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Embondeiro Publicação Sócio-Cultural do Arpac • Periodicidade: Semestral • Edição 01• Outubro de 2017 PERSPECTIVAS, ANÁLISES E DESCRIÇÕES PERSPECTIVAS,

ARPAC - Instituto de Investigação Sócio-Cultural Embondeiro Publicação Sócio-Cultural do ARPAC

Perspectivas, Análises e Descrições

ARPAC - Instituto de Investigação Sócio-Cultural Outubro de 2016 Ficha Técnica

Título Embondeiro: Publicação Sócio-Cultural do Arpac

Direcção João Baptista Fenhane

Coordenação Ruben Taibo

Equipe editorial Angélica Munhequete Célio Tiane Ruben Taibo Belchior Canivete Marílio Wane Arrisses Mudender Autores Silva A. Dunduro Marílio Wane Abel Mazuze Manuel Vene Killian Dzinduwa Ruben Taibo Angélica Munhequete Agnelo Navaia Osvaldo Zandamela Dulámito Aminagi

Revisão Linguística Eugénio Matusse

Maquetização

Cândido Nhaquila

Ramiro Machatine

Impressão:

Número de Registo: 07/GABINFO-DEPC/2017

Tiragem: 1000 Exemplares Índice

------Fontes Orais e sua Importância para a Pesquisa em Moçambique 6 Silva A. Dunduro ------3M: , Memória e 12 Marílio Wane ------XIMBUTSU MUZAYA: mitos e factos sobre o topónimo Chibuto 19 Abel Mazuze ------Nomadismo e seu Impacto na Província de Niassa: 27 caso dos distritos de Marrupa, Mecula, Nipepe e Ngauma Manuel Vene et. al. ------A Veneração aos Espíritos Makombe: 36 uma marca das comemorações da Revolta do Báruè Killian Dzinduwa ------Lobolo no Moçambique contemporâneo: 43 negociando a condição de nativo num campo familiar Ruben Taibo ------Reflexão sobre as Percepções Sócio-Antropológicas 49 do Albinismo em Moçambique Angélica Munhequete ------A Dimensão Sócio-Cultural do Embondeiro na Província de Tete 57 Agnelo Navaia et. al. ------O Papel dos Contos no Processo de Socialização 63 Osvaldo Zandamela ------A Pulverizar as Representações Sociais 72 Dulámito Aminagi ------ARPAC-Instituto de Investigação Sócio Cultural é resposta à necessidade de dinamizar o processo O de divulgação dos materiais colectados em cam- uma instituição tutelada pelo Ministério da Cultura po, imputando maior fluxo entre a colecta de da- e Turismo, vocacionada à pesquisa, preservação dos e a partilha de resultados. Por outro lado, o e divulgação do património cultural imaterial de Embondeiro constitui um mecanismo de incenti- Moçambique. As atribuições do ARPAC respon- vo à escrita científica por parte de investigadores dem, por via da pesquisa aplicada, aos desafios do ARPAC e de outras instituições. do governo moçambicano referentes ao fomento Este pressuposto está, por sua vez, associado à do capital social, económico, político e cultural convicção de que as pesquisas sobre o património de Moçambique. A pesquisa científica desenvol- cultural imaterial encontram no Embondeiro mais vida pelo ARPAC é privilegiada pela produção um espaço de debate e reflexão sobre as dinâmi- contínua de dados baseados em fontes primárias cas socioculturais da realidade moçambicana. que, geralmente, resultam em textos científicos, documentários, materiais audiovisuais e outros. As discussões levantadas na presente edição não A missão de pesquisa, preservação e divulgação clamam, necessariamente, por eventuais consen- do património cultural imaterial materializa-se, sos. O efeito almejado pelo Embondeiro deve os- em parte, pela existência das delegações provin- cilar entre inquietações, dúvidas, incertezas e, so- ciais do ARPAC. Estas representações alimentam bretudo, questionamentos que os artigos poderão a tradicional tendência em pesquisar fenómenos gerar. É desta forma que se perpetua o espírito de e actores dos locais mais recônditos de Moçam- indagação sempre necessário à qualquer institui- bique. Trata-se de uma capacidade institucional ção de investigação, incluindo o ARPAC. edificada desde a criação desta instituição, em A primeira edição é caracterizada por reflexões 1983, que tem resultado no estabelecimento de distintas mas que se intersectam na exploração parcerias e na sua eleição para implementação de de factores, eventos, situações e, sobretudo, fenó- várias pesquisas. A realização de inventários do menos relacionáveis às questões socioculturais, o património cultural imaterial, à luz da Conven- principal foco do ARPAC. A rota dos temas que ção de 2003 da Unesco, expressa, em parte, esse percurso de engajamento e comprometimento do o Embondeiro propõe, nesta tiragem, passa pelos ARPAC na produção científica em prol da pre- seguintes conteúdos: o papel dos rituais na cele- servação e salvaguarda do Património Cultural bração de eventos históricos; a abordagem sócio Moçambicano. -antropológica sobre o albinismo; a relação entre as memórias sobre a cidade de Maputo e a mar- O Embondeiro é uma marca criada na formação rabenta; o debate sobre o auto-dimensionamento do ARPAC, que sempre operou como o símbolo do etnógrafo em campos familiares; o papel da dessa produção. Este pressuposto tornou impres- oralidade na pesquisa doméstica; a relação entre cindível a escolha da mesma designação para a os contos e a socialização; a problemática da saú- presente revista, uma revista que deve ser enten- de pública e das representações sociais. dida no quadro de um projecto institucional de diuvulgação permanente da sua pesquisa. A re- vista Embondeiro ressurge, portanto, como uma João Baptista Fenhane Director Geral do ARPAC

Embondeiro 5 Fontes Orais e sua Importância para a Pesquisa em Moçambique

Silva A. Dunduro [email protected]

Resumo

O presente artigo problematiza o lugar que a oralidade ocupa na construção do co- nhecimento científico. Ao longo da história da humanidade, as sociedades recorrem às fontes orais para a transmissão de saberes e conhecimentos, contribuindo para a descrição de factos históricos, a preservação de culturas e o estabelecimento de pontes de continuidade identitária e civilizacional.

Palavras-Chave: Fontes Orais

Nas sociedades apelidadas sem escrita, a palavra do conhecimento sobre povos de Moçambique, tem uma importância transcendental, na medida não era prioridade do sistema colonial de educação em que ela transporta o sistema de valores morais e de investigação. Os parcos estudos e registos que e está associada à divindade. Em conformidade constituem as raras fontes primárias disponíveis, 1 com o estudioso africano Ampâté Ba , “o homem são essencialmente eurocentristas, ou patenteiam está ligado à palavra que profere. Está compro- outros vícios contrários ao espírito científico. metido por ela. Ele é a palavra, e a palavra en- cerra um testemunho daquilo que ele é. A própria Experiências relevantes de trabalho com fontes coesão da sociedade repousa no valor e no respei- orais foram desenvolvidas por instituições como o to da palavra”. ARPAC – Instituto de investigação Sociocultural, cuja origem está associada à primeira Campanha Não sendo excepção, em Moçambique, pre- Nacional de preservação Cultural (1979-1981), valecem factores de fracturas e bloqueios que consistiu na recolha de depoimentos sobre as- socioculturais, na sua maioria herdados da situação colonial, onde o sistema educacio- pectos socioculturais (etnográficos, etnológicos, nal foi marcadamente discriminatório e fez de etnomusicologia, históricos, sociológicos, etc.), com que aquando da independência nacional e objectos para os Museus. Os materiais então re- (1975), apenas 3% da população estivesse al- colhidos, constituem um importante acervo procu- fabetizada. Concomitantemente, a produção rado por docentes universitários, investigadores, do estudantes, entre outros. A recolha de informações de interesse sociocultu- 1 Amadou Ba (1900-1991) nasceu no actual Mali numa fa- ral através da metodologia de história oral, método mília aristocrática do povo fula. Escritor, etnólogo, filósofo, historiador, poeta e contador de histórias, foi da primeira ge- amplamente usado no campo das ciências sociais ração local que recebeu educação ocidental francesa. Pro- para a criação de acervos audiovisuais, textuais e curou o reconhecimento da oralidade como fonte legítima de conhecimento histórico. Para isso, recolheu, transcreveu iconográficos, assim como a sua disponibilização e explicou os tesouros da literatura oral do Oeste da África ao grande público, pode responder a preocupação para o restante do mundo. Participando do Conselho Exe- educacional no campo da pesquisa e documenta- cutivo da UNESCO desde 1962, chamou a atenção para a fragilidade desta cultura, proferindo então a famosa frase: ção sobre arte, meio ambiente, movimentos so- “Cada ancião que morre é uma biblioteca que se queima”, ciais, património cultural imaterial, etc. considerando ancião como “aquele que conhece”.

6 Embondeiro O presente artigo, demonstra que a tradição oral ses grupos. Isso faz com que os participantes que não se limita ao conto de fábulas ou lendas, ou actuam em cada campo específico procurem pre- mesmo a relatos mitológicos. Conclui que as fon- servar o que os identifica, podendo-se destacar a tes orais representam importante segmento de sua relação com o meio ambiente, preservação de transmissão do conhecimento, de preservação das recursos escassos, resolução de conflitos de posse identidades culturais particulares, fontes primárias terra, etc.Dessa forma, a fortificação das identida- indispensáveis para a produção do conhecimento. des particulares se manifesta pela diferenciação ou É essa “riqueza” que é analisada, rebuscando os semelhança com o outro. Esse sentimento de iden- argumentos para a sua maximização visando tor- tidade é tão forte que as pessoas procuram mostrar que acumularam valores culturais ao longo da sua ná-la o principal veículo para a recolha de saberes, vivências, visando a sua preservação como fontes vida, além daquilo que as identifica como parte de de história e de produção de conhecimentos cien- um todo: cultura nacional. Há um exemplo impor- tíficos novos. tante em Moçambique dessa resistência identitária que se situa na região norte de, concretamente em Por que apostar nas fontes orais em Moçambi- Nampula. que? Nessa região, as mulheres são consideradas as Moçambique, assim como muitos países em de- mais bonitas do país, por possuírem características senvolvimento, enfrenta o problema de pesquisa fenotípicas associadas às origens bantu – árabe. e registo de fontes orais, assim como a sequente Conscientes disso, elas se produzem de forma a ausência de fontes escritas. Este facto leva a que mostrar a sua meiguice, mestiçagem cultural para em muitas instituições de ensino ou de pesquisa que sejam vistas e tratadas como diferentes das do de diferentes níveis, sobretudo em ciências sociais, resto do país. Suas roupas, penteados, tratamento grande parte de referências seja ocidental. da pele, etc. são fantasiadas no sentido de marca- rem “fronteira” com outras mulheres de Moçambi- Pensamos que a aposta na recolha de depoimen- que. Estabelece - se entre elas, um forte sentido de tos de experiência de vida de diversos membros unicidade e cultivam hábitos que as tornam únicas da comunidade, personalidades ligadas a vida aca- em qualquer lugar do território moçambicano. démica, desportiva, cultural, política e económica poderá contribuir para dar resposta a essas preocu- Outro exemplo de diferença e semelhanças, tam- pações e concorrer para a consolidação de conhe- bém visível em Moçambique, é o das demonstra- cimentos escolares, particularmente nos currículos ções de manifestações culturais, por exemplo, os educativos locais onde é reservada uma margem Festivais Nacionais que têm lugar no intervalo de de tempo lectivo para o ensino e aprendizagem da dois anos no país, sob os auspícios do Ministério realidade circundante do aluno, ou seja, das comu- que superintende a área da cultura. O encontro de nidades locais. Pois, quando as fontes estiverem grupos culturais, especialmente de canto e dança processadas e preservadas, mais facilmente po- tradicionais nesses festivais, mostra claramente derão ser usadas para diversas finalidades. Desse as diferenças, as semelhanças e suas interacções modo, o esforço contribuirá na criação de acervos com a comunidade. Nota-se a exuberância de cada das identidades culturais particulares em Moçam- grupo no sentido de marcar sua particularidade de bique. Identidade cultural entendida como um con- acordo com a linhagem ou mesmo com o que pode junto de valores, tradições, códigos transmitidos considerar ancestral. de gerações mais velhas para as mais novas, como também as formas de governação e da história re- A relação entre as identidades particulares dos gru- cente de Moçambique. pos sociais em Moçambique é importante para o desenvolvimento e a afirmação do país como um Os diversos grupos etnolinguísticos, as identi- todo. Ou melhor, o reconhecimento dessas diver- dades de cada grupo formam, por semelhança, a sidades etnolinguísticas é, para Moçambique, ele- identidade do país e, ao mesmo tempo, as dife- mento crucial para a unidade nacional, paz e coe- renças fortalecem, ainda de forma particular, es- são nacional. Quer dizer, a cultura deve ser tomada

Embondeiro 7 como chave para cristalizar a identidade nacional, as fontes orais ocupam um lugar de destaque para na base dessa diversidade. a conclusão dos trabalhos junto das comunidades. Porque nos nossos países a tradição oral constitui o Infere-se que trabalhar em fontes orais pode con- veículo que permite a transmissão de saberes e prá- tribuir para a busca dos fundamentos da consoli- ticas dos grupos sociais de acordo com os mecanis- dação da nação. Onde o cruzamento e partilha das mos culturais locais, como afirma Amadou Hampâ- entidades culturais tenderão, para uma maior har- té Ba (1977), “quando falamos de tradição oral em monia social e cultural. A moçambicanidade que, relação à história africana, referimo-nos à tradição consubstancia a identidade cultural nacional, ainda oral e nenhuma tentativa de penetrar na história e no se encontra fortemente influenciada pela conjun- espírito dos povos africanos terá validade se não (a tura exógena. Para isso, a pesquisa, a sistematiza- menos que) se apoiar nessa herança de conhecimen- ção e disponibilidade de fontes orais já tratadas ou tos de toda espécie, pacientemente transmitidos de transcritas e editadas em livros ou outros tipos de boca a ouvido, de mestre ao discípulo”. suportes serão de extrema importância, quer para os professores, quer para os alunos, quer ainda para Infere-se então, que as tradições, incluindo, natural- a sociedade em geral. Os depoimentos são ainda mente, as manifestações da tradição oral dos grupos o principal veículo de pesquisa em Moçambique, sobre os quais se debruça e se estuda, deve-se ter pois a experiência mostra que, a nossa história sempre em conta a produção de fontes históricas recente só pode ser escrita se nos apoiarmos em que permitam contribuir para o estudo, a reinterpre- fontes orais porque somos ainda uma sociedade tação da história recente de Moçambique. Porém, de tradição oral. A transmissão inter-geracional de é importante salientar, que os materiais a produzir, conhecimento nas nossas sociedades ainda ocorre, provenientes de entrevistas e outras formas de reco- essencialmente, pela oralidade. A sistematização lha de informação (as entrevistas) constituirão tam- das práticas e saberes culturais que contribuem bém, e necessariamente, um mecanismo vital para para o controlo social das comunidades para a pos- o estudo e a valorização do papel da tradição oral. teridade, passa necessariamente pela pesquisa em Vários são os investigadores sociais que convergem fontes orais. Por isso, julgamos que as fontes orais neste sentido, como se refere o professor V. Sambo são importantíssimas para a construção do conhe- ao afirmar que a maioria das pessoas com conheci- cimento em Moçambique. da nossa história e cultura não sabem ler e escrever em língua portuguesa. Por isso, a única for- Uma das discussões a levar em conta quando se ma que essas pessoas, que detêm um bem colectivo trata de pesquisa social em África são a tradição que deve ser partilhado pelos restantes membros da oral e as fontes orais. De modo particular, as so- sociedade, só pode se efectivar através da oralidade. ciedades da África Meridional são predominante- Muitas dessas pessoas estão a morrer e levam consi- mente de tradição oral. Em Moçambique, assim go o que sabem. Por exemplo, não se pode escrever como em outros países da região, tais fontes cons- a história recentemente de Moçambique sem se re- tituem o principal instrumento de comunicação e correr às fontes orais. de pesquisa. A escrita é ainda um privilégio dos Para se entender como a tradição é incontornável grandes centros urbanos, o que não quer dizer que quando se estudam as sociedades humanas, anali- as cidades estejam isentas da tradição oral. Inves- semos as reflexões desenvolvidas a seu respeito, tigadores ligados à instituições de pesquisa, como, particularmente quanto à sua importância, no con- por exemplo, do Instituto de Investigação Socio- texto africano. Para algumas sociedades africanas, cultural (ARPAC), sustentam que, as fontes orais o tempo divide-se segundo dois registos: mítico e foram e continuam sendo a base de pesquisa de social. O tempo “mítico”, caracterizado pela re- muitos projectos de pesquisa, ou seja, através das presentação fantástica do passado. Esse passado fontes orais buscavam a informação para respon- é fundamentado pela inexistência de fronteiras ou der os objectivos dos seus projectos. Ainda que as delimitações do período em que os factos ocorre- fontes escritas sejam a base para o trabalho pre- ram. As épocas são datadas como referência aos liminar na elaboração dos projectos de pesquisa,

8 Embondeiro eventos que as caracterizaram. Não há, segundo A complexidade da tradição oral leva, quase sem- esse registo, o rigor cronológico. pre, ao questionamento da sua legitimidade como fonte histórica. Isso não acontece apenas com a Muitas vezes, o tempo é representado pelos gran- tradição oral em África, mas em todas as outras so- des acontecimentos locais ou regionais, como por ciedades onde predomina a oralidade. No entanto, exemplo, as calamidades naturais: uma seca pro- a principal característica das sociedades de tradi- longada, cheias que provocam desgraça nas comu- ção oral é o comprometimento dos seus membros nidades, as vagas de pragas que destruíram cultu- em relação aos ”factos da fala”. Nas sociedades da ras, ou ainda, a morte de um grande líder local. escrita, ao contrário, os compromissos são fecha- Essa forma de medir o espaço temporal não espe- dos de acordo com documentos oficiais autentica- cífico, permite aos membros das sociedades perce- dos pelos serviços dos notários e com carimbos ou berem o seu percurso, suas vivências históricas e selos fiscais. Porém, nas sociedades de tradição oral, a palavra substitui todo esse complexo. as mudanças sociais ocorridas. A palavra é valiosa e não contém apenas o valor Portanto, o tempo mítico está frequentemente rela- moral, como também é associada à divindade, às cionado com factores externos ao indivíduo, como forças que actuam fora da vontade do indivíduo. os fenómenos cósmicos, climáticos e sociais, so- Nessas sociedades, “o homem está ligado à pala- bretudo quando são recorrentes. De acordo com vra que profere. Está comprometido por ela. Ele certos autores, “entre os adeptos das religiões afri- é a palavra, e a palavra encerra um testemunho canas tradicionais, geralmente conta-se a idade daquilo que ele é. A própria coesão da sociedade pelo número das estações chuvosas. Para identifi- repousa no valor e no respeito da palavra” (Ham- car que um homem é idoso, fala-se do número das pâté Ba,1977). Neste sentido, a tradição oral não se estações das chuvas que ele viveu ou do número limita a histórias e lendas ou mesmo a relatos mi- de sementeiras ou colheitas em que tomou parte. tológicos ou históricos; os contadores de história Na verdade, estas experiências estão gradualmente estão longe de ser seus únicos guardiões e trans- a desaparecer devido a não valorização das fontes missores qualificados. Para este autor, a tradição orais um pouco por toda a África e, de um modo oral é a grande escola da vida, dela recupera e rela- particular em Moçambique. ciona todos os aspectos. Já o tempo social é representado pela história vi- Fica cada vez mais claro que as tradições orais vida pelo grupo ao longo do tempo. A história é são obras literárias que deveriam ser estudadas, transmitida por representantes ou personagens que do modo como acontecem no meio social. Para simbolizam o poder, como os patriarcas, chefes o caso de Moçambique, sabemos que o canto e o de clã ou o rei. Muitas vezes esse poder está re- conto encontram-se embutidos na literatura oral. lacionado a representações simbólicas cujo valor Por isso, o registo de depoimentos sobre práticas e é veiculado ao longo de gerações. Acrescentam saberes culturais inclui, ao mesmo tempo, expres- ainda que o próprio carácter social da concepção sões poéticas que devem ser preservadas, pelo seu africana da história dá-lhe uma dimensão históri- inestimável valor, pois, a história dessas socieda- ca incontestável, porque a história é vida crescente des é a história dos seus cantos e contos. Em geral, do grupo. O tempo não é a duração capaz de dar a sua interpretação exige profundo conhecimento ritmo a um destino individual; é o ritmo da co- da sua origem. As tradições orais africanas abran- lectividade. Não se trata de um rio que corre num gem o vasto universo da literatura oral (provér- sentido único a partir de uma fonte conhecida até bios, orações, mitologias, lendas, expressões idio- uma foz conhecida. Por estas razões a história não máticas, etc.), aspectos que devem ser parte dos é história, mas memória, e quando vier o tempo depoimentos a serem recolhidos e analisados pelo da história, este será de outro modo que não o das investigador sociocultural, ou seja, o que Maurice 2 sociedades ocidentais. Halbwach (2008) , designou de memória histórica. 2 Maurice Halbwachs (Reims, 11 de Março de 1877 — Bu- chenwald, 16 de Maio de 1945) foi um sociólogo francês da escola durkheimiana. Escreveu uma tese sobre o nível de Embondeiro 9 Estas formas de oralidade prestam-se às socieda- formas de expressão e, ao mesmo tempo, consti- des globais, havendo, no entanto, as tradições par- tuem a sua percepção do mundo. Para o caso de ticulares que são as que pertencem a cada grupo Moçambique, a história da Luta de libertação Na- e a sua preservação é feita ao nível mais restrito, cional desencadeada pela FRELIMO4 contra o co- incluindo a família. Os grupos e instituições reco- lonialismo português, constitui memória colectiva nhecem o valor singular dessas tradições. não só dos actores que participaram directamente da luta, como também é legado histórico de todo Nesta linha de pensamento, a reflexão que propo- o povo. Neste sentido, todo o esforço da escrita de mos aos pesquisadores sociais é o estudo e busca memórias individuais de cada um dos combaten- da engenharia de como levar em conta a territo- tes, sempre desembocará em memória colectiva da rialidade social dos aspectos mais relevantes dos FRELIMO. grupos a ser pesquisados, dado que, cada tradição tem a sua própria superfície social. Algumas mani- Estes aspectos são fundamentais para a pesquisa festações da tradição oral representam memórias social. De acordo com a apresentação que vimos colectivas. Cada grupo social possui valores que fazendo, torna-se evidente que os instrumentos de investigação de culturas específicas das comuni- o representam, os quais Jan Vansina3 designou dades, as experiências colectivas de organizações “estrutura mental”. Trata-se das representações de sociais ou de partidos políticos, etc., se enquadram colectivas de uma civilização, que influenciam as nas técnicas e estratégias inerentes à metodologia vida dos operários, e sua obra mais célebre é o estudo do con- da história oral. Contudo, a sua aplicação, num ceito de memória colectiva. Foi estudante da École Normale país como Moçambique, exige que se conheçam, Supérieure, em Paris, estudou filosofia com Henri Bergson, o de facto, as diferentes superfícies sociais que cons- qual o influenciou enormemente. Lecionou em vários liceus tituem o mosaico sociocultural da Nação Moçam- antes de viajar à Alemanha em 1904, onde estudou na Uni- bicana. Referindo, ainda, Vansina, ele nos alerta versidade de Gottingen. Retornou à França em 1905, onde encontrou Émile Durkheim e se interessou por sociologia. sobre o perigo de mergulhar num terreno tradicio- Durante a Primeira Guerra Mundial Halbwachs trabalhou no nal apenas com ferramentas modernas. Realmente, Ministério da Guerra. Logo após o fim da guerra ele tornou- precisamos de lançar mão nelas, mas devemos es- se professor de sociologia e pedagogia na Universidade de tar atentos para especificidades históricas e cultu- Strasbourg. Foi professor visitante por um ano na Univer- rais dos grupos com os quais vamos trabalhar. sidade de Chicago. Em 1935 foi chamado para a Sorbon- ne, onde ensinou sociologia, trabalhou com Marcel Mauss Neste sentido, torna-se premente que as institui- e foi editor dos Annales de Sociologie, o jornal que sucedeu ções de pesquisa envidem esforços no intuito de o Année Sociologique. Em 1944 ele recebeu uma das maio- res honrarias da França, uma cátedra de psicologia social no criar capacidades humanas, técnicas e materiais Collège de . Desde muito tempo socialista, Halbwa- para uma abordagem global, aprofundando e cru- chs foi detido pela Gestapo após a ocupação nazista de Paris zando conhecimentos locais e universais, de modo e deportado para Buchenwald, onde foi executado em 1945. a recolher informações que mereçam ser preserva- 3 Jan Vansina nasceu em Setembro de 1929, na Bélgica. His- das para a posteridade. toriador e especialista em antropologia africana, um dos mais conhecidos trabalhos seus é sobre África Central e Oriental e Considerações finais da utilização de fontes orais. É considerado um dos fundado- res do campo da história Africana na década de 1950 e 1960, O método de história oral é uma das metodologias um tempo não muito tempo atrás, quando ainda havia uma opinião generalizada de que as culturas sem escrita não ti- ou procedimentos técnicos amplamente usado para nham história, ou que suas histórias eram desconhecidas. Até a pesquisa em ciências sociais. Em várias institui- esse ponto, “Africano” historiografia voltados inteiramente ções, as fontes orais contribuem para a formação para a história dos colonizadores europeus em África, e não sobre a história dos africanos. 4 FRELIMO, A Frente de Libertação de Moçambique, é um Tradição Oral como História, um trabalho metodológico pu- partido político oficialmente fundado em 25 de Junho de 1962 blicado em 1985, é o livro de Vansina que é mais amplamen- (como movimento nacionalista), com o objectivo de lutar pela te conhecido e utilizado além da história Africana. “É um independência de Moçambique do domínio colonial português. manual sobre como lidar com um certo tipo de história oral O primeiro presidente do partido foi o Dr. Eduardo Chivambo em todo o mundo, não apenas em África. Mondlane, um antropólogo que era funcionário da ONU.

10 Embondeiro ou a constituição de acervo audiovisual, textual e cioculturais e históricos podem facilmente ser re- iconográfico e um dos meios eficazes para a pre- gistados pelas fontes orais, possibilitando assim, servação, sistematização e divulgação do conhe- a sistematização, preservação disseminação de cimento, sobretudo com o avanço das tecnologias conhecimentos com segurança, tendo em conta as de ponta. novas tecnologias.

As entrevistas realizadas através do método a que nos referimos acima, permitem interagir com Bibliografia pessoas cujas experiências de vida são relevantes para as comunidades, instituições sociais ou mes- ALBERTI, Verena (2005). Manual de História mo governamentais. Desde a visão da criação do oral. 3 Ed. Rio de Janeiro: Ed. FGV. mundo (cosmogonia), passando pelas experiências ______(2004). Ouvir Contar: Textos de vida, pode estruturar o conhecimento e através em História Oral. 1ª Ed. Rio de Janeiro: Ed. FGV. dele, manter a ordem social, estrutura social, práti- ______(1998). A vocação totalizan- cas e saberes culturais típicos, lutas de sobrevivên- te da história oral e o exemplo da formação do cia e de sacrifícios, expectativas, etc. acervo de entrevistas do CPDOC. X Congresso Internacional de História Oral. Rio de Janeiro. Nas comunidades rurais, por exemplo, líderes co- BOSI, Ecléa. Memória e sociedade: lembranças de munitários, religiosas, tradicionais (régulos e seus velhos. 3ª ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2004 súbditos), anciãos, pessoas influentes e idosos, são HALBWACH, Maurice (2008). A memória co- guardiões de histórias que passam de geração em lectiva. São Paulo: Centauro. geração de boca a boca. Estes conhecimentos, se- culares ou milenares sobreviveram até os nossos KI-ZERBO, Joseph (1979). História da África Negra. Lisboa: Europa-América. Vol.1. dias através da tradição oral. ______& HAMA, Boubou. “Qual Para o caso do nosso país, os depoimentos de o lugar da história na sociedade e na cultura da eventos importantes da nossa história tais como África?” In: História Geral da África. São Paulo: Ática, 1981, vol. 1 a história da Luta de Libertação Nacional, os ri- tos de iniciação, casamentos, lutas de resistências MARCONI, Maria Luísa de Castro. “Cultura es- colar e cidadania: circulação de ideias, discursos a ocupação estrangeira, a escravatura, a guerra de e modelos educativos, manuais e iconografia”. desestabilização que destruiu o país, entre outros Junho de 2008. Faculdade de Psicologia e Ciên- saberes, são rebuscados pela oralidade e, em for- cias da Educação - Universidade do Porto. ma de memorias colectivas. A complexidade e a MATUSSE, Renato. “Oral traditions in Mozam- heterogeneidade do universo de pessoas a entre- bique: a general overview. In: Ngwabi Bhebe vistar, leva a que as fontes orais sejam usadas para (ed.). Oral tradition in southern Africa. Windhoek: Gamsberg, 2002 escrever sobre elites políticas, soldados, pessoas ligadas a história de instituições económicas, so- THOMPSON,Paul (2002). Vozes do Passado: História Oral. Rio de Janeiro: Ed. PAZ E TERRA ciais, culturais, desportivas, movimentos sindi- S/A. cais, movimentos sociais, organizações juvenis e Entrevistas de mulheres, académicos, investigadores, profes- Domingos do Rosário Artur. Maputo, 15/2/ 2009 sores, artistas, associações, etc. É um processo Vitorino Sambo. Maputo, 19/2/ 2009 que permite também que, mesmo os que se sen- Elton Beirão. Beira, 23/1/ 2009 tem excluídos ou sem voz, como, por exemplo, as Manuel Rodrigues João. Beira, 30/1/ 2009 minorias étnicas em muitos países, possam contar Joaquim João Juma. Beira, 27/2/ 2009 suas histórias ou deixarem registadas as suas expe- Luís Manuel Meno. Beira, 19/1/ 2009. riências de vida. Na verdade, é esta complexidade e heterogeneidade que caracteriza as sociedades, especialmente as modernas, onde os mosaicos so-

Embondeiro 11 3M: Marrabenta, Memória e Maputo

Marílio Wane [email protected]

Resumo

Este ensaio pretende ser uma reflexão sobre a preservação da memória da Cidade de Maputo e da cultura dos seus habitantes, a partir de questões suscitadas ao longo de uma pesquisa sobre Marrabenta, levada a cabo pelo ARPAC – Instituto de Investigação Sócio-Cultural. A imersão nas origens e na evolução deste género da música popular moçambicana indicou a existência de um conjunto de dados históricos que requerem maior aprofundamento por parte dos pesquisadores sociais, assim como um maior conhecimento básico por parte do público em geral. Se por um lado, estes dados revelam as nuances e a grande complexidade do contexto social em que a Marrabenta emerge - a própria cidade de Lourenço Marques, capital da então colónia de Moçambique - por outro, confirmam a sua força enquanto símbolo da identidade nacional, sendo produto e produtora desta mesma complexidade.

Palavras-chave: Memórias, Marrabenta e Cidade de Maputo

“Moçambique é o país da Marrabenta” é daquelas sobre o tema. O pressuposto básico deste tipo de expressões que, pela constante repetição no quoti- abordagem científica reside na ideia de que o es- diano, vão se cristalizando no senso comum e as- tudo da música pode nos elucidar a respeito de di- sim, tornam-se verdades quase que incontestáveis. versos aspectos da História e da cultura de uma O dado concreto é que apesar de não ser exacta- determinada sociedade. Sob esta perspectiva, mais mente praticada e talvez até mesmo apreciada em interessante do que identificar um ou mais indiví- todo o território nacional, este ritmo musical ad- duos que tenham, porventura, “inventado” este gé- quiriu a capacidade de se afirmar como uma refe- nero musical, constatou-se que o estudo do seu de- rência da cultura moçambicana como um todo. E senvolvimento como expressão artística contribui tal como ocorre com a música popular em outros para a compreensão de um tema mais vasto que é a quadrantes do mundo, a disputa pela sua “paterni- própria construção da identidade nacional. dade” tornou-se um dos principais focos do debate sobre a cultura nacional. De tal modo que, desde Por esta via, o presente ensaio pretende explorar meados da década de 2000, tem-se assistido nos um aspecto fundamental ao processo de constru- meios de comunicação social uma recorrente dis- ção de identidades: a memória colectiva. Ao lon- cussão que opõe o veterano músico Dilon Djindji go do trabalho de pesquisa, uma série de dados e o falecido Fany Mpfumo como os “pais”, “reis” sobre a História moçambicana recente emergiu ou “donos” da Marrabenta. como que a reclamar um maior aprofundamento por parte dos pesquisadores sociais. Isto porque o Com o objectivo de trazer elementos que possam exercício de trilhar as raízes e o desenvolvimento contribuir para o debate, o ARPAC – Instituto de da Marrabenta leva, necessariamente, à caracteri- Investigação Sócio-Cultural iniciou, desde Agosto zação do seu ambiente social originário. Sob esta óptica, como alternativa à questão simplista de de 2011, uma pesquisa etnomusicológica apoiada procurar saber “quem é o ‘pai da Marrabenta’?”, em trabalho de campo, entrevistas e análise musi- apresentou-se como mais elucidativa a pergunta: cal, para além da consulta à literatura existente “o que faz dela um símbolo nacional?”.

12 Embondeiro Entretanto, o exercício de identificar os marcos his- niço”, como era chamado o entorno suburbano, tóricos importantes neste processo levou à constata- tornou-se o centro de confluência da grande- di ção de uma falta de cuidado com alguns elementos versidade etnolinguística que caracterizava este da memória colectiva subjacentes à força simbóli- proletariado. Assim, o seu rico património cultural ca da Marrabenta. Mais precisamente, trata-se de no que diz respeito às danças e ao seu cancioneiro alguns aspectos da própria História da Cidade de foi, progressivamente, assimilando o repertório da Maputo, da antiga Lourenço Marques, cuja preser- música urbana mundial a que se podia ter acesso vação vem sendo notoriamente negligenciada, quer devido ao ambiente cosmopolita da cidade. em termos materiais, quer em termos imateriais. Na sua essência, a Marrabenta apresenta carac- “Debaixo da árvore para o palco” terísticas rítmicas e melódicas que remetem a expressões como xingombela, ngalanga, zuku- A Marrabenta é o género de música ligeira de Mo- ta, nfena, madjika, entre outras, que fazem parte çambique que, por razões históricas, acabou por se deste vasto universo de danças de entretenimento tornar também um símbolo da identidade do próprio praticadas em todo o sul do país. Assim, enquanto país. Em linhas gerais, trata-se de um ritmo musical género de música ligeira, ela bebeu destes ritmos, dançante criado a partir da adaptação das raízes so- imprimindo-lhe aspectos harmónicos e de arranjos noras nativas - sobretudo das populações oriundas presentes naquilo que se ouvia em termos da mú- da zona Sul do território - para os padrões estéticos sica popular global na altura, como swing e o twist da música pop contemporânea. Ao longo do século norte-americanos, a rumba cubana, o brasi- XX, estas gentes oriundas do meio rural das actuais leiro, o sul-africano, ente outros. províncias de Maputo, Gaza e Inhambane, passaram por um conjunto de transformações sociais resul- O professor, radialista e investigador Samuel tantes da implantação efectiva do sistema colonial Dabula Nkumbula, integrado ao célebre Centro português, que teve como principal marco adminis- Associativo dos Negros da Colónia de Moçambi- trativo a elevação da cidade de Lourenço Marques que, teve um papel importante neste movimento à categoria de capital do território (anteriormente de passar as danças de “debaixo da árvore para localizada na Ilha de Moçambique), em 1906. o palco”. Pois não se tratava apenas de adaptar a musicalidade, mas também de inserir diferen- Desta forma, já nas primeiras décadas do século tes aspectos cénicos. Dabula realizou uma grande XX, observou-se o desenvolvimento de um centro pesquisa sobre o “folclore tsonga”, uma espécie urbano altamente cosmopolita devido à dinâmica de inventário no qual constavam informações nas sócio-económica ditada pela conjuntura de então. quais os grupos artísticos do Centro - também co- A construção do porto e dos caminhos e ferro tive- nhecido como Ntsindya – deviam se inspirar nos ram tamanho impacto demográfico que, rapidamen- seus processos de composição. Figura eminente na te, constitui-se na cidade, um interessante universo sociedade laurentina da época, tendo sido locutor multicultural marcado pela presença massiva da no antigo Rádio Clube de Moçambique, Dabula população negra nativa, dos colonos brancos e seus influenciou toda uma geração de jovens, estimu- descendentes, dos comerciantes de origem árabe e lando-os a buscar referências nas suas próprias indiana, para além de estrangeiros das origens mais culturas tradicionais como forma de se afirmar e se diversas que usufruíam dos benefícios da urbe em inserir na sociedade... dentro de um contexto colo- crescimento. “Interessante”, porém, discriminató- nial repressor, portanto. rio, violento e desigual. Lembremo-nos que se vivia o auge da implantação do colonialismo português, É dai que emerge o célebre Conjunto Djambo, o um regime político opressivo, cujo objectivo fun- Grupo Folclórico do Ntsindya, que logo se coloca damental era gerar riqueza a partir da exploração do como um dos precursores da Marrabenta. Direc- trabalho da população nativa colonizada. tamente inspirados por Dabula, passam a integrar É justamente no seio desta que, a partir das déca- estas referências culturais aos seus sofisticados das de 1940 e 1950, a Marrabenta populariza-se arranjos musicais. A formação do Djambo incluía como uma das suas principais formas de entrete- bateria, piano, guitarra, baixo, uma secção de so- nimento, nas zonas suburbanas. A “cidade de ca- pros, para alem da voz principal e de um coro for-

Embondeiro 13 mado pelo conjunto de dançarinos. Era um pequeno apoiando-se inclusive, nos debates científicos an- conjunto de que, com muita competência, sou- tropológicos em voga na altura. be dar uma roupagem “moderna” para o repertório folclórico nativo. São de autoria deste grupo a pri- Craveirinha actuou também como promotor da meira gravação de “Elisa Gomara Saia”, e outras e cultura nativa através das suas actividades como canções como “Bambatela Sábado” e “Ximwanha- director da Associação Africana. Neste espaço de na”, verdadeiros clássicos da musica moçambicana. produção cultural e artística, a sua acção pautou- se pela defesa da Marrabenta como uma criação À boa maneira moçambicana, que consiste em dar artística genuinamente moçambicana e que, por a primazia ao “mais velho”, a pesquisa iniciou-se isso mesmo, deveria ser valorizada ao máximo por por entrevistar Moisés Ribeiro Manjate, guitarris- todos os sectores da sociedade. Através de acções ta, fundador e líder do Conjunto Djambo. Ainda de promoção e divulgação de espectáculos nesta em actividade, no alto dos seus 94 anos, Manja- casa, o “escritor-mor” da Nação, lutava contra a te demonstra ser dono de uma memória e lucidez estigmatização dos valores culturais nativos que espantosas, capazes de reconstruir a sua Lourenço era, muitas vezes, assumida pelos próprios. Marques natal, desde as primeiras décadas do sé- culo XX. Naquilo que se refere à Marrabenta, o Instituições como o CAN e a AA eram organiza- músico afasta-se do debate sobre a “paternidade” ções voltadas para a promoção social de determi- e reforça a tese da sua criação popular espontânea, nados grupos da sociedade que se aglutinavam em destacando o papel dos antigos carnavais existen- torno de afinidades culturais e de interesses em co- tes na cidade. Fala, por exemplo, do chamado Mu- mum. Assim, para além destas citadas havia, por tumbela, em que as pessoas desfilavam na actual exemplo, a Associação dos Naturais de Moçambi- Avenida de Angola, passando pela zona do aero- que, que congregava os portugueses nascidos na porto e chegando onde actualmente se localiza a 6a colónia (discriminados sob a alcunha de “brancos Esquadra da PRM. de segunda”), e a Associação de Mútuo Auxílio dos Operários Indo-Portugueses, que congregava Foi neste Mutumbela que, sob a orientação de Sa- a parcela de origem indiana (goeses, em sua maio- muel Dabula, Manjate foi se familiarizando com uma ria) da população, entre outras. Deve-se notar que série de ritmos e melodias que, mais tarde, adaptou apesar de se constituir também como mecanismo ao repertório do Conjunto Djambo, durante o proces- de controle da população por parte do regime por- so de composição. Do bater das palmas típicos das tuguês, a existência de organizações desta natureza danças rurais, de “debaixo da árvore”, forjaram-se num contexto da discriminação racial dinamizou o arranjos para bateria e contrabaixo a que vieram so- campo das artes e da cultura na cidade, permitin- mar-se arranjos harmónicos e melódicos, a cargo do do a expressão de uma multiculturalidade pulsante piano, das guitarras, dos sopros e das vozes. como marca característica de Lourenço Marques. Papel semelhante ao desempenhado por Samuel Este movimento gerado pela tendência de aglutina- Dabula foi levado a cabo pelo consagrado escritor José Craveirinha, no sentido de valorizar aquilo a ção de sectores afins da sociedade ficou conhecido que, já na década de 1950 e 60, chamava de “mo- como “associativismo” e deita as suas raízes nos çambicanidade”, nas artes e na cultura em geral. fins do século XIX e início do século XX. Nesta Craveirinha deixou um legado de textos publica- fase primária, a tendência para a organização polí- dos na imprensa da época, em que chamava a aten- tica de alguns sectores da sociedade colonial ficou ção para uma certa “descolonização do pensamen- conhecida como “nativismo”, em referência ao to” nas concepções vigentes sobre a cultura que facto de ser movida por pessoas nascidas na então eram, por sua vez, marcadas pelo contexto colonial colónia (“nativos”). E naturalmente, estes grupos de então. Nos seus poemas e artigos, travou fortes tinham interesses bastante diversos daqueles dos combates ideológicos com sectores da socieda- colonos portugueses que, naquele momento, apor- de que referendavam o postulado da inferiorida- tavam em massa, devido à necessidade de povoar de intelectual e/ou cultural do negro e do mulato, e administrar a nova capital.

14 Embondeiro Foi neste contexto que, em 1908, surgiu o Grémio tante na construção deste ideal. Pelos elementos Africano de Lourenço Marques, a instituição “na- estéticos que a caracterizam enquanto expressão tivista” mais actuante no cenário político de então, artística, a Marrabenta apresenta-se como forma e cuja causa era a promoção social dos negros e mu- conteúdo deste devir. latos que viviam em situação de discriminação a Há ainda outros aspectos que reforçam a sua dimen- todos os níveis. Como forma de intervenção, a sua são identitária, a saber: o facto de ser uma expressão grande marca registada foi a publicação do jornal cultural de massas, isto é, produzido para atingir um “O Africano” (dez anos depois, em 1918, passou a público amplo, para além das fronteiras étnicas e até chamar-se “O Brado Africano”, sendo editado até mesmo raciais; e o facto de ser uma expressão da 1974), no qual os seus fundadores denunciavam a cultura popular emanada da capital do país, o que violência, a opressão e a exploração perpetradas sem dúvidas, favoreceu a sua disseminação por todo pelo regime colonial e escreviam artigos advogan- o território nacional, sobretudo por via da rádio. É do o fim da discriminação racial. Entretanto, a cau- certo que em outros centros urbanos do período co- sa da independência política como tal não constava lonial havia também grande efervescência cultural, da pauta desta organização, mais focada que estava porém, a maior proximidade da Marrabenta com o em melhorar as condições de vida dos seus repre- centro político e económico do território, foi decisi- sentados, em primeiro lugar. va para o seu protagonismo. A causa da independência política só viria a se co- Desta forma, o exercício de exaltação da identida- locar algumas décadas mais tarde, no âmbito do de nacional, a tal “moçambicanidade”, actualmen- contexto africano mais amplo quando, já a partir te em voga, implica reconhecer a dimensão mais ampla do contexto que gerou um dos seus maiores da década de 1950, o Pan-Africanismo consolida- expoentes: a Marrabenta. É preciso trazer à me- se como a base ideológica dos movimentos liber- mória colectiva este conjunto de homens, mulhe- tários nacionalistas no continente. Nesta ordem res e instituições que realizaram a conexão entre de ideias, o GALM lançou as bases daquilo que os ideais e a prática. Qualquer negligência neste mais tarde viria a ser a consciência nacionalista sentido pode significar a perda do elo histórico que em Moçambique que, já directamente inspirada no nos ajuda a compreender porque certos símbolos Pan-Africanismo, reivindicaria a independência de possuem a dimensão que têm, como neste caso. forma explícita. Um dos seus fundadores, o emi- nente jornalista João Albasini é figura incontorná- Memória colectiva como património cultural vel deste processo, dada a influência que exerceu A pesquisa histórica e social costuma ser uma viagem na sociedade a partir da divulgação destes ideais no tempo, não apenas no sentido de identificar factos nas mais diversas esferas. e pessoas em algum lugar do passado, mas também E com efeito, as ideias de figuras como Dabula e na perspectiva de compreender os dados da presente. Em outras palavras, esta “viagem no tempo” pode ser Craveirinha fizeram esta conexão ao nível da cultu- feita a partir de uma perspectiva inversa: basta lançar ra, através das instituições onde actuavam. É nesta um olhar mais atento para os sinais existentes no quo- perspectiva que a Marrabenta participa deste movi- tidiano, especialmente para a situação actual em que mento amplo de afirmação de uma nova identidade se encontram os vestígios da história passada. Porém, – política e cultural - ainda que de forma indirecta. este exercício só se torna possível caso haja empenho Ainda que os seus artistas não fizessem críticas aber- das autoridades, das instituições e dos profissionais tas e sistemáticas ao regime colonial, a sua presen- de pesquisa sócio-cultural em torná-los visíveis e in- ça nestes ambientes certamente que contribuiu para teligíveis aos olhos da sociedade, que por seu turno, galvanizar as pessoas em torno de ideais comuns. deve estar suficientemente educada para lhes dar a devida importância. Este aspecto ajuda-nos a iluminar quanto à questão deste género musical ter se tornado um símbolo A aventura de trilhar os rumos da Marrabenta pas- da identidade nacional. O facto de estar ligada a sa, necessariamente, por trajectos que vão para círculos sociais engajados na constituição de uma muito além da música e do entretenimento. Em- nova forma de ser e estar enquanto “moçambica- brenhar-se pelos seus caminhos sinuosos significa nos”, acabou por fazer dela um instrumento impor- revelar a complexidade de uma realidade histórica

Embondeiro 15 muitas vezes descrita de forma simplista, tal como quisador, foi possível fazer registos da construção o debate sobre a sua “paternidade”. Como vimos, a ainda erguida, duas semanas antes da sua demoli- história do seu surgimento está permeada por toda ção (sem aviso prévio, diga-se). uma cadeia de lutas e conflitos sociais próprios do contexto em que se desenvolveu, no qual institui- ções como o Grémio Africano de Lourenço Mar- ques tiveram destacada relevância. Pois então, como se encontram os vestígios desta prestigiosa instituição nos dias de hoje? Em par- te, destruídos. Infelizmente, esta é a resposta. Pelo menos no que diz respeito à sua primeira sede, localizada próximo à esquina das Avenidas Karl Marx e Ho Chi Minh, a assertiva é verdadeira. Era uma bela casa, cuja arquitectura remetia aos prin- cípios do século XX e que destoava dos padrões actuais, especialmente numa avenida tão movi- mentada da região comercial da cidade, a Baixa. A ... demolida duas semanas depois, fotografia tirada a 5 de construção foi demolida na última semana de Ou- Novembro de 2012 (Foto: Marílio Wane). tubro de 2012, em circunstâncias não muito claras e quase nada “públicas”; isto é, pela sua relevância Enfim, sabemos que o município possui uma legis- histórica, um acontecimento dessa natureza deve- lação própria para a preservação do seu património ria, no mínimo, gerar algum debate na sociedade. edificado, especialmente no que tange à toda a área Não foi o que aconteceu, nem antes e nem depois... da Baixa da Cidade, já classificada como patrimó- nio material da cidade. Entretanto, independente do encaminhamento legal dado ao caso pelas au- toridades competentes, o ponto a destacar para a presente reflexão é justamente o facto de não se ter tocado na sensibilidade dos munícipes. Para o tema deste ensaio, uma peça importante do puzzle da Marrabenta (e não só) foi perdida sem que a colectividade “se desse conta”. Como então pode- remos compreender os processos históricos subja- centes à sua proeminência simbólica?

Este facto foi uma chamada de atenção para a falta de cuidado para com a memória colectiva de um modo geral e, particularmente, da Cidade de Ma- A antiga sede do Grémio Africano de Lourenço Marques, fotografia tirada a 22 de Outubro de 2012 (Foto: Marílio puto. Do ponto de vista do pesquisador social, a Wane). sensação é quase de desespero por saber que in- dividualidades e espaços cujas trajectórias podem É justamente este aspecto que chama a atenção: iluminar o trabalho de investigação estão a desa- apesar da densidade histórica, a repercussão quase parecer. Neste caso particular, do desaparecimen- nula da sua demolição indica que, infelizmente, ela to de um património material, edificado, sente-se já não fazia parte do imaginário colectivo do cida- uma perda de referência espacial que nos permi- dão maputense, ou até mesmo, moçambicano. E tiria imaginar como era a cidade de outrora e as certamente que contribuiu para o esquecimento o suas interacções sociais subjacentes. A própria lo- facto de já há muitos anos, o local estar abandona- do, em estado avançado de deterioração e ocupado calização privilegiada da velha casa, próxima ao por indigentes que inclusive, faziam ali mesmo as Conselho Municipal, à Sé Catedral e, de resto, ao suas necessidades. Por “sorte” ou intuição de pes- porto e à Estação dos Caminhos de Ferro, dava-

16 Embondeiro nos uma boa ideia da posição relativa do Grémio Tão importante para a promoção da Marrabenta no contexto social no qual estava inserido. quanto o Ntsindya, a Associação Africana também desapareceu do imaginário maputense, pelo menos Ao longo desta viagem no tempo, materializou-se no que se refere ao espaço. Antigamente localizada na figura de Moisés Manjate, do Conjunto Djam- na actual Avenida 24 de Julho, ao lado da Assem- bo, a imagem proposta na famosa frase “Em África, bleia da República, logo após a independência, ce- cada velho que morre é uma biblioteca que arde”, deu espaço ao Bar Matchedje, uma casa nocturna cunhada pelo historiador Amadou Hampate Ba. Fe- gerida por círculos militares da sociedade. Assim, lizmente, ainda o temos entre nós, mas a associação o activismo sócio-cultural anteriormente desenvol- com esta frase foi inevitável, dado ao volume de vido neste espaço, engajado e comprometido com informação com que nos brindou. Em um de seus a causa nacional, também desapareceu da memória depoimentos, falou de uma figura popular nas dé- colectiva. Recentemente, um dos seus personagens cadas de 1930 a 1950, conhecido como “Mukhafa- de destaque, o desportista e dançarino Alfredo Calia- na”; era um músico andarilho feito trovador urbano no, veio a falecer a 16 de Junho de 2014. Conhecido que, com uma viola de lata, percorria os subúrbios como “Fedo” ou “Tsucunhana”, integrou o Grupo da cidade alegrando o povo com as suas madjikas. Folclórico da Associação Africana e o célebre Con- Infelizmente, tornou-se difícil rastrear este dado por junto João Domingos, ajudando a definir os -con tratar-se de uma reminiscência bastante vaga e dis- tornos da Marrabenta enquanto dança de salão. A persa no tempo-espaço, mas ainda assim reconheci- exemplo da demolição da primeira sede do GALM, da como um dos precursores da Marrabenta. o seu falecimento não gerou grande repercussão. Entretanto, numa perspectiva mais concreta, Man- É importante frisar que este artigo não propõe uma jate fez referência ao Mutumbela, o carnaval po- “volta ao passado”, ignorando novas dinâmicas so- pular festejado nas zonas suburbanas de Lourenço ciais e históricas ou até mesmo do crescimento da Marques, nas décadas de 1940, 1950 e 1960. Para cidade de Maputo. Muitas destas transformações ele, a sua importância estava não apenas em cons- aqui relatadas envolvem situações concretas que tituir uma forma de entretenimento para a maioria escapam ao trabalho de pesquisa realizado, pelo da população que sofria com a opressão do regime, que não cabe aqui julgar-lhes o mérito. O que está mas também como um dos focos de gestação da em causa é a falta de cuidado com esta memória, Marrabenta. Isto porque era um verdadeiro festi- que foi possível constatar através de uma pesquisa val de danças e canções tradicionais organizado sobre a música popular, neste caso, a Marrabenta. espontaneamente pelo povo, no qual ele próprio se Nesse sentido, a própria dificuldade em se confir- inspirou. Deste relato, chamou a atenção o facto mar certas informações - como por exemplo, a lo- de, em pleno regime colonial, haver a possibilida- calização correcta da antiga sede do GALM – é um de de ocupação do espaço público por parte dos exemplo claro, dada a sua relevância. oprimidos, confirmando aquilo que muitos pensa- O que se pretende é alimentar o debate sobre a cul- dores dizem ser uma das funções do carnaval: a tura nacional trazendo ao de cima dados históricos inversão temporária da ordem social. que contribuam para um melhor alinhamento das Entretanto, nos dias de hoje, pouco ou quase nada ideias. Como vimos, em virtude da tal falta de cui- se ouve falar deste Mutumbela. É curioso saber dado para com estes, facilmente a discussão pende que já na década de 1950 e 1960, esta festa po- para questões simplistas. Uma delas, bastante re- pular incorporava alguns elementos do carnaval corrente, é a ideia de que o protagonismo da Mar- brasileiro como os carros alegóricos, as fantasias, rabenta (supostamente em detrimento de outros , marchinhas e até mesmo, importação de géneros musicais existentes no país) deve-se ao artistas daquele país. Actualmente, vemos também facto de ser uma expressão cultural oriunda do sul. na cidade de Maputo a organização de uma festa Contrariamente a esta posição, a viagem no tempo de carnaval também inspirada no modelo brasilei- que nos leva até o GALM e outros dados permite ro, porém, sem que se faça referência a este passa- afirmar que, justamente por trazer na sua carga ge- do não muito distante. nética a efervescência das transformações sociais subjacentes à construção da identidade nacional,

Embondeiro 17 este género musical adquiriu a capacidade de se salões da elite colonial, nos cabarés, nos clubes, colocar como um importante símbolo cultural do nas residências, enfim... país como um todo. Frequentemente, a ideia de “memória” está as- Lembranças sobre os esquecimentos sociada àquilo de que queremos nos lembrar. Ao nível individual, encaramos este exercício mental A título de fecho desta reflexão, surge uma ques- como uma acção positiva e até mesmo espontânea, tão ainda mais profunda em relação à preservação na medida em que o vemos como um esforço cog- da memória da própria cidade: quem foi Lourenço nitivo que tem por objectivo buscar elementos do Marques? É desconcertante notar que poucos habi- passado que ajudem a compreender uma determi- tantes da actual Cidade de Maputo são capazes de nada situação do presente. Porém, sabe-se que este responder correctamente a esta pergunta. Assim, processo não se dá de forma linear: o nosso sub- constatamos que, do comerciante e explorador consciente actua neste processo de modo a selec- português que por aqui navegou no século XVI, cionar tais elementos. É justamente este carácter pouco restou no imaginário colectivo. Se por um selectivo que nos chama a atenção para o reverso lado, circula pouca informação e menos ainda ima- do exercício da memória: o esquecimento. gens sobre este indivíduo, por outro lado, os seus “vestígios” estão muito presentes no quotidiano, Ao contrário do que parece, “esquecimento” não na marca de um dos principais produtos consumi- significa necessariamente “perda da memória”; dos no país. “Laurentina” é uma homenagem dos significa também a selecção e elaboração dos con- primeiros produtores desta cerveja aos naturais da teúdos de forma a estabelecer uma certa memória cidade de Lourenço Marques. que se pretenda. Tal aspecto torna-se mais evidente quando nos debruçamos sobre a memória colec- Enfim, um olhar mais atento sobre pequenos da- tiva, aquela que torna-se património de todo um dos do quotidiano pode ser uma interessante porta grupo alargado de indivíduos e cujo processo de de entrada para a História, essa escrita com letra construção pode ser rastreado através da pesquisa maiúscula. E para não parecer uma acção de mer- social. Neste sentido, o estudo de um fenómeno só- chandising, vamos citar aqui a marca concorren- cio-cultural de grandes dimensões como a Marra- te, a “2M”, que também nos convida à História benta, leva-nos a reflexões mais abrangentes, para da cidade e do país. Trata-se de uma homenagem além da identificação dos elementos estéticos que ao antigo presidente francês Marie Edmé Patrice lhe são intrínsecos enquanto expressão artística. O Maurice, conde de Mac-Mahon, que, em 1875, ar- seu lugar de destaque na construção da identidade bitrou a favor de numa disputa com a Grã nacional moçambicana deve-se à sua participação -Bretanha sobre a posse do Sul de Moçambique. activa no processo, ajudando-nos a lembrar e a es- quecer de umas e outras coisas. Enfim, ajuda-nos Curiosamente, nenhuma das duas marcas faz refe- a compreender que a memória não se faz apenas rência a estes factos ou figuras nas suas campanhas através de lembranças, mas também de esqueci- publicitárias. Evidentemente, devem ter as suas mentos. próprias razões para tal, uma vez que são acções que visam, acima de tudo, a eficácia comercial. Bibliografia Seria interessante pensar nessa possibilidade devi- do ao enorme potencial da publicidade para fixar SOPA, António (2014). A Alegria é uma Coisa conteúdos na memória colectiva, mas também não Rara. Maputo: Marimbique. podemos nos esquecer que, em ambos os casos, são referências que remetem ao colonialismo. En- LARANJEIRA, Rui (2014). A Marrabenta: sua tretanto, estes produtos têm origem nesse contexto Evolução e Estilização (1950-2002). Maputo: Mi- sócio-político (a primeira, começou a ser produzi- nerva Print. da em 1932 e a segunda, em 1962) e certamente, ROCHA, Aurélio (2006). Associativismo e Nati- tiveram o seu papel como “personagens” da His- vismo em Moçambique: Contribuição para o Es- tória. Certamente que embalaram muitas noites de Marrabenta nos quintais das zonas suburbanas, nos tudo da Origem da Nacionalismo Moçambicano. Maputo: Texto Editores.

18 Embondeiro XIMBUTSU MUZAYA: mitos e factos sobre o topónimo Chibuto

Abel Silvestre Mazuze [email protected]

Resumo

O presente artigo, intitulado “Ximbutsu Muzaya: Mitos e Factos Sobre o Topónimo Chibuto”, des- creve o processo de construção do topónimo Chibuto. Para o efeito, são arrolados alguns aspectos factuais e mitológicos à volta do Chimbutsu, primeiro local a receber a designação, que posterior- mente foi estendida a todo o actual distrito de Chibuto, na província de Gaza. A principal hipótese que conduziu o estudo foi de que o carácter aguerrido dos nguni, grupo etno-linguístico que chegou à região na década de 1820, logo depois da fundação do Estado de Gaza, tenha sido determinante para o surgimento do adágio popular “i Chimbutsu Muzaya, Xiwa Niku Pfuka”, que se refere à flexibilidade e força assumidas como caractarísticas das pessoas de Chibuto e, por essa via, do topónimo Chibuto, como terra de gente forte, valente e flexível. A principal conclusão a que o artigo remete é de que o significado de I Chimbutsu Muzaya Xiwa Niku Pfuka, esteja associado à origem do topónimo Chibuto, na medida em que o mesmo era usado para fazer referência às qualidadesdes dos jovens do exército do Estado de Gaza, os mabuthu, que se estacionavam no Chimbutsu, uma pequena elevação de cerca de 02 hectares que surge no meio da planície do vale do Limpopo no município de Chibuto, assumindo cumulativamente as funções de quartel e de santuário.

Palavras-Chave: Chibuto; Gaza; nguni, topónimo.

Introdução A toponímia do distrito de Chibuto, assim como Distrito e a Cidade/Município de Chibuto. de toda a província de Gaza encontra-se bas- tante marcada pela dominação nguni no quadro Especificamente, o artigo faz uma breve caracte- do Estado de Gaza. Com este artigo, intitulado rização geográfica e histórica da área do estudo e Ximbutsu Muzaya: Mitos e Factos sobre o To- identifica alguns factos e crenças associados à ori- pónimo Chimbutsu1, pretende-se, de uma forma gem e significado do topónimo Chibuto. É comum geral, contribuir para a compreensão do proces- entre as comunidades humanas, a atribuição de so de construção do topónimo “Chibuto”, surgi- características distintivas entre indivíduos de um do durante o período de vigência do Estado de ou de outro ponto, em função apenas da sua área Gaza e que, actualmente, é usado em referência de proveniência. Por exemplo, as comunidades do a duas áreas administrativas de dimensões dis- vale do Limpopo, sobretudo nas áreas que com- tintas, na província de Gaza, nomeadamente o preendem os distritos de Chibuto, Chókwè e Gui- já são estereotipadas como geradoras de homens 1 I Chimbutsu Muzaya, Xiwa Niku Pfuka, traduzido literal- valentes, corajosos e sempre dispostos a enfrentar mente, de changana, significa “é do Chibuto meu neto, cai e levanta-se de imediato”. Esta flexibilidade na recuperação qualquer desafio, mesmo que isso implique- con de qualquer que seja a queda, reerguendo-se de imediato, frontação física. constituia-se como a principal característica dos jovens que, fazendo parte do exército do Estado de Gaza, estacionavam- É nesta lógica que se construiu e difundiu o adá- se no Chimbutsu (actual mata sagrada Chimbutsu). gio popular “i Chimbutsu Muzaya, Xiwa Niku Actualmente, o adágio sobre esta flexibilidade dos militares Pfuka” que numa tradução livre de changana para do Estado de Gaza é aplicado e assumido por toda a popula- português significa “é de Chibuto meu neto cai e ção de Chibuto como se referindo às suas qualidades deste- levanta-se imediatamente”. Este adágio é social- midas para enfrentar os desafios do dia-a-dia.

Embondeiro 19 mente assumido pelos naturais de Chibuto que, na No primeiro grupo encontramos autores como sua maioria, se identificam com o significado -ac Cruz (1910); Junod (1974); Souto (1994); Lie- tual da colocação, que se refere à pré-disposição segang (1996) e Covane (2001). No grupo dos para fazer face aos desafios da vida. trabalhos que fazem referência directa a Chibu- to, constam Andrade (1907) e Feliciano (1998). Deste modo, o estabelecimento de um parale- Neste último grupo, foram consultados também lismo entre estas características socialmente as- os materiais da Campnha de Preservação e Valo- sumidas e o facto de Chibuto ter sido a capital rização Cultural, decorrida de 1979 a 1983. espiritual do Estado de Gaza e, por conseguin- te, o reduto final de Ngungunyani, último chefe O maior constrangimento encarado na elabora- do Estado, conduz à suposição de existência de ção deste artigo esteve relacionado com exigui- alguma relação entre este adágio popular asso- dade de fontes escritas. Pois, apesar de muito ciado à origem do nome Chibuto e à presença documentada a história do Estado de Gaza, a nguni na região. Porém, a hipotética relação en- tendência dos trabalhos sobre esta temática é de tre o adágio e a presença nguni deixa ficar um generalizar os factos, centrando-os, quase sem- vazio sobre o alcance da influência de um sobre pre, na vida da aristocracia dominante. Assim, o outro. Ou seja, até que ponto a presença nguni o recurso às fontes orais como suplemento aos em Chibuto influenciou a emergência do adágio dados conseguidos nos trabalhos escritos foi a e, por conseguinte, do nome Chibuto? saída encontrada para fazer face a este constran- gimento. Assim, subentendendo que Chibuto tenha sido um centro de difusão dos nguni do Estado de 1. GENERALIDADES SOBRE A ÁREA DO Gaza, caracterizados, entre vários autores, por ESTUDO Rita-Ferreira (1974), como aguerridos e deten- tores de um forte exército “organizado em re- 1.1. Aspectos geográficos gimentos de classes de idade e detentor de téc- Com uma superfície de 5 878 km², uma popula- nicas de combate sustentadas no uso de filas de ção de 191 682 habitantes em 2007 e uma densi- guerreiros armados com escudos de couro e com dade populacional de 32,6 habitantes/Km², cor- lanças de cabo curto, próprias para a luta corpo respondendo a um aumento de 16,3% em relação a corpo” e, sendo que habitualmente estes mabu- aos 164 791 habitantes registados no Censo de thu (regimentos) estacionavam-se no local que é 1997, o distrito de Chibuto situa-se na parte sul hoje a mata sagrada Chimbutsu, de onde deriva da província de Gaza, em Moçambique, com as o topónimo em estudo, a hipótese de que esta seguintes coordenadas: 23˚ 35’ 44’’ e 24˚ 52’ 54’’ característica aguerrida dos nguni tenha sido o de latitude sul e 33˚ 56’ e 54’’ de longitude Este. fator impulsionador do surgimento do adágio popular “Chimbutsu Muzaya, Xiwa Niku Pfuka” Por sua vez, a cidade de Chibuto, sede do dis- e, por essa via, do topónimo Chibuto, encontra trito, é um município com governo local eleito suporte. e que contava, em 2007, com uma população de 63 184 habitantes. Esta situa-se mais a Sul do Vários são os autores que se interessaram pelo distrito e, segundo Macia (2001), faz-se limitar estudo da dinâmica social, económica e polí- a Norte pela localidade de Canhavano; a Nor- tica do Estado de Gaza. Sendo Chibuto, parte deste, pelo rio Chilalanhana; a Sul, pela locali- integrante deste complexo estadual, há muita dade de Chikhakhata; a Este, pelo rio Changana informação dispersa sobre esta área de estudo. e; o bairro de Chimundo, a Oeste. Contudo, são poucos os estudos direccionados exclusivamente a Chibuto. O material consulta- Chibuto, à semelhança de toda zona sul de Mo- do para a elaboração deste artigo pode ser divi- çambique, caracteriza-se por um regime anti-ci- dido em dois blocos a saber: i)trabalhos que se clónico e de depressões das latitudes médias. As referem ao Estado de Gaza como um todo, men- quatro estações das zonas temperadas são mal cionando Chibuto de forma parcial e; ii) traba- definidas, sendo melhor reuní-las em dois perío- lhos direccionados à áreas concretas de Chibuto. dos: i) Verão, época quente ou de chuvas, e ii)

20 Embondeiro Inverno, época fria e seca. O regime pluvial é potável abundante, sobretudo no vale do Lim- ciclónico, caindo as chuvas com a passagem das popo, atraíu as estruturas dirigentes nguni a se depressões. Estas chuvas resultam das perturbações fixarem por ali. Portanto, cerca de 05 a 07 anos dinâmicas da atmosfera (ciclones, tormentas e de- após a sua fundação, o Estado de Gaza já tinha pressões atmosféricas). fixado sua capital em Chibuto, como se pode ver no excerto que se segue: Na época seca, as pressões mantêm-se altas. Por sua vez, a época chuvosa caracteriza-se pelo (…) o Estado de Gaza teve um período de expansão e deslocamento das baixas pressões do norte em organização que vai grosso modo de 1821 até 1841 ou direcção ao sul. A sucessão do bom ou mau tem- 1845… cerca de 1841 ou 1845 o Estado tinha come- po e a marcha das depressões, são idênticos nas çado a incluir terras dos Khosa e de Bilene que ainda posteriormente faziam parte do seu território…certa- duas épocas. mente, a partir de 1825-7 a capital de Sochangane esta- va situada no que se considerava posteriormente como A cidade de Chibuto, estando numa região pre- parte do Estado de Gaza. Localizava-se provavelmente dominantemente de planície, é constituída por primeiro na margem esquerda do rio Incomati e depois formações arenosas de relevo ondulado e depres- na margem direita do Limpopo, na zona de Chiduachi- sões hidromórficas, cujas altitudes não atingem ne, no limite entre os distritos de Chókwè e Chibuto os 200 metros. Estas planícies estão divididas (…) (Liesegang, 1996: 9). em dois tipos: i) planície fluvial e planície eó- lica. A primeira constitui-se pelos vales dos rios Do primeiro contacto Nguni Makwakwa re- Limpopo e Changana e caracteriza-se por solos sultaram fricções e abandono massivo dos aluvionares finos depositados pelos rios duran- Makwakwa em direcção ao norte, tendo fundado te as cheias. A segunda, é constituída por dunas outras povoações ao longo do percurso. É desta interiores, apresentando um relevo acidentado movimentação que surgiu a povoação que ac- com declives suaves. Trata-se de formações de tualmente perfaz a Localidade de Macuácua, no relevo desnudado em lento processo de aplana- Distrito de Mandlakazi, província de Gaza. Al- ção A separar as duas zonas, a baixa (planície guns dos resistentes optaram por permanecer em fluvial) e a alta (dunas interiores), encontra-se Chibuto, submetendo-se ao domínio do invasor. uma área aplanada em contacto com os aluviões À semelhança do que ocorreu aos Makwakwa, e as dunas interiores (Bamdyrev apud. Macia, a dominação nguni contribuiu para a evasão 2000). de outros grupos que se desertavam um pouco 1.2. Aspectos históricos por toda a área abarcada pelo Estado de Gaza, como é o exemplo, entre vários, dos Nkuna que Devido à escassez de fontes sobre o povoamento ocupavam a área compreendida entre Guijá e de Chibuto, e por conveniência deste estudo, op- Chókè, também no vale do Limpopo. Estes se tou-se por abordar este assunto usando o século movimentaram em direcção a Magude e África XIX, altura da fixação nguni, como referência. do Sul (Idem). Pois, não há dúvidas em relação às profundas transformações na estrutura política, económica Apesar dos choques iniciais entre grupos popu- e social provacadas pela incorporação de Chibu- lacionais de diferentes proveniencias e das refe- to no domínio do Estado de Gaza. ridas fugas massivas, a dinâmica produzida pela invasão nguni em Chibuto contribuiu, em larga Segundo Liesegang (1996), antes da invasão medida, para a fusão de traços culturais nguni, nguni, Chibuto já apresentava chefaturas bem makwakwa e de outros elementos importados de estruturadas, algumas das quais fizeram frente regiões mais a norte, como resultado do retorno ao invasor, como é o caso dos Makwakwa que de alguns indivíduos que tinham fugido aquando tinham em Chibuto a sua sede política e espiri- das batalhas de conquista nguni e expansão das tual, com um cemitério real. áreas do domínio do Estado de Gaza. De referir que, desde cedo, a composição natu- Num segundo momento, a influência do domínio ral de Chibuto, nomeadamente terra fértil e água do Estado de Gaza na modificação da composi-

Embondeiro 21 ção sócio-cultural de Chibuto, deveu-se às cons- siderável de militares provenientes de diversos tantes movimentações de pessoas dos diferentes pontos do mundo, com destaque para Portugal. pontos deste Estado multi-étnico, que incorpo- Assim, o processo miscigenatório teve espaço rava gente das actuais regiões sul e centro de para registar novos momentos, com o início da Moçambique, durante as sucessivas transferên- mestiçagem e do contacto com indivíduos de ou- cias da capital do Estado, como refere Liesegang tros continentes3. (1996) no excerto que se segue: Este processo de fixação humana e consequen- (…) a partir de 1825-7 a capital … localizava-se pro- te miscigenação4 continua nos dias de hoje, em vavelmente primeiro na margem esquerda do rio In- menor escala, à medida em que se estabelecem comati e depois na margem direita do Limpopo… no limite entre os distritos de Chókwè e Chibuto. Passou novas pessoas em Chibuto, que se misturam com entre meados de 1835 e Outubro de 1838 para a zona a composição social já constituída. de Mossurize… depois de 1838 o centro de Gaza passou outra vez para o vale do Limpopo na zona 2. XIMBUTSU MUZAYA: factos e mitos so- de Chaymite… até Março ou Abril de 1862, quan- bre o topónimo Chibuto do foi transferida para a zona dos cursos superiores dos rios Buzi e Mossurize, ao norte do rio Save. Lá A toponímia da província de Gaza está marcada- permaneceu até Julho de 1889, quando foi novamen- mente influenciada pela presença nguni. Aliás, te transferida para o sul, ficando sucessivamente em o próprio nome Gaza constitui uma homenagem três localidades dos actuais distritos de Mandlakazi e Chibuto (…). do fundador do Estado ao seu bisavô Mangwa Gaza (Liesegang, 1996). De igual modo, o nome Destas constantes deslocações das estruturas Changana, correspondente ao grupo etno-lingís- político-administrativas do Estado de Gaza de tico maioritário de Gaza, deriva de um pseudó- Chibuto para outros pontos que perfaziam a sua nimo de Manicuse, Sochangane. vastidão territorial e vice-versa, resultou uma segunda vaga de miscigenação entre as regiões Em relação ao topónimo Chibuto, fontes orais centro e sul do actual Moçambique, constituin- deixam transparecer a ideia de que a sua ori- do-se assim a base das características culturais gem também esteja efectivamente associada à da população de Chibuto. presença nguni. Para o efeito, são apresentadas duas versões sobre o processo que culminou Em 1895, depois de um longo processo prepa- com a adopção do nome Chibuto. ratório, os portugueses decidiram atacar o Esta- do de Gaza, usando como argumento o facto de As versões convergem em relação ao local a re- Ngungunyane não ter cumprido os acordos de ceber esta designação pela primeira vez. Trata- vassalagem de 1861 e 1885 e o acordo comercial se de uma pequena colina situada na planície do sobre o vinho de 1891 (Covane, 2001). vale do Limpopo à saída da cidade de Chibuto usando a estrada Chibuto-Guijá. Este local con- A captura de Ngungunyani, rei de Gaza em serva até aos nossos dias a designação Chimbutsu. Chaimite não significou, necessariamente, o fim do processo de ocupação efectiva no Estado de 3 Nesta altura já se tinha registado alguma presença asiática Gaza pois, dois anos depois, Maguigwani Kho- no Sul de Moçambique e em outras áreas do Estado de Gaza. sa, comandante militar do exército de Gaza, di- Por exemplo, em Magule já havia alguns comerciantes in- rigiu um forte levante contra os portugueses em dianos estabelecidos antes mesmo da dominação portuguesa. 4 O Termo “miscigenação” é aplicado neste artigo com o Chibuto. Este levante ficou conhecido como a 2 significado de mistura biológica e cultural. Originalmente, guerra mbuyiseni . o termo remete ao cruzamento de raças humanas. Porém, a A referida insegurança que se vivia, sobretudo aplicação aqui adoptada restringe-se às componentes bioló- em Chibuto, ditou a fixação de um número con- gica (não necessariamente racial, mas para referir à reprodu- ção/procriação resultante do casamento entre indivíduos de 2 Mbuyisene significa devolvam ou restituam. A guerra movi- origens distintas) e cultural (no sentido de partilha de valo- da por Maguigwani Khosa visava a devolução de Ngungunyane res). para Chibuto para que este fosse restituido o seu reino.

22 Embondeiro militares do Estado de Gaza que rotineiramente se estabeleciam em Chibuto. Nesta óptica, Chi- buto derriva de mabuthu5, forma como era de- signado o exército. A pequena elevação que surge a meio da pla- nície do vale do Limpopo, actualmente desig- nada mata sagrada Chimbutsu, ou simplesmente Chimbutsu, permitindo uma fácil observação de qualquer movimentação na planície, tornou-se, desde cedo, num local privilegiado para o posi- cionamento das forças do Estado de Gaza. Deste modo, por servir de local de sentinela do exército nguni, a colina recebeu a designação de Chimbu- Vista panorâmica do Chimbutsu tsu, isto é, local de presença constante dos mabu- Foto: ARPAC-Delegação de Gaza thu, regimentos militares.

A avaliar por Américo (2001), o Chimbutsu ocu- Nesta altura, pertencer ao exército do Estado de pa uma área de cerca de dois hectares e seu ter- Gaza era algo prestigiante. Refira-se, porém, que reno é pedregoso. Fontes orais acrescentam que para fazer parte do exército, os jovens tinham de parte dos primeiros edifícios coloniais portugue- demonstrar que estavam dotados de certas capa- ses das cidades de Xai-Xai e Chibuto foi cons- cidades excepcionais nos domínios da força e fle- truída com recurso à pedra do Chimbutsu, tendo xibilidade. Portanto, para realizar o sonho de per- a sua extração sido feita à base do trabalho for- tencer ao exército do Estado, o jovem tinha que çado e o seu transporte por via de embarcações reunir as qualidades referidas no adágio popular a vapor no rio Limpopo. Outra coincidência que Chimbutsu muzaya, xiwa ni ku pfuka. as duas versões sobre a origem do nome Chibuto A segunda versão apresenta o nome Chibuto como apresentam está relacionada com o período em proveniente do termo chibutwa que significa -en que este nome surgiu. Todos afirmam ter sido contro ou reunião popular. Nesta óptica, Chimbut- nos tempos de Ngungunyani, designação usada su era um centro de convergência de pessoas, local para fazer referência a todo o período de vigên- onde eram debatidos diversos assuntos inerentes à cia do Estado de Gaza. vida da comunidade. Visto que as fontes orais não conservam os factos Por conseguinte, o sítio tomou a designação de históricos por muito tempo, com a devida rique- chibutwenwi, que significa local de reuniões públi- za de detalhes, é por via de uma combinação de cas. Entre os assuntos que eram tratados no local, aspectos factuais e mitológicos que se procura constam as preces aos antepassados para pedido de reconstituir a origem e o significado, socialmen- chuvas, entre outras formas de culto, e a concen- te assumidos, do topónimo Chibuto e, de igual tração de jovens militares para receberem orienta- modo, o alcance do adágio popular i Chimbutsu ções superiores. muzaya xiwa ni ku pfuka. 2.1. Duas versões sobre a origem do topónimo 5 O termo butho é usado para fazer referência ao exército A origem do topónimo Chibuto, como já foi re- do Estado de Gaza que, na sua organização servia-se dos ferido, é explicada por via de duas versões que regimentos de idade ou butho, “os quais se formavam com embora muito próximas, apresentam alguns ele- jovens da mesma idade, havendo entre eles muitos recru- tados dos reinos vassalos. As promoções aos butho depen- mentos de distinção uma da outra. A primeira es- diam das capacidades guerreiras de cada jovem e não da tabelece que o processo de construção do topóni- sua idade ou prestígio da sua família” (Serra, 1999). mo em causa tenha ocorrido entre os regimentos

Embondeiro 23 Importa realçar que, apesar de distintas, as ver- Em relação ao primeiro aspecto, fontes orais sões sobre a origem do topónimo Chibuto apre- fazem referência a dois episódios. O primeiro sentam, essencialmente, dois elementos de con- é assumido como tendo ocorrido aos portugue- vergência. O primeiro está relacionado com o ses, durante o processo de montagem da máqui- local de proveniência do topónimo (Chimbutsu), na político-administrativa colonial e constru- apontado como quartel ou local de sentinela, na ção dos primeiros edifícios em Chibuto. Estes, primeira versão e, santuário ou local de reuniões reza o mito, apreciaram as características do populares, na segunda versão. O segundo ele- Chimbutsu dada a sua elevação e isolamento es- mento de convergência que estas versões apre- tratégico para a visualização de vastas extensões sentam está relacionado com o período, sendo que ambas consideram que o topónimo tenha da planície e decidiram construir alguns edifí- surgido nos tempos de Ngnungunyane, designa- cios no local. ção atribuída a todo o período de prevalência do Em contrapartida, devido à acção dos espíri- domínio do Estado de Gaza. tos, as tentativas coloniais de construir algo no Assim, fica evidente que a origem do topónimo Chimbutsu fracassaram, sendo que tudo que Chibuto está associada às propriedades aguerri- fosse construido à luz do dia, desaparecia sem das que eram exigidas aos jovens para fazerem deixar rastos, na calada da noite. Sobre esta ma- parte dos Mabuthu (regimentos militares) que se téria, Américo (2001) refere o seguinte: aquartelavam na pequena elevação que tomou o nome Chimbutsu, durante a vigência do Estado (…) os portugueses tentaram edificar barracas no lo- de Gaza. De igual modo, fica a ideia de que o cal, só que, durante a noite, foram devoradas por in- cêndios de grandes proporções sem que se conheçam Chimbutsu assumiu, cumulativamente, as fun- os seus autores e nem suas pistas … após mais uma ções de santuário/local de culto, quartel e local tentativa de edificar barracas no sítio, após concluir a de reuniões populares. sua construção, decidiram colocar guarda. Mesmo as- sim, de novo as barracas assim como o guarda foram 2.2. Sobre a acção dos espíritos dos antepas- devorados por um incêndio … Outro fenómeno que sados no Chimbutsu ocorria é que mesmo depois de efectuarem escavações para extraírem pedra, no dia seguinte encontravam-nas Por ser um local que assumia cumulativamente soterradas, isto é, tudo tapado como se nada tivesse as funções de templo, onde se cultuava os es- sido feito (…). píritos dos antepassados, e de quartel, onde se estacionava o exército do Estado, o Chimbutsu A reforçar esta crença, é relatada uma fatalidade tornou-se, aos olhos da comunidade, um sítio sa- que aconteceu depois da Independência Nacio- grado, bastante temido e respeitado, à volta do nal. Trata-se de um episódio que envolveu um qual se construíu uma série de mitos que susten- indivíduo de origem asiática que se tinha estabe- tam este temor e respeito. lecido em Chibuto havia muitos anos, tendo este tentado criar porcos no interior do Chimbutsu. Sobre a acção dos espíritos no Chimbutsu são Para o efeito, este senhor construíu pequenos apresentados vários episódios referentes às in- cercados onde colocou os seus animais. Tanto terdições à acção humana naquele sítio. De uma as edificações, quanto os animais colocados no forma geral, os mitos sobre o Chimbutsu resu- Chimbutsu desapareceram de forma misteriosa mem-se no seguinte: i)proibição de fazer qual- e, associa-se a esta tentativa de desobedecer aos quer edificação no interior do Chimbutsu sem a espíritos do Chimbutsu, a morte deste indivíduo devida permissão dos espíritos; ii) impedimento por afogamento na praia de Xai-Xai. de exploração dos recursos bióticos, plantas e pequenos animais, sobretudo pássaros, no local, Sobre a proibição de extracção de plantas e que se encontram sob a protecção dos espíritos animais do Chimbutsu, acredita-se que devido e iii) acção dos espíritos que guarnecem o local. à acção dos espíritos, quem se introduzisse no interior do Chimbutsu com o intuito de extrair

24 Embondeiro frutos silvestres, lenha ou para caçar pássaros, sados, estas passaram a ser realizadas apenas arriscava-se a ser castigado pelos espíritos do em cerimónias oficiais do Estado. local. Este castigo podia ser por via de desapare- cimento por alguns dias, circulando no interior Esta tendente desvalorização do sítio deve-se, do sítio até se cansar e abandonar tudo o que em larga medida, à fraca transmissão das cren- tiver carregado, assim como por via de susto por ças sobre a acção dos espíritos no local, facto avistar assombrações ou mesmo pela morte do que compromete a própria preservação do pa- transgressor. trimónio histórico associado ao local, como é a origem do topónimo do distrito e até mesmo do Em relação à acção nocturna dos espíritos como próprio adágio popular ximbutsu muzaya, xiwa guardas do sítio, fontes orais, afirmam que em niku pfuka. tempos idos, sobretudo antes da Independência Nacional, era comum ver capulanas de diversas Considerações finais cores estendidas no Chimbutsu, fumaça e até ouvir I Chimbutsu Muzaya Xiwa Niku Pfuka, é um vozes vindas de lá durante a noite. Em contraparti- adágio popular, cujo significado, em linhas ge- da, ao amanhecer não se via nada e nem vestígios rais, se associa à flexibilidade e força exigidas de ter estado alguma pessoa no sítio na noite ante- aos jovens para pertencerem aos regimentos mi- rior. Não restava sequer cinza e nem capulana que litares do Estado de Gaza. O termo butuo (sin- testemunhasse a presença das pessoas. gular) ou mabuthu (plural) era usado para fazer referência à organização militar do Estado. Acredita-se ainda, que tenha existido um enorme crocodilo que habitava as redondezas do Chimbut- Por sua vez, Chimbutsu era o local/quartel onde su. O réptil em alusão recebeu o nome Makhohlo- se estacionava o exército do Estado de Gaza. le6 por emitir um ruído semelhante ao tossir de Inicialmente esta designação foi atribuída a uma um ser humano. Este crocodilo passava a noite pequena elevação de cerca de dois hectares que surge a meio da planície do vale do Limpopo, circulando pelo Chimbutsu de tal forma que quem facilitando a visualização de grande parte da se fizesse ao local arriscava-se a ter um encontro planície, sendo assim um local privilegiado para inesperado com aquela criatura assustadora. a sentinela. O mito sobre Makhohlole, e todos os outros que Com o tempo, a designação Chimbutsu ou Chi- perfazem a sacralidade do Chimbutsu contribuí- buto foi atribuída a áreas maiores, sendo que ram bastante para a preservação do sítio durante actualmente abrange o distrito e a respectiva ca- muito tempo. Entretanto, nos últimos anos, so- pital. De igual modo, o adágio popular Chimbu- bretudo depois de 1992, verificou-se uma -ten tsu Muzaya que inicialmente se aplicava apenas dente desvalorização do sítio, de tal forma que aos mabuthu, é actualmente adoptado para fazer as pessoas passaram a frequentá-lo para fins no- referência à capacidade de superação das comu- civos à sua preservação. nidades de Chibuto, mesmo perante grandes de- safios que se possam impor às suas vidas. Como consequência da acção humana, o Chim- butsu ficou com parte da sua cobertura vegetal O Chimbutsu assumia cumulativamente as fun- degradada e muitos dos animais abandonaram ções de quartel e de templo, sendo que nele se o sítio. Tornou-se comum o uso do Chimbutso realizavam diversas cerimónias de culto aos an- para encontros de namorados, para a extracção tepassados. Por conseguinte, foram constituídas de lenha e medicamentos por parte dos pra- uma série de crenças associadas à acção dos es- ticantes da medicina tradicional, assim como píritos dos antepassados naquele santuário. Em para cultos religiosos. As preces aos antepas- geral, estas crenças resumem-se na proibição de efectuar edificações, extrair recursos e visitar o 6 O nome Makhohlole atribuído ao místico crocodile do Chimbutsu derriva do termo changana Ku-khohlola, que sítio durante a noite. significa tossir. Deste modo, a tradução directa deste nome nos remete a “aquele que tosse”.

Embondeiro 25 Nos últimos anos, sobretudo depois da guerra dos JUNOD, Henrique. A. (1974). Usos E Costumes 16 anos, a acção humana tem vindo a contribuir Bantu: A Vida Duma Tribo Do Sul Da África: A para a degradação do sítio, através do desrespei- to a todas as proibições secularmente construí- das à volta do Chimbutsu, devido, sobretudo, à Vida Social. Lourenço Marques: Imprensa Nacio- fraca transmissão dos mitos associados ao local nal de Moçambique, TOMO I, II. que deu origem ao topónimo Chibuto. LIESEGANG, Gerhard J. (1996). Ngungunhane: Bibliografia A figura de Ngungunhane Nqumayo, rei de Gaza 1884-1895 e o desaparecimento do seu Estado. AMÉRICO, Raúl (2001). Roteiro Histórico de Maputo: ARPAC. Gaza. Direcção Provincial da Cultura de Gaza. SERRA, Carls (org). (1999). História de Moçam- ARPAC, Monumentos e Locais Históricos: docu- bique. Maputo: Livraria Universitária, Vol. I. mentos da Campanha Nacional de Preservação e Valorização Cultural, 1980. SOUTO, Amélia Malta de Matos Pacheco Neves de (1994). Guia Bibliográfico para o Estudo da COVANE, Luís (2001). O Trabalho Migratório e História de Moçambique (200/300 – 1926/30). a agricultura no sul de Moçambique (1920-1922). Maputo: UEM. Maputo: Promédia. Fontes orais CRUZ, Daniel (1910). Em Terras de Gaza. Poro: Gazeta das Aldeias. Aurélio Sofa Chachuaio, 23/05/2012, Chibuto

FELICIANO, José Fialho (1998). Antropologia Bululuane José Machava, 17/05/2012, Chibuto Económica dos Thonga do sul de Moçambique. Maputo: Arquivo Histórico de Moçambique. Domingos Uaila, 18/05/2012, Chibuto JUNOD, H. (1974). Usos e Costumes dos Ban- Maria da Luz Gaza Massingue, 23/05/2012, Chibuto. tos: A vida duma tribo do Sul de África. Lourenço Marques: Imprensa Nacional de Moçambique, 2ª edição.

26 Embondeiro Nomadismo e seu Impacto na Província de Niassa: caso dos distritos de Marrupa, Mecula, Nipepe e Ngauma

Manuel Vene, Ibady Sande, Virgílio Pinto [email protected]; [email protected]; [email protected];

Resumo

O nomadismo e a mobilidade populacional são fenómenos que têm raízes históricas na Província de Niassa e na actualidade têm provocado constrangimentos de diversa ordem nos programas governamentais. Por este motivo, foi desenhado o presente estudo, com objectivo de compreender os factores que concorrem para o crescente nomadismo nas comunidades rurais. Para alcançar este objectivo, o estudo compreendeu três fases dis- tintas, nomeadamente: a primeira fase consistiu na revisão de literatura, a segunda pes- quisa etnográfica que decorreu entre Março de 2013 a Dezembro de 2014, onde foram aplicadas as entrevistas semi-estruturadas junto dos actores que tem maior vinculação ao fenómeno. Na terceira fase do estudo foi feita a análise, a interpretação e a discussão dos dados do campo à luz dos objectivos de pesquisa, da revisão da literatura e do quadro teórico. O estudo identificou como factores que concorrem para o nomadismo nestas comunidades, as seguintes: a crescente procura de terras férteis para o cultivo, conflitos entre as lideranças, conflito Homem-fauna bravia, conflito resultante da taxa de 20% de exploração de recursos florestais, pagamento de imposto e movimentos transfronteiriços.

Palavras-chave: nomadismo, comunidade, conflitos, poder.

Introdução

O nomadismo tem-se afigurado como um dos entre indígenas do cearense no Brasil, descreveu grandes problemas das comunidades rurais da Pro- nomadismo como sendo tendência inata e ansieda- víncia de Niassa, particularmente nas últimas duas de por independência, o costume de percorrer toda décadas. Os distritos de Marrupa, Mecula, Nipepe capitania sem pouso certo. e Ngauma têm apresentado fortes tendências para Enquanto Freitas, (2009), conceituou nomadismo a ocorrência dessas migrações internas, dando im- como uma prática milenar, em que o grupo se des- pressão de realização de movimento em fase, para loca de um território a outro, podendo, eventual- atingir um determinado lugar. Os dados recolhidos mente, migrar em circuitos cíclicos, levando con- dão conta de que o processo de movimentação das sigo a sua casa, família e objectos. populações tem conhecido tendências de recrudes- cimento para o interior. Para Magalhães (2015), segundo seus estudos fei- tos entre os pastores nas margens desérticas do Tradicionalmente, o nomadismo foi visto como Magreb, nomadismo, neste contexto, consiste na acção motivada pela necessidade da procura e re- mobilidade de toda população e de seus rebanhos, colha de alimentos, quando os recursos eram obti- em uma economia da qual a agricultura está prati- dos através da caça, da pesca e da recolha de ve- camente ausente. getais directamente da natureza, o que, juntamente com as modificações sazonais do clima, motivava Já para as comunidades em estudo, o nomadis- deslocações permanentes, impedindo os pratican- mo é a crescente movimentação de segmento tes de se fixarem, de forma permanente, num mes- de uma comunidade, com parte considerável mo lugar (Enciclopédia Luso-Brasileira). Meneses dos seus haveres, motivada por factores só- citado por Morais (2003), nos seus estudos feitos cios-culturais (busca de terras aráveis, confli-

Embondeiro 27 tos de lideranças, conflito homem-fauna bravia Modelo Migratórios Micro: Factores In- e movimentos transfronteiriços) e económicos dividuais (conflito resultante dos 20% de exploração de recursos florestais e faunísticos e pagamento de Baseia-se no modelo custo/benefício, descrito imposto), sendo a sua economia fortemente de- por Massey (1990), no retorno temporal espera- pendente da agricultura. do do ponto de vista individual, onde são leva- dos em conta os custos decorrentes da migração O interesse pelo tema deveu-se ao facto de se e os ganhos esperados na região de origem e do ter notado um abandono das infra-estruturas bá- destino, ambos ponderados pela renda esperada sicas sociais pelas populações a nível dos distri- e pela possibilidade de ser empregado em cada tos como escolas, unidades sanitárias, fontes de uma das regiões envolvidas no processo de de- água etc. Estes investimentos são empreendidos cisão. Sempre que o retorno esperado for posi- pelo governo com a perspectiva de melhorar tivo, o individuo irá optar em migrar, já que os a qualidade de vida das populações e garantir benefícios esperados no local do destino seriam o desenvolvimento local. Por isso, este estudo maior que na região de origem. privilegiou como objectivo geral, compreender os factores que contribuem para o surgimento O modelo micro se enquadra nos ditames da na- do nomadismo e especificamente, analisar os tureza de mobilidade populacional, pois, a deci- factores sócio-culturais e económicos que favo- são para migrar numa determinada comunidade recem a ocorrência do fenómeno e descrever o começa com uma única pessoa, normalmente, impacto na implementação do programa do go- o chefe de um agregado familiar quando entra verno. em desavença com um outro ou régulo da zona, quando existe acusação de feitiçaria, de forma Este é um trabalho de tipo explicativo e de ca- individual ou colectiva as pessoas preferem rácter exploratório que analisa o nomadismo, abandonar. Esta é uma situação que se regista reconstruídas a partir das narrativas das popu- em muitas comunidades com tendência de mo- lações que intervêm directamente com o fe- bilidade. O grande móbil para a realização desse nómeno. A realização de um estudo permitiu movimento tem a ver com a questão de ganhos apreender, em detalhes, os motivos e o contexto que a pessoa irá ter em face da efectivação do no qual o nomadismo se manifesta com maior movimento, isto é, a questão de custo/benefício. frequência. De forma complementar, a opção A respeito do modelo custo e benefício Mincer pela pesquisa exploratória permitiu identificar (1978), faz uma diferenciação entre os ganhos alguns aspectos referentes à origem, perfil só- familiares dos ganhos pessoais, e argumenta que cio-cultural dos actores envolvidos. as famílias têm a apresentar menor mobilidade Este trabalho discute alguns apectos relevantes que os indivíduos, já que a decisão de migrar para compreensão do nomadismo praticado nas passa a depender de um número maior de pes- comunidades de alguns distritos da Província de soas. Passa-se de uma decisão independente Niassa. Inicialmente, serão apresentadas, algu- para uma interdependente. mas das principais abordagens explicativas sobre Modelo de Decisão Intra Domiciliares: a migração e a metodologia usada. Em seguida far-se-á a apresentação dos resultados, conclusão factores colectivos e por fim algumas recomendações. Um ponto essencial do modelo intra domiciliar é que as decisões a respeito da migração não são Fundamentação Teórica tomadas por actores individuais, mas por grupo A vontade de partir e encontrar outros lugares de pessoas, normalmente famílias ou domicílios para fixar nova residência pode ser explicada que agem colectivamente para maximizar a ren- através de duas teorias de modelo migratório: da esperada, minimizar os riscos e superar as micro e macro. dificuldades associadas às imperfeições do mer- cado (Muniz, 2006).

28 Embondeiro O modelo de decisão intra domiciliar se enqua- onde estão inseridas as populações. Como advoga dra perfeitamente na natureza de mobilidade das Maffesoli (1997), o nomadismo actual não é de- comunidades em estudo, pois, existe um consen- terminado unicamente por necessidades econó- timento por parte da comunidade em abandonar micas ou pela mera funcionalidade, mas sim, por uma determinada região de forma colectiva. O um verdadeiro desejo de evadir-se, uma espécie de assunto é colocado em discussão no seio do agre- “pulsão migratória” incitando o indivíduo a mudar gado e quando todos os intervenientes concordam de lugar, de hábitos, de parceiros, para realizar as com a justeza da decisão de migrar, engendram múltiplas facetas de sua personalidade. uma marcha conjunta em busca de novos espaços. Metodologia e Técnicas Normalmente, após a decisão de partida, as estru- turas do agregado familiar, organizam uma equipa O estudo foi realizado em três fases. Na primeira de pessoas para fazer a identificação da área onde fase foi feita a revisão da literatura, algumas vezes irão se fixar. Em regra, o grupo mobilizado é cons- com recurso às bibliotecas virtuais (internet), onde tituído por homens, estes por sua vez, identificam foram pesquisados materiais sobre mobilidade po- o lugar, de seguida é enviada uma equipa para pulacional, migração e questões de nomadismo em desbravar a mata para começar com a construção várias perspectivas. das casas. O não envolvimento das mulheres nesse processo tem a ver com a questão da distância que Na segunda fase, pesquisa etnográfica em 26 po- se percorre para fazer a identificação e reconheci- voados, sendo 7 (sete) no distrito de Ngauma: Me- mento, pois é um processo que pode acarretar mui- cava, Chicoua, Massangano, Massacatila, Chunga; to tempo. De acordo com Muniz (2006), a maioria Chissimbir-Sede e Chamba. 6 (seis) povoados no de migrantes, sobretudo as mulheres, tenderiam a distrito de Nipepe: Uachilo I e II, Mpuhua, Kari- fazer movimentos de curta distância, enquanto os ra, Mutumar e N´nveriua. No distrito de Marru- movimentos de longa distância são representados pa, em 7 (sete) povoados: Lussenguesse, Mitoto, pelos homens. Malema, Chituculo, Nacapa, Nagir e Changaussa; Em Mecula, o estudo realizou-se em 6 povoados: Abordagem Macro e histórico-estrutural Mpamanda, Lipeleche, Nalama, Ansanja, Musso- da Migração ma e Nahavara. A pesquisa decorreu entre Março de 2013 a Dezembro de 2014. No campo, foram De acordo com abordagem histórico-estrutural estabelecidos contactos com alguns funcionários, proposta em modelo macro, a migração seria uma chefes dos Postos Administrativos e com os secre- decorrência de desigualdades económicas entre tários dos povoados. Com estes se elaborou o pla- as regiões. Segundo este modelo, as áreas mais no de contacto aos participantes do estudo e reco- prósperas tenderiam a atrair os migrantes das lheu-se dados referentes aos locais onde se verifica áreas onde houvesse recessão económica. Tendo maior índice de nomadismo. em consideração o objecto de estudo do presente trabalho, as comunidades rurais, onde prevalece o Assim, também foram inclusas no estudo algumas sistema de economia agrária, os movimentos mi- autoridades tradicionais e agentes que intervém gratórios tendem a ocorrer das zonas consideradas directamente no fenómeno nomadismo. Seguiu- menos férteis para as mais férteis, isto é, nas mar- se a fase de recolha de dados, que foi feita com gens dos rios e nas encostas das montanhas. recurso a observação directa, onde se estabeleceu As abordagens dos processos migratórios apresen- alguns contactos com alguns informantes chaves tadas anteriormente, estão carregadas de aspectos como alguns régulos e outros chefes locais, depois económicos, de acordo com os contextos em que fez-se as entrevistas semi-estruturadas e conversas os estudos foram realizados. informais. Deste modo, as entrevistas com régulos, chefes linhageiros os asyene mbumba ajudaram a Mas na análise das deslocações da população é ne- compreender os aspectos sócio-culturais que im- cessário tomar em consideração os aspectos, não pulsionam os movimentos populacionais. apenas económicos, mas também o contexto social

Embondeiro 29 Para além das entrevistas, foram observados no Anteriormente vivíamos em Camuana, a partir de 2002 campo algumas escolas, unidade sanitária e esco- passamos a viver aqui em Mpuhua devido a problemas de las abandonadas. Essa observação foi feita com colheitas. A produção era pouca, por isso, não víamos os resultados dos trabalhos de cultivos que desenvolvíamos auxílio de alguns instrumentos como as máquinas na zona, aqui onde nos encontramos produzimos muito fotográficas. De um modo geral, a pesquisa- per milho, algodão, Amendoim, Mexoeira, Feijões, Mandio- mitiu recolher dados referentes aos objectivos do ca, etc. A nossa fonte de sobrevivência é agricultura.1 presente estudo. Conflito de Poder nos grupos linhageiros Na terceira fase do estudo foi feita análise e inter- pretação dos dados do campo à luz dos objectivos As comunidades matrilineares até na actualidade de pesquisa, da revisão da literatura e do quadro ainda conservam o sistema de organização político teórico. Analisou-se os factores internos e externos e social herdado dos seus antepassados. No âm- que concorrem para a crescente movimentação da bito político continua-se a verificar uma forte in- população e o perfil dos actores. fluência da autoridade tradicional personificada na pessoa do mwené. A essa entidade lhe é conferida Apresentação dos Resultados a propriedade da terra e o responsável pela resolu- Na análise das deslocações da população é ne- ção de conflitos, protecção espiritual do território, cessário tomar em consideração os aspectos, não orientação de cerimónias tradicionais e outros ri- apenas económicos, como as teorias anteriormen- tuais, auxiliado por pequenos chefes dos agrega- te afloraram, mas também o contexto social onde dos familiares, asyene mbumba ou puatapuata. estão inseridas as populações. Assim sendo, de As disputas internas nos povoados têm começado maneira a entender melhor esse fenómeno foram quando um determinado chefe de família (asye- combinados esses dois elementos que nos levam a chegar próximo das motivações dos movimentos ne mbumba ou puatapuata) tem maior número de populacionais. Desta feita foram identificadas as agregado familiar e com muita influência em rela- seguintes: ção ao régulo. Estes sentem-se inferiorizados em relação aos líderes comunitários legalmente insti- Busca de Terras Aráveis tuídos e reconhecidos pelo governo, a luz do de- A busca de terras aráveis tem sido apontada mui- creto n˚ 35/2012, que prevê o uso de fardamentos tas vezes como a causa da crescente mobilidade e distintivos próprios, ostentar os símbolos da Re- populacional. Este tem sido o maior argumento pública e receber subsídios legalmente previstos. apresentado pela população, mas tendo em consi- deração o tempo de permanência em novos assen- Refira-se que nas comunidades matrilinear quanto tamentos, este argumento não é consistente. Pese maior o número de famílias, maior é o poder do embora, tratar-se de comunidades camponesas, chefe tradicional, facto que tem estado na génese fortemente dependentes das condições climáticas de muitas contendas ao nível de organização so- oferecidas pela natureza, por esse motivo, quan- cial das comunidades matrilineares. Os chefes de do a produtividade da terra não corresponde a famílias são os vetores de comunicação e muito expectativa da população, ela reúne-se e decide influentes dentro da estrutura social. Essa camada encontrar outros locais onde pode obter novas ter- de liderança tradicional sente-se frustrada quando ras com condições necessárias para a prática da não pode beneficiar dos subsídios. agricultura. Geralmente, essa situação tem desembocado em pro- Durante as nossas actividades de recolha de da- blemas e conflitos de diversa ordem, exteriorizado por dos, muitas foram as respostas que tendiam para a desentendimentos entre os líderes, seguido de acusa- busca de terras aráveis como a causa principal do ção mútua de feitiçarias entre as partes envolvidas e nomadismo. A esse respeito, Alberto Sabite pro- finalmente abandono de uma zona para outra. nunciou-se nos seguintes termos: 1 Alberto Sabite, entrevista de 09/07/2015, Mpuhua, Nipepe.

30 Embondeiro Esse caso verifica-se em Uachilo, Distrito de Ni- O caso do abandono da escola de Lipeleche, Con- pepe onde parte considerável da população migrou tande Lande, do mesmo povoado, explicou nos se- para outras áreas. Conforme afirma o nosso infor- guintes moldes: mante Rachide Mamo: Começamos a viver aqui desde 1999, devido à procura Existe nomadismo aqui em Uachilo, devido a existência de terras férteis. Mas quando terminou a construção da de falta de coordenação dos líderes tradicionais, razão Escola Primária de Lipeleche, as pessoas começaram a pela qual as pessoas levam a sua população e vão viver abandonar a zona porque não queriam que a mesma fosse noutras partes. Muitos têm justificado que o nomadismo construída próximo da casa do régulo, alegando que não é causado pela busca de novas terras, não é verdade, eu havia muitas pessoas. Os promotores do abandono foram não concordo. Para mim, o problema é a falta de orga- os homens que vieram casar aqui.5 nização do Mwené porque ele tem autoridade para unir toda agente e discutir a maneira como podemos ficar to- A localização da escola constituiu um autêntico dos juntos.2 campo de batalha entre as lideranças tradicionais. Todos queriam que a escola se implantasse pró- Ainda no que tange ao conflito de poder, notamos xima do povoado onde existia maior número de que a disputa de cargos de natureza religiosa cons- pessoas, assim, vendo gorada a pretensão, prefe- titui também uma das causas que têm estado no riram abandonar o local para se fixar noutro. Essa centro da movimentação da população em Uachi- situação remente-nos a reflectir sobre a questão de lo, a título de exemplo, Francisco Chico argumen- localização das infra-estruturas construídas pelo tou o seguinte: Estado, precisamente sobre a cautela necessária Aqui em Uachilo todos são da religião muçulmana e lutam para que a infra-estrutura não seja motivo de de- para único fim de alcançar a felicidade eterna. Os que estudam sentendimento na comunidade, mas que seja en- alcorão em Tanzânia ascende a categoria de chehé, no seu re- carrada como um bem da comunidade e símbolo gresso não encontram espaço para exercer o seu poder dentro da fraternidade entre os agrupamentos familiares. da comunidade, causando disputas internas. Desta forma, sen- tindo-se inferiorizados acabam levando a sua população para Conflito Homem-Fauna Bravia uma outra região onde possam fundar a sua própria mesquita.3 O conflito resultante da disputa de espaço entre as A mesma situação encontra-se em Mecula, no comunidades e os animais bravios também é uma povoado de Lipeleche, onde as disputas também das causas da mobilidade populacional. Esse pro- acabaram por deixar uma escola sem uso. Este blema identificou-se em Nipepe, na comunidade problema foi explicado por Lopes Alimo nos se- de Uachilo II, onde uma parte da população que guintes termos: residia na entrada do bairro decidiu abandonar para Cajueiro (onde antigamente viviam) devido A origem desse conflito em Lipeleche deriva do facto de ao problema de conflito homem-fauna bravia. De cada povoado ter um chefe, e cada um desses alega que acordo com Guilherme Anubi, a movimentação as infra-estruturas (Escola) que o governo ergue para o da população deveu-se ao seguinte: benefício dos mesmos, devem estar dentro da sua área de jurisdição. E quando queremos construir uma escola, A população alegava que a zona onde se localizava a sua nesse sentido, teríamos de fazê-lo em todos os povoados, povoação era corredor dos elefantes e, por causa disso, não havia segurança. E voltando para antiga zona esta- essa situação é improcedente para o Estado. Então, quan- riam livres das incursões dos paquidermes porque em do colocamos uma escola próxima de um povoado, os tempos anteriores viveram na zona e teriam melhores chefes de outros povoados ficam descontentes, alegando condições em relação ao último local onde viviam.6 que a escola devia ser construída próximo do seu povoa- do porque tem maior número de crianças. Este facto pro- Iazalte das Neves Adamig Ussene debruçando-se vocou o abandono da população em Lipeleche.4 sobre a questão de conflito homem-fauna bravia teceu o seguinte: 2 Rachide Mamo, entrevista de 08/07/2015, Uachilo, Nipepe. 5 Contande Lande (Induna do Povo), entrevista de 21/05/15, 3 Francisco Chico, entrevista de 08/07/2015, Uachilo, Nipepe. Lipeleche, Nipepe. 4 Lopes Alimo, Director do Serviço Distrital da Educação, Ju- 6 Guilherme Anubi, entrevista de 08.07.15, Uachilo II, ventude e Tecnologia, entrevista de 17/09/2015, Mecula Sede. Distrito de Nipepe.

Embondeiro 31 A comunidade muitas das vezes justifica que abandonam No entanto, a sensação do bem-estar longe das por causa dos elefantes, mas a mesma vai se instalar nos autoridades governamentais e o espírito de liber- locais de passagem dos animais, nas encostas das monta- nhas, as casas ficam separadas uma da outra cerca de 500 dade tem, às vezes, estado por detrás de pequena metros. Nós na qualidade do Governo temos sensibiliza- movimentação da população. Normalmente, o mo- dos a população para construir casas umas próximas das vimento tem sido dentro da própria área de juris- outras e abrir machambas em blocos.7 dição, se movendo para as baixas dos rios ou para as encostas das montanhas. Neste caso, os ganhos Muitas das vezes, a questão de conflito homem- fauna bravia tem sido usada pelas comunidades é que determinam o movimento migratório como para justificar o abandono de uma zona para outra. advoga o modelo migratório micro. Observando a natureza das deslocações da popu- lação nas comunidades em estudo, verifica-se que Conflito resultante da taxa de 20% de ex- muitos dos movimentos efectuados, tem como zo- ploração de recursos florestais e faunísti- nas preferenciais as encostas das montanhas, nas cos baixas dos rios e planícies. A caça furtiva tem sido um outro elemento que se associa aos movimentos A Lei de Florestas e Fauna Bravia de 1999, no nú- populacionais, visto que ficam longe da influência mero 5 do artigo 35 e o seu Regulamento no nú- do controlo do governo. mero 1 do artigo 102 prevê a entrega de compensa- ção às comunidades abrangidas pela utilização dos Pagamento de Imposto recursos florestais e faunísticos, bem como pelo exercício de turísmo contemplativo nos Parques e O pagamento de imposto pessoal é uma das ques- Reservas Nacionais, cujos critérios de entrega es- tões que tem aparecido quando se fala do fenóme- tão fixados no Diploma Ministerial sobre o meca- no do nomadismo. Em algumas comunidades, a nismo de canalização dos 20%. cultura de pagamento de impostos ainda constitui um desafio. A exigência do pagamento tem sido À luz dos dispositivos mencionados, algumas vista pela população como uma imposição e mo- tivo de contenda entre a mesma e as autoridades comunidades em estudo têm direito de receber governamentais. essas compensações como é o caso de Lipeleche, Ansaja e Nahavara em Mecula e em Nipepe na co- Em muitos dos casos, o problema resultante des- munidade de Mutumar. Pese embora, os critérios ses conflitos tem sido personificado na pessoa do de entrega do valor estejam fortemente legislados, chefe do Posto, da Localidade e Secretários. E de o processo de atribuição tem sido causa de muito maneira a se livrarem da necessidade do paga- descontentamento por parte de algumas comuni- mento, a população preferi abandonar para outros dades devido à falta de explicação clara sobre os lugares e depois justifica o movimento como sen- do motivado pela procura de terras férteis. Esse procedimentos de entrega. problema verifica-se em Marrupa, nos povoados O valor é atribuído à comunidade através de Co- de Messenguese e em algumas comunidades do mités de Gestão dos Recursos Naturais (CGRN) Posto Administrativo de Nungo. Dessa forma, as eleito “democraticamente” entre os membros da pessoas se sentem livres da influência do Estado. A esse respeito, Francisco Ferrão afirmou o se- comunidade. O comitê tem a tarefa de defender os guinte: interesses da comunidade e ser intermediário no triângulo constituído entre a comunidade, opera- Propositadamente, tenho feito visitas de forma informal às populações deste Posto. Durante as mesmas tenho dores florestais ou faunísticos e o Governo. questionado sobre as motivações do abandono, elas di- zem, às vezes, que gostam de estar ai porque estão longe A entrega em norma deve ser feita numa cerimónia do governo, podem caçar sem problemas, produzir outras pública, onde participam os membros da comuni- culturas sem nenhum impedimento e ficam isentos de pa- dade beneficiária, autoridades tradicionais, Mem- gar impostos.8 bros do Governo e a Sociedade Civil. E a utiliza- 7 Iazalte das Neves Adamig Ussene, entrevista de 10.03.2015, ção do mesmo deve ser de consenso para todos os Vila Municipal de Marrupa. 8 Francisco Ferrão, Chefe do Posto Administrativo de Nun- go, entrevista de 11/03/15, Nungo, Distrito de Marrupa.

32 Embondeiro membros da comunidade, em regra deve ser feito Nota-se uma certa revolta por parte da população um investimento que pode beneficiar toda a comu- no que tange ao uso dos respectivos valores, pois nidade, sendo que a principal prioridade é a identifi- sente-se injustiçada pelas lideranças tradicionais. cação conjunta de uma necessidade para ser suprida. Esse assunto tem-se associado a muitos outros e concorrem para o abandono da população de uma No caso do Distrito de Mecula existem 4 CGRN: zona para outra. Mussoma, Matondovela, Mecula-Sede e Naulala. Esses comités englobam muitos povoados dentro Movimento Transfronteiriço da sua área de jurisdição, razão pela qual o envol- vimento da maior parte da comunidade em proces- A ocorrência desse movimento verifica-se em dois sos de discussão sobre a utilização dos valores é distritos abrangidos pelo estudo, concretamente diminuta. Geralmente, fazem parte dos comités os Mecula e Ngauma. Esses distritos fazem fronteira líderes tradicionais e a informação das compensa- com os dois países vizinhos, Ngauma com Malawi ções não flui para todos os membros. A informação e Mecula com a Tanzânia. Em ambos distritos te- da recepção da compensação tem chegado as pes- mos um denominador comum, uma grande vaga soas e, por isso, tem sido foco de desentendimento popular que recorrem aos dois países vizinhos em entre a comunidade e os líderes tradicionais. A tí- busca de lugar seguro durante a Guerra Civil. Ac- tulo de exemplo, regista-se na comunidade de Li- tualmente, uma grande comunidade permanece peleche, onde a população acabou por abandonar a ainda nos países vizinhos, precisamente nas zonas zona. De acordo com Mário Saíde, o problema das fronteiriças. Esta situação tem contribuído para pessoas com o régulo é o seguinte: que se realizem, de forma reiterada, movimentos nos dois sentidos dependendo da época do ano. A cada dia que passava as pessoas falavam mal do meu pai. Quando se adquiria algum bem para casa, A título de exemplo, no distrito de Ngauma, os as pessoas vinham buscar e diziam que era resul- movimentos transfronteiriços são bastante conhe- tado do dinheiro deles. Tudo isso, porque o nome cidos e praticados pela população, principalmente, que está no cadastro do distrito é do régulo, meu aquela que reside nas zonas fronteiriças da loca- pai, por isso, quando há coisas vem parar aqui. É lidade de Chissimbir. Esses movimentos são rea- por causa disso também que as pessoas invejavam lizados por pessoas de ambos lados, isto é, Mo- o meu pai.9 çambicanas e Malawianas. Recentemente, houve um grande movimento de pessoas do povoado de O assunto dos valores de compensação também foi Cambuzi para o vizinho Malawi. abordado por Juriasse Tanguane, Director da Esco- la Primária de Nahavara: Discussão e Análise dos Resultados Aqui há um dinheiro que a comunidade tem direito em função das taxas de exploração das potencialidades fau- As reflexões teóricas em torno do nomadismo per- nísticas que são 20% que a reserva entrega à comunidade. mitem compreender a maneira através da qual os O dinheiro é dado ao Régulo. Antes o povo estava tapado, quem sabia desse valor era o líder, o líder recebia e não indivíduos interpretam o fenómeno como parte dava informação. Hoje como não há segredo, os donos integrante da realidade social com vista a com- dão esse dinheiro na presença da comunidade, é quando preender a dinâmica da mobilidade de indivíduos e esse dinheiro começa a arranjar problemas. Algumas pes- soas quando ouviram que havia dinheiro que se distribui, comunidades. Quando falamos de nomadismo nos começaram a abandonar a zona. Aqui vive-se entre fami- contextos observados, verificamos que as pessoas liares, ou seja entre primos. Quando há conflitos cada um leva sobrinhos dele e filhos e vão para outro lugar. Aqui que decidem partir de um lugar para o outro, não apenas está o Mwené. Na saída, normalmente, eles usam saem por si só, eles levam consigo seus bens e suas uma política de que aqui há problemas de animais, por famílias. isso capinar não dá nada, e, por isso, sai uma família10 11 inteira para outras zonas. Para este estudo usamos abordagem de Hillesheim 9 Mário Saíde, entrevista de 21/05/2015, Lipeleche, Mecula. & Bernardes (2014), deste modo, ambos autores 10 No sentido de um agrupamento composto por pais, filhos, afirmam que o nomadismo constitui outros modos filhas, genro, nora, netos, sobrinhos. 11 Juriasse Tanguane, entrevista de 22/05/2015, Mecula. de território, ou seja, a relação com o território dá-

Embondeiro 33 se mediante coordenadas que não são fixas, regula- os meios à disposição do estado e actividades pri- res e permanentes. No entanto, os autores afiguram vadas, para a realização de objectivos socialmente que os nómadas assumem novos modos de viver, relevantes e politicamente determinados (Oliveira, novos modos de subjectivação, ou seja, de dester- 2006). No entanto, percebe-se que há ruptura entre ritorialização, por exemplo: quando nas aldeias as formas de sociabilidade rural com a cultura po- não é possível encontrar recursos para a sobrevi- lítica dominante, uma vez que há má interpretação vência, dada a extensão do território geográfico, essas comunidades circulam em outros espaços. por parte da comunidade. Desse modo, a relação com o território se constitui Ainda neste quadro de análise, constatamos que nos pelo tempo do trabalho e da necessidade. primeiros momentos, as condições de vida da popu- Esta ordem de ideias, trazidas por Hillesheim & lação errante são bastante deploráveis, as constru- Bernardes, mostra-nos, claramente, que o noma- ções são feitas de material bastante precário, falta dismo nesse contexto também está associado à de latrinas, fontes de água, havendo escassez de um escassez de recursos, uma vez que os indivíduos pouco de tudo. Ao olho nú, pode-se dizer que essas residentes nestes locais, na sua maioria, são pra- comunidades são desfavorecidas devido a carac- ticantes da actividade agrícola e dependentes das terística de vida errante escolhida. Mas elas estão condições climáticas oferecidas pela natureza, por esse motivo, quando a produtividade da terra não dentro do seu modo de vida, por isso, consideram corresponde a expectativa da população, ela des- ser normal porque sempre assim viveram. loca-se para outros locais onde podem obter novas Conclusão terras com condições necessárias para a prática da agricultura. Como mostra o depoimento abaixo: As conclusões aqui avançadas não são acabadas. O processo de saída de Namipaua para Karira houve uma Contudo, elas podem constituir ponto de partida sentada em que se decidiu abandonar a anterior zona para para novos estudos do género, tendo em conta que, vir estar aqui. A reunião onde foi apresentada a ideia de o estudo do impacto da mobilidade populacional sair foi dirigida pela rainha da zona, que também está a das comunidades rurais, não será possível esgotar viver aqui em Karira. Na reunião participou toda a gente, o seu estudo em todos os aspectos e domínios num mulheres, crianças, jovem e os homens. Nessa reunião trabalho como este. foi apresentada a ideia de que a zona já não está a pro- duzir o suficiente para as necessidades da população e Nesta ordem de ideia, o estudo analisa o nomadis- que a ideia dos líderes era sair para outro local, onde a mo, concretamente por este fenómeno trazer gran- população já começou a fazer machambas e, desta forma de impacto económico para os cofres do Estado. 12 ficariam próxima das zonas de produção. Naturalmente, a atitude das comunidades nómadas Das informações obtidas pelo grupo e partindo das em abandonar uma determinada zona e consequen- abordagens de Hillesheim & Bernardes, constata- temente as infra-estruturas sociais tem deixado as mos que este fenómeno apresenta-se como “No- autoridades governamentais apreensivas e preocu- madismo Fundador de Novo Povoado”, uma vez padas sobre as causas do movimento. que, o desejo de encontrar outros locais para a prá- tica de agricultura automaticamente estabelece-se Contudo, este estudo identificou que a busca de ter- residências fixas ou temporárias e consequente- ras férteis tem sido uma das causas que ocasiona as mente verifica-se a criação de um novo povoado mudanças constantes da população, uma vez que a com uma nova estrutura social de organização. existência de grande extensão de terras aráveis e da necessidade de mudança das terras de cultivo, No que diz respeito aos conflitos resultantes do pa- gamento de imposto e taxa de 20% de exploração provoca a movimentação constante das comunida- de recursos florestais e faunísticos, essas políticas des devido à falta de concorrência de espaço, uma públicas têm estado na génese de muitos confli- vez que estes residem nas regiões onde há maior tos intra e extra comunitários, e consequentemen- porção de terras aráveis e elas tem a liberdade de te origina a mobilidade de grupos de indivíduos. escolher qualquer espaço para produção; O confli- Política pública pode-se compreender como pro- to homem-fauna bravia concorre para o abandono grama de acção governamental visando coordenar de um povoado para outro, no entanto, dentro da comunidade existem mecanismo para afugentar os 12 Adelino Amândio, entrevista de 09/07/15, Karira, Nipepe.

34 Embondeiro animais e quando a situação é complicada as auto- JACOBI, Pedro R. Políticas sociais locais e os desafios ridades locais pedem auxílio ao governo do distrito da participação citadina. Ciência & saúde colectiva, que mobiliza caçadores para abater animais pro- v. 7, n. 3, 2002. p. 443-454. blemáticos. A clivagem entre os líderes tradicio- nais e comunitários também é um factor de movi- HILLESHEIM, Betina; CRUZ, Lilian Rodrigues. mentação das comunidades duma zona para outra. “Não sei estudar parada”: inclusão escolar e noma- dismo. Revista Polis e Psique, v. 1, n. 1, p. 80. Bibliografia HILLESHEIM, Betina; BERNARDES, Anita Guazzel- ALMEIDA, João Pereira (1995). Investigação em li. (2014). Território e nomadismo: a saúde em ques- Ciências Sociais. Lisboa: Editorial Presença. tão. Arquivos Brasileiros de Psicologia, v. 66, n. 3, p. 47-58. ARTUR, Domingos at al. (1999). Tradição e Moderni- dade: que lugar para a Tradição Africana na Governa- MAFFESOLI, M. (1997). Du nomadisme. Paris: Livre ção descentralizada de Moçambique? Projecto de Des- de poche. centralização e Democratização. Maputo: Direcção da Administração local. MAHER, T. M. (2001). Sendo Índio em Português. In: SIGNORINI, I. Língua (gem) e Identidade. Campinas: ARAÚJO at al. (2004). (Orgs.). Cenário do Trabalho: Mercado das Letras. subjectividade, movimento e enigma. Rio de Janeiro: DP& A. MAGALHÃES, Júlio César. Nómadas e Sedentários, Pastores e Agricultores na África do Norte Antiga: Das BOUZAR, W. (2001). Saisons Nomads. Paris: L’Har- perspetivas colonial e independentista à Arqueologia mattam. Contemporânea. Revista de Estudos Filosóficos e His- tóricos da Antiguidade, n. 28. DE FREITAS, Maria Ester. (2009). A Mobilidade Como Novo Capital Simbólico nas Organizações ou Sejamos Morais, V. L. (2003). Representação do Migran- Nómadas? Organizações & Sociedade, v. 16, n. 49. te: o cearense e a questão do nomadismo no século XIX. Projecto História. Revista do Programa de Es- CARVALHO, Isabel Cristina de Moura & TONOIL, tudos Pós-Graduados de História. e-ISSN 2176-2767; Rodrigo. “Ambientalização, cultura e educação: diálo- ISSN 0102-4442, 27. gos, traduções e inteligibilidades possíveis desde um estudo antropológico da educação ambiental.” In: Re- OLIVEIRA, Reis Fernandes de. Curso de Direito Fi- vista Electrônica do Mestrado em Educação Ambien- nanceiro. São Paulo: RT, 2006, p. 251. tal 1 (2010): 28-39. QUIVY, Raymond; CAMPENHOUDT, Luc Van. DE MEDEIROS, Jéssica Cunha; BATISTA, Mércia (1998). Manual de Investigação em Ciências Sociais. Rejane Rangel (2015). “Nomadismo e Diáspora: suges- Lisboa: Gradiva Publicações. tões para se estudar os ciganos.” In: Revista ANTHRO- POLÓGICAS, v. 26, n. 1. SAHLINS, Marshall D. (1974). Sociedades Tribais. 3ª ed. Rio de Janeiro: Zahar Editores, DANTAS, Grabriela Cabaral da Silva. Nomadismo. In: www.meusartigo.brasilescola.com REBELLATO, Kátia Iusca Padilha. (2007). “Nomadis- mo voluntário entre técnicos bancários: um olhar sobre FISCHER, G. N. (1997). A Dinâmica Social: Violência, prazer e sofrimento psíquico no trabalho bancário.” Poder, Mudança. Lisboa: Planeta Editora/ISPA, RODRIGUÊS, Arlete Manuela Brites de Oliveira FAZITO, Dimitri. (2006). “A identidade cigana e o (2011). Nomadismo no Mundo Actual: mobilidade de efeito de ‘nomeação’: deslocamento das representações migrante e identidades culturais. Lisboa: Universidade numa teia de discursos mitológico-científicos e práticas de Lisboa. sociais”. Ver. Antropol., 49 (2): 689-729. (http://dx.doi. org/10.1590/S0034-77012006000200007; acesso em RODRIGUÊS, Miguel Urbano (2014). Nómadas e 02 de Junho de 2016). Sedentários na Ásia Central: continuidade e descon- tinuidade no processo civilizatório. Lisboa: Lápis de FERNADEZ, B. (2002). Identité Nômade. Paris: An- Memórias. thropos.

Embondeiro 35 A Veneração aos Espíritos Makombe: uma marca das comemorações da Revolta do Báruè. Killian Dzinduwa [email protected]

Resumo

As comemorações da Revolta do Báruè contra a penetração colonial sempre foram acompanha- das de uma veneração que procura invocar os espíritos makombe para abençoar o quotidiano dos barkes. Este artigo foi motivado pela falta de registo dos procedimentos rituais da referida cerimónia e tem enquadramento no Plano Estratégico da Cultura de Moçambique (2012-2022) ao priorizar a inventariação do património cultural imaterial dos povos moçambicanos. O documento, para além de expor ao público os passos da cerimónia, também analisa a ligação entre os espíritos dos antepassados e o mundo visível não só no distrito de Báruè, como também em alguns casos particulares do continente africano.

Palavras-chave: Antepassados, veneração e cerimónia

Introdução O papel dos makombe na luta contra a penetração Catandica, distrito de Báruè. Na madrugada do dia colonial no centro de Moçambique, particular- da cerimónia, os pesquisadores do ARPAC estive- mente, na região norte da província de Manica ram presentes para observar o decurso da mesma, tem merecido um reconhecimento especial das tendo registado os procedimentos e as dúvidas. estruturas tradicionais e governamentais. A 28 de Após a cerimónia, foram conduzidas entrevis- Março de cada ano, o distrito de Báruè comemora tas semi-estruturadas aos régulos das povoações o aniversário da Revolta do Báruè ocorrida em M’panze, Seguma, Sanhantunzi e Sabão, primeira- 1917. Em todas estas comemorações, a veneração mente de forma individual e depois colectivamen- aos espíritos makombe tem merecido grande des- te. Para além dos procedimentos cerimoniais, as taque. No 99˚ aniversário da Revolta de Báruè, o entrevistas acautelaram as inquietações registadas ARPAC – Instituto de Investigação Sócio-Cultu- durante a observação da cerimónia. ral, Delegação de Manica acompanhou a realiza- ção desta cerimónia, e por meio disso, registou os Importa referenciar algumas obras que retratam a procedimentos rituais que se passa a apresentar conexão entre os antepassados que foram consul- tadas na biblioteca do ARPAC para enriquecer a no presente artigo. compilação do presente artigo. Considerações metodológicas A influência dos antepassados no quotidiano dos barkes ‘A veneração aos espíritos makombe: uma mar- ca das comemorações da Revolta de Báruè’ é um Em grande parte do continente africano, o mun- produto de uma pesquisa rápida feita durante a do invisível representa um conjunto de forças que realização do 99º aniversário da Revolta do Báruè escrevem a cada momento uma influência sobre a no dia 28 de Março de 2016 no Município de vida de pessoas ocupantes do mundo visível. Por-

36 Embondeiro tanto, as preocupações do quotidiano são polariza- Chimurenga ou guerra de libertação na Rodésia (ac- das por antepassados. Estes seres, com efeito, têm tual Zimbabwe) são exemplos típicos deste uso de o poder sobre as forças benéficas e maléficas das médiuns espirituais para enfrentar o colonizador. sociedades. Delas depende a fertilidade dos solos, a fecundidade das famílias, a doença e sua cura, a Contextualizando os barkes, os espíritos dos mor- boa ou má sorte e mesmo a própria morte. tos (localmente designado por midzimu) desempe- nham um papel importante no contexto religioso. Antes porém, talvez seja crucial perceber que o Aos midzimu devem-se, em determinados momen- universo mágico ou sagrado é constituído e ma- tos, dar oferendas através de rituais para que eles nipulado pela parte religiosa do homem. É este não venham causar mal entre os seus descendentes. homem que julga os símbolos serem sobrenatu- A insatisfação desses midzimu é uma das explica- rais ou sagrados. Essa crença, segundo Rivière ções mais frequentes para as doenças que assolam (1995:140), não toma por objecto aquilo que ou- as comunidades. tras pessoas julgam ser irracional, mas por uma racionalidade subjacente à elaboração de narrati- Para acautelar as maldades que os midzimu podem vas figuradas ou mitos, estruturalmente definidos provocar aos barkes, vários ritos e rituais têm sido por uma determinada comunidade. Entretanto, é realizados para garantir a protecção espiritual dos 1 importante realçar que a religião e as crenças, em descendentes makombe . É notável em todas as par- particular, como aponta Geertz citado em Rivière tes do território dos makombe a realização de ritos (1995), fazem parte de um sistema de símbolos de nascimento, casamento, morte e até de chuva. que actuam de forma a suscitar nos homens mo- Origem e transformações da cerimónia tradi- tivações e disposições poderosas, profundas e du- cional da Revolta do Báruè radoiras, assim formulando concepções de ordem geral sobre a existência e dando a estas concepções A prática de adoração dos espíritos makombe é antiga uma aparência de realidade. e acredita-se ter surgido com a instalação desta dinastia no território de Báruè. As lutas de resistência contra o Tindall (1968) afirma que as ideias religiosas afri- colonialismo eram facilitadas pelos espíritos. As fontes canas sempre levaram a uma insistência em rituais orais apontam que as lutas de makombe contra a pene- para aplacar os espíritos. Houve cerimónias elabo- tração colonial sempre foram mediadas pelo espírito radas em conexão com o ciclo agrícola e em tem- que se manifestava no senhor Kabudu Kagoro2. pos de crise tribal, seja pela seca, doença, adesão de um novo chefe ou ataques de inimigos. Com o término das lutas de resistência, o povo Perante as guerras, os africanos sempre recorreram barke não parou de pedir protecção aos midzimu aos espíritos para deles receber orientações e inspi- através dos mhondoro (espíritos de leão) e na co- ração. Beidelman (1982) revela que, em suas lutas memoração dos aniversários da Revolta do Báruè, contra o domínio colonial, as sociedades africanas é notável a prestação de homenagem aos midzimu. recorreram a diferentes médiuns espíritas para pe- O intervalo temporal entre o término da Revolta dir protecção e inspiração. Cultos secretos, orácu- 1 Makombe refere-se aos Reis do território Barke los, deuses e deusas, feitiços, disfarces, santuários, 2 Kabudu Kagoro é o espírito que Rosário (1996) no seu divindades, talismãs e amuletos desempenharam estudo sobre subsídios à reconstituição da personalidade todos eles um grande papel na luta de libertação Makombe referiu, ao citar o depoimento do Senhor Jaime e revoltas inspiradas em todo o continente. Estes Paulino Makosa entrevistado no dia 19 de Janeiro de 1996, afirmando que: Kabudo Kagoro era o nome atribuído a um meios, em muitos casos, fizeram com que os afri- chefe espiritual ou médium que veio residir em Mungari, a canos se sentissem invencíveis e poderosos peran- norte do Distrito de Guro. Este Kabudo Kagoro era porta- te os instrumentos de morte usados pelo ‘homem dor do espírito Mhondoro que servia de intermediário entre branco’ - a arma, que tinha sido utilizada para Makombe e os espíritos, previa e comunicava a Makombe subjugar o homem negro. A revolta Maji Maji na sobre ameaças ou aproximação de uma calamidade, uma epi- demia, uma agressão inimiga, etc., ele é que tinha o poder colónia alemã de Tanganyika (agora Tanzânia) e o sobre todos os diferentes tipos de Mhondoro da região.

Embondeiro 37 do Báruè em 1918 e o ano 2004 foi caracterizado do decreto 15/2000 de 20 de Junho. Através deste pela realização das cerimónias de veneração aos decreto, as autoridades comunitárias passaram a espíritos makombe separadamente, nos vários re- ser considerados importantes parceiros e agentes gulados do distrito de Báruè, isto é, cada régulo era do progresso da governação local. responsável por reunir os produtos da cerimónia e a subsequente realização. Na base dessas transformações, pode se entender que a aglutinação das cerimónias da Revolta do O cenário mudou a partir de 2004 quando o go- Báruè é um ‘acordo’ com o qual, se calhar, os espí- verno distrital, depois de ter ‘consultado’ as lide- ritos podem não se alinhar, e as lideranças tradicio- ranças tradicionais, propôs fazer uma e única ce- nais aceitaram por estarem no dilema de conquis- rimónia de adoração aos espíritos em homenagem tar o espaço na governação local, o privilégio que a dinastia makombe que ajudou a libertar os barkes já havia sido perdido no alcance da independên- da colonização portuguesa. Note-se que a agluti- cia nacional. O desentendimento entre as decisões nação das cerimónias enquadra-se no processo de institucionais e os espíritos pode ser compreendido reconhecimento e legitimação das autoridades co- nos episódios que serão explicados a posterior. munitárias à luz do decreto 15/2000 que, segundo Dava et.al. (2003), tem uma visão da necessidade Os mistérios do local da cerimónia de uma relação coordenada e cada vez mais estrei- Um aspecto não menos importante no que concer- ta entre as instituições tradicionais e os órgãos go- ne ao local da realização da cerimónia é o facto vernativos ao nível local, de maneira a fazer face deste ter sofrido alterações ao longo do tempo. O aos grandes desafios de desenvolvimento. régulo M’panze, sendo o descendente que se res- Com a junção das cerimónias, os chefes tradicio- ponsabiliza pelos rituais, desejava que estas fos- nais dos regulados M’panze, Seguma, Sabão e Sa- sem realizadas em Kagole, o território que lhe nhantunzi passaram a fazer a cerimónia de venera- pertence. Todavia, todas tentativas de atravessar o ção aos espíritos makombe em representação dos rio Nyadzonia eram frustradas pelas condicionan- descendentes dessa dinastia. tes naturais, ou melhor, condicionantes espirituais. Segundo as fontes orais, havia uma contradição Entretanto, importa sublinhar que a relação Esta- entre os do regulado M’panze e o Mhondoro do do vs espiritualidade não tem sido linear. Ora, se regulado Samanyanga. analisarem as transformações que as autoridades tradicionais sofreram em Moçambique desde o Lembre-se que as fontes orais credenciam o Sa- tempo colonial até a actualidade, pode se entender manyanga como o irmão mais novo do primeiro melhor a tendência das lideranças tradicionais se Makombe e que juntos teriam atravessado o rio alinharem com as decisões do governo. Dava et. Kaeredzi saindo de Mbire no Zimbabwe para se al. (2003) aponta que no tempo colonial, os chefes instalaram na zona norte da Província de Manica. tradicionais eram considerados auxiliares da admi- Enquanto o Makombe era temido por possuir um nistração civil das colónias e competia-lhes obede- exército da guerra, o Samanyanga era mais espiri- cer, pronta e fielmente às autoridades administrati- tual e protector da dinastia. vas portuguesas e fazer com que os indígenas sob Espiritualmente, acredita-se que o Mhondoro de a sua jurisdição lhes obedecessem. Samanyanga é mais legítimo para responder por Depois da independência nacional, em 1975, to- questões espirituais no território dos makombe. dos os chefes tradicionais foram conotados como Por não ter concordado com a realização das ce- servidores do governo colonial e com a criação do rimónias da Revolta do Báruè na povoação de Ka- novo Estado, passaram a uma situação marginal. gole, a comitiva sempre que tentava atravessar Só em 2000 é que o Governo passou a reconhe- o rio Nyadzonia para efectuar a veneração, o rio cer o papel das autoridades comunitárias através enchia e impedia a passagem da mesma.

38 Embondeiro Os condicionantes espirituais podem justificar a tese defendida anteriormente, na qual as decisões políticas nem sempre são consensuais com o po- der espiritual. Van Dokkum (2015:77) defende que os chefes tradicionais no distrito de Báruè estão subordinados aos líderes que não fazem parte de qualquer chamado sistema tradicional de liderança nacional, mas pelos líderes cujas origens se encontram na política partidária.

Depois de um longo tempo de conflitos espiri- tuais entre as duas partes, concordou-se que as cerimónias passavam a realizar-se nos regulados de Sabão e Sanhantunzi, lugares considerados Figura 1: A pedra da cerimónia com as respectivas covinhas neutros. No ano 2015, as cerimónias decorreram no recinto da obra do monumento Makombe. Procedimentos rituais da veneração aos espíritos No presente ano de 2016, o régulo Sabão teria à luz das comemorações da Revolta do Báruè descoberto uma caverna no seu regulado, apro- ximadamente, quatro quilómetros a norte da vila Todo o processo começa com a preparação de de Catandica, na qual acredita-se que vivia um bebida tradicional designado doro na língua ci membro da família Nyamukuchu3. -Barke. Após a preparação de doro, são comuni- cados todos os intervenientes dos rituais para se Neste local encontra-se uma pedra estendida prepararem e quando chegar o dia 28 de Março, num diâmetro de aproximadamente um metro e meio na qual se visualiza algumas covinhas. Pos- todos se dirigem ao local dos rituais. Só parti- sivelmente, as covinhas podem ser aliadas às ac- cipam nesses rituais as senhoras adultas e já na tividades rotineiras de cozinha no tempo em que fase de menopausa e os régulos dos povoados o Nyamukuchu ali vivia, ou então pode se dar a que rodeiam o Município de Catandica no distri- entender que se realizava uma cerimónia idêntica to de Báruè. nos tempos passados. Nota-se que a participação de mulheres em me- Com a construção do monumento Makombe no nopausa deve-se à crença segundo a qual a co- Bairro Sanhantunzi, prevê-se a movimentação municação com os espíritos é feita com pessoas definitiva do local da cerimónia tradicional de isentas de relações sexuais, ou seja “não quen- Sabão para este Bairro, visto que já foi prevista tes”, caso contrário, os espíritos não respondem a construção de uma palhota tradicional no mes- à pessoas com corpo quente, ou melhor, os que mo quintal do monumento para acautelar a parte são sexualmente activos. A seguir descreve-se tradicional das comemorações da Revolta do Bá- cada passo dos rituais começando pela prepara- ruè. Para tal, as autoridades tradicionais prevêem ção da bebida tradicional. a realização de um rito para pedir os espíritos, a movimentação deste local de modo que as ce- Preparação de Doro (bebida tradicional) rimónias futuras sejam ainda produtivas. Todo o processo da preparação de doro fica a cargo Curiosamente, resta saber se os espíritos irão concor- das mulheres descendentes da dinastia Makombe, dar com as alterações uma vez que já se demonstrou já na menopausa. O doro é feito na base de farelo que as questões espirituais nem sempre são absolu- de milho no processo que se descreve a seguir: tamente obedientes às decisões institucionais. Obtido o farelo de milho, leva-se ao fogo um tam- -bor (diramu) com água (madzi﴿, e deixe-se a fer 3 Nyamukuchu, da linhagem Samanyanga, foi sempre a família respon- sável pela realização de cerimónias tradicionais na dinastia Makombe ver. Depois de ferver água por alguns minutos,

Embondeiro 39 adiciona-se uma porção de farelo (gotxe), pre- tais como, a capacidade de estarem presentes no viamente mergulhado durante 3 a 4 dias em água local muito cedo e sem que tenham mantido rela- num recipiente e deixa-se cozer completamente ções sexuais na noite anterior. A não observância até formar papa (phala). Mexe-se a phala com dessas regras pode resultar em algumas sanções uma colher de pau (mutiko), e deixa-se cozer dos espíritos, como rezam as lendas, podem apare- por 1 a 2 horas até que se forme uma papa mui- cer cobras venenosas ou mesmo abelhas para ata- to densa de cor avermelhada. Esta cor reflecte car os violadores. que a papa está completamente cozida. Cozida a papa, retira-se o tambor do fogo e acrescenta-se Ao aproximar do local da realização da cerimónia, água para diluir a papa com intuito de torna-la a comitiva senta em baixo de uma árvore para pe- menos densa. dir a permissão dos espíritos para entrar no local considerado sagrado. Antes de sentar, todos devem Depois, coloca-se a mistura num recipiente plás- tirar sapatos e cinto, num simbolismo de respeito tico (gubu) e deixa-se pelo menos dois dias a ar- aos espíritos para que nenhum mal aconteça e as refecer num lugar com segurança, assim evitando preces sejam satisfeitas. Caso na comitiva existam que seja colocado algo estranho. O passo seguinte alguns hóspedes, como é o caso dos governantes, consiste em depositar a mistura arrefecida numa o pedido é endereçado com uma especificidade de panela de barro ou tambor para se açucarar, neste modo que os espíritos não estranhem a presença de caso, a quantidade usada varia em função da quan- pessoas não habituais à cerimónia. O pedido sem- tidade da papa, podendo chegar até 20kg, porém, pre é feito com o batimento de palmas, um sinal antes de colocar o açúcar, a papa passa por um que sempre simboliza o respeito que os vivos têm processo de filtração para remover impurezas de para com os espíritos. Na medida em que se pede tamanho maior. Misturado o açúcar, o produto re- permissão para aceder ao local da cerimónia, as sultante permanece durante um dia para fermentar. anciãs se dirigem ao local para varrer. No dia seguinte, a bebida já estará pronta para ser consumida. Depois de fazer limpeza do local, a comitiva é con- vidada para entrar no local onde devem se sentar Importa referir que o processo de preparação de em volta da pedra que serve para a cerimónia. Já bebida leva sete dias, se incluir as etapas prepara- sentados, pede-se novamente aos espíritos para tórias de busca de lenha, moagem de farelo e busca marcar o início da veneração aos espíritos onde o de água. Mestre da Cerimónia (régulo responsável do local da realização da cerimónia) informa aos espíritos O dia da cerimónia da intenção de adoração e da comitiva que o acom- Antes do sol nascer, a comitiva composta por panha. representantes dos regulados descendentes dos Com a assistência de uma das anciãs, leva-se a makombe deslocam-se ao local da realização da panela de barro contendo a bebida tapada com um cerimónia. Os representantes são geralmente ré- prato de e uma cabaça para próximo da gulos, anciãos e anciãs. A realização da cerimónia pedra onde procederão as preces e oferta aos es- antes do sol nascer parte da crença segundo a qual píritos. a comunicação com os espíritos deve ser feita no ambiente calmo e fresco sem perturbações de raios Depois, o orientador da cerimónia senta-se na pe- solares para garantir respostas favoráveis. Por via dra e de seguida a assistente (Sahwira), transpor- desta crença, verifica-se que o local do ritual é ca- ta o pote de bebida para o cimo da pedra. racterizado por uma vegetação densa, local próprio e adequado para descanso dos espíritos. A etapa subsequente é constituída pela aprovação de doro pelo régulo anfitrião que usa um copo fei- Nota-se que a presença das estruturas governamen- to de cabaça de abóbora. Esta aprovação deve-se tais no local da realização da cerimónia é condicio- ao facto de ter garantia de que a bebida oferecida nada a algumas regras que devem ser obedecidas, aos espíritos é boa e garantirá respostas positivas.

40 Embondeiro zadas pelos residentes desta terra sejam lim- pas. Apelamos às nossas tias que morreram há muito tempo para nos representarem em todas as actividades produtivas de modo que não haja maldades.

Régulo M’panze:

Tinakumbira imwe Sekuru Makombe kuti tionereiwo basa ramudaita imwe, nekuti ndimwe mudatangisa wazungu muno. Ti- rikukunyerezerani imwe nyamusi Sekuru, kuti mugare mudatonhorera, parambe kuo- neka chishawa mumutunhu muno.

Tradução

Pedimos a si Avó Makombe para nos prote- Figura 2: O régulo introduz a comitiva aos espíritos ger em todas as actividades que representam a continuidade dos seus efeitos ao expulsar A fase da veneração é composta pela prolifera- os brancos aqui. Estamos a te adorar hoje de ção de mensagens de pedidos aos makombe que modo que vivamos em paz e para que não geralmente é feita primeiro pelo régulo anfitrião haja conflitos que resultem no derramamento da cerimónia e depois segue o régulo M’panze. de sangue nesta terra. Este último é responsável pela realização da ce- Na medida em que se proferem mensagens, dei- rimónia. O conteúdo das mensagens sempre se tam-se pequenas quantidades de doro nas co- adequa aos acontecimentos do dia que enfrenta vas anteriormente referenciadas. Em cada cova, os descendentes dessa dinastia Makombe. Aspec- também se deposita um pedaço de caniço que tos ligados à produção agrícola, enfermidades e contém tabaco. Tabaco e a bebida tradicional são estabilidade política dominam as mensagens. Eis produtos frequentes na veneração dos espíritos as mensagens proferidas pelos régulos Sabão e entre muitos povos africanos e particularmente M’panze aquando da realização do 99º aniversá- nessa etnia Barke. Segundo reza a tradição local, rio da Revolta do Báruè: o tabaco acalma os ânimos dos espíritos, tornan- do-os atentos aos pedidos endereçados, enquan- Régulo Sabão: to a bebida é uma oferenda típica de alegria e Ine pano ndiri Nyakwawa wemuSabão, ndi- festa. nakumbira mizimu yawakafa kare, wakada- mirira dziko, kuti wazatibatsira kurarama Depois da deposição da bebida nas covas, todos nekubvisa zvakaipa mudziko. Tinakumbira participantes passam a beber o doro como forma kuti zvidawanda zvatinabata wanhu wamud- de conviver com os espíritos. ziko, tibate tidachena. Tichibvunza Samuka- zi, wadafa kare wakaimira pabodzi nedziko A crença com a qual os espíritos dos antepassa- kuti watiemerere pamabasa atinabata, kuti dos guiam os vivos no momento da crise política pasaita kavhuruzo. está evidente nas mensagens proferidas aquando da comemoração do 99º aniversário da Revolta Tradução do Báruè. Nos últimos anos, o país tem passa- Aqui sou Régulo de Sabão, peço com respei- do por momentos da tensão político-militar, e to aos meus antepassados que morreram há assim como a etnia acreditou na protecção dos muito tempo, para nos ajudar a viver bem e antepassados na Revolta de 1917, ainda acredi- retirar de nós todas as maldades nesta terra. tam que os mesmos lhes salvem das maldades da Pedimos para que todas as actividades reali- tensão política.

Embondeiro 41 mação das Autoridades Comunitárias à Luz do Decreto 15/2000. Maputo: Embondeiro 24. DO ROSÁRIO, Domingos Artur (1996). Makom- be: Subsídios à reconstituição da sua personalida- de. Maputo: Embondeiro 7. RIVIÈRE, Claude (1995). Introdução à Antropo- logia. México: Hachette Livre. TINDALL, P.E.N. (1968). History of Central Afri- ca. London: Longman Group Ltd. VAN DOKKUM, André (2015). Politics, History and Conceptions of Democracy in Barue District, Figura 3: O régulo oferece bebida e tabaco aos espíritos . Vrije Universiteit. Após a adoração dos espíritos os anciões e anciãs começam a celebrar o sucesso da cerimónia com Fontes orais algumas danças e canções. Geralmente as danças 1. Abílio Melo M’panze, Régulo de Kagole; frequentes são Mafuwe e Dumba. Assim, as danças 2. Onias Benard Seguma, Régulo de Seguma; marcam o fim da cerimónia. 3. José Notice Sabão, Régulo de Sabão; e 4. Luís Machado Sanhantunzi, Régulo de Sa- Conclusão nhantunzi. O legado dos makombe nas lutas de resistências contra a ocupação colonial na zona norte da pro- víncia de Manica é uma herança cultural de identi- Anexo1: dade do povo Barke. Este é notório visto que toda a Mapa dos Chefe Tradicionais do Distrito de Báruè comunidade de Báruè reclama as suas origens aos makombe. A realização da cerimónia de veneração dos espíritos à luz das comemorações da Revolta- do Báruè é uma prova da valorização da persona- lidade dos makombe. As instituições de pesquisa como ARPAC só complementam essa valorização pelos registos de modo que os conhecimentos orais que residem nas pessoas idosas possam ter uma conservação para o conhecimento das gerações vindouras. Este artigo é uma prova disso e poderá abrir mais espaços para investigações futuras.

Bibliografia BEIDELMAN, Thomas O, (1982). Colonial Evan- gelism: A Socio-cultural Study of an East African Mission at the Grassroots. Longman. DAVA et. al.(2003). A Participação das Autorida- des Comunitárias na Governação Local. Maputo: Colecção Embondeiro 23. Fonte: Van Dokkum 2015 ______(2003). Reconhecimento e Legiti-

42 Embondeiro Lobolo no Moçambique contemporâneo: negociando a condição de nativo num campo familiar

Ruben Taibo [email protected]

Resumo

O presente artigo versa sobre a objectividade etnográfica colocando em discussão o dis- tanciamento e a proximidade quando a pesquisa é realizada por um nativo. A partir de uma experiência etnográfica sobre o lobolo na cidade de Maputo, o texto apresenta e analisa os constrangimentos e os desafios inerentes ao trabalho de campo. O foco encontra-se, especi- ficamente, nos discursos jocosos que expressam a percepção de que o tema é supostamente irrelevante, mas que remete, em última análise, ao acesso, a habilidade e, acima de tudo, à confiança entre os interlocutores e o antropólogo/nativo.

Palavras-chave: Lobolo; Etnografia; Casamento; Trabalho de Campo.

I A análise das mudanças inerentes ao ritual do lo- Os episódios que constituem matéria de reflexão bolo no Moçambique contemporâneo é um traba- resultam do trabalho de campo realizado na cida- lho etnográfico1 que coloca em diálogo a literatura de de Maputo entre Agosto e Novembro de 2011. antropológica do casamento em África e uma ex- A capital de Moçambique é um espaço urbano in- periência de união conjugal na cidade de Maputo, fluenciado pela presença histórica de vários grupos capital de Moçambique. Lobolo é uma prática de sociais, nacionais e estrangeiros. A sua edificação união conjugal, frequente entre vários grupos so- à categoria de urbe é marcada por esse contacto ciais de Moçambique,2 que se traduz na oferta de cultural diversificado, que, na época colonial, foi bens que simbolizam a passagem da mulher de um grupo ao outro. O facto de ser uma pesquisa rea- regido pelo sistema português. Trata-se de um sis- lizada por um moçambicano colocava na vitrina tema que impunha mudanças nos valores culturais desafios e situações metodológicas que fundamen- locais, surtindo um impacto significativo sobre os tam a proposta deste artigo. Com efeito, descrevo moçambicanos que se deslocavam do meio rural e discuto questões relacionadas à problemática da para as cidades. Este movimento é comum na his- objectividade etnográfica, onde o distanciamento tória das cidades de Moçambique incluindo Mapu- e a proximidade constituem “posições” de nego- to. Estes nativos, expostos aos novos valores, ex- ciação, acesso, habilidade e confiança durante o perimentavam uma espécie de crise de identidade trabalho de campo. fomentada por via da invenção de uma figura, poli- ticamente, instituída como diferente entre iguais – 1 A reflexão que este texto propõe é baseado na dissertação refiro-me à figura doassimilado 3 que, apesar de ser intitulada Lobolo(s) no Moçambique Contemporâneo: mu- dança social, espíritos e experiências de união conjugal na 3 Assimilado era o nativo que reunia, segundo o sistema co- cidade de Maputo. Dissertação de mestrado apresentada no lonial português, condições éticas e culturais para conviver Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da Uni- com os cidadãos portugueses. O que significa que devia sa- ber ler e escrever correctamente a língua Portuguesa e, acima versidade Federal do Paraná, no Brasil. de tudo, reconhecer os valores do colonizador como refe- 2 É importante realçar que há práticas equiparáveis em vá- rência social. Importa referir que abdicar de práticas locais, rios grupos sociais da África Austral. incluindo o lobolo, era uma das condições para ser reconhe-

Embondeiro 43 a porta dos privilégios sociais e políticos, era, no de problematização que sustenta a etnografia base fundo, a reafirmação da necessidade etnocêntrica para produção deste artigo. de dominar. Em outros termos, uma reedição do discurso evolucionista que legitimava a necessi- O interesse em relacionar este quadro (histórico, dade de civilizar os indígenas. Em 1975, com a político e teórico) e a experiência etnográfica – ba- independência de Moçambique, Maputo foi ob- seada no processo de união conjugal de um casal jecto de uma reestruturação que aboliu, pelo me- residente em Maputo – reflecte a minha percepção nos na versão oficial, a ocupação urbana por via do que é o exercício antropológico. Entendo que da raça ou do status social. seja um pensamento relacional construído com base num recorte que transborda os limites apa- Antes de aprofundar sobre as questões metodoló- rentemente banais de um determinado objecto, que gicas, é fundamental efectuar um enquadramen- é tornado inteligível através da etnografia. Antro- to histórico conciso sobre a prática do lobolo em pologia é certamente mais do que isso, mas vale a pena, também, entendê-la dessa forma. Moçambique. A análise das mudanças relativas ao ritual do lobolo constitui um recorte de uma II problemática que tem raízes mais profundas. O lobolo é uma prática que foi alvo de proibições O trabalho etnográfico é uma oportunidade enorme e subversões políticas, mas que, no entanto, se para se perder entre as incertezas angustiantes do campo e os conselhos teóricos sobre o autocontro- manteve no tempo e na vida dos moçambicanos. 4 lo das pré-noções. O autocontrolo das pré-noções O foco que reflecte a força ontológica do ritual é permanentemente testado durante a experiência são as proibições perpetradas, primeiro, pela de campo e traduz-se, fundamentalmente, na cons- administração colonial portuguesa, que somen- ciência de que se não questionamos as nossas teo- te se interessou no lobolo subvertendo as trocas rias estabeleceremos uma relação próxima com o de gado a seu favor, e, segundo, pela perspecti- óbvio e o previsível. Mariza Peirano reforça esta va adoptada na primeira república onde, após questão realçando a importância do trabalho de a independência de Moçambique, em 1975, foi campo na antropologia: declarada oficialmente como uma manifestação (…) o lugar da pesquisa de campo no fazer da antropo- “obscura” enquadrada “nos ninhos de mentali- logia não se limita a uma tendência de colectas de da- dades e práticas impuras” (Borges, 2001: 232). dos, mas é um procedimento com implicações teóricas Nestes termos o ritual representava um obstáculo, específicas. Se é verdade que técnica e teoria não podem tanto, ao projecto colonial que se propunha a civi- ser desvinculadas, no caso da antropologia a pesquisa lizar o nativo, quanto à formação do homem novo etnográfica é o meio pelo qual a teoria antropológica se socialista, uma das chaves rumo ao progresso do desenvolve e se sofistica, quando desafia os conceitos Moçambique pós-independente. estabelecidos confronto que se dá entre: a teoria e o sen- so comum que o pesquisador leva para o campo; e a ob- Com efeito, este ritual é mais um exemplo de servação entre os nativos que estuda (Peirano, 1992: 8). manifestações culturais que sobrevivem às proi- Geertz também inspirou a compreensão das mu- bições em função da importância do seu signi- danças inerentes ao lobolo por via do pressuposto ficado para os actores sociais. No entanto, esta de que o trabalho etnográfico é, sobretudo, um pro- vitalidade social não significa, de forma alguma, cesso interpretativo, onde a primeira interpretação a ausência de transformações e descontinuidades. é do nativo e a segunda ou a terceira é que pertence Pelo contrário, sugere uma reflexão em relação à ao etnógrafo. Na perspectiva deste autor, a etno- dinâmica do ritual, incluindo os argumentos pro- grafia é relevante no sentido de que: duzidos em virtude dessa dinâmica. Esta é a linha (...) o que ela interpreta é o fluxo de um discurso social cido como assimilado. e a interpretação envolvida consiste em tentar salvar o 4 Expressão usada por Alcinda Honwana (1996) quando `dito´ num tal discurso da sua possibilidade de extinguir- se refere a uma espécie de sobrevivência social do lobolo. se e fixá-lo em formas pesquisáveis. O kula desapareceu

44 Embondeiro ou foi alterado, mas, de qualquer forma os `Argonautas Um exercício caro, principalmente, quando a re- do Pacífico Ocidental´ continua a existir (…) (Geertz, ceita é não usar receitas mas sim crenças como su- 1993: 15). gere Gilberto Velho:

Não é a intenção deste texto repassar a percepção Não conheço fórmula ou receita que resolva este tipo de de que a etnografia é uma marca da antropologia dificuldade, mas acredito piamente na necessidade de um isenta de discussões teóricas acesas, pelo contrário, esforço de autodefinição do investigador não só no come- é abordada sob o prisma da crítica5 que, no final de ço mas no decorrer de todo o seu trabalho, ou seja, não se contas, reafirmam e justificam a sua existência – trata apenas de manipular com maior ou menor habilida- de técnicas de distanciamento, mas ter condições de estar embora seja suspeito em afirmar – e o seu valor. A permanentemente num processo de autodimensionamen- problemática da objectividade etnográfica é -cen to paralelo e complementar ao seu trabalho com o objecto tral neste debate e é compreendida como sinónimo de pesquisa de que, afinal, ele faz parte (Velho, 1973: 13). de um envolvimento humanamente limitado pela necessidade de distanciamento. É metodologica- Compreende-se, portanto, que não é bastante o do- mente compreensível mas não retira o efeito en- mínio das técnicas de recolha de dados, é funda- tre o pesquisador e o nativo, Mauro de Almeida mental o discernimento do antropólogo em situar- refere que “as marcas da experiência etnográfica se face à tentação de continuar sendo somente parte são objectivas. E elas estão, em primeiro lugar, no da estrutura social que estuda. É neste contexto corpo.” As marcas são, certamente, os intrusos ex- que gerir proximidade e distanciamento constitui cluídos de que Da Matta fala: uma missão imprescindível para o antropólogo, até porque a disciplina tem uma história baseada (…) nunca ou muito raramente se pensa em coisas espe- na relação com o outro entendido, algumas vezes, cíficas, que dizem respeito à minha experiência,- quan do o conhecimento é permeabilizado por cheiros, cores, como exótico e primitivo e, em outras, como dife- dores e amores. Perdas, ansiedades e medos, todos esses rente. Somente nos últimos anos é que a história da intrusos que os livros, sobretudo os mais famigerados antropologia passou a integrar nós como contexto `manuais´ das Ciências Sociais teimam por ignorar (Da de pesquisa. Com efeito, ao pesquisar o ritual do Matta, 1974: 1). lobolo seguia os trilhos deste debate e os desafios metodológicos eram evidentes em função dos se- Portanto, o trabalho de campo não é uma operação guintes factos: faço parte da sociedade em que esta em que se isolam sentimentos e afectos embora seja prática é comum; passei pelo mesmo ritual de ca- importante reafirmar a necessidade permanente de samento e participei de um ritual em que o noivo é controlá-los. Talvez seja necessário aceitar o con- meu parente. Estão, portanto, reunidas todas con- tágio dos universos que estudamos tendo a cons- dições para que a minha relação com o lobolo seja ciência dos caminhos de saída, o que não significa íntima. ruptura mas distanciamento. Penso que, em parte, Geertz se refere a este complexo exercício quan- Estes pressupostos corporizaram a minha etnogra- do conclui que “olhar as dimensões simbólicas da fia sobre o casamento, tomando como referência a acção social – arte, religião, ideologia, ciência, lei, experiência de união conjugal de Sílvio e Zelina. moralidade, senso comum – não é afastar-se dos Trata-se do casal que segui durante quatro meses, dilemas existenciais da vida a favor de algum do- de Agosto a Novembro de 2011, com o objectivo mínio empírico de formas não-emocionalizadas; é de realizar uma observação participativa do seu mergulhar no meio delas” (Geertz, op. cit.: 21). lobolo. Este exercício implicou o acompanhamen- A consciência de que trabalhava sobre uma rea- to da preparação e a participação no evento. Não lidade familiar custava um policiamento contínuo ocuparei parte significativa deste texto com o apro- sobre mim mesmo, o que implicou, na verdade, fundamento etnográfico sobre a cerimónia, intro- uma exposição aos dilemas de posicionamento. duzo somente episódios de relevo que justificaram a reflexão sobre o meu posicionamento enquanto 5 O livro“Antropologia como crítica cultural: um momento nativo pesquisando um ritual familiar. experimental nas ciências sociais” de George Marcus e Mi- chael Fischer é uma referência importante na compreensão As famílias de Sílvio e Zelina marcaram o lobolo do debate em torno da produção etnográfica. para segunda quinzena do mês de Agosto de 2011.

Embondeiro 45 A cerimónia simbolizava o auge de uma relação de gociação. Os bens do lobolo são trazidos para o alguns anos. A minha participação no evento pas- centro e colocados por cima das esteiras: as vesti- sou pela integração na comitiva do noivo enquanto mentas para noiva (um vestido, um par de brincos fotógrafo, uma função definida pela mãe do noi- e um colar), um fato para o pai da noiva; um muku- vo «vais acompanhar a comitiva como fotógrafo». mi para irmã da noiva; uma capulana para avó da Ocupar a posição de fotógrafo favorecia a tenta- noiva; duas grades de cerveja; uma grade de refri- tiva de invisibilidade no dia do lobolo, ou seja, gerantes; um garrafão de vinho tinto; uma garrafa não podia interferir na negociação entre os repre- de vinho branco, o rapé e o valor do lobolo (2500 sentantes das duas famílias. As comitivas foram meticais). A inclusão de um vestido para madrasta constituídas por pessoas escolhidas pelos pais dos da noiva constituía um gesto de atenção, uma vez cônjuges, estes é que procederam, efectivamente, que não constava da lista. Este tipo de dinâmicas a oficialização da passagem da mulher mediante a e inovações confere voz a possibilidade de pensar oferta simbólica de bens pedidos pelo pai da noiva. mais em lobolos do que no lobolo. Posteriormente à verificação minuciosa dos bens, por parte da co- Dia 27 de Agosto de 2011 foi a data escolhida para mitiva da noiva, ficou assente que a noiva poderia o evento. A cerimónia realizou-se no bairro das passar para família Mavila.6 A cerimónia terminou Mahotas, situado no Distrito Municipal KaMavo- com a apresentação da Zelina aos familiares e ami- ta, na cidade de Maputo. A comitiva da noiva era gos que aguardavam pelo desfecho do evento. A constituída por um casal de irmãos do noivo, dois aparição da noiva foi uma espécie de oficialização tios do noivo e o fotógrafo. Os representantes do do estatuto de mulher casada. noivo tinham a missão de apresentar os bens que constavam da lista do lobolo, o que exigia habili- III dades de negociação na medida em que o evento As facilidades para entrar em campo não signifi- é marcado por episódios de tensão e jocosidade. caram, de forma alguma, ausência de desafios e Geralmente são aplicadas multas em dinheiro para constrangimentos. Inicialmente o anúncio da pes- cada infracção, como é o caso do atraso à hora quisa sobre o lobolo foi entendido como uma ten- marcada para início da cerimónia. Em função des- tativa de pendurar as festas. A cerimónia do lobo- te facto, a comitiva do Sílvio premuniu-se de notas lo, geralmente, termina com uma celebração entre trocadas e moedas mas também de outros estra- as famílias em aliança. Nesse sentido, alguns inter- tagemas – por exemplo a indicação de um único locutores insinuavam que a pesquisa seria a porta porta-voz para evitar incoerências durante a ce- do etnógrafo para “participar nas festas sem ser rimónia. convidado”. Em Maputo é comum escutar a desig- O lobolo foi orientado pelo padrinho da noiva nação jack, é uma categoria usada para se referir acompanhado de dois tios paternos, estas foram aos indivíduos que se dedicam a pendurar as fes- as figuras escolhidas para compor a comitiva da tas. De alguma forma, os interlocutores revelavam Zelina. A cerimónia é iniciada com uma oração à a sua percepção sobre a posição do pesquisador. Deus e, na sequência, a apresentação dos visitantes Nesta abordagem, ficou evidente, mais tarde, que «somos da família Mavila e viemos para realizar iniciava um processo de estranhamento baseado o lobolo da Zelina!» A solicitação da presença da numa presumível familiaridade do etnógrafo em noiva à sala do evento operou como uma resposta relação ao tema. Não fazia sentido que um moçam- à introdução dos Mavila: bicano pesquisasse um assunto tão conhecido en- tre nós, só podia fazer sentido se fosse uma estraté- «Menina Zelina conhece estas pessoas que dizem que gia adoptada por um jack. O estranhamento, neste vem te lobolar?» – perguntou o padrinho da noiva. sentido, é suavizado por uma explicação assente na jocosidade, um moçambicano pesquisando o lo- «Sim conheço» – a resposta dela soou como uma autori- bolo seria uma espécie de brincadeira. zação para o início de conversa.

6 A noiva retirou-se imediatamente da sala, pois não A complexidade do ritual não é redutível a esta descrição, ele é marcado tanto por tensões quanto por actos de jocosida- é permitida a presença dos noivos durante a ne- de, que justificam umaDescrição Densa nos termos de Geertz.

46 Embondeiro Porém, Sílvio e Zelina não encaravam a pesquisa A consciência de que era objecto de observação com o sentido jocoso acima referenciado. O casal evidenciou-se quando os meus mecanismos de re- aceitou plenamente que eu participasse de seu ca- colha de dados foram questionados. Dias após a samento. Sentiam-se honrados que seu lobolo fos- cerimónia, a noiva colocou questões relativas às se estudado, associado ao facto Sílvio ser formado técnicas de pesquisa: em Sociologia e, por isso, se mostrava compreen- «Ruben não te vi a registar nada durante o lobolo mas sivo e útil em relação ao processo. O noivo acom- então como é que vais fazer? Será que conseguiste me- panhou o etnógrafo às entrevistas com o padrinho morizar tudo?» da sua noiva, esses momentos resultavam frequen- temente em debates de carácter teórico. Mas tanto Zelina expressava a sua percepção sobre a imagem Sílvio e Zelina quanto os outros interlocutores – os de um pesquisador – uma figura portando um ca- padrinhos da noiva, um pastor da Igreja Baptista e derno de notas sobre o qual regista permanente- os membros da comitiva do noivo – introduziam mente. No entanto, ela não observou isso durante a frequentemente as suas explicações iniciando com cerimónia nem mesmo nas conversas em que tive- mos. O esclarecimento é que fazia as anotações no “sabes que isso se faz desta ou daquela forma …” final do dia e que o gesto de registo escrito desper- surtia o mesmo efeito que a brincadeira do “jack”, taria atenção dos participantes da cerimónia, era presumiam conscientemente ou não que eu tivesse uma espécie de pacto que procurava não quebrar. um conhecimento profundo sobre os detalhes do ritual de lobolo. As preocupações resultantes des- A negociação manifestava-se igualmente quando tes constrangimentos são compreensíveis na ques- a irmã do noivo deixava os seus recados instan- tão que se tornou o cerne desta experiência: como tâneos sobre o que considerava irrelevante duran- dar seguimento às conversas sobre um assunto te a cerimónia. “Isto não precisas escrever no seu que se presume ser do meu profundo domínio? trabalho” era a expressão que usava para definir uma espécie de triagem do material que o etnógra- A estratégia foi explicitar aos interlocutores que o fo recolhia. O facto da comitiva do noivo ter sido, meu conhecimento sobre o ritual não era neces- depois da recepção oficial, reconduzida à porta de sariamente aturado. A convicção de domínio ab- entrada da casa para efeitos de filmagem e foto- soluto em relação aos fenómenos sociais é nociva grafia, constituiu um episódio que, segundo a mi- à actividade de pesquisa. Em outros termos, equi- nha companheira de comitiva, era caricato. O que vale a afirmar que a dinâmica e a complexidade significa que não merecia inclusão no texto final. do lobolo não poderiam conferir ao pesquisador, e provavelmente a qualquer outro moçambicano, Porém, estávamos perante mais um acto de joco- o estatuto de pleno conhecedor, pelo contrário, sidade – que pode igualmente gerar alguma tensão suscitam maior interesse em aprofundar – importante na compreensão das relações que se continuamente o tema. Este argumento não teve estabelecem no processo da passagem da noiva de efeitos mágicos mas constituiu um fundamento um grupo familiar ao outro. para que as conversas fluíssem enquanto moldava, paulatinamente, a compreensão sobre o meu Esta experiência etnográfica é uma janela -de re relativo distanciamento em relação ao ritual. flexão que, por um lado, demonstra que o proces- so de autodimensionamento, em pesquisas deste No decurso do lobolo de Sílvio e Zelina, a con- género, é necessário tanto durante o trabalho de dição de estudante no Brasil colocava o pesqui- campo quanto nas estratégias de escrita do texto sador sob um olhar atento por parte de alguns etnográfico. Por outro lado, elucida que a habili- participantes. Zelina apresentou-me aos seus dade do pesquisador, em função de cada contexto, amigos e parentes como “primo do noivo que é a principal ferramenta para enfrentar os desafios estuda no Brasil e vai estudar este `lobolo´”. Esta situação mudou, momentaneamente, a mi- de campo, incluindo o processo de inserção – que nha condição de “moçambicano a pesquisar o dependendo da situação pode significar saída - de `lobolo´” para “moçambicano no Brasil a pes- um nativo no seu próprio universo cultural. As quisar o `lobolo´” – uma mudança que, também, reflexões produzidas permitem, igualmente,- re influenciou para compreensão da pertinência em pensar sobre a relação sujeito-objecto ou pesqui- abordar este tema mesmo sendo nativo. sador-pesquisado enquanto uma fórmula que pode

Embondeiro 47 ofuscar a compreensão de factores explicativos HONWANA, Alcinda (1996). Spiritual agency inerentes ao fenómeno estudado, mesmo porque o and self-renewal in southern Mozambique. Thesis pesquisador, durante o trabalho de campo, torna- (Doctor of Philosophy in Social Anthropology) - se, frequentemente, o objecto de pesquisa. School of Oriental and African Studies, University Bibliografia of London, London, 1996.

ALMEIDA, Mauro W. (2003). Barbosa. Relati- PEIRANO, Mariza (1992). A favor da etnogra- vismo antropológico e objectividade etnográfica. fia. Série Antropologia, Brasília, n. 130. Campos, Curitiba, n. 3, p. 9-29. MAGNANI, Guilherme (1984). Festa no pedaço: cul- BORGES, Edson (2001). A política cultural em Mo- tura popular e lazer na cidade. São Paulo: Brasiliense. çambique após a independência (1975-1982). In: Mo- MARCUS, George E. & FISCHER, Michael M. J. çambique: ensaios. Rio de Janeiro: Editora da UFRJ. (1999). Anthropology as cultural critique: an ex- DA MATTA, Roberto (1974). O ofício do etnó- perimental moment in the human sciences. Chica- grafo ou como ter um anthropological . In: A go: The University of Chicago Press. aventura sociológica. Rio de Janeiro: Zahar. VELHO, Gilberto (1973). A utopia urbana. Rio de GEERTZ, Clifford (1993).Uma descrição densa: Janeiro: Zahar Editores. por uma teoria interpretativa da cultura. In: A In- terpretação das Culturas. Barcelona: Gedisa.

48 Embondeiro Reflexão sobre as Percepções Sócio-Antropológicas do Albinismo em Moçambique

Angélica André João Munhequete [email protected]

Resumo

Em Moçambique o albinismo é associado a uma série de concepções erróneas, onde os albinos são retratados como seres desprezíveis ou com poderes sobrenaturais. Isso deve-se ao facto de a maior parte da população desconhecer este distúrbio genético e, devido às diversas crenças, mitos e superstições que inundam o imaginário popular. Na verdade o albinismo está inserido numa rede de interpretações do mundo e num conjunto de tradições em contínuo processo de transformação.

Palavras-Chave: Albinismo, Mitos, percepções sociais.

Introdução

O albinismo é uma doença caracterizada pela au- noticiados casos de perseguição da pessoa albina sência de melanina, apresentando a pele sem ne- pela primeira vez em Dezembro de 2014, tendo nhuma pigmentação. Esta situação que ocorre so- atingido até o mês de Outubro de 2015, um total bretudo em indivíduos de raça negra, têm vindo de 22 vítimas. Discute, igualmente, as percepções a ser associada a vários mitos, havendo crenças sobre o albinismo em Moçambique, num contexto segundo as quais, partes do corpo de um albino em que se verifica o recrudescimento de casos de podem ser usadas para gerar riqueza fácil. Estas perseguição, raptos e assassinatos de pessoas por- percepções têm contribuído, particularmente, em tadoras desta condição. países como Quénia, Tanzânia e Moçambique, para perseguição e assassinato de indivíduos albi- Para a efectivação deste trabalho, foi privilegiada nos para fins “obscurantistas”. uma metodologia interactiva, que consistiu em en- trevistas a informantes-chave, nomeadamente, líde- Neste contexto, com vista a compreender o fenó- res comunitários, praticantes de medicina tradicio- meno de caça, rapto, assassinato e profanação de nal, secretários dos bairros, famílias com membros tumbas de albinos, o presente estudo tem como albinos e pessoas portadoras de albinismo. Foram objectivo, de uma forma geral, apreender as per- entrevistados indivíduos de ambos os sexos, com cepções sócio-antropologicas do albinismo em idades não inferiores a 18 anos. Foram igualmen- Moçambique. De forma específica, o estudo visa te privilegiados indivíduos que tem um histórico compreender as crenças e representações relativas da doença, bem como indivíduos que têm poder de ao albinismo e aferir o impacto tanto social, como decisão na gestão dos assuntos relativos à saúde ao antropológico e psicológico destas crenças no seio nível do agregado familiar e da comunidade. das comunidades. Para suportar esta metodologia foram consultadas O presente trabalho teve lugar na cidade de diversas obras que retratam sobre a matéria. Con- Nampula, epicentro do fenómeno, onde foram tudo, deve-se reconhecer que o tratamento da pro-

Embondeiro 49 blemática do albinismo é ainda escasso sobretudo de pele causados pelo sol são muito frequentes, em Moçambique, com impacto significativamente como o eritema solar (queimaduras na pele, causadas negativo sobre o albinismo. por exposição ao sol), foto-envelhecimento (causado por fatores ambientais, principalmente a exposição Com efeito, o albinismo em Moçambique é obser- aos raios UV- raios ultravioletas) e, em casos mais vado como uma questão que transcende a perspec- graves, lesões pré-malígnas e malignas, podendo tiva biomédica e aos preconceitos que atribuem ocorrer desde a infância (Moreira et al., 2007). poderes obscuros aos albinos. Neste sentido, ela insere, igualmente, a dimensão sócio-cultural, que O diagnóstico do albinismo pode ser clínico. Pela incorpora valores, crenças e hábitos; aspectos su falta da melanina os albinos têm características jectivos e de difícil quantificação. bem definidas como: pele e cabelos muito claros, olhos azuis chegando a um tom violeta, pois são I. Contexto visíveis os vasos sanguíneos, ou azuis esverdea- dos, quando existe certa pigmentação na íris. Nes- Sobre o conceito de albinismo ses indivíduos, são comuns os problemas visuais, tais como: o nistagmo (um tipo de movimento in- voluntário dos globos oculares, geralmente de um O termo albinismo é originário do latim Albus lado para o outro, que dificulta o processo de fo- (alvo, branco). Também pode ser usada a palavra cagem de imagens), o astigmatismo (a imagem se hipopigmentação (pouco pigmento). O albinismo forma em diferentes planos, distorcendo a visão), é considerado um distúrbio genético de herança o estrabismo (desalinhamento dos olhos, ou seja, autossómica recessiva, ou seja, pai e mãe têm que cada olho se coloca em uma direcção diferente), a carregar o alelo recessivo (o gene se expressa so- fotofobia (sensibilidade ou aversão a qualquer tipo mente aos pares, representado por aa), porém pode de luz), entre outros problemas visuais (Rocha & não se manifestar numa geração em que o indiví- Moreira, 2007; Cavalcante, 2012). duo produz a Tirosina (aminoácido que compõe a melanina, e tem como função distribuir a cor Neste sentido, podemos aferir que a ausência de estudos de âmbito social tem contribuído sobrema- pelo corpo e proteger a pele), representada pelo neira para o desconhecimento das comunidades so- A, quando esta é normal, e é representada pelo (a) bre as inúmeras necessidades e cuidados inerentes à quando é afetada (Cavalcante, 2012). esta condição. Entretanto, o cancro de pele é um dos O albinismo pode ser causado por dois motivos: 1) principais problemas enfrentados pelos albinos de- na síntese da melanina, que é responsável pela co- vido a pouca quantidade ou ausência de melanina. loração da pele (neste caso, é produzida em pouca Percepções sobre o albinismo nos contextos mo- ou nenhuma quantidade, causada pela inatividade çambicano e africano da tirosina); 2) pela falha em sua distribuição, o que acarreta, na hipopigmentação da pele, pelos, cabe- Os albinos em África foram durante muito tempo los e olhos. (Moreira et al., 2007; Rocha & Moreira, conhecidos como “tribo de fantasmas”, “zeros” e 2007; Freitas et al., 2005; Cavalcante, 2012). “invisíveis”, devido ao facto de se acreditar que partes do seu corpo trazem fortuna e cura. Em mui- Segundo Rocha e Moreira (2007), podemos classi- tos países africanos, com destaque para a Tanzâ- ficar o albinismo em três categorias: ocular (quan- nia1, albinos são assassinados na rua, seus restos do a falta da melanina afeta somente os olhos); são usados em macabras poções humanas pelos parcial (quando a melanina é produzida apenas em curandeiros para tratar os doentes (Malone, 2009). algumas partes do corpo) e oculocutâneo (quando Alguns membros das comunidades africanas são todo o corpo é afectado). motivados por crenças e superstições, o que tor- Com o albinismo podem surgir vários problemas, 1 Acredita-se que na Tanzânia esteja a maior população de al- sendo o principal deles a baixa visão, que varia de- binos da África uma condição genética causada pela falta de pendendo do tipo de albinismo e da quantidade de pigmentação da pele, tem uma incidência sete vezes maior pigmento presente na íris. Além disso, problemas que no resto do mundo.

50 Embondeiro na difícil a vida dos portadores de albinismo. Mi- seus filhos albinos para fins obscurantistas, tornan- tos relacionados à sorte, azar e poderes mágicos, do a vida deste substracto populacional bastante advindos dos albinos, são bastante frequentes no dificil atribulada, envolta em medos, insegurança imaginário popular, o que leva estas pessoas a so- e complexos de inferioridade. frerem torturas em rituais de feitiçaria, assassina- tos e comercialização de seus órgãos (Faz-Tudo, Envolto nestas crenças supersticiosas, relatos di- 2013). versos indicam que, nos países anteriormente refe- renciados, os albinos são caçados como “animais” Além de sofrerem com os preconceitos nas comu- valiosos, em virtude de uma cruenta superstição. nidades, as próprias famílias os discriminam, tor- As partes mais valorizadas do corpo dessas pes- nando seu viver muito mais difícil. Existem relatos soas são os dedos, a língua, os braços, as pernas e de que, “na Tanzânia, por exemplo, desde 2007, os genitais, que chegam a alcançar um bom valor pelo menos 59 pessoas foram assassinadas por no comércio voltado para a feitiçaria. (Jornal Notí- traficantes de órgãos usados em rituais de magia” cias, 09/09/2015) (Faz-Tudo, 2013:11). A crença no poder das partes do corpo de pessoas O sequestro de pessoas albinas é uma realidade portadoras de albinismos é tão substancialmente no continente africano, sobretudo em países como enraizada em alguns países da região. Com efeito, Congo, Quénia, Burundi e alguns países da Áfri- o alegado poder sobrenatural imanente no corpo ca Austral, mais precisamente no Zimbabwe, Ma- do albino, faz com que em algumas regiões do Ma- lawi, Tanzânia e mais recentemente em Moçambi- lawi, Zâmbia acreditem na superstição de que os que, dada a abundância de pessoas que vivem com albinos são seres sobrenaturais a ponto de os pes- essa deficiência da pigmentação da pele. cadores daqueles países, ao tecerem as suas redes, agregarem a elas fios de cabelos de pessoas porta- Nesta região, os albinos, com especial enfoque doras de albinismo, sob a percepção de que assim, para as crianças, são vítimas de perseguições e trarão mais sorte à pescaria. sequestros que acabam em assassinatos, porque se acredita que seu sangue, corpo e órgãos possuem De igual modo, de acordo com Melo (2013), há poderes mágicos, capazes de produzir riqueza indicações de que os mineiros usam no pescoço material, através de rituais conduzidos por bruxos amuletos feitos com os ossos moídos de albino. e feiticeiros, que enganosamente chamámo-los de Acredita-se também que, enquanto o sangue de curandeiros. um albino, bebido ainda quente, ou seja, logo após ser extraído do seu organismo, traz sorte em do- Contrariamente ao que acontece na Tanzânia, onde bro, em qualquer acção ou empreendimento que a existem 170 mil albinos. Cientificamente ainda pessoa que o beber possa levar a cabo. Se o sangue não se sabe porque razão Tanzânia possui índices for de uma criança, pensa-se que ele tenha mais tão elevados de albinos. No entanto, aventa-se a valor, uma vez que intensifica o poder do feitiço, hipótese deste país e a África Oriental ser o berço em consequência da sua pureza infantil. da mutação genética responsável pelo albinismo. Refira-se que, ainda na Tanzânia, o poder das par- Moçambique ainda não tem um levantamento es- tes do corpo de pessoas portadoras de albinismos tatístico sobre a incidência do albinismo na popu- é tão substancialmente enraizada que algumas lação. Porém, de uma forma empírica, verifica-se pessoas acreditam que a ingestão dos seus órgãos uma presença relativamente notável de indivíduos genitais secos elimina a Sindrome de Imunodefi- com deficiência de pigmentação da pele no seio da ciência Adquirida (SIDA). Por isso, esses cidadãos sociedade moçambicana. são mortos e esquartejados supostamente para ser- virem de remédio. O preconceito prevalece e todo um conjunto de crenças e mitos associadas ao albinismo prevale- De acordo com os dados da Organização das Na- cem em larga medida nos territórios anteriormente ções Unidas (ONU) a venda dos membros dos or- referidos, assim como em Moçambique. De facto, ganismos dos albinos no mercado internacional há relatos que dão conta de pais que vendem os africano chega a custar cerca de 600 dólares ame-

Embondeiro 51 ricanos, o equivalente a 1 milhão de meticais, en- Perante esta realidade, muitos pais e encarregados quanto um corpo inteiro pode alcançar o preço de de educação preferem segregar, embora forçosa- 75 mil dólares (Noticias, 09/09/2015), o que cons- mente, os seus filhos albinos. Assim, muitos destes titui em um “jackpot” ou uma óptima e lucrativa não são introduzidos no sistema nacional de ensino, “bolada”, como diz a gíria popular, por parte das custando-lhes, muitas vezes, a escolaridade, ou seja, pessoas que se envolvam no negócio. não os matriculam na escola temendo a discrimi- nação que eles possam sofrer naquele meio social. Se por um lado os albinos são vítimas de persegui- Paradoxalmente, a discriminação no seio doméstico ções e raptos, por outro, eles são vítimas de uma conduz à segregação destes no meio social. notável descriminação. Tal descriminação costu- ma começar no seio familiar, através da negação Entretanto, em algumas regiões do país, os pró- destes por parte dos seus progenitores. Aliás, nos prios albinos já se mobilizam para que algo seja últimos tempos, não são raros os casos de pessoas feito a seu favor. Associações como a Associação albinas abandonadas na infância. Amor à Vida e Albimoz se fazem presentes para chamar a atenção dos governantes para o grupo. Em Moçambique, a situação têm vindo a tomar Estas associações, visam lutar pelos direitos e bem contornos relativamente preocupantes e somos -estar dos portadores de albinismo, mostrando à chamados para uma urgente tomada de posições comunidade, os problemas vivenciados por eles, e medidas com vista a sua mitigação. Com efeito, buscando maior divulgação sobre o que significa até 2013, não tinham sido ainda reportados casos ser portador dessa deficiência genética. de raptos, assassinatos ou profanação de tumbas para a obtenção de partes de órgãos de pessoas II. Crenças e representações sócio-antropológi- portadoras de albinismo. cas relativas às causas do Albinismo

Porém, a partir desta altura, a realidade inverteu- a) O Albinismo é essencialmente compreendido se, tendo sido reportados crimes cometidos contra como uma doença albinos, inicialmente na província de Cabo Delga- do, alastrando-se em seguida para as províncias de Durante os grupos de discussão, o albinismo foi Niassa, Nampula, e mais recentemente, Manica. associado, em primeiro lugar, à dimensão médica Algumas correntes sustentam que a eclosão deste da incapacidade. O albinismo é, sobretudo, consi- fenómeno esteve associada à presença, relativa- derado como uma doença que na maioria dos ca- mente maior, de cidadãos oriundos da Tanzânia sos se “apanha” à nascença. Alguns argumentam ou Quénia, países onde o tráfico de membros dos que esta anomalia pode também aparecer durante a vida, de forma súbita e ou ainda mais lenta e de- órgãos dos albinos eram uma prática bastante di- generativa (doença invalidante, consumo de álcool fundida, e que os governos estavam envidando es- ou de drogas). forços para acabar com este tipo de crimes. Quando se convidam os membros da comunidade Apesar do aparecimento tardio, o preconceito e a a exprimirem-se sobre as causas do albinismo, vê- discriminação dos albinos sempre esteve presente se surgir, em cadeia, uma transposição do discur- na sociedade moçambicana, no entanto, não foram so habitual, relacionando esta anomalia à cura de cometidos assassinatos até o ano de 2013. Neste doenças como o SIDA, como se pode depreender sentido, as percepções e crenças moçambicanas do seguinte relato: “Existe uma crença de que se a respeito das pessoas portadoras de albinismo, tiver relações sexuais com uma menina com albi- apontam que, devido ao senso comum, o albinismo nismo, pode-se curar a SIDA. Portanto, há muitas é apontado como uma maldição dos deuses e dos meninas com albinismo que estão a ser violadas ancestrais ou como um castigo aos seus progenito- no país por causa desta crença, sendo uma falsa res. De igual modo, o albino é encarado como um crença”, disse Adelícia Desejada, presidente da ser imortal, daí que se supõe que entrar em contac- Associação Amor à Vida em Nampula.2 to com este, traria má sorte, doenças ou até mortes. 2 Refira-se que este relato foi-nos concedido numa entrevista pela Presidente da Associação Amor à Vida na cidade de Nam-

52 Embondeiro Massivamente alertados sobre o carácter transmis- As famílias ricas são punidas pela sua avareza e é por isso sível, irreversível e invalidante do vírus, e sobre que têm uma criança deficiente; a necessidade de se protegerem de uma ameaça Se o primeiro filho de uma família rica nasce com uma difusa, parece que os indivíduos teriam interiori- deficiência, é considerado como o provedor de riqueza, zado paulatinamente os mesmos reflexos relativos um sacrifício voluntariamente consentido pelo pai da fa- mília ao curandeiro a fim de garantir a prosperidade fu- ao albinismo. Elementos similares aparecem cla- tura da família; ramente entre as duas problemáticas e, de maneira Uma criança nasce com uma deficiência quando os deu- inconsciente, o albinismo é frequentemente visto ses punem uma mãe infiel; como potencialmente contagioso e transmissível de um indivíduo a outro, da mãe para o filho, etc. O albinismo é frequentemente provocado por um curan- deiro quando alguém procura vingar-se de um inimigo. Num reflexo higienista, parece então mais pruden- Ele não lhe pede para o matar mas de o tornar deficiente te isolar as pessoas “atacadas” por uma “deficiên- para lhe fazer mal. Uma maldição de origem mística; cia” a fim de preservar os indivíduos “sãos” da co- Uma pessoa que olhar para um albino e engolir ao mes- munidade. mo tempo a saliva irá ter uma criança deficiente; Diz-se que quando uma pessoa albina morre, o seu cor- b) O Albinismo como Maldição po desaparece para sempre da face da terra;

Em Moçambique a “caça” e assassinato dos porta- O sangue, cabelos, zonas genitais e outras partes do corpo das vítimas albinas utilizados por curandeiros que inven- dores de albinismo não são crimes novos, contudo tam poções, dizem trazer sorte no amor, vida e negócios; só começaram a ter visibilidade a partir de 2014. Entre os mitos relacionados ao albinismo, está o Se enterrar um albino num cemitério comum, a família con- tinuará a ter filhos albinos. Para que isso não aconteça é ne- risco de contágio. Alguns também acreditam que cessário que se deite o seu corpo no mar (Ametramo, 2015)3. os albinos conseguem ver melhor no escuro ou que eles necessariamente têm algum problema de cog- Constata-se que estas crenças e lendas têm igual- nição. mente uma função de regulação social: as mulheres devem velar pelos filhos, as crianças não se devem É sobretudo o desconhecimento predominante das rir das pessoas com deficiência, os homens não causas do albinismo nas comunidades que abre, devem praticar a infidelidade, as relações de vizi- frequentemente, a porta a outras formas de inter- nhança devem ser cordiais. O albinismo é assim pretação bem enraizadas na cultura tradicional, utilizado como uma ameaça à qual nos expomos sobretudo nos bairros periféricos. O discurso so- se nos desviarmos da norma e da moral. Mesmo cial assenta-se em razões mais afastadas da racio- quando têm mais crédito entre as categorias sociais nalidade científica, quando se trata de examinar as mais desfavorecidas, estas crenças populares estão manifestamente enraizadas no imaginário colecti- causas do albinismo, como a maldição, o destino, a vo e transcendem a pertença social. má sorte, ou muito simplesmente o azar.

Inúmeras lendas e crenças populares alimentam c) O albinismo como uma fatalidade as representações colectivas para tentar explicar o surgimento do albinismo numa pessoa ou numa O reflexo da hierarquia nas relações de género, toda responsabilidade inerente aos defeitos de reprodu- família como uma intervenção divina para punir ção, saúde sexual e reprodutiva, são socialmente os vícios ou os hábitos imorais dos pais. Factos imputados à mulher. Desde fertilidade, doenças considerados diferentes, impuros e estranhos são sexualmente transmissíveis até filhos deficientes. domesticados por via de explicações com alcance Na altura do nascimento de uma criança com albi- do visível e racional, para que não se tornem pe- rigosos, como podemos depreender dos excertos 3 Estes excertos foram retirados de uma entrevista colectiva que se seguem: feita aos membros da AMETRAMO (Evaristo Rosário, Agos- tinho Francisco e Helena Chicoba) na cidade de Nampula, so- pula, aquando da pesquisa sobre o fenómeno, no ano de 2015. bre as percepções relativas ao fenómeno do albinismo.

Embondeiro 53 nismo numa família, acontece frequentemente que Para as crianças, estas atitudes manifestam-se pela a mulher seja pura e simplesmente abandonada exclusão nos jogos durante o recreio (nas escolas) pelo marido. Na realidade, esta é geralmente tida ou mesmo na rua. Uma mãe com quem conversa- como responsável pela anomalia do recém-nasci- mos disse que ela leva o seu filho albino para brin- do em virtude de um comportamento considerado car na rua com as outras crianças, os pais destes impróprio durante a gravidez, de uma suposta infi- precipitam-se instando aos seus filhos para se afas- delidade ou ainda de uma linhagem familiar repu- tarem dele para não se tornarem também malucos. tada menos “pura” que a do marido. Quando a falta de pigmentação aparece no decurso da vida, gera E parece normal que as pessoas com albinismo igualmente fenómenos de rejeição e de exclusão recebam alcunhas particularmente humilhantes na célula familiar. dadas por pessoas da rua ou da vizinhança, alcu- nhas referentes ao tipo de “deficiência”: bolada, As famílias têm, frequentemente, o reflexo de ir jackpot, gato bravo, dinheiro, zero zero, produto, consultar um curandeiro, logo nos primeiros dias, entre outros (Adelícia Desejada, 2015). após o nascimento de uma criança para tentar atenuá-lo ou fazê-lo desaparecer por meio de um Face às múltiplas formas de discriminação que ritual de “purificação” e de um remédio especial- lhes são sujeitas fora de casa, alguns albinos op- mente preparado (Joaquim, 2015)4. tam pela resignação e auto-exclusão. Por falta de auto-estima, ou mesmo pela dificuldade de aceitar Em caso de incesto de um pai com a filha, as pes- a sua anomalia, elas preferem isolar-se do resto da soas vão ao curandeiro antes mesmo do nascimen- comunidade a entrar em contacto com o mundo to da criança, a fim de afastar qualquer risco de exterior. má formação congénita ou de nascimento de uma criança albina. O presumível tratamento do albi- A estigmatização provoca muitos problemas psí- nismo representa assim uma fonte de rendimento, quicos nas pessoas excluídas ou que se traduz, nor- particularmente para alguns praticantes de medici- malmente, em complexo de inferioridade, falta de na tradicional (Atumane, 2015)5. confiança nas suas capacidades, resignação. Mui- tas vezes são as próprias pessoas com albinismo Face à vergonha sentida, algumas famílias vão que se excluem das suas comunidades. Conheço ao ponto de esconder os filhos, irmãos ou paren- alguém que vive fechado no seu quarto porque tem tes portadores de albinismo, e a mantê-los fora do vergonha de sair, disse um dos interlocutores. olhar da comunidade. A respeito deste assunto, Lucas Mania, líder comu- Acontece igualmente, que algumas delas se opõem, nitário no bairro de Muatala, explicou que os albi- abertamente, ao casamento de um dos membros da nos são pessoas diferentes de outras raças. Desde família, afim de não denegrir a reputação da famí- que reside em Nampula tem ouvido dizer que as lia ou porque este não é considerado como sufi- pessoas com problema de pigmentação na pele cientemente apto a garantir a segurança material nunca morrem, mas simplesmente desaparecem. do lar. O líder crê que quando uma mulher dá à luz uma Paralelamente às dificuldades de integração social criança albina deve, ao sair da maternidade e an- cujas pessoas com albinismo podem ser vítimas tes de chegar à casa, ser submetido a um ritual (ter um emprego estável, estudar, fundar uma fa- tradicional para que não volte a ter filhos com a mília, ter uma casa em condições), constata-se que mesma “anomalia”. Antigamente, as mulheres que elas são acima de tudo vítimas de preconceitos no nasciam albinos eram mortas porque os seus filhos seio das suas comunidades. Que seja na vizinhan- eram considerados obra de espíritos maus (Mania, ça, nas lojas, nos transportes, na escola, na empre- 2015). sa, no mercado, os portadores de albinismo entre- vistados falam de atitudes de desdém, de desprezo, III. Impactos sócio-antropológicos do fenómeno até mesmo de rejeição pelos seus concidadãos. do albinismo na sociedade moçambicana

4 Na região norte de Moçambique, com especial Entrevista ao senhor Joaquim da Rede Criança na cidade destaque para a província de Nampula, devido ao de Nampula 5 Praticante de medicina tradicional e membro da AMETRA- fenómeno de raptos e morte de albinos as comuni- MO na cidade de Nampula dades e associações do grupo de referência têm de-

54 Embondeiro sencadeado campanhas de repúdio ao fenómeno, É importante que, no âmbito nacional, sejam insti- com o fim último de desmistificar as várias crenças tuídas leis que atentem em contemplar as necessi- e mitos em torno do fenómeno. dades vivenciadas pelos albinos. Tais políticas de- vem prever a necessidade de protecção solar como Os portadores de albinismo filiados às associações um medicamento e não como um cosmético, pois, têm adoptado uma postura diferente no que se re- para os albinos se fazem necessários, já que vivem fere aos seus movimentos de e para casa, escolas e num País tropical e os mesmos não possuem a pro- locais de trabalho, passando a andar em pequenos tecção natural contra os raios solares, no caso, a grupos e sempre acompanhados como forma de se melanina; fazendo uso dos protectores diariamente protegerem mutuamente. em todo o corpo (no mínimo de duas em duas ho- No entanto, alguns comportamentos desviantes se ras) para que, com isso, possam prevenir doenças desenvolveram devido ao recrudescimento deste como o cancro de pele. O acompanhamento der- fenómeno, com destaque para a discriminação dos matológico frequente, neste caso, é de fundamen- portadores de albinismo e vandalização de campas tal importância. onde jazem os restos mortais de albinos, supostos No caso do albinismo ocular, aparatos como os de serem fontes de sorte e de riquezas. As partes óculos de sol, de grau e até mesmo outros equipa- preferidas, segundo alguns entrevistados, são usa- mentos como os óculos de leitura, lupas e monó- das para orientação, protecção e captação das ri- culos facilitam muito a vida destas pessoas, pois, quezas nas redes de pescas e nas minas. com eles a sua independência é maior. Neste caso, Nos transportes públicos, os demais utentes recu- o acompanhamento oftalmológico, para que dúvi- sam-se a sentar no mesmo banco com os portado- das e problemas sejam esclarecidos e minimizados, res de albinismo, temendo uma possível contami- faz-se necessário. Estes cuidados são fundamen- nação, o que faz com que alguns transportadores tais, já que, economicamente, grande parte destas do vulgo “chapa 100” se declinam a transportá-los pessoas não é favorecida, e comummente não têm ou cobram-lhes o preço de duas pessoas, por forma consciência do quanto, por exemplo, os óculos de a inibí-los de apanhar este tipo de transporte. sol, podem auxiliar sua visão em dias ensolarados.

IX. Desafios da sociedade perante o fenómeno de Seria igualmente importante a fiscalização, dos discriminação de pessoas portadoras de albinismo trabalhos realizados pelos praticantes de medicina tradicional. Aliás, a AMETRAMO joga um papel Reconhecendo a existência de actos desumanos importante neste processo. Ao todo, estas medidas contra pessoas albinas, quer no plano interno, quer articuladas com outras travariam substancialmente a nível internacional, lança-se um desafio para o sequestro destes, mas sobretudo a sua discrimi- o governo moçambicano, onde muitos albinos nação que, por sua vez, contribui para a ruína da têm vindo a ser sequestrados e assassinados. O auto-estima desta camada social. governo moçambicano tem vindo a tomar medidas sancionatórias para travar este fenómeno, através Bibliografia da detenção dos envolvidos neste processo, que, às CABRAL, J. d., LIVET, P., & GIL, F. (2004). Os vezes, sãos os próprios parentes das vítimas. albinos não morrem: crença e etnicidade no Mo- çambique pós-colonial. Lisboa: Gradiva. Contudo, mais do que medidas sancionatórias, é preciso que se apliquem medidas preventivas, que CALVALCANTE, B. A. (2012). Direitos Huma- passam pela consciencialização das comunidades nos no Brasil - Uma análise sobre o albinismo. através de palestras nos bairros, escolas e igrejas, Fortaleza: Faculdade de Christus. bem como a partir de campanhas televisivas e ra- FAZ-TUDO, J. V. (2013). Um estudo sobre a inser- diofónicas. ção do albino no mercado de empego. Maputo: SE. FREITAS, J., & SANTOS, J. A. (2005). Albinismo

Embondeiro 55 em comunidades indígenas: o factor cultural afec- Adelicia, d. (15 de Setembro de 2015). (A. J. Ma- tando a prevalência da doença. Brasília: SE. gesso, Entrevistador)

Internet Ametramo. (15 de Setembro de 2015). (A. J. Ma- Manuel J. N, G. A. (wwww de jj de ss). ccc. gesso, Entrevistador) Morreira, L. M. (Jan/Abril de 2005). Canal 82 blo- Atumane, G. (14 de Setembro de 2015). Associa- gsport. Obtido em 20 de Setembro de 2015, de ção Amor á Vida. (A. A. Magesso, Entrevistador) www.http://canal82.blogspot.com.br/2015/09/mi Joaquim, A. (14 de Setembro de 2015). Chefe to-sexo-com-albino-pode-curar-sida.html do posto de Natikire. (A. A. Magesso, Entrevis- Fontes Orais tador) Adelícia Desejada, D. A. (15 de Setembro de Mania, L. (14 de Setembro de 2015). Líder Comu- 2015). Associação Amor á Vida. (A. A. Magesso, nitário. (O. M. Angelica Joao, Entrevistador) Entrevistador)

56 Embondeiro A Dimensão Sócio-Cultural do Embondeiro na Província de Tete

Agnelo J. C. Navaia ([email protected]) Moisés J. Victorino ([email protected]) Victoria E. João ([email protected]) Zaino José Valegy ([email protected])

Resumo

A província de Tete é caracterizada por uma grande diversidade de espécies florestais que ao longo do tempo manifestaram-se potencialmente úteis para as diversas comunidades locais. O embondeiro é uma destas espécies, conhecida localmente por “mulambe”, é considerada como árvore sagrada, uma planta mitológica protegida por divindades, carregando consigo muitas representações místicas e muitos significados. Portanto, é aí que reside a dimensão sócio cultu- ral do mulambe, principalmente nos distritos localizados a Sul da Província, onde esta árvore é comum. Por via disso, este artigo, fruto duma revisão bibliográfica alicerçada pelas entrevistas de campo, pretende abordar não só, a relação que existe entre o mulambe e as comunidades, como também a importância deste no campo da gastronomia local, na medicina tradicional e nos rituais.

Palavras-chave: Embondeiro, Gastronomia, Medicina tradicional e Rituais

O Embondeiro - Árvore da Vida dos africanos

Nalgumas regiões africanas, o embondeiro tam- do pelos deuses e posto de cabeça para baixo: a copa bém é conhecido por Baoba. No meio científico, foi enterrada e as raízes ficaram para cima. Quando o embondeiro é designado por adansónia digi- 1 avistamos um fossilizado entende-se a origem desta tata. De acordo com Roletta (2014:39) o nome história” (COTRIM, 2014)2. científico foi dado por Bernard de Jussieu em homenagem a Michel Adanson (1727-1806), Se por um lado a lenda considera-o como uma botânico e explorador francês, quem primeiro árvore amaldiçoada pelos deuses, por outro, a descreveu o embondeiro como “árvore de gran- realidade mostra que o embondeiro é árvore da deza prodigiosa e de utilidade extraordinária” que vida, representa a imortalidade, esperança, força, pode atingir uma altura de 20 metros. resistência, experiência e conhecimento, confor- me atesta Jorginho (2014)3 ao considerar que o Pela sua importância no seio dos africanos, a embondeiro tem para muitos africanos um valor ela associam-se algumas lendas. Por exemplo, sagrado e, seria uma árvore protegida, ligada a no que toca à “aparência física” do embondeiro em períodos de seca, “há uma lenda africana que sentimentos religiosos e seu interior abrigaria es- conta que o embondeiro, nome científicoadanso - píritos. Para ele, em algumas regiões da África é nia, por ter inveja das outras árvores, foi castiga considerado um intermediário entre Deus e os 2 Disponível em viajar.Sapo.mz/curiosidades/Imbondeiro, acesso em 02/03/15 1 In Revista Indico, disponível em www.lam.co.mz, acesso 3 In jorginhoemangola.blogspot.com/2007/04/imbondeiro-r- em 05/03/16 vore-do-tempo-no-h-quem-no.html, acesso em 05/03/15

Embondeiro 57 homens e por via disso, são venerados como re- presentação de identidades inumanas ou espiri- tuais.

Lendas há, uma vez um morto ser sepultado dentro de uma toca de embondeiro, a alma do morto se pendu- ra nos seus ramos e viverá enquanto a planta existir. Esta lenda é sustentada com um facto real observa- do no povoado “m’nsolo wa munthu”, que significa, “cabeça de pessoa”, na localidade de Mukumbura, Logotipo do ARPAC distrito de Mágoe, Província de Tete, foi encontrada uma cabeça de pessoa sepultada a céu aberto, na toca de embondeiro. (ARBORNNIER apud. DIQUICE, 2014:15).

Relatos de Rolleta (2014:39)4 confirmam que o embondeiro é sem dúvidas uma planta de muitos usos: “da casca tiram-se fibras têxteis; o tronco é usado como reservatório de água; do pólen das flores extrai-se uma cola; com a madeira fazem-se canoas, pratos e outros uten- sílios; as folhas, a casca e o fruto são utilizados na alimentação humana e em aplicações medi- Símbolo da República do Senegal cinais.”5 No Senegal o embondeiro aparece estampado no emblema nacional por ser considerada uma árvore Ainda sobre a importância do embondeiro, o es- sagrada que inspira poesia, ritos e lendas. Segundo tudo efectuado pela Vale Moçambique (2012:16) uma das lendas, aceita-se que “uma vez que um vai mais longe ao afirmar que a polpa do fruto é morto seja sepultado dentro do embondeiro, a sua ácida, rica em vitamina C, é utilizada para fazer alma ira viver enquanto a planta existir”. (Ferreira: papas, sumos; as folhas são usadas na alimen- 2010)6. Nalgumas zonas, a sombra protege o acto tação; a casca é usada na cestaria e na medici- de circuncisão e partos.7 na. “O seu tronco pode armazenar até cerca de Na África Ocidental, o tronco é utilizado para se- 120.000 litros de água das chuvas, providen- pultar os griots (os contadores de histórias tradi- ciando assim, um reservatório de água durante cionais), cujas almas irrequietas devem ser manti- a época seca nas regiões semiáridas onde ela das longe das aldeias (Rolleta, idem)8. ocorre”(ibidem). 2. A Dimensão Sócio Cultural do Embondeiro Por ser de elevada importância no seio dos na província de Tete africanos e carregar consigo muitas represen- O embondeiro em Moçambique existe em quase tações e muitos significados, ele constitui em- todas províncias, com maior frequência na Provín- blema em alguns países africanos e logotipo cia de Tete, principalmente nos distritos situados de muitas organizações governamentais pois a sul do rio Zambeze, nomeadamente: cidade de é entendido como símbolo do conhecimento e de experiência. Tete, Changara, Cahora-Bassa, Magoé e Marara. Estes distritos são habitados normalmente pelos

6 Disponível em cc3413.wordpress.com, acesso em 06 de Junho de 2015 4 in Revista Indico, disponível em www.lam.co.mz, acesso em 7 Disponível em Sapo.Viajar de 26 de Fevereiro de 2014, acesso em 05/03/16 30 de Março de 2016 5 ibidem 8 in Revista Indico, disponível em www.lam.co.mz, acesso em 05/03/16 58 Embondeiro nyungwés, exceptuando o distrito de Magoé que é Assim, o mulambe patente no logotipo da cidade habitado pelos tawaras. de Tete deve-se, não só a sua abundância na região, Esta árvore é conhecida entre os naturais falantes como também ao seu significado para os nativos de ci-Nyungwé por mulambe, o seu fruto é deno- que a concebem como árvore do conhecimento, minado malambe no plural e dambe no singular. árvore sagrada ou árvore da vida. “Para os nativos, a palavra embondeiro tem ori- Todavia, na Província de Tete a dimensão sócio gem no termo “mbeu” que significa semente em cultural do Embondeiro para os nativos pode sub- ci-Nyungwé”.9 dividir-se em 3 (três) aspectos, nomeadamente: gastronomia típica, medicina tradicional e cerimó- nias tradicionais. O Embondeiro na Gastronomia Típica da Provín- cia de Tete No que concerne à gastronomia típica da Província de Tete, o embondeiro é considerado uma árvore divina, pois este socorre a população em época de escassez ou de seca e, inspira vários pratos locais, como therere ya kalambe (prato feito à base de O Embondeiro (Foto: Agnelo Navaia) suas folhas piladas), phala la malambe (papa feita a base da farinha do fruto) mphiriphiri ya malambe Nesta região, o mulambe é apreciado não só pela (sumo picante feito a base da mistura de malambe, sombra que produz, como também está ligada in- limão e piri-piri). “As cinzas da casca do malambe timamente à cultura dos “nyungwés” e “tawaras”, usam-se como cikungu (soda) e as suas sementes que a consideram de árvore da vida. Para estes, o (mbuyo) depois de piladas, servem para a produ- ção de óleo de cozinha”.12 mulambe constitui um marcador indissociável da comunidade, serve no campo alimentar e na arte Do embondeiro aproveita-se tudo, desde as folhas que tradicional de cura. Todas as partes desta árvore fazem hortaliça (muliwo) ou uma variante pegajosa (the- servem para a sobrevivência dos nativos desde as rere). “Os frutos mais utilizados do embondeiro (dambe folhas, a cascas, frutos, sementes, que são utili- pl: malambe), de que se utiliza o pó da polpa para con- 13 zados no dia-a-dia das comunidades. O malambe sumo e condimento na fermentação de bebidas.” para além de ganhar um reconhecido mérito no Actualmente, o malambe tem participado activa- seio dos diabéticos10, também ganhou destaque no mente na economia das comunidades locais, que campo da gastronomia moderna, sendo usado no com base na sua comercialização, conseguem fabrico de sumos picantes, iogurtes e diversas so- acrescer os seus rendimentos. bremesas.

Esta planta é considerada ícone dos nyungwés, árvore sa- grada, árvore que simboliza conhecimento, guarda água quando tudo seca, árvore que é casa quando queremos. Nesta província o embondeiro é muito abundante e é de grande auxílio para população local, pois funciona como um alicerce nas diferentes esferas da vida da população residente.11.

9 CATIA, FERRÃO entrevista em 25/06/2015. Marara Malambe, o fruto do embondeiro (Foto Agnelo Navaia) 10 Sobre este aspecto, ver o site: www.jornaldomingo.co.mz/index. php/nacional/4934-o-poder-das-fibras 12 BERNADINO THOLE QUINHENTO entrevista em 22/07/2015, 11 SÉRGIO VINGA -Vereador da Cultura Juventude e Desporto no Marara Município de Tete, entrevista em 15/09/15 13 KINGSTONI DOMINGOS MUMBA. Entrevista em 14/09/15 Magoé

Embondeiro 59 Os nativos confirmaram também que desde os celeiros de cereais. Os frutos também servem de alimento tempos remotos, no período da seca, o mulam- (…) Em tempos recuados era proibido o abate desta e de be oferecia água às populações, já que esta tem outras árvores grandes, pois acreditava-se que é nestas ár- a capacidade de armazenar água no seu tronco, vores grandes ou frondosas onde habitam os espíritos dos através das crateras que se abrem no seu interior.14 antepassados e por isso eram realizadas várias cerimónias (…) mas o embondeiro não é único lugar para venerar os 2.2 O Embondeiro na Medicina Tradicional espíritos dos antepassados.17

Na medicina tradicional, as suas folhas são usadas Apesar de o embondeiro não ser o único lugar para no combate a febres, inflamações do corpo e ser- venerar os espíritos dos antepassados, é debaixo vem como antidiarréicos. “Também utiliza-se o pó desta árvore que os líderes tradicionais locais reú- das folhas seca no combate contra a kusaya mu- nem-se para deliberar questões relacionados com a lopa ku (anemia aguda), kupandza ku (disenteria), vida da comunidade e é nela onde os mais velhos nyamakaza mu (reumatismo), n´kantsu (asma) e, juntam a juventude para contar histórias. para além de outras vantagens, também abre ape- tite nas mulheres grávidas e nas pessoas doentes, Os nativos confirmaram que as crateras, que se em particular.15 abrem no interior do mphako (tronco), em tempos re- motos, serviam de sepulturas e actualmente também servem muitas vezes de local onde são depositados Do mesmo modo, os nativos consideram que, tam- instrumentos e vestuários de curandeiros já pereci- bém as raízes desta planta são usadas para banhar dos. Igualmente acreditavam que se um morto fosse os recém-nascidos por forma que estes posam ad- sepultado dentro de um embondeiro o seu espirito quirir um corpo saudável, tal como a planta. Se- permaneceria na terra enquanto a planta existisse. gundo os mesmos, a planta possui um reconhecido papel afrodisíaco pois, aumenta o desempenho se- xual dos homens e retarda a ejaculação.

2.3 O Embondeiro nas Cerimónias Tradicionais O mulambe é venerado pelos curandeiros no âm- bito da realização de cerimónias que ligam as en- tidades sobrenaturais (espíritos dos antepassados) e as populações nos distritos de Chagara, Marara, Cahora Bassa e Magoé. Transmite uma “simbiose” entre natureza e espiritualidade, talvez determina- da ou explicada, primeiramente, pelos benefícios que oferece às pessoas e, depois por servir de canal Os instrumentos de curandeiro guardados no interior do de comunicação entre os humanos e os espíritos. É embondeiro (Foto: Moisés Victorino) nesta árvore onde os naturais acreditam repousar o Partindo da ideia de que o espirito do malogrado 16 espírito dos seus antepassados. passa a viver nesta árvore, acredita-se que é a par- O mulambe era usado para sepultura dos mortos, nas suas tir de lá onde um membro da família teria inspira- crateras que se abrem no interior do tronco, para além ção para seguir a carreira de curandeiro, daí que de poderem armazenar água, serviram muitas vezes de advogam que os instrumentos por ele usados em vida, não deviam permanecer em sua casa, porque 14 Sobre este aspecto, ver o filmeGuerra da Água do realiza- iriam amaldiçoar a família e causar doenças aos dor Licínio Azevedo (1996) seus descendentes. 15 TERESA JULIANO ALBANO, entrevista em 15/07/2015. Chitima 17 MATOPE NSTAWAIO MANHEMBANHEMBA, entrevista em 16 MARIA JOÃO BAPTISTA, entrevista de 22/06/2015. Chitima 16/09/15. Magoé

60 Embondeiro Estudos etnológicos efectuados por Oliveira Ligado à cerimónia de kutayrira cikwambo Bap- (1976:95) apontam que “tradicionalmente os tista19, outro dos entrevistados, conta a seguinte tawaras da região de Chicoa e Magoé não enter- versão: ravam os mortos vítimas da tuberculose ou lepra; estes eram deixados em estrados, no alto das árvo- Quando um indivíduo possui espíritos malignos, leva- se este ao nyabezi onde é vestido de tecidos brancos e res para não contaminarem a terra.” Supõe-se que vermelhos impregnados de ervas tradicionais. Para além a árvore referida seja o embondeiro, não só pela desses tecidos, o indivíduo em causa deve trazer consigo abundância na região, como também pelo valor outro vestuário, para efectuar a troca (…) daí leva-se o espiritual que esta possui. Por via disso, interessa- doente até ao mulambe, onde debaixo dela serão retirados nos aqui explorar a dimensão mitológica do “mu- e deixados os referidos tecidos. Depois da troca, o doente lambe” tendo em conta as cerimónias tradicionais volta para sua casa sem olhar para traz, pois, se o fizer, o (rituais) realizadas pelos nyabezis (curandeiros) espírito maligno voltará ao seu corpo. e com elas as ofertas que são depositadas na sua base. Nesta perspectiva, pode-se concluir que a reali- zação do kutayrira cikwambo recorrendo ao mu- Dentre muitos rituais inspirados nesta árvore, des- lambe é um processo complexo visto que existem diversas formas e diversos procedimentos, quer no tacaremos apenas o kutayrira cikwambo (exorcis- seio dos ciNyungwés, quer no seio dos tawaras. mo) e likankho (feitiço por causa de adultério).

Kutayrira Cikwambo Likankho de Embondeiro Este ritual acontece quando se acredita que um in- divíduo esteja possuído por espíritos maus e que “O likankho é um mecanismo de controlo tradicio- para o libertar destes (expulsão por exorcismo), nal colocado na mulher casada, geralmente, pelo 20 recorre-se ao tratamento do nyabezi. Dos requi- seu marido, para controlar a sua fidelidade.” . De sitos necessários para esta prática, destacam-se acordo com a mesma fonte, o likankho também era, no passado, colocado numa mulher pelos seus capulanas vermelhas, galinhas, facas, moedas ou próprios pais, como forma de evitar relacionamen- outros artigos, consoante a orientação dada pelo tos antes das cerimónias do lobolo. curandeiro. Estando os familiares sentados em se- micírculo à sombra do mulambe, o nyabezi profere dizeres pedindo que o espírito abandone o indiví- No geral, o recurso aos elementos de natureza má- duo possuído por tais espíritos. Terminado o ritual, gica designado “likankho”, tinham em vista a mor- os participantes abandonam o local deixando todos te de todos os prevaricadores, isto é, tanto o adúlte- os artigos debaixo da árvore na esperança de que o ro como a mulher tratada que incorresse em actos espírito abandone o indivíduo em causa. de adultério, eram condenados à morte por força do tratamento. De entre vários tipos de likankho, A casca do embondeiro é igualmente usada no há que destacar o likankho de embondeiro. O efei- processo de expulsão dos espíritos malignos. Este to deste sobre os adúlteros seguia o processo da tipo de cerimónias realiza-se, normalmente, num própria planta e “se a mulher tratada se envolvesse entroncamento ou cruzamento de caminhos. No dizer de Paiva18, o “nyabezi parte a casca do fruto sexualmente com alguém (outro parceiro), este in- do embondeiro, coloca fezes e penas de galinha e chava o corpo tal como um embondeiro e, se não efectua a expulsão do espirito com base em rezas recorresse a um especialista (nyabezi) para neutra- 21 espirituais e, no fim abandona-se tudo e volta-se à lizar o efeito do likankho, perdia a vida. casa sem olhar para trás”. 19 Maria João Baptista, entrevista em 22/06/2015 Chitima- Cahora Bassa 18 Rosinda Quidone Paiva, entrevista em 22/06/2015. Chiti- 20 António Pascoal, entrevista em 13/03/15 Changara ma-Cahora Bassa 21 Entrevista citada.

Embondeiro 61 Importa destacar que, nem sempre, os curandeiros VALE Moçambique. Miti- Árvores do Projecto conseguiam travar o efeito do likankho. No entanto, Carvão Moatize. Maputo: VALE-Gerência de actualmente o recurso ao likankho como meio de ga- Meio Ambiente, 2012. rantir a fidelidade, tende a extinguir-se, sobretudo, por Internet causa da dinâmica social e com ela a globalização. COTRIM, Teresa (2014) disponível em viajar. Sapo.mz/curiosidades/Imbondeiro, acesso em Considerações Finais 02/03/15. FERREIRA, N. (2010), disponível em cc3413. Em Tete, o mulambe pode não ser a única árvo- wordpress.com, acesso em 06 de Junho de 2015 re usada nas cerimónias tradicionais de veneração dos espíritos dos antepassados, mas é, sem dúvi- jorginhoemangola.blogspot.com/2007/04/imbon- das, a árvore da vida quer no seio dos nyungwés, deiro-rvore-do-tempo-no-h-quem-no.html, acesso quer no seio dos tawaras. É que para além dos seus em 05/03/15 múltiplos usos no campo da gastronomia e da me- dicina tradicional, o mulambe, pela sua capacidade ROLLETA, Paolla (2014) in Revista Indico, dis- de reter água, é extremamente útil para as popula- ponível em www.lam.co.mz, acesso em 05/03/16 ções aquando do período da seca. Sapo.viajar de 26 de Fevereiro de 2014 acesso em 30 de Março de 2016 Bibliografia

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62 Embondeiro O Papel dos Contos no Processo de Socialização

Osvaldo Zandamela [email protected]

Resumo

Este artigo procura compreender o papel dos contos no processo de socialização na Provín- cia de Maputo. Nesta província, assiste-se a certas mudanças nas experiências quotidianas das comunidades, em domínios como a sexualidade e da vida familiar, facto que leva a apelos em torno do regresso a moral de outrora, através dos mecanismos tradicionais de socialização, como é o caso dos contos. Nele, analisou-se a função dos valores e normas im- buídos nos contos, o papel de cada membro da família na sua relação com estas narrativas. Com isto, aferiu-se que os contos funcionam como mecanismo de disseminação de valores morais, assim como, de conhecimentos práticos ligados a algumas actividades económicas e, a sua narração é normalizada por preceitos socioculturais, que ditam quem deve narrar e, em que tempo e espaço os mesmos devem fazê-lo.

Palavras-chave: Contos, Socialização, Tradição, Moral.

Introdução Este estudo foi realizado na Província de Mapu- to, especificamente nos distritos de Boane, Na- A tradição oral é uma das principais caracterís- maacha, Matola, Marracuene, Manhiça e Magude, ticas das sociedades africanas e a moçambicana visto que, estas manifestações socioculturais são não foge à regra. Os contos gerais, da província predominantes em quase todas as comunidades de Maputo, em particular, constituem um veículo desta grande província. Este trabalho, adopta uma de transmissão de normas e valores culturais acu- abordagem qualitativa onde a metodologia usada mulados pelas comunidades, que vão passando de consistiu em entrevistas semi - estruturadas com geração para geração. Todavia, com a globaliza- guiões de entrevistas previamente elaborados, ção, fenómeno que é descrito como catalisador de conduzidas nas línguas portuguesa, Ronga e Chan- grandes mudanças nas experiências do dia-a-dia gana. Estes métodos tornaram possível o contacto das comunidades, obrigando assim, a redefinição directo com os contadores de histórias e a aprendi- de determinados aspectos sociais, como por exem- zagem da realidade cultural em torno deste tipo de plo, no domínio da sexualidade e da vida familiar, eventos. Para além destes métodos, fez-se consul- (Giddens, 2001; Hobsbawm, 2010). Com efeito, a ta a documentos que forneceram elementos para a miúde, assiste-se por parte de certas camadas da interpretação e de suporte teórico para a contex- sociedade apelos favoráveis ao regresso ao passa- tualização e análise do tema. O universo dos en- do, ou seja, em defesa da moral de outrora, através trevistados foi de 30 indivíduos, dos quais 15 são do resgate dos mecanismos tradicionais de sociali- contadores de histórias (9 mulheres e 6 homens) e 15 jovens (6 mulheres e 9 homens), escolhidos em zação, como é o caso dos contos. função da aceitação e do interesse em fazer parte É neste âmbito, que o presente artigo tem como da pesquisa. objectivo central compreender o papel dos contos O interesse em estudar os contos prende-se ao no processo de socialização, para tal, vai analisar facto de, vezes sem conta, defender-se que os va- os valores morais imbuídos nos contos, bem como, lores morais da sociedade moçambicana encon- as funções exercidas pelos membros do agregado tram-se em decadência, por conseguinte, apelan- familiar na sua relação com estas narrativas. do-se ao resgate dos mecanismos tradicionais de

Embondeiro 63 socialização. Assim, espera-se que o presente es- dade dos mais novos era construída em função da tudo, contribua para a valorização, disseminação interiorização das crenças e valores tradicionais e conservação deste espólio sociocultural, isto é, imbuídos nestas narrativas, diferenciando-se dos dos contos, num contexto marcado pelo fenómeno que não participaram nestas práticas4, como é o da globalização, com tendências a transformar caso das novas gerações5. o mundo numa aldeia global, por conseguinte, incorrendo-se no risco de perda de valores morais Entre as narrativas mais populares, destacam-se e identitários de um povo. O outro aspecto, pren- contos em que praticamente os personagens são de-se ao facto da constituição da república (2004), constituídos por animais como o Coelho, o Maca- a lei 10/88 de 22 de Dezembro e a política cultural co, o Cagado, o Hipopótamo, a Hiena etc. Onde, o Coelho ocupa, quase sempre, uma centralidade 12/97 de 10 de Junho, e outros instrumentos nor- no enredo, através da vitória sobre os mais fortes mativos realçarem a necessidade de preservação e fisicamente, com o recurso à astúcia e inteligência, valorização do património cultural no seu todo, ou ou seja, a sabedoria das criaturas fracas sobre os seja, tangível e intangível. monstros cruéis, típico dos contos Tsonga6, clas- 1.Que valores transmitem os contos? sificados como folclore animalista, (Junod, 1996). Por vezes, celebrando-se, também, a derrota da Na província de Maputo, os contos populares1 esperteza do mesmo a favor de valores ligados à são usados como mecanismo de transmissão de honestidade, trabalho e solidariedade. conhecimentos, ensinamentos por via oral. Onde, durante o processo de socialização primária2, são Este género narrativo mostra que os mais desfavo- transmitidos valores e normas morais para as gera- recidos, caracterizados por animais como o coe- ções seguintes, ou seja, “(…) eu ouvia com minha lho, ou seja, considerados fisicamente fracos, mas avó, e na altura tinha 5 anos de idade (…) ela nos com a astúcia e sabedoria conseguem vencer os contava para a gente saber, mesmo quando que- poderosos/chefes, representados por animais for- remos construir um lar, saber como fazer (…)”3. tes como o Elefante e o Leão, que muitas das vezes Assim, a narração das histórias funcionava como se apresentam com atitudes cruéis e hostis em rela- uma espécie de viagens no tempo, descrevendo-se ção aos primeiros, passam por vezes por situações realidades ou experiências vividas, isto é, a tradi- descritas nos contos. Deste modo, servindo como ção orienta as novas gerações para os costumes e uma espécie de alegorias políticas, onde se apela valores do passado influenciando, em grande me- aos dirigentes que se comportem segundo valores dida, as práticas actuais (Giddens, 1997). morais na relação com os seus súditos, e não só, visto que, estes exemplos são igualmente ajustá- Pois, os ensinamentos imbuídos nos contos servi- veis a outras esferas da vida social, ainda que, com ram como padrões de comportamento que regiam o andar do tempo, possam também aparecer mu- os mais novos nas suas maneiras de agir, aceites danças no significado e nas interpretações feitas pela família e comunidade no exercício dos seus aos mesmos7. Pois, “os significados culturais são diferentes papéis sociais, (Durkheim, 2003), visto 4 que, segundo os nossos entrevistados, as crianças Práticas, entendendo-se como um sistema de conhecimen- tos, técnicas, códigos, disposições e valores que os indiví- que ouviam os contos, exerciam as tarefas de casa duos vão desenvolvendo e aperfeiçoado, ao longo da vida, ou os trabalhos domésticos que lhes fossem atri- mas que se integram em quadros sócio-históricos mais am- buídos sem nenhuma resiliência. Assim, a identi- plos (comunitários, profissionais, de género e, etc), (Bour- dieu cit. Abrantes e Katúmua, 2014: 67) 1 Tende a estar associada as narrativas tradicionais que são 5 Aspecto que iremos descorar no capítulo intitulado conti- transmitidas de geração em geração, oralmente (de boca nuidade e descontinuidades. em boca), geralmente vocacionados para fins construtivos, 6 A tribo tsonga compõem-se dum grupo de populações ban- (Mário de Andrade, 1973). tu, em Moçambique podemos encontrar nos distrito de Lou- 2 Socialização primária, ocorre na família, ou seja, todo o renço Marques (hoje Maputo e Gaza), Inhambane e Provín- mundo social da criança é interiorizado, mediatizado pela cia de Manica e Sofala, (Junod, 1996). família, através de valores e conhecimentos pertencentes ao 7 Giddens, chama atenção para os processos através dos quais mundo social em que vive, (Berger e Luckmann 1996). a utilização esta relacionada com a estrutura de um sistema 3 Celina Júlio Tivane. 34 anos. Magude. social e, as modificações são fruto da constante interacção,

64 Embondeiro intersujectivamente negociados, que mudam com vas, que se pode incluir nos contos classificados o tempo e que os indivíduos podem divergir na im- por Junod (1996) como baseadas em factos reais. portância que atribuem às mensagens”, (Berger e Estas definições servem como mecanismo de edu- Luckmann apud. Layton, 1997: 164) cação das raparigas ou das mulheres em torno da Assim, apesar do seu carácter animalista/zoomór- sua futura ida ao lar, visto que, desde tenra ida- ficas, encontramos muitas características naturais de, estas eram socializadas em torno de valores e e sociais inerentes aos seres humanos, como é o normas, como por exemplo, as práticas domésti- caso da fala e das situações com que nos depara- cas, como cozinhar, cuidar das crianças e dos mais mos no nosso quotidiano, ou seja, “recorrendo-se velhos. Desta forma, tornando-se decisivos para a ao mundo natural para encontrar símbolos que re- integração social da rapariga no seio da família/ presentam ideias, valores característicos das suas casamento. comunidades” (Layton, 1997: 115). Permitindo Assim, através dos preceitos supracitados, especi- assim, que os ouvintes mais novos estabeleçam uma ligação entre o imaginário e o real, através ficamente da divisão sexual do trabalho, definem- dos diversos momentos que os personagens repre- se a partir de tenra idade os espaços ou lugares sentados, neste caso, por animais, se deparam ao ocupados pelos homens assim como pelas mulhe- res na família, no presente e no futuro, baseados longo das narrativas (alegrias, dificuldades e con- 9 flitos). Com efeito, servindo-se de mecanismos no passado (tradição ), ou melhor, cabe à mulher explicativos para que as novas gerações consigam o espaço doméstico e ao homem o espaço públi- identificar as soluções para as suas dificuldades, co. Reproduzindo-se assim, os valores e normas da mas sempre em torno dos valores morais aceites família tradicional, que vão passando de geração no seio da comunidade. em geração, naturalizando-se e colaborando em grande medida na construção das identidades tanto A solidariedade constitui-se num elemento basilar feminina como masculina. na estruturação das relações sociais entre os perso- Deste modo, os mecanismos usados na dissemi- nagens dos enredos, através da projecção de comu- nação e reprodução de valores morais, normas e nidades baseadas em laços de solidariedade, onde práticas inerentes ao processo de socialização pri- a ligação do indivíduo ao grupo ou às actividades mária, como é o caso dos contos, num sistema de do mesmo, resulta da consciência colectiva ou representação colectiva (Durkeim 2003), eviden- organização sociocultural onde a figura masculina ciando-se assim, um valor filosófico, ou seja, como é tida como dominadora (poder) em detrimento da a comunidade deve ou devia ser, apesar desta, feminina, especificamente no patriarcado, -domi amiudadamente, ser representada por animais. Isto nante no Sul de Moçambique, onde se insere a Pro- é, os trabalhos no seio destas são comuns, funcio- víncia de Maputo, aqui em análise, servem também nando em benefício de todos. Além da solidarie- como mecanismos de disseminação e reprodução dade, os ensinamentos versam, igualmente, sobre das desigualdades sociais no seio da família/comu- a reprodução e sedimentação de valores ligados à nidade, visto que, para o surgimento das mesmas, honestidade8, que pode ser objectivado na disse- é preciso que haja uma organização social que per- minação de valores ligados à cultura de trabalho mita o aparecimento destas, (Durkheim, 2003). como mecanismo de sobrevivência, em detrimento do envolvimento em actividades ilícitas, como por O carácter sancionatório muito ligada a questão exemplo: a burla, o roubo etc. moral é algo sempre presente neste género nar- rativo, como consequência da inobservância das A definição de papéis de género no seio da família normativas morais que põem em causa a ordem é também um dos pontos centrais destas narrati- socialmente instituída, “pois mostra que as más acções ou os maus caracteres encontram a justi- ou negociação, entre as utilizações novas e as já existentes, (Giddens cit. Layton 1997). ça”, (Junod, 1996: 193). Por vezes, recorrendo-se 8 Apesar das narrativas por nós analisadas, estes dois conceitos a cosmologias locais através de seres desconheci- (solidariedade e honestidade) andarem de certa forma imbri- cados, a separação por nós feita é em termos analíticos e inter- 9 Conceito de Passado, que é usado pelos nossos entrevista- pretativos, para melhor compreensão do fenómeno em estudo. dos como sinónimo de tradição.

Embondeiro 65 dos, ou seja, de “ histórias de monstros que a gen- mecanismo para espantar os macacos das suas ma- te nem sabe se existem ou não, falavam de coisas chambas. misteriosas que a gente nunca viu e jamais verá, coisas que não existem, mais falam que existiam Ora, apesar da picada da serpente ser nociva à saú- (…)”10, classificados por Junod (Ibidem) como de humana, este réptil serve para evitar que os in- contos de ogros. Estes seres, servem de executores divíduos incorram em situações de perca das suas dos castigos aos humanos pelos seus lapsos, de- produções por consequência da situação aqui des- correntes dos exercícios dos seus diversos papéis crita. Pois, na cultura dos povos Tsonga, a figura sociais como membros da família/comunidade, le- da serpente ocupa um lugar central no que toca à vando assim, a que os indivíduos a partir destes protecção dos seus campos agrícolas dos possíveis exemplos da realidade diegética, tenham medo de ladrões, conjugado com aspectos magicos-religio- cometer tais transgressões no seu quotidiano. sos, próprios da magia Banta, (Junod,1996). Pois, no imaginário social dos povos Tsonga, po- O passado (tradição), objectivado nas situações so- demos encontrar a figura destes monstros ou seres ciais adscritas nos contos, funciona como mecanis- desconhecidos, isto é, ogros que na língua zulu mo de alerta social para acontecimentos futuros, são denominados “Xitukulumukumba”, que tem visto que, por antecipação, repetição de cenários designação rhonga correspondente a “N’wambilu- existentes, tem-se a noção, segundo a qual, as si- timhokorha”, que significa aquilo que tem - esca tuações do passado irão, com certeza, voltar acon- mas no coração e, come os seres humanos, (Junod, tecer no futuro. Evidenciando-se assim, uma certa 1996). Segundo este autor, estes caracterizam-se visão de repetibilidade da tradição. pela sua força bruta, a substância sem espírito, são Entre os vários géneros de contos por nós arro- derrotados, punidos pelas suas más acções e ge- lados neste subcapítulo, constatamos que, o tipo ralmente esquartejados (com o intuito de possibi- animalista/zoomórfico é o que mais se evidência litar a saída das vítimas que eles tinham ingerido) comparativamente aos outros, fenómenos que po- (Junod, Ibidem). Contudo, nos contos por nós re- dem ser objectivados pela presença de narrativas colhidos, os mesmos, apesar de terem a mesmas semelhantes nos diversos distritos que constituem características, como é o caso de se alimentarem a vasta Província de Maputo. Com efeito, transcen- ou comerem os seres humanos, diferenciam-se dendo aquilo que são as divisões geo-administra- nas suas funções, ou seja, são executores dos cas- tivas, tornando-se assim, numa presença unânime tigos aos seres humanos devido às suas falhas e no imaginário colectivo das comunidades locais, não como vilões das histórias, como foi ilustra- fazendo com que se partilhem de certo modo, os do no parágrafo acima. Evidenciando-se assim, a mesmos valores morais e ensinamentos práticos, possibilidade de existência de certas mutações ou apesar de, actualmente, no cômputo geral, os con- ampliação nos papéis exercidos por alguns perso- tos estarem a cair no esquecimento. nagens com o andar do tempo. 2. Quem é o contador aqui descrito? A importância destes contos, não reside apenas na sua valia moral, mas também no facto de trazerem A tarefa de narrador, não era atribuída a qualquer consigo um carácter prático, ligado às activida- membro da família, mas imputada aos mais velhos des agrícolas, onde através do imaginário social, (avós, pais e tios), sem descriminação de sexo, são explicados os mecanismos para a protecção visto que, estes têm a função de guardiões e trans- missores da herança cultural da família/comunida- das suas produções dos possíveis invasores ou la- de, (Giddens, 1997). Enquanto os mais novos, ape- drões, no caso específico dos macacos, através da sar de somente terem a função de interiorizar os enunciação da origem das rivalidades ou incom- ensinamentos e experiências transmitidos, não são patibilidades perenes entre certos animais, como agentes passivos do processo de narração. Pois, é o caso específico da Serpente e do Macaco, por apesar da narração tratar-se de uma espécie de mo- conseguinte, usando-se este conhecimento como nólogo, onde o contador se decompõe em diversas personagens, recorrendo concomitantemente ao 10 Xibomana Armando Tovela, Boane. discurso indirecto assim como do directo, isto é,

66 Embondeiro indirecto como forma de relatar as acções ou os Deste modo, no seio destas famílias, um dos crité- feitos dos personagens do enredo, distanciando-se rios estruturantes da organização social é a questão do mesmo. Por seu turno, aproximando-se, quan- etária. Isto é, cada grau etário11 em que os indiví- do utiliza o discurso directo, objectivado quando duos estão, pressupõe um papel social que define a narra na primeira pessoa, consubstanciando pelas sua função no seio da mesma, ou melhor, o poder de onomatopeias e gestos de certos animais como socialização está centrado somente nos mais velhos por exemplo: a imitação dos gestos e sons que o em função da sua categoria social (anciãos), trans- coelho emite, como se dele se trata-se. Todavia, os mitem para as novas gerações os valores, normas e mais novos também participam das diferentes fa- práticas socioculturais e, a sua legitimação parte do ses constitutivas deste ritual, numa primeira fase reconhecimento pelos últimos, de que os primeiros respondendo ao narrador quando afirma no início são detentores de tais conhecimentos, igualmente de cada conto, “karingana ua karingana” e os últi- em conformidade com o seu grau etário (infância), mos respondem “karingana”, acção que tem a sua (Abrantes e Katúmua, 2014; Layton, 1997). repetibilidade nas várias pausas que o narrador vai Estes serrões, como foi supracitado, de forma ma- fazendo no decurso do mesmo. nifesta têm a função educativa, mas de forma la- Esta constante interacção entre o narrador e os tente, servem também como um processo de so- ouvintes funciona igualmente como mecanismo cialização ou como uma espécie de passagem de introdutório das narrações, assim como forma de testemunho ou de formação dos novos contadores, medir os níveis de concentração dos assistentes, visto que, os jovens enquanto sujeitos sociais, pelo facto de habitualmente passarem por este ritual, em torno da história que vai ser ou está a ser con- desenvolveram habilidades que por vezes, levam tada naquele momento e, no fim, o contador afir- a que, no futuro passem igualmente a exercer o ma “too karingana”, como acto de encerramento papel de contadores, visto que, os graus etários da mesma. Contudo, o encerramento do conto, não são de natureza transitórios, (Layton, 1997). Estas significa o fim dos ensinamentos imbuídos no mes- aptidões, são desenvolvidas também a partir da mo, pois, a fase subsequente é reservada à explica- capacidade de apreensão (memória) dos contos ção, por parte do narrador, em torno da moral da por parte do sujeito e, a posterior, narração dos história, ou seja, que lição a mesmo presta. mesmos com uma certa eloquência, numa primeira Assim, pode-se aferir que estas narrativas, no que fase aos irmãos, primos e amigos. toca à forma, estão divididas em duas partes, com Apesar de ser evidente o carácter patriarcal como conteúdos diferentes, mas numa relação de com- determinante das configurações das relações so- plementaridade, isto é, a primeira é restrita ao acto ciais no seio das famílias, ou seja, a figura mascu- de contar a história em si e, a segunda, a explicação lina na posição de autoridade como foi abordado, da moral da mesma. Pois, a partir da primeira fase, consubstanciado com os valores que de certo modo ou melhor, da narração, os interlocutores (os mais são desiguais imbuídos em alguns contos, como novos) podem-se deleitar com as situações relata- vimos no capítulo anterior, através das entrevistas, das na diegese, com possibilidades de subjectiva- consubstanciadas com a literatura existente, cons- mente construírem várias interpretações em torno tatou-se que, no que concerne aos contos, a figu- das mesmas na dimensão cognitiva. Por seu turno, ra da mulher é determinante na perpetuação deste a segunda e última fase, objectivamente o narrador modo de ser e estar, visto que, a maior parte Este (os mais velhos), dita qual é a moral da história, facto, de certo modo, pode ser explicado através da visto que, apesar da moral estar a ser enunciada no divisão social do trabalho no seio do patriarcado, presente momento, esta foi sedimentada ao longo ou seja, no seio da família, as tarefas domésticas dos tempos pelas tradições locais. 11 Constitui-se numa categoria social pela qual todos devem pas- sar. Cada grau é associado a um estatuto, que define a função que a pessoa deverá desempenhar em relação aos outros elemen- tos não só do mesmo, mas de outros graus, (Layton, 1997: 68).

Embondeiro 67 estão sobre alçada da mulher, onde de entre outras por exemplo, através das diversas expressões fa- funções adscritas a este espaço social, estas têm a ciais que o narrador vai efectuando durante a nar- função de cuidar da educação dos mais novos, con- ração (de zanga, de , de alegria, etc). substanciando-se ao caso dos contos tradicionais ao lado dos mitos, lendas, provérbios etc, serem Assim, funcionam concomitantemente como for- usados como mecanismos de transmissão de co- mas de entreter os ouvintes, como também, de nhecimentos às novas gerações. auxílio na passagem das mensagens. Pois, as re- presentações “que têm mais chances de sobreviver A oralidade, objectivada na narração dos contos, em um ambiente composto quase que unicamente serve como o principal instrumento que os mais por memórias humanas são aquelas que são codi- velhos (narradores) utilizam para a transmissão de ficadas em narrativas dramáticas, agradáveis de conhecimentos, ensinamentos e valores às novas ser ouvidas, trazendo uma forte carga emotiva e gerações. Contudo, recorre-se, também, à outras acompanhadas de música e rituais diversos”, (Lo- ferramentas complementares, tanto orais, como de pes 2004:181). Desencadeando nos ouvintes mais ordem estética12, como por exemplo: os movimen- novos, reacções de muita felicidade, que podem tos corporais, danças e as canções. ser objectivadas em forma de sorrisos e de palmas.

As canções, frequentemente servem para exprimir Deste modo, no processo de transmissão de valores sentimentos de angústia em torno de alguma situa- e práticas através dos contos, entrecruzem-se vá- ção ou ocorrência narrada no conto, assim como, rios estilos artísticos, obrigando assim, conscien- de momentos de alegria descritos nos mesmos. temente ou inconscientemente a que o narrador se Podemos assistir à sua repetibilidade no decurso insira em outros géneros artísticos culturais, como mesmo, chegando-se mesmo a repetir por mais a dança, o canto e o teatro, pois, são decisivos na de duas vezes. Como sustenta Gilberto Matusse passagem e na ulterior sedimentação destes conhe- (1998), quando afirma que, as sequências cantadas cimentos socioculturas de geração em geração. constituem-se numa das características essenciais das narrativas orais ronga13. O acto de contar, realizava-se somente de noite, juntamente com outras brincadeiras como adivi- Estas sequências cantadas que podem ser amiúde nhas (cognominadas de teka-teka), provérbios, encontradas nos contos, muitas das vezes, os ouvin- danças como forma de ocupar os tempos livres, tes também participam nas execuções das mesmas, pois o período do dia (tempo) era dedicado aos tra- isto é, os narradores frequentemente pedem que os balhos na terra (espaço), onde através da agricultu- mesmos os acompanhem ou repitam com eles as ra e da pastorícia, plantavam e colhiam os alimen- canções ou os coros, por vezes começando-se mes- tos, assim como apascentavam o gado, condições mo por ensinar a própria canção aos interlocutores. basilares para a sua sobrevivência e reprodução do seu agregado familiar. Assim, o tempo adjudica- O drama, objectivado nos movimentos corporais, do às actividades quotidianas, estava intimamente serve também como mecanismos de reter o públi- interligado à natureza, ou seja, aos ciclos do dia co e ajudar na passagem da mensagem em torno da (baseando-se no sol14). história que está a ser contada, facilitando a descri- Deste modo, o tempo e espaço, ou melhor, o facto ção do estado emocional dos personagens, como de os contos serem narrados em casa, especifica-

12 Neste contexto, por estética, não se deve entender como 14 Segundo Giddens, todas as culturas pré-modernas ou tra- uma interpretação dos objectos artísticos com o objectivo dicionais, possuíam maneiras de calcular o tempo, mas o contemplativo, mas pelo contrário, por representarem no cálculo do tempo que constituía a base da vida quotidiana, ritual como mecanismos que auxiliam na interpretação e certamente para a maioria da população, sempre vinculou o compreensão da realidade social, (Marc Augé e Jean Paul tempo e lugar e, era geralmente impreciso e variável. Nin- Colleyn, 2005). guém poderia dizer a hora do dia sem referência a outros 13 Apesar de termos recolhidos contos com sequências can- marcadores socio-espaciais: quando era quase, universal- tadas no distrito de Magude, considerada região dominante- mente, ou conectado aonde ou identificado por ocorrências mente pelos povos Changana na Província de Maputo. naturais regulares, (Giddens, 1991:21).

68 Embondeiro mente no quintal, em volta da fogueira e no pe- narrados no período de dia, ou seja, não obstruam ríodo da noite, encerram em si vários significados o tempo de trabalho, igualmente profícuo, onde no seio das actividades quotidianas exercidas pe- grande parte dos ensinamentos contidos nestas los diversos membros constituintes do agregado narrativas eram ou são implementados. familiar, como por exemplo, o fim da jornada de Nestes serrões, não existia um fechamento (fecha- trabalho do papá, a mamã e os filhos já recolhe- ram os animais para o curral, todos já jantaram e, mento social) à participação dos indivíduos de fora representando também o início do tempo de lazer da família, ou melhor, dos vizinhos, apesar de, por ou da diversão em família, fomentando-se assim, o vezes, os mesmos serem também considerados gosto por actividades lúdicas e, ao mesmo tempo, família, no sentido amplo do termo16. Embora, a contribuindo em grande medida para a coesão dos ocupação dos espaços era segundo o parentesco, laços familiares: isto é, o direito de posse e uso de grandes exten- Segundo os nossos entrevistados, chegava-se sões de terra através do direito consuetudinário, mesmo a recorrer a tabus15 para a manutenção e podia estar nas mãos de uma única família, que era justificação desta ordem socialmente instituída e, partilhada ou redistribuídas em termos de unidades o seu desrespeito acarretava consequências para domésticas pelos pais e pelos filhos já casados. As- o infractor, isto é, ficando com memória alterada sim, os membros da geração mais nova (os filhos (maluco), contrariamente ao que acontece actual- e netos), sujeitos à autoridade dos mais velhos ou mente em contexto urbano, onde não se respeita a anciãos, por vezes juntavam-se na casa dos mes- proibição de narrar os contos durante o dia, visto mos para, em família, ouvirem os ensinamentos que, esta prática social, já não se encontra sobre o transmitidos pelos contos. Mas tal não se assistia domínio da força da tradição, concretamente dos com frequência, visto que, não tinham o contac- tabus, deixando-se assim espaço para a reflexibi- lidade dos indivíduos em torno das suas escolhas. to imediato, mas tinham sentimento de pertença, 17 Facto que podemos também encontrar relatado em ou melhor, em contexto rural , as moradias encon- Junod (1996), isto é, o uso do tabu para restrin- tram-se distantes umas das outras, isolando, de certo gir que os contos fossem narrados no período do modo, uma unidade doméstica da outra. dia, apesar de não ser o mesmo do acima ilustrado, ou melhor, não se recorrendo ao mesmo tabu para Deste modo, podemos aferir que a distância entre justificar esta situação. Pressupondo-se assim, que as unidades habitacionais eram inversamente pro- os tabus para a manutenção desta ordem podem porcionais às relações sociais, isto é, que apesar das variar, mas a função dos mesmos não. moradias familiares serem distantes umas das ou- tras, as relações sociais eram de proximidade, ba- Assim, com o objectivo de separar o tempo re- 18 servado ao trabalho e o de lazer, como forma de seando-se num consenso de opinião em torno do garantir a produção que garanta a sobrevivência e 16 Inclui membros por aliança e consanguinidade mas não reprodução das comunidades locais, eram utiliza- só: pode integrar membros cuja relação de parentesco atri- dos mecanismos aparentemente irracionais, mas buída voluntariamente (Cristina Rodrigues, 2007). com lógicas racionais por detrás das mesmas, que 17 Rural, critério utilizado frequentemente pelos Sociólogos, contribuem para manutenção da ordem social e Antropólogos e Geógrafos para definir, as comunidades com funcionalidade do sistema instituído. Isto é, numa baixa densidade da população e maioritariamente dedicada à agricultura, e, o urbano, como centros, com altas concentra- relação de complementaridade, no tempo de lazer ções de população, ocupadas, sobretudo, na indústria e nos (de noite), os contos têm a função de transmitir serviços, (Abrantes e Katúmua, 2014). ensinamentos úteis às novas gerações, enquanto 18 A interpretação do mundo com base no consenso de opi- os tabus servem para que os mesmos não sejam nião, de espontânea cooperação entre os grupos e indivíduos, encontra-se em estratos ou sociedade socialmente homogé- 15 O tabu é uma ordem restritiva, uma proibição gerada pela neas, onde o raio e a base de experiencia é uniforme e onde ameaça de um castigo sobrenatural por qualquer violação, os incentivos ou impulsos de pensamento tendem a ser uni- (Mischa Titiey, 1996). formes para todos os indivíduos e, a tendência tradicional é

Embondeiro 69 s valores que eram reconhecidos e partilhados no tividades económicas, como mecanismo de garantir seio da comunidade, transmitidos, de certo modo, ou ajudar no sustento da casa, pois a infância em pelos contos. África, especificamente em Moçambique, diferen- temente do ocidente, não representa uma esfera re- A tradição oral ou popular é apontada como carac- tirada do mundo de produção e do mundo de traba- terística das culturas africanas, comparativamente lho, constituindo assim, fonte de aprendizagem no às culturas ocidentais, que são baseadas na escrita processo de socialização primária, necessária para a e consideradas como cultas19, (Matusse, 1998). To- sobrevivência da criança no presente e futuro, (Co- davia, a continuidade no recurso à oralidade como lona, 2010). Consequentemente, muitos destes não a principal ferramenta de preservação dos contos e são fluentes na língua portuguesa, em termo de fala automaticamente dos preceitos tradicionais imbuí- e escrita, assim como, nas línguas locais (changana dos nos mesmos, em detrimento da escrita, é em e ronga) no que toca a escrita. grande medida fruto do facto de muitos narradores não terem frequentado a escola e, agravado ao facto Neste sentido, podemos aferir uma dupla função na de, a maioria dos contos por nós recolhidos, terem narração dos contos, ou melhor, concomitantemente sido contados nas línguas autóctones (ronga e chan- servem como mecanismos de disseminação de uma gana), consideradas como essencialmente orais , ou ordem social objectivada em regras de conduta social- seja, nas línguas não oficiais, por conseguinte, não mente aceites, assim como, situação sine qua non de utilizadas ou pouco empregadas20 no sistema na- perenidade de um conjunto de valores ligados a tra- dição numa cultura dominada pela oralidade (Lopes, cional de ensino até hoje. Por um lado, é apontado 2004), como é o caso da moçambicana, especifica- como consequência da política linguística levada a mente da Província de Maputo21 aqui em estudo. cabo pela primeira república, logo após a indepen- dência de Moçambique, isto é, a adopção da língua Conclusão portuguesa como a língua oficial e de ensino, em detrimento do estudo, sistematização e introdução Diante do exposto, podemos afirmar que os contos, das línguas locais nas primeiras classes, facto que numa cultura dominada pela oralidade, como é o provocou altos níveis de repetência e desistências caso da Moçambicana, especificamente da Provín- escolares nas primeiras classes, agravado pela exis- cia de Maputo, constituem-se num dos mecanismos tência de altos índices de analfabetismos herdados usados pelas famílias no processo de socialização do tempo colonial (Lopes, 2004). das novas gerações, com o recurso a personagens que podem ser humanas, animais, assim como de Esta herança é explicada como consequência das figuras imaginados, como é o caso dos monstros. políticas adoptadas pelo governo colonial na altu- Nestas narrativas, são contadas realidades e expe- ra, inseridas num sistema capitalista e imperialista, riências vividas ou imaginadas, disseminando-se onde Moçambique servia de fonte de matérias-pri- valores morais ligados à solidariedade, honesti- mas baratas, para isso, não lhes interessava a edu- dade, interajuda, a definição dos papéis sociais no cação científica das populações locais e, - conse quentemente, até a proclamação da independência seio das famílias, assim como, de conhecimentos de Moçambique a percentagem de analfabetos que ligados à práticas económicas, como é o caso da rondava em cerca de 93 porcento (Siliya, 1996). agricultura. Por outro lado, segundo os nossos entrevistados, Quanto ao contador/narrador, constatou-se que em tenra idade já se encontravam inseridos em ac- trata-se de um sujeito social com uma certa expe- sempre apropriada ao meio, (karl Mannheim) riência de vida (mais velhos) sem descriminação 19 Segundo Matusse (1998), por um lado o início da escrita de género, que no seu quotidiano exerce vários nas línguas bantas em Moçambique é recente, datando de a papéis sociais, sendo igualmente produtor para a mais de um século. Por outro lado, a sua divulgação é até sua sobrevivência e reprodução do seu agregado agora muito limitada. familiar, assim como, disseminador de valores e 20 Com “pouco empregada” pretende-se dizer que, actual- normas ligados à tradição, através dos contos, mas mente, o Estado moçambicano tem enveredado esforços no sentido de implementação do ensino bilingue nas escolas, 21 Sem querer dizer que, na Província de Maputo não se uti- contudo, este processo ainda é adstrito a algumas escolas, liza a escrita como mecanismo de preservação dos valores estando, com efeito, na sua fase inicial. ligados a tradição.

70 Embondeiro sempre controlando ou repartindo o tempo adjudi- ______(2000). O Mundo na Era da Glo- cado a cada actividade na lógica da natureza (ciclos balização. Lisboa: Editorial Presença. do dia, baseando-se na posição do sol) e inseridas ______(1997). Modernidade e Identi- num ambiente basicamente familiar (espaço). dade Pessoal. Oeiras: Celta Editora.

É de salientar que, de certo modo, nos deparamos JUNOD, Henri (1996). Usos e Costumes Bantu. Tomo 1. com uma descontinuidade com a realidade aqui Maputo: Arquivo Histórico de Moçambique. descrita, visto que, as mesmas são fruto das memó- ______(1996). Usos e Costumes Bantu. Tomo 2. rias de infância dos nossos entrevistados, apontan- Maputo: Arquivo Histórico de Moçambique. do-se para o desinteresse nas novas gerações em LAYTON, Robert (1997). Introdução à Teoria em An- torno do fenómeno dos contos, a favor de conteú- tropologia. Lisboa: Perspectivas do Homem/Edições dos exibidos nos meios de comunicação ligados à 70. modernidade, considerados actuais, como são os LOFORTE, Ana. Mulher, Tradição e Modernidade. In: casos da televisão e da internet. Conflito e Mestiçagem, 2000. SERRA, Carlos. Editora Universitária. Bibliografia LOPES, Cristina M. (1992). Provérbios: O “eterno re- ABRANTES, Pedro & KATÚMUA, Mbangula (2014). torno”. Literatura popular portuguesa. Teoria da lite- Curso de Sociologia. Lobito: Editora Escolar. ratura oral ou tradicional ou popular. Lisboa: F.C.Gul- ANDRADE, Mário (1973). Contos Novos. Rio de Ja- benkian-ACARTE. neiro, 4ª Edição. LOPES, José. (2004). Cultura Acústica e Memória em ARPAC-INSTITUTO DE INVESTIGAÇÃO SOCIO- Moçambique: As Marcas Indeléveis Numa Antropolo- CULTURAL (2008). Inventário de Documental Sobre o gia dos Sentidos. Belo Horizonte: SCRIPITA Património Cultural Imaterial de Moçambique. Maputo: MARX, DURKHEIM, WEBER (2003). Um Toque dos Ministério da Educação e Cultura. Clássicos. Belo Horizonte: UFMG. AUGÉ, Marc & COLLEYN, Jean-Paul (2008). A An- MARTINEZ, Francisco Lerma (2009). Antropologia tropologia. Lisboa: Edições 70. Cultural. Guia de Estudo. Maputo: Paulinas. BERGER, P. e LUCKMANN, T (1996). A Construção MATUSSE, Gilberto (1998). A Construção da Imagem Social da Realidade. Petrópoles: Vozes. de Moçambicanidade em José Craveirinha, Mia Couto BERNARDI, Bernardo (2007). Introdução aos Estudos e Ungulane Ba Ka Khosa. Maputo: Livraria Universi- Etno-Antropológicos. Lisboa: Edições 70. tária/ UEM. COLLONA, Elena. Crianças que Cuidam de Crianças: ROSÁRIO, Lourenço do (2008). A Narrativa Africana Representações e Práticas. In: Género e Direitos Hu- de Expressão Oral. Maputo: Texto Editores. SERRA, manos em Moçambique, 2010. Maputo: Departamento Carlos. Identidade Moçambicanidade Moçambicani- de Sociologia. zação. Maputo: Livraria Universitária/ UEM SILYA, Carlos (1996). Ensaio Sobre a Cultura em COSTA, Ana (2007). O Preço da Sombra: Sobrevi- vência e Reprodução Social entre Família de Maputo. Moçambique. Maputo: Publicita. Lisboa: Livros Horizonte. TRAÇA, Maria Emília (1992). O Fio da Memzria: DIOP, Birago (1979). Os Novos Contos de Amadou Do Conto Popular ao Conto para Crianças. 2ª Koumba. Lisboa: Edições 70. Edição, Lisboa. FELICIANO, José Fialho (1998). Antropologia Eco- nómica dos Thonga do Sul de Moçambique. Maputo: TITIEV, Mischa (1996). Introdução à Antropologia Arquivo Histórico de Moçambique. 1998 Cultural. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian. GIDDENS, Anthony (1991). As Consequências da Mo- dernidade. São Paulo: UNESP.

Embondeiro 71 PULVERIZAR AS REPRESENTAÇÕES SOCIAIS

Dulámito Ardichir Aminagi

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Resumo

Este trabalho tem como objetivo geral, examinar as representações sociais de 14 chefes de agregados familiares, da provincia de Cabo Delgado, distrito de Chiúre nos bairros Muajaja e Meriha, sobre pulverização intradomiciliária, colhidas no ambito do projecto “Abordagem Sócio-Cultural e a sua Contribuição na Mitigação da Malaria em Moçambique”, levado a cabo pelo ARPAC em 2015. Foram delineados os seguintes objectivos específicos: captar a verdadeira essência destes métodos de prevenção, a sua aplicação, a sua eficâcia, os constrangimentos e formas de melhoramento; comparar as lógicas veiculadas pelas entidades promotoras destas campanhas e a prática testemunhada pelos interlocutores auscultados. Os objectivos acima indicados foram materializados com base em entrevistas semi-estruturadas, privilegiando uma análise qualitativa dos dados aliada à teoria das representações sociais (Serge Moscovici 1984). Com estas teorias pretendemos, portanto, conhecer os modelos explicativos que predominam em um grupo, as maneiras de pensar e de agir das populações intervencionadas. Isto facilitará a comunicação e intervenções compreensíveis e aceitáveis pelos chefes dos agregados familiares inquiridos, como condição sine qua non para o sucesso do programa de pulverização intradomiciliária.

Palavras-Chave – Pulverização Intradomiciliária, alto lençol freático, fecalismo a céu aberto e mosquito. na Mitigação da Malária em Moçambique”2, sobre um dos métodos de prevenção, usualmente 1. INTRODUÇÃO implementados em Moçambique contra a malária, a pulverização intradomiciliária. Em Moçambique a malaria é a doença que mais óbitos causa. É responsável por cerca de 40% das A pulverização intradomiciliária é a aplicação do consultas nas unidades sanitárias onde, 70% destas, insecticida nas superfícies internas estáveis das são representadas por crianças atribuindo-se cerca habitações, nos lugares onde repousam os vectores de 30 % das mortes nas unidades sanitárias do da malária e aqueles que previnem a entrada de 1 país. Para fazer face a este cenário, as principais mosquitos dentro das casas3. A base deste método estratégias usadas pelo governo moçambicano assenta no facto de muitos mosquitos introduzirem- constam a distribuição de redes mosquiteiras, as se dentro das casas no periodo nocturno para campanhas de educação sanitária e a pulverização se alimentarem e, como em Moçambique os intradomiciliaria. principais vectores da malaria são endofágicos4, daí o uso da pulverização com insecticida. Neste artigo analiso as representações sociais de 14 chefes de agregados familiares entrevistados na 2O presente projecto pretende compreender a influência dos provincia de Cabo Delgado, no distrito de Chiure, aspectos sócio-culturais na prevalência da malária em Moçambique. Explicando detalhadamente, pretende em suma, perceber as nos bairros Muajaja e Meriha, no âmbito do projecto percepções, significados e sentidos que as comunidades conferem a “Abordagem Sócio-Cultural e a sua Contribuição malária no quadro da sua cosmologia. 3MANUAL DE PULVERIZAÇÃO INTRADOMICILIÁRIA 1PLANO ESTRATÉGICO DA MALARIA 2012-2016. Programa (PIDOM). Programa Nacional de Controlo da Malária. Setembro, Nacional de Controlo da Malaria. Ministério da Saúde de 2005 Moçambique 4Repousam dentro das casas

72 Embondeiro Acredita-se que, se a parede e o tecto estiverem poderemos apreender o espaço das representações tratados-pulverizados com insecticida eficaz, os sociais onde ocorrem as relações com os outros e mosquitos serão expostos à dose letal enquanto lá deste modo contribuir para a formação de ideias permanecerem5. A pulverização continua a ser uma e atitudes sob influência da interação social. Uma das formas consideradas mais eficazes de controlo questão de base surge e suporta o presente estudo: da transmissão da malária, com um impacto rápido e significativo a um custo sustentável6. [Até que ponto as representações sociais dos grupos visados em relação a pulverização Examino as representações sociais sobre a intradomiciliária, são levadas em consideração pulverização intradomiciliária com base em para a concepção, implementação e sucesso do entrevistas semi-estruturadas, privilegiando uma programa?] análise qualitativa dos dados aliada à teoria das representações sociais defendida pelo psicólogo Argumentarei que ao não se captar as representações Serge Moscovici7. Porque para este, as relações sociais dos grupos visados na implementação de sociais se constroem e influenciam atitudes, campanhas de pulverização intradomiciliária, opiniões e comportamentos de um grupo e contribui para o recrudescimento da malária em que, a noção de representação social possibilita Moçambique, culminando com o aumento de transportar o campo de análise individual para o mortes, principalmente, de mulheres e crianças. campo da análise social. Assim, para Moscovici8 entende-se de forma abrangente, como se produzem os saberes sociais em determinados grupos e como 2. RESULTADOS esses saberes manifestam quotidianamente nas relações destes grupos9. Das entrevistas administradas a 14 chefes de agregados familiares no Distrito de Chiúre, nos Defendo que é nas comunidades que são bairros Muajaja e Meriha, sobre a pulverização alvo de diversas campanhas de pulverização intradomiciliária, apreendi que a) problemas intradomiociliária onde devemos captar a estruturais relacionados especificamente com o verdadeira essência deste método de prevenção, a povoamento concentrado e desordenado, o alto sua aplicação, a sua eficâcia, os constrangimentos lençol freático, a deficiente gestão municipal e formas de melhoramento. Acredito, por um de resíduos sólidos e o fraco investimento na lado que, conhecendo os modelos explicativos sensibilização orientada ao saneamento do que predominam em um grupo, facilita a meio, condicionam a eficâcia dos métodos de comunicação com os individuos desse grupo e prevenção da malária no geral e da pulverização permite a realização de intervenções que sejam intradomiciliária em particular, pelo menos à luz compreensíveis e aceitaváveis para eles; por outro das experiências apreendidas das comunidades penso que, conhecendo as maneiras de pensar inquiridas; b) que existe um domínio de e de agir das populações junto as quais se quer conhecimento sobre a importância da pulverização implementar um programa de prevenção no geral, intradomiciliária c) contudo, a sua eficácia, e da pulverização intradomiciliária em particular, enquanto um método com efeitos duradouros, é contribui significativamente para o sucesso do questionada de forma recorrente. programa. A necessidade imperiosa de resolução de problemas Aplicado ao estudo da pulverização estruturais, nos bairros por onde administramos as intradomiciliária, a teoria das representações sociais nossas entrevistas, que ultrapassam a capacidade pode ser de grande contributo na medida em que, dos nossos interlocutores, foi colocada como um 5PIDOM, Setembro de 2005 elemento central, que condiciona o sucesso das 6PIDOM, Setembro 2005 campanhas de pulverização intradomiciliária. Foi mencionado, vezes sem conta, que o sucesso deste 7MOSCOVICI, S. Psicologia Social I. Barcelona: Paidós Ibérica, 1984 método de prevenção depende da resolução de 8MOSCOVICI, 1984:202 problemas relacionados com o alto lençol freático, 9MOSCOVICI, 1984:203 o povoamento concentrado e desordenado, a gestão

Embondeiro 73 municipal de resíduos sólidos e o investimento na O saneamento do meio como medida complementar sensibilização orientada ao saneamento do meio. à pulverização intradomiciliar está plasmado nos manuais que conduzem a intervenção: a O desordenamento das habitações é traduzido, em pulverização intra-domiciliária deverá ser uma parte, pela excessiva proximidade das casas. A medida complementar ao saneamento do meio12. situação é agravada pela construção generalizada Trata-se, de uma percepção que pode ser encontrada de sanitários nos quintais, o que, por sua vez, ao nivel dos actores comunitários: propicia o surgimento frequente do mosquito. Entretanto, é importante salientar que os sanitários [ ...] nós precisamos de uma ajuda dos agentes sanitários, construídos são facilmente multiplicados ao longo uma campanha para educar a nós porque nós não somos iguais; nós outros somos inocentes, há muita gente que do quintal, por causa do alto lençol freático: não passou na escola, não sabe como defender-se. Então, Nós fomos alagados, mesmo na machamba nós sofremos, é preciso uma campanha dos agentes sanitários, nós não temos casas, não temos latrinas; eu fiz latrina depois temos que ser ensinados: apanha uma mamã analfabeta de 1m e meio estava cheio de àgua; eu comecei a “cagar” como aquela ali (aponta para a mulher) diz-se: mamã com pá como adulto né [...] papá, nós apanhamos a fazer aterro sanitário e ela diz como não sei...mamã é malária na aldeia comunal… aqui existe acumulação de preciso fazer assim, assim. Por exemplo, eu tenho plena pessoas, nós estamos aglomerados… as nossas latrinas certeza que tirando o lixo para um aterro sanitário, o que é que preciso? Levar cinza; a cinza elimina o mosquito; a reproduzem os mosquitos para além dos charcos, para 13 além dos poços. Agora, quando agente defeca nas latrinas, cinza em si elimina o mosquito [...] aquelas fezes que nós deixamos ali reproduzem bichos e aqueles provocam mosquitos. Eu sei como é que o Para os nossos informantes, a importancia da mosquito nasce e estou em condições de explicar; então, pulverização é medida em função da eliminação ataca-nos e apanhamos malária. Agora, se existisse por dos mosquitos, baratas, pulgas e outros insectos, exemplo o cloro, depois de defecar punha-se para matar apesar do reduzido tempo de duração do o cheiro, até o próprio bicho morrer lá e não reproduzir… só que hoje não temos essa condição, é por causa da insecticida. A questão do tempo reduzido do reprodução, bichos reproduzem-se pá […]10 efeito deste químico, levanta várias questões relativas à sua funcionalidade a longo prazo e, A disposição das residências, muito próximas sobretudo, em termos de sua eficâcia. Para os umas das outras, suscitou em mim a constatação nossos entrevistados, a questão da eficâcia está de que os interlocutores fazem a gestão do lixo intimamente ligada a durabilidade do efeito do doméstico abrindo covas no meio do quintal, entre insecticida e o tempo em que este é aplicado. Para a casa principal e o celeiro, influi na propagação e estes, não se deve pulverizar nos meses em que não multiplicação dos mosquitos. Com consequências existem mosquitos, como sejam, em Junho, Julho idênticas, é imprescindível abordar a prática do mas sim, quando os mosquitos se fazem sentir com que é designado por fecalismo a céu aberto, o maior intensidade, isto é, deve-se pulverizar na que sintomaticamente, requerem uma intervenção hora e não na véspera: mais concertada e coordenada entre as autoridades municipais locais e os nossos interlocutores, […] os bichos e os mosquitos desapareceram por um contudo, não é gerida com base num diálogo tempo mas passando um ou dois dias, voltam e a malária continua; a pulverização contribui porque quando se põe que tenha, acima de tudo, alcance mais didáctico aquele remédio os mosquitos morrem, serve para tirar significativo para fazer face a estes problemas: todos bichos de casa. Então, o mosquito não incomoda, [...] bruscamente, as autoridades aparecem “...aquele que só depois de expirar aquele medicamento é que começa não tiver latrina, nós não sei o quê...” Não está certo. É a incomodar. A pulverização é aceite, é muito aceite… uma queda para nós todos pelo que eu tenho de dizer que só que o público roga que tem que se pulverizar entre os aqui onde nós vivemos, nesta comunidade aqui, ninguem meses de Fevereiro, Março, Abril onde o mosquito ataca. gosta de “cagar” na rua; uma pessoa idosa como eu, Eles aparecem em Junho, Julho quando o mosquito já eu sentar ali fazer meu cocó, não. Eu quando recolho morreu, agora isso é pra que?14 meus netos ali a “cagar”, tapo as fezes, é assim que se faz; nós somos educadores...não temos aquela condição 12 de fazermos latrinas melhoradas...não temos porque PIDOM, Setembro de 2005 é preciso dinheiro, são precisos tijolos; agora tijolos 13JALA, Miko Caetano. Depoimento n°11/2015 é preciso cimento; tijolos nós vamos apanhar aonde? 14 Também quando pedimos ao governo, arranja tijolos, ah JALA, Miko Caetano. Depoimento n°11/2015. Distrito de Chiure, é barulho para eles11 [...] Bairro Meriha, 02 de Junho de 2015.Entrevistadores: Dulámito Ardichir Aminagi e Sérgio Cuamba. Maputo, 2015. Entrevista 10 concedida ao Projecto “a Influência dos Aspectos Sócio-Culturais JALA, Miko Caetano. Depoimento n°11/2015 na Prevalência da Malária em Moçambique”. 11 Idem 74 Embondeiro Ainda na mesma linha de raciocínio, o Parte significativa dos nossos interlocutores são questionamento da eficâcia deste método camponeses, as suas actividades na machamba de prevenção, muitas vezes, não resulta de obedecem a periodos determinados pelas condições experiências directas de cada um no seu domicílio atmosféricas e época do ano pelo que, o tempo mas, a partir de constatações de vizinhos e outros. A da pulverização, por vezes, não conscide com o experiência dos primeiros mostra-se determinante tempo de trabalho. Foi constatado que existem porque, apartir de boatos, inicia-se um processo interlocutores que optam por trancar as portas das de construção de uma espécie de opinião de suas residências e dirigirem-se à machamba para tratar da sua subscistência e, isto pode indiciar, grupo, a respeito da essência das campanhas de choque de agendas mas tambem, não podemos pulverização: dissociar a possibilidde de tratar-se de uma atitude Acompanhei que na casa do vizinho fez-se mas não de resistência em função das mensagens que são resultou. Os rociadores disseram que todo bicho que veiculadas sobre a falta de eficâcia da pulverização, estiver dentro de casa havia de sair mas não acabaram. entre outros factores, acima abordados: Houve campanha mas não resolveu em nada, a situação piorou. Até porque provocaram a existência de muitos A pulverização não contribui em nada (….) porque bichos como pulgas e outros. As pessoas negam porque quando pulverizar sentem muitos mosquitos, baratas, provoca o aparecimento de bichos15. pulgas, contavamos que viria dimunuir mas só vem aumentar. Outros nem querem ver porque dizem que A partir de experiências vividas por outros, constroi- não ajuda nada. Tem alguns que quando sabem que vem se percepções em relação ao método de prevenção a equipe da pulverização abandonam as casas e vão e conduzem, muitas vezes, à atitudes de rejeição, viver na machamba e tratar daquilo que sabem porque mesmo pulverizando os mosquitos não param, tem sobretudo, no que se refere a entrada de rociadores pulgas, tem formigas e criticam de que talvez saem dessa nas residências. Muitas vezes, a aceitação destes é pulverização, por isso abandonam as casas17 condicionada pela presença de chefes de quarteirão ou outras entidades ligadas a estrutura politica para Portanto, foi aferido que existe conhecimento persuadirem, com a sua presença, aos chefes de geral sobre a pulverização intradomiciliária. Que agregados em aceitarem que as suas casas sejam existe consciência de que a resposabilidade de pulverizadas. Estas entidades, maioritariamente, prevenção deve ser partilhada por todos os actores. Que o recurso à pulverização intradomiciliária em ateem-se mais a questões ligadas à mensagem detrimento de resolução dos problemas estruturais oficial de explicação da necessidade objectiva de se naturais e provocados pelo homem contribui pulverizar do que ater-se em pormenores de índole significativamente para a ineficâcia das campanhas mais de conteúdo onde constam, provavelmente, de pulverização, contribuindo para atitudes de as razões e os factos da rejeição: resistência comunitária.

[…] Eu como sou chefe de quarteirão tenho acompanhado 3. DISCUSSÃO DE RESULTADOS as brigadas quando chega a altura da pulverização. Em relação as outras casas, muitos aceitam contudo, tem Os problemas estruturais (o povoamento sempre alguem que não aceita; mas quem não aceita é com concentrado e desordenado, alto lençol freático), ele…[…] os pulverizadores quando chegam explicam muito bem, até na rádio e televisão falam mas, há outras como também a necessidade de gestão de resíduos pessoas que não entendem. Acho que há pessoas que não sólidos e o investimento na sensibilização entendem bem a mensagem, podem até ver e ouvir mas orientada ao saneamento do meio, são realidades não entendem. Existem pessoas ignorantes 16[…] que condicionam e determinam as condições de vida dos nossos interlocutores mas que, não são equacionados pelas autoridades locais quando põem em prática várias actividades, entre elas a 15SALIMO, Angelina. Depoimento n°2/2015. Distrito de Chiure, pulverização intradomiciliária. Há um notável Bairro, Localidade de Ocua - Distrito de Chiure, 03 de Junho de 2015. Entrevistadores: Dulámito Ardichir Aminagi, Sérgio 17ADRIANO, Domingos. Depoimento n°8/2015.Distrito de Chiure, Cuamba. Maputo, 2015. Entrevista concedida ao Projecto “a Bairro Muajaja, 02 de Junho de 2015.Entrevistadores: Dulámito Influência dos Aspectos Sócio-Culturais na Prevalência da Malária Ardichir Aminagi e S’ergio Cuamba. Maputo, 2015. Entrevista em Moçambique” concedida ao Projecto “a Influência dos Aspectos Sócio-Culturais 16Depoimento n°4/2015 na Prevalência da Malária em Moçambique”

Embondeiro 75 défice de captação permanente das percpeções das sobre a essência do grupo, o que vai garantir comunidades locais sobre as condições objectivas o sucesso do programa. Parafraseando Serge de implementação das campanhas de pulverização Moscovici: intradomiciliária, o que compromete sobremaneira o sucesso destes processos: […] “conhecendo os modelos explicativos que predominam em um grupo, facilita a comunicação com […]” O que devia ser feito aqui - o chefe do bairro ou o os individuos desse grupo e permite a realização de presidente da aldeia tinha que sair com a sua comitiva intervenções que sejam compreensíveis e aceitaváveis ensinar as pessoas, por exemplo: este ano sofremos para eles […]; […] Conhecendo as maneiras de pensar e muito, estamos sem latrinas, estamos sem casas, muita de agir das populações junto as quais se quer implementar gente sofreu. Devia-se dizer assim: papá este ano sofreu? um programa de prevenção contribui em muito para o sim. Agora o que acha? a sua latrina estava aonde, estava sucesso desse programa20” […] aqui?, agora este ano vai aprender a fazer onde, aqui? Está bem fica a fazer. Mas não é isso que acontece, só 4. CONCLUSÃO bruscamente dizem – ah… aquele que não tiver latrina agente vai aplicar multa… mas multa para fazer o quê? Nós fomos alagados mesmo na machamba nós sofremos, Foi aferido que as caracteristicas estruturais, não temos casas, não temos latrinas, eu fiz latrina depois tanto as naturais assim como as artificiais, de 1m e meio, estava cheio de água; eu comecei a cagar quando elas não são tidas em conta no processo com pá como adulto né […]”18 de pulverização intradomiciliária, condicionam o sucesso do programa e até determinam o resultado Os nossos entrevistados, pelo conhecimento que final. Apesar de reconhecerem a importáncia deste tem sobre a pulverização intradomiciliária, fazem método de prevenção, colocam reservas quanto à questionamentos relativos ao tempo do efeito do eficâcia na medida em que, o efeito do insecicida medicamento porque, de acordo com a opinião de perdura 2 a 3 dias, o que contrasta com o manual grupo, quando é aplicado dura, em média, dois ou de pulverização, que estabalece a duração entre 3 três dias. É suposto perdurar mais do que tempo a 6 meses. citado, tal como as experiências dos interlocutores transparecem que, coincidentemente, condizem Há constatação de que as campanhas de com o que o manual preconiza: pulverização intradomiciliária, olham apenas para O insecticida mais utilizado é o DDT (Dicloro Difenil o interior das residências, pretendendo apenas Tricloro Etano) e quando é aplicado correctamente não eliminar mosquitos que se encontram no interior das periga a vida humana, a de animais domésticos, nem casas, ignorando todo um conjunto de ambientes o meio ambiente pois retém o seu efeito residual nas 19 circundantes à casa que contribuem em muito superficies pulverizadas por um periodo de 3 a 12 meses. para a multiplicação da população de mosquitos. A campanha de pulverização é feita regularmente Esta situação, não só condiciona o sucesso do sem se ter em conta as percepções e convicções programa como também cria desconfiança e do grupo alvo. A falta de eficâcia constatada no resistência das pessoas em relação a este método efeito da pulverização intradomiciliária é resultado de prevenção. Esta desconfiança e resistência é da falta de preparação, da falta de diálogo com os multiplicada porque, as soluções estão ao nivel visados, do desconhecimento sobre o lugar a ser das comunidades, mas como estas dificilmente intervencionado. são auscultadas, a reincidência gera muitas vezes revoltas com consequências imprevisíveis. O sucesso das campanhas de pulverização intradomiciliária dependem das condições Se em Moçambique continuarmos a não captar as representações sociais dos grupos visados na objectivas e favoráveis à intervenção, da existência implentação de diversas campanhas de prevenção ou não de criadouros e reservatórios de mosquitos, no geral e da pulverização intradomiciliária do conhecimento que se tem dos modelos em particular, contribuiremos em muito para o explicativos do grupo que se quer intervencionar. recrudescimento de várias doenças no geral e Estes modelos explicativos, permiti-nos aferir da malária em particular, e consequentemente,

18Depoimento n°11/2015 20 19MINISTÉRIO DA SAÚDE. Programa Nacional de Controlo da MOSCOVICI, 1984:203 Malaria. (PIDOM), Setembro, 2005

76 Embondeiro culminam com o aumento de mortes, principalmente 7. ANEXO de mulheres e crianças. Portanto, é incontornável pulverizar as representações sociais de quem é LISTA DE ENTREVISTADOS visado pelos programas de prevenção da malária. 1. Alberto Wavhali, Bairro Muajaja, BIBLIOGRAFIA 03/06/2015 1. ANDRE, M. E. D. A. Texto, context, 2. Angelina Salimo, Bairro Meriha, significado: algumas questões na análise de 03/06/2015 dados qualitativos. Cadernos de Pesquisa, 3. Gracinda Savena, Bairro Meriha, (45): 66-71 03/06/2016 4. Laura Armando, Bairro Muajaja, 2. GOVERNO DO DISTRITO DE CHIURE 02/06/2015 (2015) - Plano Distrital de Desenvolvimento 5. Júlia Missena, Bairro Muajaja, 02/06/2015 de Chiure(2011-2015). Chiure: Setembro de 6. Maria Augusto, Bairro Meriha, 03/06/2015 2015 7. Carolina Simão, Bairro, Meriha, 03/06/2015 8. Domingos Adriano, Bairro Meriha, 3. INE. III Recenciamento Geral da População 03/06/2015 e Habitação de 2007. Maputo: INE, 2007 9. Verónica Saíde, Bairro Meriha, 03/06/2015 10. Elsa Muwala, Bairro Muajaja, 02/06/2015 4. MINISTÉRIO DA SAÚDE. Programa 11. Miko Caetano Jala, Bairro Meriha, Nacional de Controlo da Malaria. 02/06/2015 (PIDOM), Setembro, 2005 12. Delaide Joaquim, Bairro Muajaja, Muajaja, 02/06/2015 5. MOSCOVICI, S. Psicologia Social I. 13. Guido Simão Mota, Bairro Meriha, Barcelona: Paidós Ibérica, 1984 03/06/2015 14. Laurinda Francisco, Bairro Muajaja, 03/06/2015 6. PLANO ESTRATÉGICO DA MALARIA 2012-2016. Programa Nacional de Controlo da Malaria. Ministério da Saúde de Moçambique

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