Pontifícia Universidade Católica de São Paulo PUC-SP

Tiago Ramos e Mattos

Silvio Santos vem aí: A biografia-reportagem do “Patrão”

DOUTORADO EM LÍNGUA PORTUGUESA

SÃO PAULO 2020

Pontifícia Universidade Católica de São Paulo PUC-SP

Tiago Ramos e Mattos

Silvio Santos vem aí: a biografia-reportagem do “Patrão”

Tese apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, como exigência parcial para obtenção do título de DOUTOR em Língua Portuguesa, sob a orientação do Prof. Dr. João Hilton Sayeg de Siqueira.

SÃO PAULO 2020

Autorizo exclusivamente para fins acadêmicos e científicos, a reprodução total ou parcial desta Dissertação de Mestrado por processos de fotocopiadoras ou eletrônicos.

Assinatura:

Data: e-mail:

Banca Examinadora

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Dedico ao meu filho, João Victor Pessoa de Mattos, e ao meu pai, José Norberto de Mattos (José Bernnô, in memoriam), com muito carinho, este trabalho. Com entusiasmo, digito esta breve reflexão de Pasini, que descreve sublime a grandeza desse nosso pequeno universo: “Amor de família é a coisa mais inexplicável do mundo. Nem um pai consegue dizer para um filho o quanto o ama, nem o filho sabe dizer ao pai, então eles simplesmente demonstram...”.

O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Brasil (CAPES) - Código de Financiamento 002 - Número de Processo: 88887.150455/2017-00 - Período - 23/01/2016 – 31/12/2019.

This study was financed in part by the Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Brasil (CAPES) - Finance Code 002 - Process Number: 88887.150455/2017-00 - Period: 23/01/2016 – 31/12/2019.

AGRADECIMENTOS

À minha querida mãe, Dora Alice Ramos, que me ajudou a desvendar os segredos silábicos nos primeiros anos de minha formação, contribuindo diretamente para a minha alfabetização, com amor e gratidão. Ao meu querido orientador, Professor Dr. João Hilton Sayeg de Siqueira, que com sapiência, amor e paciência acompanhou toda a minha trajetória acadêmica de pesquisa, até aqui. Agradeço por sempre ter acreditado em mim. Ao meu filho, João Victor Pessoa de Mattos, ao meu querido sobrinho, Pedro Mattos, à minha adorável irmã, Michely Ramos e Mattos, à minha tia-mãe, Maria Cristina Ramos, e a toda minha família, com muito amor. A todos os meus admiráveis amigos. Sem exceção. Ao Prof. Dr. Luiz Antonio Ferreira, pela generosidade e pelos incontáveis ensinamentos. Aos membros do Grupo de Pesquisa: Estudos Retóricos e Argumentativos – (ERA). Aos membros do Grupo de Pesquisa: Leitura, Ensino e Discurso – (LED). Ao Prof. Dr. Carlos Mesquita e ao Prof. Dr. Rodrigo Maia, pelas riquíssimas contribuições para o meu trabalho no momento do Exame de Qualificação. Ao Prof. Dr. Jarbas Vargas Nascimento, pelas palavras de incentivo. À querida secretária do Programa de Pós-Graduados em Língua Portuguesa, Lourdes Scaglione, pelas inúmeras vezes que me atendeu, me ajudou e me ouviu. Aos funcionários do guarda-volumes da PUC-SP, pela ajuda que me deram em todos os momentos que escrevi minha tese na biblioteca da universidade. Ao Renan Locatelli, pela leitura atenta e minuciosa deste trabalho. Aos colegas, mestrandos e doutorandos do Programa de Pós-Graduados em Língua Portuguesa. Ao apoio financeiro da FUNDASP.

RESUMO

MATTOS, Tiago Ramos e. Silvio Santos vem aí: a biografia-reportagem do “Patrão”. 2019. 265 f. Tese (Doutorado em Língua Portuguesa) – Programa de Estudos Pós-Graduados em Língua Portuguesa, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2020.

Biografia é um gênero do discurso que descreve a vida. Essa contemplação biográfica da vida diz muito sobre as relações humanas de um modo particular. Os gêneros discursivos de caráter biográfico dispõem de um tipo de refratariedade das realidades humanas, que resistiram à verossimilhança sempre por ter a vida real como seu principal elemento, independentemente do calor ficcional a que sejam expostos. Dentre esses gêneros estão os diários íntimos, os diários de viagem, os testemunhos e /ou os depoimentos, as memórias, as autobiografias e também a reportagem. A reportagem advém de um fato, que é relatado de forma circunstanciada. Os fatos de vida relatados tanto na biografia, de maneira mais extensa e elaborada, quanto na reportagem, que goza de certa imediaticidade, emergir-se-ão, certamente, de um autor e de uma autoria. O objetivo geral deste trabalho consistiu em verificar como se dá, no gênero biografia-reportagem, as noções de autor e de autoria, quanto ao distanciamento ou à proximidade entre autor e biografado, mas principalmente refletir como a voz do biografado – personagem – influi na composição narrativa e autoral do biógrafo autor. Como pode ser circunscrita a autoria na biografia-reportagem se considerarmos as características desse gênero, seu estilo, seu conteúdo temático, sua construção composicional, assim como as características constitutivas do gênero biografia e do gênero jornalístico reportagem? Para responder a essa pergunta analisamos o corpus Silvio Santos–A trajetória do mito (2017), donde se percebe, de início, uma biografia diferenciada: o livro é escrito a partir de reportagens registradas ao longo da vida de Silvio Santos. Constitui- se, portando, de dois autores principais: Fernando Morgado e o próprio Silvio Santos. Os resultados das análises conferiram ao livro o estatuto de biografia-reportagem, um híbrido de dois gêneros do discurso, por meio de uma dupla autoralidade. Na condição de biografia goza de uma heterogeneidade inata a este gênero do discurso: é rica em intertextualidade manifesta e intertextualidade constitutiva. A narrativa biográfica implica uma construção advinda do formato cronológico, uma característica do gênero reportagem. Apresenta um conteúdo temático constitutivo da circulação, recepção e a produção destes enunciados, um estilo ora pictórico, ora linear, recheado por figuras retóricas de linguagem e uma construção composicional bipartida entre os enunciados do biografado e a narrativa biográfica.

Palavras-chave: Silvio Santos; biografia-reportagem; autor; autoria; gênero do discurso.

ABSTRACT

MATTOS, Tiago Ramos e. Silvio Santos is coming: the biography-report of “Patrão”. 2019. 265 f. Doctorate degree in – Postgraduate Studies Program in Portuguese Language, Pontifical Catholic University of São Paulo, São Paulo, 2020.

Biography is a genre of speech that describes life. This biographical contemplation of life says a lot about human relationships in a particular way. Discourse genres of a biographical character have a type of refracting quality of human realities, which have resisted verisimilitude always because real life is their main element, regardless of the fictional heat to which they are exposed. Among these genres are intimate diaries, travel diaries, testimonies and/or statements, memories, autobiographies and the report. The report comes from a fact, which is described in a detailed way. The facts of life presented both in the biography, in a more extensive and elaborated way, and in the report, which enjoys a certain immediacy, will certainly emerge from an author and an authorship. The general objective of this work was to verify how, in the biography-reporting genre, the notions of author and authorship occur, regarding the distance or proximity between author and biographer, but mainly reflect how the voice of the biographer - character - influences the narrative and authorial composition of the author biographer. How can authorship in biography-reporting be circumscribed if we consider the characteristics of this genre, its style, its thematic content, its compositional construction, as well as the constitutive characteristics of the biography and journalistic reporting genre? In order to answer this question, we analyzed the corpus Silvio Santos – The trajectory of the myth (2017), from which, at the beginning, a differentiated biography is perceived: the book is written based on reports recorded throughout Silvio Santos' life. Therefore, it consists of two main authors: Fernando Morgado and Silvio Santos himself. The results of the analyzes gave the book the status of biography-reporting, a hybrid of two genres of discourse, through a double authorship. As a biography, it enjoys an innate heterogeneity in this genre of discourse: it is rich in manifest intertextuality and constitutive intertextuality. The biographical narrative implies a construction coming from the chronological format, a characteristic of the reporting genre. It presents a thematic content constituting the circulation, reception and production of these statements, a style that is sometimes pictorial, sometimes linear, filled with rhetorical figures of speech and a bipartite compositional construction between the statements of the biographer and the biographical narrative.

Keywords: Silvio Santos; biography-reporting; author; authorship; discourse genre.

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ...... 11

1 AUTORIA E AUTOR ...... 16

1.1 Autoria ...... 17

1.2 O autor ...... 19

1.3 Quem é o autor? ...... 22

1.4 A transdiscursividade do autor ...... 30

1.5 O autor pessoa: o conteúdo, o material, a forma e a criação artística ...... 34

1.6 Mito e o herói: uma significante e um significado ...... 36

1.7 Autobiografia: autor e autoria ...... 38

1.7.1 As confissões: o autoinforme ...... 39

1.7.2 O autor autobiográfico ...... 43

1.8 A representação imagética do autor na mídia ...... 45

1.9 A “desnecessária” morte do autor ...... 49

2 GÊNEROS DO DISCURSO ...... 57

2.1 Gênero: conteúdo temático ...... 58

2.1.1 A unidade temática ...... 60

2.2 Gênero: o estilo ...... 61

2.2.1 Estilo e retórica: a estilística e os recursos lexicais e gramaticais ...... 62

2.2.2 A elocução (elocutio) ...... 66

2.2.3 Estilo e texto: a intertextualidade ...... 74

2.2.3.a Intertextualidade constitutiva ...... 77

2.2.4 Estilo e o discurso de outrem: Bakhtin/Volochínov ...... 78

2.2.4.a Discurso indireto livre ...... 81

2.3 Gênero e disposição: construção composicional ...... 84

2.4 O gênero do discurso pela visão de Medviédev ...... 88

2.5 Gênero e sociorretórica: uma breve exposição ...... 91

2.6 O gênero pela visão de Todorov ...... 94

3 A REPORTAGEM: UM GÊNERO DO DISCURSO ...... 98

3.1 O autor-criador e a reportagem no Brasil do século XX ...... 116

3.2 A reportagem e o interpretativismo: a interpretatividade da realidade ...... 118

3.3 O repórter: uma definição em linhas gerais ...... 120

4 BIOGRAFIA ...... 122

4.1 Biografismo: um percurso histórico ...... 123

4.2 O autor de biografia: consciências biográficas ...... 127

4.3 O espaço biográfico ...... 130

4.4 Biografia: identidade pessoal e identidade social ...... 135

4.5 Realidade biográfica: relação entre os sujeitos ...... 137

5 ANÁLISE DO CORPUS: BIOGRAFIA E REPORTAGEM ...... 142

5.1 Silvio Santos – A Trajetória do Mito: uma biografia ...... 142

5.2 A reportagem ...... 167

5.3 A biografia-reportagem ...... 202

5.3.1 Conteúdo temático ...... 212

5.3.2 O estilo ...... 220

5.3.3 A construção composicional ...... 242

CONCLUSÃO ...... 257

REFERÊNCIAS ...... 262

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INTRODUÇÃO

Biografia é um gênero do discurso que goza de uma estabilidade cambiante. Esse gênero dialoga com outros gêneros discursivos que compõem um espaço de exposição, de discussão e, sobretudo, de contemplação da vida. Trata-se de uma atmosfera biográfica que agrupa os testemunhos de vida, os diários íntimos, os diários de viagem, as memórias, a entrevista, a autobiografia, os reality e os talk shows – e até mesmo os tabloides de fofoca. O biografismo é uma deselegância com a morte, um registro literário da vida real, verídica e verificável. É, então, ao perspectivar um diálogo entre o gênero biografia, sua relativa estabilidade, a imediaticidade da notícia e, mais especificamente, o gênero do discurso reportagem, que se assenta este trabalho: a hibridização biografia-reportagem. Na biografia de cada um de nós, o eu-para-si não constitui a forma, ou seja, o “eu” só existe diante de um “você”. Ampara-se nas relações humanas, cotidianas, na família, nos costumes, no dia a dia, no trabalho, na conversação face a face. É rica em seus heróis, personagens da vida real, identitários, reais pela veridicção, dos quais “eu”, na qualidade de ser humano detentor da minha própria realidade, “me” identifico, “me” inspiro, “me” conecto. O gênero biográfico estabelece o real em detrimento do verossímil, e, portanto, os acontecimentos do dia a dia, os heróis do cotidiano, os famosos e os anônimos são absolutamente necessários na estrutura autor-autoria de um gênero do discurso como a biografia. Trata-se da relação personagem e realidade com a vida. Ampliado por outros gêneros do discurso, por exemplo, a entrevista, a notícia e a reportagem, a personagem biográfica pode ganhar uma vida manifestada por uma plasticidade única, sólida, verificável e diferenciada na trama biográfico-narrativa. A autoria biográfica pondera uma escolha que se realiza pela seleção lexical, verbo- nominal – os verbos são retrospectivos e estão, geralmente, no pretérito perfeito –, nos fraseologismos e nas figuras de linguagem, na intertextualidade manifesta e na intertextualidade constitutiva, no estilo pictórico (discursos indiretos e alguns discursos diretos) e no estilo linear (discurso direto retórico). O objetivo geral deste trabalho, portanto, consiste em verificar como se dá, no gênero biografia-reportagem, as noções de autor e de autoria, quanto ao distanciamento ou à proximidade entre autor e biografado, mas, principalmente, refletir como a voz do biografado – personagem – influi na composição narrativa e autoral do biógrafo autor-orador. Como ponto de partida, tecemos considerações teóricas sobre as definições conceituais de autor, de autoria e de gêneros do discurso. 12

Como pode ser circunscrita a autoria na biografia-reportagem se considerarmos as características desse gênero, seu estilo, seu conteúdo temático, sua construção composicional, assim como as características constitutivas do gênero biografia e do gênero jornalístico reportagem? Na tentativa de responder nossos questionamentos acerca de autoria e de como o gênero do discurso reportagem pode ampliar os conhecimentos sobre o gênero do discurso biografia, ancoramo-nos nos seguintes objetivos específicos: a) levantar como se dá a relação biógrafo-biografado pelas marcas textuais do discurso e analisar, das marcas textuais, a constituição do estilo, como elemento constitutivo das características do gênero do discurso; b) investigar as características referentes ao conteúdo temático da biografia-reportagem. c) analisar, por meio das manifestações de intertextualidade manifesta e intertextualidade constitutiva, como a voz do autor-personagem – presente na reportagem – influencia na voz do autor – presente na biografia –, especificamente na construção de autoria deste texto e deste discurso; d) definir a construção composicional do gênero biografia-reportagem. Levando-se em consideração haver estudos que privilegiam a atmosfera biográfica, sobre tipos e subtipos de autobiografia, diversos tipos de entrevista e um leque amplo de reportagens, como a investigativa, a científica e o romance-reportagem, observamos haver uma única hibridização conhecida e prestigiada de biografia, que é a biografia romanceada: um duplo de biografia e romance. Todavia, nos interessa, de fato, neste trabalho, a biografia canônica, que se subverte e se apropria da reportagem para deleitar-se não apenas com a descrição da vida, mas também com a confirmação desta. Goza, portanto, de certas particularidades: o encontro da identidade com a identificação, a descrição e confirmação, a apreciação e contemplação de vida. Para que possamos hibridizar biografia e reportagem, é necessário entendermos o que é biografia e o que é reportagem. O biográfico se fundamenta pelas relações que cada um de nós tem com os outros, contemporâneos, que buscam cotidianamente uma identidade por meio de uma identificação, com um herói, com a glória ou com um vilão e a debilidade. Em outras palavras, busca-se no espaço biográfico a identificação com valores da esfera social e suas antíteses. A reportagem, grosso modo, é dinamicidade e movimento, e nossas vidas, assim como nossas biografias, estão em constante movimentação, e, portanto, não são estáticas. É constitutiva de uma tríplice formada pelo repórter, pela personagem e pela informação. Em suma, a biografia se constrói a partir de um conteúdo temático, que resgata uma identidade num contexto específico de identificação, com base em uma estrutura 13

composicional que possibilita a expansão significativa do texto como espaço de construção identitária e se atualiza por meio de recursos verbais, estilísticos, que revelam a cumplicidade entre biógrafo e biografado, entre identidades e identificações. Nossas análises se deram pelos meandros da biografia-reportagem do animador de auditório e empresário, Senor : Silvio Santos – A trajetória do mito. Senor Abravanel é o nome de batismo de Silvio Santos. Silvio é filho dos imigrantes Rebecca e Alberto Abravanel e acostumou-se, desde muito cedo, a não depender de seus pais financeiramente. Foi assim, ainda como Senor, ou seja, com seu nome de batismo, que o Homem do Baú começou os seus empreendimentos. Na escola Celestino da Silva, onde estudou o primário, começou nos intervalos das aulas a vender doces e balas para os colegas: descobriu que vender poderia ser algo bastante lucrativo. Senor, ainda no início de sua adolescência, ao se deparar com um vendedor ambulante que vendia carteiras para título de eleitor, resolveu apostar: começou a ganhar dinheiro vendendo carteiras e decidiu ser camelô. Expandiu o seu negócio ao vender de bijuterias a canetas e bonecas dançantes. Todavia, foi um fiscal da prefeitura, Renato Moreira Lima – que estava prendendo camelôs por crime de vadiagem –, que descobriu que Senor tinha um dom especial para comunicação e deu a ele um cartão para procurar um amigo na Rádio Guanabara: ganhou, entre centenas de inscritos, a ocupação de locutor de rádio. Foi, portanto, no rádio, que Senor Abravanel assumiu o nome de Silvio Santos. Silvio Santos foi corporificando-se como artista, entretanto, nunca abandonou suas atividades de empresário: foi de corretor de anúncios nas barcas do Rio e Niterói a sócio e depois dono do Baú da Felicidade; dono de construtora, de concessionária de veículos, de plano de saúde e de organização médica, além de dono do Sistema Brasileiro de Televisão – SBT, o que viabilizou seus anúncios dos produtos do Grupo Silvio Santos para um número muito maior de pessoas. Investiu em um banco, o PanAmericano, que quase o levou a falência; contudo, Silvio protagonizou um momento nunca visto antes pelo mercado financeiro brasileiro: ofereceu suas 44 empresas como garantia pelo pagamento da dívida gerada pelo banco. Lançou ainda um título de capitalização, a Tele Sena, além de cosméticos, com a marca Jequiti, e em um hotel no Guarujá, o Jequetimar. O fato é: Silvio progrediu de camelô a banqueiro. Como artista, Silvio Santos protagonizou momentos antológicos: chorou ao vivo junto à Barbara Paz quando ela venceu A casa dos artistas; propiciou momentos memoráveis ao entrevistar a menina Maisa Silva em seu programa dominical; caiu na água ao desiquilibrar-se testando um número de seu programa que consistia em um tanque de água e uma tábua – se o 14

participante errasse a pergunta a tábua virava e se caia na água. Comandou dezenas de programas e chegou a trabalhar 12 horas por dia no conglomerado de suas atrações. O corpus selecionado tem uma configuração interessante: divide o contexto narrativo com as reportagens selecionadas e categorizadas, pelo autor Fernando Morgado, de Silvio Santos ao longo da vida. Essas reportagens ajudam na construção da narrativa biográfica, assim como são organizadas de modo a reconstituir historicamente a trajetória de Silvio. As reportagens contam sobre a vida do apresentador narrada por ele mesmo. Em um de seus enunciados, reportado pelo Estado de S. Paulo, Silvio Santos afirma:

Os intelectuais não me compreendem. Querem que eu toque música clássica. Mas eu não gosto. Não adianta insistir. Meus programas são populares e eu me identifico com o povo. Não posso esquecer minhas origens de camelô. – O Estado de S. Paulo, 17 de agosto de 1983. (MORGADO, 2017, p. 92).

Silvio Santos é um reflexo imanente do Brasil popular e dele consubstanciou-se. A fim de compreendermos Silvio Santos e sua biografia-reportagem, adotaremos um procedimento para a realização da investigação, que será o interpretativista, que possibilita, a partir da quantificação de dados levantados, estabelecer resultados qualitativos para a caracterização estilística do gênero do discurso biografia-reportagem, a fim de estudar a constituição de sua autoria assentado nas seguintes categorias de análise: a) biografia; b) reportagem; c) autor e autoria; d) intertextualidade manifesta e intertextualidade constitutiva; e) conteúdo temático, estilo e construção composicional. A tese adquiriu a pospositiva organização: 1 – I capítulo: a abertura desta tese consiste em delinear aspectos relacionados a autor e autoria em suas mais diversas possibilidades. Essas considerações se dão acerca dos conceitos de autor, de personagem, da autoria na mídia, das noções de personagem e mito, do autor como pessoa, do autor de autobiografia, do autor real e da função de ser autor. 2 – II capítulo: procedeu-se, este capítulo, pela ampliação dos conceitos-chaves expressos no adendo gêneros do discurso de Bakhtin, extensionado pela relação entre gênero e retórica. O estilo verbal interseccionou-se com a elocutio – elemento do sistema retórico – e suas figuras de linguagem, assim como a construção composicional, se desenham teoricamente por sua relação com a dispositio retórica. Em seguida, temos outras conceitualizações a respeito de gênero do discurso, não apenas na perspectiva de Bakhtin (2010), como também pelo olhar de Medviédev (2012) e Todorov (2018). 15

3 – III capítulo: tratou-se aqui de uma definição de reportagem e de como se comporta esse gênero do discurso. Falou-se, brevemente, de como surgiu o gênero reportagem associado à literatura, especificamente em João do Rio, os tipos de reportagem e as relações entre reportagem, notícia e entrevista. Assume ainda uma perspectiva da profissão de repórter e suas características como profissional: sua busca pela personagem, pelo furo de reportagem e pela melhor história. 4 – IV capítulo: propôs uma breve imersão sobre a atmosfera biográfica: onde e como os gêneros biográficos tiveram seu início, o espaço biográfico na contemporaneidade, assim como as relações entre as personagens que o compõe, relação entre sujeitos, ao considerar-se o biografismo. 5 – V capítulo: esse capítulo discutiu os elementos-chave que permitem definir o corpus como uma biografia. Além disso, tratou de verificar como a reportagem expande o gênero biografia, contribuindo para diferenciadas vozes de autoria. Ademais, tratou de como dois gêneros discursivos – no caso, a biografia e a reportagem podem hibridizar-se, constituindo assim um novo gênero do discurso.

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1 AUTORIA E AUTOR

Ser autor é mais do que assinar um texto e assumir a responsabilidade pelo que foi dito. Ser autor é buscar aspectos discursivos para dizer de modo criativo algo que talvez alguém até já tenha dito, mas que contribuirá para a continuidade das mil culturas subjacentes. Ser autor é deixar-se morrer em sua autoria para que o leitor nasça em sua coautoria e os sentidos sejam produzidos no compartilhamento de ideias, emoções, pensamentos. Ser autor, enfim, é exercer a alteridade, negociar a distância com o outro e modalizar sua capacidade linguística, textual e discursiva, para imprimir, em sua historicidade a sua marca pessoal indelével. Elioenai Piovezan

A relação intrínseca entre as ideias de autoria e autor, seus questionamentos, a mágica representação histórica da figura do autor, o apagamento deste, o autor na contemporaneidade, o autor de romance, o autor de autobiografia, a personagem, o herói, a narrativa e a autoria são assuntos relevantes para a nossa proposta e serão discutidos neste capítulo. A noção de autoria se adapta ao gênero do discurso que está atuando; por exemplo, na autobiografia, o autor busca a verdade: trata-se de um pacto de veridicção entre o autor e o leitor pelo real. O leitor da autobiografia vai fazer uma trajetória de leitura que busque a inverdade ou a omissão. Isso se justifica muito pela definição, propriamente dita, do gênero autobiografia: uma literatura em prosa, de narrativa retrospectiva sobre uma personagem real – de existência verificável. No romance ou no conto de ficção, o foco não é a veridicção, mas a verossimilhança. Todavia, essa magia, que supõe certo suspense, uma curiosidade em torno da figura do autor, sempre existiu. No caso do famoso autor russo Dostoiévski, seus leitores acreditavam haver uma forte relação entre alguns de seus personagens e a própria vida do autor, como no caso de Smerdyakov, de Os irmãos Karamázov, que era epilético, assim como seu criador. Acredita-se que na obra do autor russo há uma coleção de personagens autobiográficos. Uma das formas de ler seus romances é pensar seus personagens como um modo de saber um pouco mais sobre Dostoiévski. Em uma obra literária, em um texto ou em um discurso, é possível verificar mais de uma perspectiva sobre autoria e autor. É sobre algumas dessas perspectivas que falaremos a seguir. 17

1.1 Autoria

É evidente que nem todo escritor escreverá uma obra (se designarmos obra como um romance, uma pintura etc.). Não é qualquer texto que podemos considerar ter passado por um processo de autoria. Segundo Possenti (2009, p. 111), dois indícios de autoria são: “dar voz a outros e incorporar ao texto discursos correntes, fazendo ao mesmo tempo uma aposta a respeito do leitor.”. Autoria é escolha, e essa ponderação é inter-relacionada com a pessoalidade, ou seja, é um conceito, uma tessitura que está amalgamada com o conceito de autor como pessoa e também com a função de ser autor. Grosso modo, a autoria é um ato, a viabilização da ideia, a concepção e a publicação da obra, a materialização dessa. Autoria é a palavra que designa o autor. O autor só é autor quando cria uma obra autoral discursivamente. Dar voz aos outros tem relação direta com o chamado discurso citado1. Trata-se do “discurso no discurso, a enunciação na enunciação” (BAKHTIN/VOLOSHÍNOV, 2009, p. 150). O discurso citado, segundo Bakhtin/Voloshínov (2009), pode ser linear ou pictórico. A autoria depende de escolhas: escolhas da voz do outro, do discurso citado no interior da narrativa, escolhas lineares, que equivalem aos contornos externos bem definidos que circunscrevem à narrativa – o discurso direto, por exemplo, é um discurso linear. As escolhas pictóricas correspondem à elaboração por meio da língua para o autor aplicar suas réplicas, seus comentários no discurso de outrem. Trata-se do autor, por meio do apuramento de autoria, colorir o discurso citado com entoações como o humor, a ironia, o desprezo, o encantamento, a ira, na trama do discurso. O discurso citado tem correlação com o estilo do autor e suas possibilidades narrativas no processo de autoria. Segundo Bakhtin/Voloshínov (2009), essas variações na ordem do discurso, que dão voz a autoria, são enunciados de ordem discursiva indireta livre e os discursos indiretos analisadores do conteúdo (DIAC), os discursos indiretos analisadores da expressão (DIAE) e o discurso indireto impressionista (DII). E ainda, dentre os discursos diretos, estão: o discurso direto preparado (DDP), o discurso direto esvaziado (DDE), o discurso direto antecipado e disseminado oculto (DCADO), o discurso direto retórico (DDR) e o discurso direto substituído (DDS). A palavra escolha define a palavra autoria. É por meio da escolha que nascem opções entre possibilidades, seja na escolha lexical, seja nas construções, nos efeitos de sentido, seja pensando na adesão do leitor. A onisciência autoral justapõe ideias, escolhe as melhores

1 O discurso citado é apenas uma das perspectivas de escolha autoral. 18

alternativas, pensa de maneira ordenada no sentido léxico-frasal e antecipa a melhor estratégia para alcançar o leitor: movê-lo, convencê-lo, adquiri-lo. As escolhas de autoria alcançam ou não alcançam as expectativas do leitor. Autoria é estilo e implica na consciência de que dizer alguma coisa de um jeito significa não dizer a mesma coisa de outro jeito. Em outras palavras, a autoria garante a escolha do dito e do não dito, do falar ou do calar, e permite ainda escolher qual a melhor maneira de dizer. Os discursos correntes inseridos em um texto pelo processo autoral são uma ótima opção para o autor dialogar não só com a tradição literária clássica, mas também com o seu cotidiano, com a sua contemporaneidade. Ao permitir que o leitor se reconheça no tempo, no texto e no dia a dia, as inferências à leitura em determinado texto ativam seu conhecimento prévio. Trata-se de uma aposta do autor para resgatar, por meio da leitura, o conhecimento dial do leitor pela intertextualidade. A literatura dadaísta, por exemplo, que nasce no final da I Guerra Mundial, detém uma concepção de autoria livre e diferenciada. O movimento apresentava como características as palavras escritas de maneira desordenada, uma verbalização acentuada pela agressividade, a incongruência, o esvaziamento da rima – enfatizado pela sua falta de importância – e a deselegância do raciocínio lógico. Tristan Tzara (1972, p. 103), expoente literário do movimento dadaísta, explica como escrever um poema e nos presenteia com uma receita de autoria:

Para fazer um poema dadaísta Pegue um jornal. Pegue a tesoura. Escolha no jornal um artigo do tamanho que você deseja dar ao seu poema. Recorte o artigo. Recorte em seguida com atenção algumas palavras que formam esse artigo e meta-as num saco. Agite suavemente. Tire em seguida cada pedaço um após o outro. Copie conscienciosamente na ordem em que elas são tiradas do saco. O poema se parecerá com você. E ei-lo um escritor infinitamente original e de uma sensibilidade graciosa, ainda que incompreendido do público.

É curioso como a própria palavra dadaísmo nada significa e se compara a essa estrutura fonológica e silábica – da-da-ís-mo – com os sons emitidos pelos bebês no processo de aquisição de linguagem. Entende-se esse movimento como um precursor do surrealismo, que Barthes (1988, p. 67) declara ter contribuído “para dessacralizar a figura do Autor”. “Confiando à mão o 19

cuidado de escrever tão depressa quanto possível aquilo que a cabeça mesmo ignora (era a escritura automática), aceitando o princípio e a experiência de uma escritura coletiva” (BARTHES, 1988, p. 67). Nas artes plásticas, por exemplo, depois da Idade Média, no Renascimento, a autoria, a assinatura e a questão do ser humano, do artista, viraram questões essenciais. Saber quem havia criado a obra de arte era fundamental. Contudo, foi um francês, Duchamp, quem sinalizou a primeira ideia de esvaziamento da autoria também nas artes plásticas. Duchamp criou a ready made, donde mandou para um concurso de arte a obra intitulada A fonte. Essa obra, tratada por Duchamp como escultura, é um urinol comum, comprado em uma loja de construção, que recebeu a assinatura de R. Mutt. No caso, R. Mutt era a fábrica que produziu o urinol. Aqui a autoria – a concepção do trabalho, a ideia, a criação – é maior do que o autor. O que é necessário para classificar um trabalho literário, uma pintura ou uma escultura como obra de arte? Trata-se de um problema e de uma relativização. Duchamp, por exemplo, transformou um banquinho em cima de uma bicicleta em obra, um urinol em obra, mas nem tudo que um autor produz durante a vida pode ser considerado, necessariamente, uma obra de arte – ou uma obra literária. É necessária uma ideia, uma concepção artística; é necessária a autoria. Para escrevermos um bilhete, no dia a dia, no cotidiano, uma lembrança para não esquecer a hora de tomar o remédio, por exemplo, não exige uma elaboração criativa. Trata-se de um funcionamento mais mecânico; entretanto, se algum autor, artista, filósofo ou intelectual provar teoricamente, pela escrita, que aquele bilhete é obra de arte, pode materializar-se a autoria no bilhete e ainda, a autoria da autoria – no caso o autor que provou ser o bilhete uma obra de arte. Por isso, a ideia de obra de arte é um problema e sua concepção para Foucault (2015) inexiste teoricamente2. Ao pensarmos sobre algumas características que delineiam a concepção de obra de arte, teríamos, indubitavelmente, a autoria, o suporte, a circulação, a representação social e a responsabilidade intelectual.

1.2 O autor

O autor é uma personagem que está fora da obra de arte, mas que se constitui por sua individualização, como uma espécie de referência forte na história da sua própria obra, no desenvolvimento histórico e cultural da humanidade, na história das artes, da ciência e da

2 Todavia, essa acepção de mutualidade entre esses dois elementos, o autor e a obra, tem grande relevância no texto de Foucault denominado O que é o autor? 20

filosofia. O autor é uma unidade primeira no trabalho literário, artístico ou filosófico, de tanta relevância coexistencial que acomoda o gênero do discurso em que se insere a obra, os conceitos ou a história narrada dessa, em um segundo plano. Ou seja, é comum o autor e sua própria história de vida – e os livros que escreveu anteriormente – aparecerem com maior visibilidade, pelo menos a princípio, do que sua obra mais atual, suas ideias, seus conceitos e seu tema. O autor é aquele que escreve a obra e isso nos dá indícios de que ser um autor e ser um escritor são coisas distintas. Ou seja, as noções de autor e escritor se diferem. Segundo Chartier (1999, p. 32), “o escritor (écrivain) é aquele que escreveu um texto que permanece manuscrito, sem circulação, enquanto o autor (auteur) é também qualificado como aquele que publicou obras impressas”. A figura do autor realmente chama a atenção e gera questionamentos. O herói, a personagem, na antiguidade, sempre foi maior que o seu autor e ganhou sempre maior destaque; todavia, em dado momento da história, o autor passou a ter uma importância maior do que o herói da sua própria narrativa. Em Ilíada e Odisseia, há uma especulação. Não se sabe se o autor da obra (Homero) era um homem ou vários homens. Não se sabe ao certo, tampouco, se ele existiu. Nos épicos, a glória, o destaque e o prestígio não são do autor, mas dos heróis. Trata-se da imortalização do herói por meio da glória, da não ignomínia nas lutas em que atuara – que são originalmente narradas em verso. A relação do texto com o autor, nesse caso, existe sob uma “cortina de fumaça”, que sinaliza o autor como uma representação longínqua que é exterior e anterior à obra. O herói, a personagem protagonista, é a própria obra. Na epopeia Grega, a Ilíada, por exemplo, Aquiles queria morrer jovem, em busca da perpetuidade e da imortalidade. A narrativa poética, especificamente dessa obra, trabalha em função da ideia de que se Aquiles aceitasse morrer jovem em uma guerra, ele seria eternamente um herói e sua vida estaria consagrada pela eternidade. Trata-se de um contato inicial e subjetivo entre a história da morte e a imortalidade, a perpetuidade e a glória com a questão da autoria. O sujeito da escrita, o autor, tende a desaparecer em detrimento do herói, como no caso de Homero e Virgílio. Logo, fica clara a relação inerente e histórica entre a existência da escrita e do autor com a morte. Segundo Foucault (2015), culturalmente houve uma metaformização do tema da narrativa e da escrita destinadas a conclamar a morte. A escrita fica relacionada a uma espécie de oferenda da vida em favor da morte, um sacrifício. Há, nessa concepção, um apagamento de quem escreve, um apagamento do autor. O autor, nesse caso, dissipa-se de sua 21

individualidade, não tem personalidade, não é mais uma personagem. É mister para o autor a representação da morte, para invocar um jogo lúdico, que viabilize a materialização da escrita, da narrativa e do herói sem fazer alusão direta àquele que escreveu. A voz que dá a origem às personagens, à narrativa, à história, aos conflitos, ao clímax etc., no processo de escrita, se desliga, se perde diante da própria existência, passa a inexistir. É da inexistência do autor que nasce sua escrita. O autor precisa morrer para que emerja sua escrita. O fato é que o desenvolvimento cultural no mundo depois da Idade Média se esforçou para privilegiar o homem, colocá-lo em destaque. A pessoa humana passou a ser valorizada. Houve uma humanização consciente que despertou um interesse pelo indivíduo. Logo, esse interesse – e não podia ser diferente – se estendeu para a figura do sujeito-autor. E essa ideia entre o que é um autor, quem é o autor, dialoga e se aglutina com outra ideia, com outra representação: o nome próprio. O nome do autor na literatura não é um elemento qualquer na concepção de um trabalho, de uma obra, de um livro. Por exemplo: se o livro é um signo literário da escrita, da escritura e da literatura, de modo geral, o nome do autor é um significado da autoria literária ou acadêmico-filosófica. Ou seja, se atribui a autoria, nesses casos, quase sempre a um nome próprio. Ele tem – o nome próprio – uma relação direta com o texto e com o discurso. Essa relação é tão amalgamada que é impossível falarmos de retórica sem pensarmos em Aristóteles ou de gêneros do discurso sem pensarmos em Bakhtin – especificamente no texto acadêmico-filosófico. O nome Aristóteles, por exemplo, goza de tanta força e representatividade que um discurso do filósofo, citado direta ou indiretamente, ganha um estatuto de discurso autorizado. O autor e seu nome integram o texto e o discurso como um elemento que não pode ser alterado por um pronome, por exemplo. Para Foucault (2015, p. 44-45), “tal nome permite reagrupar um certo número de textos, delimitá-los, selecioná-los, opô-los a outros textos. Além disso, o nome do autor faz com que os textos se relacionem entre si”. Se hoje Aristóteles, por exemplo, goza do estatuto de discurso autorizado, isso se deve a relação do sujeito-autor com o discurso literário. Nesse tempo antigo, mais especificamente na Idade Média, a antiguidade do texto era um valor suficiente – mesmo se essa antiguidade fosse suposta – para atribuírem ao texto e o elevarem a uma condição que garantisse suficientemente a sua importância. Daí, os textos assinalados apenas com o nome do autor – “Aristóteles conta”; “ouçamos Sócrates!” – ganhavam e eram entendidos como valor de verdade. 22

Cada discurso apresenta um modo de ser particular e essa singularidade discursiva resulta da consciência de que há discursos que não necessitam de autor. No nosso dia a dia, lidamos com alguns desses discursos. Uma proposta de aluguel contratual pode ter um fiador, contudo, não necessita de um autor. As perguntas de uma entrevista de emprego têm um objetivo avaliativo, mas são desprovidas de um autor especifico que carregue um nome próprio. Um enunciado grafitado em uma parede, por exemplo, “Fora Temer”, certamente provém de alguém que o redigiu, entretanto esse não é o autor do enunciado. Trata-se de exemplos da ausência de um autor particular ligado a um nome próprio específico e verificável. Um discurso político, como o discurso de posse de um presidente da república, tradicionalmente, apresenta o próprio presidente como orador; todavia, aquele discurso de posse pode não ter sido escrito pelo próprio presidente eleito. Logo, o autor real se perde e a autoria do discurso é atribuída ao orador, o presidente da república na posse, que não escreveu o texto discursado. Falá-lo-emos um pouco dos discursos que caracterizam a função de ser um autor.

1.3 Quem é o autor?

Sabemos que há em nossa cultura alguns discursos que implicam autor e outros discursos que não necessitam da atribuição de um sujeito para caracterizar, nomear ou classificar o processo de autoria discursiva. No nosso caso, neste momento, tratar de discursos que requerem, necessariamente, de autor, nos parece mais adequado. Um autor literário, por exemplo, é um transgressor intelectual; apresenta-te a novos mundos, te conta novidades, te leva ao desconhecido e pode também te infringir, tirando-te de tua zona de conforto. Portanto, as ideias de infração, de culpado ou de inocente e de contravenção ficariam, a partir dessa concepção, associadas ao ato de criar, artística, cultural e filosoficamente. E, de fato, a figura do autor ganhou certa expressão à medida que os discursos “desobedientes” – tratemos assim – emergiram para o plano do consciente. Existir um responsável, alguém que efetivamente se responsabilizasse pelo dito, alguém que fosse responsabilizado por determinados discursos compreendidos como contraventores ou invasivos, se fez necessário. À medida que a ideia de punição para o autor foi se concretizando e o autor deixou de ser uma figura mítica ou sacra, os textos, os discursos e os livros passaram a ter autores. O 23

discurso estava amparado na sociedade culta dos homens, na sua origem, não como um bem, uma ideia, um produto comercial, uma propaganda, um livro ou um elemento produtor de efeitos de sentido, por exemplo, mas como uma ação, um agir, um ato; um ato, não necessariamente retórico, embora, desde que o mundo conheceu a palavra, nasceu também uma necessidade de argumentar, convencer e persuadir. Contudo, se a retórica, como instituição discursiva praticada pelos homens, é amoral, o discurso, de modo geral, sempre esteve carregado de “sagrado e de profano, do lícito e do ilícito, do religioso e do blasfemo” (FOUCAULT, 2015, p. 47). Os textos, na medida em que a noção de posse fora se desenvolvendo, passaram a adquirir um sentido de privado, de particular, e ganharam o estatuto de propriedade. Estabeleceram-se a partir daí o direito do autor, as regras estritas e restritas, as relações entre autor e editor, os direitos de reprodução etc. Os livros e a ideia de livro, as dúvidas a respeito do suporte livro e a incerteza sobre o que é o livro, acompanhadas pela necessidade de se pensar reflexivamente sobre esse corpo que detinha a escrita, geraram algumas teorias a respeito. Kant (1976) foi o primeiro a pensar em uma distinção entre duas ideias: a primeira conceitualização entendeu o livro como um objeto material adquirido, propriedade de uma pessoa, que o detém para fins específicos, para instrução, entretenimento, lazer etc. A segunda ideia trata o livro como propriedade do seu autor e só pode ser posto para comercialização, distribuição e circulação com a anuência deste. O autor é o responsável por endereçar esse discurso ao público. Embora as duas ideias girem ao redor da questão da propriedade, os dois conceitos são díspares: um é sobre o material e o outro é sobre o discursivo. As ideias liberais de Jonh Locke – entre outros – sobre o direito do autor abalaram, no século XVII – segundo o tutorial da UNESCO (1981) –, o antigo sistema. Nasce a ideia de individualismo, e as restrições à imprensa, por exemplo, foram gradativamente sendo encolhidas: a sistematização da época, que privilegiava os monopólios de impressão, fora questionado. Logo, os impressores e os livreiros defenderiam seus direitos baseados na teoria da propriedade intelectual. Os livros foram também associados a metáforas: por exemplo, associavam-se os livros a um corpo dotado de alma e de natureza humana, que acantonavam sentimentos e paixões. Segundo Chartier (2014), na Espanha do Século de Ouro, a questão metafórica era reutilizada para definir outros aspectos. Por exemplo, de um jeito análogo e associativo, um editor era como Deus ou um intermediário de Deus, que põe a sua mão à sua imagem e semelhança na prensa de impressão e que, a partir de uma representação, se assemelhava a um “demiurgo, 24

que dá uma forma corporal apropriada à alma de sua criatura” (CHARTIER, 2014, p. 30). “Um livro perfeitamente realizado consiste numa boa doutrina, apresentada pelo impressor e pelo revisor no arranjo que lhe seja mais apropriado, é o que sustento como sendo a alma do livro.” (PAREDES, 1680, p.107 apud CHARTIER, 2014, p. 31). O impressor Alonso Victor de Paredes (1680), que conhecia o ofício de forma empírica, comparava, ainda, a refinada impressão, limpa, trabalhada cuidadosamente, a um corpo grácil, alinhado. Contudo, um livro, como obra, precisava no processo do todo de sua confecção de um autor. Para Chartier (2014), há duas linhas de pesquisa que demonstram que a resposta à pergunta de Foucault “o que é um autor?” não se esvai3. A primeira linha de pesquisa de Chartier (2014) consiste em considerar a escrita colaborativa – nos casos das obras teatrais dos séculos XVI e XVII –, absolutamente contrastiva com a ideia racional de propriedade circunscrita à prática da publicação impressa. A ideia de propriedade associada à publicação pressupõe um responsável, um autor, que, no caso da escrita teatral colaborativa, por exemplo, se dissociava da ideia de um só nome próprio relacionado ao texto. O raciocínio literário e social que passou a reunir em um único exemplar, ou em um único volume, o nome próprio de um só autor e suas notas biográficas, por vezes era insuficiente e injusto para classificar e nomear a real autoria de determinados textos: eram, na verdade, escritos por vários autores. A segunda linha de pesquisa dialoga com a primeira e apresenta relação com a paternidade dos textos nesse tempo que é anterior à propriedade literária. Nesse tempo, as histórias eram compartilhadas por todos, também oralmente, e apresentavam um pertencimento coletivo – eram de todos –, donde a questão do plágio ainda não era oficialmente um crime. Isso resultava em excessivas polêmicas sobre continuações sem autenticidade comprovada e crime de roubo da identidade dos autores que gozavam de certa particularidade e popularidade com o intuito de vender livros escritos por autores ainda desprestigiados ou editores desonestos, “(tal como a queixa de Lope de Vega quando seu nome foi usado por editores de comedias que não eram suas e ele julgava detestáveis).” (CHARTIER, 2009, p. 33). O discurso literário, na Idade Média, materializado em contos, em textos dramáticos, em epopeias, em romances e em narrativas eram colocados em circulação sem que se pensasse, efetivamente, na questão do autor. O anonimato não era um problema. Isso se justifica pelo fato de que a reprodução de um trabalho literário, nessa época, consistia em uma extrema dificuldade. As cópias eram manuscritas, ou seja, copiadas a mão; portanto, no

3 Segundo Chartier (2014), ao considerar, de certa forma, o autor como uma engrenagem castradora da proliferação livre de discursos, a pergunta “o que é o autor” nunca é extenuada. 25

número de exemplares a serem distribuídos sempre residia uma insuficiência.4 Nos séculos XVII e XVIII, o discurso acadêmico-filosófico, de certa forma, continua rebaixando o autor a um desnível, sendo que a relevância estava no texto científico, como verdade estabelecida, o que caracterizava o texto como uma garantia. Havia um apagamento do autor em detrimento do texto. O nome do autor serviria apenas para batizar uma proposição, um texto científico ou um teorema. O que vai mudar essa relação – inclusive no discurso acadêmico-filosófico – com o autor é o discurso literário. No discurso literário, o autor passa então a ser a maior referência. “Perguntar-se-á, a qualquer texto de poesia ou de ficção, de onde é que veio, quem o escreveu, em que data, em que circunstâncias ou a partir de que projeto” (FOUCAULT, 2015, p. 49). “O anonimato literário não nos é suportável” (FOUCAULT, 2015, p. 49-50). Quando não sabemos quem é o autor no texto literário, seja no texto de ficção, na poesia ou na veridicção, logo passamos a tentar saber quem é o autor: pesquisamos, buscamos e então nos apropriamos dessa personagem, que está fora da obra, mas que constitui um elemento fundamental desta. Existe um autor pessoa, e isso justifica o grande sucesso de biografias na contemporaneidade, que delineiam as personalidades dos autores ao contar a sua vida, a sua história. Os textos, então, em meados dos séculos XVIII e XIX, passaram a ganhar, apoiados no autor, a categoria de literatura, influenciados pela ideia de propriedade do autor. A sociedade passou a priorizar a ideia de propriedade fundamentada na noção de posse também para a literatura, que praticava de maneira sistêmica a transgressão discursiva. Implicava a ideia de risco na escrita e atribuía a responsabilidade ao autor, ao mesmo tempo em que garantia ao autor a personalidade e o direito de propriedade sobre aquilo que escrevia. Baseados na propriedade, na responsabilidade, e, sobretudo, na personalidade, os autores literários são adjetivados pela crítica especializada e a eles conferem características. Atribui-se ao autor significados: é modernista, de escrita intimista; escrevia diferente, dona de uma personalidade sensível e se dizia uma “sentidora”; Dostoievski era epilético, subversivo e revolucionário; era um conhecedor da psique humana; José Saramago era ateu, comunista e humanista, e assim por diante. “A crítica consiste em dizer que a obra de Baudelaire é o fracasso do homem Baudelaire, a de Van Gogh é a loucura, a de Tchaikovski é o seu vício.” (BARTHES, 1998, p. 66).

4 Nota-se que, associado ao discurso literário, o nome do autor ganha força na Europa com a criação da prensa móvel, a prensa tipográfica para a impressão, desenvolvida pelo impressor alemão Johannes Gutemberg. Os livreiros e impressores tiveram a oportunidade de imprimir e publicar manuscritos antigos e posteriormente se dedicaram a impressão de novos autores. 26

De onde o texto veio? Quem o escreveu? São perguntas que, segundo Foucault (2015), na célebre conferência O que é o autor, obtém respostas que vão ao encontro com o autor, de quem ele é, e qual sua função. A função de ser autor5 advém de uma relação mais complexa. Não se cria de maneira espontânea, mas por incumbência, delegação, competência de um discurso correlacionado a um indivíduo e a sua obra. É uma perspectiva que ignora as relações sociais e biográficas do autor. O “eu” racional que denominados de autor é também racionalizado. Dito de outra maneira, é idealizado, fabricado, construído; “tenta-se dar a esse ser racional um estatuto realista: seria no indivíduo uma instância “profunda”, um poder “criador”, um “projecto”, o lugar original da escrita” (FOUCAULT, 2015, p. 50-51). Voltemos a Homero, quando pensamos na função de ser autor; há uma corrente de pensamento em relação ao autor de Ilíada e Odisseia: Homero não era um homem, mas sim vários homens, vários autores, fundamentados em histórias que atravessaram gerações e se tornaram conhecidas pela configuração oral, ou seja, pelo famoso “boca a boca”. Ora, essa ideia não é tão esdrúxula, nem parece tão absurda, se ligarmos essa ideia à tradição cristã. No cristianismo, para se provar a existência do autor de uma obra, recorria-se a lineamentos interpretativos, analíticos e críticos, a exegese bíblica. Provava-se, por meio de análises textuais, a conexão santificada do autor com o valor e a veridicidade do texto. Portanto, se pensarmos historicamente, na tradição textual, o nome próprio nunca foi consideravelmente consistente, tampouco competente, para uma marcação individual do autor. Poderia haver homônimos. Acredita-se que o próprio nome Homero é uma construção, um nome fictício. Então, Foucault pergunta: “Como pôr em ação a função autor para saber se estamos perante um ou vários indivíduos?” (FOUCAULT, 2005, p. 52). Segundo Foucault (2015), São Jerônimo6 nos apresentou quatro métodos, que, em síntese, resumem-se em: 1 – verificar se determinado livro do autor é inferior aos demais; 2 – se está em contradição com os dogmas daquele autor; 3 – as obras que estão escritas com estilo diferente, portanto, o autor como homogeneidade estilística; 4 – perceber nos textos, que se referem a personagens reais, se estes dialogam com o momento histórico definido do autor ou se essas personagens citadas são posteriores a morte de quem os escreveu. Certamente, não houve a aplicação da função autor nos textos de Homero, mas notamos claramente uma breve contradição: a Odisseia é a história de uma personagem da

5 Foucault (2015) utiliza o termo função-autor com hífen e Chartier (2014) sem hífen. Achamos mais apropriado, nesse caso, utilizar o termo função de ser autor; todavia, as três denominações são sinonímicas. 6 São Jerônimo foi um sacerdote cristão ordenado santo. Teólogo e historiador, foi considerado doutor da igreja pela própria igreja católica. É mais conhecido pela sua tradução do velho testamento do hebraico para o latim. 27

Ilíada que volta para casa; no caso, Ulisses ou Odisseu, rei e general grego, que foi amaldiçoado por Posseidon, Deus dos mares, a ficar vagando sem direção. Trata-se de outra história, a continuação da história de uma personagem depois da guerra de Tróia. A continuação efetiva da Ilíada, que é atribuída a Homero, chama-se Eneida, e foi escrita por outro autor, Virgílio, cuja biografia é um conglomerado de especulações, assim como a biografia de Homero, que nada conclui. Todavia, Virgílio é considerado um dos principais autores romanos. No entanto, se pensarmos na escrita literária moderna, não seria natural pensarmos que a continuação de Ilíada, como obra literária, deveria ter sido escrita por Homero, e não por Virgílio? Segundo Foucault (2015), a crítica moderna classifica o autor como alguém capaz de influenciar no entendimento de determinada obra por meio da exposição dos acontecimentos desta, suas transformações, modificações ou deformações, e também delineia a autenticidade da obra, regra geral na contemporaneidade. “O autor é igualmente o princípio de uma certa unidade de escrita” (FOUCAULT, 2015, p. 53). Os romanos podem discordar, mas Virgílio pode ter sido, assim como Homero, um nome fictício ou um autor construído, ou ainda serem Homero e Virgílio a mesma pessoa – ou as mesmas pessoas –, já que tanto a Ilíada quanto a Eneida são lançadas no século I a. C, sem uma definição precisa de espaçamento entre o lançamento de uma obra (Ilíada) e o lançamento da outra (Eneida). Fica claro que, para Foucault (2015), a figura do autor goza de duas categorizações distintas: a primeira delas é de caráter histórico-sociológico e a segunda é justamente a função-autor. A relação do autor com sua historicidade, com o social e a sociedade nos leva a observar o autor como pessoa, sua trajetória biográfica, suas raízes sociais, culturais e profissionais. A função de ser autor, como vimos, demanda de outra vertente. Ela funciona, a partir de pormenores procedimentais, complexos e individuais “que relacionam a unidade e a coerência de alguns discursos a um dado sujeito” (CHARTIER, 2012, p. 28). O autor, nessa perspectiva, portanto, é uma função variante e intricada do discurso, que não se correlaciona diretamente a questão social, individual ou particular do autor. “A “função autor” é pensada a distância da evidência empírica, segundo a qual todo texto foi escrito por alguém, ou por várias pessoas.” (CHARTIER, 2012, p. 27-28). Foucault (2015) separa a função-autor – e o próprio autor – do escritor real, e exemplifica isso por meio do narrador em 1ª pessoa, no caso do romance. Segundo Foucault (2015), a narração em 1ª pessoa nunca deve ser remetida diretamente ao escritor, mas sim a um alter ego, “cuja distância relativamente ao escritor pode ser maior ou menor e variar ao 28

longo da obra.” (FOUCAULT, 2015, p. 55). “Seria tão falso procurar o autor no escritor real como no locutor fictício” (FOUCAULT, 2015, p. 55). Isso se aplicaria também à autobiografia? Poder-se-á dizer que sim; contudo, na autobiografia, o narrador, a personagem- protagonista, o escritor e o autor, teoricamente, grosso modo, são a mesma pessoa. A função de ser autor incorpora vários “eus”. Pode-se dizer que a função de ser autor é uma propriedade singular, que dialoga apenas com alguns discursos bem específicos, como o do romance e o da poesia. Foucault (2015) vai chamar essa pluralidade de “eus” de um jogo provido da função-autor. “Um jogo que respeita apenas a esses quase discursos.” (FOUCAULT, 2005, p. 55). A função de ser autor vai trabalhar também, a partir dessa ruptura, entre aquele que escreve, o autor, e aquele que narra, nessa divisão e nesse percurso, ou seja, nesse jogo identificatório em que a mediação está entre a proximidade e a distância. A função de ser autor oferece um distanciamento claro e enfático entre o nome do autor, o escritor real e o indivíduo autor, mas principalmente entre o “eu” subjetivo e o discurso, ou seja, “não é somente uma função, mas também uma ficção, e uma ficção semelhante a essas ficções que dominam o direito quando ela constrói sujeitos jurídicos que estão distantes das existências individuais dos sujeitos empíricos.” (CHARTIER, 2012, p. 29). O poeta português Fernando Pessoa, como sabemos, trabalhava muito bem com a questão da pluralidade dos “eus”. Ele criou vários heterônimos; dentre os mais famosos, estão: Alberto Caieiro, Álvaro de Campos e Ricardo Reis. Cada um tem uma particularidade: Alberto Caieiro, por exemplo, é conhecido como um mestre do próprio Fernando Pessoa. Todavia, sabemos que Alberto Caieiro é uma invenção do poeta, escritor real, Fernando Pessoa. Não há dúvida de que Pessoa entendeu a função de ser autor melhor do que ninguém, no sentido artístico. Há, evidentemente, em seus heterônimos, um distanciamento entre o nome do autor e o escritor real. Álvaro de Campos assina o célebre poema intimista Tabacaria com seu nome próprio; entretanto, seu nome foi criado, construído e viabilizado por Fernando Pessoa, escritor real de Tabacaria. Mas o indivíduo autor é Álvaro de Campos, o heterônimo, que, inclusive, detém uma minibiografia7. Fica evidente, portanto, o distanciamento entre o “eu” subjetivo e o discurso: o “eu” subjetivo, ou seja, o escritor real de Tabacaria é Fernando Pessoa, mas o poema, o texto e o discurso, sua unidade, sua coerência e sua autoria, estão relacionados e são atribuídos à terceira fase poética de Álvaro de Campos.

7 Álvaro de Campos era um engenheiro de educação inglesa e de origem portuguesa, detentor de uma eterna sensação de ser um estrangeiro em qualquer parte do mundo; um estrangeiro mesmo em Portugal. Esse heterônimo era um sensacionista, donde a sensação era, para a ele, a realidade da vida. 29

Esse exemplo é claro quanto a distinção entre a construção empírica e a função autoral, textual e discursiva. No caso de Fernando Pessoa, a função de ser autor rege o estilo do poeta e não necessariamente o gênero do discurso poesia; todavia, segundo Chartier (2012), é difícil de escapar do domínio sobre o escritor, da função autor, já que ela, teoricamente, comanda o gênero do discurso pelo qual o autor escreve. Não há dúvida de que a função de ser autor nasce de questões de responsabilidade, de propriedade e também de questões jurídicas. Para Chartier (2012), a função autor cria sujeitos jurídicos em detrimento do sujeito empírico (aquele que escreve, o autor propriamente dito), o que, nesse caso, apresenta relação direta com os direitos e deveres do autor. O autor não é somente aquele que escreve a obra: é uma espécie de entidade que está fora dela, muito embora existam linhas de pensamento, linhas teóricas, que acreditam que o valor real está no conteúdo da obra, em seu valor linguístico, e que o autor deva morrer em si mesmo para que nasça sua escritura. Todavia, é inegável que o autor é uma espécie de entidade extralinguística e referencial que direciona o leitor e ativa nele determinado conhecimento prévio. Isto é, o nome do autor permite que o leitor procure o gênero do discurso, por exemplo, que prefere ler. É por meio do autor que podemos relacionar textos e encontrar o tipo de leitura que desejamos, tanto no aspecto linguístico quanto nos aspectos textuais, discursivos, narrativos, lexicais e outros. É por meio do autor que podemos correlacionar discursos. É por meio do autor, também, que um texto pode ser identificado, inclusive pelos signos linguísticos característicos daquele autor: discurso citado, pronomes pessoais em 1ª ou em 3ª pessoas, advérbios de lugar, de tempo, conjunções adversativas; o autor usa pontuação, não usa, usa travessão, não usa. José Saramago, único prêmio Nobel de literatura em Língua Portuguesa, por exemplo, é conhecido por brincar com as pontuações, jogar com elas, ou simplesmente não as usar. O aspecto linguístico é uma escolha autoral e pode ser estilístico. A função de ser autor divide o sujeito empírico, o autor e sua biografia, da sua responsabilidade autoral. Isto é, o autor, associado à sua função, pensada por Foucault (2015), deve manter uma coerência estilística, a originalidade, a coesão de ideias, a responsabilidade pelo dito, dentre outras coisas. “Em todos os casos, existe supostamente uma relação original e indestrutível entre uma obra e um autor” (CHARTIER, 2014, p. 32). Para Foucault, “a noção de autor se constitui a partir de um correlato, a obra. Só há autor onde há obra que possa consistentemente ser a ele associada.” (POSSENTI, 2009, p. 105). Todo autor é um sujeito empírico que está no plano real da existência e possui uma vida verificável, ou seja, possui 30

uma biografia, uma vida. Entretanto, o autor responde, segundo Foucault (2015), a uma função: a função-autor. Essa função enquadra, define, estigmatiza o autor como uma espécie de entidade detentora de “um certo nível constante de valor; o autor como campo de coerência conceptual ou teórica; o autor como unidade estilística; o autor encarado como momento histórico.” (FOUCAULT, 2015, p. 52). O autor, amalgamado com a noção de obra, sua função e propriedade é morto pelo escritor empírico – autor de obra publicada –, ou seja, o autor como pessoa, figura de interesse dos amantes literários, aí se desfaz. O autor é aquele que cria por meio da autoria, mas não é só isso. O autor é pessoa, é persona, é personagem. É referência! Pode estar morto; pode ser acadêmico ou literário; pode ser biógrafo, cronista, quadrinista, poeta; pode ser um, pode se vários.

1.4 A transdiscursividade do autor

Se nosso intuito nesse capítulo fosse o de fazer uma distinção entre texto e discurso, diríamos, grosso modo, que o texto corresponde à materialidade, aos recursos lexicais, gramaticais e fraseológicos da língua; à referenciação, à coesão e à coerência, à paragrafação, à sintaxe, à morfologia etc., e o discurso são os efeitos de sentido que esse texto produz em cada leitor, teoricamente de caráter interpretativista, com o auxílio da inquestionável materialidade “normativa” do texto. A interpretação do leitor ou interlocutor de determinado texto, de acordo com seu conhecimento de mundo, colocará esse leitor em uma posição de compreensão do texto ao seu modo, ou seja, colocará o leitor na qualidade de produtor do discurso. O discurso, grosso modo, é aquilo que o leitor ou o interlocutor entende, decodifica, mas, principalmente, aquilo que interpreta e reproduz de determinado texto. É no século XIX, portanto, que nasce uma nova característica de autor: aquele que não é o dono de seu próprio texto. Não estamos falando, evidentemente, dos grandes autores literários, sacros, tampouco científicos, mas autores que não só desenvolveram textos, suficientemente competentes para influenciar novos textos, como criaram novos gêneros do discurso, ajudaram no desenvolvimento de teorias analíticas, além de contribuírem efetivamente naquilo que a análise do discurso, por exemplo, veio a chamar de interdiscurso. Esses autores produziriam alguma coisa a mais do que seus próprios livros, seus próprios textos: produziriam discursos, na maior acepção da palavra, além da formatação de 31

novos textos, que produziriam novos discursos, que produziriam novos textos. Estes autores são “fundadores da discursividade.” (FOUCAULT, 2015, p. 58). Tomemos como exemplo o autor Karl Marx. Marx não escreveu apenas O Manifesto Comunista, O Capital, mas ajudou a escrever, intertextualmente, e pela linha de raciocínio, outros tantos textos e outros tantos discursos. Talvez o discurso mais famoso e de maior relevância histórica, propiciado pelo texto marxista, tenha sido a revolução bolchevista de 1917. A lista de autores influenciados por Marx, e que escreveram a partir de seus escritos, é vasta: Bakunin, Kautsky, Lukács, Gramsci, Weber, Adorno, Althusser, Trotsky, Lenin, Sartre, entre outros. Freud, por exemplo, criou a psicanálise. Foi o primeiro a pensar, a falar e a classificar a neurose como patologia; ele também escreveu o célebre livro Neurose Obsessiva (1909). Associou a clássica tragédia grega de Sófocles, Édipo Rei, ao complexo de Édipo8. A aproximação freudiana do desenvolvimento da criança, na primeira infância, com a tragédia grega de Sófocles, já qualifica uma relação entre dois poderosos discursos, o discurso da psicanálise e o discurso do teatro grego, que funcionam, a partir dessa associação, como um intradiscurso, já que o discurso do Édipo Rei de Sófocles, pelo menos até Freud incorporá-lo, era o discurso mais antigo e dominante. Há autores literários, criadores de gêneros do discurso populares até os dias de hoje, não somente na literatura, mas também em outros suportes, como o cinematográfico, o dramático e o musical, como é o caso do gênero terror, descoberto, a priori, pelo romance de terror criado a partir do terror gótico de Horace Walpole no controverso O Castelo de Otranto, do século XVIII. Esse livro ajudou que autores se assentassem no gênero e o difundissem no século XIX. É o caso de Ann Redcliffe, que, segundo Foucault (2015), foi a responsável pela viabilização dos romances de terror no começo do século, possibilitando-os e elevando a autora a uma classificação de autoria que supera a própria obra. Redcliffe é a responsável pela fórmula perpetuada da heroína inocente, que cai na própria armadilha, “a figura do castelo secreto que funciona como uma contra-cidade, a personagem do herói negro, maldito, voltado a fazer expiar ao mundo o mal que lhe fizeram, etc.”. (FOUCAULT, 2005, p. 59). Podemos pensar em Santo Agostinho como um autor sacro, cristão, ou até mesmo um autor de textos religiosos canônicos. Todavia, o autor em Confissões de Santo Agostinho (397-398) popularizou a escrita de si ainda no Renascimento e influenciou, muitos anos

8 Fase em que a criança, em seu desenvolvimento psicossexual e descoberta da libido, deseja e hostiliza, no caso do menino, a própria mãe. 32

depois, a iniciativa de Rousseau em escrever as suas confissões, livro de título homônimo, Confissões (2008), conhecido como um livro referencial para ajudar a entender o pensamento filosófico do autor. Não raro, alguns textos, resenhas e resumos sobre Confissões de Santo Agostinho (397-398) se referem ao livro como uma autobiografia; é inegável a influência discursiva das confissões para o que hoje chamamos de autobiografia9. Galileu, por exemplo, propiciou uma revolução da cientificidade – que até então estava apoiada na teoria aristotélica – e nos solicita à humanidade para uma espécie de fecundação da ciência moderna fundamentada na relação do homem com o fazer empírico. O cientista possibilitou que os autores que viessem depois dele não apenas recorressem as suas descobertas – por exemplo, o princípio da inércia –, como também criassem novos enunciados a partir delas. No caso particular da ciência, temos um arquétipo diferente do conto de terror, do romance ou da autobiografia. A ciência, de um modo geral, se assume como inconclusa e permite uma abertura para transdiscursividade, já que toda análise e todo estudo pode ser ampliado, complementado, enriquecido. Podemos observar essas mudanças metalinguísticas nas sutilezas léxicas: a preferência das palavras “considerações finais” em detrimento da palavra “conclusão”, a “(in)conclusão” etc., em artigos, teses e dissertações. As “considerações finais” em trabalhos científicos conservam, quase sempre, uma sugestão para a continuação do estudo em questão. Se nos fechássemos para a possibilidade discursiva das ideias de Freud, nos acomodando em suas ideias iniciais, fecharíamos a possibilidade discursiva da sua aplicação. Isso não quer dizer que não precisemos respeitar o discurso fundador, mas podemos fazê-lo sem desrespeitar o discurso secundário. Podemos, sim, afastar apenas os enunciados pouco relevantes, errôneos, ou aqueles que não nos interessam; contudo, é necessário entendermos que a discursividade independe da formação de uma nova ciência, ela sempre existirá. Um exemplo central para a discursivização que Foucault (2015) traz nos ajuda a entender definitivamente a função autor atrelada à discursivização. O discurso psicanalítico criado por Freud é um discurso primeiro; contudo, outros textos do autor que apareceram posteriormente ajudaram numa melhor compreensão da psicanálise e contribuíram para

9 Sempre na lista dos Best-Sellers, é raro entrarmos hoje em uma livraria no Brasil e no mundo e não encontrarmos na mesma prateleira de lançamentos uma autobiografia, assim como é igualmente raro não encontrarmos uma edição de Confissões de Santo Agostinho – mesmo que seja uma edição de bolso. Contudo, são gêneros do discurso diferentes. 33

modificá-la, como é o caso dos Três Ensaios de Freud10. Esse texto ajudou não no sentido de modificar a historicidade do saber da psicanálise, e sim no sentido de modificar e ampliar o seu campo teórico. De fato, um novo texto de Freud, autor e criador principal da psicanálise, instaura uma relação mais efetiva, pura, complementarmente a outros textos do próprio Freud. Foucault (2015) se desculpa por não ter oferecido uma análise concreta para um possível trabalho e acrescenta:

Semelhante análise, se fosse desenvolvida, talvez pudesse servir de introdução a uma tipologia dos discursos. De facto, parece-me, pelo menos numa primeira aproximação, que essa tipologia não poderia ser feita somente a partir de caracteres gramaticais do discurso, das suas estruturas formais, ou mesmo dos seus objectos; sem dúvida que existem propriedades ou relações propriamente discursivas (irredutíveis às regras da gramática e da lógica, como às leis do objecto) e é a elas que importa dirigirmo-nos para distinguir as grandes categorias do discurso. A relação (ou a não relação) com um autor e as diferentes formas dessa relação constituem – e de maneira assaz visível – uma dessas propriedades discursivas. (FOUCAULT, 2015, p. 68).

Foucault (2015) acredita, por outro lado, que essa ideia da transdiscursivisação relacionada à função-autor implica em um estudo dos discursos nas “modalidades da sua existência.” (FOUCAULT, 2015, p. 68). Isso resulta nos meios de circulação destes discursos, na valoração, atribuição e apropriação discursiva destes e na consciência de que os discursos, de um modo geral, modificam e variam no interior de cada cultura. Trata-se da relevância em perceber como se articulam os discursos em suas funções sociais. Chartier (2014) resume de maneira brilhante a palestra “o que é um autor” (proferida originalmente em 1968) dizendo que para Foucault “a função do autor é característica de um modo de existência, circulação e funcionamento de certos discursos na sociedade.” (CHARTIER, 2014, p. 146) e acrescenta que a questão do nome próprio amarrado ao discurso é de total importância para a teoria, já que se trata de: “operações específicas e complexas que punham a unidade e a coerência de uma obra (ou conjunto de obras) numa relação com a identidade de um sujeito construído.” (CHARTIER, 2014, p. 146). Foucault (2015) verdadeiramente analisa o papel do sujeito e seus privilégios. Considera que a análise arquitetônica e interna da obra, seja filosófica, científica ou literária, colocando-se entre parênteses a sugestão psicológica ou biográfica do sujeito, explicita o papel fundador de caráter absoluto do autor. Isso seria realmente necessário, já que resgatar o

10 FREUD, Sigmund. Obras completas, volume 6: três ensaios sobre a teoria da sexualidade, análise fragmentária de uma histeria (“o caso Dora”) e outros textos (1901-1905). São Paulo: Companhia das Letras, 2016. 34

tema do sujeito pelo sujeito, o indivíduo como ele é, o que construiu, relacionando-o com pontos de adição, o seu funcionamento e as suas sujeições, pode ser, sem dúvida, essencial e necessário para o comprometimento da obra. Mas, se a perspectiva função-autor, da forma que conhecemos, desaparecesse, no caso de discursos circularem sem serem associados ao nome do autor, nem ao sujeito autor, propriamente dito, a discursividade não aconteceria e os discursos ficariam surdos no anonimato. Neste sentido, define-se de maneira clara em que reside a função-autor: “instaurações discursivas.” (FOUCAULT, 2015, p. 67). Ou seja, a assinatura definitiva do autor delineia a sua função por associação, “quando se procura analisá-la em conjuntos mais vastos, como grupos de obras ou disciplinas inteiras.” (FOUCAULT, 2015, p. 67). Essa associação se dá entre livro, entre outros textos do autor e a agregação do autor a sua obra por aglutinação com a sua assinatura ou, dito de outra forma, com a associação da obra com o nome próprio do autor.

1.5 O autor pessoa: o conteúdo, o material, a forma e a criação artística

Um autor, criador de uma obra, de um livro, um autor literário, cria por meio da autoria, da ideia criativa e da palavra um trabalho artístico. Esse trabalho, geralmente de caráter inovador, detém um enredo, uma narrativa, uma personagem, um clímax etc. Essa história é composta por um conteúdo que mantém uma intersecção, de certa forma, complexa, com a personagem. A personagem e a história são construídas por um material linguístico, verbalizado pela palavra, que habita no plano da forma. Portanto, segundo Bakhtin (2010), “pode-se distinguir na obra de arte, ou melhor, em um desígnio artístico, três elementos: o conteúdo, o material, a forma.” (BAKHTIN, 2010, p. 177). A forma, para Bakhtin (2010), não pode ser entendida separadamente do conteúdo. Ela é atrelada ao conteúdo determinado e também desenhada pelo material e seus meios de elaboração e peculiaridades estilísticas de ordem linguística e estrutural. “O desígnio artístico puramente material é uma experiência técnica.” (BAKHTIN, 2010, p. 178). A criação artístico-literária de um autor não é um procedimento apenas de caráter linguístico, sintático, léxico e morfológico, ou seja, não é apenas um procedimento material. É necessária, a priori, a elaboração de um conteúdo, que é sim viabilizado pela palavra, pelo estrato linguístico, pelo material. Contudo, Bakhtin (2010) acredita ser ingênuo tratar a 35

criação artística como um processo estritamente de tratamento da língua. “Seria ingênuo imaginar que o artista necessite apenas de uma língua.” (BAKHTIN, 2010, p.178). Bakhtin (2010), ao tratar o autor como artista, reconhece nele uma pessoa, a pessoa criadora de determinado produto artístico por meio de uma expressão artística. Esse artista faz a palavra material retirar-se de cena naquilo que tange a palavra sentida – “a palavra deixa de ser sentida como palavra.” (BAKHTIN, 2010, p. 178). Em outros termos, a pessoa do autor trabalha a língua e a língua o inspira; todavia, é pelo conteúdo artístico que o autor supera a língua. Trata-se de uma superação do material em detrimento da tarefa artística indispensável: o conteúdo. Bakhtin (2010) pergunta:

Devemos sentir as palavras em uma obra de arte precisamente como palavras, ou seja, em sua determinidade linguística, devemos sentir a forma morfológica precisamente como morfológica, a forma sintática como sintática, a série semântica como semântica? O todo de uma obra artística é o todo verbalizado no essencial? (BAKHTIN, 2010, p. 178).

Bakhtin (2010) considera que o todo verbalizado também deve ser estudado, mas especificamente dentro da questão linguística e por um linguista. Portanto, esse todo verbalizado, ou seja, o todo material, deve ser enxergado como estritamente verbal e não artístico. A compreensão do autor, segundo Bakhtin (2010), de maior relevância, não se dá pela investigação da técnica escritora, mas sim pela “lógica imanente da criação.” (BAKHTIN, 2010, p. 179). Essa compreensão acontece por meio da indagação da estrutura de valores da composição artística e o contexto em que se assenta esse ato puro de criação. “A consciência criadora do autor-artista nunca coincide com a consciência linguística, a consciência linguística é apenas um elemento, um material, totalmente ligado pelo desígnio artístico, fora da obra de arte.” (BAKHTIN, 2010, p. 179). Ou seja, nessa concepção, o fator material é que está fora da obra, e não o autor como pessoa, reconhecido como um criador artístico. O problema de definição intrínseco à concepção de obra de arte encontra aqui uma resposta. Se de fato não podemos definir efetivamente o que é uma obra de arte, podemos dizer o que ela parcialmente não é. A obra de arte não é somente composta por palavras, orações, capítulos, número de páginas, papel. Estendendo esse raciocínio para as artes plásticas, uma obra de arte não é, evidentemente, uma tela de madeira com determinado chassis e tecido. Não é um tratamento pictórico determinado pela pincelada, técnica de pintura: a aquarela, o acrílico, a pintura pastel ou a pintura a óleo. Sua definição está mais 36

associada ao modo como vemos o mundo, a um olhar: a ação e a invenção. A obra de arte está na essência, mais para o psiquismo-criativo do que para a forma e para a matéria, conclusivamente. “Portanto, a consciência criadora do autor não é uma consciência linguística no mais amplo sentido desse termo, é apenas um elemento positivo da criação – um material a ser superado por via imanente.” (BAKHTIN, 2010, p. 180).

1.6 Mito e o herói: uma significante e um significado

Barthes (2006, p. 200) afirma que “o discurso escrito, assim como a fotografia, o cinema, a reportagem, o esporte, os espetáculos, a publicidade, tudo isso pode servir de apoio à fala mítica.”. A fala humana é um dado importante para a classificação de um mito e seu nascimento. Os objetos do mundo podem mudar de estado – como nas provas científicas da vaporização, liquefação ou solidificação – pelo encontro da fala com a sociedade constituída “pois nenhuma lei, natural ou não, pode impedir-nos de falar as coisas.” (BARTHES, 2006, p. 200). Barthes (2006) trata a ideia de mito como uma construção possível a partir da linguagem. Segundo o autor, o mito emana de um ato conversacional, de um sistema de fala, mas principalmente de uma mensagem. É uma forma, um objeto de significação, uma fala. Se o mito nasce da fala, tudo pode materializar-se no mito a partir daí, na mitologia, desde que estes sejam reconhecidos e apontados pelo discurso. Quando falamos em mito e em mitologia, é inevitável não pensarmos na mitologia grega. Os deuses mitológicos foram criados a fim de explicar fenômenos da natureza para os gregos, pois estes acreditavam que fenômenos em suas vidas e fenômenos naturais eram obras do divino. “Essas histórias, hoje chamadas individualmente de mito, ficaram conhecidas no seu conjunto como mitologia.” (MATTIUZZI, 2000, p. 9). Não raro, as histórias de Odisseu/Ulisses, por exemplo, reaparecem; sua astúcia para sair das situações adversas, a necessidade de salvar seu reino, sua família, a importância de rever o filho e de ser presente na vida dele... Dentre os mitos de A Odisseia, estão: o Ciclope (monstro), por exemplo, a deusa Calipso, Poseidon (deus grego dos mares), o próprio Odisseu/Ulisses etc. As definições de mito são necessárias para a compreensão do termo na contemporaneidade na Grécia antiga – 600 a.C. Garden (1995), em O Mundo de Sofia, 37

permite que o narrador-personagem discorra sobre o mito de Tor de um jeito bem interessante: “Antes de o cristianismo chegar a Noruega, acreditava-se aqui no Norte que Tor cruzava os céus numa carruagem puxada por dois bodes. E quando ele agitava seu martelo, produziam-se raios e trovões.” (GARDEN, 1995, p. 35). Rezava-se para Thor. Tor era entendido como o deus da fertilidade, já que a chuva era fundamental para a produção dos camponeses. “A resposta mitológica à questão de saber por que chovia era, portanto, a de que Tor agitava seu martelo. E quando caía a chuva, as sementes germinavam e as plantas cresciam no campo.” (GARDEN, 1995, p. 35). Tor, no tempo dos vikings, foi o deus mais importante do Norte da Europa. O deus Tor transformar-se-ia em um herói. O narrador-personagem de O mundo de Sofia define mito: “um mito é a história de deuses e tem por objetivo explicar porque a vida é assim como é.” (GARDEN, 1995, p. 35). Para Barthes (2006, p. 200), a condição sócio-histórica determina a longevidade do mito: “é a História que transforma o real em discurso; é ela e só ela que comanda a vida e morte da linguagem mítica”. Portanto, o mito e a linguagem mítica, circunscrita, também podem nascer, crescer e morrer. O mito nasce da maneira em que é proferido e não se delineia necessariamente pela mensagem, por haver limites de caráter formal. Ou seja, essa proferização mítica pode emanar não apenas da fala, ou seja, pode não ser oral, mas pode ser construída pela escrita e também por representações imagéticas. Segundo Barthes (2006), a consciência significante do mito é relevante e difere de representação para representação:

A fala mítica é formada por uma matéria já trabalhada em vista de uma comunicação apropriada: todas as matérias-primas do mito – quer sejam representativas, quer gráficas – pressupõem uma consciência significante, e é por isso que se pode raciocinar sobre elas, independentemente da sua matéria. Esta, porém, não é indiferente: a imagem é certamente mais imperativa do que a escrita, impondo a significação de uma só vez, sem analisá-la e dispersá-la. (BARTHES, 2006, p. 201).

Para Barthes (2006), a mitologia se estabelece a partir da relação intrínseca entre dois termos: significante e significado. Na linguagem cotidiana, comum, acontece uma trajetória linguística em que o significante vai exprimir o significado e se estabelece, a partir daí, uma ligação. O significado pressupõe um signo. Essa relação signo, significado e significante é semiológica. Na linguagem comum, é aquilo que apreendemos de maneira não aleatória – por exemplo, um buquê de rosas vermelhas pode significar uma paixão, ou seja, “eu”, ao entregar à pessoa amada rosas 38

vermelhas, significo minha paixão. No cenário analítico, as rosas e a paixão existem antes do signo, mas, apenas quando associadas – as duas palavras –, emerge o signo paixão, amor, namoro. Não se pode confundir o significante rosas com o signo rosas. “O significante é vazio, e o signo é pleno, é um sentido.” (BARTHES, 2006, p. 203). É dessa relação associativa de tessitura, que liga os termos – significado e significante – em uma situação comunicativa que o signo nasce, cresce e se desenvolve. Significante, significado e signo são palavras de caráter formal na língua e Barthes (2006) menciona Saussure para simplificar: “o significado é o conceito, o significante a imagem acústica (de ordem psíquica) e a relação entre conceito e imagem é o signo (a palavra, por exemplo), entidade concreta.” (BARTHES, 2006, p. 204). O mito é construído por um sistema semiológico que já existe antes dele e por isso tratar-se-ia de uma construção diferenciada. O mito nascerá no segundo tempo, em um segundo momento, em decorrência de um intertexto; todavia, é absolutamente possível analisar o mito pelo sistema tridimensional a que Barthes (2006) se refere: o significante, o significado e o signo. O que Barthes (2006) quer dizer é que a análise do mito pode ser bipartida. Em um primeiro momento, o mito se constitui pele língua, logo, pelo sistema de representações, seja gráfico, seja pictórico. Trata-se da “linguagem-objeto” (BARTHES, 2006, p. 206). No segundo momento, o mito se institui a partir da metalinguagem. Tratar-se-á do mito assumindo seu papel discursivamente por meio de uma “segunda língua”, que fala da primeira. Isto é, por meio das representações (escrita, imagem) pelas quais ele é construído pelo discurso, o mito se constitui e se personifica discursivamente.

1.7 Autobiografia: autor e autoria

A autobiografia é um gênero do discurso circunscrito pelo real, por tudo que é verídico, que diz a verdade daquilo que é verificável; é complexo e goza de relativa estabilidade. É a escrita da vida e nossas vidas emanam de um constante movimento. É a escrita de si. Encontra-se assentada numa atmosfera biográfica bastante densa e povoada. A atmosfera biográfica dilui o gênero autobiográfico puro e faz com que a autobiografia canônica genuína converse com outros gêneros do discurso. Dentre esses gêneros da esfera biográfica estão as biografias e autobiografia, memórias e diários íntimos, testemunhos, correspondências, retratos, a entrevista, as confissões etc. 39

O gênero do discurso autobiografia detém um posicionamento enunciativo-discursivo interessante. Não é um posicionamento enunciativo-discursivo fixo: pelo contrário, cambia e flutua livremente entre o eu, o tu, o você, o nós e o eles. Ou seja, embora seja narrado em primeira pessoa e a personagem-narrador, em tese, esteja assegurada pelo seu protagonismo, a unicidade do “eu” em uma autobiografia é uma ilusão que decorre de certa ingenuidade. Em outras palavras, o outro tem sempre uma atenção especial, já que eu só existo na sociedade contemporânea e social dos homens diante de um você. O posicionamento enunciativo-discursivo de uma autobiografia é desconcertante porque a voz que ouvimos ecoar da leitura autobiográfica não é unívoca, mas sim polifônica. Trata-se do “eu” como “eu”, do “eu” como “tu” e do “eu” como “ele”, ou seja, “assumir um eu de inúmeras facetas ou um ele que pode ser eu mesmo, convertido em ninguém, o outro convertido no outro, de maneira que ali onde estou não possa me dirigir a mim.” (ARFUCH, 2009, p. 113). Não é uma estrutura narrativa nem enunciativa de simples compreensão, tampouco, de fácil composição autoral. A autobiografia, portanto, precisa ser compreendida como uma estrutura composicional absolutamente dialógica. É um diálogo entre “eu” comigo mesmo, entre “eu” com o outro e do outro com o “eu”. Contudo, a autobiografia emana seu sucesso nascida, historicamente, das confissões, que é uma estrutura enunciativa quase monológica.

1.7.1 As confissões: o autoinforme

Dentre as mais famosas confissões que conhecemos estão a de Rousseau, chamada Confissões (1889), e as Confissões de Santo Agostinho (1840). Bakhtin (2010) faz uma breve imersão sobre a relação das confissões com o biográfico, propriamente dito, nesta citação abaixo:

Formas originais, internas, contraditórias e transitórias entre o auto-informe- confissão e a autobiografia aparecem no fim da Idade Média, período que desconhece os valores biográficos, e no início do Renascimento. A História calamitatum mearum de Abelardo já é essa forma mista, na qual surgem os primeiros valores biográficos em base confessional um tanto matizada de antropomaquia: começa o adensamento da alma, mas não em Deus. A diretriz axiológica biográfica para a sua própria vida vence a diretriz confessional em Petrarca. Confissão ou biografia, descendentes ou Deus, Santo Agostinho ou Plutarco, herói ou monge – esse dilema, com inclinação para o segundo termo, atravessa toda a vida e a obra de Petrarca e encontra sua expressão mais clara (um tanto primitiva) em Secretum. No início do Renascimento, o tom confessional irrompe frequentemente na auto-suficiência da vida e em sua expressão. (BAKHTIN, 2010, p. 138). 40

“Eu”, simplesmente ao viver, torno-me um ato. Um ato de existência. Um ato responsivo, pelos pensamentos, pelo discurso, pelos sentimentos e pelas atitudes. “O homem vivente se estabelece ativamente de dentro de si mesmo no mundo.” (BAKHTIN, 2010, p. 128). A vida de outro ser humano se estabelece naquilo que é conscientizável pela consciência e na consciência há a cada momento um agir. À medida que “eu” vivo, a minha ação é um ato do viver. Todavia, o meu ato não diz quem “eu” sou em minha plenitude. Carregado por valores sociais, político e culturais-cognitivos, pela arte e seu valor estético e pela ética maniqueísta do bem e do mal, o sujeito e seu ato são manifestações de um axioma para o próprio sujeito e suas ações. O ato, então, não necessita de um herói – que pode inclusive vir acompanhado de um anti-herói ou de um vilão –, mas sim da consciência formuladora de perguntas relacionadas ao contexto social e cognitivo do homem. Essas perguntas para a consciência que, evidentemente, o indivíduo faz para si e que antecedem o ato, são: “por quê?, pra quê?, como?, está ou não certo?, cabe fazer isso ou não?, é necessário ou não?,” (BAKHTIN, 2010, p. 128) etc. Logo, o indivíduo, antes do ato, antes de agir, nunca pergunta a si quem ele é. A falta evidente de uma determinação do indivíduo sobre si mesmo no contexto do ato artístico, por exemplo, pode despertar outrem para a ausência de uma definição clara sobre um ato de determinação cultural: uma obra de arte, por exemplo. Pela definição prévia, “eu” sou assim, não sou assim, gosto disso, não gosto daquilo, ajo dessa forma e não desta, etc., “eu” determino o sujeito para à luz de uma personagem e de seu autor. Essa consciência de si e do outro é substancial não apenas para o leitor da obra de arte, mas também para o autor, ao contemplar certo distanciamento de si mesmo e também da personagem. O outro também exerce uma influência sobre o ato do herói literário, pois se “eu” não enxergo o olhar de outrem sobre o “meu” ato, se “eu” não oferto valor alheio sobre determinado ato “meu”, como saberei como o outro vê “meu” ato? Dito de outra forma, a consciência, ao atuar como fator determinante, carregada de significância, reconhece não os valores puramente estéticos, tampouco os valores sociais puros, mas sim os valores reconhecíveis e aceitáveis no maniqueísmo do bem e do mal, como na dicotomia Barroca, do claro ou do escuro, canalizados pelos valores de ordem e caráter moral, moralista e moralizante, que definem, nesse caso, meu reflexo, meu informe e minha determinidade, não apenas como ser humano, mas também como autor ou como personagem. Tratar-se-á, então, de juízo de valor, que determina a “mim”. Ouçamos Bakhtin (2010) ao discorrer sobre o assunto: 41

O arrependimento passa do plano psicológico (do agastamento), para o plano criativo-formal (arrependimento, autocrítica), tornando-se princípio organizador e enformador da vida interior, princípio da visão valorativa e da fixação de si mesmo. Onde aparece a tentativa de fixar a si mesmo em tons de arrependimento à luz de um imperativo moral, surge a primeira forma essencial de objetivação verbal da vida e do indivíduo (da vida pessoal, isto é, sem abstração do seu agente) – o auto-informe- confissão. (BAKHTIN, 2010, p. 130).

O auto-informe-confissão, grosso modo, está fundamentado não somente no arrependimento, mas também na culpa constitutiva de uma interpelação auto-objetivista. Isso significa que o outro, nessa abordagem, é excluído, ou seja, “aqui só a relação pura do eu consigo mesmo é princípio organizador da enunciação” (BAKHTIN, 2010, p. 130). Nesse gênero do discurso, apenas o que o autor diz sobre si mesmo é considerado. O auto-informe-confissão é inerente à consciência moralizante. Excluí a autoconsciência e seus elementos relativos à consciência axiológica da existência humana. Em outras palavras, é excludente do outro. Trata do essencial e não daquilo que é fato e, dessa forma, se estabelece negativamente contra a verdade da autoconsciência e sua pureza e passa a dar lugar à pureza de uma conexão solitária do autor consigo mesmo. O outro e/ou outrem, nesse caso, e a consciência de sua existência igualmente moralizante, podem infiltrar-se na consciência do autor autoinforme em tamanha medida que ele, em sua relação axiológica consigo mesmo, pode castrar-se naquilo que tange sua pureza. O olhar de si para si pode ficar turvo diante do olhar do outro; sua benevolência, sua opinião, ou seja, a vergonha dos outros, a opinião dos outros, a glorificação mundana desperta no autor confessional uma obscuração. “Mas eu o ignorava e caminhava para a minha perdição, com cegueira tal, que me envergonhava, diante de meus companheiros.” (AGOSTINHO, 2007, p. 49). No auto-informe-confissão, o outro deve ser desconsiderado; todavia, o outro pode ser um juiz possível, se seu julgamento dialogar com o que penso sobre “mim” mesmo. Bakhtin (2010) explica de maneira clara que a consciência da auto-humilhação do autor autoiniforme diante de outrem em sua confissão poderá libertá-lo daquilo que existe e está fora dele, mas “qualquer tranquilização, qualquer suspensão de minha autocensura, qualquer avaliação positiva (eu já me torno melhor) são interpretadas como queda da relação comigo mesmo.” (BAKHTIN, 2010, p. 131). A verdade de outrem em relação a “mim” na expressão lexical do gênero auto- informe-confissão também gera uma incompletude à medida que a forma, ou seja, a construção composicional desse gênero se choca com a própria linguagem, já que contêm elementos estéticos fundamentados em juízo de valores. Trata-se de uma consciência 42

valorativa que pode estar no outro, no campo da expressão, no diálogo com outrem no mundo e sobre o mundo; contudo, a última palavra sobre “eu” mesmo deve emergir de “mim” e da “minha” confissão. “Nenhum reflexo sobre mim mesmo pode me concluir integralmente.” (BAKHTIN, 2010, p. 131). Olhar o outro dentro de si mesmo é uma prerrogativa ao considerar que “eu”, como ser humano, só existo diante de outro ser humano na consciência social, cultural e artística da sociedade dos homens. Essa negação da existência do outro e sua perspectiva sobre “mim” gera um distanciamento e uma ausência de diálogo. É por isso que a necessidade de um poder maior, um Deus, que justifique a inconcludibilidade em “mim” mesmo é caraterístico do gênero confissão autoinforme, fundamentalmente em Santo Agostinho. “{...} nossa firmeza é firmeza quando se apoia em Ti, mas é fraqueza quando se apoia em nós.” (AGOSTINHO, 2007, p. 109). A negação e a justificação trazem à luz um Deus e uma necessidade religiosa, ou seja, “o auto informe-confissão está cheio de necessidade de perdão e redenção como dádiva essencialmente pura (não por méritos), de graça e felicidade axiologicamente oriundas de outro mundo.” (BAKHTIN, 2010, p. 132). Quanto maior é a solidão axiológica de si mesmo e maiores são os sentimentos de culpa e arrependimento, maior também é a carência de Deus e de superação de si mesmo; a entrega a Deus passa a ser, sob essa perspectiva, substancial e profunda. No auto-informe-confissão, a ausência de Deus é inviável à autoconsciência e a autoenunciação, justamente pelos fatores de isolamento, ou seja, o autor não se constitui nesse gênero do discurso pela relação direta com outro ser humano, mas com a confiança de uma alteridade absoluta com um poder maior, um Deus, da forma que o autor confessional (no caso) o compreenda. A estrutura organizada a partir do arrependimento cristão, no caso de Santo Agostinho, por exemplo, quando emerge da culpa para a confiança em um poder maior, passa para a entrega da vida do autor para um Deus e torna possível uma estética confessional disposta composicionalmente em um posicionamento enunciativo donde o “eu” para mim se transforma em um “eu” outro, para Deus. Nas confissões, o todo da vida não é constitutivo da forma. A vida biográfica e todos os seus acontecimentos não são um valor definitivo e conclusivo no autoinforme. A vida, segundo Bakhtin (2010), é um valor que só pode ser considerado artisticamente. Para Bakhtin (2010), a confissão deixaria de ser confissão pelos olhos de quem a lê. Ou seja, o leitor, ao 43

olhar para aquele que escrevera a confissão, pode ver o autor como uma personagem. “O contemplador começa a tender para a autoria.” (BAKHTIN, 2010, p. 136). O autoinforme é um gênero que, embora tenha dado início – na Idade Média – a uma ideia de autobiografia, é um gênero diferente dessa, embora também se detenha por um posicionamento enunciativo-discursivo marcado pelo “eu”. Segundo Bakhtin (2010), no auto- informe-confissão, a personagem e o autor inexistem, pois efetivamente não há um distanciamento entre eles. Ou seja, o autor e a personagem são efetivamente a mesma pessoa. Há, portanto, uma (in)conclusão, já que autor não pode concluir-se fora da personagem – que seria ele mesmo –, mas pode apenas condenar-se nessa alteridade entre ele e Deus. O objeto artístico-descritivo também tende a ser inviabilizado como elemento, porque uma paisagem bonita, um lugar, um estilo de vida ou um modo de vida perde-se em um vazio de significado que dá lugar a relação entre “mim” e Deus.

1.7.2 O autor autobiográfico

Autobiografia, de acordo com Lejeune (2008, p. 16), é uma “narrativa retrospectiva, em prosa, que uma pessoa real faz de sua própria existência, quando focaliza sua história individual, em particular a história de sua personalidade”. Ou seja, essa definição difere, por si só, da autobiografia das confissões: autobiografia conta uma história e, ao contar essa história, utiliza elementos de ficcionalização, já que nossa memória comete tropeços e é de certa forma inexata. Dentre os elementos do gênero autobiografia a serem considerados estão a prosa, a narrativa, a história de vida de uma personalidade, a identidade do autor (pessoa real), a posição do narrador e sua identidade, a identidade do personagem principal e o olhar retrospectivo. A personagem protagonista, o autor e o narrador tendem a coincidir, sendo vistos pela perspectiva da equidade. Isto é, o elemento personagem-autor-narrador é enxergado com equivalência. São perspectivadas pelo leitor como sendo as mesmas pessoas no texto e no discurso. Na literatura íntima – a autobiográfica –, é necessário que “haja relação de identidade entre o autor, o narrador e a personagem.” (LEJEUNE, 2008, p. 18). A identidade do narrador e da personagem autobiográfica traduz-se pela designação propiciada pela primeira pessoa do singular. O “eu”, personificado pela narração autobiográfica, faz do narrador e da personagem uma pessoa só. A primeira pessoa do 44

singular propicia à narração uma simbiose autodiegética11. Contudo, Arfuch (2009, p. 113) ressalta que a autobiografia tem uma “aparente simplicidade da autorreferência, com a ilusão da unicidade do eu, ainda hoje, quando tanto a teoria como a prática nos convenceram de sua inexistência, ou pelo menos, de sua impossibilidade de manifestação.”. O que Arfuch (2009) quer dizer é que o “eu” e sua unicidade no autobiográfico está a serviço do lúdico, já que na forma biográfica “eu” somente existo diante do outro, pelo outro e pelo olhar do outro. Eu me constituo como indivíduo, inserido na sociedade culta dos homens, pelas minhas relações com outrem. Não necessariamente o narrador e a personagem precisam estar na primeira pessoa. Existem narrativas autobiográficas em que o narrador troca de posição com a personagem. Tratar-se-ia da narração de ordem homodiegética: “identidade entre o narrador e o personagem principal sem o emprego da primeira pessoa.” (LEJEUNE, 2008, p. 19). Lejeune (2008) tem uma definição acertadíssima sobre autor, o “eu” e a autobiografia:

De fato, ao colocar o problema do autor, a autobiografia elucida fenômenos que a ficção deixa numa zona de indecisão: em particular o fato de que pode muito haver identidade do narrador e do personagem principal no caso da narrativa “em terceira pessoa”. Essa identidade, embora não seja mais estabelecida no texto pelo emprego do “eu”, é estabelecida indiretamente, mas sem nenhuma ambiguidade, através da dupla equação: autor = narrador e autor = personagem, donde se deduz que narrador = personagem, mesmo se o narrador permanecer implícito. Este procedimento corresponde, ao pé da letra, ao sentido primeiro da palavra autobiografia: é uma biografia, escrita pelo interessado, mas escrita como uma simples biografia. (LEJEUNE, 2008, p. 19).

O nome próprio do autor tem uma relevância no gênero do discurso autobiografia ao considerarmos que o nome, a pessoa e o discurso se desenvolvem antes mesmo de serem articulados na primeira pessoa pela criança na aquisição da linguagem. “A criança fala de si mesma na terceira pessoa, chamando-se pelo próprio nome, bem antes de compreender que também pode utilizar também a primeira pessoa.” (LEJEUNE, 2008, p. 26). Lejeune (2008) acrescenta considerações importantes a respeito do autor e do nome próprio no gênero autobiografia:

É, portanto, em relação ao nome próprio que devem ser situados os problemas da autobiografia. Nos textos impressos, a enunciação fica inteiramente a cargo de uma pessoa que costuma colocar seu nome na capa do livro e na folha de rosto, acima e abaixo do título. É esse nome que se resume toda a existência do que chamamos de autor: única marca no texto de uma realidade extratextual indubitável, remetendo a uma pessoa real, que solicita, dessa forma, que lhe seja, em última instância,

11 Termo cunhado por Gérard Genette (apud LEJEUNE, 2008, p. 18). 45

atribuída a responsabilidade da enunciação de todo o texto escrito. Em muitos casos, a presença do autor no texto se reduz unicamente a esse nome. Mas o lugar concedido a esse é capital: ele está ligado, por uma convenção social, ao compromisso de responsabilidade de uma pessoa real, ou seja, de uma pessoa cuja existência é atestada pelo registro de cartório e verificável. (LEJEUNE, 2008, p. 26- 27).

Lejeune (2008, p. 27), baseado na função-autor de Foucault, afirma que “o autor não é uma pessoa. É uma pessoa que escreve e publica.”. Tratar-se-ia de um autor que é produtor real da sua escrita e, ao mesmo tempo, produtor de um discurso. Em outras palavras, é ao mesmo tempo no texto e no extratexto o contato entre o autor e a pessoa. O autor produz um discurso e, ao mesmo tempo, é um sujeito constituído socialmente. Na autobiografia – narrativa que conta a vida do autor –, devemos presumir que haja determinada identificação entre o nome do autor (o nome estampado na capa do livro), entre o narrador e entre a pessoa que fala e de quem se fala na enunciação. Isto nos leva ao que Lejeune (2008) chama de pacto autobiográfico. Esse contrato pactual resume-se na identidade verificável do nome do autor-narrador-personagem. “O pacto autobiográfico é a afirmação, no texto dessa identidade, remetendo, em última instância, ao nome do autor, escrito na capa do livro.” (LEJEUNE, 2008, p. 30). O leitor de autobiografia vai dirigir sua leitura sempre em busca de uma quebra do contrato de veridicção. Na busca pela mentira o pela omissão, o leitor deve e pode levantar questões quanto a semelhança entre autor, narrador e personagem, mas nunca deve levantar questões quanto a identidade de quem escreve.

1.8 A representação imagética do autor na mídia

O autor assina o texto que leremos; seu nome está ali, mas ele não está. É ausente por natureza e por definição. Todavia, se o texto propicia inquietações, se provoca o leitor, se ele propõe perguntas, a vida do autor, teoricamente, pode respondê-las. Esse é o primeiro pensamento motivado pela incerteza e pela curiosidade. O autor é então detentor de um axioma sobre aquilo que escreve. A sua obra seria explicada por sua vida. Lejeune (2008, p. 255) chama isso de “ilusão biográfica.”. Na ilusão biográfica, a resposta para o texto do autor está sempre na vida do autor. Existe uma magia que circunscreve o autor: um mistério. O autor, imbuído de sua ausência, desperta no leitor uma incógnita na medida em que o texto o cativa. 46

Lejeune (2008) acredita que o autor goza de certo poder e o leitor sonha com esse poder, que nada mais é do que um efeito provocado pela leitura. “E o fato de ter sido publicado torna-o fatalmente (como muitos outros) um exemplo de êxito social. (LEJEUNE, 2008, p. 225). A mídia, de um modo geral, modificou a relação entre o leitor e o autor na contemporaneidade. No passado, recorríamos a biografias, testemunhos e correspondências para saber mais do autor. O autor morto tinha sua vida invadida por curiosos em busca de respostas. O fato é que as pessoas continuam querendo um contato com o autor, em busca de satisfazer a inquietação intima que sentem ao ler um bom livro de um bom autor. Certamente, o nome próprio não é o suficiente para suprir essa necessidade. Faz-se uma imagem mental do autor, fundamentada em seu texto e em seu nome. Por exemplo, Dalton Trevisan – o vampiro de Curitiba – não gosta de aparições em público. Mas ele existe, é um escritor vivo, embora tenha aparecido muito pouco fora de seus livros. Ainda assim, um encontro com ele nos deixaria impressionados. Certamente não conseguiríamos reconhecê-lo e, ao conversar com ele, não o reconheceríamos e poderíamos achar que ele não se assemelha a ele. Ou seja, construímos uma imagem de Trevisan por meio de seus textos, mas sua figura, certamente, foi idealizada pela nossa leitura e também pela sua história de vida, pela sua biografia. É curioso que os períodos literários do século XIX não tinham ilustrações ou fotos, então o retrato do autor aparecia apenas em edições biográficas. Hoje em dia, “a publicação da fotografia não é mais um signo de consagração, mas faz parte dos procedimentos de ‘lançamento’.” (LEJEUNE, 2008, p. 227). A imagem tornou-se algo importante. O rádio presenteava os ouvintes e leitores com a voz do autor. Imaginava-se como era sua imagem. Com o advento da televisão, os autores começaram aparecer por completo na televisão: voz e imagem. A imaginação imagética caiu em desuso. Ficou impraticável. Além disso, os autores passaram a trabalhar na televisão, especificamente escrevendo novelas e programas de humor. As novelas da rádio que brincavam com o lúdico e com o imaginário – como foi dito – tornaram-se um despropósito. As novelas da rádio, quando narravam um pelotão do exército chegando, por exemplo, ouvia-se o som dos soldados marchando; na televisão, a imagem do pelotão aparece pronta, inteira. A televisão entrega a imagem como ela é, e o rádio e suas novelas, diferentemente, propiciavam imaginação, se assemelhavam a leitura de um bom livro ou de uma boa peça de teatro. 47

“Nos primeiros tempos do rádio, a escolha de autores de prestígio, a seriedade e a solenidade dos procedimentos contribuíam para reforçar a imagem mitológica e acadêmica do grande escritor.” (LEJEUNE, 2008, p. 228). Na França, os autores apareceram na rádio exaustivamente. Os autores clássicos, segundo Lejeune (2008), ligados a autores contemporâneos pela televisão e pelo rádio, discursivamente não prejudicavam os mestres literários franceses do passado. É na mídia, na realidade, que nasce o incentivo à fabulação biográfica, ou seja, o interesse desmedido pela vida e a curiosidade alheia pela solução da impenetrabilidade à vida ou aos meandres do texto do autor. A fabulação biográfica aumenta com a incursão do autor na mídia, essencialmente na televisão. A televisão exerce um fascínio nas pessoas de um modo geral. “Se seu vizinho aparecer na televisão, você não o verá mais com os mesmos olhos.” (LEJEUNE, 2008, p. 230). Essa fabulação de vida no enredo televisivo é uma sugestão da realidade, porque pode efetivamente ser essa realidade uma construção – de certa forma, até mesmo enrijecida – da proposta do programa de entretenimento ou do roteiro da entrevista na cena midiática. Essas aparições do autor na televisão não prejudicam o escritor “monstro sagrado” para Lejeune (2008), porque as visitações dos autores à televisão constituem um “efeito de sacralização peculiar à própria mídia.” (LEJEUNE, 2008, p. 230). O livro do autor na mídia é beneficiado com um sistema de valor que presume importância e dá peso a imagem sacralizante do autor. Na televisão “confrontamos o que vimos com o que lemos, tentamos imaginar o que teremos para ler segundo o que vimos. O autor nos leva ao livro e o livro ao autor.” (LEJEUNE, 2008, p. 230). Pela televisão, podemos ter acesso ao nome do autor associado à sua imagem e à capa do livro. A televisão pode ajudar a difundir conhecimento e também divulgar o livro e o nome do autor; todavia, é curioso que, ao assistir um autor falando sobre seu livro, há uma sensação de que o autor e sua imagem são uma prévia do conteúdo do livro e que supostamente saberemos o que encontraremos ao abri-lo. O autor de romance, por exemplo, ao ser entrevistado na televisão, tem a oportunidade de contar um pouco da história, do enredo, e tratar as personagens como se fossem figuras reais, vivas e verificáveis. O autor nos leva para dentro da história e acreditamos nele. É aí que se dá a fabulação biográfica, pois o autor, a capa de seu livro e sua imagem passam a ser a referência do livro, assim como acontece no gênero autobiografia. O espetáculo televisivo, então, se justifica pela história, pela imagem e pelo discurso da pessoa do autor. 48

Lejeune (2008, p. 232) acrescenta que “a tendência fatal desse gênero de espetáculo é impor a todos os textos uma leitura mais ou menos autobiográfica: antes mesmo que o autor tenha aberto a boca, sua presença física já se configura uma confissão”. O autor é sua personalidade, sua presença, sua imagem, sua consciência, sua presença, e analisa, no desenvolvimento do programa de televisão, o conteúdo de seu livro. Contudo, o livro, propriamente dito, personifica-se ali como um alvo virtual, uma sombra da pessoa do autor; o livro é uma extensão da figura do autor. Em tempos midiatizados como o que vivemos, o autor desperta, pelo discurso na mídia, o interesse pelo seu texto. O autor clássico, ao contrário, acendia pelo texto o interesse do seu leitor por ele – autor – e por seus outros textos. Voltemos a Dalton Trevisan, que é muito conhecido pelos seus contos. Trata-se de um dos autores do Brasil mais respeitados. Publicou o livro de contos O Vampiro de Curitiba (1965), que virou um apelido do escritor, por ele preferir manter-se distante de ciclos sociais e midiáticos. Os leitores de Trevisan, ao gostarem de seus textos, podem ficar decepcionados em conhecer a pessoa, o homem Trevisan, embora o Vampiro de Curitiba não receba estranhos. Mas, por exemplo, se um leitor de Trevisan se mostrar decepcionado com o homem, com a pessoa do autor, e Trevisan aparecer em um talk show e se mostrar sensível, ponderado, virtuoso, calmo, profundo, o leitor comprará seu novo livro pela manhã. “É mais rentável mostrar uma rica e sedutora imagem do que posar de autor duma obra.” (LEJEUNE, 2008, p. 233). Com a ascensão da mídia, o encontro com o autor contemporâneo se tornou possível: o rádio viabilizou esses encontros e, posteriormente, a televisão facilitou o acesso do leitor ao autor. Contudo, a internet e a própria cultura do espetáculo ausentaram o autor novamente. A concepção de autoria com o ambiente virtual precisou ser revista. A velocidade das informações, amparada pela liberdade de tomar vários caminhos textuais, concretizou a definição de hipertexto, que é, grosso modo, o percurso textual pelo caminho de construção do conhecimento pela esfera virtual. Mas os textos nem sempre tem o nome do autor associado a eles. Há um apagamento justificado pela velocidade das informações; é difícil saber quem escreveu esse ou aquele determinado texto. Esse apagamento do autor acontece também no rádio, mas principalmente na televisão, por outra perspectiva. O empírico televisivo e a cultura do espetáculo apagam certos traços qualitativos do autor: o autor como homem que escreve e tem a escrita como ofício vai se apagar em detrimento do autor-ator para viver, em partes, na cultura do espetáculo. 49

1.9 A “desnecessária” morte do autor

Na celebração do centenário do nascimento de Roland Barthes, nasce esse curioso romance: Quem matou Roland Barthes? Escrito por Laurent Binet, que recria, a partir da morte real de Barthes – atropelado em frente ao Collège de France, voltando de um almoço com políticos –, a morte do autor, segundo a hipótese de que ele poderia ter sido assassinado por estar transportando um documento importante: a “sétima função da linguagem.” (Binet, 2015). Binet (2015) inicia o romance com o seguinte parágrafo:

A vida não é um romance. Pelo menos é o que você gostaria de acreditar. Roland Barthes sobe a Rue de Biève. O maior crítico literário do século XX tem todas as razões para estar no auge da angústia. Sua mãe, com quem mantinha relações muito proustianas, morreu. E seu curso no Collège de France, intitulado “A preparação do romance”, resultou num fracasso que dificilmente ele pode disfarçar. (BINET, 2015, p. 9).

E finaliza o item 1 do capítulo primeiro, Paris, dedicando-se ao atropelamento de Barthes:

Acaso, ao atravessar a Rue des Écoles, Barthes se sente como Einstein pensando sua teoria? O que é certo é que não está muito atento. Ainda lhe restam algumas dezenas de metros até chegar à sua sala, quando é atropelado por uma caminhonete. Seu corpo produz o som surdo, característico, horrível, da carne que se choca na chapa metálica e vai rolar sobre a calçada como uma boneca de pano. Os passantes levam um susto. Naquela tarde do dia 25 de fevereiro de 1980, eles não podem saber o que acaba de acontecer diante de seus olhos, e com toda razão, pois até hoje o mundo ainda o ignora. (BINET, 2015, p. 11).

O texto de Barthes, A morte do autor, é escrito originalmente em 1968, um ano antes da conferência O que é um autor?, de Foucault, realizada em 1969 e publicada posteriormente. Foucault (2015 [1969]) menciona a morte do autor em sua conferência, mas não se aprofunda nela. A função-autor de Foucault (2015 [1969]), que está associada à questão de posse e propriedade, direitos e deveres do autor, padrões estéticos e estilísticos, representa, mesmo que de forma abstrata, a morte do autor como pessoa. Na verdade, fica cada vez mais claro que, na condição de leitores literários, e, iremos além, também na condição de leitores acadêmicos, não suportamos, efetivamente, a inexistência de quem escreveu o texto que estamos a ler. Todavia, Barthes (1988 [1968], p. 65) afirma: “A escritura 50

é esse neutro, esse composto, esse oblíquo aonde foge o nosso sujeito, o branco-e-preto aonde vem se perder toda identidade, a começar pelo corpo que escreve.”. Resgatemos Chartier (1999), quando ele diz que o escritor é aquele que escreve um determinado texto que não se metamorfiza, ou seja, permanece sempre manuscrito e não tem circulação comercial, enquanto o autor qualificado é associado àquele que criou uma obra e publicou essa obra. Barthes (1988 [1968]) associa o escritor a prestigiados autores: Balzac, Proust etc., que possuem obras impressas e em circulação. Para Kock e Elias (2012), por exemplo, a escrita pode ser entendida como uma representação do pensamento expresso no papel, que é derivatória de uma contribuição adjunta a “um sujeito psicológico, individual, dono e controlador de suas vontades e suas ações.” (KOCK & ELIAS, 2012, p. 33). A partir dessa afirmação, podemos concluir que o sujeito psicológico, que controla suas ações e tem uma identidade, é uma pessoa. Ainda, segundo as autoras, “aquele que escreve expressa seu pensamento, suas intenções, sem levar em conta as experiências e os conhecimentos do leitor ou a interação que envolve o processo.” (KOCK & ELIAS, 2012, p. 33). Marcuschi (2013, p. 19) diz que “a escrita é usada em contextos sociais básicos da vida cotidiana, em paralelo direto com a oralidade” e Bazerman (2015, p. 177) afirma: “Quando a tarefa é familiar e simples, podemos não pensar muito nos nossos processos de escrita, já que as soluções de escrita podem estar logo a mão.”. Barthes (1988 [1968], p. 70) insiste – de maneira crítica – que, na relação escritor- leitor, precisamos “devolver à escritura o seu futuro, é preciso inverter o mito: o nascimento do leitor deve pagar-se com a morte do Autor.”. Mas, se o discurso são os efeitos de sentido que “eu”, leitor, atribuo a determinado texto, “eu”, leitor deste texto, grosso modo, sou o autor de um posterior discurso sobre esse texto, um discurso de caráter interpretativista. Quando se fala em autor e autoria, o conceito de discurso está sempre correlacionado ao tema. O texto, grosso modo, depende da estrutura da língua e está associado diretamente aos fonemas, às palavras, às frases e ao parágrafo, por exemplo. Barthes (1988 [1968]) persiste na ideia de que o autor deve morrer em detrimento do escritor. Barthes (1988 [1968]) cita Mallarmé, igualmente francês, como sendo o primeiro a enxergar que o relevante na escrita literária estava em privilegiar a linguagem e não aquele que a detém. A significância está na linguagem que fala e não necessariamente no autor. Tratar-se-ia de uma tentativa de elidir o autor em benefício da escrita. A questão da interioridade do autor para Mallarmé nunca passou de superstição. Nessa concepção nos cabe 51

a afirmação de Foucault (2015, p. 36) de que “a marca do escritor não é mais do que a singularidade da sua ausência.”. Podemos pensar em tom de constatação que a função de escritor é diferente da função de autor. Se entendermos que o escritor está ligado à ação, ao código linguístico propriamente dito, ao texto e sua materialização, o autor seria outra coisa e teria com o texto outro tipo de relação. O autor estaria relacionado à criação, às intersecções discursivas, ao intertexto, ao interdiscurso, à heterogeneidade constitutiva, à responsabilidade pelo que se diz e aos direitos de posse e propriedade por aquilo que foi dito. Em tempos de escrita digital, de textos em sites ou blogs da internet, o autor é absolutamente necessário para contextualizar a escrita, dar nome a quem escreveu e validar e atribuir ao texto alguma significação de ordem utilitária. Ou seja, não podemos arbitrariamente citar uma fonte discutível, um texto da internet sem autor, em um trabalho acadêmico, por exemplo. É até mesmo temerário confiar em informações sem fonte e sem autor com uma biografia, levando-se em conta a enxurrada de “Fake News” que estamos assistindo sendo disparadas diariamente nas redes sociais. Hoje, se matarmos o autor, matamos com ele o discurso autorizado, e, mais, o contexto do seu lugar de discurso. Segundo Van Dijk (2012), a ideia de contexto é usualmente utilizada para dar lugar, explicar ou localizar as coisas. “É por isso que nos esquemas de reportagens do noticiário há uma categoria especial de Contexto, que situa os acontecimentos presentes em seu contexto político, social ou histórico.” (VAN DIJK, 2012, p. 20). Barthes (1988 [1968]) enquadra a figura do autor em um contexto social e histórico justamente para fazer essa distinção entre autor e escritor, alegando que o escritor “escreve no aqui e agora” (BARTHES, 1988 [1968], p. 68) e sua escrita nasce daí. “O escritor moderno nasce ao mesmo tempo que seu texto; não é, de forma alguma dotado de um ser que precedesse ou excedesse a sua escritura.” (BARTHES, 1988 [1968], p. 68). O autor, assim como o escritor, para Barthes (1988 [1968]), em um contexto social e histórico, são pertencentes ao tempo – em perspectivas diferentes de tempo –, mas o autor tem ainda outra particularidade social, que também foi prevista pela historicidade da autoria: a paternidade:

O autor, quando se crê nele, é sempre concebido como o passado do seu livro: o livro e o autor colocam-se por si mesmos numa mesma linha, distribuída como um antes e um depois: considera-se que o autor nutre o livro, que existe antes dele, pensa, sofre, vive por ele; está para a sua obra na mesma relação de antecedência que um pai para com o filho. (BARTHES, 1988 [1968], p. 68). 52

Podemos perfeitamente inferir, a partir de Barthes (1988 [1968]) e Foucault (2015 [1969]), que a relação do escritor está diretamente associada ao texto, enquanto a relação do autor, mais precisamente a relação de autoria, está associada ao discurso. É curioso pensarmos na sinonímia entre as palavras autor-escritor, escrita-escritura e autoria. No minidicionário melhoramentos (1994) de antônimos e sinônimos, a definição sinonímica de escritor é:

“sm Lit. autor” (Polito, 1994, p. 261). A definição de autor, contudo é um pouco mais ampla: “sm 1 agente, causador 2 criador, inventor, descobridor 3 pai, fundador 4 Lit. autor, 5 Mús. compositor” (Polito, 1994, p. 72). O significado de autoria é: “sf lavra” (Polito, 1994, p. 72). Significado de escrita: “sf 1 representação por escrito: escritura. Ex. O português utiliza escrita alfabética. 2 alfabeto, abecedário. Ex. Sabe ler a escrita hebraica. 3 caligrafia, letra, escritura. Ex. Escrita de médico é quase sempre ilegível” (Polito, 1994, p. 261). Escritura12: “sf 1 Título, documento. Ex. Escritura de um imóvel. 2 Bíblia, sagrada escritura, livros sagrados”. (POLITO, 1994, p. 261).

Na perspectiva sinonímica, autor e escritor compartilham o mesmo sentido, mas a ideia de pessoa e sujeito, se considerarmos o autor-pessoa e o sujeito-empírico, são coisas distintas. O sujeito, grosso modo, está ligado a uma indeterminação, a uma abstração, que não precisa ter, pela própria definição, um nome que se enuncia. A pessoa, ao contrário, possui um nome próprio, uma individualidade, uma biografia. Segundo Barthes (1988 [1968]), a linguística, após o surrealismo, fora da literatura – surrealismo que implicava uma escrita automática, aceitando uma espécie de escritura coletiva –, nos propiciou uma derrocada da figura do autor como pessoa ao considerar um argumento analítico substancial, que, a priori, coloca a linguagem como uma manifestação de um sujeito e não de uma pessoa: “a enunciação em seu todo é um processo vazio que funciona perfeitamente, sem que seja necessário preenchê-lo com a pessoa dos interlocutores: linguisticamente o autor nunca é mais do que aquele que escreve.” (BARTHES, 1988, [1968], p. 67). Essa visão da enunciação, que descarta a presença de interlocutores, é uma visão estruturalista13, exterior ao indivíduo. Bakhtin (2009 [1929]) percebe a língua e a linguagem diferentemente. Sua inclinação filosófica está associada ao discurso, donde a língua está intrinsicamente ligada às interações

12 Nota-se que Barthes (1988 [1968]) usa em seu texto a palavra “escritura”. Escritura, na concepção sinonímica do dicionário brasileiro, não se relaciona diretamente com a escrita literária ou acadêmica. Não tem relação genérico-discursiva com a autoria. Não se trata, tampouco, de um problema de tradução do francês para o português. No texto original, Barthes (1988 [1968]) utiliza a palavra “L’ écriture”, que, traduzida, corresponde à palavra “escritura”. 13 O estruturalismo é uma corrente de pensamento iniciada no início do século XX que acreditava na língua como um sistema articulado e não heterogêneo. Dividia-se nesse movimento a língua da fala. Na concepção estruturalista, a língua – parte social da linguagem – era exterior ao indivíduo. Não podia ser mudada ou modificada. 53

verbais, à ideologia e à palavra. “A palavra é uma espécie de ponte lançada entre mim e os outros. A palavra é o território comum do locutor e do interlocutor.” (BAKHTIN, 1929 [2009], p. 117). Ora, sob esse olhar, o leitor é o interlocutor do autor que é o locutor do leitor. Eles interagem nesse sentido sob um panorama dialógico de enunciados que respondem a outros enunciados. Livros são escritos com palavras. Ler é um ato comunicacional. “A interação, muito pouco tem a ver com o sistema linguístico de formas normativas; a palavra como item de um dicionário, com as diversas enunciações dos locutores em um ato comunicacional.” (BAKHTIN, 2009 [1929], p. 99). Para Barthes (1988 [1968]), o autor necessita morrer para que o leitor nasça em sua importância; todavia, um não subsiste sem o outro. Em um processo de interação discursiva que se materializa por meio da interação com a palavra, na capacidade que tem o discurso de produzir efeitos, na capacidade de o leitor se tornar autor discursivo daquilo que lê, essa crença fúnebre de Barthes (1988 [1968]), portanto, se mostra incompleta e irreal. Barthes (1988 [1968]) tem uma concepção estruturalista da autoria e do autor e, portanto, o seu texto não trata somente da morte do autor para nascer e florescer a vida do leitor, mas, matando o autor, nasce também o escritor, que, apegado ao código linguístico, ao estilo verbal, usa a palavra – nesta concepção – da melhor maneira possível; deixa-se de lado o autor como pessoa e como artista, ou seja, deixa-se de lado o autor, como ser criador, para dar à linguagem um lugar único como protagonista essencial da história. Para Kock e Elias (2012), a interação no processo de escrita – autor e o leitor – não pode ser entendida somente como produção textual, apropriação das regras da língua, sem considerar o autor e suas estratégias para conseguir a adesão do leitor por meio da palavra. Sem desconsiderar os conhecimentos do leitor, que é parte viva e constitutiva deste processo “interacional da língua, aquele que escreve como aquele para quem se escreve são vistos como atores/construtos sociais, sujeitos ativos que – dialogicamente – se constroem e são construídos no texto.” (KOCK & ELIAS, 2012, p. 34). É essa visão que privilegia o signo, a linguagem, a estrutura linguística, segundo Barthes (1988 [1968]), que mata o autor como criador, como pessoa e como artista, para fazer nascer pela cesariana a figura do escritor-empírico, cuja ausência física, material, temporal e até nominal, de forma hipotética, privilegia, potencializa e gera a figura do leitor. Barthes (1988 [1968]) olha para o leitor e reconhece sua importância; todavia, a importância do leitor para Barthes (1988 [1968]) está sempre relacionada ao texto e não ao discurso. Há uma tentativa tímida de reconhecer o leitor, mas não como uma pessoa ou um interlocutor responsivo, e sim como apenas um ouvinte. 54

Bakhtin (2010) estabelece uma diferença entre o enunciado como unidade de comunicação e as unidades da língua, que são as palavras e as orações. Segundo Bakhtin (2010), a linguística no século XIX não nega a função comunicativa da linguagem, mas a coloca em segundo plano. “A linguagem é considerada do ponto de vista do falante, como que de um falante sem a relação necessária com outros participantes da comunicação discursiva.” (BAKHTIN, 2010, p. 270). É possível, portanto, pensar o escritor-empírico em duas situações comunicativas de interlocução: o escritor com ele mesmo – no caso o escritor-empírico, com o autor-pessoa, que é o próprio escritor – e o escritor com o leitor. Podemos pensar ainda em outras relações comunicativas de escrita-leitura: relação entre enunciados, o discurso citado (a enunciação na enunciação) e a relação entre textos e entre discursos. Contudo, a linguística estruturalista institui o falante como sendo alguém detentor do fluxo único da fala e, no oposto, o ouvinte simplesmente como entendedor ou decodificador. Fica claro, no texto de Barthes (1988 [1968]), que ele acreditava que o falante, nesse caso, equivale ao escritor e o ouvinte corresponde ao leitor. “Há alguém que ouve cada palavra na sua duplicidade, e ouve mais, pode-se dizer a própria surdez das personagens que falam diante dele: esse alguém é precisamente o leitor (ou, no caso, o ouvinte).” (BARTHES, 1988 [1968], p. 70). Leiamos as palavras de Bakhtin (2010):

O ouvinte, ao perceber e compreender o significado (linguístico) do discurso, ocupa simultaneamente em relação a ele uma ativa posição responsiva: concorda ou discorda dele (total ou parcialmente), completa-o, aplica-o, prepara-se para usá-lo, etc.; essa posição responsiva do ouvinte se forma ao longo de todo o processo de audição e compreensão desde o seu início, às vezes literalmente a partir da primeira fala do falante. (BAKHTIN, 2010, p. 271).

Barthes (1988 [1968]) começa A morte do autor com Balzac: “Era a mulher, com seus medos repentinos, seus caprichos sem razão, suas perturbações instintivas, suas audácias sem causa e sua deliciosa finura de sentimentos.” (BARTHES, 1988 [1968], p. 66). E pergunta: “Quem fala assim? É o indivíduo Balzac, o autor Balzac, a sabedoria universal, a psicologia romântica?” (BARTHES, 1988 [1968], p. 66). Em contrapartida, fazemos outra pergunta: podemos afinal afirmar que Balzac não era um artista? Não podemos, justamente por ser incansáveis as possibilidades de leitura. Pode estar falando da força da mulher; a mulher e sua capacidade de pluralidade e multiplicidade; a mulher sendo muitas em uma só; pode ser Balzac autorretratando-se, imerso em sua porção feminina; pode ser a descrição da 55

personalidade de Ewelina Hanska com quem se casou ou sua irmã Eugène Surville14. A leitura pode ainda se dar de acordo com um contexto: a escola, a religião, um bordel etc. Binet (2015) descreve Barthes no dia do atropelamento em seu romance – Quem matou Roland Barthes? – da seguinte maneira:

Naquele dia, se ele está com a cabeça longe não é só por causa da mãe morta, nem da incapacidade de escrever um romance, nem sequer do desinteresse crescente e, pensa ele, irremediável, pelos rapazes. Não digo que ele não pense nisso, não tenho a menor dúvida sobre a qualidade de suas neuroses obsessivas. Mas hoje há outra coisa. Pelo olhar ausente do homem mergulhado em seus pensamentos, o passante atento saberia reconhecer esse estado que Barthes acreditava que nunca mais sentiria: a excitação. Não há apenas sua mãe, nem os garotos, nem seu romance fantasma. Há a libido sciendi, a sede de saber, e ela, a orgulhosa perspectiva, reativada, de revolucionar o conhecimento humano e, talvez, mudar o mundo. (BINET, 2015, p. 11).

Binet (2015) escreveu seu livro fundamentado, em partes, na biografia de Barthes, embora seu romance seja, na realidade, um retrato cômico, romanesco, de uma geração fértil de autores: Foucault, Derrida, Althusser, Lacan, Kristeva, dentre outros. Binet (2015) consegue transformar uma trama de enredo intelectual para leitores especializados em um romance de um alcance maior, mesclando personagens biográficos de nome próprio verificável com um enredo policial, constituído por farsa, cultura pop e erudição. Não há como pensar em leitor sem pensar em discurso, já que cada leitor apreenderá o texto de uma forma diferente, atribuindo a ele diferentes efeitos de sentido. Se o leitor, ao compreender o discurso, tem uma atitude responsiva em relação a ele, como afirma Bakhtin (2010), o leitor de natureza responsiva é constitutivo de um sujeito ativo, constituído socialmente, e tem, portanto, uma vida, uma história, uma biografia, uma ideologia. Isso refuta a afirmação de Barthes (1988 [1968], p. 70) de que “o leitor é um homem sem história, sem biografia, sem psicologia; ele é apenas esse alguém que mantêm reunidos em um único campo todos os traços de que é constituído o escrito.”. Mas, afinal, Quem matou Roland Barthes? Segundo a leitura de Binet (2015), no título de seu livro, inspirado em A morte do autor, texto célebre de Barthes (1988 [1968]), concluímos que Barthes matou Barthes. Em outros termos, nossa leitura entende que o escritor Roland Barthes matou o autor Roland Barthes, para que pudesse nascer o leitor Laurent Binet (2015). O fato é que não dá para pensar em Roland Barthes sem considerá-lo um artista, uma pessoa que está exterior a obra, um autor-criador. A morte do autor em si é

14 Pesquisa biográfica realizada na Wikipedia. Disponível em: . Acesso em: 05 ago. 2019. 56

desnecessária, embora reconheçamos que o texto homônimo seja um texto definitivo e indispensável, que propiciou uma polifonia discursiva sem precedentes, transdiscursiva. A morte do autor de Barthes é o primeiro e mais criativo texto que discutiu e relevância desse tema de tamanha substancialidade e relevância: autor e autoria. Nota-se, entretanto, que para haver autoria, o autor se assenta a um determinado gênero discursivo para que possa se ambientar e começar com sua escrita em um lugar de fala reconhecido. Trata-se do tema que veremos a seguir: os gêneros do discurso.

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2 GÊNEROS DO DISCURSO

A teoria dos gêneros tem sua origem na Grécia antiga, mais precisamente na Poética e na Retórica. Na Poética, Aristóteles classifica os gêneros como obras da voz, relacionando-os à mimeses e seu modo de representação. “Poesia de primeira voz é representação da lírica; a poesia de segunda voz, da épica, e a poesia de terceira voz, do drama.” (MACHADO, 2013, p. 151). Platão já havia introduzido os gêneros em A República ao elaborar a tríplice que provém da realidade e da representação. Sob o gênero dramático, acentua-se a comédia e a tragédia. Ao gênero “expositivo ou narrativo, o ditirambo, o momo e poesia lírica; ao misto, a epopeia.” (MACHADO, 2013, p. 151-152). Segundo Machado (2013), a mimese, ou seja, a representação, é a base teórica que orienta Aristóteles na Poética e que, até hoje, de forma direta ou indireta, conduz as análises de gênero discursivo. Contudo, é na Retórica, ao tratar de estilo, que Aristóteles define a inter-relação entre gênero e disposição sob a perspectiva da palavra:

Cada gênero, cada tipo de disposição apresentarão uma forma particular de manifestar a verdade. Entendo por gênero as distintas idades, quais sejam, a do menino, a do homem e do velho; o sexo, ou seja, mulher ou homem; a nacionalidade, ou seja, laconiano ou tessaliano. Por disposição entendo aqui somente a disposição que determina este ou aquele caráter da vida de um homem, uma vez que nem toda disposição produz isso. Se, assim, o orador utilizar as palavras que se ajustam a uma particular disposição, produzirá o caráter correspondente. (Retórica, 2011, capítulo VII, livro III 1408ª1-30).

Os estudos de gênero pelo círculo bakhtiniano, diferentemente, não se norteiam pela classificação das espécies, e, sim, pelo dialogismo. Foi na literatura que o gênero do discurso realmente se consolidou. A necessidade de uma classificação para a prosa e uma análise mais consistente propiciou um novo olhar sobre o gênero: uma perspectiva que considerasse a interação comunicativa inerente ao discurso, a enunciação e enunciado. Bakhtin (2010), ao discutir os gêneros do discurso, propõe que analisemos a sentença: “cada campo de utilização da língua elabora seus tipos relativamente estáveis de enunciados, os quais denominamos gêneros do discurso.” (BAKHTIN, 2010, p. 262). Bakhtin (2010) entende que o desenvolvimento da língua se dá por intermédio das categorias oral e escrita de enunciados. Esses enunciados refletirão certas especificidades relacionadas às finalidades ajambradas em cada esfera de atividade humana, “não só pelo seu conteúdo temático e pelo estilo da linguagem, pela seleção dos recursos lexicais, 58

fraseológicos e gramaticais da língua, mas acima de tudo, por sua construção composicional.” (BAKHTIN, 2010, p. 261). O conteúdo temático, o estilo verbal e a construção composicional são elementos constitutivos de todo gêneros do discurso e estão indissoluvelmente ligados ao todo do enunciado. Cada enunciado particular é individual. Bakhtin (2010) discorre sobre a relativização da estabilidade enunciativa no âmbito da linguagem e da comunicação da seguinte forma:

Em cada época da evolução da linguagem literária, o tom é dado por determinado gêneros do discurso, e não só os gêneros secundários (literários, publicísticos, científicos), mas também primários (determinados tipos de diálogo oral – de salão, íntimo, de círculo, familiar-cotidiano, sociopolítico, filosófico, etc.). Toda a ampliação da linguagem literária à custa das diversas camadas extraliterárias da língua nacional está intimamente ligada à penetração da linguagem literária em todos os gêneros (literários, científicos, publicísticos, de conversação, etc.), em maior ou menor grau, também dos novos procedimentos de gênero de construção do todo discursivo, do seu acabamento, da inclusão do ouvinte ou parceiro, etc., o que acarreta uma reconstrução e uma renovação mais ou menos substancial dos gêneros do discurso. (BAKHTIN, 2010, p. 268).

Neste capítulo, desenvolveremos o conceito de gênero do discurso, seu conteúdo temático, seu estilo verbal e sua construção composicional, assim como apresentaremos perspectivas teóricas de gênero do discurso. Trata-se de viabilizar um entendimento mais aprofundado de como a conceitualização de gênero e discurso convergem nesta categoria de análise tão discutida teórica e conceitualmente na contemporaneidade, resgatada na escola, na universidade, em artigos científicos, em capítulos de livro e em livros sob as mais variadas perspectivas.

2.1 Gênero: conteúdo temático

A totalidade artística de qualquer tipo, isto é, de qualquer gênero, orienta-se na realidade de forma dupla, e as particularidades dessa dupla orientação determinam o tipo dessa totalidade, isto é, seu gênero. Em primeiro lugar, a obra se orienta para os ouvintes e receptores, e para determinadas condições de realização e percepção. Em segundo lugar, a obra está orientada na vida, como se diz, de dentro, por meio de seu conteúdo temático. A seu modo, cada gênero está tematicamente orientado para a vida, para seus acontecimentos, problemas, e assim por diante. Pável Nikoláievitch Madviédev 59

O tema é um elemento do discurso complexo, discutido pelo círculo bakhtiniano principalmente nos trabalhos de Bakhtin/Volóchinov (2009) e Medviédev (2012). Bakhtin/Voloshínov (2009), em Marxismo e Filosofia da Linguagem, trabalham o tema associado à significação, que, segundo os autores, nessa concepção, é uma etapa inferior à habilidade de significar; já o tema é uma habilidade superior ao mesmo ato. O tema, portanto, está indissoluvelmente intrínseco à enunciação, afiliado a ela. Considera-se no tema sempre os fatores de ordem extralinguística: a situação sócio-histórica de produção. “Participam da construção do tema não apenas os elementos instáveis da significação, mas também os elementos extraverbais, que integram a situação de produção, de recepção e de circulação.” (CEREJA, 2013, p. 202). A construção de sentido na enunciação decorre dessa relação entre a significação e o tema. A enunciação única e irrepetível se une à significação instável que delineia o tema. O tema da enunciação é determinado não somente pelas formas linguísticas – essencialmente, as palavras –, mas, principalmente, pelos elementos que não são verbais na situação. “O tema da enunciação é concreto; tão concreto como o instante histórico ao qual ele pertence.” (BAKHTIN/VOLOSHÍNOV, 2009, p. 134). Somente a enunciação efetivamente tomada como um fenômeno constitutivo da história possuirá um tema. A significação – que pode ser semântica, concreta, objetiva – despende para abstração, contudo, está no campo da palavra, durável e estável, e pode ser ressignificada pelo tema, “que recria e renova incessantemente o sistema de significação, ainda que partindo dele.” (CEREJA, 2013, p. 202). Fica clara a inter-relação entre significação e tema, que se dá pela palavra e pelo discurso. A significação se revela no interior de um tema constituído, concreto, claro, que se materializa pela enunciação. A etapa superior do discurso, o tema, constitui-se na investigação de determinada palavra no âmbito da significação ideológica nas condições contextuais de uma enunciação concreta. No caso da significação, a investigação da palavra dar-se-á pelo sistema da língua: fonológico, morfológico e sintagmático. Ou seja, “se a significação está para o signo ambos virtualidades de construção de sentido da língua –, o tema está para o signo ideológico, resultado da compreensão ativa, o que traz para primeiro plano as relações concretas entre os sujeitos.” (CEREJA, 2013, p. 202). A significação tem uma relação que está inerente ao signo linguístico, enquanto o tema está imanente com o signo ideológico. O tema se correlaciona diretamente com o discurso e, especificamente, com a enunciação; já a correlação da significação com o tema envolve a construção de sentidos, assim como os efeitos de sentidos de determinado contexto 60

discursivo. A significação se dará por meio da palavra e o tema pelo enredo da enunciação e do contexto sócio-histórico de produção. O tema realiza-se pela identificação do locutor com seu interlocutor, amparados pelo momento histórico-ideológico e pela intenção da enunciação, sua finalidade. Ocorre também pelos enunciados anteriores que perpassam o discurso e pelo próprio discurso em um enunciado concreto. Conclusivamente, o gênero se liga ao discurso por meio do tema.

2.1.1 A unidade temática

Medviédev (2012) critica os formalistas russos por estes considerarem que o tema nasce das orações isoladas, uma vez que, ao se interligarem entre si, de acordo com o significado, constroem uma unidade temática por meio da união e do pensamento. Considera- se essa conceitualização equivocada. Medviédev (2012) responde pela unidade temática da seguinte maneira:

É impossível construir a unidade temática de uma obra como se ela fosse uma combinação dos significados de suas palavras e de suas orações isoladas. Se assim o fizermos, o complicadíssimo problema da relação da palavra com o tema seria completamente distorcido. A compreensão linguística do sentido da palavra e da frase convém à palavra e à frase como tais, mas não ao tema. O tema não se forma, em absoluto, desses significados; ele constitui-se somente com sua ajuda, assim como com a ajuda de todos os elementos semânticos da língua, sem exceção. Dominamos o tema com a ajuda da língua, mas não devemos incluí-lo na língua, como se fosse um elemento dela. (MEDVIÉDEV, 2012, p. 196).

O tema é transgrediente à língua e, portanto, não tem a palavra como direcionamento – nem a frase, nem o período –, de maneira unilateral e apartada, mas segue na direção do todo do enunciado e, nesse sentido, é apresentado discursivamente. “O tema de uma obra é o tema do todo do enunciado, considerado como determinado ato sócio-histórico. Por conseguinte, o tema é inseparável tanto do todo da situação do enunciado quanto dos elementos linguísticos.” (MEDVIÉDEV, 2012, p. 196). Portanto, é inviável considerar o tema e olhá-lo sob uma perspectiva enrijecida de componentes verbais. Os elementos verbais definem melhor o significado, que se trata, grosso modo, de um meio de se apropriar do tema, mas nunca será o próprio tema. Segundo Medviédev (2012), são as formas do todo, ou seja, o gênero constituído, estruturado não somente pelo estilo, mas, sobretudo, por sua construção composicional, que determinará consubstancialmente o tema do enunciado e seu conteúdo e/ou sua unidade 61

temática. “O tema realiza-se não por meio da frase, nem do período, mas por meio da novela, do romance, da peça lírica, do conto maravilhoso, e esses tipos de gênero, certamente não obedecem a nenhuma determinação sintática.” (MEDVIÉDEV, 2012, p. 197).

2.2 Gênero: o estilo

O estilo não é o algo-a-mais, o belo, o raro, o desvio. O estilo é o homem. Sim, O estilo é o homem, se pensarmos na imagem de um sujeito, construída por uma totalidade de textos que se firma em uma unidade de sentido. O estilo é o homem, se pensarmos em um “indivíduo” que, com corpo, voz e caráter, é construção do próprio discurso. O estilo é o homem, se pensarmos na imagem de um sujeito que, depreendida dos textos, supõe saberes, quereres, poderes e deveres ditados por valores e crenças sociais; um eu fundado no diálogo com o outro. O estilo é o homem, se, para homem, for pensado um modo próprio de presença no mundo: um ethos. Norma Discini.

Bakhtin (2010), no adendo Gêneros do discurso da coletânea Estética da criação verbal, se refere ao estilo nos gêneros, entre parênteses, como recursos lexicais, fraseológicos e gramaticais da língua. O recurso lexical está no léxico do texto, na escolha das palavras, nos sinônimos, nos antônimos, nas figuras de linguagem, no verbo, no tempo verbal etc. Os recursos fraseológicos, grosso modo, são as palavras e seus efeitos de sentido oriundos de um determinado contexto social. Essas palavras dão forma a expressões idiomáticas e frases feitas, locuções. Por exemplo, “Pau que nasce torto, nunca se endireita” – referência à pessoa de índole duvidosa; “Água mole em pedra dura tanto bate até que fura” – referência de valor à insistência; – “Cão que ladra não morde” e assim por diante. Em um só excerto, Lapa (1970) consegue reunir os três elementos – recursos lexicais, fraseológicos e gramaticais – referentes ao estudo do estilo:

Vejamos estas quatro frases: a) O pobre homem morreu cheio de sofrimento. b) Às dez horas, o patifório esticava o pernil. c) O estadista expirou com o pensamento no seu país. d) Faleceu ontem o Sr. Antônio dos Santos Abreu. No primeiro exemplo, morreu é o termo usual. No segundo exemplo, passamos do atrevimento da expressão; sentimos imediatamente que esticar o pernil é um termo da gíria popular, que evoca esferas inferiores da população. No terceiro exemplo, expirar aparece-nos como um vocabulário literário, só usados nos livros. Enfim, no último exemplo, faleceu dá-nos a impressão de um meio burocrático, jornalístico. A palavra, que tem um caráter eufemístico, é empregada em estilo correto, cerimonioso, levemente afetado. Uma das coisas que melhor denunciam o aprendiz de estilo é o desconhecimento dessa lei importante, que consiste em empregar as palavras que 62

condigam com o ambiente psicológico ou social. (LAPA, 1970, p. 30-32 apud DISCINI, 2016, p. 15).

É curioso como a ordem gramatical e, principalmente, as escolhas do léxico podem determinar um auditório a que se destinam, ou seja, as palavras devem ser escolhidas levando- se em conta a esfera de atividade humana de atuação em que são empregadas. A palavra expirou – referindo-se à morte –, segundo Lapa (1970), compõe a esfera literária; faleceu – naquele contexto – a esfera jornalística; morreu compõe um enunciado do cotidiano. A expressão idiomática “esticar o pernil” parece-nos uma expressão dos anos de 1970, que remete a uma esfera de atividade humana mais popular. “Uma ideia menos expressiva se opõe a uma mais expressiva. Trata-se de um estudo do estilo que se pauta pela atenção a tais recursos expressivos da língua restritos à escolha de sintagmas, palavras ou frase.” (DISCINI, 2016, p. 15). Falá-lo-emos, neste momento, de alguns conceitos de estilo.

2.2.1 Estilo e retórica: a estilística e os recursos lexicais e gramaticais

O estilo tem relação direta com o ethos e com a autoria. Implica uma forma ideal de dizer, um enunciador e/ou orador-autor que, no campo linguístico, é dotado de uma enunciação viabilizadora de enunciados. Essa relação entre a enunciação, o texto e o enunciado dar-se-á entre o dito, o não dito e o dizer, constitutivos de um “eu” (autor), construto da totalidade emanada pelo discurso. Para Discini (2016), os estudos estilísticos, tradicionalmente, e sua correlação entre enunciação e enunciado sofrem de uma inadequação proveniente da crítica literária, que considera a existência de um autor real exterior à obra, cuja atribuição consiste em “ser referência indicativa da escolha dessas ou daquelas expressões linguísticas, supostas marcas de gosto ou preferência pessoal constituintes do estilo.” (DISCINI, 2016, p.12). Os estudos estilísticos sofrem de uma imprecisão após os estudos literários de autoria. Essa dispersão se fundamenta pelo leque de possibilidades possíveis para o estudo do estilo ao pensarmos na enunciação e no enunciado. Segundo Discini (2016), a partir daí, a relação de enunciado e enunciação – por não ter sido buscada de maneira adequada – se dissipa na grande maioria dos estudos sobre estilística em alguns aspectos: no apego do estilo como um desvio em relação a uma determinada regra normativa, “ora na consideração do estilo como escolha entre alternativas de expressão, ora na consideração do estilo como conjunto de 63

características individuais, ou coletivas, ora nas prescrições para a construção de um bom estilo.” (DISCINI, 2016, p. 12). Uma nova arte nasce das prescrições para a edificação de um bom estilo: o estilo e seu estudo caracterizado como a arte de escrever bem. Apropriando-se de elementos da Retórica e suas regras de beleza, de frieza, de correção, de ampliação de conveniência, de ritmo no estilo, etc., o estilo próprio de cada gênero subsiste na tradição estilística sob uma influência aristotélica substancial. Literatura é considerada arte nos seus mais variados gêneros: romance, conto, poesia, entre outros. Para Aristóteles, arte é estilo: “tudo o que se relaciona com o estilo pertence ao âmbito da arte e é passível de ser ensinado.” (ARISTÓTELES, Retórica, 2011, livro III capítulo I 1404a1-15). Dessa forma, na Retórica, inferindo a questão do ethos, não é importante ser verdadeiro, mas sim parecer verdadeiro. Portanto, pelo enunciado se materializa a imagem do autor naquela determinada enunciação e/ou situação comunicativa, o que permite herdar as categorias de estilo e seus ornamentos, como as figuras de linguagem, na progressão enunciativa. Aristóteles complementa:

Um bom autor é capaz de produzir um estilo não familiar e claro, sem ser inoportuno, e que ao mesmo tempo preserva a dissimulação, preenchendo assim todos os requisitos no que toca as qualidades da boa prosa oratória. (ARISTÓTELES, 2011, Retórica, livro III capítulo II 1405a1).

Mattoso Câmara Junior (1977) elenca sintagmas de expressão para justificar a escolha estilística individual do autor. Discini (2016) nos dá um exemplo:

Como exemplo, está o emprego do discurso indireto livre em Memórias Póstumas de Brás cubas, de Machado de Assis (Câmara, 1977: 25-41), em que Câmara parece prognosticar, no romance, o estilo enquanto recorrência de procedimentos, enquanto totalidade, pois fala, no final de tal estudo, de tal procedimento de construção de sentido, chamado processo linguístico, “como traço sistemático (destaque nosso) do romance moderno”, para cujos “caracteres na obra de nosso maior romancista” o autor gostaria de ter chamado a atenção. (DISCINI, 2016, p. 15).

Segundo Aristóteles (384 a.C.-322 a.C, 2011), o estilo alcança um nível de excelência se no conteúdo do discurso houver clareza. O estilo não deverá apropriar-se de coloquialismos, exageros e expressões idiomáticas se estes não estiverem em diálogo com o tema proposto pelo discurso. A clareza é representada pela escolha dos substantivos e verbos para tornarem o estilo claro, denotado por certa elegância que transcende ao ordinário. 64

“Afastar um vocábulo de sua acepção ordinária permite transmitir ao estilo mais dignidade.” (ARISTÓTELES, 2011, Retórica, livro III, capítulo II, 1404b1-5). Aristóteles atribui à poesia um tratamento linguístico mais sofisticado e considera que na prosa convém utilizar um tratamento menos refinado, por em se tratar de assuntos mais ordinários. Contudo, inserir um estilo poético, de vocábulos refinados – substantivos e verbos – na prosa e seus assuntos cotidianos é construir uma prosa estilisticamente mais elegante, sóbria e sofisticada. O Estágirita aponta os sinônimos como um recurso de grande utilidade e destaca ainda os epítetos e o uso de diminutivos como um bom modelo de estilo; todavia, se aprofunda na metáfora e considera ser um meio pelo qual o autor exprime maior clareza e até mesmo certo encanto a um pensamento, que pode, para nós, não ser familiar.15 “A matéria-prima das metáforas tem que ser bela; ora, a beleza de uma palavra, tal como a disformidade, como afirma Licímnio, reside nos sons ou nos significados.” (ARISTÓTELES, 2011, Retórica, livro III, capítulo II, 1405b1-5). Os significados das palavras em determinado contexto dependem de uma escolha estilística. É possível que uma palavra tenha um melhor significado para nós do que outra. Aos nossos olhos, é importante a palavra que soa verdadeiramente significativa aos nossos ouvidos. O belo e o feio, a boa ou a má palavra, o nobre e a vulgaridade podem variar de acordo com a enunciação. Por exemplo, a palavra fogo pode gozar de vários enunciados em diferentes enunciações: Fogo, fogo, fogo... significaria que um lugar está em chamas; é um enunciado de alerta. Amor, põe a panela no fogo: farei uma comidinha gostosa pra você; o fogo serve à enunciação como um elemento a serviço do amor; é, portanto, uma boa palavra. Essa menina tem um fogo! A palavra fogo não é nobre e incide à vulgaridade, ou seja, duas palavras distintas podem significar tanto o belo quanto o feio, assim como a mesma palavra pode gozar de vários significados. “Não é contemplando idêntico ponto de vista que as palavras apresentam esse ou aquele significado.” (ARISTÓTELES, 2011, Retórica, capítulo II, livro III, 1405b1-15). Aristóteles (2011) apresenta cinco regras para um fundamento do estilo para um emprego correto da língua:

1 – O uso correto das conjunções.

2 – Nomear as coisas acertadamente, por meio de termos que lhes são próprios.

15 Retomaremos no item 2.3.2. (a elocutio) uma exemplificação da metáfora ligada ao estilo. 65

3 – Evitar ambiguidades.

4 – Classificação de gênero: nomes masculinos, femininos e neutros.

5 – Expressar corretamente o singular e o plural.

Além disso, o Estagirita recomenda, para o bom estilo, uma substituição de determinado termo pela sua definição, por exemplo, a construção composicional, termo, elemento constitutivo dos gêneros do discurso, sê-lo-ia substituído pela definição: disposição organizacional do texto; introdução, desenvolvimento, conclusão. Se em determinado discurso encontrar-se a definição e o autor tiver como intuito a síntese, este usará o termo, se o intuito é a prolixidade usar-se-á, então, a definição. Um famoso conceito do gramático Bechara (1987) pondera que o falante de língua portuguesa deve ser um poliglota em sua própria língua. Essa conceitualização do gramático dialoga com a conveniência do estilo proposta por Aristóteles, em que o Estagirita afirma que o caráter e as emoções devem coincidir e se relacionar sempre com o assunto proposto. Em outras palavras, Aristóteles (2011) postula que a “relação estreita com o assunto proposto significa que não devemos nem falar vulgarmente de assuntos importantes, nem falar solenemente de assuntos triviais.” (ARISTÓTELES, 2011, Retórica, capítulo VII, Livro III, 1408ª1-10). Segundo Aristóteles (2011), o estilo, para ser coeso e buscar a persuasão, deve ser uma extensão do assunto e ter uma coerência afetiva e efetiva com o que o assunto propõe. Se o estilo no tema proposto, ou seja, no assunto discutido, for passivo de emoção, por exemplo, algo ultrajante, a expressão estilística do autor deve ser de alguém arrebatado pela cólera. Se for uma injustiça decorrente de impiedade, a expressão deve ser de indignação, que deve ser descrita na elocução do autor. A linguagem expressa por admiração decorrerá de uma situação ou expressão honrosa, e assim por diante. De acordo com Discini (2016), o sistema retórico, composto pela inventio, pela dispositio, pela elocutio, pela actio e pela memória concentra na elocutio, na elocução, o estilo, ao considerar que a elocução “é o estilo ou as escolhas que podem ser feitas no plano da expressão para que haja adequação, forma/conteúdo.” (MOSCA, 1999, p. 28-29 apud DISCINI, 2016, p. 17).

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2.2.2 A elocução (elocutio)

A elocução é a aplicação do estilo no discurso, ou melhor, é a constituição linguística do autor para o ato retórico; esse ato retórico emana sinais de significados propiciados pela palavra, que caracterizam e revelam a face do texto. “É a operação retórica que consiste em atuar sobre o material da dispositio.” (FERREIRA, 2010, p. 116). Ferreira (2010, p. 188) pergunta: “Como se pode caracterizar o estilo do autor?”. A resposta encontra-se no próprio Ferreira (2010) e em Reboul (1998):

O melhor estilo, ou seja, o mais eficaz, é aquele que se adapta ao assunto. Isso significa que ele será diferente conforme o assunto. Os latinos distinguiam três gêneros de estilo: o nobre (grave), o simples (tênue) e o ameno (médium), que dá lugar à anedota e ao humor. O orador eficaz adota o estilo que convém ao seu assunto: o nobre para comover (movere), sobretudo na peroração. O simples para informar e explicar (docere), sobretudo na narração e confirmação; o ameno para agradar (delectare), sobretudo no exórdio e na digressão. A primeira regra é, portanto, da conveniência. (REBOUL, 1998 apud FERREIRA, 2010, p. 118).

Segundo Tringali (2014), a linguagem começa a ser preparada já na invenção e toma corpo na disposição; entretanto, é na elocução que todo trabalho é focado pelo desenvolvimento do texto em nível verbal. “A elocução é arte de redigir o material encontrado e organizado.” (TRINGALI, 2014, p. 169). É a arte que propõe a boa escrita, logo, um elemento importante para se escrever bem. Na invenção e na disposição, o discurso vai ser – de certa forma – categorizado, pensado e rascunhado, mas é na elocução que o discurso desabrochará pela palavra. Tringali (2014) afirma que, segundo alguns autores, a elocução é a hora de escolher (electio) e combinar palavras (compositio). “Escolher as palavras no eixo paradigmático e combinar as palavras no eixo sintagmático, transformando-se o discurso em verdadeira prova artística, harmoniosa.” (TRINGALI, 2014, p. 170). Trata-se de construir o pensamento com palavras, ornar o discurso com figuras de linguagem e tropos. Fiorin (2014) separa as figuras de linguagem entre trópicas e não trópicas, contudo, para a nossa proposta, as trópicas são fundamentais, pois sua origem está no léxico, ou seja, nos recursos lexicais e gramaticais, na escolha das palavras, no estilo, na autoria. Fiorin (2014) organiza as figuras trópicas da seguinte maneira:

1.1. Tropos lexicais: 1.1.1. Tropos por concentração semântica: metáfora, prosopopeia, apóstrofe, oximoro, sinestesia, hipálage; 67

1.1.2. Tropos por expansão semântica: metonímia, sinédoque, antonomásia, ironia (antífrase), lítotes, hipérbole, eufemismo, perífrase, adínaton, preterição, reticência ou aposiopese. 1.2. Tropos gramaticais: 1.2.1. Tropos por condensação semântica: silepse; 1.2.2. Tropos por difusão semântica: enálage, metalepse, hendíade. (FIORIN, 2014, p. 32).

Começaremos a comentar cada uma delas em sua concentração e expansão semântica pela metáfora. Na literatura, seja na poesia, seja na prosa, a leitura captura imagens. A imaginação cria imagem de lugares, de coisas, de personagens etc. Para Aristóteles (2011), a imagem e a metáfora dialogam entre si. Considera-se que a imagem, por vezes, também é uma metáfora; entretanto, entre imagem e metáfora há apenas uma pequena diferença:

Quando o poeta, referindo-se a Aquiles, diz:

Arremeteu-se como um leão...

está empregando uma imagem. Mas quando diz:

Esse leão arremeteu-se...

está utilizando uma metáfora. (ARISTÓTELES, 2011, Retórica, capitulo IV, livro III, 1406b1-20).

No exemplo de Aristóteles (2011), podemos ver essa inter-relação nos significados de leão e Aquiles, o guerreiro grego. O leão é um animal, mamífero, carnívoro, que protege os seus filhotes como um guerreiro e é conhecido como o rei dos animais. Aquiles é um semideus, portanto, Deus e homem, mamífero, guerreiro; está na guerra aspirando à glória em nome da conquista de Troia pelos gregos, protege os seus ermitões e, dentre os guerreiros gregos, é o invencível, aquele que é temido pelos inimigos, o rei dentre todos os guerreiros. Aquiles e o leão estabelecem um acordo semântico e, por isso, podem ser relacionados metaforicamente. A metáfora, segundo Fiorin (2014), é uma figura de retórica e tem sua origem nos significados das palavras, ou seja, sua especificidade é de natureza semântica. Considera fatores linguísticos de sentido entre duas palavras e/ou dois significados que coexistem semanticamente. “O que estabelece uma compatibilidade entre os dois sentidos é uma similaridade, ou seja, a existência de traços comuns a ambos.” (FIORIN, 2014, p. 34). Permite que uma imagem abstrata se concretize e propicie um efeito de sentido de intensidade e clareza de uma unicidade ímpar no limiar do estilo, no âmbito da elocução e da argumentação. 68

Na prosopopeia há uma intensificação semântica, ou seja, os sentidos ganham uma extensão de significado, uma adição, um alongamento nos signos designativos. Particularidades que não são humanas se tornam personificadas por uma personalidade que é humana. Ou seja, o autor emprega pela palavra uma personalidade humana a seres inanimados ou a sentimentos que estão no campo da abstração. Fiorin (2014) nos dá dois exemplos claros dessa personificação: 1. na palavra virtude, do conto A cartomante, de Machado de Assis. Nesse conto, a virtude, como uma característica positiva dos seres humanos, é adjetivada. “A virtude é preguiçosa e avara”; contextualmente, aí, a prosopopeia se estabelece. “Com efeito, é mais forte dizer que a virtude é preguiçosa e avara do que afirmar que uma pessoa virtuosa é preguiçosa e avara.” (FIORIN, 2014, p. 51).2. Fiorin cita “O bêbedo e s equilibrista”, de João Bosco e Aldir Blanc, donde a lua e as estrelas são personificadas: “A lua/Tal qual a dona de um bordel/Pedia a cada estrela fria/ Um brilho de aluguel.” (FIORIN, 2014, p. 51). Segundo Fiorin (2014), a retórica considerou a prosopopeia no processo de animalização como metáfora. Considera o autor que a animalização é o contrário da prosopopeia, levando-se em conta que o processo, nesse caso, é inverso; tratar-se-ia do empréstimo de características de animais aos seres humanos. Contudo, a personificação pela palavra também goza de caráter metafórico. A apóstrofe significa desvio, uma abjunção. É um recurso utilizado pelo autor que permite uma elocução direta na enunciação com um interlocutor que, a priori, não estava ali. “Nela, o enunciador interpela um ser natural ou sobrenatural, animado ou inanimado, concreto ou abstrato, presente ou ausente, para exprimir pedidos, censuras, lamentos, etc.” (FIORIN, 2014, p. 55). Pode ser uma interpelação com Deus, uma conversa com flores, dirigir-se ao mar, ao amor, aos mortos etc. O oximoro tem na sua etimologia e no seu significado o paradoxo, o contraditório. Essa figura de linguagem é interessante porque aglutina, em uma mesma sentença, palavras de significados opostos, significados conflitantes semanticamente. De acordo com Fiorin (2014), a própria palavra oximoro é constituída de uma dualidade semântica:

A palavra oximoro é formada de dois termos gregos: oxýs, que significa “agudo” “penetrante”, “inteligente”, “que compreende rapidamente” e morós, que quer dizer “tolo”, “estúpido”, “sem inteligência”. Como se vê, o vocábulo é formado por dois elementos contraditórios, o que significa que a palavra oximoro é um oximoro. (FIORIN, 2014, p. 59). 69

Um exemplo claro de oximoro é o título da tese da Prof. Dra. Maria Júlia Santos Duarte: O silêncio retórico das personagens de Vidas Secas (2018).16 Se retórica, grosso modo, é a arte da palavra, do bem dizer, da eloquência, da oratória e do bem escrever, como um silêncio pode ser retórico? Recorramos à perspectiva fraseológica de silêncio: “O silêncio fala mais do que mil palavras.”. No título da tese de Duarte (2018), o silêncio deixa de significar a ausência da palavra para dizer alguma coisa. O silêncio também pode ser absolutamente persuasivo. O paradoxo da combinação entre as palavras “retórica” e “silêncio” propicia uma estranheza e dá ao sentido da sentença uma plasticidade única, poética, que, por meio do conflito entre as duas palavras, se harmoniza. A sinestesia é uma figura de linguagem ligada às sensações, por exemplo, o olfato, o paladar, a audição, o tato. Pela combinação sensorial, se dá uma amálgama, uma “mistura, em que se altera o significado de um termo que indica uma sensação, ao combiná-lo com outro de ordem sensorial diversa, para criar uma percepção diferente do mundo, assim, o sentido.” (FIORIN, 2014, p. 63). Segundo Fiorin (2014), é uma figura que acontece muito na linguagem do cotidiano. A hipálage significa troca, cambiar posições, e pressupõe mudanças na ordem das palavras: o adjetivo toma o lugar do substantivo, por exemplo. É uma figura de caráter sintático e semântico, como podemos observar no exemplo dado por Fiorin: “No conto ‘Maria pintada de prata’, de Dalton Trevisan ocorre: Relutante, volta-se para fulana: em cada olho um grito castanho de ódio.” (FIORIN, 2014, p. 66). O grito na sentença toma o lugar dos olhos, que, por sua vez, “expressam o sentido intenso de ódio.” (FIORIN, 2014, p. 66). A metonímia se estabelece pela troca e pela substituição. Usa-se uma palavra ao invés de outra, donde ambas tem uma inter-relação de similaridade que se manifesta pelas relações externas entre as duas. Por exemplo, quando se diz: “hoje beberei um porto no jantar”, a substituição de palavra vinho por porto estabelece uma relação entre as duas palavras: vinho do porto. Mas Porto é uma cidade em Portugal conhecida por fabricar o melhor vinho do mundo. Há uma proximidade entre as duas palavras. Portanto, a troca da palavra vinho por porto propicia uma expansão semântica pela metonímia, porque um porto não é qualquer vinho. A sinédoque é uma figura de linguagem que também se estabelece pela troca de palavras, por exemplo, “em lugar de ‘minha casa’, diz-se ‘meu teto’. A razão é que há entre

16 Tese de doutorado em Língua Portuguesa – Programa de estudos Pós-graduados em Língua Portuguesa, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 2018. 70

elas uma relação de contiguidade.” (TRINGALI, 2014, p. 207). Essa relação de contiguidade é similar à proximidade entre as palavras na metonímia. Existe uma dificuldade em distinguir a metonímia da sinédoque. Há inclusive teorias que consideram que as duas não se distinguem e que a sinédoque é um tipo de metonímia. Tringali (2014) acrescenta sobre este caso específico:

Tal é a dificuldade de distingui-las, em alguns casos, que há forte tendência de identifica-las, como pensa W. Kayser, U. Eco e outros. Durmasais, Houaiss consideram a sinedóque como uma espécie de metonímia. É uma metonímia ou uma sinédoque quando se torna a matéria pelo produto: “não ter prata” (=dinheiro). (TRINGALI, 2014, p. 209).

A antonomásia também é tropo de substituição entre as palavras e por isso é tão similar à metonímia e à sinédoque. Tringali (2014, p. 193)) exemplifica de uma forma clara e distintiva: “Em vez de dizer ‘Aristóteles’, digo ‘o Filósofo’, porque Aristóteles é o filósofo por excelência ou por antonomásia”. Trata-se da substituição do nome próprio (Aristóteles) por uma qualidade que é comum a esse nome próprio: a qualidade de filósofo. “Em vez de chamar alguém de Hipócrita (nome comum) chamo-o de tartufo (nome próprio). Tartufo é uma personagem da comédia de Molière que se caracteriza pela hipocrisia de modo destacado.” (TRINGALI, 2014, p. 193). A ironia está em outra esfera, está no campo da expansão semântica; podemos ser concisos ao definirmos este tropo: “se finge dizer uma coisa para dizer exatamente o oposto.” (FIORIN, 2014, p. 69). É um tropo, a ironia, que alarga os sentidos unilaterais; é dicotômica, dual, exige certa malícia e transita entre a graça, o sarcasmo, o desprezo, a zombaria e a desafeição. “A compreensão da ironia exige a percepção de uma impertinência predicativa.” (FIORIN, 2014, p. 79). Por exemplo, na música “Fim de Semana no Parque”, dos Racionais MC’s, o próprio Mano Brow, um dos autores da música, se coloca como “malicioso e realista.” Mas é esse verso que nos chama atenção: “No ultimo natal papai Noel escondeu um brinquedo/prateado, brilhava no meio do mato/um menininho de 10 anos achou o presente/era de ferro, com 12 balas no pente/o fim de ano foi melhor pra muita gente.” Trata-se de uma metáfora nas associações da palavra brinquedo com a sentença “era de ferro, com 12 balas no pente”. O autor finaliza o verso com uma ironia: o fim de ano foi melhor para muita gente. Todo verso torna-se ironia e é constitutivo de reflexão pela própria ironia. A lítotes é uma espécie de negação às avessas, para confirmar a essência do que se quer dizer. É uma palavra que se originou a partir do grego lítotes. Traduz-se por simples, 71

circunspecção, exiguidade. “Ao negar o contrário daquilo que se quer afirmar, tem-se uma extensão semântica, abarcando-se o sentido x e a negação do seu contrário.” (FIORIN, 2014, p. 73). Fiorin (2014, p. 73) é muito elucidativo: “Quando se quer dizer que alguém é muito esperto, diz-se ‘Você não é nada bobo.’. Bobo é o contrário de esperto e é o núcleo do predicado negado.”. Pela lítotes pode-se atenuar uma ideia, um pensamento. Pode-se ser menos hostil, sutil, mais brando ao defender uma ideia que pode parecer agressiva. Parece-nos uma figura de linguagem – assim como a sinestesia – de uma utilidade efetiva no cotidiano, no dia a dia. Podemos até mesmo parecer agradáveis por meio dessa figura. A negação por meio de afirmações contrárias, elemento principal da lítotes, pode florescer pelo campo da sintaxe, sintaticamente, e/ou pelo significado, semanticamente. Pela sintaxe, o principal recurso de atuação para lítotes se realiza pelos advérbios de negação: jamais, nunca, tampouco, nem, não etc. “Não era costureira, nem proprietária, nem mestra de meninas; vá excluindo as profissões e lá chegará (Machado de Assis, ‘Singular ocorrência’).” (FIORIN, 2014, p. 73). Nesse exemplo proporcionado por Fiorin (2014), tem-se a negação pelos advérbios não e nem. “A negação de que ela fosse costureira, proprietária ou mestre de meninas, seguida da indicação de continuar a não admissão das profissões, indica que ela era prostituta.” (FIORIN, 2014, p. 73-74). Fica claro haver uma atenuação construída, literariamente, para amortecer o impacto, na trama sintática, da profissão da moça. Outro exemplo pela sintaxe é o ditado popular “Raposa velha perde os pelos, mas não perde o vício”. Um exemplo simples de expansão semântica pela lítotes é o enunciado popular: “Nunca diga nunca”, cujo significado seria, grosso modo, “eu” posso, diga sim, “eu” consigo, você consegue. A hipérbole é a figura de linguagem do exagero; uma exageração proposital para enfatizar algo específico ou para supervalorizar uma palavra, alguma coisa, uma expressão. É um tropo que trabalha pela demasia semântica. Pela superabundância do dizer e pela perspectiva da intensidade, a hipérbole valoriza o que está sendo dito. “Usa-se a hipérbole tanto na linguagem cotidiana (estou morto de sede, estava tão cansado que desmaiei) quanto nos gêneros artísticos.” (FIORIN, 2014, p. 75). O eufemismo é uma atenuação, uma substituição de uma palavra ou expressão considerada ruim donde “há uma diminuição da intensidade semântica, com a utilização de uma expressão atenuada para dizer alguma coisa agradável.” (FIORIN, 2014, p. 78). 72

Utilizaremos o exemplo da morte, que provoca um desconforto e, portanto, é uma palavra carregada de eufemismo para dizer: tal pessoa morreu. Por exemplo, diz-se “abotoou o paletó”; “esticou as canelas”; “bateu as botas”; “passou dessa para melhor” etc. “O eufemismo é o tropo em que se estabelece uma compatibilidade predicativa, quando se determina o abrandamento da expressão. No eufemismo, diz-se menos para significar mais.” (FIORIN, 2014, p. 78). A perífrase utilizada retoricamente consiste em um meio de dizer algo de maneira indireta, ou seja, troca-se uma palavra por outra, ou melhor, uma expressão por outra, por meio de um número maior de palavras para assinalar algo que poderia ser dito de maneira mais sintetizada. Fiorin (2014, p. 81) exemplifica: “Pode-se dizer, de maneira condensada ‘Eles são casados’ ou, de maneira alongada ‘Eles são unidos pelos laços matrimoniais’.”. “Uma perífrase que exponha impossibilidades é chamada adínaton. Os adínatons são usados na linguagem cotidiana: Isso acontecerá no dia de São Nunca; quando as galinhas criarem dentes.” (FIORIN, 2014, p. 84), ou seja, expressa o impossível. A preterição ou paralipse é uma figura de linguagem que intensifica o sentido pela oposição. É exposto de forma velada aquilo que não se quer dizer. É um tropo que dialoga com a omissão, ou seja, que diz aquilo que pretende omitir ao deixar na entrelinha. Segundo Fiorin (2014, p. 87), esse tropo é muito usado no cotidiano nas expressões: “‘não é preciso lembrar’, ‘não diria que’, ‘não necessário explicar que’, ‘longe de mim dizer que’, ‘não vou deter-me na’ etc.”. Fiorin (2014) também conceitua a preterição exemplificando-a sintaticamente: “Correm muitas histórias sobre o enriquecimento não explicado de familiares do meu rival. Entretanto, oponho-me a fazer campanha com críticas à família do meu adversário.” (FIORIN, 2014, p. 86). A preterição consiste em um engenhoso recurso, donde, para se dizer, nega-se o que se diz, ou seja, é pela negação que “eu” digo o que parece, mas parece que não quero dizer o que digo: “Aconselharam-me a falar sobre a vida pessoal do meu oponente. No entanto, não descerei o nível da campanha.” (FIORIN, 2014, p. 86). Na reticência, figura de linguagem, o silêncio se exprimi. Fala-se pelo silêncio, que tem força retórica. Trata-se de calar-se para dizer algo que se guarda dentro de si. Tratar-se-á de guardar dentro de si uma informação e detê-la para o auditório-leitor completá-la por inferência. O autor não completa o que estava dizendo e marca o seu dizer e a ausência do dizer com três pontos na atividade textual escrita.

Tropo gramatical por condensação semântica 73

A silepse acontece quando a concordância se dá não de maneira gramatical, mas sim de forma semântica, ou seja, por meio do sentido da palavra do texto e/ou do discurso. “A concordância é logica e não gramatical – silepse de gênero: Sua majestade é justo; silepse de pessoa: escrevemos este trabalho (nós = eu); silepse de número: a multidão...... chegaram.” (TRINGALI, 2014, p. 206).

Tropo gramatical por difusão semântica

A enálage classifica e substitui um substantivo por um adjetivo, ou seja, dá ao substantivo característica de adjetivo. Trata-se da troca gramatical de funções, donde a palavra se constitui por outra categorização gramatical. Tringali (2014) exemplifica a enálage por meio do exemplo de “menino pobre”, que, segundo o autor, “pobre” ganha, nesse caso, estatura de adjetivo. Ao dizermos a palavra “pobre”, isoladamente, temos um substantivo. Em outras palavras, a palavra pobre, por si só, é substantivo. Temos ainda: “adjetivo usado como advérbio: ele falou calmo (= calmamente); um tempo verbal por outro: - em vez de dizer irei a São Paulo, digo vou a São Paulo, onde se usa o presente com valor de futuro.” (TRINGALI, 2014, p. 196). A metalepse dialoga com a metonímia: “a) em que se usa o antecedente pelo consequente: ‘ele viveu’ (= está morto, consequente); b) o consequente pelo antecedente: ‘caem as folhas’ (= é outono, antecedente).” (TRINGALI, 2014, p. 201). A hendíade acontece “quando se coordenam termos que deveriam estar subordinados. Assim em vez de dizer: ‘Bebamos em copos de ouro’, dizemos: ‘Bebamos em copos e em ouro’.” (TRINGALI, 2014, p. 197). Parece haver certo preconceito em relação às figuras de estilo. Sente-se que elas, no ensino de língua portuguesa, são deixadas um pouco de lado, têm nomes difíceis, similaridades entre si – sinédoque, antonomásia, metonímia – e, não raro, necessitam de um estudo aprofundado para serem aplicadas e até mesmo compreendidas. Todavia, é pelas figuras de linguagem, de estilo, que a linguagem cresce, se desenvolve e evolui. É passível de reflexão para o estilo pensarmos que os nomes das figuras, muitas vezes difíceis, pode expressar uma questão de elegância da língua. As figuras são um ornamento, não tão simples, mas fundamental para o estilo verbo-nominal constitutivo de qualquer discurso. É curioso perceber que a palavra eloquência, ligada à arte do bem falar, deriva da palavra elocução; entretanto, a eloquência difere da elocução em um ponto principal: a pronunciação. “A eloquência se caracteriza por uma brilhante e eficiente elocução valorizada por uma brilhante pronunciação.” (TRINGALI, 2014, p. 171). Tringali (2014, p. 171) 74

acrescenta ainda: “Na elocução, o orador ‘se exprime’, na pronunciação, ele ‘se comunica’ secundado por gestos. Na elocução, a Retórica vai ser a arte de escrever bem. Na pronunciação, a retórica vai ser uma ‘arte de declamar bem’.”. Dito de outra forma, a pronunciação está ligada à fala, à oratória, e a elocução está ligada à escrita. O autor, em seu processo de autoria, é levado ao encantamento pela elocução e é enfeitiçado por ela. Essa parte do sistema retórico é certamente a que mais atrai no processo de composição do discurso, por ser a parte artística ligada à beleza e que propicia ao autor certo prazer ao se deparar com sua boa redação fomentada pelo bom uso de figuras de estilo, tropos semânticos e gramaticais, e, também, pela clareza e correção, o nobre, o simples e o ameno.

2.2.3 Estilo e texto: a intertextualidade

Há, efetivamente, categorias que conversam entre si quando se fala em intertextualidade: heterogeneidade constitutiva, intertextualidade, intertextualidade manifesta, intertextualidade mostrada, intertextualidade constitutiva e/ou interdiscurso. Focalizaremos na intertextualidade manifesta e/ou mostrada (texto – intertexto) e a noção de intertextualidade constitutiva (interdiscurso), associadas à noção de gênero e estilo. Cabe-nos sublinhar que nos apropriamos das contribuições de Fairclough (2001), ligadas a Análise Crítica do Discurso, especificamente nas questões relativas à intertextualidade manifesta e a intertextualidade constitutiva. O método tridimensional de Análise do Discurso Textualmente Orientada, proposta por Fairclough, não nos subsidia na práxis teórica deste trabalho. Fairclough (2001) entende texto e enunciado como sinônimos; fundamentado nos estudos de Bakhtin, considera o enunciado um processo consolidado pela interação. Essa interação pressupõe enunciados que repetem enunciados, que os reformulam, isto é, enunciados que visitam enunciados anteriores. O enunciado de outrem pode, portanto, ser reutilizado, reacentuado e retrabalhado por cada um de nós. “Enunciados – ‘textos’ em meus termos – são inerentemente intertextuais, constituídos por elementos de outros textos.” (FAIRCLOUGH, 2001, p. 134). “Todos os enunciados são povoados e, na verdade, constituídos por pedaços de enunciados de outros, mais ou menos explícitos ou completos.” (FAIRCLOUGH, 2001, p. 134). Ora, texto e enunciado compartilhando semanticamente de um caráter sinonímico define 75

intertextualidade: textos que reacentuam textos, que os modificam, que os repetem, que os retrabalham etc. Kristeva (1960) cunhou o termo intertextualidade aprofundando-se nos estudos dos textos que retomam textos, de enunciados que repetem e ampliam enunciados, na heterogeneidade constitutiva bakhtiniana, materializando-se na seguinte definição de intertextualidade: “a inserção da história (sociedade) em um texto e deste texto na história.” (KRISTEVA, 1986, p. 39 apud FAIRCLOUH, 2001, p. 134). A semioticista, ao discutir Bakhtin, teoriza que o discurso literário para o círculo bakhtiniano funciona não como um sentido fixo, mas um intercruzar de planos textuais, um dialogismo dentre várias escrituras. O texto é construído a partir de uma concentração de citações. Trata-se de aderir a determinado texto para construir a partir deste outro texto. “O discurso (o texto) é um cruzamento de discursos (de textos) em que se lê, pelo menos outro discurso (texto).” (KRISTEVA, 1967, p. 438-435 apud FIORIN, 2012, p. 163). Para Discini (2016), o estilo é dialógico. “Em qualquer texto, a voz de outro dialoga com a voz de um, de maneira que o sujeito da enunciação não é único, mas dialógico.” (DISCINI, 2016, p. 223). Explica a autora que o “eu”, que podemos entender como autor ou ator da enunciação, assentado em uma totalidade de enunciados, donde para ser único precisa apoiar-se em uma totalidade, de modo de fazer e de ser, configura um modo de estilo. Essa unidade formal, o estilo, tem uma relação intrinsecamente dialógica com o “eu” da enunciação e com o outro. Fairclough (2001) estabelece uma relação absolutamente relevante sobre a intertextualidade e o conceito de hegemonia17. O autor acredita que o conceito de intertextualidade sinaliza para a produção de textos com uma especificidade: “transformar textos anteriores e reestruturar as convenções existentes (gêneros, discursos) para gerar novos textos.” (FAICLOUGH, 2001, p. 135). Contudo, é necessário salientar que a inovação textual pela intertextualidade é restrita socialmente e está subordinada a relações instituídas de poder. É possível distinguir dois tipos de intertextualidade manifesta: as verticais e as horizontais. A primeira consiste em intertextos, textos sob outros textos, amparados por um contexto que está relativamente distante ou imediato. A segunda, a orientação horizontal,

17 Por hegemonia, Fairclough (2001) entende que o conceito está ligado à liderança, assim como à dominação, especificamente nos campos econômicos, políticos e culturais de uma sociedade. Trata-se de poder das classes economicamente dominantes, associadas às forças sociais, que propiciam certo desiquilíbrio. “Hegemonia é a construção de alianças e a integração muito mais do que a dominação de classes subalternas, mediante concessões ou meios ideológicos para ganhar seu consentimento” (FAIRCLOUGH, 2001, p. 122). Esses meios ideológicos podem ser a escola, a família, a polícia e os sindicatos, e é dessa luta ideológica entre classes que se assenta a hegemonia de determinadas classes da sociedade civil em detrimento de outras. 76

consiste em um tipo dialógico de intertextualidade entre um texto e aquele que o precede. “Na intertextualidade manifesta, outros textos estão explicitamente presentes no texto sob análise: eles estão ‘manifestamente’ marcados ou sugeridos por traços na superfície do texto, como as aspas.” (FAIRCLOUGH, 2001, p. 136). Segundo Fairclough (2001), a intertextualidade provoca um realce sobre a heterogeneidade dos textos. Assim, o autor acrescenta:

Os textos variam muito em seus níveis de heterogeneidade, dependendo se suas relações intertextuais são complexas ou simples. Os textos diferem na medida em que seus elementos heterogêneos são integrados, e também na medida em que sua heterogeneidade é evidente na superfície do texto. Por exemplo, o texto de um outro, pode estar claramente separado do resto do texto por aspas e verbo dicendi, ou pode não estar marcado e estar integrado estrutural e estilisticamente, talvez por meio de nova formulação do original, no texto em sua volta. (FAIRCLOUGH, 2001, p. 137).

Isso quer dizer que os “textos heterogêneos podem ter uma superfície textual desigual e ‘acidentada’, ou relativamente regular.” (FAIRCLOUGH, 2001, p. 137). Essa designação de intertextualidade manifesta sugerida por Fairclough é também conhecida como heterogeneidade constitutiva (Bakhtin), intertextualidade mostrada, ou, como prefere Discini (2016), heterogeneidade mostrada. “A heterogeneidade mostrada é aquela em que o outro é deliberadamente mostrado pelo um, seja por ser imitado no discurso, seja por ser materializado na expressão textual.” (DISCINI, 2016, p. 224). O plano de um texto pode ser complementado por muitos outros textos, o que propicia uma determinidade ambivalente em sua construção composicional: uma multiplicidade semântico-textual. Essa multiplicidade intertextual pode mexer com o sentido do texto, como exemplifica Fairclough (2016, p. 137-138): “Os estudantes disseram o quanto eles gostam de flexibilidade e da variedade de escolha do curso.”; em se tratando de um discurso indireto, nesse caso, quem fala? Uma dúvida emana desta construção: a voz é dos estudantes, da administração da universidade, do autor do texto, de um repórter? Trata-se de uma intertextualidade manifesta ou heterogeneidade mostrada, donde o outro é deliberadamente mostrado, contudo goza de uma heterogeneidade complexa: não há o auxílio de travessão ou aspas. A intertextualidade manifesta e/ou heterogeneidade mostrada pode ser marcada ou não marcada. A forma marcada conta com o auxílio de travessão, de aspas ou de verbos introdutórios: afirmar, falar, declarar, postular, perguntar, complementar, discorrer, argumentar etc. A não marcada se caracteriza por uma diluição do outro no um. Trata-se da 77

distinção entre discurso direto e discurso indireto. No discurso direto, o tempo verbal dialoga com o presente, com o agora, e o limite entre a voz do narrador que relata e o discurso direto daquele que é relatado – o autor-narrador relata e a personagem é relatada – é expresso por palavras exatas. No discurso indireto, as aspas e os travessões desaparecem. É caracterizado, geralmente, pela utilização da conjunção “que”. Por exemplo: “‘Sra. Thatcher avisou aos colegas de Gabinete: ‘Eu não sou responsável por nenhuma deserção agora’. ‘Sra. Thatcher avisou aos colegas de Gabinete que não seria responsável por nenhuma deserção agora’.” (FAIRCLOUGH, 2001, p. 140).

2.2.3.a Intertextualidade constitutiva

A intertextualidade constitutiva e/ou interdiscurso associa-se à composição das convenções discursivas que entram em determinada produção, ou seja, seu gênero, seu discurso, seu estilo. Fairclough (1992) considera os termos intertextualidade constitutiva e interdiscursividade provenientes do mesmo significado; em outros termos, têm ambos os termos o mesmo sentido, em oposição à intertextualidade manifesta. Nas palavras do autor:

A intertextualidade manifesta é o caso em que se recorre explicitamente a outros textos específicos em um texto, enquanto interdiscursividade é uma questão de como um tipo de discurso é constituído por meio de uma combinação de elementos de ordem do discurso. (FAIRCLOUGH, 1992, p. 152).

Fairclough (1992), ao tratar de intertextualidade constitutiva, utiliza os seguintes termos: tipos de atividade, gênero, discurso e estilo. O autor considera haver entre esses tipos certa autonomia, um em relação a outro, sendo eles não estritamente iguais. Os gêneros, por exemplo, se correspondem com os tipos de prática sociais e o sistema de gêneros de uma determinada sociedade, que, em um tempo particular, determina as inter-relações entre os outros tipos de atividade, ou seja, entre discurso, estilo e gênero. Em Bakhtin, a questão da intertextualidade constitutiva é conhecida por dialogismo; todavia, se trata da necessidade de descartar as ideias equivocadas do dialogismo ser constitutivo do diálogo face a face, por exemplo. Segundo Fiorin (2012), o dialogismo só acontece entre discursos. O interdiscurso nasce e consta sempre das relações entre discursos de um locutor e um interlocutor, que são relações de embate discursivo. Trata-se de um modo 78

real de funcionamento da linguagem, um modo constitutivo da linguagem, que compõem discursos. Discursos compõem discursos de maneira real, uma realidade que se apresenta a nós semioticamente, “o que implica que nosso discurso não se relaciona diretamente com as coisas, mas com outros discursos, que semiotizam o mundo.” (FIORIN, 2012, p. 167). “Como não existe objeto que não seja cercado, envolto, embebido em discurso, todo discurso dialoga com outros discursos, toda a palavra é cercada de outras palavras.” (BAKHTIN, 1992, p. 319 apud FIORIN, 2012, p. 167). A translinguística bakhtiniana, ou seja, o dialogismo interdiscursivo, nada tem a ver com a estrutura da língua no que tange seu sistema, embora Bakhtin considere que o estudo da língua em sua estrutura fonética, fonológica, gramatical e sintagmática não deva ser desprezado: tal estudo revela importância para entender a língua como uma unidade. Entretanto, o sistema da língua não constitui um funcionamento real da linguagem. Esse funcionamento dar-se-á pelas relações dialógicas entre enunciados no funcionamento real da língua. “As palavras são as unidades da língua, enquanto os enunciados são as unidades reais de comunicação.” (FIORIN, 2012, p. 168). Os enunciados gozam de um autor e de uma autoria e as unidades da língua não.

2.2.4 Estilo e o discurso de outrem: Bakhtin/Volóchinov

Bakhtin/Volochínov (2009) trabalham a questão de autoria e estilo marcados pelo discurso de outrem. Trar-se-ia da enunciação na enunciação, o tema no tema, “um discurso sobre o discurso, uma enunciação sobre a enunciação.” (BAKHTIN/VOLOCHÍNOV, 2009 [1929], p. 150). Os autores ponderam haver dois tipos de estilo pela citação de outrem: o linear e o pictórico. O estilo pictórico é complexo e dele deriva a maioria dos discursos indiretos – categorizados por Bakhtin/Volochínov – e alguns discursos diretos. Trata-se de contornos narrativos na fronteira do discurso citado, que se materializam pelas apreciações discursivas do narrador no interior do discurso. Essas apreciações apagam as fronteiras entre o discurso citado indiretamente e o discurso do narrador. Em outras palavras, o estilo pictórico desenha a narrativa e ornamenta o discurso “a fim de colori-lo com as suas entoações, o seu humor, a sua ironia, o seu ódio, com 79

o seu encantamento e desprezo.” (BAKHTIN/VOLOCHÍNOV, 2009 [1929], p.157). Dentre os discursos pictóricos de caráter indireto, estão: os discursos indiretos analisadores do conteúdo (DIAC), os discursos indiretos analisadores da expressão (DIAE) e o discurso indireto impressionista (DII). Segundo Bakhtin/Volóchinov (2009 [1929]), o discurso indireto analisador do conteúdo (DIAC) emana de enunciações que estão enraizadas em contextos epistemológicos e retóricos – a filosofia, a política e a ciência –, pelos quais o narrador citará o discurso de outrem no intuito de bem delimitá-lo no interior do discurso narrativo. Todavia, advertimos não ser o DIAC uma exclusividade dos discursos filosófico, político e cientifico, pois pode também advir do discurso literário, por exemplo, sua manifestação. Entende-se que essa variante altera o diálogo interno e assume uma plasticidade discursiva oriunda de uma “preocupação nitidamente temática, transformando as falas das personagens em discursos ideológicos a serviço da orientação semântica/ideológica do autor.” (CASTRO, 2015, p. 49). A variante do discurso indireto analisador da expressão (DIAE) é uma ferramenta à disposição do autor que viabiliza expor em relevo as apreciações do narrador e dar expressão a elas – o sorriso, o sarcasmo e a ironia. Por outro lado, consente as apreciações da personagem, colocadas em primeiro plano com o auxílio das aspas, e estabelece, pelo discurso indireto, nas palavras de outrem, uma subjetividade e um estilo provenientes de uma expressão máxima da voz da personagem numa simbiose entre personagem-narrador no limiar do contexto narrativo. Ainda na esfera do discurso pictórico, encontra-se o discurso indireto impressionista (DII). Essa variante do discurso citado é representativa. Trata-se da transmissão do discurso interior, das emoções, das racionalizações, dos pensamentos e dos sentimentos da personagem no limiar do discurso do narrador. O narrador aqui é onisciente-intruso e, grosso modo, advinha, delineia e sugere os pensamentos e sentimentos vividos pela personagem. Dentre as variantes do discurso direto que compõe o estilo pictórico no discurso dialógico, compreende-se o primeiro deles como discurso direto preparado (DDP). Trata-se de um tipo de discurso que se manifesta em uma ocorrência particular proveniente do discurso indireto livre, que tem em sua composição de transmissão do discurso de outrem a temática básica do discurso direto, antecipado com as coloridas apreciações do autor. Nesse tipo de discurso, as fronteiras da enunciação de outrem ficam bastante esmaecidas. Bakhtin/Volóchinov (2009 [1929]) vão chamar de discurso direto esvaziado (DDE) mais uma variante do discurso direto. Nesse caso, o contexto narrativo é construído de forma que o discurso do herói se apresente como discurso direto, porém este está envolto a uma 80

densidade narrativa de contornos pictóricos, oferecida ao leitor pelo próprio autor. Ou seja, é um discurso direto, de certa forma, preparado pelo narrador antecipadamente, donde se esvai os contornos lineares característicos da citação direta. “De maneira semelhante, quando reconhecemos uma personagem cômica no palco por seu estilo de maquilagem, sua roupa e sua atitude geral, já estamos prontos para rir mesmo antes de apreender o sentido de suas palavras.” (BAKHTIN/VOLOCHÍNOV, 2009 [1929], p. 173). A variante mais completa do discurso direto dialoga com os contornos puntiformes do estilo pictórico e intensifica a relação das personagens com o contexto narrativo não apenas como uma difusão elétrica, mas também como uma pincelada geometricamente disforme, como a de Pablo Picasso. Chama-se essa variante de discurso citado antecipado e disseminado oculto (DCADO). Nela, a consciência do narrador e das personagens dá o tom da prosa, ou seja, as inferências, os julgamentos, as adjetivações e as definições que poderiam ser inseridos entre aspas costumam materializarem-se como se saídos da consciência de qualquer personagem, como uma pincelada sutil, uma interferência sapiente da voz do narrador na gênese da personagem. O estilo linear apresenta contornos exteriores bem definidos e se manifesta, prioritariamente, pelo discurso direto retórico (DDR). Segundo Castro (2014), o DDR é uma das poucas formas de estilo linear e acrescenta:

O DDR reproduz nos textos literários aquilo que comumente se observa nas nossas interações verbais, ou seja, perguntas ou exclamações retóricas que servem somente de artifício para preparar e entabular a sequência de um discurso qualquer. Essas perguntas ou exclamações podem aparecer de forma direta como fala da personagem (colocada entre aspas) ou do narrador, e a sequência que elas geram resulta num discurso partilhado semanticamente por ambos. (CASTRO, 2014, p. 56).

Para Bakhtin/Volóchinov (2009 [1929]), o discurso direto retórico goza de uma localização contextual atraente porque se assenta na fronteira discursiva entre a narração e o discurso de outrem, o discurso citado, e caracteriza-se, justamente, por sua inter-relação dialógica, ou seja, adentra diretamente em um ou outro discurso tanto com o auxílio extralinguístico das aspas como também pelos travessões. É, portanto, por meio dessas ferramentas que o DDR elabora contornos exteriores à narração bem definidos.

81

2.2.4.a Discurso indireto livre

Bakhtin/Volochínov (2009 [1929]) discordam de Tobler (1887) quando ele define o discurso indireto livre como uma “mistura” entre discurso direto e discurso indireto. A palavra “mistura” incomoda os russos do círculo bakhtiniano, por remeter a um sentido quase biológico, que implica uma inferência de inerência ou genética do discurso indireto livre como uma composição apenas fabricada pela junção conjectural dos dois discursos: direto e indireto. O círculo de Bakhtin entende o discurso indireto livre como uma “apreensão ativa da enunciação de outrem, de uma orientação particular da interação entre o discurso narrativo e o discurso citado.” (BAKHTIN/VOLOCHÍNOV, 2009 [1929], p. 182).

O falante, contando fatos passados, introduz a enunciação de um terceiro sob uma forma independente da narrativa, isto é, da forma que ela teve no passado. Fazendo isso, o falante transforma o presente da enunciação em imperfeito, para mostrar que a enunciação é contemporânea dos acontecimentos relatados. Depois ele, realiza outras transformações (das formas pessoais do verbo, dos pronomes) para que não se pense que se trata da própria enunciação do narrador. (BAKHTIN/VOLOCHÍNOV, 2009 [1929], p. 182).

Bakhtin/Volochínov (2009 [1929]), em seus estudos acerca do discurso indireto livre, ou seja, do estilo verbal e dialógico, consideram ainda outros autores. Entre eles está Kalepky (1899), que reconhece o DIL como uma forma absolutamente emancipada de citação do discurso de outrem. Goza de uma autonomia e define o discurso indireto livre como um discurso oculto ou velado. (BAKHTIN/VOLOCHÍNOV, 2009 [1929], p. 184). É nessa forma discursiva, o DIL, que se confundem totalmente a voz do narrador com a voz da personagem. A citação ocorre no limiar da narração, sem aspas – ou qualquer marcação. “A significação linguística dessa forma reside no fato de que é preciso adivinhar quem tem a palavra.” (BAKHTIN/VOLOCHÍNOV, 2009 [1929], p. 184). Segundo Bakhtin/Volochínov (2009 [1929]), os estudos de Kalepky (1899) foram de grande contribuição para essa perspectiva estilística por compreenderem a dualidade dessa orientação de estilo. Essa orientação reside no sentido de pensar a compreensão e a clareza de quem fala: o herói ou o narrador; o autor ou a personagem. Para Bakhtin/Volochínov (2009 [1929]), o que faz o discurso indireto livre uma forma estilística diferenciada é a maneira em que herói e/ou personagem se manifestam conjuntamente do autor e/ou do narrador. E é, portanto, no limiar da mesma construção sintática que se manifestam duas vozes distintas. 82

Bally (1912) deu a primeira designação dessa orientação estilística, que chama de “Style indirect libre.” (BAKHTIN/VOLOCHÍNOV, 2009 [1929], p. 185). Considera o autor ser o DIL uma forma tardia do discurso indireto que dialoga com o discurso direto. Trata-se de uma tendência do discurso direto na sua forma mais extremada. O autor sinaliza o DIL com a queda do “que” e pondera ser difícil determinar onde inicia o estilo indireto livre e onde começa o discurso direto. Lerch (1914) também trabalha elucidativamente nas questões do DIL ao conceitualizá- lo como “discurso enquanto fato.” (BAKHTIN/VOLOCHÍNOV, 2009 [1929], p. 188). Para o autor, se trata de uma forma estilística mais realista, ou seja, que conversa com a realidade no sentido de que seu efeito produz concretude e vivacidade expressa no conteúdo. “O discurso de outrem é transmitido dessa forma como se o conteúdo fosse um fato, relatado pelo próprio autor.” (BAKHTIN/VOLOCHÍNOV, 2009 [1929], p. 188). Lorck (1921) investiga o discurso indireto livre e amplia a ideia do DIL proposta por Lerch (1914) no que se refere à relação fato-realidade. Lorck (1921) traz o conceito de vida para o discurso indireto livre e chama-o de “Discurso vivido.” (BAKHTIN/VOLOCHÍNOV, 2009 [1929], p. 189). Segundo o autor, essa orientação estilística se fundamenta pela forma direta e sua apreensão. Trata-se do discurso de outrem apreendido pela representação de sua forma direta dentro do discurso do autor e/ou do narrador. Embora a conversação face a face, sua interação direta, seja parte consubstancial da vida, o DIL é uma forma de estilo que não cabe à oralidade, por ser, de certa forma, não transmissível a uma terceira pessoa, já que se trata do discurso de outrem vivido duas vezes: uma vez pelo primeiro autor, aquele criou o discurso em uso, e uma segunda vez por um segundo autor, que revive o discurso do primeiro autor em seu próprio discurso. O discurso indireto livre, portanto, não é uma forma discursiva para a conversação. Na oralidade, seria impossível definir de quem a pessoa fala e que voz representa; a sensação seria de alguém falando consigo mesmo ou sendo vítima de algum tipo de delírio ou alucinação. “O discurso indireto livre não é utilizado na conversação e serve apenas as representações de tipo literário. Aí, o seu valor estilístico é imenso.” (BAKHTIN/VOLOCHÍNOV, 2009 [1929], p.189). A imaginação faz parte da vida e o DIL, trabalhado assim, literariamente, funciona como vozes ouvidas em um sonho e, por isso, as inferências do leitor ao autor real e sua percepção do que é a voz do autor e do que é o discurso de outrem pela voz do autor se fazem necessária para a identificação desse estilo no contexto narrativo. 83

Bakhtin/Volochínov (2009 [1929]) exemplificam o discurso indireto livre com um excerto do poema narrativo Poltava (1828/1829), de Púchkin:

Mas ele (Kotchubei) escondeu no fundo do seu coração uma cólera temerária. Na sua dor, privado de forças, seus pensamentos voltam agora para o túmulo. Não quer mal a Mazepa, sua filha única é a culpada. Mas a ela também perdoa: que ela responda diante de Deus o ter esquecido o céu e a lei, o ter lançado a vergonha sobre a família... 18Entretanto, com seu olhar de águia ele procura no círculo dos seus familiares companheiros audazes, inquebrantáveis, incorruptíveis. (BAKHTIN/VOLOCHÍNOV, 2009 [1929]), p. 180).

Nota-se que o “ter esquecido o céu e a terra, o ter lançado a vergonha sobre a família” (BAKHTIN/VOLOCHÍNOV, 2009 [1929], p. 180) pode ser o discurso da própria filha de Mazepa dirigido a ele, Kotchubei. Pode ser, ainda, o discurso do próprio Kotchubei sobre suas impressões em relação à filha de Mazepa etc. Uma análise mais precisa denotaria do contexto narrativo uma reflexão mais aprofundada, todavia, de uma forma ou de outra, despende para a imaginação ou para o que Lerch chamou de “sensibilidade simpatizante.” (BAKHTIN/VOLOCHÍNOV, 2009 [1929], p. 192). Isto é, o discurso indireto livre permite apreender, por meio da sensibilidade, o significado mais adequado e/ou ainda, “dá a sensibilidade sua expressão mais adequada.” (BAKHTIN/VOLOCHÍNOV, 2009 [1929], p. 192). O discurso indireto livre (DIL) tem, portanto, como características: ser escrito, literário, expresso de forma velada, conta com a participação do auditório-leitor, com a imaginação, com a sensibilidade e pode ser entendido, grosso modo, como uma mistura dos discursos indireto e direto. Entretanto, não é só isso. O DIL é uma apreensão ativa do discurso de outrem no limiar da narração. Descarta, em alguns casos, o pronome relativo “que” de subordinação e dispensa as formas verbais introdutórias do discurso indireto e direto “pensou” e “disse”. Essa supressão dos verbos introdutórios ligados ao discurso direto e ao discurso indireto torna possível apresentar o enunciado da personagem-protagonista, por exemplo, como se ela mesmo estivesse ali, dizendo, por meio da voz do narrador, suas ideias e apreciações. Essa possibilidade faz do discurso indireto livre uma ferramenta notória de estilo para proporcionar aos heróis das narrativas e, também, ao narrador, maior vivacidade, vida e veracidade. As personagens e o narrador, com esse recurso, jogam com a sensação de trabalharem com os fatos e não apenas com pensamentos ou palavras.

18 Grifos nossos. 84

2.3 Gênero e disposição: construção composicional

“Uma das partes da retórica é a disposição. Nela, estuda-se como se ordenam os argumentos, como se organiza o discurso. Sua estruturação segue um plano, que é o que Bakhtin chamaria de construção composicional.” (FIORIN, 2015, p. 233). A construção composicional é a forma organizacional do discurso. Trata-se de sua estrutura formal. Para ilustrar, poderíamos associá-la à estrutura dissertativa: introdução, desenvolvimento e conclusão. Na Retórica clássica, é conhecida como dispositio: a disposição do discurso. “É na disposição que se estuda a melhor forma de ordenar e aplicar os argumentos e a organização do discurso. É precisamente, donde os argumentos são colocados em ordem.” (FIORIN, 2015, p. 233). Na disposição e/ou construção composicional, nada pode ficar fragmentado, tampouco em desordem, solto, impensado e não endereçado. O modelo discursivo deve se perpetuar e isso implica colocar os argumentos em seus devidos lugares. Depois, colocar dentro de cada parte da composição discursiva da disposição cada coisa no seu melhor lugar. Se assim for, teremos uma construção harmônica em que as partes conversarão entre si. Trata-se de um projeto arquitetônico proposto pelo orador-autor. “O orador constrói seu discurso como um arquiteto constrói um edifício.” (TRINGALI, 2014, p. 158). Fiorin (2008) utiliza a estrutura da carta e exemplifica que é necessário ancorar uma comunicação diferida em um tempo, em um espaço e em uma relação de interlocução, de modo que sejam compreendidos os dêiticos utilizados em determinada comunicação. As cartas trazem consigo uma forma, uma construção composicional, uma disposição: o local e a data em que foram escritas, o nome de quem escreve e para quem se escreve. Fairclough (2001) também evidencia um curioso tipo de atividade social que tem uma construção composicional bem definida:

A atividade de comprar produtos em uma mercearia envolve o freguês e o vendedor como tipos de sujeito designados, e uma sequência de ações, algumas das quais podem ser opcionais ou repetidas, conforme se segue: o freguês entra na loja e aguarda a vez; o vendedor cumprimenta o freguês. O freguês retribui o cumprimento, eles trocam amabilidades e solicita o pedido da compra; o freguês faz o pedido da compra (possivelmente precedido por uma sequência pré-pedido como: “Como estão as maças esta semana?” (– “Bem as ‘Coxes’ estão boas”); o vendedor apanha as mercadorias (pesa, empacota, etc.) e as entrega ao freguês. O freguês e o vendedor possivelmente conversam sobre se as mercadorias são aceitáveis, se a solicitação no peso solicitado são aceitáveis, etc.; o freguês agradece ao vendedor; o vendedor informa o freguês sobre o custo; o freguês paga; o vendedor dá o troco e agradece ao freguês; o freguês agradece ao vendedor e faz uma saudação de 85

despedida; o vendedor retribui a saudação de despedida. (FAIRCLOUGH, 2001, p. 163).

O modelo de construção composicional ideal, na perspectiva da retórica, é aquele que busca a persuasão, que é o objetivo final do discurso. Para isso, é necessária uma estratégia organizacional bem definida. Por exemplo, o discurso forense teve um papel pioneiro no avanço de uma construção composicional bastante organizada e coerente, ou seja, “coube ao discurso forense começar a construir um plano geral que, ao depois, se estendeu e se adaptou a outros gêneros.” (TRINGALI, 2014, p. 159). Na retórica aristotélica já havia uma concepção de gênero que nos direciona para uma compreensão mais acertada da disposição do discurso. Os gêneros retóricos são três: o deliberativo, o judiciário e o epidítico. O gênero deliberativo é direcionado para o auditório e/ou leitor na tomada de decisão. Nas assembleias – o orador-autor coloca o auditório nessa condição –, tem a finalidade de desaconselhar, aconselhar, de dissuadir, de exortar. O auditório e/ou leitor deve decidir a favor ou contra determinada causa. É um discurso que remete ao futuro. “O orador se posiciona como um conselheiro que delibera sobre o futuro por meio de um conselho de natureza política.” (FERREIRA, 2010, p. 57). “É, pois, um discurso que visa a deliberar sobre as questões do Estado, é um discurso político.” (FIORIN, 2015, p. 233). O gênero deliberativo move as paixões do auditório e, por isso, advém sempre de uma discussão acalorada. “No gênero judiciário, a problemática diminui, pois há maneiras de resolver a questão por meio de debates e verificações sobre a ocorrência de fatos.” (FERREIRA, 2010, p. 57-58). O judiciário tem os juízes como auditório. Trata-se de acusar ou defender. O homem bom e honesto e o homem desonesto; a justiça e a injustiça. É, portanto, assentado em juízo de valores e voltado ao passado. O gênero epidítico e/ou laudatório se dá a partir de um ato público em que o auditório e/ou leitor aprecia as questões já resolvidas. Trata-se de fazer um elogio ou, às vezes, uma censura. É denotar aprovação ou desaprovação, e o auditório reflete, não contesta. “Funda-se nos valores da beleza ou da feiura. Está apontado para o presente. É o gênero do discurso comemorativo, do elogio fúnebre, do panegírico.” (FIORIN, 2015, p. 233). A construção composicional e/ou disposição é um elemento da tríplice constitutiva dos gêneros do discurso; os gêneros, segundo Bakhtin, gozam de relativa estabilidade. Mas qualquer gênero do discurso precisa ter um norte, ser conexo, ter uma ordem. Mesmo as escolas da literatura vanguardista – os surrealistas se norteiam pela escrita automática – que 86

são regidas pelo inconsciente, teoricamente em desordem, têm nesse inconsciente uma ordem, um propósito: o desígnio do próprio inconsciente. Em outras palavras, para um gênero do discurso hibridizar-se, precisa estar bem fundamentado em sua disposição, ou seja, em sua construção composicional. Não é fácil consultar um texto e segui-lo se não houver planejamento; portanto, a construção composicional é fundamental e exerce uma influência didática no discurso. Trata- se da estrutura discursiva do enunciado. Uma padronização que responde a um determinado gênero do discurso. Tringali (2014, p. 160) argumenta que “uma longa experiência, haurida na produção e análise de discursos, levou a constatação que todo discurso apresentava a tendência de se compor de algumas partes invariantes.”. A organização do gênero do discurso é verificável pela constituição de cinco partes envolvidas em sua disposição, ou seja, na construção composicional, segundo Fiorin (2015): o exórdio, a narração, a confirmação, a digressão e a peroração. O exórdio significa a introdução do discurso. É pelo exórdio que o orador-autor conquista o auditório, prende sua atenção e expõe o tema que discorrera. Trata-se da apresentação da exposição discursiva, “o momento em que o orador estabelece identificação com o auditório, por meio de um conselho, um elogio, uma censura, conforme o gênero do texto em causa.” (FERREIRA, 2010, p. 112). Tem como objetivo despertar a benevolência no auditório-leitor, assim como buscar sua docilidade, sua adesão e apreender sua atenção. No exórdio “compete observar se as palavras do autor se adaptam aos desejos do auditório: o começo é simples e sem aparato ou é sofisticado? Como o orador demonstra autoridade para dizer o que diz?” (FERREIRA, 2010, p. 113). Há um nível representativo de importância em orador-autor proferir, já no exórdio, a ideia central que apoiará todo o desenvolvimento do discurso. O auditório e/ou leitor é preparado no exórdio para receber o orador-autor, por meio da introdução. O exórdio deve motivar o auditório e/ou leitor, que deve sentir-se acolhido e inspirado a continuar a ouvir o discurso. O orador-autor deve proferir seu discurso com clareza. Deve parecer-se simples e transmitir-se calma. Segundo Tringali (2014), há cinco elementos no exórdio: a saudação, a apresentação do orador, o encaminhamento do assunto, um mote e uma prece. A saudação deve responder a uma hierarquização social de acordo com o destinatário e deve parecer gentil com as pessoas escolhidas pelo orador-autor; precisa respeitar as características de caráter social de quem ouve ou lê o discurso. A apresentação do orador, se este não foi apresentado previamente, deve fazer-se ouvir, mostrando-se, deixando se ver. No encaminhamento do assunto, o 87

orador-autor oferece ao auditório e/ou leitor o problema em questão ao iniciar sua narrativa. O mote é uma inspiração, que deve acompanhar todo o discurso. Trata-se de uma sugestão em prosa ou verso que seja uma citação imersiva pelo todo discursivo. A prece se destina ao discurso sacro de Santo Agostinho, por exemplo. Deve-se admitir que no exórdio não se devesse prometer aquilo que não se cumprirá, ou seja, é aqui que se estabelece a primeira comunicação. Portanto, o orador-autor deve agradar seu leitor e/ou ouvinte e parecer agradável, conseguir a adesão do auditório-leitor pela simpatia, pelo querer bem, com o intuito de cativá-lo. Trata-se da necessidade de apreender a atenção do leitor e/ou ouvinte de maneira que “se concentrem na exposição do orador, dada a relevância do assunto, não se distraindo, evitando assim os “ruídos”, que perturbam a comunicação.” (TRINGALI, 2014, p. 162). Na narração, pressupõe-se a exposição dos fatos; contam-se os acontecimentos. A narração é uma constatação do desenvolvimento discursivo; é, portanto, constitutiva do discurso. Nela se dá a contextualização das questões e dos problemas; ela está a serviço da argumentação. A narração trata da viabilização pela exposição detalhada do conteúdo e dos fatos que o circunscrevem. É, grosso modo, a questão pela qual se discutirá a causa do problema. Trata-se de discorrer detalhadamente de maneira objetiva o discurso e verificar a clareza em que é proferido. Na narração, o discurso é ressaltado: “enunciam-se o fato com suas causas (judiciário), dão-se exemplos (deliberativo), ilustra-se o texto com episódios que ressaltem as qualidades (epidítico).” (FERREIRA, 2010, p. 113). Na narração deve-se buscar um objetivo, a exposição, conforme a sua conveniência: “os fatos devem ser contados na ordem mais vantajosa. O orador destaca o que mais lhe convém. O que acima de tudo importa é que a narrativa seja adequada aos objetivos da argumentação e se possível seja atraente.” (TRINGALI, 2014, p. 165). A peroração é a última parte da disposição, da construção composicional do discurso. É nela que o orador-autor resgata, recapitula e conclui o discurso com o intuito de elevar-se e amplificar aquilo que foi dito. Procura despertar paixões, como a cólera, a compaixão, a calma etc. para finalizar seu discurso e envolver seu auditório e/ou leitor, pela afetividade amalgamada à argumentação. Nas palavras de Tringali (2014, p. 167), a peroração é “o momento decisivo,” o “grand finale”, e dela resultam as seguintes partes:

A amplificação – A amplificação pode aparecer em outras partes do discurso, mas só no final encontra-se seu lugar. Pelo que mais abaixo, se cuidará da amplificação como uma das partes eventuais e móveis de todo discurso. 88

A conclusão – entre o que se recapitula o mais impotente é a conclusão geral do discurso. Nota-se que a conclusão não é exclusiva e peculiar da peroração. Ela é mais forte na invenção quando se monta a argumentação.

O apelo ao patético – sendo este o momento mais propício para comover, embora não exclusivamente. Com esse objetivo é frequente lançar-se mão de prosopopeias, apóstrofes... (TRINGALI, 2014, p. 167).

Essa relação que Fiorin (2015) estabelece entre dispositio e construção composicional é muito rica e elucidativa, levando-se em consideração que, embora se fale e se teorizem muito sobre gêneros, pouquíssimos trabalhos se preocupam em definir o que é construção composicional. Esse elemento dos gêneros do discurso não tem uma conceituação clara. Fiorin (2015) chama a construção composicional e/ou disposição de plano, e acrescenta, acertadamente, que “o plano, portanto, é uma organização formal, que, como em qualquer gênero do discurso, que não admite uma padronização absoluta (BAKHTIN, 1992: 300), admite certa liberdade ao enunciador.” (FIORIN, 2015, p. 233).

2.4 O gênero do discurso pela visão de Medviédev

O gênero, para Medviédev (2012), representa o todo da obra em sua completude enunciativa; é o todo do enunciado. “Uma obra só se torna real quando toma a forma de determinado gênero.” (MEDVIÉDEV, 2012, p. 193). O gênero tem relação direta com a arte, de modo geral. Isso quer dizer que, assim como a literatura, outras formas de arte, como as artes plásticas, também gozam de um acabamento, de uma totalidade resolvida e essencialmente acabada em seu todo. Esse acabamento é o que determinamos como gênero. Por exemplo, dentro da esfera de atividade humana das artes plásticas, temos o todo acabado do gênero escultura: seus elementos constitutivos, sua linguagem, seu tipo. Assim como na tela de arte temos o todo deste gênero: a pincelada, o artista, o autorretrato, o quadro, o suporte da tela etc., que são elementos constitutivos do acabamento no gênero quadro de arte. Para Medviédev (2012), o acabamento é um problema essencial para a definição de gênero e exemplifica o problema pela comparação entre a arte e a ciência:

É suficiente dizer que, com exceção da arte, nenhum campo da criação ideológica conhece o acabamento no sentido próprio da palavra. Fora da arte, todo acabamento, todo final, é convencional e superficial e, antes de tudo, determinado por causas 89

externas, e não pelo acabamento interno e exaurido do próprio objeto. A finalização de um trabalho científico tem esse caráter relativo. Na realidade, um trabalho científico nunca finaliza: onde acaba um, continua outro. A ciência é uma unidade que nunca pode ser finalizada. Ela não pode ser fragmentada em uma série de obras acabadas e autônomas. (MEDVIÉDEV, 2012, p. 194).

Ainda segundo Medviédev (2012), não se deve confundir o acabamento com a finalização. A finalização, no caso de uma obra de arte, dar-se-á pela sua perpetuidade histórica, ideológica e social. “Cada arte, dependendo do material e de suas possibilidades construtivas, tem suas maneiras e tipos de acabamento.” (MEDVIÉDEV, 2012, p. 194). A arte associada e fragmentada em gêneros torna possível pensar em categorias de acabamento, que representam o todo da obra. “Cada gênero é um tipo especial de construção e acabamento do todo e trata-se de um tipo de acabamento temático e essencial, e não convencional e composicional.” (MEDVIÉDEV, 2012, p. 194). O gênero, abordado em sua relação intrínseca e temática com a realidade, tem uma percepção, um olhar próprio, de entendimento da própria realidade, que está acessível somente a ele, a seu estilo e a sua composição. Por exemplo, uma instalação artística, fundamentada com esculturas que permitem brincar com o espaço alcançará dimensões espaciais dentro de uma sala de museu de um modo que uma pintura, limitada pelo suporte espacial da tela, não alcançaria. Os elementos da tela e das esculturas e o espaço de ambos são distintos, díspares. Na literatura, o meio de expressão é igualmente artístico, porém escrito, e o suporte é tradicionalmente o livro; contudo, motivados pela palavra, os gêneros, nesse caso, assim como nas artes plásticas, gozam de uma apreensão da própria realidade que difere de gênero para gênero. O gênero lírico apresenta uma composição diferente da do romance, por exemplo. A forma de apreensão do mundo na poesia também é diferente. As biografias também diferem das novelas; as biografias têm como elemento principal a vida real, verificável, e as novelas se valem da ficção, daquilo que gostaríamos que fosse real, a verossimilhança. “Cada um dos gêneros efetivamente essenciais é um complexo sistema de meios e métodos de domínio consciente e de acabamento da realidade.” (MEDVIÉDEV, 2012, p. 198). A linguagem, seja ela pela cor, pelo gestual, pelo verbal ou pelo verbo-visual, é um meio ideológico eficaz de apreensão da realidade. Ou seja, o homem entende sua realidade com a ajuda da língua. Todavia, essa informação não goza de uma verdade completa. Não é a língua, genuinamente, que permite a totalidade da compreensão ideológica do mundo, mas estritamente o diálogo entre enunciados, que não é uma forma apenas linguística. “Pensamos 90

e compreendemos por meio de conjuntos que formam uma unidade: os enunciados. O enunciado não pode ser compreendido como um todo linguístico, e suas formas não são sintáticas.” (MEDVIÉDEV, 2012, p. 198). Os enunciados tratam da linguagem no mundo e orientam o homem na apreensão da própria realidade. Segundo Medviédev (2012), a consciência humana goza de variados gêneros interiores, que auxiliam na compreensão da realidade, e é a partir dessa interioridade humana, influenciada pelo meio ideológico do homem, que “uma consciência é mais rica em gêneros, enquanto outra é mais pobre.” (MEDVIÉDEV, 2012, p. 198). Tanto a literatura quanto as artes plásticas enriquecem a compreensão de mundo e têm forte participação no desenvolvimento ideológico e humano, fundamentais para a tomada de consciência e apreensão da realidade. Nossa consciência, ao ter contato com a arte, se perde das funções finalizadoras do gênero, porque, nesse caso, a consciência, a priori, tenta entender o que se lê. Contudo, tanto na literatura quanto nas artes plásticas, o artista deve compreender e apreender a realidade a partir da perspectiva de gênero. “É impossível separar o processo de visão e de compreensão da realidade do processo de sua encarnação artística dentro das formas de determinado gênero.” (MEDVIÉDEV, 2012, p. 199). Embora, nas artes plásticas, o texto esteja sempre ligado à obra de arte, designando, colorindo, analisando, idealizando e ajudando a construir uma ideia associada a um valor, tratar-se-ia de uma ingenuidade considerar que o espectador-leitor vê determinado trabalho e, logo, retrata fielmente o que o artista viu. A perspectiva de quem vê um trabalho de arte sofre influência do texto associado à obra e também a influência do conhecimento de mundo de quem vê. “Na verdade, a visão e a representação geralmente fundem-se.” (MEDVIÉDEV, 2012, p. 199). Para Medviédev (2012), na literatura o processo de representação acontece da mesma maneira. O autor pondera que o artista deve considerar a realidade pela perspectiva de gênero. É somente pela expressão que aspectos singulares da realidade, depois de relacionados, são mais facilmente compreendidos. Por exemplo, para escrever um romance é adequado olhar para a vida pelos olhos da fábula – gênero do discurso – e pela verossimilhança, aprofundando-se discursivamente em aspecto ofertado pela própria vida presentes na história de cada um de nós. “O domínio da época em seus diferentes aspectos – familiar, cotidiano, social ou psicológico – acontece em uma ligação ininterrupta com os meios de representação.” (MEDVIÉDEV, 2012, p. 199). Trata-se de construção e reconstrução genérico-discursiva por meio da representação do mundo; criar um romance a partir da fabulação da vida. 91

Há, portanto, uma inter-relação imanente entre gênero e realidade. Tratar-se-á, o gênero, então, de uma busca na direção de uma realidade social, representação do real e uma realidade construída. O artista, por um lado, consegue ver a vida de modo filosofado, poetizado, representado; o cientista, por outro lado, não conseguirá ver a vida ou conseguirá menos. Para se dominar a ciência associada a determinado gênero, o cientista se cerca de meios, justificativas, objetivos, categorias e métodos no intuito de assenhorear-se dela. O cientista é capaz de se apropriar de outros aspectos de ligação com a vida, diferentemente do biografo ou do romancista. O gênero é, portanto, um agrupamento de meios que se orientam coletivamente em busca da realidade; que são capazes de entender, compreender e ampliar aspectos inerentes a esta e origina-se a partir da comunicação ideológica e das relações sociais.

2.5 Gênero e sociorretórica: uma breve exposição

Temos maior consciência de gêneros quando encontramos algum novo e precisamos de alguma orientação para o que está acontecendo. Charles Bazerman

A sociorretórica, especificamente em Bazerman (2015), discute os gêneros e a escrita em uma perspectiva sociológica, retórica, pelo olhar do cotidiano. Em outros termos, ao considerar o texto do dia a dia, o escritor cotidiano se orientará no texto que produz por uma situacionalidade. Essa situação transforma o gênero em uma ação social. Uma definição da sociorretórica bastante elucidativa para gênero envereda por um caminho conceitual simples: gênero é saber onde se está. Quando, por exemplo, elencamos uma esfera de atividade humana, a jornalística, e adentramos nela, poderemos transitar em alguns gêneros dessa esfera: artigo de opinião, crônica, reportagem, entrevista, carta ao leitor etc. Se lemos uma entrevista jornalística, sabemos que nos depararemos com uma alteridade que prevê, no mínimo, dois enunciadores: o entrevistador e o entrevistado. A escrita está além do tempo e do espaço e pode fugir de conjunturas sociais, de relações e de um funcionamento imediato. Portanto, nessa situação, a interação deve ser um 92

construto da imaginação do escritor.19 O leitor deve ser desenhado pelo escritor, que, por sua vez, depende do leitor para uma reconstrução dessa interação. Bazerman (2015) assenta sua exemplificação no gênero carta, por ser um gênero absolutamente completo, constituído pela sua própria construção composicional como um gênero interacional na essência. “Tipicamente anunciam o escritor e o receptor pretendidos, frequentemente são datadas e marcadas pelo seu lugar de origem.” (BAZERMAN, 2015, p. 31). De fato, a carta não é apenas um gênero do discurso, mas também uma ferramenta social situada historicamente. Grandes autores literários, pintores, filósofos e cientistas trocaram cartas no decorrer da história. Algumas dessas cartas se tornaram verdadeiras obras de arte e é fácil entender os motivos: a assinatura, o nome próprio, especificações das relações entre os participantes, suas saudações, a situação em que a carta foi narrada, seu exórdio, o período histórico, a forma em que foi escrita etc. As cartas, portanto, gozam de marcadores sociais, interacionais, de sociabilidade, donde o leitor pode perfeitamente localizar-se no lugar, no tempo e no espaço. Além disso, pode-se considerar a carta um gênero do discurso inicial para a escrita, que remete à conversação face a face, imita o diálogo presencial e solidifica a relevância social da escrita do gênero e do discurso ao longo do tempo. A simples ideia de remetente e destinatário do gênero carta ajudou, por meio da escrita, à criação constitutiva de outros gêneros do discurso igualmente úteis para a comunicação e para o desenvolvimento humano: as notícias, os romances literários, os épicos, as poesias. Ajudou também a atribuir forma e significado a gêneros escritos do dia a dia: “relatórios comerciais, revistas científicas, jornais e revistas e até instrumentos financeiros como as cartas de crédito, cheques e papel moeda.” (BAZERMAN, 2015, p. 32). É fato que, na contemporaneidade, com a velocidade das informações, novos gêneros do discurso, digitais ou não, foram aparecendo, e o letramento social, com essa diversidade de textos que se conhece no dia a dia, ganha relevância social de pertinente expressão. Quando desconhecemos um gênero, logo tendemos a pesquisar mais sobre ele, e, para isso, se faz uso de outros gêneros escritos para chegarmos ao entendimento daquele que nos é desconhecido. Assim como na carta, se mandamos uma mensagem de WhatsApp, conhecemos nosso destinatário, e sabemos, hoje em dia, se ele recebeu nossa mensagem ou não de maneira quase que imediata. Podemos também receber a resposta do destinatário quase que imediatamente,

19 Lembremos que escritor, nessa concepção, difere de autor. O autor publica sua obra. 93

assim que a mensagem chega. Trata-se de um gênero digital que remete à conversação face a face, assim como o gênero carta de outrora, por exemplo. Gêneros gozam de características que estão além da sua forma e de seu conteúdo e são fundamentais para a escrita, à medida que trabalhar determinado gênero significa escrever dentro de determinado contexto; os gêneros ajudam a contextualizar a escrita. Quando se pensa em determinado gênero para escrever, como o conto, a crônica, a poesia e a biografia, o pesadelo da página em branco é atenuado. Os gêneros dão um “empurrãozinho” para se começar a escrever. Os gêneros são um meio de realização. O gênero objetiva a escrita, que se assenta em uma materialidade genérico-discursiva pré-estabelecida historicamente. Além disso, o gênero avisa previamente o leitor sobre o texto que ele vai ler. A intertextualidade é abordada também por Bazerman (2015) como uma categoria facilitada pela noção de gênero. Se pensarmos na esfera de atividade humana, no cinema, a sétima arte, o diálogo intertextos é absolutamente rico. Um exemplo claro de intertextualidade é o filme Jogador Nº 1, de Steven Spielberg, (2018), donde o enredo se passa no futuro e a preferência dos protagonistas está em viver pela realidade virtual. Dentro dessa realidade virtual, os protagonistas vivenciam experiências que conversam com alguns filmes de aventura de Spielberg, como Jurassic Park (1993) e De Volta para o Futuro (1985), além de referências ao gênero do discurso suspense, com a menção ao Alien, o oitavo passageiro (1979), dirigido por Ridley Scott, e ainda uma visitação dos protagonistas ao filme O iluminado (1980), clássico de terror psicológico de Stanley Kubrick. Portanto, dentro do gênero aventura-fantasia de Jogador Nº 1, a ação das personagens se ajusta a situações sociais, históricas e culturais já desenvolvidas e “relaciona-se a textos anteriormente escritos que são relevantes a esse sistema de atividade.” (BAZERMAN, 2015, p. 35). Os gêneros, de modo geral, se inserem em um modo de atividade comum a nós, donde nos reconhecemos e nos localizamos historicamente, no tempo, na nossa própria vida, nas histórias de vida do nosso auditório-leitor por meio dos textos, da escrita e, portanto, está além da forma textual propriamente dita. O gênero representa uma inserção da escrita e do texto na vida do homem constituído sócio-históricamente como uma categoria socialmente reconhecível, amparada por uma construção composicional discursiva.

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2.6 O gênero pela visão de Todorov

Sabemos que cada interpretação da história se faz a partir do momento presente, assim como a do espaço se constrói a partir daqui, e a do outro a partir do eu. Tzvetan Todorov

Os estudos de gênero, de modo geral, receberam, aproximadamente, nos últimos 30 anos, uma variedade substancial de ponderações, categorizações e definições. As considerações atuais sobre gênero divergem das conceituações que reconhecem tipos textuais quase sinonimicamente como gêneros textuais. O conceito de gênero e tipologia textual são coisas distintas, já que o conceito de gênero ficou associado a uma variedade de textos inseridos em uma esfera social de atividade. Alguns estudiosos, nas mais variadas disciplinas – linguística aplicada, retórica, estudo da escrita, inglês como língua estrangeira, análise crítica do discurso, teoria literária –, estão investigando os gêneros como uma ferramenta retórica eficaz, porque, ao considerá-lo um constructo retórico e responsivo de interação, em situações recorrentes na língua, o gênero funciona como um recurso significativo, dentre outras coisas, para explorar aquisição de letramento, por exemplo. Além disso, os gêneros podem ser atribuídos acertadamente a determinado campo de atividade humana e seu funcionamento, o que implica condições sócio-históricas de produção. “O gênero passou a ser menos como modo de organizar tipos de texto e mais como um poderoso formador de textos, sentidos e ações sociais, ideologicamente ativo e historicamente cambiante.” (BEWARSHI-REIFF, 2013, p. 16). Os gêneros, no século XIX, já não eram mais tão fechados em seus cânones, ou seja, o romance poderia gozar de elementos da biografia e a poesia de elementos da prosa. Então, “poesia, romance, parecem se desagregar.” (TODOROV, 2018, p. 59). A literatura parece sofrer, e os autores também, pois a literatura não suportava mais a divergência dos gêneros, que ansiavam em pedir desquite de suas estruturas rígidas. Blanchot (TODOROV, 2018, p. 60) fala acertadamente dessa desagregação: “o que importa é apenas o livro, tal como ele é, longe dos gêneros, para além das rubricas, prosa, poesia, romance, testemunho, dentro das quais ele se recusa a se encaixar e às quais nega seu poder de fixar seu lugar e de determinar sua forma”. Para Todorov (2018), se entendermos que determinada obra desobedece a seu gênero, isso não torná-lo-ia inexistente. Ou seja, para que haja transgressão de um determinado 95

gênero, ou melhor, da construção composicional desse gênero, essa estrutura precisa existir. Se um poema é escrito em prosa, ele é transgrediente à construção composicional primeira, que é, tradicionalmente, o verso. Todorov (2018), ao fazer a pergunta sobre a origem dos gêneros e de onde eles vêm, responde imediatamente: “Simplesmente, dos outros gêneros.” (TODOROV, 2018, p. 63). E acrescenta:

Um novo gênero é sempre a transformação de um ou de vários gêneros antigos: por inversão, por deslocamento, por combinação. Um “texto” de hoje em dia (isso também é um gênero, em um de seus sentidos) deve tanto à “poesia” quanto ao “romance” do século XIX. Nunca houve literatura sem gênero, esse é um sistema em contínua transformação, e a questão das origens não pode deixar, historicamente, o terreno dos próprios gêneros; no tempo, não há antes dos gêneros. (TODOROV, 2018, p. 64).

“Os gêneros são classes de textos” (TODOROV, 2018, p. 64), ou seja, se trata de uma categoria classificatória. A literatura, por conseguinte, é textual. Todorov (2018) considera que texto e discurso são usados sinonimicamente e explica que se trata de um erro. O texto, segundo o autor, poderia ser descrito – por alguém – como uma sequência de frases. Todorov (2018) associa o texto à frase e enunciação ao discurso. “A frase é uma combinação de palavras possível e não tem uma enunciação concreta.” (TODOROV, 2018, p. 65). Para o autor, o contexto social determina o discurso pela enunciação. “Um discurso não é feito de frases, mas de frases enunciadas ou, mais suscintamente, de enunciados. Ora, a interpretação do enunciado, é determinada, por um lado, pela frase que se enuncia e por outro, por sua própria enunciação.” (TODOROV, 2018, p. 65). A enunciação pressupõe um locutor que enuncia, um receptor a quem o enunciado se dirigi e o discurso, que antecede o enunciado e que também o sucede em “um contexto de enunciação.” (TODOROV, 2018, p. 65). Os gêneros e sua existência histórica são distintos pelo discurso sobre o gênero. Trata- se de um encontro discursivo entre dois conceitos: o de gênero e o de discurso. Todorov (2018) chama esse encontro discursivo de metadiscursivo: porque fundamentado nos testemunhos ao longo da história sobre gênero, o autor conclui que a conceitualização de gênero tratar-se-ia de um discurso do discurso, ou seja, um discurso metadiscursivo sobre gêneros que são discursivos em sua essência. Segundo Todorov (2018, p. 67), os gêneros podem ser abalizados sob duas perspectivas: “o da observação empírica e o da análise abstrata.”. O autor complementa: “em uma sociedade, institucionaliza-se a recorrência de certas propriedades discursivas, e os textos 96

individuais são produzidos e percebidos em relação à norma que constitui essa codificação.” (TODOROV, 2018, p. 67). Leiamos, nas palavras exatas de Todorov (2018) sobre os gêneros e o discurso, o que são as propriedades discursivas:

“Propriedade discursiva” é uma expressão que compreendo em um sentido inclusivo. Todos sabem que, mesmo que nos atenhamos apenas aos gêneros literários, qualquer aspecto do discurso pode se tornar obrigatório. A canção se opõe ao poema por traços fonéticos; o soneto é diferente da balada em sua fonologia; a tragédia se opõe à comédia por elementos temáticos; o conto de suspense difere do romance policial clássico pela organização de sua intriga; por fim, a autobiografia se distingui do romance porque o autor pretende contar fatos, e não construir ficções. (TODOROV, 2018, p. 68).

Todorov (2018) conecta a questão do gênero com o ato de fala. A diferença de um ato de fala para outro ato de fala, entre um gênero e outro gênero, situa-se em qualquer nível ou lugar do discurso. “Os gêneros funcionam como uma instituição” (TODOROV, 2018, p. 69), e seu funcionamento se dá para os autores como um ideal de escrita, um modelo a ser seguido. É pelo caminho institucional que os gêneros conversam com a sociedade em que eles estão inseridos e daí atuam em esferas de atividade. Os atos de fala estão inseridos em qualquer sociedade e essa realidade, portanto, permite pensar nos gêneros não literários como processo inerente à atividade humana. Ao admitir que todos os gêneros são provenientes de atos de fala, Todorov (2018, p. 70) se pergunta: “como explicar que os atos de fala não produzem gêneros literários?”. Essa resposta se relaciona com a ideia de que cada sociedade, de acordo com sua ideologia, que é marcada por um dado, por um momento histórico, possui gêneros sociais que revelam uma ideologia. Os mesmos gêneros podem ser ausentes em outra sociedade, porque obedecem a outro tipo de ideologia. Os heróis coletivos da Ilíada, por exemplo, gozam de uma concepção diferente do romance moderno que possibilita o herói individual. Essas escolhas autorais se submetem à ideologia dominante de determinada época de acordo com o quadro ideológico que o gênero ali manifesta. Há, portanto, alguma diferença substancial entre os atos de fala e os gêneros literários? “Rezar é um ato de fala; a prece é um gênero (que pode ou não ser literário): a diferença é mínima. Mas, para tomar outro exemplo: contar é um ato de fala, e o romance, com certeza, um gênero que conta algo.” (TODOROV, 2018, p. 73). E, se pensarmos no soneto, esse é um 97

gênero literário clássico, que não é uma atividade verbal. Em outras palavras, não se sai oralmente “sonetando”20 por aí. O gênero se define historicamente amalgamado as propriedades discursivas, que sofrem com a ausência de dois componentes dessa conceitualização discursiva: as realidades histórica e discursiva. Para Todorov (2018), a realidade discursiva da poética, por exemplo, está nos níveis do texto, nos modos, nos registros, nas formas e no estilo. “O ‘estilo nobre’ ou a ‘narrativa em primeira pessoa’ são bem realidades discursivas, mas não podemos fixá-las em um único momento de tempo.” (TODOROV, 2018, p. 71). Na realidade histórica, a associação com o gênero ocorre pela história literária do mundo circunscrita por instituições sociais e ideológicas como a escola. É a partir dessa proposição, relativa a gêneros do discurso, que pensamos em discutir dois gêneros de uma esfera de atividade humana de reconhecida importância: a reportagem (jornalismo) e a biografia (literatura). Olhemos no próximo capítulo as características provenientes do gênero do discurso reportagem, sua estrutura, suas ramificações e suas relações com outros gêneros reconhecidamente jornalísticos, por exemplo, a entrevista e a notícia.

20 Grifo nosso. 98

3 A REPORTAGEM: UM GÊNERO DO DISCURSO

Dentre os gêneros do discurso que compõem a esfera jornalística, temos a entrevista, o editorial, a coluna, o artigo de opinião, a notícia, a crônica e a reportagem. Todos eles são produzidos por um locutor, um autor, em uma atividade socioprofissional que é o jornalismo. Segundo Melo (2003) o maior desafio da esfera jornalística é estabelecer-se com cientificidade. Para o autor, o jornalismo está carente de uma identidade como campo de conhecimento. Isso acontece, possivelmente, “pela captação, registro e difusão da informação da atualidade” (MELO, 2003, p. 42), que são sistematizados pelos recursos imanentes à sociedade: processos sociais. Complementa Melo (2003):

Tais processos, que envolvem de um lado as instituições jornalísticas e de outro as coletividades em que atuam, articulando-se necessariamente com o organismo social de que se nutrem e se transformam, podem ser imediatamente observáveis através do relato que constitui seu traço marcante. Em outras palavras, do seu discurso manifesto. Dos escritos, sons e imagens que representam e reproduzem a atualidade, tornando-a indiretamente perceptível. (MELO, 2003, p. 42).

Os gêneros jornalísticos consubstanciam-se do estilo que determinado jornalista tem de se expressar, mas, sobretudo, pelo relato informativo. Todavia, a linguagem deve ser clara, do dia a dia, efetivamente fomentadora e interessante. Melo (2003) conceitua acertadamente que “a essência do estilo jornalístico estaria na tentativa de fazer o relato do cotidiano utilizando uma linguagem capaz de estar sintonizada com o que Martín Vivaldi chama de ‘linguagem da vida.” (MELO, 2003, p. 42). O estilo está ligado intrinsecamente aos gêneros jornalísticos. Melo (2003) separa em classificações europeias e norte-americanas, hispano-americanas e em classificações brasileiras. Discutiremos, neste momento, as classificações brasileiras, levando-se em consideração a noção de gênero ligado ao estilo e as categorias a que cada gênero está associado. Baseado na classificação de Beltrão (1972), Melo (2003) apresenta três categorias de gêneros jornalísticos:

A) Jornalismo informativo 1. Notícia 2. Reportagem 99

3. História de interesse humano 4. Informações pela imagem

B) Jornalismo interpretativo 5. Reportagem em profundidade

C) Jornalismo opinativo 6. Editorial 7. Artigo 8. Crônica 9. Opinião ilustrada 10. Opinião do leitor

A primeira categoria, jornalismo informativo, é a categoria que mais efetivamente nos interessa, por se tratar de uma classificação absolutamente funcional. A partir dessa perspectiva de Beltrão (1972), donde o autor, de maneira clara, vai ponderar serem essas as funções dos gêneros jornalísticos de informação, na aproximação com o seu público-alvo, auditório, leitor: “informar, explicar orientar”. (MELO, 2003, p. 60). Segundo Melo (2003, p. 60), considera-se que o procedimento jornalístico, como uma atividade profissional informativa e formadora de opinião, deve sempre estabelecer-se pela seriedade, ou seja, não tem lugar para a diversão. Necessita configurar-se pelo “universo estrito do real, da verdade, da atualidade.” (MELO, 2003, p.60). Para Melo (2003), Beltrão (1972), em sua classificação, comete alguns equívocos – por exemplo, ao categorizar reportagem e reportagem em profundidade, separando-as em dois gêneros. O autor acrescenta:

Na verdade afiguram-se nos como espécies de um mesmo gênero – a reportagem – uma, a pequena reportagem (inevitavelmente superficial pela contingência da celeridade com que os fatos devem ser divulgados no seu acontecer); outra a grande reportagem (naturalmente mais profunda, pela disponibilidade de tempo que se oferece ao repórter ou a equipe de reportagem para pesquisar, refletir, avaliar, distanciando-se, portanto, da pressão analítica que caracteriza os relatos jornalísticos imediatos). (MELO, 2003, p. 60-61).

Daí parece que se dá a diferença entre as reportagens factuais e as reportagens documentais. As factuais nascem da celeridade que os fatos têm para serem divulgados. 100

Emanam de reportagens menores, dinâmicas de fatos do cotidiano, por exemplo, uma ponte que caiu, um engavetamento na Marginal Tietê etc. A reportagem documental é o que Beltrão chama de reportagem em profundidade, já que, para que seja constituída, necessita de pesquisa, reflexão e uma aprofundada avaliação conceitual: uma análise dos relatos imediatos. A conceituação de Beltrão (1972) que condiz com a classificação opinião do leitor caracteriza-se por gêneros do discurso muito conhecidos por todos nós: a carta ao leitor (popularizada por jornais como a Folha de S. Paulo e a revista Veja), os depoimentos, as enquetes e as entrevistas. Melo (2003) chama atenção para uma pequena confusão entre a manifestação do leitor, como a carta, que é uma interferência do leitor de forma espontânea, e a coleta jornalística de informações pela sociedade, por meio do depoimento, da enquete e da entrevista. O autor complementa assertivamente:

Parece-nos que existe aí uma certa confusão entre o discurso autônomo do leitor na estrutura do processo jornalístico e os mecanismos utilizáveis para captar as informações ou opiniões na sociedade. Nesse caso, as enquetes e os depoimentos, seriam instrumentos de captação, que tomam forma no discurso manifesto através das notícias ou das reportagens. O mesmo acontece com as entrevistas, a não ser que assumam a natureza de um relato onde jornalista e entrevistado se confrontem através de reprodução das suas próprias palavras. (MELO, 2003, p. 62).

Melo (2003) considera que a articulação de Beltrão (1972) é absolutamente relevante, principalmente por ter eclodido da observação cotidiana, ou seja, nasceu do fazer, do empírico. Todavia, Melo (2003) propõe uma classificação própria, fundamentada, grosso modo, no que entende pela reprodução do real e da leitura do real. Para o autor, o jornalista desenvolve-se na função de dois núcleos: a informação – conhecer o que se passa – e a opinião – conhecer o que se pensa sobre aquilo que se passa. Por isso, o relato jornalístico é detentor de duas versões: “a descrição e a versão dos fatos.” (MELO, 2003, p. 63). Melo (2003, p. 64) separa os gêneros entre aqueles que são informativos e aqueles que são opinativos e pondera que essa distinção se faz necessária por considerar “a articulação que existe do ponto de vista processual entre os acontecimentos (real), sua expressão jornalística (relato) e a expressão pela coletividade (leitura).”. Os gêneros que se estabelecem pelo ponto de partida da informação carecem de elementos que se manifestam fora das instituições jornalísticas. Trata-se da mediação elaborada entre os jornalistas e a sociedade: os profissionais de jornalismos e seus 101

protagonistas, personalidades, atores sociais, que propiciam os relatos, as informações, a história. Já nos gêneros que personificam a esfera de opinião, a mensagem é determinada, escolhida, selecionada pela instituição jornalística “e que assumem duas feições: autoria (quem emite a opinião) e angulagem (perspectiva temporal ou espacial que dá sentido a opinião).” (MELO, 2003, p. 65).

A classificação de Melo:

A) Jornalismo informativo 1. Nota 2. Notícia 3. Reportagem 4. Entrevista

B) Jornalismo opinativo 5. Editorial 6. Comentário 7. Artigo 8. Resenha 9. Coluna 10. Crônica 11. Caricatura 12. Carta

O autor faz uma distinção consideravelmente boa entre os gêneros da esfera informativa:

A distinção entre nota, a notícia e a reportagem está exatamente na progressão dos acontecimentos, sua captação pela instituição jornalística e a acessibilidade de que goza o público. A nota corresponde ao relato de acontecimentos que estão em processo de configuração e por isso é mais frequente no rádio e na televisão. A notícia é o relato integral de um fato que já eclodiu no organismo social. A reportagem é o relato ampliado de um acontecimento que já repercutiu no organismo social e reproduziu alterações que são percebidas pela instituição jornalística. Por sua vez, a entrevista é um relato que privilegia um ou mais protagonistas do acontecer, possibilitando-lhes um contato direto com a coletividade. (MELO, 2003, p. 65-66). 102

A reportagem, portanto, não é genuinamente uma notícia, embora converse tanto com a notícia quanto com a entrevista. A notícia é um gênero cujo locutor pretende divulgar um acontecimento, ou eventos de natureza social, econômica, política, cultural, e a entrevista, por sua vez, interpela uma personagem e prevê perguntas e respostas a partir de uma tríplice constitutiva: entrevistador, entrevistado e auditório. Na notícia, encontramos informações das mais variadas: notícias de utilidade pública, ou seja, se trata do que o público precisa saber. Aquilo que o público precisa falar dialoga com o gênero notícia, todavia, o falar do público ao público se assenta melhor no gênero reportagem. Há um leque de informações que chegam diariamente nas mãos dos jornalistas, entretanto, somente informações realmente relevantes nos contextos social, político, cultural chegam aos olhos do público e viram notícia. O que deve ou não deve virar notícia é um problema metodológico a ser resolvido. Pena (2005) utiliza, para exemplificar o conceito de notícia, uma perspectiva conhecida como newsmaking, fazendo notícia, que pondera ser o trabalho de jornalismo “uma construção social da realidade.” (PENA, 2005, p. 71). Considera ainda que os critérios daquilo que deverá e daquilo que não deverá virar noticia são dos jornalistas e nasce da experiência do profissional e de seu instinto jornalístico. Todavia, Wolf (apud PENA, 2005, p. 72) categoriza alguns juízos de valores para a informação tornar-se noticia:

Categorias substantivas

- Importância dos envolvidos - Quantidade de pessoas envolvidas - Interesse nacional - Interesse humano - Feitos excepcionais;

Categorias relativas ao produto

- Brevidade -> nos limites do jornal - Atualidade - Novidade 103

- Organização interna da empresa - Qualidade -> ritmo, ação dramática - Equilíbrio - > diversificar assuntos

Categorias relativas ao meio de informação

- Acessibilidade à fonte/local - Formatação prévia/manuais - Política editorial

Categorias relativas ao público

- Plena identificação de personagens - Serviço/interesse público - Protetividade - > evitar suicídios etc.

Categorias relativas à concorrência

- Exclusividade ou furo - Gerar expectativas - Modelos referenciais

Segundo Silva (2012), a noticia é um gênero pelo qual o texto é construído para responder as seguintes perguntas: Quem, o que, quando, onde, como, porquê. O autor exemplifica com o texto “Choque na A1 fez dois mortos e três feridos”:

Dois automobilistas morreram ontem carbonizados na sequência de uma colisão entre duas viaturas na Autoestrada do Norte (A1), próximo da área de serviço da Mealhada. Segundo fonte da Guarda Nacional Republicana, o choque, que fez incendiar os dois automóveis envolvidos, ocorreu por volta das 13h30. Da colisão entre os dias viaturas, que circulavam no sentido sul-norte, resultaram ainda ferimentos em mais três ocupantes. As duas vítimas mortais viajaram no mesmo automóvel, um Renault 9, “já antigo”, precisou a mesma fonte da GNR. Os três ocupantes da segunda viatura sofreram ferimentos ligeiros e foram transportados para Hospitais da Universidade de Coimbra, para observações. 104

A circulação junto a Área de Serviço da Mealhada só foi restabelecida cerca das 17h23. Durante quase quatro horas, os automobilistas que circulavam na A1 no sentido sul-norte tiveram de sair no nó de Coimbra Norte, transitar pela Estrada Nacional 1, e reencontrar a Autoestrada do Norte pelo nó da Mealhada. Ainda de acordo com fonte da Guarda Nacional Republicana, após a remoção das viaturas e dos corpos das vítimas, a circulação ficou completamente normalizada, e não se verificaram problemas de fluidez. (SILVA, 2012, p. 67).

De essência informativa, a notícia tem como característica principal a informação. Segundo Cunha (2010), o texto informativo perscruta fazer saber; além disso, são tipos textuais narrativos com verbos que flertam com o passado e estão constantemente em terceira pessoa. “No caso de notícias mais desenvolvidas, como as das revistas semanais, as perguntas como? Por quê? e daí? Também são respondidas, devido ao caráter explicativo dos textos nesse suporte.” (CUNHA, 2010, p. 183). A notícia, de um modo geral, é um gênero do discurso que refrata o cotidiano das pessoas, nosso dia a dia. Trata-se de um gênero discursivo do real, do acontecimento, e, portanto, está presente em inúmeros lugares e diversos suportes. “Mesmo quando não a procuramos, as notícias chegam até nós sem “pedir licença” e se nos apresentam, exibem-se para nós como que clamando para serem lidas.” (FILHO, 2011, p. 90). Segundo Filho (2011, p. 91), uma das maneiras relevantes para conseguir a adesão do público a que são destinadas as notícias é o que ele chama de “uso das retóricas das emoções.”. Trata-se das notícias de viés sensacionalista, os relatos de crimes, acidentes, violências etc. Para Filho (2011), essa é a justificativa de tabloides, revistas de fofocas e jornais sensacionalistas venderem mais exemplares do que os jornais considerados sérios. Os fatos pesados, que causam impacto negativo, surpreendem, chocam os leitores, gozam de um elemento que é absolutamente persuasivo: os números. Os números são um elemento estilístico e persuasivo desse tipo de notícia. Os números trazem uma ilusão de verdade, veridicção e, portanto, de maneira lúdica, passam a sensação de serem inquestionáveis. Filho (2011) nos dá um exemplo de uma notícia construída com números. Passa-se a ideia do fato ser relevante pelos dados numéricos, o que faz da notícia algo de extraordinário:

Quase 100% dos voos devem operar na Europa nesta quinta-feira depois que as restrições ao espaço aéreo de cerca de 20 países do continente foram canceladas, dando fim a quase uma semana de caos ocasionada pela nuvem de cinzas de um vulcão na Islândia. Segundo a Agência Europeia para a Segurança da Navegação Aérea (Eurocontrol), ao menos 22.500 voos – mais normais. Os voos acima de 20 mil pés estão liberados, com pequenas restrições em algumas áreas da Finlândia e do norte da Escócia. (FILHO, 2011, p. 92).

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A notícia, via de regra, precisa nascer de um assunto relevante e por acontecimentos recentes. Embora tenhamos conhecimento do jornalismo literário, as notícias não podem ser fruto de imaginação e/ou suposição: necessita de sua nascente na imediaticidade do hoje. Ou seja, nasce do hoje e de um evento que a circunscreva: um evento chamado deflagrador. “O evento deflagrador precisa ter ocorrido hoje ou, na melhor das hipóteses ontem – um fato ocorrido anteontem já goza de pouquíssima chance de virar notícia.” (FILHO, 2011, p. 94). A entrevista é um gênero produzido por mais de um locutor, ou seja, é construída por dois autores-oradores, donde um indivíduo coloca questões a outro indivíduo e este outro as responderá. É um gênero, de certa forma, enrijecido pela construção composicional pergunta- resposta. Pode ser um texto produzido na oralidade, como as entrevistas de emprego, ou no formato de talk shows, por exemplo, mas na sua forma impressa, as perguntas são redigidas previamente, podem passar por uma aprovação prévia do entrevistado e pode, ainda, mesmo passando por edição e retextualização – uma entrevista cedida por telefone –, manter traços de oralidade com conectivos como o aí e o então, típicos da fala, por exemplo, deixados propositalmente pelo jornalista para manter na entrevista escrita uma sensação de alteridade pela oralidade. A entrevista é um gênero do discurso bastante útil para a apuração de fatos e informações no jornalismo. Trata-se, não raro, de uma expansão das informações ofertadas pela fonte primária. Segundo Lage (2001), há tipos de entrevistas na esfera de atividade jornalística diversificados. A entrevista ritual, por exemplo, se materializa pela brevidade. Trata-se de uma exposição do entrevistado para lhe dar voz. Os jogadores, técnicos de futebol, suas declarações já esperadas, mera formalidade, é uma característica da entrevista ritual. “O mundo oficial é rico em situações rituais: interessam aí, o ambiente, o clima, a encenação, cuidadosamente programados para compor o ‘documento histórico’.” (LAGE, 2001, p. 74). Há também a entrevista temática, donde o entrevistado goza do discurso de autoridade para responder sobre determinado assunto. Consiste em um tipo de entrevista para ajudar na interpretação de determinados acontecimentos. A testemunhal é uma entrevista bastante relevante, pois dialoga com a biografia do entrevistado, um relato da história vivida pelo entrevistado. Pode ser alguma coisa que o entrevistado viu ou participou, todavia, de forma geral, pode ser algo que o entrevistado não tenha se envolvido diretamente e as impressões podem ser de caráter subjetivo. Por fim, a entrevista em profundidade se caracteriza por não ter uma especificidade temática, um acontecimento pontual, mas apresenta a figura do entrevistado. Trata-se de como se dá “a representação do mundo que ele constrói, uma atividade que desenvolve ou um viés 106

de sua maneira de ser, geralmente relacionada com outros aspectos de sua vida”. (LAGE, 2001, p. 75). Cria-se uma história, a partir dos depoimentos e impressões do entrevistado. A entrevista é um gênero produzido por mais de um orador, ou seja, é construída por dois autores-oradores, donde um indivíduo coloca questões a outro indivíduo e este outro as responderá. É um gênero, de certa forma, enrijecido pela construção composicional pergunta- resposta. Pode ser um texto produzido na oralidade, como as entrevistas de emprego, ou talk shows, por exemplo, mas na sua forma impressa as perguntas são redigidas previamente, podem passar por uma aprovação prévia do entrevistado e podem ainda, mesmo passando por edição e retextualização – ser uma entrevista cedida por telefone –, manter traços de oralidade com conectivos como o aí e o então, típicos da fala, por exemplo, deixados propositalmente pelo jornalista para manter na entrevista escrita uma sensação de alteridade pela oralidade. Como podemos identificar, a entrevista é um leque composto de gêneros e subgêneros, que gozam de certa transitividade entre a língua falada e a língua escrita, sendo eles diversos: entrevista jornalística, entrevista coletiva, entrevista médica, entrevista documental, entrevista de emprego etc. Essa diversidade entre essas classificações do gênero entrevista vai manifestar uma diversidade estilística, contudo uma característica vai parecer comum a todas as entrevistas: a presença de, pelo menos, dois interlocutores, podendo haver mais de dois. É essa estrutura composicional do gênero entrevista que vai estabelecer pergunta e resposta um entrevistado e um entrevistador. Essa composição densamente ritualizada que vai prever pergunta e resposta, entrevistado e entrevistador, pauta e pré-pauta, assimetria na interação, com trocas de turnos padronizados, donde o jogo interativo delineia-se bem e propõe uma dialogização enrijecida, pré-estabelecida, vai aludir a um gênero do discurso, que é a entrevista, um gênero primordial e reconhecidamente oral, ausente, contudo, da espontaneidade, uma característica intrínseca à conversação. Ou seja, a entrevista é um gênero do discurso oral e escrito padronizadamente ritualizado. Segundo Barros (1991, p. 254), as características principais da entrevista estão diluídas em três aspectos: “o número de actantes envolvidos em sua organização narrativa; o caráter assimétrico da interação; o planejamento conversacional e o tempo de elaboração.”. A espontaneidade, característica inerente à conversação cotidiana, que pressupõe uma intimidade na relação temporal, no aqui e agora, no diálogo entre locutor e interlocutor, entre “você e eu”, é intrínseca à oralidade do dia a dia, do cotidiano; na entrevista, essa relação intimista vai ser segregada em detrimento do ritual de pergunta e resposta. Esse ritual vai pressupor um diálogo assimétrico entre: “entrevistador e entrevistado; entrevistado e público 107

(leitor, ouvinte, telespectador, analista etc.); entrevistador e público.” (BARROS, 1991, p. 255). O público, na entrevista, vai exercer um papel fundamental, já que tanto entrevistador quanto entrevistado vão dirigir seus turnos a um determinado público-alvo, a um destinatário, que, de certa forma, vai se estabelecer como outro interlocutor possível, determinando uma mudança enfática nos papéis interlocutórios, diferindo, neste sentido, da conversação espontânea, donde mesmo havendo três interlocutores, os três podem assumir um turno. O destinatário na entrevista, mesmo pensando no público presente, ao vivo, como no caso dos talk shows, é relativamente estático, embora previsto pelo entrevistador e pelo entrevistado. Esta estaticidade do público é relativa, porque, no contrato que prevê, pergunta e resposta, ambos, entrevistador e entrevistado, vão tentar a adesão deste determinado público. Essa relação entre entrevistador e entrevistado vai propiciar entre eles uma cumplicidade no jogo comunicativo. Desta forma, as entrevistas vão enveredar ora pelo contratual, ora pela polemicidade. Sendo contrato ou sendo polêmica, a entrevista vai sempre tentar alcançar um objetivo, que é o de persuadir o público. Por contratual entendemos que ambos, entrevistador e entrevistado, se afinam para conquistar o público-destinatário. Como exemplo do estilo polêmico, Barros (1991, p. 255) vai exemplificar que, nas entrevistas televisivas, o contrato vai ser quebrado buscando “às vezes, a desqualificação do entrevistador ou do entrevistado.”. Ou seja, sendo polêmica ou contratual, a interação na entrevista é frouxa e parcial, já que ambos, entrevistador e entrevistado, não estão somente preocupados com a interação entre si, mas estão preocupados, principalmente, com a plateia, com o público-destinatário, com o auditório. Hoffnagel (2010) vai discutir haver três tipos de entrevistas em relação à informação e ao público-destinatário e ainda vai delinear uma variedade de estilos, especificamente no suporte jornalístico das revistas. Segundo a autora, são três tipos gerais:

a) As que entrevistam um especialista em algum assunto com a finalidade de explicar um fenômeno. O especialista, raramente, é conhecido pelo público em geral, e suas credenciais estão explicitadas na sessão introdutória da entrevista. b) As que entrevistam uma autoridade, geralmente conhecida pelo público, para obter sua opinião sobre um evento em destaque nas notícias, podendo ela estar ou não diretamente envolvida neste evento. c) As que entrevistam pessoas públicas (políticos, artistas, escritores, músicos etc.) e que têm a finalidade de promover o entrevistado (ou entidade/grupo que ele representa) ou de fazer com que o público conheça melhor a pessoa entrevistada (HOFFNAGEL, 2010, p. 198-199). 108

A revista Veja e a revista Isto é dedicam a cada edição um número de páginas para a entrevista que abrem as revistas, variando entre os três tipos de entrevistas descritos acima. Embora o estilo mude de revista para revista – e também de jornal para jornal –, o enfoque principal está nas figuras do entrevistador e do entrevistado. O primeiro estilo a ser ressaltado por Hoffnagel (2010) é o da revista, colocando o próprio nome como sendo o entrevistador. Por exemplo: Isto é, Veja, Galileu, Contigo etc. Nesse estilo, fica a impressão de que é a revista ou o jornal, a instituição jornalística, que interage com o entrevistado, eximindo o entrevistador/repórter de quaisquer responsabilidades. Esse estilo vai personalizar a revista. Um segundo estilo possível ocorre quando entrevistador e entrevistado são nomeados. Por exemplo: Tarcísio Meira entrevista Gloria Menezes sobre vantagens e desvantagens do casamento. O terceiro e último estilo é o da abertura da entrevista realizada pelo entrevistador, que é uma descrição geral do entrevistado, com um caráter geral biográfico, donde as razões para a motivação e o desenvolvimento da entrevista não são efetivamente explicitadas. É nesse caráter biográfico da entrevista que teremos uma hibridização de dois gêneros do discurso: a entrevista e a biografia. E é nesse sentido que cabe a afirmação bakhtiniana de que os gêneros do discurso são absolutamente heterogêneos, usufruindo de uma relativa estabilidade. Dependendo da entrevista, além do caráter biográfico na abertura da entrevista, que apresenta o entrevistado, a biografia pode estar tanto na pergunta do entrevistador sobre a vida do entrevistado quanto na resposta do entrevistado em formato autobiográfico. Segundo Melo (2003), a entrevista é um dos poucos gêneros informativos que agrupa um intuito dialógico e um papel mediador. Para o autor, a notícia, a reportagem e a nota têm como característica a função mediadora entre o jornalista e o público-alvo, auditório, a qual se destina a informação e têm como diferencial os relatos que consistem em acontecimentos observados pelo repórter, “(ainda que usando entrevistas como recurso para coleta de dados)” (MELO, 2003, p. 129). A entrevista adquirirá um formato de caráter autônomo quando privilegia um relato que inclui a participação de dois ou mais protagonistas visando a coletivização. “Está justamente no diálogo com os protagonistas dos fatos (e não apenas com as fontes) a singularidade da entrevista jornalística.” (MELO, 2003, p. 129). Melo acredita que os leitores da produção jornalística, em geral, direcionam-se por uma motivação individual, egoísta, que leva o leitor a se identificar com os produtores da informação, mas a perspectiva do leitor é unívoca, ou seja, trate-se da unicidade do eu: o leitor 109

está apegado as suas próprias convicções. Dito de outra maneira, não existe lugar para mais de um na leitura jornalística, ou seja, não há lugar para o nós. O autor explica em detalhes:

As pessoas que leem jornal quase nunca buscam aproximação com os autores dos conteúdos que fundamentam seus padrões de comportamento. Querem avaliar, à distância, um filme ou uma peça de teatro, quando leem resenhas (ou críticas) feitas por especialistas na matéria. Desejam saber que partido tomar na arena política, quando acompanham as polêmicas inerentes aos artigos e comentários, assinados por figuras públicas ou sugeridas por editoriais escritos/inspirados pelos dirigentes das empresas jornalísticas. Nada mais que isso. Comparam sua visão particular dos fatos aos pontos de vista disseminados por agentes intelectuais mais bem formados. Ou os tomam em consideração para construir seus próprios parâmetros a respeito da vida cotidiana. (MELO, 2003, p. 130).

Na entrevista ocorre quase o contrário. A entrevista nasce da cooperação entre dois atores sociais: o jornalista e outra pessoa. Trata-se da contribuição simbiótica entre a instituição social do jornalismo e suas empresas com a sociedade. Requer um locutor e um interlocutor e uma parceria de cumplicidade entre ambos para a produção de sentidos. O outro, o interlocutor, neste caso, toma o que seria o papel de leitor de jornal, um papel decisivo, para que se estabeleça a entrevista jornalística por meio da interação. O leitor de jornais e revistas pode gozar, por meio da entrevista de dupla identificação e/ou dupla interpretação: “tanto pode assumir os valores do entrevistado quanto assimilar as interpretações sugeridas pelo jornalista.” (MELO, 2003, p. 130). Se o leitor pode ser investido à posição de entrevistado, o consumidor midiático pode também ser investido pelo valor de entrevistador, senão por um mecanismo real, já que quem entrevista é o jornalista, por uma representação: o consumidor-leitor é revestido por uma vontade, um arquejo de fazer perguntas às personalidades da cena midiática que mais os atraem. O entrevistador é um espectador das novidades e, como testemunha social, realiza sua mediação. Deve ter a sensibilidade de propiciar uma ponte entre o cidadão comum e a personalidade que este gostaria de dialogar. Esse profissional é um fio condutor que faz as perguntas que o leitor, o radiouvinte, o telespectador televisivo gostaria de fazer. “Fazendo as perguntas certas no momento adequado. Calando quando necessário, para potencializar a voz do protagonista escolhido.” (MELO, 2003, p. 132). A entrevista tem uma relação estreita com os gêneros do discurso biografia e autobiografia, por, de alguma forma, tratar da vida. Vidas afortunadas e desafortunadas, de famosos, celebridades, anônimos, de pessoas do dia a dia, de cada um de nós, na discursiva do que Arfuch (2009/2010) chama de espaço biográfico. 110

Arfuch (2010) pondera que a entrevista é o gênero do discurso mais eficaz para sondar sobre a vida humana. E é, efetivamente, por meio desse gênero discursivo que biografias, autobiografias, confissões, memórias, testemunhos, podem tomar corpo até serem publicados. A autora tece considerações sobre o surgimento incerto da entrevista e estabelece uma diferenciação entre a entrevista e a biografia de linhagem canônica. Ouçamos as palavras exatas de Arfuch (2010):

Efetivamente, desde seu nascimento incerto, provavelmente na segunda metade do século XIX, como maneira de resguardar e autenticar palavras ditas na imprensa, a entrevista se revelou como um meio inestimável para o conhecimento das pessoas, personalidades e história de vidas ilustres e comuns. Talvez menos fantasiosa do que a biografia, ancorada na palavra dita, numa relação quase sacralizada, sua afirmação como gênero derivou justamente da exposição da proximidade, de seu poder de brindar um “retrato fiel”, na medida em que era atestada pela voz, e ao mesmo tempo não concluído, como, de alguma maneira, a pintura ou a descrição literária, mas oferecido à deriva da interação, à intuição, à astúcia semiótica do olhar, ao sugerido no aspecto, no gesto, na fisionomia, no âmbito físico, cenográfico, do encontro. (ARFUCH, 2010, p. 152).

É na pretensão dialógica da entrevista que se assenta a mais moderna das biografias já existentes: a biografia na pergunta e a autobiografia na resposta. Em outras palavras, o entrevistador pergunta sobre a vida da personagem protagonista, e ela, por sua vez, responde sobre a sua vida por meio do pronome do caso reto “eu”, e, portanto, a resposta tem alguma pretensão autobiográfica. “Falando da vida ou mostrando-se viver, o entrevistado, no jogo dialético com seu entrevistador, contribui sempre, mesmo sem se propor, para o “acervo” comum.” (ARFUCH, 2010, p. 153). A entrevista não é considerada um gênero biográfico canônico, todavia não se pode ignorar que ela reina solitária e absoluta na constituição de uma subjetividade: a refração da vida humana. Espelha o ser humano de maneira muito particular, donde toda e qualquer persona que habilita o discurso da própria existência encontra nela seu possível lugar. Pode ser considerada biografia por antonomásia. O sucesso da entrevista não é ocasional. Mesmo quando pensamos neste gênero em seu formato escrito – e mesmo sabendo que se trata de um gênero altamente ritualizado –, a entrevista imita a conversação face a face – ainda se considerarmos a distância da palavra expressa graficamente. A conversa impressa que coloca em evidência um entrevistador e um entrevistado e, ainda, um auditório, tem a réplica e a afetividade, marcados pelo sorriso, pela ira, pela surpresa. 111

É desse diálogo ritualizado, entrevistador-entrevistado, que se pressupõe a inclusão de uma terceira “pessoa” no diálogo, de um terceiro ator social, de uma terceira construção: o auditório. O auditório é o destinatário da elaboração dos heróis e heroínas que a entrevista concretiza. Dessa relação fadada ao esquecimento fálico da memória social, na enxurrada diária de informações e oscilações na “Escala Richter” midiatizada, apenas alguns escolhidos sobreviverão: aqueles que conseguem lutar contra o desaparecimento pelo dom de contar a verdadeira história sobre si mesmos. A reportagem é um gênero que pode se valer de características da entrevista e da notícia, todavia não é notícia, tampouco entrevista. Vale-se de a notícia pelos textos não serem obras de ficção e da entrevista por haver um repórter, uma pergunta e uma resposta e um autor, que responde representativamente os textos provenientes de um diálogo. “Estes textos são geralmente acompanhados por imagens: fotografias na imprensa escrita; sequências de imagens e de sons na imprensa televisiva.” (SILVA, 2012, p. 70). Silva (2012) nos dá um exemplo de reportagem:

No desemprego não há lugar para a resignação [...] Ricardo A., Espanha. Arquiteto técnico, 45 anos. Desempregado desde abril de 2009. “Agora, em outubro, faz 18 meses que estou no desemprego. Trabalhei sempre desde o fim do curso, aos 27 anos, até 2009”. Este é o cartão de visita de Ricardo A., casado e com filho de 14 anos. Ricardo foi empregado da abundância, do boom imobiliário, que povoou a Espanha de guindastes. Agora é uma vítima do seu colapso. Não está só: mais de 25 por cento dos quatro milhões de desempregados espanhóis provêm de construção. “Trabalhei em várias empresas, fiz hotéis, colégios, urbanizações, comecei como ajudante de obra até diretor técnico”. Recorda. Tem formação universitária de grau médio: um curso de quatro anos com o título de aquieto técnico. A sua presença era imprescindível para o bom andamento das obras, A sua assinatura era a chancela de qualidade. Foi assim durante anos. [...] (SILVA, 2012, p. 69-70).21

A distinção entre notícia e reportagem não é tão simples, todavia, podemos considerar, grosso modo, a reportagem, como uma extensão da notícia, ou expansão desta. “Uma expansão que situa o fato em suas relações mais óbvias com outros fatos antecedentes ou correlatos – até o ensaio capaz de revelar, a partir da prática histórica, conteúdos de interesse permanente.” (PENA, 2005, p. 76). “Notícia é o relato mais curto de um fato. Reportagem é o relato mais circunstanciado.” (NOBLAT apud PENA, 2015, p. 76).

21 Intercala-se aqui a voz de Ricardo, o arquiteto, e a voz do repórter; todavia, poderia estar aqui presente apenas a voz de Ricardo, que já se configuraria uma reportagem.

112

Uma distinção clara entre notícia e reportagem dar-se-á ao considerarmos a questão da narrativa. A notícia, em sua estrutura, pode ser definida como um relato. “Essa definição pode ser considerada por uma série de aspectos. Em primeiro lugar, indica que não se trata exatamente de narrar os acontecimentos, mas de expô-los.” (LAGE, 1987, p. 16). A notícia se inclina para uma narrativa pela simples exposição dos fatos, informativa, e a reportagem goza de uma narrativa mais elaborada, com começo, meio e fim, interpretativa – dependendo do caso – ou testemunhal, heterogênea, que inclui um posicionamento enunciativo-discursivo cambiante, donde se vê o “eu” o “tu” e o “nós” e suas relações manifestas, manifestadas, inclusive, pelos discursos direto, indireto e indireto livre. A reportagem lidará com os fatos e seus assuntos circundantes. É interpretativa e lida com a dedução, donde parte do tema para os fatos. Os fatos na reportagem transcendem para a condição de assuntos e, desta forma, aprofunda-os, transforma-os em vários temas – a partir dos fatos – pela repetição, pela criatividade, pelas causas, pelos contextos e pelas fontes. As reportagens variam entre a investigativa, a reportagem por levantamento de dados e a reportagem interpretativa. A reportagem interpretativa é a preferida das análises acadêmicas, pois a interpretação envolve uma competência analítica. Nesse tipo de reportagem, a questão da autoria é importante porque a interpretação será realizada sob uma perspectiva, que pode ser cultural, econômica, jurídica, “o que a torna uma espécie de aplicação de um conhecimento ao caso prático; envolve métodos de análise (na economia, há interpretações estruturalistas, monetaristas etc.).” (LAGE, 1987, p. 48). Pena (2015) propõe algumas considerações daquilo que são características do gênero reportagem na rotina jornalística; destacaremos algumas: a reportagem de perfil apresenta a personagem por seus traços psicológicos, “a partir de depoimentos do próprio, assim como de familiares, amigos, subordinados e superiores dessa pessoa”. (PENA, 2015, p. 77). A reportagem de fatos aprofunda o conhecimento de uma personagem ou do contexto narrativo a partir da dramaticidade de determinado fato, estabelecendo relação de causa e efeito. A reportagem polêmica discute fatos insistentemente comentados pela sociedade pelo oposto, ou seja, pensamentos diferenciados entre duas personalidades. Por fim, a reportagem documental costuma

merecer um cuidado praticamente didático do jornalista, no sentido de investir na demonstração documental da perspectiva que o tema é abordado; incluem-se, aí, as transcrições de depoimentos e documentos que dão credibilidade e “materialidade” de provas e argumentações ou informações. (PENA, 2015, p. 78-79). 113

Como podemos constatar, a reportagem apresenta características e estilo próprios. Trata-se da observação da realidade em todos seus aspectos: social, econômico, cultural, levantamento de informações – pode ser por fonte ou entrevista – e, fundamentalmente, um aprofundamento da notícia base, sua humanização, assim como a pesquisa e a reconstituição histórica. Melo (2003, p. 51) conceitua a reportagem “como um relato “essencialmente informativo” que reproduz um fato ou acontecimento atual.”. Bond (1961) explica que as reportagens americanas procuram expressar a vida com base no cotidiano, e esses são seus requisitos: o dia a dia de seus leitores. Ele acrescenta que, para isso, conta com determinados elementos: “novidade, variedade, ritmo, maneira mais atualizada possível.” (BOND, 1961, p. 104). Para o autor, a reportagem busca relatar os acontecimentos de maneira clara e rápida e tem como estrutura composicional três partes:

1 – Título 2 – Primeiro parágrafo (“Lead”) 3 – Resto da história (BOND, 1961, p. 104).

O título da reportagem é parte integrante fundamental, pois é o elemento que atrai o leitor no primeiro olhar: pode ser ousado e atrevido. Sua mensagem deve ser sintética e deve surpreender. É pelo título que o autor da reportagem chama atenção do leitor e é essa sua primordial função. “Corresponde aos toques de tambor e clarins, chamarizes de espetáculo.” (BOND, 1961, p. 104). O “lead”, o primeiro parágrafo, é igualmente de substancial importância. Segundo Bond (1961), deve ser o maior cuidado do jornalista. O primeiro parágrafo deve reter as principais informações da reportagem e seus principais acontecimentos. É no “lead” que o jornalista responde às perguntas: “Quem? O que? Quando? Onde? Por que? Como?” (BOND, 1961, p. 105). Bond (1961) exemplifica:

Suponhamos que a notícia é sobre incêndio. Escrevendo o primeiro parágrafo, o repórter responderia a pergunta, O que? Escrevendo “incendiou-se...”. Responderia as perguntas Quem? e Onde? Dizendo o estabelecimento de quem tinha sido queimado, e dizendo sua localização. Dizendo a hora em que o incêndio começou e quando terminou responderia a Quando? Por que? Neste caso a causa do ocorrido: a inevitável ponta de cigarro acesa. Nosso repórter pode responder Como? Nesta história, de diversas maneiras. – Descrevendo o tipo de fogo, “Labaredas avivadas por um vento constante” ou também respondendo a Quanto?, neste caso ele calcularia o provável prejuízo financeiro e procuraria se o estabelecimento estava seguro. (BOND, 1961, p. 105). 114

Bond (1961) descreve vários tipos de “lead” possíveis: 1. O “lead” condensado é aquele que condensa de forma clara e sumarizada todos os principais fatos da reportagem. Trata-se de uma construção simples que reúne uma variação dos principais tipos de “lead”; 2. O “lead” de apelo direto é aquele destinado diretamente ao leitor e é convidativo. Inspira o leitor a participar da reportagem. Passa a sensação de que o leitor colabora com o que se sugue. Não raro, inicia-se com frases assim: “Se você alguma vez pensou...” ou “se você tivesse visto ou lido...”. (BOND, 1961, p. 108); 3. O “lead” circunstancial é aquele que dá ênfase às circunstâncias pelas quais a história se passa. Trata-se da história com viés humanístico; 4. O “lead” entre aspas é aquele que começa com enunciado entre aspas. Geralmente responde às perguntas O que?, mas principalmente a pergunta Quem? O parágrafo seguinte, de modo geral, coincide com a forma condensada; 5. O “lead” descritivo é um tipo ilustrativo, donde a descrição resume-se em apresentar um quadro geral do acontecido; 6. O “lead” ativador do interesse, que consiste em um acepipe para o resto da história. O repórter propicia as informações para despertar a curiosidade do leitor de forma original; 7. O lead numerado é aquele em que um fato não é mais importante que o outro, por isso o repórter enumera as informações; 8. Os “leads” originais são aqueles descritos por meio inusitado, assinalando o incrível, o excêntrico. “O “lead” é o trampolim do repórter para a história.” (BOND, 1961, p. 112). O restante da reportagem, a história propriamente dita, conta com os elementos título e “lead” e segue o seguinte percurso: “seleciona os incidentes mais importantes para o “lead”, escolhe os outros fatos de mais destaque; dispõe os seguintes, até que chegue aos menos importantes de toda a história.” (BOND, 1961, p. 112). Bond (1961) pondera que a história de uma reportagem assume a configuração de uma pirâmide invertida, por se tratar de uma forma donde o acontecimento principal da história, o repórter dará o maior destaque. Ao fato que segue, de menor importância, o repórter dará menor espaço e assim procederá a composição até o fim. Bond (1961) exemplifica a pirâmide invertida a partir de uma reportagem do Herard Tribute de Nova York:

As mulheres distraíram a vítima com seus salamaleques Duas mulheres com indumentárias ciganas, pedindo esmolas na seção de vestuário de Glamour Togs, Inc. 520 Eighth Avenue, roubaram ontem $196 de uma mesa dos escritórios e fugiram, comunica a polícia. O dinheiro era parte de $ 950 da folha de pagamento que estava sendo distribuído por Miss Sarah Grossbard, de 19 anos, recepcionista, no décimo nono andar do edifício, que fica entre as ruas 36 e 37. 115

Miss Grossbard, mais tarde, disse que as ciganas ficaram pedindo esmola, e tão distraída estava ela com conversa que não reparou que alguma coisa estava faltando, até o momento que as duas já tinham desaparecido. E além de tudo, continuou ela, lhes tinha dado uma moeda de 10 centavos. As mulheres chegaram ao escritório às 13,45, disse Miss Grossbard à polícia. Uma delas espiou através do painel de vidro enquanto a outra, entrando no departamento de distribuição, foi pé ante pé até à sala de recepção onde Miss Grossbard estava sentada sozinha, e disse: – “Informaram-me lá em baixo que a senhora me daria uma esmola”. Miss Grossbard prosseguiu dizendo que dera uma moeda à mulher, mas que mesmo assim não se viu livre dela. “Ela ficou remexendo minhas mãos e brincando com objetos da mesa, e falando como um papagaio, e acrescentou: “Tudo que eu posso me lembrar das suas palavras foram: “Você tem fé? Você acredita?” Então, continuou Miss Grossbard, Lou Grau, dono do estabelecimento, veio da sala contígua e gritou: “Saiam daqui”, e vendo que uma delas tinha uma nota de um dólar na mão berrou: “Ponha isto no lugar”; ela colocou a nota na mesa e foi-se embora”. Miss Grossbard disse à polícia que as mulheres pareciam ter trinta anos e vestiam trajes ciganos, coloridos. (BOND, 1961, p. 113-114).

Bond (1961) afirma que, em formato de pirâmide invertida, a reportagem acima possuí duas configurações: o “lead” climático e o resto da história. A reportagem para a imprensa americana pode ter um formato de ordem cronológico, ou seja, tem um princípio lógico e uma peroração igualmente lógica. Trata-se de um modelo de narrativa simples que se inspira na exposição dos acontecimentos na ordem que eles ocorrem realmente. Além disso, revelar um fato novo na disposição, à medida que eles acontecem, é uma maneira de prender a atenção do leitor e conseguir sua adesão. Sayeg- Siqueira (1990) entende o texto narrativo como um a experiência de um novo saber. Nas palavras do autor, o texto emana de uma proposição: “quando iniciamos uma comunicação escrita, temos o propósito de que nossa mensagem atinja o leitor.” (SAYEG-SIQUEIRA, 1990, p. 28). E acrescenta:

Sempre quando escrevemos um texto, temos uma certa intenção e só encerramos o texto, colocamos o ponto final, quando sentimos que essa intenção está cumprida, ou seja, dissemos tudo que queríamos dizer. Para um texto ser um texto, não basta simplesmente ter uma referência e uma tematização, ele precisa trazer uma informação nova, isto é, algo que o autor considere como não sendo do conhecimento de todos, não sendo, portanto, do saber partilhado. Imagine se fossemos escrever um texto sobre a guerra e começássemos assim: Guerra é sempre uma coisa terrível. Certamente o leitor acharia inútil, pois o texto não traz nenhuma informação nova. Sendo assim, por que esse texto foi escrito? Para que lê-lo? Sempre que se escreve um texto é porque se tem algo de novo a dizer. Sempre que se lê um texto é porque se busca uma informação nova sobre o assunto (SAYEG- SIQUEIRA, 1990, p. 28-29). 116

A reportagem contada pelo formato de história cronológica goza de um formato de pirâmide que começa pelo topo (começo da história); geralmente inicia-se com o protagonista; no desenvolvimento, meio da pirâmide, encontram-se os fatos, relato após relato, e, então, acontece o clímax da história, até a sua conclusão. Bond (1961) dá um exemplo de simples narrativa na imprensa americana, mais precisamente, de como o New York Times contou uma história em formato cronológico:

SONHOS TORNAM-SE REALIDADE PARA PEQUENO VIAJANTE Dez dias de liberdade, nove noites num metrô, terminam com perspectivas para novos sonhos. Algumas vezes os sonhos de um jovem se transformam abruptamente em deliciosa realidade, seu mundo se expande além dos limites de suas salas de aulas e de seu lar, e durante poucos minutos ele voa num avião que poucos adultos conhecem. Assim aconteceu com Ângelo Cruz, de 13 anos, residente em Brooklyn, cuja as aventuras destes dez dias o levaram muito mais longe do que os ensinamentos dos dias de estudos. Sua história começa no dia das eleições e terminou ontem no juizado de menores, incluindo festas de doces e frutas, passeios a parques, jardins e museus, viagens de metrô e chegou a seu clímax quando nosso amigo vagou de olhos arregalados e sozinho, durante cinco horas na noite de terça-feira, dentro de um grande magazin. Ângelo é um rapaz robusto – 1,60 metros de altura e 54 quilos de peso – de cabelos pretos e olhos negros e inquisitivos por trás dos seus óculos. Está cursando o primeiro ano da escola Metropolitana, de Manhattan. Seguindo a opinião de sua mãe Juanita, de 37 anos, ele é “melhor do que um estudante normal”, “um sonhador que gosta de divagar e que toda hora fala de viagens”. Seu pai, Faustino, de 49 anos, é empregado nos estaleiros navais de Nova York. Em casa, nº 96 da rua Washington, ainda moram o irmão de 21 anos Harry, e a irmã Jeanette, de 7 anos de idade.

Segundo Bond (1961), os jornais usam a palavra reportagem como um termo genérico para trabalhos de toda sorte em suas publicações. Para o autor, uma reportagem precisa apresentar uma narração.

3.1 O autor-criador e a reportagem no Brasil do século XX

No Brasil, a reportagem ganha corpo no em meados de 1900, donde João do Rio, alcunha utilizada por Paulo Barreto, rediscuti a função do jornalismo e ressignificou a literatura a partir de sua produção como repórter e cronista: qual o limite que separa a literatura do jornalismo? Em que ponto começa o jornalismo e em que ponto termina a literatura? Não é exagero afirmarmos que, nas entrelinhas, a reportagem é uma “literatura apressada”; na perspectiva propiciada por João do Rio no início do século XX, a reportagem é 117

uma mistura de indefinição de Paulo Barreto (João do Rio) entre literatura e reportagem. A literatura sofre uma transição para a reportagem ofertada pelo autor (1900): “misto de impressões ficcionais e elementos documentados.” (MEDINA, 1988, p. 54). Não é a literatura que é apressada, mas a reportagem-literatura. Paulo Barreto foi primeiro literato e depois jornalista. Foi na rua que Paulo Barreto fora buscar suas histórias; era o literato Paulo Barreto, hibridizado ao repórter João do Rio, que transformará a crônica jornalístico-literária em reportagem amparada por certo lirismo. A reportagem é um trabalho de campo, de busca e apresentação da informação pelo convívio com o factual, com a observação da realidade, o levantamento de dados que são exteriores ao repórter, provenientes do seu olhar cotidiano, para a perspectiva do cotidiano. O jornalismo e a reportagem dialogariam cada vez mais com o ser humano, com os tipos e com as situações sociais, uma vez que “traços retrospectivos do fato narrado levariam, mais tarde, à reportagem de reconstituição histórica (pesquisa, na gíria jornalística).” (MEDINA, 1988, p. 54). As contribuições de João do Rio para o gênero reportagem inovam também pelos traços estilísticos de um novo jornalismo-reportagem que consiste em: “a) Descrição de ambientes e fatos e o repórter como narrador; b) O diálogo repórter/fonte; c) O ritmo narrativo da reportagem; d) A frase e os recursos literários.” (MEDINA, 1988, p. 60). João do Rio não temia incursões às favelas e histórias policiais. Não tinha medo de subir o morro, tampouco de perguntar para compor sua reportagem em um momento em que a entrevista ainda não havia se consolidado no Brasil. Foi Paulo Barreto que começou a busca pela informação por meio da entrevista. A notícia tem por característica a urgência, o imediatismo, e a entrevista a pergunta e a resposta. A reportagem transita entre os dois; todavia, o gênero reportagem proposto por João do Rio significava um pouco mais do que a notícia, um pouco mais que a entrevista, e representava algo além do que a simples fusão entrevista-notícia. “O fato significativo como método de trabalho é que João do Rio não se satisfaz com a notícia imediata, o telegrama esqueleticamente informativo. Lança-se na reportagem que pretende mais, vale-se da enquete para ampliar as possibilidades informativas.” (MEDINA, 1988, p. 62). A posição do narrador em uma reportagem é assunto de estilo e pode se diferenciar de autor para autor. Segundo Medina (1988), as reportagens de João do Rio apresentam um autor e não um intermediador, que relata o fato jornalístico de forma impessoal. Nas reportagens de João do Rio, o próprio, marcado pelo pronome pessoal do caso reto “eu”, aparece 118

insistentemente. “O eu aparece de forma obcecante: quando a ação é exterior a ele, o repórter se inclui através de um objeto direto ou um objeto indireto.” (MEDINA, 1988, p. 62). Esse egocentrismo apresenta sua origem na enquete, na pergunta e resposta da entrevista, no diálogo. O “eu” subsiste na presença de um “você” e a reportagem se apropria das declarações, cujo “ritmo narrativo da reportagem se concentra em situações vivas, interessantes pelo documento histórico que representam.” (MEDINA, 1988, p. 62). Contudo, o diálogo entre o repórter e/ou entrevistador para a reportagem, ou seja, a entrevista, pode não ser personificada com um nome próprio, um autor-repórter, e sim atribuída – a entrevista ou reportagem – ao veículo de comunicação, por exemplo: Veja pergunta; reportagem da Folha de S. Paulo. É um estilo que personifica a revista ou o jornal. O cronista, tradutor, teatrólogo e literato Paulo Barreto, fundido a João do Rio, seu pseudônimo, repórter, criador do modo reportagem, na eminência de trabalhar nos jornais que nasciam no Rio de Janeiro do início do século XX, juntou literatura e jornalismo, crônica e reportagem, artigo e entrevista a um refinamento da reportagem pela busca da história, sem desconsiderar o tratamento lexical, tampouco sem ignorar a palavra subsidiada pela literatura.

3.2 A reportagem e o interpretativismo: a interpretatividade da realidade

A reportagem está amparada pelo real e sua imediaticidade; é razão, é decifração, mas, sobretudo, é interpretação. Medina (2014) tentou entender, por meio do aprofundamento na reportagem e sua constituição teórica e prática, como funcionara uma sociedade reprimida pela ditadura. “A inteligência interpretativa era, acima de tudo, uma razão investigadora, minuciosa, sustentada por metodologias objetivistas.” (MEDINA, 2014, p. 37). A autora (2014) faz um resgate de suas reportagens reportando A história dos meninos de Bogotá22, de 1972, em Atravessagem, dialogando com as reminiscências dela própria sobre a infância, que dá, inclusive, à reportagem, um tom biográfico. Trata-se, por certo viés, de um toque de reconstituição histórica pela sensibilidade da própria autora dos meninos de rua da sua infância, fato que a autora carregara consigo para Bogotá. “De passagem, como já contei em Casas de viagem (2012), quando ainda frequentava o ensino médio, ao me sensibilizar com esta causa, decidi ser jornalista.” (MEDINA, 2014, p. 22).

22 Jornal da Tarde, página 6 – 30/12/1972. 119

A reportagem dos meninos ladrões de Bogotá chama a atenção pela sua heterogeneidade, como podemos conferir no seguinte trecho: “Cheguei a Bogotá com mil recomendações: segure bem a bolsa na rua, não ande sozinha a noite, não leve dinheiro ou pacotes quando sair – roubam demais o turista. Achei exagero.” (MEDINA, 2014, p. 23). No exórdio da reportagem encontramos a voz da autora – “Cheguei a Bogotá” –, um discurso indireto livre – “segure bem a bolsa na rua...” – e um discurso direto: – “roubam demais o turista”. É rico em intertextualidade e apresenta traços constitutivos do gênero autobiografia marcados pelo pronome do caso reto “eu”. Esse estilo, que se manifesta vivo nos dias de hoje, caracteriza a reportagem, a partir dos anos 70, com uma narrativa densa e plural. A reportagem, então, se consolida assim: “o aprofundamento do contexto (ou das forças que atuam sobre o factual imediato), a humanização do fato jornalístico (tratamento de perfis, histórias de vida ou protagonismo social), as raízes históricas do acontecimento atual.” (MEDINA, 2014, p. 39). O interpretativismo jornalístico compunha-se no limiar do autoritarismo militar numa narrativa polissêmica, donde somado à linguagem verbal, à linguagem não verbal e à fotografia, por exemplo, contribuiu para a autoria e para o estilo, não apenas do repórter, mas do jornal pelo qual se trabalhava. Segundo Medina (2014), nos Estados Unidos, no final da década de 60, o jornalismo estadunidense dialogava com a literatura em suas técnicas narrativas renovadas pela influência do romance realista. Tanto no Brasil quanto no exterior, o romance conversara com a reportagem: “o romance transcria a cena viva social numa estilística que capta a empatia do leitor por meio do elo identitário.” (MEDINA, 2014, p. 40-41). Isso significa que, no Brasil, nas pesquisas da ECA/USP, por exemplo, a inspiração também decorria, de certa forma, da estética dos gêneros romance e reportagem, em seu contexto social, sobretudo, pelo diálogo, pela conversa, pelos falares, atribuídos ao protagonismo dos atores da reportagem. O jornalismo-literatura não é uma novidade no Brasil desde João do Rio. O jornalismo-literário, portanto, goza de elementos da verossimilhança. Segundo Pena (2016), o jornalismo-literário se assenta não na veridicção, mas no verossímil. No romance-reportagem, em contrapartida, nada deve ser inventado pelo autor. Os fatos ganham um tratamento literário para serem apresentados ao leitor a fim de buscar sua adesão. Embora apresente estratégias ficcionais, o foco continua sendo no real, no verificável. A interpretação da realidade é o elemento que dialogará com a verossimilhança. O romance-reportagem ornamenta a realidade com um tratamento literário para aprofundar fatos da vida real. Não é jornalismo porque é romance e não é romance por ser reportagem. 120

Sempre com base na realidade, o romance-reportagem amplia os fatos, os contextualiza. Trata-se de uma representação do real com base na realidade estrita de certos acontecimentos: informa, explica, opina e direciona o leitor sempre com base na realidade. “Em outras palavras, quem faz romance-reportagem busca a representação direta do real por meio da contextualização e interpretação de determinados acontecimentos.” (PENA, 2016, p. 103). O romance-reportagem já vinha sendo defendido por Medina, na década de 70, como um alargamento da reportagem pela interpretação: uma inovação da narrativa autoral; reportagem interpretativa, investigativa ou literária. Todavia, no livro A arte de tecer o presente, da autora, emana um achaque de caráter afetivo: o repórter de rua, em busca de suas personagens, protagonistas sociais, diálogos na dinamização da realidade, confronta-se com a racionalidade, construtora de uma realidade romanceada. Chocar-se-ia, então – a racionalidade –, com a personagem ou a história de vida, donde os limites entre o real e o imaginário se confundiriam. “O método do questionário em uma entrevista, com a pré-pauta estabelecida e os resultados previsíveis, cai por terra na interação humana criadora de um encontro sem cartas marcadas.” (MEDINA, 2014, p. 43). Contudo, de fato, o jornalismo-reportagem, ao dialogar com a literatura, humaniza o contexto social da informação, já que literatura e autoria dialogam com a valorização do ser humano a partir do Renascimento. Um exemplo famoso de romance-reportagem é o livro O que é isso companheiro?, de Fernando Gabeira, que se trata de um jornalismo de profundidade, romanceado, entretanto pautado pela realidade fatídica no contexto da ditadura militar. O livro de Cremilda Medina, Atravessagem (2014), conta com exemplos desse estilo que decorre do tratamento romântico-literário nas reportagens, nos depoimentos e nos diálogos realizados pela autora ao longo de sua carreira.

3.3 O repórter: uma definição em linhas gerais

O repórter é um signo do jornalismo por associação: fala-se em jornal, lembra-se do repórter. O repórter é, portanto, um ser humano jornalístico, logo, a reportagem desfruta de um autor-pessoa. Para Kotscho (2007), o repórter com pauta ou sem pauta tem seu lugar cativo na rua. É na rua que se encontra a história, a personagem, a notícia. “Repórter costuma reclamar muito de tudo, faz parte do ofício, mas mesmo chiando tem que sair na chuva e se molhar.” (KOTSCHO, 2007, p. 12). 121

O repórter-autor (2007) acredita que, para ser um bom repórter, não é necessário apenas pensar e/ou saber escrever: ser um bom repórter se trata de sensibilidade para saber informar e daí transformar. Kotscho (2007) entende que uma fórmula científica – ou simplesmente produzir uma notícia – não é suficiente para acrescentar mudança no olhar e/ou na perspectiva de quem recebe a reportagem. Ser repórter significa, então, uma força maior, uma escolha e uma reflexão. As circunstâncias que envolvem o repórter na apuração da reportagem, sejam pelas ruas ou por uma entrevista, ou uma pré-pauta, pode ser ocasional e não programada, tanto que pode levar um entrevistado, por exemplo, a dar respostas mais sinceras – ou menos cautelosas. O repórter, ao entrevistar, se vale de certas circunstâncias, como as entrevistas coletivas, em que se deve dividir o turno com outros repórteres ou o confronto, que se trata da entrevista “em que o repórter assume o papel de inquisidor, despejando sobre o entrevistado acusações e contra-argumentando, eventualmente com veemência, com base em um dossiê ou conjunto acusatório.” (LAGE, 2001, p. 76). Segundo Pena (2005), a transpiração é mais importante do que a glória de ser repórter. Um repórter obterá um reconhecimento mais no âmbito pessoal do que no âmbito social. Seu esforço físico é maior do que seu esforço intelectual. “O repórter não tem final de semana, gasta os dedos no telefone, esquenta a bunda nos sofás de gabinetes, perde as solas dos sapatos e ainda recebe reclamações dos chefes e da família.” (PENA, 2005, p. 75). O repórter é fundamental para que haja a reportagem; trata-se de uma constatação óbvia. Além disso, o repórter precisa saber noticiar, relatar os fatos e narrá-los. Precisa saber entrevistar e ampliar as informações. Necessita saber interpretar os fatos e reportá-los com honestidade. O repórter e a reportagem possibilitam a narrativa de vida, que está presente também em outro gênero discursivo: a biografia. Portanto, esses relatos de realidade, sejam na reportagem, sejam nas biografias, dialogam entre si por terem um grande tema em comum: a vida. Biografia, etimologicamente, significa a escrita da vida, escrever a vida, relatar os fatos vividos. Vejamos no capítulo seguinte um pouco mais sobre o gênero do discurso biografia, para entendermos sua origem, os tipos de consciência biográfica, a atmosfera biográfica, as identidades no biografismo e a relação entre os sujeitos, autor-biógrafo, biógrafo-biografado.

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4 BIOGRAFIA

Biografia é a escrita da vida, e a ideia de se escrever a vida contrariando a morte surge constantemente a partir de uma intenção: conhecer os passos de outrem, como se deu suas conquistas; conhecer os caminhos de sua história, indagar sobre a sua trajetória. Os mistérios da interioridade de determinado personagem biográfico, a busca pela vida, a necessidade de fazer justiça traçando a personalidade de alguém, a necessidade de restaurar sua presença e a paixão pelas pessoas e suas vicissitudes desperta o interesse pelo gênero do discurso biografia, cada vez mais presentes nas listas de Best Sellers. O biográfico transmite um falar retrospectivo – pode ser uma reconstituição histórica, uma personagem de ficção com traços do autor etc. – e permite um desdobramento de si, seja na biografia, na autoficção ou na autobiografia. Na biografia, o autor-biógrafo deve olhar a vida com os olhos do biografado em nível de parentesco, donde a construção de tal personagem biográfica deve imergir na vida do outro, estranhar-se a si mesmo para ver-se com os olhos do outro. Segundo Bakhtin (2010), não existe limite acentuado e de princípio entre biografia e autobiografia porque a fronteira que separa uma da outra não é tão nítida. Alguns autores de biografia sugerem que, antes de biografar a vida do outro, é necessário escrever sobre a própria vida aprofundando-se nela. Pode haver muito de autobiográfico ao abordar a vida de outro, já que compartilhamos todos de humanidade. Todavia, se trata de um limite ético de não confundir a “minha” vida com aquele que “estou” a biografar. A biografia é constitutiva, geralmente, de uma personalidade, personagem essa que se corporifica pelas relações com o outro e, por isso, como a maioria dos relatos vivenciais, tende a propiciar identificação. Trata-se do outro que parece comigo ou do outro que eu admiro: o outro que eu gostaria de ser. Biografia amplia a intimidade entre pessoas estranhas com as quais “eu” me identifico, seja pelo trauma, seja pela glória. Trata-se de estabelecer uma relação intima entre autor, leitor e biografado, que são, a priori, desconhecidos entre si e que começam a se relacionar antes mesmo do livro ser publicado. Em uma época de informação rápida pela internet e por outros meios de comunicação, é de absoluto atrativo a organização biográfica que consiste justamente na recuperação da informação, na sistematização desta e na amplificação pela exposição de determinada vida e personagem. Todavia, escrever uma biografia vai além: desperta afeto entre os participantes – 123

autor, leitor, biografado –, desenvolve afinidades e institui cumplicidade como um relacionamento afetivo. O valor biográfico implica na relação entre o narrador e o narrado com a vida de cada um de nós. Trata-se de uma sintonia existencial direcionada pelo desejo e anseio pelas vidas reais e por aquilo que está camuflado e inacessível na vida de outrem: o texto biográfico nasce de uma curiosidade inerente a todo ser humano pela vida de outro ser humano. O “eu” como “eu”, o “eu” como “tu”, o “eu” como “ele”, nesse intercambiar de posições enunciativas, compõem esse cenário. É necessário que o leitor de biografias dê um voto de confiança ao biógrafo que representa um envolvimento com descoberta, com o novo e com a exploração naquilo que é verídico, como se a personagem biográfica estivesse ali ou como se alguém contasse sobre a vida de determinada pessoa presencialmente. O biógrafo não é a melhor parte de uma biografia, mas, sim, os desvios, as surpresas, o inesperado. Partindo do pressuposto de que o conteúdo temático que envolve as biografias se assenta nas histórias de vida, na família, no trabalho, na religião, na política, na sociedade, na cultura, toda vida humana merece ser narrada, descrita, relatada. A vida de cada um de nós emite eco e é passível de associação.

4.1 Biografismo: um percurso histórico

Os registros históricos do gênero biografia começaram na Antiguidade. Essas formas biográficas contribuíram diretamente para o desenvolvimento dos gêneros biografia e autobiografia europeias. Segundo Bakhtin (2014), a configuração dessas formas biográficas clássicas auxiliara no desenvolvimento de todo o romance europeu. O biografismo antigo está assentado em outro tempo biográfico, donde o trabalho se dá especificamente a partir da imagem do homem que percorre o caminhar da vida. No classicismo grego, ocorre o início das primeiras formas autobiográficas em que o homem está em constante busca pelo conhecimento. É evidente o biografismo grego nas obras de Platão, sobretudo em A apologia de Sócrates e Fédon. “Esse tipo de conscientização autobiográfica do homem está ligado às formas rígidas de metamorfose mitológica.” (BAKHTIN, 2014, p. 250). Esse indivíduo clássico, que busca o conhecimento pelo percurso de vida, transcorre de um tempo, donde o caminho a percorrer de certa forma é limitado: caminhava pela 124

ignorância de ordem presunçosa, por um ceticismo de caráter especulativo e autocrítico e ainda por uma descoberta de si mesmo para um conhecimento que julgavam verdadeiro. Esse percurso inclui a vida do indivíduo por escolas filosóficas diversas. Um segundo tipo de autobiografias e biografias presentes na antiguidade é o que Bakhtin (2014, p. 251) chama de “biografias retóricas”. O louvor, o discurso civil, o laudatório caracterizavam essa forma do encômio, do elogio, que deu origem a autobiografia precursora: o discurso de defesa de Isócrates. Bakhtin (2014) nos alerta que essas formas biográficas da Antiguidade não se assentam numa estrutura de livro e sim estão ligadas a movimentos sociais e políticos: “atos verbais cívico-políticos, de glorificação ou de autojustificação públicas.” (BAKHTIN, 2014, p. 251). É nesse tempo e nesse espaço de vida real que se materializam a figura do indivíduo: delineia-se sua vida. Foi na ágora grega que nasceu a primeira forma biográfica do homem, de sua vida, pelo embate, pela discussão, pela reflexão, pela defesa pessoal. Se o homem biográfico e sua imagem eram públicos e sua vida era exposta na “praça”, não havia nada privado, íntimo; o homem não escrevia para si mesmo sobre sua vida como forma de autoconhecimento ou algo do tipo: não escrevia diários íntimos ou autoinforme- confissões. Não havia introversão, tampouco privatividade: o sujeito está todo exposto e não há nada de si para si. Não havia, portanto, nenhuma distinção entre a vida de outrem e a própria vida, ou seja, entre formas biográficas e autobiográficas. Significa que o indivíduo estava totalmente exterior a si mesmo, fora de si. Não havia qualquer diferenciação entre as formas biográficas. “O homem interior, ‘o homem para si’ (eu para mim) e a abordagem particular de si mesmo não existiam. A unidade do homem e sua consciência eram puramente públicas.” (BAKHTIN, 2014, p. 252). Nos heróis de Homero já havia o falar de si pela autoglorificação: “panegírico orgulhoso de si mesmo.” (BAKHTIN, 2014, p. 252). Traço puramente helênico. Todavia, o falar de si era para vangloriar-se para o outro. A extroversão aparece na composição dos heróis de Homero. Bakhtin (2014) dá o exemplo de Aquiles, que chora copiosamente e tão alto na cena com Príamo que seu choro ecoa por todo o acampamento. Sabe-se que os homens no século XVIII choravam com vontade. Provavelmente influenciados por essa exteriorização do indivíduo, o homem público. A imagem do homem ficou deteriorada, a partir dessa relação, em épocas posteriores. Internalizando, a mudez e a cegueira passaram a integrar o seu íntimo. O homem passou a ser solitário e isolado: sua integridade e unidade manifestada pela vida pública se desintegraram. 125

“A consciência que ele tem de si mesmo, tendo perdido o cronotopo popular da praça pública, não pode encontrar outro cronotopo tão real, único e íntegro.” (BAKHTIN, 2014, p. 254). No homem internalizado, introspectivo, na sua vida privada, surgiram elementos de uma natureza que não era pública como a do campo sexual e outras. “A imagem do homem tornou-se múltipla e composta. Nele se cindiram o núcleo, o invólucro, o exterior e o interior.” (BAKHTIN, 2014, p. 254). Contudo, a abordagem primeira dos gêneros biografia e autobiografia tinham caráter público para os gregos. Caracterizava-se pelo encômio, e essa característica deu origem a primeira defesa pública autobiográfica de Isócrates. Trata-se de um relato apologético de vida; um retrato laudatório da própria vida. Os romanos, nesse sentido, não se diferenciavam dos gregos. Os valores de família para os romanos não advêm de concepções burguesas do íntimo e do privado, pelo contrário. A ideia de família une-se ao Estado. Os cultos religiosos confundiam-se com os cultos nacionais de família. Todavia, a consciência romana era orientada por valores ancestrais, por uma linhagem patriarcal, que se manifestava por valores como a hereditariedade. A família romana registrava seus antecedentes e antepassados em documentos manuscritos. O biografismo se dá pela necessidade de conservar os descendentes da linhagem. Tinha como prerrogativa: conservar as tradições familiares e patriarcais. Nascia uma consciência biográfica advinda de fatos históricos e nacionais. A consciência biográfica romana se diferenciava da grega nesse ponto: a consciência biográfica dos gregos se orientava pelos contemporâneos; por seus heróis vivos. “A consciência romana sente-se, como o elo entre os antepassados mortos e os descendentes que ainda não participavam da vida política.” (BAKHTIN, 2014, p. 256). Uma forma autobiográfica relevante romano-helênica foram os trabalhos “sobre escritos pessoais.” (BAKHTIN, 2014, p. 256). Esse formato goza de uma influência explicita de Platão em sua reflexão sobre o caminho do homem a procura do conhecimento. “É dado um catálogo de obras pessoais, são evidenciados seus temas, assinala-se seu êxito junto ao público e são tecidos comentários autobiográficos (Cícero, Galeno e outros).” (BAKHTIN, 2014, p. 257). Não se pode negar a forte influência de Aristóteles nas formas biográficas aperfeiçoadas do período romano-helênico. Aristóteles contribui para ponderações a respeito do tempo biográfico cujo foco é o caráter do homem. Sobre essa perspectiva, são constituídos dois tipos de composição biográfica antiga.

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Bakhtin (2014) explica o primeiro tipo em detalhes:

O primeiro tipo pode ser chamado de energético. Encontra-se em sua base o conceito aristotélico de energia. A existência e a essência total do homem não constituem um estado, mas uma ação, uma força ativa (“energia”). Essa “energia” é a manifestação do caráter nos atos e nas expressões. Além disso, as ações, as palavras e as outras expressões do homem não se constituem somente numa manifestação exterior (para os outros, para um terceiro) de uma certa essência interior de seu caráter, que existiria além dessas manifestações, antes delas e fora delas. Essas manifestações são justamente a essência do próprio caráter que, absolutamente, não existe fora de sua “energia”. Sem sua exteriorização, sua expressividade, maturidade e audibilidade, o caráter não possui a plenitude da realidade, a plenitude da vida. Quanto mais ampla é sua expressividade, mais ampla é sua essência. (BAKHTIN, 2014, p. 258).

Segundo Bakhtin (2014), a representatividade do homem e da vida humana não deve ser somente encarada por meio das características, das virtudes e dos vícios, mas sim pela representação das conversas, de seus atos e expressões. Sobre o segundo tipo de composição biográfica antiga, Bakhtin (2014) acrescenta:

Poderia-se denominar o segundo tipo biográfico de analítico. Ele baseia-se num esquema de rubricas precisas, pela qual distribui-se todo o material biográfico: a vida social, a vida familiar, comportamento na guerra, relações com os amigos, aforismos dignos de lembrança, virtudes, vícios, aparência exterior, habitus, etc. Os diferentes traços e as particularidades do caráter são escolhidos entre os acontecimentos e fatos distintos que ocorrem em épocas diferentes da vida da personagem. (BAKHTIN, 2014, p. 259).

Na idade média, o gênero biográfico teve um autor de destaque, que foi Suetônio. Esse autor desenvolveu biografismos do segundo tipo, as rubricas, como homem e como autor. Na medida em que a humanidade foi se desenvolvendo, a biografia clássica, pública, romano-helênica, foi se dissolvendo, e a introversão, o eu-para-si, foi ganhando espaço. “Inúmeros detalhes da vida privada, que fazem com que o homem se sinta em casa e que começam a servir de apoio para uma consciência de si mesmo, passam a ter significado.” (BAKHTIN, 2014, p. 260). É dessa característica conceitual, do eu-para-mim, que nascem as cartas de Sêneca, o livro de Marco Aurélio (Para mim mesmo), de caráter autobiográfico, e, por fim, as Confissões de Santo Agostinho. Não se pode, portanto, ignorar o biografismo histórico que, de maneira clara, contribuiu para o desenvolvimento da humanidade, mas, além disso, caminhou junto do homem, da humanidade, da sua evolução. Caminhou também paralelamente à pintura e ao 127

gênero romance. É clara a influência do gênero biográfico para a amplificação do romance e construção ideológica de seus autores.

4.2 O autor de biografia: consciências biográficas

Para Bakhtin (1992), a forma biográfica é a mais realista, pois nela há menos elementos de isolamento (a presença do outro) e acabamento. Nela, o ativismo do autor é menos transformador, aplicando com menos princípio sua posição axiológica fora da personagem. De acordo com ele:

O autor de biografia é aquele outro possível que está conosco quando nos olhamos no espelho, quando sonhamos com a fama, fazemos planos externos para a vida; é o outro possível, que se infiltrou na nossa consciência e frequentemente dirige nossos atos, apreciações e visão de nós mesmos (BAKHTIN, 1992, p. 140).

Felizmente ou infelizmente, é indiscutível e indissociável a presença do outro em nossas vidas. Para a biografia, esse é o aspecto fundamental para o entrelaçar, o tecer fios entre a construção da personagem e sua relação com o autor e os diversos contextos sociais, avaliando que biografia, segundo a primeira e mais concisa descrição de Bakhtin (2010), é a descrição da vida. Uma vez que não me desligo verdadeiramente do mundo dos outros, percebo a mim mesmo numa coletividade: na família, na narração, na humanidade culta; aqui a posição verdadeira do outro em mim tem autoridade e ele pode narrar minha vida. “Não sou eu munido dos recursos do outro, mas o próprio outro que tem valor em mim.” (BAKHTIN, 1992, p. 141). Bakhtin (1992) insiste na importância do outro para justificar o realismo e a simplicidade descritiva da vida, sempre sob a óptica do outro que está presente também na relação entre narrador e personagem, que podem intercambiar posições – seja o narrador que começa a narrar sobre o outro que lhe é íntimo, com quem vive uma só vida na família, na nação, na sociedade humana, no mundo, seja o outro a narrar sobre o narrador. Sem me desvincular da vida em que as personagens são os outros e o mundo é o seu ambiente, eu, narrador dessa vida, me identifico com as personagens dessa vida. É assim que o narrador se torna personagem, caracterizando um primeiro movimento para um processo teoricamente de descuido saudável, frutífero e relevante em que autor, narrador e personagem se confundem, num processo autobiográfico da voz do autor no narrador e, 128

consequentemente, no linear da personagem. É, portanto, de vital importância o conhecimento de parte considerável da biografia por meio das palavras alheias, das pessoas intimas: a origem, o nascimento, os acontecimentos da vida familiar da personagem, aos quais, evidentemente, o autor da biografia tem acesso. Segundo Bakhtin (1992), são possíveis dois tipos básicos de consciência biográfica. O primeiro tipo o autor chama de “aventuresco-heroico” e o segundo de “social de costumes”. Nessa parte de sua teoria, Bakhtin (1992) delineia dois estereótipos biográficos que começam a dar forma a uma possível pretensão de uma construção biográfica. O primeiro tipo baseia-se na vontade de ser herói, de ter importância na vida dos outros, a vontade de ser amado. Trata- se da aspiração à glória. É afirmar e construir sua vida na possível consciência dessa sociedade humana, tomando consciência de si na sociedade histórica e culta dos homens. Ao heroificar os outros, a personagem irá se familiarizar com ele e guiará sua imagem futura desejada, criada, à semelhança dos outros, os possíveis heróis com os quais ela se identifica. O segundo elemento do primeiro tipo de consciência biográfica é o amor, a necessidade de se sentir amado no olhar do outro. É a sede de se sentir amado. A visão e a informação de si mesmo na consciência amorosa do outro. Enquanto os valores heroicos determinam a importância em um contexto em que os momentos fundamentais são os acontecimentos da vida privado-social, privado-cultural e privado-histórico, o amor determina a carga emocional. “No amor, o homem procura como que superar a si mesmo em determinado sentido axiológico na tensa possessão emocional pela consciência amorosa do outro.” (BAKHTIN, 1992, p. 145). O terceiro elemento do primeiro tipo é a fabulação da personagem, que, ao vivenciar uma fabulação que nada conclui e mantém tudo em aberto, vivencia a alegria que emana da fabulação da vida. Bakhtin (1992), ao nos apresentar essas questões relacionadas ao primeiro tipo de consciência biográfica, traça uma compreensão estética da relevância do outro em nossas vidas, no contexto histórico, cultural, ou em decorrência da necessidade, mesmo que inconsciente, de nos sentirmos amados, aproximando-nos dos heróis de nossas vidas. Segundo esses pressupostos, todos podemos biografar ou sermos biografados, enfatizando que todos temos heróis, aventuras, amores e relativa importância na vida dos nossos contemporâneos e descendentes. Essa forma aventuresca, heroica – o amar e o sentir- se amado e, até, glorificado pelo outro –, valores inerentes a esse primeiro tipo como bravura, honradez, magnanimidade, generosidade, são a forma mais próxima do sonho de vida. Ao segundo tipo, o social de costumes, é dado um corte não histórico, mas social: a humanidade e seu cotidiano dos heróis vivos. Aparentemente, torna-se mais simples heroificar 129

a personagem que morreu. Numa concepção social, o centro axiológico é ocupado pelos valores sociais e, acima de tudo, familiares. A boa glória junto aos contemporâneos, o homem bom e honesto e não a glória histórica junto aos descendentes. Trata-se da forma do cotidiano, do dia a dia e da felicidade ou infelicidade do indivíduo junto aos seus familiares. Nessa consciência biográfica, não se trata de estar no mundo e ter importância nele, mas de estar com o mundo, observá-lo, vivê-lo e revivê-lo repetidas vezes. Nessa forma, a fronteira da narração pode invadir a fronteira da personagem biográfica, começando a procurar coincidir com o autor. Ambas as consciências biográficas, tanto a do primeiro tipo quanto a do segundo tipo, oferecem elementos para uma construção biográfica que não é estática uma em relação à outra. Ambas as consciências biográficas podem oferecer elementos para uma biografia, mesmo considerando ambas trabalhando simultaneamente – um levantamento de elementos dos dois tipos para a construção do narrador e da personagem, no intuito de desenvolver uma biografia que agrade em sua ingenuidade construtiva à também ingenuidade associativa do leitor. A última questão desenvolvida pelo autor são algumas considerações relacionadas ao autor personagem. Nestas, Bakhtin (1992) exemplifica que o autor biográfico se orienta pelos mesmos valores com os quais a personagem vive sua vida. Só o que a personagem viu em sua vida e quis para si, o autor vê nela e quer para ela. Se a personagem age de modo deliberadamente heroico, o autor a heroifica do mesmo ponto de vista. Não há distanciamento. O autor não é o artista puro, assim como a personagem não é o sujeito ético puro: naquilo em que a personagem acredita o autor também acredita. Assim, na biografia, o autor não só combina com a personagem na fé, nas convicções e no amor, como também na sua criação artística, tomando como guia os mesmos valores que a personagem toma em sua vida estética. O autor é solidário com a personagem em sua ingenuidade estética. Ambos, personagem e autor, são os outros e pertencem ao mesmo mundo de valores e autoridade dos outros – autor, leitor, biografado. Na biografia, o autor ingênuo está ligado a personagem por relação de parentesco – os dois podem trocar de lugar (daí a possibilidade de coincidência pessoal na vida, isto é, a possibilidade autobiográfica) (BAKHTIN, 1992, p. 151). Bakhtin (1992) não aponta em sua obra somente elementos característicos de uma biografia, como também proporciona elementos substanciais para a apreciação estética do gênero, proporcionando a possibilidade de construção de uma biografia bem fundamentada. 130

A biografia é a apreciação da vida focada do ponto de vista da personagem e suas relações com o outro e do autor em relação ao outro que pode ser ele mesmo, a personagem e suas relações intrínsecas com o contexto sócio histórico em que acontece essa apreciação. O autor magistralmente esclarece, elucida essas questões, não tão somente pela exposição da consciência biográfica, mas também pela diferenciação exposta na própria consciência biográfica do gênero confessional (final da Idade Média e Renascimento) para o gênero biográfico genuíno, contemporâneo. A grande contribuição do autor está na consciência de que todos nós temos nossos heróis, todos nós queremos ser amados pelo outro, todos nós temos uma aventura vivenciada na vida. Por isso, a forte identificação com o gênero biográfico, porque, afinal de contas, quem não gostaria de ser aquele músico importantíssimo biografado, que foi nosso herói em determinada época da vida, ou o artista plástico que gostaríamos de ter sido se continuássemos pintando, ou a personalidade histórica que se destacou por sua bravura, generosidade, amor e patriotismo. O gênero biográfico tem realmente se destacado pela forte identificação que tem com seu leitor, uma vez que a personagem biografada é o outro que eu gostaria de ser.

4.3 O espaço biográfico

Para Arfuch (2009), o que consiste em uma novidade real no espaço biográfico da contemporaneidade são as diferentes maneiras como as vidas reais, as experiências, as iluminações e as lembranças são narradas, circulam e são apropriadas nas incontáveis esferas da comunicação midiatizada. Nesse espaço, segundo a autora, densamente povoado, desdobram-se contemporaneamente tanto os gêneros tradicionais, sempre na lista de best sellers, biografias e autobiografias, memórias, diários íntimos, correspondências, testemunhos e histórias de vida, quanto aqueles que vivem em sua margem, como os rascunhos, os cadernos de viagem, as lembranças da infância, junto, é claro, de uma multidão de registros midiáticos: a entrevista, em primeiro lugar, bem como conversações, retratos, perfis (muito presente em disciplinas de educação a distância), confissões próprias e alheias, narrativas de autoajuda, velhas e novas variantes do show, sem deixar de fora a política. Arfuch (2009) faz uma pergunta, levando-se em conta a importância que a vida do outro tem em nossas vidas: “A que obedece, desde a recepção, tal obsessão pela vida dos 131

outros, na política já mais importante do que as plataformas ou as pautas programáticas?” (ARFUCH, 2009, p. 114 - 115). A resposta a está pergunta não é tão simples e, até o presente momento, foi poucas vezes teorizada. O biográfico não está somente na forma escrita, mas em sua dispersão, em sua diversidade e na sua importância na conversação cotidiana, na linguagem oral. Certas tendências, segundo a autora, operam na (re)configuração da subjetividade contemporânea. Bakhtin (1992) foi um dos primeiros a pensar na concepção de gêneros discursivos, nos conceitos de relatividade e espaço-temporalidade nos discursos sociais e na literatura. Segundo ele, os gêneros são conjuntos constitutivamente heterogêneos, em constante hibridismo, que compartilham certas características e sistemas de valoração, mas cuja especificidade é só relativa; reconhecíveis por sua tradição, também, porém, sujeitos à mudança, histórica ou cotidiana, e, especialmente, ao movimento sem pausa da interdiscursividade. Ou seja, as vozes, os plurissignificados que se atribuem a elas, o discurso literário, a conversação e a linguagem oral se fundem na expressão genuína da subjetividade, tomando forma na historicidade cotidiana e na historicidade literal. Na visão da Arfuch (2009), Bakhtin contribui para ratificar o pensamento da autora sobre conceitualizações que nada dizem a respeito da diferença que perdura entre os gêneros biográficos e os relatos declaradamente ficcionais. Embora, segundo ela, os relatos ficcionais tenham maior espaço no mundo acadêmico, o relato autobiográfico é amplamente aceito em correntes não acadêmicas, embora tenha os mesmos procedimentos retóricos e de ficcionalização. Bakhtin (1982, p. 134 apud ARFUCH, 2009, p. 117) afirma que um valor biográfico não apenas pode organizar a narração sobre a vida do outro, mas também ordenar a vivência da vida mesma e a narração da própria vida do sujeito. Esse valor pode ser a forma de compreensão, de visão e de expressão da própria vida. Sem dúvida esses valores podem ser encontrados em outros gêneros discursivos. Nesse ponto, Arfuch (2009) dialoga ainda mais com Bakhtin quanto à questão valorativa do espaço biográfico. Para ela, a ideia de valor é denominada “estampagem” ética da narrativa, uma orientação valorativa para a vida. Nenhum relato, menos ainda o biográfico, vai ser inócuo. Haverá vários valores em jogo: heroico, cotidiano, desejo da glória ou transcendência (primeiro tipo de consciência biográfica de Bakhtin), comprometimento da individualidade ou da comunidade. Assim, a ordenação do relato, sua temporalidade, a escolha de um começo e de um clímax, as vozes e a consciência do outro serão sempre um desafio e uma afetação. Há carga emocional à flor da pele em cada narração, na qual a vida se 132

refaz sem fim. Dessa forma, a constante ampliação do espaço biográfico expressa a busca inacabada de novos sentidos. Completando suas reflexões, Arfuch cita Benveniste – “Meu hoje é seu hoje” (ARFUCH, 2009, p. 118) –, para fundamentar o que sustenta o princípio dialógico, ou seja, essa refração de olhares na qual um relato de vida impacta na vida do outro. Nesse ser tocado pela experiência do outro, há muito da aprendizagem do viver e também da confrontação subjetiva dos limites. Mas há ainda mais no valor biográfico, que é a possibilidade de ordenar a vivência da própria vida. A ética na narrativa combina com esse testemunho de si mesmo, que supõe a marca gramatical do eu e ainda desses “outros eu” ou “eu como outros”. O jogo dos pronomes pessoais abre um campo para associações. Estão ali o eu, o ela, o ele, o você e também esse outro cujo eco ressoa e dá uma tonalidade especial à relação intersubjetiva. Nesse ponto, a autora retoma uma questão que acreditamos ser de vital importância para a saúde dos assuntos tratados até aqui. Estes são, além da ética na narrativa, a presença do outro, a temporalidade no espaço biográfico, a contemporaneidade e a presença biográfica nos espaços midiáticos. Ademais, ela ressalva que, embora a autobiografia, as memórias, a história de vida e o testemunho sejam as formas clássicas e hierarquizadas do espaço biográfico, existe uma proliferação nos gêneros midiáticos centrados na experiência individual e pessoal dos sujeitos, não só celebres, mas também comuns que, a meu ver, torna-se uma prática cada vez mais cotidiana, em especial na televisão, que tem como forte exemplo a grande popularidade dos reality shows que tomam por característica, entre outras, a experiência e a vivência pessoal do indivíduo. A autora acrescenta ainda que:

De fato, nesse desdobramento fragmentário de vidas afortunadas ou desafortunadas, nesses outros que poderiam ser eu, também está em jogo a identificação, não só com ricos e famosos, mas também com a debilidade, o erro, a carência, a infelicidade. Essa fixação orbital da câmara nas zonas de desastre, em corpos, rostos, lágrimas, palavras, nesses olhos que nos olham pedindo algo de nós também no plano existencial. (ARFUCH, 2009, p. 119).

Enquanto os grandes cenários desenham muitas vezes situações trágicas, a pequena cena se volta obsessivamente a banalidades de gente comum, como é o caso dos talk shows, em que a palavra já soa analiticamente como um dom terapêutico. Neste, estão a confissão enfocando a miséria sexual, o arrebatamento passional ou a agressividade física, tanto quanto 133

a frustração e a solidão, dois aspectos frustrados de uma biografia, cuja realização plena se vê sempre em relação a uma afetividade compartilhada. Por que esses tipos de programa têm alta popularidade se frustração e solidão são características contrárias a uma biografia clássica? A resposta está no plano linear dessa pergunta, que é justamente a forte identificação às avessas. Nesse caso, não há uma identificação com o herói, mas com a pessoa comum, que sofre como eu sofro. A autora estabelece, pois, uma elucidação sob o ponto de vista pouco ilustrativo a respeito da ideia que se tem da composição de uma biografia que, classicamente, se constrói por intermédio da escrita e trata da vida e da obra do sujeito biografado, alertando-nos para um fenômeno – claro que fazendo alusão à biografia midiática, que são gêneros tão pouco glamorosos. Nesse sentido, todos, mesmo sem saber ou sem querer, escrevemos nossa vida no papel, no gênero mais extensamente auto/biográfico: a conversação cotidiana. De fato, é o diálogo com outros que, de algum modo, se fazem responsáveis por nós, que o acontecer vai ganhando forma e sentido, em seus mínimos incidentes e na comum preocupação existencial, na anedota, no conselho, na piada, na fofoca, no comentário. O diálogo com Bakhtin fica mais evidente, mais intenso, à medida que a referida autora vai dissertando sobre a importância do outro em nossas vidas, em nosso espaço biográfico. Ela, ainda, ressaltando a conversação como evidentemente parte essencial para vida, esclarece que nossa biografia não nos pertence por inteiro. Os outros guardam rastros com os quais compartilhamos ou que nos são invisíveis, facetas de nós mesmos que nos escapam. O mito do eu só é possível perante um você: aquilo que somos e que nos escapa, que só existe na experiência dos outros. Se apenas somos alguém em relação aos outros, pouco haverá de verdadeiramente individual em uma biografia. É esse caráter incompleto de todo sujeito, de toda biografia, esse vazio que tenta ser completado por meio de atos de identificação. Portanto, na construção de uma biografia, faz-se necessária a identificação mais pertinente. Arfuch (2009) faz a pergunta: “Pode se encontrar hoje um valor mais forte em nossas sociedades altamente midiatizadas e tecnificadas que a vida real?” (ARFUCH, 2009, p. 120). A ênfase biográfica da cultura contemporânea, ou seja, essa busca de autenticidade vivencial, até com seus excessos de visibilidade midiática, pode ser vista não simplesmente como uma atitude de narcisismo ou de voyeurismo, mas sim como uma compensação da uniformidade, do anonimato, do isolamento das pessoas na vida atual, como necessidade de afirmação de uma subjetividade cambiante, sujeita a transformações em decorrência da 134

globalização, da desarticulação de trajetórias convencionais no mercado de trabalho, da incerteza dos projetos de vida, enfim, dos dilemas de reconfiguração da identidade em nossos tempos. Ao falarmos em “biográfico”, o termo nos remete quase que imediatamente a um universo de gêneros discursivos relacionados à vida. As vicissitudes, o registro minucioso do acontecer, a nota da vivência que ilumina o instante. São as biografias, as autobiografias, as confissões, as memórias, os diários íntimos, as correspondências que há mais de dois séculos dão conta da obsessão de deixar rastro, um registro de vida, em busca da imortalidade ou simplesmente da singularidade. A contemporaneidade dá conta de outras formas, de outros gêneros discursivos, que disputam o mesmo espaço: show, talk show, reality show, entrevistas, perfis, conversas, retratos, anedotários, histórias de vida, testemunhos, relatos de autoajuda, que, em meio à disputa por espaços midiatizados, cercam-se de um único tema: a vida. Para Arfuch (2010), no livro O espaço biográfico. Dilemas da subjetividade contemporânea, a própria experiência é “um núcleo central de tematização.” (ARFUCH, 2010, p. 15). Arfuch (2010) propõe privilegiar a trama da intertextualidade em vez de exemplos de biógrafos e biografados ilustres, ou emblemáticos autobiografados, no livro de sua autoria: O espaço biográfico. Dilemas da subjetividade contemporânea. Opta pela hibridização, pela heterogeneidade e não pela pureza de determinado gênero; pelo deslocamento e transitividade em vez de fronteiras estreitas e restritas. “Um espaço biográfico como horizonte de inteligibilidade e não como mera somatória de gêneros já conformados em outro lugar.” (ARFUCH, 2010, p. 16). O espaço biográfico contemporâneo e sua ênfase biográfica que caracteriza o momento atual incluem, além das variantes citadas acima, biografias autorizadas ou não, diários íntimos – e, melhor ainda, secretos –, correspondências, cadernos de notas, romances, filmes, vídeo, teatro autobiográfico, vídeopolítica, relatos da vida das ciências sociais e novas ênfases da pesquisa e da escrita acadêmica, além da denominada reality painting, que são, nas artes visuais, os retratos, os objetos, as roupas, as cartas, as diversas marcas da vida do artista incorporadas nas obras. Evidentemente, cresce cada vez mais a procura pela identificação na vida de famosos, celebridades, ou sua vivência captada em determinado instante, como as revistas de fofoca e fotos de paparazzi. Há, ainda, uma proliferação do que Arfuch (2010) chama de “exercício de ego-história”, que perpassa as autobiografias intelectuais, a narração autorreferente da experiência teórica e a autobiografia como matéria da própria pesquisa, além da paixão pelos 135

diários íntimos de poetas, filósofos, cientistas e intelectuais. Acrescenta a autora: “às vezes não há muitas diferenças de tom entre esses exercícios de intimidade e a intrusão nas vidas celebres ou comuns com as quais nos depara diariamente a televisão.” (ARFUCH, 2010, p. 61).

4.4 Biografia: identidade pessoal e identidade social

Goffman (1963) ajuda-nos a pensar que a linha biográfica de determinado indivíduo, quer seja pela identidade pessoal – registros propiciados pelo próprio indivíduo –, quer seja pelos registros sociais – informações dos amigos íntimos –, toda pessoa é passível de uma estruturação da própria história: “há um caderno a sua espera pronto para ser preenchido”. (GOFFMAN, 1963, p. 73). Qualquer ser humano é um objeto para uma biografia. Tudo que alguém fez e, evidentemente, pode fazer, é um mote para uma biografia; todavia, os fatos verdadeiros da personalidade de uma pessoa e de sua atividade não podem ser falsos, contraditórios ou desarticulados. Ou seja, a identidade social não deve conflitar com a identidade pessoal. “Nota-se que essa unicidade inclusiva da linha de vida está em flagrante contraste com a multiplicidade de “eus” que se descobrem no indivíduo ao encará-lo sob a perspectiva do papel social.” (GOFFMAN, 1963, p. 73). Um indivíduo pode manipular sua identidade pessoal e se fazer parecer socialmente com uma pessoa que verdadeiramente não é. Por isso, a informação social de determinado indivíduo é importante para um projeto biográfico. Para se escrever a biografia de alguém, é necessário ouvir, se possível, o próprio biografado – identidade pessoal – e os amigos, os contemporâneos, os familiares – identidade social – para manter um nível de coerência e veridicção que o gênero biografia exige. Ao parecer por meio da identidade pessoal uma pessoa que não é, o indivíduo, por meio da falsa identidade pessoal articulada por ele mesmo, entrará em choque com a identidade social dele, o que desenhará falsas imagens biográficas: inverdades. Se uma pessoa teve um passado assombroso, hostil, depreciativo, essa fase de sua vida é relacionada à sua identidade social. A mesma pessoa, ao articular sobre esse passado, manipulando-o, apresenta uma relação do indivíduo com a própria identidade pessoal que ele pensa ter ou que ele gostaria de ter. Trata-se de uma articulação regida também pela identificação pessoal: aquilo que ele gostaria que tivesse sido ou a pessoa que ele gostaria de ter se tornado. 136

No mundo individual de outrem, há uma dissociação entre a identidade pessoal e a identidade social. Essa separação acontece entre aqueles que conhecem o indivíduo e partes de sua vida e aqueles que não a conhecem. As pessoas que o conhecem são capazes de trazer alguma informação apenas ao ouvi-lo chegar ou ao ver sua pessoa. Já para aqueles que não o conhecem, ou seja, o indivíduo é um perfeito estranho, sua biografia ainda não foi iniciada. Quando um indivíduo está dentre pessoas que não o conhecem, deve estar preparado para a elaboração, por parte das pessoas, de uma identidade social pela imediaticidade, uma identidade social aparente. Tratar-se-ia de uma tentativa de estabelecer uma identificação pessoal para ele sob um ponto de vista do anonimato social, ou seja, a partir do desconhecido. “Observe-se que, embora as ruas das grandes cidades forneçam situações anônimas para os que se comportam de maneira correta, essa anonimidade é biográfica.” (GOFFMAN, 1963, p. 77). Em outras palavras, ser biográfico implica o bom e o mau, a saúde e a debilidade, o bonito e o feio, o fracasso e a glória. A partir do momento que determinado indivíduo adentra em uma comunidade, formata-se uma composição do conhecimento sobre ele. Essa estrutura permitirá conhecer o indivíduo, seu caráter, e há, portanto, nessa mudança contingencial, um controle das informações sobre ele. “Dentro de um círculo de pessoas que tem uma informação biográfica sobre alguém – que sabem coisas sobre ele – haverá um círculo menor daqueles que mantêm com ele um vínculo social.” (GOFFMAN, 1963, p. 79). Esse vínculo social, seja ele superficial ou íntimo, garante um contingente de informações sobre determinada pessoa de pessoas que a conhecem pessoalmente. O fato de se encontrarem dentro de determinada organização ou comunidade obriga que se saúdem, troquem comprimentos e eventualmente conversem, o que configura um reconhecimento social. A palavra fama é associada – se não sempre, quase sempre – a um artista, uma celebridade, um ator, um cantor etc. Todavia, se pensarmos em um trabalhador da roça, morador de uma pequena cidade do interior, concluiremos serem pouquíssimas pessoas que o conhecem apenas de nome, ou seja, algumas dessas pessoas podem inclusive conhecê-lo pessoalmente. Entretanto, a fama do homem do interior tem seu nome acrescido por episódios de uma conquista ou de uma posse adquirida, donde o círculo de pessoas que sabem de suas posses e conquistas é maior do que o círculo de pessoas que o conhecem pessoalmente: a fama, então, está instituída. A manifestação da identidade social do indivíduo pela fama por meio de uma conquista, por exemplo, corporifica sua identidade pessoal. Portanto, aquele indivíduo detentor de certa notoriedade, seja numa cidade pequena, seja pela televisão, apresenta em sua 137

identidade social um tratamento diferenciado, fica famoso, e, portanto, em virtude de sua fama, ganha deferência e indulgência complementares por conta de sua identidade pessoal positivamente constituída. A fama possibilita uma identidade pessoal positiva; contudo, ao discutir-se sobre a fama, devem ser considerados o maldizer, a difamação e a má reputação. Essa perspectiva negativa surge, geralmente, do preconceito: quando uma esfera social, um círculo de pessoas, tem um conceito negativo de determinado indivíduo sem conhecê-lo pessoalmente. Goffman (1963) trata a má reputação e a fama separadamente e considera, grosso modo, a fama por uma perspectiva positiva e a má reputação negativamente. “De qualquer forma, a informação prontamente disponível sobre a manipulação da identidade pessoal deve ser buscada nas biografias e autobiografias de pessoas famosas ou de má reputação.” (GOFFMAN, 1963, p. 83). Em suma, os contatos que um ser humano faz na sua vida pessoal, não raro, de forma casual, efetivamente, na vida cotidiana, mantêm o indivíduo a uma biografia: um sujeito detentor de uma multiplicidade de “eus”. A identidade pessoal, ou seja, as impressões que o indivíduo tem de si próprio, aglutinadas a sua história pessoal contada por ele mesmo, e ainda justaposta com a história de vida abstraída de sua identidade social são elementos absolutamente ponderáveis na construção da biografia de qualquer ser humano.

4.5 Realidade biográfica: relação entre os sujeitos

Vilas Boas (2007) afirma que “biografia é o biografado segundo o biógrafo.” (VILAS BOAS, 2007, p. 20). O autor complementa que para ele não precipitar-se, admitiu “que biografia é um gênero literário de não-ficção.” (VILAS BOAS, 2007, p. 20). O que deve nos oferecer uma biografia? A biografia deve nos oferecer uma descrição. Descrição esta desenvolvida para descrever uma existência. Para Vilas Boas (2007), “biografia é a vida de uma pessoa (acima de tudo) narrada com arte por outra pessoa.” (VILAS BOAS, 2007, p. 22). Dines (1981) tece considerações interessantes sobre o que ele chama de arte de biografar: “transgredir é essencial na arte biográfica. Mais do que gênero literário, a biografia é um desacato. Insubordinação contra a morte, fixação na vida, exercício de suscitação, ressuscitação dos finados e esquecidos”. E acrescenta: “biografia não é ciência então só pode ser arte.” (VILAS BOAS, 2007 p. 22). 138

Segundo Vilas Boas (2007), as biografias são diferentes das histórias de vida empregadas nas humanidades visando ao coletivo, não constituindo propriamente um gênero literário. Se nas humanidades foca-se a vida no coletivo, na biografia privilegia-se o indivíduo. Trata-se de revelar no espaço biográfico uma personalidade única. Acrescenta Vilas Boas (2007) muito acertadamente sobre um aspecto do gênero biográfico:

A individualidade é aderente a biografia, dentro da qual se pode procurar conhecer como um ser humano viveu em seu tempo; como uma vida pode influenciar muitas – mesmo a vida do próprio autor, pois nenhum biógrafo respeitável pode permanecer à sombra do seu biografado (vivo ou morto) tanto tempo, pesquisando- o, interpretando-o, diariamente às vezes, durante vários anos, e não ser tocado pela sua experiência (VILAS BOAS, 2007, p. 24).

E traça um paralelo entre as artes plásticas e a biografia; entre biógrafo e crítico de arte:

O papel de ambos é idêntico, esse é o ponto. Ambos desejam algo; ambos procuram e são procurados pelo humano ser que habita a obra (material ou imaterial), o que resulta dessa procura é um encontro e sua consequente aventura em torno de uma forma (vital, humana e psíquica) repleta de significados (VILAS BOAS, 2007, p. 27).

Merleau-Ponty (1975) considera que o pintor Cézanne trazia em sua essência a sua obra e que, ao enxergarmos a sua obra, vemos nela as circunstâncias da vida carregando um sentido que na realidade é da obra e não da vida. Não se trata de a vida explicar a obra, todavia a obra composta por Cézanne exigiu dele uma certa vida, assim como a vida dele exigiu sua obra. Vilas Boas (2007) assinala dois valores em histórias de vida: o da relacionalidade e o da reflexibilidade. A relacionalidade é um conjunto de implicação que se exige nas relações entre o biógrafo e o biografado. Na perspectiva de Cole e Knowles (2001), a compreensão de relacionamentos entre biógrafos e biografados se contrapõe às perspectivas tradicionais que incentivam a distância, a formalidade e a estabilidade para a definição das fronteiras inter- relacionais. As visões segundo as quais os autores se contrapõem são aquelas em que evitam a “contaminação” como sendo uma suposta ameaça para a pesquisa. Essas visões consideram que o distanciamento nas relações entre o biografo e o biografado é mais adequado. Os autores discordam, considerando o relacionamento da pesquisa sem essa contaminação, que corresponde a um relacionamento aprofundado entre biógrafo e biografado, uma relação 139

análoga a um tratado de negócio. Segundo Cole e Knowles (2001), o processo da pesquisa de história de vida deve ser humanista, complexo, e em constante reforma. Enxergam a ética o empirismo e a humanística como chaves de um processo de mudança e transformação nas relações recíprocas de acordo entre biógrafos e biografados. Para a reflexividade, a base é a empatia. Trata-se de cordialidade, boa vontade, preocupação e boa intenção em relação à história vivida pelo outro. É importante que o biógrafo/pesquisador sinta o que sentiria se estivesse nas mesmas circunstâncias de vida que foram vividas e vivenciadas pelo outro. Essa valoração equivale-se a afirmação de Bakhtin de que o biógrafo deve manter com o biografado uma relação quase que de parentesco. Trata-se de compartilhar as alegrias e tristezas do biografado do ponto de vista do interlocutor. Cole e Knowles (2001) argumentam sobre a reflexão no que tange à pesquisa:

Ser reflexivo em pesquisa significa engajar-se em um processo continuo de espelhar ideias e experiências sobre alguém, com um conhecimento explícito do posicionamento desse alguém na pesquisa. Ser reflexivo em pesquisa também significa elevar a percepção empática desse alguém... Quando os pesquisadores se colocam na posição do “outro” em uma pesquisa, podem estender seus entendimentos vivenciais do que significa ser pesquisado. Tal conhecimento implica empatia na prática da pesquisa. (COLE e KNOWLES, 2001 p. 43 apud VILAS BOAS, 2007 p. 34).

Vilas Boas (2007) acrescenta sobre as relações biógrafo/biografado concernentes à pesquisa:

Aceitei como princípio fundamental que as relações motivacionais entre a vida do biografado e suas obras (as realizações inerentes a qualquer vida) se imbricam também nas relações motivacionais do biografo-autor, porque pesquisar é também um ato autobiográfico. (VILAS BOAS, 2007, p. 34).

A realidade biográfica mostra não ser possível construir uma biografia sem recorrer à história de vida, às recordações suas ou de outrem. Vilas Boas (2007) conclui haver na relação biógrafo e biografado uma relação metabiográfica. E por que meta? Porque segundo a visão do autor, essa relação deve advir de um rompimento um “encerramento em nós mesmos (egocentrismo), em nossa cultura (etnocentrismo), em nossa civilização (ocidentrocentrismo).” (VILAS BOAS, 2007, p. 40). Para ele, o biógrafo partiria de uma explicitação comedida de sua consciência sobre as suas interpretações a respeito dos limites e possibilidades da escrita de uma biografia. As autorreflexões de quem escreve seus significados e, acima de tudo, os significados do outro é 140

absolutamente importante nessa relação, considerando-se que, evidentemente, a vida de quem se escreve é mais importante do que a vida do biógrafo que escreve, mas as experiências do biógrafo não podem ser totalmente descartadas. Acrescenta o autor sobre metabiografia:

Metabiografia é um modo de narração biográfica que dá atenção também aos exames e autoexames do biógrafo sobre o biografar e sobre si mesmo. Mas porque pensar nisso? Porque a análise e autoanálise são partes constitutivas do processo de construção de uma vida pela escrita. Esse processo é do biógrafo, do biografado e de ambos, juntos, harmônicos no mesmo cenário volátil; metabiografia porque qualquer processo biográfico extravasa e consagra o relacionamento sujeito-sujeito. (VILAS BOAS, 2007, p. 41).

Vilas boas (2007) nota também uma tendência dos biógrafos de retratar fenômenos da personalidade do biografado, explicando-os por meio da descendência do biografado. Trata-se de uma opção dos biógrafos, que preenchem páginas e páginas com as descendências do biografado pressupondo que seus ancestrais consanguíneos traçariam a personalidade das gerações subsequentes. Para o autor (2007):

Biógrafos adoram recorrer a pais, avós e bisavós para tentar explicar temperamentos, atitudes destrutivas, decisões arriscadas, fracassos, repetições, estranhezas, conquistas etc. Há os que explicitam ou insinuam relações de causa e efeito entre o passado e o presente; outros preferem apenas cumprir um ritual: fornecer registros informativos sobre familiares. (VILAS BOAS, 2007, p. 48).

São essencialmente relevantes essas considerações se pensarmos que em nenhum outro espaço social, como a família, o indivíduo é tão evidenciado. O indivíduo é fortemente marcado no núcleo familiar. Há, portanto, uma tentativa de psicanalisação do indivíduo. Contudo, nessa tentativa de buscar respostas na relação do indivíduo com o pai e, mais precisamente com a mãe, os biógrafos correm o risco de enveredar por um caminho oriundo da análise psicanalítica e não propriamente da história de vida do biografado. Essa psicanalisação relativamente vazia, que tem como pressupostos o complexo de Édipo, sexualidades infantis etc., parece ter caído no gosto de resenhistas de biografias e literatos, tendo desenhado uma composição em torno do biografismo de “mentalidade freudiana persistente” (VILBAS BOAS, 2007, p. 58). Vilas Boas (2007) acrescenta que: 141

Histórias de vida (em sentido lato) são metáforas de algo maior, e não um quebra cabeças finito, em que todas as peças se encaixam direitinho. Há chamados muito íntimos, que não necessariamente se conectam com cordões umbilicais ou com inconscientes coletivos, e os biógrafos precisam estar atentos a isso, cientes de que tais sutilezas podem, sim, estar numa biografia (explícita ou implicitamente). (VILAS BOAS, 2007, p. 77).

Para Vilas Boas (2007), a família reforça nossas tendências e vocações, “mas a disposição para desenvolver uma função é também arquetípica.” (VILAS BOAS, 2007, p. 77). Merleau-Ponty (1975, p. 205 apud VILAS BOAS, 2007 p. 77) escreveu que muito além do inato e do adquirido está “o momento da experiência”, um momento que pode ser precoce ou tardio, interno ou externo, físico ou sensorial. Há distinções no espaço biográfico no que tangem à multiplicidade de coexistência intertextual de gêneros discursivos diversos em torno dos sujeitos e suas posições no que envolve a identidade dos sujeitos em torno da existência, em torno do real. Por meio das características do gênero do discurso biografia, ancorados nas categorias de análise: autor e autoria, reportagem e intertextualidade, conteúdo temático, estilo e construção composicional, perspectivaremos, no próximo capítulo, como se dá a relação entre a biografia e reportagem, gêneros do discurso que dividem o mesmo espaço biográfico. A compreensão da expansão possível do gênero biografia dar-se-á de maneira empírica, por intermédio da análise.

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5 ANÁLISE DO CORPUS: BIOGRAFIA E REPORTAGEM

O gênero do discurso biografia é uma comemoração da vida, uma deselegância com a morte e uma contemplação do indivíduo, de sua vida, de sua história; desfruta de relativização da estabilidade. A biografia–reportagem não é diferente. Contudo, na biografia-reportagem de Silvio Santos – A trajetória do mito (2017), a constituição genérico-discursiva goza de algumas particularidades, não somente pela relação autor-autoria, mas também pela sua estrutura formal: a construção composicional desse gênero do discurso híbrido é diferente. A biografia de Silvio Santos é biografia por contar a trajetória de vida de um dos maiores empresários e comunicadores brasileiro, sem dúvida o maior animador de auditório do Brasil, de maneira diferenciada, e, para isso, conta com dois autores: Fernando Morgado e o próprio Silvio Santos. A voz de Fernando Morgado aparece na narração biográfica de maneira bem marcada, por meio de discurso direto do próprio autor e suas escolhas estilísticas. A voz de Silvio aparece na narração biográfica por intermédio do discurso direto e do discurso indireto, mas se solidifica, principalmente, nas reportagens organizadas por Fernando Morgado, que são absolutamente acentuadas pela intertextualidade manifesta. Portanto, é biografia por ser conclusivamente heterogênea assentada em um estilo assinalado pelo discurso de outrem. As reportagens mediadas por grandes jornais, como O Estado de S. Paulo, o Globo, a Folha de S. Paulo e de grandes revistas, como a Veja, A crítica, O cruzeiro, além de depoimentos recolhidos da biografia de Arlindo Silva, A fantástica História de Silvio Santos, assinam a coautoria das reportagens. Há, ainda, discursos de Silvio no SBT. O gênero biografia encabeça uma atmosfera biográfica composta por autobiografias, depoimentos, memórias, diários íntimos, tabloides, talk e reality shows, e agora, também, a reportagem, como um gênero do discurso fértil para a construção biográfica deste espaço tão denso e povoado, constitutivo da vida de cada um de nós.

5.1 Silvio Santos – A Trajetória do Mito: uma biografia

Dentre as literaturas, de um modo geral, as biografias e autobiografias seguem, na contemporaneidade, um movimento inverso da popularização do autor como pessoa, difundida a partir do século XIX nos romances de muitos volumes. Por exemplo, ao falarmos em Dostoiévski, aparece a figura do autor de Crime e Castigo, O idiota e Os irmãos 143

Karamázov, gênio, jogador e epilético. Ao Falarmos de Fernando Morgado, aparece a personagem, Silvio Santos, à frente do autor, e o seu livro, Silvio Santos – A trajetória do mito. As biografias, assim como nas epopeias gregas, como Ilíada, Odisseia e Eneida, a figura do herói biografado tem maior destaque do que o autor (biógrafo) que assina a obra. Não diríamos que o herói, Silvio Santos, é a própria obra, porque Morgado se faz presente na construção narrativa, mas é a maior parte dela. Nesse sentido, há uma morte do autor real em detrimento do herói: morre Morgado para que nasça Silvio Santos – personagem e autor da própria história. Essa morte do autor é atestada pelo próprio Morgado, ao apresentar-se no exórdio da biografia, capítulo I – O homem por trás do sorriso como um organizador. Nas palavras de Morgado (2017):

Por fim, cumpre acentuar que todas as citações foram trabalhadas com a maior fidelidade possível aos registros originais. Contudo, revisões pontuais, comuns a prática jornalística, foram feitas em períodos extraídos de longos discursos de improviso, feitos no calor da emoção e que, por isso mesmo, não se mostraram integralmente claros ou gramaticalmente corretos quando transcritos. O organizador23 dedicou seu máximo empenho a fim de preservar as palavras ditas originalmente e, sobretudo, o sentido com o qual foram empregadas. (MORGADO, 2017, p. 13).

Morre o autor para nascer o escritor, que morre para nascer o organizador e, com a morte do autor-organizador, a personagem Silvio Santos ganha força e status de mito. Todavia, Silvio Santos é autor das reportagens, assim como os jornais as quais foram vinculadas. Há excertos das reportagens passíveis de três vozes de autoria: Morgado, Silvio Santos e o jornal ou revista de divulgação, como no excerto abaixo:

[O rádio] É um extraordinário veículo de comunicação, como a TV. Tem as suas características próprias, alcance diferente, horário nobre diurno, enquanto a TV é o noturno. Enfim, tem condições para conservar e até ampliar sua importância como veículo de comunicação de massa, principalmente agora que se pretende alfabetizar milhões de brasileiros, que moram aonde muitas vezes a imagem da TV não chega. Como veículo de publicitário, acredito que continue gozando de muito prestigio, pois todas as empresas que vendem alguma coisa anunciam no rádio, a começar pelas maiores. – O cruzeiro, 5 de maio de 1971 (MORGADO, 2017, p. 93).

23Nesta sessão, todos os trechos grifados em negrito ou itálico são de nossa autoria. 144

O rádio, entre colchetes no começo do excerto, em negrito, significa uma inserção do autor-organizador Morgado a partir de um contexto para dar sentido a reportagem organizada para a biografia. O “eu”, voz de Silvio Santos, está presente a partir do verbo acreditar no presente do indicativo “acredito” e a revista O cruzeiro assina a reportagem, possivelmente advinda de uma entrevista com o “homem do baú”. Mesmo na reportagem, há um apagamento da voz do autor-organizador, Morgado, já que o rádio entre colchetes deixa implícita a voz a do próprio Silvio Santos. Paradoxalmente, esse apagamento, essa “morte do autor” (BARTHES, 1988 [1978]) representa a função de ser autor quando Morgado assume sua função de organizador e responsabiliza-se pela obra. Quando se assume como organizador, Morgado delega a si mesmo a competência de uma função. Subentende-se, então, que Morgado é proprietário da biografia que escreveu e organizou, e é responsável por ela. Morgado (2017) tem seu nome na capa da biografia, colocando-se como autor abaixo do nome Silvio Santos, e instituí Silvio por meio da fala, auxiliado pela imagem (foto de capa) como mito. Todavia, o mito Silvio Santos nasce pela linguagem e discursivamente de forma bipartida, como prevê Barthes (2006). Existe esse primeiro ato de fala representativo do título do livro Silvio Santos – A trajetória do mito, associado a foto do animador de auditório. Contudo, é intertextualmente, em um segundo momento, que o mito se estabelece. Morgado, no capítulo II, ao introduzir as reportagens, a trajetória de Silvio à frente dos seus negócios, intitula nesse momento Silvio Santos por ele mesmo assim: “Toque de Midas”. Midas é um personagem da mitologia grega, um rei, donde sua principal característica é de transformar em ouro tudo o que toca. Nota-se uma escolha estilística de autoria que caminha em direção da fraseologia: essa ponderação se dá pelo mito de Midas ser muito popular, que origina e evolui sua manifestação – pelo termo Toque de Midas – para uma expressão idiomática. Silvio Santos e o Toque de Midas:

Um dia eu estava passando na Avenida Rio Branco, tinha algum dinheiro no bolso e resolvi comprar três carteirinhas de plástico [para guardar título de eleitor]. Era 1945, época de eleição para a presidência da República. Achei que poderia ganhar algum dinheiro vendendo as carteirinhas. Comprava três por Cr$ 3,00 e vendia por Cr$ 5,00 cada uma momentos depois. Era bom negócio. – O Estado de S. Paulo, 17 de agosto de 1983 (MORGADO, 2017, p. 30). 145

Ocorre no excerto acima, novamente três manifestações de autoria: Silvio Santos (eu), Morgado (para guardar o título de eleitor) e O Estado de S. Paulo (que assina a reportagem). Embora Morgado (2017) se classifique pela função de ser autor como organizador, nota-se que a voz de autoria do biógrafo-autor aparece o tempo todo. Sua presença acontece efetivamente nas escolhas lexicais, fraseológicas e gramaticais da língua, mas, sobretudo, pelo discurso direto não marcado, pela interação com o leitor e pela intertextualidade manifesta e intertextualidade constitutiva na narrativa biográfica. Vejamos as ocorrências de intertextualidade manifesta na narrativa biográfica constituída a partir das reportagens de Silvio. Considera-se que Morgado (2017) não é o sujeito único da enunciação, mas sim um sujeito dialógico, donde a voz de Silvio nas reportagens dialoga com a voz de Morgado na narrativa biográfica. Consideremos a narrativa construída no capítulo 2, Negócios, a partir da reportagem Toque de Midas – Silvio Santos por ele mesmo:

Gritando, um homem chamava a atenção de quem passava pela Avenida Rio Branco. Ele vendia carteiras plásticas para guardar título de eleitor. O ano era de 1945. Após o fim do Estado Novo, o Brasil voltava a ser uma democracia, ou seja, havia demanda para as tais carteiras. Senor ficou tão impressionado com a facilidade com que as vendas aconteciam que não resistiu a seguir o tal homem. Logo descobriu que ele comprava grandes quantidades em uma loja na rua Buenos Aires, reduzindo, assim, o valor pago por unidade. Interessado no esquema resolveu testar. Com uma moeda de 2 mil réis, comprou a primeira carteira. Foi para a calçada, falou para quem passava e logo fez a venda. Rapidamente voltou para a loja e comprou mais duas carteiras, também vendidas facilmente. Quanto mais dinheiro ganhava, mais o seu entusiasmo aumentava. Foi então que decidiu: seria camelô. (MORGADO, 2017, p. 16).

Morgado retoma a descrição do fato, a venda das carteirinhas, como prevê Fairclough (1992), reutilizando-o, reacentuando-o e retrabalhando-o, ao ampliar a narrativa com novas informações, por exemplo, o valor da primeira carteira: 2 mil réis e como Silvio Santos decidiu então ser camelô. Trata-se de uma intertextualidade manifesta não marcada, concomitantemente vertical e horizontal. Há a orientação vertical porque são textos sobre outros textos – narrativa biográfica que amplia as reportagens – e estão amparados por um contexto imediato. É também horizontal pela intertextualidade se dar entre um texto base – a narrativa biográfica – e aquele que o precede – as reportagens de Silvio Santos. Outro exemplo é esse excerto da reportagem: “Já vendi um jipe ao Ronald Golias e depois o mesmo jipe voltou pra mim, com muito lucro...”. – Revista do Rádio, 20 de agosto 146

de 1960. (MORGADO, 2017, p. 33). Morgado (2017) explica de maneira contrastiva na narrativa biográfica:

Nessa época, conseguiu fechar com os candidatos a reeleição Antonio Sylvio Cunha Bueno, deputado federal, e Carlos Kherlakian, deputado estadual, um pacote de 40 comícios. Em troca, conseguiria comprar um Jeep Willys. Para cumprir sua agenda, o sacrifício era grande. Silvio saía de casa pela manhã e só retornava de madrugada, realizando até três shows por dia, de quinta a domingo. Ele cuidava de tudo sozinho: circulava pela região fazendo propaganda, armava o palco, apresentava o espetáculo e, ao final, desmontava a estrutura, sem falar que ainda tinha de ficar atento a bilheteria, por medo de ser roubado, e pagar todos os artistas. A saúde logo reclamou. Para aguentar, tomava injeções de cálcio-cetiva na veia. Por fim, conseguiu comprar o carro, que acabou vendendo com lucro para Ronals Golias, seu colega de Nacional. (MORGADO, 2017, p.57-59).

Trata-se de um intercruzar de superfícies textuais. Olhemos o depoimento-reportagem de Silvio para o livro 50 anos de TV no Brasil, organizado por J.B. de Oliveira Sobrinho, Boni (2000):

O acontecimento que mais me emocionou em todos estes anos de programa foi o lançamento do Teleton. Não queria que o Teleton fosse um evento do SBT, eu queria, como acontece em outros países, que todas as emissoras estrassem juntas, formando a Rede da Amizade, mas, por mais que eu me esforçasse... Isso, por enquanto, não foi possível. Ainda não conseguimos formar a Rede da Amizade. (MORGADO, 2017, p. 80).

Morgado (2017), intertextualmente, utiliza praticamente as mesmas palavras: “O acontecimento que mais emocionou Silvio diante das câmeras foi o lançamento do primeiro Teleton.” (MORGADO, 2017, p. 68). Na narrativa biográfica de Morgado encontram-se textos construídos a partir de outros textos, como se vê. A narrativa abaixo foi inspirada no discurso de inauguração da TVS:

O que nem os observadores nem Silvio Santos esperavam era que o transmissor do antigo canal 9 carioca tinha sido construído para operar em cores mais de uma década antes do início oficial da TV colorida no Brasil. Foi um verdadeiro milagre que o empresário fez questão de contar em público no discurso de inauguração da TVS, transmitida às 20h55min de 14 de maio de 1976, uma sexta- feira. (MORGADO, 2017, p. 103-104).

O excerto-reportagem do discurso de Silvio na inauguração da TVS:

Silvio era a pessoa mais apressada do mundo e era também um sujeito de muita sorte. Li nos jornais que a massa falida da extinta TV Continental, canal 9 do Rio de Janeiro, seria leiloada e disse para o meu amigo e superintendente dos 147

estúdios, Luciano Callegari: ‘Olha, Luciano, se nós arrematarmos tudo no leilão, não vamos precisar esperar 8 meses pela construção da torre e da antena”. O material anunciado no edital do leilão era sucata, disse muita gente entendida. O próprio leiloeiro achava que iria leiloar um monte de ferro velho. Conseguimos, com o maior lance, comprar todo o material do leilão e os jornais disseram que o nove concessionário já estava começando com o pé esquerdo e fazendo um péssimo negócio. Fez-se uma descoberta espantosa. Quem poderia adivinhar que o velho transmissor, da velha Continental, fora construído para funcionar a cores uns dez anos antes de se instalar a televisão a cores no Brasil? Mas quando há boa vontade, Deus ajuda e tudo acontece. – TVS, 14 de maio de 1976. (MORGADO, 2017, p. 122-123).

A reportagem recolhida do discurso inaugural da TVS amplia intertextualmente a narração biográfica, caracterizando um movimento inverso, donde a reportagem expande a narração biográfica e não a narração biográfica que expande a reportagem. “Eu sempre sonhei em ter no Brasil uma vida como os americanos têm nos Estados Unidos”. – SBT, 21 de agosto de 2011. (MORGADO, 2017, p. 173). Esse enunciado de Silvio Santos é revisitado por Morgado na narração. Trata-se de uma reacentuação, uma repetição do enunciado original, e essa reformulação modifica o texto narrativo biográfico. “Disse acreditar que o ideal é viver a classe média dos Estados Unidos, seu país de referência, não apenas quando pensa em televisão, mas também em Saúde, emprego, segurança pública e qualidade de vida.” (MORGADO, 2017, p. 171). Em depoimento para o livro 50 anos da TV Brasil, organizado por Boni (2000), Silvio fala sobre o que considera ser sua maior criação:

Entre os muitos quadros que apresentei, penso que minha maior criação foi o Cidade Contra Cidade, que segundo dizem, foi copiado no mundo inteiro. O Cidade Contra Cidade começava às 10 horas da noite e ia até as 4 horas da madrugada. (MORGADO, 2017, p. 78).

Na narração biográfica:

Em 1964, aos sábados à tarde da TV Tupi de São Paulo, começou o Festival da Casa Própria. Quatro anos depois, nesse mesmo canal, lançou atrações noturnas, com destaque para aquela que considera ser sua maior criação: Cidade Contra Cidade. Essa gincana reunia desde provas físicas até testes de conhecimento, passando por números artísticos, concursos de beleza, ações comunitárias e exibições folclóricas. Com tantas atrações, o programa muitas vezes invadia a madrugada e, não raro, os telespectadores só conheciam o vencedor por volta das quatro horas da manhã. (MORGADO, 2017, p. 60).

A narração biográfica dialoga com as palavras do próprio Silvio no depoimento, todavia amplia as informações também: o programa – Cidade Contra Cidade – era uma 148

gincana que “reunia desde provas físicas até testes de conhecimento, passando por números artísticos, concursos de beleza, ações comunitárias e exibições folclóricas”. (MORGADO, 2017, p. 60). Silvio Santos, referindo-se ao serviço de alto-falante na barca, seu primeiro empreendimento, no translado Rio-Niterói, acrescenta:

Ganhei muito dinheiro com isso. Mas a barca entrou no estaleiro para sofrer reparos e eu não poderia ficar parado. Mudei-me para São Paulo, onde ingressei na rádio nacional. Se não tivesse feito isso seria um desastre, pois até agora a barca está em conserto. Revista do Rádio, 23 de outubro de 1965. (MORGADO, 2017, p. 33).

Morgado (2017) desenvolve na narrativa o acontecimento da barca marcando a própria voz pelo discurso direto, sinalizado da seguinte forma: “Esse negócio, que parecia tão promissor, logo sofreria um golpe: com problema no eixo, a barca, onde estava o bar, foi parar no estaleiro.” (MORGADO, 2017, p. 18). A recorrência estilística de Morgado, pelo discurso direto, não marcado por aspas, tampouco por travessão, acontece algumas vezes na trama narrativa. Vejamos dois exemplos no mesmo parágrafo:

Desde 1982, o SBT exibe produções da Televisa, começando por Os Ricos Também Choram. Muitas delas seguem o mesmo enredo: uma jovem bonita, pobre, solteira, virgem e devota de Nossa Senhora de Guadalupe desperta a paixão de um homem bonito, rico, mas casado com uma mulher má, e conta com o apoio de crianças, idosos, e/ou empregados para casar-se com o tal homem. Spoiler: no final, a mulher má morre e a jovem bonita, pobre, virgem e devota consegue seu tão sonhado matrimonio com o homem bonito, rico, ficando assim, rica também. (MORGADO, 2017, p. 114).

O discurso direto do autor é marcado por dois pontos, que assinala sua constituição pela manifestação de sua heterogeneidade, característica constitutiva do gênero biografia. A intertextualidade manifesta entre as reportagens e a narrativa da biografia propicia, de maneira ora vertical, ora horizontal, uma construção intertextual, como pontua Kristeva (1960), de enunciados que repetem enunciados, mas, sobretudo, enunciados que ampliam enunciados. Cabe-nos a conceitualização de Fairclough (2001, p. 137): “o texto de um outro, pode estar claramente separado do resto do texto por aspas e verbo dicendi, ou pode não está marcado e estar integrado estrutural e estilisticamente, talvez por meio de nova formulação do original, no texto em sua volta.” 149

A intertextualidade não marcada – que está nessa relação entre a narrativa biográfica e as reportagens, entrevistas e depoimentos de Silvio – é uma estrutura textual complexa, donde a heterogeneidade goza de elementos integrados que ficam evidentes na superfície dos textos. Isto é, “o outro é deliberadamente mostrado pelo um, seja por ser imitado no discurso, seja por ser materializado na expressão textual.” (DISCINI, 2016, p. 224). Todavia, existe na biografia-reportagem de Silvio Santos a intertextualidade marcada precedida por verbos dicendi:

Estimulado pelos incentivos fiscais que o governo da época oferecia, Silvio adquiriu algumas fazendas, e uma delas, em Mato Grosso, se chamava Tamakavy. Quando decidiu lançar sua nova cadeia de crediários, recebeu uma pesquisa de nomes e o da fazenda apareceu entre as opções. Ao bater os olhos nele, Silvio não pensou duas vezes e o escolheu. Após ser alertado por seus assessores de que seria um nome difícil de memorizar, rebateu: – Se será difícil de ser lembrado, será duplamente difícil de esquecê-lo. (MORGADO, 2017, p. 22).

Trata-se de uma marcação pelo elemento paratextual travessão. Outro exemplo intertextual que pressupõe alteridade e delineia uma característica intrínseca ao gênero biografia – “eu” somente existo diante de um “você” – deixa clara a intertextualidade manifesta marcada pelo verbo dicendi “disse” e pelo travessão. Tratar-se-á de um diálogo:

Quatro anos depois, constituiu a Omed, Organização Médica, responsável pelo Clam, o primeiro plano de saúde combinado com capitalização do Brasil. Assim, Silvio realizava seu antigo desejo de oferecer médicos e hospitais a preços acessíveis para as camadas populares. O sucesso de vendas foi imediato, mas acabou provocando uma forte dor na consciência. Certo dia, ao chegar em casa, encontrou na calçada um casal aos prantos. O pai disse: – Seu Silvio, o meu filho morreu... – Mas morreu de quê? – Eu tinha o Clam e ele morreu. – O senhor sabe, eu não tenho culpa, eu não sou médico. – Não, eu sei, mas o meu filho morreu... Depois desse diálogo, Silvio descobriu que alguns vendedores do plano diziam que, por ser dele, o Clam garantia a vida dos seus clientes. Isso o fez desistir da empresa, que terminou vendida para a Blue Life. (MORGADO, 2017, p. 24).

A heterogeneidade da biografia conta com uma perspectiva textual desigual, intertextual, mal-ajambrada, mas é heterogênea por ser também uma superfície às vezes regular. 150

Vejamos a intertextualidade manifesta marcada por verbo dicendi e aspas:

Para a edição de julho de 1986 da revista Marketing, Silvio declarou: “O que pretendemos é ter programação diversificada, bem-feita, mas sem nunca fugir do nosso propósito de fazer uma televisão que, através de uma linguagem simples e bem elaborada, possa ser assistida por todas as camadas sociais”. (MORGADO, 2017, p. 109).

Outro exemplo de intertextualidade manifesta mostrada é um texto bem famoso, que ficou anos sendo declamado no SBT. Na biografia, ele é introduzido sem verbo dicendi:

Apesar de sua religião, Silvio já pôs Jesus em seus programas. Ao final de cada edição do Porta da Esperança, surgia a imagem de um ator representando Cristo, olhando para o alto, envolvido pela penumbra. Ao fundo, uma voz soturna lia o seguinte texto: “Paz, amor, fé, esperança, luz e união não são apenas palavras. Você tem certeza de que já fez tudo que podia pelo seu semelhante? Pense bem, pois um dia vamos nos encontrar e eu gostaria muito de chama-lo de meu filho”. (MORGADO, 2017, p. 170).

Na biografia-reportagem, há intertextualidade manifesta – voz do Silvio –, separada do corpo da narração, que não está marcada, nem por aspas, nem por travessão, nem por dois pontos, tampouco por verbo dicendi:

Os altos gastos, combinados com a crise econômica aprofundada pelo Plano Collor e a forte retração do investimento publicitário, fizeram Silvio quase falir em 1990. Sobre esse assunto, ele expressou sua visão em entrevista publicada pelo jornal O Estado de S. Paulo, em 18 de outubro de 1987. (MORGADO, 2017, p. 24).

Se amanhã o Saad [da Bandeirantes] ou o Marinho [da Globo] vai à falência, é normal. É um jogo, ir à falência faz parte do negócio. Mas eu não. Se eu for à falência, passo a ser ladrão. Vou ter quatro milhões de pessoas me apontando como ladrão, vou ter de mudar de país, se quiser viver. Minha responsabilidade como empresário é muito maior que a responsabilidade de qualquer outro. São 15 mil pessoas que trabalham usando o meu nome, vendendo o meu nome. Eu assumo a responsabilidade. (MORGADO, 2017, p. 25).

É curioso perceber que as escolhas do autor são efetivamente heterogêneas, já que não seguem um padrão para expressar as manifestações intertextuais na biografia. Todos os exemplos abaixo estão no capítulo seis da biografia-reportagem – Vida pessoal. Diferentemente dos exemplos já investigados, Morgado dá voz a Silvio Santos com ajuda das aspas, fora e dentro do corpo do texto: 151

Nas poucas vezes que falou sobre a forma que enxerga a vida, um dos aspectos que mais ressaltou foi o amor ao trabalho, que já disse ser “a coisa mais importante para o ser humano”. Durante uma gravação feita no final dos anos 1980, Silvio desenvolveu essa ideia. (MORGADO, 2017, p. 168).

“Muitas coisas eu deixei de fazer, tantas horas de lazer eu perdi em nome do compromisso, em nome da responsabilidade, em nome do dever. E valeu apena, sabe? Eu não tive medo de correr riscos! Isso hoje me dá autoconfiança, porque a experiência da minha vida me mostrou que é possível fazer qualquer coisa, desde que nós estejamos dispostos a trabalhar”. (MORGADO, 2017, p. 169).

Os dois excertos estão ligados; contudo, a citação direta, intertextualidade manifesta pela voz de Silvio, não está ligada ao parágrafo anterior por dois pontos e sim pelo tema. São realmente escolhas de autoria assimétricas, já que Morgado insere também o discurso direto de Silvio no corpo do texto, na narrativa biográfica, com o auxílio das aspas antecedido por dois pontos sem recuo:

Manuel completava 60 anos de vida e apresentava a Praça da Alegria dentro do programa Silvio Santos, ainda na Globo. Ao final, Silvio, olhando para as suas colegas de trabalho: “Vocês sabem que tudo o que eu tenho foi Manuel de Nóbrega que me deu. Ele me deu o Baú, me deu o programa de rádio, me deu o programa de televisão. Mas tudo isso eu poderia ter, eu poderia ter um Baú, eu poderia ter um programa de rádio, eu poderia ter um programa de televisão. Mas há uma coisa que ele me deu, e só ele podia me dar: é o exemplo de um trabalho honesto, um amor ao trabalho...”. (MORGADO, 2017, p. 167-168).

Outro exemplo de discurso direto, voz do Silvio, portanto, intertextualidade manifesta, ocorre novamente ligado pelo tema, entre um parágrafo e outro, com recuo e aspas:

Catorze anos depois, Silvio repetiu a mesma surpresa quando Carlos Alberto de Nóbrega, filho de Manuel, estreou A Praça é Nossa. Terminados todos os quadros, o animador entrou no palco batucando uma colher de café em um pires, revivendo os tempos de camelô. Deu ordens para tirar todos os intervalos comerciais daquele momento em diante. Por uma hora, relembrou passagens da vida dele com Manuel e Carlos Alberto, que Silvio havia tirado da Bandeirantes e transformado em diretor artístico do SBT. “Você [Carlos Alberto de Nóbrega] não veio só como redator, você não veio como artista, porque redatores e artistas nós encontramos no Brasil, nos Estados Unidos, Na Argentina. Você veio como meu irmão, você veio como meu amigo, você veio como uma pessoa que vai me ajudar a fazer aquilo que seu pai gostaria de fazer comigo. [...] E você veio me ajudar não no banco da praça, não. Você veio me ajudar com as suas qualidades pessoais, que você herdou do Manuel. Você veio me ajudar agora, depois de uma faculdade na Globo, com suas qualidades profissionais”. (MORGADO, 2017, p. 168). 152

E ainda, no mesmo capítulo da biografia-reportagem, atestamos a heterogeneidade assimétrica do autor marcando a intertextualidade manifesta com travessão, dois pontos e verbo dicendi:

Durante anos Silvio acreditou que alimentar dúvidas seria fundamental para manter o interesse público. Para a revista Veja de 28 de maio de 1975, declarou: – Eu descobri como é importante uma interrogação. É muito difícil criar uma interrogação. Então, quando ela surge, é preciso aproveitá-la. (MORGADO, 2017, p. 165).

Outro exemplo de intertextualidade manifesta, donde ficam claras as divisões das vozes de Morgado e Silvio, está no capítulo Artista, quando Silvio estreia no SBT o programa do Teleton, agora com o link temático entre os dois parágrafos, entre as duas vozes, mas sem os dois pontos, com ponto final e seguido por travessão:

Às 21 horas de 16 de maio de 1998, um sábado, o dono do SBT entrou no palco e fez um discurso apresentando a meta que precisaria ser alcançada. – O Chile, com 13 milhões de habitantes, alcançou 13 milhões de dólares. O México, com 80 milhões de habitantes, conseguiu, há quatro ou cinco meses, 25 milhões de dólares. Nós queremos 9 milhões de reais, cerca de U$$ 8 milhões. (MORGADO, 2017, p. 69).

Dentre as reportagens organizadas por Morgado (2017), irrompe um texto cedido a Veja de 28 de maio de 1975, que foi construído assim: “A minha televisão será diferente de todas as que existem. Não dependerá de Ibope. Seria mesmo a televisão que o povo e o governo gostariam de ter.” (MORGADO, 2017, p. 121). Na narrativa biográfica, essa reportagem é contextualizada, todavia não é modificada: o autor usa as mesmas palavras de Silvio sinalizadas por aspas no corpo do texto. Trata-se de uma intertextualidade manifesta vertical, donde o autor monta um texto sobre outro texto, amparado por um contexto marcado pelo momento em que Silvio Santos tentava a concessão do seu canal de televisão. Esse parágrafo fica assim:

Mas, além do projeto e do lobby, era necessário mudar a imagem que fornecedores de opinião e políticos tinham de Silvio Santos. Muitos deles não conseguiam conceber que o homem brincalhão dos domingos seria capaz de administrar uma emissora ou rede nacional de televisão. Para mudar essa percepção, Silvio e seu grupo de empresas tiveram de se expor mais na imprensa. O auge desse movimento foi a reportagem de capa da edição nº351 da revista Veja, de 28 de maio de 1975. Ela ressaltou muito mais o empresário que o artista e, nas últimas linhas, trouxe as duas frases que resumiam qual seria a postura de Senor Abravanel como radiodifusor: “A minha televisão será diferente de todas as que existem. Não 153

dependerá de Ibope. Seria mesmo a televisão que o povo e o governo gostariam de ter”. O tempo mostraria que, de fato, seu canal não seria igual aos outros, mas o mesmo não se pode dizer com relação à audiência. (MORGADO, 2017, p. 101-102).

Há ainda recorrência de outro tipo de intertextualidade manifesta, complexa, proveniente do discurso indireto, donde o outro, no caso, a voz do Silvio Santos, é mostrada sem auxílios paratextuais, intermediada pelo pronome relativo “que”. Vejamos esses dois exemplos: “Eles não gostaram nada de Silvio declarar que não faria qualquer concessão aos partidos”. (MORGADO, 2017, p. 144) E ainda: “Apesar de tudo, finalmente no Show de Calouros de 13 de março disse que aceitava ser candidato.” (MORGADO, 2017, p. 144). A intertextualidade constitutiva – ou dialogismo, aos moldes de Bakhtin (2010) –, aparece durante toda a biografia-reportagem, contudo com menor recorrência. Na peroração do capítulo Artista, o autor usa um recorte da música do Programa Silvio Santos, que remete à voz do próprio Silvio Santos, já que Silvio abriu seu programa, durante muitos anos, cantando essa música. Eis o recorte: “Senor Abravanel criou Silvio Santos. E Silvio Santos criou um tempo espaço próprio, onde o povo é feliz. Afinal se “do mundo não se leva nada, vamos sorrir e cantar.” (MORGADO, 2017, p. 72). O autor usa enunciados famosos de Silvio na narrativa marcados com itálico: “O auditório mais feminino do Brasil já passou por alguns endereços.” (MORGADO, 2017, p. 66). Ainda, na peroração do capítulo seis da biografia-reportagem, Vida Pessoal, Morgado (2017) faz uso da intertextualidade constitutiva parafraseando as palavras de Steve Jobs à Apple no discurso “Isto é para os loucos”. O capítulo referindo-se a Silvio Santos termina assim: “Alguns podem rejeitá-lo, enquanto outros podem amá-lo, mas ninguém pode ignorá- lo.” (MORGADO, 2017, p. 172). Morgado (2017) faz uso de estratégias interacionais no texto para conversar com seu leitor, dialogar com ele. Segundo Kock e Elias (2012), a interação no processo de escrita – autor e o leitor – não pode ser entendida somente como produção textual, apropriação das regras da língua, mas como uma tentativa e uma busca pela adesão do leitor por meio da palavra. O autor (2017) busca a adesão por meio de perguntas retóricas e comentários exclamativos, que são absolutamente interativos:

A partir da venda de eletrodomésticos pelo crediário, surgiu a Baú Financeira, que logo passou a trabalhar também com automóveis. E por que não ter uma concessionária? Assim, ficaria mais fácil comprar os carros que Silvio sorteava aos domingos na TV e consertar as Kombis que transportavam os revendedores do Baú. (MORGADO, 2017, p. 22). 154

Um comentário exclamativo se apresenta na biografia-reportagem quando Morgado (2017) escreve sobre uma das brincadeiras propostas por Silvio em seus programas:

Uma dessas brincadeiras envolvia um tanque cheio de água. Em cima dele, era colocada uma tábua. Os participantes deveriam se sentar nessa tábua e abrir um envelope que tinham em mãos. Se esse envelope contivesse a palavra “prêmio”, ganhavam o dinheiro e saíam secos; se contivesse a palavra “água”, a tábua virava e mergulhavam no tanque. Na edição do Topa Tudo por Dinheiro levada ao ar em 16 de agosto de 1992, Silvio resolveu testar a estabilidade da tal tábua e sentou-se nela. Brincando, ameaçou demitir toda a equipe da fábrica de cenários caso a tábua não aguentasse. Ao tentar sair, ele se desiquilibrou e caiu na água. Com roupa e tudo! O microfone parou de funcionar e o penteado construído pelo Jassa se desmanchou. As risadas não paravam. Não lhe restou alternativa a não ser encerrar o programa. (MORGADO, 2017, p. 68).

O nome artístico Silvio Santos, como é conhecido Senor Abravanel, é um nome próprio que goza de uma identidade social: todo brasileiro conhece Silvio Santos. Assim como em autobiografias canônicas, o nome do comunicador na capa do livro em amarelo dá certo destaque, o que possibilita a representação de uma característica intrínseca ao gênero biografia: o nome próprio. Silvio Santos é um nome conhecido, verídico e socialmente verificável. É pelo nome de Silvio na capa que se dá um pacto biográfico, um contrato pela veridicção. Não há dúvida de que se trata da vida de Silvio Santos: homem, empresário, artista, dono de televisão, pai de família. Segundo Goffman (1963), a identidade pessoal advém de informações viabilizadas pelo próprio indivíduo. Acreditamos não ser efetivamente o caso desta biografia, mesmo se considerarmos as entrevistas, depoimentos e reportagens do próprio Silvio Santos que integram e ampliam cada capitulo narrativo. Morgado (2017) não entrevistou Silvio. As reportagens organizadas por Morgado (2017) foram o mote para a biografia- reportagem, contudo, sabemos que as informações não foram dadas pessoalmente por Silvio Santos. Não houve contato entre os dois. Morgado só veio a conhecer Silvio depois da publicação do livro. Não há, portanto, um olhar pessoal, um olhar íntimo o suficiente para garantir um contato da identidade com a identificação. Todavia, há um denso, amplo e satisfatório registro social: as reportagens. A ligação entre Silvio Santos – biografado – e Morgado – biógrafo dialoga com uma das perspectivas que Vilas Boas (2007) chamou de relacionalidade. Segundo o autor, a relacionalidade divide a perspectiva tradicional, donde o biógrafo não se relaciona com o biografado para evitar uma contaminação, com outro olhar, que implica um relacionamento 155

mais completo, humanístico, em constante desenvolvimento: uma relação pessoal e recíproca entre biografo e biografado. Esse olhar mais tradicional para a escrita da vida incentiva a formalidade, a estabilidade e a distância. Equipara-se quase a um contrato de negócios. Tal visão acredita que o distanciamento entre biografo e biografado é uma perspectiva mais adequada. A biografia-reportagem de Silvio é composta por uma relacionalidade tradicional. A biografia-reportagem de Silvio é uma construção organizada pela pesquisa de Morgado (2017), que, propiciada por meio da identidade social de Silvio Santos, tornou possível a composição narrativo-biográfica. Ao consideramos a intensa recorrência de intertextualidade manifesta entre as reportagens e o ambiente narrativo, podemos concluir, nesse sentido, que não há conflito entre a identidade pessoal de Silvio – as reportagens colhidas por Morgado (2017) (voz do próprio Silvio) – e a identidade social – construção narrativa. Contudo, há na história de vida de Silvio Santos um conflito entre a identidade pessoal e a identidade social: Silvio Santos escondeu seu primeiro casamento por receio de apontar-se como pai de família, com filhas, e perder o encanto que exercia nas suas colegas de trabalho – o auditório mais feminino do Brasil. Silvio era casado, tinha uma identidade pessoal e escondeu-a do Brasil. Trata-se de uma quebra no contrato de veridicção, uma desconstrução biográfica. Os dados até esse fato vir à tona eram desarticulados e contraditórios. A vida de Silvio detinha dois “eus”, o pessoal e o social. O próprio Silvio fala sobre isso:

Quando eu me lembro da minha mulher que morreu e que eu dizia que era solteiro; que escondia as minhas filhas para poder ser o galã, para poder ser o herói; eu quando falo com a minha consciência, acho que são das coisas imperdoáveis que eu fiz diante da minha imaturidade. – SBT, 21 de fevereiro de 1988. (MORGADO, 2017, p. 181).

Silvio costumava mentir sobre sua vida pessoal e essa omissão de seu primeiro casamento também está na narrativa biográfica:

Outra mentira que Silvio costumava contar nessa mesma época estava relacionada com seu estado civil. Dizia ser solteiro, quando, na verdade era casado desde 15 de março de 1962 com Aparecida Honoria Vieira. Cidinha era filha da dona de uma pensão no bairro da Bela Vista e, quando adolescente, gostava de frequentar os auditórios das rádios. Silvio a conheceu na Nacional. Casados, trilharam o caminho entre as dificuldades, no tempo em que eles próprios montavam e entregavam as cestas do Baú da Felicidade. (MORGADO, 2017, p. 166). 156

Hoje Silvio mostra sua família na televisão, suas filhas trabalham com ele, seus netos já apareceram em seu programa, mas nem sempre foi assim. Morgado (2017, p. 165) acrescenta: “Por diversas razões, Silvio Santos alimentou o máximo de mistério sobre sua vida pessoal. Uma dessas razões é a segurança”. Silvio mentia sua idade para imprensa, por exemplo, o que acarreta uma impossibilidade da sua realidade e da sua biografia real:

Entre os anos 1960 e 1970, mentia a idade para a imprensa. No livro A Vida Espetacular de Silvio Santos, publicado em 1972 pela L. Oren, o autor, Arlindo Silva, escreveu que seu biografado tinha “37 anos ainda incompletos”, quando na verdade, comemoraria 42 no fim daquele ano. (MORGADO, 2017, p. 165-167).

Ao manipular sua identidade pessoal, podia parecer-se como uma pessoa que realmente não era. Na verdade, Silvio gostava de manter o mistério por uma razão: “A construção do mito em torno da sua figura”. (MORGADO, 2017, p. 165). Morgado (2017) acrescenta:

Durante anos, Silvio acreditou que alimentar dúvidas seria fundamental para manter o interesse público. Para a revista Veja de 28 de maio de 1975, declarou: – Eu descobri como é importante uma interrogação. É muito difícil criar uma interrogação. Então, quando ela surge, é preciso aproveitá-la. (MORGADO, 2017, p. 165).

Silvio era uma figura pública, desde 1954, quando começou efetivamente a trabalhar como locutor na Rádio Nacional, entretanto sua identidade pessoal já havia começado no momento em que nasceu, em 1930, e sua identidade social começou quando passou a trabalhar como camelô no Rio de Janeiro, em 1945. Mesmo assim, neste momento, ainda havia pessoas que não conheciam Silvio Santos, pessoas para quem sua biografia ainda não tinha se iniciado. Sua popularidade cresceu mesmo a partir de 1969, já na TV, donde o programa Silvio Santos tinha a duração de 10 horas. Mesmo mantendo segredo em relação sua vida pessoal, sua identidade social, a mesma que mantem até hoje, iniciou-se: o mais popular animador de auditório do Brasil. A fama de Silvio Santos não era e não é somente como apresentador, artista, animador, é também como empresário de sucesso. Suas conquistas como empresário – o Baú da Felicidade, a concessão de TV, as fazendas, concessionária de carros, plano de saúde, a Tele Sena, a Jequiti etc. – deram-lhe uma fama ainda maior, uma identidade social, que, à medida que foi se instituindo, solidificou sua identidade pessoal também. 157

A identidade pessoal de Silvio Santos está também muito ligada à sua vida de empresário e de comunicador. Silvio foi, com o passar dos anos, expondo-se em sua vida pessoal na televisão. Depois de ter se separado brevemente de Iris Abravanel permitiu que o jornal Aqui Agora, do SBT, exibisse uma reportagem que mostrou os dois ao se reconciliarem: [...] “os dois trocando juras de amor e, ao final, um beijo na boca que rendeu 25 pontos de audiência. (MORGADO, 2017, p.167). A unicidade do “eu” na biografia de Silvio Santos, ou seja, na sua vida de um modo geral, claramente inexiste. Sob essa perspectiva, Goffman (1963, p.73) acerta ao conceituar que “essa unicidade da linha da vida está em flagrante contraste com a multiplicidade de ‘eus’ que se descobrem no indivíduo”. Silvio Santos é detentor de vários “eus”: artista, empresário, dono de televisão, marido, pai, amigo. Como artista, Silvio protagonizou momentos hilariantes: despertou emoções, reflexões, paixões. A mais emocionante delas talvez tenha acontecido no programa Casa dos Artistas. Morgado (2017) narra com detalhes:

A Casa dos Artistas nasceu sob forte sigilo. Poucos executivos do SBT sabiam do projeto, que demandou a reforma, ao custo de R$ 1,5 milhão, de uma casa vizinha à residência de Silvio, no bairro do Morumbi. Chamadas de lançamento? Apenas no dia de estréia, 28 de outubro de 2001. Ao longo de seis semanas que se seguiram, os brasileiros foram seduzidos pela dinâmica da atração, que era constantemente alterada por Silvio. O primeiro grupo de participantes incluiu figuras como Alexandre Frota, que agia como uma espécie de vilão, e Supla e Bárbara Paz, que tiveram um romance na casa. O último episódio, transmitido em 16 de dezembro de 2001, foi impactante. Ao saber que tinha ganhado o prêmio máximo de 300 mil reais, Bárbara chorou copiosamente. Silvio também se emocionou e não conteve as lágrimas. Tinha consciência de que protagonizava um momento único na televisão. Naquela noite, o SBT registrou a maior audiência da sua história: média de 47 pontos, com pico de 55. (MORGADO, 2017, p. 70).

O Silvio Santos empresário é um homem de sucesso, mas passou momentos difíceis. Por duas vezes, quase abriu falência. Teve dificuldades pela primeira vez com o advento do Plano Collor. Depois, em setembro de 2010, quase faliu novamente devido a problemas em seu banco PanAmericano, donde encontrou uma solução extraordinária: submeter suas 44 empresas como garantia de que pagaria a dívida, incluindo o SBT:

Ainda em setembro, no dia 22, Silvio foi a Brasília ter uma reunião com o então presidente Lula. Havia 16 anos que o apresentador não entrava no palácio do planalto. Na última vez, ainda era Itamar Franco quem estava lá. O encontro foi marcado às pressas, ocupando um horário antes reservado para Henrique Meireles, então presidente do Banco Central. Aos jornalistas, Silvio disse que foi pedir ao presidente que participasse do Teleton, discursando na abertura do programa e 158

doando R$ 12 mil, ou seja, mil para cada ano da campanha da AACD. Somente algumas semanas depois dessa reunião é que a crise do PanAmericano se tornaria pública. A solução encontrada para a crise foi obter um empréstimo junto ao Fundo Garantidor de Crédito, FGC, entidade civil sem fins lucrativos pelos bancos, no valor de R$ 2,5 bilhões, o suficiente para equilibrar as contas do PanAmericano. Em contrapartida, Silvio deu como garantia, todas suas 44 empresas, incluindo seu amado SBT. (MORGADO, 2017, p. 27-28).

Silvio comentou a venda do banco posteriormente: “Eu vendi. Se não entendo de banco, pra que vou ficar com o banco”? – Globo, 31 de janeiro de 2011. (MORGADO, 2017, p. 46). Uma das características de Silvio Santos, dono de televisão, é mudar a programação de sua TV da maneira que quer e bem entende. Mudou sua programação inúmeras vezes: tirou programas do ar, colocou programas no ar e utilizou o Chaves, durante anos, como um “Az na manga”, por ter dado sempre muita audiência. Na peroração do capítulo Dono de Televisão, Morgado (2017) descreve no primeiro parágrafo um pouco da genialidade de Silvio:

A audiência aprecia e busca a rotina. E, mesmo sabendo que essa nunca foi uma especialidade do SBT, continua assistindo e se identificando com o canal porque se reconhece nele. O povo encontra no SBT a informalidade que vive cotidianamente. Além disso, com ou sem a presença de Silvio no vídeo, o público consegue enxergar a sua mão invisível em cada estreia ou novo horário. E, por gostar dele há muito tempo, demonstra compreendê-lo e até perdoá-lo quando erra a mão. Essa boa vontade seletiva se comprova com os fracassos que tantos outros canais já tiveram quando tentaram replicar estratégias antes executadas com sucesso por Silvio. (MORGADO, 2017, p. 119).

O Silvio como marido e pai sempre manteve certa descrição, entretanto, tem se exposto na mídia, nos últimos anos, cada vez mais. É casado com Iris Pássaro desde 1981. “Ele a conheceu quando Iris tinha 19 anos de idade, em uma praia, no final dos anos 1960, e passaram a viver juntos em 1975.” (MORGADO, 2017, p. 166). Eles tiveram quatro filhas, com as duas filhas do primeiro casamento, Cíntia, a nº 1, e Silvia, a nº2, Silvio teve 6 filhas:

Daniela a nº3; Patrícia, a nº4; Rebeca, a nº5; e Renata, a nº6. Todas elas do primeiro e do segundo casamento, vieram, vieram trabalhar com o pai. No SBT, por exemplo, Patrícia tornou-se apresentadora Silvia passou a conciliar o trabalho diante e por trás das câmeras e Daniela assumiu a direção artística (MORGADO, 2017, p. 167).

Silvio teve um grande amigo que considerava como pai: Manuel de Nóbrega. Morgado (2017) complementa: 159

E, por falar em relação com pai, Silvio teve um amigo de quem se sentia filho: Manuel de Nóbrega. Os dois construíram uma relação que atravessou os estúdios e o Baú da Felicidade. Não raro, Silvio o chamava de pai. “Eu às vezes me surpreendo dando bronca nele. ‘Ô rapaz, você é louco? Com esse frio, você só com esse negócio? Vai botar um agasalho’. E ele vai, porque sabe que eu o amo como um filho”. “Ele [Silvio] é um sujeito com um sentimento de gratidão fora de série”. (MORGADO, 2017, p. 167).

Trata-se de uma absoluta relevância percebermos como é a relação de Silvio e suas personalidades com o outro, seus contemporâneos, que vivem com ele seu dia a dia. “Conforme disse certa vez, Silvio possui três personalidades: o homem comum, que não consegue ser no Brasil; o artista, com pelo menos seis gerações de admiradores; o empresário, responsável por diferentes negócios.” (MORGADO, 2017, p.171). Para Bakhtin (1992), a forma biográfica dialoga de forma ampla com o real e com a veridicção porque o biografismo tem menos elementos de isolamento. Ou seja, “eu” só me constituo como indivíduo diante do outro. “Eu”, só existo diante de um “você”. Por isso, o ativismo do autor é menos transformador fora da existência da personagem. Um exemplo é a recorrência de intertextualidade manifesta no gênero biografia. Em dois excertos da biografia-reportagem de Silvio acima mencionados, há intertextualidade manifesta, presença do discurso do outro no discurso do um, ou seja, o discurso de Manuel de Nóbrega no discurso de Morgado (2017). “Eu às vezes me surpreendo dando bronca nele. ‘Ô rapaz, você é louco? Com esse frio, você só com esse negócio? Vai botar um agasalho’. E ele vai, porque sabe que eu o amo como um filho.” (MORGADO, 2017, p. 167). Outro exemplo de que o ativismo é menos transformador do autor em relação à personagem é a intertextualidade constitutiva: “Daniela a nº3; Patrícia, a nº4; Rebeca, a nº5; e Renata, a nº6.” (MORGADO, 2017, p.167). Foi Silvio que se habitou a enumerar as filhas em seu programa dominical. Morgado (2017) é o que Bakhtin (1992, p. 140) chama de “outro possível”, que se infiltra na consciência de Silvio Santos e dirige seus atos e suas concepções e olhar de si mesmo. O autor dirige o olhar de Silvio narrativamente. Biografia, segundo Bakhtin (1992), é a descrição da vida, e Morgado (2017) descreve a vida de Silvio: “Conservador, cultiva uma rígida rotina, iniciada por volta das 5 h da manhã e encerrada às 22h30min. Há quatro décadas tem o seu cabelo cuidado por Jassa, um de seus maiores amigos e conselheiros.” (MORGADO, 2017, p. 171). Essa descrição narrativa da vida de Silvio, junto aos seus contemporâneos, o dia a dia do apresentador, a glória junto aos brasileiros, aos familiares e amigos, é a consciência biográfica de Bakhtin (1992) denominada social de costumes. 160

Na biografia-reportagem de Silvio Santos, as duas consciências biográficas trabalham simultaneamente, aventuresco-heroico e social de costumes. No entanto, há uma preponderância da segunda sobre a primeira, ao considerar-se que Silvio está vivo. Trata-se de uma escolha de autoria, todavia não está evidenciada a tentativa de Morgado (2017) heroificar Silvio. No entanto, valores como honradez e, principalmente, generosidade, permeiam a biografia. Seu assistente de palco, Roque, negou um emprego em seu bar a Silvio: anos depois bateu na porta do SBT, precisava de um emprego e foi contratado no mesmo dia. Podemos considerar que Silvio Santos heroificava Manuel de Nóbrega, inspirava-se nele, o tinha como pai. Nas palavras do Homem do Baú, recolhidas do documentário Manuel de Nóbrega: uma história, exibido pelo SBT em 22 de maio de 2004:

Nós fizemos um bom relacionamento, principalmente, depois que eu passei a atuar no programa dele, porque antes eu quase não via o [Manuel de] Nóbrega. Como eu não tinha parente em São Paulo, eu estava sozinho, com 24 anos, o Nóbrega passou a ser o meu pai. Eu pra casa dele, frequentava a família, me dava muito bem com o Carlos Alberto... Nós éramos bons amigos. (MORGADO, 2017, p. 75).

O autor (2017) não heroifica o Homem do Baú de maneira clara, mas Silvio Santos tem um herói pelo qual se espelha, se identifica e se inspira. Ao heroificar Manuel de Nóbrega, Silvio familiarizar-se-á com ele e projetará sua imagem futura, que deseja ser construída à semelhança da imagem de seu herói. Silvio, ao falar que Manuel de Nóbrega, lhe deu tudo acrescenta: “Mas há uma coisa que ele me deu, e só ele podia me dar: é o exemplo de um trabalho honesto, um amor ao trabalho...” (MORGADO, 2017, p. 167-168). Foi graças a Manuel de Nóbrega e ao talento Silvio Santos que o Baú da Felicidade não foi à falência, tornando-se um dos seus maiores empreendimentos:

Em sociedade com Walter Scketer, por diversas vezes referido como “alemão”, Manuel de Nóbrega havia lançado uma espécie de poupança popular, em que o cliente pagava doze mensalidades e, em troca, recebia uma cesta de brinquedos. Era o Baú da Felicidade. Manuel havia se comprometido com a propaganda, que fez muito sucesso. O problema estourou justo no momento da entrega das mercadorias: descobriu-se que todo o dinheiro da empresa havia se perdido.! Desesperado, Nóbrega pediu que Silvio fosse a loja do Baú, na Líbero Badaró, ficasse lá por cerca de duas semanas, dissesse aos mensalistas que eles logo receberiam aquilo a que tinham direito e avisasse aos novos interessados que a empresa seria fechada. Inicialmente, Silvio relutou, mas acabou atendendo ao pedido daquele que considerava um pai. Quando chegou, o cenário que encontrou era de destruição: um espaço minúsculo ocupado pelo alemão, uma secretária, algumas caixas de madeira e duas gavetas postas no chão contendo fichas de fregueses. Na entrada, clientes se aglomeravam em busca de informações. Na tentativa de acalmá-los, Silvio precisou subir em um caixote e fazer um verdadeiro comício. (MORGADO, 2017, p. 20-21). 161

A consciência biográfica, social de costumes de Bakhtin (1992), aparece muitas vezes no livro, como no excerto a seguir:

As reportagens já publicadas sobre Silvio Santos revelaram que ele preservou hábitos simples, mesmo depois de ter ficado rico. Quase não tem vida social, preferindo permanecer em casa ou viajar em família. Não tem as mesmas preocupações com segurança que outros milionários como ele possuem. (MORGADO, 2017, p. 170).

Aparece já no capítulo 1, primeiro e segundo parágrafos – O homem por trás do sorriso:

Independentemente de se considerar mais comerciante ou mais artista Senor Abravanel, conhecido pelo nome artístico de Silvio Santos, cristalizou-se como elemento relevante da cultura popular. Qualquer brasileiro sabe cantarolar a música que anuncia seu programa, imitar sua gargalhada e repetir os seus bordões. Muitos pontuam fases da vida com as atrações apresentadas por ele e sonham com a fortuna prometida em seus programas. De fato, Silvio Santos é um comerciante. Vende sonhos embalados em um sorriso que, diante das câmeras, parece indestrutível. Contudo, ele vai além. Graças a sua persistência e, porque não dizer, insistência, construiu uma carreira que dura mais de sete décadas, sendo cinco delas à frente do programa de televisão que leva seu pseudônimo e é sinônimo de domingo. Chegou a animar mais de dez horas ao vivo, entremeando sorteios milionários com gincanas infantis, brincadeiras com artistas, desafios ao conhecimento, câmeras escondidas, oportunidade para calouros, números musicais e pedidos de namoro (MORGADO, 2017, p. 9-10).

Morgado (2017) se orienta pelos valores de Silvio Santos para escrever sua biografia. Não há um distanciamento. No que tange as crenças de Silvio, o que ele acredita, Morgado (2017), como autor e narrador-biografo, também acredita. É propicio salientar que a relação entre os sujeitos, biógrafo e biografado, deve haver, e pode ser de forma aprofundada ou de maneira efêmera. Trata-se de um gênero literário e, portanto, subentende-se um autor-artista, se considerarmos que biografia são as vicissitudes de uma pessoa “narrada com arte por outra pessoa.” (VILAS BOAS, 2007, p. 22). Nossas vidas não são estáticas e se encontram em constante movimento. A biografia-reportagem de Morgado (2017) goza de uma visão muito particular de Silvio Santos porque é sustentada pelas reportagens que Silvio cedeu a diversos meios de comunicação e que foram reunidas pelo autor neste livro. A narração biográfica conversa o tempo todo com as reportagens de autoria dos jornais e revistas – voz do próprio Silvio. A biografia-reportagem, como não poderia ser 162

diferente, privilegia o indivíduo e expõe de maneira mais acentuada uma personalidade única: Silvio Santos. Cabe-nos a reflexão das palavras de Vilas Boas (2007, p. 20), que “biografia é o biografado segundo o biógrafo”. Na peroração de cada capítulo narrativo, Morgado (2017) aparece como autor de forma mais acentuada e manifesta sua visão sobre o artista, o empresário, o dono de televisão Silvio Santos. Vejamos alguns exemplos das impressões do biógrafo sobre seu biografado pelas escolhas lexicais.

Capítulo 2: Negócios.

Ao analisar o perfil do empreendedor Senor Abravanel, percebe-se uma ousadia acima da média. Mesmo comprometendo sua vida pessoal, ele demonstra não ter medo de assumir novos desafios ou de investir naquilo em que acredita, sem se importar com a opinião dos outros. O saldo positivo de sua carreira, que acumula mais vitórias que derrotas, justifica a grande autoconfiança que lastreia suas decisões. Entre as consequências disso, está o forte personalismo que marca seu estilo de gestão, ainda que declare confiar em seus assessores. Tudo isso ganha contornos mais fortes quando se pensa que o empresário Senor Abravanel e o artista Silvio Santos são a mesma pessoa, ou seja, as vicissitudes do homem de televisão se misturam com as do homem de negócio. O Grupo Silvio Santos tonou-se um caso único, pois suas atividades não surgiram apenas de oportunidades levantadas no mercado, mas também de espaços abertos pela capacidade de comunicação do seu acionista majoritário com o público, especialmente aquele de menor renda. Essa forma de empreender, tão baseada em atributos pessoais, é, por isso mesmo, difícil de ser replicada por outros, mas serve como ensinamento para aqueles que procuram compreender, ou mesmo ser, um self- made man. (MORGADO, 2017, p. 29).

Morgado revela-se como autor nas perorações dos capítulos, detentor de certa intimidade com a personalidade única de Silvio Santos e o espaço biográfico que a compõe.

Capítulo 3: Artista.

De locutor despretensioso, transformou-se em ícone da televisão. Já comandou mais de centenas de programas com formatos diferentes. Especializou-se em permanecer longas horas no ar. Em termos quantitativos, não há quem se compare a ele. Construiu um método muito próprio de comunicação, unindo o improviso do rádio, a presença de palco do circo, a prática dos comícios e a tecnologia da televisão. E esse método repercute em cada detalhe, desde o enquadramento das câmeras até o figurino das bailarinas. Mesmo de olhos fechados, apenas ouvindo o ritmo das palmas, é possível reconhecer uma plateia de Silvio Santos. Ele consegue prender o público mesmo quando a atração é uma freguesa que veio buscar um cheque da Tele Sena. É apresentador, produtor e patrocinador de seus programas. E, desses programas, fez nascer uma das maiores redes de TV aberta da 163

América Latina. Nenhum outro artista foi tão longe. Nem no Brasil, nem em qualquer lugar do mundo (MORGADO, 2017, p. 72).

Nos capítulos 2 e 3, a peroração somente ressalta as qualidades de Silvio, portanto, essas conclusões dialogam com os gêneros retóricos clássicos, em particular o gênero epidítico e/ou laudatório. O gênero epidítico e/ou laudatório acontece a partir de uma ação pública, donde o auditório observa as questões já resolvidas – se de um elogio ou, às vezes, uma censura. É denotar aprovação ou desaprovação e o auditório contempla, não questiona. No caso dessa biografia-reportagem. funciona como uma espécie de louvor à figura de Silvio Santos. Nas perorações, o autor destaca os elogios, todavia, nos capítulos 4 e 6, há censura também: característica do gênero epidítico e/ou laudatório.

Capítulo 4: Dono de televisão.

A audiência aprecia e busca a rotina. E, mesmo sabendo que essa nunca foi uma especialidade do SBT, continua assistindo e se identificando com o canal porque se reconhece nele. O povo encontra no SBT a informalidade que vive cotidianamente. Além disso, com ou sem a presença de Silvio no vídeo, o público consegue enxergar a sua mão invisível em cada estreia ou novo horário. E, por gostar dele há muito tempo, demonstra compreendê-lo e até perdoá-lo quando erra a mão. Essa boa vontade seletiva se comprova com os fracassos que tantos outros canais já tiveram quando tentaram replicar estratégias antes executadas com sucesso por Silvio. Em contrapartida, o surgimento de um concorrente agressivo, a Record, pôs em xeque a genialidade do programador Silvio Santos. Quando se tem a “liderança absoluta do segundo lugar”, como dizia a campanha publicitária de Washington Olivetto, se tem também licença para testar e até errar mais. Contudo, quando se cai para a terceira ou quarta posição, a pressão cresce e a margem de manobra diminui. (MORGADO,2017, p. 119).

Há outra censura no capítulo 6: Vida Pessoal.

As reportagens já publicadas sobre Silvio Santos revelaram que ele preservou hábitos simples, mesmo depois de ter ficado rico. Quase não tem vida social, preferindo permanecer em casa ou viajar em família. Não tem as mesmas preocupações com segurança que outros milionários como ele possuem. Até ele e sua filha Patrícia serem mantidos reféns, acreditou que sua fama era suficiente para protegê-lo. Em 30 de agosto de 2001, Silvio foi mantido em cárcere privado dentro da sua própria casa pelo sequestrador de Patrícia Fernando Dutra Pinto. (MORGADO, 2017, p. 170). 164

Morgado (2017) é um autor que não fica a sombra de seu biografado. Isto é, o autor conversa com Silvio; dialoga com as ideias dele. O biógrafo encontrou a forma humana de Silvio e parece ter sido tocado por sua experiência carregada de significados. A biografia-reportagem de Silvio é carregada de empatia. O autor é cordial com Silvio, tem boa vontade e conta a história de vida do apresentador com zelo, preocupação e tato. Tem boa intenção. Essa empatia que Morgado (2017) tem com a história de Silvio e com o próprio Silvio é o que Vilas Boas (2007) chamou de reflexividade. Morgado (2017) compartilha das alegrias, vitórias, derrotas, frustrações, conquistas e tristezas do ponto de vista do interlocutor. As relações entre biógrafo e biografado constituem-se pela pesquisa “porque pesquisar também é um ato autobiográfico.” (VILAS BOAS, 2007, p. 34). É absolutamente relevante a constatação de que Morgado (2017) não recorre a psicanalização de Silvio Santos. Não tenta buscar no pai e na mãe de Silvio explicações para atos e ações, fracassos e conquistas. O autor em nenhum momento tenta analisar Silvio do ponto de vista da análise psicanalítica. Morgado (2017) escreve apenas um parágrafo incluindo os pais de Silvio:

Desde muito jovem, o carioca Senor Abravanel, nascido em 12 de dezembro de 1930, demonstrava uma rara disposição para o trabalho. Filho de imigrantes – o grego Alberto e a turca Rebecca – , não queria depender dos pais para comprar aquilo que deseja-se, como as balas premiadas Fruna ou as entradas para as matinês de quinta-feira no cine OK, no centro do Rio de Janeiro, que exibia a série o vale dos desaparecidos, estrelada por Bill Elliott. Ainda na escola Celestino da Silva, onde cursou o primário aproveitava o horário do recreio para vender doces aos colegas. E quis mais. Depois de muito andar pelas ruas do centro do Rio à procura de trabalho e de se decepcionar com os baixos salários oferecidos pelas lojas e repartições públicas presenciou uma cena que o faria escolher sua primeira profissão. (MORGADO, 2017, p. 15).

O autor faz uma menção à vida sexual de Silvio em outro parágrafo:

Catorze anos: uma idade marcante para Senor. Idade da sua primeira experiência sexual, da sua primeira experiência como camelô e da sua primeira experiência artística. Sem esperar, ganhou um concurso para locutor na Rádio Guanabara, mas por considerar o salário baixo, logo voltou para as ruas. O pouco tempo diante do microfone, embora pequeno, foi o suficiente para infectá-lo com o vírus do rádio. Senor gostava de acompanhar programas de auditório e seu animador favorito era César de Alencar, que ouvia aos sábados à tarde pela Rádio Nacional. O formato da atração, composta por uma sequência de quadros com certa independência entre eles, virou referência. O próprio programa Silvio Santos seria muito semelhante a isso. (MORGADO, 2017, p. 53). 165

Não vemos uma tentativa de explorar a sexualidade infantil e/ou complexo de édipo, coisas de uma “mentalidade freudiana persistente.” (VILAS BOAS, 2007, p. 77). Na biografia de Silvio, a única construção mais elaborada sobre as suas origens e a história de sua família decorre do próprio Silvio Santos:

“Meu nome completo é Senor Abravanel. E é Senor porque eu sou o dom. O homem que me deu origem consertou as finanças de Portugal, depois foi chamado pelos reis católicos Isabel e Fernando para a Espanha. Era o dom Isaac Abravanel. Consertou as finanças da Espanha, depois, quando chegou a inquisição, os reis católicos Fernando e Isabel disseram: “Você fica e o teu povo, o povo judeu, vai”. E ele falou: “Não, não! O povo judeu vai e eu vou junto!” E foi para Solonica, na Grécia. De lá então, meu pai, meu avô, tiveram o título de señor, dom Abravanel. E aqui no Brasil não existe dom, os títulos que meus antepassados ganharam [...]. O dom Isaac Abravanel foi um dos que deu dinheiro para que Colombo viesse a descobrir a América. Então disseram ao meu pai: “Ih, que dom? Dom é frescura, não tem cura! Então ele colocou Señor. Señor quer dizer dom Abravanel”. (MORGADO, 2017, p. 169).

Os parágrafos acima tratam da experiência de Silvio Santos acerca do real, em torno da sua existência: um contrato do verídico, do verificável. Em suma: Fernando Morgado (2017) é um organizador, mas um autor astuto. Descreve a vida de Silvio Santos fundamentado pelos depoimentos, testemunhos, entrevistas do próprio Silvio Santos. Nesse sentido, tem uma ajuda incontestável de veridicção na narrativa biográfica: as palavras do próprio Silvio. Essa relação entre biógrafo e biografado fica clara pela recidiva da intertextualidade manifesta, um sintoma da heterogeneidade que constitui o gênero do discurso biografia. “Eu”, como ser humano, me assento na narrativa de vida no ambiente social, cultural e ideológico, pelas relações dialógicas com outro ser humano. Da relação tríplice de autoria, a voz de Silvio, a voz implícita dos jornais, revistas, do SBT e a voz de Morgado, nasce um autor desobediente. Fernando Morgado (2017) transgride a autoria biográfica clássica ao organizar e reportar as palavras de Silvio Santos ao longo da vida nesse livro. O autor publica um livro que não é mais uma biografia canônica de Silvio Santos, mas uma biografia constituída a partir da voz do próprio Silvio Santos. Na autobiografia canônica, por exemplo, para que se de o pacto de veridicção, é necessário alguns elementos para que o leitor assine o contrato autobiográfico: a verdade, o nome próprio na capa, o pronome relativo do caso reto “eu”, que só existe diante de um você, e o desconcerto de vozes. Na biografia-reportagem de Morgado (2017), a veridicção se dá pela verificação intertextual das palavras de Silvio na trama narrativa. Tratam-se das palavras de Silvio reportadas por Morgado (2017), que, por sua vez, constrói a narrativa biográfica 166

baseado nas palavras exatas de Silvio. Essa exatidão verbal é persuasiva por ser inquestionável: trata-se das palavras do próprio Silvio Santos, ou seja, é real, verídico, verificável e, portanto, indubitável. Fernando Morgado (2017) abre o livro intitulando-se como organizador das frases de Silvio Santos ditas desde o final dos anos 1950 e diz: “O organizador dedicou seu máximo empenho a fim de preservar as palavras ditas originalmente, e, sobretudo, o sentido com o qual elas foram empregadas.” (MORGADO, 2017, p. 13). Ora, a reportagem dos enunciados de Silvio funciona nesta biografia como um “pacto autobiográfico” (LEJEUNE, 2008). O caminho traçado pelo leitor é pela busca de alguma incongruência, alguma inverdade ou omissão, que, de fato, na linha da vida de Silvio, na narração, não há. Na simples condição apenas de organizador dos enunciados de Silvio, Morgado (2017) morreria como autor biográfico, mas morre apenas como organizador, quando constrói uma narrativa biográfica consistente e heterogênea. Em outras palavras, Morgado (2017) não é só o organizador dos enunciados da vida de Silvio, assim como não é somente o autor da biografia dele. Morgado (2017) faz escolhas de autoria inteligentes: opta por não heroificar Silvio Santos porque o próprio não se heroifica do mesmo ponto de vista. Elege preponderantemente uma consciência biográfica que é particular dos heróis vivos. O dia a dia junto aos familiares e contemporâneos, ver e reviver o mundo de maneira repetida e repetidas vezes: o social de costumes. Há, na história de vida de Silvio Santos, conflitos entre sua identidade social e pessoal; todavia, ao considerarmos os enunciados de Silvio, reportados pela pesquisa de Morgado (2017), como informações pessoais de Silvio, e, ao considerar ainda a proposição de que a narrativa biográfica foi construída em diálogo com esses enunciados, não há na construção composicional da biografia-reportagem de Silvio Santos conflito entre a identidade pessoal do apresentador e sua identidade social. Silvio Santos, ao longo de sua história, harmoniza-se com seus múltiplos “eus”: empresário, artista, dono de televisão, pai de família, amigo, homem público. É o autor mais competente da sua história. Por isso, Morgado (2017) não psicologiza Silvio Santos, porque o próprio também não faz. Silvio gosta de manter o mistério. Portanto, o autor de Silvio Santos – A trajetória do mito demostra empatia pela vida e história de sua personagem. Essa empatia se mostra pela escolha lexical, pela fidelidade aos depoimentos de Silvio e, principalmente, pela originalidade que conta a trajetória de vida dessa figura única do cenário artístico mundial. 167

É biografia porque descreve uma vida real, tem uma consciência biográfica, uma identidade, multiplicidade de “eus”, a presença constitutiva do outro, que poderia ser “eu” mesmo, tem empatia. É construída por meio da reportagem: enunciados proferidos pelo próprio Silvio Santos, tema que discutiremos a seguir.

5.2 A reportagem

A reportagem no livro acontece da anastomose entre os enunciados de Silvio Santos e a narrativa biográfica. Na medida em que a narrativa amplia os enunciados e os enunciados trazem novas informações pela voz de Silvio para o leitor e para a narrativa, configura-se a conceituação de Melo (2017) sobre a reportagem: “A reportagem é o relato ampliado de um acontecimento que repercutiu no organismo social e produziu alterações que são percebidas pela instituição jornalística.” (MELO, 2017, p. 66). As falas de Silvio repercutiram no organismo social e foram reproduzidas por Morgado (2017) em forma de narrativa. A narrativa biográfica amplia esses enunciados. Peguemos o exemplo de reportagem de Silva (2012):

No desemprego não há lugar para a resignação24 [...] Ricardo A., Espanha. Arquiteto técnico, 45 anos. Desempregado desde abril de 2009 “Agora, em outubro, faz 18 meses que estou no desemprego. Trabalhei sempre desde o fim do curso, aos 27 anos, até 2009”. Este é o cartão de visita de Ricardo A., casado e com filho de 14 anos. Ricardo foi empregado da abundância, do boom imobiliário, que povoou a Espanha de guindastes. Agora é uma vítima do seu colapso. Não está só: mais de 25 por cento dos quatro milhões de desempregados espanhóis provêm de construção. “Trabalhei em várias empresas, fiz hotéis, colégios, urbanizações, comecei como ajudante de obra até diretor técnico”. Recorda. Tem formação universitária de grau médio: um curso de quatro anos com o título de aquieto técnico. A sua presença era imprescindível para o bom andamento das obras. A sua assinatura era a chancela de qualidade. Foi assim durante anos. [...] (SILVA, 2012, p. 69-70).

Nessa reportagem, existe o título: No desemprego não há lugar para a resignação; o nome do ator social, sua idade e sua profissão, ou seja, o entrevistado: Ricardo A., Espanha. Arquiteto técnico, 45 anos. E, por fim, a reportagem.

24 Nesta sessão, todos os trechos grifados em negrito ou itálico são de nossa autoria. 168

Essa reportagem começa pela voz de Ricardo, o entrevistado: “Agora, em outubro, faz 18 meses que estou no desemprego. Trabalhei sempre desde o fim do curso, aos 27 anos, até 2009” (SILVA, 2012, p. 69-70). Depois, entra a voz do repórter ou instituição jornalística: “Ricardo foi empregado da abundância, do boom imobiliário, que povoou a Espanha de guindastes. Agora é uma vítima do seu colapso. Não está só: mais de 25 por cento dos quatro milhões de desempregados espanhóis provêm de construção.” (SILVA, 2012, p. 69-70). As duas vozes vão se intercalando até o fim da reportagem. Ao pegarmos a primeira seção do livro – Silvio Santos por ele mesmo –, donde se reúnem as entrevistas e depoimentos de Silvio Santos – capítulo 2, Negócios –, teremos um título: “Toque de Midas” (MORGADO, 2017, p. 30). Logo abaixo, na primeira seção, encontra-se o primeiro depoimento:

Um dia eu estava passando na Avenida Rio Branco, tinha algum dinheiro no bolso e resolvi comprar três carteirinhas de plástico [para guardar título de eleitor]. Era 1945, época de eleição para a presidência da República. Achei que poderia ganhar algum dinheiro vendendo as carteirinhas. Comprava três por Cr$ 3,00 e vendia por Cr$ 5,00 cada uma momentos depois. Era bom negócio. – O Estado de S. Paulo, 17 de agosto de 1983 (MORGADO, 2017, p. 30).

A seguir, a narrativa biográfica que correspondente ao excerto acima:

Gritando, um homem chamava a atenção de quem passava pela Avenida Rio Branco. Ele vendia carteiras plásticas para guardar título de eleitor. O ano era de 1945. Após o fim do Estado Novo, o Brasil voltava a ser uma democracia, ou seja, havia demanda para as tais carteiras. Senor ficou tão impressionado com a facilidade com que as vendas aconteciam que não resistiu a seguir o tal homem. Logo descobriu que ele comprava grandes quantidades em uma loja na rua Buenos Aires, reduzindo, assim, o valor pago por unidade. Interessado no esquema resolveu testar. Com uma moeda de 2 mil réis, comprou a primeira carteira. Foi para a calçada, falou para quem passava e logo fez a venda. Rapidamente voltou para a loja e comprou mais duas carteiras, também vendidas facilmente. Quanto mais dinheiro ganhava, mais o seu entusiasmo aumentava. Foi então que decidiu: seria camelô. (MORGADO, 2017, p. 16).

Se pegarmos os dois exemplos, a narração biográfica e o depoimento, montamos uma reportagem aos moldes de Silva (2012), com a utilização paratextual das aspas. Por exemplo:

“Um dia eu estava passando na Avenida Rio Branco, tinha algum dinheiro no bolso e resolvi comprar três carteirinhas de plástico [para guardar título de eleitor]. Era 1945, época de eleição para a presidência da República”. Gritando, um homem chamava a atenção de quem passava pela Avenida Rio Branco. Ele vendia carteiras 169

plásticas para guardar título de eleitor. Após o fim do Estado Novo, o Brasil voltava a ser uma democracia, ou seja, havia demanda para as tais carteiras. Senor ficou tão impressionado com a facilidade com que as vendas aconteciam que não resistiu a seguir o tal homem. “Achei que poderia ganhar algum dinheiro vendendo as carteirinhas. Comprava três por Cr$ 3,00 e vendia por Cr$ 5,00 cada uma momentos depois. Era bom negócio”. Com uma moeda de 2 mil réis, comprou a primeira carteira. Foi para a calçada, falou para quem passava e logo fez a venda. Rapidamente voltou para a loja e comprou mais duas carteiras, também vendidas facilmente. Quanto mais dinheiro ganhava, mais o seu entusiasmo aumentava. Foi então que decidiu: seria camelô.

Se colocarmos o título do capítulo e os dados biográficos de Silvio no momento em que ocorre a reportagem acima, conseguiremos uma reportagem perfeita aos moldes de Silva (2012):

Toque de Midas Senor Abravanel, 14 anos. Camelô. “Um dia eu estava passando na Avenida Rio Branco, tinha algum dinheiro no bolso e resolvi comprar três carteirinhas de plástico [para guardar título de eleitor]. Era 1945, época de eleição para a presidência da República”. Gritando, um homem chamava a atenção de quem passava pela Avenida Rio Branco. Ele vendia carteiras plásticas para guardar título de eleitor. Após o fim do Estado Novo, o Brasil voltava a ser uma democracia, ou seja, havia demanda para as tais carteiras. Senor ficou tão impressionado com a facilidade com que as vendas aconteciam que não resistiu a seguir o tal homem. “Achei que poderia ganhar algum dinheiro vendendo as carteirinhas. Comprava três por Cr$ 3,00 e vendia por Cr$ 5,00 cada uma momentos depois. Era bom negócio”. Com uma moeda de 2 mil réis, comprou a primeira carteira. Foi para a calçada, falou para quem passava e logo fez a venda. Rapidamente voltou para a loja e comprou mais duas carteiras, também vendidas facilmente. Quanto mais dinheiro ganhava, mais o seu entusiasmo aumentava. Foi então que decidiu: seria camelô. (MORGADO, 2017, p. 30).

Esse título, Toque de Midas, demanda de uma particularidade do gênero reportagem, que é, a nosso ver, a originalidade e a ousadia. O título da reportagem deve ser atrevido. Segundo Bond (1961), o título tem que chamar a atenção do leitor à primeira vista. Com exceção do capítulo 1, O homem por trás do sorriso, que é um capítulo introdutório, é possível montar uma reportagem aos moldes de Silva (2012) em cada capítulo do livro. Consideremos que os depoimentos, as entrevistas e as reportagens – Silvio Santos por ele mesmo – que acrescentam cada capítulo expandem as informações dadas pela narração biográfica, assim como a narração biográfica expande os depoimentos. Veremos um exemplo em cada capítulo. No capítulo 3, Artista, ocorre algumas vezes essa ampliação intertextual de forma manifesta. Vejamos um exemplo a partir do depoimento de Silvio Santos para a biografia clássica e canônica, A vida espetacular de Silvio Santos, de Arlindo Silva (L. OREN, 1972): 170

“Eu gostava muito de César Alencar. Ele sempre foi um homem que eu admirava, porque quando eu chegava à escola – eu estava no ginásio naquele tempo – as moças, na 2ª feira, só falavam no César de Alencar.” (MORGADO, 2017, p.73). Essa passagem encontra-se na narrativa biográfica assim:

Catorze anos: uma idade marcante para Senor. Idade da sua primeira experiência sexual, da sua experiência como camelô e da sua primeira experiência artística. Sem esperar, ganhou um concurso para locutor na Rádio Guanabara, mas por considerar o salário baixo, logo voltou para as ruas. O pouco tempo diante do microfone, embora pequeno, foi o suficiente para infectá-lo com vírus do rádio. Senor gostava de acompanhar programas de auditório e seu animador favorito era César de Alencar, que ouvia aos sábados à tarde pela Rádio Nacional. O formato da atração, composta por uma sequência de quadros de certa independência entre eles, virou referência. O próprio Programa Silvio Santos seria muito semelhante a isso. (MORGADO, 2017, p. 53).

O título da seção em que se encontra esse depoimento de Silvio para o livro de Arlindo Silva é O começo de carreira. Ao juntarmos o título, a fala de Silvio com a narração biográfica, a idade e a profissão, temos mais uma reportagem:

O começo de carreira. Senor Abravanel, 14 anos. Camelô e locutor. “Ele sempre foi um homem que eu admirava, porque quando eu chegava à escola – eu estava no ginásio naquele tempo – as moças, na 2ª feira, só falavam no César de Alencar”. Catorze anos: uma idade marcante para Senor. Idade da sua primeira experiência sexual, da sua experiência como camelô e da sua primeira experiência artística. Sem esperar, ganhou um concurso para locutor na Rádio Guanabara, mas por considerar o salário baixo, logo voltou para as ruas. O pouco tempo diante do microfone, embora pequeno, foi o suficiente para infectá-lo com vírus do rádio. Senor gostava de acompanhar programas de auditório e seu animador favorito era César de Alencar, que ouvia aos sábados à tarde pela Rádio Nacional. O formato da atração, composta por uma sequência de quadros de certa independência entre eles, virou referência. O próprio Programa Silvio Santos seria muito semelhante a isso. (MORGADO, 2017, p. 53).

Outro exemplo está em Silvio Santos por ele mesmo, encontrado no capítulo 4, Dono de televisão. Depoimento dado a TVS em 14 de maio de 1976:

Silvio era a pessoa mais apresada do mundo e era também um sujeito de muita sorte. Li nos jornais que a massa falida da extinta TV Continental, canal 9 do Rio de Janeiro, seria leiloada e disse para o meu amigo e superintendente dos estúdios, Luciano Callegari: “Olha, Luciano, se nós arrematarmos tudo no leilão, não vamos precisar esperar 8 meses pela construção da torre e da antena”. O material anunciado no edital do leilão era sucata, disse muita gente entendida. O próprio leiloeiro achava que iria leiloar um monte de ferro velho. Conseguimos, com o maior lance, comprar todo o material do leilão e os jornais disseram que o novo concessionário já estava começando com o pé esquerdo e fazendo um péssimo negócio. Fez-se uma 171

descoberta espantosa. Quem poderia adivinhar que o velho transmissor, da velha Continental, fora construído para funcionar a cores uns dez anos antes de se instalar a televisão a cores no Brasil? Mas quando há boa vontade, Deus ajuda e tudo acontece. (MORGADO, 2017, p. 123).

A narração biográfica que conta o momento de aquisição dos bens que pertenciam a TV continental:

Exatamente uma semana após Geisel ter assinado o decreto que lhe garantiu o canal 11, foram a leilão todos os bens que pertenciam à TV Continental. Havia desde equipamentos velhos até armários e poltronas. Parecia ser apenas um amontoado de sucata. Silvio, porém, notou que o lote também incluía todo o sistema irradiante do canal, instalado no morro do Sumaré, e pensou que, se o comprasse, não precisaria esperar os oito meses que haviam lhe dado como prazo para construção de uma torre nova. No dia do arremate, o feliz proprietário da TV Studios compareceu acompanhado de Luciano Callegari, seu superintendente na época. Não havia outro interessado. Durante o leilão, Luciano deu lances de mil em mil cruzeiros. Querendo se divertir um pouco, Silvio resolveu dar lances também, competindo com o próprio funcionário. De uma forma ou de outra, ganhou. No dia seguinte, O Estado de S. Paulo publicou: O arremate do material foi considerado por observadores como um lance promocional de Silvio Santos, já que recebeu a concessão do canal 11 carioca e dispõe de tempo suficiente para montar a estação sem necessitar dos equipamentos obsoletos da TV Continental. O que nem observadores nem Silvio Santos esperavam era que o transmissor do antigo canal 9 carioca tinha sido construído para operar em cores mais de uma década antes do início oficial da TV colorida no Brasil. (MORGADO, 2017, p.102- 103).

É fundamental perceber que o gênero reportagem permeia toda a biografia e está inclusive no meio da narrativa, como salientamos em negrito no excerto acima. Ao interseccionarmos narrativa biográfica e depoimento de Silvio para TVS, a respeito do arremate dos equipamentos da TV Continental, encontramos uma expansão informativa significativa, o que nos revela uma excelente reportagem concomitantemente documental e de perfil. É documental pela pesquisa realizada por Morgado (2017), reunindo os enunciados de Silvio, e é de perfil por revelar traços psicológicos do próprio Silvio, como o Silvio brincalhão: “Querendo se divertir um pouco, Silvio resolveu dar lances também, competindo com o próprio funcionário.” (MORGADO, 2017, p. 102-103). É reportagem de perfil por intercalar com as narrações biográficas as palavras do próprio Silvio, donde Silvio revela sua personalidade. Considerando as palavras do próprio Silvio e a narração biográfica de Morgado (2017), a reportagem no formato de Silva (2012) ficaria assim: 172

Formação do SBT.

Silvio Santos, dono de televisão.

“Li nos jornais que a massa falida da extinta TV Continental, canal 9 do Rio de Janeiro, seria leiloada e disse para o meu amigo e superintendente dos estúdios, Luciano Callegari: “Olha, Luciano, se nós arrematarmos tudo no leilão, não vamos precisar esperar 8 meses pela construção da torre e da antena”. Havia desde equipamentos velhos até armários e poltronas. Parecia ser apenas um amontoado de sucata. Silvio, porém, notou que o lote também incluía todo o sistema irradiante do canal, instalado no morro do Sumaré, e pensou que, se o comprasse, não precisaria esperar os oito meses que haviam lhe dado como prazo para construção de uma torre nova. “O material anunciado no edital do leilão era sucata, disse muita gente entendida”. No dia do arremate, o feliz proprietário da TV Studios compareceu acompanhado de Luciano Callegari, seu superintendente na época. Não havia outro interessado. Durante o leilão, Luciano deu lances de mil em mil cruzeiros. “O próprio leiloeiro achava que iria leiloar um monte de ferro velho. Conseguimos, com o maior lance, comprar todo o material do leilão e os jornais disseram que o novo concessionário já estava começando com o pé esquerdo e fazendo um péssimo negócio. Mas quando há boa vontade, Deus ajuda e tudo acontece”. O que nem observadores nem Silvio Santos esperavam era que o transmissor do antigo canal 9 carioca tinha sido construído para operar em cores mais de uma década antes do início oficial da TV colorida no Brasil. (MORGADO, 2017, p.102-103).

No capítulo 5, Política, o fenômeno da amplificação informativa também acontece. Em reportagem para a Revista do Rádio, de 23 de outubro de 1965, Silvio Santos diz:

Muita gente julga que essa é a minha intenção. Garanto, porém, que tal fato está muito longe das minhas cogitações. Fui convidado oficialmente pelo PSD para participar das próximas eleições. Não aceitei. Quero mesmo ficar com minha vida de artista. Estou contente demais com ela para trocá-la por política. (MORGADO, 2017, p. 154).

E ainda:

Uma recomendação que ele [Manuel de Nóbrega] sempre me dizia era: “Não entra em política porque não casa bem com atividade artística. É uma besteira, porque você não vai se dar bem”. – Documentário Manuel de Nóbrega: uma História, exibido pelo SBT em 22 de maio de 2004. (MORGADO, 2017, p. 154).

Na narração biográfica:

Manuel de Nóbrega foi um dos pioneiros. Convidado por Adhemar de Barros, ingressou no PSP e elegeu-se deputado estadual em 1947. Recebeu a maior votação do Brasil naquela época: 37.778 votos. Mesmo tendo sido um parlamentar atuante, trabalhando, inclusive, na elaboração da nova Constituição de São Paulo, Nóbrega frustrou-se profundamente com a atividade política, que acabou por prejudica-lo no rádio. Após decidir não se candidatar à reeleição, foi parar na estação de menor audiência na época, a emissora Piratininga, antiga Cruzeiro do Sul. Apesar de tudo 173

que já havia feito, precisou provar novamente o seu valor até que, finalmente, conseguiu voltar para uma rádio maior, a Nacional, e recuperar a liderança de audiência. Por tudo isso, sempre alertou Silvio Santos: – Não entra em política porque não casa bem com atividade artística. É uma besteira porque você não vai se dar bem. Por cerca de trinta anos, Silvio seguiu esse conselho. Nos anos 1960, chegou a recusar um convite do PSD para se candidatar a deputado. (MORGADO, 2017, p. 141-142).

Outra reportagem possível:

Longe da política Silvio Santos, artista. “Uma recomendação que ele [Manuel de Nóbrega] sempre me dizia era: ‘Não entra em política porque não casa bem com atividade artística. É uma besteira, porque você não vai se dar bem”’. Manuel de Nóbrega foi um dos pioneiros. Convidado por Adhemar de Barros, ingressou no PSP e elegeu-se deputado estadual em 1947. Recebeu a maior votação do Brasil naquela época: 37.778 votos. Mesmo tendo sido um parlamentar atuante, trabalhando, inclusive, na elaboração da nova Constituição de São Paulo, Nóbrega frustrou-se profundamente com a atividade política, que acabou por prejudica-lo no rádio. Após decidir não se candidatar à reeleição, foi parar na estação de menor audiência na época, a emissora Piratininga, antiga Cruzeiro do Sul. – Não entra em política porque não casa bem com atividade artística. É uma besteira porque você não vai se dar bem. Por cerca de trinta anos, Silvio seguiu esse conselho. Nos anos 1960, chegou a recusar um convite do PSD para se candidatar a deputado “Muita gente julga que essa é a minha intenção. Garanto, porém, que tal fato está muito longe das minhas cogitações. Fui convidado oficialmente pelo PSD para participar das próximas eleições. Não aceitei. Quero mesmo ficar com minha vida de artista. Estou contente demais com ela para trocá-la por política”.

Pra finalizar esses exemplos que caracterizam a biografia de Silvio também como reportagem, é possível montar mais uma exposição do gênero jornalístico a partir do último capítulo narrativo de Silvio, Vida pessoal, capítulo 6 e seu complemento: Silvio Santos por ele mesmo. Vejamos outro exemplo:

Quando eu me lembro da minha mulher que morreu e que eu dizia que era solteiro; que escondia as minhas filhas para poder ser o galã, para poder ser o herói; eu quando falo com a minha consciência, acho que são das coisas imperdoáveis que eu fiz diante da minha imaturidade. – SBT, 21 de fevereiro de 1988. (MORGADO, 2017, p. 181).

Na narrativa da biografia: 174

Outra mentira que Silvio costumava contar nessa mesma época estava relacionada com seu estado civil. Dizia ser solteiro, quando, na verdade era casado desde 15 de março de 1962 com Aparecida Honoria Vieira. Cidinha era filha da dona de uma pensão no bairro da Bela Vista e, quando adolescente, gostava de frequentar os auditórios das rádios. Silvio a conheceu na Nacional. Casados, trilharam o caminho entre as dificuldades, no tempo em que eles próprios montavam e entregavam as cestas do Baú da Felicidade, até a fortuna. Com Cidinha, Silvio teve suas duas primeiras filhas. Com o tempo, ele passou a numerá-las. A nº1, Cíntia, nasceu no ano seguinte ao casamento. A nº2, Silvia, adotiva, nasceu em 1970. Foi Manuel de Nóbrega quem a recebeu primeiro nos braços, ainda recém-nascida. Para a mulher que lhe deu a criança, Nóbrega contou que não poderia aceita-la porque já tinha um filho crescido, Carlos Alberto, mas disse que Silvio Santos gostaria de tê-la para presentear sua esposa. Com apenas três anos de vida, Silvinha, enrolada em um cueiro, chegou a casa dos Abravanel. Tanto Cíntia quanto Silvia foram, por muitos anos escondidas do público, indo inclusive morar no exterior. (MORGADO, 2017, p.166).

A reportagem por amplificação e expansão:

Na intimidade Silvio Santos, empresário, artista, dono de televisão. “Quando eu me lembro da minha mulher que morreu e que eu dizia que era solteiro; que escondia as minhas filhas para poder ser o galã, para poder ser o herói; eu quando falo com a minha consciência, acho que são das coisas imperdoáveis que eu fiz diante da minha imaturidade”. Dizia ser solteiro, quando, na verdade era casado desde 15 de março de 1962 com Aparecida Honoria Vieira. Cidinha era filha da dona de uma pensão no bairro da Bela Vista e, quando adolescente, gostava de frequentar os auditórios das rádios. Silvio a conheceu na Nacional. Casados, trilharam o caminho entre as dificuldades, no tempo em que eles próprios montavam e entregavam as cestas do Baú da Felicidade, até a fortuna. Com Cidinha, Silvio teve suas duas primeiras filhas. Com o tempo, ele passou a numerá-las. A nº1, Cíntia, nasceu no ano seguinte ao casamento. A nº2, Silvia, adotiva, nasceu em 1970. Foi Manuel de Nóbrega quem a recebeu primeiro nos braços, ainda recém-nascida. Para a mulher que lhe deu a criança, Nóbrega contou que não poderia aceita-la porque já tinha um filho crescido, Carlos Alberto, mas disse que Silvio Santos gostaria de tê-la para presentear sua esposa. Com apenas três anos de vida, Silvinha, enrolada em um cueiro, chegou a casa dos Abravanel. Tanto Cíntia quanto Silvia foram, por muitos anos escondidas do público, indo inclusive morar no exterior.

É curioso notar que, se a reportagem é um gênero do discurso que conversa com a entrevista e com a notícia, ela pode ser construída a partir da notícia, como também pode ser construída a partir da entrevista. A narrativa biográfica da biografia-reportagem de Silvio, em certos momentos, noticia a vida do Homem do Baú. Lembrando Cunha (2010), a notícia tem como característica a informação, o texto é narrativo, os verbos estão no passado e em terceira pessoa. Responde às perguntas quem, o que, quando, onde, como, porquê. Vejamos um momento noticioso, na biografia de Silvio: 175

Durante o seu início como dono de emissora, Silvio vendia os intervalos a baixos preços e ainda oferecia garantia de audiência. Por exemplo: se o cliente quisesse que o comercial alcançasse 7 pontos de audiência, ele seria exibido exaustivamente até o momento que o canal 11 alcançasse os tais 7 pontos. Isso atraiu empresas que nunca tinham aparecido na TV, como o pequeno Supermercado de Grades, em Maria de Graça, que foi um dos primeiros anunciantes da TVS. Enquanto cuidava de sua nova emissora no Rio de Janeiro, Silvio resolvia sua situação em São Paulo. Encerrado o seu contrato com a Globo, o apresentador transferiu para si os 50% da Record, que estavam no nome de Joaquim Cintra Gordinho. E Silvio ainda tinha opção de comprar mais 10%, graças a um empréstimo que concedera em 1975 para Paulinho Machado de Carvalho, o dono dos outros 50% da empresa. Como Paulinho se recusava a atendê-lo quando entrou oficialmente na Record, Silvio quis assustá-lo: enviou para Brasília seu então diretor jurídico, doutor Luiz Sandoval, e mandou registrar a transferência também desses 10%. Naquele instante, tornava-se acionista majoritário da Record. O tempo fechou. Finalmente os dois sócios se encontraram. Construíram uma relação distante, mas respeitosa o suficiente para melhorar as finanças da empresa e expandir o sinal pelo interior paulista. (MORGADO, 2017, p.105-106).

Não se trata, evidentemente, do gênero do discurso notícia de maneira genuína, pura, mesmo porque não é uma informação nova; não há o evento deflagrador e talvez nem seja uma informação tão relevante; todavia, apresenta elementos do gênero notícia. É um relato informativo. Os verbos estão no pretérito perfeito e no pretérito mais que perfeito (assinalados em negrito); é um texto narrativo. Há um domínio do autor, embora haja também um apagamento deste em relação a outros momentos da biografia. Não há discurso de outrem de forma manifesta. O texto responde às perguntas: quem? Silvio Santos; o que? Início do SBT; quando? Momento em que ganhou a concessão de sua televisão; onde? Rio de Janeiro e São Paulo, e assim por diante. Além disso, tem a incidência de números (em itálico), absolutamente retóricos, característica da forma de persuadir na notícia sensacionalista, como nos indica Filho (2011). A intertextualidade manifesta, ou seja, o discurso de outrem no limiar da narrativa é o que efetivamente distingue a narrativa noticiosa em que o discurso manifesto se dá de maneira indireta, da reportagem, donde o discurso manifesto é marcado por travessão ou aspas. Melo (2003) associa os gêneros jornalísticos – entrevista, notícia, reportagem etc. – a processos sociais, processos estes que tem relação com as instituições jornalísticas e seu vínculo. Segundo o autor, o relato é um traço marcante do organismo social, que é composto e é transformado e retransformado, não apenas pelas instituições jornalísticas, mas também pela sociedade que o constitui. Arfuch (2009) estabelece gêneros discursivos que encabeçam o que ela chama de espaço biográfico. Os principais, sempre na lista de Best Sellers, são a biografia e autobiografia, as memórias, os diários íntimos, as correspondências, os testemunhos, as 176

histórias de vida. Há também aqueles subgêneros biográficos: rascunhos, cadernos de viagem, lembranças da infância, assim como os gêneros midiatizados: entrevista, retratos, perfis, confissões próprias e alheias etc. Também podemos incluir como um gênero midiatizado que compõe essa atmosfera biográfica a reportagem. A autora chama atenção para a questão do relato por considerar que é por meio do relato de vida que a vida do outro impacta sobre mim. Na medida em que “eu” sou tocado pelo relato do outro, “compreendo-me” sobre a aprendizagem de viver, já que o biográfico ordena a própria vida. Entre os gêneros e subgêneros do espeço biográfico de Arfuch (2009), três chamam a atenção: o testemunho, as confissões e as entrevistas. No Dicionário On-line de Português25, a palavra testemunho aparece com um significado sinonímico à palavra depoimento: “declaração feita pela testemunha, pela pessoa que estava presente ou viu algum acontecimento ou crime; depoimento; declaração, depoimento de uma ou mais testemunhas; afirmação fundamentada; depoimento, comprovação”. A partir dessa constatação, podemos classificar o depoimento como um gênero biográfico, e a biografia-reportagem Silvio Santos – A trajetória do mito está recheada de depoimentos, declarações, reportagens nascidas por meio de entrevistas e confissões. Gostaríamos de elencar alguns depoimentos para que possamos comentar. Todos os capítulos têm um ou mais depoimentos. Esses depoimentos são para a biografia de Arlindo Silva (1972), A espetacular vida de Silvio Santos, para o livro de Boni (2000), 50 anos da TV no Brasil, e alguns para o SBT. Silvio Santos por ele mesmo: Toque de Midas.

No carnaval, eu vendia cervejas, refrigerantes, lança perfume, confete, serpentina, sanduíches. Quando era época de São João, montava barracas no centro da cidade e vendia fogos. Na Páscoa, chocolates, coelhos etc. No dia 7 de setembro, havia parada, desfile nas ruas, e então eu vendia caixotes velhos. A multidão se acotovelava nas calçadas para assistir o desfile, e aqueles que ficavam nas fileiras de trás muitas vezes não conseguiam ver o espetáculo. Então compravam os caixotes, subiam neles e, estando mais altos, tinham uma visão privilegiada. – Depoimento para o livro 50 anos da TV no Brasil, organizado por J.B. de Oliveira Sobrinho, Boni (Editora Globo, 2000). (MORGADO, 2017, p. 31).

Eu tinha, evidentemente, que escolher: ou continuar na linda profissão de locutor da Rádio Guanabara, ganhando um conto e trezentos por mês, ou continuar como camelô, ganhando 960 mil réis por dia! E mais um detalhe: na rádio eu era obrigado

25 Disponível em: . Acesso em: 24 set. 2019. 177

a trabalhar entre 4 e 5 horas por dia. Como camelô na avenida eu trabalhava apenas 45 minutos por dia, isto é, tempo exato que o guarda demorava para almoçar. [...] Pensando em tudo isto, tomei minha decisão: fiquei na rádio Guanabara apenas um mês. E voltei a ser camelô. – Depoimento para o livro A vida espetacular de Silvio Santos, de Arlindo Silva (L, Oren). (MORGADO, 2017, p. 31).

Comecei a fazer anúncios, fazia bingos, nas barcas que saiam do Rio, ali da praça XV, e levavam as pessoas para Niterói, Paquetá, ilha do governador. – Depoimento para o livro 50 anos da TV no Brasil, organizado por J.B. de Oliveira Sobrinho, Boni (Editora Globo, 2000). (MORGADO, 2017, p. 32).

Fui à companhia Antarctica e pedi que eles me emprestassem um balcão de madeira, umas tintas daquelas grandes de gelo, que ainda são usadas até hoje, e comecei a vender cerveja e guaraná na barca. A venda ia bem, mas aí, como eu já estava com vontade de ser animador, resolvi botar um bingo dentro da barca. Cada pessoa que comprasse um guaraná ou uma cerveja recebia um cartão e um lápis para a marcação do bingo. No meio da viajem (a Paquetá), eu parava a música, parava o baile, o pessoal sentava nos bancos e começava o bingo... – Depoimento para o livro A vida espetacular de Silvio Santos, de Arlindo Silva (L, Oren). (MORGADO, 2017, p. 32).

Como corretor de anúncios de um serviço de alto-falante nas barcas da Cantareira, passei a ganhar mais do que camelô. Então o espírito de camelô morreu definitivamente dentro de mim. Nasceu, em seu lugar, um espírito muito mais forte: o de homem de negócios e chefe de um empreendimento próprio. – Depoimento para o livro A vida espetacular de Silvio Santos, de Arlindo Silva (L, Oren). (MORGADO, 2017, p. 33).

Esses depoimentos de Silvio têm algumas coisas em comum: dividem o mesmo tema; foram cedidos pelo autor Silvio Santos para livros de caráter biográfico; estão em primeira pessoa do singular. Embora esses depoimentos, testemunhos, sejam relatos de momentos específicos da vida de Silvio Santos, nesse caso, o início da vida profissional do “patrão”, seria ingenuidade não perceber uma perspectiva autobiográfica nesses excertos. Para Lejeune (2008), autobiografia é uma narrativa retrospectiva em prosa sobre a vida particular de determinada personagem. Possui como característica óbvia o pronome do caso reto “eu”. Ou seja, os depoimentos apresentam traços autobiográficos, contudo não é autobiografia de modo canônico, por não contar uma história com uma narrativa linear. Todavia, têm os depoimentos de Silvio caráter autobiográfico, marcado pelo “eu”. São divididos por temas e capítulos e gozam da mesma temática: a vida de Silvio Santos narrada por ele mesmo no começo de sua vida profissional. 178

Não é autobiografia porque os depoimentos estão mais ligados à memória do que a uma construção que recorre a elementos de ficcionalização, característica da autobiografia. Ademais, não estão em prosa, mas gozam de uma narrativa retrospectiva. Por exemplo:

No carnaval, eu vendia cervejas, refrigerantes, lança perfume, confete, serpentina, sanduíches. Quando era época de São João, montava barracas no centro da cidade e vendia fogos. Na Páscoa, chocolates, coelhos etc. No dia 7 de setembro, havia parada, desfile nas ruas, e então eu vendia caixotes velhos. A multidão se acotovelava nas calçadas para assistir o desfile, e aqueles que ficavam nas fileiras de trás muitas vezes não conseguiam ver o espetáculo. Então compravam os caixotes, subiam neles e, estando mais altos, tinham uma visão privilegiada. – Depoimento para o livro 50 anos da TV no Brasil, organizado por J.B. de Oliveira Sobrinho, Boni (Editora Globo, 2000). (MORGADO, 2017, p. 31).

É narrativa retrospectiva, como podemos verificar. Todos os verbos estão no pretérito perfeito. É curioso perceber um elemento da autobiografia que é a falta de isolamento. Silvio usa os verbos vender e montar no passado para referir-se a si mesmo, seguido dos verbos acotovelar, ficar, conseguir, comprar e ter também no passado, para referir-se a outrem. Vejamos outro exemplo:

Eu tinha, evidentemente, que escolher: ou continuar na linda profissão de locutor da Rádio Guanabara, ganhando um conto e trezentos por mês, ou continuar como camelô, ganhando 960 mil réis por dia! E mais um detalhe: na rádio eu era obrigado a trabalhar entre 4 e 5 horas por dia. Como camelô na avenida eu trabalhava apenas 45 minutos por dia, isto é, tempo exato que o guarda demorava para almoçar. [...] Pensando em tudo isto, tomei minha decisão: fiquei na rádio Guanabara apenas um mês. E voltei a ser camelô. – Depoimento para o livro A vida espetacular de Silvio Santos, de Arlindo Silva (L, Oren). (MORGADO, 2017, p. 31).

Esse exemplo é bem marcado pelo “eu”. Todavia, a ilusão da unicidade desse “eu” é descartada mesmo nesse breve excerto: existe o outro que é o guarda da avenida (em negrito). A identidade do autor, narrador e personagem, advém da mesma pessoa: Silvio Santos. É um posicionamento enunciativo-discursivo autodiegético. Cada depoimento, entrevista, declaração dos capítulos Silvio Santos por ele mesmo trazem consigo um título, que separa as declarações de Silvio por temas. Não há dúvida de que são as palavras do próprio Silvio atestadas pela história do animador somada ao seu nome próprio. 179

Segundo Lejeune (2008), mesmo criança, no processo de aquisição da linguagem, acostuma-se a referir-se a ela mesma na terceira pessoa antes de se perceber como um ser único e ter noção da primeira pessoa do singular. Há autobiografias que adotam esse posicionamento enunciativo-discursivo: o “ele” como “eu”. Trata-se de um posicionamento- enunciativo discursivo homodiegético, ou seja, há uma identidade entre autor, narrador e personagem, sem o carimbo da primeira pessoa do singular. Em depoimento a TVS, Silvio Santos utiliza a narração homodiegética para falar sobre ele mesmo. Capítulo 4, Dono de televisão. Depoimento dado a TVS em 14 de maio de 1976:

Silvio era a pessoa mais apresada do mundo e era também um sujeito de muita sorte. Li nos jornais que a massa falida da extinta TV Continental, canal 9 do Rio de Janeiro, seria leiloada e disse para o meu amigo e superintendente dos estúdios, Luciano Callegari: “Olha, Luciano, se nós arrematarmos tudo no leilão, não vamos precisar esperar 8 meses pela construção da torre e da antena”. O material anunciado no edital do leilão era sucata, disse muita gente entendida. O próprio leiloeiro achava que iria leiloar um monte de ferro velho. Conseguimos, com o maior lance, comprar todo o material do leilão e os jornais disseram que o novo concessionário já estava começando com o pé esquerdo e fazendo um péssimo negócio. Fez-se uma descoberta espantosa. Quem poderia adivinhar que o velho transmissor, da velha Continental, fora construído para funcionar a cores uns dez anos antes de se instalar a televisão a cores no Brasil? Mas quando há boa vontade, Deus ajuda e tudo acontece. (MORGADO, 2017, p. 123).

Silvio Santos usa a terceira pessoa (em negrito) para falar de si mesmo. Em seguida, retoma a narração autodiegética. Há, portanto, nos depoimentos de Silvio Santos, traços autobiográficos consubstanciados pela brincadeira pronominal no curso narrativo. Esse jogo pronominal abre caminho para aproximações: o eu, o ela, o ele e o você estão ali. Silvio Santos por ele mesmo é depoimento, é entrevista, é confissão, é autobiográfico e é reportagem: um relato retrospectivo do cotidiano pela linguagem da vida. Outro exemplo de narração homodiegética de Silvio está no tema Lições de Vida – Silvio Santos por ele mesmo, em que Silvio usa o “tu” como “eu”. Em outros termos, o “você” como “eu”:

Quem quer se meter em qualquer tipo de negócio não deve se preocupar com os elogios ou com as críticas. [...]. Se você não sonhar alto, administrar bem sua empresa, com os pés no chão, não se preocupando nem com o primeiro, nem com o segundo, nem com o último colocado, se você fizer aquilo que a sua intuição manda e usar o bom senso, deixando de lado a vaidade, você tem todas as possibilidades de conseguir seu objetivo. Não tenha dúvida. Só não consegue o objetivo quem sonha demasiado. Só não consegue o objetivo quem acredita que as coisas são fáceis. 180

Todas as coisas são difíceis. Todas as coisas tem que ser lutadas. Quando você consegue uma coisa fácil, desconfie, porque ela não é tão fácil quanto parece. Continue trabalhando, continue apostando na sua intuição, continue com os pés no chão e não se importe com o que sua esposa, com o que seus filhos e com o que seus amigos falam. Se importe com aquilo que você vive no seu dia a dia. Pelo menos foi assim que eu consegui de camelô a ser banqueiro. – SBT, 21 de agosto de 2011. (MORGADO, 2017, p.47-48)

Esse depoimento de Silvio no SBT foi dado em 2011 e ficou conhecido na internet. Silvio está o tempo todo falando dele mesmo, embora utilize o “você”. O autor Silvio Santos conclui o depoimento (em negrito) assumindo o “eu” em um intercambiar de posições enunciativas: “Pelo menos foi assim que eu consegui de camelô a ser banqueiro”. Todavia, fica claro que, mesmo usando o “você”, Silvio estava sempre falando de sua própria experiência. Há outro exemplo autobiográfico que Silvio usa o “eu” como “tu”:

Não tenho um sonho. Não é um sonho, mas, como eu vou morrer, gostaria de morrer sem ir para o hospital. É a única coisa que eu posso esperar com 83 anos. O que você pode esperar com 83 anos? Só embarcar a qualquer momento. – Veja São Paulo, 7 de fevereiro de 2014 (MORGADO, 2017, p. 179).

Silvio, em um de seus depoimentos ao SBT, manifesta uma pretensão autobiográfica:

Eu quero agradecer a vocês por terem vindo e terem escutado toda essa minha história. Porque o Livro de Arlindo [Silva], um grande amigo meu, ele fez por conta própria e eu fiquei muito contente. [...] Mas se eu tivesse que contar toda a minha história desde os 14 anos, quando eu comecei a minha vida de camelô, ou desde a escola pública, quando eu comecei a vender doces no recreio, eu acho que dariam três ou quatro volumes (MORGADO, 2017, p. 187).

Existe na biografia-reportagem de Silvio Santos alguns exemplos de enunciados que certamente advém de entrevistas jornalísticas, embora Silvio, hoje em dia, seja avesso a dar entrevistas. Temos alguns exemplos que Morgado (2007) traz, que são assumidamente entrevista:

Tenho certeza que, em qualquer sequestro, a imprensa deve se manter respeitando a orientação policial. Cada caso é um caso. Dizer que a imprensa ajuda divulgando, ou dizer que a imprensa prejudica divulgando, não é uma verdade total. A imprensa deve fazer aquilo que os americanos fazem: respeitar a orientação policial. – Entrevista coletiva após o fim do sequestro de sua filha nº4, Patrícia, Globo, 28 de agosto de 2001 (MORGADO, 2017, p. 175). 181

Temos aqui uma reportagem, em seu sentido literal, estrito, do gênero entrevista. Não temos uma entrevista canônica, reportada com uma introdução biográfica do entrevistado, como na revista Veja, tampouco uma pergunta do entrevistador seguida de uma resposta do entrevistado. Mas temos uma resposta de Silvio, com direito a discurso direto não marcado (em negrito) e direcionado a um auditório. A resposta de Silvio é direcionada a rede Globo, pois sabemos que o jornalismo da Rede Globo de Televisão tinha uma política rígida de não negociação com sequestradores e demorou inclusive para noticiar e fazer a cobertura do sequestro da filha de Silvio Santos. Morgado (2017) reporta a entrevista de Silvio na biografia-reportagem, que contou ainda com outro repórter, aquele que fez a entrevista: uma entrevista coletiva. O repórter, ao entrevistar, se vale de certas circunstâncias, como as entrevistas coletivas, em que se deve dividir o turno com outros repórteres. Tratou-se aqui de um trabalho de rua do primeiro repórter, aquele que conseguiu o enunciado de Silvio. Silvio Santos, por meio da instituição jornalística, colabora com a sociedade e traz uma reflexão: no caso de um sequestro, a imprensa deve respeitar a orientação policial. No caso desse sequestro, aparentemente, a orientação policial era a exaustiva divulgação do sequestro, que, por sua vez, inibiria a ação do sequestrador. O sequestrador também pediu a cobertura da imprensa. Esse excerto da entrevista é curioso porque não é autobiográfico de maneira direta. Não há um intercambiar pronominal, ou seja, nem mesmo ocorre a presença marcante e característica do “eu” da autobiografia, tampouco do “ele”. Todavia, decorre de uma entrevista, como assinala Morgado (2017). A entrevista aqui deixa implícito um entrevistador e mantém seu carácter assimétrico de interação: é enrijecida pela pergunta e resposta. Neste outro caso, aparece o entrevistador-repórter, no caso, David Nasser, da revista O cruzeiro:

O milagre brasileiro é outro. Imaginem só: nós dois criando gado aqui em Barra do Garças. Um locutor e um repórter. Quem diria. – Em entrevista a David Nasser. O Cruzeiro, 29 de novembro de 1972. (MORGADO, 2017, p. 36).

Na biografia-reportagem de Silvio a sensação de espontaneidade não é diferente: assim como na entrevista escrita, que, não raro, no processo de retextualização, gosta de manter elementos da oralidade para sugerir uma espontaneidade típica das conversas face a 182

face e induzir a uma intimidade. Essa conversa impressa coloca em evidência a afetividade, indicada pelo sorriso, pela ira, pela surpresa. Na biografia-reportagem de Silvio Santos, há um exemplo assim:

Quando eu cheguei em São Paulo, usava blusão, parava na rua, comia melancia, abacaxi, comprava tangerina, comia pastel na pastelaria... Ficava parado ali no [Bar do] Jeca, na São João com a Ipiranga, vendo as mulheres passarem, como eu ficava na Cinelândia, no Odeon... Assim, de camisa, mas que não era boa assim, não era, era uma camisa... Rá-rá! – SBT, 7 de maio de 1987. (MORGADO, 2017, p. 182).

Parece-nos, nesse caso, mais um depoimento do que uma entrevista; todavia, esse elemento dos risos (em negrito) é muito comum nas entrevistas impressas para despertar afetividade, preservar a proximidade e sensibilizar pela sensação de intimidade dessa relação entrevistado e público-alvo, auditório. No excerto acima, fica claro o papel de Morgado (2017), não somente como autor biógrafo, mas também como repórter. Ele está reportando a risada de Silvio no depoimento. Morgado (2017) faz ainda outra inserção de autoria: [Bar do] Jeca. Morgado (2017) reporta o fato com honestidade. Há na biografia-reportagem de Silvio muitos enunciados possivelmente proferidos em entrevistas do Homem do Baú, que não estão claramente especificados como entrevista. Todavia, aparentemente nasceram de perguntas feitas ao animador. Muitos casos reunidos na biografia-reportagem foram coletados da revista Veja. Silvio Santos reúne algumas capas da revista em reportagens especiais ao longo dos anos e deu entrevistas exclusivas para a revista. Vejamos alguns desses enunciados à Veja:

Eu estou a quase quarenta anos trabalhando para essa classe [C] com o Baú. É uma classe espetacular. É humilde, é correta. Pobre é melhor pagador do mundo. A classe média às vezes não paga porque sabe que se a coisa for para a justiça pode demorar até dez anos. – Veja, 17 de maio de 2000 (MORGADO, 2017, p. 36).

Vejamos que a inserção de Morgado para manter a coerência do enunciado pode ter advindo da pergunta do jornalista: “[...] para essa classe [C] com o Baú”. Por exemplo, a pergunta pode ter sido elaborada assim: “Como é trabalhar com a classe C todos esses anos?”. Outros enunciados cedidos à Veja vão por diferenciados caminhos: 183

Eu confio no meu feeling. 90 ou 95 por cento das decisões que eu tomo, graças à minha intuição, costumam dar certo. Eu digo isso sem menosprezar meus assessores. Eles são excelentes na execução, mas eu gostaria de ter aqui mais gente criativa. No Brasil, as pessoas são pouco criativas em geral. E uma ideia pode representar apenas 10% de um empreendimento, mas sem ela não existiriam os 90% de execução bem- sucedida. – Veja, 28 de maio de 1975 (MORGADO, 2017, p. 39-40).

Nesse excerto abaixo, aparecem, concomitantemente, a voz de Silvio e de Morgado (2017), de maneira clara:

Deve mostrar que é um colaborador sincero. Mas o importante mesmo é não ter medo de mim. – Explicando qual seria a condição essencial para alguém trabalhar com ele. Veja, 28 de maio de 1975. (Morgado, 2017, p. 41).

Morgado (2017) usa o gerúndio “Explicando” (em negrito) – muito comum na oralidade do português brasileiro – para contextualizar o enunciado de Silvio. Em maio de 1975, o Homem do Baú deu muitas declarações à Veja: “Comandar um programa com auditório para mim é fácil.” (MORGADO, 2017, p. 41). Silvio Santos disse ainda: “Você está vendo aquele televisor colocado no meio do auditório? Ele está ali porque eu estou me exercitando em falar olhando para a minha imagem, abstraindo por alguns momentos a presença de pessoas à minha frente.” (MORGADO, 2017, p. 83). E mais: “Os programas de auditório vão cada vez ser mais raros no futuro. Eu preciso me preparar para ter a mesma naturalidade, a mesma comunicação, sem depender do auditório.” (MORGADO, 2017, p. 83). Sob um aspecto de pergunta retórica, Silvio pergunta a ele mesmo e ele mesmo responde: “Amigo íntimo? Acho que não tenho nenhum.” (MORGADO, 2017, p. 174). E fala: “Confidencias? Eu não costumo fazer confidencias nem pra mim mesmo!” (MORGADO, 2017, p. 179). Silvio também dá várias declarações à revista Veja no ano de 2000, como refrata Morgado (2017): “Na minha emissora, eu não interfiro. Cada um faz o programa do jeito que quer. Eu não falo nada. Quem fala é o número. Quem dá ibope pode mostrar o que quiser.” (MORGADO, 2017, p. 126). Ainda sobre o ibope: “Temos que dar ao povo o que ele quer. Se for samba, será samba. Se for mulher com pouca roupa, será mulher com pouca roupa.” (MORGADO, 2017, p. 131). Sobre a violência, Silvio acrescentou: “Nós estamos no meio de uma guerra, fazer o que? Não adianta ficar com medo. Além disso, nas vezes em que eu fui assaltado, os bandidos não fizeram nada porque reconheceram a voz de Silvio Santos.” 184

(MORGADO, 2017, p. 174). Sobre fé, respondeu: “Na verdade, se não fosse animador, gostaria de ser pastor. Mas, na minha igreja, eu só ia falar do Velho Testamento. Está tudo lá.” (MORGADO, 2017, p. 177). E ainda: “Quanto a Jesus... Ele pode ter sido lá filho de Deus. Mas eu acho que ele era mais um cara brilhante, um sujeito que hoje seria o Lula, o Jânio Quadros, o Collor. Acho que ele era antes de tudo um político.” (MORGADO, 2017, p. 177). E sobre morte, falou: “Não tenho medo de morrer.” (MORGADO, 2017, p. 178). “Sei que alguma coisa vai estar reservada para mim do outro lado, uma nova missão.” (MORGADO, 2017, p. 179). Ainda para a revista Veja, mais recentemente, Silvio Santos declarou:

Eu pensei que se nós tivéssemos de fazer uma capa para a revista seríamos eu, Roberto Carlos, Pelé e Lula. Não é só popularidade. O povo gosta de mim, gosta do Roberto, gosta do Pelé e gosta do lula, independente do que nós façamos. – Veja São Paulo, 7 de fevereiro de 2014. (MORGADO, 2017, p. 91).

Ainda que os enunciados de Silvio pra revista Veja não tenham sido reportados por Morgado (2017) por meio da estrutura canônica da entrevista, entrevistador, entrevistado e público, pela heterogeneidade dos temas diversos abordados por Silvio Santos, somente podemos concluir ter havido uma pergunta que originou tais respostas. Embora não estejam no formato que estamos acostumados a ver na revista Veja, aquele que inicia as entrevistas com a biografia do entrevistado, as respostas e perguntas, temos, no livro de Morgado (2017), um estilo de entrevista prevista por Hoffnagel (2010). Trata-se do estilo primeiro estilo, que coloca o próprio nome como se fosse o entrevistador. Por exemplo: Isto é, Veja, Galileu, Contigo etc. Nesse estilo, temos a impressão de que é a revista ou o jornal, a instituição jornalística, que interage com o entrevistado, eximindo o entrevistador-repórter de qualquer responsabilidade. Esse estilo personaliza e aumenta a voz da revista. Se Morgado (2017) trabalha no livro como uma espécie de repórter dos enunciados de Silvio dados à Veja e aos outros veículos de comunicação, ao colocar as instituições jornalísticas como responsáveis, ele se exime de qualquer reponsabilidade de propriedade associada a problemas que envolvem a palavra autoria. A linha que separa as autobiografias das confissões é tênue. Grosso modo, caracteriza- se pela relação do homem com Deus, donde o outro não exerce uma resposta imediata: Deus configura uma entidade de caráter monológico. Todavia, tanto nas autobiografias, quanto nas 185

biografias, as confissões dialogam com a vida, com o ato de existir. À medida que “eu” vou vivendo, “torno-me” um ato de existência. A consciência do homem é o que separa o bem do mal, o certo do errado, e as perguntas que o sujeito faz para si respondem à consciência. Essas perguntas antecedem o ato da existência e também o ato enunciativo: por quê?, pra quê?, está certo?, cabe fazer isso ou não?, isso é necessário? É evidente que Silvio Santos responde à sua consciência em alguns momentos de sua história. Um momento específico ocorre quando o Homem do Baú lançou um plano de saúde, o Clam, que ganhou a fama de ser milagroso por ser dele. Segue o momento narrativo que fala da dor na consciência que Silvio sentiu pela sua Organização Médica (Omed):

Assim, Silvio realizava seu antigo desejo de oferecer médicos e hospitais a preços acessíveis para as camadas populares. O sucesso de vendas foi imediato, mas acabou provocando uma forte dor na consciência. Certo dia, ao chegar em casa, encontrou na calçada um casal em prantos. O pai disse: – Seu Silvio, o meu filho morreu... – Mas morreu de quê? – Eu tinha o Clam e ele morreu. – O Senhor sabe, eu não tenho culpa, eu não sou médico. – Não, eu sei, mas o meu filho morreu. (MORGADO, 2017, p. 24).

Silvio sentiu-se culpado e desmotivado a continuar com o Clam: ele acabou vendendo para a Blue Life. Silvio Santos é um autor proficiente de sua própria história e é também, evidentemente, autor dos enunciados que proferiu ao longo da vida, reunidos em Silvio Santos – A trajetória do mito. O Homem do Baú, o “patrão”, não é apenas empresário, é artista também, como sabemos, e, portanto, como artista, pensa em seu auditório; por isso, o outro exerce influência sobre os seus atos. Silvio oferta a outrem sua vida e tenta enxergar no outro como este interpreta seus atos. Ou seja, a forma como ele é e como ele não é, aquilo que gosta, aquilo que não gosta, a forma que age etc. é importante para determinação do sujeito Silvio Santos. A consciência é determinante, pois, por meio dela, o sujeito Silvio Santos reconhecerá não apenas os valores estéticos puros, nem os valores sociais puros, e, sim, os valores maniqueístas, de caráter moral. O “patrão” informa sua vida pelos enunciados não apenas como ser humano, mas também como autor e como personagem. 186

Há, em certos momentos, a sensação de que Silvio relaciona-se consigo mesmo, e, por isso, em alguns enunciados, sua enunciação está fundamentada não apenas no arrependimento, mas também na culpa. É nesses momentos que se dá o autoinforme- confissão, que é a relação dele com ele mesmo, que irá ser o princípio constitutivo organizador da sua enunciação. Vejamos um exemplo:

Quando eu me lembro da minha mulher que morreu e que eu dizia que era solteiro; que eu escondia as minhas filhas para poder ser o galã, pra poder ser o herói; eu, quando falo com a minha consciência, acho que são das coisas imperdoáveis que eu fiz diante da minha imaturidade. SBT, 21 de fevereiro de 1988. (MORGADO, 2017, p. 181).

Silvio responde nesse excerto pra sua própria consciência a pergunta: pra quê? Ele sabe que não está certo. Sente culpa e considera imperdoável (em negrito) sua atitude. Nesse momento, parece que Silvio busca o perdão de Deus. No autoinforme-confissão, somente o que o autor diz sobre si mesmo é de fato considerado; todavia, o outro pode ser um juiz possível, levando-se em conta que o que o outro diz sobre “mim” pode dialogar com o que “eu” mesmo penso sobre “mim”. Se a consciência do indivíduo é absolutamente relevante no informe sobre si mesmo, resgatemos as consciências biográficas social de costumes e aventuresco-heroica. Elas aparecem também nos enunciados-reportagem de Silvio. A consciência biográfica aventuresco-heroica proferida ao SBT em 13 de março de 1988: “Há coisas que não fazemos para os nossos contemporâneos, mas para as futuras gerações.” (MORGADO, 2017, p. 185). Aqui o autor Silvio Santos manifesta-se pela necessidade de ser importante não apenas nas vidas dos contemporâneos, mas também dos descendentes. Aspira à glória. A consciência social de costumes na revista O Cruzeiro, de 5 de maio de 1971: “Nada se consegue sem esforço, sem dedicação, sem honestidade. Meus pais me ensinaram essa lição e eu apreendi. Tenho adoração por eles.” (MORGADO, 2017, p. 173). Faz parte mais dos costumes em família de Silvio. A educação dos pais, o dia a dia junto aos contemporâneos. É pela consciência que se dá o diálogo com o autoinforme-confissão. Silvio Santos assume em seus enunciados uma consciência, relaciona-se consigo mesmo. Ele mesmo confirma isso para a Folha de S. Paulo, de 21 de fevereiro de 1988: “Quem me rege, desde os 18 anos, quando era da escola de paraquedistas, é a consciência, razão e emoção. Nesta ordem.” (MORGADO, 2017, p. 185). 187

As confissões, por si só, são relatos informativos: “Confesso que sempre fui amante das emoções fortes.” – Depoimento para o livro A Vida Espetacular de Silvio Santos (1972) – (MORGADO, 2017, p. 185). Segundo Melo (2003), o estilo jornalístico está ligado ao relato do cotidiano amalgamado com o que Vivaldi chama de “linguagem da vida” (MELO, 2003, p. 42). A biografia-reportagem de Silvio Santos conta a vida dele pela voz de Morgado (2017), pela voz dos jornais e revistas e pela voz do próprio Silvio. Ou seja, dialoga com a biografia, a autobiografia, o relato de vida e o autoinforme-confissão: é reportagem. Morgado (2017) ajuda a reportar a vida de Silvio por meio do livro. A biografia-reportagem é informativa. Para Beltrão (1972), os gêneros jornalísticos devem “informar, explicar, orientar.” (BELTRÃO apud MELO, 2003, p. 60). Devem apresentar – a reportagem, a entrevista, a história de interesse humano – uma aproximação com o auditório, com o público a que se destina, uma vez que sempre irá buscar uma adesão. A classificação de Beltrão (1972) considera dois gêneros de reportagem: a pequena reportagem, que se configura pela superficialidade em função da celeridade com que os fatos devem ser divulgados, e a grande reportagem, mais profunda, que exige tempo, pesquisa, avaliação e reflexão “distanciando-se portanto da pressão analítica que caracteriza os relatos jornalísticos imediatos.” (MELO, 2003, p. 60-61). A biografia-reportagem do “patrão” pode, sob esse ponto de vista – reportagem em profundidade – ser considerada uma reportagem enunciada sob a égide da pesquisa e da reflexão. É desenvolvida de forma documental, portanto, reportagem documental, consolidada pela publicação, pela informação, pelos relatos de vida, pelos enunciados do protagonista e de personagens que compõem a sua vida. A pesquisa de Morgado permitiu que o discurso manifesto de Silvio Santos se tornasse reportagem. Cabe-nos a afirmativa de Melo (2003): “Nesse caso as enquetes e os depoimentos, seriam instrumentos de captação, que tomam forma no discurso manifesto através das notícias ou das reportagens.” (MELO, 2003, p. 62). Como vimos, a biografia-reportagem está recheada de intertextualidade manifesta. Entendemos que os próprios enunciados de Silvio são provenientes de uma intertextualidade manifesta. Vejamos alguns exemplos de depoimentos de Silvio Santos no SBT coletados por Morgado (2017): 188

A maior loja que eu abri do Baú da Felicidade no Rio de Janeiro, a que mais empolgou na época, foi em Madureira. Era uma loja enorme, nós até tínhamos dificuldade de pegar o aluguel. Eu dizia para os meus executivos: “Olha, essa loja é muito grande, vocês vão pagar um aluguel alto, nós não estamos ainda podendo gastar isso...”. E hoje é a mesma loja, continua no mesmo lugar, e até parece bem menor do que era na época. – SBT, 1 de março de 2011. (MORGADO, 2017, p. 34).

Esse depoimento acima é interessante porque se desdobra em duas intertextualidades manifestas: a primeira é o próprio enunciado e a segunda é o enunciado no enunciado (em negrito). O primeiro (o depoimento) é não marcado e o segundo é marcado pelo auxilio paratextual das aspas. Além disso, é informativo – a loja continua no mesmo lugar, pelo menos até 2011, data do depoimento –, é explicativo – Silvio explica como começou – e diz como orientava seus executivos: “Olha, essa loja é muito grande, vocês vão pagar um aluguel alto, nós não estamos ainda podendo gastar isso...” (MORGADO, 2017, p. 34). (Em negrito). Silvio Santos falando sobre seus colegas de profissão:

Quando eu era locutor de rádio, os meus colegas se aproximavam de mim, batiam papo comigo, eram iguais a mim. Depois, não sei porque razão, que eu passei a ser empresário de televisão, os colegas ficam afastados, ficam perguntando para as minhas secretárias: “Como é que ele está? Será que posso falar com ele?”. Posso garantir a vocês que eu continuo sendo o mesmo colega. Eu não mudei... Pode ser que eu tenha mudado financeiramente, mas, pessoalmente, eu me considero o mesmo. – SBT, 19 de agosto de 2011. (MORGADO, 2017, p. 38).

Esse outro depoimento é diferente do primeiro. No primeiro, a intertextualidade manifesta se dá pelo discurso direto do Silvio sobre ele mesmo no enunciado dele mesmo. Nesse outro excerto, Silvio fala como se fosse os colegas locutores (em negrito): “Como é que ele está? Será que posso falar com ele?” (MORGADO, 2017, p. 38). O “eu” autobiográfico somente vai existir diante de um “tu” igualmente autobiográfico. Neste próximo exemplo, a forma intertextual manifesta se dá de maneira singular. Não há a pluralidade manifesta, todavia ainda se trata de um discurso manifesto:

Se o funcionário sai, é porque ele quer melhorar a sua situação profissional. Mas se ele quer voltar, as portas estão abertas. Aqui, nós nunca fechamos a porta pra ninguém. Nenhum de nossos funcionários saiu como nosso inimigo. – SBT, 19 de Agosto de 2011. (MORGADO, 2017, p. 42). 189

Existe na biografia-reportagem de Silvio Santos outro gênero do discurso da esfera jornalística ligado ao artigo de opinião que devemos mencionar: a carta. Entretanto, na medida em que ela é publicada em um veículo jornalístico por citação, passa a ganhar estrutura de notícia ou mesmo de reportagem. Esta carta foi publicada na Folha de S. Paulo, de 13 de maio de 2000:

Se eu for à falência (não é drama), não vou poder andar na rua. Já vimos outros empresários com uma história igual. Confiaram em homens do governo, fracassaram e “perderam” tudo. Eu não vou fracassar, porque Deus vai decidir, usando os doutores juízes como seus instrumentos. – Carta ao tribunal regional Federal de São Paulo. 17 de janeiro de 2000. (MORGADO, 2017, p. 46).

Silvio fala em carta sobre a Tele Sena:

[Após o fim do Clam] Imaginei um outro plano de capitalização, que não trouxesse nenhum problema de consciência e que pudesse salvar os meus negócios. – A criação, em 1991, da Tele Sena. Carta ao tribunal Regional Federal em São Paulo, 17 de janeiro de 2000. Trecho reproduzido pela Folha de S. Paulo, 13 de maio de 2000. (MORGADO, 2017, p. 45).

A carta de Silvio torna-se notícia na medida em que é publicada na Folha de S. Paulo e torna-se reportagem na medida em que é publicada na biografia. O relato jornalístico é captado da realidade, da vida como ela é, e, portanto, depende de dois núcleos: a informação e a opinião. Na primeira, conhece-se sobre o fato; na segunda, conhece-se o que se pensa sobre o fato. Por isso, o relato jornalístico, segundo Melo (2003), tem duas versões: “a descrição e a versão dos fatos.” (MELO, 2003, p. 63). Melo (2003) pondera que os gêneros jornalísticos detêm uma articulação processual, e esta se dá pelos acontecimentos ligados ao real, a realidade dos fatos, a expressão jornalística, ou seja, o relato dos fatos e a expressão pela coletividade. Se partirmos da proposição de que a pesquisa dos enunciados de Silvio é o mote para a biografia-reportagem dele, entendemos que a narração biográfica no livro pode ser uma descrição, um relato da vida de Silvio, baseado nas próprias palavras do “patrão”. Isso é verificável pela recorrência explicita da intertextualidade manifesta entre a narração biográfica e os enunciados de Silvio Santos. Todavia, o relato apresenta uma construção composicional mais descritiva e a narrativa biográfica goza de um conflito. Por exemplo: 190

Assim, Silvio realizava seu antigo desejo de oferecer médicos e hospitais a preços acessíveis para as camadas populares. O sucesso de vendas foi imediato, mas acabou provocando uma forte dor na consciência. Certo dia, ao chegar em casa, encontrou na calçada um casal em prantos. O pai disse: – Seu Silvio, o meu filho morreu... – Mas morreu de quê? – Eu tinha o Clam e ele morreu. – O Senhor sabe, eu não tenho culpa, eu não sou médico. – Não, eu sei, mas o meu filho morreu. (MORGADO, 2017, p. 24).

E mais:

[Após o fim do Clam] Imaginei um outro plano de capitalização, que não trouxesse nenhum problema de consciência e que pudesse salvar os meus negócios. – A criação, em 1991, da Tele Sena. Carta ao tribunal Regional Federal em São Paulo, 17 de janeiro de 2000. Trecho reproduzido pela Folha de S. Paulo, 13 de maio de 2000. (MORGADO, 2017, p. 45).

Temos o relato jornalístico:

Assim, Silvio realizava seu antigo desejo de oferecer médicos e hospitais a preços acessíveis para as camadas populares. O sucesso de vendas foi imediato, mas acabou provocando uma forte dor na consciência. Certo dia, ao chegar em casa, encontrou na calçada um casal em prantos. (MORGADO, 2017, p. 24).

Temos também o acontecimento real: o diálogo manifesto (em negrito). E ainda a versão dos fatos, a dor na consciência (em negrito) contada pelo próprio Silvio. Quando Morgado narra esse acontecimento, ele expressa sua leitura deste, ou seja, é a expressão pela coletividade. Se a narração biográfica pode ser considerada um relato dos fatos, de caráter informativo, da vida do Silvio Santos, a reportagem não está apenas na divulgação, na pesquisa, dos enunciados de Silvio ao longo da vida no livro. O que queremos dizer é que, sob essa perspectiva, o livro todo de Silvio é reportagem; é biografia, mas essencialmente reportagem. A reportagem lida com os fatos e seus assuntos circunscritos. É também interpretativa e lida com a dedução. Parte do tema circundante para os fatos. Na medida em que entendemos a narração biográfica do livro de Silvio Santos também como reportagem, podemos analisar o “lead” construído por Morgado (2017) na introdução de cada capítulo. 191

No capítulo 2, Negócios, em que Morgado cita os pais de Silvio, poderemos encontrar na introdução todas as perguntas – Quem, o que, quando, onde, por que e como – sugeridas por Bond (1961):

Desde muito jovem, o carioca Senor Abravanel, nascido em 12 de dezembro de 1930, demonstrava uma rara disposição para o trabalho. Filho de imigrantes – o grego Alberto e a turca Rebecca –, não queria depender dos pais para comprar aquilo que deseja-se, como as balas premiadas Fruna ou as entradas para as matinês de quinta-feira no cine OK, no centro do Rio de Janeiro, que exibia a série o vale dos desaparecidos, estrelada por Bill Elliott. Ainda na escola Celestino da Silva, onde cursou o primário aproveitava o horário do recreio para vender doces aos colegas. E quis mais. Depois de muito andar pelas ruas do centro do Rio à procura de trabalho e de se decepcionar com os baixos salários oferecidos pelas lojas e repartições públicas presenciou uma cena que o faria escolher sua primeira profissão. (MORGADO, 2017, p. 15).

Quem: Senor Abravanel. O que: aproveitava o horário de recreio da escola para vender doces. Quando: ainda na escola. Onde: escola Celestino da Silva. Por que: não queria depender dos pais para comprar aquilo que desejasse. Como: aproveitava o horário do recreio.

No capítulo 6, Vida pessoal, a “lead” também responde às perguntas:

Por diversas razões, Silvio Santos alimentou o máximo de mistério em torno de sua vida pessoal. Uma dessas razões é a segurança. Durante o Show de calouros de 21 de fevereiro de 1988, deu a seguinte resposta para uma telespectadora que perguntou o porquê de ele não mostrar a família na televisão: – Eu coloco a minha família em risco se ela aparecer na televisão. Eles podem querer fazer alguma coisa que não devem com a minha família e o artista sou eu. (MORGADO, 2017, p. 165).

Quem: Silvio Santos. O que: mistério em torno de sua vida pessoal. Quando: 21 de fevereiro de 1988. Onde: show de calouros. Por que: razão de segurança. Como: respondendo à pergunta da telespectadora. 192

Silvio Santos sempre se espelhou em Manuel de Nóbrega, como profissional e pai. Por isso, o capítulo 5, Política, começa com a história de Manuel de Nóbrega, que foi deputado. Silvio tentou se candidatar, porém na época sua candidatura foi impugnada. Vejamos a “lead” desse capítulo:

A mosca azul da política já picou inúmeros comunicadores. Desde que o rádio se converteu em fenômeno popular, partidos cercam personalidades que se disponham a converter sua audiência em votos. Blota Jr., Cidinha Campos, Clodovil, Homero Silva, Hélio Costa, Sérgio Zambiasi e vários outros trilharam esse caminho. Manuel de Nóbrega foi um dos pioneiros. Convidado por Adhemar de Barros, ingressou no PSP e elegeu-se deputado estadual em 1947. Recebeu a maior votação do Brasil naquela época: 37.778 votos. Mesmo tendo sido um parlamentar atuante, trabalhando, inclusive, na elaboração da nova Constituição de São Paulo, Nóbrega frustrou-se profundamente com a atividade política, que acabou por prejudica-lo no rádio. Após decidir não se candidatar à reeleição, foi parar na estação de menor audiência na época, a emissora Piratininga, antiga Cruzeiro do Sul. Apesar de tudo que já havia feito, precisou provar novamente o seu valor até que, finalmente, conseguiu voltar para uma rádio maior, a Nacional, e recuperar a liderança de audiência. Por tudo isso, sempre alertou Silvio Santos: – Não entra em política porque não casa bem com atividade artística. É uma besteira porque você não vai se dar bem. Por cerca de trinta anos, Silvio seguiu esse conselho. Nos anos 1960, chegou a recusar um convite do PSD para se candidatar a deputado. (MORGADO, 2017, p. 141-142).

Quem: Manuel de Nóbrega O que: artista que se enveredou para a política; eleito como deputado. Quando: 1947. Onde: São Paulo. Por que: tinha popularidade por trabalhar no rádio. Como: recebeu um convite.

Esse “lead” é interessante porque é o único de todo o livro que não começa informando sobre Silvio Santos. Conta de maneira breve a história de Manuel de Nóbrega na política, o que configura um axioma do gênero biográfico, em que o “eu” se constitui a partir de um “você”. Todavia, reforcemos a ideia de que Silvio Santos constitui-se de vários “eus”: Senor Abravanel, Silvio Santos, Silvio, Homem do Baú, patrão. No capítulo 2, nosso protagonista é Senor Abravanel. No capítulo 3, Senor. Somente no capítulo 4 aparece o seu nome já como Silvio Santos no “lead”. No capítulo 3 da biografia-reportagem, Artista, ocorre um fenômeno interessante: a “lead” responde o “porque” de forma parcial: 193

Catorze anos: uma idade marcante para Senor. Idade da sua primeira experiência sexual, da sua experiência como camelô e da sua primeira experiência artística. Sem esperar, ganhou um concurso para locutor na Rádio Guanabara, mas por considerar o salário baixo, logo voltou para as ruas. O pouco tempo diante do microfone, embora pequeno, foi o suficiente para infectá-lo com vírus do rádio. Senor gostava de acompanhar programas de auditório e seu animador favorito era César de Alencar, que ouvia aos sábados à tarde pela Rádio Nacional. O formato da atração, composta por uma sequência de quadros de certa independência entre eles, virou referência. O próprio Programa Silvio Santos seria muito semelhante a isso. (MORGADO, 2017, p. 53).

Quem: Senor. O que: primeira experiência como camelô e primeira experiência como locutor. Quando: na adolescência; tinha 14 anos. Onde: Rio de Janeiro, rádio Guanabara. Por que: gostava de acompanhar César Alencar, seu animador preferido, locutor da rádio Nacional. Como: ganhou o concurso para locutor.

No capítulo 4, o “lead” é curto e não responde a todas as perguntas; todavia, as respostas aparecerão na trajetória narrativa. O “lead”: “O SBT merece um capítulo à parte. Para Silvio Santos, não é um negócio como os outros. Trata-se da mais completa tradução da simbiose entre o artista e o empresário.” (MORGADO, 2017, p. 99).

Quem: Silvio Santos. O que: o SBT. Quando: ? Onde: ? Por que: para Silvio Santos, não é um negócio como os outros. É a simbiose entre empresário e artista. Como: ?

As respostas virão pela narrativa biográfica, e é por isso que se trata efetivamente de biografia e reportagem. O “lead” da biografia-reportagem de Silvio, a cada capítulo, é estruturado de maneira condensada, clara e sumarizada dos principais itens. É, portanto, na categorização de Bond (1961), “lead” condensado. 194

Bond (1961) explica que o “lead” condensado pode conter outro “lead” em sua composição. Podemos dizer que Morgado (2017) também utiliza o “lead” ativador do interesse: “Catorze anos: uma idade marcante para Senor. Idade da sua primeira experiência sexual, da sua experiência como camelô e da sua primeira experiência artística.” (MORGADO, 2017, p. 53). Trata-se de um aperitivo para contar o restante da história. Por meio da perspectiva de Silva (2012) para a reportagem, olhemos a nossa primeira construção intertextual – no início desse capítulo –, entre o discurso direto de Silvio e a narrativa biográfica:

Toque de Midas Senor Abravanel, 14 anos. Camelô. “Um dia eu estava passando na Avenida Rio Branco, tinha algum dinheiro no bolso e resolvi comprar três carteirinhas de plástico [para guardar título de eleitor]. Era 1945, época de eleição para a presidência da República”. Gritando, um homem chamava a atenção de quem passava pela Avenida Rio Branco. Ele vendia carteiras plásticas para guardar título de eleitor. Após o fim do Estado Novo, o Brasil voltava a ser uma democracia, ou seja, havia demanda para as tais carteiras. Senor ficou tão impressionado com a facilidade com que as vendas aconteciam que não resistiu a seguir o tal homem. “Achei que poderia ganhar algum dinheiro vendendo as carteirinhas. Comprava três por Cr$ 3,00 e vendia por Cr$ 5,00 cada uma momentos depois. Era bom negócio”. Com uma moeda de 2 mil réis, comprou a primeira carteira. Foi para a calçada, falou para quem passava e logo fez a venda. Rapidamente voltou para a loja e comprou mais duas carteiras, também vendidas facilmente. Quanto mais dinheiro ganhava, mais o seu entusiasmo aumentava. Foi então que decidiu: seria camelô. (MORGADO, 2017, p. 30).

Percebemos, na reportagem acima, que o “lead” está entre aspas. Esse “lead” entre aspas, pala descrição de Bond (1961), geralmente responde às perguntas “O que?” e “Quem?”. A pergunta “Quem” está respondia fora do corpo do texto, depois do título: Senor Abravanel, 14 anos. Camelô. E a pergunta “O que” é respondida propriamente no “lead” entre aspas: “Um dia eu estava passando na Avenida Rio Branco, tinha algum dinheiro no bolso e resolvi comprar três carteirinhas de plástico [para guardar título de eleitor]. Era 1945, época de eleição para a presidência da República.” (MORGADO, 2017, p. 30). Toda a reportagem desenvolve-se a partir disso. Se a narrativa biográfica de Morgado fosse uma reportagem tradicional, canônica, divulgada por outro suporte de comunicação etc., poderíamos dizer que sua narrativa segue o sistema cronológico, em formato de pirâmide, donde o modelo narrativo é simples e os fatos são narrados na trajetória que eles realmente aconteceram. Trata-se do formato de pirâmide em que a história começa no topo – geralmente começa com o protagonista – e os relatos são narrados um atrás do outro até o clímax e a conclusão. 195

Pegaremos o capítulo 6, Vida pessoal, para apresentar com se dá o formato cronológico na biografia-reportagem de Silvio:

Por diversas razões, Silvio Santos alimentou o máximo de mistério em torno de sua vida pessoal. Uma dessas razões é a segurança. Durante o Show de calouros de 21 de fevereiro de 1988, deu a seguinte resposta para uma telespectadora que perguntou o porquê de ele não mostrar a família na televisão: – Eu coloco a minha família em risco se ela aparecer na televisão. Eles podem querer fazer alguma coisa que não devem com a minha família e o artista sou eu. (MORGADO, 2017, p. 165).

Esse é o “lead”, como vimos, o tópico frasal, o exórdio e/ou introdução, donde Morgado (2017) expõe, dá pistas de como será o desenvolvimento. No terceiro parágrafo dessa página, Morgado (2017) escreve o seguinte:

Durante anos Silvio acreditou que alimentar dúvidas seria fundamental para manter o interesse público. Para a revista Veja de 28 de maio de 1975, declarou: – Eu descobri como é importante uma interrogação. É muito difícil criar uma interrogação. Então, quando ela surge, é preciso aproveita-la. (MORGADO, 2017, p. 165).

No desenvolvimento, na narração, Morgado (2017) expõe um fato relacionado ao mistério que Silvio gostava de manter em torno da sua família e escreve: “Entre os anos 1960 e 1970, mentiu a idade para imprensa.” (MORGADO, 2017, p. 165). Complementa:

Outra mentira que Silvio costumava contar nessa mesma época estava relacionada com seu estado civil. Dizia ser solteiro, quando, na verdade era casado desde 15 de março de 1962 com Aparecida Honoria Vieira. Cidinha era filha da dona de uma pensão no bairro da Bela Vista e, quando adolescente, gostava de frequentar os auditórios das rádios. Silvio a conheceu na Nacional. Casados, trilharam o caminho entre as dificuldades, no tempo em que eles próprios montavam e entregavam as cestas do Baú da Felicidade. Com Cidinha, Silvio teve suas duas primeiras filhas. Com o tempo, ele passou a numerá-las. A nº1, Cíntia, nasceu no ano seguinte ao casamento. A nº2, Silvia, adotiva, nasceu em 1970. Foi Manuel de Nóbrega quem a recebeu primeiro nos braços, ainda recém-nascida. Para a mulher que lhe deu a criança, Nóbrega contou que não poderia aceita-la porque já tinha um filho crescido, Carlos Alberto, mas disse que Silvio Santos gostaria de tê-la para presentear sua esposa. Com apenas três anos de vida, Silvinha, enrolada em um cueiro, chegou a casa dos Abravanel. Tanto Cíntia quanto Silvia foram, por muitos anos escondidas do público, indo inclusive morar no exterior. Cidinha faleceu em 22 de abril de 1977, vítima de câncer no estômago. (MORGADO, 2017, p. 166). 196

Morgado (2017) escreve ainda sobre o segundo casamento de Silvio, agora com Iris Abravanel: “Silvio só voltou a se casar de papel passado em 20 de fevereiro de 1981, com Iris Pássaro.” (MORGADO, 2017, p. 166). E ainda:

Daniela a nº3; Patrícia, a nº4; Rebeca, a nº5; e Renata, a nº6. Todas elas do primeiro e do segundo casamento, vieram trabalhar com o pai. No SBT, por exemplo, Patrícia tornou-se apresentadora Silvia passou a conciliar o trabalho diante e por trás das câmeras e Daniela assumiu a direção artística. (MORGADO, 2017, p. 167).

Mais adiante na narrativa, Morgado (2017) trata da relação de Silvio com os Nóbrega:

Manuel completava 60 anos de vida e apresentava a Praça da Alegria dentro do programa Silvio Santos, ainda na Globo. Ao final, Silvio, olhando para as suas colegas de trabalho: “Vocês sabem que tudo o que eu tenho foi Manuel de Nóbrega que me deu. Ele me deu o Baú, me deu o programa de rádio, me deu o programa de televisão. Mas tudo isso eu poderia ter, eu poderia ter um Baú, eu poderia ter um programa de rádio, eu poderia ter um programa de televisão. Mas há uma coisa que ele me deu, e só ele podia me dar: é o exemplo de um trabalho honesto, um amor ao trabalho...”. (MORGADO, 2017, p. 167-168). Catorze anos depois, Silvio repetiu a mesma surpresa quando Carlos Alberto de Nóbrega, filho de Manuel, estreou A Praça é Nossa. Terminados todos os quadros, o animador entrou no palco batucando uma colher de café em um pires, revivendo os tempos de camelô. Deu ordens para tirar todos os intervalos comerciais daquele momento em diante. Por uma hora, relembrou passagens da vida dele com Manuel e Carlos Alberto, que Silvio havia tirado da Bandeirantes e transformado em diretor artístico do SBT. “Você [Carlos Alberto de Nóbrega] não veio só como redator, você não veio como artista, porque redatores e artistas nós encontramos no Brasil, nos Estados Unidos, Na Argentina. Você veio como meu irmão, você veio como meu amigo, você veio como uma pessoa que vai me ajudar a fazer aquilo que seu pai gostaria de fazer comigo. [...] E você veio me ajudar não no banco da praça, não. Você veio me ajudar com as suas qualidades pessoais, que você herdou do Manuel. Você veio me ajudar agora, depois de uma faculdade na Globo, com suas qualidades profissionais”. (MORGADO, 2017, p. 168).

Fala de fé até chegar ao clímax do capítulo, que é o sequestro do Homem do Baú:

As reportagens já publicadas sobre Silvio Santos revelaram que ele preservou hábitos simples, mesmo depois de ter ficado rico. Quase não tem vida social, preferindo permanecer em casa ou viajar em família. Não tem as mesmas preocupações com segurança que outros milionários como ele possuem. Até ele e sua filha Patrícia serem mantidos reféns, acreditou que sua fama era suficiente para protegê-lo. Em 30 de agosto de 2001, Silvio foi mantido em cárcere privado dentro da sua própria casa pelo sequestrador de Patrícia, Fernando Dutra Pinto. Durante várias horas, o brasil e o mundo ficaram com os olhos na TV, que transmitiu tudo ao vivo. O caso só chegou ao fim quando o governador de São Paulo Geraldo Alckmin, atendendo a um pedido feito por Silvio, foi até o local e negociou a rendição do bandido. (MORGADO, 2017, p. 170-171). 197

A conclusão e/ou peroração: “Conservador, cultiva uma rígida rotina, iniciada por volta das 5 horas da manhã e encerrada as 22h30 min. Há quatro décadas tem o seu cabelo cuidado por Jassa um de seus maiores amigos e conselheiros.” (MORGADO, 2017, p. 171). No último parágrafo:

Alguns podem rejeitá-lo, enquanto outros podem amá-lo, mas ninguém pode ignorá- lo. Ao estudar a vida de Silvio Santos, pode-se mais do que conhecer a vida de um artista, compreender como pensa, age e sente o Brasil popular, que é o verdadeiro Brasil. (MORGADO, 2017, p.172).

Se juntarmos todos os excertos, teremos o formato cronológico:

Durante anos Silvio acreditou que alimentar dúvidas seria fundamental para manter o interesse público. Para a revista Veja de 28 de maio de 1975, declarou: – Eu descobri como é importante uma interrogação. É muito difícil criar uma interrogação. Então, quando ela surge, é preciso aproveitá-la. (MORGADO, 2017, p. 165). Entre os anos 1960 e 1970, mentiu a idade para imprensa. (Morgado, 2017, p.165). Outra mentira que Silvio costumava contar nessa mesma época estava relacionada com seu estado civil. Dizia ser solteiro, quando, na verdade era casado desde 15 de março de 1962 com Aparecida Honoria Vieira. Cidinha era filha da dona de uma pensão no bairro da Bela Vista e, quando adolescente, gostava de frequentar os auditórios das rádios. Silvio a conheceu na Nacional. Casados, trilharam o caminho entre as dificuldades, no tempo em que eles próprios montavam e entregavam as cestas do Baú da Felicidade. Com Cidinha, Silvio teve suas duas primeiras filhas. Com o tempo, ele passou a numerá-las. A nº1, Cíntia, nasceu no ano seguinte ao casamento. A nº2, Silvia, adotiva, nasceu em 1970. Foi Manuel de Nóbrega quem a recebeu primeiro nos braços, ainda recém-nascida. Para a mulher que lhe deu a criança, Nóbrega contou que não poderia aceita-la porque já tinha um filho crescido, Carlos Alberto, mas disse que Silvio Santos gostaria de tê-la para presentear sua esposa. Com apenas três anos de vida, Silvinha, enrolada em um cueiro, chegou a casa dos Abravanel. Tanto Cíntia quanto Silvia foram, por muitos anos escondidas do público, indo inclusive morar no exterior. Cidinha faleceu em 22 de abril de 1977, vítima de câncer no estômago. (MORGADO, 2017, p. 166). Daniela a nº3; Patrícia, a nº4; Rebeca, a nº5; e Renata, a nº6. Todas elas do primeiro e do segundo casamento, vieram, vieram trabalhar com o pai. No SBT, por exemplo, Patrícia tornou-se apresentadora Silvia passou a conciliar o trabalho diante e por trás das câmeras e Daniela assumiu a direção artística. (MORGADO, 2017, p. 167). “Vocês sabem que tudo o que eu tenho foi Manuel de Nóbrega que me deu. Ele me deu o Baú, me deu o programa de rádio, me deu o programa de televisão. Mas tudo isso eu poderia ter, eu poderia ter um Baú, eu poderia ter um programa de rádio, eu poderia ter um programa de televisão. Mas há uma coisa que ele me deu, e só ele podia me dar: é o exemplo de um trabalho honesto, um amor ao trabalho...”. (MORGADO, 2017, p. 167-168). Catorze anos depois, Silvio repetiu a mesma surpresa quando Carlos Alberto de Nóbrega, filho de Manuel, estreou A Praça é Nossa. Terminados todos os quadros, o animador entrou no palco batucando uma colher de café em um pires, revivendo os tempos de camelô. Deu ordens para tirar todos os intervalos comerciais daquele 198

momento em diante. Por uma hora, relembrou passagens da vida dele com Manuel e Carlos Alberto, que Silvio havia tirado da Bandeirantes e transformado em diretor artístico do SBT. “Você [Carlos Alberto de Nóbrega] não veio só como redator, você não veio como artista, porque redatores e artistas nós encontramos no Brasil, nos Estados Unidos, Na Argentina. Você veio como meu irmão, você veio como meu amigo, você veio como uma pessoa que vai me ajudar a fazer aquilo que seu pai gostaria de fazer comigo. [...] E você veio me ajudar não no banco da praça, não. Você veio me ajudar com as suas qualidades pessoais, que você herdou do Manuel. Você veio me ajudar agora, depois de uma faculdade na Globo, com suas qualidades profissionais”. (MORGADO, 2017, p. 168). As reportagens já publicadas sobre Silvio Santos revelaram que ele preservou hábitos simples, mesmo depois de ter ficado rico. Quase não tem vida social, preferindo permanecer em casa ou viajar em família. Não tem as mesmas preocupações com segurança que outros milionários como ele possuem. Até ele e sua filha Patrícia serem mantidos reféns, acreditou que sua fama era suficiente para protegê-lo. Em 30 de agosto de 2001, Silvio foi mantido em cárcere privado dentro da sua própria casa pelo sequestrador de Patrícia, Fernando Dutra Pinto. Durante várias horas, o Brasil e o mundo ficaram com os olhos na TV, que transmitiu tudo ao vivo. O caso só chegou ao fim quando o governador de São Paulo Geraldo Alckmin, atendendo a um pedido feito por Silvio, foi até o local e negociou a rendição do bandido. (MORGADO, 2017, p. 170). Conservador, cultiva uma rígida rotina, iniciada por volta das 5 horas da manhã e encerrada as 22h30 min. Há quatro décadas tem o seu cabelo cuidado por Jassa um de seus maiores amigos e conselheiros. (MORGADO, 2017, p. 171). Alguns podem rejeitá-lo, enquanto outros podem amá-lo, mas ninguém pode ignorá- lo. Ao estudar a vida de Silvio Santos, pode-se mais do que conhecer a vida de um artista, compreender como pensa, age e sente o Brasil popular, que é o verdadeiro Brasil. (MORGADO, 2017, p. 172).

Evidencia-se aqui uma reportagem perfeita em formato cronológico. Uma das características, a nosso ver, da biografia-reportagem de Silvio Santos, é a possibilidade de podermos lê-la de três formas diferentes: de maneira linear, lendo a narrativa biográfica e os enunciados na seção Silvio Santos por ele mesmo; de maneira assimétrica, ao ler a seção Silvio Santos por ele mesmo e depois ler a narração biográfica; ou ler somente os enunciados de Silvio. Se o leitor optar em ler somente os enunciados de Silvio, terá as informações apenas pela voz de Silvio, mas, se optar em ler os enunciados e narração biográfica, seja de forma assimétrica, seja de forma linear, gozará de várias informações novas que se complementam. Lembrando Sayeg-Siqueira (1990): “para um texto ser um texto, não basta simplesmente ter uma referência e uma tematização, ele precisa trazer uma informação nova.” (SAYEG-SIQUEIRA, 1990, p. 28). Se unirmos a narrativa biográfica e os enunciados de Silvio em uma grande reportagem sobre o homem do Baú, teremos várias informações novas: 199

Durante anos Silvio acreditou que alimentar dúvidas seria fundamental para manter o interesse público. Para a revista Veja de 28 de maio de 1975, declarou: – Eu descobri como é importante uma interrogação. É muito difícil criar uma interrogação. Então, quando ela surge, é preciso aproveitá-la. (MORGADO, 2017, p. 165). Entre os anos 1960 e 1970, mentiu a idade para imprensa. (Morgado, 2017, p. 165). Outra mentira que Silvio costumava contar nessa mesma época estava relacionada com seu estado civil. Dizia ser solteiro, quando, na verdade era casado desde 15 de março de 1962 com Aparecida Honoria Vieira. Cidinha era filha da dona de uma pensão no bairro da Bela Vista e, quando adolescente, gostava de frequentar os auditórios das rádios. Silvio a conheceu na Nacional. Casados, trilharam o caminho entre as dificuldades, no tempo em que eles próprios montavam e entregavam as cestas do Baú da Felicidade. Com Cidinha, Silvio teve suas duas primeiras filhas. Com o tempo, ele passou a numerá-las. A nº1, Cíntia, nasceu no ano seguinte ao casamento. A nº2, Silvia, adotiva, nasceu em 1970. Foi Manuel de Nóbrega quem a recebeu primeiro nos braços, ainda recém-nascida. Para a mulher que lhe deu a criança, Nóbrega contou que não poderia aceita-la porque já tinha um filho crescido, Carlos Alberto, mas disse que Silvio Santos gostaria de tê-la para presentear sua esposa. Com apenas três anos de vida, Silvinha, enrolada em um cueiro, chegou a casa dos Abravanel. Tanto Cíntia quanto Silvia foram, por muitos anos escondidas do público, indo inclusive morar no exterior. Cidinha faleceu em 22 de abril de 1977, vítima de câncer no estômago. (MORGADO, 2017, p.166). “A minha maior tristeza foi a morte da minha primeira mulher, Cida, aos 39 anos de idade”. (Morgado,2017, p.180). “Quando eu me lembro da minha mulher que morreu e que eu dizia que era solteiro; que escondia as minhas filhas para poder ser o galã, para poder ser o herói; eu quando falo com a minha consciência, acho que são das coisas imperdoáveis que eu fiz diante da minha imaturidade”. (MORGADO, 2017, p. 181). Daniela a nº3; Patrícia, a nº4; Rebeca, a nº5; e Renata, a nº6. Todas elas do primeiro e do segundo casamento, vieram, vieram trabalhar com o pai. No SBT, por exemplo, Patrícia tornou-se apresentadora Silvia passou a conciliar o trabalho diante e por trás das câmeras e Daniela assumiu a direção artística. (MORGADO, 2017, p. 167). “Vocês sabem que tudo o que eu tenho foi Manuel de Nóbrega que me deu. Ele me deu o Baú, me deu o programa de rádio, me deu o programa de televisão. Mas tudo isso eu poderia ter, eu poderia ter um Baú, eu poderia ter um programa de rádio, eu poderia ter um programa de televisão. Mas há uma coisa que ele me deu, e só ele podia me dar: é o exemplo de um trabalho honesto, um amor ao trabalho...”. (MORGADO, 2017, p. 167-168). “Nós fizemos um bom relacionamento, principalmente depois que eu passei a atuar no programa dele, porque antes eu quase não via o [Manuel de] Nóbrega. Como eu não tinha nenhum parente em São Paulo, eu estava sozinho, com 24 anos, o Nóbrega passou a ser o meu pai. Eu ia pra casa dele, frequentava a família, me dava muito bem com o Carlos Alberto... Nós éramos bons amigos”. (MORGADO, 2017, p. 75). Catorze anos depois, Silvio repetiu a mesma surpresa quando Carlos Alberto de Nóbrega, filho de Manuel, estreou A Praça é Nossa. Terminados todos os quadros, o animador entrou no palco batucando uma colher de café em um pires, revivendo os tempos de camelô. Deu ordens para tirar todos os intervalos comerciais daquele momento em diante. Por uma hora, relembrou passagens da vida dele com Manuel e Carlos Alberto, que Silvio havia tirado da Bandeirantes e transformado em diretor artístico do SBT. “Você [Carlos Alberto de Nóbrega] não veio só como redator, você não veio como artista, porque redatores e artistas nós encontramos no Brasil, nos Estados Unidos, Na Argentina. Você veio como meu irmão, você veio como meu amigo, você veio como uma pessoa que vai me ajudar a fazer aquilo que seu pai gostaria de fazer 200

comigo. [...] E você veio me ajudar não no banco da praça, não. Você veio me ajudar com as suas qualidades pessoais, que você herdou do Manuel. Você veio me ajudar agora, depois de uma faculdade na Globo, com suas qualidades profissionais”. (MORGADO, 2017, p. 168). As reportagens já publicadas sobre Silvio Santos revelaram que ele preservou hábitos simples, mesmo depois de ter ficado rico. Quase não tem vida social, preferindo permanecer em casa ou viajar em família. Não tem as mesmas preocupações com segurança que outros milionários como ele possuem. Até ele e sua filha Patrícia serem mantidos reféns, acreditou que sua fama era suficiente para protegê-lo. Em 30 de agosto de 2001, Silvio foi mantido em cárcere privado dentro da sua própria casa pelo sequestrador de Patrícia, Fernando Dutra Pinto. Durante várias horas, o Brasil e o mundo ficaram com os olhos na TV, que transmitiu tudo ao vivo. “Vai acontecer uma tragédia. Ele vai me matar se o governador não vier”. (Morgado, 2017, p.175). O caso só chegou ao fim quando o governador de São Paulo Geraldo Alckmin, atendendo a um pedido feito por Silvio, foi até o local e negociou a rendição do bandido. (MORGADO, 2017, p. 170). “Eu posso garantir a você que se o governador [Geraldo Alckmin] não fosse ontem a minha casa, eu tenho certeza, não é um palpite, eu poderia morrer, o Fernando [Dutra Pinto, sequestrador] certamente morreria e mataria três ou quatro policiais que ali estavam”. (MORGADO, 2017, p. 175). Conservador, cultiva uma rígida rotina, iniciada por volta das 5 horas da manhã e encerrada as 22h30 min. Há quatro décadas tem o seu cabelo cuidado por Jassa um de seus maiores amigos e conselheiros. (MORGADO, 2017, p. 171). Alguns podem rejeitá-lo, enquanto outros podem amá-lo, mas ninguém pode ignorá- lo. Ao estudar a vida de Silvio Santos, pode-se mais do que conhecer a vida de um artista, compreender como pensa, age e sente o Brasil popular, que é o verdadeiro Brasil. (MORGADO, 2017, p. 172).

Pela intertextualidade manifesta, a biografia-reportagem de Silvio Santos é riquíssima em informações novas. A biografia-reportagem de Silvio – na essência do estilo próprio desse gênero discursivo – trata da observação da realidade que aprofunda a notícia base: é pesquisa e reconstituição histórica. Morgado (2017), quando pesquisa as falas de Silvio Santos ao longo da vida, as reúne em um livro e as publica: está fazendo uma reconstituição histórica. Em suma: Entendemos biografia como um gênero do discurso que encabeça e representa outros gêneros do discurso da atmosfera biográfica na contemporaneidade, como a entrevista, a autoinforme-confissão e a autobiografia. Como gênero do discurso de relativa estabilidade, a biografia-reportagem de Silvio, por ser biografia, se irmana de outros gêneros biográficos que compõem esse espaço consistentemente povoado. Desse modo, a biografia se apropriou também da reportagem. Entretanto, a reportagem, que é um gênero do discurso do campo de atividade humana jornalístico, apropriou-se não apenas do gênero carta e do gênero entrevista, como aparece em 201

nossas análises, mas também da biografia, do autoinforme-confissão e da autobiografia nos enunciados proferidos por Silvio Santos. Silvio Santos – A trajetória do mito é uma biografia, grosso modo, pela simples existência dos capítulos que compõem uma ordem enunciativa. Tem o conflito da práxis narrativa. Trata da vida de uma das personagens mais importantes da cena midiática brasileira. Contudo, tanto na narrativa biográfica quanto na reportagem cronológica, há uma correlação: ambas elegem uma personagem, são narrativas, são relatos de vida, gozam de intertextualidade manifesta e são narradas em formato de pirâmide cronologicamente. Não seria exagero afirmar que, de maneira desarticulada, ou seja, ao desmembrar o livro, ao desordená-lo, Silvio Santos – A trajetória do mito poderia ser considerado uma espécie de grande reportagem. É biografia e é reportagem. Entendemos que os enunciados de Silvio, de um modo geral, repercutiram na sociedade, no “organismo social” (MELO, 2017, p. 66), e o autor Morgado fez escolhas autorais que propiciaram uma narrativa biográfica que reporta a vida de Silvio Santos: uma narrativa da existência. Trata-se de enunciados que geraram outros enunciados, ou seja, parágrafos com a voz de Silvio que ajudaram a construir uma narrativa biográfica cronológica. A compreensão do leitor é expandida ora pela narração biográfica, ora pelos enunciados, que se complementam e trabalham concomitantemente para a amplificação compartilhada de novas informações sobre a vida de Silvio Santos. É reportagem de perfil e documental, oriunda de entrevistas, depoimentos, declarações, cartas e notícias. A biografia-reportagem de Silvio conversa com o gênero notícia e apresenta relatos, que são meramente informativos e descritivos. Os verbos estão no passado e não há incidência de discurso citado, intertextualidade manifesta, em parágrafos mais informativo-noticiosos. Há enunciados que advém do gênero entrevista, todavia uma entrevista assimétrica, donde o entrevistador aparece de maneira velada; é representado pelas instituições jornalísticas: O Cruzeiro, Folha de S. Paulo, Veja etc. Morgado (2017) mantém traços de oralidade, como os risos de Silvio, que nos deixa uma sensação de espontaneidade característica das conversações presenciais, do dia a dia, do cotidiano. Dialoga com gêneros da atmosfera biográfica, o depoimento e/ou testemunho. Como autobiografia, as reportagens enunciadas refletem o “eu” e o “tu”, cuja subjetividade ocorre ao percebermos a inexistência da unicidade do “eu”. Emana de um 202

posicionamento enunciativo-discursivo cambiante, autodiegético e homodiegético, entre o “eu” como “eu”, o “eu” como “tu” e o “eu” como “ele”. Silvio Santos conversa com ele mesmo quando consulta sua consciência e confessa que errou ao longo da vida: uma característica do autoinforme-confissão. Trata-se um diálogo com sua consciência. Silvio Santos – A trajetória do mito goza de uma reportagem em profundidade, fruto de uma pesquisa séria de caráter documental. É reportagem pelos enunciados de Silvio, que, por meio de uma pesquisa, Morgado (2017) nos reportou. É reportagem pela relação que esses enunciados têm com a narração biográfica, que se relaciona com o gênero reportagem, por se tratar de uma narrativa do real, do verídico e do verificável. É um relato e é uma narrativa: a narrativa é concomitantemente biografia e reportagem.

5.3 A biografia-reportagem

Se, por um lado, ao inferirmos que o gênero reportagem é um gênero estável, que não sofre alterações na sua construção composicional, podemos, por outro lado, afirmar que a biografia é um gênero do discurso relativamente estável. Goza de influência da autobiografia, do autoinforme-confissão, das conversas do cotidiano, das entrevistas etc. Todavia, a reportagem é construída sob a égide de outros gêneros do discurso, como a própria entrevista e a notícia – e é, evidentemente, influenciada por eles. Silvio Santos – A trajetória do mito é uma composição híbrida. É concomitantemente biografia e reportagem. Como biografia-reportagem, apresenta um conteúdo temático, um estilo e uma construção composicional. Para Todorov (2018), a história se constitui a partir do momento presente, no hoje. O espaço genérico-discursivo acontece no aqui e agora e o espaço de outrem acontece a partir de mim. Podemos deduzir que, nessa biografia de Silvio Santos, há uma transgressão do gênero: a biografia acomoda a reportagem. Para que houvesse essa transgressão, foi necessária a existência do gênero biografia canônico – a biografia: A espetacular vida de Silvio Santos, de Arlindo Silva –, por exemplo. Se uma poesia é escrita em prosa, ela subverte a poesia em verso, mas a poesia em verso não deixará de existir. O livro de Morgado (2017) nasce de outros dois gêneros, a biografia e a reportagem, que se hibridizam; materializa-se, então, um novo gênero do discurso: a biografia-reportagem. 203

Quando perguntado a Todorov (2018, p. 63) sobre a origem dos gêneros, ele responde: “Simplesmente, dos outros gêneros”. Ou seja, gêneros nascem de outros gêneros. A biografia-reportagem de Morgado traz influência de biografismos antigos, como a biografia-retórica, a consciência biográfica romana e a consciência biográfica grega. A consciência biográfica dos gregos se orientava pelos contemporâneos; por seus heróis vivos. Trata-se da consciência biográfica social de costumes. “A consciência romana sente-se, como o elo entre os antepassados mortos e os descendentes que ainda não participavam da vida política.” (BAKHTIN, 2014, p. 256). A consciência biográfica romana é a consciência que chamemos de aventuresco-heroica. Vejamos um exemplo da consciência biográfica grega em um depoimento de 18 de maio de 2016, donde Silvio Santos comenta o desempenho das filhas como apresentadoras no SBT: “A Patrícia vai muito bem na televisão. Eu estou muito contente com ela e com a Silvia, que está me surpreendendo. Eu não sabia que ela seria tão espontânea quanto está sendo.” (MORGADO, 2017, p. 135). Um exemplo de fala de Silvio, que dialoga com a consciência biográfica romana, é este: “Há coisas que nós não fazemos para nossos contemporâneos, mas sim para futuras gerações.” (MORGADO, 2017, p. 185). A biografia-reportagem de Silvio dialoga com os antepassados biográficos e assinala uma preponderância da consciência biográfica grega em detrimento da consciência biográfica romana. “Um novo gênero é sempre a transformação de um ou vários gêneros antigos: por inversão, por deslocamento, por combinação.” (TODOROV, 2018, p. 64). Morgado (2017) nomeia os enunciados de Silvio como frases, ou seja, estão circunscritas pela categoria texto. Nas palavras do autor: “Silvio Santos – A trajetória do mito reúne centenas de frases desse artista e empresário, ditas desde os anos 1950” (MORGADO, 2017, p. 12). Todavia, essas frases, quando inseridas em capítulos por eixos temáticos, ganham status de enunciado. Esses enunciados, quando reunidos, são proferidos por uma enunciação: o livro. Todorov (2018) vai relacionar as frases ao texto e a enunciação ao discurso. Acrescenta o autor que um discurso não é necessariamente feito de frases, mas sim de frases enunciadas, ou seja, por enunciados. Esses enunciados estão ligados a um tema enumerados de acordo com esses eixos temáticos na seção Silvio Santos por ele mesmo. Leiamos alguns desses enunciados:

1 – “‘O Baú é a galinha dos ovos de ouro’ – evento 50 anos do Grupo Silvio Santos em 22 de setembro de 2008.” (MORGADO, 2017, p. 36). 204

2 – “‘O dinheiro, para mim, representa apenas troféu de sucesso e vitória’.” (MORGADO, 2017, p. 39).

3 – “‘A empresa tem que ser a personalidade do dono.’ – Folha de S. Paulo, 21 de fevereiro de 1988.” (MORGADO, 2017, p.3 9).

4 – “‘Eu estou sempre bem, você já me viu mal?’.” (MORGADO, 2017, p. 44).

5 – “‘O trabalho é a coisa mais importante para o ser humano.’ – SBT, 20 de agosto de 2006.” (MORGADO, 2017, p. 52).

6 – “‘Ganhei um concurso para locutores com 400 concorrentes.’ – Lembrando sua entrada na Rádio Guanabara, horário político, 1989.” (MORGADO, 2017, p. 73).

7 – “‘Eu considerava Manuel de Nóbrega como um pai.’ – SBT, 7 de maio de 1987.” (MORGADO, 2017, p. 76).

8 – “‘O Topa Tudo por Dinheiro agrada pela espontaneidade. Quando me empenho, dá certo.’ – O Estado de S. Paulo, 7 de janeiro de 1990.” (MORGADO, 2017, p. 79).

9 – “‘Comandar um programa de auditório para mim é muito fácil.’ – Veja, 28 de maio de 1975.” (MORGADO, 2017, p. 81).

10 – “‘Quando coloco o paletó, gravata e aquela bolinha, eu sou animador.’ – SBT, 7 de maio de 1987.” (MORGADO, 2017, p. 85).

11 – “‘Eu me surpreendo com minha popularidade.’ – SBT, 21 de agosto de 2011.” (MORGADO, 2017, p. 89).

12 – “‘É preciso acabar com o preconceito a Silvio Santos.’ – Afinal, 3 de novembro de 1987.” (MORGADO, 2017, p. 91).

13 – “‘Se a televisão é comercial, e só, a única preocupação tem que ser mesmo ganhar dinheiro.’ – Realidade, setembro de 1969.” (MORGADO, 2017, p. 92).

14 – “‘Meu plano era parar aos 70 anos. Mas sei que não vou conseguir.’ – Veja, 17 de maio de 2000.” (MORGADO, 2017, p. 96).

15 – “‘Vou entrar nessa briga para ser a primeira rede brasileira [em audiência].’ – Amiga, 12 de novembro de 1975.” (MORGADO, 2017, p. 121).

16 – “‘Não comprei a Record.’ Amiga, 12 de novembro de 1975.” (MORGADO, 2017, p. 125). 205

17 – “‘Enquanto estiver dando audiência, continua. Se cair, eu mudo.’ – O Estado de S. Paulo, 28 de outubro de 1991.” (MORGADO, 2017, p. 127).

18 – “‘A Globo é um supermercado, eu sou uma quitanda.’ – Afinal, 3 de novembro de 1987.” (MORGADO, 2017, p. 131).

19 – “‘Gosto do Gugu porque seu ego não é gigantesco. Ele trabalha sem reclamar de nada.’ – Veja, 25 de abril de 2001.” (MORGADO, 2017, p. 134).

20 – “‘Qual o ser humano que vai progredir se ele não recebe estímulo e só recebe cacetada da imprensa?’ – SBT, 21 de fevereiro de 1988.” (MORGADO, 2017, p. 136).

21 – “‘Eu sou um homem que entende do assunto televisão.’ – O Estado de S. Paulo, 7 de janeiro de 1990.” (MORGADO, 2017, p. 137).

22 – “‘Não quero saber de política. Eles precisam de mim? Eu sirvo.’ – Jornal do Brasil, 14 de fevereiro de 1988.” (MORGADO, 2017, p. 155).

23 – “‘O Brasil não precisa de um estadista. O Brasil precisa de um pronto socorro.’ – SBT, 13 de março de 1988.” (MORGADO, 2017, p. 157).

24 – “‘Jânio [Quadros] é um gênio.’ – SBT, 6 de maio de 1988.” (MORGADO, 2017, p. 162).

25 – “‘Eu dirijo o meu trabalho; o meu trabalho não me dirige.’ – SBT, 19 de agosto de 1981.” (MORGADO, 2017, p. 174).

26 – “‘Vai acontecer uma tragédia. Ele vai me matar se o governador não vier.’ – Veja, 5 de setembro de 2001.” (MORGADO, 2017, p. 175).

27 – “‘A minha família é de origem judaica e a minha religião é israelita, sou judeu.’ – Depoimento para o livro 50 anos de TV no Brasil (2000).” (MORGADO, 2017, p. 176).

28 – “‘Não tenho medo de morrer.’ – Veja, 17 de maio de 2000.” (MORGADO, 2017, p. 178).

29 – “‘Não sou luxurioso.’ – Folha de S. Paulo, 21 de fevereiro de 1988.” (MORGADO, 2017, p. 182).

30 – “‘Confesso que sempre fui amante de emoções fortes.’ – Depoimento para o livro A vida Espetacular de Silvio Santos (1972).” (MORGADO, 2017, p. 185). 206

Recortamos as frases curtas de Silvio Santos em cada capítulo da seção Silvio Santos por ele mesmo. Na medida em que Morgado (2017) pesquisa essas frases e as agrupa, subdividindo-as em capítulos, ele as está enunciando, portanto, enunciado concreto. Olhemos abaixo cada tema. Os números correspondem aos enunciados selecionados acima:

1- Toque de Midas

2- Relação com o dinheiro

3- O estilo Silvio Santos de administrar

4- Maus negócios

5- Lições de sucesso

6- O começo da carreira

7- Manuel de Nóbrega

8- Os programas de TV

9- O estilo Silvio Santos de comunicar

10- Um artista que é empresário ou um empresário que é artista

11- Fama

12- Relação com a crítica

13- Analisando a comunicação

14- Aposentadoria?

15- A formação do SBT

16- Record

17- O programador

18- Globo

19- Elenco

20- Jornalismo

21- O negócio televisão 207

22- Longe da política

23- Dentro da política

24- Relação com os presidentes

25- Em que acredita

26- Violência

27- Fé

28- Morte

29- Na intimidade

30- Valores Pessoais

Para Todorov (2018), o discurso não é constituído de frases, mas de frases enunciadas, e complementa que a enunciação apresenta por proposição um locutor ou orador que enuncia. Apresenta ainda um receptor ou auditório a quem o enunciado se dirige e o discurso “que antecede o enunciado e que também o sucede em um contexto de enunciação.” (TODOROV, 2018, p. 65). Esse discurso que antecede e sucede os enunciados de Silvio na biografia-reportagem é a narração biográfica intertextual de Morgado (2017). Todorov (2018) considera os gêneros como uma espécie de instituição a ser respeitada e seu modelo um ideal de escrita. Morgado (2017) segue dois modelos: o da biografia e o da reportagem. A biografia conta a história de vida de Silvio Santos e a reportagem a confirma. Os enunciados de Silvio Santos são atos de fala que, segundo Todorov (2018), estão inseridos na realidade de toda sociedade. Esses atos de fala são intrínsecos à atividade humana e podem ser caracterizados como gêneros não literários. Os enunciados de Silvio desarticulados, descontextualizados, isolados, são atos de fala não literários, mas, reunidos na enunciação de Morgado (2017), o livro, as frases tornam-se enunciados manifestos em um gênero: neste caso, a biografia-reportagem. Esse gênero do discurso tem sua origem na esfera de atividade humana jornalística. O jornalismo é uma atividade social e, como tal, pode vir carregada de ideologia. Silvio Santos – A trajetória do mito é um livro assentado em um gênero que propicia saber onde se está, ou seja, onde é o seu lugar de escrita. Quando Morgado (2017), pela escolha de autoria, opta pela pesquisa das frases enunciadas por Silvio, o pesadelo da página 208

em branco já estava atenuado – faltava definir o gênero; não poderia ser outro gênero que não fosse a biografia. Para Medviédev (2012), o gênero representa o todo da obra em sua totalidade enunciativa. O autor acredita que uma obra só se torna realidade quando adquiri o formato de determinado gênero do discurso. A biografia-reportagem do Silvio é uma obra de arte, uma obra literária, e, como tal, goza de autoria – foi pensada e escrita por Morgado (2017) a partir dos enunciados do próprio Silvio, que caracteriza uma dupla autoria; apresenta como suporte o livro e foi publicada; teve a sua circulação midiatizada pelo SBT e por outros canais de divulgação; teve uma representação social, se considerarmos que Silvio Santos é um herói nacional – de camelô passou a ser banqueiro – e seu carisma como artista é quase uma unanimidade entre os brasileiros; tem responsabilidade intelectual e atribuí as falas de Silvio aos determinados veículos midiáticos pelos quais as frases enunciadas foram publicadas ou divulgadas. O livro de Silvio tem um acabamento, uma totalidade resolvida, e, por isso, goza da característica de gênero do discurso. É uma biografia de relativa estabilidade e, por isso, um gênero híbrido: é biografia; é reportagem. Apresenta um acabamento interno abatido do próprio objeto, ou seja, exaurido do próprio livro. Não se vale de um acabamento convencional. Morgado (2017) compreende ideologicamente os enunciados de Silvio Santos e olha o mundo da mesma perspectiva do “patrão”. Olha o mundo de Silvio, na biografia-reportagem, sob os olhos do próprio Silvio. Propicia, ao separar em seções temáticas, os enunciados, um diálogo entre enunciados. Segundo Medviédev (2012), o enunciado não deve ser entendido como um todo linguístico, e suas formas não são apenas sintaxe. Sob essa perspectiva, a seção Silvio Santos por ele mesmo é composta por enunciados e não por frases. Embora Silvio Santos seja o autor desses enunciados, ele não é o único responsável por eles. O direito de propriedade do autor, nesse caso, é dividido com as instituições jornalísticas, que podem ter editado a fala original; contudo, em última instância, Morgado (2017) seria o responsável por quaisquer incongruências: o livro pertence e é associado a ele. Nos enunciados de Silvio estão sempre indicadas abaixo as fontes de divulgação em que foram veiculados. Por exemplo: “Gosto de biografias, pois são o espelho da vida. Mas também gosto de ler livros do tipo ‘viva em paz com a sua coluna’, ‘como lidar com as pessoas.’ – Folha de S. Paulo, 21 de fevereiro de 1988.” (MORGADO, 2017, p. 182). 209

E ainda: “‘Por que eu não dou entrevista, não concordo com livro sobre mim, com filme? Se nenhum advogado, nenhum médico ou professor é cercado de todas essas... é... regalias, eu também não devo ser.’ – Folha de S. Paulo, 21 de fevereiro de 1988.” (MORGADO, 2017, p. 182). Em todos enunciados, há a instituição jornalística – ou livro – em que foram publicados. Vejamos mais um enunciado publicado na Veja:

O brasileiro é um povo humilde. A televisão é a sua única diversão. Esse povo não quer ligar a televisão para ter aula ou ter cultura. Isso quem tem que dar a ele são as autoridades competentes, por meio da escola. – Veja, 17 de maio de 2000. (MORGADO, 2017, p. 94).

Em todos os casos, a responsabilidade autoral dos enunciados é dividida por três autores: a instituição jornalística, Morgado (2017) e o próprio Silvio Santos, que proferiu os enunciados. Morgado (2017), algumas vezes, se mostra como autor de maneira clara. Uma delas é quando explica as declarações de Silvio pelo uso do gerúndio. A voz do autor cristaliza-se. Vejamos alguns exemplos assim (em negrito26). Revista O Cruzeiro, 29 de novembro de 1972: “‘Estou dando uma incerta. Não quero que saibam que o dono chegou.’ – Chegando disfarçado com óculos escuros e barba postiça, para conhecer a fazenda Tamakavy, que havia comprado no mato grosso.” (MORGADO, 2017, p. 40). O gerúndio “chegando” traz uma sensação de oralidade e intimidade: aproxima o autor do leitor. Na Veja, de 28 de maio de 1975, Silvio declarou: “Deve mostrar que é um colaborador sincero. Mas o importante mesmo é não ter medo de mim.” (MORGADO, 2017, p. 41). Morgado contextualiza: “Explicando qual seria a condição essencial para alguém trabalhar com ele.” (MORGADO, 2017, p. 41). Silvio comenta à revista Amiga de 1975:

Não estou pretendendo inflacionar o mercado e nem oferecer, por exemplo, Cr$ 80 mil a quem ganha Cr$ 40 mil. Isso seria muito fácil e não significaria a realização que estamos procurando. Essa concorrência, só nas minhas outras empresas: agora mesmo acabo de contratar para a minha empresa de seguros o melhor profissional do mercado. Ele ganhava uma quantia em outra companhia, ofereci o dobro e ele está comigo. Foi fácil, mas só foi a utilização do sistema capitalista.

26 Neste capítulo, os grifos em negrito são de nossa autoria. 210

– Comentando sobre o salário dos artistas. (MORGADO, 2017, p. 42).

Essas inserções do autor têm caráter de discurso direto em alguns exemplos de maneira bastante clara:

Comprei a [Rádio] Tupi do Rio, que já está paga, mas ela tem que ser entregue a mim pelos condôminos, mas eu não sei o que eles vão fazer. Cumpri todas as cláusulas contratuais e os contratos. Estou esperando eles entrarem no ministério das comunicações com um pedido de transferência para o meu nome. Se eles não pedirem, não sei como vai ficar, mas a Rádio Tupi é minha. – Silvio Santos não assumiu o controle da Rádio Tupi do Rio. Olho Mágico, 1 de janeiro de 1980. (MORGADO, 2017, p.45).

Goza inclusive de travessão: elemento paratextual. Caso de gerúndio com a partícula apassivadora “se”:

O que aconteceu foi inexplicável até para especialistas. – Referindo-se ao caso do Banco PanAmericano em um cartão de Natal escrito de próprio punho para Luiz Sebastião Sandoval, ex-presidente do grupo Silvio Santos, que publicou o fac-símile em seu livro Aprendi fazendo (Geração Editorial, 2011). (MORGADO, 2017, p. 46).

Outro caso de inserção de autoria de Morgado depois da fala de Silvio acontece com a preposição “após”: “‘As ações do Banco PanAmericano vão subir! Não vendam!’ – Após ter vendido o banco PanAmericano para o BTG Pactual. SBT, 31 de janeiro de 2011”. (MORGADO, 2017, p. 47). E ainda: “‘Eles estão reclamando de barriga cheia.’ – Após ouvir Núbia Ólliver pedir aumento no valor dos prêmios da Casa dos Artistas. Veja, 21 de novembro, 2001.” (MORGADO, 2017, p. 135). “‘– Foi quando leu pela primeira vez um depoimento que Manuel de Nóbrega havia gravado sobre ele, em 3 de outubro de 1974.’ – SBT, 7 de maio de 1987.” (MORGADO, 2017, p. 76). Morgado (2017) contextualiza a história de quando Silvio leu o depoimento de Manuel de Nóbrega em 1987: “O dia 4 de Abril [de 1987] foi o dia mais feliz da minha vida”. (MORGADO, 2017, p. 76). Contextualiza com um substantivo feminino no início:

Dizem que eu sou o maior animador do país. Isso não é verdade. O carinho que vocês dedicam a mim é que vale. Vocês são admiráveis, sensacionais, com vocês é fácil fazer programa líder. Durante minha ausência, meu irmão Léo Santos comandou o programa com o mesmo sucesso. Vocês prestigiaram meu irmão como 211

prestigiam semanalmente a mim, porque são barbaras, sensacionais, ilustres. Eu gostaria de poder retribuir de alguma forma, porque não mereço. – Conversa com as suas colegas de trabalho, antes de começar mais uma edição do seu programa dominical. A Crítica, 1969. (MORGADO, 2017, p. 87).

Com advérbio de modo e gerúndio: “Muito obrigado! Não tenho palavras. Realmente, estou muito emocionado. Hoje é um dos dias mais felizes da minha vida”. (MORGADO, 2017, p. 88). – “Em pé, em um Mustang vermelho conversível, acenando, para a multidão na parada do dia da criança. SBT, 12 de outubro de 1987.” (MORGADO, 2017, p. 88). Outro exemplo que se inicia pelo verbo transitivo “inaugurar”:

Fizeram coisas de Primeiro Mundo que me deixaram surpreso. Com estas condições, se nós tivermos talento, vamos conseguir uma audiência maior. Tenho certeza que essas condições nos favorecem, mas o importante é o resultado no vídeo, não importa de onde venha o produto, seja de uma garagem, como nós já fizemos por diversas vezes, ou de estúdios como este que eu ainda não conheço. – Ao inaugurar os estúdios do Centro de Televisão da Anhanguera. SBT, 19 de agosto de 1996. (MORGADO, 2017, p. 139).

E um último exemplo da presença do autor – mesmo nos enunciados de Silvio – se assenta diversificadamente por ter seu início com um numeral ordinal de três:

Prefeito pode colocar um vice-prefeito à sua escolha, independente de partido, para dividir com ele a prefeitura e ele, o prefeito, ir para Miami quando desejar, deixando o vice na prefeitura? – A terceira pergunta de 12 perguntas que fez ao PFL após ter sido convidado a candidatar-se a prefeito de São Paulo. SBT, 6 de março de 1988 (MORGADO, 2017, p. 157).

No século XIX, o retrato do autor aparecia apenas em edições biográficas. Hoje em dia, a foto está na capa, apresenta uma minibiografia e faz parte do jogo midiático da consagração, do despertar, do interesse do leitor pelo autor. Podemos considerar Silvio Santos um autor implícito do livro, o que por si só já desperta a curiosidade do leitor que admira Silvio Santos: simplesmente pela sua grande notoriedade e popularidade. As vendas da biografia-reportagem de Morgado (2017) duplicaram depois da ida do autor ao Programa Silvio Santos. O reconhecimento de Silvio e a exposição do livro e de Morgado na mídia trouxeram uma visibilidade. Foi curioso assistir Morgado na televisão falando de seu livro mais célebre. Sua imagem jovem e seu discurso sério diante de Silvio 212

personificam uma ideia de competência e seriedade, que encontramos realmente ao abrir o livro. Essa aparição na televisão não prejudicou Morgado: pelo contrário, o projetou. Silvio Santos, embora diga que não concorda com livros escritos sobre ele, ajudou a divulgar a biografia-reportagem de Morgado (2017). O autor, junto de Silvio, analisou o conteúdo do livro na televisão. Portanto, já na concepção, a biografia-reportagem de Silvio Santos é imanente à relação desta com a mídia: nasceu da mídia e essa foi a grande ideia. A pesquisa nasceu da reunião dos enunciados de Silvio, na mídia, nos jornais, em revistas e em livros e também em depoimentos dados pelo “patrão” ao SBT. Ao voltarmos à questão do gênero, devemos lembrar as palavras de Bakhtin (2010), que nos afirma serem os gêneros do discurso tipos de enunciados relativamente estáveis. Os gêneros do discurso são constitutivos de autoria, de um conteúdo temático, de um estilo e, sobretudo, de uma construção composicional.

5.3.1 Conteúdo temático

A biografia-reportagem, grosso modo, tem um conteúdo temático que discorre sobre a vida em seus mais diversos segmentos: a família, a religião, os negócios, a escola, a mídia etc. Para Bakhtin/Volóchinov (2009), o tema está numa posição superior ao significado e está invariavelmente ligado a enunciação: no nosso caso, a enunciação que analisamos é o livro Silvio Santos – A trajetória do mito. Os fatores, então, a serem considerados, são de caráter extralinguístico: a condição sócio-histórica de produção. Esse elemento permite que participem do conteúdo temático não apenas componentes instáveis da significação, mas, principalmente, o extraverbal, que incluí: situação de produção, de recepção e de circulação. A situação de produção o próprio Morgado (2017) apresenta:

Silvio Santos – A trajetória do mito reúne centenas de frases desse artista e empresário, ditas desde os anos 1950. Elas foram organizadas em cinco blocos temáticos: “Negócios”, “Artista”, “Dono de televisão”, “Política” e “vida pessoal.” Cada bloco tem subdivisões a fim de auxiliar a leitura e a consulta. Ao final, foi incluída uma breve linha do tempo que relaciona os principais acontecimentos da vida de Silvio Santos. (MORGADO, 2017, p. 12).

A recepção foi excelente: Silvio Santos recebeu Morgado e divulgou o livro. A circulação do livro aconteceu em todo o Brasil. 213

Mas, como se dá a produção, a recepção e a circulação no interior do livro? Como se comporta no interior da enunciação, o conteúdo temático? Ao partirmos do pressuposto de que a biografia-reportagem foi construída a partir das declarações de Silvio para jornais, revistas, livros e televisão, começa daí também o processo de idealização do livro: por meio da circulação. Circularam no âmbito da sociedade declarações, depoimentos, atos de fala que advém de momentos históricos e sociais da vida de Silvio Santos: um herói nacional. Apresentaremos os excertos enunciativos que correspondem a cada veículo de circulação e divulgação que compõem um cenário nacional e histórico – alguns desses jornais e revistas não estão mais em circulação –, em sua maioria divulgados pela atividade socioprofissional do jornalismo: esfera de atividade humana jornalística. Circulação – Jornal O Estado de S. Paulo, 7 de janeiro de 1990:

Desde garoto, quando era camelô, já reunia gente. Existe uma diferença muito grande entre o chamado marreteiro atual e o camelô de antigamente. Antigamente, éramos só dez no Rio, mas o camelô era aquele que colocava a seu redor, fazendo mágica ou falando sobre o produto que tinha para vender, umas 100, 200 pessoas. Eu era praticamente um animador de rua. Então por intuição ou por natureza, quando parava e começava a conversar, as pessoas iam parando e ouvindo o que tinha a dizer. (MORGADO, 2017, p. 30).

Não podemos dizer como a sociedade recebeu as declarações de Silvio, mas podemos eleger um representante social: Morgado. É pela narrativa biográfica de Morgado (2017) que podemos desenhar sua recepção social: por meio da intertextualidade manifesta:

Além de carteiras, passou a vender outros artigos, como bijuterias, bonecas dançantes, canetas e até remédio para calos. Seu contato com os pedestres também mudou. Trocou a gritaria pela conversa descontraída, emoldurada por um grande sorriso. Atraía multidões em torno de si com piadas e pequenos números de mágica, tirando moedas e da orelha de quem quer que fosse, por exemplo. Além disso, destacava-se também pela sua história: ao contrário dos outros camelôs, ele era estudante e fazia questão de contar que trabalhava para pagar suas despesas e, assim ajudar sua família. Isso comovia as pessoas que pediam aos guardas que não repreendessem o garoto. (MORGADO, 2017, p. 16).

A intertextualidade manifesta na narração biográfica de Morgado (2017, p. 16) está neste recorte: “Trocou a gritaria pela conversa descontraída, emoldurada por um grande sorriso. Atraía multidões em torno de si com piadas e pequenos números de mágica, tirando moedas e da orelha de quem quer que fosse, por exemplo.”. 214

Chama-nos atenção a apreciação do autor: conversa descontraída, emoldurada por um grande sorrido. Atraia multidões... Morgado entendeu assim este enunciado de Silvio: “Antigamente, éramos só dez no Rio, mas o camelô era aquele que colocava a seu redor, fazendo mágica ou falando sobre o produto que tinha para vender, umas 100, 200 pessoas. Eu era praticamente um animador de rua.” (MORGADO, 2017, p. 30). Inferiu que Silvio tinha uma conversa descontraída e um grande sorriso e, por isso, atraia multidões. Temos ainda a inferência de um advérbio de inclusão: até remédio para calos. O advérbio é um elemento da significação que agrega na sua relação com o conteúdo temático. Trata-se, portanto, de uma recepção no interior da enunciação, do enunciado proferido por Silvio e posto em circulação pelo jornal Estado de São Paulo. A narrativa biográfica construída a partir desse enunciado de Silvio coloca também o conteúdo temático intrínseco à vida de Silvio Santos em circulação. Vejamos mais exemplos de produção, de recepção e de circulação na biografia- reportagem do “patrão”. Circulação – Revista do Rádio, 23 de outubro de 1965:

Ganhei muito dinheiro com isso. Mas a barca entrou no estaleiro para sofrer reparos e eu não poderia ficar parado. Mudei-me para São Paulo, onde ingressei na Rádio Nacional. Se não tivesse feito isso seria um desastre, pois até agora a barca está no concerto. (MORGADO, 2017, p. 33).

A recepção e a produção de Morgado (2017) no desenvolvimento da narrativa biográfica do enunciado de Silvio foram as seguintes:

Esse negócio, que parecia promissor, logo sofreria um golpe: com problema no eixo, a barca, onde estava o bar, foi parar no estaleiro. O tempo previsto para o concerto era de, no mínimo, três meses. Tempo demais para esperar Silvio precisava pensar em uma alternativa, pois tinha contraído uma dívida para trocar o bar por um com melhores materiais, agora com aço inoxidável. Foi quando um diretor da Antarctica lhe fez o convite para conhecer São Paulo e ele aceitou. (MORGADO, 2017, p. 19).

No âmbito da significação, chama atenção os verbos: parecia e sofreria. Parecia promissor é uma combinação que sugere um juízo de valor, por exemplo: aparenta ser promissor, mas não é. São verbos no pretérito imperfeito que dialogam com a lembrança de Silvio Santos sobre o ocorrido. Trata-se de uma narrativa retrospectiva em prosa característica do gênero biografia. 215

A significação ocorrerá sempre pelo sistema da língua, fonológico, morfológico e sintagmático, pelo seu estilo verbal. Ela se relaciona diretamente com o tema, mas está em uma instância inferior: o conteúdo temático caracteriza-se não pela relação entre signo e significado, e sim pela ideologia. O conteúdo temático é um signo ideológico. Circulação – Revista A Crítica, 1969:

Bom, o Baú precisa de um impulso de publicidade pra poder ir pra frente. Então eu fui fazer propaganda do Baú. Então precisava de uma agência de publicidade que cuidasse disso. Aí a agência não podia ficar única e exclusivamente com a conta do Baú. Seria muito gasto pra isso. Então começamos a pegar outras contas e a agência ficou autônoma. Depois, a gente resolveu dar casas de prêmio. E nos comprávamos as casas. Mas as construtoras nunca entregavam as casas no dia certo. Então montamos uma construtora. Bom, seria desperdício que essa construtora ficasse só construindo casas pra dar prêmio. Então montamos o crediário. Mas tinha muita gente que não tinha dinheiro pra comprar ou para gozar dos descontos quando a casa é comprada à vista. Montamos uma financiadora. Mas a financiadora, justamente por ser uma financiadora, não poderia ficar unicamente financiando os crediaristas e compradores de nossas casas. Então passamos a financiar todo mundo que nos procurasse, como qualquer outra financiadora. É muito mais simples fazer as coisas assim completas. (MORGADO, 2017, p. 35-36).

Recepção e produção de Morgado (2017) na narrativa biográfica:

Uma das novidades que Silvio implantou foi um calendário de sorteios, premiando os clientes que estivessem “rigorosamente em dia” com as mensalidades. Assim, combatia a taxa de inadimplência. Isso demandou melhorias na estrutura administrativa do negócio e ampliação dos investimentos em propaganda. Por isso, em 1962, foi constituída a Publicidade Silvio Santos: a agência priorizava a comunicação do Baú, além da produção e comercialização dos seus programas de televisão. O tempo que sorteava bonecas Estrela e jogos de jantar Nadir Figueiredo tinha ficado pra trás. Agora, eram entregues casas. Havia, porém, um sério desafio a ser superado. A legislação exigia que essas casas já estivessem construídas antes de serem sorteadas. Mas qual construtora conseguiria atender a demanda do Baú, que entregava, no mínimo, um imóvel por mês? Não houve outro jeito: a solução foi montar a Construtora e Comercial NF Ltda. E, para manter os operários sempre trabalhando, novos empreendimentos, para clientes externos, também começaram a ser lançados. (MORGADO, 2017, p. 21-22).

A inter-relação entre a significação e o tema se dá pela palavra e pelo discurso. A significação revelar-se-á no interior de um tema constituído materializado pela enunciação. A biografia-reportagem tem um grande conteúdo temático, que é a vida de Silvio Santos. É subdividida em vários eixos temáticos: um deles é o de negócios. A narrativa biográfica, produção e recepção de Morgado (2017) é bastante informativa, traz informações novas. Contudo, o que nos chama atenção é a intertextualidade constitutiva na narrativa biográfica: “rigorosamente em dia”. A significação, de ordem estilística, aparece no interior 216

do tema, pelas palavras – criadas pelo Silvio Santos – e resulta na investigação da palavra e/ou expressão ideológica nas condições contextuais da enunciação. Circulação – SBT, 21 de Fevereiro de 1988:

Nesta temporada de 88, eu vou fazer 5 horas [de programa] e o Gugu 4. Na temporada de 89, eu farei 3 horas e o Gugu 6. Na temporada de 90, eu farei 1hora, 1 hora e meia do Baú, e o Gugu faz o restante. Ao entrar nos 61 anos [de idade], eu vou fazer Miss Brasil, Troféu Imprensa e mais alguns shows para satisfazer a minha vaidade de homem de televisão. Paro. Não quero mais. (MORGADO, 2917, p. 96).

Recepção e produção de Morgado (2017) na narrativa biográfica:

Os milhares de horas de gravação, somados às atividades de empresário, consumiram parte da saúde de Silvio. Nos anos 1980, enfrentou problemas no coração, no joelho, na próstata, no olho e na garganta. Chegou a abandonar uma gravação por não ter mais voz para continuar. Diante disso, pensou em abrir mão da sua carreira artística quando completasse 60 anos de idade para dedicar-se ao SBT, às outras empresas e, como dizia, à comunidade. Com esse objetivo, decidiu, em 1988, dividir parte da sua programação dominical com Gugu Liberato, que trouxe de volta da Globo. (MORGADO, 2017, p. 67).

A significação relaciona-se com esse eixo temático, que é Silvio Santos artista, por uma característica específica de ordem enunciativa, pelo discurso indireto e pela intertextualidade constitutiva: “Diante disso, pensou em abrir mão da sua carreira artística quando completasse 60 anos de idade para dedicar-se ao SBT, às outras empresas e, como dizia, à comunidade.” (MORGADO, 2017, p. 67). Comunidade é uma palavra usada por Silvio. A relação entre a significação e o conteúdo temático se dá pela palavra estável e durável, que pode ser ressignificada pelo conteúdo temático. Circulação – Depoimento de Silvio Santos para o livro 50 anos da TV no Brasil organizado por J.B de Oliveira Sobrinho, Boni (2000): “Consegui ser dono de televisão por acaso, não foi uma coisa perseguida por mim.” (MORGADO, 2017, p. 120). Recepção e produção de Morgado na narrativa biográfica:

Apesar de ter dito em várias entrevistas que tornar-se dono de televisão nunca esteve em seus planos, essa ideia começou a ser ventilada ainda nos anos 1960, poucos anos depois de ter lançado o programa Silvio Santos. (MORGADO, 2017, p. 99).

Circulação – Jornal do Brasil, 1 de novembro de 1989: “Depois de cuidar da inflação vou cuidar da saúde, da habitação e da educação, nesta ordem.” (MORGADO, 2017, p. 160). 217

A recepção e produção de Morgado (2017) que dialoga com esse enunciado de Silvio Santos (acima) utiliza o discurso direto do próprio Silvio no limiar da narrativa, que caracteriza outro modelo na relação significado e conteúdo temático. O eixo temático é o da política, em detalhes:

Suas promessas de campanha eram tão vagas quanto agressivas. Eu pretendo imediatamente fazer com que melhore a alimentação do nosso povo, melhorem as condições do nosso povo, melhorem as condições de habitação do nosso povo, melhorem as condições de educação de nosso povo. Eu pretendo imediatamente atacar a inflação, diminuir a inflação, e eu pretendo imediatamente aumentar o salário mínimo. (MORGADO, 2017, p. 150).

Circulação – Jovem Pan, 31 de agosto de 2001:

Eu posso garantir a você que se o governador [Geraldo Alckmin] não fosse ontem a minha casa, eu tenho certeza, não é um palpite, eu poderia morrer, o Fernando [Dutra Pinto, sequestrador] certamente morreria e mataria três ou quatro policiais que lá estavam. (MORGADO, 2017, p. 175).

Recepção e produção de Morgado no eixo temático Vida pessoal:

Em 30 de agosto de 2001, Silvio foi mantido em cárcere privado dentro de sua casa pelo sequestrador de Patrícia Fernando Dutra Pinto. Durante várias horas, o Brasil e o mundo ficaram de olho na TV, que transmitiu tudo ao vivo. O caso só chegou ao fim quando o governador de São Paulo Geraldo Alckmin, atendendo a um pedido feito por Silvio, foi até o local e negociou a rendição do bandido. (MORGADO, 2017, p. 171).

Segundo Bakhtin/Volóchinov (2009), a significação dar-se-á pela palavra e o conteúdo temático pelo enredo da enunciação e do contexto sócio-histórico de produção. O livro de Silvio Santos, ou seja, a enunciação é subdividida em cinco temas: negócios, artista, dono de televisão, política e vida pessoal. Todos esses temas se agrupam em detrimento de um único grande tema: a vida de Silvio Santos, sua trajetória biográfica. O tema negócios:

Silvio apostou que o Baú seria um bom negócio, caso fosse bem administrado. Por esse motivo, promoveu diversas mudanças e os resultados logo apareceram. Assustado, Manuel decidiu sair da sociedade e entregar sua parte a Silvio, que fez questão de pagá-lo. Finalmente, em 1961, Senor Abravanel tornou-se acionista majoritário da empresa, que, em 28 de junho de 1963, transformou-se em BF Utilidades Domésticas e Brinquedos. (MORGADO, 2017, p. 21). 218

O tema artista:

Finalmente, pela TV Paulista, às 12 horas de 2 de junho de 1963, entrou no ar pela primeira vez o Programa Silvio Santos. “Prêmios brincadeiras e melodias se reúnem nesse programa, que terá a duração de duas horas e meia”, registrou a Folha de S. Paulo no dia da estreia. Não demorou muito para o Programa Silvio Santos se revelar um sucesso de público. Quando comemorou seu primeiro ano no ar, já tinha o dobro de tamanho original e lotou o ginásio do Pacaembu em um especial realizado em 14 de junho de 1964. Nessa época Silvio comandava cinco atrações: Cuidado com a Buzina, Pra Ganhar é só Rodar, Pergunte e Dance e Tribunal de Sucessos. (MORGADO, 2017, p. 59).

O tema dono de televisão

Finalmente, em 22 de outubro de 1975, o presidente Ernesto Geisel assinou o decreto nº 76.488, que outorgava à TV Studios Silvio Santos LTDA: “concessão para estabelecer uma estação de radiodifusão de sons e imagens (televisão)” na cidade do Rio de Janeiro. Era a certidão de nascimento do canal 11. A cerimônia que oficializou a outorga ocorreu dois meses depois, no gabinete do ministro das Comunicações. Manuel de Nóbrega, na qualidade de diretor superintendente da nova estação, fez questão de cruzar os mais de mil quilômetros que separam são Paulo de Brasília para participar da solenidade, apesar da saúde muito debilitada. Após ouvir os discursos que Quandt de Oliveira e Silvio Santos haviam feito de improviso, ele tirou do bolso do paletó um texto que havia datilografado. – E podemos afirmar que toda a classe radialista e todos os artistas de televisão no Brasil estão vibrando no dia de hoje. E com justa razão. É a primeira vez na história brasileira que um canal de televisão é dado a um punhado de artistas brasileiros. Sim, senhor ministro, em cada um de nós, diretores do canal 11, há um animador, um ator, um redator, um produtor, um artista de televisão. (MORGADO, 2017, p. 102).

O tema política:

Foi então que, em 6 de março, Silvio fez outro Show de Calouros antológico. Ao vivo ouviu a opinião de diversas pessoas sobre se deveria ou não se lançar à prefeitura. A maioria, inclusive sua esposa, Iris, se opôs. Um dos únicos favoráveis foi Jânio Quadros, tratado como “gênio” pelo apresentador. Também apresentou uma lista de 12 perguntas a que o PFL deveria responder. Questionou, por exemplo, se poderia continuar animando seus programas de domingo. (MORGADO, 2017, p. 143).

O tema vida pessoal:

Por diversas razões, Silvio Santos alimentou o máximo de mistério em torno de sua vida pessoal. Uma dessas razões é a segurança. Durante o Show de calouros de 21 de fevereiro de 1988, deu a seguinte resposta para uma telespectadora que perguntou o porquê de ele não mostrar a família na televisão: 219

– Eu coloco a minha família em risco se ela aparecer na televisão. Eles podem querer fazer alguma coisa que não devem com a minha família e o artista sou eu. (MORGADO, 2017, p. 165).

A relação sócio-histórica de produção, de forma direta, na biografia-reportagem, se deu pela relação entre os enunciados de Silvio e a construção narrativo-biográfica de Morgado (2017) na cena midiática brasileira. Se pensarmos na psicologia sócio-histórica de Vygotsky, donde, grosso modo, as relações humanas, no decorrer da vida do indivíduo e no seu desenvolvimento humano, dar-se-á pelas relações sociais que esse indivíduo mantém durante a vida, podemos inferir que a biografia-reportagem de Morgado (2017), cujo tema central é a vida de Silvio Santos, é uma enunciação recheada das relações humanas constitutivas de Senor Abravanel ao longo de sua vida: inclusive a relação autoral entre Morgado e Silvio Santos. Em cada tema da biografia-reportagem de Silvio, vislumbraremos a relação do Homem do Baú com os mais diversos personagens de sua vida. No tema negócios, por exemplo, há a relação de Silvio com os pais Alberto e Rebecca, que levou Silvio a trabalhar, pois não queria depender dos pais para comprar aquilo que desejasse. Ainda há a relação com o homem que viu gritando na rua vendendo, um camelô, que o inspirou a vender as carteiras de título de eleitor. Há a relação propulsora de Silvio com o diretor da fiscalização da prefeitura, Renato Moreira Lima, que prendia camelôs por crime de vadiagem e pediu que Silvio fosse procurar um amigo na Rádio Guanabara. Houve a sociedade de um bar com o cunhado de . A amizade com Manuel de Nóbrega. A relação com seus assessores, em especial com Luiz Sandoval e Mario Albino Vieira. O encontro com Henrique Meireles, então ministro da fazenda, e com o presidente Lula, para discutir o assunto de seu banco, o PanAmericano etc. O tema artista também é recheado de relações humanas. É mencionada a primeira relação sexual de Silvio Santos, que foi com uma prostituta. A influência profissional do animador César Alencar, que Silvio gostava de ouvir. Sua relação com os radialistas, Jorge Curi e o produtor Mario Ramos; a oportunidade dada por Silveira Lima. O incidente com Paulo Carigi, que levou Silvio a ser demitido da Rádio Continental. Ainda quando Silvio trabalhou com Fernando de Nóbrega, irmão de Manuel de Nóbrega, que deu uma carta de recomendação para que ele entregasse a Manuel. E quando foi aprovado no teste para a Rádio Nacional por Demerval Costa Lima. A relação com o júri do Show de Calouros: Aracy de Almeida, Pedro de Lara, Flor, Sonia Lima, Décio Piccinini, Nelson Rubens, Antonio Fonzar, 220

Wagner Montes, Wilza Carla e Sério Malandro; quando começou trabalhar com seus dois auxiliares de toda uma vida, Roque e Lombardi, e assim por diante. O mesmo acontece nos temas dono de televisão, política e vida pessoal: a relação de Silvio com os artistas, com políticos e com a política e, também, com o sucesso, a fé, a violência e a família. O tema realiza-se pela ocorrência de enunciados anteriores – as frases enunciadas por Silvio – que perpassam o discurso – a narração biográfica – pelo próprio discurso em uma enunciação concreta, o livro. Os formalistas russos consideram que o tema acontece da ligação entre frases isoladas, de acordo com o significado, significado este que constrói uma unidade temática. O círculo bakhtiniano discorda disso e pondera justamente o seu oposto: a partir da língua, palavras, frases, períodos, o todo do enunciado se apresenta, e, daí, nasce o tema, que é apresentado discursivamente. Ou seja, “o tema é inseparável tanto do todo da situação do enunciado quanto dos elementos linguísticos.” (MEDVIÉDEV, 2012, p. 196). O tema da biografia-reportagem de Silvio Santos é a vida amparada por suas relações sociais e por sua ideologia, valores pessoais, fé, no que acredita, divulgados por meios de comunicação que propiciaram uma circulação, uma recepção e uma produção. Os componentes de caráter verbal do tema definem a significação, que é uma forma não só de se apropriar, mas também de designar o tema – todavia, nunca será o próprio tema. O gênero do discurso biografia-reportagem é constituído pelo todo, ou seja, pelo tema, pela sua significação, pelos componentes verbais, pelo estilo, mas, sobretudo, por sua construção composicional. Se o tema liga o gênero ao discurso, o estilo verbal liga o significado ao tema, e, portanto, o estilo do gênero do discurso biografia-reportagem é constitutivo da forma.

5.3.2 O estilo

Existe na biografia-reportagem pelo menos três concepções de estilo. A conceituação de Bakhtin (2010), que menciona o estilo pela proposição: recursos lexicais, fraseológicos e gramaticais da língua; as figuras de linguagem, que incluímos nessa perspectiva por meio da elocutio retórica. E temos ainda a importante conceituação de Bakhtin/Volóchinov (2009) de estilo como manifestação estilística no discurso de outrem. 221

Comecemos a sinalizar pelos recursos lexicais, neste momento, mais precisamente os verbos: o estilo verbal do gênero do discurso biografia-reportagem. Levando em consideração a característica do gênero biografia, um gênero narrativo, retrospectivo e em prosa, os verbos deveriam se encaixar nas variações do passado: pretérito perfeito, pretérito imperfeito, pretérito mais que perfeito, futuro do pretérito e assim por diante. Mas há, na biografia-reportagem, algumas variações verbais, principalmente no capítulo 1 introdutório: O homem por trás do sorriso. Isso se deve provavelmente por Silvio Santos estar vivo no momento em que o livro de Morgado foi escrito. Todavia, é importante desenhar essa trajetória verbo-enunciativa cambiante, já no começo do livro. Por exemplo:

Independentemente de se considerar mais comerciante ou mais artista, o profissional Senor Abravanel conhecido pelo nome de Silvio Santos, cristalizou-se como elemento relevante da cultura popular. Qualquer brasileiro sabe cantarolar a música que anuncia seu programa, imitar sua gargalhada e repetir os seus bordões. Muitos pontuam fases da vida com as atrações apresentadas por ele e sonham com a fortuna prometida em seus programas. (MORGADO, 2017, p. 09).

O excerto acima começa com o verbo “considerar” no infinitivo relacionado a Silvio Santos. Depois, aparece o verbo “conhecido” no tempo passado, particípio passado, e, em seguida, o verbo “cristalizou-se”, conjugado no pretérito perfeito, auxiliado pela partícula apassivadora “se”. Para tratar da história de vida de Silvio Santos no parágrafo inicial, o autor Morgado (2017), teve que recorrer a três tempos verbais progressivamente. Quando o autor passa a referir-se aos brasileiros – “Qualquer brasileiro sabe cantarolar a música que anuncia seu programa, imitar sua gargalhada e repetir os seus bordões.” (MORGADO, 2017, p. 09) –, o tempo verbal é o presente do indicativo: Silvio vive o dia a dia junto dos seus contemporâneos – social de costumes: “anuncia”, “sonham”. Mas a narrativa retrospectiva também continua e se faz presente, ainda ligada à narrativa dos brasileiros, no parágrafo, pelos verbos “apresentadas” e “prometida”, que estão no particípio passado. No exemplo: “Muitos pontuam fases da vida com as atrações apresentadas por ele e sonham com a fortuna prometida em seus programas.” (MORGADO, 2017, p. 09). Curiosamente, o parágrafo seguinte começa com os verbos no presente do indicativo: “De fato, Silvio Santos é um comerciante. Vende sonhos embalados em um sorriso que, diante das câmeras, parece indestrutível. Contudo, ele vai além.” (MORGADO, 2017, p. 09). 222

Na continuação do mesmo parágrafo, o posicionamento verbal muda para o passado: “Graças à sua persistência e, por que não dizer, insistência, construiu uma carreira que dura mais de sete décadas, sendo cinco delas à frente do programa de televisão que leva seu pseudônimo e é sinônimo de domingo.” (MORGADO, 2017, p. 09). Aparece “construiu”, no pretérito perfeito e pela primeira vez um gerúndio – “sendo” –, que aparecerá com recorrência durante todo o livro. A terceira parte do parágrafo começa com um verbo no pretérito perfeito: “chegou”:

Chegou a animar mais de dez horas ao vivo, entremeando sorteios milionários com gincanas infantis, brincadeiras com artistas, desafios ao conhecimento, câmeras escondidas, oportunidades para calouros, números musicais e pedidos de namoro. Forjou um estilo que resiste a variedade e ao tempo. Serve de exemplo para outros apresentadores que desejam alcançar um sucesso tão reluzente quanto são as joias usadas pelo Patrão, um dos apelidos de Silvio. (MORGADO, 2017, p. 09-10).

O parágrafo termina com um verbo no pretérito perfeito – “forjou” – e, em seguida, Morgado (2017) finaliza o parágrafo apropriando-se de uma coerência estranha: volta a narrativa para o presente do indicativo com os verbos “resiste”, “desejam”, “serve”, e “são”, formato inicial do parágrafo. No 3º e 4º parágrafos, ainda do primeiro capítulo, o estilo verbal varia essencialmente entre o pretérito perfeito e o presente do indicativo. Vejamos 4º parágrafo:

Entre o artista e o empresário, está o homem. Carioca, casado, pai de seis filhas e que se declara conservador, apesar de comandar uma rede de emissoras que, por diversas vezes, deixou de lado qualquer conservadorismo na hora de lutar por mais pontos de audiência. (MORGADO, 2017, p. 10).

No 5º parágrafo, essa instabilidade verbal continua, entre passado e presente, pois apresenta ainda o verbo “ter” no presente do subjuntivo – “tenha” – com um auxiliar, o verbo “ser” no particípio passado: “sido”. Todavia, é nesse parágrafo que começa uma preponderância maior de verbos no gerúndio:

Essa, aliás, parece ser a sua faceta mais complexa. Para ele ser dono do SBT não é o mesmo que ser dono de qualquer outra coisa – ainda que essa coisa tenha sido um banco, por exemplo. Silvio Santos considera que a televisão é “o seu negócio”. Foi o primeiro artista da tela a formar sua própria rede. A partir de um show dominical, fez brotar uma grade inteira de programação, revelando um estilo tão frenético quanto conectado com a massa. E essa conexão se dá pelas formas mais inusitadas passando sucessivos episódios da A pantera cor de rosa, até o capítulo da novela concorrente acabar, exibindo o Jô Soares Onze e Meia só depois da meia noite ou 223

adotando Chaves como solução infalível para atrair espectadores a qualquer hora do dia ou da noite. (MORGADO, 2017, p. 10).

No 6º parágrafo, o presente do indicativo aparece novamente na narração referindo-se a outrem, entretanto, a narrativa retrospectiva é bem marcada por dois verbos no passado, como podemos ver:

Em longo prazo, atos assim poderiam desgastar a imagem de qualquer um, mas com ele, e apenas com ele, tudo isso produz o efeito contrário em uma parcela expressiva do público. Cada arroubo parece cobrir-se com uma capa de genialidade que, além de surpresa desperta torcida. São muitos os que querem vê-lo vencer, como se os representasse, tanto pela origem simples, quanto pela identificação que gera a cada brincadeira animada em seu auditório repleto de povo. (MORGADO, 2017, p. 11).

“Poderiam” é um verbo no futuro do pretérito usado pela primeira vez na narrativa, que contempla ainda no mesmo parágrafo o verbo “representasse”, que está no pretérito imperfeito do subjuntivo. Essa instabilidade de tempo verbal no capítulo 1 da biografia-reportagem não é usual do gênero biografia. Morgado (2017) numera como capítulo 1 o capítulo introdutório, que poderia ser chamado de prólogo. Em biografias canônicas, o tempo verbal desses prólogos está sempre no pretérito e, em sua maioria, a narrativa biográfica também. No capítulo 2, Negócios, o tempo verbal já está no pretérito e divide seu espaço com o gerúndio, recorrente em todo o livro, e com verbos no infinitivo. Vejamos um primeiro recorte do capítulo 2, repleto de verbos no passado que se dividem com verbos no infinitivo:

Apesar de gostar da ideia de ingressar no mundo artístico, pôs tudo na ponta do lápis e não lhe agradou ver o desfalque que essa nova atividade causava ao seu bolso. No rádio, atuava até cinco horas por dia e ganhava um conto e trezentos por mês. Já na rua, trabalhava apenas 45 minutos, durante o horário de almoço dos guardas, e ganhava 960 mil réis por dia! Ou seja: em menos de uma hora como camelô, ganhava quase o que recebia por um mês inteiro de trabalho como locutor. Assim, tomou uma decisão que lhe pareceu óbvia: voltar para as ruas. (MORGADO, 2017, p. 17).

Percebemos aqui uma maior recorrência de verbos no pretérito perfeito: “pôs”; “agradou”; “causava”; “atuava”; “ganhava”; “trabalhava”; “tomou”; “pareceu”. E verbos no infinitivo: “gostar”; “ingressar”; “voltar”. Percebe-se nesse parágrafo uma limitação da expansão lexical, já que o autor utiliza o verbo “ganhava” três vezes. 224

Nesse segundo recorte do mesmo capítulo 2, ocorre uma incidência maior de verbos no gerúndio; todavia, os verbos no pretérito perfeito são preponderantes:

A adolescência de Senor dividiu-se entre a vida de camelô, os estudos e os auditórios das rádios, que frequentava apenas no papel de ouvinte. Seu desejo de ganhar dinheiro, um misto de vontade e necessidade, falava mais alto nessa fase. Após deixar o serviço militar obrigatório, trocou as calçadas pelos escritórios, obras e repartições públicas, nos quais vendia bijuterias, cortes de tecido e sapatos sob medida. Isso ainda acontece em algumas repartições públicas no Rio, onde as pessoas passam de carrinho pelos corredores e entram vendendo de tudo, principalmente sanduíches e doces. Senor acabou retornando ao rádio, quando passou a adotar o nome artístico Silvio Santos. Mas, em paralelo, sempre manteve outras atividades. Percebendo a monotonia que reinava nas viagens de barca entre o Rio e Niterói, resolveu montar um sistema de alto-falantes que funcionava de segunda a sexta. Foi por conta dessa iniciativa que Silvio, pela primeira vez na vida, recebeu uma crítica da imprensa. (MORGADO, 2017, p. 17).

Nota-se nesse parágrafo que o pretérito perfeito ainda é preponderante, por conta mesmo da narrativa retrospectiva, característica do gênero biografia. Os verbos que estão no pretérito perfeito são maioria: “dividiu”; “frequentava”; “falava”; “trocou”; “vendia”; “passou”; “reinava”; “manteve”; “resolveu”; “funcionava”; “foi”; “recebeu”. Alguns verbos no infinitivo: “ganhar”; “deixar”. Uma incidência maior de gerúndio: “vendendo”, “retornando”, “percebendo”. E o que chama atenção é um verbo no presente do indicativo, “acontece”, no meio da narrativa retrospectiva. Nota-se uma inserção informativa do autor que nos parece mesmo a intromissão de um repórter: “Isso ainda acontece em algumas repartições públicas no Rio, onde as pessoas passam de carrinho pelos corredores e entram vendendo de tudo, principalmente sanduíches e doces.” (MORGADO, 2017, p. 17). Ainda no capítulo 2, Negócios, há um parágrafo que intercala o tempo passado com o futuro do pretérito, o particípio passado e uma breve ocorrência de gerúndio, com uma novidade: verbos no pretérito mais que perfeito:

A princípio, seriam poucos dias de viagem. Contudo, estimulado pela vaga de locutor que conseguira na rádio Nacional, atual Globo, Silvio decidiu ficar. Mas ele ainda tinha uma dúvida a honrar em sua terra natal, então, na tentativa de conseguir mais dinheiro, levou seu bar para São Paulo e o instalou, em sociedade com um cunhado de Hebe Camargo, ao lado da emissora onde trabalhava. Durante certo tempo conciliou o microfone com o balcão. Mais tarde, conseguiu vender o bar, batizado de Nosso Cantinho, por 240 mil cruzeiros. Contudo, os ganhos não eram suficientes para ganhar as dívidas que contraíra e teve de abrir mais duas frentes de trabalho: voltou a corretar anúncios, lançando uma revista de passatempos chamada Brincadeiras para Você, e começou a fazer shows em circos. (MORGADO, 2017, p. 19-20). 225

O parágrafo está praticamente todo no passado. No futuro do pretérito: “seriam”. No particípio passado: “estimulado”; “batizado”; “chamada”. No pretérito perfeito: “decidiu”; “tinha”; “levou”; “instalou”; “conciliou”; “conseguiu”; “teve”; “voltou”; “começou”. Uma breve ocorrência de gerúndio: “lançando”. E duas ocorrências do pretérito mais que perfeito: “conseguira”; “contraíra”. Já nas primeiras linhas da biografia-reportagem, uma figura de linguagem – relacionada à elocução – é bem presente no texto: a antonomásia. Trata-se de um recurso lexical. Segundo Tringali (2014), a elocutio é quando o discurso desabrochará pela escolha lexical, das palavras, ou seja, pela ornamentação do discurso. A figura de linguagem por antonomásia é aquela que “em vez de dizer ‘Aristóteles’, digo ‘Filósofo’, porque Aristóteles é o filosofo por excelência ou por antonomásia.” (TRINGALI, 2014, p. 193). Substitui-se o nome próprio por uma qualidade do indivíduo referente a esse nome próprio. Silvio Santos tem muitos nomes e apelidos que Morgado (2017) utiliza no intuito de não repetir o nome Silvio Santos o tempo todo. Vejamos um exemplo nos primeiros parágrafos da biografia-reportagem:

Independentemente de se considerar mais comerciante ou mais artista, o profissional Senor Abravanel conhecido pelo nome de Silvio Santos, cristalizou-se como elemento relevante da cultura popular. Qualquer brasileiro sabe cantarolar a música que anuncia seu programa, imitar sua gargalhada e repetir os seus bordões. Muitos pontuam fases da vida com as atrações apresentadas por ele e sonham com a fortuna prometida em seus programas. (MORGADO, 2017, p. 09). Chegou a animar mais de dez horas ao vivo, entremeando sorteios milionários com gincanas infantis, brincadeiras com artistas, desafios ao conhecimento, câmeras escondidas, oportunidades para calouros, números musicais e pedidos de namoro. Forjou um estilo que resiste a variedade e ao tempo. Serve de exemplo para outros apresentadores que desejam alcançar um sucesso tão reluzente quanto são as joias usadas pelo Patrão, um dos apelidos de Silvio. (MORGADO, 2017, p. 09-10).

Nesse exemplo acima, Senor Abravanel, no primeiro parágrafo, é conhecido pelo nome de Silvio Santos, não há uma substituição por antonomásia. Mas, no final, quando Silvio Santos torna-se “Patrão” e, em seguida, Silvio Santos torna-se “Silvio”, deu-se a substituição por antonomásia. Esse processo ocorre durante todo o livro. Vejamos outros exemplos:

Silvio só entrou em um auditório de rádio para atuar, e não apenas para assistir, aos 18 anos. Como não podia trabalhar nas ruas, pois achava que sua posição de soldado 226

paraquedista não permitia, decidiu voltar ao microfone. A chance veio pelas mãos de Silveira Lima, que naquele momento, apresentava na Rádio Mauá o programa Clube do Guri, aos domingos. Era justamente o dia de folga do soldado Abravanel, 392, que servia na Escola da Paraquedistas, em Deodoro e aproveitava o tempo livre para participar no ar, mesmo sem ganhar dinheiro por isso. Ele gostava de apresentar calouros que tentavam a sorte, com ele, no passado, havia tentado várias vezes. (MORGADO, 2017, p. 54-55).

“Silvio” foi substituído por “soldado Abravanel 392”, que configura uma dupla figuração: é concomitantemente antonomásia pela substituição de “Silvio” por “soldado Abravanel 392” quanto enálage por expansão semântica. Soldado, que é um substantivo, ganha o perfil de um adjetivo que qualifica o Abravanel. Silvio é Abravanel que foi soldado e seu número era 392. A expansão semântica se dá também por associação entre as palavras soldado, que pode ser associada a guerreiro, a batalhador, a lutador etc., ao sobrenome de batismo de Silvio. A enálage é um recurso gramatical por difusão semântica. Outro exemplo de antonomásia no capitulo 3, Artista:

Não Satisfeito, Silvio passou a animar programas também em outros dias da semana. Em 1964, aos sábados à tarde da TV Tupi de São Paulo, começou o Festival da Casa Própria. Quatro anos depois, nesse mesmo canal, lançou atrações noturnas, com destaque para aquela que considera sua maior criação: Cidade Contra Cidade. Essa gincana reunia desde provas físicas até de conhecimento, passando por números artísticos, concursos de beleza, ações comunitárias e exibições folclóricas. Com tantas atrações, o programa muitas vezes invadia a madrugada e, não raro, os telespectadores só conheciam o vencedor por volta das quatro horas da manhã. Mesmo assim, alcançava uma audiência tão grande que foi destaque na edição de setembro de 1969 da revista Realidade. No domingo, 20 de julho, quando o homem botou o pé na Lua, a televisão estava lá, transmitindo diretamente e com uma imagem perfeita, apesar dos 400.000 quilômetros de distância. O índice de audiência foi a bom nível: 41,4% das pessoas que têm tevê estavam assistindo ao espetáculo, enquanto 20% dos aparelhos permaneciam apagados. [...] Enquanto isso, sem ir à lua, Silvio Santos conseguiu em São Paulo uma audiência apenas 15% menor (40,4), na sexta-feira, com o programa Cidade contra cidade. E no domingo o IBOPE marcou 35,8 para o Programa Silvio Santos, que ficou com o segundo e terceiros lugares entre os programas de maior audiência, perdendo apenas para a transmissão da aventura de Apolo 11. Outras atrações que o Homem do Baú apresentou em sua faixa nobre foram Sinos de Belém, na qual chegava a por a própria vida em perigo ao cumprir provas tão arriscadas quanto subir 15 andares em uma escada Magirus sem proteção, e Silvio Santos diferente. (MORGADO, 2017, p. 60-61).

O “Silvio” do primeiro parágrafo, que já é uma abreviação de “Silvio Santos”, é substituído por antonomásia no último parágrafo por “Homem do Baú”. 227

A reportagem da revista Realidade (em negrito) também apresenta outra figura de linguagem, que são as reticências. Entre o parágrafo que representa o IBOPE do homem pisando na lua e o IBOPE de Silvio Santos, há um silêncio, que diz pelo não dito. Tem força retórica, impacta e traz uma sensação de importância para o feito de Silvio Santos. As reticências representam o silêncio que diz: Silvio Santos é um evento televisivo tão bom ou melhor que o homem pisando na lua. As reticências aparecem também em enunciados de Silvio Santos reportados por Morgado (2017). Vejamos o exemplo dessa declaração de Silvio para a Folha de S. Paulo de 21 de fevereiro de 1988: “Por que eu não dou entrevista, não concordo com livro sobre mim, com filme? Se nenhum advogado, nenhum médico ou professor é cercado de todas essas... é... regalias, eu também não devo ser.” (MORGADO, 2017, p. 182). No capítulo 4, Dono de televisão, apresenta dois exemplos de antonomásia por substituição na mesma sequência narrativa:

Cerca de seis meses após entrar na Record, a Gerdau decidiu deixar o negócio. Essa seria uma ótima chance para Silvio se seu contrato com a Globo não lhe impusesse uma multa, 25 milhões de cruzeiros, caso se tornasse acionista de qualquer emissora de rádio ou TV. Quem deu a solução para esse impasse foi Demerval Gonçalves, então diretor administrativo do Grupo Silvio Santos: – Eu tenho um grande amigo com quem trabalhei 19 anos. É um empresário bem- sucedido, tem mais dinheiro que você, e acho que ele compre a Record pra você sem pedir nada em troca. Joaquim Cintra Gordinho, dono da Companhia Brasil Rural, era fã do apresentador e se prontificou, inclusive, a emprestar o dinheiro da transação, mas isso não chegou a ser necessário. Como ele morava nos Estados Unidos, incluíram na sociedade outro homem de confiança: Laudelino de Seixas, ex-piloto de Joaquim, que ficou com 10% das ações. Ele seria o informante de Silvio Santos dentro da Record. Em paralelo a essas transações, o Homem do Baú entrou, em 1974, na disputa pelo canal 9 de São Paulo. (MORGADO, 2017, p. 100).

Morgado (2017), no primeiro parágrafo, usa o nome “Silvio”. Na continuação da narrativa biográfica, substituí Silvio por “apresentador”. Na sequência, usa o nome composto “Silvio Santos”, que é substituído, no último parágrafo, logo em seguida, por Homem do Baú. Ainda no mesmo capítulo, há um tropo lexical por expansão semântica:

Finalmente, em 22 de outubro de 1975, o presidente Ernesto Geisel assinou o decreto nº 76.488, que outorgava à TV Studios Silvio Santos Ltda. “concessão para estabelecer uma estação de radiodifusão de sons e imagens (televisão)” na cidade do Rio de Janeiro. Era a certidão de nascimento do canal 11. A cerimônia que oficializou a outorga ocorreu exatos dois meses depois, no gabinete dos ministros das Comunicações. (MORGADO, 2017, p. 102). 228

A expansão semântica se dá por perífrase no termo “certidão de nascimento”, que condiz ao nascimento de seres humanos. No caso, Morgado (2017) usa o termo para expandir semanticamente a outorga da concessão de televisão a Silvio Santos. Troca-se uma expressão por outra. Dito de maneira condensada, Morgado (2017) poderia ter dito: “nasceu o canal 11”. É também uma figura de linguagem por alusão, que consiste na relação entre um termo jurídico para o registro de nascimento de seres humanos – “certidão de nascimento” – para designar o nascimento de um canal de televisão. Nesse capítulo 4, Dono de televisão, Morgado (2017) orna seu discurso narrativo com algumas figuras de linguagem. Vejamos outros dois exemplos de figuras de linguagem em dois parágrafos em que o autor aparece bastante:

No dia seguinte à inauguração, a transmissão teve início às 18 horas. Após uma hora de programas educativos, começou a ser exibido um episódio de Hazel, que Silvio rebatizou como A Empregada Maluca. Logo após, A Empregada Maluca. Em seguida, A Empregada Maluca. Depois, A Empregada Maluca. Trava-se do mesmo episódio repetido quatro vezes seguidas. Quatro vezes seguidas! E o dono da TVS fez o mesmo com várias produções. Para se justificar, dizia simplesmente dotar o mesmo raciocínio das salas de cinema. Assim quem perdesse a primeira exibição teria outra chance para ver. Entre os enlatados, era exibido o primeiro noticiário da história do canal. Tratava-se do boletim Silvio Santos informativo, com cerca de dois minutos de duração. (MORGADO, 2017, p. 104).

Nesses dois parágrafos, ocorre a substituição por antonomásia do nome “Silvio” por “dono da TVS”. O autor aparece bastante nesses parágrafos, inclusive com a exclamação interativa: “Quatro vezes seguidas!” (MORGADO, 2017, p. 104). O autor repete várias vezes “A Empregada Maluca” e repete ainda a expressão “Quatro vezes seguidas” por duas vezes. Morgado (2017) marca a sua voz, nesse caso, com a figura de linguagem hipérbole. Trata-se do exagero, de uma supervalorização do que está sendo dito por meio da repetição, que alude a um movimento das séries do SBT, donde são repetidos os mesmos episódios várias vezes. Morgado (2017) tenta criar uma imagem dos “enlatados americanos” pela repetição e escreve quatro vezes: “A Empregada Maluca”. O próprio termo “enlatados” é um eufemismo para atenuar a falta de produção criativa de programas produzidos pelo próprio SBT à época. A figura de linguagem antonomásia acontece durante todo o livro. Vejamos mais um exemplo: “Ainda em 1988, outro movimento de impacto: Silvio trouxe Gugu de volta para a 229

sua rede. Augusto Liberato começou a trabalhar com o Homem do Baú em 1974, na produção de Domingo no Parque.” (MORGADO, 2017, p. 112). Há, no mesmo capítulo, uma antonomásia às avessas. Trata-se de uma digressão. Em vez de apresentar a substituição do nome “Silvio” e/ou “Silvio Santos” por “patrão”, “Homem do Baú”, “dono da TVS”, Morgado (2017) escreve assim na peroração: “Conforme as frases revelarão, a definição que o dono do SBT dá para a TV oscila entre trabalho e diversão, o que leva a uma conclusão: para Silvio Santos, televisão é tudo.” (MORGADO, 2017, p. 119). Substituí dono do SBT por Silvio Santos e utiliza outro eufemismo: “para Silvio Santos televisão é tudo”. O que Morgado quer dizer com “tudo” é: Silvio Santos vê na sua TV trabalho e diversão e atenua isso com a expressão: “televisão é tudo”. Para o próprio Morgado (2017), subentende-se que televisão seja um veículo de comunicação de suma importância, por essa inferência do autor: “televisão é tudo”. Dizer que a televisão é tudo é mais agradável do que dizer que televisão é um negócio lucrativo, é uma empresa, é trabalho, mas também é diversão, especialmente para Silvio Santos. Em se tratando da diversão de Silvio Santos com os seus programas e com sua rede de televisão, Morgado (2017) conta como ficou conhecido o Topa Tudo por Dinheiro:

O dono do SBT ainda teria muito trabalho pela frente. Em 1991, lançou o Topa Tudo Por Dinheiro, que frequentemente liderava a audiência e ficou conhecido nos bastidores como “o recreio de Silvio”. Câmeras escondidas com Ivo Holanda, Ruth Romcy, Gibe, Fernando Benini e outros atores eram intercaladas com brincadeiras na plateia e no palco. (MORGADO, 2017, p. 68).

Entendemos a expressão “o recreio de Silvio” como um eufemismo irônico. Tratar-se- ia, então, de serem duas figuras de linguagem trabalhando concomitantemente: a ironia e o eufemismo. “Recreio” é um momento de diversão, de brincadeira, um exercício de lazer, e Silvio Santos sempre foi muito profissional, como animador e apresentador. Portanto, é uma indicação sarcástica, que alarga os sentidos que são unilaterais. Também há uma indicação eufemística, que tenta atenuar a brincadeira, talvez um pouco exagerada, do patrão. O filme Central do Brasil ilustrou Dora, personagem protagonista, que vende uma criança e compra uma televisão: a personagem assiste na nova TV o programa Topa Tudo Por Dinheiro. O próprio nome do programa é irônico, uma zombaria. O capítulo 5 Política apresenta também algumas substituições por antonomásia: as últimas do livro. Vejamos os últimos exemplos de antonomásia: 230

Em uma dinâmica que fazia lembrar o namoro na TV, várias legendas nanicas se ofereceram para Silvio. A escolhida foi o Partido Municipalista Brasileiro, PMB. Seu fundador, pastor Armando Corrêa, era também candidato a presidente pela legenda, com campanha acontecendo no rádio e na TV. Ao anunciar sua entrada no PMB, o Homem do Baú embaralhou a campanha por completo. (MORGADO, 2017, p. 146).

E ainda:

A candidatura parecia decolar, mas havia um porém: as cédulas de votação foram impressas no início da campanha, antes de Silvio entrar. Ou seja: quem quisesse votar em Silvio Santos deveria marcar um X ao lado do nome Corrêa, o 26. Durante os poucos dias que faltavam até a eleição, o apresentador teve de usar o seu poder de comunicação no rádio e na TV para explicar e convencer os eleitores a votarem nele, mas através de outro nome. (MORGADO, 2017, p. 147-148).

Antonomásia de “Silvio” por “o apresentador”. Na mesma página 148, acontece a mesma substituição:

Centralizador, o próprio Silvio decidiu que faria toda a campanha do primeiro turno sozinho e só contrataria um marqueteiro no segundo turno, quando esperava continuar contando com o trabalho do Paulo. Terminada a gravação do primeiro programa, o apresentador pediu para assistir o resultado do que havia falado. Gostou do que viu. (MORGADO, 2017, p. 148).

Há uma substituição do nome Silvio na mesma página pelo termo “o patrão”:

Dessa gravação, o que mais chamou a atenção de Paulo Tadeu foi a duração: cerca de 5 minutos e 40 segundos. Silvio havia extrapolado o tempo que o PMB teria. E então ele mandou cortar um trecho, o que reduziria o total para 5 minutos. Mas ao dar essa ordem, ouviu o seguinte comentário do diretor: – Silvio, não são 5 minutos de programa direto. São 2 minutos e meio de tarde e 2 e meio à noite. – Mas ninguém me avisou disso – reclamou o patrão, que demostrava não saber como funcionava a mecânica do horário eleitoral. (MORGADO, 2017, p.149).

Uma figura de linguagem que se apresenta no livro algumas vezes é a metáfora. A metáfora pode trabalhar simultaneamente nos significados da palavra e/ou como recursos fraseológicos da língua. Já utilizamos – no começo deste capítulo – um exemplo fraseológico e metafórico, que é a expressão Toque de Midas. Vejamos outros exemplos: 231

Desde quando estudei História da Civilização, li que o povo precisa de pão e circo. Durante todos esses anos, desde quando eu era camelô, dei circo ao povo pra ganhar o meu pão. E desde os 14 anos que sempre tive muito mais pão do que precisei. Ganhava três salários mínimos num dia. – SBT, 6 de março de 1988. (MORGADO, 2017, p. 38).

Essa metáfora aparece pela voz de Silvio Santos como autor e garante ao texto uma escolha lexical de autoria para aquilo que Silvio queria dizer e disse. Pão e circo é uma metáfora popular que consiste em afirmar, neste caso, que aquilo que o povo realmente precisa é de comida e de diversão. Pão associa-se a comida e circo a diversão. Trata-se do sentido e do significado entre quatro palavras que coexistem semanticamente: pão – comida; circo – diversão. Há similaridade entre as palavras e traços comuns. Como desenho fraseológico, a expressão “Pão e circo” têm um contexto social e político: “O povo vive de pão e de circo”. Isto é, essa fraseologia significar-se-ia em um contexto social e político do Brasil, o seguinte: dê arroz, feijão e futebol ao povo, que ele não te incomodará. O termo advém do latim “panem et circenses” e sua origem os historiadores atribuem a um poeta satírico romano chamado Juvenal.27 Outra metáfora presente no texto está nessa narração de Morgado (2017): “No Brasil, Silvio Santos sempre contou com dois fiéis escudeiros, personagens indispensáveis em todos os seus programas: Lombardi e Roque.” (MORGADO, 2017, p. 65). Trata-se de uma expressão popular que remete a Antiguidade, no que se refere a essa relação entre Reis e seus escudeiros fiéis, protetores incansáveis de seus senhores e seus reinos. Cervantes popularizou o termo quando elegeu Sancho Pança como fiel escudeiro de Dom Quixote. Uma expressão utilizada por Morgado (2017) coexiste à metáfora: “A mosca azul da política já picou inúmeros comunicadores.” (MORGADO, 2017, p. 141). É metáfora e é expressão idiomática e/ou fraseologia. O termo “mosca azul” originou-se de um poema de Machado de Assis, cuja história se dá pela relação de um plebeu com uma mosca azul diferente, que tinha as asas de ouro. O plebeu deslumbrado começa a sonhar com poder e riqueza, o que afeta seu senso de realidade e sua racionalidade. Essa expressão idiomática, “mosca azul”, é uma metáfora comumente utilizada na esfera política, que, grosso modo, corresponde a uma pessoa, anônima, celebridade, que se deixa iludir pelo mundo do poder e do dinheiro. Pode-se dizer que políticos corruptos, que são descobertos roubando dinheiro público, foram picados pela “mosca azul”. Olhemos parte desse outro parágrafo:

27 Disponível em: . Acesso em: 12 dez. 2019. 232

Mas a disputa mais dura seria travada dentro do partido. O diretório regional se opôs à ideia de lançar Silvio como candidato e a direção nacional teve de intervir. Pronto: estava armado o ringue. O gongo soou quando os dirigentes do PFL paulistano que foram destituídos, munidos de uma liminar concedida pelo Tribunal Regional Eleitoral, TER, convocaram uma convenção para escolher os nomes da legenda que disputariam a eleição. (MORGADO, 2017, p. 152).

Ocorre duas metáforas de expansão semântica, relacionadas à luta de boxe: “armando o ringue” e “o gongo soou”. São significados que se coexistirão semanticamente. Gozam de traços em comum. Essas metáforas são utilizadas para exemplificar a briga que se deu no PFL na ocasião. Outra metáfora encontra-se nessa sentença: “Nas mãos de Silvio, Chaves tornou-se um coringa.” (MORGADO, 2017, p. 114). O coringa é uma carta do baralho possível de ser usada em qualquer situação. O Chaves foi um programa usado por Silvio em diversas situações como uma “carta na manga”, que sempre desestabilizou emissoras concorrentes por sempre ter dado muita audiência. Temos no final do livro, no capítulo 6, Silvio Santos por ele mesmo, a presença de outras duas figuras de linguagem pela voz do próprio Silvio:

Fui treinado na escola de paraquedistas do Exército. O meu treinamento foi esse que você viu no filme Nascido para Matar, e que deveria chamar-se Nascido para não Morrer, porque todos eles forem treinados para ir ao Vietnã e não morrer. O paraquedista não deve falhar, porque quem falha morre. Deve agir quando é preciso agir. – Folha de S. Paulo, 21 de fevereiro de 1988. (MORGADO, 2017, p. 186).

O nome do filme Nascido para Matar se constituí por uma contradição, um paradoxo entre as palavras “nascido” e “matar”: morte e nascimento estão no extremo oposto; nascimento e morte conflitam semanticamente. Todavia, de forma pouco poética, as duas palavras opostas se harmonizam. O oximoro se confirma na sugestão de Silvio: deveria chamar-se Nascido para não Morrer. Silvio Santos, ao dizer que o seu treinamento na escola de paraquedistas foi como no filme Nascido para Matar, mas que deveria ter outro nome, Nascido para não Morrer, amplia a compreensão do significado das palavras e da sentença por uma negação: trata-se da figura de linguagem lítotes. É uma negação às avessas, que confirma o essencial do que Silvio quer dizer: o treinamento da escola de paraquedistas não ensina a matar, mas ensina a não morrer. Existe no livro uma ocorrência de expressão idiomática e/ou fraseologia genuína: 233

Também merece ser mencionada a capacidade de Silvio para batizar seus programas de forma nada convencional. Já criou desde nomes desnecessariamente longos, como Cassetadas Engraçadas e Desastradas, até outros bem sintéticos. Chegou, por exemplo, a resumir o velho ditado: “Quem foi rei nunca perde a majestade” em apenas duas palavras: Rei Majestade. (MORGADO, 2017, p. 117).

“Quem foi rei nunca perde a majestade” é uma expressão popular, idiomática. Outra perspectiva possível para o estilo na biografia-reportagem é o discurso de outrem. Bakhtin/Volóchinov (2009 [1929]) sinaliza o discurso direto retórico, o discurso direto preparado, o discurso direto esvaziado, o discurso citado disseminado oculto, o discurso indireto impressionista, o discurso indireto analisador do conteúdo e o discurso indireto analisador da expressão. Apresenta, ainda, o discurso indireto livre. Na biografia-reportagem, dispomos de algumas dessas manifestações discursivas. Esse gênero biográfico transitou entre o estilo linear e o estilo pictórico. O estilo pictórico é mais complexo por não possuir contornos bem delineados, visivelmente marcados e separados do corpo do texto. Esse estilo aparece na tessitura narrativa de maneira sutil. Vejamos primeiro alguns exemplos de estilo pictórico na biografia-reportagem de Silvio Santos:

Silvio tinha viajado para Boston para tratar da saúde. Passou 15 dias sozinho, trancado em um quarto de hotel e chorando “como uma criança”, conforme revelou mais tarde. Quando voltou para o Brasil, estava com a cabeça mudada. Por pensar que lhe restavam poucos anos de vida, resolveu aproveitá-los de uma nova forma. Desejava retribuir a atenção, o carinho e a corrente de orações que seu público lhe dedicou. Mas como? (MORGADO, 2017, p. 142).

Proveniente de uma intertextualidade constitutiva – “como uma criança” conforme revelou mais tarde –, ou seja, Silvio revelou que tinha chorado como uma criança, esse recorte do parágrafo (em negrito) caracteriza um discurso indireto analisador da expressão (DIAE). Trata-se do discurso de Silvio expresso de forma indireta pela voz do narrador: Passou 15 dias sozinho, trancado em um quarto de hotel e chorando “como uma criança”. (MORGADO, 2017, p. 142). Ao subtrairmos “conforme revelou mais tarde”, gozamos de uma subjetividade assinalada pelas aspas, donde emana uma simbiose entre a voz do autor e a voz da personagem. As apreciações de Silvio, que diz ter chorado “como uma criança”, são colocadas em primeiro plano no limiar narrativo. Temos ainda outro exemplo de discurso indireto analisador da expressão (DIAE): 234

Em junho de 1989, durante uma conversa em sua casa com os senadores Marco Maciel e Carlos Chiarelli, decidiu que enfrentaria Aureliano Chaves na convenção nacional do partido. Mas, na manhã do dia seguinte, se arrependeu. Para Arlindo Silva disse que não se sentia “suficientemente motivado para ser candidato”. (MORGADO, 2017, p. 145).

Esse exemplo é diferente do outro, embora ambos sejam DIAE. Aqui o discurso indireto é marcado pelo pronome relativo “que”: para Arlindo Silva disse que não se sentia “suficientemente motivado para ser candidato.” (MORGADO, 2017, p. 145). A apreciação do autor se dá pela presença, em primeiro plano, com o auxílio das aspas, da voz de Silvio Santos: “suficientemente motivado para ser candidato.” (MORGADO, 2017, p. 145). Há, portanto, uma simbiose subjetiva entre a voz do autor e a voz da personagem. Quem é que fala “suficientemente motivado para ser candidato”: Morgado (2017) ou Silvio Santos? Nesse caso, é a voz de Silvio Santos que está entre aspas. Outro exemplo de DIAE está nesse excerto abaixo, a partir de uma intertextualidade constitutiva: “Uma das novidades que Silvio implantou foi um calendário de sorteios, premiando os clientes que estivessem ‘rigorosamente em dia’ com as suas mensalidades. Assim, combatia a taxa de inadimplência.” (MORGADO, 2017, p. 21). A expressão de Silvio “rigorosamente em dia” soa como uma apreciação irônica do autor, que se confirma na sentença: “Assim, combatia a taxa de inadimplência.” (MORGADO, 2017, p. 21). Apresenta Morgado (2017) uma dissolução sarcástica para a expressão de Silvio. Não se dissocia, na tessitura narrativa, a voz de Silvio da Voz de Morgado (2017). Outra categoria de discurso indireto é o DII: discurso indireto impressionista. Olhemos o parágrafo abaixo:

Nos dias que se seguiram, a preocupação com o estado de suas cordas vocais e a ansiedade por entrar em um mundo como o da política, que conhecia muito pouco ou quase nada, embaralharam os pensamentos de Silvio, que se afastou do partido e chegou a pensar em desistir. Apesar de tudo, finalmente, no Show de Calouros de 13 de março, disse que aceitava ser candidato. (MORGADO, 2017, p. 144).

Não há dúvidas de que se trata de um excerto proveniente do discurso indireto, pela incidência recorrente do pronome relativo “que”. Fica claro o discurso indireto no final do excerto por essa sentença: “Apesar de tudo, finalmente, no Show de Calouros de 13 de março, disse que aceitava ser candidato.” (MORGADO, 2017, p. 144). Caracteriza-se por ser discurso indireto impressionista pelas apreciações do autor na narração biográfica do estado psicológico de Silvio. 235

Morgado (2017), de maneira onisciente-intrusa, diz que Silvio encontra-se “preocupado”, “ansioso” com os pensamentos “embaralhados”, e que Silvio “pensara em desistir”. Trata-se da transmissão de um discurso que é interior à narração, um discurso dos sentimentos, das emoções e dos pensamentos da personagem vistos de uma perspectiva que só o autor viu. Morgado (2017) sugere emoções e pensamentos vividos por Silvio. Nesse próximo excerto, encontramos três tipos de discurso de outrem, respectivamente:

Duas semanas após esse programa bombástico, Silvio recebeu em sua casa, no bairro do Morumbi, uma carta assinada por Orlando Dorsa, administrador regional de Campo Limpo. Nela, o apresentador é tratado “como o esperado messias”, que reuniria “todas as condições de dar continuidade à majestosa e irreversível administração de Jânio da Silva Quadros, à frente da municipalidade da nossa querida Capital” [sic]. Depois de ler essas palavras, o dono do SBT ligou para Dorsa perguntando se ele tinha algum partido. A resposta foi positiva: tratava-se do Partido da Frente Liberal, PFL. No dia seguinte, o então deputado estadual e presidente do PFL-SP, Inocêncio Erbella, apareceu na residência de Silvio com as fichas de filiação, prontamente preenchidas. Em poucas horas, toda imprensa já sabia da novidade. Em 4 de março de 1988, as bancas paulistanas amanheceram com jornais estampando manchetes na capa como “Silvio Santos no PFL. Quer ser prefeito”, de O Estado de S. Paulo, ou “Silvio Santos já no PFL, é prefeiturável”, da Folha de S. Paulo. Mas, apesar de toda essa expectativa, o apresentador comunicou aos jornalistas que só diria se seria ou não candidato durante o seu programa: “Assistam porque vão ajudar a minha audiência”. (MORGADO, 2017, p. 143).

Nesse parágrafo acima, além da substituição por antonomásia, figura de linguagem, do nome “Silvio”, por uma qualidade comum a esse nome próprio, que é “o apresentador”, gozamos de dois tipos de discursos indiretos, o discurso indireto analisador da expressão (DIAE), o discurso indireto analisador do conteúdo (DIAC), que ocorre duas vezes, e um tipo de discurso direto: o discurso direto preparado (DDP). Começaremos a tratar do discurso indireto analisador da expressão (DIAE) e, portanto, analisaremos o parágrafo de baixo para cima. Na sentença: “Mas, apesar de toda essa expectativa, o apresentador comunicou aos jornalistas que só diria se seria ou não candidato durante o seu programa”: “Assistam porque vão ajudar a minha audiência.” (MORGADO, 2017, p. 143), fica evidente o discurso indireto analisador da expressão (DIAE), assinalado por aspas, que privilegia certa subjetividade: precisamos estar atentos na leitura para identificar que essa voz (em negrito) é realmente a voz de Silvio Santos. Mais acima no parágrafo, identificamos outros dois “personagens”, que viabilizam outro tipo de discurso indireto: o discurso indireto analisador do conteúdo. (DIAC). “Em 4 de março de 1988, as bancas paulistanas amanheceram com jornais estampando manchetes na 236

capa como ‘Silvio Santos no PFL. Quer ser prefeito’, de O Estado de S. Paulo”. (MORGADO, 2017, p.143). E na continuação desse recorte: ‘Silvio Santos já no PFL, é prefeiturável’, da Folha de S. Paulo.” (MORGADO, 2017, p. 143). As personagens, nesse caso, são a Folha de S. Paulo e O Estado de S. Paulo, personificados pelo autor para consubstanciar o discurso indireto. Esse discurso dos jornais na trama narrativa tem um viés claramente político, donde o autor resgata essas declarações por uma orientação ideológica que dialoga e justifica o tema do capítulo: Silvio Santos e a política. O autor está citando o discurso de outrem, inclusive auxiliado pelas aspas, mas sua intenção foi, realmente de forma clara, delimitá-lo no interior da narrativa: sua motivação pode ser ideológica, mas é essencialmente temática. Há no parágrafo outra manifestação do DIAC que corresponde à enunciação da carta recebida por Silvio Santos escrita por Orlando Dorsa:

Nela, o apresentador é tratado “como o esperado messias”, que reuniria “todas as condições de dar continuidade à majestosa e irreversível administração de Jânio da Silva Quadros, à frente da municipalidade da nossa querida Capital”. (MORGADO, 2017, p. 143).

O discurso de outrem, no caso, de Orlando Dersa, é usado por Morgado (2017) no contexto epistemológico do tema política, donde o autor cita a carta e o discurso de Dorsa de maneira bem delimitada na trama narrativa entre aspas. O pronome relativo “que” está presente também e marca de forma visível o discurso indireto. O conteúdo da carta é político e coloca Silvio Santos como o sucessor de Jânio Quadros. É usada a expressão metafórica “esperado messias”. Trata-se também de um eufemismo, por considerar Silvio Santos como um “salvador” do partido para a eleição. É, portanto, discurso indireto analisador do conteúdo (DIAC), já que Morgado (2017) utiliza personagens e suas falas a serviço de sua orientação semântico-temática ao desenvolver o capítulo sobre Silvio Santos na política, que respeita uma ideologia: o tema política. A última manifestação, no mesmo parágrafo, do discurso de outrem, advém de um discurso direto: o discurso direto preparado: “Depois de ler essas palavras, o dono do SBT ligou para Dorsa perguntando se ele tinha algum partido. A resposta foi positiva: tratava-se do Partido da Frente Liberal, PFL.” (MORGADO, 2017, p. 143). O discurso direto preparado (DDR) se caracteriza pelas fronteiras, que correspondem ao discurso de outrem, ficarem bastante esmaecidas. Isso se dá, provavelmente, pelas apreciações do autor que prepara o leitor para o discurso direto: “A resposta foi positiva”. 237

Quando Morgado classifica a resposta como positiva, trabalha com juízo de valores. Por que filiar-se ao PFL seria positivo? A própria resposta ao telefonema de Silvio Santos – “tratava- se do Partido da Frente Liberal, PFL.” (MORGADO, 2017, p. 143) – não deixa claro no interior do contexto narrativo se quem fala é Dorsa, que dá essa resposta ao telefonema de Silvio, ou se trata-se de uma segunda apreciação de Morgado (2017) – por exemplo, o partido liberal era a melhor opção. A voz é concomitantemente de Morgado (2017) e de Dorsa. Morgado (2017) prepara o discurso com a apreciação de que a resposta de Dorsa ao telefonema fora “positiva” e o próprio autor responde que a resposta era positiva por se tratar do PFL. O DIAC aparece em outro parágrafo acrescido por outra variante: o discurso indireto livre (DIL). Vejamos o parágrafo:

Em 21 de fevereiro 1988, Silvio voltou para diante das câmeras. Fazia um mês que não animava programas ao vivo. Estava mais magro, usando anel e pulseira, com penteado diferente e nova plástica no rosto. Transformou o show de calouros em um espaço em que jurados, telespectadores por telefone, convidados e plateia poderiam lhe fazer qualquer pergunta, respondidas, uma a uma, com surpreendente franqueza. Contou, por exemplo, que no dia anterior havia recebido uma ligação de Daniel Filho, então diretor da Globo, ameaçando tirar Mara Maravilha do SBT: assumiu que escondia suas filhas e seu verdadeiro estado civil para pousar como galã; disse acreditar em reencarnação; e até contou que perdeu a virgindade com uma prostituta. Também anunciou que deixaria os palcos em 1990 e que até lá, passaria de forma gradual o comando de seu programa para Gugu, que havia recontratado alguns dias antes. Com o espaço que abriria em sua agenda, desejava fazer “alguma coisa útil para a comunidade”, mas não sabia o quê. A única certeza que expressou naquela noite era a de que não entraria na política. (MORGADO, 2017, p. 142).

Morgado (2017), por meio do discurso indireto, delimita, no interior do contexto narrativo, a voz de Silvio Santos (em negrito). Trata-se do discurso indireto analisador do conteúdo (DIAC), dessa vez, utilizado como ferramenta literária na biografia-reportagem para serviço da orientação temática e semântica do autor, que altera o diálogo interno à narração biográfica – política – e expõe particularidades biográficas de Silvio com um intuito ideológico: contar e justificar como e por que Silvio Santos tentou candidatar-se, embora, segundo o autor, naquela noite Silvio tinha expressado que não tinha intenção de entrar para política. “Com o espaço que abriria em sua agenda, desejava fazer ‘alguma coisa útil para a comunidade’, mas não sabia o quê. A única certeza que expressou naquela noite era a de que não entraria na política.” (MORGADO, 2017, p. 142). Nesse final de parágrafo, apresenta-se uma das manifestações de discurso indireto livre (DIL). 238

A voz de Silvio, que está entre aspas – “alguma coisa útil para comunidade” –, se não estivesse marcada pelas aspas, confundir-se-ia com a voz de Morgado (2017). Mesmo com as aspas, associado à sentença seguinte – “A única certeza que expressou naquela noite era a de que não entraria na política” (MORGADO, 2017, p. 142) –, confundem-se a voz de Silvio e a de Morgado (2017). Pode ser considerado discurso indireto livre pela concepção de Tobler (1887): uma mistura entre discurso direto e discurso indireto. Todavia, para dialogarmos com a concepção de Tobler (1887), necessitaríamos considerar a voz de Silvio entre aspas como discurso direto, o que não é o caso. Aproxima-se mais a expressão “alguma coisa útil para comunidade” do discurso indireto analisador da expressão (DIAE). Segundo Bakhtin/Volóchinov (2009 [1929]), o discurso indireto livre (DIL) se dá pela apropriação ativa de uma enunciação que é de outrem, ou seja, se dá pela interação entre o discurso narrativo e o discurso citado. “Com o espaço que abriria em sua agenda, desejava fazer ‘alguma coisa útil para a comunidade’, mas não sabia o quê.” (MORGADO, 2017, p.142). Essa sentença, a partir da explicação do círculo de Bakhtin, que considera que o falante – nesse caso, Morgado (2017) – , ao contar fatos passados (verbos – abriria, desejava, sabia), introduz a enunciação de Silvio, “fazer” “alguma coisa útil para a comunidade”, com o intuito de mostrar que o tempo presente é imperfeito, ou seja, é contemporâneo dos acontecimentos que são relatados. A sentença que se segue – “A única certeza que expressou naquela noite era a de que não entraria na política.” (MORGADO, 2017, p.142) – nasce de um discurso indireto de Morgado (2017), amparado pelo pronome relativo “que”, acompanhado pela preposição “de” por uma questão de regência. A voz de Silvio nessa sentença está oculta, velada, como acredita Kalepky (1899) ser característica do discurso indireto livre. É como se Silvio Santos tivesse dito: “eu não entrarei para a política”. Mas quem disse que Silvio disse isso, não foi Silvio, foi Morgado (2017). Confunde-se a voz do autor com a voz da personagem na tessitura narrativo- biográfica, que goza de uma dualidade enunciativa. Na mesma construção sintática, manifestam-se duas vozes diferentes: a voz de Silvio e a voz de Morgado (2017). Vejamos outro exemplo de discurso indireto livre:

Silvio demorou mais de três meses para registrar por escrito que aceitava participar da convenção do PFL e lançar-se candidato a prefeito. Tarde demais. A carta na qual documentava sua decisão foi, inclusive, devolvida por Inocêncio Erbella. Muitos dos que, no começo, se mostravam entusiasmados com a entrada do animador já tinham se arrependido. Eles não gostaram nada de Silvio declarar que não faria qualquer concessão aos partidos. (MORGADO, 2017, p. 144). 239

Podemos dizer que o DIL, nesse caso, se dá pela anastomose entre os discursos direto e indireto, representados respectivamente pelo verbo dicendi “declarar” e pelo pronome relativo “que”. A voz de Silvio se confunde com a de Morgado (2017). Olhemos toda a sentença: “Eles não gostaram nada de Silvio declarar que não faria qualquer concessão aos partidos.” (MORGADO, 2017, p. 144). Quem declarou que não faria qualquer concessão aos partidos? Silvio ou Morgado (2017)? Morgado (2017), em sua narração, parece querer dizer que Silvio declarou que não faria nenhuma concessão aos partidos. Outro exemplo na narração biográfica de Morgado (2017) de discurso indireto livre está também na junção do discurso indireto com o discurso direto na seguinte sentença: “Apesar de ter dito em diferentes entrevistas que tornar-se dono de televisão nunca esteve em seus planos, essa ideia começou a ser ventilada ainda nos anos 1960, poucos anos depois de ter lançado o Programa Silvio Santos.” (MORGADO, 2017, p. 99). Trata-se da “apreensão ativa da enunciação de outrem.” (BAKHTIN/VOLÓCHINOV, 1929/2009, p. 182). Isso, para os autores, é entendido como discurso indireto livre, ainda que proveniente de uma intertextualidade manifesta “acidentada” (FAIRCLOUGH, 2001, p. 137). Silvio Santos, como autor, é competente em trabalhar as intertextualidades manifesta e constitutiva. Por isso, aparecem incidências em seus enunciados também de discurso indireto livre. Declarações dadas a veículos de comunicação que circulam pelo formato gráfico e imagético, preponderantemente formatados pela escrita, materializam, nas falas de Silvio – publicadas pela forma escrita – esse dialogismo de coloração pouco linear. Um exemplo de discurso indireto livre (DIL) está nesse enunciado de Silvio publicado pela Folha de S. Paulo em 21 de fevereiro de 1988: “Jô Soares foi nossa grande conquista. Ele veio trazer aquele chantili que, dizem as classes pensantes, faltava no nosso pudim.” (MORGADO, 2017, p. 128). Mas, dentre os enunciados de Silvio que mais dialogam com o discurso indireto livre, pela concepção de Bally (1912), encontra-se esse:

Vejo [os filmes] com minha mulher e faço os cortes, aqui mesmo, nesta sala. Em A Escolha de Sofia, por exemplo, o rapaz pegava a moça, levava para o campo, deitava na grama e ficava lá: ah, ah, ah! Corta, corta, vamos cortar esse troço. Ele vai com a moça para o campo e, no dia seguinte, aparece dizendo “que foi maravilhoso e tal”. Todo mundo já sabe que houve sexo. – Jornal do Brasil, 14 de fevereiro de 1988. (MORGADO, 2017, p. 128). 240

Nesse excerto acontece separadamente o discurso direto “deitava na grama e ficava lá: ah, ah, ah!” (MORGADO, 2017, p. 128); o discurso indireto livre, composto pelos discursos direto e indireto “Ele vai com a moça para o campo e, no dia seguinte, aparece dizendo ‘que foi maravilhoso e tal’.” (MORGADO, 2017, p. 128). É discurso direto pela marcação das aspas e a presença do verbo dicendi no gerúndio “dizendo” e, concomitantemente, discurso indireto marcado pelo “que”: foi a personagem e o próprio Silvio que disseram “que foi maravilhoso e tal”. Todavia, é a sentença: Corta, corta, vamos cortar esse troço, que nos chama mais atenção. Trata-se do que Bally (1912) considera como uma forma extremada do discurso direto, com a queda do “que”. E, portanto, “Style indirect libre.” (BAKHTIN/VOLÓCHINOV, 1929/2009, p. 185). Não se sabe se quem diz “corta, corta...” é a mulher de Silvio ou o próprio Silvio. Entretanto, embora não haja uma indicação clara, sabemos que é o Silvio que está dizendo “corta...”. Esse enunciado de Silvio Santos é inteiramente dialógico e dialoga igualmente com a conceituação de Lerch (1914), donde o fato relatado e o discurso de outrem emanam do próprio autor, neste caso, Silvio Santos. Há uma vivacidade que é expressa no conteúdo do enunciado: Silvio é personagem, é autor e – no conteúdo do enunciado – é também editor. É o que Lorck (1921) chamou de “Discurso vivido.” (BAKHTIN/VOLÍCHINOV, 1929/2009, p. 189). Ao olharmos a sentença: “Ele vai com a moça para o campo e, no dia seguinte, aparece dizendo ‘que foi maravilhoso e tal’.” (MORGADO, 2017, p. 128), concluímos que esse discurso indireto livre é uma representação da personagem, o homem no filme, e de Silvio Santos, expressa de forma direta dentro de seu próprio discurso. Essas manifestações do DIAE, do DIAC, do DII, do DDP e do DIL são características do estilo pictórico. Trata-se de fronteiras discursivas assimétricas, apreciações do autor no limiar da narrativa, contornos pouco delineados que definem esse estilo em oposição ao estilo linear. Segundo Castro (2014), o discurso direto retórico (DDR) é uma das raras manifestações do estilo linear na literatura. O DDR personifica e reproduz nos textos literários, as conversas do dia a dia, as interações verbais, que são preparadas por perguntas ou exclamações de caráter retórico, que comumente aparece como discurso direto, diálogo e discurso compartilhado por personagem e autor. Vejamos esse exemplo:

Silvio sempre deixava o mais surpreendente para o final: ensinar aos eleitores como deveriam votar nele. 241

A maior dificuldade minha é que meu nome não aparece na cédula. Vocês que desejam votar em mim não vão encontrar o nome de Silvio Santos na cédula. Aqui está a cédula, vocês estão vendo? O nome de todos os candidatos. Agora, quem pretende votar no Silvio Santos, quem confia no Silvio Santos, quem quer dar seu voto para Silvio Santos, deve marcar um X no 26. Então, 26, Corrêa. Só que não é Corrêa. É 26, Silvio Santos. (MORGADO, 2017, p. 150).

Trata-se de um discurso de Silvio Santos para a TV em que Silvio pede votos e explica como votar nele. Esse discurso de Silvio é preparado por um discurso direto preparado (DDP) “Silvio sempre deixava o mais surpreendente para o final: ensinar aos eleitores como deveriam votar nele.” (MORGADO, 2017, p. 150). O discurso direto preparado de Morgado (2017) serve como artifício para preparar e inaugurar o discurso direto de Silvio. O discurso de Silvio tem uma plasticidade única, delineado com um contorno bem definido, citado fora do corpo da narração e preparado pelo DDP, que o antecede. Trata-se de uma singularização, de um exemplo do estilo linear por discurso direto retórico (DDR). Vejamos outro exemplo na biografia-reportagem:

Assim, Silvio realizava seu antigo desejo de oferecer médicos e hospitais a preços acessíveis para as camadas populares. O sucesso de vendas foi imediato, mas acabou provocando uma forte dor na consciência. Certo dia, ao chegar em casa, encontrou na calçada um casal em prantos. O pai disse: – Seu Silvio, o meu filho morreu... – Mas morreu de quê? – Eu tinha o Clam e ele morreu. – O Senhor sabe, eu não tenho culpa, eu não sou médico. – Não, eu sei, mas o meu filho morreu. (MORGADO, 2017, p. 24).

Esse excerto equivale a um diálogo real, pois é separado do corpo da narração e, portanto, seu estilo, é retórico, direto e linear. Castro (2014) considera essas entabulações discursivas de perguntas ou exclamações retóricas as falas das personagens e do narrador, que se estabelecem por aspas ou travessões, provenientes do discurso direto: discurso direto retórico (DDR). Esse diálogo acima (em negrito) advém de um discurso direto retórico, que é preparado pela narrativa biográfica e goza também de outra particularidade: a presença do discurso citado antecipado e disseminado oculto (DCADO). É uma interferência discursiva: “Assim, Silvio realizava seu antigo desejo de oferecer médicos e hospitais a preços acessíveis para as camadas populares. O sucesso de vendas foi imediato, mas acabou provocando uma forte dor na consciência.” (MORGADO, 2017, p. 24). Trata-se de uma adjetivação do que 242

Silvio Santos teria sentido “forte dor na consciência”. Essa sentença parece ter saído da consciência do próprio Silvio Santos – e, de fato saiu, como podemos verificar nesse enunciado abaixo:

[Após o fim do Clam] Imaginei um outro plano de capitalização, que não trouxesse nenhum problema de consciência e que pudesse salvar os meus negócios. – A criação, em 1991, da Tele Sena. Carta ao tribunal Regional Federal em São Paulo, 17 de janeiro de 2000. Trecho reproduzido pela Folha de S. Paulo, 13 de maio de 2000. (MORGADO, 2017, p. 45).

Silvio disse ter “problema de consciência”, mas não forte dor na consciência. Todavia, trata-se da descrição de uma postura, de um caráter, de uma visão do mundo, que é inerente a personagem, imanente a Silvio Santos. Trata-se de um desenho da personalidade de Silvio Santos pelo discurso do autor e, simultaneamente, do discurso do próprio Silvio Santos, que trabalham concomitantemente. O estilo linear advindo do discurso direto retórico (DDR) acontece algumas vezes no livro e, portanto, não é exagero afirmar que a biografia-reportagem de Silvio Santos goza da escolha autoral das figuras de linguagem, características de um estilo com base literária e também de ambos os estilos: o linear e o pictórico.

5.3.3 A construção composicional

A construção composicional, ou dispositio, “que é o que Bakhtin chamaria de construção composicional” (FIORIN, 2015, p. 233), é a forma que organiza o discurso. Na retórica clássica, a dispositio ajuda a ordenar e aplicar os argumentos; todavia, os argumentos são levantados na inventio retórica, donde se buscam as provas retóricas de argumentação. Entretanto, como em nossas análises não fizemos o levantamento das provas retóricas, por meio da inventio, duas categorias da dispositio tornam-se pouco realizáveis nesta análise: a confirmação e a digressão. Analisaremos, portanto, a construção composicional da biografia-reportagem por meio de três categorias da dispositio retórica: o exórdio, a narração e a peroração. Essas categorias assemelham-se ao que entendemos por introdução, desenvolvimento e conclusão. Não raro, em biografias e autobiografias canônicas, há um prefácio – no caso de biografia de biografado vivo –, escrito pelo autor-orador, que conta suas relações com o biografado – se foi uma relação próxima ou distante, se teve autorização tácita ou não, 243

entrevista com o biografado etc. Na autobiografia, o prefácio é escrito pelo autor autobiográfico e se resume, geralmente, a vida do autor-orador a partir de um clímax motivador para a o desenvolvimento de todo o texto. Os prefácios diferem de autor para autor: uns recebem título, outros abrem o livro com enunciados, outros intitulam a abertura como prefácio e assim por diante. A biografia-reportagem também tem uma introdução prefacial, que chamaremos de exórdio deste gênero discursivo. O exórdio da biografia-reportagem é bipartido. É um capítulo e é uma introdução; foi intitulado como capítulo 1, O homem por trás do sorriso. O autor-orador conta resumidamente a história do início da vida de Silvio Santos sob uma perspectiva do profissional, o menino comerciante, o locutor, o animador, mas, principalmente, a vida do homem de negócios. Curiosamente, no mesmo capítulo, o autor-orador faz sua exposição discursiva. Nas palavras do autor:

Silvio Santos – A trajetória do mito reúne centenas de frases desse artista e empresário, ditas desde os anos 1950. Elas foram organizadas em cinco blocos temáticos: “Negócios”, “Artista”, “Dono de televisão”, “Política” e “vida pessoal.” Cada bloco tem subdivisões a fim de auxiliar a leitura e a consulta. Ao final, foi incluída uma breve linha do tempo que relaciona os principais acontecimentos da vida de Silvio Santos. (MORGADO, 2017, p. 12).

Trata-se de uma estratégia prefacial diferenciada, já que a vida do Silvio Santos, por si só, é um argumento substancial e atrativo para inspirar a leitura do livro. Contudo, é no segundo momento, do exórdio bipartido, que saberemos o que realmente vamos ler. O autor prende a atenção do leitor com a vida de Silvio Santos e depois, em seguida, expõe o tema do livro e como ele está disposto. Na primeira fase do exórdio, o autor-orador discorre sobre Silvio. Vejamos um momento:

Entre o artista e o empresário está o homem. Carioca, casado, pai de seis filhas e que se declara conservador, apesar de comandar uma rede de emissoras que, por diversas vezes, deixou de lado qualquer conservadorismo na hora de lutar por mais pontos de audiência. (MORGADO, 2017, p. 10).

Na segunda fase do exórdio – chamado de capítulo 1 em ambas as fases –, Morgado (2017) apresenta a disposição da biografia-reportagem. 244

Vejamos o exórdio na fase dois:

Silvio Santos – A trajetória do mito reúne centenas de frases desse artista e empresário, ditas desde os anos 1950. Elas foram organizadas em cinco blocos temáticos: “Negócios”, “Artista”, “Dono de televisão”, “Política” e “vida pessoal.” Cada bloco tem subdivisões a fim de auxiliar a leitura e a consulta. Ao final, foi incluída uma breve linha do tempo que relaciona os principais acontecimentos da vida de Silvio Santos. É importante ressaltar que não se trata de um compilado de bordões. As falas não estão necessariamente dispostas em ordem cronológica de publicação, pois Silvio, em diversos momentos, refere-se a acontecimentos passados, como a sua infância no Rio de Janeiro ou o seu começo no rádio paulistano, por exemplo. A sequência foi construída de modo a revelar ao leitor como o pensamento do dono do SBT se desenvolveu ao longo dos anos. Esse desenvolvimento, por vezes, expõe contradições, o que torna a leitura desta obra ainda mais reveladora, mesmo para aqueles que já conhecem os principais lances da trajetória de Silvio Santos. Por fim, cumpre acentuar que todas as citações foram trabalhadas com a maior fidelidade possível aos registros originais. Contudo, revisões pontuais, comuns a prática jornalística, foram feitas em períodos extraídos de longos discursos de improviso, feitos no calor da emoção e que, por isso mesmo, não se mostraram integralmente claros ou gramaticalmente corretos quando transcritos. O organizador dedicou seu máximo empenho a fim de preservar as palavras ditas originalmente e, sobretudo, o sentido com o qual foram empregadas. (MORGADO, 2017, p. 12).

Se assentarmos a biografia-reportagem em um gênero retórico clássico, poderíamos afirmar que ela se aproxima mais do gênero epidítico e/ou laudatório. O tom de Morgado (2017) é, em sua maioria, no livro, elogioso. Todavia, ao se assentar o planejamento do livro de Morgado (2017) na hibridização da biografia com a reportagem, essa padronização responde a um gênero do discurso: a biografia-reportagem. Morgado (2017) busca no gênero epidítico a primeira fase de seu exórdio: é elogioso ao falar de Silvio. Olhemos alguns excertos sob essa perspectiva do gênero epidítico no exórdio:

Independentemente de se considerar mais comerciante ou mais artista, o profissional Senor Abravanel conhecido pelo nome de Silvio Santos, cristalizou-se como elemento relevante da cultura popular. Qualquer brasileiro sabe cantarolar a música que anuncia seu programa, imitar sua gargalhada e repetir os seus bordões. Muitos pontuam fases da vida com as atrações apresentadas por ele e sonham com a fortuna prometida em seus programas. (MORGADO, 2017, p. 09).

Trata-se de um argumento elogioso. O verbo cristalizar tem como sinônimo o verbo solidificar; o que Morgado (2017) quer dizer é que Silvio Santos está solidificado como elemento significativo da cultura popular brasileira. É um bom argumento para a introdução de uma biografia. 245

No segundo parágrafo dessa primeira fase do exórdio, Morgado (2017) tece mais elogios ao “Patrão”:

De fato, Silvio Santos é um comerciante. Vende sonhos embalados em um sorriso que, diante das câmeras, parece indestrutível. Contudo, ele vai além. Graças a sua persistência e, porque não dizer, insistência, construiu uma carreira que dura mais de sete décadas, sendo cinco delas à frente do programa de televisão que leva seu pseudônimo. Chegou a animar mais de dez horas ao vivo, entremeando sorteios milionários com gincanas infantis, brincadeiras com artistas, desafios ao conhecimento, câmeras escondidas, oportunidades para calouros, números musicais e pedidos de namoro. Forjou um estilo que resiste a variedade e ao tempo. Serve de exemplo para outros apresentadores que desejam alcançar um sucesso tão reluzente quanto são as joias usadas pelo Patrão, um dos apelidos de Silvio. (MORGADO, 2017, p. 09-10).

Morgado (2017) diz primeiro que Silvio “vende sonhos”. Sua construção discursiva elogiosa se dá progressivamente. É a partir da segunda linha que o elogio aparece mais nitidamente com a adjetivação do “sorriso” de Silvio, que é, segundo Morgado (2017), “indestrutível” diante das câmeras. Depois, o autor-orador utiliza as palavras “persistência” e “insistência”, que antecedem a sentença: “construiu uma carreira que dura mais de sete décadas”. “Chegou a animar mais de dez horas ao vivo”; “estilo que resiste a variedade e ao tempo”; “Serve de exemplo”. A primeira fase do exórdio tenta, portanto, conquistar a adesão do leitor, pela história vitoriosa de Silvio Santos, regada por escolhas lexicais e argumentos elogiosos de natureza persuasiva. A segunda fase do exórdio nos dá uma pincelada da dispositio do livro. Enverada pela questão do planejamento. Contudo, também tenta prender a atenção do leitor e ganhar sua adesão, como podemos perceber no segundo parágrafo:

É importante ressaltar que não se trata de um compilado de bordões. As falas não estão necessariamente dispostas em ordem cronológica de publicação, pois Silvio, em diversos momentos, refere-se a acontecimentos passados, como a sua infância no Rio de Janeiro ou o seu começo no rádio paulistano, por exemplo. A sequência foi construída de modo a revelar ao leitor como o pensamento do dono do SBT se desenvolveu ao longo dos anos. Esse desenvolvimento, por vezes, expõe contradições, o que torna a leitura desta obra ainda mais reveladora, mesmo para aqueles que já conhecem os principais lances da trajetória de Silvio Santos. (MORGADO, 2017, p. 12).

Nota-se uma intenção de falar diretamente com o leitor. Morgado (2017) deixa o livro mais interessante ao propor uma sequência que vai “revelar”, “expor contradições”, o que propicia a leitura da obra uma atividade ainda mais “reveladora”. 246

No exórdio, o autor-orador não deve prometer aquilo que não irá cumprir e de fato, há algumas contradições nas falas de Silvio. Ou seja, Silvio revê suas opiniões formadas e formatadas constantemente, às vezes, inclusive, se contradizendo. Vejamos um exemplo nesses dois excertos incluídos na mesma página da mesma seção:

Eu não sou obrigado a entender de perfumaria, de banco. Eu não! Isso aí eu boto dinheiro, pago bem os profissionais e eles têm que me dar resultados. E, às vezes, falham. Desta vez, falhou. – Referindo-se ao caso do Banco PanAmericano. Folha de S. Paulo, 12 de novembro, 2010. (MORGADO, 2017, p. 46).

Essa é a contradição, que foi vinculada pela TV Globo em 31 de janeiro de 2011: “Eu vendi. Se não entendo de banco, pra que vou ficar com banco?” (MORGADO, 2017, p. 46). Morgado (2017) cumpriu o que prometeu no exórdio reunindo contradições: “Esse desenvolvimento, por vezes, expõe contradições, o que torna a leitura desta obra ainda mais reveladora...” (MORGADO, 2017, p. 12). Dessa forma, Morgado (2017) cativa o leitor, lhe parecendo agradável e honesto. Embora o autor-orador da biografia-reportagem de Silvio nos conte como será a disposição do livro, ele o faz de forma parcial, ou melhor, de forma sucinta, como deve ser uma introdução:

Silvio Santos – A trajetória do mito reúne centenas de frases desse artista e empresário, ditas desde os anos 1950. Elas foram organizadas em cinco blocos temáticos: “Negócios”, “Artista”, “Dono de televisão”, “Política” e “vida pessoal.” Cada bloco tem subdivisões a fim de auxiliar a leitura e a consulta. Ao final, foi incluída uma breve linha do tempo que relaciona os principais acontecimentos da vida de Silvio Santos. (MORGADO, 2017, p. 12).

Morgado (2017), no desenvolvimento do livro, cumpre o que está aí descrito (em negrito). Entretanto, a construção composicional da biografia reportagem não é só isso. O autor-orador faz uso de uma coerência, que não sabemos ser pensada ou instintiva: a narração, ou seja, o desenvolvimento da biografia-reportagem também é bipartido, assim como sua conclusão, sua peroração. Na narração, Morgado (2017) expõe os fatos sobre a vida de Silvio em forma de narrativa. Essa narrativa é complementada com informações sobre a vida de Silvio Santos narrada por ele mesmo: enunciados de Silvio reunidos e organizados por Morgado (2017). A 247

narração é bipartida por se acomodar estruturalmente na narrativa biográfica, voz de Morgado (2017) e nos enunciados de Silvio Santos, voz de Silvio. Olhemos os exemplos, em cada capítulo, da construção composicional da biografia- reportagem em seu desenvolvimento, ou seja, na narração.

Capitulo 2: Negócios.

Ainda em setembro, no dia 22, Silvio foi a Brasília ter uma reunião com o então presidente Lula. Havia 16 anos que o apresentador não entrava no Palácio do Planalto. Na última vez, ainda era Itamar Franco quem estava lá. O encontro foi marcado às pressas, ocupando um horário antes reservado para Henrique Meireles, então presidente do Banco Central. Aos jornalistas, Silvio disse que foi pedir ao presidente que participasse do Teleton, discursando na abertura do programa e doando R$ 12 mil, ou seja, mil para cada ano da campanha da AACD. Somente algumas semanas depois dessa reunião é que a crise do PanAmericano se tornaria pública. (MORGADO, 2017, p. 27).

Silvio Santos por ele mesmo.

Se eu for à falência (não é drama), não vou poder andar na rua. Já vi outros empresários com uma história igual. Confiaram em homens do governo, fracassaram e “perderam” tudo. Eu não vou fracassar, porque Deus vai decidir, usando os doutores juízes como seus instrumentos. – Carta ao Tribunal Regional Federal em São Paulo. 17 de janeiro de 2000. Trecho reproduzido pela Folha de S. Paulo, 13 de maio de 2000. (MORGADO, 2017, p.45- 46).

O clímax desse capítulo é a crise do Banco PanAmericano. O fato é descrito em detalhes, tanto no conteúdo quanto nos fatos. O próprio Silvio Santos acrescenta sobre o fato em carta para Luiz Sebastião Sandoval: “O que aconteceu foi inexplicável até para especialistas.” (MORGADO, 2017, p. 46). Segundo Ferreira (2010), os fatos com suas causas enunciadas estão no âmbito do judiciário, os exemplos no âmbito do deliberativo e as qualidades ressaltadas no epidítico. O caso do banco PanAmericano, na narrativa biográfica, emana dos três gêneros clássicos retóricos: a causa enunciada (judiciário) é a quebra do Banco Pan Americano que poderia levar Silvio Santos a falência. Os exemplos (deliberativo) são os fatos que levaram o banco a quebrar: “o Pan Americano vendia sua carteira, mas dava baixa em apenas parte dela, inflamando seu patrimônio líquido.” (MORGADO, 2017, p. 27). E as qualidades ressaltadas resumem-se em como Silvio Santos fez para sair da crise e evitar a falência: “Silvio deu como garantia todas suas 44 empresas, incluindo seu amado SBT. Tal atitude foi bem recebida pelo 248

mercado, que não era acostumado a ver esse tipo de comprometimento.” (MORGADO, 2017, p. 28). Nessa narrativa, da quebra do Banco PanAmericano, Morgado (2017) deixa para o final do capítulo, como de fato lhe convém, por se tratar de um ótimo exemplo argumentativo para justificar o título do capítulo e seu conteúdo. Os fatos são descritos com clareza.

Capítulo 3: Artista.

Outro tipo de sonho que o Programa Silvio Santos se propunha a realizar era o da fama. Desde o lançamento do Cuidado com a Buzina, anônimos mostravam o talento que pensavam ter, mas que, muitas vezes não tinham. Cantores desafinados, por exemplo, eram garantia de gargalhadas do auditório. O espaço mais importante para esse tipo de atração foi, sem dúvida, o Show de Calouros, lançado em 1977. Um dos segredos desse formato era a composição do corpo de jurados, que misturava diferentes perfis. Havia os mal-humorados, como Aracy de Almeida e Pedro de Lara; as bonitas, como Flor e Sonia Lima; os críticos, como Décio Piccinini e Nelson Rubens; os galãs, como Antonio Fonzar e Wagner Montes; e os alegres, como Wilza Carla e Sérgio Mallandro. Para todos eles Silvio Santos atuava como escada, ou seja, preparava a piada para que completassem. Aliás, o próprio Silvio foi alvo de muitas dessas brincadeiras, especialmente as de Sérgio Mallandro, que chegou a disparar ovos de galinha contra todos do programa. O Show de Calouros também incluiu vídeos curiosos sob o título Isto é incrível, piadas contadas por Ary Toledo, paródias compostas e cantadas por Renato Barbosa e entrevistas na sala do artista. (MORGADO, 2017, p. 63-64).

Silvio Santos por ele mesmo.

Dizem que sou o maior animador do país. Isso não é verdade. O carinho, o sacrifício que vocês dedicam é que vale. Vocês são admiráveis, sensacionais, com vocês é fácil fazer programa líder. Durante minha ausência, meu irmão Léo Santos comandou o programa com o mesmo sucesso. Vocês prestigiaram meu irmão como prestigiam semanalmente a mim, porque são barbaras, sensacionais, ilustres. Eu gostaria de poder retribuir de alguma forma, porque não mereço. – Conversa com as suas colegas de trabalho, antes de começar mais uma edição do seu programa dominical. A Crítica, 1969. (MORGADO, 2017, p. 87).

A exposição do autor-orador é clara. Morgado (2017), nesses excertos, se propõe a traçar uma relação entre Silvio Santos e a fama. Morgado (2017) conta alguns acontecimentos. Por exemplo, a brincadeira de Sérgio Mallandro: “Aliás, o próprio Silvio foi alvo de muitas dessas brincadeiras, especialmente as de Sérgio Mallandro, que chegou a disparar ovos de galinha contra todos do programa.” (MORGADO, 2017, p. 63-64). 249

Trata-se de duas narrativas atraentes, tanto a descrição do elenco e das atrações do Show de Calouros, quanto a relação de Silvio com a fama, com o elenco do Show de Calouros, assim como a relação entre Silvio e suas colegas de trabalho, seu auditório. O fato e suas causas (judiciário), nesse capítulo, é o jeito Silvio Santos de comunicar, sua relação com a fama, os programas de TV, a relação com crítica etc. Os exemplos (deliberativo) são seus programas de TV – episódios como o do Sérgio Mallandro, a comoção de Silvio Santos, Barbara Paz e do Brasil na final da Casa dos Artistas, a relação de Silvio com o seu auditório, com seus artistas, com Roque, com Lombardi etc. E as qualidades (epidítico) ficam claras, no enunciado de Silvio na secção Silvio Santos por ele mesmo, donde Silvio demostra simplicidade e humildade em sua conversa com as suas “colegas de trabalho”: “Durante minha ausência, meu irmão Léo Santos comandou o programa com o mesmo sucesso. Vocês prestigiaram meu irmão como prestigiam semanalmente a mim...” (MORGADO, 2017, p. 87).

Capítulo 4: Dono de televisão.

Curiosamente, foi transmitindo futebol que a TVS alcançou pela primeira vez a liderança de audiência: Cosmos versus Santos, em 1 de outubro de 1977, ao vivo dos Estados Unidos. Tratou-se da última partida de Pelé, exibida com exclusividade para o Rio de Janeiro pelo canal 11. (MORGADO, 2017, p. 105).

Silvio Santos por ele mesmo.

Neste momento está no ar a TVS, canal 4 de São Paulo. E muita gente pergunta pra mim: “Ô Silvio Santos, por que TVS? É TV Silvio Santos?”. Bem, é TV Silvio Santos porque, carinhosamente, os cariocas dizem que é. Não sei se os paulistas também vão chamá-la assim. É que nós fazíamos os nossos programas num estúdio chamado Studios Silvio Santos, e, quando o governo nos deu o canal de televisão, este canal ficou sendo a TV dos Studios. Então, a TV Studios. Por esta razão o nome TVS. – SBT, 19 de agosto de 1981. (MORGADO, 2017, p. 123-124).

Trata-se, nesse capítulo, de exposição dos fatos, mais precisamente de fatos ligados à origem do SBT. Morgado (2017) narra esse momento detalhadamente. O fato (judiciário) era que Silvio podia ficar sem seu programa de TV, apresentado na época pela TV Globo, o que poderia resultar no fim do Programa Silvio Santos e, consequentemente, do Baú da Felicidade. A causa (judiciário) foi a concessão do canal 11, atual SBT. Morgado (2017) exemplifica isso (deliberativo) em detalhes: a concessão 250

conseguida no governo Geisel, a compra das ações da Record, o leilão de equipamentos da TV Excelsior – que Silvio comprou –, a concessão para a transmissão de televisão para outros estados, pelo governo Figueiredo etc. As qualidades (epidítico) são expostas não somente pelas habilidades de Silvio como artista, evidentemente, mas, principalmente, sua visão como empresário, que, de fato, propiciou a Silvio Santos a possibilidade de ser dono de televisão.

Capítulo 5: Política.

Finalmente, em 19 de outubro, o animador se encontrou em Brasília com a cúpula do PFL e Aureliano Chaves, que se dispôs a renunciar em seu favor, e Silvio aceitou assumir a candidatura em seu lugar. Mesmo com tudo acertado, no dia seguinte, houve uma reviravolta: irritado com o vazamento da negociação e após conversar com sua família Aureliano comunicou a Hugo Napoleão, presidente nacional do PFL, que tinha desistido de desistir. Silvio ainda tentou conversar com o candidato por telefone, mas não foi atendido. A única forma que encontrou para falar sobre e com ele foi, mais uma vez, usando o Show de Calouros. Dedicou quase uma hora de edição de 22 de outubro para relatar o que havia acontecido nos dias anteriores, tudo temperado com elogios a Aureliano. Exibiu, ainda naquela oportunidade, a íntegra de uma entrevista que havia concedido no dia anterior, quando saia do seu camarim no teatro Silvio Santos. Nada adiantou: Aureliano seguiu na campanha. Com isso, os pefelistas Hugo Napoleão, Edson Lobo e Marcondes Gadelha, apelidados pela imprensa como “os três porquinhos”, partiram em busca de uma nova legenda para o dono do SBT. E com detalhe: faltava menos de um mês para a eleição. (MORGADO, 2017, p. 146).

Silvio Santos por ele mesmo.

O que é um presidente? É um homem como eu. Ele vai ao banheiro, tem dor de barriga, tem dor de dente, tem briga com a mulher, tem que pagar a escola dos filhos e tem trabalho como eu. Eu não consigo ser presidente, como ele não consegue ser animador. Somos dois homens em posições idênticas. – SBT, 21 de fevereiro de 1988. (MORGADO, 2017, p. 158).

O fato na narrativa é que Silvio queria se eleger e a causa (Judiciário) foi a insistência de Silvio, que levou o PFL a se mexer, um candidato a desistir de desistir da eleição e o Homem do Baú a dedicar um tempo do Show de Calouros para tentar convencer Aureliano Chaves a manter sua desistência de eleição. Os exemplos são o Show de Calouros, a entrevista de Silvio Santos no dia anterior, a movimentação dos pefelistas para Silvio se candidatar etc. A qualidade (epidítico) está na persistência de continuar tentando se candidatar e está também na ironia da situação; na construção desse enunciado: “Eu não consigo ser presidente, como ele não consegue ser animador. Somos dois homens em posições idênticas.” (MORGADO, 2017, p. 158); Silvio contextualiza bem a circunstância. 251

Temos, portanto, na narração da biografia-reportagem, em seu desenvolvimento, a narrativa biográfica na primeira fase e os enunciados de Silvio Santos na segunda fase. A primeira fase da narração se dá pelos capítulos Negócios, Artista, Dono de televisão, Política; a segunda fase se dá pela secção Silvio Santos por ele mesmo, presente ao final de cada capítulo. A peroração da biografia-reportagem se dá de maneira tripartida. Começa a ser construída a partir do capítulo 6 Vida pessoal. Se o exórdio é uma fusão entre introdução e capítulo – O homem por trás do sorriso –, o capítulo 6 é um capítulo pertencente ao desenvolvimento, todavia, é concomitantemente um capítulo de conclusão.

Capitulo 6: Vida pessoal.

As reportagens já publicadas sobre Silvio Santos revelaram que ele preservou hábitos simples, mesmo depois de ter ficado rico. Quase não tem vida social, preferindo permanecer em casa ou viajar em família. Não tem as mesmas preocupações com segurança que outros milionários como ele possuem. Até ele e sua filha Patrícia serem mantidos reféns, acreditou que sua fama era suficiente para protegê-lo. Em 30 de agosto de 2001, Silvio foi mantido em cárcere privado dentro de sua própria casa pelo sequestrador de Patrícia, Fernando Dutra Pinto. Durante várias horas, o Brasil e o mundo ficaram com os olhos na TV, que transmitiu tudo ao vivo. O caso só chegou ao fim quando o governador de São Paulo Geraldo Alckmin, atendendo a um pedido feito por Silvio, foi até o local e negociou a rendição do bandido. Conservador, cultiva uma rígida rotina, iniciada por volta das 5 horas da manhã e encerrada às 22h30min. Há quatro décadas tem o cabelo cuidado por Jassa, um de seus maiores amigos e conselheiros. E é mão de vaca, daqueles que espremem o creme dental até o limite de suas forças. Disse acreditar que o ideal é viver como a classe média dos Estados Unidos, seu país de referência não apenas quando pensa em televisão, mas também em saúde, emprego, segurança pública e qualidade de vida. Passa cada vez mais tempo na casa que comprou em Celebretion, na Flórida. Construído pela Disney, esse condomínio nasceu com a promessa de ser a cidade do futuro, ainda que sua arquitetura remeta ao final do século XIX. É lá que Silvio passa os dias como qualquer outra pessoa, lavando louça, fazendo compras no supermercado e assistindo a séries no Netflix. Conforme disse certa vez, Silvio possui três personalidades: o homem comum, que não consegue ser no Brasil; o artista, com pelo menos seis gerações de admiradores; o empresário, responsável por diferentes negócios e milhares de empregos. Dentro dele, esses perfis se misturam de tal forma que não é possível delimitar onde acaba o Senor Abravanel e começa o Silvio Santos. E foi justamente com esse amálgama que cada brasileiro modelou a imagem que tem dele, ainda que ela apresente algumas lacunas deixadas pelo mistério que ele sempre fez questão de cultivar. Alguns podem rejeitá-lo, enquanto outros podem amá-lo, mas ninguém pode ignorá- lo. Ao estudar a vida de Silvio santos, pode-se, mais do que conhecer a vida de um artista, compreender como pensa, age e sente o Brasil popular, que é o verdadeiro Brasil. (MORGADO, 2017, p. 171-173). 252

É por meio de um fechamento do livro pela vida pessoal de Silvio Santos que o autor- orador ratifica tudo o que antes já foi dito na narração biográfica e nos enunciados do próprio Silvio. Mas não se trata apenas de uma ratificação: Morgado (2017) amplifica, por meio da narração da vida pessoal de Silvio, o corpo do livro. O autor-orador conclui o livro com a vida pessoal de Silvio, que, nos termos de uma biografia-reportagem, soa perfeito. Como é esperado na peroração de um texto e/ou discurso, tenta-se despertar paixões. Silvio Santos é um homem querido por todos os brasileiros, e, portanto, Morgado (2017), ao citar o sequestro de Silvio na peroração, desperta no mínimo uma indignação pelo ocorrido. Pode, evidentemente, despertar cólera, principalmente para o próprio Silvio Santos, sua família e seus amigos mais próximos. Mas Silvio, por ser uma figura popular, desperta no brasileiro uma identificação e uma proximidade, que não é difícil encolerizar-se por seu sequestro. O excerto na peroração que cita o sequestro é este:

Em 30 de agosto de 2001, Silvio foi mantido em cárcere privado dentro de sua própria casa pelo sequestrador de Patrícia, Fernando Dutra Pinto. Durante várias horas, o Brasil e o mundo ficaram com os olhos na TV, que transmitiu tudo ao vivo. O caso só chegou ao fim quando o governador de São Paulo Geraldo Alckmin, atendendo a um pedido feito por Silvio, foi até o local e negociou a rendição do bandido. (MORGADO, 2017, p. 171-173).

Na segunda fase da peroração, Silvio Santos por ele mesmo, em sua temática sobre violência, não se estranharia que a indignação do leitor e o aumento de sua cólera pudessem inflar ao ler sobre o sequestro pelas próprias palavras de Silvio Santos. Nas palavras do próprio Silvio:

Eu posso garantir a você que se o governador [Geraldo Alckmin] não fosse ontem até a minha casa, eu tenho certeza, não é um palpite, eu poderia morrer, o Fernando [Dutra Pinto, sequestrador] certamente morreria e mataria três ou quatro policiais que lá estavam. – Jovem Pan, 31 de agosto de 2001. (MORGADO, 2017, p. 175).

Contudo, Silvio Santos também brincou com o próprio drama, despertando outra paixão: o riso. Ainda na segunda fase da peroração, Silvio Santos por ele mesmo, está escrito assim: 253

O sequestro é, para mim, o Show do Milhão, só que o Fernando não comprou a revista. E foi logo apelando para as cartas: mandou uma primeira carta que o Datena leu ela toda na TV Record, mandou mais uma segunda carta, mandou mais a terceira carta... Não tinha mais carta para mandar, ele apelou para os universitários: minha filha, que é universitária, e mais duas universitárias que estavam com ele. Aí não tinha mais universitárias pra ele apelar, então apelou para os pulos: deu o primeiro pulo na minha casa, deu o segundo em Alphaville e deu o terceiro na minha casa de novo. Tava com meio milhão na mão, resolveu arriscar, perdeu tudo. – Contando piada sobre o próprio sequestro. SBT, 26 de outubro de 2001. (MORGADO, 2017, p. 176).

Esse enunciado de Silvio é bem interessante porque, além de ser bem-humorado, tem bastante traço de oralidade – Tava, Aí – e ainda a figura retórica reticências. Morgado (2017) usa da afetividade para a sua peroração, tanto na organização dos enunciados de Silvio, quanto na sua narrativa biográfica. Em sua peroração, o autor-orador tenta encurtar a distância entre o leitor que se interessa pela vida de Silvio Santos, homem do dia a dia, popular, brasileiro, que deseja ficar rico, desenhando o Homem do Baú como alguém de “hábitos simples”, “rotina rígida”, “homem comum” etc. Na segunda fase da peroração, como último enunciado de Silvio, apresentam-se essas palavras:

Eu quero agradecer a vocês por terem vindo e terem escutado toda essa minha história. Porque o livro que o Arlindo [Silva], um grande amigo meu, ele fez por conta própria e eu fiquei muito contente. [...] Mas se tivesse que contar a minha história desde os 14 anos, quando eu comecei a minha vida de camelô, ou desde a escola pública, quando eu comecei a vender doces no recreio, eu acho que dariam três ou quatro volumes. – SBT, 21 de agosto de 2011. (MORGADO, 2017, p. 187).

Dizemos que a peroração é tripartida porque apresenta, além do capítulo 6 Vida pessoal e a secção Silvio Santos por ele mesmo, ainda um adendo: uma cronologia. Essa cronologia insere a vida de Silvio de 1930 a 2016. Nos anos 30 nasce o Homem do Baú; em 2016, Silvio é tema da exposição: Silvio Santos vem aí, no Museu da imagem e do som de São Paulo. A cronologia é uma novidade no gênero biográfico. Pode ser considerada como uma característica particular do gênero do discurso biografia-reportagem. Essa característica especial compõe a peroração deste gênero, nesse caso. Em suma: 254

A enunciação da biografia-reportagem é representada pelo suporte do livro. A narrativa biográfica e as falas de Silvio, sejam vinculadas pelo SBT, por jornais, revistas ou livros, é o produto dessa enunciação, ou seja, é seu enunciado. Segundo Bakhtin (2010), todo enunciado goza de relativa estabilidade em determinado campo de atividade humana, não apenas pelo seu conteúdo temático, mas também pelo seu estilo verbal e, sobretudo, pela sua construção composicional. A biografia Silvio Santos – A trajetória do mito é dispersa, no bom sentido; é volúvel e infrequente por apresentar uma transitividade nada estável entre dois gêneros do discurso que se complementam. O conteúdo temático da biografia-reportagem implica fatores extralinguísticos como a recepção, a produção e a circulação. No interior da enunciação de Morgado (2017), há evidentemente fatores linguísticos de caráter morfológico e sintagmático, que se apresentam no todo do enunciado; entretanto, esses fatores linguísticos estão a serviço de um construto maior, um signo ideológico, o tema. Silvio Santos – A trajetória do mito trata-se de recepção: como Morgado (2017) recebeu os enunciados do “patrão” e, a partir daí, produziu o livro, por meio da intertextualidade manifesta. Todavia, esses enunciados gozavam de temas, que Morgado (2017) organizou no livro. Esses enunciados de Silvio tiveram uma circulação na mídia anterior à composição da biografia-reportagem, que estão inseridos em veículos de movimentação socioprofissional da esfera de atividade humana jornalística que, portanto, anteveem os temas referentes a vida de Silvio. Esse conteúdo temático foi reorganizado de maneira ideológica na biografia- reportagem de Morgado (2017). O conteúdo temático está ligado aos temas negócios, artista, dono de televisão, política, vida pessoal, que não acontecem discursivamente de forma isolada, como entendem por unidade temática os formalistas russos. O significado da biografia-reportagem está, sim, apropriadamente ligado à estrutura da língua, por palavras, frases, períodos; contudo, o tema está indissoluvelmente inseparável do enunciado – seja na narrativa biografia, seja nas palavras de Silvio Santos – do extrato fundamentalmente linguístico. Por extrato linguístico entendemos o estilo verbal da biografia-reportagem de Morgado (2017), que é riquíssimo. O estilo emana, nesse caso, do jogo verbal, da transitividade temporal dos verbos – principalmente nos primeiros capítulos –, das figuras retóricas de linguagem, da anastomásia, da metáfora, da enálage, da perífrase, da hipérbole, do oximoro, da lítotes, assim como o discurso de outrem e/ou discurso citado: o discurso direto retórico (DDR), o discurso direto preparado (DDP), o discurso indireto analisador da 255

expressão (DIAE), o discurso indireto analisador do conteúdo (DIAC), o discurso indireto impressionista (DII), o discurso citado antecipado e disseminado oculto (DCADO) e o discurso indireto livre (DIL). Compreendemos que, pela rica manifestação dos discursos indiretos e do discurso direto retórico, além do discurso indireto livre, a biografia-reportagem emana simultaneamente de um estilo linear e pictórico; todavia, há uma hegemonia do discurso pictórico sobre o discurso linear. Se considerarmos, no entanto, a intertextualidade manifesta como estilo linear e a intertextualidade constitutiva como estilo pictórico, teremos uma incidência maior do estilo linear em sobreposição ao estilo pictórico. É, portanto, sensato, considerarmos a biografia-reportagem heterogênea, constitutiva, concomitantemente, de um estilo linear e de um estilo pictórico. Silvio Santos – A trajetória do mito apresenta uma construção composicional diferenciada: sua disposição, concretizada pelo exórdio, pela narração e pela peroração investem em uma estrutura biográfica não canônica. A construção que se equivaleria ao prólogo, de estrutura biográfica canônica, é, na biografia-reportagem, de forma simultânea, capítulo e introdução. Os capítulos subsequentes da narração são construídos por narrativa biográfica e por uma novidade: a voz do próprio biografado. Cada capítulo – Negócios, Artista, Dono de televisão, Política – são acrescidos por enunciados do biografado na secção Silvio Santos por ele mesmo. A peroração é organizada em três partes: é um capítulo de narrativa biográfica – Vida pessoal –; é a seção de enunciados de Silvio relacionados à vida pessoal e, por fim, uma cronologia que conta a vida de Silvio Santos de forma breve desde a década de 1930. No exórdio, portanto, manifestam-se duas partes: uma história resumida de Silvio, que apresenta, em linhas gerais, o biografado e a apresentação da pesquisa feita por Morgado (2017) dos enunciados de Silvio Santos e uma breve exposição de como se deu a organização do livro. É exórdio e capítulo: O homem por trás do sorriso. Na narração, há uma composição bipartida entre a narrativa biográfica e os enunciados de Silvio. E, na peroração, uma composição em três fases: capítulo-peroração, enunciados de Silvio e cronologia. A biografia-reportagem é um gênero do discurso híbrido apassivador de um enunciado instável, donde ora é biografia, ora é reportagem. Está assentado nesse lugar, mestiço, dual, miscigenado, duplo, de exposição da vida e de sua confirmação. A biografia de Silvio, associada aos nichos temáticos, comporta essa exposição contemplativa da vida, que é 256

confirmada por sua fala precursora de toda autoralidade deste gênero discursivo novidadeiro, único e, ao mesmo tempo, plural. É mistura de vida com grafia e informação reportada. Como cores primárias que, ao se misturarem, dão forma a cores secundárias, o azul com amarelo dá vida ao verde, o amarelo com o vermelho origina a laranja e o azul com o vermelho propicia o roxo: a biografia e a reportagem asseguram o nascimento de um gênero do discurso novo, de relativa estabilidade.

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CONCLUSÃO

O presente trabalho – sob uma perspectiva de tese de doutoramento – tratou especificamente de autoria, de biografia e de reportagem, dos gêneros do discurso e de sua estabilidade relativa. Por autoria entendemos escolha, criação, ideia, responsabilidade, propriedade e direitos. Ademais, autoria pressupõe uma ferramenta indispensável, um elemento de viabilização: o autor. Esse autor adota o meio social em que seu produto enunciativo circulará e como se dará sua produção. Propõe uma intencionalidade afluente ao leitor e prevê uma aceitabilidade que deságua na recepção de um determinado auditório. O autor define e escolhe que recursos lexicais ele utilizará, quais os tempos verbais, as figuras retóricas de linguagem, se empregará fraseologismos, tropos gramaticais, citações diretas, indiretas, discurso indireto livre, intertextualidade manifesta, intertextualidade constitutiva, recursos paratextuais, extralinguísticos e perscruta ainda se o texto soa ambíguo, se as conjunções estão sendo usadas adequadamente, se os termos usados são apropriados e próprios do gênero do discurso a qual estão sendo inseridos. O autor pensa ainda na estrutura composicional de sua enunciação e/ou de seu enunciado, donde ele se apoiará. O quadro teórico-metodológico de nossa tese se assenta fundamentalmente na Filosofia da Linguagem proposta por Bakhtin (2010), chamada Análise Dialógica do Discurso. A partir da concepção de gêneros do discurso, partimos da hipótese de que se os gêneros discursivos são enunciados de relativa estabilidade, portanto, instáveis, nossa investigação propiciaria o estabelecimento de um diálogo efetivo entre dois gêneros do discurso que compõem uma atmosfera de caráter biográfico: a biografia e a reportagem. Essa dialogização se dá pela expansão e extensão, pela complementariedade e hibridização que o gênero reportagem oportuniza ao gênero biografia, neste caso. Oferece um diálogo entre duas esferas de atividade humanas distintas: a literária, por meio da biografia, e a jornalística, por meio da reportagem. Ambas conversam entre si e propõem ainda outro dialogismo: a conversa entre o discurso literário e o discurso jornalístico. Entre as linhas teóricas complementares de nossa tese estão àquelas ligadas a Teoria Literária em Barthes (1988 e 2006) e Lejeune (2008); a Sociologia de Chartier (1999 e 2014) e a Filosofia de Foucault (2015). É importante salientar que, para ampliar o entendimento da tríplice constitutiva dos gêneros do discurso – conteúdo temático, estilo, construção composicional –, além do próprio conceito de gêneros discursivos, recorremos ao círculo bakhtiniano sob a égide de Medviédev (2012), Bakhtin/Volóchinov (2009), e ainda Todorov (2018), essencialmente na questão de gênero. Especificamente na designação de estilo e da 258

construção composicional, recorremos a elementos da retórica clássica, como a elocutio e dispositio. Para isso, nos fundamentamos em Aristóteles (2015), Discini (2016), Ferreira (2010) e Fiorin (2015). O livro Silvio Santos – A trajetória do mito é uma enunciação competente. O enunciado, como produto da enunciação, neste caso, de relativa estabilidade, é um híbrido de dois gêneros discursivos: a biografia e a reportagem. Nosso objetivo de investigação, portanto, estabelece-se em um dado momento, donde se vislumbra um novo gênero do discurso que se desenha por algumas novidades: o autor não teve nenhum contato pessoal com o coautor e biografado, portanto, essa relação de distanciamento e proximidade entre biografo e biografado, íntima, em grau de parentesco, se dá pela relação do autor com os enunciados de toda uma vida do coautor: Silvio Santos. É pela intertextualidade manifesta presente entre os enunciados do coautor e a narrativa biográfica do autor que se dá essa relação efetiva entre a personagem biografada, que também é coautor – Silvio Santos –, e o autor principal e responsável pelo livro, Fernando Morgado. A biografia-reportagem estende a biografia – no sentido de expansão da história de da vida de Silvio Santos – por ser narrada de um jeito novo, assentado em dois gêneros do discurso. Significar-se-ia, neste caso, resgatar a compreensão de Todorov (2018, p. 63) sobre os gêneros: “gêneros nascem de outros gêneros”. O livro de Morgado (2017) despende mais para uma consciência biográfica instituída pelos gregos, conhecida como social de costumes – a vida prática, o dia a dia junto aos contemporâneos – do que para a glória junto aos descendentes. Na condição de biografia, o livro espira certas particularidades do gênero: descreve a vida de Silvio Santos em seus diversos “eus”. Conta a vida de Silvio como camelô, depois como empresário de sucesso, como artista, como pai, amigo, marido, filho. Todavia, é uma biografia diferenciada por não haver, em um sentido estrito, tropeços de memória, ou seja, não foi necessário nenhum tipo de ficcionalização. Isso se dá pela descrição biográfica ser confirmada na seção correspondente aos enunciados de Silvio. Os enunciados de Silvio gozam de três fontes de autoria: a voz do próprio Silvio Santos, a voz de Morgado e a voz da instituição jornalística que divulgou as falas do Silvio “patrão”, o que torna impossível a quebra do contrato de veridicção. Portanto, trata-se de uma biografia absolutamente contemporânea, diferente das biografias clássicas, nesse sentido. Na antiguidade, se estudava a vida de um homem de destaque, escritor, cientista ou filósofo para conhecer não apenas sua intimidade, mas para entender os seus escritos. Silvio tem seu nome escrito na mídia todos os dias, embora o “patrão” goste de manter descrição 259

sobre sua vida pessoal. No entanto, pela primeira vez as falas de Silvio Santos, “seus escritos”, foram reunidos em um livro de caráter biográfico. Hoje, se estuda uma personalidade como a de Silvio Santos como exemplo de sucesso, ou simplesmente para ficar rico ou apreender a apresentar um programa de televisão: indubitavelmente, o próprio leitor quer fazer parte do show, ou seja, quer ele próprio, por emulação, ser o Homem do Baú. Do mesmo modo, a biografia-reportagem de Silvio Santos não nos apresenta somente pela intimidade da vida pessoal do biografado. As informações narradas por Morgado (2017) são, na maioria de conhecimento público, duplamente públicas, se lembrarmos de que estão apoiadas nas próprias palavras de Silvio. No entanto, por se tratar de Silvio Santos, há uma espetacularização da vida. A realidade da vida de Silvio Santos abre “as portas da esperança” para que outras personagens da vida real, gente comum, pessoas como nós, possam também alcançar o sucesso tão evidente que Silvio Santos não tem o menor pudor de expor e ele expõe, magistralmente, sem parecer arrogante e sem perder a adesão do seu público fiel. Morgado (2017) reporta a vida de Silvio Santos em um duplo: a narrativa biográfica e a organização temática dos enunciados de Silvio. Os resultados de nossa investigação contribuíram diretamente para que pudéssemos responder nossos questionamentos acerca de nossa pesquisa. A questão central assentava-se na circunscrição de autoria na biografia-reportagem, ao considerarmos as características desse novo gênero híbrido, misturado, mesclado não apenas por seu estilo, seu conteúdo temático e sua construção composicional, mas também pelas características imanentes ao gênero biografia e ao gênero jornalístico da reportagem. Em razão disso, o conteúdo temático da biografia-reportagem envolveu, além dos temas lineares – negócios, artista, dono de televisão, política, vida pessoal – a circulação, produção e recepção. Essa categoria sócio-histórica, a circulação, envolveu os veículos de divulgação primária dos enunciados de Silvio, Folha de S. Paulo, Estado de São Paulo, Jornal do Brasil, Veja, O cruzeiro, entre outros, que são exteriores e, ao mesmo tempo, interiores ao livro. A circulação do livro em si, por todo o Brasil, foi bem recebida, aparentemente, pelo público brasileiro, e igualmente bem recebida por Silvio Santos. A recepção, visível no interior do livro, materializa-se pela narração biográfica ter sido desenvolvida a partir dos enunciados de Silvio, por meio da intertextualidade manifesta. Ou seja, Morgado (2017) recebeu esses enunciados de Silvio Santos que repercutiram no organismo social, na sociedade, e, a partir daí, produziu o seu livro. A significação de toda a biografia-reportagem, ou seja, sua construção fonológica, morfológica e sintagmática fora constitutiva do estilo verbal indissoluvelmente ligado ao conteúdo temático de todo o livro. 260

O estilo revelou a escolha de Morgado (2017) por uma heterogeneidade constitutiva não apenas do gênero biografia-reportagem, mas comum ao gênero do discurso biografia. Além disso, uma construção composicional atípica, constituída de um exórdio, que ora é uma introdução, ora uma apresentação e resulta em um capítulo inicial, uma narração composta por narração biográfica e as palavras do próprio biografado na seção Silvio Santos por ele mesmo e uma peroração diferenciada, que se tratou de um misto de capítulo, com conclusão e adendo: uma cronologia sobre a vida de Silvio Santos. Silvio Santos – A trajetória do mito não tem um formato rígido, ou seja, pode ser lido por quaisquer perspectivas: pelos enunciados de Silvio e depois pela narrativa biográfica; pela narrativa biográfica e depois pelos enunciados de Silvio; somente pelos enunciados de Silvio. O começo, meio e fim podem ser construído pelo leitor, todavia sua composição apresenta uma diacronia, uma evolução no tempo, tanto pelos eixos temáticos propostos por Morgado (2017), ao organizar, no livro, os enunciados de Silvio, quanto na narrativa biográfica do autor. Por se tratar do trabalho que uniu dois gêneros do discurso, a biografia e a reportagem, o foco de nossa tese é a prova de uma possibilidade: dois gêneros, um da esfera literária e o outro da esfera jornalística, poderiam se miscigenar e formatar outro gênero discursivo com conteúdo, material e forma, advindos de uma criação autoral e artística de caráter inovador. Nossa base teórica, sinteticamente, se fundamenta na sua essência por reflexões do círculo bakhtiniano. Todavia, goza de importantes contribuições de Foucault e Barthes naquilo que se refere a autor e autoria. Para finalizarmos, concluímos que Morgado (2017), ao decidir escrever um livro autoral sobre Silvio Santos, por meio dos enunciados do próprio Silvio Santos, não poderia descrevê-los na narrativa por outra fonte genérico-discursiva que não fosse a biografia. Tratava-se de enunciados proferidos por Silvio assentados sócio-historicamente pela trajetória de vida do Homem do Baú. A narrativa biográfica, na biografia-reportagem, nasce da intertextualidade manifesta a partir dos enunciados de Silvio reunidos no livro com o auxílio da intertextualidade constitutiva, de discursos direto, indireto e indireto livre. Morgado (2017), na qualidade de ser autor, joga com a transdiscursivização do gênero do discurso biografia ao expandir o gênero por meio da reportagem, donde cria outro gênero: a biografia-reportagem. Ao entendermos que os gêneros do discurso gozam de enunciados de estabilidade relativa, a possibilidade de transdiscursos não se esgota e permite, portanto, a consolidação de gêneros que se classificam, se criam e se estabelecem a partir de outros gêneros. Esperamos, sob esse olhar, estimularmos outras pesquisas possíveis no âmbito do 261

texto e do discurso, no terreno dos gêneros do discurso, com o auxílio valioso da autoria e do autor. Consequentemente, ampliar as probabilidades referentes ao gênero reportagem, mas, sobretudo, assegurar novos estudos sobre particularidades e possibilidades do gênero do discurso biografia, por intermédio de uma rica e contemporânea atmosfera de ordem biográfica.

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