputado mineiro não queria ser surpreendido em sessão de evidente importân- cia histórica. Solicitou-me que imaginasse as questões de ordem que poderiam ser levantadas em plenário, de modo que ele pudesse corresponder a elas consoante as normas regimentais. Apresentei três questões de ordem. Duas foram levantadas e respondidas, imediatamente. O deputado Martins Rodrigues viria a levantar uma terceira questão de ordem sobre o processo de votação, que não havíamos previsto. Mas as dúvidas que suscitou foram resolvidas satisfatoriamente.

De acordo com o esquema traçado, no dia da votação (12 de dezembro), falou, em primeiro lugar, o deputado Márcio Moreira Alves, que negou a intenção de ofender as Forças Armadas, fazendo uma retratação que repercutiu muito mal. Seu discurso foi considerado peça oratória de pouco valor para aquele momento histórico e insusceptível de alterar a crítica feita por ele aos militares. Depois de tecer considerações sobre o instituto das inviolabilidades parlamentares, Márcio Moreira Alves sublinhou:

108 O Congresso em Meio Século | 2a Edição

Buscam os inimigos do Congresso um pretexto. Acusam-me de injuriar as Forças Armadas. Nos processos penais de injúria, a ação é liminarmente suspensa quando o acusado nega seu ânimo de injuriar e o acusado aceita a explicação. Nego aqui e agora, que haja em qualquer tempo ou lugar injuriado as Forças Armadas. As classes militares sempre mereceram e merecem o meu respeito. O militarismo que pretende dominá-las e comprometer-lhes as tradições, transformando-as em sua maior vítima, esse militarismo – de formação criminosa que a civis e militares contamina – impõe-se ao nosso repúdio.

Entrego-me, agora, ao julgamento de meus pares. Rogo a Deus que cada um saiba julgar, em consciência, se íntegra deseja manter a liberdade dessa tribuna, que livre recebemos das gerações que construíram as tradições políticas do Brasil. Rogo a Deus que mereça a Câmara o respeito dos brasileiros, que possamos no futuro andar pelas ruas de cabeça erguida, olhar nos olhos os nossos filhos, os nossos amigos. Rogo a Deus, finalmente, que o Poder Legislativo se recuse a entregar a um pequeno grupo de extremistas o cutelo de sua degola. Volta-se o Brasil para a decisão que tomaremos. Mas só a História nos julgará.

Falou, em seguida, o líder da Oposição, Mário Covas, que sustentou a necessidade de rejeitar o projeto de resolução, argumentando que sua aprovação violentaria o princípio da inviolabilidade parlamentar, particularmente de discurso proferido da tribuna, o que seria precedente extremamente perigoso. O último orador da ses- são foi o líder do governo, deputado Geraldo Freyre, que defendeu a tese de que a Câmara deveria oferecer ao Supremo Tribunal Federal a oportunidade de julgar a questão à luz da ordem constitucional vigente.

Fomos informados, previamente, pelos assessores parlamentares das Forças Arma- das, da reação do governo e do regime, na hipótese de rejeição do pedido de licença. Recebemos a visita do ministro da Justiça, na véspera da sessão do dia 12 de de- zembro. Conduzi o professor Gama e Silva ao gabinete do presidente da Câmara. Quando fiz menção de me retirar para deixá-los à vontade, Bonifácio fez sinal para que eu permanecesse. O ministro Gama e Silva proferiu breve exposição a respeito do clima político e da profunda irritação que dominava as Forças Armadas com os termos considerados ofensivos do discurso de Moreira Alves, ao mesmo tempo que formulou apelo a José Bonifácio para que ajudasse na aprovação da licença solicitada pelo STF.

A certa altura, Gama e Silva pediu que o deputado José Bonifácio não interpretas- se como ameaça as palavras que iria proferir em seguida. Sustentou que, se a Câ- mara dos Deputados rejeitasse o pedido de licença do Supremo Tribunal Federal, “alguma coisa aconteceria no país”. Provocado pelo presidente da Câmara, sobre em que consistiria tal reação, o ministro não forneceu qualquer pista, alegando

109 A Crise do AI-5

desconhecimento. Porém, o professor Gama e Silva não só estava perfeitamente a par do conteúdo da reação, como era um dos articuladores da conspiração que se destinava a radicalizar o regime. Durante as reuniões do Ministério com o presi- dente Costa e Silva, o ministro Gama e Silva era o mais radical dos presentes.

Na sessão matutina desse dia 12 de dezembro, quando da votação do pedido de licen- ça, o presidente da Câmara dos Deputados, José Bonifácio, encerrou a discussão e deu início à votação. O pedido foi negado por 216 votos contra e 141 a favor. Proclamado o resultado e antes do encerramento da sessão, o Plenário e as galerias cantaram o Hino Nacional, ouvindo-se muitos aplausos e vivas. Enquanto o Plenário era domi- nado por grande agitação, o presidente encerrou a sessão. Apesar das comemorações de parlamentares oposicionistas e governistas contrários à licença, tornara-se con- sensual a expectativa de que um ato de força cairia sobre o Congresso.

A votação tivera caráter secreto e cada voto expresso através de cédula colocada dentro de sobrecarta fora depositado numa urna localizada na Mesa. Houve a cha- mada nominal, mas muitos tornaram explícitos os seus votos, intencionalmente. Faziam questão disso, apesar de protegidos pela votação secreta, como exigia a Constituição. Acredito que nessa votação puderam ser identificados 80% dos votos, o que explica o altíssimo número de mandatos cassados, pouco depois, com base no Ato Institucional no 5, baixado pelo governo do presidente Costa e Silva, no dia seguinte, que, praticamente, tornava sem efeito a Constituição de 1967, aprovada pelo Congresso e proposta pelo governo do marechal Castello Branco.

O deputado Silvio Cunha Bueno pediu a palavra para ler declaração de voto contra a concessão da licença pela Câmara, assinada por ele próprio e os deputados Israel Dias Novais, Roberto Cardoso Alves, Yukishigue Tamura e Marcos Kertzmann, to- dos de São Paulo. Nessa declaração, afirmavam os cinco deputados:

a Constituição vigente, seguindo tradição sem quebra no nosso país, consagra, no seu artigo 34, a inviolabilidade da tribuna parlamentar. Esse princípio, absoluto e não passível de discussão, constitui a base da soberania do Poder Legislativo e a condição primeira do seu funcionamento autônomo e efetivamente independente. Autorizar a desobediência aos seus termos significa, portanto, estabelecer precedente fatal à própria instituição.

Cunha Bueno, Cardoso Alves, Israel e Tamura perderam os mandatos, enquanto Marcos Kertzmann, além da perda do mandato, teve também suspensos os seus direitos políticos. Porta-vozes do regime militar diriam que esses deputados – um

110 O Congresso em Meio Século | 2a Edição

dos quais com punição superior à dos outros – perderam os mandatos por terem rompido o sigilo constitucional do voto.

A política sempre acirrada nos estados espalhava intrigas. Correu a versão de que o deputado José Monteiro de Castro teria sido orientado pelo senador Magalhães Pinto a votar contra a concessão da licença, fato que justificaria a cassação de seu mandato. Amigo e fiel aliado de Magalhães, Monteiro gozava de grande conceito. Tinha sido chefe da Casa Civil do presidente Café Filho e secretário de Segurança do governo Magalhães Pinto, em Minas Gerais, quando da deflagração do movi- mento que depôs o presidente João Goulart.

José Monteiro de Castro escreveu carta ao presidente Costa e Silva, afirmando ter votado contra a concessão do pedido de licença pela Câmara por convicção pesso- al. Alinhava as razões que justificavam seu voto e garantia que o senador Magalhães Pinto não tivera nenhuma influência em seu comportamento. Monteiro de Castro e Magalhães Pinto nada sofreram.

Ivete Vargas votou contra a licença e perdeu o mandato. Ivete havia perguntado ao comandante Walber Lisieux, assessor parlamentar do ministro da Marinha, o que poderia lhe acontecer se votasse contra a concessão da licença pela Câmara. Sem hesitação, Walber respondeu que nada lhe aconteceria, uma vez que as Forças Ar- madas respeitariam a decisão do parlamento, qualquer que fosse.

Numerosos deputados tiveram a preocupação de sondar a reação do regime, no caso de a Câmara negar o pedido de licença. Um desses foi o deputado Broca Filho (PSP-SP), meu amigo pessoal, que procurou o senador Daniel Krieger, presidente da Arena e líder do governo no Senado, para saber como deveria proceder. Krieger respondeu que o assunto era da competência da Câmara. Mas disse que, se o as- sunto estivesse sob exame do Senado, votaria contra a concessão da licença. Broca votou contra e não sofreu qualquer sanção.

Em 12 de dezembro de 1968, após a recusa da Câmara em autorizar a licença, os assessores parlamentares das três Armas – coronéis Lairo Serrano (Exército) e Lau- ro Nei Meneses (Aeronáutica) e o comandante Walber Lisieux (Marinha) – revela- ram-me que seria editado um ato institucional, solicitando-me que transmitisse tal informação ao presidente da Câmara dos Deputados, José Bonifácio, e ainda que lhe pedisse para não realizar a sessão plenária, que certamente se transformaria em comício contra o regime.

111 A Crise do AI-5

Fiz pormenorizado relato ao presidente da Câmara sobre a comunicação dos asses- sores parlamentares das Forças Armadas. Bonifácio resolveu realizar rápida sessão plenária, na tarde de 13 de dezembro de 1968, retirando-se, em seguida, para seu gabinete. Foram cumpridos normalmente o Pequeno e o Grande Expediente. Ocu- pou a tribuna, em seguida, o deputado Monsenhor Arruda Câmara, para proferir discurso, analisando, como disse, a inquietante conjuntura que o país vivia, para concluir que a Câmara dos Deputados repetia os acontecimentos vividos em 1937, quando de seu fechamento por Getúlio Vargas, sendo presidente da Câmara, então, o deputado Pedro Aleixo, e ele, o orador, o vice-presidente.

Instalou-se, no gabinete da Presidência da Câmara, um receptor sintonizado na Rádio Nacional. A pequenos intervalos, o Coronel Meneses, assessor do Ministério da Aeronáutica, informava sobre a reunião ministerial em curso, na ocasião, no Palácio das Laranjeiras (Rio de Janeiro), para exame da situação política nacional, presidida pelo marechal Costa e Silva. Em dado momento, Meneses informou que estava sendo outorgado o Ato Institucional no 5, ao mesmo tempo em que aconse- lhava o deputado José Bonifácio a deixar o edifício da Câmara dos Deputados.

O gabinete da Presidência da Câmara estava lotado de deputados, a maioria da Oposição. O deputado Celso Passos (MDB-MG) insistia, de forma agressiva, para que o presidente da Câmara reabrisse a sessão plenária, extraordinariamente. Dian- te de consulta de Bonifácio sobre o que dispunha o Regimento, informei-o de que o presidente da Câmara não tinha poderes para convocar sessões extraordinárias fora dos casos regimentalmente previstos. Assim mesmo, Celso Passos insistia, agressivo, em que a sessão era necessária. Bonifácio acompanhou minha orienta- ção. Em determinado momento, Celso Passos disse, de forma ofensiva: “Seja mais Andrada e menos Zezinho!”

Colhido de surpresa com a atitude insólita do conterrâneo, filho do falecido minis- tro Gabriel Passos, José Bonifácio fez um grande gesto com os dois braços, dando- lhe uma sonora “banana”: “Toma!”. Poucos minutos depois, a Voz do Brasil anun- ciava o Ato Institucional no 5, cuja introdução foi lida pelo ministro da Justiça, professor Gama e Silva. Era decretado o recesso do Congresso Nacional, por prazo indeterminado. A partir desse anúncio, o deputado José Bonifácio virou-se para os deputados presentes em seu gabinete e disse: “Meus senhores, agora não há mais nada a fazer”. E retirou-se para sua residência, sendo acompanhado por mim e por Luciano Brandão, diretor-geral da Câmara, até a porta do carro que o levaria, quan- do me aconselhou a comunicar ao líder da Oposição, deputado Mário Covas, que havia deixado o prédio do Congresso.

112 O Congresso em Meio Século | 2a Edição

No encontro com o líder oposicionista ponderei que, diante do anúncio do AI-5 e certo de que não havia nada a fazer, naquelas circunstâncias, o deputado José Boni- fácio se retirara para sua residência. O deputado Mário Covas, embora meu amigo pessoal, reagiu, indignado, na presença de grande número de deputados oposicio- nistas: “Tudo isso que está acontecendo é uma vergonha!” Respondi-lhe: “Tome a comunicação do deputado José Bonifácio como quiser.”

Logo depois que o presidente da Câmara retirou-se, o assessor parlamentar do Exército, coronel Lairo Serrano, procurou-me e ao diretor-geral, Luciano Brandão, para comunicar que o Comandante Militar do Planalto, general Antônio Bandeira, desejava ter uma conversa conosco, em seu gabinete, no Ministério do Exército que, àquele tempo, funcionava na Esplanada dos Ministérios. Eram três horas da ma- drugada de 14 de dezembro de 1958, quando o general Bandeira nos recebeu, em seu gabinete, envergando farda de campanha, com a pistola 45 no coldre e acompa- nhado de seu estado-maior. Cumprimentou-nos formalmente, recebendo-nos de pé, para fazer a seguinte declaração:

A informação que temos é que os senhores são dedicados à instituição e não são políticos. A partir de hoje, ambos serão responsáveis pelo prédio da Câmara dos Deputados. Se houver alguma reunião ou manifestação política, em qualquer dependência do edifício, nós invadiremos e ocuparemos militarmente o prédio.

Em seguida, agradeceu a nossa presença e retirou-se.

O Ato Institucional no 5, além de decretar o recesso do Congresso, por prazo inde- terminado, suspendera as franquias e garantias constitucionais. Determinava, ain- da, que deputados e senadores só receberiam a parte fixa do subsídio, com o que se reduzia substancialmente a remuneração de todos. O Ato não admitia, também, que os parlamentares pudessem exercer qualquer outra atividade, o que os proibia de voltar às suas atividades profissionais – como médicos, advogados, funcionários públicos, engenheiros, dentistas, etc. Tratava-se de represália contra a Câmara, que derrotara o governo e o regime.

Seria natural que os parlamentares voltassem às suas atividades profissionais ou a seus empregos públicos, requerendo licença à Câmara, sem nada perceberem, en- quanto durasse o recesso. Conheci deputados que tiveram de vender objetos pessoais para garantir o sustento de suas famílias. Os serviços administrativos da Câmara dos Deputados funcionaram normalmente, sem qualquer interrupção. Ao contrário dos deputados, os servidores não sofreram qualquer sanção de natureza pecuniária.

113 A Crise do AI-5

As atas das sessões plenárias dos dias 12 e 13 de dezembro de 1968, encaminhadas, como de praxe, ao Departamento de Imprensa Nacional, para publicação no Diário do Congresso Nacional, foram requisitadas pelo gabinete do ministro da Justiça, Gama e Silva, e estão até hoje desaparecidas. Quem se der ao trabalho de pesquisar o Diário do Congresso verificará que as atas daquelas sessões lá não constam, ha- vendo, assim, um lapso na história parlamentar brasileira.

Naquele tempo, havia acirrada disputa de liderança entre importantes chefes mili- tares. Creio que se conferiu relevância exagerada ao discurso proferido pelo depu- tado Márcio Moreira Alves, para concentrar, no Congresso, as atenções da opinião pública, desviando-as das disputas por influência e poder que travavam, na ocasião, chefes militares moderados e radicais.

Doença e Morte

O presidente Costa e Silva tinha o propósito de fazer uma reforma constitucional que conciliasse os interesses da segurança do regime com certos princípios do sis­ tema democrático. Constituiu comissão de alto nível, no dia 14 de maio de 1969, presidida por ele próprio e integrada pelo vice-presidente Pedro Aleixo, o ministro da Justiça, Gama e Silva, o ministro da Desburocratização, Hélio Beltrão, o chefe da Casa Civil, deputado Rondon Pacheco, e os juristas , Carlos Medeiros da Silva e Temístocles Brandão Cavalcanti, para elaborar o projeto de reforma da Constituição de 1967.

Foram realizadas, além da sua instalação, reuniões nos dias 15, 16 e 17 de junho de 1969, até o seu encerramento no dia 17 do mesmo mês e ano. A comissão solicitou a colaboração do Departamento de Taquigrafia da Câmara dos Deputados, no que foi atendida. As reuniões eram gravadas e taquigrafadas, sendo devolvidos as gra- vações e os dados taquigráficos, sem retirada de qualquer cópia.

Durante longo tempo, procurei localizar essa documentação, sem sucesso. Conver- sei com o senador Edison Lobão (PFL-MA), dado o íntimo relacionamento que mantinha com o vice-presidente Pedro Aleixo e seu filho, padre Aleixo, que nada possuíam. Quando secretário executivo do Ministério da Justiça, tentei localizar essa documentação no arquivo deste órgão e no Arquivo Nacional, na cidade do Rio de Janeiro, e no próprio arquivo do Palácio do Planalto. Nada foi encontrado.

Posteriormente, o padre Aleixo localizou uma cópia, na íntegra, desse trabalho. O Senado Federal editou toda a matéria com o título A Constituição que não foi – his- tória da Emenda Constitucional no 1, de 1969.

114 O Congresso em Meio Século | 2a Edição

Coube ao vice-presidente Aleixo elaborar o anteprojeto, a pedido do presidente Costa e Silva, que foi submetido ao exame da comissão, em cuja instalação Costa e Silva proferiu as seguintes palavras: “Tomando por base esse trabalho, vamos agora esmiuçá-lo. São agora oito crânios a manipularem e a trabalharem esse projeto”.

E mais adiante completou: “A reforma da Constituição se impunha e se impõe, quando mais não seja porque vários atos foram adicionados à Constituição, através de decisões do governo, a partir de 13 de dezembro”.

Assim o presidente Costa e Silva encerrou a reunião informal de instalação da comissão:

Por outro lado, desejaria que até a publicação do texto completo e acabado, mantivéssemos, sobre tudo o que aqui se tratou a maior discrição, para que não comecem logo os retaliamentos, que vão ocorrer naturalmente. Mas aí já encontrarão um bloco organizado, com a Constituição escrita e sancionada. Não tenho dúvida de que muita coisa vai haver em virtude dessa decisão do governo revolucionário. Essa Constituição, tal qual a elaboramos, constituiu um ato revolucionário, cercado evidentemente das precauções necessárias para evitar o que ocorreu com a primeira Constituição revolucionária: mutilações que a deformem. De maneira que, ainda usando do direito que me conferiu a Revolução – que gera direitos, como todos sabem – vamos estabelecer por ato institucional a vigência desta Constituição, e depois a mandaremos ou não ao Congresso para o seu referendo. Aí ficará expressa, se rejeitada, a responsabilidade completa de um dos poderes. Vamos, inclusive, mandar várias cópias ao Supremo Tribunal Federal para que analise a Constituição numa forma de cooperação, embora não sujeita ao seu referendo. Será mais uma consideração para que compartilhe conosco, do Executivo, também dessa responsabilidade.

O senador e ministro Jarbas Passarinho revelou que estivera, em audiência, com o presidente Costa e Silva, em junho, quando dele ouviu a reafirmação de que ou- torgaria a nova Constituição em agosto de 1969 e reabriria o Congresso no dia 7 de setembro. Naquela oportunidade, o presidente fez o seguinte desabafo para Passarinho: “Sei que vou caminhar sobre baionetas”. O destino haveria de frustrar os planos do presidente. Em 27 de agosto, Costa e Silva sofreu grave acidente circulatório, sendo remo­ vido de Brasília para o Palácio Laranjeiras, na cidade do Rio de Janeiro. Alguns auxiliares tentaram fazer com que o presidente assinasse o termo de outorga da reforma constitucional, mas ele já não tinha condições físicas e intelectuais para praticar esse ato. Recentemente, o Senado Federal publicou na íntegra as atas dos trabalhos dessa comissão de alto nível, transcrevendo, inclusive, o texto final da proposta de emenda constitucional.

115 A Crise do AI-5

Com o impedimento do presidente da República constituiu-se, tendo por base o Ato Institucional no 5, Junta Militar integrada pelos três ministros militares (almi- rante Augusto Radmacker, da Marinha, general Aurélio de Lira Tavares, do Exér- cito, e brigadeiro Márcio de Sousa Melo, da Aeronáutica) para responder pelo go- verno. Inicialmente, em nome do presidente da República, marechal Costa e Silva, temporariamente impedido de exercer suas funções, por motivo de saúde, a Junta Militar baixou o Ato Institucional no 12, de 31 de agosto de 1969, segundo o qual, enquanto durasse o impedimento, as suas funções seriam “exercidas pelos minis- tros da Marinha de Guerra, do Exército e da Aeronáutica”.

Tal Ato Institucional foi referendado por todos os ministros de Estado, a saber: Luis Antônio da Gama e Silva (Justiça), José Magalhães Pinto (Relações Exteriores), Antônio Delfim Netto (Fazenda), Mário Davi Andreazza (Transportes), Ivo Arzua Pereira (Agricultura), Jarbas Gonçalves Passarinho (Trabalho), Tarso Dutra (Edu- cação), Leonel Miranda (Saúde), Edmundo de Macedo Soares (Indústria e Comér- cio), Antônio Dias Leite Júnior (Minas e Energia), Hélio Beltrão (Planejamento), José Costa Cavalcante (Interior) e Carlos F. de Simas (Comunicações).

Caracterizado o impedimento definitivo do presidente da República, no dia 14 de outubro de 1969 foi baixado o Ato Institucional no 16, com quatro decisões rele- vantes: 1) é declarada a vacância do cargo de presidente da República; 2) é também declarado vago o cargo de vice-presidente da República; 3) é convocado o Congres- so Nacional para se reunir no dia 25 de outubro, a fim de eleger presidente e vice- presidente da República; 4) embora convocado o Congresso, os ministros militares poderiam legislar em caso de urgência e de interesse público relevante, mediante decreto-lei, até 30 de outubro do mesmo ano.

Posteriormente, tive oportunidade de orientar meus funcionários da Secretaria- Geral da Mesa Diretora para que procedessem a uma pesquisa no Diário Oficial da União, a partir do Ato Institucional no 1, a fim de relacionar todas as pessoas alcan- çadas por qualquer tipo de sanção revolucionária, parlamentares ou não, tais como cassações de mandatos, suspensões de direitos políticos, destituição de função pú- blica, aposentadoria compulsória, cassação de aposentadoria, banimento, confisco de bens, transferência para a reserva, cuja relação foi publicada em livro editado pela Câmara dos Deputados.

Figura que teve papel saliente na luta pela solução autoritária foi o professor Gama e Silva, ministro da Justiça, que tinha posição de extrema direita. Seu gabinete era núcleo de conspiração dos elementos mais radicais do movimento de 1964. Gama

116 O Congresso em Meio Século | 2a Edição

tratava como inimigo o professor Alfredo Buzaid, que o sucedeu no Ministério da Justiça, no governo Emílio Garrastazu Médici. Gama e Silva, que era reitor da Universidade de São Paulo quando foi convidado pelo presidente Costa e Silva para ocupar o Ministério da Justiça, apoiou a indicação de Alfredo Buzaid para sucedê- lo na Reitoria da USP, mediante o compromisso de que este apoiasse o seu retorno àquele cargo, quando deixasse a Pasta. Buzaid não honrou o compromisso, deixan- do Gama e Silva ressentido com seu comportamento pelo resto da vida.

Como compensação, Gama e Silva foi nomeado embaixador do Brasil em Portugal. Em viagem à Europa, visitei-o na embaixada do Brasil, em Lisboa. No momento em que conversava com o embaixador, fomos surpreendidos pela inesperada entrada no gabinete de sua esposa que, antes de qualquer cumprimento, perguntava: “Como vai aquele turco traidor?”, referindo-se ao professor Alfredo Buzaid. Diante de meu constrangimento, Gama e Silva recriminou o comportamento da mulher.

Poder Vigiado

Em pleno recesso do Congresso, o presidente da Câmara dos Deputados, José Bo- nifácio, foi surpreendido com a chegada de expediente do chefe do SNI (Serviço Nacional de Informações), general Carlos Alberto Fontoura, comunicando estar em marcha uma conspiração subversiva que utilizava os telefones daquela Casa, cujos números eram mencionados. Bonifácio ficou profundamente contrariado, o que preocupava seus amigos e auxiliares, pois sofrera recente acidente circulatório.

Determinou que se procurasse localizar as referidas linhas telefônicas. Uma delas era particular, nada tinha com a Câmara; outra não existia, e uma terceira locali- zava-se em gabinete de deputado pertencente ao partido do governo. O deputado José Bonifácio concluiu que as preocupações do chefe do SNI não procediam. De- terminou que fossem destacadas das listas telefônicas as folhas em que constavam aqueles números. Ao mesmo tempo, redigiu ofício ao general Carlos Alberto Fon- toura e resolveu entregá-lo pessoalmente.

Acompanhei o deputado em viagem ao Rio de Janeiro. Dirigimo-nos ao SNI, que fun- cionava no edifício do Ministério da Fazenda. Situação curiosa é que os elevadores que serviam ao público não paravam no andar em que funcionava o SNI. Ou se descia no andar de baixo ou no andar de cima. Sugeri que saltássemos no andar de cima para descer longo lance de escada, pois seria desaconselhável a um infartado subir escadas.

Chegamos às 15 horas, em pleno verão carioca, e nos fizemos anunciar. Fomos ins- talados em pequeno compartimento sem qualquer ventilação. O tempo passava e

117 A Crise do AI-5

não éramos recebidos pelo general Fontoura. Diante daquela desconsideração, em dado momento, chamei o auxiliar do general Fontoura para adverti-lo de que, se o deputado não fosse imediatamente recebido, nós nos retiraríamos. Minutos depois, o general convidou Bonifácio a ingressar em seu gabinete, ficando eu, enquanto isso, em conversa com um coronel, que era seu chefe de gabinete.

Foi uma audiência de poucos minutos, mas serviu para que o presidente da Câmara dos Deputados manifestasse a sua estranheza diante daquele procedimento do SNI. Ao mesmo tempo, Bonifácio pediu ao general Fontoura que juntasse seu ofício ao remetido pelo SNI à Câmara. Ao nos despedirmos, o coronel nos convidou para descer no elevador privativo do SNI, que ia até a garagem do prédio, no subsolo, onde se despediu do deputado José Bonifácio.

Situação constrangedora fora imposta ao parlamento pela Emenda Constitucional no 1, de 1969, outorgada pela Junta Militar, pela qual os parlamentares não podiam fazer críticas ao regime, às Forças Armadas e, em particular, aos militares. Se o fizessem, seus discursos não seriam publicados. Bastava o uso de uma expressão – como a que o deputado oposicionista carioca Lysâneas Maciel usava frequente- mente, “general de plantão” – para que o discurso não fosse publicado.

Contudo, segundo orientação adotada pelos presidentes da Câmara, publicavam-se os discursos, suprimindo-se as expressões consideradas insultuosas. O sistema de gravação mantinha a íntegra do discurso. Tal procedimento da Presidência impe- diu que parlamentares fossem punidos pelas sanções extremas do regime. Houve decisão do Supremo Tribunal Federal, que sancionava esse procedimento, dispon- do que os parlamentares só poderiam ser processados se as expressões insultuosas tivessem sido publicadas no Diário do Congresso Nacional. O STF não aceitava gra- vações e a Câmara não as fornecia a terceiros.

Vale a pena contar um episódio que mostra como os militares exerciam vigilância mesmo sobre os parlamentares da base de apoio do governo. Certo dia, o deputado Dias Meneses foi recebido em audiência pelo coronel Paiva Chaves, na Assessoria Parlamentar do Exército, que funcionava no Anexo I da Câmara dos Deputados. Em dado momento, o deputado ouviu uma voz que saía de baixo da mesa do co- ronel advertindo que a fita estava acabando e que era necessário trocá-la. Meneses fingiu que não ouviu, o coronel também. O deputado despediu-se do coronel e nunca mais voltou à assessoria parlamentar do Exército. Procurou-me para relatar o acontecimento, solicitando que avisasse aos amigos para evitar tais encontros.

118 O Congresso em Meio Século | 2a Edição

Em razão do poder coercitivo do AI-5, o presidente Emílio Garrastazu Médici não precisou cassar nenhum deputado. O poder discricionário dispensava provas. Por outro lado, o exercício de severa vigilância sobre o corpo político demonstrava que os militares o encaravam com extrema desconfiança. Esses fatos mostram como eram tortuosas e difíceis as relações dos políticos com o governo que apoiavam.

O Duro General da Abertura

No dia 14 de setembro de 1973, a Arena homologou, por unanimidade, as candi­ daturas do general Ernesto Geisel para presidente, e do general Adalberto Pereira dos Santos para vice-presidente da República. Ambos foram eleitos pelo Colégio Eleitoral em 15 de janeiro de 1974, recebendo a chapa 400 votos a favor e 76 contra, dados ao deputado Ulysses Guimarães e ao jornalista Alexandre Barbosa Lima So- brinho, autointitulados anticandidatos.

O governo do presidente Ernesto Geisel iria caracterizar-se pelo seu ambicioso programa de abertura lenta, gradual e segura, que o obrigaria a avanços e recuos, como em um jogo estratégico, em razão das resistências opostas pela chamada li- nha-dura militar. O mais espetacular desses recuos foi a decretação do recesso do Congresso, no dia 1o de abril de 1977, porque a Oposição se recusou a apoiar a aprovação da reforma do Poder Judiciário, elaborada pelos ministros do Supremo Tribunal Federal, a pedido do presidente da República.

Geisel tinha de dar uma demonstração de que exercia controle sobre o Congresso para inspirar confiança às Forças Armadas e evitar a conspiração da linha-dura militar, enquistada no gabinete de seu ministro do Exército, general Sílvio Frota. Lá estava, desempenhando papel-chave, o general Jaime Portela de Melo, notório ini- migo dos irmãos Geisel (os generais Orlando e Ernesto). A Oposição, representada pelo MDB, apoiou o parecer do deputado Acioli Filho, que alterava profundamente a proposta de reforma do Judiciário de Geisel.

Acioli se insurgira contra a criação de um Conselho Nacional de Magistratura para exercer a fiscalização sobre o Poder Judiciário, porque era integrado exclusivamen- te por ministros do Supremo Tribunal Federal, alegando que tal medida constituía intolerável corporativismo. O deputado e jurista paranaense entendia que, sendo um Conselho Nacional, era necessário que dele participassem, também, magistra- dos dos Tribunais superiores e de Justiça dos estados. Geisel não aceitou as modifi- cações propostas por Acioli. O confronto tornou-se inevitável.

119 A Crise do AI-5

Nessa oportunidade, o líder do governo Geisel na Câmara, deputado José Bonifácio, solicitou-me que procurasse, em seu nome, o líder da Oposição, deputado Freitas Nobre, propondo que se adiasse o exame da matéria, a fim de evitar novo e possível fechamento do Congresso. Reunido com as bancadas da Câmara e do Senado, nesta última Casa, Freitas Nobre declarou-me que deputados e senadores da Oposição já haviam fechado questão contra a reforma do Judiciário. Comuniquei o fato ao líder José Bonifácio, que o transmitiu ao presidente Geisel. Esse, em seguida, decretou o recesso do Congresso.

Uma vez ocorrido esse fato, o presidente Ernesto Geisel, o chefe da Casa Civil, general Golbery do Couto e Silva, o presidente do Senado, Petrônio Portella, e o presidente da Câmara dos Deputados, Marco Maciel, passaram a compor um gru- po, logo apelidado de “Constituintes do Riacho Fundo” – residência de verão do presidente da República, em Brasília – no qual se reuniam. Foram outorgadas duas emendas constitucionais, com fundamento no AI-5, a primeira promovendo a re- forma do Poder Judiciário, nos termos propostos pelos ministros do Supremo Tri- bunal Federal (Emenda Constitucional no 7, de 13 de abril de 1977), e a segunda, de natureza política, criando um terço, no Senado, de senadores eleitos indiretamen- te (apelidados de senadores “biônicos”), pelas assembleias legislativas dos estados (Emenda Constitucional no 8, de 14 de abril de 1977).

A luta em que se empenhavam pela liderança das Forças Armadas o presidente Geisel e o ministro do Exército, general de exército Sílvio Frota, logo se refletiria no Congresso, onde se constituiu, em 1977, um aguerrido grupo de parlamentares simpáticos à candidatura do chefe do Exército. Dele faziam parte, entre outros, os senadores Dinarte Mariz (RN) e Jarbas Passarinho (PA) e os deputados Geraldo Freire (MG), Siqueira Campos (GO), Rui Bacelar (BA), Sinval Boaventura (MG), Marcelo Linhares (CE), Carlos (PE). Havia rumores de que aí estaria, também, o ministro da Justiça, Armando Falcão.

O grupo frotista representava ameaça à liderança do presidente Geisel sobre a sua base de sustentação política no Congresso. O ministro do Exército se opunha ao projeto de abertura do presidente Ernesto Geisel, argumentando que isso implicaria derrogação dos princípios revolucionários, favorecendo a infiltração comunista no país. Basta lembrar o episódio em que o ministro Sílvio Frota propôs ao presidente da República a remoção do general Ivan de Sousa Mendes do cargo de comandante da Escola de Comando e Estado-Maior do Exército para um comando de menor importância, sob a alegação de que ele já havia cumprido tempo no posto. Geisel

120 O Congresso em Meio Século | 2a Edição

indagou: “O Ivan está criando algum problema, Frota?” “Não”, respondeu o minis- tro. “Então, ele vai continuar no comando da Eceme”, encerrou Geisel.

O confronto entre Geisel e o seu ministro do Exército tinha de chegar a seu des- fecho. Em 12 de outubro de 1977, Dia de Nossa Senhora de Aparecida, Padroeira do Brasil, feriado nacional, o presidente Ernesto Geisel convocou o ministro do Exército, Sílvio Frota, a seu gabinete, para lhe comunicar, de modo ríspido, que o ministro perdera a sua confiança e que deveria solicitar exoneração. Frota se recu- sou a pedir exoneração. Geisel o exonerou naquele instante. A conversa entre os dois não teve testemunha. Soube-se depois que o presidente Ernesto Geisel recebeu o ministro Sílvio Frota de pé.

O ministro do Exército tentou reagir, convocando os comandantes de Grandes Unidades para reunião em Brasília. Acontece que o presidente Ernesto Geisel se antecipara e já convidara os referidos comandantes (I, II, III e IV Exércitos) para se reunirem com ele no Palácio do Planalto. Oficiais do gabinete do ministro Sílvio Frota e do gabinete do presidente da República disputaram a primazia de receber os generais, no aeroporto de Brasília, e conduzi-los, uns ao encontro com o ministro, outros à entrevista com o presidente. Geisel ganhou essa batalha e designou um deles, o comandante do III Exército (Rio Grande do Sul), general Fernando Beth- lem, ministro do Exército. O presidente revelou astúcia, naquele momento delicado, deixando que cada comandante de grande unidade se animasse com a hipótese de que poderia ser convidado para substituir Frota.

Com a exoneração repentina do general Frota, os parlamentares do grupo frotista en­ traram em pânico, pois ainda estava em vigor o Ato Institucional no 5, que autorizava o presidente a cassar mandatos. Todos fizeram declarações negando qualquer compro­ metimento com o general Frota – inclusive o ministro da Justiça, Armando Falcão.

O general Ernesto Geisel tinha convicções a respeito da democracia que se devia construir no Brasil, fundamentada em sistema partidário estável, além de revelar perfeito conhecimento a respeito dos vícios que continuavam e continuam a man- char o nosso sistema político, comprometendo a autenticidade da representação e concorrendo para provocar os sucessivos hiatos constitucionais havidos ao longo da história republicana. Em discurso proferido aos dirigentes da Arena, em 29 de agosto de 1974, ele advertia:

A proliferação de organizações partidárias, em sua grande maioria frágeis e inautênticas, mercadejando, muitas vezes, seu apoio no balcão da barganha política, interesseira e personalista – e assistimos a isso repetidas vezes, no período

121 A Crise do AI-5

anterior à Revolução de 64 – é, sem dúvida, nefasta ao país. Do mesmo modo, também nefasta seria a instituição do partido único, fruto e fator de cerceamento das liberdades políticas, as quais, entretanto, são substanciais ao natural desenvolvimento do regime.

Sobre os partidos, dizia o ex-presidente da República:

Cumpre não permitir que os partidos sejam organismos com mera e estéril atuação de cúpula. Impõe-se dotá-los de capilaridade suficiente para que sua mensagem seja capaz de chegar até as menores e mais distantes unidades administrativas e possam elas captar, com fidelidade, as reais aspirações da população brasileira.

Com a retaguarda militar assegurada, o presidente Ernesto Geisel tomou as medi- das necessárias para indicar como seu sucessor na Presidência da República o chefe do SNI (Serviço Nacional de Informações), general de divisão João Baptista de Oli- veira Figueiredo. Em 31 de março de 1978, Geisel promoveu o general Figueiredo a general de exército, dando “carona” a quatorze generais de divisão, que estavam à sua frente no Almanaque do Exército, entre eles o chefe da Casa Militar, general Hugo Abreu, que se demitiu em protesto.

Em 8 de abril, a Convenção Nacional da Arena homologou a chapa João Baptista de Figueiredo – de Mendonça, com 775 votos. Em 15 de outubro de 1978, Figueiredo e Aureliano foram eleitos pelo Colégio Eleitoral, com 355 votos contra 226 dados à chapa oposicionista (general Euler Bentes Monteiro – senador Paulo Brossard), em sessão presidida pelo senador Petrônio Portella.

Por proposta do presidente Ernesto Geisel foi revogado o Ato Institucional no 5, de 13 dezembro de 1968, através da Emenda Constitucional no 11, de 13 de outubro de 1978 (artigo 3o), entrando essa revogação em vigor a partir de 1o de janeiro de 1979, dois meses e meio antes de 15 de março, quando tomaram posse na Presi- dência e Vice-Presidência da República o general João Baptista de Figueiredo e o Dr. Aureliano Chaves de Mendonça.

O senador Petrônio Portella foi nomeado ministro da Justiça pelo presidente Fi- gueiredo, como uma espécie de prêmio pelo papel importante que desempenhara no processo de abertura do presidente Geisel. Petrônio deixou o Senado para as- sumir o Ministério da Justiça, com a firme convicção de que seria o sucessor do general Figueiredo. Infelizmente, sua morte prematura, num ataque cardíaco, em 6 de janeiro de 1980, frustrou seu projeto de chegar ao poder máximo.

122 O Congresso em Meio Século | 2a Edição

Fui contemporâneo de Petrônio Portella na Faculdade Nacional de Direito, no mo- mento em que se promovia a legalização do Partido Comunista Brasileiro (PCB), quando sopravam os ventos da redemocratização no Brasil. Petrônio era um dos principais líderes e articuladores da corrente de esquerda do Centro Acadêmico Cândido de Oliveira (Caco), a Reforma, cujo presidente, José Frejat, pertencia a seus quadros. A Aliança Libertadora Acadêmica (ALA) representava a direita e ti- nha entre os seus expoentes Antônio Faustino Porto Sobrinho, Valdo Viana, Valdir Neuren, Raimundo Diniz. Petrônio era militante reformista em tempo integral.

Bacharelando-se em Direito, regressou ao Piauí, seu estado natal, reintegrando-se à sua família, de raízes conservadoras e de profunda formação religiosa. Mudou radicalmente de hábitos e de posição política. Filiou-se à UDN, pela qual se ele- geu deputado estadual, prefeito de Teresina e, finalmente, governador do Estado do Piauí, nas eleições de 1962. Elegeu-se senador em 1966, sendo reeleito em 1974. Presidiu o Senado de 1971 a 1972, assumindo a presidência nacional da Arena, em agosto de 1973.

Petrônio Portella possuía notáveis qualidades de articulador político e era dotado de intuição privilegiada. Graças a essas qualidades, veio a desempenhar papel de relevo para o êxito do processo de abertura democrática, conduzido com impla­ cável obstinação e firmeza pelo presidente Ernesto Geisel. Petrônio cercava-se de muitos cuidados no exercício de funções públicas. Tinha receio de cometer qualquer deslize ético.

Basta lembrar que, eleito governador do Piauí, chamou seu irmão, Elói, engenheiro e sócio de uma firma empreiteira, que tinha vários contratos com o estado, para adverti-lo de que, se sua empresa ganhasse alguma concorrência no Piauí, ele a anularia, como governador. Elói ponderou que, na concorrência, outras empresas se habilitavam. Petrônio não aceitou tal argumento. Isso fez que Elói, magoado, se transferisse para o Estado de Santa Catarina. Posteriormente, já em Brasília, os dois se reaproximaram.

Episódio revelador de seu talento e audácia ocorreu quando era presidente do Se- nado. Discutia-se a conveniência de criar um serviço de processamento de dados no Congresso Nacional. Petrônio propôs ao presidente da Câmara dos Deputados, Pereira Lopes, que as duas Casas instituíssem um serviço comum de processamento eletrônico de dados e informações. O presidente Pereira Lopes solicitou ao deputado Célio Borja que estudasse os aspectos jurídicos da questão. O deputado Faria Lima, especialista em computação, assessorava a Câmara nesse assunto. Como tardasse

123 A Crise do AI-5

entendimento jurídico que viabilizasse serviço de computação eletrônica comum às duas Casas do Congresso, Petrônio Portella, irritado, não esperou pela Câmara, crian- do o sistema que ainda hoje existe no Senado, com excelente conceito, o Prodasen.

Foi o senador Petrônio Portella que comandou as articulações para definir a Lei de Anistia que o governo do general Figueiredo se propôs a conceder, como parte indispensável do processo de redemocratização. Assim, no dia 27 de junho de 1979, foi lida perante o Congresso Nacional a Mensagem de no 59, do presidente João Baptista de Figueiredo, encaminhando o projeto de concessão de anistia política. Foram eleitos presidente da Comissão Mista o senador Teotônio Vilela e vice-presi- dente o senador Helvídio Nunes, sendo designado relator o deputado Ernani Sátiro. O projeto de lei tomou o no 14, de 1979 (CN).

A Comissão Mista do Congresso era integrada por onze senadores e onze deputa- dos. Foram apresentadas ao projeto 305 emendas e, ainda, 9 substitutivos. Depois de longos debates, em razão de entendimentos entre as diversas lideranças, o pro- jeto foi aprovado, com modificações, particularmente quando anistiou aqueles que praticaram “crimes conexos”, conforme se lê no artigo 1o:

É concedida anistia a todos quantos, no período compreendido entre 2 de setembro de 1961 e 15 de agosto de 1979, cometeram crimes políticos ou conexos com estes, crimes eleitorais, aos que tiveram seus direitos políticos suspensos e aos servidores da Administração Direta e Indireta, de Fundações, vinculadas ao Poder Público, aos servidores dos Poderes Legislativo e Judiciário, aos militares e aos dirigentes e representantes sindicais, punidos com fundamento em Atos Institucionais e Complementares (vetada a expressão “e outros diplomas legais”).

Nesses termos, foram anistiados os que participaram do movimento revolucioná- rio e os que o combateram. A matéria foi aprovada por unanimidade, sendo sua redação final aprovada na sessão do Congresso Nacional de 22 de agosto de 1979. O Palácio do Planalto participou ativamente de todos os entendimentos através do senador Petrônio Portella.

O projeto transformou-se na Lei no 6.683, de 28 de agosto de 1979, sendo referen- dada por todos os ministros de Estado e mais o chefe da Casa Militar, o chefe da Casa Civil e o chefe do Serviço Nacional de Informações.

124 O Congresso em Meio Século | 2a Edição

O Riocentro

Em pleno processo de abertura democrática, quando o governo do general João Baptista de Figueiredo chegava ao seu segundo ano, aconteceu o atentado do Rio- centro, que abalou o governo e o país. Em 30 de abril de 1981, quando se realizava um show de artistas populares, entre eles Chico Buarque de Holanda, promovido pelo Centro Brasileiro Democrático, para comemorar o Dia do Trabalho, pre- sente multidão compacta de milhares de jovens, explodiu uma bomba na parte externa do Riocentro, em automóvel modelo Puma, matando o sargento do Exér- cito Guilherme Pereira do Rosário e ferindo gravemente o capitão paraquedista do Exército Wilson Chaves Machado, dono do veículo. Por curiosa coincidência, o capitão foi socorrido por uma assistente do show e neta de Tancredo Neves, então governador de Minas Gerais.

Inicialmente, apresentou-se a versão segundo a qual o atentado fora praticado por organizações de esquerda. Posteriormente, surgiu a tese de acidente. Os mais im- portantes jornais do país, através de reportagens investigativas, concluíram que os dois militares cumpriam missão determinada por seus chefes dos organismos de segurança. Instaurou-se IPM (Inquérito Policial Militar) pelo então comando do I Exército, presidido pelo coronel Luís Antônio Fraga Ribeiro, que identificou indí- cios que poderiam incriminar o sargento Rosário e o capitão Machado.

O coronel pediu afastamento das investigações doze dias após a sua designação, recusando-se a conduzir investigação de modo a isentar os militares de qualquer responsabilidade pelo atentado. Foi designado, então, presidente do IPM o coro­ nel Job de Lorena, que inocentou os militares envolvidos, registrando em seu relatório a impossibilidade de localizar os autores do atentado. O coronel Job apresentou suas conclusões à imprensa em 30 de junho de 1981, não admitindo qualquer tipo de pergunta dos jornalistas. O Superior Tribunal Militar, através do Ministério Público, tentou reabrir o IPM, mas não teve êxito. O caso ficou defi­ nitivamente arquivado.

Em 18 de julho de 1987, em carta aberta aos convencionais do PMDB, como um dos responsáveis pela frustrada candidatura do general Euler Bentes Monteiro para presidente da República, o coronel reformado Dickson Mendes Grael, reportando- se ao atentado do Riocentro, sustentou:

125 A Crise do AI-5

Já na reserva do Exército e estranhamente afastado do cargo de Diretor de Administração e Finanças do Riocentro, a partir das explosões na noite do dia 30 de abril de 1981, fomos nos inteirando do que realmente aconteceu. Desde então, repassamos ao PMDB os resultados de nossas investigações sobre o episódio, decorrentes da convicção, comum ao partido, de que o IPM instaurado para apuração dos fatos não era merecedor de credibilidade.

O general Golbery do Couto e Silva, chefe da Casa Civil e uma espécie de Condes- tável da República, entendia que o presidente Figueiredo deveria ter determina- do o aprofundamento das investigações para apuração de responsabilidades pelo atentado, não só dos executores, como dos seus superiores. Figueiredo recusou-se a aceitar tal entendimento, ficando solidário com os seus colegas de farda, o que obrigou Golbery a renunciar à posição de relevo que tinha no governo.

Havia dificuldade em encontrar alguém habilitado para exercer as funções estra- tégicas do general Golbery, que correspondiam, na verdade, ao papel exercido por uma espécie de primeiro-ministro do governo. Figueiredo convidou o ministro João Leitão de Abreu para a Chefia do Gabinete Civil, obrigando-o a se aposentar da função de ministro do Supremo Tribunal Federal. Leitão de Abreu tranquilizou o país, dando estabilidade ao governo.

126 Capítulo VIII Colégio Eleitoral

O senador Nilo Coelho presidia o Senado quando sofreu acidente circulatório que o obrigou a se internar no Incor (Instituto do Coração), em São Paulo, vindo a falecer em 9 de novembro de 1983. Sua morte ocorreu em momento de singular importância, quando começavam os preparativos, no seio do partido governista, para a sucessão do general Figueiredo na Presidência da República. Assumiu a Pre- sidência do Senado o senador Moacir Dalla (PDS-ES), primeiro-vice-presidente. De acordo com o Regimento Interno dessa Casa legislativa, era necessário, porém, proceder à nova eleição para escolha do sucessor de Nilo Coelho.

A delegação do Congresso que viajou a para assistir ao enterro do senador Nilo Coelho – composta por quinze dos mais destacados membros da Câmara e do Senado e da qual participavam o presidente da Câmara, Flávio Marcílio, e o sena- dor baiano Luiz Viana – decidiu, em pleno voo, articular a eleição do senador Dalla para substituir Nilo Coelho, em caráter definitivo.

Moacir Dalla receava que essas articulações não tivessem êxito, preocupando-se com possíveis resistências a seu nome. Mas, embora senador de pouca expressão políti- ca, sua escolha acabou reunindo consenso das figuras mais importantes da política nacional. Casado com a irmã do senador Eurico Resende, que fora governador do Espírito Santo, depois de ter ocupado a liderança do governo do presidente Ernesto Geisel no Senado, Dalla elegera-se senador graças ao prestígio do cunhado.

As articulações para escolha do sucessor do general Figueiredo dominavam as con- versas políticas e as manchetes dos jornais. Certo dia, Paulo Maluf convidou-me a visitá-lo na casa que havia alugado na Península dos Ministros, no Lago Sul, em Brasília. Quando lá cheguei, encontrei Maluf conversando com Célio Silva, brilhan- te advogado e meu amigo pessoal.

Maluf revelou-me que o advogado, através do deputado Gerardo Renault (PDS- MG), ingressaria com consulta no Tribunal Superior Eleitoral, no dia 6 de novem- bro de 1984, na tentativa de tornar imperativa a aplicação do princípio da fidelida- de partidária no Colégio Eleitoral, com o que seria impossível qualquer dissidência no PDS em favor de Tancredo Neves, o candidato moderado da Oposição.

Ponderei ao deputado Paulo Maluf que não devia autorizar seu advogado a tomar tal iniciativa, porque se tratava não de matéria jurídica, mas de problema político

127 Colégio Eleitoral

complexo e delicado. Maluf revelou-me que o presidente do Senado, Moacir Dalla, estava disposto a aplicar o princípio da fidelidade partidária, durante a votação, o que anularia o voto de qualquer parlamentar do PDS em Tancredo Neves, do PMDB, a presidente da República.

O relator da consulta ao TSE era o ministro Oscar Dias Correia. De acordo com informações que circulavam no Congresso, o relator seria favorável à tese do se- nador Dalla, isto é, favorável a que prevalecesse a fidelidade partidária no Colégio Eleitoral. O ministro Leitão de Abreu, no entanto, articulou junto aos ministros do Tribunal Superior Eleitoral e aos próprios integrantes do Supremo Tribunal Fede- ral, de que havia sido membro, a tese segundo a qual não prevaleceria a fidelidade partidária no Colégio Eleitoral, dadas as notórias peculiaridades daquela conjun- tura que o Brasil vivia.

O autor da consulta teve a preocupação de juntar pareceres de eminentes juristas sustentando que, no Colégio Eleitoral, aplicava-se o princípio da fidelidade partidária – ou seja, a anulação automática do voto ao candidato do partido que não fosse o do votante. Entre os juristas arrolados pela representação estavam Manuel Gonçalves Ferreira Filho, Mário Pessoa e Arnaldo Malheiros.

O procurador-geral da República, Dr. Inocêncio Mártires Coelho, encaminhou parecer ao Tribunal Superior Eleitoral afirmando que “não pode ser considerado válido, para nenhum efeito, o voto dos delegados nas Assembleias Estaduais em candidato de outro partido no Colégio Eleitoral”. Cabe observar que, pela Consti- tuição em vigor (a Emenda no 1/1969, do regime militar) a fidelidade partidária era extremamente severa, a tal ponto que o filiado que infringisse a orientação partidá- ria seria expulso e, se fosse parlamentar, perderia o mandato.

Mártires Coelho sustentava que “os infiéis poderão ser punidos com a perda do mandato” e que “o delegado está obrigado a votar no candidato à Presidência apre- sentado por seu partido”. Esse parecer foi duramente criticado, entre outros, pelo vice-presidente Aureliano Chaves. Pois o ex-ministro do Supremo e chefe da Casa Civil do governo do general Figueiredo, Leitão de Abreu, que desempenhou papel relevante nesses acontecimentos, influindo no desfecho da controvérsia, sustentava que “a fidelidade partidária nunca foi aplicada nas eleições presidenciais e, se o fos- se, resultaria ineficaz. O voto dissidente, de qualquer forma, conta. Entre as sanções previstas não está a anulação de seu voto”.

128 O Congresso em Meio Século | 2a Edição

O Tribunal Superior Eleitoral reuniu-se em sessão administrativa e só integrada pelos ministros. Nessa reunião, realizada em 6 de novembro de 1984, impôs-se a decisão unânime em favor da não aplicação do princípio legal da fidelidade parti- dária, acolhendo-se a tese de que o Colégio Eleitoral tinha suas próprias singulari- dades e a legislação em vigor não se aplicaria automaticamente àquele colegiado.

O parágrafo 5o do art. 152 da Constituição, alterado pela Emenda Constitucional no 1, de 13 de outubro de 1978, dizia o seguinte:

Perderá o mandato no Senado Federal, na Câmara dos Deputados, nas Assembleias Legislativas e nas Câmaras Municipais quem, por atitude ou pelo voto, se opuser às diretrizes legitimamente estabelecidas pelos órgãos de direção partidária ou deixar o partido sob cuja legenda foi eleito, salvo se para participar, como fundador, da constituição de novo partido.

Apesar do texto constitucional, que serviu de fundamento aos pareceres dos de- fensores da fidelidade partidária, o Tribunal Superior Eleitoral entendeu que tal dispositivo não se aplicaria ao Colégio Eleitoral, aprovando, em consequência, a Resolução no 11.985, de 6 de novembro de 1984, em razão da Consulta no 7.135, classe 10a, Distrito Federal, com a seguinte ementa:

Disciplina partidária e perda de mandato por infidelidade partidária:

As questões sobre disciplina partidária e perda de mandatos parlamentares por infidelidade partidária são da competência privativa da Justiça Eleitoral, nos termos da Constituição (artigo 137, inciso IX e artigo 152, parágrafo 6o), da Lei Orgânica dos Partidos Políticos (Título VI) e da regulamentação desta Corte (Resolução no 10.785, de 15 de fevereiro de 1980, artigos 130 a 147), sendo, portanto, competente o Tribunal Superior Eleitoral para conhecer da consulta que verse esta matéria; 2) nas Resoluções nos 11.787 e 11.919, invocadas no parecer da Procuradoria-Geral Eleitoral, este Tribunal decidiu que cabe à Mesa do Senado Federal, na conformidade do artigo 10 da Lei Complementar no 15, de 13 de agosto de 1973, deliberar sobre registro de candidato a presidente e vice-presidente da República, compreendida nessa atribuição resolver sobre as questões prévias, pertençam à área da regularidade formal ou à capacidade eleitoral passiva; 3) não existe norma constitucional ou legal que restrinja o livre exercício do sufrágio dos membros do Congresso Nacional e dos delegados das Assembleias Legislativas dos estados no Colégio Eleitoral, de que tratam os artigos 74 e 75 da Constituição, ou que lhes prescreva a nulidade por violação da fidelidade partidária; 4) compete privativamente, em qualquer caso, à Justiça Eleitoral proceder à apuração e ao julgamento de atitude ou voto que possa implicar em infidelidade partidária, a teor do artigo 152, parágrafos 5o e 6o da Constituição Federal.

129 Colégio Eleitoral

Assinam a resolução os ministros Rafael Mayer, presidente, Oscar Correia, rela­ tor, Néri da Silveira, Torreão Brás, Washington Bolívar, José Guilherme Vilela e Sérgio Dutra.

Diante dessa decisão, a candidatura de Paulo Maluf ficou em situação extrema- mente difícil, insustentável, na prática. Obstinado, Maluf pressionou Moacir Dalla no sentido de não aceitar a decisão do TSE, alegando que se tratava de mera con- sulta e que o Congresso dispunha de autonomia para tomar decisões. Não devia o presidente do Senado aceitar aquele entendimento do Tribunal, uma vez que não se tratava de fato concreto, mas de uma consulta formulada à base de hipótese. O presidente do Congresso chegou a aceitar a argumentação de Maluf, mas, uma vez investido na Presidência da sessão, alvo de toda sorte de pressões, recuou para apli- car o princípio tal como o entendera o Tribunal Superior Eleitoral.

É público e notório que houve cooptação de eleitores no Colégio Eleitoral median- te compensações de toda ordem, inclusive financeira. Dizia-se no Congresso que o custo da campanha de cada um dos dois candidatos – Tancredo Neves e Paulo Maluf – havia sido da ordem de Cr$ 50 milhões. Pelos cálculos dos especialistas, ficou visível, a partir de certo momento, que Tancredo Neves ganharia. Mas, até quinze a vinte dias antes, a competição estava equilibrada, exatamente em razão do princípio da fidelidade partidária. O TSE garantiu, antecipadamente, a vitória de Tancredo Neves, quando liberou os delegados dos constrangimentos impostos pela legislação.

Paulo Maluf transformou-se no demônio que cumpria derrotar. Ele também so- fria forte oposição no governo e no PDS. O presidente João Baptista de Figueiredo não tivera nenhuma reserva ao advertir alguns de seus auxiliares e políticos mais íntimos que, se dependesse dele, Maluf não se sentaria na cadeira que ocupava. Embora o presidente antipatizasse o ex-governador, Figueiredo e Maluf tinham um amigo comum, o empresário paulista de origem libanesa George Gazalli, que cumulava o presidente e sua família de atenções.

Gazalli se empenhava em aproximar Paulo Maluf e o presidente Figueiredo. Cer- to dia, em reunião na residência oficial do presidente da Câmara dos Deputados, Flávio Marcílio, com a minha presença, do senador Edison Lobão e do empresário George Gazalli, discutia-se a hipótese de afastar o senador José Sarney da presidên- cia do PDS – partido que substituíra a Arena – alegando-se que ele não apoiava a candidatura de Paulo Maluf à Convenção Nacional. Participava de tal entendimen- to o ministro da Justiça, Ibrahim Abi-Ackel.

130 O Congresso em Meio Século | 2a Edição

Como se esperava, o senador José Sarney renunciou à presidência do PDS, em reu- nião dramática, na qual foi vaiado e agredido verbalmente pelo grupo de agressivos defensores de Paulo Maluf, ainda na sede do partido, no edifício Sofia, localizado no Setor Comercial Sul, em Brasília. Assumiu a presidência, interinamente, o sena- dor (SC), que acabou renunciando também ao cargo, pelas mes- mas razões de Sarney. Coube ao senador Augusto Franco, chefe político de Sergipe, dirigir o partido naquela fase conturbada da política brasileira.

Sarney, Antonio Carlos Magalhães, Marco Maciel, Jorge Bornhausen e outros apoia- vam a candidatura do ministro do Interior, Mário Davi Andreazza, à Convenção Nacional do Partido, realizada no Centro de Convenções de Brasília, hoje denomi- nado Ulysses Guimarães. Maluf estava convencido de que seria eleito presidente da República, a tal ponto que estranhou o tratamento de governador que lhe dispensei, como lhe era comumente reservado no Congresso, interpelando-me:

Você não acredita na minha eleição para presidente da República? Todos aqui já me tratam de presidente.

A partir desse momento, reservei a Maluf tratamento sempre cordial, mas formal. Ele costumava oferecer almoços para dezenas de políticos, todos os sábados, em sua residência na Península dos Ministros, certo de que todos os que atendiam aos convites eram seus eleitores, o que estava longe da verdade. A cooptação de lado a lado tornava tudo incerto e obscuro, mas parecia óbvio que a conjuntura era fran- camente favorável a Tancredo Neves, e não a Maluf.

É notório que nada daquilo aconteceu por geração espontânea. A eleição indireta de Tancredo fora previamente negociada com o governo Figueiredo e a cúpula das Forças Armadas, em especial do Exército, como é fácil constatar pelos termos da nota oficial emitida, em 23 de novembro de 1984, pelo ministro do Exército, gene- ral Valter Pires e Albuquerque:

O Exército mantém-se na firme disposição de apoiar o projeto de abertura do presidente João Figueiredo, que deverá se consolidar com a eleição do futuro presidente da República, pelo Colégio Eleitoral, na forma da Lei. A Nação, que sempre contou com as Forças Armadas, nos momentos difíceis de sua História, pode confiar que serão plenamente atendidos seus anseios de preservação das instituições democráticas.

131 Colégio Eleitoral

E, em 28 de fevereiro, os ministros militares firmaram o mesmo propósito:

As Forças Armadas, através da palavra de seus ministros, reafirmam sua inabalável fé na democracia. Entretanto, deixam patente que, em defesa das instituições a que pertencem, organizadas com base na hierarquia e na disciplina, sob a autoridade suprema do presidente da República, e fiadoras das demais instituições, não podem aceitar as ofensas que têm sido endereçadas ao comandante supremo das Forças Armadas e às instituições militares por maus brasileiros que, possuídos de intuitos inconfessáveis, voltam-se exclusivamente para a agitação. Democracia é sinônimo de liberdade, e todos nós a desejamos, mas não de licenciosidade e desrespeito, que todos abominamos.

Assinaram esse documento o almirante Maximiano Eduardo da Silva Fonseca, mi- nistro da Marinha; o general Valter Pires de Carvalho e Albuquerque, ministro do Exército, e o brigadeiro Délio Jardim de Matos, ministro da Aeronáutica, e Waldir de Vasconcelos, ministro-chefe do Estado-Maior das Forças Armadas (EMFA).

Houve o famoso encontro do presidente Figueiredo com Tancredo Neves, durante a Feira Agropecuária de Uberaba, em Minas Gerais. A essa época ocorreram vários encontros reservados de Tancredo com importantes generais, inclusive o ministro do Exército, general Valter Pires, contactos articulados pelo sobrinho do político mineiro, Francisco Dornelles, escolhido, posteriormente, ministro da Fazenda e que, em seguida, se elegeu deputado federal, conservando-se na Câmara até hoje.

Dornelles e José Hugo Castello Branco dividiram com o governador Hélio Garcia o comando financeiro da campanha e as articulações centrais, enquanto o empre- sário Calim Eid (que veio a falecer em desastre de automóvel) era o tesoureiro de campanha de Paulo Maluf.

O presidente Figueiredo apoiava discretamente a candidatura do coronel Mário Davi Andreazza, mas a verdade é que não se empenhou por ninguém. A versão corrente no Congresso era a de que a cúpula militar considerava intolerável a elei- ção de um coronel para presidente da República. Ficou famosa a declaração do ex-ministro da Guerra, general Orlando Geisel, de que não faria continência para um coronel. Esse clima de hesitação e insegurança favorecia o estilo audacioso e obstinado de Maluf, que investiu pesadamente sobre os delegados à Convenção Nacional do PDS para garantir ali a sua vitória, a indicação de seu nome, como candidato oficial do partido à sucessão do presidente Figueiredo.

A atitude de aparente indiferença do presidente João Figueiredo em relação às can- didaturas autorizou a especulação de que desejava permanecer no poder. Declara-

132 O Congresso em Meio Século | 2a Edição

ção do governador do Rio de Janeiro, Leonel Brizola, sugerindo claramente a pror- rogação do mandato de Figueiredo, divulgada pela imprensa, reforçou a convicção de que o presidente queria ficar. Ao ler aquela declaração, depois de ouvir muitos políticos propondo tal solução, o vice-presidente Aureliano Chaves resolveu procu- rar o presidente Figueiredo para conhecer a sua posição a respeito.

Pouco antes de morrer, internado no Hospital da Rede Sarah, para tratamento de fratura do fêmur, o ex-vice-presidente contou-me, na presença dos jornalistas Fla- marion Mossri (já falecido), Rubem de Azevedo Lima, Haroldo e Tarcísio Holanda, o teor da importante conversa que mantivera com o presidente Figueiredo, levando à ideia de que ele poderia apoiar a prorrogação de seu mandato. Aureliano esfriou, contudo, quando Figueiredo fez uma afirmação, usando astuciosamente, o recurso da indagação: “Não é democrático...?” Aureliano não teve dúvida de que o presiden- te desejava permanecer no poder.

O recurso para se chegar a tal resultado seria a consulta prévia no seio do partido, que Sarney se dispôs a realizar e o presidente Figueiredo não aceitou. Tanto assim que, no dia 10 de junho de 1984, Figueiredo dirigiu ofício ao senador José Sarney, na qualidade de presidente do PDS, analisando a hipótese da consulta prévia, para concluir nos seguintes termos:

Finalmente, não fui consultado e, absolutamente, não concordo com a inclusão do meu nome nessa prévia, por não ver razão alguma que a justifique, já que, como declarei publicamente, várias vezes, não está nas minhas cogitações uma possível reeleição ou a prorrogação de meu mandato, desautorizando, portanto, qualquer gestão nesse sentido.

A essa altura, já era articulada a criação da Frente Liberal, o embrião do que é hoje o PFL, liderada pelo vice-presidente Aureliano Chaves, e pelos senadores Marco Ma- ciel, José Sarney, Guilherme Palmeira e Jorge Bornhausen. Muitos dos seus integran- tes, advertidos de que era inevitável a derrota de Maluf no Colégio Eleitoral, não par- ticiparam da Convenção Nacional do PDS. E estavam certos, uma vez que, procedida a apuração da votação indireta que se verificou, no Colégio Eleitoral (15 de janeiro de 1985), no plenário da Câmara dos Deputados, Tancredo Neves obteve 480 votos contra 180 de Paulo Maluf, registrando-se, ainda, 26 abstenções e 9 ausências.

A escolha de Tancredo Neves resultou de complexo projeto de engenharia política, como ele próprio costumava denominar essa articulação delicada que se resumia ao compromisso de não fazer a caça às bruxas. Eleito Tancredo, em certo momento, a esquerda do PMDB exigiu a abertura de inquéritos para apurar responsabilidades

133 Colégio Eleitoral

em torturas e outras violências praticadas por diferentes agentes durante o regime autoritário. Tancredo reagiu, em entrevista às estações de rádio, advertindo:

A linha de orientação de meu governo quem dá sou eu. E minha campanha é de paz, para poder governar, não de vinganças. Afinal, estamos numa transição.

O presidente eleito anunciou a criação de Comissão de Notáveis a fim de elaborar a proposta de reforma constitucional, uma vez que, como era notório, não estava dis- posto a partir para a convocação de Assembleia Nacional Constituinte, alternativa complexa e difícil, em sua opinião. Um dia, conversando a sós comigo, Tancredo fez o seguinte comentário ao falar da convocação de Constituinte:

Paulo, você acha que eu vou instalar Constituinte para ficar sendo amolado o tempo todo? Criarei uma comissão e vou pedir, de vez em quando, que me mandem uma proposta de emenda constitucional.

O que Tancredo queria dizer é que promoveria uma reforma fatiada, como se diz, do texto constitucional. De temperamento moderado e conciliador, não agrada- vam ao político mineiro as decisões radicais. Basta lembrar a sua posição sempre reservada em relação à emenda constitucional do deputado Dante de Oliveira, que restaurava as eleições diretas – batizada de Diretas Já.

O astuto político mineiro combatia, de forma velada, a sua aprovação, tanto quanto Ulysses Guimarães, que estava advertido para as graves repercussões que provo- caria na cúpula das Forças Armadas, contrária ao restabelecimento das eleições diretas, de imediato, por temor de represálias. Tancredo assumira com os militares o compromisso de manter, naquelas circunstâncias, o processo de eleição indireta, tal como o previa a Emenda Constitucional no 1, de 1969.

A convicção dos generais era de que perderiam o controle da situação, se a eleição direta fosse restaurada, de imediato. Advertido para isso, o presidente Figueiredo enviou ao Congresso proposta de emenda constitucional que restaurava a eleição direta, mas para a escolha do sucessor de seu sucessor. Em 16 de abril de 1984, o presidente João Baptista de Figueiredo, através da Mensagem de no 100, encami- nhou a Proposta de Emenda à Constituição que, no Congresso, ganhou o no 11, de 1984, restaurando a eleição direta. O presidente afirmava:

Estou encaminhando ao Congresso Nacional Mensagem propondo a restauração da eleição direta no país. É um gesto e, mais do que isso, uma medida concreta destinada a conciliar a vontade nacional e a difícil realidade dos problemas

134 O Congresso em Meio Século | 2a Edição

institucionais que tivemos de enfrentar ao longo das duas últimas décadas. A Mensagem não objetiva a realização de eleições diretas este ano. Isto porque medida de tal ordem nunca esteve e não está hoje contida em meu projeto político. A Nação bem sabe que, se fosse esse o passo mais conveniente e seguro, eu não me recusaria em propô-lo.

O povo, mais e melhor do que ninguém, é testemunha de que tenho cumprido tudo o que prometi. Para atingir os objetivos e fazer do país uma democracia, vencemos todos os obstáculos com firmeza e determinação. Abertura política não se faz sem riscos. Queremos que ela se faça sem recuos. Um homem público tem o dever de olhar serenamente para frente e não capitular perante as paixões do presente.

Logo depois que sua proposta de emenda constitucional começou a tramitar, foi apresentada emenda propondo a restauração imediata da eleição direta. Surpre- endido e certo de que esta emenda, que ele considerava inconveniente, poderia ser aprovada pelo Congresso, o presidente Figueiredo pediu a retirada de sua proposta, através da Mensagem no 209, de 27 de junho de 1984.

A campanha em favor da restauração imediata das eleições diretas ganhou as ruas e apaixonou a opinião pública. Os partidos que tinham notória simpatia pela elei- ção direta promoveram concentrações nas grandes cidades brasileiras, como Rio de Janeiro e São Paulo, a que compareceram mais de 1 milhão de pessoas. Essas mobilizações criavam agitação política e causavam grande nervosismo na alta hie- rarquia militar, que tinha o receio de ser ultrapassada. As mobilizações acabaram justificando a decretação do “estado de emergência” pelo governo Figueiredo, que entregou ao Comando Militar do Planalto, ocupado pelo general Newton de Oli- veira e Cruz, a tarefa de reprimir excessos nas manifestações populares no dia da votação da emenda das Diretas Já.

A medida suspendia as garantias e direitos individuais. Ao mesmo tempo, impediu a transmissão de imagens de TV sobre a votação da emenda constitucional para impedir que alguns parlamentares governistas votassem a favor das diretas, para não se afastarem da orientação do Palácio do Planalto. O general Newton Cruz prendeu dezenas de pessoas, durante a ação repressora desencadeada pela tropa, sob seu comando, na Esplanada dos Ministérios, inclusive dois deputados federais, o que provocou pronta reação do então presidente da Câmara dos Deputados, Flá- vio Marcílio. Depois de alguns telefonemas trocados com o ministro do Exército, general Valter Pires, em um dos quais ameaçou entregar-se preso, Marcílio conse- guiu a libertação dos dois deputados detidos.

135 Colégio Eleitoral

As oposições queriam as eleições diretas, mas se conformavam com a eleição indireta, pois sabiam que elegeriam Tancredo Neves, como, de fato, aconteceu. Paulo Maluf nunca tomou conhecimento das conversações reservadas que o ha- bilidoso político mineiro manteve com figuras de grande expressão do regime militar. Tancredo Neves só renunciou ao governo de Minas Gerais quando se convenceu de que seu nome havia sido aceito pelo governo Figueiredo e pela cúpula militar e que não teria dificuldade em vencer Maluf, garantindo a sua escolha pelo Colégio Eleitoral.

A doença e morte do político mineiro surpreendeu o mundo político e o país, mas prevaleceu o mais importante, que era assegurar a continuidade da transição do autoritarismo para a democracia. Também se impôs a tese de que cabia ao vice-pre- sidente José Sarney assumir a Presidência da República naquele transe dramático.

Durante a Constituinte – que Sarney convocara, ao assumir a Presidência da Repú- blica, em caráter definitivo, após a morte de Tancredo, em 21 de abril de 1985 – as relações do novo presidente e de Ulysses Guimarães ficaram ainda mais conflitu- osas. Sarney percebeu que a Constituição que estava sendo elaborada enfraquecia o Poder Executivo, podendo transformar-se em fonte de crises institucionais. Os governos seguintes dariam razão a Sarney, realizando a mais profunda e abrangente reforma constitucional da história republicana.

No dia 26 de julho de 1988, o presidente José Sarney ocupou cadeia nacional de rádio e televisão para criticar a qualidade do trabalho constituinte e exprimir suas preocupações com o esvaziamento de poderes do Executivo, para ele, fonte de pos- síveis crises institucionais, em futuro não distante. “Os brasileiros receiam que a Constituição torne o país ingovernável”, bradou Sarney, advertindo, ao final:

Não desejo, amanhã, ser acusado de ter faltado com a palavra e ter deixado de alertar no momento oportuno. Nem que, por falta dela, venha a pesar sobre o governo o ônus da insatisfação de desejos e aspirações inatingíveis. A Constituição deve servir ao Brasil, a 140 milhões de brasileiros de todas as latitudes [...] A Constituição não é de um partido, não pode ser de uma facção. Nem pode representar a vitória de um sobre os outros. A Constituição deve expressar o sentimento nacional para que seja duradoura, para que seja um instrumento da unidade de todos nós. A Constituição é para todos.

136 O Congresso em Meio Século | 2a Edição

Estava criado o conflito. No dia seguinte, o presidente da Constituinte, deputado Ulysses Guimarães, da Presidência da Assembleia, proferiu discurso respondendo a Sarney, no qual dizia, a certa altura:

Não ouvimos o establishment encarnado no Velho do Restelo, conclamando na praia alvoroçada da partida de Vasco da Gama, Pedro Álvares Cabral e Camões para permanecerem em casa, saboreando bacalhau e caldo verde, ao invés da aventura das Índias, do Brasil e dos Lusíadas, e amaldiçoando o primeiro que, no mundo, nas ondas velas quis em seco lenho. Essa Constituição terá cheiro de amanhã, não de mofo.

E, mais adiante, asseverava:

A Constituição, com as correções que faremos será a guardiã da governabilidade. A governabilidade está no social. A fome, a miséria, a ignorância, a doença inassistida são ingovernáveis. A injustiça social é a negação do governo e a condenação do governo. Repito: Esta será a Constituição Cidadã, porque recuperará como cidadãos milhões de brasileiros.

O projeto de Constituição elaborado pela Comissão de Notáveis, presidida pelo senador Afonso Arinos, tinha 468 artigos. Ao encaminhar a proposta ao presidente José Sarney, o senador Afonso Arinos dizia: “A Nação fatigada dos desencontros deseja a paz que se assente na liberdade e na justiça e seja garantida por instituições fortes e duradouras”.

O relacionamento entre Sarney e Ulysses, porém, tornou-se extremamente formal. Ulysses Guimarães assumiu a Presidência da República diversas vezes, mas já não tinha força para impor ao presidente da República o que desejava. Ulysses acabou exigindo que, uma vez promulgada a nova Constituição, os chefes de Poderes fos- sem obrigados a prestar novo compromisso. Os congressistas, por sua vez, durante a cerimônia de instalação da Assembleia Nacional Constituinte, prestaram com- promisso não à Emenda Constitucional no 1, outorgada pela Junta Militar e ainda em vigor. Juraram cumprir a futura Constituição.

Ulysses pediu-me que estudasse a tradição constitucional em outros países, em ma- téria de prestação do compromisso. Examinei todas as Constituições e procedi a levantamento histórico das nossas Constituintes. Ulysses achava que os constituin- tes não poderiam prestar juramento à Emenda Constitucional outorgada por Junta Militar. Seria uma ofensa às tradições políticas do Brasil. Os constituintes de 1946 também se negaram a prestar compromisso à Constituição de 1937 – do Estado

137 Colégio Eleitoral

Novo. Nunca li comentário algum, na imprensa brasileira, sobre essa preocupação do presidente da Constituinte.

Quando assumiram os mandatos, deputados e senadores tiveram de prestar com- promisso. O presidente da Assembleia lia o texto e todos falavam em voz alta: “As- sim o prometo.” Ulysses advertiu que os chefes de Poderes teriam de prestar novo compromisso face à promulgação da nova Constituição. No dia 5 de outubro de 1988, na mesma sessão solene de promulgação da nova Carta Constitucional, pres- taram compromisso, além dos parlamentares, o presidente da República, José Sar- ney, e o presidente do Supremo Tribunal Federal, ministro Rafael Mayer. Tivemos situação sui generis: em uma mesma legislatura, os parlamentares e os chefes de Poderes prestaram dois compromissos. Vale a pena lembrar que o presidente do Supremo presta compromisso perante a Suprema Corte, não perante o Congresso.

138 Capítulo IX Doença e Morte de Tancredo

A doença de Tancredo Neves só veio a tornar-se pública na véspera da posse, logo suscitando dúvidas jurídicas, visto que o presidente eleito não havia assumido o cargo. No Palácio do Planalto, o ministro-chefe da Casa Civil, Leitão de Abreu, de- fendia a tese de que cabia ao presidente da Câmara dos Deputados, Ulysses Gui- marães, assumir a Presidência interinamente. O senador e jurista Afonso Arinos entendeu que o vice-presidente da República, eleito pelo Colégio Eleitoral, era o substituto legal do titular enfermo.

À noite do dia 14 de março de 1985, estava oferecendo um jantar a amigos meus, entre eles os deputados Carlos Wilson, Heráclito Fortes, e o advogado Pedro Grossi, quando recebi telefonema do general Ivan Mendes, que já havia sido convidado por Tancredo Neves para chefiar o SNI (Serviço Nacional de Informações). Ivan me comunicava que, naquele instante, 21 horas, o presidente eleito, sofrendo crise aguda de apendicite, estava sendo removido da Granja do Riacho Fundo, onde se hospedara com a família, para o Hospital de Base.

Assim, Tancredo achava-se impedido de tomar posse, no dia seguinte, na Presidên- cia da República. O general Ivan Mendes, meu amigo pessoal, indagava-me quem deveria assumir, se o presidente da Câmara dos Deputados, Ulysses Guimarães, se o vice-presidente da República eleito, José Sarney. Opinei que, nos termos da Constituição (Emenda Constitucional no 1, de 1969), o vice-presidente da Repúbli- ca deveria tomar posse.

Em face da controvérsia surgida horas antes da posse, dia 15 de março, alguns ofi- ciais-generais, à frente o general Leônidas Pires Gonçalves, virtualmente escolhido ministro do Exército, fizeram uma visita, na noite do dia 14 de março de 1985, ao ministro Cordeiro Guerra, presidente do Supremo Tribunal Federal, que chamou mais três ministros para um exame conjunto da situação. Após cerca de duas horas de conversa, todos se manifestaram a favor da posse do vice-presidente Sarney.

Depois desse encontro, o general Leônidas Pires Gonçalves e outros generais fizeram uma visita ao ministro-chefe do Gabinete Civil, Leitão de Abreu, na Granja do Ipê. Leitão ratificou a sua posição favorável à posse do presidente da Câmara dos De- putados, Ulysses Guimarães. Compreendia-se a dificuldade do chefe da Casa Civil, obrigado a seguir, por dever de lealdade, a posição do presidente Figueiredo, que se tornara adversário de Sarney, tanto assim que se recusaria a transmitir-lhe o cargo.

139 Doença e Morte de Tancredo

A propósito, o general Danilo Venturini, ex-secretário do Conselho de Segurança Nacional e ministro de Assuntos Fundiários do governo Figueiredo, explicaria o gesto do presidente de recusar-se a passar a faixa presidencial a Sarney. Segundo Venturini, havendo controvérsia sobre quem deveria empossar-se em lugar de Tan- credo, Figueiredo não teria desejado transmitir o poder, em ato solene, com receio de que sua legalidade viesse a ser contestada a posteriori, o que o deixaria em situ- ação constrangedora.

Algumas eminentes personalidades entendiam que, se Tancredo Neves não havia assumido a Presidência da República, quem deveria assumir o cargo, interinamen- te, era o presidente da Câmara dos Deputados para convocar novas eleições no prazo de trinta dias. Outros julgavam que cabia ao vice-presidente da República as- sumir o poder como substituto constitucional do titular. A posse de Sarney, afinal, impôs-se, o que certamente contribuiu para tranquilizar o país.

Na verdade, a cúpula das Forças Armadas fazia restrições à posse de Ulysses Gui- marães, em quem não confiava. Todos se recordam de que os generais tinham grande receio de revanchismo, palavra da moda, naquela época. Guardadas as diferenças, o vice-presidente Pedro Aleixo sofrera veto semelhante, após a doença do presidente Costa e Silva.

Ulysses julgava que tinha prestado mais serviços relevantes ao país do que o vice- presidente, porque tinha corrido riscos ao assumir a primeira linha no combate à ditadura militar. O mérito indiscutível de Ulysses foi reunir as diferentes correntes que se digladiavam no antigo MDB, da esquerda radical à esquerda moderada, do centro à direita. Era a união dos contrários, como se dizia, então. Ulysses procurava exprimir as tendências da maioria.

Vencida a controvérsia – que era mais política do que jurídica – o vice-presidente Sarney assumiu a Presidência da República, interinamente, uma vez que o titular, Tancredo Neves, doente e hospitalizado, não podia locomover-se, conforme atesta- do médico emitido pelo diretor do Hospital de Base, no Distrito Federal, Dr. Gusta- vo de Arantes Pereira, em 15 de março de 1985, cujos termos são os seguintes:

Atesto para os devidos fins que o Senhor Doutor Tancredo Neves encontra-se internado neste Hospital de Base, no DF, onde foi submetido pela madrugada de hoje a cirurgia e onde deverá ficar em repouso, estando o mesmo impossibilitado de se locomover temporariamente.

140 O Congresso em Meio Século | 2a Edição

Quatro dias depois, em 19 de março de 1985, os médicos-professores João Batista de Resende Alves, Lopes Pontes, Jaime Landmann, Geraldo Siffert, Agostinho Bo- torello, Wilson Luís Abrantes, Newton Procópio, Henrique Walter Pinotti e Célio E. D. Nogueira distribuíram o seguinte boletim médico:

A Junta Médica, convidada pelos médicos que assistem o Presidente da República, elaborou o seguinte parecer: 1) elogiam a conduta médico-cirúrgica que foi e continua sendo correta; 2) destacam que o estado geral do Senhor Presidente da República é bom, com os sinais vitais preservados; 3) existem alterações nos movimentos intestinais não raramente observados após intervenções abdominais de urgência, e para os quais estão sendo adotadas as medidas terapêuticas adequadas.

Cauteloso, Sarney recusou-se a transferir sua residência do Palácio do Jaburu para o Palácio da Alvorada. Recebia as pessoas neste Palácio e evitava tomar decisões importantes. Durante longo tempo, Sarney manteve o Ministério organizado por Tancredo Neves. Também manteve os membros da Comissão de Notáveis incum- bida de elaborar o anteprojeto da nova Constituição, a qual era presidida pelo se- nador Afonso Arinos.

Depois de longo e penoso padecimento, Tancredo Neves morreu no Instituto do Coração, em São Paulo, para o qual fora transferido e hospitalizado. Anunciado o falecimento do presidente da República, o deputado Ulysses Guimarães determi- nou a convocação de sessão extraordinária noturna, em 21 de abril de 1985, não prevista no Regimento Interno, que serviu para que ele comunicasse formalmente à Nação a morte de Tancredo Neves, o que veio a fazer proferindo breve e emocio- nado discurso, que é o seguinte:

Morreu Tancredo Neves. Morreu o amigo. Mais do que o avô, marido, pai, morreu o amigo da família. Morreu o amigo que era irmão dos amigos. Acima de tudo, morreu o grande e apaixonado amigo do Brasil. A biografia de Tancredo Neves é comovente e edificante história de amor pelo Brasil. Logo agora, quando o povo tanto necessita de amigos corajosos, leais e talentosos, perde o maior deles e um líder de todos eles, aclamado pelas praças, ungido pelas ruas, carregado triunfalmente por multidões.

141 Doença e Morte de Tancredo

Adeus, Tancredo. Sem você, embora esmagados pela dor e pela separação, ficamos mais fortes e decididos na companhia de sua memória e de seu exemplo. A fatalidade decretou que o eleito não governasse seu povo. Mas você não nos abandonou. A homenagem sincera e consequente dos que choram será impedir qualquer recuo na caminhada pelas instituições livres, que se consolidarão através da Assembleia Nacional Constituinte. Entregue a Deus pelo seu Santo, São Francisco, você vai inspirar a salvação do Brasil. Morreu Tancredo. Contudo, a ressurreição de sua voz conclama os brasileiros: Viva a liberdade, viva a democracia, viva a República.

O presidente Tancredo Neves não teve tempo de indicar a totalidade dos cin- quenta membros da Comissão de Notáveis, que ficou incumbida de elaborar o projeto de Constituição. Instalado o governo, o ministro da Justiça, Fernando Lira, decidiu indicar os nomes que faltavam, alegando que eram os preferidos de Tancredo Neves. Depois da morte de Tancredo, Sarney transferiu sua residência para o Palácio da Alvorada.

As principais lideranças responsáveis pela articulação da candidatura de Tancredo Neves subscreveram documento constituindo a Aliança Democrática. Tratava-se do Compromisso com a Nação, pelo qual PMDB e PFL se coligaram na chamada Aliança Democrática, estabelecendo os termos em que governariam o país, junta- mente com o presidente José Sarney. Datado de 7 de agosto de 1984, o documento foi subscrito pelo deputado Ulysses Guimarães, presidente do PMDB, Tancredo Neves, governador de Minas Gerais, Aureliano Chaves, vice-presidente da Repúbli- ca, e o senador Marco Maciel.

No preâmbulo do documento, essas lideranças sublinharam:

Os signatários deste documento, representantes do Partido do Movimento Democrático Brasileiro e da Frente Liberal, objetivando a consolidação das instituições democráticas, o desenvolvimento econômico do Brasil e a realização da justiça social, deliberaram constituir uma Aliança Democrática aberta aos partidos políticos e demais forças democráticas para eleger o presidente e vice-presidente da República nas próximas eleições e instituir um governo que promova o encontro do Estado com a sociedade e concretize o bem comum.

Durante todo o seu período na Presidência, Sarney manteve esse documento em frente à sua mesa de despachos para demonstrar a importância que atribuía a tal pacto político.

142 O Congresso em Meio Século | 2a Edição

O Relato de Ulysses

O deputado Ulysses Guimarães escreveu relato pormenorizado dos acontecimen- tos relacionados à doença de Tancredo Neves e das conversas sobre a sua sucessão, texto que foi publicado na revista Manchete, em dezembro de 1985 e que, dada a sua importância, transcrevemos em seguida:

Dia 11 de março, segunda-feira (1985). Chego de São Paulo cerca de 20 horas. Tancredo estava sendo homenageado com um jantar pela Manchete, que havia insistido em meu comparecimento. Dada a hora, hesitei em ir. Chegando lá, já com Tancredo e os convidados sentados, provoco a movimentação que queria evitar, para que sentasse à mesa principal. Adolpho Bloch faz um discurso em seu estilo direto, delicioso, muito afetivo com Tancredo, mas dispara setas aceradas de crítica e humor. Amaldiçoa os juros que comem o seu patrimônio e a segurança de mais de 7 mil auxiliares, do que dele próprio. E fulminou: “É como a formiga, presidente: ou o Brasil mata os juros ou os juros matam o Brasil”.

Na resposta de Tancredo, digo a Daysy Setúbal, sentada ao meu lado: “O Tancredo está muito cansado. Seu discurso mostra isso. Está irreconhecível”.

Nos dias seguintes, como sempre acontecia na Granja do Riacho Fundo, para onde foi depois de eleito, em seu comitê, tivemos as costumeiras conversas, além de constantes telefonemas, logo cedo, pois era, como eu, madrugador. Se eventualmente ainda dormia, dizia, matreiro: “Estava lendo”. Eu o sabia doente, resistindo a operar-se antes da posse. Mas Tancredo continuava com sua resistência de muar, enfrentando com estoicismo franciscano – São Francisco era o seu padroeiro, sua imagem bem grande estava em sua mesa de trabalho – os infindáveis, tensos e às vezes irritantes contactos para montagem do governo. Sempre que queria saber de sua saúde, respondia seco e terminativo: “Estou bem”. Dessa conversa não gostava.

15 horas do dia 14 de março, quarta-feira. Meu gabinete como presidente da Câmara dos Deputados era invadido por parlamentares. Nosso vice-líder do PMDB e de Minas, José Maria Magalhães, médico de nomeada, fala por todos:

“Presidente, a Casa está cheia de notícias inquietantes sobre a saúde do Dr. Tancredo. Queremos saber o que há.” Ligo para o Riacho Fundo. Atende sua filha Maria do Carmo. Sinto que Tancredo atende vindo de outro cômodo. Sem que eu perguntasse, vai logo falando: “Ulysses, temos que nos preparar para dias difíceis. Avalio pela conversa que estou tendo.” Pergunto: “Como você está se sentindo?” “Bem. Como lhe disse, anuncio o Ministério domingo.” “Mas você ficou de acertar comigo os governadores de Brasília, Amapá e Roraima.”

143 Doença e Morte de Tancredo

“Trataremos disso amanhã ou depois.” “Mas como, Tancredo, se Brasília está cheia de delegações e chefes de Estado de oitenta países? Nem eu, quanto mais você, temos tempo para as audiências.” “Eu não anunciarei, sem tratar disso com você.” “Você vai também anunciar a composição da comissão que elaborará o projeto de Constituição?” Ele sabia que eu não via com bons olhos essa iniciativa. Responde: “Vou, não quero atrasar isso. Vão dizer que me desinteressei da Constituinte. Já convidei Afonso Arinos para presidi-la. Credenciaremos sua composição.” Ante os olhares interrogativos dos senadores e deputados, insisto: “E a saúde, Tancredo? Você está mesmo bem?” “Estou bem. Aguarde chamado meu, amanhã ou depois.” Busco tranquilizar os companheiros: “Vocês ouviram. O homem é de ferro. Só fala em trabalho.”

Em outro trecho do mesmo depoimento, uma vez confirmada a internação, às pres- sas, de Tancredo no Hospital de Base, Ulysses conta as conversas que se verificaram em Brasília, da noite do dia 14 de março de 1985 para a madrugada e manhã do dia seguinte, quando o presidente eleito e seu vice tomariam posse.

Vendo que Tancredo, à 0h30 da madrugada do dia 15, descia para a sala de opera- ção, Ulysses chamou o senador José Sarney e o ministro do Exército, general Leô- nidas Pires Gonçalves, para uma conversa reservada. Ulysses disse, virando-se para Sarney: “Você vai assumir.”

Sarney contestou: “Como presidente da Câmara, você assume.”

Ulysses contrapôs: “Havendo dúvidas, elas não devem invadir o país. Pela autorida- de que tenho, como eventual beneficiário, vou exercê-la para que você substitua o Tancredo, durante sua doença”.

Ulysses disse ao general Leônidas, e já agora com a presença do senador Fernando Henrique Cardoso: “Vamos já à Granja do Ipê, comunicar nosso entendimento ao ministro Leitão de Abreu, chefe da Casa Civil do presidente João Figueiredo”.

Recebidos pelo chefe da Casa Civil, já de madrugada, a primeira coisa que Ulysses ouviu dele foi: “Como presidente da Câmara, o senhor deve assumir.”

Leitão foi buscar a Constituição Federal, oferecendo a exegese dos artigos 76 e 77, que regulavam a espécie. O assunto foi debatido durante cerca de quarenta minu-

144 O Congresso em Meio Século | 2a Edição

tos. Leitão fixou-se no entendimento sobre a disjuntiva “ou” do parágrafo único do artigo 76 – “se o presidente ou o vice-presidente não tiverem assumido o cargo.”

Ulysses aferrou-se à tese da posse de Sarney, assim encerrando a conversa, conclu- sivamente, com o ministro-chefe da Casa Civil:

Ministro Leitão de Abreu, mais do que o suporte legal, que reconheço polêmico, a matéria, pela sua profunda repercussão na vida da Nação, deve ter decisão política. Preocupado com o país e com minha responsabilidade de presidente da Câmara dos Deputados, presidente nacional do PMDB e também vice-presidente da República, entendo que o senador José Sarney deve assumir.

A mesma edição da revista Manchete publica artigo do vice-presidente José Sarney sobre aqueles momentos dramáticos em face da perspectiva do futuro. Concluindo o artigo, Sarney falava sobre a fome, um tema sempre recorrente no Brasil:

O mundo não pode ter paz enquanto existir uma boca faminta em qualquer lugar da Terra, uma criança morrendo sem leite, um ser humano agonizando pela falta de pão. O século que virá será o século da socialização dos alimentos. A imagem da Mater Dolorosa dos desertos africanos nos humilha. Os alimentos não podem continuar sendo apenas mercadorias especulativas das bolsas. A ciência e a técnica estão aí, através da engenharia genética, anunciando uma nova era de abundância.

A humanidade, que foi capaz de romper as barreiras da Terra e partir para as estrelas longínquas, não pode ser incapaz de extirpar a fome. O que se necessita é de uma vontade mundial, de uma decisão sem vetos. É urgente um plano de paz pela extinção da fome. O Brasil, que vive o paradoxo de ser produtor de alimentos, enquanto luta para eliminar de seu território os bolsões de fome, está disposto a participar com entusiasmo de um esforço de mobilização da comunidade internacional para eliminar esse flagelo antes do fim do século.

Ulysses e Sarney

As relações entre o presidente Sarney e o deputado Ulysses Guimarães passaram por momentos turbulentos. Quando se tornou evidente o fracasso do Plano Cru- zado, o ministro da Fazenda, Dílson Funaro, com a plena concordância de Sarney, propôs a reformulação que já se impunha daquele programa econômico. Exercen- do seu papel tutelar, Ulysses Guimarães não permitiu que fossem promovidas as correções que teriam evitado o frustrante malogro do Plano. O país estava na imi- nência das eleições de 1986. Mudanças no Plano Cruzado levariam certamente o PMDB e seus aliados a uma contundente derrota eleitoral.

145 Doença e Morte de Tancredo

O PMDB teve expressiva vitória eleitoral, como nenhum outro partido experimentou em toda a história republicana. Sozinho, detinha 304 de um total de 481 constituin- tes, quando o quórum de maioria absoluta na Assembleia era de 241 parlamentares. Além disso, o PMDB elegeu 22 dos 23 governadores e a maioria absoluta dos sena- dores, graças à popularidade do Plano Cruzado, que enfrentava notórias dificuldades àquela altura. Foi o que depois se convencionou chamar de “estelionato eleitoral”.

A liderança de Ulysses Guimarães era incontrastável. Certo dia, ele foi procurado pelo governador do Rio Grande do Sul, Pedro Simon, que lhe fez impressionante relato sobre a situação financeira do estado. Não tinha recursos para pagar o fun- cionalismo e o Ministério da Fazenda se recusava a lhe conceder qualquer tipo de empréstimo. “Estou desesperado” – confessou Simon. Ulysses expôs o drama de Pedro Simon em telefonema a Sarney, que concordou imediatamente com a con- cessão do empréstimo.

O deputado Ulysses Guimarães chegou a exercer grande autoridade sobre o presi- dente Sarney. Quando da exoneração de Dílson Funaro do Ministério da Fazenda, Sarney convidou o governador Tasso Jereissati para exercer o cargo. Tasso chegou a Brasília, à noite. Cumpre lembrar que, antes da Constituição de 1988, os governa- dores podiam assumir o Ministério sem perder o cargo que exerciam, exigindo-se, apenas, que se licenciassem.

No dia seguinte, às 9h30, Sarney telefonou para Ulysses a fim de comunicar que fizera o convite a Jereissati, a essa época no PMDB. Ulysses reagiu, na minha pre- sença, de forma surpreendente: “Não, absolutamente! Quem tem de ser nomeado é o Bresser Pereira. O partido não aceita Tasso Jereissati.” Habilidoso, Sarney concor- dou, mesmo porque Ulysses acumulava as Presidências da Câmara e do Partido.

Claro que Sarney estranhava as seguidas interferências de Ulysses, mas tinha que se submeter às injunções, uma vez que chefiava um governo de transição, cuja base de apoio tinha no PMDB a sua coluna mestra. Forçoso é reconhecer que Ulysses nunca usou o PMDB para tirar proveito pessoal. Tratava exclusivamente de as- suntos de interesse público ou de problemas que envolvessem correligionários ou companheiros da atividade política, de maneira admiravelmente impessoal e, ao mesmo tempo, sem perder sua grande dimensão humana.

Lembro-me de episódio que envolveu o deputado Aldo Fagundes, pessoa da confiança pessoal de Ulysses e que já não tinha condições de se reeleger no Rio Grande do Sul. Certa noite, Ulysses revelou-me que havia resolvido o problema que afligia o parlamentar gaúcho, a quem habitualmente incumbia de fazer as

146 O Congresso em Meio Século | 2a Edição

minutas de notas oficiais que o Partido distribuía à imprensa, após as reuniões de sua Executiva Nacional. Ulysses falou com Sarney, que nomeou Aldo para ministro do Superior Tribunal Militar.

Algo semelhante aconteceu com o deputado Jorge Vargas, que tinha sido vice-lí- der da Arena, quando a liderança era exercida pelo deputado José Bonifácio, no governo do general Ernesto Geisel, vindo a desempenhar papel saliente na eleição indireta de Tancredo Neves no Colégio Eleitoral. Jorge fora homem abastado e fi- cou pobre na política, tendo de sustentar prole numerosa. Teve conversa patética comigo, quando argumentou que, ao final da vida, não tinha mais nem casa para morar – fosse em Paracatu, Belo Horizonte ou Brasília. Relatei o drama a Ulysses, que já conhecia a situação do deputado. Graças à sua interferência, Sarney nomeou Jorge Vargas ministro do Tribunal de Contas da União (TCU).

Ulysses Adoece

Em sessão plenária vespertina, dia de Casa cheia, o presidente Ulysses Guimarães causou perplexidade e espanto, ao manter diálogo coloquial com alguns deputados, ele que era formal por natureza. Comunicou, por exemplo, ao deputado Freitas No- bre, que lhe estava reservando lugar para promover atividade cultural na Fundação do PMDB, como se problemas internos do Partido pudessem ser tratados em uma sessão plenária da Câmara dos Deputados, que ele presidia. Percebeu-se que Ulys- ses perdera o controle de si mesmo. Diante da situação constrangedora, sugeri ao deputado Carlos Wilson (PE) que assumisse a Presidência da sessão. Com razão, ele ponderou que não poderia afastar Ulysses da poltrona reservada à Presidência.

Encontrei um meio de contornar o constrangimento, comunicando ao Dr. Ulys- ses que o chamavam ao gabinete para atender um telefonema urgente da Pre- sidência da República. Ulysses levantou-se e dirigiu-se ao gabinete de onde foi levado para casa. O deputado Carlos Wilson assumiu a Presidência da sessão. O secretário particular de Ulysses, Oswaldo Manicardi, procurou-me para co- nhecer os detalhes do episódio. Depois do relato que fiz, disse-lhe que Ulysses parecia estar sofrendo de doença grave.

Sugeri que fosse examinado em Boston, nos Estados Unidos, considerado o maior centro neurológico do mundo. Manicardi perguntou-me se autorizava a conversar tudo o que de mim ouvira com dona Mora, esposa de Ulysses. Com minha autori- zação, Manicardi fez relato pormenorizado da situação a dona Mora, que resolveu

147 Doença e Morte de Tancredo

levá-lo para os Estados Unidos. Sarney foi gentilíssimo. Colocou o avião no 1 à dispo- sição de Ulysses Guimarães e acionou o Itamaraty para prestar-lhe toda a assistência, designando alto funcionário do Ministério das Relações Exteriores, integrante do Ce- rimonial da Presidência da República, para acompanhar o Dr. Ulysses.

Lá, foi atendido pelo Dr. Alzheimer, descobridor da doença que leva seu nome e que ainda tinha clínica naquela cidade norte-americana. O próprio Dr. Alzheimer o atendeu, observando que estava errada a dosagem do medicamento que lhe fora prescrita no Brasil, o que levava o doente a mudar de estados de euforia para mo- mentos de depressão. Corrigido o erro, aplicou-se a dosagem adequada e o proble- ma foi resolvido. Nesse tempo, o médico de Ulysses, neurologista e neurocirurgião José Lúzio, sugeriu o seu afastamento de qualquer atividade. O médico emitiu a seguinte declaração:

Declaração. Declaramos para os devidos fins que, a pedido do interessado, o Dr. Ulysses Guimarães está sob os nossos cuidados profissionais e que recomendamos o seu afastamento das atividades profissionais, guardando repouso durante vinte dias, a partir desta data. São Paulo, 8 de abril de 1986. José Lúzio.

Posteriormente, submetido a uma carga de trabalho exagerada, Ulysses veio a manifestar problemas cardíacos, sendo submetido a uma angioplastia. Mais tar- de, quando se achava em São Paulo, em um desses fins de semana, sofreu crise de apendicite, submetendo-se a uma operação de emergência. A pedido de Ulysses, redigi requerimento em que ele solicitava licença por quinze dias. Coube ao de- putado Humberto Souto, na qualidade de primeiro-vice-presidente da Câmara dos Deputados, assumir a Presidência da Casa, e ao senador Mauro Benevides a Presidência da Constituinte, que nada votou, porque os constituintes não admi- tiam votar sem a presença do titular.

O deputado Ulysses Guimarães não revelava gosto por assuntos administrativos. Gostava de política. Tinha da Câmara a visão do poder pensante, interessado em sua dimensão política. Não escondia sua aversão a despachos administrativos e só assinava papéis depois de esclarecido o assunto. “Papel é perigoso” – costumava di- zer. Levava processos para casa e os assinava com enorme dificuldade. Havia casos em que pedia a minha opinião, ainda que se tratando de assuntos de outras áreas. Felizmente, sempre a acolhia.

148 O Congresso em Meio Século | 2a Edição

Ulysses tinha enorme capacidade de trabalho. Certa manhã de domingo cheguei à residência oficial da Presidência da Câmara para despachos, cumprindo sua reco- mendação. Levava três pastas com mais de cem papéis para que ele os examinasse. Fiquei aguardando que saísse de seus aposentos. De repente, aparece dona Mora, um tanto nervosa, advertindo-me: “Paulo, você está sobrecarregando o Ulysses. Ele está cansadíssimo, não pode assinar nada”.

Perplexo, disse-lhe que estava equivocada, uma vez que não me achava ali porque desejasse aumentar os encargos do presidente da Câmara dos Deputados e da Cons- tituinte, mas, sim, atendendo a seu chamado. Já me dispunha a sair, quando dona Mora fez-me apelo para que não agisse daquela forma, pois Ulysses certamente a re- criminaria. Mais calma, sugeriu que eu só levasse processos de rotina para despachos. Concordei naturalmente com a sugestão, tratando de separar os processos.

Promulgada a Constituição, seu maior feito, o deputado Ulysses Guimarães per- deu muito de sua antiga influência sobre o governo Sarney. A perda de prestígio causou-lhe frustração e amargura, porque, no fundo, Ulysses achava que ele é que deveria ter sido o presidente da República, com a morte de Tancredo Neves, e não Sarney. De acordo com a sua opinião, o vice-presidente não tinha o direito de suce- der ao titular, uma vez que este não chegara a se investir do cargo. Sustentava que o presidente da Câmara dos Deputados devia ter assumido a Presidência da Repúbli- ca, tratando de convocar novas eleições, no prazo de trinta dias.

Como o vice-presidente poderia assumir? Ele iria substituir a quem, se o titular havia adoecido e morrido antes de tomar posse? A maioria das pessoas importan- tes entendeu que o vice-presidente devia assumir, ainda que o titular não se tivesse investido do cargo. O problema era político e não jurídico, como Ulysses Guima- rães, perspicaz que era, logo compreendeu, ao surgir a controvérsia. Entendo que, pela Emenda Constitucional no 1, então vigente, quem deveria assumir era mesmo o vice-presidente José Sarney. Além disso, a alta hierarquia das Forças Armadas julgava inconveniente ao processo de transição a realização de eleições diretas, com receio de revanchismo dos seus opositores. E não confiava em Ulysses Guimarães, identificando-o como um adversário.

Diante da doença de Tancredo, o jornalista Fernando César Mesquita, porta-voz de Sarney, procurou-me para examinar a possibilidade de o presidente eleito prestar compromisso constitucional no leito do hospital, dando-se-lhe posse em seguida. Analisei o assunto à luz da Constituição e do Regimento Comum. Escrevi o estudo

149 Doença e Morte de Tancredo

e o entreguei a Fernando César, demonstrando que, nos termos da Constituição e do Regimento Comum, em certas circunstâncias, o Congresso poderia reunir-se fora de sua sede. O documento que redigi era o seguinte:

A Constituição Federal estabelece em seu artigo 76: “O presidente tomará posse em sessão do Congresso Nacional e, se este não estiver reunido, perante o Supremo Tribunal Federal, prestando o compromisso de manter, defender e cumprir a Constituição, observar as leis, promover o bem geral e sustentar a união, a integridade e a independência do Brasil.”

Pela norma, o Regimento Comum do Congresso Nacional deve estabelecer a data para a prestação do respectivo compromisso, fixação do local, bem assim a natureza da sessão (ordinária, extraordinária ou solene, pública ou secreta).

Diz a Resolução do Congresso Nacional no 1, de 1970 (Regimento Comum): “Art. 1o A Câmara dos Deputados e o Senado Federal, sob direção da Mesa deste, reunir-se- ão em sessão conjunta para [...] II – Dar posse ao presidente e ao vice-presidente da República eleitos (artigo 76, parágrafo 1o do artigo 77 da Constituição)”.

Por outro lado, o artigo 3o do mesmo Regimento Comum regula o local onde devem ser realizadas as sessões conjuntas do Congresso Nacional, a saber: “As sessões realizar-se-ão no plenário da Câmara dos Deputados, salvo escolha prévia de outro local devidamente anunciado”.

Não cabe aplicar à espécie o que dispõe o artigo 151 do mesmo diploma: “Nos casos omissos neste Regimento aplicar-se-ão as disposições do Regimento do Senado e, se este ainda for omisso, as do da Câmara dos Deputados”.

Em razão de não haver qualquer omissão, o Regimento Comum, as normas dos Regimentos do Senado Federal (artigo 1o e seu parágrafo único) e da Câmara dos Deputados (artigo 1o e seu parágrafo único) não são aplicados subsidiariamente.

A respeito da matéria, já ocorreu a instalação do Congresso Nacional, em convocação extraordinária, no plenário do Senado Federal, em razão de convocação do presidente desta Casa, com fundamento no artigo 2o do Regimento Comum: “As sessões que não tiverem data legalmente fixada serão convocadas pelo presidente do Senado, com o seu substituto, com prévia audiência da Mesa da Câmara dos Deputados.”

Assim, pela legislação em vigor (Regimento Comum) e pelo precedente, pode o presidente do Senado Federal, com anuência da Mesa da Câmara dos Deputados, fixar local diverso do plenário da Câmara dos Deputados para sessões conjuntas do Congresso Nacional, quando a data não for fixada previamente por norma legal.

Em 1961, ocorreu episódio semelhante quando da renúncia do presidente Jânio Quadros, ocasião em que os ministros militares se recusaram a admitir a posse do vice-presidente João Goulart. Naquela oportunidade, algumas das mais importan-

150 O Congresso em Meio Século | 2a Edição

tes lideranças políticas levantaram a hipótese de o Congresso Nacional reunir-se fora de Brasília para garantir a posse de João Goulart na Presidência da República. O governador Mauro Borges, de Goiás, chegou a oferecer Goiânia para instalar o Congresso, fato que não se consumou.

Nos termos do documento que redigi, estava claro que, achando-se Tancredo Ne- ves doente, incapacitado de locomoção, as Mesas das duas Casas do Congresso Nacional, mediante publicação de edital, convocariam os congressistas para se reu- nirem no Hospital Distrital, de tal forma que pudesse o presidente eleito prestar o compromisso e assinar o termo de posse. O ato seria público, assim preenchendo os requisitos constitucionais. Mas tal fato não ocorreu. Certo dia, perguntei a Fer- nando César Mesquita por que não se seguiu aquele caminho. Ele disse que Sarney receara provocar reações.

Se Tancredo Neves tivesse seguido o estudo que fiz, tomando posse no leito do Hospital Distrital, onde se achava internado, perante o Congresso Nacional, José Sarney teria assumido a Presidência da República, como vice-presidente, sem qual- quer contestação de natureza jurídica.

151 Capítulo X A Constituinte de 1987/1988

A Assembleia Nacional Constituinte, prevista na Emenda Constitucional no 26, de 1985, foi instalada, em sessão solene, sob a Presidência do ministro Moreira Alves, presidente do Supremo Tribunal Federal, no dia 1o de fevereiro de 1987. No dia 2, decidiu questão de ordem relevante sobre a impugnação dos senadores eleitos pelo sistema indireto, em 1982 (os chamados “biônicos”, que o presidente Ernesto Geisel criara com o Pacote de Abril, de 1977), sob o fundamento de que não ti- nham representatividade popular. Submetida à votação, a proposta que excluía os senadores indiretos foi rejeitada por 394 contra 124 e 17 abstenções, em um total de 535 votantes.

Na mesma sessão, procedeu-se à eleição do presidente da Assembleia Nacional Constituinte, recebendo o deputado Ulysses Guimarães votação consagradora: 425 votos. O deputado Lysâneas Maciel decidiu concorrer ao cargo, obtendo 69 votos. Houve 28 votos em branco, em um total de 522 eleitores. Eu já havia sido convidado para Secretário-Geral da Mesa da Assembleia Nacional Constituinte pelo deputado Ulysses Guimarães, que acumulava, portanto, as Presidências da Câmara dos De- putados e da Assembleia Constituinte.

O cargo de relator-geral coube à bancada partidária majoritária, que era a do PMDB. A disputa foi acirrada, nela se envolvendo os deputados Bernardo Cabral (AM) e Pimenta da Veiga (MG), que era apoiado pelo deputado Ulysses Guimarães, e o senador Fernando Henrique Cardoso (SP), apoiado pelo líder da Maioria na Cons- tituinte, senador Mário Covas (SP). No primeiro turno, foram vitoriosos Bernardo Cabral e Pimenta da Veiga. No segundo turno, Pimenta da Veiga renunciou, tendo a disputa ocorrida entre Bernardo Cabral e Fernando Henrique Cardoso que, por sua vez, também renunciou à candidatura. Com as desistências, Bernardo Cabral foi declarado vitorioso.

Um dos primeiros atos do presidente da Constituinte foi a elaboração das nor- mas necessárias ao funcionamento da Assembleia. Assim, enquanto se elaborava o Regimento Interno, a Constituinte aprovou a Resolução no 1, de 1987, proposta pelo presidente Ulysses Guimarães, estabelecendo normas preliminares para o fun- cionamento da Assembleia até a aprovação do Regimento Interno. Dispunha essa resolução sobre a constituição da Mesa, das lideranças, das sessões, das atas, dos

153 A Constituinte de 1987/1988

anais, do processo de votação e do calendário de tramitação do Regimento, cujos prazos nunca foram cumpridos.

Foi designado relator do Regimento Interno o senador Fernando Henrique Cardo- so, que concluiu pela apresentação de anteprojeto, ao qual foram oferecidas mais de mil emendas. O presidente da Constituinte, o relator e eu reuníamo-nos, à noite, no Prodasen, para exame meticuloso das propostas de emendas que foram apre- sentadas. Um dos impasses que surgiu foi quando o relator sustentou que todos os constituintes deviam votar, inclusive o presidente da Assembleia.

O deputado Ulysses Guimarães estranhou essa proposta e invocou o meu teste- munho para dizer que ela ia de encontro à nossa tradição parlamentar. O senador Fernando Henrique Cardoso não se mostrou satisfeito com a explicação, insistindo em que o presidente da Assembleia também devia votar, como qualquer constituin- te. A discussão foi adiada e, numa das seguintes reuniões, o assunto foi novamente levantado, tendo o presidente Ulysses Guimarães voltado a invocar o meu teste- munho sobre a tradição, que era secular. O senador Fernando Henrique Cardoso acabou concordando em que o presidente só votaria para desempatar. A votação do Regimento Interno exigiu mais de trinta dias para se concluir. Esse Regimento foi alterado, posteriormente, pela Resolução no 3, de 1988, que instituiu a chamada fusão de emendas e o DVS (Destaque para Votação em Separado), proposto pelo chamado “Centrão” (grupo de constituintes de vários partidos, de viés político con- servador sobre determinados assuntos, especialmente de natureza econômica).

A primeira preocupação que me ocorreu: o Congresso Nacional devia preparar-se, em termos físicos – o que incluía plenário e recursos humanos – para funcionar, concomitantemente, desincumbindo-se de suas competências constitucionais or- dinárias, uma vez que a Constituinte não seria exclusiva, ou seja, os constituintes não foram eleitos para cumprir a tarefa exclusiva de elaborar a nova Constituição. Antes da instalação da Assembleia Constituinte, houvera a eleição geral de 1986 e o término de longo período de exceção.

O presidente Ulysses Guimarães determinou a elaboração de projeto de resolu- ção dispondo sobre a adaptação do Plenário da Câmara dos Deputados a fim de melhor capacitá-lo ao exercício das atividades parlamentares. Durante as obras de adaptação, as sessões plenárias da Câmara dos Deputados foram realizadas no Au- ditório Petrônio Portella, dependência do Senado Federal.

Consultado a respeito da reforma do Plenário, em 6 de agosto de 1986 o arquiteto Oscar Niemeyer transmitiu ao presidente da Assembleia Nacional Constituinte, o

154 O Congresso em Meio Século | 2a Edição

seguinte parecer técnico: “Com relação ao novo plenário projetado, devo dizer que o mesmo não afeta a concepção arquitetônica, nem compromete sua destinação, conforme previsto na Resolução no 32, de 1972”. Diante da opinião de Niemeyer, Ulysses desistiu de apresentar o seu projeto de resolução.

Depois de observar a existência de conflito na atuação de alguns órgãos do Senado Federal e da Câmara dos Deputados, o presidente Ulysses Guimarães, em reunião com as principais lideranças partidárias, na Fundação Israel Pinheiro, determinou que eu, na qualidade de Secretário-Geral da Mesa da Assembleia, seria o único res- ponsável pelo controle do funcionamento da Constituinte:

A coordenação e controle geral passa a ser exercida pelo Dr. Paulo Affonso, que em consequência é o único a ter autoridade para passar instruções e orientação ao Prodasen e à Assessoria e para alimentar o computador com os textos finais.

Juntamente com meus colegas do Congresso, procurei equacionar a situação, do ponto de vista material, tomando duas providências: reformar e ampliar o sistema eletrônico de votação para inserir também os nomes dos senadores (tendo em vista que o que se achava em funcionamento era obsoleto); reformar e ampliar os lugares no plenário, modernizando o sistema de som e gravação.

Quanto aos registros taquigráficos de gravação e a impressão do Diário da Assem- bleia Nacional Constituinte, aproveitei minha experiência na Constituinte de 1946, quando o número de congressistas era bem menor. Observei naquela oportunidade que os registros da Constituinte de 1946 ficaram incompletos tendo em vista a aguda deficiência de funcionários habilitados, face ao fechamento do Palácio Tira- dentes, desde novembro de 1937, com o golpe do Estado Novo.

Em melhores condições foram realizados os trabalhos da Constituinte de 1967. O Senado Federal havia instalado o Cegraf (Centro Gráfico do Senado), dispondo de excelente pessoal técnico e equipamentos modernos. Ainda que as duas Casas legislativas funcionassem normalmente, cumprindo suas competências constitu- cionais, o sistema foi bastante simplificado. Nos termos do Ato Institucional no 4, de 7 de dezembro de 1966, o Congresso Nacional foi convocado, extraordinariamente, de 12 de dezembro do mesmo ano até 24 de janeiro do seguinte, com o objetivo de emendar, discutir, votar e promulgar o projeto de Constituição apresentado pelo presidente da República, Humberto de Alencar Castello Branco.

Referido Ato Institucional estabeleceu princípios de natureza regimental, bem como a forma de tramitação do projeto de Constituição. Se a votação final não tivesse sido

155 A Constituinte de 1987/1988

encerrada até o dia 21 de janeiro de 1967, o projeto original, com a matéria aprovada, seria promulgado. O Congresso Nacional votou integralmente o projeto enviado pelo Poder Executivo, assim como as respectivas emendas, dentro do prazo.

O emprego de impressos, de registro taquigráfico e de gravação sonora facilitou a pesquisa e a divulgação dos trabalhos da Constituinte. Com esse material, foi possível à Secretaria-Geral da Mesa da Câmara dos Deputados publicar os Anais dos trabalhos da Constituinte de 1967, em quatro volumes, com apresentação do Dr. Pedro Aleixo.

Graças à experiência que adquiri nessas duas Constituintes (1946 e 1967), institu- ímos sistema de organização que permitiu o registro permanente e sistemático e a mais ampla divulgação dos trabalhos. Ocorria a votação eletrônica mediante listas impressas com o nome e a natureza do voto de cada constituinte, cujos resultados eram imediatamente transmitidos à imprensa credenciada.

Também recebia todo esse material o sistema de processamento de dados do Pro- dasen, para impressão de avulsos em geral, registro taquigráfico, gravação sonora, publicação das atividades da Constituinte no Diário da Assembleia Nacional Cons- tituinte, além de publicações que facilitassem a consulta no momento da votação. Tivemos preocupação em garantir a segurança de todas as votações eletrônicas, o que permitiu evitar qualquer tipo de impugnação.

O Congresso Nacional era integrado por 559 parlamentares (487 deputados e 72 senadores), assim representados: PMDB, 303; PFL, 135; PDS, 38; PDT, 26; PTB, 18; PT, 16; PL, 7; PDC, 6; PCB, 3; PC do B, 3; PSB, 2; PSC, 1; PMB, 1. Ao longo do pro- cesso constituinte, essa correlação de forças foi alterada.

O plenário da Câmara dos Deputados, onde se reunia a Assembleia Nacional Cons- tituinte, tinha apenas 459 poltronas, o que significa que havia um déficit de 100 lugares. As votações exigiam a presença da maioria absoluta dos congressistas (280 votos) e as matérias só eram consideradas aprovadas se obtivessem tal quórum.

Como era impossível ampliar o plenário, tornou-se necessária a instalação de qua- tro postos avulsos de votação eletrônica, nas mesas destinadas aos taquígrafos para registro taquigráfico das sessões, além dos já instalados nas respectivas bancadas. Por sua vez, na Mesa da Presidência, onde se achava o controle geral do sistema, o registro de votos do presidente, como os dos demais secretários (quatro), comple- tava todo o processo. O sistema possuía as indicações sim, não, abstenção e desem- pate, uma vez que o presidente da Constituinte só votava para desempatar.

156 O Congresso em Meio Século | 2a Edição

O deputado Ulysses Guimarães preocupava-se com o intenso movimento de pessoas circulando pelas dependências do Congresso, de modo particular na Câmara dos Deputados. Eram centenas de pessoas que procuravam influenciar os constituintes para fazê-los aceitar suas reivindicações, misturando-se política de toda natureza, de categorias funcionais, de representantes de sindicatos, de movimentos femininos, de índios, grupos raciais e até religiosos. Em face dos problemas criados por essa movi- mentação, foi realizado estudo sobre como outros países trataram a questão.

Em outros países, era vedado o acesso de pessoas estranhas aos locais privativos dos parlamentares. Estudou-se como era o costume na Itália, Portugal, Holanda, Irlanda, Inglaterra, Estados Unidos, França e Alemanha. Nesses países, o próprio acesso às galerias era sempre restringido severamente e, em alguns casos, só era permitido mediante convites. Contudo, nada pôde ser feito. Ocorria verdadeira in- vasão dos mais diversos interesses, em total desrespeito às normas da Casa e em prejuízo da própria liberdade dos constituintes.

O constrangimento chegou a tal ponto que, em reunião da Comissão de Sistemati- zação, o líder da Maioria na Constituinte, senador Mário Covas, tendo comandado a rejeição de determinada emenda que beneficiava ex-integrantes da FEB (Força Expedicionária Brasileira), quase foi agredido por uma comissão de representantes desse grupo. Tal estado de coisas se agravou quando foram oferecidas 62.014 emen- das de constituintes e 86 de origem popular.

Diante da preocupação de garantir condições favoráveis ao trabalho constituinte, preservando a liberdade dos parlamentares, o deputado Ulysses Guimarães deter- minou que se procedesse a estudo pormenorizado do instituto da inviolabilidade parlamentar, tal como o tratavam as Constituições de países democráticos, entre os quais França, Estados Unidos, Espanha, Japão, Portugal, Estados Unidos Mexi- canos, Confederação Suíça, Reino da Dinamarca e República Italiana. Verificou-se que a tradição constitucional brasileira conferia à inviolabilidade parlamentar tra- tamento compatível com o que dispensavam a este instituto as democracias mais avançadas do mundo.

Também se promoveu estudo sobre o número de artigos contidos nas Constitui- ções de 29 países, sem excluir a Carta das Nações Unidas. No estudo sobre as Cons- tituições brasileiras, verificou-se o seguinte resultado: Constituição do Império: 1824, 179 artigos; Constituições da República: 1890 (Provisória), 85 artigos; 1891, 91 artigos; 1934, 187 artigos; 1937 (Estado Novo), 187 artigos; 1946, 218 artigos; 1967, 189 artigos; Emenda Constitucional no 1, de 1969, 200 artigos. A de 1988, no

157 A Constituinte de 1987/1988

instante de sua promulgação, tinha 245 artigos no corpo principal e 70 no Ato das Disposições Constitucionais Transitórias.

Nos termos do Regimento Interno da Constituinte, foram criadas nove Comissões Temáticas, subdivididas em 24 subcomissões. As Comissões Temáticas eram as se- guintes: da Soberania e dos Direitos e Garantias do Homem e da Mulher (I); da Organização do Estado (II); da Organização dos Poderes e Sistemas de Governo (III); da Organização Eleitoral, Partidária e Garantia das Instituições (IV); do Sis- tema Tributário, Orçamento e Finanças (V); da Ordem Econômica (VI); da Ordem Social (VII); da Família, da Educação, Cultura e Esportes, da Ciência e Tecnologia e da Comunicação (VIII); de Sistematização (IX).

Essas Comissões Temáticas apresentaram anteprojetos consubstanciando o resul- tado do trabalho em suas respectivas áreas de atuação. O material foi encaminhado ao relator-geral, que se incumbiu da tarefa de consolidar tais contribuições em um único anteprojeto da Constituição, que seria submetido ao exame da Comissão de Sistematização, integrada por 96 congressistas, a qual, por sua vez, concluiria o tra- balho apresentando o projeto de Constituição a ser discutido e votado no plenário da Assembleia Nacional Constituinte.

Coube ao relator-geral, deputado Bernardo Cabral (AM), consolidar os antepro- jetos oriundos das Comissões Temáticas em um único projeto, logo apelidado de “Frankenstein” (personagem de filmes, de aspecto monstruoso, retratado em livro de Mary Shelley, o qual conta a história de cientista que constrói um homem arti- ficial com partes de cadáveres. Ser maldito, condenado à solidão), tal a quantidade de ambiguidades e contradições que continha. A Comissão de Sistematização foi obrigada a refazer todo o projeto da nova Constituição, que ainda estaria sujeito a muitas alterações, ao longo do processo.

Os parlamentares das correntes de esquerda assumiram o controle da maioria da Comissão de Sistematização, conseguindo aprovar emendas de viés estatizante e nacionalista. O deputado Carlos Sant’Ana, líder da Maioria na comissão, levantava sucessivas questões de ordem, sem sucesso, uma vez que não contava com o apoio de seus colegas. Isso representava uma anomalia, em se tratando de uma assembleia democrática, na qual deve prevalecer a vontade da maioria, consideradas, porém, as razões da minoria.

Quando, finalmente, o projeto de Constituição chegou ao Plenário da Constituinte, a corrente majoritária, composta por parlamentares de centro e de direita, perce-

158 O Congresso em Meio Século | 2a Edição

beu que a intensa militância da esquerda ameaçava controlar as mais importantes decisões da Assembleia, ainda que não representasse a maioria.

Nasce o Centrão

A criação do Centrão resultou do conflito de natureza ideológica que se instalou na Constituinte, em face da militância da esquerda, que se aproveitou da rigidez das normas regimentais. O Plenário era obrigado a votar o que fosse aprovado pela Comissão de Sistematização, aprovando ou rejeitando, sem modificações. Foram essas normas regimentais inflexíveis e restritivas que levaram ao impasse, compro- metendo o processo legislativo e a qualidade do texto constitucional.

Nos termos do Regimento Interno, só eram admitidos pedidos de destaque para re- jeição. Expressivo e numeroso grupo de parlamentares insurgiu-se contra o predo- mínio da esquerda, decidindo criar um bloco, logo denominado Centrão, para influir nas decisões da Assembleia. O movimento teve início com discurso pronunciado da tribuna pelo deputado Daso Coimbra, integrante da bancada evangélica do antigo Estado do Rio de Janeiro, que veio a ser um dos principais articuladores do Centrão.

Daso defendeu a necessidade de reformar o Regimento Interno para permitir a aplicação de normas mais flexíveis durante o processo de discussão e de votação do projeto da Constituição, encaminhando à Mesa Diretora o seguinte documento, denominado “Manifesto à Nação”, subscrito por 319 constituintes:

A situação do país é motivo de preocupação de todos que se sentem responsáveis pelo destino da Nação brasileira, principalmente os detentores de mandato popular. O país espera uma Constituição moderna e duradoura, que lhe assegure uma política de desenvolvimento com liberdade, cuja meta seja o homem, baseada na livre iniciativa da pessoa humana, como força propulsora do progresso, e na igualdade de oportunidades como fundamento de uma vida digna e pacífica para todos.

A persistir a atual sistemática de trabalho, subordinada a fatores casuísticos e transitórios, a Nação corre sério risco de continuar paralisada, à espera de definições institucionais que lhe imprimam confiança, segurança, eficiência e tranquilidade. O tempo é de ação da maioria da Assembleia Nacional Constituinte, maioria que representa efetivamente o espírito e o retrato da sociedade moderada que a elegeu.

Precisamos resgatar os compromissos do bom senso e de coerência assumidos com a sociedade, durante a campanha eleitoral, despreocupados com rótulos. É necessário prover o país de um novo texto constitucional claro e preciso, que reduza os tentáculos do Estado, que crie abertura para maior participação de todos

159 A Constituinte de 1987/1988

na gerência dos negócios públicos, enseje meios de ampliação das oportunidades e do bem-estar social, através da liberdade de empreender pessoalmente, de investir empresarialmente, gerando frutos para os trabalhadores brasileiros, bem como para toda a nossa população.

Assim, visando tranquilizar a Nação, a maioria absoluta dos constituintes, independentemente de siglas partidárias e de convicções ideológicas, de interesses regionais ou pessoais, sem compromisso coletivo com sistema de governo ou vinculação a qualquer grupo ou instituição externa ao Plenário da Assembleia Nacional Constituinte e sem pretender a substituição global do projeto ora em votação na Comissão de Sistematização, propõe, como meio de realizar seus propósitos, a reforma do Regimento Interno, única maneira de fazer respeitar e cumprir o mandato que o povo lhe confiou. Compromete-se, portanto, a maioria entre si e perante esse povo a envidar seus esforços ou diligência incansável para dotar o país de uma Constituição digna de sua grandeza histórica.

O deputado Daso Coimbra, em seguida, encaminhou à Mesa o projeto de resolução do grupo propondo alterações no Regimento Interno da Assembleia. O deputado Ulysses Guimarães indagou-me qual o procedimento que seria adotado em relação ao documento. Respondi-lhe que, em princípio, a matéria deveria ser examinada à luz das disposições regimentais. Ulysses não se conformou: “Você acha que eu não vou aceitar documento subscrito por mais de trezentos constituintes?!”

A frase exprimia o estilo de Ulysses Guimarães, que jamais contrariava o sentimen- to das maiorias. Diante de sua decisão, acolhendo o documento, começaram as ar- ticulações em prol da reforma do Regimento. As principais lideranças do Centrão eram os deputados Ricardo Fiúza, Roberto Cardoso Alves, Luís Eduardo Maga- lhães, José Lourenço, Bonifácio de Andrada e Luís Roberto Ponte.

Como presidente da Constituinte, Ulysses comunicou ao senador Mauro Benevi- des que ele seria o relator, mas que devia exercer a sua missão de comum acordo comigo, uma vez que eu lhe transmitiria as instruções emanadas do presidente da Constituinte. Ulysses pretendia desempenhar papel de magistrado, exprimindo apenas as decisões tomadas pela maioria da Assembleia.

Vale a pena lembrar episódio ocorrido entre Nereu Ramos, presidente da Câmara dos Deputados, e o deputado Gustavo Capanema, líder do PSD, durante o governo do marechal Eurico Gaspar Dutra. A “Banda de Música” da UDN levantava cons- tantes questões de ordem com objetivos obstrucionistas. Capanema contestava as manobras, mas Nereu Ramos decidia, invariavelmente, a favor da UDN. Certo dia, tive oportunidade de ouvir Capanema queixar-se a Nereu Ramos das decisões que tomava contra a bancada majoritária.

160 O Congresso em Meio Século | 2a Edição

Erudito, Capanema conhecia e citava clássicos gregos e latinos, além de grandes mestres do Direito. Porém, na qualidade de líder do maior partido na Casa, nunca se dera ao trabalho de estudar o Regimento Interno. Nereu ponderou que tinha a obrigação de zelar pelo cumprimento das normas regimentais, que se preocupava em estudar. Aconselhou o líder a procurá-lo, antes de levantar suas questões de or- dem, uma vez que poderia orientá-lo sobre a melhor forma de fazê-lo, permitindo, assim, o deferimento. Capanema seguiu seu conselho e daí em diante nunca mais perdeu uma questão de ordem, ao mesmo tempo em que Nereu continuou desfru- tando da justa fama de grande regimentalista e de presidente imparcial.

Ulysses ambicionava assumir a mesma postura que Nereu: um presidente respeita- do por seus companheiros de corporação, graças à isenção que mantinha em face dos conflitos de interesses partidários. Ainda que tivesse a preocupação de exercer papel de magistrado, Ulysses conversava frequentemente com o senador Mauro Benevides e comigo sobre o trabalho de reforma regimental, detendo-se no exame de vários detalhes do texto, graças à sua rica experiência parlamentar. Como resul- tado desse trabalho, foi promulgada a Resolução no 3, de 1988, promovendo altera- ções substanciais no Regimento Interno da Assembleia Nacional Constituinte.

Uma das inovações da reforma regimental foi a instituição do chamado Destaque para Votação em Separado (DVS), segundo o qual, apresentado pedido de destaque sobre determinado dispositivo, para mantê-lo ou retirá-lo do texto era necessária a aprovação da maioria absoluta dos membros da Assembleia. Como as esquerdas não dispunham de maioria absoluta, quórum de decisão, seus líderes buscavam en- tendimentos com outras correntes da Constituinte. Sem que se atingisse o quórum, o DVS era dado como prejudicado.

Essa novidade regimental tornou as composições imperativas na Constituinte. A esse respeito, basta lembrar a polêmica travada em torno de um dos temas que mais apaixonaram a Assembleia – a esdrúxula proposta que garantia o direito de greve aos militares, nos termos em que fora aprovada na Comissão de Sistematização. Pretendia-se oferecer aos militares o mesmo direito concedido aos servidores civis, o que era uma insensatez.

O senador Jarbas Passarinho sentiu que seria aprovada a concessão do direito de greve aos militares, o que julgava um atentado à natureza da atividade castrense, na medida em que feria o princípio da hierarquia e da disciplina, fundamento da vida militar. Propôs aos líderes da esquerda um acordo: aprovar o direito de greve aos funcionários públicos civis, inclusive os que trabalham em repartições militares,

161 A Constituinte de 1987/1988

desde que tal direito fosse negado aos militares. Como não tinha quórum para manter aquela posição, a esquerda teve de fazer o acordo para não correr o risco de que tal direito fosse também negado aos servidores civis.

A aprovação da reforma do Regimento permitiu que as lideranças do Centrão apre- sentassem emendas substitutivas a cada capítulo do projeto de Constituição, o que equivalia a apresentar um novo projeto constitucional. Essas emendas teriam de ser apresentadas até a meia-noite de determinado dia. Reunidas na antiga Comissão de Finanças da Câmara, as lideranças do Centrão atrasaram, porém, a elaboração de suas emendas, ficando sob ameaça de perderem o prazo para entregá-las.

Procurei as principais lideranças do grupo para alertá-las a respeito do risco que corriam, uma vez que o deputado José Genoíno decidira fazer plantão na Comissão de Constituição e Justiça, onde as emendas deveriam ser entregues, vigiando o re- lógio (depois da meia-noite, não podiam mais ser apresentadas). Fumando muito, mostrando grande irritação e empregando palavras ásperas, o deputado Luís Edu- ardo Magalhães dizia ser impossível apresentar as emendas até meia-noite, uma vez que já passava das 11 horas.

Expliquei aos deputados Ricardo Fiúza (PFL-PE), Bonifácio de Andrada (PPB- MG), Roberto Cardoso Alves (PMDB-SP) e José Lourenço (PFL-BA), que se acha- vam no gabinete de Luís Eduardo Magalhães, para deixar claro que o horário não tinha como ser desrespeitado, o que significava que as emendas não seriam recebi- das após a meia-noite. Se tivessem qualquer dúvida, deviam procurar o deputado Ulysses Guimarães.

Preocupados, Bonifácio de Andrada e Ricardo Fiúza chamaram-me a um canto da sala para ponderar que Luís Eduardo Magalhães estava cansado e pediam que eu não levasse em conta sua irritação, uma vez que continuava sendo meu amigo pessoal. Fi- zeram apelo para que eu resolvesse o problema da melhor maneira possível, levando em conta o fato de que uma parcela expressiva da Assembleia não podia deixar de ser representada no processo de elaboração constitucional. Dada a indiscutível rele- vância do problema, chamei a funcionária que protocolava as emendas na Comissão de Constituição e Justiça para orientá-la no sentido de que saltasse, alternadamente, a numeração de emendas – por exemplo, de 93 para 95, de forma a permitir que as emendas do Centrão fossem recebidas, no dia seguinte, e encaixadas nos espaços vazios, entre as que haviam sido apresentadas. Era o único meio de garantir a partici- pação de uma corrente importante na mudança do texto constitucional.

162 O Congresso em Meio Século | 2a Edição

Graças a acordo de lideranças, as emendas substitutivas do Centrão foram aprova- das, ressalvados os DVS (para votação em separado), com o que se conferiu maior agilidade ao processo de votação. De acordo com a nova sistemática, aprovava-se o principal e ficavam pendentes os destaques para votação em separado. Os trabalhos realizados pelas Comissões Temáticas e a Comissão de Sistematização não foram levados em consideração.

Perdeu-se tempo enorme nessas comissões para afinal obter resultado que não ex- pressava o esforço despendido, apesar de alguns pareceres de alta qualidade. Não se aproveitou nada. Votavam-se as emendas com os destaques. Adotou-se ideia ino- vadora, que já tinha sido aplicada na Comissão de Sistematização, com bons resul- tados, e que consistia no princípio da fusão de emendas. Os autores de emendas assinavam a emenda resultante da fusão, que era submetida a votos.

Aprovadas ou rejeitadas, as emendas objeto de fusão eram declaradas prejudicadas. O processo ganhou velocidade. Juntamente com a reforma do Regimento, consoli- dou-se a fusão de emendas, hoje conhecida como emenda aglutinativa, o que apres- sou o processo de elaboração constitucional. Essa inovação agradou ao deputado Ulysses Guimarães, que já não escondia a ansiedade em concluir os trabalhos da Constituinte, que estarem sendo prolongados por tempo demasiadamente longo.

Uma das situações mais delicadas que vivi, durante a Constituinte, foi quando se revelou a ausência no texto da nova Carta Constitucional do ativo financeiro ouro para fins de lastro. Era fundamental para o sistema financeiro do país a sua inclusão no texto constitucional. O diretor da respectiva área do Banco Central falou-me a esse respeito e conversou com o Dr. Ulysses Guimarães. Tanto o presidente José Sarney quanto o presidente da Constituinte entenderam a necessidade de incluir a matéria na nova Constituição.

Embora não existisse proposta formal naquele sentido, sugeri que se elabo- rasse emenda de fusão, mas para tal eram necessárias duas ou três emen- das. Depois de fazer pesquisa, cheguei à conclusão de que nenhuma emenda tratava do assunto de forma satisfatória. Ulysses chamou o deputado Fran- cisco Dornelles, relator do capítulo da Ordem Financeira, aconselhando-o a subscrever a emenda cuja redação apresentei. Dornelles entendeu-se com o Ban- co Central, que julgou correta a redação, aprovada pelo Plenário. Hoje, constitui o parágrafo 5o do artigo 153 da Constituição.

Outra questão que despertou preocupação e interesse foi a emenda que admitia a hipótese de nomeação de parlamentares federais para ocupar a função de embaixa-

163 A Constituinte de 1987/1988

dor no exterior, sem a perda do mandato. Os parlamentares, de acordo com a tradi- ção constitucional brasileira, só podem ser ministros plenipotenciários em caráter extraordinário. Nunca tivemos a figura do parlamentar embaixador permanente, salvo o senador Auro de Moura Andrade, que foi nomeado embaixador do Brasil na Espanha. A indicação foi aprovada pelo Senado Federal, ainda que combatida com veemência pelo senador Aluísio de Castro.

O embaixador Paulo Tarso Flecha de Lima, secretário-geral do Ministério das Re- lações Exteriores, mostrou-se preocupado com a referida emenda. Lembrava que, próximo ao término de cada legislatura, muitos parlamentares não candidatos postulariam a função de embaixador em missões permanentes. Conversei com o deputado Ulysses Guimarães, que me pediu sugestão. Propus que se fizesse um destaque para rejeitar emenda que tivesse alguma correspondência com aquela. Encontramos uma sem exata correlação.

O senador Virgílio Távora assinou o pedido de destaque e proferiu discurso de- fendendo-o. Submeteu-se a voto a emenda destacada, que foi rejeitada. Em con- sequência, a emenda objeto daquela controvérsia foi declarada prejudicada. No dia seguinte, o seu autor disse-me que registraria o seu protesto contra a decisão. Lembrei que a oportunidade para impugnar era durante a votação. Levantada a questão de ordem pelo referido parlamentar, Ulysses manteve a decisão, decla- rando prejudicada a emenda.

A Rapidez do Processo

O deputado Ulysses Guimarães interessou-se em conhecer a duração do período de elaboração das Constituições europeias ao término da Segunda Guerra Mun- dial. O levantamento realizado chegou à seguinte conclusão: Alemanha, Lei Funda- mental, de 1o de setembro de 1948 a 23 de maio de 1949 (oito meses). Espanha, de 22 de agosto de 1977 a 6 de dezembro de 1978 (quinze meses). A Constituição foi homologada em referendo popular. França, primeira Constituinte, de 6 de novem- bro de 1945 a 19 de abril de 1946 (seis meses). Após a aprovação pelo Congresso, a Constituição francesa foi submetida a plebiscito, em 5 de maio de 1946, sendo rejeitada. A segunda Constituição francesa foi elaborada de 2 de junho de 1946 a 27 de outubro de 1946, posteriormente denominada Constituição da IV República (quatro meses). Itália, de 25 de junho de 1946 a 27 de dezembro de 1947 (dezoito meses). Portugal, de 2 de junho de 1975 a 2 de abril de 1976 (dez meses). Brasil, de 1o de fevereiro de 1987 a 5 de outubro de 1988.

164 O Congresso em Meio Século | 2a Edição

Para cumprir o desejo do presidente da Assembleia, impondo ritmo mais veloz ao trabalho constituinte, surgiram as fusões, não mais de emendas, mas de capítulos inteiros. Nessas fusões, os autores de emendas e os líderes tinham que subscrever a nova redação. O primeiro autor era obrigado a assinar e todos os líderes assinavam em seguida. Ulysses Guimarães exigia que as votações não perdessem o ritmo de velocidade que desejava imprimir aos trabalhos. Preocupava-o uma acumulação de questões de ordem, capaz de retardar o processo de votação. Graças ao sistema então adotado, havia perfeita sequência da matéria que deveria ser votada, sem solução de continuidade.

O deputado Ulysses Guimarães esperava promulgar a nova Constituição em ou- tubro de 1988, o que acabou acontecendo, no dia 5. Estava mergulhado naquele penoso trabalho, há quase dois anos, enquanto a opinião pública já emitia sinais de impaciência com a lentidão do processo deliberativo. Os trabalhos começaram no dia 1o de fevereiro de 1987 e se estenderam até o dia 5 de outubro de 1988.

Ao final, Ulysses não escondia a obsessão de chegar à promulgação. Embora te- nham apressado o ritmo das votações, as fusões foram responsáveis por muitas das ambiguidades e redundâncias que existem no texto da Constituição. O hábito de deixar para a legislação ordinária, apressadamente, problemas os mais complexos e difíceis, comprometeu, em alguns casos, a qualidade do novo texto constitucional.

Para assegurar ritmo intenso de trabalho nas votações, instituiu-se o princípio da prejudicialidade, com a concordância do presidente da Assembleia Constituinte. Consoante tal norma, votada uma emenda objeto de fusão, eram consideradas pre- judicadas as demais que com ela se relacionavam.

Sempre que era abordado por aqueles que se queixavam de que suas emendas não tinham sido votadas, o deputado Ulysses Guimarães aconselhava-os a procurar o secretário-geral da Mesa. Eu prometia examinar o assunto e conversar com o Dr. Ulysses Guimarães. Em alguns casos, o presidente sugeria que se votasse deter- minada emenda, que se sabia, por antecipação, seria rejeitada. Era uma forma de atender aos parlamentares.

A decisão de declarar prejudicadas muitas emendas pode ser objeto de estranheza, mas era imperativo do tempo e tinha amparo regimental. Uma das razões é que as emendas oferecidas pelos líderes do Centrão eram demasiadamente longas e complexas. Algumas vezes, abrangiam capítulos inteiros do projeto de Constitui- ção, provocando controvérsia e retardando o trabalho.

165 A Constituinte de 1987/1988

Se não tivesse sido adotada essa orientação, o processo constituinte teria levado muito mais tempo, causando frustração na opinião pública e desgastes, sobretudo ao presidente da Assembleia, Ulysses Guimarães. Se fosse adotado o ponto de vista dos principais líderes do Centrão, aprovando-se o que propunham, o texto cons- titucional teria sido desfigurado em face do sentido marcadamente ideológico de suas emendas. Um dos maiores conflitos na Constituinte surgiu quando da tentati- va de implantação do sistema parlamentarista de governo, a partir de decisões que já haviam sido tomadas na Comissão de Sistematização.

Embora proclame o sistema presidencialista de governo, o texto constitucional põe em evidência a forte influência parlamentarista que sofreu. O maior exemplo con- siste no instituto das Medidas Provisórias, inspirado na Constituição parlamenta- rista da Itália. Três constituintes estiveram entre os que mais se empenharam pela instituição do parlamentarismo: os senadores Afonso Arinos e José Richa e a depu- tada Sandra Cavalcanti.

Testemunhei a tentativa de introdução do sistema parlamentar de governo na Constituição de 1988. Em encontro no Prodasen, já tarde da noite, em que estavam presentes o presidente da Constituinte, Ulysses Guimarães, o relator-geral, Bernar- do Cabral, e o senador José Richa (PR), que tomou a iniciativa de questionar se o mandato do presidente da República, no sistema parlamentarista, deveria ser re- duzido para cinco ou quatro anos. Ulysses adotava posição muito discreta, não se manifestando sobre parlamentarismo ou presidencialismo e muito menos sobre a duração do mandato.

Se aprovada a implantação do parlamentarismo, somente entraria em vigor no mandato do sucessor do presidente José Sarney. Bernardo interrompeu Richa para advertir que o mandato de Sarney deveria ser mais longo, ao que o senador para- naense retrucou que, instituído o regime de gabinete, a duração do mandato pre- sidencial perderia importância, podendo ser até de dez anos. No parlamentarismo, dizia Richa, quem governa é o primeiro-ministro, cuja sobrevivência depende, uni- camente, da confiança da Câmara dos Deputados.

Nesse encontro, ficou acertado que o deputado Bernardo Cabral introduziria o sis- tema parlamentarista de governo no texto do projeto de Constituição. A duração do mandato do presidente da República seria discutida posteriormente. Pela pro- posta do senador José Richa, o regime parlamentar teria vigência imediata. Já era mais de meia-noite quando Richa se retirou, alegando a necessidade de comparecer

166 O Congresso em Meio Século | 2a Edição

a um casamento com sua esposa. Retirei-me, aproximadamente, às duas horas da madrugada. No dia seguinte, encontrei Richa profundamente irritado.

O senador paranaense informou-me que, após o compromisso social, voltara ao Prodasen já alta madrugada, observando que o acordo celebrado com o relator- geral, na presença do deputado Ulysses Guimarães, não havia sido respeitado. O relator não incluíra a introdução do parlamentarismo. Richa procurou Ulysses e Bernardo Cabral para saber as razões da omissão, mas nunca recebeu explicação convincente. Para mim, que o abordei sobre o assunto, o deputado Bernardo Cabral dizia que Richa não havia entendido.

O senador Humberto Lucena (PMDB-PB) apresentou emenda de fusão consubs­ tanciando todas as iniciativas relacionadas com a manutenção do sistema presi- dencialista de governo. O presidente Ulysses Guimarães não se comprometeu com qualquer posição, ainda que fosse presidencialista convicto. Discretamente, traba- lhou em favor da manutenção do presidencialismo. A emenda do senador Hum- berto Lucena, mantendo o sistema presidencialista de governo, foi aprovada por pequena margem de votos.

As lideranças partidárias tomavam as decisões mais importantes em sistema de cole- giado, enquanto o Plenário aguardava o término de suas reuniões. Quando decidiam pela apresentação de fusões de emendas, a Secretaria-Geral da Mesa mandava repro- duzir cerca de setecentas cópias para distribuição aos constituintes. O deputado Ulys- ses Guimarães, imediatamente, submetia a voto a fusão de emendas aprovadas pelas lideranças, não se preocupando em saber se o Plenário havia tomado conhecimento de seu conteúdo, mesmo porque eram os líderes que conduziam as votações.

As emendas de iniciativa popular não tiveram êxito. Exigiu-se quórum qualificado de assinaturas, inviabilizando a sua tramitação. Vários constituintes aproveitaram muitas das ideias contidas nessas emendas para apresentá-las como se fossem de sua iniciativa. Todas as emendas populares foram publicadas no Diário da Assem- bleia Nacional Constituinte.

Quando a atual Constituição admite projeto de lei de iniciativa popular exige que seja subscrito por, no mínimo, 1% do eleitorado nacional, distribuído por um mí- nimo de cinco estados com não menos de três décimos por cento dos eleitores de cada uma dessas unidades federativas (CF, artigo 61, parágrafo 2o).

167 A Constituinte de 1987/1988

Grupo Influente

O líder da Maioria na Constituinte, senador Mário Covas, opôs-se à pretensão dos representantes da Amazônia de prorrogar a Zona Franca de Manaus no Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, o que considerava danoso ao parque industrial de São Paulo. Não obstante a reação vigorosa de Covas, a prorrogação consumou-se, graças a esforço coordenado pelo relator-geral da Constituinte, de- putado Bernardo Cabral, também representante do Amazonas. O choque maior ocorreria quando a representação do Norte/Nordeste obteve a aprovação do Fundo de Participação dos Estados e Municípios.

Unidos em bloco, os representantes das duas regiões condicionaram a aprovação dos pleitos apresentados pelos representantes das regiões Sudeste e Sul à aprovação do que lhes interessava, como foi o caso da criação do Fundo de Participação dos Estados e Municípios. O Sul também obteve benefícios, principalmente no capítulo da Ordem Econômica, cuja elaboração foi comandada pelos deputados José Serra, Francisco Dornelles, Osmundo Rebouças e César Maia.

Os deputados José Serra e Francisco Dornelles foram os responsáveis pelas decisões mais importantes tomadas na parte relativa ao capítulo da Ordem Econômica. Serra adotou posição contrária a qualquer tipo de vinculação orçamentária, tomando a iniciativa de abolir o imposto sobre derivados de petróleo, que financiava a conser- vação de rodovias no país. Serra também se opôs à vinculação de 18% do Orçamento da União “para a manutenção do desenvolvimento do ensino”, sendo derrotado por articulação bem-sucedida do senador João Calmon (CF, artigo 202).

Interesses políticos eventuais podem levar os homens a mudar de opinião. Anos mais tarde, investido na condição de ministro da Saúde, Serra já não teve o mes- mo cuidado que adotou na Constituinte e no papel de ministro do Planejamento. Defendeu a vinculação orçamentária da Saúde, entrando em conflito com a equipe econômica, de modo particular com o ministro da Fazenda, Pedro Malan.

Um dos maiores conflitos ideológicos na Constituinte foi o que envolveu privati- vistas e defensores da intervenção do Estado na economia. Um dos temas de maior interesse foi a exploração do subsolo. Depois de grande esforço, chegou-se a acordo segundo o qual o subsolo é de propriedade da União, mas sua exploração pode ser concedida a terceiros, desde que com a autorização do Estado.

168 O Congresso em Meio Século | 2a Edição

O mesmo conflito viria a se reproduzir quando a Constituinte teve de se definir sobre energia elétrica, navegação marítima e aérea, sistema portuário, transporte ferroviário e aquaviário e radiodifusão sonora de sons e imagens, cuja propriedade é da União, que pode, contudo, delegá-la a terceiros através de concessão ou per- missão. A definição do que seja empresa nacional de pequeno porte, para gozar de tratamento favorecido, provocou grande controvérsia. Tanto assim que, posterior- mente, no governo de Fernando Henrique Cardoso, esse conceito sofreu radical transformação, através da Emenda Constitucional no 6, de 1995.

Também intensa foi a luta provocada pela definição dos direitos de funcionários públicos e aposentados. Havia os que defendiam essas duas categorias e os que combatiam interesses corporativos. O senador Fernando Henrique nunca se envol- veu inteiramente com os trabalhos da Constituinte. Apresentou emendas, mas não teve participação relevante. Viria a assumir papel de destaque quando foi designa- do relator do Regimento Interno da Constituinte.

Antes de assumir a liderança da Maioria na Constituinte, substituindo o senador Mário Covas, o deputado Nelson Jobim (PMDB-RS) apresentou emendas que pro- vocaram intenso debate. A primeira delas referia-se à composição do Supremo Tri- bunal Federal. A emenda substituía a redação do parágrafo único do artigo 125 do projeto de Constituição pelo seguinte:

Parágrafo único. Após audiência pública e aprovação pelo Senado, por voto de dois terços dos seus membros, os ministros serão nomeados pelo presidente da República, sendo:

I – quatro indicados pelo presidente da República;

II – quatro indicados pela Câmara dos Deputados, pelo voto secreto da maioria de seus membros;

III – três indicados pelo Supremo Tribunal Federal dentre magistrados de carreira.

Jobim justificou sua proposta de emenda constitucional com a advertência de que “a função do Supremo Tribunal Federal de hoje é uma função constitucional, de um lado, e também uma função sobre questões federais, como técnica geral de controle de todas as decisões do Poder Judiciário”. E acrescentava:

O Supremo Tribunal Federal, nessa nova estruturação, tem uma competência preponderantemente constitucional e funciona no nosso sistema como um fiscal da constitucionalidade nos atos legislativos e normativos de todos os outros Poderes; é necessário que na composição do Supremo, tendo em vista a autonomia

169 A Constituinte de 1987/1988

do Poder Judiciário e do próprio Supremo Tribunal Federal, nessa composição participem os três órgãos, ou seja, o Poder Executivo, o Poder Legislativo e o Poder Judiciário na indicação de seus membros, sendo que a Federação Brasileira participará pela via do Senado Federal na fiscalização de todos os nomeados, após audiência pública, como é ricamente orientado pelo sistema americano na indicação dos membros da Corte Suprema.

Depois de contestada por diversos constituintes, entre os quais o senador Jarbas Pas- sarinho e o deputado Egídio Ferreira Lima, a proposta foi posta a votos, obtendo o seguinte resultado: sim, 196; não, 232; abstenções, 3, em um total de 431 votantes. A emenda foi rejeitada. Outra iniciativa polêmica teve o deputado Nelson Jobim, antes de assumir a liderança da Maioria na Assembleia, quando apresentou destaque para introduzir no texto constitucional o artigo 151 do projeto da Comissão de Sistemati- zação, que instituía o controle externo do Judiciário, e que era o seguinte:

Art. 151. O Conselho Nacional de Justiça é o órgão de controle da atividade administrativa e de desempenho dos deveres funcionais do Poder Judiciário e do Ministério Público.

Parágrafo único. Lei Complementar definirá a organização e o funcionamento do Conselho Nacional de Justiça.

Submetida à votação, a proposta do deputado gaúcho obteve 201 votos a favor, 245 contra e 2 abstenções, em um total de 448 votantes, tendo sido rejeitada.

O deputado Nelson Jobim, que já se vinha destacando como constituinte, viria a de- sempenhar papel de relevo, a partir do momento em que assumiu a liderança da Constituinte em lugar do deputado Euclides Scalco (PMDB-PR), substituto do sena- dor Mário Covas, que renunciou ao cargo. Jobim assumiu a liderança da Maioria na Constituinte ao final do segundo turno de votação, conduzindo-se com habilidade e paciência até o término dos trabalhos. Dono de sólida formação jurídica, Jobim sem- pre teve dificuldade em conviver com a política, tal como é praticada no Brasil.

O deputado Cunha Bueno (PPB-SP) apresentou emenda, durante a Constituinte, prevendo a revisão constitucional dentro de cinco anos, inspirando-se no exemplo da Constituição portuguesa, que prevê revisão periódica (a proposta do deputado paulista foi consubstanciada no artigo 3o, das Disposições Constitucionais Transitó- rias). A revisão constitucional ocorreu em 1993 e seria motivo de grande decepção para o líder da Maioria, deputado Nelson Jobim, quando foi vencido algumas vezes, inclusive quando propôs a elevação do mandato presidencial para cinco anos, sem possibilidade de reeleição, que parecia o caminho mais sensato.

170 O Congresso em Meio Século | 2a Edição

A maioria preferiu mandato de quatro anos, sem direito à reeleição, com receio da vitória de Lula nas eleições presidenciais de 1989, afinal vencida por Fernan- do Collor. Jobim tinha visão mais técnica e doutrinária dos problemas, quando o que importa no Congresso é, sobretudo, o aspecto político. Jobim formulava suas propostas sem a preocupação de sondar a opinião de seus colegas e era frequen- temente surpreendido com resultados negativos nas votações. O deputado gaúcho não foi candidato à reeleição, sendo nomeado ministro da Justiça, pelo presidente Fernando Henrique Cardoso, exercendo aquelas funções do dia 1o de janeiro de 1995 a 7 de abril de 1997.

Quando lhe fiz uma visita no Ministério da Justiça, Jobim mostrava-se desencanta- do com a política, à qual não pretendia voltar. Confidenciou-me, naquela oportuni- dade, que o presidente Fernando Henrique Cardoso prometera nomeá-lo ministro do Supremo Tribunal Federal, promessa que cumpriu. Uma vez ministro, Jobim viria a demonstrar – como disse acima – sólida formação intelectual e jurídica, despertando respeito e admiração entre seus pares. Foi, inegavelmente, excelente aquisição para a Suprema Corte.

Houve grande luta em torno da realização ou não do plebiscito para que o eleitora- do decidisse sobre forma e sistema de governo, se parlamentarismo ou presidencia- lismo, e se República ou Monarquia. Havia grupo radicalmente contrário à anteci- pação do plebiscito, quando estávamos chegando ao final do trabalho constituinte. O deputado Cunha Bueno começou a fazer obstrução, o que lhe garantiu sucesso, uma vez que a maioria já revelava desinteresse pelo trabalho.

Com tal expediente, Cunha Bueno obteve a aprovação de sua emenda ao artigo 2o do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, determinando a realização de plebiscito no dia 7 de setembro de 1993 para que o eleitorado decidisse sobre forma de governo, se parlamentarismo ou presidencialismo, e se República ou Monarquia. Mediante proposta do deputado José Serra, o plebiscito foi antecipado para 21 de abril de 1993, graças ao apoio que ganhou de Ulysses Guimarães.

O resultado, como é notório, foi pela manutenção do sistema presidencialista de governo por mais de 9 milhões de votos contra pouco mais de 2 milhões a fa- vor do parlamentarismo. A votação do plebiscito não foi obrigatória. O senador Marco Maciel teve atuação marcante durante a campanha em que se envolveram defensores de um e de outro sistema de governo e da República e da Monarquia. Presidencialista convicto, Maciel sustenta que, em razão do resultado da consulta plebiscitária, o sistema presidencial transformou-se em cláusula pétrea, não mais se admitindo qualquer modificação.

171 A Constituinte de 1987/1988

A esse respeito, cumpre lembrar que prevaleceu a tradição histórica do país. A maioria da Comissão de Sistematização manifestava simpatia pela introdução do regime de gabinete. A modificação do cenário político foi fatal ao movimento par- lamentarista. Muitos dos que defendiam o parlamentarismo desejavam reduzir o mandato presidencial de seis para quatro anos, o que obrigou o presidente José Sarney a retirar apoio à mudança pretendida, empenhando-se em grande batalha pela aprovação do mandato de cinco anos, no que teve sucesso.

A luta pela antecipação do plebiscito para 7 de setembro de 1992 prevaleceu graças à crise institucional provocada pelas denúncias de corrupção no governo do presi- dente (1990-1992). A antecipação destinou-se a contor- nar a crise política com a implantação do regime de gabinete. A derrota dessa ini- ciativa resultou no único caminho disponível: o impeachment do presidente Collor e a posse de seu substituto constitucional, o vice-presidente .

Ulysses Guimarães entendia que a Constituição teria de começar pelo capítulo dos Direitos e Garantias Individuais, diferentemente das Constituições anteriores, que começavam pela organização do Estado. Era essa a razão por que Ulysses chamava de Constituição Cidadã a Constituição de 1988, tal a importância que atribuía ao elenco de direitos e garantias individuais assegurados aos cidadãos. Assim mes- mo, reconhecia que acabaram introduzindo nesse Título dispositivos que deveriam constar de legislação ordinária.

A criação de sindicatos era um exemplo ilustrativo. A lei ordinária é que estabelece se o sindicato deve ou não ser unificado. Cabe a cada categoria sindical decidir se quer criar um sindicato. A Constituição acabou fixando a carga horária de trabalho, quando a competência devia ficar para a lei ordinária.

A proposta do deputado Fernando Gasparian, que causou grande debate na Cons- tituinte, fixava os juros em 12% ao ano (parágrafo 3o do artigo 192, que acabou sendo expurgado da Constituição, em mudança promovida pelo governo Lula, através da Emenda Constitucional no 40, de 29/5/2003). Gasparian propunha que a fixação dos juros se fizesse em artigo autônomo. Os que se opunham à emenda de sua autoria, advertidos de que seriam derrotados, escolheram fórmula que evi- tava a autoaplicação, abrigando a proposta em um parágrafo ao referido artigo. O Supremo decidiria, posteriormente, que o artigo não era autoaplicável, reclamando regulamentação, o que nunca ocorreu.

No mundo de hoje, marcado por mudanças que ocorrem em velocidade vertigino- sa, não é admissível a vigência de dispositivos no texto de uma Constituição com

172 O Congresso em Meio Século | 2a Edição

caráter de eternidade. Uma maioria parlamentar forte e unida não encontrará obs- táculos para flexibilizar as chamadas cláusulas pétreas, seja para o que for, ficando a critério do Supremo Tribunal Federal o julgamento da constitucionalidade. Tex- to constitucional deve ser flexível o bastante para acolher mudanças ditadas pela evolução política, econômica e social, e não engessado ao longo dos tempos, o que pode gerar fase interminável de crises institucionais.

Foi objeto de grande debate na Constituinte a necessidade de oferecer ao Poder Executivo instrumentos legais capazes de permitir ação rápida e eficaz no momen- to necessário, tendo em vista a morosidade com que opera o Congresso. O de- putado Nelson Jobim propôs que, em caso de relevância e urgência, o presidente da República poderia adotar medidas provisórias, com força de lei, e submetê-las imediatamente ao Congresso Nacional (CF, art. 62).

Inspirado na Constituição italiana, esse instituto permitiu, no Brasil, a prática de muitos abusos por parte do Poder Executivo, uma vez que não ficou claramente conceituado o que significa relevância e urgência. Cabe ao presidente da Repúbli- ca julgar a oportunidade em que deve baixar a medida provisória. A Constituição deu ao Congresso prazo de trinta dias para exame de medida provisória, findo o qual ela perderia sua eficácia. Permitiu-se, contudo, ao presidente da República a reedição sucessiva de medidas provisórias, de tal sorte que este instituto acabou se tornando fonte de preocupação para o sistema jurídico do país.

Na sessão legislativa de 2001, foi aprovada a Emenda Constitucional no 32, de 1o de setembro, que deu nova redação ao artigo 62 da Constituição Federal, estabelecendo prazo de sessenta dias para a vigência das medidas provisórias, prorrogável por mais sessenta, findos os quais, se o Congresso não houver apreciado a matéria, será arquivada, vedada a sua renovação na mesma sessão legislativa. A emenda aprovada restringiu as áreas que poderiam ser tratadas por medidas provisórias, diferentemente da situação anterior, que não impunha nenhum limite. Não poucos consideram a medida provisória decreto-lei com outro nome e mal insanável, em face da imperiosa necessidade que tem o Poder Executivo de manter em suas mãos instrumento hábil para usar em ocasiões de emergência.

O novo tratamento dispensado pela Constituição ao assunto criou embaraços e dificuldades ao processo legislativo, uma vez que, findo o prazo de sessenta dias, a medida provisória é incluída na Ordem do Dia, em caráter de urgência, sobres- tando a pauta, o que tem levado a constantes e longos períodos de paralisações da atividade legislativa.

173 A Constituinte de 1987/1988

As CPIs

As Comissões Parlamentares de Inquérito constituem uma das essências da demo- cracia e de qualquer parlamento que mereça esse nome. Muitas das CPIs tiveram grande influência em nossas instituições políticas, desempenhando papel de rele- vo na história contemporânea do país. Basta lembrar a CPI da Última Hora, que conduziu à crise que levou o presidente Getúlio Vargas ao suicídio; a do Ibad, que pôs fim à influência do financiamento estrangeiro nas campanhas eleitorais, o que desmoralizava as instituições.

Em 1992, foi criada a CPI do PC Farias (empresário Paulo César Farias), de que resultou o impeachment do presidente Fernando Collor de Mello, e a CPI dos cha- mados “Anões do Orçamento”, de que decorreu a cassação de vários parlamentares, apontados como responsáveis por desvios de dinheiro público para suas contas pessoais. As Constituições anteriores não estabeleciam limites para o funciona- mento de CPIs – grande arma parlamentar da Oposição, em todos os tempos. Um terço de assinaturas era suficiente para viabilizar a criação de uma delas.

Posteriormente, o texto constitucional, a pretexto de conter abusos, estabeleceu o limite de cinco CPIs em funcionamento simultâneo, salvo se o Plenário, através de projeto de resolução, julgar conveniente criar nova CPI. Hoje em dia, admite-se a criação de CPIs mistas, isto é, integradas por deputados e senadores. As rumorosas CPIs do Orçamento e de PC Farias eram mistas.

As Comissões Parlamentares de Inquérito, de modo geral, se estendem por longo tempo de funcionamento, impedindo a criação de nova CPI, ainda que surja, de repente, assunto de grande relevância. Frequentemente, o governo não tem interes- se em apoiar a criação de CPIs que, normalmente, geram situações de constrangi- mento e causam conflitos e perturbações, tendo em vista os amplos poderes de que dispõem e a repercussão política que provocam.

A Constituinte deixou para o final de seus trabalhos o exame dos capítulos do Meio Ambiente, da Família e do Índio. Nesses três capítulos, são relevantes as inovações in- troduzidas. Coube ao deputado paulista Fábio Feldmann, conhecido ecologista, a tare- fa de redigir, como relator, o capítulo dedicado à Política Nacional de Meio Ambiente.

O capítulo da Família trouxe inovações profundas oriundas de emendas do se- nador Nelson Carneiro – reconhecimento do divórcio, a legitimidade dos filhos naturais e os direitos assegurados às companheiras. O capítulo do Índio foi exausti-

174 O Congresso em Meio Século | 2a Edição

vamente debatido, garantindo-se ampla participação das lideranças indígenas, que compareciam aos debates com suas vestimentas tradicionais.

Entendiam os indigenistas que as reservas indígenas deveriam ser tratadas como nações, o que provocou a interferência nos debates de militares do Conselho de Se- gurança Nacional, que defendiam a denominação de povos, o que acabou prevale- cendo. O termo nação para designar tribo indígena foi considerado inconveniente, visto que só existe uma Nação – a brasileira.

Determinou a Constituição que, no prazo de cinco anos, o Poder Executivo promo- vesse a demarcação das terras indígenas, trabalho que ainda se acha em curso, em face da notória escassez de recursos. O subsolo das terras ocupadas pelos índios é de propriedade da União. A exploração mineral em suas terras, portanto, depende de autorização do Poder Executivo e do Congresso Nacional.

Ulysses e Roberto Campos

O senador Roberto Campos, mentor intelectual do Centrão, teve atuação discreta como membro da Comissão de Sistematização. Temperamento singular, não era homem de fácil relacionamento. Chegava pontualmente às reuniões, sentava-se na primeira bancada e se ausentava discretamente. Os colegas tomavam a iniciativa de cumprimentá-lo. Não tinha temperamento para cumprir aquela rotina do depu- tado Delfim Netto (PP-SP), que até hoje circula pelo plenário cumprimentando a todos. Era o tipo de pessoa que obrigava ter-se de ir a ele para cumprimentá-lo.

Campos defendeu da tribuna as poucas emendas e destaques que apresentou. Per- deu sempre. Não raro, o deputado Ulysses Guimarães, quando presidia as sessões, se irritava com suas demoradas intervenções em plenário, sobretudo quando não atendia à advertência de que seu tempo se esgotara. O deputado Ulysses Guimarães não nutria simpatia por Roberto Campos.

Bastava o então senador inscrever-se para falar que o presidente da Assembleia logo começava a exprimir o receio de que ele abusasse do tempo que lhe era desti- nado na tribuna (dez minutos), perturbando o ritmo dos trabalhos da Constituinte. “Paulo, e agora, como é que vamos tirar o homem dali?” – indagava-me Ulysses. Assim mesmo, deixava-o falar quinze, às vezes quase vinte e até trinta minutos, quando acionava a campainha, chamando a atenção de Roberto Campos para con- cluir o seu discurso. Não obstante, não raro, Campos acabava falando meia hora, ainda que sob forte pressão da Mesa.

175 A Constituinte de 1987/1988

Posteriormente, os dois voltaram a manter boas relações. Houve episódio que cer- tamente concorreu para isso. Eu já estava no Tribunal de Contas da União, quando me telefonou Nelson Teixeira, secretário particular de Roberto Campos, informan- do que o senador tivera crise de diabetes e estava internado em hospital do Rio de Janeiro. Pediu-me para avisar ao deputado Ulysses Guimarães (as relações entre os dois estavam estremecidas) que ele, Roberto Campos, iria votar a favor do processo de impeachment do presidente Fernando Collor, nem que fosse de maca. Avisava que Ulysses podia colocar seu nome, desde já, entre os parlamentares favoráveis ao impeachment.

Telefonei a Ulysses transmitindo essa comunicação. Respondeu-me que iria registrar. Sugeri que telefonasse ao hospital, a fim de manifestar preocupação pelo estado de saúde do conhecido parlamentar e diplomata, tendo em vista sua notória importân- cia como intelectual e homem público. Forneci-lhe o número do telefone do hospital. Mais tarde, Nelson Teixeira me informou que Ulysses telefonara para Roberto Cam- pos e que os dois tiveram oportunidade de manter longa conversação.

O Regimento

O Regimento Interno da Constituinte (artigo 12) estabelecia que, concluída a vota- ção, com ou sem emendas, a matéria seria encaminhada a uma comissão de reda- ção integrada por constituintes nomeados pelo presidente, entre eles o relator. Uma vez constituída a comissão de redação, composta por 27 membros, foram ofereci- das, aproximadamente, 200 emendas de redação. Os trabalhos da comissão foram taquigrafados e publicados, na íntegra. Assim, foram realizadas oito reuniões ordi- nárias, de 13 a 20 de setembro de 1988. A redação final foi aprovada na comissão por unanimidade.

A redação final do projeto de Constituição foi aprovada, em Plenário, na sessão de 23 de setembro de 1988, apresentando o seguinte resultado: sim, 474; não, 15; 6 abs- tenções, em um total de 495 votantes. Os trabalhos foram suspensos até a promul- gação da nova Constituição, em 5 de outubro de 1988. Na sessão de 22 de setembro de 1988, o líder do PT, deputado Luiz Inácio Lula da Silva (SP), encaminhando a votação da redação final do projeto de Constituição, em nome de seu partido, con- cluiu o discurso, assinalando:

Sei que a Constituição não vai resolver os problemas de mais de 50 milhões de brasileiros que estão fora do mercado de trabalho. Sei que a Constituição não vai resolver o problema da mortalidade infantil, mas imaginava que os constituintes,

176 O Congresso em Meio Século | 2a Edição

na sua grande maioria, tivessem, pelo menos, a sensibilidade de entender que não basta, efetivamente, democratizar um povo nas questões sociais, mas é preciso democratizar nas questões econômicas. É preciso democratizar na questão do capital. E a questão do capital continua intacta. Patrão, neste país, vai continuar ganhando tanto dinheiro quanto ganhava antes. E vai continuar distribuindo tão pouco quanto distribui hoje.

É por isso que o Partido dos Trabalhadores vota contra o texto e, amanhã, por decisão do nosso Diretório – decisão majoritária – o Partido dos Trabalhadores assinará a Constituição, porque entende que é o cumprimento formal da sua participação nesta Constituinte.

Como já estávamos no final dos trabalhos, era preciso cuidar dos detalhes da edi- ção do novo texto constitucional. Dois fatos aqui merecem ser relatados. O pri- meiro refere-se à confecção da capa do exemplar editado da Constituição. Solicitei ao Dr. Agaciel da Silva Maia, àquela época diretor do Cegraf (Centro Gráfico do Senado), que orientasse seus técnicos no sentido de apresentar o layout do trabalho para exame prévio.

Foram apresentados dez modelos de layout. Certa manhã de um domingo, levei- os à apreciação do Dr. Ulysses Guimarães, na residência oficial da Presidência da Câmara dos Deputados. O presidente escolheu três propostas, solicitando-me que também o auxiliasse na escolha. Concordei com duas e escolhi uma terceira. Con- tudo, Ulysses pediu ajuda a dona Mora, sua esposa, que, sem hesitação, escolheu um layout que havíamos deixado de lado. Dr. Ulysses acompanhou o gosto da mulher, dizendo-me: “Esta será a capa.” Até hoje, as edições da Câmara dos Deputados e do Senado Federal reproduzem o modelo escolhido por dona Mora.

Outro fato importante foi a escolha da data de promulgação da nova Constitui- ção. O deputado Ulysses Guimarães estava inclinado a escolher o dia 6 de outubro. Ponderei que não era data aconselhada, uma vez que coincidia com a passagem de seu aniversário. Concordou imediatamente, escolhendo o dia 8 de outubro, que desaconselhei, pois assinala o dia de meu aniversário. De acordo com a minha pon- deração, Ulysses escolheu o dia 5 de outubro para a promulgação da nova Carta.

Vale a pena falar ainda dos autógrafos da Constituição a ser promulgada. Eram cinco originais, a saber: um para a Câmara dos Deputados, outro para o Senado Federal, um terceiro para a Presidência da República, o quarto para o Supremo Tribunal Federal e o quinto reservado ao Arquivo Nacional. Foi preciso montar-se um processo, dias antes da cerimônia de promulgação, que permitisse que todos os constituintes subscrevessem o documento, salvo o deputado Felipe Cheidde

177 A Constituinte de 1987/1988

(PMDB-SP), que procurou justificar sua ausência dos trabalhos da Constituinte, explicação que não foi aceita pela Câmara dos Deputados, por proposta da Mesa Diretora, que cassou o seu mandato.

Na sessão solene, o texto estava impresso e distribuído para todos os constituintes e convidados. Fato inusitado foi a apresentação elaborada pelo presidente Ulysses Guimarães, para o início do texto constitucional, provocando protestos de diversos parlamentares. Foi uma edição de 10 mil exemplares distribuídos com a seguinte apresentação:

A Constituição-Coragem

O homem é o problema da sociedade brasileira: sem salário, analfabeto, sem saúde, sem casa, portanto, sem cidadania. A Constituição luta contra os bolsões de miséria, que envergonham o país. Diferentemente das sete Constituições anteriores, começa com o homem. Graficamente, testemunha a primazia do homem, que foi escrita para o homem, que o homem é seu fim e sua esperança. É a Constituição Cidadã.

Cidadão é o que ganha, come, sabe, mora, pode se curar. A Constituição nasce do parto de profunda crise que acaba as instituições e convulsiona a sociedade. Por isso, mobiliza, entre outras, novas forças para o exercício do governo e a administração dos impasses. O governo será praticado pelo Executivo e pelo Legislativo. Eis a inovação da Constituição de 1988: dividir competências para vencer dificuldades, contra a ingovernabilidade concentrada em um, possibilita a governabilidade de muitos. É a Constituição-Coragem. Andou, imaginou, inovou, ousou, ouviu, viu, destroçou tabus, tomou partido dos que só se salvam pela Lei.

A Constituição durará com a democracia e só com a democracia sobrevivem para o povo a dignidade, a liberdade e a justiça.

Brasília, 5 de outubro de 1988.

Constituinte Ulysses Guimarães – Presidente.

O deputado Ulysses Guimarães entendia que os constituintes não deveriam prestar o juramento no início da instalação da Constituinte e da legislatura para não ter que fazê-lo sobre o texto da Emenda Constitucional no 1, que foi outorgada pela Junta Militar em 1969. Assim, na sessão da Câmara dos Deputados, no dia 2 de fevereiro de 1987, em discurso da Presidência (reeleito para o biênio 1987/1988), Ulysses decidiu, invocando as Constituições de 1891, 1934 e 1946, que os deputados prestariam compromisso sobre a Constituição a ser promulgada. O compromisso foi prestado com a seguinte redação:

178 O Congresso em Meio Século | 2a Edição

Prometo guardar a Constituição da República, a ser adotada, desempenhar fiel e lealmente o mandato que me foi confiado, e sustentar a União, a integridade e a independência do Brasil.

No dia da promulgação da Constituição, prestaram compromisso, além dos consti- tuintes, o presidente da República, José Sarney, e o presidente do Supremo Tribunal Federal, ministro Rafael Mayer – fato inédito na história do país.

179 Capítulo XI Presidentes da Câmara dos Deputados

O deputado Gomes de Castro, festejado tribuno maranhense do fim do Império, costumava dizer que o presidente da Câmara devia ter um revólver para abater na tribuna o orador que agredisse a gramática, o bom senso e o interesse social. Sem- pre que presidia as sessões da Câmara dos Deputados, o mineiro Antônio Carlos Ribeiro de Andrada costumava adotar duas atitudes, ao advertir o orador de que já ultrapassara o tempo que lhe estava destinado – se era amigo, afirmava: “Nosso inimigo, o tempo...”; se adversário e o discurso enfadonho, sentenciava: “O tempo, nosso amigo, está esgotado...”

Durante a intervenção militar de março/abril de 1964, presidia a Câmara dos Depu- tados Ranieri Mazzilli, do PSD de São Paulo, que exercia esse cargo, sem interrupção, desde 1958. O presidente Castello Branco insurgiu-se contra a reeleição de Mazzilli, indicando o deputado (e coronel da Brigada Militar gaúcha) Perachi Barcelos, que era do PSD, como Mazzilli. Houve disputa na bancada. Perachi previa sua vitória com 25 votos, mas acabou perdendo para Mazzilli por essa desvantagem. Castello e o regime não aceitaram a derrota. O presidente pediu às lideranças do Bloco Parlamentar Re- volucionário que indicassem um nome para disputar em Plenário com Mazzilli.

Bilac Pinto (1965)

Em reunião com o presidente Castello Branco, as lideranças presentes indicaram o deputado pernambucano Nilo Coelho, habitual anfitrião, que oferecia almoços e jantares ao presidente da República, de quem era amigo pessoal. Castello, contudo, sondou os líderes sobre como receberiam o nome do deputado Bilac Pinto, que se encontrava em Nova York, na qualidade de observador parlamentar da delegação brasileira junto à Organização das Nações Unidas. Nenhum dos presentes havia se lembrado de seu nome, mas todos logo perceberam que Bilac era o candidato do presidente da República.

A respeito de Bilac, o jornalista Osório Borba escreveu artigo no Diário de Notí- cias, do Rio de Janeiro, comparando-o ao eucalipto – “cresce sozinho, seca em volta e não dá sombra”. O político mineiro tinha temperamento singular. Procedeu-se à eleição do novo presidente da Câmara dos Deputados, em ambiente de tensão e nervosismo. Havia grande equilíbrio de forças – em alguns momentos, Ranieri

181 Presidentes da Câmara dos Deputados

Mazzilli apresentava maior votação do que Bilac; em outros, era o deputado minei- ro que ultrapassava o paulista. Muitos parlamentares diziam que uma hipotética vitória de Mazzilli provocaria o fechamento do Congresso.

Castello telefonava pessoalmente aos deputados pedindo voto e advertindo que a derrota de Bilac representaria o comprometimento dos objetivos da Revolução. A forte pressão sobre os parlamentares produziu o resultado esperado. Em 25 de fevereiro de 1965, Bilac obteve 280 votos contra 167 de Mazzilli. Outros deputados tiveram votos, mesmo sem serem candidatos: Gustavo Capanema, 2; Raul Pilla, 1; Ovídio de Abreu, 1; em branco, 19; nulos, 3, no total de 393 votantes.

Candidato à reeleição, nas eleições de outubro de 1966, o deputado Paschoal Ranie- ri Mazzilli ficou na sexta suplência. Mazzilli achava que sua tradição e o nome que havia projetado, não só em São Paulo, como no país seriam credenciais suficientes para garantir sua reeleição. A ameaça de cassação pesou contra ele, como se veri- ficou posteriormente.

Meu antecessor na secretaria-geral da Mesa da Câmara dos Deputados, com quem trabalhei, por longo tempo, foi Paulo Watzl, que se envolveu de tal modo na cam- panha eleitoral do deputado Ranieri Mazzilli, seu conterrâneo e amigo pessoal, que perdeu condições políticas para continuar exercendo o cargo.

Diante do resultado, declarou-me que estava solicitando exoneração em carta que escreveu e que entregaria pessoalmente a Bilac Pinto. Watzl esperava que o presi- dente lhe pedisse uma sugestão, estando preparado para indicar meu nome. Pode- se imaginar a decepção que sofreu, quando entrou no gabinete: Bilac, que era seu amigo desde os tempos da Câmara no Rio de Janeiro, sequer o cumprimentou. Colocou a carta no bolso, em silêncio, sem abri-la. Foi constrangedor.

Bilac era tímido, frio e distante. Tinha poucos amigos. Já o conhecia do Rio de Janeiro, de forma que não me causou surpresa o convite que me fez para substi- tuir Paulo Watzl. Quando assumiu a Presidência da Câmara, conhecia poucos de- putados. Somente se relacionava com restrito grupo, sobretudo de velhos amigos da bancada da UDN. Guardava grande mágoa de Magalhães Pinto, de quem se afastara integrando-se à corrente liderada por Milton Campos. Dona Carminha, esposa de Bilac, era a maior acionista individual do Banco Nacional. Assim mesmo, Magalhães nunca lhe oferecera uma diretoria do banco. Bilac achava que era um ato de desconsideração de Magalhães, contra ele e sua família.

182 O Congresso em Meio Século | 2a Edição

Razões de natureza política e ideológica tornaram esse afastamento ainda mais ní- tido. Bilac integrava a “Banda de Música” da UDN, que era como se chamava o gru- po de bacharéis udenistas: Milton Campos, Pedro Aleixo, Adaucto Lúcio Cardoso, Carlos Lacerda, Aliomar Baleeiro, Oscar Dias Correia, Guilherme Machado. Maga- lhães Pinto e Juraci Magalhães eram os líderes do Grupo Chapa Branca, que estava sempre com o governo e no qual pontificavam, ainda, Antonio Carlos Magalhães, Virgílio Távora, José Cândido Ferraz e outros.

No início do recesso legislativo de 1965, eu estava despachando com o deputado Bilac Pinto, em seu gabinete da Presidência, quando ele recebeu telefonema de sua residência comunicando que um neto havia morrido afogado em uma piscina, em Belo Horizonte. Bilac disse-me que sua esposa, dona Carminha, estava viajando para a capital mineira a fim de assistir ao enterro do neto, ficando ele em Brasília. Não me contive. Ponderei que ele não podia deixar de ir a Belo Horizonte para prestar a última homenagem ao neto, pois não eram urgentes os processos que estava despachando. Bilac concordou e acabou viajando com a esposa.

Professor catedrático de Direito Administrativo da Faculdade Nacional de Direito, Bilac exerceu o magistério por pouco tempo, uma vez que a Constituição de 1946 vedava a acumulação do mandato com a cátedra. Sofreu o mesmo impedimento do deputado Hermes Lima, professor catedrático de Teoria Geral do Estado, também obrigado a abandonar o magistério quando se elegeu deputado federal pelo PSB do antigo Distrito Federal.

Apesar da notória timidez, Bilac Pinto exerceu a Presidência da Câmara em sua plenitude. Quando o deputado Adaucto Lúcio Cardoso, que era um dos amigos do círculo mais íntimo, procurou-o para solicitar o reconhecimento de seu cargo de líder do Bloco Parlamentar Revolucionário, integrado por diversos partidos que apoiavam o governo, o que importaria na concessão de prerrogativas regimentais inerentes ao cargo, Bilac prometeu estudar o pleito.

Chamou-me para consulta. Expliquei que o Regimento Interno da Câmara somen- te reconhecia blocos partidários, e não blocos integrados por parlamentares de vá- rios partidos, como era o caso. Bilac comunicou a Adaucto que não tinha amparo legal para reconhecer a liderança do Bloco Parlamentar Revolucionário. Embora fossem grandes amigos, Adaucto Lúcio Cardoso achou que era injusta a decisão. Assim mesmo, Bilac a manteve. Criado logo depois da deposição de Goulart, o Bloco Parlamentar Revolucionário abrigava a UDN e parlamentares do PSD, PSP, PDC, PRP, PL e PTB.

183 Presidentes da Câmara dos Deputados

Nos termos da decisão adotada, Adaucto não gozava de nenhuma prerrogativa no Plenário da Câmara para usar a palavra. Falava em nome da UDN, nunca como líder do Bloco Parlamentar Revolucionário. Surgiram a essa época os famosos “bigorrilhos”. Os mais conhecidos eram Teódulo de Albuquerque, João Batista Ramos, Manuel No- vais, Clemens Sampaio, Américo de Sousa, Benedito Ferreira e outros. Os deputados do PR (Partido Republicano) da Bahia haviam ingressado no PTB, sob protestos do deputado gaúcho Temperani Pereira, para quem o partido ficara “inchado”.

Deposto o presidente João Goulart, esses deputados aderiram com fervor à nova situação, sendo apelidados de “bigorrilhos”, expressão típica do Rio Grande do Sul, popularizada em sucesso carnavalesco do cantor Jorge Veiga, no Rio de Janeiro, e que significava o mesmo que fisiológico.

Ao assumir a Presidência das sessões plenárias, Bilac Pinto pedia-me que recomu- nicasse os nomes dos deputados sentados na primeira bancada, revelando estado e filiação partidária de cada um. Ele não conhecia a maioria dos integrantes da pró- pria bancada mineira, da qual fazia parte. Ao chegar ao término de uma bancada, já não lembrava os nomes daqueles que se sentavam no início. Tinha temperamento introspectivo e era de poucas palavras.

Quando estávamos no gabinete conversando sobre determinado assunto, se en- trasse alguém que não fosse de sua intimidade, calava abruptamente, guardando silêncio constrangedor. Se fossem seus amigos, como Pedro Aleixo, Adaucto Lúcio Cardoso, Guilherme Machado, Aliomar Baleeiro, prosseguia a conversa. Por minha sugestão, aprendeu a mudar de assunto habilmente, quando entrava alguém que não fazia parte de seu círculo de amizades.

No início de sua gestão na Presidência, solicitava do diretor-geral da Câmara dos De- putados, Luciano Brandão Alves de Sousa, que trouxesse a documentação adminis- trativa para seu exame, tal como contas, balanços, licitações e outros papéis relacio- nados a pagamentos. Examinava um a um para verificar se estavam em ordem. Dois ou três meses depois, como verificou que a prestação de contas era correta, deixou de solicitar a documentação ao diretor-geral, nele depositando inteira confiança.

Diante da peculiar situação que o país vivia, após o golpe traumático que depôs o presidente da República, Bilac Pinto tinha receio de que surgisse alguma irre- gularidade capaz de justificar a abertura de Inquérito Policial Militar dentro do Congresso. Essa preocupação levou-o a baixar resolução proibindo que os carros oficiais ultrapassassem os limites do Distrito Federal. Certo dia, o deputado Adolfo Oliveira, da UDN fluminense, que tinha, naquela época, pavor de viajar de avião,

184 O Congresso em Meio Século | 2a Edição

solicitou carro oficial para levá-lo ao Rio. O chefe da garagem negou-se a lhe forne- cer o veículo, informando-o sobre a decisão do presidente da Câmara.

Adolfo dirigiu-se a Bilac, de quem era amigo pessoal e correligionário, para inda- gar se a decisão abrangia a todos, indistintamente, lembrando: “Você sabe que não viajo de avião. Preciso do carro”. Ao mesmo tempo, revelou que os deputados Nilo Coelho, primeiro-secretário da Câmara, e Rui Santos, haviam saído da garagem com dois automóveis e duas camionetas – o primeiro, com destino a Petrolina (Per- nambuco), e o segundo, para Salvador (Bahia). Bilac manteve a proibição, ainda que oferecesse seu carro particular, que Adolfo não aceitou.

Ao mesmo tempo, chamou-me para determinar a demissão do chefe da garagem da Câmara. Ponderei que, como primeiro-secretário, o deputado Nilo Coelho era o administrador da Câmara, sendo o chefe da garagem obrigado a cumprir suas ordens. Chamamos o diretor-geral para esclarecer o assunto. Luciano Brandão exi- biu expediente do primeiro-secretário ao chefe da garagem determinando que, no dia seguinte, fossem colocados à sua disposição dois automóveis e duas camionetas com os respectivos motoristas.

Bilac determinou ao diretor-geral que entrasse em contacto com o DNER (Depar- tamento Nacional de Estradas de Rodagem) a fim de interceptar os veículos da Câ- mara, na estrada, devolvendo-os a Brasília. Dadas as dificuldades de comunicações existentes naquela época, não foi possível transmitir a ordem. Bilac recomendou que, assim que retornasse a Brasília, Nilo Coelho devia ser informado que o presi- dente da Câmara precisava falar-lhe.

Conversei com o deputado Nilo Coelho, logo que regressou a Brasília. Mostrou-se indignado com a decisão de Bilac, mas acabou concordando em comparecer à Pre- sidência. Em face de sua reação, chamei Luciano Brandão para assistirmos à con- versa, embora a certa distância. Percebemos que Bilac Pinto censurou severamente a conduta de Nilo Coelho, que não esboçou qualquer tipo de reação.

Não satisfeito, Bilac pediu-me que requisitasse à biblioteca da Câmara livros sobre improbidade administrativa, um deles de autoria de seu filho, Pinto Fi- lho. Depois de estudar o assunto minuciosamente, Bilac Pinto formulou parecer do próprio punho sustentando que o deputado Nilo Coelho havia incorrido em crime de improbidade administrativa, caracterizado como enriquecimento ilícito, o que conduziria à abertura de processo para perda de seu mandato. Seria também obri- gado a indenizar a Câmara pelas despesas realizadas, como gastos de combustíveis e diárias de motoristas, além do desgaste de material.

185 Presidentes da Câmara dos Deputados

O presidente da Câmara pretendia ler a representação que redigira em reunião formal da Mesa Diretora à qual estivesse presente o deputado Nilo Coelho. Como Nilo não compareceu às reuniões convocadas, Bilac decidiu, em sua ausência, ler a representação para os demais companheiros de Mesa – em reunião realizada em 10 de dezembro de 1965 – sem, contudo, colocá-la em votação. Instruiu-me no sentido de registrar a ocorrência em ata, solicitando que, antes da publicação, eu lhe levasse o texto para que pudesse conhecer os seus termos. Não gostou de minha redação, recriminando o tom cauteloso. Ponderei que o assunto havia perdido relevância, explicação que não aceitou.

Resolveu ditar-me a redação que deveria ser consignada em ata para registrar o episódio. Essa ata foi publicada no Diário do Congresso, extraindo-se esse trecho ditado por Bilac: “Esta comunicação é feita à Mesa para que esta, na próxima reu- nião, presente o senhor deputado Nilo Coelho, tome as providências que julgar convenientes”. Ao tomar conhecimento desses fatos, o deputado Monsenhor Arru- da Câmara, adversário de Nilo Coelho em Pernambuco, pediu-me que lhe forne- cesse cópia da ata. Respondi que levaria algum tempo na pesquisa e acabei não lhe fornecendo a cópia.

Houve outro incidente grave envolvendo Bilac Pinto e Nilo Coelho. O deputa- do pernambucano levou processo administrativo a uma reunião da Mesa sobre compra de papel, indicando determinada firma como vencedora da concorrência. Dono de editora (a Forense), e, portanto, conhecedor da qualidade de papéis, Bi- lac indagou de Nilo porque havia sido escolhida aquela empresa, e não outra, que perdera a licitação, embora tivesse oferecido material de melhor qualidade. Médico de profissão, Nilo disse que não tinha motivos para colocar em dúvida os pareceres emitidos a respeito pelos órgãos técnicos da Câmara.

Bilac insistia em que a qualidade e textura dos papéis eram diferentes, tendo ele, Nilo Coelho, a obrigação de examinar tal aspecto. Nilo retirou o processo de pauta, não comparecendo mais a nenhuma reunião da Mesa, criando grandes dificulda- des à administração da Casa. Os processos administrativos que dependiam da Mesa eram encaminhados ao primeiro-secretário para emitir parecer antes de levá-los à deliberação do colegiado. Tal fato criou um tumulto administrativo, começando a ocorrer falta de material, como papel para correspondência e até chapas de raio X para o Serviço Médico da Câmara.

O presidente convocou o diretor-geral, Luciano Brandão, para se informar sobre os problemas administrativos causados pela atitude do primeiro-secretário. Luciano

186 O Congresso em Meio Século | 2a Edição

demonstrou que, nos termos do Regimento Interno e do Regulamento Adminis- trativo da Câmara, era obrigado a enviar todos os processos administrativos ao primeiro-secretário. Diante da firme posição de Bilac, encontrou-se uma solução: o diretor-geral reproduziria o processo original, com cópia para o presidente, que o submeteria à Mesa Diretora.

O deputado Bilac Pinto fora um dos primeiros parlamentares a combater o go- verno do presidente João Goulart. Na sessão da Câmara dos Deputados, em 17 de fevereiro de 1964, proferiu discurso que teve grande repercussão política e funcio- nou como uma espécie de senha para a deflagração do movimento que depôs o presidente João Goulart em março/abril de 64. Foi um discurso em que denunciava estar em fase avançada a guerra revolucionária no país, conforme estudos procedi- dos por altos oficiais das Forças Armadas, que chegaram ao seu conhecimento.

Bilac sustentava, nesse discurso, que a guerra revolucionária se dividia em cinco fases, inspirado no trabalho do coronel J. Hogard, do Exército francês, indicando, em seguida, o desenvolvimento da sua tese. Bilac afirmava, a certa altura:

O meu propósito, ao denunciar a guerra revolucionária, que está sendo tramada com a conivência do senhor presidente da República, foi o de advertir a Nação acerca dos riscos que correm o regime democrático e o nosso sistema de vida, baseado nos ideais do mundo livre.

O deputado pernambucano José Costa Cavalcanti, coronel reformado do Exército, teve papel influente na conspiração militar e funcionou como conselheiro de Bilac Pinto na elaboração desses pronunciamentos.

Um dos momentos mais difíceis que o deputado mineiro viveu na Presidência da Câmara foi quando da extinção dos partidos políticos pelo Ato Institucional no 2, de 1965. Ele ficou tão traumatizado que, nesse dia, não compareceu à Câmara dos Deputados. Acompanhei os membros da Mesa que foram à sua residência para lhe prestar solidariedade. Eram Batista Ramos (primeiro-vice-presidente), Mário Gomes (segundo-vice-presidente), Nilo Coelho (primeiro-secretário), Henrique La Rocque (segundo-secretário), Emílio Gomes (terceiro-secretário) e Nogueira de Resende (quarto-secretário). Depois que todos se retiraram, Bilac pediu-me que permanecesse, confessando-se profundamente preocupado com o destino das ins- tituições e o próprio funcionamento da Câmara dos Deputados, que se baseava na existência de partidos.

187 Presidentes da Câmara dos Deputados

Solicitou-me que estudasse o assunto, para, no dia seguinte, estar em condições de comunicar à Câmara dos Deputados o procedimento que adotaria. Bilac sabia que não poderia submeter à votação qualquer projeto de resolução, pois certamente provocaria reações imprevisíveis. Assim, na sessão de 28 de outubro de 1965, ele fez a seguinte comunicação à Casa:

A Mesa comunica ao Plenário que, tendo em vista a extinção dos partidos e conforme comunicações feitas às diversas correntes políticas, adotará quanto à composição dos órgãos técnicos da Casa, as seguintes normas: a) será mantida a atual composição das comissões até o término da legislatura, nos termos do artigo 30 do Regimento Interno; b) a substituição de membros de comissões só poderá ocorrer através de indicação de líder dos blocos, desde que o substituído integre o bloco e concorde com a substituição; c) em caso de vaga ou criação de comissões especiais ou mistas, o critério de preenchimento será o da norma prevista no artigo 34 do Regimento, isto é, proporcional ao número de integrantes do bloco.

Normalmente, Bilac presidia as sessões durante a Ordem do Dia, quando surgia uma ou outra questão, que era imediatamente resolvida. Mas não gostava de presi- dir as sessões. Bilac não se candidatou à reeleição, sugerindo ao presidente Castello Branco o nome do sucessor na pessoa de seu amigo e velho companheiro da UDN, deputado Adaucto Lúcio Cardoso, mineiro como ele, mas eleito deputado federal pela UDN do antigo Estado da Guanabara.

Bilac Pinto acalentava o projeto de passar uma temporada residindo em Paris, onde deixara guardado em garagem automóvel de sua propriedade. Também cogitava fazer longa viagem marítima ao Oriente, levando uma grande quantidade de livros para sua leitura, quando foi surpreendido pelo convite do presidente Castello Bran- co para que assumisse a embaixada do Brasil na França. Ele teve a oportunidade de assistir às históricas agitações estudantis de 1968, em Paris, que tiveram repercus- são em todo o mundo.

O relato de alguns episódios serve para ilustrar a personalidade de Bilac Pinto e a sua conduta austera, quando se tratava de dinheiro público. Fui procurado por funcionário do gabinete do ministro das Relações Exteriores, que desejava entregar as passagens e diárias ao novo embaixador brasileiro em Paris. Levei o assunto ao conhecimento de Bilac Pinto, em sua residência, avisando-o de que o diplomata queria combinar a data do voo a Paris. Ele disse-me que nada receberia, uma vez que só poderia considerar-se embaixador a partir do momento em que entregasse as credenciais ao presidente Charles de Gaulle. Pagou, do próprio bolso, as passa- gens dele e da esposa.

188 O Congresso em Meio Século | 2a Edição

Ele ofereceu coquetel a parlamentares e à imprensa, no Hotel Nacional, para co- memorar a eleição do deputado Adaucto Lúcio Cardoso na Presidência da Câmara dos Deputados. Após a recepção, solicitou-me que lhe fosse apresentada a nota da despesa. Chamei o diretor-geral, Luciano Brandão, que logo tratou de tranquilizá- lo, dizendo que a direção do hotel encaminharia, posteriormente, a fatura da des- pesa para pagamento pela Câmara. Mas Bilac insistiu em saber o valor da despesa, imediatamente. Quando a nota lhe foi submetida, sacou o talão de cheque e preen- cheu o valor correspondente. Fazia questão de pagar a despesa do próprio bolso.

O presidente Bilac Pinto haveria de mostrar seu zelo à compostura na Casa em outro episódio conhecido, na época. Certo suplente de deputado no exercício da função, em razão de licença do titular do mandato, transferiu para uma mulher cartão de embarque que lhe pertencia, uma vez que os parlamentares, então, embarcavam com simples documento de identidade. O avião estava lotado. O funcionário da empresa percebera a manobra escusa do deputado. Depois do embarque de todos os passagei- ros, foi à cabina do avião chamando nominalmente o parlamentar. Verificou que ele não estava presente. Insistiu no chamamento, o que obrigou a mulher a se apresentar, sendo convidada a retirar-se do avião. O sindicato das empresas de aviação dirigiu ofício ao presidente da Câmara, em caráter sigiloso, relatando a ocorrência.

Bilac chamou-me para convocar a Mesa Diretora a fim de propor a cassação do man- dato do deputado faltoso. Ponderei que a repercussão seria danosa à imagem da ins- tituição. Como se mostrasse irredutível em sua decisão, pedi-lhe prazo de 24 horas para estudar uma solução. Concordou, deixando claro que, esgotado o prazo, reuniria a Mesa para tomar a decisão. Relatei o fato ao deputado titular, aconselhando-o a reassumir imediatamente o mandato, com o que concordou. No dia seguinte, dei co- nhecimento ao presidente Bilac Pinto que o titular havia reassumido o mandato e que já não havia razão para tratar do assunto, uma vez que o suplente se afastara.

Em certa oportunidade, no instante da indicação de observadores parlamentares para a Assembleia Geral das Nações Unidas, coube um lugar aos pequenos parti- dos, que decidiram preenchê-lo mediante sorteio. Foi eleito o deputado Luís Perei- ra, de Pernambuco, pintor de parede de profissão, que tivera apenas 123 votos nas eleições de outubro de 1962, mas assumira, assim mesmo, substituindo deputado cassado. Levei o nome do escolhido ao presidente, que reagiu de pronto: “Este eu não designo para viajar a Nova York. Não tem nível cultural para representar o Congresso nas Nações Unidas”.

189 Presidentes da Câmara dos Deputados

Bilac aconselhou as lideranças das pequenas bancadas a proceder a uma nova elei- ção, o que foi feito. Por coincidência ou não, o escolhido, por sorteio, foi o pintor- deputado. Desta vez, Bilac conformou-se, advertindo-se de que sua recusa seria mal interpretada por seus companheiros de corporação. Percebeu que os líderes não podiam substituir o deputado, discriminando-o daquela forma. Esse fato ha- veria de produzir consequências. O presidente Castello Branco baixou ato institu- cional dispondo que, quando ocorressem cassações de mandatos ou renúncias, não seriam convocados os respectivos suplentes e o quórum parlamentar teria de se adaptar à nova realidade.

Bilac Pinto foi nomeado ministro do Supremo Tribunal Federal, em junho de 1970, pelo presidente Emílio Garrastazu Médici, exercendo a função até 1978, quando se aposentou. O político e magistrado mineiro morreu, na cidade do Rio de Janeiro, em 18 de abril de 1985.

Adaucto Lúcio Cardoso (1966)

Cabe registrar incidente ocorrido entre o deputado Adaucto Lúcio Cardoso e o senador Auro de Moura Andrade, no início de sua Presidência na Câmara dos De- putados. Excelente orador, presidente do Senado durante sete anos consecutivos, Moura Andrade notabilizou-se pela audácia. Sua família era proprietária de fazen- das de gado no interior de São Paulo, onde fundara a cidade de Andradina. Em 1960, quando da transferência da capital, do Rio de Janeiro para Brasília, parlamen- tares e funcionários recebiam os vencimentos em dobro, a título de incentivo. Era a chamada “dobradinha”, que causava indignação à UDN.

Os deputados Pedro Aleixo (UDN-MG) e Adaucto Lúcio Cardoso (UDN-RJ) classificavam tal gratificação de “inconstitucional e imoral”. Quando foi escolhido presidente da Câmara dos Deputados, por decisão pessoal do presidente Castello Branco, Adaucto solicitou ao presidente do Senado, Auro de Moura Andrade, que convocasse sessão conjunta das Mesas Diretoras das duas Casas do Congresso para examinar o pagamento da “dobradinha”. A sessão foi realizada em dependência do Senado, o que levou Auro de Moura Andrade a assumir a Presidência.

O fato causou estranheza aos demais membros da Mesa das duas Casas. Esperava- se que, por gesto de cortesia, Auro delegasse a Presidência a Adaucto. Auro abriu a sessão lembrando que era homem de grande fortuna pessoal, que algumas gera- ções de sua família não teriam condições de dissipar. Contudo, entendia ser justo o pagamento da gratificação aos parlamentares e funcionários, razão pela qual a

190 O Congresso em Meio Século | 2a Edição

apoiava. Em seguida, convidou o deputado Adaucto Lúcio Cardoso a assumir a Presidência. Adaucto nada mais fez do que encerrar a reunião, da qual deixou de ser elaborada a ata de praxe.

Moura Andrade foi educado na Escola Normal Caetano de Campos, Colégio Rio Branco e Liceu Franco-Brasileiro, bacharelando-se pela Faculdade de Direito do Largo de São Francisco (USP), em São Paulo. Movido por boa dose de ambição e audácia, Auro tomava decisões, como presidente do Senado, com base em disposi- ções regimentais que não tinham qualquer relação com a questão decidida. Logo depois da deposição de Goulart, em uma daquelas agitadas sessões do Congresso, Auro de Moura Andrade simulou desmaio, o que obrigou a interrupção da sessão. Foi levado ao gabinete do presidente da Câmara, onde ficou até que a situação se acalmasse. Refeito, posteriormente, voltou a reabrir a sessão do Congresso, que in- terrompera por malícia.

Não obstante a fama de independência que sua figura inspirava, Moura Andrade era bastante ligado ao sistema militar, até por afinidade ideológica. Apesar disso, anteci- pou seu regresso de viagem à Europa, em razão de denúncias contra ele formuladas num IPM (Inquérito Policial Militar), instaurado em São Paulo, acusando-o de prá- tica de atos de corrupção em negócios realizados na Caixa Econômica Federal. Ao desembarcar no Aeroporto Internacional do Galeão, ao ser abordado por jornalistas, profundamente irritado, o senador Auro de Moura Andrade saiu-se com frase que se tornou lapidar: “Japona não é toga e o que está dentro dela não é juiz”.

Ele revelava rara sensibilidade para compreender problemas humanos. Nomeou para o Senado Federal o jornalista Osvaldo Costa, proprietário do jornal O Semanário, ho- mem de esquerda, que atravessava sérias dificuldades financeiras. No dia 14 de abril de 1964, os direitos políticos do conhecido jornalista foram suspensos, por dez anos, o que resultaria, automaticamente, na perda de sua função pública. Moura Andrade aposentou Osvaldo Costa com data anterior à do ato de sua cassação.

Já era notório no Congresso que o presidente Castello Branco desejava indicar o depu- tado Adaucto Lúcio Cardoso no lugar de Bilac na Presidência da Câmara. Raimundo Padilha, líder do governo na Câmara, foi instruído pelo presidente a fazer sondagem formal junto à bancada para saber qual o nome preferido pela maioria para presidir a Câmara dos Deputados – se Adaucto ou Nilo Coelho. Padilha procurou os deputa- dos, um a um, anotando as respostas em um bloco que guardava no bolso.

O líder da Maioria levou ao presidente Castello Branco o nome de Adaucto Lúcio Cardoso como o vitorioso da consulta que realizara, sem revelar o número de votos

191 Presidentes da Câmara dos Deputados

recebidos por um e outro. Houve forte reação na bancada, da qual muitos deputados, fiéis a Nilo, acusavam o líder governista de ter manipulado a sondagem para favorecer a escolha de Adaucto, desafiando-o a revelar os votos recebidos pelos dois candidatos. Padilha, porém, nunca mostrou esses dados. Sabia-se que Adaucto era o nome prefe- rido de Castello e isso, naquelas circunstâncias, era fator de decisiva importância.

O presidente Castello Branco convidou o deputado Nilo Coelho a continuar na primeira-secretaria da Câmara dos Deputados – convite prontamente aceito. Con- cluído o processo de votação da nova Mesa Diretora, Nilo Coelho só compareceu à primeira reunião. Sabia que Adaucto era amigo íntimo de Bilac e teria para com ele a mesma atitude restritiva do antecessor. Bilac tomara a iniciativa de relatar a Adaucto os episódios em que Nilo se envolvera durante a sua gestão.

Adaucto, que cultivava conceito de independência política incompatível com o re- gime autoritário que os militares haviam implantado no Brasil, ouviu o líder das Ligas Camponesas, Francisco Julião, proferir contundente discurso da tribuna da Câmara, em 31 de março de 1964, numa sessão agitada e de plenário cheio, ana- lisando as consequências da intervenção militar na vida do país e sublinhando, a certa altura, a respeito da reforma agrária, pela qual tanto se batera:

Hoje, a questão agrária é o fator de toda essa inquietação. No fundamental, o que se discute no Brasil é a necessidade de se passar de um regime que desconhecia a existência desses 40 milhões de servos para o regime em que esses 40 milhões de servos participem da vida, deem sua opinião a um grupo minoritário, que não quer que isso aconteça. Mas isso acontecerá, mas isso sucederá, porque é uma contingência histórica. É uma necessidade imperiosa e ninguém vai poder deter a marcha dos humildes nessa luta pela sua própria sobrevivência.

Julião concluiu seu discurso afirmando que, ao deixar o edifício do Congresso Nacio- nal, certamente seria preso. Quando se retirava do prédio, o deputado Adaucto Lúcio Cardoso, que era uma das lideranças mais importantes da UDN, convidou-o para acompanhá-lo em seu automóvel. Julião desembarcou do carro oficial de Adaucto, em algum ponto de Brasília, exilando-se, imediatamente, na embaixada do México.

Adaucto presidia as sessões da Câmara sempre tenso e dominado por grande nervo­ sismo. Logo depois de sua posse, ocorreu um incidente envolvendo a presença no plenário do ministro do Planejamento do governo Castello Branco, Roberto Cam- pos, cuja convocação fora solicitada pelo deputado Amaral Neto. Quando subiu à tribuna, Campos foi surpreendido por um deputado que assim o saudava: “How

192 O Congresso em Meio Século | 2a Edição

are you, Bob Field?” A intervenção causou grande tumulto no plenário, irritando Adaucto Lúcio Cardoso.

O deputado Amaral Neto, que estava em fase de oposição ao governo Castello Branco, fez várias intervenções com o objetivo de criar dificuldades ao ministro do Planejamento. Adaucto perdeu o controle da sessão. Acionava insistentemente a campainha de tumulto, pedindo silêncio, pois considerava o comportamento de Amaral Neto ofensivo à boa ética parlamentar. Como não tivera o cuidado de cor- tar o som dos microfones, instalou-se verdadeiro pandemônio no plenário, o que o obrigou a interromper a sessão.

Minutos depois, serenados os ânimos, pôde reabri-la, tendo o ministro Roberto Campos condições de proceder à exposição perante o Plenário sobre a política econômica do governo, respondendo, em seguida, às interpelações dos deputados. Quando não era presidente da Câmara, Adaucto presidiu comissão especial com o objetivo de discutir a emenda constitucional do ex-presidente João Goulart que dispunha sobre a desapropriação de terras, no eixo das estradas federais, para efeito de reforma agrária. Foi convidado para fazer uma exposição sobre o tema o embai- xador do Brasil em Washington, Roberto Campos.

Favorável à reforma agrária, Campos sustentou a sua necessidade como impera- tivo de modernização do país. Os debates foram bastante exaltados, uma vez que já se constituía na Câmara tenaz resistência ao governo João Goulart. Membro da comissão e estudioso do assunto, Bilac Pinto contestava Roberto Campos com ve- emência, provocando um comentário sarcástico do embaixador: “O senhor faz-me lembrar o biquíni [a grande moda do momento], mostra quase tudo, mas esconde o essencial.” A ironia do diplomata com Bilac Pinto irritou seu amigo e aliado, de- putado Adaucto Lúcio Cardoso, que encerrou a sessão.

Esses momentos nervosos deram-me a oportunidade de melhor conhecer o tempe- ramento de Adaucto. Observei que, quando se irritava na condução dos trabalhos, diante de qualquer imprevisto, acionava a campainha e falava, simultaneamente, concorrendo para aumentar a confusão entre os parlamentares. Lembrei-lhe a ne- cessidade de desligar os microfones quando acionasse a campainha. Concordou com a sugestão, o que contribuiu para restaurar a tranquilidade dos trabalhos.

Como sofria de arritmia paroxística, Adaucto instruiu-me para que, nos casos de tumulto em plenário, chamasse sua atenção, ao mesmo tempo em que ele pressio- nava a carótida na tentativa de reduzir a intensidade do fluxo sanguíneo e evitar

193 Presidentes da Câmara dos Deputados

acidente circulatório. Nesses momentos difíceis, ao perceber que a situação estava mais calma, sugeria-lhe que prosseguisse com a sessão.

Adaucto possuía senso quase religioso a respeito da autoridade de que se revestia a Presidência da Câmara dos Deputados e da importância que tinha na formação do poder nacional. Mas também era capaz de gestos humanos.

Quando foi cassado o deputado Lycio Hauer, presidente da Confederação Nacional dos Servidores Públicos, eleito pela antiga Guanabara, fui procurado por sua esposa, que me comunicava ter o marido deixado Brasília, enquanto ela e os filhos estavam agora ameaçados de despejo do apartamento funcional que ocupavam na SQS 208.

Levei o fato ao conhecimento do presidente da Câmara, que imediatamente falou sobre o assunto com o presidente Castello Branco, o qual lhe garantiu que a esposa de Lycio não precisava pagar taxa de ocupação e outras despesas relacionadas com a ocupação do imóvel e que não seria mais incomodada.

Certo dia, aos prantos, a esposa de Lycio procurou-me, novamente, avisando-me que oficiais de Justiça estavam na porta de seu apartamento para promover o des- pejo. Ela não tinha para onde ir. Ainda que a Mesa da Câmara estivesse reunida, levei o problema ao conhecimento de Adaucto, que suspendeu o encontro, a fim de telefonar ao presidente Castello Branco, a quem comunicou o fato. Castello tran- quilizou-o, prometendo que tomaria as devidas providências. A esposa de Lycio não foi mais incomodada, permanecendo em Brasília alguns meses.

A dimensão política superior que Adaucto atribuía à Presidência da Câmara levou-o a entrar em sério conflito com o governo Castello Branco, quando o ma- rechal baixou o Ato Institucional no 2 (27/10/1965) a pretexto de afastar a ameaça de sublevação militar.

Adaucto ficou indignado com as últimas cassações de Castello, que ocorreram em 12 de outubro de 1966, quando o presidente da Câmara se encontrava no Rio de Ja- neiro, em plena campanha eleitoral. Viajou para Brasília decidido a adotar decisões em defesa de sua autoridade, que julgava comprometida pelos atos de força. Lem- bro-me de que o deputado Nilo Coelho, primeiro-secretário da Câmara dos Depu- tados, entrou no gabinete da Presidência da Câmara, onde se achavam Adaucto e outros parlamentares, para entregar envelope com ofício do chefe da Casa Militar e secretário do Conselho de Segurança Nacional (CSN), em que comunicava que o presidente Castello Branco havia cassado os mandatos de cinco parlamentares. O ofício era o seguinte:

194 O Congresso em Meio Século | 2a Edição

Ofício no GB 0-01, de 14 de outubro de 1966, do Secretário-Geral do Conselho de Segurança Nacional ao Exmo. Primeiro-Secretário da Câmara dos Deputados. Cumpre- nos comunicar a V.Exa. que, por Decreto de 13 do corrente, publicado no Diário Oficial subsequente, o Exmo. Sr. Presidente da República resolveu, com fundamento no artigo 1o do Ato Institucional no 2, de 27 de outubro de 1965, suspender os direitos políticos pelo prazo de dez anos e cassar os mandatos dos seguintes deputados federais: Abraão Fidélis de Moura, Antônio Adib Chamas, Armínio Marcílio Doutel de Andrade, César Prieto, Humberto El-Jaick e Sebastião Paes de Almeida. Aproveito para renovar a V.Exa. os protestos da minha elevada estima e consideração. General de Divisão Ernesto Geisel, Secretário-Geral do CSN.

Adaucto não se conteve. Virou-se para Nilo Coelho e disse, em tom recriminatório: “Triste papel!” Nilo se retirou sem fazer qualquer comentário. Adaucto decidiu sub- meter a comunicação do presidente da República ao Plenário da Câmara dos Depu- tados, o que provocou grande preocupação. A resposta do presidente Castello Branco foi a decretação do recesso do Congresso, por trinta dias, através do Ato Complemen- tar no 23, de 20 de outubro de 1966, argumentando que a decisão do presidente da Câ- mara infringia norma aceita pelo próprio Supremo Tribunal Federal, segundo a qual decisões tomadas com base nos atos institucionais eram insusceptíveis de exame pelo Legislativo ou Judiciário. Para decretar o recesso do Congresso Nacional, o presidente Castello Branco assim concluía a fundamentação de seu ato:

Considerando, finalmente, que se constituíam, assim, naquela Casa do Congresso Nacional, por motivo de ausência justificada da grande maioria de seus membros, um agrupamento de elementos contrarrevolucionários, com a finalidade de tumultuar a paz pública e perturbar o próximo pleito de 15 de novembro, embora comprometendo o prestígio e a autoridade do Poder Legislativo.

O Congresso estava em pleno recesso quando se realizaram as eleições de 3 de outu- bro de 1966. Coube ao coronel Carlos de Meira Matos comandar a invasão militar do prédio do Congresso Nacional a fim de fazer cumprir o decreto. Exigia o Interventor que as pessoas abandonassem o edifício e se identificassem à saída. No instante em que se retirava do edifício ocupado, o deputado Adaucto Lúcio Cardoso disse ao co- ronel Carlos de Meira Matos, recusando-se a se identificar: “Aqui nesta Casa eu sou o chefe do poder civil”. “E eu sou o chefe do poder militar” – retrucou o coronel.

Os telefones do edifício do Congresso Nacional foram cortados, às 5 horas da manhã de 13 de outubro de 1966. Decretado o recesso, Adaucto entendeu que nada mais lhe restava fazer, senão retirar-se para o Rio de Janeiro, onde aguar- dou o término do recesso. Quando retornou a Brasília, apresentei-lhe o docu- mento que comunicava, oficialmente, à Presidência da Câmara as cassações de

195 Presidentes da Câmara dos Deputados

mandatos, sugerindo que o assunto fosse encaminhado à Comissão de Consti- tuição e Justiça (CCJ) para emitir parecer.

Assim se procedeu. O relator na CCJ foi o deputado Ernâni Sátiro, cujo parecer sustentava que não cabia àquela comissão examinar o mérito de sanções revolu- cionárias, com fundamento em atos institucionais. Seu parecer foi aprovado pela maioria da CCJ contra os votos dos deputados oposicionistas. A Mesa Diretora da Câmara ratificou a postura da Comissão de Constituição e Justiça, nos termos de parecer elaborado pelo primeiro-vice-presidente, deputado João Batista Ramos, contra o voto do presidente Adaucto Lúcio Cardoso.

A posição assumida por Adaucto era incompatível com o regime de exceção insta- lado no país, cujos líderes não admitiam qualquer tipo de contestação. Na verdade, era posição temerária da parte de um político. Basta lembrar que, na sessão de 16 de agosto de 1966, Adaucto garantira: “Entretanto, posso reafirmar a esta Casa aquilo que venho afirmando solenemente, desde que assumi esta Presidência: nenhum mandato será cassado na Câmara dos Deputados, sob a minha Presidência”.

Era de estranhar que, promovidas as cassações pelo presidente Castello Bran- co, após aquela decisão da Mesa, ratificando-as, Adaucto continuasse a exer- cer o cargo. No mesmo dia, antes de assumir a Presidência da sessão plená- ria, comunicou-me que iria renunciar à Presidência da Câmara, indagan- do qual o procedimento regimental que deveria cumprir. Respondi-lhe que devia aguardar o final do discurso do orador que se encontrava na tribuna para fazer a comunicação ao plenário. Procurei o líder do governo, deputa- do Raimundo Padilha, amigo íntimo de Adaucto, e o primeiro-vice-presidente da Câmara, deputado Batista Ramos, para lhes dar conhecimento do fato.

Padilha conversou com Adaucto e, ao se retirar, comunicou-me que estava tudo resolvido, isto é, o presidente se convencera de que não devia renunciar. Qual não foi o espanto de Padilha, de Batista Ramos e o meu, quando, no momento em que o orador abandonava a tribuna, o deputado Adaucto Lúcio Cardoso retirou papel do bolso e o leu, renunciando à Presidência da Câmara dos Deputados, em 28 de novembro de 1966, dizendo, a certa altura:

Realmente, sempre entendi que o primeiro e mais alto compromisso de nossa investidura de mandatários da soberania popular reside na preservação da inviolabilidade dos nossos mandatos e da independência e da autonomia do Congresso, como instrumento de realização do regime democrático.

196 O Congresso em Meio Século | 2a Edição

E, mais adiante:

Sei que entre nós tem havido, há ainda e haverá sempre, como em toda coletividade, uma minoria de homens menos responsáveis. Repito, porém, que não devemos consentir que o Poder Executivo nos arrebate a prerrogativa de julgá-lo e de cassar mandatos que o povo nos conferiu.

E assim concluiu:

Se isso basta à Câmara, atingida no recente episódio de cassações, não basta, porém, ao seu presidente, que, confrontado com suas convicções, não se sente em condições de cumprir o papel de executor da decisão hoje tomada pela Mesa, nos termos do parecer da Comissão de Constituição e Justiça, mandando que o presidente declare extintos os mandatos e, portanto, excluídos das listas de presenças, do plenário e das comissões, os seus deputados, cujos direitos políticos foram suspensos. Em face do exposto, Senhores Deputados, firmei irrevogável decisão de renunciar, como agora renuncio, à Presidência da Câmara.

Batista Ramos assumiu a Presidência da sessão, conduzindo-a até o seu final. Poste- riormente, levou o assunto ao conhecimento da Mesa da Câmara que, em razão da vaga aberta, resolveu aplicar decisão da Comissão de Constituição e Justiça, segundo a qual, ocorrendo vacância na presidência de comissão técnica, faltando menos de três meses para o encerramento da sessão legislativa, o lugar seria preenchido defini- tivamente pelo vice-presidente (ata da 34a sessão da Mesa, realizada em 28/11/66).

Adaucto Lúcio Cardoso foi reeleito deputado federal pelo antigo Estado da Gua- nabara para cumprir novo mandato. Antes de tomar posse, porém, foi nomeado ministro do Supremo Tribunal Federal, pelo presidente Castello Branco, em 14 de fevereiro de 1967, tomando posse em 2 de março do mesmo ano. Sua nomeação causou grande perplexidade, face à atitude de desafio que adotara em relação aos atos de arbítrio do presidente Castello Branco. No caso, o presidente honrara com- promisso assumido, anteriormente, perante seus amigos da cúpula da UDN, tam- bém amigos íntimos de Adaucto.

Em certa oportunidade, manifestei ao senador Daniel Krieger, então presidente da Arena, o espanto geral causado pela nomeação de Adaucto para ministro do Supre- mo Tribunal Federal, depois do conflito que teve com o governo e o regime. Krieger deu-me a explicação acima, de que o presidente honrara seu compromisso.

No Supremo Tribunal Federal, Adaucto revelou grande espírito de independência, discutindo o mérito de atos institucionais e de toda a legislação que se elaborou com base neles. Até o dia em que propôs a seus colegas do STF, em sessão do dia 10 de

197 Presidentes da Câmara dos Deputados

março de 1971, a declaração de inconstitucionalidade do Decreto-Lei no 1.077, de 26 de janeiro de 1970, baixado pelo presidente Emílio Garrastazu Médici, que instituiu a censura prévia “na divulgação nociva à segurança nacional de livros e periódicos”.

Foi o MDB que tomou a iniciativa de formular, perante aquela Corte, a Reclamação no 849, arguindo a inconstitucionalidade do citado decreto-lei. Contra o voto de Adaucto Lúcio Cardoso, o Plenário do Supremo Tribunal Federal julgou impro- cedente a referida Reclamação, nos termos do voto do relator, ministro Adalício Nogueira, e dos ministros Luís Gallotti, Osvaldo Trigueiro, Elói da Rocha, Djaci Falcão, Amaral Santos, Thompson Flores e Bilac Pinto.

Inconformado, Adaucto jogou a toga sobre a bancada e abandonou a sala de ses- sões, declarando: “Não voltarei mais a esta Casa”. Não permitiu que seu voto fosse transcrito na ata daquela sessão do Supremo Tribunal Federal. Em seguida, foi ao gabinete onde requereu sua aposentadoria, publicada em 19 de março de 1971, no Diário Oficial da União. O ministro Adaucto Lúcio Cardoso morreu, no Rio de Janeiro, em 20 de julho de 1974.

Batista Ramos (1967)

O deputado João Batista Ramos cumpriu os três meses que restavam do mandato de Adaucto. Excelente advogado trabalhista com movimentado escritório em São Paulo, Batista era pessoa de convivência cordial e amena, mas se irritava com fa- cilidade. Foi ministro do Trabalho do presidente Juscelino Kubitschek (1960), por indicação do PTB.

Solidário com os marítimos, que reivindicavam paridade de vencimentos com os militares, rompeu com o presidente que o nomeara, mas combatia aquele movi- mento, renunciando ao Ministério em 7 de novembro de 1960. Ao reassumir o mandato, pronunciou contundente discurso contra o governo e a pessoa do presi- dente, o que teve péssima repercussão.

Líder do PTB na Câmara, quando esta ainda funcionava no Palácio Tiradentes, Batista defrontou-se com o famoso episódio da Carta Brandi. Em 16 de setembro de 1955, o deputado Carlos Lacerda leu da tribuna carta assinada pelo deputado argentino Antonio Jesús Brandi, datada de 5 de agosto de 1953, dirigida ao ministro do Trabalho, João Goulart, revelando suposta coordenação sindical entre Brasil e Argentina, com a criação de brigadas operárias de choque e a compra de determi- nadas mercadorias em Córdova, que Lacerda garantia ser material bélico destinado a armar o movimento sindical.

198 O Congresso em Meio Século | 2a Edição

Batista Ramos ocupou a tribuna, várias vezes, não raro exaltado, para manter vee- mentes debates com Carlos Lacerda, em defesa da inocência do então ministro do Trabalho, João Goulart. Verificou-se, posteriormente, que a carta Brandi era um documento falso, o que deixou o deputado Carlos Lacerda em situação constran- gedora. Na Presidência da Câmara, Batista revelou a instabilidade de seu tempe- ramento. O líder da Oposição, nos primeiros tempos do regime militar, deputado Mário Covas, costumava levantar muitas questões de ordem, irritando Batista, que interrompia o orador, criando situações embaraçosas. Covas reagia, protestando contra as interrupções de seu discurso pelo presidente da sessão.

Batista não se despia da sua posição partidária, quando assumia a Presidência da Câmara, que exige postura de magistrado. Bastante ligado ao presidente do Sena- do, Filinto Muller, Batista atribuía prioridade ao cumprimento de suas obrigações partidárias, comprometendo a dimensão política do cargo que ocupava, causando, com isso, grande irritação na Oposição.

Reeleito presidente da Câmara, Batista teve sério atrito com o deputado José Bo- nifácio, primeiro-vice-presidente da Câmara. Realizava-se a reforma no edifício da Câmara dos Deputados. Batista levou o assunto ao conhecimento da Mesa Dire- tora, tendo José Bonifácio discordado do projeto. Houve áspera troca de palavras entre os dois. Em dado momento, Bonifácio se exaltou. Bateu na mesa e proferiu palavras ofensivas a Batista Ramos, o que criou grande constrangimento, obrigan- do o encerramento da reunião.

A Mesa Diretora reunia-se no gabinete da Presidência da Câmara. Bonifácio co- municou que não mais participaria de reuniões naquele local. Com a ajuda do di- retor-geral, Luciano Brandão, conseguimos uma sala ao lado da antiga Comissão de Constituição e Justiça, no prédio principal. Bonifácio concordou em participar das reuniões da Mesa no novo local, mas suas relações com Batista continuaram estremecidas.

A essa época, surgiu o confronto político entre o senador Auro de Moura Andra- de, presidente do Senado, e o vice-presidente da República, Pedro Aleixo. Cabia ao vice-presidente da República presidir as sessões conjuntas do Congresso, mas quem as convocava era o presidente do Senado, consultando previamente o presidente da Câmara sobre local, dia e pauta. Geralmente, havia concordância. Certo dia, o senador Auro de Moura Andrade convocou a sessão do Congresso e comunicou o fato ao presidente da Câmara. Batista Ramos devolveu o expediente, recusando-se a tomar conhecimento de seus termos.

199 Presidentes da Câmara dos Deputados

Moura Andrade impetrou mandado de segurança junto ao Supremo Tribunal Fede- ral contra o presidente da Câmara dos Deputados, gerando uma crise institucional. Enquanto se aguardava decisão da corte, o vice-presidente da República passou a convocar as sessões do Congresso Nacional. O mandado de segurança não chegou a ser julgado pelo Supremo Tribunal Federal, face ao término da legislatura. Moura Andrade não conseguiu a legenda da Arena para disputar a reeleição, sendo derro- tado na Convenção Regional por Osvaldo Zancaner, que veio a ser posteriormente nomeado conselheiro do Tribunal de Contas do Estado de São Paulo.

Batista Ramos foi presidente da Câmara dos Deputados, até janeiro de 1967, para concluir o mandato de Adaucto Lúcio Cardoso. Reeleito neste ano, permaneceu na Presidência até janeiro de 1968. Pleiteou a reeleição, mas foi derrotado pelo depu- tado José Bonifácio de Andrada. Batista sofreu profunda decepção com a derrota, uma vez que esperava o apoio de Pedro Aleixo, a quem apoiara na disputa com o senador Auro de Moura Andrade.

Também estava certo de contar com o apoio do governo Costa e Silva, ao qual servira lealmente. Pedro Aleixo deixou claro que não poderia ficar contra um can- didato de Minas Gerais, sua terra, como Bonifácio, convencendo Costa e Silva a manter-se neutro em face da disputa, alegando que se tratava de problema interno da Câmara. Para o deputado José Bonifácio, sua eleição teve o gosto de vingança contra Batista Ramos, de quem guardara profundo ressentimento.

Quando comentei com Pedro Aleixo que sabia de deputados que diziam apoiar Batista Ramos, mas haviam votado em José Bonifácio, ele me relembrou a disputa que travara com Antônio Carlos Ribeiro de Andrada pela Presidência da Câmara dos Deputados, em 1937. Andrada era candidato à reeleição e Pedro Aleixo dispu- tava o cargo com o apoio do presidente Getúlio Vargas, enquanto o país vivia sob a democracia, estando em vigor a Constituição de 1934.

Derrotado pelo jovem advogado mineiro, Antônio Carlos de Andrada convidou Pedro Aleixo a ir a sua casa para que ambos tivessem a oportunidade de confrontar as listas de pessoas que apoiavam suas candidaturas. “Vamos verificar quem nos traiu, para que isso sirva de lição”, dizia o velho Andrada a Pedro Aleixo. O vice- presidente disse ter ficado impressionado com o confronto de listas de eleitores que ambos haviam elaborado.

200 O Congresso em Meio Século | 2a Edição

José Bonifácio (1968/1969)

O deputado José Bonifácio Lafaiete de Andrada tinha estilo próprio de tra- balho. Dormia e acordava tarde. Era político em tempo integral, não exer- cendo qualquer outra atividade. Tinha temperamento peculiaríssimo. An- ticomunista, era veemente no seu combate às esquerdas, sempre que ocupava a tribuna da Câmara. Polemista respeitado, tinha especial predileção pe- las provocações anticomunistas, das quais não escapavam nem os jornalistas que tinham a missão de fazer a cobertura em seu gabinete.

Estava longe das ideologias. Era um pragmático. Citava como exemplo de sua atu- ação episódio que se verificara em Barbacena, logo depois da queda do Estado Novo, quando havia grande anseio de participação política. No momento em que se procedia à eleição para presidente do diretório da UDN, em distrito de Barbace- na, todos aclamaram determinada personalidade da vida local como o presidente natural. Essa pessoa declinou da homenagem, dizendo que se estava recomeçando mal a democracia ali. Só aceitaria a homenagem pelo voto secreto. Procedida a votação, para atender o desejo do homenageado, ele só obteve um voto, provavel- mente o dele próprio. Bonifácio dizia que seu correligionário cometera erro ao não aceitar a escolha por aclamação, preferindo correr um risco.

Udenista, Bonifácio fazia política em Minas Gerais de maneira peculiar, evitando envolver-se em qualquer das facções em que se dividia o partido no estado. A polí- tica na UDN mineira se constituía em dois grupos: o liderado pelo senador Milton Campos e o do deputado Magalhães Pinto. José Bonifácio era independente, sendo considerado um deputado regional, constituindo-se sua base na Zona da Mata, que tinha como principais redutos Barbacena e Juiz de Fora.

Quando tinha problemas políticos delicados, Bonifácio não contava com o apoio e a solidariedade de nenhum colega de bancada da UDN mineira. Mantinha arquivo pessoal com os nomes de todos os seus eleitores, que costumava chamar de “meu te- souro”, que ele habitualmente visitava, de casa em casa, acompanhado da esposa, dona Vera, que o apoiava incondicionalmente. Quem estava contra ele, estava contra ela.

Em Barbacena havia disputa acirrada pelo poder local entre as famílias Andrada e Bias Fortes. Dona Vera era irmã do ex-governador Crispim Jacques Bias Fortes, chefe do clã pessedista. Quando Bias visitava a irmã, nunca encontrava em casa o cunhado, José Bonifácio, que sempre achava um meio de se ausentar. Barbacena e Juiz de Fora eram o mundo de José Bonifácio.

201 Presidentes da Câmara dos Deputados

Cumpre salientar que a disputa entre a UDN e o PSD, em Minas Gerais, era das mais radicais do Brasil. A tal ponto que, após a extinção dos antigos partidos pelo AI-2, e autorizada a criação da Arena e do MDB, o deputado Pedro Aleixo sugeriu a criação da sublegenda, a fim de abrigar, no partido do governo e do regime militar, grupos distintos e irreconciliáveis, egressos da UDN e do PSD.

Vale a pena contar um episódio que demonstra como os políticos das duas facções do partido governista traziam essas disputas para o plano nacional.

A eleição do deputado pessedista José Maria Alkmin para vice-presidente da Re- pública, na chapa do marechal Humberto de Allencar Castello Branco, causou pro- funda irritação às principais lideranças da UDN de Minas Gerais.

Como primeiro-secretário da Mesa da Câmara dos Deputados, Bonifácio solicitou ao presidente da Casa, deputado Ranieri Mazzilli, que promovesse reunião extra- ordinária da Mesa Diretora, após a eleição de Castello e Alkmin, a fim de submeter à deliberação do colegiado sua proposta de perda do mandato de deputado fede- ral do vice-presidente eleito José Maria Alkmin. A Constituição de 1946, em vigor àquele tempo, não previa incompatibilidade em exercer ao mesmo tempo a Vice- Presidência da República e o mandato de deputado federal. Assim mesmo, a Mesa declarou, por unanimidade, a perda do mandato de Alkmin, o que representou fato inusitado, face à norma constitucional vigente. Basta lembrar que o deputado fede- ral Elói Dutra, do PTB carioca, exercera o mandato parlamentar ao mesmo tempo em que era vice-governador do antigo Estado da Guanabara, do qual era governa- dor Carlos Lacerda, da UDN.

Ainda que advertido de que essa decisão era inconstitucional, o deputado José Maria Alkmin nunca fez qualquer tipo de comentário a respeito, aceitando, si- lenciosamente, a manobra do adversário. Representava a tradicional postura de autêntico pessedista mineiro que, vice-presidente da República, sofria forte sus- peição do regime militar.

Bonifácio era cauteloso, mas tinha bravura pessoal, sem exibicionismo. No auge do regime militar, quando tomou conhecimento, como primeiro-secretário da Câ- mara dos Deputados, que a Voz do Brasil não reproduzia o resumo dos discursos proferidos da tribuna da Câmara, de crítica ao governo, dirigiu-se, pessoalmente, de imediato, à Rádio Nacional, em Brasília, e exigiu que as gravações dos discursos fossem transmitidas. Só viria a retirar-se da emissora depois de ouvir a transmissão completa, tomando a iniciativa, a seguir, de relatar ao Plenário a sua intervenção.

202 O Congresso em Meio Século | 2a Edição

O deputado udenista mineiro exerceu a primeira secretaria da Câmara durante oito anos. Elegeu-se, pela primeira vez, ainda na cidade do Rio de Janeiro. A transfe- rência da Câmara dos Deputados para Brasília consumou-se sob a sua orientação, cabendo a execução dessa medida ao deputado Neiva Moreira. Foi sob sua Presi- dência que se construiu o prédio onde está localizada, ainda hoje, a biblioteca da Câmara dos Deputados.

Durante sua longa gestão na Primeira-Secretaria, sempre prestigiou o corpo fun- cional da Casa. Não obstante, exigia dos servidores respeito rigoroso aos parlamen- tares e às normas impostas pela hierarquia. Como relator do Orçamento anexo do Ministério da Agricultura, ainda no Rio de Janeiro, negociava com seus colegas a permuta de verbas para a sua região. Era astuto nas brigas políticas, mas extrema- mente honrado no exercício das suas funções. Nunca se conheceu qualquer episó- dio que comprometesse a imagem de honradez de José Bonifácio.

A gestão de José Bonifácio na Presidência da Câmara dos Deputados enfrentou os turbulentos acontecimentos que precederam a edição do Ato Institucional no 5, incluindo a invasão do campus da UnB por tropas do Exército comandadas pelo coronel Alzir Nunes Gay da Fonseca.

Naquela oportunidade, vários parlamentares importantes foram agredidos quan- do intervinham em favor dos filhos que sofriam violências físicas. O polêmico discurso do deputado Márcio Moreira Alves, em 3 de setembro de 1968, foi pro- nunciado no chamado “pinga-fogo” (Pequeno Expediente), também sob a gestão de Bonifácio, embora, na ocasião, a sessão tenha sido presidida, não por ele, mas pelo primeiro-secretário, Henrique La Rocque (Arena-MA). A agitação estudan- til, à época, tomava conta das ruas das principais cidades brasileiras, especial- mente do Rio de Janeiro e São Paulo.

Em meio a esse clima político instável e perigoso, em 27 de outubro de 1969, por volta das 23 horas, enquanto despachávamos, Bonifácio começou a sentir fortes dores no peito. Subestimou a doença, dizendo que eu não devia me pre- ocupar porque estava com um problema intestinal. Como as dores persistissem, ele acabou por admitir: “Estou me sentindo mal, Paulo. Telefone a Vera para se encontrar comigo no posto médico da Câmara. Acho que estou sofrendo um in- farto”. Telefonei para o plantão médico, então localizado no Anexo I, pedindo que aguardassem ali a chegada do deputado.

Era longa a distância entre seu gabinete e o posto médico. Bonifácio caminhava com dificuldade. Solicitei uma cadeira de rodas para amenizar seu sofrimento.

203 Presidentes da Câmara dos Deputados

Contudo, recusou-se a usá-la, embora o prédio, àquela altura, estivesse praticamen- te vazio, pois passava de meia-noite. Dizia: “Vou sentar na cadeira de roda para ser flagrado por um desses fotógrafos? Não!” Não lhe agradava a ideia de que os adversários de Minas Gerais tivessem conhecimento de que seu estado de saúde inspirava cuidados.

Vale a pena lembrar episódio que se passou na cidade de Juiz de Fora. Naquela oca- sião, Bonifácio refugiou-se em uma farmácia, quando se sentiu mal. Solicitou ao far- macêutico que fechasse as portas para evitar ser visto naquelas condições. O farma- cêutico pediu a presença de ambulância para levá-lo ao hospital. Quando sugeriram que ele deitasse na maca, recusou com veemência. Determinou que sua esposa, dona Vera, lá se acomodasse, enquanto ele viajava na boleia ao lado do motorista.

Quando chegamos ao posto médico da Câmara, Bonifácio, já trôpego, foi assistido pelo chefe do serviço, Dr. Renault Matos Ribeiro, que diagnosticou enfarte agudo do miocárdio. Em razão do mistério que cercou a doença do presidente Costa e Sil- va, recomendei ao Dr. Renault e a mais dois médicos não pertencentes aos quadros da Câmara que lavrassem laudo sobre o estado de saúde de Bonifácio. Distribuímos boletim médico, aproximadamente às 5 horas da manhã do dia 28, para todas as redações de jornais, estações de rádio e televisão.

Ao mesmo tempo, junto com o diretor-geral da Câmara, Luciano Brandão, nos dirigimos à Granja do Ipê, residência oficial do chefe da Casa Civil da Presidência da República, deputado Rondon Pacheco, para lhe comunicar o fato. Eram 5h30 da manhã. Rondon recebeu-nos de roupão, com ar assustado. Pedimos-lhe que trans- mitisse a ocorrência aos membros da Junta Militar, que se encontravam na cidade do Rio de Janeiro. Em seguida, telefonamos para , a fim de relatar os acon- tecimentos ao primeiro-vice-presidente da Câmara, deputado Acioli Filho, pedin- do-lhe que assumisse a Presidência, no dia seguinte, quando seria eleito presidente da República o general Emílio Garrastazu Médici e vice-presidente o almirante Augusto Rademacker.

Nessa mesma manhã, os jornalistas credenciados na Câmara mostravam-se inquie- tos e céticos quanto à notícia da enfermidade do deputado José Bonifácio. Julgavam que ele estava simulando doença para não presidir a sessão de reabertura dos traba- lhos da Câmara dos Deputados, por uma questão de consciência. Não conheciam o temperamento pragmático de José Bonifácio. Como não acreditavam na informa- ção, insistiam em vê-lo, o que foi desaconselhado pelos médicos da Câmara. Como continuasse a pressão dos jornalistas, chegou-se a um entendimento.

204 O Congresso em Meio Século | 2a Edição

Foi realizado sorteio entre os jornalistas credenciados, sendo escolhido o jornalista Flamarion Mossri, do Jornal do Brasil e de O Estado de S. Paulo, para visitar o en- fermo e constatar a procedência da versão difundida. Flamarion teve oportunidade de verificar com os próprios olhos que Bonifácio estava monitorado, entubado e dopado, fato este que transmitiu aos seus colegas. Decorridos alguns dias, foi remo- vido para casa de saúde particular de Brasília e, um mês depois, viajaria para o Rio de Janeiro a fim de completar o período de convalescença.

José Bonifácio morreu, na cidade de Belo Horizonte, em 18 de fevereiro de 1986, de complicações cardíacas.

Geraldo Freire (1970)

O deputado Geraldo Freire foi eleito presidente da Câmara dos Deputados, pela Arena, em março de 1970, por indicação do presidente Emílio Garrastazu Médici, lá permanecendo até fevereiro de 1971, quando lhe sucedeu o deputado Ernesto Pereira Lopes. A Presidência da Câmara foi um prêmio ao deputado mineiro, que se portara com lealdade e zelo na defesa do governo e do regime durante a crise provocada pelo discurso do deputado Márcio Moreira Alves.

Católico e conservador – tanto assim que integrou o grupo Ação Democrática Par- lamentar (Adep), cujo presidente era o deputado da UDN baiana João Mendes, e que tinha como objetivo combater “a infiltração comunista no país” – o deputado Geraldo Freire era político íntegro, de linha de conduta inalterável em relação aos seus princípios. Quando exerceu a liderança do governo na Câmara, substituindo o titular, deputado Ernani Sátiro, que adoecera, portou-se com firmeza em defesa do governo e do regime, substituindo – como relatamos antes – os integrantes da Arena na Comissão de Constituição e Justiça que estavam dispostos a votar con- tra a concessão do pedido de licença do Supremo Tribunal Federal para processar Márcio Moreira Alves. Graças ao seu empenho, o governo ganhou a votação na CCJ, por um voto, ainda que viesse a ser derrotado em Plenário.

Durante sua tranquila gestão na Presidência, não houve fato relevante, mas Ge- raldo Freire se comportou com dignidade no exercício da Presidência da Câ- mara dos Deputados. Pela sua formação ideológica, não se estranhou quando o deputado Geraldo Freire apoiou a frustrada candidatura do general Sílvio Frota à Presidência da República.

205 Presidentes da Câmara dos Deputados

Ernesto Pereira Lopes (1971/1972)

O sucessor de Geraldo Freire na Presidência da Câmara foi o deputado e empresá- rio paulista Ernesto Pereira Lopes, indicado ao presidente Emílio Garrastazu Médi- ci pelo governador de Minas Gerais, Rondon Pacheco, seu amigo pessoal. Foi uma gestão tranquila, em todos os sentidos. Pereira Lopes era homem cordato que não simpatizava com posições extremadas. Posso citar um episódio que revela o equilí- brio e a firmeza com que se portava.

Um deputado de estado do Norte assumiu compromisso escrito com seu colega de partido, segundo o qual aquele que fosse vitorioso na eleição, depois de determi- nado tempo, entraria em licença, para dar oportunidade ao que tivesse ficado na suplência. Eleito, este deputado não cumpriu o acordo com o companheiro, que procurou Pereira Lopes para lhe fazer entrega do documento escrito.

O presidente da Câmara considerou aético o procedimento do referido deputado, mostrou-lhe o documento e o intimou a dar explicações. O deputado pediu tem- po, mas nunca deu resposta. Certo dia, Pereira Lopes pediu-me que reclamasse do deputado faltoso a devolução do documento, que pertencia à Câmara. Chamei-o a minha casa e lhe disse que, se ele não devolvesse o documento, em 24 horas, seria instaurado processo para perda de seu mandato. No dia seguinte, ele devolveu o documento que era dirigido ao presidente da Câmara. Para evitar escândalo, Perei- ra Lopes mandou arquivá-lo, tendo em vista que o assunto não se relacionava com as atividades da Casa.

Outro episódio mostra a seriedade com que o deputado Pereira Lopes se comportava na Presidência da Câmara. Um deputado do Centro-Oeste, integrante da liderança de sua bancada, tinha, portanto, carro oficial à sua disposição. Na campanha eleito- ral, porém, esse deputado substituía a placa oficial da Câmara por uma placa fria. Tal fato foi levado ao conhecimento do presidente da Câmara, que chamou o depu- tado, exigindo-lhe que não repetisse tal procedimento. Apesar disso, o faltoso voltou a repetir a irregularidade.

Pereira Lopes recorreu ao líder da bancada do MDB, à qual pertencia o repre- sentante em causa, deputado Freitas Nobre (SP), para tomar providência contra a fraude e não obteve resultado. Inconformado, o presidente chamou o líder a seu gabinete para adverti-lo de que, na reincidência, levaria o fato ao conhecimento da Mesa Diretora para propor a cassação do mandato daquele parlamentar. A situação não mais se repetiu.

206 O Congresso em Meio Século | 2a Edição

O deputado paulista viria a ser submetido a um teste delicado quando o deputado Francisco Pinto, do chamado grupo “autêntico” do MDB, pronunciou discurso, no dia em que se comemorava o término da Segunda Guerra Mundial, analisando as causas do conflito bélico e comparando atos e atitudes do nazifascismo com o regime militar brasileiro, o que causou forte reação na alta hierarquia das Forças Armadas, precipitando uma crise política.

O deputado Geraldo Freire (MG) assumiu a liderança da Arena, uma vez que o ti- tular, deputado Ernani Sátiro, encontrava-se enfermo. Freire solicitou do deputado Pereira Lopes que não autorizasse a publicação do discurso de Chico Pinto. O pre- sidente da Câmara pediu-me que examinasse o discurso face às normas regimen- tais. Disse-lhe que, sob esse aspecto, não havia qualquer impedimento à publicação. Tratava-se de julgamento político do discurso, que somente ele, como presidente da Casa, tinha o direito de fazer.

Pereira Lopes procurou o deputado Geraldo Freire, a quem entregou pessoalmente o discurso, pedindo-lhe, também, que o analisasse. O líder da Arena devolveu o documento, explicando que não tinha condições de fazer qualquer tipo de corte, embora aconselhasse o presidente da Câmara dos Deputados a não autorizar a sua publicação. Pereira Lopes retrucou, no mesmo instante, que não presidia a Câmara para ficar de lápis vermelho à mão, a fim de fazer censura. Mandou publicar o dis- curso e nada aconteceu.

O deputado Ernesto Pereira Lopes morreu na cidade de São Carlos, interior de São Paulo, em 31 de julho de 1993, aos 88 anos.

Flávio Marcílio (1973/1974, 1979/1980, e 1983/1984)

O deputado Flávio Marcílio, da Arena do Ceará, elegeu-se presidente da Câ- mara dos Deputados em três oportunidades. Sua popularidade, no Legis- lativo, devia-se à maneira solidária com que tratava os colegas. Coube-lhe construir o imponente Anexo IV, edifício que hoje ostenta seu nome. Lutou, mas não conseguiu reformar o Regimento para incluir dispositivos restaurando a auto- nomia do Poder Legislativo, fortemente abalada pelo AI-5.

Surgiu forte reação quando se anunciou a intenção de denominar de Flávio Marcí- lio o edifício do Anexo IV, uma vez que fora ele quem mobilizara os recursos neces- sários à construção. Os que se colocaram contra invocavam a existência de lei que proibia a denominação de prédios e logradouros públicos com nomes de pessoas

207 Presidentes da Câmara dos Deputados

vivas. Flávio viria a dar uma demonstração de prestígio junto aos seus pares, pois a própria Câmara dos Deputados aprovou a denominação dada ao prédio de “Anexo IV Presidente Flávio Marcílio”.

Marcílio foi um dos políticos que defenderam a reeleição do presidente Emílio Garrastazu Médici, tese derrotada em consequência da imposição da candidatura do general Ernesto Geisel, presidente da Petrobras, à sucessão do presidente Médi- ci, por seu irmão, o poderosíssimo ministro da Guerra, general Orlando Geisel.

Em sua primeira gestão na Presidência da Câmara, Flávio foi surpreendido por grave crise política, criada com o discurso proferido pelo deputado Francisco Pinto (MDB-BA) no dia 14 de março de 1974, estigmatizando a figura do general Au- gusto Pinochet, chefe do golpe militar responsável pela deposição do presidente Allende, do Chile, que viera ao Brasil assistir à posse do presidente Ernesto Geisel.

Em seu discurso, Chico Pinto afirmou, a certa altura:

E a quem Pinochet quer comprar agora, quando anuncia que para aqui traz a intenção de formar um Eixo Político Brasil-Bolívia-Chile-Paraguai? Eixo Político para quê? Para servir a quem? De Eixo, Senhor Presidente, basta o Eixo de triste memória que a História registra. O Eixo formado pela Alemanha nazista, a Itália fascista e o Japão. O que vem do Chile de Pinochet é o fechamento dos jornais, é a censura desvairada à imprensa remanescente. O que nos vem do Chile é a opressão mais cruel de que nos dá ideia a reportagem e as fotos publicadas pela revista Visão, no campo de concentração da Ilha Dawson.

E, mais adiante, o parlamentar baiano arremata, com ênfase:

Passa-se à História de duas formas, Senhor Presidente, pela grandeza ou pela torpeza das ações. O Chefe da Junta Militar do Chile, Augusto Pinochet, preferiu parodiar Juvenal: “Que importa a infâmia, quando fica assegurado o poder?”

Flávio sofreu forte pressão para não publicar o discurso. Instruiu-me no sentido de que o estudasse atentamente em face do que dizia o Regimento Interno da Casa e a Constituição. Após uma leitura atenta, disse a Flávio que o discurso estava colocado em termos parlamentares, não lhe cabendo fazer exame político de seus termos. Chico Pinto procurou-me para indagar se o discurso seria publicado. Disse-lhe que, em minha opinião, seria publicado, o que certamente traria consequências.

O presidente Flávio Marcílio determinou que o discurso fosse publicado. Ao tomar conhecimento da publicação, o ministro da Justiça, Armando Falcão, telefonou a

208 O Congresso em Meio Século | 2a Edição

Marcílio para lhe comunicar que o procurador-geral da República, José Carlos Mo- reira Alves – que viria a ser nomeado ministro do Supremo Tribunal Federal – esta- va ingressando com representação junto àquela Corte contra o deputado Francisco Pinto, conforme se lê no seguinte ofício, dirigido ao presidente Flávio Marcílio:

Brasília, em 26 de março de 1974. Senhor Presidente,

Tenho a honra de passar às mãos de V.Exa., em anexo, cópia do ofício Separ – 997/74, desta data, em que solicito ao Senhor Procurador-Geral da República as providências cabíveis para a apuração da responsabilidade penal do Senhor Deputado Francisco Pinto, face ao discurso que proferiu, na sessão desta Câmara, em 14 do corrente, ofensivo a Chefe de Estado estrangeiro.

O deputado foi condenado a seis meses de prisão fechada e à suspensão de seus direitos políticos, por infração à Lei de Segurança Nacional.

Nos termos da Constituição, coube à Mesa da Câmara dos Deputados declarar a perda do mandato do deputado Francisco Pinto. O líder da Oposição procurou o deputado Flávio Marcílio, junto com o líder do governo, deputado Célio Borja, solicitando autorização para que Francisco Pinto usasse a tribuna da Câmara a fim de se despedir de seus companheiros. Flávio Marcílio instruiu-me no sentido de reservar o tempo necessário para que o parlamentar baiano fizesse uso da palavra.

Ao ser divulgada a notícia, o ministro da Justiça, Armando Falcão, telefonou a Flá- vio Marcílio a fim de comunicar, formalmente, que, se o deputado punido ocupasse a tribuna da Câmara, o Congresso seria fechado. Marcílio expôs a situação a Célio Borja, que se convenceu de que não se devia dar a palavra a Francisco Pinto. Flávio me orientou para que resolvesse o impasse em seu nome. Sugeri que o líder do go- verno levantasse questão de ordem indagando se o Supremo Tribunal Federal havia comunicado à Câmara a decisão de suspender os direitos políticos de Chico Pinto.

Em plena sessão, quando o presidente Flávio Marcílio se empenhava em evitar que o deputado baiano ocupasse a tribuna, para evitar o fechamento do Congresso, o deputado Célio Borja mostrava-se imperturbável em sua poltrona de líder do governo. Fiz sinal para que se levantasse. Indeciso e tímido, Célio indagou, com o plenário lotado de parlamentares e jornalistas, se a Mesa havia recebido expediente do STF comunicando a condenação do deputado Francisco Pinto e a suspensão de seus direitos políticos. Marcílio disse que ainda não havia recebido a notificação, mas não daria a palavra ao deputado Francisco Pinto, naquele momento, tendo

209 Presidentes da Câmara dos Deputados

antes o cuidado de verificar, em seu gabinete, se chegara a comunicação sobre a aludida decisão do Supremo Tribunal Federal.

Acredito que o papel hesitante que teve o deputado Célio Borja nesse, como em ou- tros episódios, acabou desgastando-o seriamente perante o presidente Ernesto Geisel. Antes que Marcílio encerrasse a sessão, o deputado Ulysses Guimarães levantou ques- tão de ordem protestando, com veemência, contra a punição imposta ao parlamentar e censurando, ao mesmo tempo, a decisão da Mesa de negar-lhe a palavra. Marcílio encerrou a sessão, sem responder à questão de ordem suscitada por Ulysses.

Pois o deputado Francisco Pinto dirigiu-se à tribuna e falou, mesmo com os mi- crofones desligados, obrigando a bancada do governo a retirar-se do plenário. Os anais da Câmara não registraram esse discurso. Ao chegar a seu gabinete, Marcílio já encontrou a comunicação oficial do Supremo Tribunal Federal. Reuniu a Mesa e declarou a perda do mandato do deputado Francisco Pinto.

Nas três oportunidades em que ocupou a Presidência da Câmara, Marcílio deu demonstrações de independência, apesar do momento difícil que o país vivia. No caso da Emenda Constitucional no 1, outorgada pela Junta Militar, segundo a qual os parlamentares só poderiam viajar para o exterior, representando o Congresso Nacional, mediante prévia autorização do presidente da República, Marcílio recu- sou-se a cumprir esse mandamento constitucional, que julgava humilhante.

Outro fato refere-se à fixação dos subsídios dos parlamentares, o que acontece sem- pre ao término de uma legislatura para vigorar na seguinte. Marcílio foi convidado a tratar do assunto com o chefe da Casa Civil de Geisel, general Golbery do Couto e Silva. Quando chegou à Casa Civil, Golbery logo lhe exibiu minuta de decreto legisla- tivo em que eram fixados os subsídios dos parlamentares, nos termos de posição ado- tada pelo governo. Flávio repudiou essa interferência. Rasgou o decreto na frente de Golbery, alegando que o Congresso sabia o que fazer com diploma dessa natureza.

Em sua terceira gestão na Presidência da Câmara dos Deputados, no governo do general João Baptista de Figueiredo, em 1984, Flávio Marcílio assumiu a mesma postura de independência ao tomar conhecimento de que o general Nilton de Oli- veira e Cruz, Comandante Militar do Planalto e executor das Medidas de Emer- gência, prendera o deputado e ex-sargento do Exército Jacques D’Ornellas (PDT- RJ), durante a votação da emenda constitucional das Diretas Já, e a Esplanada dos Ministérios se transformara em praça de guerra. Ciente da ocorrência, acordei o deputado Flávio Marcílio para lhe transmitir a notícia desagradável.

210 O Congresso em Meio Século | 2a Edição

Flávio telefonou para o ministro do Exército, general Valter Pires, declarando que não admitia a detenção do deputado e exigiu sua libertação imediata. O ministro prometeu tomar as providências, mas, como foi informado de que o deputado con- tinuava preso, Marcílio telefonou novamente a Valter Pires, advertindo-o de que, se o deputado não fosse solto imediatamente, iria fazer companhia ao colega. Diante disso, o ministro determinou a libertação do parlamentar.

Durante a gestão de Flávio, o deputado Mário Juruna, já falecido, eleito pelo PDT do Rio de Janeiro, pronunciou discurso da tribuna considerado ofensivo às Forças Armadas e aos ministros de Estado, aos quais chamara de ladrões. Cada um dos ministros civis e militares do governo Figueiredo formulou representação ao pre- sidente da Câmara solicitando a cassação do mandato do deputado-cacique por ofensa ao decoro parlamentar.

Os ofícios dos ministros militares dirigidos a Flávio Marcílio eram padronizados, com exceção do que foi assinado pelo ministro da Aeronáutica, brigadeiro Délio Jar- dim de Matos, datado de 28/9/83, no qual afirmava que “o deputado Juruna, com essas declarações, acrescenta agora, ao seu aculturado exotismo, uma falta de decoro inaceitável para o nível de responsabilidade a que a insensatez de muitos o elevou”.

Já sopravam os ventos da abertura democrática, mas assim mesmo cumpriu-se processo tortuoso e difícil. Levou-se em conta o nível cultural de Juruna, que não dominava bem a língua portuguesa e ignorava o significado exato das palavras. O presidente Flávio Marcílio, que sabia de minhas boas relações com Juruna, aconse- lhou-me a escrever uma carta de retratação do cacique-deputado para encerrar o assunto. Procurei Juruna, em seu apartamento funcional, para convencê-lo a assinar o documento, sendo acompanhado pelo líder do PDT, deputado Bocaiúva Cunha.

Juruna conversava, então, com dois índios, no idioma indígena. Informei-o do con- teúdo da carta e de seu objetivo, que era acabar aquela pendência. Reconhecida- mente inteligente, ele só não sabia ler, nem escrever em português. Pediu-me para ler a carta de forma pausada, interrompendo a leitura, constantemente, para inda- gar o sentido de uma e outra palavra, apesar da redação singela que procurei fazer. Bocaiúva interveio, várias vezes, dizendo: “Juruna, assina, assina!” Mas não queria assinar. Cansado e impaciente, indaguei dele se ia assinar ou não. Respondeu-me, finalmente, que assinaria, porque confiava em mim.

211 Presidentes da Câmara dos Deputados

A carta era a seguinte:

Brasília, 3 de outubro de 1983.

Senhor Presidente, Deputado Flávio Marcílio,

Comunico a V.Exa. que o discurso por mim proferido, na sessão de 26 de setembro último, que está sendo objeto de exame por parte da Mesa da Câmara dos Deputados, trata da situação do indígena brasileiro, quando assiste a suas terras sendo objeto de invasão e de ocupação indevida. As palavras por mim usadas no discurso proferido de forma alguma visaram atingir a honorabilidade de quaisquer ministros de Estado e, muito menos, do Excelentíssimo Senhor Presidente da República. A expressão apontada como insultuosa caracterizava, apenas, a tomada de terras do índio pelo branco. Cordialmente, Deputado Mário Juruna.

Quando deixei o apartamento do deputado-cacique, um dos dois índios que me acompanhavam à saída revelou-me que, se eu não tivesse levado o deputado Bo- caiúva Cunha, a quem – segundo disse – Juruna detestava, ele teria assinado a carta sem discutir os seus termos. Julgou-se humilhado com a presença de Bocaiúva. De posse da retratação de Juruna, a Mesa Diretora reuniu-se, em 4 de outubro de 1983, para aplicar pena de censura escrita “em razão da linguagem usada, considerada imprópria, descortês e ofensiva às autoridades constituídas da República”.

Diziam que o deputado Flávio Marcílio tinha dois temperamentos: inglês e calabrês. Nascido em Picos, no Piauí, tinha ascendência italiana, mas era, ao mesmo tempo, pessoa requintada, que mandava fazer ternos no Vilarinho, no Rio de Janeiro, quando não em Londres (possuía mais de cem ternos e grande quantidade de sapatos). Usava gravatas francesas e italianas, chapéus ingleses e perfume Joy. Mas o lado calabrês o levava a perder a fleuma britânica, mostrando-se, às vezes, agressivo.

Professor de Direito, Marcílio tinha consciência da dimensão de grandeza e autori- dade que emanava da Presidência da Câmara dos Deputados. Quando se comemo- rava o sesquicentenário da criação do Poder Legislativo, no Brasil, Flávio Marcílio designou o deputado Djalma Marinho para ser o orador da sessão solene. Houve enorme pressão para substituir Djalma, alegando-se que ele faria um discurso pro- vocador aos militares. Foram momentos de grandes tensões.

Djalma tivera papel saliente, antes da decretação do AI-5, como presidente da Co- missão de Constituição e Justiça da Câmara. Era natural a preocupação com as reações que a sua escolha poderia suscitar no meio militar. Diante dos rumores, o próprio Djalma procurou Flávio para dizer que estava ouvindo aquelas conversas

212 O Congresso em Meio Século | 2a Edição

e achava melhor declarar-se impedido, por motivo de doença, permitindo a desig- nação de outro orador.

Flávio não aceitou a sugestão, mantendo a indicação. Com o discurso redigido, Djalma levou-o a Flávio para que o lesse com a liberdade de cortar qualquer impro- priedade. Flávio recusou-se a lê-lo, dizendo que desejava ouvi-lo na sessão solene.

Outro episódio revela o senso de autoridade de Marcílio. Fôramos em missão ofi- cial a Moscou, capital da então União Soviética. A delegação brasileira era chefiada pelo presidente da Câmara. O primeiro-ministro, Leonid Breznev, estava viajando. O vice-primeiro-ministro, que tinha origem chinesa, iria nos receber. Fomos leva- dos a uma das salas mais imponentes do Palácio do Kremlim.

O encarregado do protocolo impediu o ingresso do jornalista Lustosa da Costa e do correspondente do Jornal do Brasil em Moscou, Noênio Spínola. Eu mesmo verifi- quei que os russos impediram o ingresso de qualquer jornalista. Dei conhecimento do fato a Marcílio. Imediatamente, ele comunicou à autoridade russa responsável que, se fosse impedido o ingresso de jornalistas, ele se retiraria com toda a delega- ção. Os russos recuaram e os jornalistas puderam entrar no Palácio do Kremlim.

Como presidente da Câmara dos Deputados, Marcílio não aceitava que os partidos políticos tivessem sede nas dependências daquela Casa. Isso ocorria em particular com o PMDB, que ocupava larga dependência ao lado das salas de lideranças no edifício principal. Certo dia, Flávio levou o assunto ao conhecimento da Mesa e invocou o Código Eleitoral, que proibia o funcionamento de partidos políticos em prédios públicos. Conseguiu arrancar decisão da Mesa Diretora, de no 40/1988, de 16 de janeiro do mesmo ano, onde se lê no artigo 8o:

O prédio da Câmara dos Deputados e suas dependências não poderão ser utilizados para o funcionamento de partidos políticos ou representações dos mesmos, nem seus servidores neles trabalharem, como requisitados ou postos à disposição.

Em consequência, dirigiu ofício ao presidente do PMDB, deputado Ulysses Guima- rães, intimando seu partido a devolver à Câmara as dependências que ocupava. Ulys- ses reagiu, dizendo que Flávio queria despejá-lo. Contudo chegou-se a uma solução. A placa à entrada do gabinete da presidência do PMDB foi retirada, sendo a sala incorporada às demais dependências do partido. Tudo continuou como dantes.

Marcílio sofreu grande frustração, nas eleições de 1986, ao não se reeleger por falta de pouco mais de duzentos votos, numa acirrada disputa com o deputado Jorge

213 Presidentes da Câmara dos Deputados

Furtado Leite. O malogro impediu-o de realizar o seu maior sonho, que era parti- cipar da elaboração da Constituição de 1988. “Ficar fora do Congresso foi como ter morrido” – desabafara ele, na época.

Flávio Marcílio foi catedrático de Direito Internacional Público e Privado, da Fa- culdade de Direito da Universidade Federal do Ceará e, já em Brasília, exerceu a mesma cadeira na Universidade de Brasília.

Marcílio morreu em Brasília, em 26 de janeiro de 1992, aos 74 anos.

Célio Borja (1975-1976)

O deputado Célio Borja foi convidado a assumir a liderança do governo na Câmara pelo presidente Ernesto Geisel, em março de 1974. Após um ano de exercício do cargo, foi eleito presidente da Câmara dos Deputados, em fevereiro de 1975. Um ano depois, no início de 1976, Célio ameaçou renunciar à Presidência da Câmara, em protesto contra a cassação do deputado do MDB paulista Marcelo Gatto, acu- sado de pertencer ao PCB.

Célio desempenharia papel de relevo ao ocupar o cargo de relator do projeto oriun- do do Poder Executivo promovendo a fusão dos antigos Estados do Rio de Janeiro e da Guanabara. Coube-lhe a tarefa de elaborar o parecer aconselhando a aprovação da matéria pelo Congresso. Esperava ser nomeado o primeiro governador do novo estado. Frustrou-se, contudo, pela opção que fez o general Geisel por seu amigo de longa data, o almirante Floriano Faria Lima.

A gestão de Célio Borja na Presidência da Câmara haveria de ser conturbada face à dificuldade que tinha o regime autoritário de conviver com manifestações opo- sicionistas. Com base na Emenda no 1, outorgada pela Junta Militar, foram esta­ belecidas regras regimentais bastante restritivas. Basta citar o parágrafo único do artigo 30 da Constituição, segundo o qual não seria autorizada a publicação de pro- nunciamento ofensivo às instituições nacionais ou que “preconizasse a subversão da ordem pública ou social”.

Também não seria mais subvencionada a viagem de congressista ao exterior, salvo no desempenho de missão temporária, de caráter diplomático ou cultural, median- te prévia autorização do Poder Executivo. Toda matéria da Câmara dos Deputados, publicada no Diário do Congresso Nacional, Seção I, era da estrita responsabilidade do presidente da Casa, sendo assessorado pelo secretário-geral da Mesa.

214 O Congresso em Meio Século | 2a Edição

Os deputados que se revezaram na Presidência da Câmara, naquela fase delicada, mostraram-se tolerantes em relação a pronunciamentos que faziam críticas ao go- verno ou ao regime. Assim, a censura imposta pela Emenda Constitucional no 1 não era aplicada com o rigor que o sistema exigia. Havia certa benevolência. Procedia- se a uma revisão dos discursos; suprimiam-se expressões chulas ou que agredissem as Forças Armadas e as autoridades constituídas, em especial o presidente da Repú- blica, mas nunca tais pronunciamentos deixavam de ser publicados.

Quando o deputado Lysâneas Maciel fazia discursos, usava um refrão para comba- ter o regime autoritário, referindo-se ao presidente da República como o General de Plantão. Essa expressão era invariavelmente suprimida, mas o discurso publica- do. Quando se registrava transgressão verbal, não havendo como cortar uma pa- lavra, suprimia-se todo o período. Não obstante, os discursos eram preservados íntegros, pelo sistema de gravação da Câmara dos Deputados. Os parlamentares nunca reclamaram dos cortes.

Em certa oportunidade, o deputado João Cunha, do MDB paulista, disse da tribuna que “as comendas que os militares ostentavam em seus uniformes não passam de medalhas de primeira comunhão”, expressão suprimida no texto publicado. O fato, porém, foi noticiado pelos jornais, o que levou o governo do presidente Ernesto Gei- sel a pedir ao Supremo Tribunal Federal que processasse João Cunha por ofensa às Forças Armadas. O STF decidiu que, não constando da publicação oficial da Câmara a expressão insultuosa, deixava de existir a ofensa, determinando seu arquivamento. Era sintoma de que já sopravam os ventos da liberalização. João Cunha nada sofreu.

Por delegação dos presidentes da Câmara, cabia ao secretário-geral da Mesa o en- cargo de fazer a revisão dos discursos. Eu transferi tal incumbência à diretora da Taquigrafia, Ruth Hooper, funcionária zelosa e discreta, que fiscalizava atentamente os textos. Quando havia expressões insultuosas, pornográficas ou vulgares, ela tinha competência para suprimi-las. Se entendia que tal exame fugia à sua competência, trazia-me o discurso para que fizesse leitura mais cuidadosa. Em 90% dos casos, eu resolvia o problema. Submetia aos presidentes da Câmara só os mais delicados.

Lembro-me do primeiro episódio que levei ao conhecimento do presidente Célio Borja, dele indagando que orientação seguir. Célio leu atentamente e respondeu: “O português está bom, não há nenhuma palavra injuriosa ou antiparlamentar.” Ponderei que não se tratava da pureza gramatical do texto, mas de seu exame em termos políticos, lembrando que essa era uma responsabilidade inerente ao cargo de presidente da Câmara dos Deputados.

215 Presidentes da Câmara dos Deputados

Voltei a fazer a pergunta: o discurso deve ou não ser publicado? Neste momento, percebi o conflito interior que Célio Borja enfrentava, dividido entre sua sólida formação jurídica e os deveres políticos para com o sistema do qual fazia parte. Devolveu-me o discurso, dizendo: “Paulo, você é o parteiro. Proceda como sempre fez.” Não mais tomou conhecimento do que fazíamos, em seu nome, mesmo porque os próprios parlamentares nunca apresentaram qualquer queixa.

Célio Borja era culto, excelente orador, professor de Direito, poliglota, advogado brilhante e, quando deixou a política, marcou sua presença como ministro do Supremo Tribunal Federal. Fez longa carreira política, sendo secretário de Estado e, como deputado estadual, líder do governo Carlos Lacerda, na Assembleia Le- gislativa da antiga Guanabara.

Célio haveria de viver dramática experiência quando o presidente Ernesto Gei- sel telefonou para lhe dar prévio conhecimento da cassação do deputado Lysâneas Maciel, advertindo-o de que a Presidência da República estava lhe remetendo, na- quele momento, expediente a respeito.

Cumprindo dever de colega de bancada carioca, Célio comunicou a punição a Lysâ- neas Maciel, que lhe pediu autorização para fazer um discurso de despedida a seus companheiros. Célio instruiu-me a fim de tomar providências para reservar o tempo de que Lysâneas precisava. Ponderei que a sessão estava chegando ao fim, não haven- do oportunidade regimental para lhe dar a palavra. Observei que Lysâneas estava sob forte carga emocional e poderia agravar sua situação, que já era delicada. O gabinete estava cheio de jornalistas curiosos para conhecer o desfecho do caso.

Célio Borja disse à imprensa que a cassação de Lysâneas era ato de exclusiva com- petência do presidente da República, não lhe cabendo fazer qualquer tipo de co- mentário. Ao assumir a Presidência da sessão, Borja concedeu a palavra ao depu- tado Lysâneas Maciel. Esse, ao invés de iniciar seu discurso invocando o nome do presidente da Casa, a ele se dirigiu como “cidadão Célio Borja”, para caracterizar a humilhação imposta ao Congresso pelo ato arbitrário do presidente da República.

O líder do governo na Câmara, deputado Cantídio Sampaio, reagiu, lembrando que Lysâneas devia referir-se, como de praxe, ao ocupante da Presidência da sessão – Se- nhor Presidente. Lysâneas insistia em ignorar a fórmula regimental. Como repetis- se a mesma expressão, “Cidadão Célio Borja”, generalizou-se o tumulto no plenário, obrigando Célio Borja a encerrar a sessão. Esses fatos se desenrolaram durante três minutos, não sendo registrados nos anais da Câmara dos Deputados. Posteriormente,

216 O Congresso em Meio Século | 2a Edição

Célio Borja fez avaliação crítica do ato discricionário, que foi publicada pelos jornais, o que deixou o presidente Ernesto Geisel profundamente irritado.

Cumpre lembrar que o general Geisel chegara a convocar os três ministros milita- res para advertir que o deputado Célio Borja, líder de seu governo e candidato à reeleição no pleito de 1974, não poderia sofrer revés eleitoral no Rio de Janeiro. Por isso, pediu-lhes que fizessem mobilização de votos em favor de Célio junto às guar- nições sob seus comandos, no Rio de Janeiro. Geisel viria a confessar a ministros e auxiliares sua decepção com o comportamento de Célio Borja, que acabou não conseguindo se eleger para o Senado nas eleições de 1978.

Retornou ao seu escritório de advocacia, de onde seria convocado pelo seu amigo e correligionário da antiga UDN, presidente José Sarney, que o nomeou sucessiva- mente assessor especial da Presidência da República e ministro do Supremo Tri- bunal Federal, cargo no qual se aposentou, em 1993, para ser nomeado ministro da Justiça do governo Fernando Collor, nele permanecendo até a decretação pelo Congresso do impeachment do então presidente da República.

Marco Maciel (1977/1978)

Eleito para a Presidência da Câmara dos Deputados, em novembro de 1976, Marco Maciel tomou posse em 28 de fevereiro de 1977, indicado pelo general Ernesto Gei- sel. Em abril do mesmo ano, o presidente Geisel decretou o recesso do Congresso Nacional, tendo como pretexto a convicção de que seria rejeitada sua proposta de reforma do Poder Judiciário. Achava-se em curso, à época, disputa de poder envol- vendo o presidente da República e o ministro do Exército, general Sílvio Frota.

Durante a gestão de Maciel na Presidência da Câmara dos Deputados, o presidente Ernesto Geisel encaminhou ao Congresso Nacional a Proposta de Emenda Cons- titucional no 29, de reforma do Poder Judiciário, com base em trabalho elaborado pelos ministros do Supremo Tribunal Federal, fato esse já referido acima. Designa- do relator, o deputado e jurista Acióli Filho (Arena-PR) julgou conveniente alterá- la, em particular a estrutura do Conselho Nacional de Justiça, órgão destinado a fiscalizar o funcionamento do Poder Judiciário, que considerava demasiadamente corporativo, pois era integrado apenas pelos ministros do Supremo Tribunal Fe- deral. Propunha que fizessem parte do Conselho magistrados de outros Tribunais superiores e da Justiça dos estados.

A reforma era ampla. Tratava do congestionamento dos Tribunais superiores e pro- punha a federalização da Justiça, mudança nas leis processuais, a criação do Con- selho Nacional da Magistratura, o curso de formação e aperfeiçoamento de juízes e

217 Presidentes da Câmara dos Deputados

a instituição da avocatória, entre outras inovações relevantes. Embora pertencente aos quadros da Arena, Acióli alterou profundamente a proposta do Poder Executi- vo, com o apoio do MDB, provocando grave crise institucional.

Marco Maciel integrou o fechado grupo que participou das reuniões com Geisel, na Granja do Riacho Fundo, residência de verão do presidente da República, para defi- nir as mudanças que seriam promovidas por atos discricionários, juntamente com o senador Petrônio Portella, presidente do Senado, o ministro da Justiça, Armando Falcão, e o chefe da Casa Civil, general Golbery do Couto e Silva. O grupo logo foi apelidado de “constituintes do Riacho Fundo”.

Marco Maciel não se perturbou, procurando reduzir as dimensões do ato de força, considerando-o mera rearrumação institucional. Na verdade, travava-se uma disputa de liderança com a linha-dura, que gravitava em torno do ministro do Exército, ge- neral Sílvio Frota. Impunha-se a Geisel, por isso, uma demonstração de força, para mostrar à maioria silenciosa dos quartéis que detinha absoluto controle da situação.

O recesso prolongou-se por quatorze dias, sendo o Congresso reaberto em 15 de abril. O conjunto de medidas que compunham o Pacote de Abril destinava-se a assegurar a hegemonia da Arena no Congresso, ameaçada pela importante vitória do MDB nas eleições legislativas de 1974 e municipais de 1976. Entre as medidas previstas estava a criação da figura do senador “biônico”, ou seja, um terço do Sena- do seria preenchido mediante eleição indireta (pelas assembleias legislativas).

Não deixava de ter suas razões Marco Maciel, quando considerava o Pacote de Abril ato de rearrumação institucional. O que parecia um retrocesso no processo de “abertura lenta, gradual e segura”, era, na verdade, um avanço. Tinha objetivos estratégicos: em curto prazo, tirando da linha-dura o argumento de que o governo perdera o controle do Congresso. E a longo prazo, mantinha inalterado o compro- misso de promover a redemocratização do país.

Também estabelecia composição fixa para a Câmara dos Deputados, adotando o princípio de que cada eleitor é um voto. Portanto, a representação era flutuante em ra- zão do aumento ou da redução populacional de cada estado, conforme levantamento do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) efetuado à época da eleição.

A lealdade de Marco Maciel ao governo de Geisel, uma vez presidente da Câmara dos Deputados, valeu a indicação de seu nome, pelo presidente da República, para governador de Pernambuco, eleito indiretamente pela assembleia legislativa do es- tado, em setembro de 1978. Tomou posse em março do ano seguinte, após concluir o mandato de deputado federal.

218 O Congresso em Meio Século | 2a Edição

Nelson Marchezan (1981/1982)

O deputado Nelson Marchezan começou a carreira política pela base, elegendo- se deputado estadual nas eleições de 1962. Foi nomeado secretário do Trabalho e Ação Social na prefeitura de Porto Alegre, em 1971, e eleito deputado federal em 1974. Foi eleito secretário-geral da Arena, em setembro de 1975, e líder do governo do general João Baptista de Figueiredo, em 1979. Durante seu período na liderança, foi votada a Lei da Anistia. Apesar das inúmeras emendas, o projeto do Poder Exe- cutivo foi aprovado em sua forma original.

Marchezan foi indicado pelo presidente João Baptista de Figueiredo para presidente da Câmara dos Deputados, em janeiro de 1981, travando acirrada disputa com o de- putado Djalma Marinho, dissidente do PDS, que era apoiado pelas oposições. A elei- ção de Marchezan foi duramente criticada pelas oposições e por setores liberais, em face do uso ostensivo de recursos públicos e privados no aliciamento de eleitores.

O ministro da Previdência, Jair Soares, instalou-se na Câmara para assinar uma pletora de convênios com as prefeituras e outras instituições, por solicitação dos deputados, a fim de garantir votação maciça a Marchezan. O ex-governador e ex- prefeito Paulo Maluf entrou de forma também ostensiva no trabalho de aliciamento de eleitores, entre os deputados, sendo acusado de distribuir quantias em dinheiro.

Contudo, o deputado Nelson Marchezan nunca teve qualquer relação com Paulo Maluf, cuja presença em seu partido, o PPR, sucessor do PDS, chegou a repudiar. Excelente figura humana, Marchezan tinha origem social modesta, mas galgou po- sições importantes, de líder do governo do general João Baptista de Figueiredo a presidente da Câmara dos Deputados. Sua maior frustração foi não ter conquistado o governo do Rio Grande do Sul, apesar das várias tentativas que fez. Em 1982, concorreu com o ex-ministro Jair Soares, nas prévias realizadas pelo PDS gaúcho para escolha do candidato a governador, mas foi derrotado.

Simples agricultor no início da vida, Marchezan conquistou o cargo de funcioná- rio do Banco do Brasil, em concurso, tendo sido promovido a advogado daque- la instituição, anos mais tarde, após ter-se bacharelado em Direito, com grandes dificuldades. Marchezan se orgulhava da sua origem humilde e da sua condição inquestionável de self-made man.

O deputado gaúcho tinha inegáveis qualidades de homem público. Apoiou a candi- datura a presidente da República do ministro do Interior, Mário Davi Andreazza, na

219 Presidentes da Câmara dos Deputados

Convenção Nacional do PDS de agosto de 1984. Com a vitória de Maluf, Marchezan foi sondado por lideranças do PMDB para ocupar a vice-presidência na chapa de Tancredo Neves, candidato da Aliança Democrática, com o consentimento do po- lítico mineiro. Marchezan negou-se a aceitar o convite para guardar fidelidade ao presidente Figueiredo.

Na sessão do Colégio Eleitoral que elegeu Tancredo Neves, em 15 de janeiro de 1985, Marchezan votou em branco, arrostando com esse gesto a ira dos malufistas, que haviam assumido o controle do PDS. Ficou isolado dentro do partido, do qual se afastou, mais tarde, para ingressar no PSDB.

Ulysses Guimarães (1956/1957-1985/1986 e 1987/1988)

Ulysses Guimarães foi uma das últimas grandes lideranças forjadas naquela escola de estadistas que foi o PSD – o velho Partido Social Democrático, ao qual tam- bém pertenceram Tancredo Neves, Amaral Peixoto, Benedito Valadares, Martins Rodrigues, José Maria Alkmin, Paulo Pinheiro Chagas, Gustavo Capanema e tantos outros. Eleito, pela primeira vez, em 1950, participou ativamente da primeira legis- latura (1951/1954), permanecendo deputado até sua morte, em desastre de helicóp- tero, no litoral fluminense, em 12 de outubro de 1992.

Eleito presidente da Câmara dos Deputados, em março de 1956, com quarenta anos, derrotando Alcides Carneiro, como representante da Ala Moça do PSD, em pleno governo do presidente Juscelino Kubitschek, foi reeleito em 1957. Tentaria a reeleição no ano seguinte (fevereiro de 1958), sendo, porém, derrotado pelo depu- tado Paschoal Ranieri Mazzilli, representante do grupo ortodoxo do PSD, que se opunha radicalmente à chamada Ala Moça, a que Ulysses, então, pertencia.

Ulysses Guimarães foi, ainda, ministro da Indústria e do Comércio, no primeiro gabinete parlamentarista chefiado por Tancredo Neves. Com a deposição do pre- sidente João Goulart, em março/abril de 1964, Ulysses integrou-se aos políticos de vários partidos, mas principalmente da UDN e do PSD, que se reuniram no Hotel Serrador, no centro do Rio de Janeiro, a fim de sugerir uma solução para a crise institucional já consumada.

Nas diversas oportunidades em que exerceu a Presidência da Câmara dos Deputados, Ulysses revelou-se homem de estilo autoritário, competente, de grande espírito públi- co, reservado e profundamente partidário. Contudo, em suas decisões, tinha a preo- cupação de demonstrar impessoalidade e imparcialidade. Em outras palavras, nunca

220 O Congresso em Meio Século | 2a Edição

esquecia a majestade das funções que exercia – de integrante do PSD a presidente na- cional do MDB e do PMDB, presidente da Câmara dos Deputados e da Constituinte.

Apesar da inquestionável importância política que conquistou, no plano nacional, Ulysses sempre se elegia com grandes dificuldades e votações modestas. Nas eleições de 1986, em São Paulo, alcançou mais de 500 mil votos. E nas de 1990, 46.635 votos. Tanto assim que evitou disputar os postos de governador e senador. Certa vez, con- tou-me como era sempre envolvido em singulares circunstâncias políticas. Dizia que quando era o candidato natural a governador de São Paulo, na Convenção do PMDB, em 20 junho de 1982, não teve dificuldade em constatar que o seu oponente, senador Franco Montoro, havia conquistado a maioria dos votos dos convencionais. Ulysses desistiu de lançar sua candidatura para não sofrer revés humilhante.

Em 1984, era ele, sem dúvida, o candidato natural do PMDB a presidente da Repú- blica, em decorrência do papel de relevo que teve no combate ao regime autoritário. Mudanças no quadro político fizeram com que Tancredo Neves o ultrapassasse no partido, uma vez que todos tiveram a oportunidade de verificar que seu nome não transitava na alta hierarquia das Forças Armadas. Tanto que, doente Tancredo, em- bora parecesse legítima, constitucionalmente, a ascensão de Ulysses à Presidência da República, como interino, o poder viria a fugir-lhe novamente das mãos.

Ulysses Guimarães disputou na Convenção Nacional do PMDB a candidatura a presidente da República para as eleições de 3 de outubro de 1989, tendo obtido, no primeiro turno, 302 votos contra 272 de Valdir Pires, 251 de Íris Resende, e 72 de Álvaro Dias. No segundo turno, houve um acordo, com uma chapa única, Ulysses Guimarães para presidente e Valdir Pires para vice. Na eleição presidencial de 1989, entre sete candidatos a presidente da República, Ulysses ficou em último lugar, ten- do obtido apenas 4,43% dos votos dos eleitores.

Após quase cinquenta anos de ininterrupta militância política, Ulysses Guimarães viria a morrer tragicamente, como deputado federal reeleito para a 11a legislatura, em 12 de outubro de 1992, aos 76 anos, num acidente de helicóptero, junto com a mulher, dona Mora, o senador Severo Gomes e esposa, além do piloto, no litoral do Estado do Rio de Janeiro.

221 Fotos

Em sessão da Constituinte, o deputado Ulysses Guimarães ouve o deputado José Genoíno, do PT, à sua direita, observado por Paulo Affonso.

Paulo Affonso ouve o líder da Maioria na Constituinte, então senador Mário Covas, ao lado do presidente Ulysses Guimarães.

223 O deputado Ricardo Fiúza (PP-PE), do Centrão, de terno escuro, ao lado de Paulo Affonso e do presi- dente da Constituinte, Ulysses Guimarães, enquanto o então senador Fernando Henrique Cardoso faz sinal para o Plenário. Na mesa, ao lado de Ulysses, o deputado Arnaldo Faria de Sá (PTB-SP).

Eminência parda de Ulysses, Paulo Affonso observa diálogo travado pelo presidente da Constituinte com o então deputado e líder máximo do PT, Luiz Inácio Lula da Silva.

224 Ulysses, na sessão solene de promulgação da nova Constituição (5 de outubro de 1988), conversa com Paulo Affonso, enquanto o então presidente José Sarney caminha à sua esquerda, junto ao presidente do Supremo Tribunal Federal, ministro Rafael Mayer.

O Secretário-Geral da Constituinte e da Câmara dos Deputados, Paulo Affonso Martins de Oliveira, posa junto ao mural de Portinari, no Salão Verde.

225 Em sessão da Constituinte, o presidente Ulysses Guimarães e Paulo Affonso ouvem questão de ordem.

Ulysses Guimarães, presidente da Constituinte, recebe a assessoria de Paulo Affonso, à sua esquerda, tendo à direita o senador Teotônio Vilela (PSDB-AL).

226 O presidente da Constituinte, Ulysses Guimarães, é observado por Paulo Affonso, tendo à sua direita o então senador Mauro Benevides (PMDB-CE), 1o vice-presidente da Assembleia.

Ulysses Guimarães, presidente da Câmara dos Deputados (85/86), ouve a opinião de Paulo Affonso sobre algum problema da Constituinte, tendo à sua direita o senador Passos Porto, 2o vice-presidente do Senado.

227 Dados Biográficos

Nome Completo Paulo Affonso Martins de Oliveira

Nascimento 8 de outubro de 1927

Local Rio de Janeiro, RJ

Filiação José Rodrigo Pinto de Souza Oliveira e Maria Emília Martins de Oliveira

Formação universitária e Principais Cursos Bacharel em Ciências e Letras pelo Colégio Pedro II. Oficial da Reserva (2a Classe). Bacharel em Ciências Jurídicas e Sociais pela Faculdade Nacional de Direito da Uni- versidade do Brasil (1953). Curso de Treinamento de Assistente do Poder Legislativo, do Instituto de Assuntos Governamentais da Universidade da Califórnia, Davis. Cen- tro de Estudos Comparados para o Desenvolvimento da Universidade de Nova York, Albany. Ciclo de Estudos sobre Segurança Nacional e Desenvolvimento da ADESG, Brasília (1971). Curso intensivo para Administradores – Banco do Brasil (1972).

Principais Atividades Solicitador do antigo Distrito Federal. Estagiário da 98a Vara Criminal do antigo Distrito Federal. Funcionário da Câmara dos Deputados desde 1946. Chefe de Ga- binete do 4o Secretário da Câmara dos Deputados. Chefe de Gabinete do 3o Secretá- rio da Câmara dos Deputados. Secretário da extinta Comissão do Distrito Federal. Secretário-Geral da Mesa da Assembleia Nacional Constituinte. Secretário-Geral da Mesa da Câmara dos Deputados desde 1965. Membro da OAB (inscrição no 29-DF). Membro titular do Instituto Histórico e Geográfico do Distrito Federal. Ministro do Tribunal de Contas da União desde 1988. Vice-Presidente do TCU (1997). Secretário Executivo do Ministério da Justiça (1998).

228 Congressos e Conclaves Participante do II Congresso das Comunidades Portuguesas, Moçambique. Secre- tário da Delegação do Congresso Brasileiro à reunião do Parlamento Latino-Ame- ricano, Peru. Assessor da Delegação do Congresso Brasileiro à 58a Conferência da União Interparlamentar, Holanda. Participante do Programa-Piloto para apresentar o Legislativo como parte de um Sistema Político, a convite da Agência Internacional de Desenvolvimento (AID). Visita aos Centros de Divulgação e Computação do Par- lamento Alemão, a convite do Governo da República Federal da Alemanha. Partici- pante do Seminário sobre o Legislativo e Desenvolvimento, Universidade Cândido Mendes e International Political Science Association, Rio de Janeiro (1974). Membro da Comissão Especial instituída pelo Decreto no 85.022, de 11-8-80 (para promover a edição de compilações atualizadas da legislação em vigor e seu subsequente aprimo- ramento e consolidação). Principais Condecorações e Homenagens Ordem do Mérito Militar (Grau Oficial). Ordem do Mérito Naval (Grau Oficial). Ordem do Mérito Aeronáutico (Grau Comendador). Ordem do Rio Branco (Grau Grande Oficial). Ordem do Infante D. Henrique Naval (Grau Comendador), Portu- gal. Ordem do Congresso Nacional (Grau Comendador). Ordem Estadual do Mérito Renascença do Piauí (Grau Comendador). Ordem do Ipiranga (Grau Grande Ofi- cial), São Paulo. Ordem do Mérito Judiciário do Trabalho (Grau Comendador). Or- dem do Mérito de Brasília (Grau Comendador). Ordem do Mérito Judiciário Militar (Bons Serviços), promovido ao Quadro Especial em 1o de abril de 1996. Ordre de la Francophonie et du Dialogue des Cultures, França. Medalha do Mérito Santos Du- mont. Medalha de Pacificador. Medalha do Mérito Tamandaré. Medalha do Mérito Legislativo, Câmara dos Deputados. Medalha do Mérito Cultural, da Costa e Silva, Piauí. Amigo do Livro, Câmara Brasileira do Livro, São Paulo. Ordem “Bernardo O’Higgins” (Grau Comendador), Chile. Ordem do Mérito Legislativo do Estado de Minas Gerais (Mérito Especial). Ordem do Mérito Forças Armadas (Grau Comen- dador). Ordem dos Timbiras, Grande Oficial do Estado do Maranhão. Medalha-Prê- mio por Cinquenta Anos de Relevantes Serviços Prestados à Administração Pública. Cidadão do Distrito Federal, pela Câmara Legislativa do Distrito Federal. Aposentadoria 3 de outubro de 1997 Falecimento 21 de junho de 2005

229 Câmara dos Deputados Memória do Servidor Memória do Servidor

Tarcísio Holanda Este livro baseia-se no testemunho de Paulo Affonso Martins de Oliveira Nasceu a 28 de junho de 1936, em Paulo Affonso Martins de Oliveira sobre acontecimentos marcantes da Fortaleza. Autodidata, começou a história contemporânea do Brasil, da carreira jornalística na imprensa do Constituinte de 1946 à de 1988, para a Ceará, em 1952. Em 1962, transferiu- qual tanto contribuiu como assessor se para o Rio de Janeiro, trabalhando e eminência parda do presidente da na Última Hora e no Jornal do Brasil, Câmara dos Deputados e da Consti- onde ficou por quase 20 anos. Repór- Paulo de Oliveira Martins Affonso O Congresso em Meio Século tuinte, essa figura extraordinária que ter político no Rio, mudou-se para foi o deputado Ulysses Guimarães. Depoimento a Tarcísio Holanda | 2a Edição Brasília, em julho de 1975, aqui atuan- Paulo Affonso exerceu o serviço públi- do até hoje, como mediador de deba- co de 1946 a 1997, 42 anos na Câmara tes na TV Câmara. Muitas vezes, indagava-me se teria o direito de revelar fatos de que tomei conhe- dos Deputados, 23 dos quais no cargo cimento e dos quais participei em razão de ofício, de um lado, e, de outro, graças à Teve longa carreira na televisão: de Secretário-Geral. Ao longo desse honrosa confiança que em mim depositaram aqueles com os quais tive o privilé- acompanhou o Jornal de Vanguarda, tempo, conviveu com alguns dos mais gio de trabalhar. Não se trata, portanto, de livro de memórias, mas do testemunho de Fernando Barbosa Lima, a quase brilhantes políticos brasileiros do sécu- de alguém que viveu intensamente período político de grande relevância para a todas as estações do Rio, na época, in- lo passado, revelados pela Constituinte compreensão da história política contemporânea. clusive à TV Globo, da qual foi chefe de 1946, muitos deles gerados no ven- de reportagem (1965/1966). Também tre do Estado Novo, quando não nas faculdades, nas redações dos jornais participou do programa Abertura, de Paulo Affonso Martins de Oliveira e nas ruas do país, nas lutas travadas Barbosa Lima, transmitido nacional- em Meio Século O Congresso mente pela TV Tupi, em 1979. contra a ditadura de Getúlio Vargas. Da gávea privilegiada em que se si- tuava, assistiu ao nascimento de três Constituições (as de 46, 67 e 88), e a toda a turbulenta crônica que vai do suicídio de Vargas à renúncia de Jânio, à resistência e posse do presiden- te João Goulart e sua deposição em março/abril de 1964, ao ocaso da di- tadura, à redemocratização, incluin- | do a doença e morte de Tancredo e a 2 a

E posse de Sarney. E, aqui, ele também

dição traça o perfil de cada um dos 13 pre- sidentes com os quais teve oportuni- dade de conviver.

4 Brasília – 2009