MANA 3(2):199-219, 1997

ENTREVISTA CONTINUIDADE, INTEGRAÇÃO E HORIZONTES EM EXPANSÃO

Stanley J. Tambiah

Stanley Jeyaraja Tambiah nasceu em logo após a Segunda Guerra Mundial, 1929, no antigo Ceilão, atual Sri Lan- e nessa época vários departamentos, ka. Graduou-se na Universidade do que posteriormente se separaram, fo- Ceilão (hoje, Peradeniya) e obteve seu ram criados reunindo essas disciplinas. doutorado em sociologia na Universi- Minha identidade nessa fase em que dade de Cornell, em 1954. Trabalhou concluí o doutorado era a de sociólogo. como assessor da UNESCO na Tailân- Meu principal professor em Cornell dia entre 1960 e 1963, quando ingres- tinha sido Robin Williams, um sociólo- sou como lecturer no King’s College da go ex-aluno de Talcott Parsons que Universidade de Cambridge. Em 1973, estava associado a Robert Merton e tornou-se professor da Universidade de outros sociólogos dessa linha. Mas a Chicago e, em 1976, da Universidade antropologia era uma das minhas áreas de Harvard, onde se encontra até hoje. de interesse e eu também estudei mui- É membro da National Academy of ta antropologia. Minha tese foi sobre o Sciences e do National Research , em uma combinação de esti- Council’s Committee for International los sociológico e antropológico. Conflict Resolution. Em 1991, recebeu, da Universidade de Chicago, o título Peirano de doutor honoris causa. Qual dos seus livros é sua tese? Esta entrevista foi concedida a Mariza Peirano, em 29 de novembro de Tambiah 1996, na Universidade de Harvard, Minha tese nunca foi publicada, mas logo após o retorno de Tambiah de uma começou como um projeto sob a super- visita feita ao Brasil, onde foi um dos visão de um sociólogo americano cha- conferencistas do XX Encontro Anual mado Bruce Ryan – que veio de Har- da Anpocs. vard, tinha sido aluno de Parsons e contemporâneo de Merton –, que che- Peirano gou ao Sri Lanka logo após o final da Dada a sua formação, em que momen- Segunda Guerra, na época em que in- to você percebeu que tinha se tornado gressei na Universidade do Ceilão, con- um antropólogo? vidado para criar o Departamento de Sociologia no Sri Lanka. Na verdade, Tambiah pela primeira vez, sociologia e antro- Em Cornell, eu estava em um Progra- pologia estavam sendo ensinadas na ma de Pós-Graduação que era uma universidade. Na época, eu cursava a combinação de sociologia, antropolo- graduação em economia, especializan- gia e psicologia social. Isso ocorreu do-me em sociologia. No trabalho de 200 ENTREVISTA

campo que fiz no Sri Lanka eu estava zado nos moldes antropológicos tra- interessado, naquele momento, em par- dicionais. Foi então que encontrei te sob a influência de Bruce Ryan, no Edmund Leach. Ele tinha concluído esquema de Robert Redfield sobre o seu trabalho de campo em Pul Eliya em continuum folk-urbano que ele tinha 1954, e estava de volta em 1956 para desenvolvido de maneira muito interes- uma última verificação dos dados em sante a partir da sua experiência no função da monografia que estava es- México – posteriormente, Redfield tam- crevendo. Eu já havia terminado o sur- bém veio a se interessar pela civiliza- vey, bem como minha primeira etno- ção indiana. Minha tese baseou-se em grafia sobre parentesco, e tinha escrito um estudo de três comunidades situa- alguns trabalhos sobre parentesco e das a diferentes distâncias de Colombo, posse da terra. Meu primeiro artigo foi a capital e a cidade mais urbana do publicado em Man (JRAI), com o auxí- país: uma comunidade era muito próxi- lio de Leach2, e o survey foi publicado, ma a ela, uma era mais distante, já na separadamente, em 19573. Leach não área de plantação de chá, e a outra era gostou do survey e escreveu o ensaio ainda mais afastada, na nova área aber- no qual afirmava que “Tambiah é um ta para reassentamento de camponeses. antropólogo inato”, mas que ele, pes- O estudo comparou essas comunidades soalmente, não gostava de análises a partir de certas atitudes expressas em quantitativas baseadas em dados obti- questionários formais, complementados dos através de surveys4. No entanto, por alguma observação participante. O ele havia lido a primeira versão do meu objetivo era situar as comunidades no artigo, do qual gostou, e quando retor- continuum folk-urbano e testar a pró- nou a Cambridge escreveu-me dizen- pria hipótese de Redfield. O estudo do que eu deveria publicá-lo em Man. nunca foi publicado, embora um artigo Naquela época eu já tinha para mim meu em parceria com Bruce Ryan tenha que minha concepção do estudo dos aparecido na American Sociological fenômenos sociais estava mais sintoni- Review1, e eu tenha escrito subseqüen- zada com a abordagem antropológica. temente alguns artigos sobre assenta- Ou seja, interessava-me mais a obser- mentos camponeses que também são vação participante, conversar com as pouco conhecidos. pessoas, observar rituais, e ver situa- Quando me tornei um antropólogo? ções no seu contexto, tudo aquilo que Imagino que o ano decisivo foi 1955/56 você não pode fazer em um survey, no quando, depois de retornar ao Sri Lan- qual você faz perguntas em série sem ka, vindo de Cornell, comecei a fazer conhecer ou mapear em profundidade trabalho de campo em colaboração com suas inter-relações. Assim, eu mesmo um economista que também era esta- estava me convertendo, e Leach tornou tístico, N. K. Sarkar. Realizamos um isto claro para mim com sua crítica ao survey sobre as condições econômicas survey e com sua demonstração da na área Kandyan do Sri Lanka: regimes importância do parentesco e da orga- de apropriação fundiária, relações de nização social reveladas pela pesquisa arrendamento, padrões de posse da etnográfica. Eu nunca pude entender terra nas aldeias e assim por diante. muito bem o que ele quis dizer quando Combinei com este survey meu próprio afirmou que meu ensaio tinha, de trabalho de campo sobre estrutura de algum modo, influenciado sua com- parentesco e organização social, reali- preensão de Pul Eliya. CONTINUIDADE, INTEGRAÇÃO E HORIZONTES EM EXPANSÃO 201

Peirano nos entendíamos bem, e a partir da- Podemos então dizer que Leach o legi- quele trabalho de campo escrevemos timou como antropólogo…? um longo ensaio sobre a poliandria no Ceilão5. Tambiah Ainda em 1956, antes de encontrar Não foi assim que vi na época, pois ele Leach e Obeyesekere, eu tinha come- ainda era um estranho para mim. En- çado a trabalhar em um projeto de as- contrei-o pela primeira vez, durante sentamento de camponeses, o recém- uma tarde apenas, em 1956, quando criado Multipurpose Irrigation Scheme ele retornou para completar seu traba- and Peasant Ressettlement Program, em lho de campo e esteve na Universidade Gal Oya. Levei estudantes comigo e a de Peradeniya. Conversamos e falei a partir desse trabalho publiquei um arti- ele dos meus ensaios recentes, que pos- go6. Foi nesse momento que os primei- teriormente lhe enviei. Mais tarde, ele ros conflitos irromperam no Sri Lanka, escreveu sua crítica ao survey e apoiou no meio de nossa pesquisa, e nós tive- a publicação de meu artigo. Em 1960 mos de ser retirados do campo. A expe- parti para a Tailândia. Antes, porém, riência desse conflito foi agora – apro- Gananath Obeyesekere juntou-se ao ximadamente quarenta anos depois! – Departamento de Antropologia da Uni- incorporada ao meu novo livro, e pode versidade de Peradeniya, em 1957. ser encontrada no capítulo 4 de Leve- Obeyesekere tinha sido treinado na ling Crowds7. Universidade de Washington, princi- Enquanto eu fazia esse tipo de pes- palmente sob a tutela de Melford Spi- quisa na Universidade de Peradeniya, ro, tendo sido influenciado pela teoria em 1959, Hugh Philp – um amigo, pro- psicanalítica. Ele chegou com uma pers- fessor de educação na Universidade de pectiva diferente da minha, mas deci- Sydney – escreveu-me dizendo que dimos fazer uma pesquisa antropológi- tinha sido indicado para diretor de um ca conjunta em uma aldeia distante, novo instituto de pesquisa na Tailân- Pata Dumbara, no distrito Matale, na dia, patrocinado pela UNESCO e pelo área Kandyan. Esta foi efetivamente governo tailandês, e que queria que eu minha primeira tentativa de trabalho fosse o antropólogo da organização. Eu de campo antropológico. De fato, Obe- teria liberdade para fazer minha pró- yesekere, eu e alguns alunos que está- pria pesquisa nas aldeias e, ao mesmo vamos treinando começamos a viver na tempo, teria de treinar estudantes tai- aldeia e a fazer trabalho de campo, landeses. A principal área de pesquisa para o qual contávamos com pouquís- desse instituto era a educação: o gover- simos recursos. Eu tinha então me tor- no tailandês tinha acabado de introdu- nado um verdadeiro antropólogo. zir um programa de educação primária nacional e precisava obter informações Peirano acerca das áreas rurais. O dado etno- E Obeyesekere sempre se definiu como gráfico era necessário para que fosse tal? possível estabelecer que tipo de currí- culo deveria ser transmitido às crian- Tambiah ças. Dessa forma, concordei em ir, mas Sim, um antropólogo psicológico. Ele devo mencionar outra coisa acerca da estava interessado em perspectivas maneira inesperada como esse convite muito diferentes das minhas, mas nós foi feito. 202 ENTREVISTA

Temos de retornar a 1952, quando Peirano cheguei a Cornell. Fiz parte da primei- Quando você começou a falar inglês? ra leva de estudantes selecionados no mundo todo pela Fulbright para estu- Tambiah dar nos Estados Unidos, em um progra- Muito cedo, pois a escola que freqüen- ma inovador do governo americano no tei ensinava em inglês desde o início, pós-guerra. Fui selecionado no Sri Lan- com a minha língua, o tamil, como se- ka; Hugh Philp, na Austrália. E, nos gundo idioma. As escolas de elite no Estados Unidos, fomos enviados para o Sri Lanka ensinavam primordialmen- que era chamado “curso de orienta- te em inglês e produziam os funcioná- ção” – ou seja, destinado a nos orientar rios públicos e os profissionais que na cultura americana –, ministrado no viriam a constituir a camada influente Bennington College, em Vermont. Foi no país. Após a independência, houve lá que conheci Hugh Philp, que foi uma onda de nacionalismo, especial- para Harvard trabalhar com Allport, o mente entre a maioria cingalesa, foca- psicólogo social, enquanto eu fui para da nos temas de identidade, retomada Cornell. Nós nos tornamos grandes da cultura, retomada da religião. Todas amigos e nos visitávamos com freqüên- essas questões fazem parte da política cia. Outro que fazia parte de nosso gru- pós-independência. O Sri Lanka adqui- po era um sociólogo norueguês chama- riu sua independência em 1948 e um do Reidar Haavie, que também estava dos principais problemas que logo em Cornell. Quando Philp retornou à emergiram foi o da mudança da língua Austrália para reassumir seu cargo e foi da administração, do inglês para os convidado como o primeiro diretor do idiomas locais. Isto fazia parte do que instituto tailandês, pensou logo: “Bem, era considerado um processo de demo- preciso de um antropólogo… Vou con- cratização: o povo em geral tinha sido vidar Tambiah!”. O convite chegou alijado das estruturas e centros de po- assim de modo inesperado. Eu já esta- der e o inglês era a língua de um seg- va completamente desencantado com mento restrito da população. Lamenta- o curso dos acontecimentos no Sri Lan- velmente, esse movimento gerou, como ka devido ao conflito étnico. O proble- contrapartida, o problema da escolha ma tamil-cingalês estava se intensifi- entre as duas línguas locais, o cingalês cando e eu já havia testemunhado seu e o tamil. E embora no começo o slogan início em 1956. Outros conflitos ocorre- fosse “queremos duas línguas mater- ram em 1958, 1960 e assim por diante. nas”, logo a maioria cingalesa, budista A violência foi a resposta da maioria e nacionalista, reivindicou que o cinga- cingalesa à minoria tamil. Ao mesmo lês se tornasse a única língua oficial, o tempo, questões ligadas à língua pas- que começou a gerar entre os tamil o saram a fazer parte da política do Sri sentimento de que eram discriminados Lanka. O inglês havia se tornado, sob pela maioria. Havia outras questões, a colonização britânica, a língua da como o reassentamento camponês em administração e a língua distintiva das áreas reivindicadas pelos tamil como pessoas cultas: se alguém quisesse ser sua terra natal... Tudo isso fervilhava bem-sucedido, deveria dominá-la. no Sri Lanka ao mesmo tempo, e em 1959 o governo estava a ponto de exi- gir que a educação universitária tam- bém fosse ministrada nas línguas nati- CONTINUIDADE, INTEGRAÇÃO E HORIZONTES EM EXPANSÃO 203

vas. Eu sabia, portanto, que logo teria e muitos outros, tendo feito a gradua- de ensinar em cingalês, e eu não esta- ção no Sri Lanka, podiam sem nenhum va apto para isso. problema vir para o Ocidente e conti- nuar os estudos de pós-graduação. Peirano Várias pessoas da minha geração fize- Você fala cingalês? ram isso, não apenas na minha área, mas também em economia, política, Tambiah ciências, história, literatura. Assim, na- Apenas coloquialmente, não fui educa- quele momento percebi que estava na do nem alfabetizado nessa língua. Pro- hora de partir. Quando o convite de fissionalmente seria um retrocesso para Hugh Philp chegou, eu aceitei e fui mim, pois tentar ensinar antropologia para a Tailândia. Isto ocorreu em 1960. na língua nativa consumiria todas as minhas energias. E mesmo se eu qui- Peirano sesse fazer essa mudança, eu estaria Quando você decidiu estudar religião fora do sistema internacional de conhe- na Tailândia, essa escolha se baseou cimento: eu tinha de ir para outros lu- em evidências etnográficas ou foi moti- gares e permanecer profissionalmente vada por sua própria curiosidade? Em aberto para os desenvolvimentos inter- outras palavras, por que religião? nacionais. Tambiah Peirano Efetivamente eu não estava apenas Nesse contexto, seria possível ensinar investigando religião na Tailândia, mas antropologia? realizando um trabalho de campo sobre vários aspectos da vida rural. Co- Tambiah letei material sobre parentesco, orga- Bem, mais tarde percebeu-se que a nização social, economia agrária, pos- transformação do cingalês e do tamil se da terra… e, paralelamente à orga- em meios de instrução seria um grande nização social, sobre os rituais. Além problema – especialmente no que se re- disso, já que a maior parte das aldeias fere ao ensino superior –, justamente abrigava monastérios habitados por porque não é possível traduzir os livros monges budistas, estudei as relações das principais línguas ocidentais nesses entre esses monges e a população, bem idiomas. A maior parte dos estudantes como vários rituais. Na verdade, entre educados nas línguas nativas estava vir- 1960 e 1963, participei do estudo de tualmente excluída da literatura mun- três diferentes comunidades: uma, na dial, recebendo uma educação muito Planície Central, situada aproximada- limitada. Desse modo, os padrões aca- mente a cem quilômetros de Bancoc; dêmicos caíram muito. A Universidade outra, no nordeste; e a terceira, no nor- do Ceilão, à qual eu pertencia, era a te da Tailândia. Como sempre aconte- principal universidade nessa época, ce, elaboramos e escrevemos apenas que coincide com as últimas fases do sobre um fragmento do nosso trabalho colonialismo, porque tinha padrões re- de campo. Escrevi uma etnografia pre- lativamente elevados; estava vinculada liminar a respeito de uma aldeia situa- à Universidade de Londres e as provas da na Tailândia Central, ou seja, foca- eram aplicadas por examinadores ex- lizei aspectos da economia, estrutura ternos. Pessoas como eu, Obeyesekere de parentesco, vida familiar, , e 204 ENTREVISTA

assim por diante. Essa monografia nun- tempo para escrever sobre isso porque ca foi publicada. Foi aceita para publi- passei para outros temas. cação pela Cambridge University Press, mas àquela altura, em 1963, eu Peirano já tinha ido para Cambridge e já esta- Gostaria de focalizar essas mudanças. va escrevendo minha segunda mono- Como você as vê? Existem continuida- grafia sobre a segunda aldeia, Bud- des, uma coisa leva à outra de modo dhism and the Spirit Cults in Northeast contínuo? Thailand8. Nesse estágio, também em Cambridge, entrei em contato com al- Tambiah gumas das idéias de Leach: o “estrutu- Bem, existe continuidade e expansão. ral-funcionalismo” estava sendo supe- Esqueci de contar como comecei a es- rado pelo “estruturalismo”, perspectiva tudar religião. Uma das coisas que per- que me influenciou bastante. Assim, cebi quando deixei o Sri Lanka foi que, esse livro foi escrito em sua maior parte como membro de uma minoria, eu tinha em Cambridge, mas só foi finalizado no de compreender o que é o budismo, o período em que estive no Center of revivalismo budista como uma resposta Advanced Studies, em Palo Alto. Então ao colonialismo, e o que era o naciona- eu disse à editora: “não publiquem a lismo budista no Sri Lanka após a inde- primeira monografia, publiquem esta. pendência. Estas eram questões em E eu reescreverei a primeira”. relação às quais eu estava “alienado” no Sri Lanka, mas cujo significado era Peirano fundamental captar como antropólogo. Assim, você ainda nos deve a primeira. Percebi que não seria possível estudar Qual era o tema central dela? plenamente as expressões políticas do budismo no Sri Lanka; no entanto, eu Tambiah seria capaz de fazê-lo na Tailândia, um Bem, ela é diferente da segunda. Em país mais distante, com o qual eu pode- certo sentido, antecipa alguns escritos ria desenvolver uma relação de empa- de Bourdieu a respeito das escolhas tia e estudar de dentro. and estratégicas e das práticas, mas num the Spirit Cults… foi escrito para que estilo e num jargão antropológicos dis- eu entendesse de que maneira o budis- tintos. Como a organização social tai- mo atuava nas aldeias como uma reli- landesa é muito flexível (por exemplo, gião popular. Uma vez que já estava existem várias maneiras de contrair inclinado a compreender o budismo “casamento”), eu esperava primeiro como uma religião, especialmente em estabelecer o que eram as normas for- seus aspectos políticos e rituais, a Tai- malizadas, e então verificar como essas lândia pareceu-me um bom lugar para normas eram usadas e aplicadas, e investigar o que eu não entendia até quais seriam seus resultados enquanto então. práticas. Algum dia tentarei publicar Assim, o segundo projeto, que re- esse livro. De qualquer maneira, a se- dundou no livro World Conqueror and gunda monografia veio a ser escrita de World Renouncer9, foi para mim o resul- forma diferente. Eu tinha coletado mui- tado da elaboração do primeiro, no qual tos dados nas três aldeias que mencio- enfoquei a aldeia como um microcosmo nei, especialmente sobre estruturas do macrocosmo. Em Buddhism and the bilaterais de parentesco, mas não tive Spirit Cults... a aldeia fornecia algumas CONTINUIDADE, INTEGRAÇÃO E HORIZONTES EM EXPANSÃO 205

idéias acerca da civilização em sentido mei de “galactic polity”, como uma amplo, e eu estava interessado justa- maneira de representar a organização mente em como o budismo, enquanto política pré-colonial “tradicional”, e uma força civilizatória, influenciou a minha caracterização de como ela mu- aldeia ao longo do tempo, e como, em dou no século XIX para o que denomi- contrapartida, o budismo em seu senti- nei de “radial polity”10. Com esses mo- do amplo foi tecido e elaborado na vida delos, procurei sugerir um modo de aldeã e em seu calendário festivo. Mas lidar com as continuidades históricas e eu sabia da necessidade de ampliar o as transformações nesses sistemas de enfoque e adotar um referencial mais longa duração. Percebi, quando estava abrangente para compreender outros realizando o segundo estudo, como os aspectos do budismo que vinculam a monges budistas estavam vinculados à sociedade à política. Por exemplo: o que monarquia, à organização política e às é o budismo quando tentamos apreen- estruturas de poder correlatas. Por dê-lo em sua dimensão nacional? Essa outro lado, dei-me conta de que havia problemática foi gerada pela redação outra ramificação da irmandade dos da minha primeira monografia e pen- monges, os monges da floresta, devo- sei que teria então de ampliar meus ho- tados à tradição meditativa. Esses mon- rizontes para entendê-la. Assim, World ges reclusos permaneciam fora da Conqueror and World Renouncer foi ordem oficial, na periferia, e eu sabia escrito para compreender o budismo que representavam uma busca diferen- em sua expressão coletiva mais ampla, te pela libertação, por intermédio da o que me levou a um envolvimento com meditação, e que estavam afastados a questão da relação entre história e dos centros oficiais de poder, vivendo antropologia. Procurei explicar como o nas florestas. Acreditava-se que atra- budismo enquanto religião, juntamente vés da meditação e do regime ascético com as ordens monásticas, esteve sem- eles tinham acesso a poderes supranor- pre relacionado com a monarquia e a mais e místicos, de que o público leigo organização política, particularmente queria muito se apropriar. Assim, deci- no que se refere às concepções budis- di que um modo adequado de preen- tas do “universal king”. cher uma lacuna existente em World Com esse ponto de partida, esbocei Conqueror and World Renouncer era a história do budismo e da organização empreender uma nova investigação, política na Tailândia. Eu sabia, quando que se tornou a base para o meu tercei- escrevi a primeira monografia, que vá- ro livro sobre a Tailândia, The Buddhist rios monges das aldeias chegavam até Saints of the Forest and the Cult of a capital, Bancoc, após um percurso Amulets11. marcado pela mobilidade e pelas reali- Escrevendo este livro, ao lado do zações monásticas. Isso me envolveu delineamento de um paradigma do sig- em um novo tipo de trabalho de cam- nificado histórico do regime de medi- po, que tentava traçar a trajetória des- tação e do ascetismo em uma tradição ses monges das aldeias até o centro budista, também fiquei interessado na político-religioso, mapeando as rela- concepção dos santos e na hagiografia ções entre monastério e organização como trabalho preliminar para então política, e o envolvimento dos monges focalizar os monges da floresta na Tai- com os rituais nacionais. A partir desse lândia. Aqui, meu interesse weberiano trabalho, desenvolvi o modelo que cha- no carisma e em sua rotinização ficou 206 ENTREVISTA

mais uma vez evidente. De certo modo, Peirano tropecei em algo que Weber nunca Assim, enquanto, por um lado, você es- percebeu, ou seja, como o carisma crevia sobre a Tailândia, por outro, re- pode ser transferido para objetos como digia artigos que posteriormente se- amuletos e imagens. Creio que uma riam reunidos em Culture, Thought and das minhas contribuições foi abordar o Social Action. Suas reanálises empíri- culto dos amuletos: como são produzi- cas, por exemplo. dos, como o homem santo transfere seu carisma para eles, como esses objetos Tambiah promovem a conjunção entre os ho- E teóricas, de um modo distinto. mens santos e os leigos, e como esses objetos são usados e manipulados nos Peirano processos históricos, políticos e econô- Empíricas e teóricas de um modo dis- micos. tinto…? Para encerrar essa história: embora desde 1983 eu tenha me sentido com- Tambiah pelido a levantar questões relativas ao Vários desses artigos são uma expres- conflito étnico, ao etnonacionalismo e são do meu interesse pela teoria da à violência política no Sri Lanka, existe classificação, que era uma preocupa- um projeto comparativo de longa dura- ção fundamental de Leach e de Lévi- ção que se prolonga desde The Bud- Strauss. “Animals Are Good to Think dhist Saints of the Forest…, ou seja, a and Good to Prohibit”12 é de fato inspi- concepção de santos, o carisma atribuí- rado, antes de mais nada, pelo artigo do aos santos e o culto de relíquias, de Leach, “Anthropological Aspects of amuletos, túmulos sagrados, em algu- Language: Animal Categories and Ver- mas tradições cristãs, budistas, islâmi- bal Abuse”13. Leach sempre mostrava cas e Sufi. Quais são as convergências seus artigos, assim que os terminava, entre essas religiões tão diferentes em àqueles que estavam mais próximos. outros planos? Em que esses fenôme- Ele me deu uma cópia do trabalho e nos contribuem para essas religiões isso, de certo modo, inspirou meu arti- enquanto vividas e praticadas? Come- go. Em uma de minhas viagens à Tai- cei a oferecer alguns cursos sobre esses lândia naquela época para fazer pes- temas aqui em Harvard, mas precisarei quisa no verão, acabei realizando um de muitos anos para coletar os dados trabalho de campo especialmente para necessários. Trata-se de uma tarefa de esse ensaio. Fui inspirado por Leach, longa duração. mas eu também estava lendo Lévi- Strauss. Assim, os dados que analisei Peirano foram efetivamente coletadas como Um projeto weberiano executado por resposta à obra de ambos. um antropólogo através do trabalho de campo… Peirano “The Magical Power of Words” é tam- Tambiah bém dessa época. Sim, estava tentando remeter as teorias weberianas (e outras) ao trabalho em- Tambiah pírico concreto… Sim. Em Cambridge, Malinowski era muito lido. Uma das influências de CONTINUIDADE, INTEGRAÇÃO E HORIZONTES EM EXPANSÃO 207

Leach sobre vários de seus alunos era Tambiah que nós sempre fazíamos um seminário Não, as monografias sobre a Tailândia para reler Malinowski. Não só nós o lía- são etnográficas e também teóricas. mos, como o próprio Leach estava inte- ressado em reanalisar o trabalho de Peirano Malinowski, o que explica como passei Mas, então, por que separar os dois a me interessar pela etnografia mali- aspectos? nowskiana. Ao mesmo tempo, eu tinha lido o ensaio de Jakobson que reinter- Tambiah preta as noções de magia simpática e Eles estão intimamente relacionados. por contágio de Frazer em termos de Em Buddhism and the Spirit Cults... há metonímia e metáfora, como formas ge- uma interpretação da cosmologia e do rais de pensamento associativo14. Assim, ritual e de como estão mutuamente in- em função do interesse que eu já tinha terligados de modo estrutural. Neste no ritual, estava olhando para Mali- livro, eu também estava interessado nowski, e disso surgiu “The Magical em como os mitos se relacionam com as Power of Words”15. Quando fui convida- ações efetivas das pessoas. Esses vín- do pela London School of Economics culos dialéticos foram trabalhados a para fazer a Malinowski Memorial Lec- partir da etnografia. As pessoas podem ture, decidi testar minha reanálise de ler meus livros como etnografias, mas Malinowski sobre a magia trobriandesa. muitas não percebem que eles também são teóricos. Já que diferentes antropó- Peirano logos trabalham em diferentes áreas E a Radcliffe-Brown Memorial Lecture do mundo, apenas alguns deles, na sobre ritual? melhor das hipóteses, lêem etnografias que não pertencem às suas áreas de Tambiah especialização. Mas todas as minhas Esta conferência foi escrita alguns anos etnografias contêm discussões teóricas depois, ainda durante a minha estada referentes a Weber, Mauss, Durkheim, em Cambridge, mas só se completou Malinowski, Evans-Pritchard, Lévi- na Universidade de Chicago, por volta Strauss, e a todos os autores que supos- de 1974. A propósito, World Conqueror tamente lidaram com o que denomino and World Renouncer surgiu de um questões clássicas ou canônicas. trabalho de campo realizado quando eu ainda estava em Cambridge. O tra- Peirano balho de campo para o terceiro livro Você acha que até mesmo os antropó- estava concluído antes que eu viesse logos leriam seus ensaios dessa manei- para os Estados Unidos. Assim, todas ra? essas atividades terminaram sendo re- levantes para o meu contínuo interesse Tambiah pelo ritual. Sim, meus ensaios são considerados teóricos porque abordam certos proble- Peirano mas canônicos acerca dos quais certos Mas há uma implicação de que esses autores escreveram. Por exemplo, “The artigos são mais teóricos, e as mono- Magical Power of Words” é uma reaná- grafias sobre a Tailândia mais etnográ- lise de Malinowski em termos de asso- ficas? ciações metafóricas e metonímicas, 208 ENTREVISTA

teoria da informação, inter-relação talmente a esse tópico. Mas se eu com- mito/ritual, e assim por diante. Devo primisse os últimos capítulos de The mencionar, aqui, que meu livro , Buddhist Saints of the Forest... em um Science, Religion and the Scope of ensaio apresentado explicitamente Rationality16, oriundo das Lewis Henry como teórico e publicado em um perió- Morgan Lectures, é considerado um dico, então as pessoas indubitavelmen- trabalho “teórico”, mas é uma conti- te diriam “esse é um ensaio teórico!”. nuação dos temas abordados em Cul- Além do mais, por razões óbvias de ex- ture, Thought and Social Action17. tensão, os ensaios são lidos, mas ape- nas os mais dedicados enfrentam uma Peirano longa monografia. Isso é interessante porque aponta para a questão das diferentes audiências Peirano para os trabalhos acadêmicos. É isto o que teria ocorrido com sua dis- cussão sobre mito e ritual nos últimos Tambiah capítulos de Buddhism and the Spirit Sim, penso que em geral as pessoas Cults in Northeast ? lêem apenas um número limitado de monografias. Muita literatura foi e está Tambiah sendo produzida, mas só se lê uma pe- Sim, essa discussão também não foi quena amostragem do trabalho fora de considerada como de relevância teó- nossas áreas específicas de interesse. rica para o estudo dos mitos e dos Há uma impossibilidade física de ler rituais. Porque está numa monografia tudo, especialmente com o aumento e não se espera que as monografias crescente da literatura. Ao mesmo tem- contenham discussões teóricas desse po que estou muito familiarizado com tipo, embora obviamente a “área dos a produção relativa ao Sudeste e Sul da especialistas” ache o texto de grande Ásia, leio muito menos os trabalhos interesse pois oferece um quadro de concernentes à Amazônia, à Oceania, referência para entender as relações à Nova Guiné, à China e ao Japão. Mas entre o budismo e o culto dos espíritos tenho lido textos que alguns colegas nas aldeias. Se eu o tivesse escrito recomendam como significativos, ou como um ensaio teórico para Man ou que recebem recensões positivas, ou American Ethnologist, ele poderia ter que amigos descrevem para mim como um público maior, fora do campo do objeto de suas preocupações em nossas Sudeste Asiático. Todavia, é gratifican- discussões… Creio que é por isso que te notar que a discussão sobre a rela- toda a discussão que aparece no final ção entre mito e rito em Buddhism and de minha última monografia, sobre the Spirit Cults... foi adotada por um Weber, carisma, a noção de objetifica- estudioso da religião, John Strong, que ção do carisma nos amuletos, a partici- a utilizou como seu ponto de referên- pação das pessoas no carisma, não é cia. amplamente conhecida fora da área dos especialistas. Quando as pessoas Peirano lêem a introdução de The Social Life of Passemos, então, ao ritual. Quero repe- Things, de Appadurai, não estão cons- tir o que já lhe disse antes, que em um cientes, em sua maioria, de que tenho artigo eu comparo sua abordagem de uma discussão que remete fundamen- ritual com o que Jakobson fez com a CONTINUIDADE, INTEGRAÇÃO E HORIZONTES EM EXPANSÃO 209

afasia, Lévi-Strauss com o totemismo, convite para a Malinowski Lecture Freud com os sonhos… havia representado um desafio e uma ocasião similares. E “Form and Mea- Tambiah ning...”, no qual utilizei Austin pela Isso é muito lisonjeiro para mim! Obri- primeira vez, foi escrito para um Fers- gado. htcrift para Evans-Pritchard.

Peirano Peirano Em geral, podemos dizer que você Poderíamos dizer que Austin, Leach e identifica um fenômeno que, mesmo na Evans-Pritchard são alguns de seus disciplina, é de senso comum, o dissol- interlocutores privilegiados? Quais se- ve analiticamente e, finalmente, mos- riam os outros? tra sua universalidade em outro nível. Nesse processo, o que era um objeto Tambiah empírico, ou uma classe de objetos, tor- Acho que muitos. Max Weber, é claro; na-se uma abordagem analítica. É isso Durkheim; Marx em menor extensão; que acredito que você fez com o ritual, Malinowski; Evans-Pritchard (o livro entre outras coisas. sobre os Azande) – “Form and Mea- ning of Magical Acts” é efetivamente Tambiah minha resposta à sua compreensão das Como um prefácio a esse ponto, deixe- práticas rituais Azande. Há ainda Lévi- me contar que quando estava em Cam- Strauss e Leach, no que se refere à teo- bridge, descobri Austin acidentalmen- ria da classificação, liminaridade e te- te, comecei a lê-lo e incorporei minha mas desse tipo. E a lista estende-se na compreensão de suas idéias em “Form direção de Austin, Peirce, Foucault, and Meaning of Magical Acts”18. Esse Bourdieu, Bakhtin… é um desenvolvimento pessoal. Leach não gostava dessa tendência e era crí- Peirano tico em relação à filosofia da lingua- E Marcel Mauss com sua noção de efi- gem desenvolvida em Oxford. A esse cácia? respeito, ele era um tanto antiquado e acho que provavelmente concordaria Tambiah com o ataque de Gellner à filosofia de Você quer dizer a teoria de Mauss Oxford, em Words and Things. Mas eu sobre a magia? Sim. Suas formulações estava convencido de que a idéia de sobre a magia, o dom, o sacrifício são Austin sobre as locuções performativas parte fundamental do nosso legado e era importante. Embora isso possa pa- capital clássicos, e ponto de referência recer autopromoção, tenho certo orgu- do qual não se pode escapar. lho de ter sido um dos primeiros a ex- plorar essas idéias no estudo do ritual. Peirano Meu envolvimento com Austin Quando você passou a se interessar por ocorreu quase no fim da minha estada Peirce? em Cambridge. O convite para a Rad- cliffe-Brown Lecture forneceu o incen- Tambiah tivo para incorporar e estender a noção Passei a me interessar por Peirce quan- de atos performativos, e o desafio para do cheguei a Chicago. Outras pessoas, formular algo novo. Anteriormente, o como Michael Silverstein, também es- 210 ENTREVISTA

tavam interessadas na semiótica de balhar dentro da tradição para transfor- Peirce. Assim, quando escrevi “A Per- má-la. Várias pessoas anunciam “estou formative Approach to Ritual”19 disse a dizendo algo novo”, “isso é realmente mim mesmo: “Essa é a ocasião para revolucionário”, e essa grande reivin- integrar e reunir diferentes perspecti- dicação de que todos são inovadores, vas”. O ensaio contém uma crítica um abolindo o passado, não me soa bem. tanto velada a , que você Pessoalmente, prefiro dizer que estou também partilha. Creio que a estrutura pensando em como avançar, alargar tripartite do ritual, que é um esquema horizontes, resolver algumas antino- de Van Gennep explorado com suces- mias, expandir fronteiras existentes, e so por Victor Turner, é inadequada assim por diante. Gosto de pensar que para uma plena compreensão dos tra- se deve trabalhar dentro da tradição, ços dinâmicos do ritual e das diferen- construída a partir do que outros disse- tes maneiras pelas quais múltiplos ram, selecionando componentes já meios e modalidades sensoriais estão existentes, recombinando-os e refor- inter-relacionados. Eu queria dizer algo mulando-os, em vez de me recusar a diferente do que Turner estava dizen- reconhecer o passado, e reivindicar do; também creio que meu mergulho que “estou dizendo algo maravilhosa- na lingüística estrutural e na sociolin- mente novo”. Essa é a maneira pela güística – Chomsky, Peirce, Langer… – qual prefiro fazer as coisas. E reajo con- forneceu-me algumas diretrizes no que tra pessoas apressadas e excessiva- se refere à questão de como essas refle- mente ambiciosas que afirmam “tudo xões poderiam ser sintetizadas, ou pelo está errado com o passado”, e “existe menos situadas. um novo caminho a seguir, que é ino- vador”… Em virtude do meu tempera- Peirano mento, essa não é minha maneira de Eu gostaria de conhecer sua reação proceder. diante da minha impressão de que seu trabalho se inclina sempre para a dis- Peirano solução de dicotomias. Por exemplo: É interessante que o próprio Lévi- ação e pensamento, causalidade e per- Strauss tenha dito que estava fazendo formance, semântica e pragmática, nar- algo completamente novo quando tam- rativa cultural e análise formal… bém estava combinando…

Tambiah Tambiah Bem, não sei se de fato cheguei a dis- É que, como você sabe, um tipo de con- solver essas dicotomias, mas acredito tribuição criativa é tomar uma perspec- que fui desafiado por elas. Existe algo tiva, ou alguma idéia, proveniente de na minha maneira de abordar as ques- um campo, e aplicá-la a outro domínio, tões que não entendo conscientemen- o que abre novas possibilidades. Fre- te. Tenho uma preferência por relacio- qüentemente, essa é a maneira pela nar dialeticamente componentes que qual a biologia, a física e outras ciências outros separam e dividem. Você pode ditas “duras” procedem. Esse também estar certa ao formular essa tendência é um caminho usual em nossa profissão: que não está clara para mim. Mas há não existe tábula rasa. Lévi-Strauss outra preferência que me é cara: sem- agiu da mesma maneira quando apli- pre gosto de pensar que devemos tra- cou de maneira criativa as teorias lin- CONTINUIDADE, INTEGRAÇÃO E HORIZONTES EM EXPANSÃO 211

güísticas de Saussure e Jakobson à Tambiah mitologia (e até ao parentesco). Mas De fato, voltei, no final do livro, a reler acredito que algumas pessoas possam Durkheim e Le Bon. Mas também dia- ter a impressão que são inovadoras. logo com os teóricos que propuseram a Não me considero uma delas. noção de “economia moral”, como E. P. Thompson, com Natalie Davis, que es- Peirano creveu sobre “Rites of Violence”, com Falando de inovadores, Henri Lefebvre, George Rudé, Jim C. Scott, e a Subal- Lukács e outros, que estavam na van- tern School dos historiadores indianos guarda nos meus tempos de universida- modernos. Algumas questões levanta- de, estão todos novamente na moda das por esses autores foram debatidas hoje. e avaliadas no final do livro.

Tambiah Peirano Sim, reciclados. Outra maneira pela E aí, de novo, a presença de Durkheim. qual as pessoas são consideradas origi- nais é quando colocam novas etiquetas Tambiah em velhos problemas. Cunhar novos Existe algo que Durkheim escreveu em rótulos também é visto como um exer- As Formas Elementares da Vida Reli- cício teórico. Novamente, essa ativida- giosa que os leitores nem sempre no- de não é verdadeiramente inovadora, tam. Na última parte do livro, ele suge- pois consiste em recondicionar, reci- re que é a participação coletiva nos ritos clar, colocar um novo verniz em um totêmicos que gera a euforia e a expe- fenômeno conhecido. Você me pergun- riência da força religiosa. Alguns leito- tou se continuo com meu interesse em res conhecem essa formulação, mas religião, ritual, política…? Leveling nem sempre a utilizam. Obviamente, Crowds..., meu último livro, é sobre Durkheim foi diretamente influenciado política e violência, com a violência pelas idéias de Le Bon acerca das aglo- coletiva como uma forma de atuação merações coletivas. Le Bon tinha aver- política em conflitos etnonacionalistas, são pelo que aconteceu na Revolução especialmente em arenas onde a de- Francesa, mas reconhecia as paixões mocracia política é praticada. Mas as que eram produzidas entre as multi- idéias sobre o aspecto performativo do dões. Durkheim também identificou ritual estão no centro de minhas consi- esses sentimentos, mas os utilizou para derações, explicando o papel e o dizer algo muito distinto. Para Le Bon, padrão da violência coletiva na política os ajuntamentos políticos geravam vio- moderna. Espero que aqueles que co- lência irracional, enquanto para Dur- nhecem meu trabalho reconheçam que kheim os ritos praticados coletivamente estou aplicando e estendendo minhas produziam forças religiosas positivas idéias a um novo contexto de modo a que, de fato, celebravam a sociedade. iluminar a política etnonacionalista e a Em Leveling Crowds... tomo essas duas violência coletiva em nossa época. discussões e as transformo, ao conside- rar processos semióticos intersubjetivos Peirano e comunicacionais que ocorrem quan- E encontrando novos interlocutores… do as multidões são mobilizadas para a ação, e como esses processos podem explicar certos aspectos da violência 212 ENTREVISTA

coletiva. Assim, algumas questões clás- para encenar procissões e formar as- sicas suscitadas por Le Bon e Durkheim sembléias coletivas. Levando tudo isso foram, espero, esclarecidas, refinadas em consideração, sempre acontece e ampliadas. algo mais nessas aglomerações: o jogo das paixões coletivas e o papel incitan- Peirano te dos rumores destrutivos, o entrela- Durkheim foi, em geral, apropriado de çamento progressivo de fúria e pânico. maneira pobre até mesmo pelos antro- Existe algo aí que Le Bon, Durkheim, pólogos, que o consideram como al- Freud – que também foi influenciado guém interessado apenas nos aspectos por Le Bon em seu Psicologia de Gru- da representação. po e Análise do Ego – e Canetti, em Crowds and Power, discutiram em ter- Tambiah mos de psicologia de grupo, e que Sim, isto é parcialmente verdadeiro até poderia ser resgatado, reformulado e no caso de Lévi-Strauss em seu traba- desenvolvido em novas direções. lho sobre o totemismo. Lévi-Strauss leu apenas parte de Durkheim, os ani- Peirano mais totêmicos e os objetos totêmicos São essas mobilizações de massa que remetidos às suas próprias idéias fazem com que você se interesse por acerca da classificação. Ele não esta- esportes como o futebol? va interessado na discussão de Dur- kheim sobre como os ritos totêmicos Tambiah geram sentimentos e fusões interpes- Sim, agora você sabe por que eu que- soais. Acho que muitas das discus- ria assistir a um jogo de futebol no Rio. sões em torno de As Formas Elemen- Estou interessado em esportes por ou- tares da Vida Religiosa ignoram o que tras razões também, mas os jogos são Durkheim disse sobre a efervescência fenômenos coletivos e espetáculos de das grandes aglomerações e a euforia massa que me interessam. A torcida no curso dos rituais coletivos, nos quais das multidões no estádio é fantástica. as pessoas reunidas se envolvem em As pessoas levantam-se ritmadamente tipos especiais de interação. e envolvem-se em movimentos orques- É interessante e relevante conside- trados de ondas de incentivo, e então rar dois aspectos relacionados à violên- gritam insultos para os jogadores do cia coletiva das grandes multidões. A time visitante, o “inimigo”, amaldi- violência é parte da política, e é dirigi- çoando-os, e até ensaiando brigas ou da por certos políticos e por seus agen- quase-brigas, e proferindo impropérios tes. Ao mesmo tempo, desordeiros en- para demonizá-los, e assim por diante. volvem-se em incêndios criminosos e E quem são esses participantes no caso em atos de violência contra outros se- do futebol americano em Boston, por res humanos, quando se aglomeram e exemplo? São provenientes de uma quebram normas que a maioria deles parte da população de Massachusetts: observa na vida cotidiana. Em Leveling classe trabalhadora, classe média, pro- Crowds... tento apontar os dois lados da fissionais, jovens e velhos, homens e questão. Esses distúrbios são proposi- mulheres, todos reunidos em contigüi- tais e direcionados: ao mobilizar multi- dade física nessa encenação da cultura dões, certos componentes da cultura de massa. pública e do ritual público são usados CONTINUIDADE, INTEGRAÇÃO E HORIZONTES EM EXPANSÃO 213

Peirano Ethnic Fratricide… foi escrito para en- Bem, mudemos o ângulo da nossa con- contrar uma saída da depressão e para versa. Gostaria de ouvi-lo falar sobre lidar com uma necessidade pessoal de seu retorno ao Sri Lanka como tema de atribuir sentido àquela tragédia, que pesquisa após o trabalho na Tailândia. era apenas o começo do pior que ainda estava por vir. Tambiah A última seção de Sri Lanka: Ethnic Fra- Peirano tricide and the Dismantling of Democ- Seus parentes foram atingidos nos racy20 contém uma parte da minha bio- eventos recentes no Sri Lanka? grafia que ajuda a explicar meu retor- no. Os conflitos de 1983 foram terríveis. Tambiah Nada nessa escala tinha ocorrido no Sri Um irmão mais velho, que é médico, Lanka antes, em termos de destruição vive em Colombo e teve sua casa ata- absoluta de propriedades e incêndios cada, mas ninguém foi atingido. Outros criminosos, e cujo alvo premeditado membros da minha família não foram era a minoria tamil, especialmente na atingidos em Colombo. Uma irmã vive cidade de Colombo, mas também em em um subúrbio cuja população é me- outras partes da ilha. Embora tenham tade cingalesa e metade tamil. Feliz- ocorrido conflitos periódicos desde mente, sua casa, que fica ao lado de 1956, eles eram de uma escala muito uma casa cingalesa, foi poupada por- menor. Em 1983, quando ouvi falar dos que a proprietária cingalesa se aproxi- conflitos, fiquei traumatizado. Sou um mou e ordenou que os desordeiros se membro dessa comunidade minoritária afastassem. Mas minha irmã teve de que foi vitimada. As pessoas mais afe- deixar sua casa temporariamente e ir tadas em Colombo pertenciam à classe para um campo de refugiados, com sua média, eram membros estabelecidos da filha e sua neta. Existem muitas pessoas elite, homens de negócios, que não de origem tamil cujas casas foram quei- tinham idéia de que algo assim pudes- madas, que tiveram seus negócios ar- se acontecer com eles. Foi um tipo de ruinados, que foram dispersadas aos pogrom, uma tentativa direta e inten- milhares. No princípio, a violência visa- cional de prejudicar uma determinada va destruir o que a maioria considerava população. Alguns políticos e agentes vantagens desproporcionais gozadas do Estado também estavam envolvidos pela minoria tamil. Comecei Ethnic Fra- e foram coniventes com o trabalho de tricide... com o objetivo de examinar a destruição. E, embora eu tenha deixa- gênese e o processo da violência, e usei do o Sri Lanka, sempre trago a convic- o material disponível para reconstruir a ção de que sou do Sri Lanka, e uma dinâmica política. parte fundamental da minha persona é O livro subseqüente, Buddhism que sou simultaneamente de origem Betrayed?21, é uma continuação dessa tamil. É claro que também tenho uma questão, mas foi motivado por proble- identidade transnacional, em virtude mas mais remotos. As pessoas sempre de ter vivido e trabalhado fora, e algu- me perguntam: se o budismo advoga a mas outras identidades também. Esses não-violência, por que os budistas no eventos fraturaram as duas metades da Sri Lanka se envolvem com a violência? minha identidade, a do Sri Lanka e a É por isso que comecei a escrever esse tamil. Para retornar à minha narrativa: livro, para tentar explicar a participa- 214 ENTREVISTA

ção de monges e líderes budistas no budista cingalês ou ao nacionalismo “budismo político”. De fato, não é um tamil. Tenho tentado considerar os con- livro a favor da maioria cingalesa do Sri flitos etnonacionalistas em termos mais Lanka, e foi proibido. Obviamente, gerais, e explicar o que são os movi- muitos cingaleses (existem exceções mentos etnonacionalistas e que tipo de significativas) pensam no livro como política desenvolvem. Existem deter- tendencioso de vários modos. Mas isso minadas maneiras através das quais as é inevitável quando alguém tenta co- relações entre minoria e maioria se mentar a política contemporânea e pos- desenvolvem e cristalizam. E você não sui uma posição política. Vejo esses tem muita sorte se se encontra do lado desdobramentos como parte de um dis- da minoria. curso moderno e devemos nos abrir tan- to para críticas quanto para elogios. Peirano Não me incomodo com isso; o que me Gostaria que focalizássemos as dife- importa é que existe um grupo de mon- rentes inserções do trabalho dos antro- ges e “intelectuais” ativistas que cla- pólogos. Em outras palavras: vale a mou pela proibição do livro, vilipen- pena ser antropólogo fora das corren- diando-o como “um ataque ao Buda e tes dominantes? ao budismo”. O livro não é um ataque ao Buda ou ao budismo; é minha tenta- Tambiah tiva de caracterizar o modo pelo qual o Acredito que sim, pois uma coisa que a budismo se desdobrou historicamente Subaltern School indiana certamente no Sri Lanka. Chegam a me acusar de está fazendo é escrever sobre o colonia- ser um agente terrorista, mas muitos lismo e os desenvolvimentos pós-colo- dos meus acusadores nunca leram o niais de um modo que rompe com o pri- livro. No Sri Lanka, o livro tornou-se um mado de um certo tipo de perspectiva joguete nas mãos de políticos locais orientalista e colonialista. Aliás, essas direitistas de tendências neofascistas. idéias também informam alguns escri- tos antropológicos. Eles estão tentando Peirano ler os eventos que ocorreram na Índia E Leveling Crowds..., o último livro britânica nos termos da agenda subal- dessa trilogia, é uma continuação des- terna, que contesta a versão britânica sa análise… oficial da história colonial.

Tambiah Peirano Sim, mas também uma extensão que Uma das influências marcantes é inclui eventos que estão ocorrendo na Gramsci. Índia, no Paquistão e no Sri Lanka. Examino as questões, as convergências Tambiah e diferenças que envolvem os conflitos Sim, Gramsci, talvez Foucault, e a tese etnonacionalistas e também abordo as da “economia moral”. De fato, em implicações do uso da violência como Leveling Crowds... aponto para a ge- um modo de atuação política democrá- nealogia de suas produções, tal como o tica. Espero que a população do Sri ensaio seminal de Thompson sobre a Lanka venha a compreender que não economia moral dos conflitos na Ingla- estou dizendo que a política etnonacio- terra do século XVIII, e sua aplicação nalista seja peculiar ao nacionalismo por Jim Scott à Ásia, em The Moral CONTINUIDADE, INTEGRAÇÃO E HORIZONTES EM EXPANSÃO 215

Economy of the Peasants. Alguns his- seu próprio país, o que para mim é uma toriadores caracterizaram certos movi- situação muito especial. mentos camponeses ocorridos durante Tomemos, por exemplo, o caso da o colonialismo como resistência legíti- Tailândia. Quando fui para lá, no ma, o que não é uma interpretação en- começo da década de 60, havia um nú- contrada na literatura oficial. O mesmo mero muito reduzido de pessoas que poderia ser pensado em relação ao Bra- falavam inglês ou outras línguas euro- sil: trata-se de um grande país, social e péias. Progressivamente, ao longo das geograficamente muito diferenciado, décadas de 60 e 70, um número enor- dotado de um passado colonial que me de estudantes obteve sua formação constitui um fértil terreno para condu- superior no exterior, e as universidades zir suas próprias contestações e diálo- americanas também começaram a trei- gos internos sobre um grande número nar professores e a conduzir programas de questões relacionadas com a consti- universitários na própria Tailândia. tuição do Estado-nação, com o pluralis- Hoje existe uma crescente inteligência mo social e cultural, “etnicidade”, autônoma nas universidades, e os pro- “raça”, estratificação, identidade etc. fessores, que conhecem plenamente as Esses diálogos e contestações são rele- fontes e formas de conhecimento oci- vantes não apenas para o Ocidente, dentais, também estão gerando sua mas também para a Ásia. Você mesma própria literatura crítica “subalterna”. previu isso quando fez a comparação É claro que também existem teóricos entre intelectuais e tradições intelec- ocidentais que adotaram a noção de tuais no Brasil e na Índia. “resistência”. Uma perspectiva vinda de baixo, em contraste com uma pers- Peirano pectiva vinda de cima, pode permitir a Você mencionou que depois de sua visi- emergência da “resistência” ao autori- ta ao Brasil você compreendeu melhor tarismo político na Tailândia. A dita as circunstâncias que produzem nossa transição para a democracia é um pro- “locação”. blema recorrente tanto na Tailândia quanto no Brasil. Na Tailândia, apesar Tambiah do autoritarismo estar bem entrinchei- O Brasil parece possuir algumas singu- rado, existe uma tentativa de promover laridades importantes. De um certo uma transição para a democracia ple- ponto de vista, é parte de um sistema na, e o movimento estudantil, os movi- triangular: está em relação com os mentos democráticos e as insurreições Estados Unidos e com a Europa, e essa são formas de resistência a esse poder triangulação fornece um ponto vanta- autoritário. Essas tendências políticas joso e peculiar para o seu envolvimen- também estão produzindo uma reava- to com os centros metropolitanos. Nes- liação das maneiras de conceber o pas- se sentido, vocês são o terceiro compo- sado tradicional, especialmente com nente desse diálogo. Além disso, na relação às sublevações que ocorreram América Latina vocês são diferentes no século XIX. A principal narrativa dos demais países porque só vocês ortodoxa sobre a Tailândia diz que foi falam português e grande parte da sua a monarquia Chakki que promoveu a literatura é em português, dirigindo-se modernização a partir do século XIX. à inteligência local. Existem diálogos Mas o projeto de um Estado-nação não importantes em sua língua dentro do era exatamente homogêneo, já que 216 ENTREVISTA

diferentes segmentos da população, no Toei, estudo que continua inacabado. norte, nordeste e sul, foram integrados Aliás, foi por causa desse interesse que de forma coercitiva pela burocracia e tive vontade de visitar algumas favelas pelas Forças Armadas. Os novos inte- no Rio. lectuais, historiadores e cientistas so- Comecei a documentar as formas ciais estão pesquisando as reações e re- de vida que vinham se constituindo em sistências das populações locais a esse Klong Toei. A atitude do Estado e das processo de centralização. Acredito autoridades municipais em relação aos que a partir da assim chamada “perife- moradores é de negligência delibera- ria”, ou países do “Terceiro Mundo”, da, baseada na suposição de que se tra- estamos em via de ter um número cres- ta de criminosos, traficantes e prostitu- cente de produções intelectuais que tas. Embora alguns deles possam efeti- serão diferentes daquelas elaboradas vamente sê-lo, muitos são operários da pelos antigos intelectuais metropolita- construção civil, empregados no carre- nos. gamento e transporte no porto, ou, es- pecialmente as mulheres, empregadas Peirano na indústria, na embalagem de alimen- A esse respeito, como você avalia seu tos etc. Em outras palavras, essas pes- próprio trabalho na Tailândia? soas participam da economia de Ban- coc como trabalhadores especializados Tambiah ou semi-especializados. Minha inten- World Conqueror and World Renoun- ção é descrever esses traços positivos, cer é, em certo sentido, uma narrativa e também investigar como elas lidam sobre o processo de construção da com os problemas existenciais e as nação na Tailândia, cobrindo eventos tarefas com as quais se deparam em até o início da década de 70, pouco um ambiente urbano hostil; como estão antes da explosão da rebelião estudan- a um só tempo mantendo e transfor- til em 1973. Esse trabalho não lida com mando as práticas sociais, rituais e acontecimentos políticos recentes, e outros capitais sociais que trouxeram não houve nenhum ataque dos intelec- das áreas rurais de origem. tuais tailandeses ao livro. Houve, sim, Já descobri alguns aspectos interes- interesse na noção que desenvolvi santes de sua rica vida social: um é a sobre a transição de uma “galactic importância da tatuagem corporal para polity” para uma “radial polity”. O li- os membros das gangues de jovens, vro seguinte, sobre os monges budistas visando à proteção física contra aciden- e o culto dos amuletos em interação tes e ferimentos nas brigas com gan- com os processos políticos, correspon- gues rivais. Cada gangue tem seu de a um interesse moderno e teve um padrão distintivo de tatuagem, elabo- impacto apreciável. Não produzi ne- rado pelo mestre tatuador, que trans- nhum trabalho significativo sobre a mite, ritualmente, invulnerabilidade Tailândia referente a eventos ocorridos mediante a inscrição de tatuagens. no final dos anos 80 e 90. Mas, nos anos Esta é, como se pode imaginar, uma 80, comecei um estudo de cinco wats variante do culto dos amuletos que eu (complexos de templos), em Bancoc, e havia descrito antes, mas em outro con- um outro – que talvez seja até mais texto. Outra atividade interessante é o interessante para mim – sobre a maior florescimento de escolas de boxe tai- ocupação de Bancoc, o chamado Klong landês nos subúrbios. O boxe tailandês CONTINUIDADE, INTEGRAÇÃO E HORIZONTES EM EXPANSÃO 217

é um esporte nacional, e a maioria dos maneira forças globais e metropolitanas seus praticantes vem dos subúrbios. são retratadas através de formas locais Para o indivíduo, o cultivo desse tipo de de vida, e como em contrapartida são proeza atlética é um passo para a adaptadas pelas formas locais a seus obtenção de fama e dinheiro. Tal car- próprios propósitos, gerando criativa- reira tem duração breve, mas o boxe é mente seus padrões distintivos. Ainda o foco de apostas intensas e jogos de não comecei a considerar tais fenôme- azar, que prosperam em uma atmosfe- nos como processos transnacionais e ra de pobreza temperada pela sorte de diásporas populacionais. Mas me pare- fortunas caídas do céu. ce que muitos dos chamados tratamen- Ao lado desse, existe o outro estu- tos pós-modernos dos processos trans- do, que já completei mas ainda não nacionais são etnograficamente super- redigi, sobre cinco wats situados em ficiais e esparsos porque deslizam sobre diferentes locais de Bancoc. Na Tailân- vastas distâncias e muitos lugares sem dia, a palavra wat refere-se ao templo penetrar verticalmente nas formas de budista e ao complexo do monastério. vida que se processam nos planos local Um dos wats que pesquisei fica locali- e regional. De certo modo, tentei incor- zado em uma zona de classe média ou porar em Leveling Crowds... alguns tra- classe média alta, o segundo em uma ços das contribuições pós-modernas, zona de classe operária ou classe mé- especialmente as noções de narrativa e dia baixa, o terceiro no extremo do su- de multiplicidade de vozes e perspecti- búrbio de Klong Toei, o quarto no prin- vas, que levam a resultados abertos cipal centro administrativo, e o quinto mais do que a conclusões fechadas. Ao na zona comercial de Bancoc. Cada mesmo tempo, tentei escrever meu tex- wat atende, assim, a um segmento dis- to em uma linguagem simples e direta tinto da população urbana da capital, e de modo que um público mais amplo em conjunto funcionam como múltiplas que os antropólogos pudesse com- janelas abertas sobre a vida social e preendê-lo. Uma das fraquezas da pro- religiosa da cidade. Esses trabalhos so- sa pós-moderna é que ela induz ao jar- bre a vida urbana de Bancoc – o gran- gão opaco, a palavras confusas, a fór- de assentamento popular, os cinco wats mulas destinadas apenas aos iniciados. – são estudos etnográficos de formas Palavras da moda servem como um locais de vida, mas estão conectados à substituto para idéias comunicáveis. questão mais ampla da globalização e Um dos nossos objetivos deve ser das distintas conseqüências da intera- expressar as idéias em uma linguagem ção de influências globais e formas simples, uma linguagem que não anule locais de vida. a comunicação. Além do mais, é uma má concepção pensar que autores como Peirano Foucault, Bakhtin e outros são profetas Em que sentido você pensa ampliar e exemplares do pós-modernismo. Eles essas idéias sobre a abordagem antro- são fundamentais para todos nós, pológica das influências globais e das modernos. formas locais de vida? Peirano Tambiah Ao menos em um sentido forte, os cul- Creio que o potencial do método antro- tural studies parecem representar um pológico reside em investigar de que esforço para esvaziar a antropologia de 218 ENTREVISTA

qualquer vestígio de exotismo. No pro- pós-modernas. Por outro lado, devem cesso a antropologia se dissolve. admitir e assumir que diferentes for- mas de vida podem ser documentadas Tambiah e que as circunstâncias e contextos de O questionamento pós-moderno do coleta de dados e representação auto- poder autoral e da objetividade, da re- ral são parte do texto. Seria um erro lação assimétrica de poder entre o an- dissolver a antropologia como discipli- tropólogo e o “outro” nativo, bem como na ou reduzi-la a confrontos de egos al- a ênfase nas compreensões negociadas tamente personalizados, que revelam entre o antropólogo e os informantes, mais as preocupações neuróticas de um tenderam a desestabilizar, e até mes- outro invasor do que a riqueza das for- mo subverter, a escrita antropológica, mas de vida das outras sociedades, especialmente nos Estados Unidos. Mi- cujo conhecimento vai sempre apro- nha visão particular é que os antropó- fundar e iluminar nossas próprias vidas logos devem ponderar essas considera- e sociedades. Essa é a razão e a justifi- ções, digerir as críticas, e então prosse- cação para a prática da antropologia. guir com seu trabalho de campo e es- crita antropológicos, que devem incor- Tradução: Kátia Maria Pereira de Almeida porar criativamente as considerações Revisão técnica: Mariza Peirano

Notas

1 “Secularization of Family Values in 5 “Poliandry in Ceylon”. In: Von Furer- Ceylon”. American Sociological Review, Haimendorf (org.), Caste and Kin in Nepal, June 1957. India and Ceylon. New York: Asia Publish- ing House, 1966. 2 “The Structure of Kinship and its Rela- tionship to Land Possession and Residence 6 “Agricultural Extension and Obsta- in Pata Dumbara, Central Ceylon”. Journal cles to Improve Agriculture in Gal Oya Peas- of the Royal Anthropological Institute, ant Colonization Scheme”. Proceedings of 88(1):21-44, 1958. the Second International Conference of Eco- nomic History, Aix-en Provence, 1962. 3 The Disintegrating Village: Report of a Socio-Economic Survey (em colaboração 7 Leveling Crowds. Ethnonationalist com N. K. Sarkar). Colombo: Ceylon Univer- Conflicts and Collective Violence in South sity Press, 1957. Asia. Berkeley: University of California Press, 1996. 4 LEACH, E. R. “An Anthropologist’s Reflections on a Social Survey”. In: D. G. 8 Buddhism and the Spirit Cults in Jongmans e P. C. W. Gutkind (orgs.), Anthro- Northeast Thailand. Cambridge: Cambridge pologists in the Field. Van Gorcum & Comp. University Press, 1970. N. V., 1967. CONTINUIDADE, INTEGRAÇÃO E HORIZONTES EM EXPANSÃO 219

9 World Conqueror and World Renounc- 15 “The Magical Power of Words” (Mali- er. A Study of Religion and Polity in Thailand nowski Memorial Lecture 1968). Man, Against a Historical Background. Cam- 3(2):175-208, 1968. bridge: Cambridge University Press, 1976. 16 Magic, Science, Religion and the 10 “The Galactic Polity: The Structure of Scope of Rationality (The Lewis Henry Mor- Traditional Kingdoms in Southeast Asia”. In: gan Lectures 1984). Cambridge: Cambridge S. Freed (org.), and the Cli- University Press, 1990. mate of Opinion. New York: Annals of the New York Academy of Sciences (vol. 293), 17 Culture, Thought and Social Action. 1977; “The Galactic Polity in South Asia”. In: Cambridge, Mass.: Press, Culture, Thought and Social Action. Cam- 1985. bridge, Mass.: Harvard University Press, 1985. 18 In: Culture, Thought and Social Action. Cambridge, Mass.: Harvard University Press, 11 The Buddhist Saints of the Forest and 1985. the Cult of Amulets. A Study in Charisma, Hagiography, Sectarianism and Millenial 19 In: Culture, Thought and Social Action. Buddhism. Cambridge: Cambridge Univer- Cambridge, Mass.: Harvard University Press, sity Press, 1984. 1985.

12 “Animals Are Good to Think and Good 20 Sri Lanka: Ethnic Fratricide and the to Prohibit”. Ethnology, 8(4):423-459, 1969. Dismantling of Democracy. Chicago: The Press, 1986. 13 LEACH, E. R. “Anthropological Aspects of Language: Animal Categories and Verbal 21 Buddhism Betrayed? Religion, Politics Abuse”. In: E. H. Lenneberg (org.), New and Violence in Sri Lanka. Chicago: Univer- Directions in the Study of Language. Cam- sity of Chicago Press, 1992. bridge, Mass.: MIT Press, 1964.

14 JAKOBSON, Roman. “Two Aspects of Language and Two Types of Aphasic Distur- bance”. In: R. Jakobson e M. Halle, Funda- mentals of Language. The Hague: Mouton, 1956.