UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO CENTRO DE LETRAS E ARTES PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM MÚSICA MESTRADO E DOUTORADO EM MÚSICA

O “BRAZILIAN JAZZ” NA DÉCADA DE 1980 NO EIXO RIO - SÃO PAULO

DEBORAH WEITERSCHAN LEVY

RIO DE JANEIRO, 2016

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O “BRAZILIAN JAZZ” NA DÉCADA DE 1980 NO EIXO RIO - SÃO PAULO

por

DEBORAH WEITERSCHAN LEVY

Dissertação submetida ao Programa de Pós-Gradução em Música do Centro de Letras e Artes da UNIRIO, como requisito parcial para a obtenção do grau de Mestre, sob a orientação do Prof. Dr. Luiz Otávio Braga.

Rio de Janeiro, 2016

Levy, Deborah Weiterschan. L668 O “Brazilian Jazz” na década de 1980 no eixo Rio-São Paulo / Deborah Weiterschan Levy, 2016. 147 f. ; 30 cm

Orientador: Luiz Otávio Braga. Dissertação (Mestrado em Música) – Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2016.

1. Jazz. 2. Música instrumental - Brasil - 1980. 3. Brazilian jazz. I. Braga, Luiz Otávio. II. Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro. Centro de Letras e Artes. Curso de Mestrado em Música. III. Título. CDD –781.65

Autorizo a cópia da minha dissertação “O Brazilian Jazz na década de 1980 no eixo Rio-São Paulo” para fins didáticos. —————————————————————————

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LEVY, Deborah W. O “Brazilian Jazz” na década de 1980 no eixo Rio-São Paulo. 2016. Projeto de Dissertação (Mestrado em Música) – Programa de Pós-Graduação em Música, Centro de Letras e Artes, Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro.

Dedico este trabalho aos meus pais.

À minha mãe, Helga Magdalena Weiterschan (in memoriam), com todo amor, por ter compreendido a voz dos céus e me colocado no caminho da música. Sem ela eu não estaria aqui.

Ao meu pai, também com amor, por ter acreditado e apoiado por todos esses anos. E por ter vivido comigo essa batalha.

A ambos, Por terem mostrado como o conhecimento transforma, através de suas vidas orientadas pelo desejo de construir uma grande nação brasileira.

LEVY, Deborah W. O “Brazilian Jazz” na década de 1980 no eixo Rio-São Paulo. 2016. Projeto de Dissertação (Mestrado em Música) – Programa de Pós-Graduação em Música, Centro de Letras e Artes, Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro.

AGRADECIMENTOS

Agradeço ao meu Orientador, Prof. Dr. Luiz Otávio Braga, por dividir comigo a ânsia no decorrer da pesquisa; por permitir, à luz de sua orientação, experimentar minhas idéias; por todo o apoio e fé e pelas luzes que ia acendendo pelo caminho.

À FAPERJ e a CAPES, que sem esse apoio, essa dissertação não seria possível.

A Marcel Alberto Levy, meu pai, por todo o apoio, em todos os sentidos.

Ao meu companheiro, Francisco Carlos Meneses, por todo o amor, dedicação e apoio incondicional em todos os momentos.

À minha filha Clara, pela paciência e amor em todos os momentos em que não pude lhe dar atenção.

Ao Prof. Dr. Marcos Lucas, por seu preciso apoio na hora certa.

Ao Prof. Dr. Álvaro Neder, por ter me dado uma nova visão de mundo através das aulas de musicologia.

À Sheila Zagury, que com esse coração amigo sempre disposto a ajudar, esteve comigo no inicio de tudo.

Às queridas Ana Maria Braga e Rita Scheel-Ybert, pelo apoio em todas as etapas do caminho.

A todos os membros das bancas, por seu sincero interesse e orientação.

A todo o corpo docente do PPGM da UNIRIO.

Ao Prof. Luiz Eduardo, por seu apoio no estágio docente.

A todos os músicos, amigos, conhecidos, que direta ou indiretamente estiveram comigo nessa pesquisa, nos papos e nas conversas jogadas fora.

À toda minha família do Rio de Janeiro, e São Paulo.

À Deus acima de tudo, por sempre estar comigo quando eu preciso.

E aos possíveis amigos espirituais que porventura tenha enviado para cuidar de mim. LEVY, Deborah W. O “Brazilian Jazz” na década de 80 no eixo Rio-São Paulo. 2016. Projeto de Dissertação (Mestrado em Música) – Programa de Pós-Graduação em Música, Centro de Letras e Artes, Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro. 6

“O colonizado pode até aprender com o colonizador. Mas não pode nunca perder suas raízes.” Amilson Godoy

LEVY, Deborah W. O “Brazilian Jazz” na década de 80 no eixo Rio-São Paulo. 2016. Projeto de Dissertação (Mestrado em Música) – Programa de Pós-Graduação em Música, Centro de Letras e Artes, Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro.

RESUMO

A música instrumental brasileira se viu frente a uma nova realidade no eixo Rio-São Paulo na década de 1980: um mercado de jazz crescente, com injeção de investimentos suficiente para sua implementação. Nesse novo mercado, um denominador comum era o fator que fazia acomodar diferentes expressões musicais brasileiras e norte-americanas: através da improvisação, possuía-se o “espírito jazzístico” e adentrava-se a comunidade musical contemporânea do jazz. Nesse processo desterritorializador, instaurou-se uma “cultura do jazz” no mercado consumidor de cultura da elite do eixo Rio - São Paulo, que se tornou autossustentável por toda a década. O rótulo jazz fusion foi o termo facilitador para essa abrangência, pois possibilitou a hibridação de elementos da música instrumental brasileira e do jazz. Os termos, antes compreendidos de forma distinta no país, tiveram seus limites borrados e conviveram durante toda a década dentro de espaços compartilhados entre artistas brasileiros e estrangeiros. A problematização que se instaurou a partir da escolha pela adoção do termo “Brazilian Jazz” partiu da percepção do descompasso existente entre sua adoção no exterior e sua rara adoção no Brasil. Sua significação no mercado internacional designa como jazz diferentes expressões de música brasileira, desde a bossa nova. Essa pesquisa concluiu que a distinção na aplicação dos termos revelou um processo de expansão do mercado consumidor norte-americano, que favoreceu a apropriação da produção brasileira de música instrumental no período e sua inclusão no universo do termo “Brazilian Jazz”, tornando-a novamente territorializada, ou seja, situada no terreno do jazz. Compreendeu-se esse processo inserido no contexto do projeto de modernização brasileira da década de 1980. Como suporte teórico tomou-se o trabalho de Néstor G. Canclini intitulado Culturas Híbridas, que trata da modernização sócio-econômica da América Latina, do qual utilizamos os conceitos de hibridação e heterogeneidade multicultural. De Pierre Bordieu, tomou-se a noção de campo social.

Palavras-chave: Música instrumental brasileira. Brazilian Jazz. Espirito jazzístico. Hibridação . 8

LEVY, Deborah W. The “Brazilian Jazz” in the 1980s in Rio-São Paulo. 2016. Dissertation Project (Masters degree in Music) – Graduate Program, Centro de Letras e Artes, Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro.

ABSTRACT

The Brazilian instrumental music was faced with a new reality in Rio and São Paulo in the 1980s: a growing jazz market, with injection of investments sufficient for its implementation. In this new market, a common denominator was the factor that was accommodate different Brazilian musical expressions and US: through the improvisation, is possessed it "jazzy spir- it" and entered through to contemporary music community jazz. In this deterritorializor pro- cess, it has been established a "jazz culture" in the culture of the consumer market of the elite of Rio - São Paulo, which has become self-sustainable throughout the decade. The fusion jazz label was the facilitator term for this coverage, because it enabled the hybridization of ele- ments of Brazilian instrumental music and jazz. The terms, before understood differently in the country, had their boundaries blurred and lived throughout the decade in shared spaces between Brazilian and foreign artists. The problematics which arose from the choice to adopt the term "Brazilian Jazz" left the perception of the mismatch between their adoption abroad and its rare adoption in Brazil. Its significance in the international market designates as jazz different expressions of Brazilian music, from bossa nova. This research concluded that the distinction in the application of the terms revealed a process of expansion of the US consumer market, which favored the appropriation of the Brazilian production of instrumental music in the period and its inclusion in the universe of the term "Brazilian Jazz", making it again terri- torialized, that is, located in the jazz field. It is understood this process entered in the context of Brazilian modernization project of the 1980s. As theoretical support took up the work of Néstor G. Canclini entitled Hybrid Culture, which deals with the socio-economic moderniza- tion in Latin America, whose we used the hybridization concepts and multicultural diversity. From Pierre Bourdieu, it took the notion of social field.

Keywords: Brazilian instrumental music. Brazilian Jazz . Jazz feeling . Hybridity.

LISTA DE FIGURAS E QUADROS

Figura 1 - Matéria sobre “A música que os músicos querem fazer”……………………… 35 Figura 2 - Matéria Jornal O Globo 24/01/77……………………………………………… 36 Figura 3 - Programação geral do I Festival Internacional de Jazz de São Paulo/Montreux, em 1978 no Palácio de convenções do Anhembi, em São Paulo……………………………… 52 Figura 4: Palácio de Convenções do Anhembi por ocasião do I Festival, em 1978……… 57

Figura 5: Lista de LP´s lançados pela Phillips na série “Música popular brasileira contemporânea”………………………………………………………………………………86 Figura 6: Matéria do Jornal Correio da manhã, janeiro de 1984…………………………… 89

Quadro 1 - Créditos de gravação do álbum “Slaves Mass”…………………………………. 40 Quadro 2 - Track list de “Águia não come mosca”…………………………………………. 45 Quadro 3: Programação brasileira do II festival de Jazz de São Paulo/Montreux de 1980….58 Quadro 4: Programação do Rio Jazz Monterey Festival……………………………………..63 Quadro 5: Programação do 1º.Free Jazz Festival em São Paulo………………………….. 99 Quadro 6: Programação do 1º Free Jazz Festival no Rio de Janeiro………………………. 100 Quadro 7: Programação da 2ª edição do Free Jazz Festival em São Paulo, em 1986………115 Quadro 8: Programação da 2ª edição do Free Jazz Festival em Rio de Janeiro, em 1986….115 Quadro 9: Programação da 3ª edição do Free Jazz Festival, no Hotel Nacional, RJ……… 126 Quadro 10: Programação da 3ª edição do Free Jazz Festival no Palácio de Convenções do Anhembi, SP………………………………………………………………………………. 126

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ………………………………………………………………………….. 10

CAPITULO 1 - TUDO VEIO VINDO A SEU TEMPO ………………………………… 16 1.1- Jazz …………………………………………………………………….. 16 1.2 - Rock……………………………………………………………………. 24 1.3 - Soul/funk/black music…………………………………………………. 28

CAPITULO 2 - 1977: A MIB E O EMBALO DO NOVO “BRAZILIAN JAZZ”………… 34 2.1 “A música que os músicos querem fazer” e o choro …………………….. 34 2.2 “Slaves Mass" e a música livre de ……………………..38 2.3 O “samba doido” do Azymuth em Montreux……………………………. 44 2.4 Os festivais de Jazz……………………………………………………..……… 50 2.4.1 - 1º Festival Internacional de Jazz São Paulo/Montreux………….. 51 2.4.2 - 2º Festival Internacional de Jazz São Paulo/Montreux…………. 58 2.4.3 - Rio Jazz Monterrey Festival…………………………………. ….. 62

CAPITULO 3 - A PRIMEIRA METADE DA DECADA DE 1980 ……………………… 67 3.1 O jazz como “estado de espírito” e “comunidade internacional” ……… 67 3.2 O jazz fusion e a MIB…………………………………………………… 71 3.3 Duas escolas……………………………………………………………. 79 3.4 A reinvenção do espaço……………………………………………………82 3.4.1 Sobre a indústria fonográfica…………………………………. 91 3.5 colonização x antropofagia e expansão territorial…………...... 93

CAPITULO 4 - A SEGUNDA METADE DA DECADA DE 1980 ……………………… 97 4.1 O Free jazz festival ………………………………………………………. 97 4.1.1 – As homenagens………………………………………………….. 100 4.1.2 - O jazz-pop ……………………………………………………… 103 4.1.3 - A MIB impulsiona o jazz………………………………………. 106 4.2 A explosão do jazz e o novo cenário …………………………………… 111 4.2.1 - O internacional mercado brasileiro do jazz…………………… . 111 4.2.2 - Rio: a capital do jazz ………………………………………….. 114 4.2.3 - A luta pela MIB na “Catacumba”…….………………………… 118 4.2.4 - As conquistas da MIB………………………………………….. 120

CONSIDERAÇÕES FINAIS……………………………………………………………. 129

REFERÊNCIAS…………………………………………………………………………. 133

ANEXOS………………………………………………………………………...... 137

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INTRODUÇÃO

A década de 1970 foi para a música instrumental brasileira uma época de surgimento de novas tendências expressivas e estilísticas, onde a busca pela liberdade criativa refletia uma procura artística mundial. A figura do músico virtuose brasileiro ganhou novo destaque no cenário internacional do jazz, que atravessava um período de transformações e experimentalismos, como a fusão com o rock e a consolidação do jazz avant-garde da década de 1960. Gêneros como o samba, o jazz, o choro ou o baião já haviam se consagrado em suas formas iniciais e se reciclado em novos processos de transformação/desdobramento. A bossa nova já havia sido exportada e consumida nos EUA. A música experimental estava em cena, influenciando o rock progressivo, e havia ainda a música concreta, a eletrônica e outras. Hermeto Pascoal lançou, em 1977, o álbum “Slaves Mass”, gravado nos EUA, com , , Raul de Souza e músicos de jazz norte-americanos, consolidando um marco da nova música instrumental brasileira. Cinco anos antes, em 1973, gravava e lançava nos EUA seu primeiro álbum solo de nome homônimo, “Hermeto”, com Flora, Airto e músicos de jazz norte-americanos, como resultado de um convite feito pelo casal, em 1969, para que atuasse como músico e arranjador naquele país. Naquele mesmo ano, o casal gravava com Chick Corea, Joe Farrel e Stanley Clarke no grupo Return to forever, um dos trabalhos mais representativos do jazz fusion norte-americano dessa década. O grupo Azymuth foi o primeiro grupo brasileiro convidado a participar do Festival de Montreux, na Suíça em 1977. O I Festival de Jazz de São Paulo-Montreux (1978) reuniu 60.000 pessoas no Anhembi em torno de uma programação que mesclava artistas da música instrumental brasileira e jazzistas norte-americanos. Egberto Gismonti, já consagrado com o sucesso de vendas de “Solo” nos EUA, se tornava famoso por retratar a diversidade musical brasileira numa linguagem própria. O pianista Antonio Adolfo, lançava “Feito em casa” (1977), o álbum independente pioneiro no mercado da música instrumental brasileira. Foi nesse universo multifacetado de referências, de estreitas relações com o mercado de jazz norte-americano, que uma geração de músicos despontou na década de 1980, dentro do mercado da música instrumental brasileira ou “Brazilian Jazz”, como está aqui apresentado entre aspas. “Brazilian Jazz” é um termo raramente empregado no Brasil, sendo empregado geralmente no mercado estrangeiro de jazz e na indústria fonográfica estrangeira, para designar um “gênero” de música brasileira de amplo espectro, de músicos e grupos

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relacionados a música instrumental brasileira e suas inúmeras vertentes, e ainda, a bossa nova, ao choro, a MPB e outros, catalogados embaixo do mesmo “guarda-chuva” que levam os termos “brazilian” e “jazz” em sua composição.1As fronteiras estendidas que são conferidas ao “Brazilian Jazz”na catalogação estrangeira colocam no mesmo patamar diferentes expressões de música brasileira, por diversas vezes bastante distintas. A bossa nova de João Gilberto é, para os brasileiros, completamente diferente da música de Hermeto Pascoal, de Marcos Ariel ou , e dentro do país seriam identificados em rótulos diferentes, como bossa nova, música instrumental e MPB. No Brasil, o objeto desse estudo é mais reconhecido pelo termo “música instrumental brasileira”.2 Brazilian jazz, ou jazz brasileiro são termos para os quais não há um consenso no país. Para Zuza Homem de Mello “o termo Brazilian Jazz é muito apropriado, porque, na verdade, ao contrário da maioria dos países do mundo, o jazz brasileiro é música brasileira”3. Nesta pesquisa, adotaremos a sigla MIB, para música instrumental brasileira, distinguindo-a de jazz. Sabemos que questões de rotulação de gêneros musicais são sempre fontes de discussões aprofundadas e normalmente trazem consigo a chave para investigações das forças e discursos que se apresentam no campo dos conflitos. A diferença no emprego dos termos, denota, em primeira mão, uma diferença nas formas de se relacionar com essa produção. Se por um lado, a indexação da palavra “jazz” a distintas expressões de música brasileira pode ser um indicativo de um processo de apropriação cultural por parte do estrangeiro, apontando para um reconhecimento de que em todas essas expressões musicais brasileiras há traços jazzísticos, por outro, a ideia pode ser considerada inversa: um processo de apropriação do

1 A definição do termo Brazilian Jazz é controversa nas diversas fontes de consulta, dada a abrangência, e não há, nem na comunidade musical brasileira, nem na comunidade científica, um consenso a respeito da delimitação de seu significado. Numa rápida pesquisa acerca do termo na Internet, as tags relacionadas encontradas são: bossa nova, samba, Brazil, latin jazz, Brazilian, MPB. Sites especializados de jazz foram os locais onde mais foram encontradas utilizações do termo. No site norte-americano ALLMUSIC está classificado como uma sub- classificação dentro de World music - Latin Jazz - Jazz, e traz como representantes distintos artistas brasileiros e estrangeiros. Fonte: http://www.allmusic.com/style/brazilian-jazz-ma0000002478. Acessado em 17/06/2016. No site especializado em jazz, eJazz, foi encontrada uma página dedicada ao “Jazz Brasileiro”, definido como “não um estilo fechado e definido, mas sim plural e mutável.” Fonte: http://www.ejazz.com.br/detalhes- estilos.asp?cd=181. Acessado em 17/06/2016. 2 O uso comum generalizado é o do termo “música instrumental”. Verificou-se porém recentemente um documentário intitulado “Jazz Brasileiro - Zimbo Trio”, de Vitor Lopes Leite, que adota o termo e discute a música instrumental brasileira a partir da percepção dos integrantes do grupo sobre a hibridação da música brasileira com o jazz. 3 Depoimento dado em entrevista concedida a autora em 2010, p.12, em seu trabalho “O Brazilian Jazz no Rio de Janeiro, década de 1980: a mudança de direção de um mercado em ascensão”, onde a pesquisadora analisa a trajetória mercadológica do gênero, em monografia concluída em 2010 como requisito de formatura do curso de Pós-graduação lato sensu em Gestão Cultural da Universidade Cândido Mendes.

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jazz por parte dos brasileiros. A saída para a questão deve ser buscada então na investigação histórica, coleta de dados, cruzamento dos dados e sua interpretação. A não-adoção do termo “jazz brasileiro” no Brasil nos aponta um indício, uma chave para uma investigação a respeito das relações culturais entre Brasil e EUA no campo da música instrumental, analisando os discursos e forças que compuseram o campo no eixo Rio-São Paulo na década de 1980. Se o jazz, presente no país desde a década de 1920 foi o pivô das polêmicas identitárias em torno das hibridações do samba-jazz na década de 1960, essa discussão ganhou outra dimensão com o crescimento da indústria fonográfica a partir da década de 1970, quando outros gêneros norte-americanos, que já vinham adentrando o país, como o rock, o funk e o soul, passaram a compor o vocabulário dos músicos e a integrar seu corpus musical. Por outro lado, outros gêneros brasileiros como o baião e o choro estavam cada vez mais assimilados no vocabulário do músicos popular, a partir de referências como o Quarteto Novo e Paulo Moura. O samba, já há muito consagrado, começa a ser transformado e subvertido em vários sentidos. Em novas formas híbridas, o samba-jazz, o samba-funk e o samba-rock ganham terreno. Todos esses elementos musicais foram sendo acumulados no vocabulário dos músicos expoentes da década de 1980, que irão assistir ainda a invasão da música pop norte- americana nesta década. Entre os fatores mercadológicos que contribuíram para fazer brotar na década de 1980 um ambiente favorável para o surgimento de um mercado crescente de “Brazilian jazz” estão um aumento de status da música instrumental brasileira (intimamente ligado ao sucesso de músicos que se destacaram na década de 1970), a explosão do crescimento fonográfico e a expansão de um mercado consumidor de música no Brasil - que foi elevado ao 6º lugar no ranking mundial em 1979 (MORELLI, 2009). Nos primeiros anos da década de 1980, inúmeros músicos e grupos instrumentais se fixaram no eixo Rio-São Paulo, interessados em ingressar em um mercado de jazz e música instrumental que surgia forte e crescia efervescente, apresentando oportunidades.4 No Rio de Janeiro e em São Paulo, casas noturnas, boates e teatros abriam espaços, com programação sistematizada de shows e alta rotatividade. Projetos promovidos pela esfera pública, como o RioArte Instrumental (“Música na Catacumba”), no Parque da Catacumba, RJ, apresentava

4 Encontra-se em anexo uma lista com nomes de artistas que produziram lançamentos no campo da música instrumental brasileira da década de 1980. 13

shows gratuitos de música instrumental e jazz quinzenalmente. A partir de 1985, o Free Jazz Festival tem edições anuais nas duas capitais, sempre com apresentações de artistas estrangeiros e nacionais. O mercado foi impulsionado em um amplo crescimento, desde os anos finais da década de 1970, com a aplicação de recursos em festivais de jazz, iniciativas privadas na vida noturna e ações da esfera pública. A música instrumental encontrava espaço na programação diária de algumas rádios, tocando lançamentos muitas vezes gravados com recursos próprios, ou de gravadoras multinacionais, para os que alcançaram esses contratos. Se constitui um mercado no eixo Rio São Paulo na década de 1980, onde o músico de música popular que soubesse atuar na cena, não teria dificuldades em encontrar espaço para mostrar seu trabalho. O objetivo deste trabalho, sob a ótica problematizada da aplicação do termo, é traçar um perfil da música instrumental brasileira na década de 1980, compreendida dentro de processos culturais de mercado e contextualizada sócio-economicamente. Trata-se de uma pesquisa documental e bibliográfica. Para isso foi feita, no primeiro capítulo, uma revisão da crescente entrada do jazz, do rock e da black music (soul e funk) no país desde a década de 1920. Entendendo a música popular veiculada nos canais correntes como parte constitutiva da ‘matéria-prima’ do músico profissional desse campo, com a qual ele estabelece uma relação de vivência em diversos níveis, verificou-se que seria necessário investigar de que forma esses gêneros norte- americanos estariam presentes em seu campo de atuação profissional. No segundo capítulo, “A MIB e o ‘embalo do novo Brazilian Jazz” analisamos alguns fatos ocorridos entre os anos de 1977 e 1980 que impactaram decisivamente o mercado na década de 1980: a) em “A música que os músicos querem fazer e o choro” analisa-se o movimento de jovens músicos que buscam uma determinada autonomia sobre sua carreiras através do choro a partir de 1977; b) em “Slaves Mass e a música livre de Hermeto Pascoal”, o lançamento do disco e o impacto deste trabalho no mercado brasileiro, tanto pelo viés mercadológico quanto musical; c) em “O samba doido do Azymuth em Montreux”, analisamos a participação do grupo no Festival suíço de 1977, como o primeiro grupo brasileiro a se apresentar neste referencial anual do jazz ; d) em “Festivais de Jazz” são analisados três festivais: os I e II Festival Internacional de Jazz de São Paulo/Montreux, promovidos pela Secretaria da Cultura, Ciência

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e Tecnologia do Estado de São Paulo em parceria com o Festival de Montreux, e o Rio Jazz Monterrey Festival produzido pelos empresários Roberto Muylaert e Walter Longo com o patrocínio da USTOP jeans. No terceiro capítulo, “A primeira metade da década de 1980”, fez-se um aprofun- damento sobre o recente incremento do mercado do jazz no país, quais foram suas portas de entrada e de que maneira impactou o mercado da música instrumental aqui existente, distinguindo-a como uma primeira fase de um processo. No quarto capítulo, “A segunda metade da década de 1980”, a partir da instauraç- ão do Free Jazz Festival, analisou-se a continuidade do processo em fase de consolidação e seus impactos num mercado dividido. Uma familiaridade prévia com termos do universo da MIB e do jazz facilitam o acompanhamento das análises aqui empregadas. Serão importantes nesse trabalho a identificação daquilo que Phillip Tagg (2004) nomeou como fragmentos idiomáticos, ou musemas, associados a gêneros, como o jazz, samba, baião, etc. A utilização de diferentes musemas provenientes de diferentes gêneros na mesma música ou no mesmo álbum, denota uma não preocupação em se estabelecer uma ruptura com o antigo, e sim, uma coexistência de todos, onde se encontram o tradicional, o culto e o massivo, configurando-se numa heterogeneidade multitemporal (Canclini). A ideia de heterogeneidade cultural está contextualizada em Canclini no processo de modernização da América Latina, cuja modernização tecnológica é descompassada do modernismo simbólico, tendo sido este último definido não como “expressão da modernização socioeconômica, mas o modo como as elites se encarregam da interseção de diferentes temporalidades históricas” (2013, p.73). Caberá portanto nesse trabalho investigarmos de que forma essa heterogeneidade do “Brazilian Jazz” se inseriu nessa agenda de modernização cultural do país. Investigaremos como o jazz - um gênero/matriz nascido em New Orleans/EUA no começo do século XX - foi usado dentro desse movimento modernizante, cerca de 80 anos depois de seu nascimento. Pretendemos dessa forma preencher uma lacuna que existe sobre a produção de música instrumental da década de 1980 nos estudos culturais brasileiros. Como literaturas que tangem os assuntos a serem aqui tratados podem ser citados os trabalho de: Acácio Tadeu Piedade, “Jazz, Música Brasileira e Fricção de Musicalidades”, que discute a utilização do termo “fricção”, aplicado no âmbito da improvisação jazzística; de Joana Saraiva, “A invenção do Samba Jazz”, que enfoca o período das disputas discursivas em torno do samba-jazz em meados da década de 50 e 60; a dissertação de Sabrina Lôbo de 15

Moraes, “Soul mais samba: Movimento Black Rio e o samba nos anos 70” que enfoca o nascimento do movimento Black Rio. Sobre músicos do período estudado, destaca-se o trabalho de Luiz Costa-Lima Neto, “A música experimental de Hermeto Pascoal e grupo: 1981 a 1993, concepção e linguagem”; de Dani Spielmann, “Tarde de chuva: a contribuição interpretativa de Paulo Moura para o saxofone no samba-choro e na gafieira, a partir da década de 70”. Muitos estudos foram feitos a respeito da trajetória mercadológica e artística da música popular brasileira, porém, o enfoque que tem se dado, em maciças proporções, recai sobre a produção de canções, dentre a denominada MPB. Sobre a música instrumental ainda existe uma grande lacuna a ser preenchida. A relevância deste trabalho reside também na contribuição aos estudos da musicologia histórica brasileira, no que diz respeito a representatividade da música brasileira no exterior no período da década de 1980, preenchendo uma lacuna deixada pela maioria dos estudos, que se esgotaram na década de1970. Como proposta de investigação da produção de música instrumental da década de 1980 como um processo histórico-cultural-econômico não foi encontrado nenhum trabalho: a precariedade e a falta de bibliografia sobre o assunto tornam essa pesquisa relevante. E por pioneirismo, este trabalho deve fornecer um panorama global, sob um olhar crítico. A visão estética não é divorciada da visão crítica, alinhando-se aos preceitos da nova musicologia.

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CAPITULO 1 - TUDO VEIO VINDO A SEU TEMPO

Numa primeira observação objetiva, a que tange exclusivamente o universo musical, o “Brazilian Jazz” da década de 1980 é um momento em que os músicos passam a utilizar elementos provenientes de distintos gêneros brasileiros e norte-americanos já consolidados no país em sete décadas anteriores. Identifica-se facilmente alguns gêneros norte-americanos principais: o jazz/blues, rock, funk/soul e o pop. Os elementos foram identificados através da escuta de uma ampla gama de composições de distintos autores, e podem ser eles: os ritmos característicos ou as “levadas”, tipos de escalas características, técnicas de orquestração, timbres, melodias, estruturas harmônicas, instrumentação e muitos outros parâmetros. Por essa razão, antes de propriamente adentrarmos a análise da trajetória e da produção musical no segundo capítulo, se faz necessária uma revisão de como esses gêneros norte-americanos adentraram o país de forma definitiva, isto é, quais foram suas portas de entrada e como se estabeleceram no mercado da musica popular de consumo nos meios da crescente indústria cultural.

1.1 Jazz

O viés que o jazz adentrou o Brasil nos anos finais da década de 10 foi o mesmo que o fez explodir na Europa depois de já ter se tornado febre nos EUA: o da dança. Era para dançar que se tocava jazz nos bailes dançantes na era pós-primeira guerra, onde os jovens beiravam o frenesi. No Brasil, a partir dessa década, essa Era do Jazz se mistura rapidamente ao maxixe, tango, samba e choro, compondo o repertório das Jazz Bands formadas por músicos de baile e de corporações militares. A partir da primeira gravação de foxtrote num disco brasileiro que se tem registro, em 1917, pela Orquestra Pickman, “Ragging this Scale”, instaura-se a predominância dos ritmos norte-americanos sobre os de ascendência europeia no 17

Brasil5. O foxtrote é uma dança executada ao som de uma banda de jazz que toca o ragtime, e, no Brasil, passa a designar um gênero de música jazzística para a dança. A formação de bandas de jazz nesse período no Brasil não parece estar muito atrasada em relação aos EUA: data dos idos de 1900 a primeira banda de jazz registrada historicamente em New Orleans e data de 1923 a primeira banda no Brasil a se intitular uma Jazz band: a Jazz Band Brasil América, do saxofonista João Batista Paraíso, ao gravar o froxtrote “Vênus” (MELLO). Porem, a introdução da bateria na Jazz Band brasileira data de 1919, trazida com este nome (bateria) da argentina, pelo baterista americano Harry Kosarin que já havia passado um tempo em Buenos Aires (e que ficou aqui conhecido como “o maestro” que introduziu o jazz no Brasil).6 A formação da banda de jazz mesclava ainda elementos de bandas militares ou do choro: centralizada na bateria, tuba, banjo, eventualmente piano, violinos e quatro instrumentos de sopros, o trombone, trompete, clarineta e o saxofone, que ganhará cada vez mais importância. Dentre as orquestras de destacada produção na época há que se destacar a trajetória da Jazz Band Sul-Americana do saxofonista Romeu Silva, que gravou, até 1925 no Brasil pelo selo Odeon, cerca de 137 músicas instrumentais e vocais - acompanhando seu crooner Fernando - em compactos que continham uma música de cada lado: isso significou cerca de 50% da produção da gravadora entre 1923 e 1925. Neste mesmo conseguiu patrocínio do Ministério do Exterior para excursionar pela Europa por sete anos para promover a música dançante do país, e assim se tornar conhecido como o primeiro maestro brasileiro a se destacar internacionalmente com uma Jazz Band.7 Mas o singular papel de grande artista coube mesmo a Pixinguinha, o embaixador que levou a música brasileira com instrumentação de choro`a França com grande sucesso, em 1922, três anos antes de Romeu.8 Muito já foi falado sobre seu contato com o jazz em Paris, e que dele trouxe elementos da linguagem jazzística, com os quais realizou hibridações naturais em sua rica linguagem de chorão e em suas composições. Ao passar seis meses em Paris com

5 Zuza Homem de Mello nos lembra que, “especificamente nos primeiros catorze anos do séc.XX, a música instrumental brasileira gravada era dominada por dobrados, mazurcas, choros, polcas, valsas e quadrilhas, gêneros, que, não escondendo a forte influência européia, revelavam o que devia estar em voga nos eventuais bailes de então. (MELLO, 2007, p.72-73). 6 idem, p.76. 7 ibidem, p.78. Mello descreve Romeu como “um bonitão que aliava seus atributos de aparatoso líder e compositor sofrível à iniciativa de empresário ousado e bem articulado". 8 A importância das apresentações do grupo em Paris é ainda avaliada por Rafael Bastos como “muito bem- sucedidas, considera o contato com os músicos norte-americanos fértil e qualifica a volta do grupo ao Brasil, que iria participar das festividades do primeiro centenário da Independência no Rio de Janeiro, como triunfante.”(2005)

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“Os Batutas”, travou contato com o ragtime, shimmy e o charleston, bem como passou a adotar o saxofone (que mais tarde, por motivos de saúde será seu principal instrumento), o banjo e a bateria em sua nova Jazz band. Esses fatos colocam Pixinguinha entre os precursores do jazz no país, revelando um músico afinado com as tendências de seu tempo, a frente dele em alguns aspectos, quando protagoniza a inserção de elementos jazzísticos na música brasileira como em “Carinhoso”9, mesmo debaixo de protestos sobre seu caráter “genuinamente brasileiro”. Pixinguinha foi imortalizado como um dos principais embaixadores da música brasileira, no universo do choro e do samba, e se esse fato naquele momento promoveu essa disputa de discursos, ao longo da história que se seguiria, isso estaria diluído. Dentre os veículos publicitários, as publicações da editora comercial Tin Pan Alley, responsável pela popularização do ragtime foram determinantes na difusão comercial destas formas de jazz fora dos EUA. Aqui, como na Europa, o viés de entrada desse novo gênero, que, segundo Hobsbawm carateriza um jazz híbrido - orquestrações de canções com ritmos de jazz e ragtime para formações de Big bands - foi o mesmo de suas origens: o da indústria cultural. Mas foi na era subsequente que outra dança explodiu mais ainda, nos EUA primeiramente e depois pelo Europa, propagada pelo desenvolvimento crescente da indústria cultural: na década de 1930 estoura o swing, multiplicando o número de músicos nas orquestras, os naipes de saxofones e de metais, os salões de dança e o público. As Big bands substituem as Jazz bands e os brancos adentram o terreno até então de predominância negra bem como os violinos são extintos da nova formação. Big bands como a Count Basie Orquestra, a Orquestra de Duke Ellington, Cab Calloway, Benny Goodman, entre outras, lotam bailes e vendem discos para os EUA, Europa e América do Sul, cada uma a seu estilo. No Brasil, as primeiras orquestras que já não utilizavam “Jazz band” em seus nomes, foram montadas pela gravadora Columbia, que se instalou no Largo da Misericórdia, em São Paulo, resultado da associação do empreendedor paulista Alberto Byington com o americano Wallace Downey. Em São Paulo, vários conjuntos sob a direção do maestro Odmar Amaral Gurgel , o Gaó, foram montados para servir à gravadora, mas a mais proeminente foi a Nova Orquestra Colbaz. No Rio de Janeiro, a orquestra Pan American, de

9 O próprio Pixinguinha fala dessa influência: “- Compus o Carinhoso em 1920. Era uma peça instrumental, com bastante influência do jazz americano” (CALADO, 2007). 19

Simon Bountmann, era usada desde 1927 para as produções da gravadora e mantinha uma agenda repleta de bailes e gravações. Mas foi só em 1937 que o Maestro Gaó montou, ainda em São Paulo, sua orquestra, totalmente moldada nas Big Bands americanas, desde a instrumentação até os figurinos: a Nova Orquestra Columbia, executando arranjos do maestro para Ary Barroso, Noel Rosa, Sinhô, tangos e foxtrotes nos bailes dançantes, tiradas de ouvido pelo maestro dos discos de Benny Goodman, Tommy Dorsey, Duke Ellington e Glenn Miller. Gaó atuou com essa orquestra até 1940, quando foi levado para atuar no Cassino da Urca. Com a mudança de Gaó para o Rio de Janeiro, Totó e sua Orquestra ocupou o espaço vago deixado nesse mercado. No Rio de Janeiro, a mais destacada orquestra surgiu no ano de 1938, do saxofonista alagoano Otaviano Romeiro Monteiro, o Fon-Fon, com sua Orquestra Fon-Fon. A esta ocasião, Fon Fon gravou o “primeiro de qualquer orquestra brasileira registrado pelo sistema de 33 rotações”, gravado pela marca inglesa London, “Brazilian Rhythms”. Outras importantes orquestras montadas por músicos virtuosos nessa época são: a orquestra do clarinetista e compositor K-Ximbinho (Sebastião Barros) e a orquestra Zacharias, do saxofonista e clarinetista Aristides Zacharias. Porém, existe uma orquestra liderada pelo clarinetista, compositor e arranjador pernambucano Severino de Araújo desde 1938, a Orquestra Tabajara, que é a orquestra ainda em atividade mais antiga do mundo. Segundo Zuza Homem de Mello, a Orquestra Tabajara é a maior responsável pela fixação do gênero choro de orquestra como a música dançante ge- nuinamente nacional, legando composições de grande repercussão para a época e para a posteridade, como “Um chorinho em aldeia” e “Espinha de bacalhau”. Por ela passaram grandes músicos que fizeram parte da história do jazz brasileiro, como os saxofonistas Zé Bodega, Paulo Moura, Juarez Araújo, Casé, entre muitos outros. A imitação das Big bands norte-americanas não se restringia a inclusão do fox-trot no repertório, aos uniformes, ou as estantes com o logotipo das orquestras: mais dos que esses aspectos estéticos, as novas orquestrações e principalmente, a improvisação jazzística ao instrumento, personificada na figura do jazzman, são contribuições definitivas que irão perdurar nas décadas seguintes. Callado (2007) relaciona a atitude do jazzman à teatralidade espetacular na música, lançando mão de recursos dramáticos que vão sendo descobertos através da prática espontânea e cotidiana. A novidade do jazzman preconiza uma liberdade inédita na execução musical, e ainda nessa fase das Big bands é uma novidade tentadora, desafiante e instigante também para o músico brasileiro, que passa a ter nas ornamentações improvisadas um espaço de expressão individual.

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Na década de 40, os bailes dançantes para as classes mais abastadas nos cassinos não representavam apenas alegria e frenesi, mas também glamour: foi no Cassino da Urca que Getulio Vargas recebeu a famosa homenagem de aniversário promovida pelo governo dos EUA, Presidente Roosevelt, tendo Orson Welles como embaixador, transmitida pelo rádio para ouvintes norte-americanos, em abril de 1942. A “Política da boa vizinhança” já estava em pleno vapor, e Carmem Miranda já estava “ficando americanizada”. O “namoro” com o vizinho de baixo havia sido muito bem planejado por Rockefeller para ampliação do mercado consumidor norte-americano, com o cinema, o rádio e a propaganda.10 O projeto radiofónico do Office de Rockefeller transmitia diretamente dos EUA em ondas curtas para o Brasil radiojornais com notícias sobre os avanços da “América” na Segunda guerra - envolvendo o Brasil como se estivesse já no campo de batalhas - a participação das mulheres nas indústrias, os avanços industriais, os automóveis e todos os esteriótipos do “American Way of Life” (TOTA, 2000), bem como orquestras de jazz. O rádio e o cinema foram os principais veículos de apresentação do jazz para o público em geral, não consumidor e não especializado. Essa crescente indústria cultural representava cada vez mais o campo de trabalho do músico popular e as rádio e os cassinos eram os espaços mais importantes, pois mantinham orquestras regulares em seu cast, com farta demanda de emprego não só para músicos, mas para dançarinos e artistas em geral. Na capital federal de então, o Rio de Janeiro, havia em 1936 quatro grandes cassinos e oito emissoras de rádio que mantinham orquestras e esse foi, para Zuza, o seu período mais auspicioso (MELLO, 2007). Se a música brasileira era vista sob um perfil exótico nos tempos de Carmem Miranda nos EUA, a partir da década de 50 esse quadro começa a se modificar. O fechamento dos cassinos pelo Presidente Marechal Dutra, em 1946, representou um marco decisivo na trajetória da música no país, pois colocou da noite para o dia 40.000 músicos na rua, desempregados. 11 Como consequência do desemprego, alguns músicos deixaram de ser

10 “Ponto estratégico na disputa com o Eixo, o Brasil transformou-se durante a Segunda Guerra numa das prioridades da política externa americana. Para o presidente Roosevelt, garantir o apoio do país era indispensável para manter a soberania do continente e, por conseqüência, dos Estados Unidos. Criou-se então uma agência especial, comandada pelo multimilionário Nelson Rockefeller. O objetivo era promover o estreitamento das relações entre americanos e brasileiros - principalmente através dos meios de comunicação. A agência organizou um verdadeiro "bombardeio ideológico" ao país, divulgando através do rádio, do cinema e das revistas um mundo atraente de consumo e progresso. Não podia ser diferente: encarnado por astros como John Ford, Walt Disney ou Orson Welles, o american way of life tornava-se quase irresistível.” TOTA, Antonio Pedro. “O Imperialismo sedutor”, Companhia das Letras, Ed.digital. 11 FRANCISCHINI, Alexandre. Laurindo Almeida : dos trilhos de Miracatu às trilhas em Hollywood. São Paulo : Cultura Acadêmica, 2009. P.41. 21

profissionais, outros deixaram o país, o que foi o caso do violonista Laurindo de Almeida que, ao perder seu emprego no Cassino da Urca, se mudou para os EUA no ano seguinte.12 Seria natural que o fluxo de músicos e frequentadores órfãos dos cassinos seguisse em busca de outras opções de fruição e consumo noturno, e as casas noturnas e boates passam a ser os espaços que vieram a preencher essa lacuna:

(…) “foi nas luxuosas boates que infestaram a noite de Copacabana no fim dos anos 1940 que o gênero viveu sua era de ouro. Depois que o presidente Dutra proibiu o jogo, em 1946, deixando sem chão tanto os músicos de orquestra que trabalhavam nos cassinos quanto os magnatas que os frequentavam, foram lugares como a boite Vogue ou o Golden Room do Copacabana Palace, que concentraram o glamour e o poder nas madrugadas.” (site).13

Dentre as inúmeras casas noturnas que abrigaram esse fluxo, podemos citar, da orla do Leme a de Copacabana, o restaurante Sorrento, a Furna da Onça, o Alpino, o bar de toldo verde, a Tasca e a Taberna. (SARAIVA, 2007, P.24). O samba-canção ganhou força nesse novo mercado, que abrigava grupos pequenos em oposição aos grandes cassinos que possuíam orquestras. Com essas novas formações pequenas (de forma geral, violão, piano, baixo, bateria, sax, voz) adaptadas em termos de volume e exuberância frente aos novos espaços, tocava-se também boleros, sambas, tangos e o jazz que as classes dominantes ouviam nos discos importados, e que os músicos atualizados com o momento executavam. Em 1949, a fundação do primeiro fã-clube da cidade, o Sinatra-Farney fã clube, na Tijuca, RJ - criado a partir da interlocução com os fãs do programa do DJ Luiz Serrano na Rádio Globo, o primeiro a tocar LP’s na rádio, novidade trazida dos EUA - teve grande importância no estado embrionário da bossa nova, ao reunir em começo de carreira Joao Donato, Jonnhy Alf, Paulo Moura, Doris Monteiro e a própria Nora Ney. Eles se reuniam para reverenciar a obra de Dick Farney e Frank Sinatra, e, principalmente, experimentar o jazz. Nesse contexto, a partir de 1950, o jazz começa a ser usado de forma mais efetiva na reestruturação de novos gêneros da música popular brasileira, a surgir no período. O

12 Esse fato foi importante para a projeção da música brasileira na década seguinte nos EUA, pois Laurindo a essa altura já era um músico consagrado, amigo de Radamés Gnattali e Villa Lobos, dos quais gravou algumas obras em gravadoras estadunidenses, entre elas a série de LP’s Braziliance, com o saxofonista Bud Shank, “trabalho que representa um marco na fusão do jazz norte- americano (deste último mais especificamente a abertura de chorus de improvisação em meio aos temas) sobre ritmos brasileiros.”(FRANSCISCHINI, 2009). 13 Reportagem de Marian Filgueira sobre o novo livro de Ruy Castro “A noite do meu bem: a história e as histórias do samba-canção”. Disponível em: http://oglobo.globo.com/cultura/livros/em-novo-livro-ruy-castro- descola-de-vez-samba-cancao-da-bossa-nova-18050062. Acessado em 12/02/2016.

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crescimento da indústria fonográfica e o consequente aumento da importação de LP’s de jazz, que trazia nessa época as novidades do bebop, facilitou aos músicos o acesso a essa nova forma de tocar, incentivando um estilo cada vez mais jazzístico. No Rio de Janeiro, no efervescente bairro de Copacabana, na zona sul, as boates passaram a ser espaços onde se reuniam para tocar livremente: as jam sessions. Era nelas (o primeiro lugar reconhecido como pólo desse novo movimento é o “Little Club”, no Beco das Garrafas) que os músicos experimentavam novas linguagens, misturando levadas de samba a improvisações jazzísticas, em contraponto aos samba-canções, mambos, boleros, sambas, tangos que costumavam formar o repertório da “música de boate”. Daí surgiu o samba-jazz, e tocar e ouvir jazz se tornou uma espécie de “modismo sofisticado” (SARAIVA, 2007, p.18).

“Os bons músicos sempre procuraram desenvolver novos e criativos caminhos para poder expor sua musicalidade. Desde antes da bossa nova, em 1958, alguns excelentes instrumentistas já se antecipavam na busca de uma linguagem jazzística brasileira. Tive a oportunidade de tocar durante dois anos no Quinteto de Jazz do Casé – apelido de José Ferreira Godinho Filho, considerado o melhor saxofonista daquela geração e grande precursor desse caminho musical, que acabou sendo denominado de samba-jazz. O estilo pressupunha composições com suingue (balanço) brasileiro, muitas improvisações com temas sustentados por sofisticadas harmonias e com grande variedade rítmica totalmente inspirada em nossas raízes e em nosso folclore. Conseqüentemente, o músico precisava ter vasto conhecimento musical e total domínio do seu instrumento para poder participar dessa proposta.” (GODOY, 2007, p.92).

Se até então a palavra jazz se restringia a nomear o gênero norte-americano, a partir da década de 1950, passa a nomear um gênero expoente de música brasileira, ao lado do samba, (mesmo que debaixo de muitas controvérsias entre os que consideravam o jazz uma ameaça descaracterizante e os que apreciavam as experimentações) apresentando um indicativo de intensidade com que este já havia sido incorporado a MPB. Se por um lado os saudosistas alegavam a descaracterização do samba, por outros os modernos defendiam a hibridação como uma “evolução”, que tinha porém, limitações:

“Entre os que lêem a “crise” como “evolução” há uma restrição quanto à maneira de se incorporar as influências externas ao samba; tudo é permitido desde que o seu “ritmo característico” não seja desvirtuado. Os arranjos “sofisticados” são bem vindos desde que o samba continue sendo samba em suas características rítmicas.” (SARAIVA, 2007, P.56)

A interação dos músicos que já haviam assimilado as inovações musicais da bossa nova e do jazz acontecia na noite do Rio de Janeiro e de São Paulo e resultava na busca de novas linguagens, mixando elementos musicais e experimentando novas formações 23

instrumentais. Ronaldo Bôscoli em depoimento dado a José Eduardo Homem de Mello, opina sobre a questão da influência do jazz:

“Acho que a formação de quase todo mundo da bossa nova é de jazz. Aliás, formação benéfica, pois é a maior expressão popular de todos os tempos. Detesto esta distinção de autêntico. Autêntico, como diz o Tom, é o jequitibá. Ninguém é autêntico. Todas as correntes se interligam, se comunicam. Se buscarmos as raízes reais da coisa, teremos que fazer música de índio: bateria não é brasileira, pandeiro não é brasileiro. Menescal e Lyra, todos tiveram grande contato com o jazz.” (Ronaldo Bôscoli apud CALLADO, 2007, p. 245)

Foi nessa época que muitos músicos, que posteriormente seriam representativos da vanguarda do “Brazilian Jazz” da década de 1970, iniciaram suas carreiras. Nesse novo momento da música popular brasileira uma característica fundamental a distingue da fase anterior: a bossa nova não é mais para dançar, e sim para ouvir. Todo o excesso que outrora caracterizava a escola de canto da música popular brasileira fora substituído por uma atitude mais introspectiva, contida, econômica e, elaborada. Os trios de Bossa nova se tornaram então uma febre no Rio e em São Paulo. O Zimbo Trio, formado em 1964 pelo pianista Amilton Godoy, o baixista Luiz Alves e o baterista Rubens Barsotti, alcançou estrondoso sucesso desde seu primeiro disco lançado, intitulado Zimbo Trio, alcançando o primeiro lugar em vendas de discos no Brasil, ficando por seis meses nas paradas de sucessos, e alcançando cotação máxima na maior revista americana especializada em jazz, a Downbeat. Participou da primeira edição do Free Jazz Festival, festival internacional que aconteceu de 1985 a 2001 no eixo Rio-São Paulo e Porto Alegre- Curitiba. Outros trios como Jongo Trio (Cido Bianchi- piano, Sabá – baixo e Toninho – ba- teria), Tamba Trio (Luiz Eça – piano, vocal e arranjos, Bebeto Castilho – baixo, flauta e vocais e Hélcio Milito – bateria, percussão e vocais), Sambalanço Trio (César Camargo Ma- riano – piano, Humberto Cláiber – baixo e Airto Moreira – bateria), o Bossa Três do pianista Luiz Carlos Vinhas, entre outros. Esses trios ajudaram a sedimentar o Samba-jazz, e aquilo que mais tarde seria chamado de Brazilian Jazz. A partir de 1965, quase todos os maiores compositores da bossa nova já haviam se mudado para os Estados Unidos, e a Jovem Guarda era a febre que assolava o país.

[…]“muitos da Bossa Nova – Tom, Bonfá, João Gilberto, Eumir Deodato, Oscar Castro Neves, Sérgio Mendes, Walter Wanderley – preferiram mudar-se para os Estados Unidos, alguns por longas temporadas, outros para ficar, Pela primeira vez, uma geração inteira de músicos brasileiros era confrontada com o dilema de Dick Farney. (RAFFAELLI, apud LEVY, 2010, p.26).

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É certo que a emigração de expoentes brasileiros no final da década de 1960 para os Estados Unidos causou um desfalque no casting musical brasileiro da bossa nova, mas causou também uma importante interação entre a música brasileira e os músicos americanos interessados em assimilar essa nova bossa, através de alguns músicos-chave. No final da década de 1960 alguns músicos levaram a música brasileira, instrumental e vocal, para estrear em Festivais de jazz europeus e gravações nos Estados Unidos, exportando a vanguarda do “Brazilian jazz”. Airto Moreira, Flora Purim, Hermeto Pascoal, e Egberto Gismonti foram os que diretamente ligados a esse movimento internacional de hibridação da musica brasileira com o jazz livre e experimental que se difundia nos EUA e na Europa. Durante a década de 1970, a música popular brasileira contemporânea, como foi também chamada nesse período, se enriquece de experimentalismos, tangendo diferentes linguagens, se diferenciando de correntes anteriores como a bossa nova e o bebop, se aproximando de elementos nacionalistas e buscando uma nova expressão. Veremos no próximo capítulo sobre a importância de alguns na formação de tendências/escolas que serão estruturantes na década de 1980.

1.2 Rock

O rock’n roll nasceu nos EUA na década de 50, como desdobramento do blues, gospel, country e rhythm’ blues afro-descendente, tendo Fats Domino, Chuck Berris e Little Richards como seus nomes de sucesso ainda nos anos finais da década de 1940. As guitarras elétricas adentram a cena, transformando tudo o que há por vir. A televisão é o novo palco: a partir dela começam a ser pensados os sucessos da indústria fonográfica. Em 1954 um cantor branco que mistura essa música negra com um jeito arrebatador de dançar e cantar se torna a febre da década, instaurando um caminho sem volta na história da indústria, que fabrica então seu primeiro mega star, ou “Rei do Rock”: Elvis Presley estoura para o público jovem estadunidense, na sensação de causar ameaças a sociedade conservadora e repressiva da época, desafiando os preconceitos múltiplos daqueles tempos. Não tardou para causar sensação em todo o mundo, já em 1956, conquistando fãs-clube em todo o ocidente. E assim seguiu até seu súbito falecimento, em 1977. A idéia de uma nova juventude rebelde propagando um modelo novo de comportamento foi o slogan desse movimento que sacudiu os EUA. E em Liverpool, na Grã- Bretanha, na década de 60, surgiu o grupo musical de maior vendagem de todos os tempos da história da industria: os Beatles, que arrebataria toda a geração jovem da década em todo o 25

mundo ocidental, não menos no Brasil. Ao lado dos Rolling Stones, comporiam a “Invasão Britânica”, se relacionando diretamente com a contracultura e a rebeldia jovem. No Brasil o primeiro rock gravado foi em 1955 por uma cantora do rádio de voz potente, Nora Ney, gravando para o selo Continental um sucesso do grupo norteamericano Bill Halley and his comets, “Rock around the clock”, aproveitando a repercussão do lançamento do filme Blackboard Jungle (“Sementes de violência”, no Brasil). Nota-se que, apesar de cantada em inglês, o título da música saiu como “Ronda das horas” para a versão brasileira do filme e a música chegou em uma semana no topo das paradas.14 Apesar de não dar continuidade a gravações do gênero, o sucesso do empreendimento influenciou todo o mercado e outras gravações vieram em seguida: em 1957, foi gravado o primeiro rock original em português, "Rock and Roll em Copacabana", gravada por Cauby Peixoto. Entre 57 e 58, diversos artistas gravaram versões de músicas americanas, como "Até Logo, Jacaré" ("See You Later, alligator”), de Agostinho dos Santos, ”Meu Fingimento" ("The Great Pretender" dos The Platters), com Luiz Cláudio e "Bata Baby" (“Long Tall Sally” de Little Richard), de Wilson Miranda.15 Com a gigantesca força do sucesso dos Beatles no mundo todo e a popularização da televisão, fabrica-se, em agosto de 1965, no próprio seio desta, um novo movimento musical: a Jovem Guarda, que estreou no programa da TV Record-canal 7, em São Paulo, apresentado pelos cantores Roberto Carlos, Erasmo Carlos e a cantora Wanderléa. Inspirados nos Beatles, em programas de TV norte-americanos e em grupos da recém-criada gravadora Motown, importavam rock, comportamento e moda. Sem cunhos políticos, suas letras eram de um romantismo jovem e açucarado, de fácil assimilação.16 Essa forma caricata de versões do rock’n roll “beatleniano” aconteceu as vésperas do golpe militar de 1964 e veio “bem a calhar” para a ditadura. O novo produto, destinado a jovens de baixa faixa etária fora dos círculos universitários de resistência política atendia tanto aos interesses militares de erradicação dos “núcleos de fermentação política-ideológica marxista” (TINHORÃO, 1998), como aos interesses da empresa responsável pela publicidade

14 Fonte: DAPIEVE, Arthur. Brock: o rock brasileiro dos anos 80 -Editora 34. Coleção Ouvido musical. 1995. 15 Fonte: FROES, Marcelo. Jovem guarda: em ritmo de aventura. Editora 34. 2000. 16 “Com o sucesso alcançado, o nome do programa acabou virando sinônimo do rock nacional, produzido em meados dos anos 1960, recheado de versões de canções dos Beatles e outros artistas ingleses e norte americanos (…) Todo um comportamento jovem, daquele período, desde o modo de vestir até as gírias e expressões, foi formatado a partir do programa e seus apresentadores. Fenômeno midiático que arrastou multidões, também designado como iê-iê-iê, em alusão direta à musica dos Beatles, a Jovem Guarda era vista com restrições por setores da crítica, uma vez que sua música era considerada alienada pelo público engajado, mais afeito, primeiro à bossa nova e, depois, às canções de protesto dos festivais.”. Disponível em: http://www.dicionariompb.com.br/jovem-guarda/dados-artisticos, acessado em 12/02/2016.

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de Roberto Carlos, Magaldi, Maia & Prosperi, e também ao empresário Paulo Machado de Carvalho, da TV Record Canal-7, de São Paulo. O fim do programa, em 1969, decretou também o fim do movimento, e os artistas seguiram diferentes rumos, dentre eles, o mais forte, a música romântica, tendo Roberto Carlos como seu maior representante até os dias de hoje. Erasmo Carlos se manteve um cantor de rock/MPB e outros ainda seguiram pela música sertaneja, como Sérgio Reis. Outro desdobramento importante da Jovem Guarda foi o que antes era chamado pejorativamente de “música de empregadas” e passou a ser chamado de música “brega”, se mantendo até os dias de hoje. O movimento “hippie” desde a década de 1960 deflagra denuncias a respeito das desigualdades sociais crescente nos EUA em função do grande crescimento desigual desde a década de 1950, contra preconceitos raciais e de gênero, o armamento nuclear e a guerra do Vietnã. A contracultura, entre outras coisas, consistiu em contradizer valores de comportamento vigentes, desde o corte de cabelo e as roupas, como também a recusa em se alistar no exército (crime inafiançável naquela sociedade) bem como a adoção de um estilo de vida comunitário, uma “sociedade alternativa” que buscou no oriente ingredientes espirituais associados a uma idéia de “Nova era” e o slogan de “paz e amor” como ideologia. Os jovens adeptos da contracultura se rebelaram contra o ônus do progresso estadunidense que começava a se apresentar interna e externamente ao país. Nesse contexto, o rock e suas vertentes terão um papel fundamental como veiculo das idéias e bandeira que não era mais rebeldia, mas sim descontentamento, desgosto, protesto e rebelião, associado ao consumo de drogas crescente, como a maconha e os LSD’s. Dois eventos concorreram para a profusão do movimento: a estréia de um musical off-Broadway, “Hair”, de temática hippie, na Broadway em 1968, e o lendário O Festival de Woodstock em 1969, reunindo artistas do rock, do folk-rock, rthythm and blues, soul music e até musica indiana. Os ecos do sucesso do festival, intitulado “Uma exposição Aquariana: 3 dias de paz e música”, que começou com a venda de 186 mil ingressos mas que na hora abrigou gratuitamente 500.000 pessoas, chegou em várias partes do mundo. O que havia acontecido na cidade de Bethel, na fazenda do descendente de judeus russos, Max Yasgur, veio a ecoar também no Brasil. Acontece que a lei que rege a indústria cultural (o lucro) é implacável e irá se apropriar do novo movimento para transformá-lo em produto. O escritor James Anhanguera relata:

“A lenda nasceu e morreu ali em Bethel e quem não dormiu no sleeping bag nos prados de Max Yasgur nem sequer sonhou - mas seus ecos repercutem até hoje pelo 27

talento de cronistas como Joni Mitchell e por terem reverberado por tudo quanto é estrada do mundo dito civilizado a partir do instante em que a gravadora Warner Brothers lança o primeiro triplo LP da história (logo seguido de um duplo) e alguns meses depois a produtora e distribuidora de cinema Warner Brothers distribuiu o filme de Michael Waldeleigh montado por T. Shoonmaker e Martin Scorsese que ganhou o Oscar de melhor documentário de 1972. Woodstock, a celebração da juventude dourada de uma das épocas de apogeu do capitalismo mas muito rebelde, é em simultâneo também uma grande operação de marketing inteligentemente bolada pelos conselhos de administração da Warner Brothers Records e Warner Brothers Pictures logo que se apercebem do que poderão ter entre as mãos”. (site)17

O contexto político mundial da década de 60, com a Guerra Fria e a ascensão de Fidel Castro e Che Guevara na Revolução Cubana teve reflexos importantes no Brasil. Com as tentativas de João Goulart de combater as desigualdades sociais e o subsequente Golpe Militar de 1964 a situação no país rumava em outra direção. O lançamento do álbum “Sgt. Pepper’s Lonely Hearts Club Band” dos Beatles em 01/07/67 instaurou uma espécie de devoção nacional dos jovens de classe média, e, junto com a Jovem Guarda, se caracterizava como a “música jovem” brasileira, pós-bossa nova. A guitarra elétrica simbolizava o avanço modernizante imperialista norteamericano no campo da cultura e como reação a isto houve em 17 de junho 1967 em São Paulo a Passeata contra a guitarra elétrica, liderada por , mais as presenças de Jair Rodrigues, Zé Keti, Geraldo Vandré, Edu Lobo, MPB-4, e até . A representatividade da musica popular nacionalista se dividia entre a aceitação da guitarra (e o que ela representava de norte-americano) ou não. O festival da TV Record de 1967 irá retratar bem esse momento, quando Caetano defende “Alegria, alegria” com os Beat Boys e Gil “Domingo no Parque” com os Mutantes.

“Defendidas as canções, vaiadas e polemizadas, desenhou-se o que a Tropicália levaria as ultimas consequências. A partir daí, cresceram os desafetos, bem como a violência da platéia. No entanto, para desgosto de muitos, “Alegria, alegria” classificou-se em 4º.lugar e “Domingo no Parque” em 2º (…) O impulso tropicalista estava com força total nas mentes e produções de Gil e Caetano (site).”18

A escolha da dupla de compositores mais influentes da MPB da época foi desembocar na Tropicália, um movimento que marcou a música e o cenário cultural do país que buscava uma linguagem nacionalista para a década dominada pelo rock em plena ditadura que se instaurava e caminhava para o sufocamento de expressão. Ao incorporar o rock, a

17 Mais informações estão disponíveis em: http://revoluciomnibus.com/DeWoodstockaoMcRock.htm. Acessado em 15/02/2016. 18 Ana de Oliveira em pesquisa sobre o assunto, disponível em: http://tropicalia.com.br/identifisignificados/festivais, acessado em 15/02/2016.

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guitarra elétrica e a psicodelia, os artistas da Tropicália (Gil, Caetano, Os Mutantes, Rogério Duprat, Gal Costa, Tom Zé) deram um passo na direção da hibridação da MPB com aqueles elementos norte-americanos e britânicos em voga: a guitarra elétrica e rock. Os Mutantes são considerados um dos primeiros grupos de rock nacional e de sua trajetória saiu Rita Lee, a precursora e uma das poucas cantoras de rock no Brasil. Identificados com o movimento hippie e a fazendo rock um psicodélico com influência de bandas como Emerson, Lake and Palmer e Yes, os Mutantes abriram caminho para o mercado de rock brasileiro que irá se instaurar na década seguinte. A Tropicália foi sufocada com os exílios de Caetano e Gil na Inglaterra, em 1968. Mas foi o suficiente para contribuir para a modernização e legitimar uma nova hibridação na música brasileira, no seio da crescente industria fonográfica que irá explodir na década seguinte.

1.3 - Soul/funk/black music

Nos EUA a soul music foi, desde meados da década de 60, um canal de expressão de ideais negros de resistência e luta frente a uma sociedade excludente e violentamente racista. Seu viés de entrada é o mesmo do jazz (o da dança): nos Bailes da Pesada na casa de espetáculos Canecão na zona sul da cidade do Rio de Janeiro, organizados pelos discotecários Ademir Lemos e “Big Boy”, que possuíam uma extensa coleção de discos de rock e soul music norte-americana.19 Esses bailes eram frequentados por moradores da zona sul e de outros lugares do Rio de Janeiro, não se tratando ainda, nesse momento, de manifestação abertamente ligada a um movimento ideológico, e sim, de um primeiro contato com o soul, que até então era novidade no Brasil.

“Os bailes da pesada, como eram chamadas essas festas domingueiras no Canecão, atraíam cerca de 5000 mil dançarinos de todos os bairros cariocas, tanto da zona sul quanto da zona norte. A programação musical também tendia ao ecletismo: Ademir tocava rock, pop, mas não escondia sua preferência pelo soul de artistas como James Brown, Wilson Pickett e Kool and the Gang.”(VIANNA, 1988)

Os bailes no Canecão duraram até quando a direção da casa teve a oportunidade de abrigar um show de Roberto Carlos, realizando uma mudança de direção no perfil da casa, que passou a estar relacionada muito mais com a MPB. Foi nesse momento que os bailes

19 Nelson Motta, em entrevista sobre Big Boy para o MIS: “- Aprendi muito de música com o Big Boy. Seus programas eram incríveis e sempre traziam novidades, que ele conseguia através de um superesquema com aeromoças e amigos que traziam discos do exterior.” Disponível em: http://www.mis.rj.gov.br/blog/big-boy/. Acessado em 29/02/2016. 29

migraram para o subúrbio do Rio de Janeiro, pulverizados em inúmeros clubes que dividiam o comando dos bailes pelas equipes de som, que tinham nomes como “Revolução da mente, Uma mente numa boa, Atabaques, Black Power, Soul Grand Prix”. A soul music prevalece e é nesse momento que começa a se relacionar com os ideais da soul music norte-americana:

“Neste sentido, temos que na proposta do soul, a dança, assim como outros elementos, a vestimenta, o modo de agir e pensar, a música e o modo de tocá-la constituem a forma de reação por parte dos negros norte-americanos contra uma realidade de discriminação, onde não lhes era dado direitos de maneira igualitária a qualquer cidadão branco em seu país. No Brasil essa música, de modo semelhante, se apresentou como uma maneira de questionar realidades sociais e de estimular a autoestima dessa parte da população.” (MORAES, 2014).

Essa identificação que é encontrada nos elementos da soul music com os ideais igualitários negros irá ser apropriada, a partir deste momento, pela população negra moradora de bairros da zona norte do Rio de Janeiro, frequentadora dos bailes de clubes, através de promoções de bailes de alguns discotecários, dentre eles, “Mister Funky Santos”. Segundo MORAES, foi ele quem primeiro idealizou um baile só para negros que tocasse somente música negra, promovendo o primeiro baile black em 1971 no Astória Futebol Clube, a ”Noite do Shaft”,com o objetivo de “levar a negrada do morro pro asfalto” (ESSINGER apud MORAES, 2014, P.31). A “Noite do Shaft” ganhou esse nome em função do filme “Shaft”, de 1972, dirigido por Gordon Parks e havia uma faixa do cantor e compositor Isaac Hayes, que lhe rendeu por essa trilha um Oscar por "Melhor Canção Original" (o primeiro prêmio recebido por um afro-americano em uma categoria que não fosse para atuação) e dois Grammy Awards (site).20 Os bailes foram se ampliando, bem como as equipes de som, e com eles o público, passando a se constituir como um mercado. Desperta o interesse da mídia e das gravadoras como Phonogram, TopTape, WEA, Tapecar e CBS e se constitui como gênero no seio da crescente indústria fonográfica brasileira por toda a década de 70, na construção de uma “cena black” (MORAES). Em 1976, a jornalista Lena Frias publica uma matéria de quatro páginas no Jornal do Brasil, sob o titulo “Black Rio: o orgulho (importado) de ser negro no Brasil, identificando o crescente movimento Black Rio. As fronteiras que delimitam soul, funk e black music são tênues e controversas. Um gráfico apresentado por MORAES em sua dissertação, resultado de um pesquisa por

20 Disponível em: https://pt.wikipedia.org/wiki/Isaac_Hayes. Acessado em 29/02/2016.

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nomes dos gêneros na hemeroteca nacional, (soul, funk e black/Black Rio) mostra que o termo soul foi utilizado até 1975, desaparecendo depois disso. O termo black/Black Rio passa a ser amplamente utilizado de 1976 a 1978 e o termo funk aparece apenas em 1977. Essa preocupação epistemológica só será importante nesse momento para tomarmos ciência de como podem ser controversas as caracterizações desses gêneros nas obras de artistas brasileiros que surgirão nessa década, enquadrados no Movimento Black. A saber: Toni Tornado, Gerson King Combo, Cassiano, Carlos Dafé, Lady Zu, Tim Maia, Banda Black Rio, Jorge Benjor, Elza Soares, e outros. Gerson King Combo, cantor e compositor conhecido pela alcunha de “James Brown brasileiro” teve uma formação de cantor ao lado de importantes músicos, no conjunto de baile “Fórmula 7”, formado pelo trompetista Márcio Montarroyos, o tecladista Hugo Bellard, o baixista Luizão Maia e o guitarrista Hélio Delmiro. Em 1969 estréia como coreógrafo do show de Wilson Simonal, “De Cabral a Simonal” com quem excursiona pelos EUA onde conhece James Brown e Stevie Wonder e daí passa a adotar o nome de Gerson King Combo. Quando o Fórmula 7 acaba, se junta a outros músicos remanescentes e lançam um álbum em 1969, “Brazilian Soul”, creditados como Gerson King Combo e a “Turma do Soul”, onde era também acompanhado pelo grupo “Diagonais”, do qual o cantor Cassiano fazia parte. Com a “Turma do Soul” foi aclamado como o “Rei dos bailes”, no circuito dos “bailes da pesada” da zona norte do Rio de Janeiro na década de 1970. Paralelo ao mercado dos bailes, alguns artistas negros brasileiros que também haviam morado um tempo nos EUA, como Toni Tornado e Tim Maia trouxeram para o Brasil o know-how da black music estadunidense. Tony Tornado venceu o V Festival Internacional da Canção realizado pela TV Globo em outubro de 1970 no estádio do Maracanãzinho na cidade do Rio de Janeiro, interpretando a musica “BR-3”, de Antônio Adolfo e Tibério Gaspar. A última noite da fase nacional do festival teve a abertura com o show de Isaac Hayes e sua banda de mais de 27 músicos (MORAES, 2014, p.26). A música BR-3 é classificada por muitos como uma canção soul, mas na verdade, já é uma forma hibridizada de soul: com uma primeira parte em 3/4 e uma segunda em andamento mais rápida em 4/4. A letra faz uma analogia do perigo da antiga estrada que liga Rio de Janeiro a Belo Horizonte, na época chamada de BR-135, depois BR-3 (hoje BR 040), fazendo analogia do perigo da estrada com o período da ditadura. Polêmico, causava frisson associando a estética dos figurinos, do cabelo não alisado e da dança da soul music para passar “uma mensagem de afirmação de 31

raça", como o próprio relata em entrevista ao programa “Cultura mais” 21 . Essa atitude questionadora chamou a atenção dos militares no período da ditadura e Tony foi exilado em 1971. Todo esse movimento se destacou no cenário da MPB e chamou a atenção para a soul music. A matéria da jornalista Lena Frias em 1976 no Jornal do Brasil teve um duplo efeito: se por um lado divulgou e disseminou o Movimento Black no Rio de Janeiro, fazendo Gerson gravar seu primeiro álbum “Gerson King Combo”, pela gravadora Polydor e estourar nos bailes com seus “Mandamentos black”, fez também chamar a atenção dos militares para o crescente movimento. Gerson, o mais engajado ideologicamente sofreu muito com investidas da polícia nos bailes, atrás de supostos tráficos de drogas.

“Era nesse clima vitorioso que Gérson King Combo aguardava no camarim do clube Magnatas o início do que prometia ser “o lançamento do movimento Black Rio (…) No ano anterior, ele havia levado cerca de 30 mil pessoas ao Portelão para dançar as músicas de Volume I. Como de costume, chegou com seu Dodge Dart com bancos de veludo e hipnotizou a platéia com uma performance incendiária, que incluía os músicos da União Black e um funcionário exclusivo para pôr e tirar sua capa de “rei”. Dessa vez, entretanto, o empregado não teria trabalho. ‘Estava tudo bem organizado, todos pareciam unidos naquele ideal black, da vestimenta à posição de enfrentamento’, lembra Zé Rodrix, que esteve no show. ‘Mas quatro camburões da Polícia Federal chegaram e colocaram todo mundo para fora com truculência. Não fiquei para ver o final…' A repressão ao show de Combo não era um fato isolado. Os órgãos da repressão estavam preocupados com o possível direcionamento político do movimento black (site).”22

A partir de 1977, o sufocamento da polícia, o interesse das gravadoras no sucesso do movimento e a invasão da disco music com a novela “Dancin’Days” e o grupo “As frenéticas” em 1978 irão reconfigurar o cenário, e importantes hibridações começaram a ocorrer, dentre elas, o surgimento do samba-funk23 da Banda Black Rio. Pioneira na fusão do samba com o soul e o funk, a banda surgiu como produção da gravadora WEA em 1976, liderada pelo saxofonista Oberdan Magalhães e tendo como produtor musical, Mazzola. As razões pela qual a WEA assumia uma produção da Banda Black Rio parecem claras: a recém-instalada gravadora no Brasil procurava estar a par de todo

21 Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=pTxwPBptwhY. Acessado em 29/02/2016. 22 Relato de Zé Rodrix em texto de Luciano Marsiglia. Disponível em: http://super.abril.com.br/cultura/o- movimento-black-rio-desarmado-e-perigoso. Acessado em 29/02/2016. 23 A delimitações entre os termos soul, funk e black music são ainda hoje bastante borradas. Sabrina Lobo de Moraes, em sua dissertação de mestrado, Soul mais Samba, movimento Black Rio e o samba nos anos 70, aborda essa discussão, concluindo que black music é um “mega-gênero” que engloba o funk, o soul e o rhythm’n blues. A banda Black Rio, em seu site, utiliza o termo funk-groove. Lembrando também, como foi dito acima, que o termo funk passou a ser mais adotado em 1977, o que coincide com o lançamento da Banda Black Rio. Adotaremos portanto o termo funk para falar da Banda Black Rio, lembrando que não se trata porém, do funk carioca da década de 80.

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movimento que envolvesse um público consumidor jovem e neste momento a música black já havia se constituído como um segmento de mercado. A banda, então, gravou três discos com o produtor Mazzola: “Maria Fumaça” (1976) pela WEA, que se tornou um álbum referencial da música brasileira no gênero samba-funk; “Gafieira Universal” (1978) pela RCA e “Saci Pererê” (1980). “Maria Fumaça" foi um álbum inovador para a época por inserir elementos da black music em temas clássicos do cancioneiro da MPB, como “Na baixa do sapateiro”, de Ary Barroso, “Baião” de e “Casa forte”, de Edu Lobo, aliadas a composições autorais. Dentre algumas inovações, a principal foi sem dúvida a criação de uma “levada” nova, hibridizada, onde a batida do funk foi misturada a batida do samba, gerando o “samba- funk”. Também a utilização de naipes de saxofones sobre essas bases de baião ou samba, e ainda, seções onde o samba está “puro”, com a utilização de instrumentos de percussão simulando uma bateria de escola de samba, e seções onde o funk está puro. A banda fez grande sucesso em seu surgimento e foi convidada a participar de outros discos como o de Luiz Melodia e Caetano Veloso, este último gravado ao vivo chamado “Bicho Baile Show”. Dos que tiveram uma influência, que, por assim dizer, atravessou décadas e marcou gerações no campo da black music, pode-se destacar ainda a figura de Jor. Como alguns outros músicos aqui citados (Oberdan Magalhães, Gerson King Combo) nasceu no bairro de Madureira, na zona norte do Rio de Janeiro, em 1945. Começou na boate Beco das Garrafas, como muitos, e logo estourou o sucesso “Mas que nada”. Reconhecido pela simplicidade harmônica de suas composições (músicas de 2 ou 3 acordes), seu diferencial maior está na sua batida ao violão, o qual autodenomina de samba-rock. Essa batida o caracterizou e o diferenciou no Brasil e no mundo, mas sua música mescla-se ainda com o funk, o jazz, o maracatú e o samba, propriamente dito. “Quando Tim saiu da cadeia em Daytona e foi deportado para o Brasil, voltou falando inglês, cantando como a negrada da Motown e viu que a música de Roberto e Erasmo era mesmo um sucesso. Mas achou que podia fazer coisa muito melhor.” (MOTTA, 2001, Pp.52). Essa afirmação de Nelson Motta ajuda a sintetizar a importância de Tim Maia na música brasileira, sobretudo na soul music. Por suas extensas faculdades musicais soube compreender o espírito do gênero em termos de ritmo, arranjo vocal, harmonia, colocação de voz, arranjo instrumental e etc. Além de seu talento e competência, o ecletismo de sua obra e o hibridismo que realizou muitas vezes com ritmos brasileiros lhe permitiu construir um vasto repertório ao longo de sua carreira, deixando uma discografia de 30 álbuns, 23 compactos simples e 7 compactos duplos. 33

Posteriormente a esses nomes pioneiros, seja no “autêntico” soul (Toni Tornado, Gerson King Combo) ou na black music hibridizada com ritmos brasileiros, outros nomes importantes nas décadas seguintes se fixaram, na utilização do gênero na fortificação de uma identidade afro-descendente no Brasil: Sandra de Sá, Cidade Negra, O Rappa, Negra Li, entre outros. Dentre os compositores que surgiram no começo do movimento destaca-se o nome de Antônio Adolfo (compositor de “BR-3”, com Tiberio Gaspar), como um compositor que utilizou elementos da linguagem da black music, identificável em lançamentos de trabalhos autorais que fará no final da década de 1970, como “Feito em Casa” (1978) e “Cascavel”(1979).

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2. A MIB E O EMBALO DO NOVO “BRAZILIAN JAZZ”

2.1 - “A música que os músicos querem fazer” e o choro

A música, como atividade fundamentalmente coletiva, é feita de encontro e complementaridade. O encontro, a partir da década de 1950, passa a acontecer cada vez mais nas jam sessions, espaços para a prática livre da música popular, no sentido de não ser uma atividade de contratação profissional. Por esse motivo, não há um roteiro ou um repertório a ser seguido, a não ser aquele do senso comum que acontece no momento, que, pela própria natureza de seu surgimento, geralmente estava ligado ao jazz, samba e bossa nova, como vimos no capítulo anterior. As jam sessions se tornaram comuns entre os músicos populares interessados em desenvolver suas capacidades de improvisação, prerrogativa que já havia se colocado em voga com o advento do samba-jazz e da música instrumental que veio a se instaurar a partir disso. Um movimento iniciado por um músico e um empresário, em 1977, redesenhou nesse momento essa ideia, realizando uma espécie de tradução do conceito para o português, batizado como “A música que os músicos querem fazer”, associado inicialmente ao choro. O flautista/pianista Marcos Ariel e seu amigo Luiz Antônio Cunha organizaram um projeto de música instrumental com apresentações informais de jovens regionais de choro, como o “Pessoal do Cantinho da Fofoca”, “Anjos da madrugada” e “Éramos felizes” e também músicos já consagrados, como Paulo Moura e Márcio Montarroyos, às segundas-feiras. O “Cantinho da fofoca” era um bar já frequentado por músicos que se reuniam para tocar e a inauguração do Restaurante Barril 1800 aparece como mais um espaço dedicado a prática. Este espaço se tornava nesse momento o embrião daquele que em poucos anos seria o ponto de encontro mais importante de músicos brasileiros e atrações internacionais das Jam Sessions que aconteceriam após os shows do Free Jazz Festival por toda a década: o Jazzmania. 35

Figura 1: Jornal do Brasil, Caderno B, Rio de Janeiro, 03/01/1977.

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Na matéria ilustrada na figura 1 a primeira informação que nos salta aos olhos diz respeito sobretudo a vontade do músico (griffo nosso). Não diz respeito tanto sobre a música que se está fazendo, mas a que ele quer fazer, ao mesmo tempo em que já está fazendo. Coloca num tempo presente, mas também num tempo futuro, duplicando seu sentido e apontando para uma idéia de autonomia e liberdade do músico. É certo que trata primeiramente de grupos iniciantes formados por jovens de uma nova geração, mas ao anunciar o prosseguimento da programação com os nomes de músicos já consagrados, como Paulo Moura, e em fase de consagração, como Márcio Montarroyos, e ainda outros grupos de música instrumental, deixa clara a idéia de que esse espaço estaria destinado a fruição da música instrumental, onde os músicos poderiam “se reunir para tocar livremente.” Como segunda informação está o local em que se faz, o nome dos músicos jovens e dos grupos de choro (“Regional de choro Anjos da Madrugada”, “Pessoal do Cantinho da Fofoca” e “Éramos felizes”) bem como do “Cantinho da Fofoca”, outro bar onde os músicos se reuniam para tocar livremente naquela época. A figura 2 ilustra outra matéria sobre a continuidade do projeto no Restaurante 1800, como um espaço para a música instrumental, apresentando os grupos como “Concertos de choro”, veiculada no Jornal “O Globo”:

Figura 2 - Matéria Jornal O Globo 24/01/77. 37

Nesse mesmo ano de 1977, a Marcus Pereira Discos24, selo dedicado à música popular brasileira, organizou o 1º. Encontro Nacional do Choro, nos dias 1º e 2 de junho de 1977, no Parque do Anhembi em São Paulo, que segundo matéria assinada pelo crítico e jornalista Tinhorão em 13/08/77, “reuniu 10 mil pessoas no festival, a maioria das quais jovens entre 15 e 18 anos que ouviam choro ao vivo pela primeira vez”.25 Outra notinha no mesmo jornal, exatos 6 meses antes, anuncia o I Festival Nacional do Choro, em Florianópolis, onde diz: “trata-se, bem entendido, do gênero musical. Não é um festival de lágrimas.” 26 Em 1978 uma série intitulada “Feira do choro” é apresentada no MIS, com o conjunto Galo Preto, que nascido em 1975, gravou em 1977 seu LP de estreia de nome homônimo. Já havia nascido com uma proposta de inovação do choro, tanto gravando material inédito quanto temas de compositores de outras “áreas” da música instrumental, entre eles Hermeto Pascoal, como fará em 1981, no segundo disco, incluindo uma composição chamada de curioso nome “Vocês deixam ali e seguem de carro”.27 Outro conjunto que nasceu nessa segunda metade de 1970 foi “Os carioquinhas”, formado por Celso Alves da Cruz no clarinete, Luciana Rabello no cavaquinho, Paulo Magalhães Alves no bandolim, Maurício Carrilho no violão, Raphael Rabello no violão de 7 cordas, Mário Florêncio Nunes na percussão, Celso José da Silva no pandeiro e Téo de Oliveira como arranjador. Alem do Festival da Marcus Pereira Discos, a TV Bandeirantes de São Paulo promoveu duas edições do Festival Nacional do Choro, em 1977 e 1978 e o Departamento de Cultura da Secretaria de Educação e Cultura do Rio de Janeiro promoveu o Concurso de Conjuntos de Choro, de 1977 a 1980. Em 1977, o primeiro colocado foi o bandolinista Rossini Ferreira; em 1978, foi premiado o “Conjunto Rio Antigo”; em 1979, o “Nó em Pingo d’Água”; e em 1980, o “Conjunto Choro 7”28. Em 1979 é criada a Camerata Carioca, formada por Radamés Gnatalli

24 “Na lembrança dos amigos, sobressai a imagem de um sujeito de coração grande, capaz de empregar gente ameaçada pelo regime militar e “adotar” artistas que considerava talentosos. Todas essas versões se misturam numa personalidade heterogênea, motor de uma empresa que lançou alguns dos mais interessantes discos brasileiros entre 1974 e 1981. De Cartola à Banda de Pífanos de Caruaru, de Ernesto Nazareth (pelas mãos do pianista Arthur Moreira Lima) a Paulo Vanzolini, do Quinteto Armorial a Elomar, a Discos Marcus Pereira abriu espaço para compositores e intérpretes que transbordavam em criatividade, mas encontravam pouco espaço nos escaninhos das majors.” Publicado em 15/02/1979, Arquivo “O Globo”. Disponível em: http://oglobo.globo.com/cultura/livros/marcus-pereira-guardiao-da-musica-popular-regional-14879049. Acessado em: 24/02/2016. 25 Crítico José Ramos Tinhorão, Caderno B, Jornal do Brasil, disponível em: http://memoria.bn.br/DocReader/DocReader.aspx?bib=030015_09&PagFis=165781&Pesq=Azymuth. Acessado em 24/02/2016. 26 Disponível em: http://memoria.bn.br/DocReader/DocReader.aspx?bib=030015_09&PagFis=155405&Pesq=choro 27 Disponível em http://www.galopreto.com.br/. Acessado em 24/02/2016. 28 Fonte: http://www.pensario.uff.br/texto/1977-1980-concursos-de-conjuntos-de-choro-festival-nacional-choro, acessado em 26/03/2016.

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(piano, idealização e arranjos), Joel Nascimento (bandolim), Luciana Rabello (cavaquinho), Luiz Otávio Braga (1º.violão), Maurício Carrilho (2º.violão), Raphael Rabello (3º.violão) e Celsinho Silva (pandeiro) dentre outros músicos, por ocasião do “Tributo a Jacob do Bandolim”. No ano de 1977, essa “retomada” do choro por uma geração jovem está relacionada, nesse momento, a uma preocupação nacionalista política a respeito da dominação econômica e cultural norte-americana no país. Mas a retomada a partir desse momento irá adquirir especial importância na década seguinte, na medida em que mantém renovado no cenário, influente na formação dos músicos e no repertório da música instrumental que começava a se desenhar. Veremos adiante como o choro é revisitado por nomes consagrados no final da década de 1970, e, no próximo capítulo como garante seu espaço no mercado dos anos 1980. O projeto “A música que os músicos querem fazer" durou três meses no restaurante e selou a parceria da dupla Marcos Ariel e Luiz Antônio Cunha, que alguns anos depois estariam abrindo no mesmo ponto, a casa de shows de jazz, Jazzmania. Nesse capítulo investigou-se o momento em que músicos brasileiros buscaram uma determinada autonomia sobre sua carreiras, não apenas no aspecto musical propriamente dito, fazendo uma música que não estava a serviço de ninguém a não ser de sua própria vontade, como também dentro de um novo mercado, o qual ele ajudava a recriar. Investigou- se como os músicos mais jovens buscaram no choro sua voz, que ao mesmo tempo que expressava uma reação nacionalista à “invasão americana” no mercado da música, assegurava uma revitalização do gênero, que poderia garantir sua sobrevivência na década seguinte. Iniciava-se também um movimento artístico do músico brasileiro, que desejava ser o artista à frente do palco, com autonomia sobre sua música.

2.2 “Slaves Mass” e a música livre de Hermeto Paschoal

A entrada do grupo fonográfico norte americano WEA Records (Warner, Elektra e Atlantic) no mercado brasileiro em junho de 1976 se deu com o lançamento dos discos “Slaves Mass”, de Hermeto Paschoal, e “Urubú" de Tom Jobim, ambos gravados em Los Angeles. A divisão fonográfica da Warner Communications contratou para a direção de sua primeira filial na America Latina, o empresário/produtor de reconhecida atuação na MPB, André Midani, que presidia na ocasião a Phillips Phonogram brasileira, gravadora a qual em cinco anos transformou de 12% de participação de mercado ao 1o.lugar de vendas, 39

trabalhando um cast de artistas nacionais e internacionais. Midani é de nacionalidade síria, com passagem pela gravadora Decca francesa na década de 1950. Chegou ao país em dezembro de 1955 e foi prontamente contratado pela gravadora Odeon para o começo de uma carreira de produtor/empresário que se confundiria com a própria história da MPB, tendo sido o responsável pelo lançamento da maioria dos maiores nomes da bossa nova, da MPB e posteriormente do rock nacional, entre eles, João Gilberto, Tom Jobim, Elis Regina e outros. Tendo aplicado sempre a lei número um da indústria fonográfica, a de produzir novidades sempre visando um público jovem, estabeleceu dessa forma uma grande rotatividade de lançamentos de artistas brasileiros no seio da MPB desde então, a frente das gravadoras que dirigiu. Essa atitude alimentou e era alimentada por outra ideologia, que, a frente da nova divisão latina da WEA, se dispunha a aplicar, apesar de contrariar a visão de seus superiores. Sua contratação se deu através do empresário Nesuhi Ertegun, fundador do selo de soul e Rhythm’n’blues Atlantic Records, e seu amigo pessoal:

“Meus primeiros contatos com os três selos norte-americanos - Warner, Atlantic e Elektra - foram muito cordiais, até o momento em que perceberam que, se por um lado a abertura da companhia no país significava que nos dedicaríamos a vender seu catálogo norte-americano, por outro expressavam forte preocupação com o fato de eu ter recebido carta branca do Nesuhi para desenvolver também um catalogo de artistas brasileiros, o que consideravam um equívoco intolerável. Era difícil perceberem que, ao contrário da maioria das multinacionais, inclusive a cinematográfica, a multinacional do disco tinha que ser importante localmente para ser forte internacionalmente. E que tal importância só seria adquirida com a ajuda de um forte catálogo de artistas nacionais, sem o qual nossa presença se reduziria a um papel insignificante.” (MIDANI, 2008, p. 177, griffo nosso).

“Slaves Mass" (o segundo álbum de Hermeto Pascoal gravado nos EUA) gravado em Los Angeles em 1976 e lançado nos EUA e Brasil em 1977 foi um marco de vital importância na década de 70 e inovador por algumas razões que tentaremos identificar aqui. Sendo todas as composições e arranjos de Hermeto, que tocou piano acústico e elétrico Fender Rhodes, recorder, clavinete, sax soprano, flauta e violão, teve como convidados tanto músicos brasileiros residentes nos EUA como músicos de jazz norte-americanos:

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Quadro 1: Créditos de gravação do álbum Slaves Mass:

Raul de Souza Trombone

David Amaro guitarra

Ron Carter baixo

Alphonso Johnson baixo na faixa 1

Airto Moreira bateria, percussão e efeitos com porcos na faixa 2

Chester Thompson bateria na faixa 1

Flora Purim vocais nas faixas 2 e 4

Hugo Fattoruso, Raul de Souza, Laudir de vocais na faixa 4 Oliveira e Airto Moreira

Hermeto Pascoal é um músico inquieto, um gênio experimentador que busca sempre transcender sua criatividade, onde a liberdade criativa reina absoluta. Tem uma concepção muito própria de música, e inaugurou uma “escola”, a qual passou a denominar de “música universal”. Em 1969 foi para os EUA a convite de Flora Purim e Airto Moreira, depois do recente sucesso com o Quarteto Novo (Hermeto Pascoal, Heraldo do Monte no violão e guitarra, Théo Barros no baixo e Airto Moreira na bateria e percussão). Lima Neto (1999) avalia que os quatro anos que viveu nos EUA, entre 1969 e 1973, foram muito importantes no desenvolvimento e concepção do artista naquele momento:

“A experiência nos E.U.A. parece ter tido de fato importância no desenvolvimento tanto da carreira como da concepção de Hermeto. Foi lá que a concepção e o lado experimental de Hermeto puderam aflorar mais totalmente. Misturando o "Gaio da roseira" de sua infância às experimentações aparentemente influenciadas pelo free jazz americano, em Seeds on the Ground, 29 Hermeto foi pela primeira vez reconhecido internacionalmente.” (NETO, 1999, p.45)

29 Seeds on the ground é um álbum de Airto Moreira lançado em 1971, do qual Hermeto foi arranjador e compositor de “Andei”, “Uri”, “Papo Furado” e “Juntos”, tocou também piano, cravo, flauta, violão e Sapho. 41

A importância na concepção parece estar ligada a um atmosfera de liberdade que o favoreceu em ir além em seu universo musical, junto a um músico com o qual já tinha longos anos de parceria, Airto Moreira, e também com quem viria a se torna sua parceira, Flora Purim, nas gravações que fez nos álbuns de Airto, em “Natural Feelings” (1970) e “Seeds on the ground” (1971)30 e ainda, em “Hermeto” tendo Airto como percussionista. O contato com o Free Jazz lhe favoreceu no uso das rupturas da tonalidade e da métrica e outros fatores:

“As características do free jazz, que serão aprofundadas no capítulo seguinte foram: a livre incursão na atonalidade; a dissolução do metro, do beat ; a pesquisa com timbres e ruídos; a improvisação extásica e coletiva; a abolição da forma; etc. Hermeto assimilou alguns dos procedimentos relacionados acima, senão todos, na década de 70, quando viajou e morou nos E.U.A. Sem perder no entanto, as referências da música brasileira e da música nordestina de sua infância especialmente, Hermeto parece ter encontrado no efervescente mundo do jazz americano experimental, um território onde pôde desenvolver sua própria lingua- gem.” (NETO, 1999, p.28).

A importância no desenvolvimento se refere ao reconhecimento por parte dos músicos de jazz. Em “Hermeto”, lançado em 1971, gravou com jazzistas consagrados, como Gil Evans, Joe Farrell, Hubert Laws e Ron Carter, entre outros, dado seu já conhecido prestígio. E ainda, na experiência com Miles Davis em “Live, Evil" (1972), onde o trompetista gravou duas músicas de sua autoria, não reconhecidas no LP. Depois dessas experiências, Hermeto lançou “A Música Livre de Hermeto Pascoal” no Brasil (1973), onde se consolidou no mercado interno com seu primeiro grupo. O reconhecimento internacional e nacional pareceu garantir o contrato com a WEA para a gravação de “Slaves Mass”em 1976 e o posto de ser o primeiro lançamento da gravadora no país (ao lado de “Urubú", de Tom Jobim, ambos gravados em Los Angeles). A escolha por Hermeto contemplava os dois aspectos da ideologia de Midani: reforçava sua importância localmente, se fortalecendo internacionalmente. Em matéria que data de 1978 no JB, o crítico Octávio Brito faz uma avaliação do resultado do álbum de Hermeto ao lado do de

30 A importância de Airto Moreira no processo do jazz da década de 70 é definida por BERENDT (2007) como percussionista que “introduziu todo o rico, vivo e alegre arsenal rítmico brasileiro na musica de um Miles Davis, Chick Corea, John McLaughlin e muitos outros do jazz e do rock”. Na coluna do Zózimo (JB) de 07/01/1977, duas notinhas divulgam que Airto Moreira aparece pelo sétimo ano consecutivo numa relação dos “melhores da música” num pool de revistas especializadas norte-americanas, como a revista Backstage e outras. E Flora Purim, pelo terceiro ano consecutivo havia sido eleita a melhor cantora de jazz do mundo. Assinou no mesmo ano “contrato de cinco anos com a Warner, recebendo 2 milhões de dólares de luvas e uma Mercedes do Ano:. Acessível em: http://memoria.bn.br/DocReader/DocReader.aspx?bib=030015_09&PagFis=153979. Acessado em: 24/02/2016.

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Milton Nascimento, que também havia gravado recentemente com músicos de jazz norte- americanos:

“Quando músicos de duas culturas diferentes, tais como a brasileira e a americana, se reúnem para dar uma declaração musical nova, as perspectivas revelam-se sempre originais e até mesmo surpreendentes. Os referidos discos transmitem um sentido de fusão, mas considerando os músicos envolvidos e os resultados obtidos, o somatório só podia ser excelente.” (site) 31

A primeira coisa que se percebe e que pode ser dita de “Slaves Mass" é que ele é um álbum fora de qualquer padrão, e principalmente, fora dos padrões da indústria cultural. Depois do impacto, pode-se observar que Hermeto encontra-se no seu momento de maior liberdade criativa, onde mescla sua total liberdade improvisativa, com a apresentação de temas, sem preocupações formais.

“Favorecendo a prática, e não a teoria, na sua rotina musical, Hermeto alcançou um nível criativo em que a improvisação tornou-se muito próxima da composição, ao mesmo tempo fluente, em tempo real e com extraordinária riqueza de ideias.” (BORÉM-ARAÚJO 2010, p.35).

Num nível mais profundo de escuta, pode-se notar importantes hibridações. Para citar a primeira, destaca-se a aplicação de compassos de numerador ímpar alterando a rítmica característica do samba 32 , bem como a intercalação de compassos ímpares de maneira experimental, que denotam a busca de uma rítmica hibridizada, própria de Hermeto, subvertendo a rítmica de gêneros brasileiros. A utilização de sequências harmônicas modais, semelhantes às usadas em temas jazzísticos norte-americanos, com sequências de acordes de mesmo qualidade (menores, diminutos, meio-diminutos, dominantes) mudando em movimentos cromáticos ou em outros padrões de intervalos. Citações melódicas de trechos de temas ou improvisos de jazz, bem como a utilização da linguagem jazzística contemporânea em improvisações. A utilização do clavinete (instrumento muito usado na black music) e do recorder (instrumento renascentista/barroco). Soma-se a isso tudo a utilização de sons de animais, gritos humanos, falas, risadas, sussurros, sons do cotidiano e outros que são usados para recriar atmosferas, recursos próprios da concepção sonora de Hermeto do mundo. A definição da concepção de Hermeto Pascoal de Lima Neto pode ser precisamente percebida em “Slaves Mass":

31 Fonte: http://memoria.bn.br/DocReader/docreader.aspx?bib=030015_09&PagFis=177938. Acessado em 08/06/2016. 32 Para uma melhor compreensão, ver a análise de “Tacho” de CORTES (2011, p.11). 43

“A maneira como elementos da linguagem popular brasileira e nordestina (modalismo, instrumentação com sonoridade regional), combinam- se com elementos do jazz (rearmonizações dissonantes) e free jazz (aleatorismo, atonalismo) americanos. O uso de sons de animais como galos e galinhas "afinados com os instrumentos", por sua vez constitui uma assinatura estilística de Hermeto, somando-se aos outros sons de animais já utilizados pelo compositor alagoano.”(LIMA NETO, 1999, p.22).

Em“Chorinho pra ele” a rítmica da parte C, onde Hermeto apresenta uma sequencia de frases construídas sobre harmonia modal em fusas, é mais um aspecto inovador de “Slaves Mass”. Interessante observar que, mesmo com a dificuldade técnica que essa parte apresenta, “Chorinho pra ele” tem sido uma música executada e difundida no repertório do “Brazilian Jazz” em todo o mundo. O sucesso da música na ocasião contribuiu de forma importante para o resgate do gênero, como observa Calado em entrevista ao programa “O som do Vinil” da TV Brasil: “‘Chorinho pra ele’ eu diria assim que é quase um hino, assim, é quase um hino pra quem tava (sic) envolvido com música, fosse estudante, ou fosse até… músico profissional, naquele momento, nesse momento meados dos anos 70. Quer dizer, foi uma música que assim, você via no repertório de muita gente e tal, e acho que de certo modo contribuiu assim (sic), o Hermeto, por um lado, também não podemos esquecer, de uma certa maneira o Paulo Moura por outro, pra de certo modo, assim, uma revalorização do choro”(site).33

O sucesso de “Chorinho pra ele” contribuiu certamente para uma visão flexível com relação ao gênero, como sendo um gênero também passível de transformações. Perguntado na entrevista sobre o disco, Hermeto responde: “Não é qualquer um também que faz um trabalho nos EUA, modéstia a parte como eu fiz, fiz os dois trabalhos, e…como eu quis, sem nada de concessão, eu fiz tudo como eu quis, não paguei nada pra ninguém, me (sic) pagaram pra mim fazer, e, dizer pra você que eu fiz esse trabalho nos EUA, é uma coisa, foi uma coisa que fez a explosão da minha carreira como músico” (site)34

Hermeto, com “Slaves Mass", derruba uma fronteira nunca antes rompida no Brasil. Se inscreve na discografia mundial dos artistas geniais e mediante o reconhecimento internacional instaura uma liberdade ainda não experimentada, nunca antes permitida na música brasileira naqueles anos finais de uma década que passou buscando essa liberdade, tanto no rock, quanto no jazz ou no campo erudito. Dessa forma, Hermeto se torna a referência para as novas gerações de músicos brasileiros, que agora iriam buscar suas novas linguagens, já sabendo que foi permitido, no seio da indústria fonográfica brasileira, fazer tudo isso que Hermeto já havia feito.

33 Hermeto Pascoal em entrevista concedida ao programa “O som do vinil”, apresentado por Charles Gavin, disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=fjN2O3w8Zlc. Acessado em: 20/02/2016. 34 idem

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2.3 O “Samba Doido” de Azymuth em Montreux

Um segundo acontecimento importante que iremos destacar é a participação do grupo Azymuth no Festival de Montreux de 08 a 17 de julho de 1977, como primeiro grupo brasileiro a participar desse famoso festival de jazz anual na Suíça.35 José Roberto Bertrami (teclados, vocais), Ivan Conti “Mamão” (bateria e percussão) e Alex Malheiros (baixo, guitarra, vocais) lançaram nesse mesmo ano o LP “Águia não come mosca”, o qual apresentaram na íntegra nos shows do festival. O nome “Azymuth” foi herdado de uma composição de Marcos e Paulo S.Vale da trilha sonora do filme “O Fabuloso Fittipaldi". A música “Pela cidade” já havia sido incluída na trilha da novela “O espigão”, em 1974, com o nome de “Bertrami e o conjunto Azimute”, onde José Roberto (autor e tecladista) já utiliza sintetizadores para a execução do tema, característica que será marcante em toda a carreira do artista. No ano seguinte a gravadora Som Livre comprou os acetatos do álbum “Azimüth" e a Rede Globo incluiu a canção “Linha do Horizonte” na novela “Cuca legal”, o que projetou a música e o grupo para todo o país. Em 1976 nova música veio a compor a trilha sonora de outra novela da TV Globo, “Melô da cuíca”, em “Pecado Capital”. Em 1977, lançaram o segundo álbum, agora pela WEA, intitulado “Águia Não Come Mosca”. A música “Vôo sobre o Horizonte" entrou na trilha sonora da novela “Locomotivas”, o que alavancou suas vendas. J.R. Bertrami foi pioneiro na utilização de instrumentos eletrônicos de teclados na música brasileira, muito usados na black music e no jazz fusion, como os sintetizadores mini- moog, Arp strings e o clavinete, o piano elétrico Fender Rhodes, órgão Hammond e o efeito vocoder. Na ocasião da formação do Azymuth já era um músico requisitado (bem como Mamão e Alex Malheiros, ambos profissionais que juntos tocaram na inauguração da Casa de Shows Canecão e atuaram juntos como músicos de estúdio na Phonogram Phillips, em diversas gravações e shows de artistas nacionais), formado na “escola” da bossa nova, trabalhado na “noite” do Rio de Janeiro, bem como participado da “Turma da Pilantragem”

35 Ressalta-se a participação do Azymuth como primeiro grupo a se apresentar no festival, na condição de um grupo, e não como músicos em separado. Antes deles, os músicos Wagner Tiso, e já haviam sido convidados por Flora Purim e Airto Moreira, então já residentes nos EUA, a se apresentar no festival. 45

em 196936 (bem como o baixista Alex Malheiros), com o qual gravou 2 LP’s. Também no mesmo ano, José Roberto tocava com Elis Regina e Milton Nascimento (com quem excursionou numa turnê de 12 espetáculos por um ano antes), Alex Malheiros com Tim Maia e Mamão com Roberto Carlos. No ano de 1975, o grupo aparece em anúncios de jornais (“tijolinhos”) como “Azymuth em concerto”, se apresentando em diversos teatros do Rio de Janeiro e em Niterói, como Teatro Leopoldo Fróes, Teatro Teresa Raquel, Teatro Senac, configurando-se como um grupo de shows. Quadro 2: Track list de “Águia não come mosca”

Ivan Conti “Mamão” bateria, percussão, vocais

Alex Malheiros violão, baixo, vocais

José Roberto Bertrami teclados, piano, vocais

Nenem percussão(cuíca) em A2

Jorginho percussão (pandeiro) em A2

“Doutor" percussão (repique de mão) em A2

Ariovaldo percussão (Tamborim, Triguilhas, Ganzá) em A2

Paulo Moura saxofone soprano em A2

Ângela vocais em A2

Márcio Lott vocais em A2

Paraná vocais em A2

36 A “Pilantragem” nasceu como “samba-jovem” (já que fazia concessão ao uso da guitarra elétrica nos arranjos) num momento de grande efervescência cultural, quando a Jovem Guarda e a Tropicália agitavam a juventude brasileira. O movimento, idealizado por Carlos Imperial a pedido de Wilson Simonal, reuniu outros artistas como Cesar Camargo Mariano e Nonato Buzar. Este último formaria em 1968 o grupo conhecido como “Turma da Pilantragem”. A principal característica musical da “Pilantragem”, definida por Imperial, era o samba tocado em compasso 4/4, inspirado no rock e no soul estadunidenses, particularmente nas gravações de Chris Montez feitas com o arranjador Herb Alpert do Tijuana Brass. Disponível em: https://pt.wikipedia.org/wiki/A_Turma_da_Pilantragem. Acessado em: 23/02/2016.

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Na edição de 09/07/1977, o jornalista Tárik de Souza escreveu em sua coluna “Agenda”: “Hoje, na noite de abertura do Festival de Montreux, na Suíça, apresenta-se o grupo brasileiro Azymuth, ao lado dos Breckers Brothers, do lendário Ben E. King, do Average White Band, do flautista Herbie Man e do guitarrista-maravilha Jeff Beck. Segundo release do próprio Fest, esta noite de abertura será dedicada a dança - que, como se nota voltou a moda, com a adesão por exemplo, em outra latitude, de Joan “cuca fresca” Baez. O Azymuth conta em suas fileiras com José Roberto Bertrami (teclados, arranjos, vocal), Alexandre Malheiros (baixo, guitarra e vocal) e Mamão (bateria e percussão). Segue ainda com eles o reforço de Carlinhos da Escola de Samba Mocidade Independente, para converter definitivamente em passistas os ainda indecisos. Tocará surdo, cuíca, repinique, etc…” (site).37

Nota-se nas palavras do jornalista, que o viés de entrada do grupo no festival foi o samba. Já prevendo uma recepção de público com essas expectativas, o grupo levou consigo um experiente percussionista de escola de samba, Carlinhos da Escola de Samba Mocidade Independente. Segundo matéria do Jornal do Brasil de 13/08/1977, o grupo chegou ao Festival através do compacto "Melô da cuíca”, que havia sido lançado em função de sua inclusão na novela “Pecado Capital” da TV Globo. E J.R.Bertrami avalia em entrevista concedida ao JB: “ a partir do compacto, cartão de apresentação em Montreux, ficou definido o nosso som, filão aberto que possibilita uma criação desenfreada”, diz Zé Roberto, que destaca, no entanto, a distância que separa esse disco do LP gravado na Warner.38 Essa distância que separa a trilha da novela do 2o. álbum idealizado pelo grupo "Águia não come mosca", lançado pela WEA mesmo ano, provavelmente reside na diferença que há entre uma faixa produzida para um determinado contexto/personagem de uma novela comercial e um álbum artístico concebido pelo grupo, que não sofre influências de produtores de TV. E pôde ser percebida na indicação de Midani a Claude Nobs, idealizador do festival sobre em qual noite encaixar o grupo: na noite do jazz fusion. 39 Essa escolha reflete a percepção que Midani tinha da música produzida pelo grupo, a mesma que o grupo - mesmo lidando com a expectativa estrangeira a respeito da musica brasileira para uma edição de festival que queria exaltar a dança - queria driblar em sua passagem por Montreux:

37 Matéria extraída do Caderno B do Jornal do Brasil, disponível em :http://memoria.bn.br/DocReader/docreader.aspx?bib=030015_09&PagFis=163925 , acessado em 23/02/3016. 38 Entrevista concedida a jornalista Maria Emília Alencar, publicada no Caderno B do Jornal do Brasil em 13/08/1977, de título “Não somos um Rick Wakeman tupiniquim”. Disponível em: http://memoria.bn.br/DocReader/DocReader.aspx?bib=030015_09&PagFis=165781&Pesq=Azymuth. Acessado em 23/02/2016. 39 Midani, 2008, p.183. 47

“Deixamos a impressão de um trabalho sério, sem o recheio de gracinhas ou mulatas, como aconteceu com determinado show no dia 15. Foi inevitável porém, que a crítica nos considerasse principalmente sob um ponto de vista exótico, com sabor tropical. É um jeito meio fino de estrangeiro ver as coisas”(site). 40

Independente do que a crítica conseguiu apreender das apresentações, duas consequências importantes advém dessas apresentações: a já citada continuação da participação brasileira nos Festivais de Montreux, e a consagração do grupo, nacional e internacionalmente, conhecido como um grupo de jazz fusion, brasileiro. “Águia não come mosca” em muito difere de “Slaves mass". Se neste último, Hermeto lançou mão de uma diversificação maior de ritmos brasileiros, não centralizando-o acerca de nenhum gênero propriamente dito, neste outro, o samba está representado de forma mais direta, em suas formas originais e através de hibridações inéditas que dialogam com o funk, jazz, soul ou“groove”(como ritmos “funkeados” são nomeados por alguns). O próprio conjunto classifica o trabalho como “crazy samba”ou “samba doido”.41 Outro ponto inovador do grupo foi a ampla utilização de teclados eletrônicos sobre estes grooves, uma vez que trios de bossa nova/samba-jazz costumavam se utilizar apenas do piano. Já foi dito que J.R. Bertrami foi pioneiro na utilização desses instrumentos, e sobre essa questão, ele se coloca na mesma entrevista: “O som eletrônico é usado como resultado, complemento, nunca como um principio. Apesar de Azymuth ser um termo de estúdio, bastante técnico (é a palavra que define a posição da fita quando coincide com a cabeça do gravador) a música do grupo é espontânea. Não pretendemos ser classificados como Rick Wakeman Tupiniquim”. (site). 42

A analogia com o tecladista londrino famoso sobre a utilização de sintetizadores carrega em si a repulsa da possibilidade de sua música poder ser classificada como um rock progressivo eletrônico brasileiro, que tivesse a intenção de seguir a trilha de uma música que é considerada “branca”, um tipo de transposição direta da utilização de sintetizadores sobre ritmos brasileiros. Bertrami, desde o começo de sua carreira adotou esses instrumentos e os utilizava em outras gravações além do Azymuth. A comparação, que mais parece se assemelhar em termos de referências para Bertrami, veio do jornalista Alex Antunes, que

40 Idem 41 Depoimento de Victor Bertrami à pesquisadora, em 23/02/2018. 42 Entrevista concedida a jornalista Maria Emília Alencar, publicada no Caderno B do Jornal do Brasil em 13/08/1977, de título “Não somos um Rick Wakeman tupiniquim”. Disponível em: http://memoria.bn.br/DocReader/DocReader.aspx?bib=030015_09&PagFis=165781&Pesq=Azymuth. Acessado em 23/02/2016.

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escreveu em ocasião de uma curadoria que realizou para o CCBB de São Paulo, em 2005, de uma série chamada 3 Trios/1000 sons: “Já o Azymuth é uma resposta (totalmente) brasileira à eletrificação do jazz, puxada por Miles Davis. Na verdade, o Azymuth tem uma relação mais direta com a escola de um dos comparsas de Miles, a do tecladista Herbie Hancock (…) Mas, ao contrário da lógica progressiva mais ostentatório-acumulativa, para Hancock esses portais tecnológicos (synths, pedais de efeito) tinham um mojo, uma macumba própria – o que também tem a ver com a herança eletrônica de Jimi Hendrix. Se eu cito isso num texto sobre o Azymuth, não é à toa: raros artistas brasileiros conseguem entrar nos ambientes tecnológicos não pela porta “branca”, digamos assim, mas pela porta “negra”, yin, intuitiva. Como Hancock, José Roberto Bertrami encontrou sua voz própria, seu exu timbrístico em teclados como o piano elétrico, o clavinet, os sintetizadores Moog, Arp e Korg e o vocoder. E nem se pode falar de uma influência, mas praticamente de um paralelismo, visto que o Azymuth gravou seu primeiro álbum em 1974, apenas um ano após a desinibida entrada de Hancock na avenida do jazz-funk com o álbum Headhunters” (site).43

Neste intrincado ponto, relembremos Canclini, quando define hibridações como processos socioculturais combinados para formar novas práticas, sendo que essas práticas também são estruturas já hibridizadas, o que é o caso do jazz-funk ou o jazz-fusion. Essa “resposta brasileira à eletrificação do jazz” traz em si a idéia de uma transposição, uma adaptação desse momento em que o jazz se fundiu ao rock. Essa transposição deverá ser percebida na substituição daquilo que seria o gênero representativo de cada nacionalidade, e dessa forma, o samba substitui o jazz. O portal tecnológico do Azymuth fez realizar, portanto, uma “eletrificação do samba”. Mas o jornalista, ao utilizar um termo proveniente da cultura afro-descendente “exu”, para dizer que essa eletrificação não foi feita “pela porta branca”, e sim pela “negra”, confere certa “autenticidade” ao samba do Azymuth, negando ainda a possibilidade de uma “influência” de Hancock sobre José Roberto Bertrami. No limiar da década de 1970, além da “eletrificação”, outros gêneros seriam utilizados na hibridação com o samba, entre eles, o funk e a soul music. Como vimos, a cultura de uma música “black” brasileira irá chegar ao limiar da década de 1980 amadurecida e utilizada amplamente na MIB. Mas é importante notar que o jazz já havia alcançado um outro ponto de compreensão entre os músicos “jazzistas” brasileiros, e referências a respeito do novo jazz fusion também eram sentidas por aqui, como conta Mamão:

“Em primeiro lugar foi um álbum chamado I sing a body electric, do Weather Report [grupo norte-americano de jazz fusion], um dos primeiros álbuns, 74 eu acho, que tem uma música chamada Unknow soldier (…) esse foi um disco que começou, que a principio nos anos 70 eu ouvia ele, e as pessoas que ouviam isso comigo,

43 Alex Antunes, disponível em: https://br.noticias.yahoo.com/blogs/alex-antunes/azymuth-cr%C3%B4nica-de- uma-guanabara-el%C3%A9trica-091029586.html. Acessado em 23/02/2016. 49

diziam esse cara é maluco, como é que ouve um negócio desse…ele é muito atual, eu acho” (site).44

A música citada é Unknow soldiers, do tecladista do grupo Weather Report, Joe Zawinul, do álbum “I sing the body electric”, de 1972 e busca retratar imageticamente o que o título sugere.45 Trata-se de um jazz fusion (ou ainda, jazz-rock) onde, sobre uma levada de bebop constante nos pratos, é criada uma atmosfera harmônica modal, sobre a qual o tema é apresentado numa orquestração de textura dissonante e forma assimétrica no english horn, flautas, e trompete piccolo em Ré. Ruídos de vento e sirenes são emulados. O solo de saxofone de Wayne Shorter encaminha para uma atmosfera imagética que parece emular uma batalha terrestre, com a caixa simulando sons de tiros e outros ruídos de confusão. Em seguida, se segue uma parte C de temática tonal fragmentada apresentada em contraponto entre o saxofone e o naipe de sopros. A música termina em fade-out. A manutenção da levada constante de bebop mantém a ligação com o jazz, porém a atmosfera que se cria em cima já não apresenta de longe elementos melódico-harmônicos característicos do bebop ou cool jazz. A orquestração do tema não estabelece uma relação dentro da harmonia, salvo em trechos na parte C. Para Joachim E. Berendt, o jazz dos anos 1970 assimilou a estrutura e as características atonais do free jazz, assim como a presença do jazz tradicional, da música européia de vanguarda, de música e culturas exóticas, do romantismo europeu, do blues e do rock. “Evidentemente, e isto é o novo, todos esses elementos sofreram um processo de diluição e integração. Eles não vivem autônomos e independentes, mas formam um novo bloco sonoro. Interessante é notar também que esse novo estilo não tem um nome especifico - pelo menos, por enquanto (as vezes é chamado de electric jazz)” (BERENDT, 2007, p.46).

A denominação jazz fusion veio ser adotada amplamente nos anos finais da década de 70, como na noite de Montreux, em 1977. Nos anos inicias de 1970, essa música era mais conhecida como jazz-rock. Uma das principais transformações a serem ressaltadas sobre a influência do rock no jazz é o emprego de instrumentos eletrônicos: a guitarra elétrica, os teclados eletrônicos, e o baixo elétrico. A amplificação do som é uma característica acústica que transformou as relações dos instrumentos no palco e para a platéia,

44 Ivan Conti “Mamão”, em entrevista concedida para Rádio Caxias 93,5 em 26/07/2014, disponível em http://www.radiocaxias.com.br/portal/player/40536 . Acessado em 23/02/2016. 45 “Tomb of the unknow soldier simboliza a lembrança de soldados mortos em que combate não identificáveis. Em 1972 os EUA ainda estavam em guerra com o Vietnã e essa música retrata esse momento, denotando um engajamento político-ideológico do grupo através do jazz-rock.

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principalmente. A entrada da guitarra no combo de jazz, e principalmente, as possibilidades timbrísticas dos sintetizadores impactaram diretamente a busca por novas possibilidades sonoras. Bem como a adaptação a novas formações que se equiparassem em termos de potencialidade sonora, introduzindo o baixo elétrico, baterias mais robustas, muito maior potência de som amplificado no palco e etc. Todos esses foram fatores definitivos que contribuíram para a redesenhar o jazz, bem como a música instrumental brasileira, como veremos mais adiante. A apresentação do Azymuth em Montreux em 1977 causou impactos interna e externamente ao país. Externamente, pelo sucesso de suas apresentações, onde marca-se um ponto de começo de um novo interesse pelo “Brazilian Jazz”, por parte do público europeu e por parte do mercado, com a consequente instauração de uma “noite brasileira” no Festival de Montreux. Essa fato, associado a intensa atuação de Flora Purim, Airto Moreira e Naná Vasconcelos no mercado de jazz norte-americano e europeu, bem como o sucesso de Slaves Mass de Hermeto Paschoal e o reconhecimento de Egberto Gismonti (em seus trabalhos “Sol do meio dia”, com o saxofonista Jan Garbareck e “Dança das cabeças”, de 1977, com Naná Vasconcelos), impulsiona para um momento favorável para o novo “jazz brasileiro”, que agora passaria se relacionar cada vez mais com esse novo jazz fusion. Internamente, veremos no capítulo a seguir.

2.4 - Os Festivas de Jazz

O sucesso da apresentação do grupo Azymuth dentro de instâncias de consagração do jazz internacional, como o Festival de Montreux, atesta em si um fenômeno verificável: legitima o “Brazilian Jazz” no mercado externo e impulsiona o mercado dentro do Brasil. Vejamos como isso se deu.

Três Festivais de Jazz de “nível internacional” aconteceram em São Paulo e Rio de Janeiro entre 1978 e 1980, de projeção comparável aos festivais de Montreux e Newport, reconhecidos festivais de jazz na Europa e nos EUA, respectivamente. No ano seguinte a apresentação do Azymuth em Montreux, a Secretaria da Cultura, Ciência e Tecnologia do Estado de São Paulo - em parceria com o Festival de Montreux - promoveu, com o apoio da Fundação Padre Anchieta, duas edições do Festival Internacional de Jazz de São Pau- lo/Montreux, sob a coordenação-geral do jornalista Roberto Muylaert e o administrador de 51

empresas Walter Longo46, e ainda, com Fernando Fortes, Helvécio Cardoso e Cesar Castanho. No Rio de Janeiro aconteceu outro grande festival, em 1980, o Rio Jazz Monterey Festival, patrocinado por uma marca de jeans estadunidense“USTOP”.

2.4.1. - 1º. Festival Internacional de Jazz de São Paulo/Montreux

O 1º Festival Internacional de jazz de São Paulo/Montreux aconteceu de 11 a 18 de setembro de 1978, no Palácio de Convenções do Anhembi, São Paulo, com recursos da Secretaria e Fundação (a qual pertencem a TV e a rádio Cultura) e teve grande importância nas relações entre a música instrumental brasileira e o jazz no Brasil naquele momento, além de contribuir decisivamente para o fomento do mercado do jazz no Rio de Janeiro e São Paulo. Sua promoção teve o envolvimento pessoal do então Secretário de Cultura de São Paulo, o empresário-sócio da empresa de papel e celulose “Suzano”, ex-músico, amante do jazz, Max Feffer, eleito para o cargo no governo de Paulo Egídio Martins (1976-1979), político pertencente a sucessivos partidos de direita (Arena, PMDB e PSDB sucessivamente), governador do estado de São Paulo no governo do Presidente Ernesto Geisel, período conhecido como de distensão política. Feffer tinha contatos pessoais com Claude Nobs, o diretor-geral do Festival de Montreux há então 10 anos, e o mesmo que recebeu o Azymuth em Montreux, um ano antes.

O festival foi um grande evento e reuniu 60.000 pessoas divididas entre sete espetáculos vesperais e oito noturnos, as 16h e as 21:30h, transmitidos ao vivo, integralmente e sem cortes, pela TV Cultura - canal 2. Além dos espetáculos, em outras salas do Palácio de convenções houveram palestras de críticos musicais, estudiosos de jazz, colecionadores e professores discutindo as “várias correntes” do jazz (e o que seria jazz naquele momento). Foram projetados filmes e tapes de outros festivais e coleções apresentando discos raros de jazz de colecionadores presentes no festival. Uma parte comercial forte foi promovida no festival, com a Feira Nacional do Som - a 1ª Fenasom - onde foram montados estandes de gravadoras, promovendo coquetéis para o lançamento de discos e autógrafos dos músicos,

46 Roberto Muylaert, engenheiro e jornalista da Editora Abril, deixou o jornalismo depois que, como assessor de direção da TV Cultura da Fundação Padre Anchieta foi encarregado por Max Feffer para a coordenação do festival. Disponível em: http://memoria.bn.br/DocReader/docreader.aspx?bib=030015_09&PagFis=205813. Acessado em 01/05/2016. Walter Longo era administrador especializado em Marketing. Atuou como empresário a partir do convite de Muylaert. Nessa época passou a atuar na organização, promoção e realização de eventos musicais de grande porte, esportivos e culturais no Brasil, Argentina e Estados Unidos. Fonte: https://pt.wikipedia.org/wiki/Walter_Longo. Acessado em 23/04/2016.

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editores musicais, indústrias de equipamentos de som e instrumentos musicais e outros equipamentos ligados ao universo da música.47

Figura 3: Programação geral do I Festival Internacional de Jazz de São Paulo/Montreux, em 1978 no Palácio de convenções do Anhembi, em São Paulo. 48

Eram vendidos carnês para os sete espetáculos vesperais ou apenas para um show, e da mesma forma para os espetáculos noturnos. A lotação do Palácio de convenções era de 3.500 lugares. O preço dos ingressos variou entre Cr$50 e Cr$300,00. Os ingressos eram vendidos no Banespa - Banco do Estado de São Paulo, tanto na capital paulista quanto no Rio

47 Fonte: http://memoria.bn.br/DocReader/DocReader.aspx?bib=030015_09&PagFis=185305. Acessado em 19/04/2016. idem. 48 Fonte: http://musicolatras.blogspot.com.br/2010/12/1-festival-internacional-de-jazz-sao.html. Acessado em 19/04/2016. 53

de Janeiro. O coordenador-geral do festival, Roberto Muylaert, promoveu shows gratuitos de música instrumental brasileira aos domingos na estação São Bento do metrô da cidade de São Paulo, semanas antes do festival, para chamar a atenção do público para o grande evento de jazz que aconteceria na cidade.49

Em entrevista ao jornalista José Nêumanne Pinto para a capa do Caderno B do Jornal do Brasil em 06/07/1978, Max Feffer falou sobre o festival:

“Com esse festival, vamos entrar no mapa mundial dos concertos de jazz, porque vamos trazer dos Estados Unidos e da Argentina o que há de melhor, e porque no mesmo palco, se apresentarão brasileiros do mesmo nível que eles. Será uma oportunidade que daremos ao público brasileiro de conhecer grandes músicos internacionais, mas também lhe daremos a conhecer o que há de melhor na música brasileira. Tenho informações que muitos desses astros estão interessados nesse tipo de conhecimento e de contato” (site).50

O objetivo da Secretaria de Cultura de SP era, portanto, colocar o país no “mapa mundial do concertos de jazz”, dando a oportunidade aos brasileiros de conhecer “grandes músicos internacionais”, mas também “o que há de melhor na música brasileira”. Para isso, buscou-se a realização de um festival de jazz similar ao de Montreux em termos artísticos e mercadológicos. Um festival deste porte deveria contar com os melhores músicos brasileiros do segmento para fazer frente aos grandes nomes do jazz norte-americanos, de “níveis iguais”, dentro de um mesmo festival de jazz, criando um aumento de visibilidade frente a seu publico e frente a novos públicos. Adentrar o mercado mundial do jazz, inserindo e fortalecendo a participação dos músicos brasileiros.

Um anúncio do festival de meia-página no Jornal do Brasil trazia o seguinte texto:

“O maior acontecimento musical já organizado no Brasil. Todo ano, alguns dos grandes nomes do jazz marcam encontro no mesmo palco. O local é Montreux, na Suíça. Lá promove-se um dos mais importantes festivais de toda a história da música moderna. Este ano, outro palco foi escolhido para um acontecimento de igual importância, com a participação dos maiores nomes do jazz e da musica brasileira: São Paulo - Brasil. O fato despertou grande interesse internacional devido a crescente influência da música brasileira no exterior. Será uma semana inteira de apresentações ao vivo, em que músicos americanos, europeus e brasileiros estarão

49 Fonte: idem. 50A matéria é sugestiva: intitulada “JAZZ & SAMBA”, traz, ao lado do título, na parte superior, fotos de três jazzistas norte-americanos e argentinos, como Astor Piazzola, Milt Jackson e Dizzy Gillespie, e embaixo, em tamanho menor, Vitor Assis Brasil, Milton Nascimento e Jorge Ben. Disponível em: http://memoria.bn.br/DocReader/DocReader.aspx?bib=030015_09&PagFis=182833, acessado em 19/04/2016.

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lado a lado, usando a mesma linguagem e criando condições musicais para encontros musicais que poderão tornar-se históricos. (site)51

O encontro marcado no mesmo palco, de músicos americanos, europeus e brasileiros, “usando a mesma linguagem”, denota um objetivo claro do festival de promover uma aproximação cultural através do jazz, que poderia ser determinante ao “tornar-se histórico”. Apesar disso, tanto no anúncio quanto na fala do Secretário de Cultura lê-se sempre a referência ao jazz e à musica brasileira como gêneros distintos. Mas, ao mesmo tempo, os grandes músicos brasileiros, a partir da edição do festival no país e de sua inserção no mesmo palco com outros grandes músicos de jazz, passarão a pertencer ao grupo dos “grandes nomes do jazz”. Esse fato seria também justificado pelo despertar do “grande interesse internacional”, associado à “crescente influência da música brasileira no exterior”. Para isso, seria feito um festival de grande porte, o maior “acontecimento musical” do país, impulsionando um encontro, uma fusão entre o jazz e a música brasileira. E também iria inserir o país na “cena” internacional da música moderna. Há uma clara intenção de “modernização” da música instrumental brasileira, dada como motivo de impulso ao evento, como diz o anúncio. Mas o entendimento de todos os agentes envolvidos no campo iria diferir bastante, em função desse paradigma criado em torno da inserção música instrumental brasileira no campo do jazz. Uma programação que mesclava na mesma noite artistas consagrados do jazz e da música brasileira, aliada a uma análise feita sob a lente do jazz, fez a imprensa reagir com inúmeras críticas aos artistas brasileiros, bem como à “mistura” de gêneros e estilos. 52

Os problemas vinham de dois lados: o entendimento a respeito dos limites do jazz enquanto gênero, e o entendimento sobre a posição do músico brasileiro dentro do festival: “Milton Nascimento, produto típico das confusões que esse festival retrata”. 53A tônica geral foi a respeito dos limites musicais que teriam sido borrados, gerando um equívoco nas performances de artistas nacionais e estrangeiros. A conclusão de José Nêumanne Pinto, em

51 Disponível em: http://memoria.bn.br/DocReader/DocReader.aspx?bib=030015_09&PagFis=185309. Acessado em 19/04/2016. 52 “Os cultores do jazz têm razão em reclamar que o grande encontro de oito dias de música, no Palácio de Convenções do Parque do Anhembi, tenha sido uma verdade “salada paulista” com vários tipos de som, que não passaram obrigatoriamente pelo jazz ou pelo samba, mas que foram genericamente batizados de ‘música progressiva’, como que para desculpar a grande variedade de linhas exibidas”. Fonte: http://memoria.bn.br/DocReader/docreader.aspx?bib=030015_09&PagFis=186743. Acessado em: 01/05/2016. 53 Fonte:http://memoria.bn.br/DocReader/docreader.aspx?bib=030015_09&PagFis=186666. Acessado em 01/06/2016. 55

matéria intitulada “Balanço do I Festival de Jazz: Que não vá o sapateiro além dos sapatos”, traz em 20/09/1978:

“Tudo deixa claro, mais uma vez, que um bom sapateiro deve continuar fazendo sapatos, e que não é obrigatoriamente um bom alfaiate. Os sapateiros Wagner Tiso, Nivaldo Ornelas, Milton Nascimento e Márcio Montarroyos tentaram costurar um terno e logicamente tudo deu mal. Já o alfaiate George Duke, confeccionando sapatos, também não evitou uma catástrofe”(site). 54

Apesar da ácida crítica do jornalista a alguns músicos brasileiros (que contrapontua as outras críticas positivas de diferentes jornalistas às performances de Hermeto Pascoal - Egberto Gismonti, Banda de Frevo de José Meneses, Vitor Assis Brasil, Hélio Delmiro, Raul de Souza e outros) o que se pode perceber, no final das contas, é a intenção do jornalista em separar o “joio do trigo”, ou seja, o jazz da MIB. O mesmo jornalista introduz a matéria com as seguintes palavras:

“O I Festival Internacional de Jazz São Paulo-Montreux teve um saldo positivo, particularmente para os cultores da música instrumental, que ainda resistem no Brasil, e para o público, que pode enfim comparar alguns de seus ídolos, com profissionais de renome internacional, e, seguindo o melhor preceito bíblico, separar o joio do trigo” (site). 55

Outra visão, porém, parece não se preocupar com os limites do jazz, como a do jornalista E. Neves, que, em matéria publicada na Revista Pop nº.73, em novembro de 1978, coloca tudo sob o mesmo “guarda-chuva”:

“Se a Jazz Band da Universidade do Texas mostrou apenas um xerox pomposo e amador de standards jazzísticos, Paulo Moura e José Menezes fizeram a platéia mergulhar na maior farra. O primeiro, tocando e regendo a Rio Jazz Orquestra, mostrou que o tempero brasileiro só enriquece e apimenta o jazz tradicional. E o segundo, à frente da eufórica Banda de Frevo do Recife, provou que esse ritmo explode o rótulo "folclore": jazz é também alegria.” 56

Ao comparar as atrações brasileiras com as internacionais do festival, conclui que as brasileiras “melhoram” o jazz tradicional, no sentido de lhes conferir “tempero” e alegria. Expande os limites do jazz ao inserir o frevo e o “tempero brasileiro”. Dá destaque e insere a música brasileira dentro do campo, e tudo passa então a ser classificável como jazz: este poderia abranger qualquer gênero/estilo, qualquer expressão, entre elas, todas as expressões brasileiras consideradas música instrumental. Assim ele resolvia o conflito.

54 Disponível em: http://memoria.bn.br/DocReader/DocReader.aspx?bib=030015_09&PagFis=186743. Acessado em 24/04/2016. 55 idem. 56 Disponível no site “Clube de Jazz”: http://www.clubedejazz.com.br/noticias/noticia.php?noticia_id=695. Acessado em 02/03/2016.

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O jazz que mais tinha essa permeabilidade naquele momento era o recente jazz fusion, gênero moderno e em voga no cenário mundial, o mesmo em que o Azymuth foi catalogado em Montreux um ano antes. Essa denominação já servia para a música de Chick Corea, John McLaughlin e outros à época do festival, e se caracterizava como uma fusão do jazz com o rock. Na década de 1980 entre os músicos a expressão irá ganhar espaço no Brasil e acomodar novas possibilidades sonoras. Essa nova vertente se distanciava do discurso purista do jazz tradicional e soava como vanguarda nos ouvidos das gerações mais jovens que se aproximavam do jazz naquele momento, e entendiam-no, portanto, como um movimento com ares de modernidade.57

Foi apostando no público jovem que o festival alcançou o número expressivo de 60.000 expectadores. Um evento de grande vulto, com visibilidade na cidade de São Paulo, fomentando, através da esfera pública, o jazz e a música instrumental, com nomes consagrados e expoentes do Brasil e dos EUA. Na mesma extensa matéria, o jornalista E. Neves retrata esse momento e consagra a ação da Secretaria:

(...) “o fato de pelo menos metade dessa platéia ser composta de jovens que antes nunca haviam travado contato com o idioma de Louis Armstrong dignifica ainda mais a ótima idéia da Secretaria da Cultura, Ciência e Tecnologia. que transformou São Paulo, do dia 11 ao dia 18 de setembro, em capital mundial do jazz (site).”58

57 Essa visão contrasta porém com a dos puristas e corrobora a idéia de um jazz “puro”, “superior”. Em matéria de 23/09/1078 no JB, o crítico e escritor Luiz Orlando Carneiro escreve: “O confronto de linguagens, propostas e happenings diversos -musicais e visuais - no salão de convenções do Anhembi, durante o 1º. Festival de Jazz de São Paulo, provocou uma natural polêmica em torno da validade e da legitimidade da invasão, muitas vezes agressiva, do santuário do jazz. O conceito cada vez mais abrangente e permissivo do que é válido palavra mágica que pode ser inserida em qualquer contexto - é responsável pela maior parte das contrafações e moedas falsas que circulam por aí, e que não podiam deixar de aparecer no 1º.Festival de jazz de São Paulo”. 58 Disponível no site “Clube de Jazz”: http://www.clubedejazz.com.br/noticias/noticia.php?noticia_id=695. Acessado em 02/03/2016. 57

Figura 4: Palácio de Convenções do Anhembi por ocasião do I Festival, em 1978. (Foto: Júlio C.Soares. Acervo CEDOC/FPA.)

Um dos fatores que contribuíram para essa transformação de São Paulo nessa “capital mundial do jazz” foi sem dúvida a transmissão da TV Cultura, canal 2, destacado pelo enciclopedista e crítico de música norte-americano Leonard Feather como um dos dois aspectos que revelou o evento como único: “inquestionavelmente, o primeiro festival de jazz, em qualquer parte, a ser televisionado e irradiado integralmente”. O outro aspecto, para o crítico, teria sido o fato de ter sido “o maior evento musical da America Latina”.59 Na matéria da Revista Pop, o jornalista conclui:

“A grande virtude desse triunfal ‘Primeiro Festival’, foi que não houve disputa ou confronto entre brasileiros e estrangeiros. Houve, isto sim, uma sadia troca de energia e vocabulário musicais em que o jazz saiu sempre e sempre vitorioso. A prova disso foi dada pelo prodigioso "Bruxo do Som", Hermeto Paschoal - autêntica síntese da maratona musical acontecida no Anhembi. Deliciosamente antropofágico, liquidificando todas as informações sonoras atuais, Hermeto partiu do mais descabelado free até a música nordestina, provando que os autênticos inventores vocais são aqueles que batalham para a criação da música do futuro” (site).60

59 Matéria do Jornal do Brasil intitulada “A fusão do Festival de São Paulo vista dos EUA”. Disponível em: http://memoria.bn.br/DocReader/DocReader.aspx?bib=030015_09&PagFis=188602. Acessado em 24/04/2016. 60 Disponível em; http://www.clubedejazz.com.br/noticias/noticia.php?noticia_id=695. Acessado em 02/03/2016.

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2.4.2 - 2º. Festival Internacional de Jazz São Paulo-Montreux

Apesar do prejuízo financeiro61, o êxito de colocar 60.000 pessoas no Anhembi, bem como da transmissão da TV Cultura fomentou a realização, em 1980, do 2º. Festival Internacional de Jazz São Paulo-Montreux. Nessa segunda edição a Secretaria Municipal de Cultura de SP entra na parceria com a Secretaria de Estado de Cultura e a Fundação Padre Anchieta. Foi realizado de 24 a 27 de abril de 1980 no Palácio das Convenções do Anhembi, com transmissão ao vivo em cores pela TV Cultura, que divulga atualmente em seu site:

“Para os que enfrentaram a escassez de ingressos durante o 2º. Festival Internacional de Jazz de São Paulo, a Rádio e a TV Cultura foram a solução. Aos telespectadores e ouvintes, ofereceu-se o máximo em tecnologia para 1980: transmissão, ao vivo e em cores e som estereofônico em frequência modulada. Juntos, rádio e televisão aguentaram firmes o show de Hermeto Pascoal madrugada adentro. Além do albino louco, Cultura Jazz compilou Mingus Dinasty, com apenas um ano de existência, e o saxofonista Phil Woods em quarteto afinado” (site). 62

Quadro 3: programação brasileira do II festival de Jazz de São Paulo/Montreux, de 1980.

Nelson Ayres e Maurício Einhorn

Pepeu Gomes e grupo

Guitar summit (com Joe Pass, Barney Kessel, Heraldo do Monte, Hélio Delmiro)

Hermeto Pascoal

Egberto Gismonti

A cor do som

Trio elétrico de Dodô e Osmar com participação de Moraes Moreira

Se por um lado houve um aparelhamento tecnológico ainda maior na transmissão da TV Cultura, por outro a ampliação dos limites da música brasileira na programação contribuiu para aumentar ainda mais as discussões de identidade. O que era o jazz naquele

61 José Nêumanne Pinto, na mesma matéria em que crítica o festival, assim justifica o prejuízo: “De qualquer maneira, um contato com o maior gênio vivo do jazz, John Birks “Dizzy” Gillespie, a audição de um magnífico e sensível solo de piano de Jimmy Rowles, o contato com o sopro inesquecível e suave de Benny Carter e os estupendos shows de Egberto Gismonti e Chick Corea compensaram os 3 milhões de cruzeiros de prejuízos, acumulados pela Secretaria de Cultura, Ciência e Tecnologia do Estado de São Paulo.” Disponível em: http://memoria.bn.br/DocReader/DocReader.aspx?bib=030015_09&PagFis=186743. Acessado em 26/04/2016. 62 Disponível em: http://culturafm.cmais.com.br/cultura-jazz/jazz-ao-vivo-na-rtc. Acessado em: 02/03/2016. 59

momento, quais os caminhos da MIB frente as transformações do jazz no mundo e o impacto em sua compreensão nesse novo contexto, serão no 2º. festival, ainda mais proeminentes. Em pesquisa feita na hemeroteca digital, foram encontradas nove ocorrências no Jornal do Brasil sobre o festival, e três trazem em seus títulos o destaque para esse paradigma do momento: a) “Do forró ao rock japonês, no festival de São Paulo tudo é jazz”.63 b) “Heraldo do Monte, guitarrista e violeiro vai tocar forró”.64 c) “A Big Band vai tocar samba, frevo e baião”.65 Na primeira matéria, o título é explicado: “o jazz do título, portanto, é apenas um rótulo para o grande evento musical que se realizará nessa capital”. Na terceira, o jornalista José Nêummane Pinto informa: “Quando o guitarrista pernambucano Heraldo do Monte subir ao palco do Palácio de Convenções do Anhembi no dia 25, durante o II Festival Internacional de Jazz/Montreux, vai se encontrar musicalmente com um dos maiores ídolos de sua juventude, o norte-americano Barney Kessel. Mas muitos anos já se passaram e o músico brasileiro não é mais um entusiasta do jazz. Acompanhado do contrabaixo Claudio Bertrami, vai tocar forró. “(site) 66.

Heraldo do Monte esclarece ao jornalista:

“Há alguns anos - diz - eu nem sonharia em tocar com um músico como Barney Kessel. Agora, sinto até que pode haver problema, caso realmente nos encontremos no palco. Não me sinto mais muito bem tocando jazz. Quando toco uma guitarra jazzy começo a me ver como uma caricatura de mim mesmo. Já isso não acontece com o Helinho Delmiro, por exemplo. Helinho vai participar do mesmo Guitar Summit (com Joe Pass) e é capaz de tocar jazz com muita sinceridade. Alem de obviamente, com toda aquela competência que Deus lhe deu” (site).67

Heraldo transparece nessas palavras não possuir mais, naquele momento, o “sonho inalcançável” de tocar com Barney Kessel de outrora, pressentindo até um possível desencontro e não caracterizando mais aquele jazz que faria com o guitarrista norte-americano como sendo algo autêntico para si mesmo. A matéria traz que o show daquela noite será dedicado ao “forró e alguns sambas de bossa nova”. Por outro lado, Heraldo já naquela época atuava com outro grupo instrumental (Heraldo foi um dos componentes do “Quarteto Novo”,

63 Matéria de 05/03/1980. Disponível em: http://memoria.bn.br/DocReader/docreader.aspx?bib=030015_10&PagFis=3065. Acessado em 02/03/2016. 64 Matéria de 11/04/1980. Disponível em: http://memoria.bn.br/DocReader/docreader.aspx?bib=030015_10&PagFis=4997. Acessado em 02/03/2016. 65 Matéria de 08/04/1980. Disponível em: http://memoria.bn.br/DocReader/docreader.aspx?bib=030015_10&PagFis=4836. Acessado em 02/03/2016. 66 Disponível em: http://memoria.bn.br/DocReader/DocReader.aspx?bib=030015_10&PagFis=4997. Acessado em 02/03/2016. 67 idem.

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colega de Hermeto Pascoal), o “Medusa”, grupo instrumental que montou com o contrabaixista Claudio Bertrami (irmão de Jose Roberto Bertrami, do Azymuth), o pianista Amilson Godoy e o baterista Chico Midori, e classifica o trabalho desse grupo como “um trabalho de música brasileira, mas mais aberto em direção a outros estilos musicais do que o é meu trabalho individual, mais preso as raízes de Pernambuco (…) O trabalho é comercializável, pois as respostas no show tem sido muito positivas.”68 Heraldo do Monte é pernambucano da cidade de Mustardinha e seu começo foi como músico “de noite” tocando jazz em boates, até que ingressou no quarteto de Dick Farney, se aproximando do jazz. “Eu me sentia então um músico de jazz. Na época Luiz Gonzaga era maldito e o baião uma musica de segunda classe. Tinha pesadelos para enfrentar, depois, a idéia de pegar numa viola e tocar música brasileira. Pensava que, ao ceder a minha infância, a minha juventude, as minhas raízes, eu estava sendo indigno. Um guitarrista classe A - eu pensava então - não podia deixar de seguir a trilha Barney Kessel, de Wes Montgomerry, de Django Reinhardt, de todos esses ídolos da guitarra do jazz” (site). 69

Se na década de 60 Heraldo “se sentia um músico de jazz”, e “tinha pesadelos” com a idéia de tocar música brasileira, na década de 1970 esse quadro irá se modificar integralmente, e Heraldo irá integrar o Quarteto Novo, ao lado de Hermeto, realizando hibridações na música “de raíz” nordestina, como o baião. E nesse limiar da década de 1980, parece abandonar completamente aquela idéia de jazz tradicional da década de 1960 e fazer uma clara distinção entre uma música mais “presa as raízes” (a do seu trabalho solo de então) e outra mais “aberta em direção a outros estilos musicais” (a do grupo Medusa) que estaria prestes a veicular a partir daquele momento. Parece haver aqui uma distinção portanto de três expressões: a música brasileira de raiz (a de Heraldo naquele momento), o jazz tradicional (antigo, ultrapassado) e a música do Medusa, que se aproxima portanto do novo jazz fusion. O festival teve o mesmo formato de duas sessões diárias, uma a tarde as 15h e outra a noite as 21h, porém os preço subiram cerca de150% em relação ao primeiro, e os ingressos variaram entre CR$150,00 e Cr$700,00. Entre os espetáculos houveram, em duas salas reservadas, “sessões de jazz” paralelas aos shows e 15 grupos instrumentais de São Paulo foram convidados: Divina Increnca, Grupo D’alma , Ponte Aérea, Bendengô, Carlos Camargo, Orquestra Azul, Mário e Alberto, Paulo Soledad, Original Jazz Band, São Paulo Dixieland Band, Quarteto Wilson Curia, Arrigo Barnabé e a banda Sabor de Veneno,

68 ibidem 69 ibidem. 61

Tentáculo, Ricardo e Victor e Quarteto Moderno.70 O horário das apresentações paralelas muitas vezes coincidia com as vespertinas no palco principal, prejudicando a presença de público nos shows dos que a jornalista Ana Maria Bahiana chamou de “novatos”.71 O evento cresceu tanto nos preço dos ingressos como em infra-estrutura e marketing em torno do evento. Na matéria de véspera do festival do Jornal do Brasil, lê-se que o festival terá a disposição uma rede de 50 hotéis de preços variados, onde o espectador carioca poderá obter informações diretamente dos saguões do aeroporto e da rodoviária.72 O festival ampliava assim mais uma vez a faixa do público de jazz, fomentava o mercado e angariava mais jovens. Ana Maria Bahiana, em sua coluna no JB, relata ao final do festival: “Fim do festival - a garotada que compôs, com certeza, 90% do público está no limite da exaustão e da felicidade. A maioria acompanhou os quatro dias, muitas vezes nas duas récitas e nos eventos especiais. Muitos parecem ter dormido aqui mesmo no Anhembi” (site).73

Carlos Callado assim definiu o papel dos dois festivais no Brasil naquele momento junto a formação de público:

“Quem teve a sorte de estar na plateia do Palácio das Convenções do Anhembi, nas duas edições do evento realizadas em 1978 e 1980, sabia que jamais esqueceria daqueles festivais – até porque eventos desse gênero ainda eram novidade no Brasil. Também transmitido ao vivo para quase todo o país pela TV Cultura e afiliadas, esse festival permitiu que muitos brasileiros, especialmente jovens, abrissem os ouvidos para um gênero musical que ainda atingia apenas pequenos círculos de apreciadores”(site). 74

Estes festivais contribuíram sem dúvida para ampliar o espaço do gênero no país. Um espaço que, ao mesmo tempo que acomodava nomes da MIB em seu interior, se apropriava do espaço da mesma. A partir daí, o espaço do músico brasileiro enquanto artista passa cada vez mais a estar no campo do jazz, e o jazz fusion será um rótulo que ganhava cada vez mais força dentro no Brasil. O jornalista Tárik de Souza irá definir esse espaço, em matéria no Jornal do Brasil alguns dias antes do 2º.Festival de Jazz de São Paulo/Montreux, em 1980:

70 Disponível em: http://memoria.bn.br/DocReader/DocReader.aspx?bib=030015_10&PagFis=5626. Acessado em 29/04/2016. 71 Disponível em: http://memoria.bn.br/DocReader/docreader.aspx?bib=030015_10&PagFis=5759. Acessado em 01/05/2016. 72 Disponível em: http://memoria.bn.br/DocReader/docreader.aspx?bib=030015_10&PagFis=5626. Acessado em: 01/05/2016. 73 Disponível em: http://memoria.bn.br/DocReader/docreader.aspx?bib=030015_10&PagFis=5961. Acessado em 02/03/2016. 74 Disponível em: http://www.carloscalado.com.br/2014/12/festival-de-jazz-de-sao-paulo-1980.html. Acessado em 02/03//2016.

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“O jazz contemporâneo é um território aberto a todas as correntes e tendências, algo indefinível por rótulos de qualquer espécie. Para facilitar o diálogo com os leitores, a crítica internacional apelidou genericamente de fusion (fusão), o encontro de elementos latinos, orientais e de rock que permeiam o atual jazz” (site).75

2.4.3 - Rio Jazz Monterrey Festival

A partir do sucesso do I Festival de São Paulo, Roberto Muylaert e Walter Longo idealizaram outro grande festival, em 1980, no Rio de Janeiro - o Rio Jazz Monterey Festival. Este teve a duração de quatro dias e aconteceu entre 14 e 17 de agosto no ginásio do Maracanãzinho. Foi patrocinado pela marca de jeans norte-americana USTOP, com ingressos a venda no Unibanco, Maracanãzinho e Teatro Municipal. Este festival também estabelecia conexão com outro festival de jazz, considerado o mais importante da América do Norte, o Monterey Jazz Festival, realizado todo ano, há então 22 anos, por Jimmy Lyons, em setembro, na cidade de Monterey, California. Os produtores utilizaram este nome em troca de pagamento de royalties pela utilização da marca de prestígio e não teve quaisquer participaç- ão de órgãos da esfera pública. Em matéria do jornalista José Nêumanne Pinto, dizem ter sido “docemente constrangidos a organizarem um grande festival de jazz no Rio, com programação já incluída, segundo João Roberto Kelly avisou por telefone a Walter Longo, no calendário turístico da RioTur”. O objetivo desse festival, que aconteceria portanto no 2º. semestre do mesmo ano do 2º.Festival de São Paulo, teria um apelo turístico maior, em função de acontecer numa cidade com maior força turística, com o Rio de Janeiro. Disseram, na mesma matéria, que a versão desse festival iria ser “o mais importante evento turístico do Rio de Janeiro, depois do Carnaval, é claro”.76 O “Rio Monterey All Stars” foi um grupo formado por músicos brasileiros e norte-americanos, uma banda formada com o intuito de promover uma interação entre grandes músicos ligados ao festival matriz e músicos atuantes no Rio de Janeiro: Victor Assis Brasil, Luiz Avelar, Paulo Russo e Cláudio Caribé; da parte norte-americana, Charlie Byrd, Clark Terry, Slide Hampton, Richie Cole. A Banda BR-1 foi uma ideia de um dos organizadores do festival, David Hadjes, composta por: Márcio Montarroyos, Nivaldo Ornelas, Jamil Joanes, Robertinho Silva, Marcos Resende e Ricardinho Silveira.

75 Disponível em: http://memoria.bn.br/DocReader/docreader.aspx?bib=030015_10&PagFis=4304. Acessado em 26/04/2016. 76 Fonte: http://memoria.bn.br/DocReader/docreader.aspx?bib=030015_09&PagFis=205813. Acessado em 01/05/2016. 63

A Rio Jazz Orquestra ganhou destaque abrindo o festival com a cantora Leny Andrade. José Domingos Rafaelli destaca: “Fundada por Marcos Szpylman (saxes e soprano) e Alfredo de Paula (trompete), a RJO é uma organização musical pioneira e a única Big band em atividade permanente no país. Em suas fileiras tocaram muitos nomes consagrados entre os instrumentistas nacionais, que ganharam confiança, experiência e categoria, desenvolvendo seus recursos como improvisadores e aprendendo a conviver com a disciplina das grandes formações (…) Seus brilhantes uníssonos, solistas de concepções modernas e o entrosamento entre as diversas seções são garantias para uma apresentação que ficará registrada nos anais do jazz brasileiro” (site).77

Na opinião do tecladista Marcos Resende, a promoção de um festival deste porte, era para os músicos brasileiros, “quase um sonho para nós que batalhamos pela musica instrumental. É uma oportunidade única para mostrarmos nossa capacidade, além de tocarmos uma música que pode conviver no mercado ao lado dos nomes populares”(site).78

Quadro 4: Programação do Rio Jazz Monterey Festival

quinta 14 - sexta 15 - sábado 16 - sábado 16 - domingo 17 - domingo17 - 21h 21h 14h 21h 14h 21h

Rio Jazz Banda Black Al Jarreau e Rio Monterey Charlie Garcia e Banda BR1 Orquestra Rio grupo All Stars Seru Giran

Baby Consuelo Art Ensemble of Mc Coy Tyner e Mc Coy Tyner e Pat Metheny e George Duke e e grupo Chicago grupo grupo grupo grupo John Al Jarreau e Weather Report Pat Metheny e George Duke e Airto Moreira McLaughlin e grupo grupo grupo e Raul de Christian Souza Escoudé Weather Report Hermeto Egberto Airto Moreira Stanley Clarke Pascoal Gismonti e e Raul de Naná Souza Vasconcelos Stanley Clarke Jorge Ben

Mocidade Independente de Padre Miguel

A estrutura do festival foi pensada de forma grande: foi construída uma grande calota de lã de vidro (que é acusticamente absorvente) de 40 metros de diâmetro e duas toneladas sobre o palco, para transformar o teto do ginásio de formato côncavo em convexo e

77 Disponível em: http://memoria.bn.br/DocReader/docreader.aspx?bib=030015_10&PagFis=11324. Acessado em 01/05/2016. 78 idem

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realizar um tratamento acústico no som, na tentativa de minimizar a reverberação do local.79 Uma transformação de grande porte para a época, em termos de projeto e custos. Não houve desta vez transmissão ao vivo (os direitos de transmissão ficaram com a TV Globo e os de rádio para a Rádio Manchete), o disco do festival vendido para a WEA. O ingresso mais barato saiu a CR$250,00, na arquibancada do show da tarde e CR700,00 a cadeira. Na véspera do evento foi promovido um baile intitulado “Jazz no Morro”, no Noites Cariocas, com a participação dos produtores do festival, com ingressos a CR$400,00. Apresentaram-se a Banda Black Rio, Roberto Guima e Grupo Palmares.80 O crítico de jazz José Domingos Rafaelli escreveu em matéria do JB publicada no 1º. dia do festival: “Para uma promoção dessa envergadura, numa autêntica maratona musical de duas tardes e quatro noites, é necessária a participação de nomes de verdadeiro apelo popular. Todos os festivais do mundo congregam as mais variadas tendências musicais, não causando estranheza a presença de artistas inteiramente alheios ao idioma jazzístico” (site).81

Com essa afirmativa, o crítico, autoridade no campo do jazz no Brasil, parece justificar para o público apresentações como a de Baby Consuelo, artista da MPB escalada para esse festival, sem problemas. Essa teria sido, na nossa opinião, a melhor justificativa para outras atrações dos Festivais de São Paulo, onde artistas “alheios ao idioma jazzístico”, na verdade, artistas representativos de música brasileira, como o Trio elétrico de Dodô e Osmar e Moraes Moreira foram escalados. O crítico reconhece a necessidade de um determinado apelo popular para que se amplie a faixa de público para o equilíbrio das contas num festival de grande investimento como esse. Trata-se de uma objetiva visão mercadológica que poderia vir a aniquilar discussões inúteis sobre se determinado artista é jazz ou não. A questão da presença de artistas como Baby Consuelo ou o Trio elétrico nos parece, necessariamente, como afirma o crítico, uma questão comercial. Essa fala de Rafaelli é acertada no sentido de que corrobora os objetivos dos empresários de, ao alcançar o sucesso com esse festival (e o sucesso passa necessariamente pelo, no mínimo, o equilíbrio das contas), dar continuidade aos investimentos no segmento: “a

79 ibidem 80 Disponível em: http://memoria.bn.br/DocReader/docreader.aspx?bib=030015_10&PagFis=11358. Acessado em 01/05/2016. 81 Disponível em: http://memoria.bn.br/DocReader/docreader.aspx?bib=030015_10&PagFis=11433. Acessado em 01/05/2016. 65

opção pelo jazz tem o sentido de um investimento, a longo prazo, por um estilo musical ainda não totalmente absorvido pelo mercado nacional”(site). 82 O festival no Rio de Janeiro esbarrou em maiores dificuldades frente aos de São Paulo: o Maracanãzinho não era, nem de longe o Anhembi em termos de estrutura. Situações inusitadas aconteceram em torno dos artistas: o Art Ensemble of Chicago na última hora colocou como condição de sua vinda, um pagamento extra maior do que o combinado em contrato, - e acabou não se apresentando. Hermeto Pascoal não terminou sua apresentação, deixando o palco depois de várias interrupções pedindo silêncio, “desencadeando vaias e protestos generalizados, em meio a grande tumulto”, e por fim, sendo vaiado ao tentar retornar ao palco, quando então Hermeto se descontrola e atira sua flauta ao chão.83 O próprio Hermeto irá dar sua visão dos fatos e o quadro da situação em entrevista posterior: “Não tive condições de tocar por causa do som. Faltava retorno e para complicar o público nem podia ver-me. Tinha muita gente no palco e outro tanto entre os espectadores que estavam afim de atrapalhar todo mundo. Pessoas andando de patins, uma confusão (…) Não houve foi respeito por parte dos organizadores. Quando pedi silêncio e quando tentei voltar, não deu mais pé, já tinham desligado o som” (site).84

Se por um lado esse acontecimento infeliz contribui para o saldo negativo do festival, por outro, a BR-1 e a All Stars obteve êxito e seu sucesso foi prenunciado pela crítica como um novo caminho para a música instrumental brasileira. Em crítica, Rafaelli ressaltou que “nossos músicos estão a altura dos melhores que aqui tem vindo e deveriam merecer melhores e maiores oportunidades”85. Uma coisa a ser observada é que nos três festivais aqui comentados, a atração da noite que encerra o festival é sempre ligada a uma música brasileira festiva, carnavalesca: em 1978, encerrou com a Banda de Frevo de José Menezes, em 1980, com o trio elétrico de Dodô e Osmar e Moraes Moreira, e por último, no Rio de Janeiro, com a bateria da Escola de Samba Mocidade Independente. No caso do Rio de Janeiro, essa prática é analisada por Tárik de Souza: “imagem colonizada do carioca, alimentada pela direção do Festival, seduzida pela

82 Disponível em: http://memoria.bn.br/DocReader/DocReader.aspx?bib=030015_10&PagFis=11476. Acessado em 01/05/2016. 83 José Domingos Rafaelli, em matéria intitulada “Hermeto, um desastre. All Stars, uma consagração. Disponível em: http://memoria.bn.br/DocReader/DocReader.aspx?bib=030015_10&PagFis=11664. Acessado em 02/05/2016. 84 Disponível em: http://memoria.bn.br/DocReader/DocReader.aspx?bib=030015_10&PagFis=12519. Acessado em 01/05/2016. 85 José Domingos Rafaelli em crítica ao Jornal do Brasil, intitulada “BR-1, um caminho para a música instrumental”. Disponível em: http://memoria.bn.br/DocReader/DocReader.aspx?bib=030015_10&PagFis=11704. Acessado em 02/05/2016.

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ideia simplista de que no Rio o samba resolve tudo. A Mocidade paga o pato por seu papel deslocado no programa”.86 Na mesma página do jornal, uma coluna traz a notícia de que os organizadores estavam insatisfeitos com o resultado do festival e que não pretendiam repetí-lo, até porque o Maracanãzinho não possuía condições mínimas para um evento daquele porte. E realmente este festival não se repetiu no Rio de Janeiro. Festivais de Jazz voltarão a acontecer novamente nas duas capitais somente a partir de 1985, com a criação do Free Jazz Festival desta vez por duas mulheres, as irmãs Monique e Sylvia Gardenberg.

86 Disponivel em: http://memoria.bn.br/DocReader/DocReader.aspx?bib=030015_10&PagFis=11704. Acessado em 02/05/2016. 67

CAPITULO 3 - A PRIMEIRA METADE DA DÉCADA DE 1980

3.1 - O jazz como “estado de espírito” e “comunidade internacional”

“(…) não houve disputa ou confronto entre brasileiros e estrangeiros. Houve, isto sim, uma sadia troca de energia e vocabulário musicais em que o jazz saiu sempre e sempre vitorioso”(griffo nosso).87 A fala do jornalista neutraliza a ideia de um conflito em favor de uma ideia de troca, mas ao mesmo tempo, reconhece o gênero jazz como o sempre “vitorioso” da história, estabelecendo uma distinção para este. Logo em seguida, cita Hermeto Pascoal como a autoridade que atesta essa vitória do jazz, mas que, “antropofágico”, vai além e “liquida todas as informações sonoras atuais”, partindo do “mais descabelado free até a musica nordestina”. Por fim, classifica-o como “autêntico inventor vocal”. Na visão do jornalista brasileiro, nesse momento, Hermeto Pascoal, um multiinstrumentista brasileiro, nascido em Olho d´Água e criado em Lagoa da Canoa, na época município de Arapiraca, estado de Alagoas, em 22 de junho de 1936, não só pertence ao campo do jazz como é uma autoridade consagrada dentro dele, com distinção de autenticidade. O show do Hermeto, como o de todos os outros artistas brasileiros convidados a participar do festival estavam naquele momento sob o “guarda-chuva” do rótulo jazz e portanto, analisados sob esta ótica. E não apenas no I Festival Internacional de Jazz de São Paulo-Montreux, mas também no Festival de Montreux ou em qualquer outro “Festival de Jazz”, que acontecia em número cada vez maior, na Europa, nas Américas ou na Ásia. Os festivais de jazz que se proliferavam contribuíam para esse efeito: todas as atrações tendiam a serem “julgadas”, analisadas sob este parâmetro. Evidentemente, isso iria gerar controvérsias de toda sorte tanto no campo artístico quanto jornalístico, e opiniões sobre que atração seria

87 “A grande virtude desse triunfal "Primeiro Festival", foi que não houve disputa ou confronto entre brasileiros e estrangeiros. Houve, isto sim, uma sadia troca de energia e vocabulário musicais em que o jazz saiu sempre e sempre vitorioso. A prova disso foi dada pelo prodigioso "Bruxo do Som", Hermeto Paschoal - autêntica síntese da maratona musical acontecida no Anhembi. Deliciosamente antropofágico, liquidificando todas as informações sonoras atuais, Hermeto partiu do mais descabelado free até a música nordestina, provando que os autênticos inventores vocais são aqueles que batalham para a criação da música do futuro.” E.Neves para a revista Pop Nº.73, disponível em: http://www.clubedejazz.com.br/noticias/noticia.php?noticia_id=695. Acessado em 02/03/2016.

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jazz ou não eram heterogêneas como a própria fase que o jazz atravessa naquele momento.88 Mas o que era o jazz naquele momento? Vimos que, para BERENDT, o jazz nos anos finais da década de 1970 “havia assimilado a estrutura e as características atonais do free jazz, da música européia de vanguarda, de música e culturas exóticas, do romantismo europeu, do blues e do rock” e não tinha ainda um nome específico. Seu contínuo desenvolvimento portanto prescindia de expansão. Como vimos também, o jazz na década de 1970 muito se valeu da música brasileira, quando Hermeto, Flora, Airto e Naná Vasconcelos gravaram nos EUA com os nomes mais consagrados em todas as instâncias do jazz, como Miles Davis, e com representantes da nova geração, como Chick Corea. Assim como se hibridizou com gêneros de mesma nacionalidade, como o rock, o rhythm n’blues e o funk, fazendo surgir sub- gêneros como o jazz-rock e o jazz-fusion, até romper com a tonalidade e o ritmo, chegando ao free jazz. Toda essa expansão antropofágica estará refletida tanto no fazer musical quanto na forma de se pensar (e vender) o gênero naquele momento. A elasticidade dos limites do que seja jazz parece atingir o ponto máximo até então, para os adeptos do jazz moderno. Na mesma matéria da Revista Pop, um trecho da entrevista com o pianista Chick Corea sintetiza uma ideia do artista de música dissociada da ideia de nacionalidade, que afirma: “A técnica e o estilo podem ser coisas mecânicas. Mas o feeling, o jeito de você sentir a música, isso é algo espiritual, sem fronteiras. Não é necessário ser brasileiro para tocar samba, mas é preciso sentir o espírito do samba para tocá-lo bem”. E completa: “Nós vivemos num mundo meio louco, em que os países são muito diferentes uns dos outros. E só há uma coisa que une isso tudo: a arte. Quem não sabe que as pessoas amam ouvir música no mundo inteiro?”89 Chick Corea fala de um sentido “espiritual”, livre e destituído de nacionalidade que o músico deve acessar para “tocar bem”. Atribui dessa forma uma espiritualidade superior a música e sua universalização, onde o músico rompe nacionalidades por ser um ser espiritual e globalizado, acima de qualquer sentido político. Corea era dos nomes expoentes mais respeitados no campo do jazz naquele momento, seu lugar de fala vem portanto repleto de ares de vanguarda e reflete o conceito do jazz moderno, cujos limites estão sendo estendidos. Ao afirmar que o “feeling" é um jeito especial de sentir a música, e que “é preciso sentir o

88 No caso de Hermeto Pascoal, o músico reprovava de forma indubitável o rótulo jazz do festival. Em matéria do jornalista Tarik de Souza, na véspera do 2º.Festival, lê-se a fala de Hermeto: “dou nota zero para isso”. (griffo nosso). Disponível em: http://memoria.bn.br/DocReader/docreader.aspx?bib=030015_10&PagFis=5618. Acessado em 28/04/2016. 89 Chick Corea em entrevista para o jornalista NEVES, E., publicado na Revista Pop nº.73, de 1978, disponível em: http://www.clubedejazz.com.br/noticias/noticia.php?noticia_id=695. Acessado em 14/04/2016. 69

espírito do samba para tocá-lo bem”, atribui exclusivamente às faculdades sensoriais e cognitivas a capacidade do músico de dominar uma determinada linguagem musical. Esse “feeling" que Corea coloca como condição ao acesso à boa performance pode ser portanto universal e utilizado na execução de qualquer gênero. Possuí-lo é como acessar um estado de espírito receptivo e perceptivo que o coloca acima das fronteiras e lhe provê as ferramentas da boa performance. Nessa lógica, não há limitação de gênero, e, não havendo esta, o jazz pode abranger todos os gêneros, bastando, para isso, que o músico acesse este “feeling”. Algo como “o jazz, portanto, é um estado de espírito” (griffo nosso).90 E essa amplitude do pensamento corrente sobre o jazz favoreceu a curadoria da programação brasileira do festival, que deveria ter espaço para as maiores estrelas da “música instrumental” brasileira do momento, pois, dado o seu tamanho, o festival teve certamente um custo alto para os cofres públicos, e, como instituição pública, a SEC de São Paulo tinha o compromisso de incluir uma programação satisfatória de músicos brasileiros, tanto em termos de participação quantitativa quanto qualitativa. Por outro lado o rótulo jazz não opunha obstáculos a isso, nesse momento correntes modernas do jazz conferiam-lhe um amplo terreno de abrangência, um “guarda-chuva” extenso que caberia diferentes expressões, desde que apresentassem um nível satisfatório de proficiência musical, ou seja, desde que “tocado bem”. A busca pela representatividade brasileira no festival e a permissividade do rótulo levaram portanto a curadoria a compor uma programação brasileira eclética, sem maiores preocupações estilísticas no primeiro festival de 1978 no Anhembi:

Dia 11 - Nelson Ayres; Dia 12 - Wagner Tiso e Grupo; Dia13 - Luiz Eça e grupo e Azymuth; Dia 14 - Raul de Souza e Milton Nascimento e grupo; Dia 15 - Paulo Moura e grupo, Egberto Gismonti e grupo; Dia 16 - Victor Assis Brasil e grupo; Dia 17 - Hermeto Pascoal e grupo; Dia 18 - Banda de Frevo do Recife de José Meneses e Márcio Montarroyos e Grupo Um.

90 Essa idéia é recorrente na comunidade jazzística. Sylvio Lago afirma que “além de ser uma expressão e uma linguagem, o blues é um estado de espírito que se expressa de todas as formas possíveis”, e, ao parafrasear Leonard Feather, coloca o blues e o jazz lado a lado: “o blues é a essência do jazz, e possuir um blue-feeling é possuir um jazz-feeling”.(LAGO, Sylvio. Universos do jazz, Vol.I, 2015, p.43).

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Se formos relacionar a música que cada artista fazia naquele momento a gêneros brasileiros da forma como eram vistos no mercado da música brasileira podemos chegar ao seguinte resultado aproximado: 91 • Nelson Ayres e Vitor Assis Brasil (jazz tradicional); • Luiz Eça e Marcio Montarroyos (samba-jazz); • Wagner Tiso e Milton Nascimento e grupo (música mineira); • Paulo Moura (choro); • Raul de Souza (black music, funk), • Banda de Frevo de José Menezes (frevo). Apesar dos limites estendidos que os agentes do jazz lhe conferiam, a discussão no Brasil sobre o que era o jazz naquele momento levantou muitas divergências entre puristas e modernos. Muitas críticas, opiniões e confusões foram geradas para todos os lados a partir do ecletismo da programação brasileira destes festivais, mas era necessário que eles tivessem algo em comum - mesmo debaixo de muitas dúvidas sobre se A Cor Do Som, Trio elétrico de Dodô e Osmar, Hermeto Pascoal, Banda de Frevo de José Meneses ou Baby Consuelo eram jazz. Era necessário naquele momento que existisse algo que amalgamasse todas as diferentes expressões num mesmo festival de jazz, um denominador comum que unisse todos os artistas, algo que todos possuíssem. Esse algo era justamente esse “feeling” ou esse “estado de espírito”. Mesmo aqueles artistas de forte apelo popular – o caso de Baby Consuelo, como citamos anteriormente – tentaram se aproximar desse estado de espírito. Todos tinham que ter o estado de espírito jazzístico: o espírito da criação “sem fronteiras”, livre. O artista convidado para esses festivais de jazz era portanto portador desse “estado de espírito” e dessa forma pertencente a um grupo determinado de músicos, os músicos da comunidade jazzística (griffo nosso). A comunidade jazzística seria o conjunto dos agentes do campo do jazz, entre eles os músicos, críticos, produtores e outros profissionais ligados ao gênero. Pertencer a esta comunidade exige um determinado nível de proficiência do instrumentista ou cantor, que é mediado a partir de agentes do campo do jazz. Em seu trabalho sobre fricção de musicalidades, Piedade define comunidade jazzística como: No caso do jazz, esta comunidade é internacional e multicultural, e seus “nativos” compartilham o que chamei de “paradigma bebop”, ou seja, uma mesma musicalidade jazzística que torna possível o diálogo entre um trompetista sueco, um

91 Para Ana Maria Bahiana o termo genérico ‘música instrumental’ não se referia à toda forma musical executada apenas por instrumentos, mas sim “às formas musicais cunhadas na informação do jazz e à geração de seus praticantes, instrumentistas dispersos no mercado após a fase da bossa nova com o desinteresse do mercado e da indústria fonográfica” (BAHIANA, 1979, p.61 apud FREIRE, G. A.; SANTOS, R. dos. Hibridismo na música instrumental do Grupo Medusa... Per Musi, Belo Horizonte, n.28, 2013, p.162-169). 71

pianista tailandês e seu público, numa jam session em Caracas; enfim, algo como uma língua comum. (PIEDADE, 2005).

Pertencer a comunidade jazzística é portanto compartilhar uma mesma “musicalidade jazzística”, ou “estado de espírito” jazzístico, onde se fala uma “língua em comum”, a do jazz. As fronteiras são dessa forma abolidas e seus “nativos” podem ter diferentes nacionalidades, estarem relacionados publicamente a outros gêneros que não o jazz, mas que, ao acessarem essa musicalidade jazzística, são inseridos nesta comunidade internacional. Suas fronteiras são musicais e não mais territoriais: o jazz se estabelece naquele momento como linguagem globalizada, desterritorializada. E ao disseminarem essa ideia eclética de jazz moderno, globalizado, os festivais sinalizam para uma possibilidade ilimitada de grupos e artistas que podem ser inseridos no campo e que não deixarão de ser, ao mesmo tempo, “música instrumental brasileira”, pois assim eram chamadas no campo da música brasileira.92

3.2) O Jazz fusion e a MIB

Após todas as quebras realizadas no jazz da década de 1970, chega-se ao limiar da década de 1980 na busca por novos caminhos de expansão. O improviso atingia o incrível número de vendagem de 500 mil cópias, com o “The Köln Concert” do pianista norte- americano Keith Jarret.93 O jazz fusion já havia se expandido e os dissidentes do jazz-rock de “Bitches brew”94 tiveram um papel central no desenvolvimento dessa nova concepção de jazz. Grupos como Return to forever, Weather Report, Mahavishnu Orquestra, Herbie Hancock’s “Headhunters”, Pat Metheny Group, Spiro Gyra, entre outros, ganharam notoriedade ao longo da década como referências de jazz fusion, também para músicos brasileiros. Além disso, a atuação de notáveis músicos brasileiros com alguns desses grupos (Airto Moreira,

92 Em seu trabalho sobre o hibridismo do Grupo Medusa, Guilherme Freire e Rafael dos Santos apresentam uma definição da jornalista Ana Maria Bahiana de 1979, que afirma que “para compreender em perspectiva a produção da música instrumental, é preciso considerar que o termo genérico ‘música instrumental’ não se referia à toda forma musical executada apenas por instrumentos, mas sim ‘às formas musicais cunhadas na informação do jazz e à geração de seus praticantes, instrumentistas dispersos no mercado após a fase da bossa nova com o desinteresse do mercado e da indústria fonográfica’” (BAHIANA, 1979, p.61 apud FREIRE, G. A.; SANTOS, R. dos. Hibridismo na música instrumental do Grupo Medusa... Per Musi, Belo Horizonte, n.28, 2013, p.162- 169). 93 Álbum gravado ao vivo em 1975 em Colônia, Alemanha que consiste em 34 minutos de improvisação do pianista. Fonte: http://memoria.bn.br/DocReader/DocReader.aspx?bib=030015_10&PagFis=351. Acessado em 14/06/2016. 94 Álbum de Miles Davis lançado em 1970 considerado marco inicial do jazz-rock, e que contou com a participação de músicos que seriam logo em seguida fundadores destes grupos, como Chick Corea, Joe Zawinul, John McLaughlin, Wayne Shorter, Herbie Hancock, Dave Holland, Airto Moreira, entre outros.

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Flora Purim, Naná Vasconcelos e Hermeto Pascoal) foi um movimento fundamental para inserção de elementos da música brasileira no gênero, ampliando ainda mais o conceito já bem heterogêneo do rótulo, fazendo uma “ponte” com o país e facilitando sua adoção no Brasil.95 O jazz fusion era o jazz contemporâneo do momento e nele foi encaixado o grupo Azymuth em Montreux, por não haver um outro rótulo no qual poderia ser. Parece que o grupo deixou muito mais claras as suas “raízes” com a música brasileira do que como um perfil de grupo de jazz fusion - prova disso é a criação da “Noite Brasileira” a partir do ano seguinte. Claude Nobs, o diretor do festival, parece ter entendido a música brasileira como uma expressão independente, com, digamos, um ethos próprio. Movimento contrário foi feito no Brasil nos festivais de jazz: as expressões brasileiras foram inseridas no festival “lado a lado” com os músicos de jazz, sem uma distinção para uma “Noite Brasileira”. Já vimos a repercussão disso na imprensa e na crítica especializada. Vejamos agora como o contato com jazz e suas vertentes impactaram diretamente a MIB daquele limiar da década de 1980, analisando quatro lançamentos do ano de 1981: o álbum do grupo paulista vanguardista “Divina Increnca”, de nome homônimo; “Bambú” do pianista/flautista Marcos Ariel; “Samambaia” do tecladista/pianista Cesar Camargo Mariano e o guitarrista Hélio Delmiro e o álbum do “Grupo Medusa”, de nome homônimo. Serão analisados aspectos rítmicos, harmônicos, melódicos, estruturais e de sonoridade, com o objetivo de oferecer um panorama geral do álbum. O “Divina Increnca”, formado em 1976 por Rodolfo Stroeter (contrabaixo), Azael Rodrigues (bateria) e pelo pianista alemão Félix Wagner tocou no 2º.Festival de Jazz de São Paulo como atração no palco paralelo. Lançaram seu primeiro álbum, gravado em 2 canais na Sala Guiomar Novaes (SP) e masterizado no estúdio JV entre julho e setembro de 1980, com as participações de Claus Premê (flauta), Roberto Sion (sax alto) e Mauro Senise (sax alto e soprano) em 1980, de nome homônimo. O baterista Azael Rodrigues assim definiu o som do grupo: “Divina Increnca era uma síntese do som do grupo. O nome é/era perfeito porque expressa a tensão dos contrários e faz essa brincadeira com o que é iconoclasta, o Divino. Divino seria o som mais refinado, mais respeitoso para eruditos ranzinzas e a “Increnca" uma vontade de explorar, de tocar de forma jazzista” (site).96

95 “Na década de 1980, o jazz fusion tinha grande repercussão internacional. Baseando-se na mistura das linguagens musicais do jazz com outros gêneros, o estilo incorporava construções harmônicas modais associadas ao uso da tecnologia a favor de uma busca a novos timbres. No Brasil, era visto como símbolo de modernidade e considerado como vanguarda musical pela crítica especializada, influenciando sensivelmente grupos de música instrumental.” (FREIRE, G. A.; SANTOS, R. dos. Hibridismo na música instrumental do Grupo Medusa... Per Musi, Belo Horizonte, n.28, 2013, p.162-169). 96 Disponível em: https://so0jornal.wordpress.com/jazz/divina-increnca/. Acessado em 03/05/2016. 73

Todos os integrantes do trio tocam vários instrumentos nesse álbum: Félix Wagner toca clarinete alto, flauta, vibrafone e percussão; Azael Rodrigues toca vibrafone, tabla e percussão e Rodolfo Stroeter toca percussão. O álbum parece demonstrar em seu roteiro a evolução do grupo no sentido da ruptura, e posteriormente, um retorno às estruturas. A primeira faixa abre com um tema do pianista Félix Wagner, “Cheguei lá e tal”. Trata-se de um tema be bop de harmonia tonal modulante, em que a bateria conduz no prato uma “levada” be bop e o contrabaixo em walking bass, e o improviso segue a forma tradicional de improvisação jazzística (chorus inteiro). A faixa 2, “Canção para ela” (R.Stroeter) se inicia com uma seção de contrabaixo solo livre de Rodolfo Stroetter e emenda em “Balão” (F.Wagner), uma seção atonal de piano e vibrafone, preparando a atmosfera para uma ruptura mais drástica que irá se dar na próxima faixa. A faixa 3, “Friii-tz” (F.Wagner) é uma faixa livre de piano e bateria, um free jazz com elementos de música aleatória, que não recai sobre tonalidade ou cadência rítmica em momento algum, o ponto máximo da ruptura com o ritmo, harmonia e melodia, da forma em que normalmente era entendidos na música popular. Na faixa 4, “Ainda bem que não flalta fauta” (F.Wagner) há um retorno às estruturas e sobre uma base rítmica de percussão, a flauta improvisa em uma harmonia modal. Há, em termos timbrísticos, uma proximidade com uma sonoridade musical indígena. A faixa 1 do lado B, “Frevo do cheiro - nóis sofre + nóis goza” (A.Rodrigues) apresenta uma levada de frevo na caixa, em andamento rápido, para um tema que por vezes lembra “Giant Steps” de John Coltrane. Segue-se uma seção de improviso de sax acompanhado somente da bateria. No retorno ao tema, as funções de solista, acompanhador e base rítmica são preservadas. Na faixa 2, “A lira e a gira” (A. Rodrigues), o vibrafone, flauta e percussão são utilizados para a criação de uma atmosfera atonal que emenda em uma “levada” de bateria em 2/4 (que pode traçar paralelos com a rítmica do jogo brasileiro) onde o tema é apresentado nos saxofones alto e soprano, em harmonia modal dissonante; no final da música, num solo de bateria, Azael explora variações rítmicas sem sair da “levada”, numa linguagem muito mais próxima de ritmos afro-descendentes brasileiros que norte-americanos. Na faixa 3, “Ufa” (F.Wagner), novamente o grupo retoma o be bop. Curiosamente o trabalho termina contradizendo toda a atonalidade anterior e finalmente na última, a faixa 4 do lado B, há um retorno a todas as estruturas. Em “Filomena” (R.Stroeter) uma atmosfera tonal confere um “descanso’ aos ouvidos desacostumados com a linguagem atonal, onde um tema diatônico é executado ao piano e a improvisação segue a mesma harmonia de esquema tonal simples na forma de chorus jazzístico.

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Este álbum ilustra o entendimento dos integrantes a respeito das rupturas que o jazz contemporâneo já havia feito, e que o grupo desejava também fazer com elementos da música brasileira. Vimos que nos EUA o free jazz já havia, na década anterior, quebrado o ritmo, tonalidade e a forma. No Brasil, o contato com essa nova linguagem ainda era desafiador e estava se estabelecendo entre alguns músicos, que passaram a transpô-la também à gêneros brasileiros. Se o “espírito jazzístico” já estava presente na formação desses músicos, este álbum ilustra claramente uma certa busca, pesquisa desses músicos paulistas da segunda metade da década de 1970. Pouco compreendido pela crítica da época, porém, como o comentário do crítico Tárik de Souza para o JB: “seu trio de intérpretes associa leveza e audácia criativa (…) misturam o titulo italianado a capa caricaturada de Miécio Caffé, ao jazz e a música contemporânea”. Lhe passa desapercebida no entanto a trajetória de rupturas que o grupo ilustra no álbum, bem como as hibridações com os elementos da música brasileira, que estavam, na crítica, circunscritas todas no campo do jazz. O jovem carioca Marcos Ariel, que havia integrado no Rio de Janeiro o conjunto “Anjos da Madrugada” tocando flauta e piano no Bar Barril 1800, em 1977, formara um grupo instrumental chamado Usina, com Victor Biglione (guitarra), Elcio Cáfaro (bateria), Zé Nogueira (sax), Julio Gamarra (percussão) e Antonio Sant’Anna (baixo). Gravou seu primeiro álbum de forma independente em 1981, “Bambú”, com o grupo Usina e convidados. O álbum possui alguns títulos que homenageiam locais da cidade do Rio de Janeiro, caracterizando sua relação identitária com a cidade. Outras referências de identidade brasileira são encontradas, como em “Igarapé” que homenageia ao mesmo tempo um tipo de riacho amazônico e uma cidade de Minas Gerais; “Chapada do Corisco” (Luizão Paiva), local onde foi fundada a cidade de Teresina. O posicionamento sobre sua música e a respeito de seu álbum pode ser compreendida já na fala do Grupo Usina ainda em 1979:

“A nossa música é instrumental, mas não é jazz, é popular brasileira. É um som do próprio grupo Usina, com a forte temática do improviso – explica Marcos Ariel. Existe um tema, em cima dele um improviso, mas só que com convenções, referências para o encadeamento. Como ponto básico, uma preocupação rítmica brasileira (samba, baião, etc.). É a música que nós queremos fazer”. 97

“Bambú” é um álbum cuja base rítmica está assentada em gêneros brasileiros, como o baião, o frevo, a bossa nova e o samba. Não há a preocupação de rompimento com

97 Em matéria do JB intitulada “Grupo Usina, o som de que os músicos gostam”, disponível em: http://memoria.bn.br/DocReader/docreader.aspx?bib=030015_09&PagFis=200845, acessado em 07/05/2016. 75

estruturas, mas a de hibridações de elementos brasileiros. Encontram-se elementos provenientes da black music, como o timbre do piano Fender Rhodes, a guitarra “escovada” (um jeito de tocar que remete á black music) e um recorrente recurso de utilizar “convenções” (repetições em uníssono de trechos melódicos de todo o grupo) ao final de melodias. As formas são geralmente no esquema Intro/tema/improvisação/tema. As improvisações são sempre livres, ou seja, não há solos escritos, sempre ao estilo jazzístico do be bop de improvisar na forma choros. O álbum abre a faixa 1 do lado A com “Bambú”, um baião de andamento rápido, que se inicia com “convenções” da guitarra e piano sobre harmonia modal. O tema segue também um esquema modal de sequências de acordes Xm7. O compasso é 4/4, sem alterações. A forma segue a linha tema/improviso/tema. A faixa 2, “A ponte” é uma bossa nova de harmonia tonal modulante que só entra na “levada” propriamente dita na 2a.repetição do tema e segue as mesmas características estruturais da primeira faixa. A faixa 3, “Igarapé/Chapada Do Corisco/Igarapé”, começa com uma balada de harmonia modal com a melodia executada por voz feminina, como um “vocalese”. Emenda em “Chapada do Corisco”, que é um baião em andamento rápido em 4/4, com melodia de harmonia modal. A música retorna emendada pro tema de Igarapé para finalização. A faixa 4, “Humaitá” se inicia com “convenções” e segue numa levada hibridizada de samba, de harmonia diatônica e melodia dobrada de flauta e piano com forma tradicional de improviso. “Samba torto”, faixa 1 do lado B, começa com bateria e percussão fazendo um samba de andamento rápido e frases convencionadas nos saxes soprano (Zé Nogueira) e tenor (Léo Gandelman), piano e baixo desenham sobre o ritmo, como uma introdução. Na faixa 2 “Mar”, um tema de harmonia modal com acompanhamento ao piano, sempre arpejado. A faixa 3, “Dois irmãos” (nome de um túnel da cidade da zona sul da cidade do Rio de Janeiro) é um tema “pop” de guitarra e sax, que entra na “levada” de “shuffle” na segunda volta. E por fim, a faixa 4, “Driblando” começa com piano solo num choro de andamento rápido, de passagens dissonantes. Na segunda volta entra a “levada” da bateria de “vassorinha” num samba-choro de andamento rápido e uma dobra de flauta no tema. Apesar da assimilação dos elementos estrangeiros, o rótulo MIB é assumido em Marcos Ariel em detrimento de jazz. É como se, mesmo hibridizada, a maior preponderância de elementos de gêneros brasileiros, principalmente as bases rítmicas, justificasse a rejeição

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do rótulo jazz. A hibridação é assimilada mas rejeita rótulos estrangeiros e se assume como uma música instrumental “moderna”.98 Marcos Ariel ganhou com este álbum o Prêmio Chiquinha Gonzaga em 1983. Sua trajetória a partir daí estará intimamente ligada a música instrumental da década de 1980, por sua intensa atividade artística e pela fundação do Bar Jazzmania, com o sócio Luiz Antonio Cunha, que será um importante ponto de referência da MIB e dos jazzistas que vem ao Brasil. O pianista/tecladista/compositor/arranjador Cesar Camargo Mariano que já havia alcançado projeção nacional tanto por sua atuação no samba-jazz da década de 1960 quanto por sua atuação ao lado de Elis Regina na década de 1970, produziu e dirigiu seu primeiro espetáculo de música instrumental, em 1978, na ocasião do lançamento do álbum ”São Paulo Brasil”, com o “Cesar Camargo Mariano & Cia”. Esse foi um álbum de grande projeção, com um viés black, repleto de levadas “funkeadas” aliadas ao pleno uso de teclados analógicos (Arp Omni, Clavinet, Syntorchestra, Oberheim, Fender Rhodes no Echoplex, Space Echoes e Ring Modulator), e em 1980, lançou outro álbum com o mesmo grupo, de mesma inclinação black, praticamente todo ele um disco de funk e groove. Mas foi outro lançamento de Cesar Camargo Mariano, em 1981, numa linha radicalmente diferente da “funkeada” dos álbuns anteriores, que se tornou referência na música instrumental da década de 1980 (o sendo até os dias de hoje): “Samambaia”, de duo com o violonista/guitarrista Hélio Delmiro. Com a bagagem e o amadurecimento já de duas décadas de trajetória, os músicos fazem em Samambaia um álbum de duo que não encontra muitos paralelos anteriores na MPB, apresentando elementos originais em alguns aspectos. Das 10 faixas do álbum 7 são autorais (“Samambaia”, “Curumim”, “Choratta" e “Maria Rita” de Cesar Camargo e “Emotiva nº.4”, “Das Cordas” e “Ninhos” de Helio Delmiro) e 3 são releituras: “Carinhoso” de Pixinguinha, “No Rancho Fundo” de Ary Barroso e Lamartine Babo, da MPB, com “Milagre dos Peixes”, de Milton Nascimento. O álbum possui unidade na medida em que versa basicamente sobre o choro e o samba, mas sua sonoridade é inédita na MPB pela utilização do piano digital CP70 e pela mistura com o violão acústico. O piano digital, herança da primeira geração do jazz-rock (Miles Davis, “Bitches Brew”) pode ser identificado como um elemento externo. Em “Carinhoso”, ouve-se desde a introdução, rearmonizações com acordes de 7M e 6/9, e o tema é apresentado no compasso de 4/4. Não se pode considerar uma releitura muito radical da música, mas as rearmonizações e a

98 Canclini, em seu livro “Culturas híbridas, estratégias para entrar e sair da modernidade”, constrói a noção de hibridação para “designar as misturas interculturais propriamente modernas, entre outras, aquelas geradas pelas integrações do Estados nacionais, do populismo político e da indústria cultural” na América Latina. 77

subversão do compasso dão um ar de “modernidade” à interpretação. Em “No rancho fundo” percebe-se a utilização de elementos do rock, com o “pitch bender” na guitarra (efeito “blues” puxando as cordas) e algumas passagens rearmonizadas, como na “ponte” para o solo do piano (cuja linguagem é própria de sua formação no samba-jazz). Já Hélio Delmiro se utiliza de uma construção totalmente jazzística em termos de fraseologia em seu solo, bem como diversos efeitos provenientes do rock. Todas as harmonias do álbum segue esquemas tonais ou modais, mas nunca atonais ou aleatórias. Os ritmos são na grande maioria provenientes de formas brasileiras: samba, choro, valsa brasileira; e ainda há passagens sobre formas hibridizadas, como o samba-funk ou samba-jazz. A interpretação de ambos apresenta uma forte complementaridade, pois suas linguagens se assemelham em termos de domínio das formas brasileiras populares. Em “Samambaia” também pode-se reconhecer o “espírito jazzístico”, talvez em proporções menores que as do álbum do Divina Increnca, mas suficientes para que o trabalho estivesse alinhado com a proposta da MIB de modernização naquele momento. Conhecido como um álbum referencial ainda nos dias de hoje, recebeu uma crítica porém, na ocasião de seu lançamento, de J.R. Tinhorão, publicada no JB sob o sugestivo título “O jazz de dois brasileiros faz pensar como seria se os americanos tocassem choro”, fazendo um paralelo dizendo que os instrumentistas estariam “esforçando-se por parecer norte-americanos tocando jazz” (site).99 Mas a avaliação de Tinhorão parece não encontrar ecos na imprensa e a consagração de “Samambaia” vem na forma de prêmio, quando em 1981, foi eleito por quatro personalidades da música como um dos dez melhores álbuns de música instrumental do ano (Aramis Millarch, Zuza Homem de Mello, Roberto Muggiati e Matias José Ribeiro), em uma premiacão denominada “Jazz Pool”.100 Um outro grupo de São Paulo realizou interessantes hibridações na música brasileira “de raíz”, muitas vezes entre “matrizes” brasileiras, mostrando-se bastante consciente do processo: o Grupo Medusa (aquele que Heraldo do Monte disse estar iniciando na ocasião do 2º.festival de São Paulo) formado por Claudio Bertrami (baixo fretless, picollo), Amilson Godoy (piano), Heraldo do Monte (guitarra, violão, bandolim), Chico Medori (bateria), Théo da Cuíca e Jorginho Cebion (percussão). O álbum, de nome homônimo, foi lançado em 1981, por ocasião da inauguração da gravadora “Som da gente”, especializada em

99 Disponível em: http://memoria.bn.br/DocReader/DocReader.aspx?bib=030015_10&PagFis=34015. Acessado em 04/05/2016. 100 Disponível em:http://memoria.bn.br/DocReader/DocReader.aspx?bib=030015_10&PagFis=35654. Acessado em 04/05/2016.

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MIB. “Um álbum inovador, composto por músicas autorais, com bastante espaço para improvisos de todos os músicos, altamente melódico e rico na exploração dos ritmos brasileiros.”101 Após o lançamento, realizaram uma turnê pelo Brasil e se apresentaram no Festival de Jazz em Paris, em 1982. A primeira faixa “Baiana”(Claudio Bertrami) é um baião que começa com uma introdução convencionada de piano, baixo e bateria, de acentuações sincopadas sobre uma sequência de arpejos de quatro acordes dominantes, de sonoridade nordestina. O tema é composto por um período simples diatônico sobre uma levada de baião, cuja repetição é interceptada por uma pequena “ponte” modal, retorna a Intro e segue com nova ponte para solos. O solo de guitarra de Heraldo do Monte é executado com a “gemida da seca”, instrumento de sonoridade nordestina típica, na forma da música. Uma parte B é criada para um solo não improvisado que explora o piano ritmicamente no baião, numa cadência harmônica que tange o universo do rock progressivo, alcançando o ponto de maior dinâmica da música. A faixa 2 “Zebi” (Cláudio Bertrami) tem uma pequena preparação convencionada para a entrada do tema, apresentada no piano Fender Rhodes sobre uma base de samba lento, de harmonia modal com sequências de acordes Xm7. A parte B tem uma levada de samba- funk, com percussão (cuíca e tamborim). “Caminhos” (C.Bertrami), a faixa 3 é um samba partido alto em andamento rápido com uma introdução modal “funkeada”. Apresenta uma guitarra “escovada”, trechos de ligação de harmonia modal. Todo o disco segue esse esquema, de forma geral: “levadas” de ritmos brasileiros, como o samba e o baião, guitarras “escovadas”, o baixo como instrumento de solista, improvisos virtuosísticos, “pontes” modais entre partes, harmonias modais com elementos do rock. Destaca-se o texto apresentado no encarte do disco:

“Existe um conflito básico em quem nasce em um país colonizado culturalmente; a gente não se ouve mais, a memória se apaga, as coisas de fora nos são impostas e acabam sendo consumidas como autênticas. O Grupo Medusa é resultado desse conflito. O colonizado pode até aprender com o colonizador, mas não pode jamais deixar de pensar com a própria cabeça. Nosso trabalho tem uma proposta musical sem preconceitos ou barreiras, cujo objetivo maior é conseguir uma fusão musical sem perder o vínculo com nossas raízes. As diferentes origens, o universo de informações, a vivência, as experiências anteriores, os espaços conquistados por cada um dos componentes do grupo, fez com que acontecesse uma integração tamanha, que nós quatro viramos um. Um grupo de música instrumental brasileira”. (GODOY apud FREIRE, 2013, p.164).

101 Resenha do disco no site BR-Instrumental, disponível em: http://br- instrumental.blogspot.com.br/2006/04/grupo-medusa-grupo-medusa-1981.html, acessado em 12/05/2016. 79

A fala do pianista, ao denunciar a situação do “colonizado” frente ao processo de dominação cultural, constata que a “fusão” é portanto, não só inevitável, como desejável. Na visão do grupo, a diferença estaria na forma fazê-la, que era “pensando com a própria cabeça”, estabelecendo assim um ponto de partida, um território de identidade brasileira reconhecida, mas que por ser “sem preconceitos ou barreiras”, estava aberto a transformações, com um determinado limite, para não “perder o vínculo com nossas raízes”. A hibridação com limites, portanto, é caminho inevitável diante do conflito do colonizado, justificando e permitindo a inserção de elementos provenientes de gêneros estrangeiros. Conclui que a integração entre os músicos acomoda toda a diferença, quando os “quatro viram um”. Para que seja atingido esse entendimento entre os músicos e possam se acomodar elementos de “matrizes” diferentes é preciso que esses músicos falem uma língua em comum, ou seja, que todos tenham um “espírito jazzístico”. Qualquer um dos músicos que não fosse capaz de falar essa língua em comum faria com que o grupo não atingisse essa unidade. E ao atingi-la, nega- se qualquer outro rótulo que não seja o de “grupo de música instrumental brasileira”, que, mesmo hibridizada, não é jazz, mas MIB. Uma música hibridizada, mas com limites. Ao assumir essa sua questão, o grupo se liberta do incômodo do conflito e segue na direção da hibridação musical que deseja fazer, se inserindo numa agenda de modernização da música instrumental brasileira que estava, no limiar da década de 1980, após estes três festivais, em pleno curso.

3.3 – Duas escolas

As relações com a música norte-americana alçaram, em meados de 1970 e começo de 1980, um outro patamar de intensidade: a passagem de músicos brasileiros pela universidade norte-americana Berklee College of Music, em Boston (EUA) teve um papel preponderante na formação musical e na intensificação da hibridação dos gêneros e desenho do mercado.102 Depois da atuação profissional de alguns músicos brasileiros notórios nos EUA, na década de 1970, e dos encontros nos grandes festivais de jazz no Brasil, a música

102 Berklee foi fundada pelo arranjador e engenheiro Lawrence Berk em 1945, na cidade de Boston, Massachussets. É uma faculdade privada de música, que forma músicos para a prática do mercado de trabalho. Sua linha de ação buscou acompanhar o mercado de trabalho no campo da música; hoje, lê-se anunciado em seu site: “por mais de meio século, a faculdade evoluiu para refletir o estado da arte da música e do negócio da música, liderando o caminho com os primeiros estudos de bacharelado do mundo em jazz, rock, guitarra elétrica, trilha sonora para cinema, composição, música para vídeo games e televisão, produção eletrônica e mais de uma dúzia de outros gêneros e áreas de estudo.”

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norte-americana passou a fazer parte da formação musical de músicos brasileiros de forma direta, através da Berklee. Jovens que possuíssem recursos, interessados em se aprofundar na linguagem jazzística e se aprimorar como improvisadores, poderiam recorrer a Berklee na década de 1980 em diversas áreas de atuação profissional, através de cursos presenciais, cursos de verão, por correspondência e também com bolsas de estudo. A maioria desses músicos retornou ao mercado brasileiro e realizou importantes lançamentos no mercado da MIB e do jazz na década de 1980, depois da estadia nos EUA. Victor Assis Brasil e Nelson Ayres foram os protagonistas dessa prática, ainda em meados de 1970.103 Na ocasião do I Festival de Jazz de São Paulo ambos já haviam retornado da Berklee. Nelson Ayres montou uma Big Band de 18 músicos e Victor Assis Brasil se destacou como jazzista com seu grupo no festival. Ainda na década de 1970, Nico Assumpção, conhecido baixista da cena instrumental fez primeiro um curso por correspondência, em meados de 1970, eliminando matérias, e depois completou presencialmente, estudando arranjo e orquestração, até seu retorno ao Brasil em 1981. Nos EUA, o músico estudava e também tocava em Nova York com músicos brasileiros, com os quais dividia o mesmo prédio, como Ricardo Silveira (guitarra), Guilherme Vergueiro (piano) e Cláudio Celso (guitarra) e ainda o trompetista Cláudio Roditi. Ricardo Silveira também estudou em Berklee e atuou no mercado norte-americano, tocando no grupo de Herbie Mann, além de outros. Ao retornar ao Brasil integrou a banda de Elis Regina, Milton Nascimento, Gilberto Gil e Hermeto Pascoal. A prática no mercado de trabalho norte-americano e o estudo na Berklee serão fatores constitutivos da atuação de Ricardo Silveira e Nico Assumpção no Brasil, partir de 1981, quando Nico Assumpção retorna e grava seu primeiro CD de forma independente e se lança no mercado de São Paulo. Em 1979 é a vez do saxofonista Léo Gandelman, um dos artistas mais atuantes da segunda metade da década de 1980. Apesar de ter ido em 1979, só irá gravar seu próprio LP em 1987. Essa formação nos EUA contribuiu para diferenciar a música que foi produzida nessa época. Há quem diga que o estudo em Berklee teria contribuído para fazer os músicos adotarem conceitos e sonoridades “padronizadas”, ou seja, adquiriram e aplicaram um tipo de vocabulário “prescrito” para cada gênero musical. Em entrevista, essa visão pode ser compreendida na fala do pianista e arranjador Gilson Peranzzetta: “foram americanizando de

103 Com uma bolsa de estudos, tornou-se o primeiro aluno brasileiro a cursar a Berklee College of Music em Boston, onde, com o saxofonista Vitor Assis Brasil, criou o quinteto “Os Cinco”, primeiro grupo de música instrumental brasileira da costa leste americana. Disponível em: http://www.nelsonayres.com.br/index.php/biografia. Acessado em: 21/05/2016. 81

uma forma, as frases, a feitura, as composições, que começou a afastar, foi perdendo a raiz, e isso é uma coisa que não se pode perder”.104 Uma composição do baixista Arthur Maia, intitulada “Porque não fui a Berklee!?”105, gravada em 1988 no álbum “Guerra fria” pelo grupo que integrava, “Cama de gato” e lançado pelo selo Som da Gente é uma espécie de reação a esse movimento. É um be bop, com ênfase nas improvisações, em que o baixo “dobra” o tema com o saxofone na primeira exposição. Como se fosse uma pergunta provocativa (ou uma afirmativa), que trouxesse em si a resposta, pelo fato de ser um be bop característico, composto e executado por músicos brasileiros. Ou seja, algo como “não preciso ir a uma universidade americana para tocar o jazz”. O grupo Cama de Gato era formado, na ocasião do lançamento deste LP, por Arthur Maia (baixo), Rique Pantoja (teclados), Mauro Senise (saxofone) e Paschoal Meirelles (bateria). Dois integrantes do grupo, Rique e Paschoal também foram alunos da Berklee. Por outro lado, essa conexão ajudou a sistematizar o ensino de música popular no país. No Brasil, a esta época, eram quase inexistentes os espaços para o estudo da MIB. Na cidade de São Paulo foi criado, em 1973, o CLAM (Centro Livre de Aprendizagem Musical), pelo pianista Amilton Godoy, do Zimbo Trio, o contrabaixista Luiz Chaves e o baterista Rubinho Barsotti. Sua formação na bossa nova e a estreita relação com o jazz está refletida na linha de ação da escola, até os dias de hoje. Muitos músicos da cena paulista atuaram como alunos e professores dessa escola, entre eles Nico Assumpção. Curiosamente, há um movimento contrário a ser registrado: a pianista/compositora paulista Eliane Elias, aluna de Amilton Godoy, aos 15 anos já lecionava piano e improvisação no CLAM e aos 17 tocava com Toquinho e Vinícius, se mudou em 1981 para os EUA para fazer carreira como pianista. Integrou inicialmente o grupo de jazz fusion,“Steps Ahead” e logo em seguida partiu para carreira solo, se inserindo no mercado de jazz norte-americano. Obteve grande sucesso ao longo de sua longeva carreira de 35 anos, tendo alcançado sem dúvida um lugar no “panteão do jazz” norte-americano, tanto no rol dos grandes músicos, como para o mercado internacional do jazz.106

104 LEVY (2010, P.49). 105 Na pesquisa foi encontrado que, na contracapa do LP o título vinha dessa forma, com os sinais de exclamação e interrogação nessa ordem e o advérbio “porque” na forma de resposta. Porém, no selo do LP está escrito na forma “Por que não fui a Berklee”, sem a interrogação. 106 Em 1988 Eliane Elias assinou contratou com a gravadora de jazz Blue Note e neste ano já aparecia em 5º.lugar na lista de discos de jazz mais vendidos e executados naquele ano, pela revista Billboard, com o primeiro álbum solo lançado pela gravadora, So far, so close. Até o presente ano, Eliane Elias contabiliza uma discografia de 24 lançamentos solo.Teve ao longo de sua carreira sete indicações ao Grammy, e em 2016 venceu

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No Rio de Janeiro havia uma escola, a “Seminários de Música Pró-Arte”, criada em 1957 por um grupo de músicos e professores liderados por H.J. Koellreutter, que tinha como objetivo criar um tipo novo de escola de música que se opusesse ao padrão vigente de ensino acadêmico.107 De outra forma, os espaços eram os conservatórios tradicionais e as universidades, com as formações tradicionais. Por essa razão, a formação do músico da MIB na década de 70 se dava bastante na vivência empírica, na prática das rodas de choro, de samba, nos trios de bossa nova, nas Jam sessions. Era difícil o acesso ao material didático, tanto nacional quanto estrangeiro. Assiste- se nessa época a um começo de sistematização do ensino nessa área, com o retorno dos músicos que estudaram em Berklee. Outras escolas de perfil semelhante ao CLAM foram surgindo na segunda metade da década de 1980, como a Musiarte (fundada em Copacabana, RJ por Isidoro Kutno e Oren Perlin em 1987) e o CIGAM (Centro Ian Guest de Aperfeiçoamento Musical) fundada no mesmo ano pelo arranjador e professor húngaro Ian Guest, que além de se graduar Bacharel na Berklee, também se graduou em Composição pela UFRJ. O CIGAM foi, nas décadas de 1980 e 1990, um centro aglutinador de músicos interessados no estudo da música popular, tendo realizado importante fomento nessa área na cidade do Rio de Janeiro. Em São Paulo, O Conservatório Souza Lima foi criado em 1981 e se especializou em cursos livres e de graduação nas áreas erudita e popular; em 2011 firmou uma parceria com a Berklee School of Music que permite a transferência dos créditos da brasileira para a americana após a conclusão dos quatro primeiros semestres. Outras escolas livres de música popular foram implementadas desde a década de 1980 para cá, tanto no eixo Rio – São Paulo quanto em outras cidades do país. A conexão com a Berklee e outras escolas e universidades norte-americanas de jazz foram importantes na transposição de modelos de sistematização do estudo de música no campo da música popular.

3.4 - A reinvenção do espaço e o desenvolvimento do mercado

O músico brasileiro, atuante no segmento da música instrumental, se viu, naquele momento, frente a um mercado crescente, por vezes nomeado como jazz. Ambos os mercados cresciam, através de projetos de iniciativa pública, de sociedades entre empresários e músicos expoentes, ou de iniciativas dos próprios artistas. Percebe-se uma diferença entre a esfera o Grammy na categoria de melhor álbum de jazz latino. Fontes: http://brasileiros.com.br/2016/02/afinal-quem-e- eliane-elias/; http://elianeelias.com. 107 Disponível em: http://www.proarte.org.br/proarte/. Acessado em 25/05/2016. 83

pública e a privada no tratamento de ambos: enquanto a pública enfoca como MIB, o mercado divide-se entre a utilização do termo MIB e do rótulo jazz. Vejamos como isso se deu. O ambiente era favorável, a distensão política da ditadura militar favorecia o clima para novas expressões. Em 31 de dezembro de 1978 expira o último dia de validade do AI-5. No primeiro dia de 1979 o país amanhece com um sentimento de renovação e esperança de abertura política e cidadã, com o fim do mandato do General Ernesto Geisel e a eleição de Joao Figueiredo, que jurava conduzir o país para a democracia. Era possível e preciso reinventar o espaço público cultural, na busca de uma nova identidade frente a abertura e a criação de um Estado democrático de Direito. Essa utilização política da cultura vai ficar a cargo, no Rio de Janeiro, da Secretaria Municipal de Cultura, cujo projeto objetivava democratizar as artes eruditas e incentivar as manifestações populares no espaço cosmopolita (CARDOSO, 2006). No cumprimento dessa agenda, foi criado, em 1980, um projeto de difusão da música instrumental, inicialmente batizado como “Música na Catacumba”. Promovido pela Fundação Rio em convênio com a Funarte foi pensado para ocupar a parte externa do Parque Carlos Lacerda (Parque da Catacumba), na Lagoa Rodrigo de Freitas. O parque havia sido criado para promoção de novas expressões nas artes plásticas em seu pavilhão interno e o projeto musical interligaria atividades artísticas e ocuparia toda a sua área, apresentando shows gratuitos, de músicos que vinham se destacando na MIB carioca e paulista, e a partir de 1985, no jazz internacional.108 A escolha pelo investimento em música instrumental, no Parque da Catacumba, (baixo, uma vez que os custos eram apenas de produção: cachê, sonorização e montagem do palco) se mostrava apropriada, pois os shows, diferentemente da música de câmara, poderiam ser feitos em um lugar aberto, sem cobertura (aconteciam quinzenalmente, pois, no caso de chuva, era transferido para a próxima semana) e com amplificação. O palco ficava na parte de trás do pavilhão e a platéia se sentava no gramado, encosta acima. Por ser gratuito e em um parque público, era conhecido por seu viés democrático. O projeto se iniciou em 1980 com o patrocínio da Funarte e realizou seis concertos. Com o fim do patrocínio da esfera federal, em 1981, o projeto passou a se chamar

108 O parque tem esse nome porque ali foram encontrados antigos restos de catacumbas de índios locais de um passado distante; em 1979 foi removida do local a Favela da Catacumba, com 15 mil habitantes que foram transferidos para bairros distantes da zona norte. (CARDOSO, 2006).

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Rioarte Instrumental, com verba própria e logomarca da prefeitura, como parte da estratégia de ação política e veículo de divulgação da administração municipal.109 “O negócio foi num crescendo que chegou a cinco mil pessoas. A gente não precisava mais fazer divulgação. Todo mundo sabia que ia ter um espetáculo de qualidade, inclusive até o Stanley Jordan a gente conseguiu levar prá (sic) fazer show lá. As pessoas disputavam a tapa, só instrumental, anos a fio!”110

Conseguiu se manter nos anos de 1981 e 1982, o que foi de grande importância na sustentação de MIB nesses anos de grave crise sentida no mercado e no bolso da população, quando são adotados ajustes radicais na política econômica do país, assolada pelos juros da dívida externa, inflação e o segundo choque do petróleo.111 Em 1983 reestreia apenas na metade do ano, com o anúncio da coordenadora geral e diretora artística do projeto, Lilian Zaremba, dizendo que “a menos que encontremos um patrocinador, neste segundo semestre teremos apenas um espetáculo por mês. Não temos um fixo”.112 A Petrobrás, através da Lubrax, patrocinou então o projeto em 1984. A partir daí o projeto foi levado, com mudanças nas fontes financiamento e algumas interrupções, até 1989 , seguindo depois itinerante até 1995. Dos projetos de MIB de destaque na década de 1970, tem-se o Projeto Trindade, da diretora Tânia Quaresma e do músico Luiz Keller, realizado entre 1976 e 1979. Foi um projeto pioneiro e ousado no sentido de criar visibilidade para a MIB da década de 1970. Foi concebido em duas etapas: foram filmados 12 curtas, cada um tendo a trilha sonora composta por um músico, feita especialmente para o projeto. Através de viagens realizadas nas cinco regiões brasileiras eram gravadas as imagens que iriam compor a “trilha visual”. Na volta de cada etapa das viagens eram realizados shows no Rio de Janeiro, com os instrumentistas, onde também eram projetadas as imagens colhidas nas diferentes localidades. Ao final da realização dos curtas foi montado o primeiro longa-metragem 35mm sem falas do Brasil (o áudio era apenas musical), intitulado “Trindade curto, caminho longo”. oi lançado um LP

109 A Fundação Rio passou a ser denominada de Instituto Municipal de Arte e Cultura/RioArte, em 01 de dezembro de 1981, ficando vinculado à Secretaria Municipal de Cultura. (CARDOSO, 2006). 110 Eliana Fonseca apud LEVY (2010, P.54). 111 No final de 1980, após a desastrosa experiência heterodoxa (prefixação do câmbio e da correção monetária), o Brasil, ainda sem recorrer ao FMI, tentou ajustar a economia mediante drástica política restritiva, para diminuir a demanda interna, equilibrar as contas externas e conter a inflação. Em 1982, o serviço da dívida consumiu US$12 bilhões, e, diante da recessão global e retração na capacidade de importar da maioria dos países, as exportações encolheram para US$20 bilhões. O déficit em transações correntes chegou a 6% do PIB, e as reservas líquidas do Brasil se exauriram. Assim, caracteriza-se a virtual insolvência externa do país. (LUNA- KLEIN, 2007, P.73). 112 Fonte: http://memoria.bn.br/DocReader/docreader.aspx?bib=030015_10&PagFis=66597. Acessado em 06/0/06/2016. 85

duplo com faixas de todos os artistas envolvidos e um almanaque contando as etapas do projeto. Foram realizados shows de lançamento do filme e do LP no Brasil e no exterior. Dentre os patrocinadores do projeto estavam a Petrobrás e o Banco do Brasil. Ainda na década de 1970, mais precisamente no ano de 1977, outro importante projeto surgia: o Projeto Pixinguinha, lançado pela Funarte no ano de sua criação, tendo como um de seus idealizadores Hermínio Bello de Carvalho, para “repelir a invasão da música estrangeira no país e defender a memória nacional, além de reativar o mercado com matéria- prima.”113 Este projeto consistia em shows itinerantes de artistas da MPB, bem como de músicos da MIB e foi criado nos moldes do projeto municipal “Seis e meia”, do Teatro João Caetano. Gerava muita visibilidade ao artista, pois cada show seguia um roteiro pré- estabelecido que incluía diversas cidades e capitais do país a preços acessíveis.114 O Teatro do Ibam era outro espaço que programava shows de música instrumental no Largo do Ibam, e ainda, a Escola de Artes Visuais do Parque Lage. E ainda merece registro, uma iniciativa da industria fonográfica, intitulada Série MPBC, uma série de LP´s instrumentais de artistas brasileiros lançada pela Phillips-Polygram entre 1978 e 1981.

113 Fonte: http://memoria.bn.br/DocReader/docreader.aspx?bib=030015_09&PagFis=161847. Acessado em 31/05/2016. 114 Esse projeto foi existiu interrompido em 1997 e retomado em 2004 com o patrocínio da Petrobrás pela Lei Rouanet. Fonte: https://pt.wikipedia.org/wiki/Projeto_Pixinguinha. Acessado em 01/06/2016.

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AÉCIO FLÁVIO & QUARTEZANATO - MÚSICA POPULAR BRASILEIRA CONTEMPORÂNEA (LP/1980) Aécio Flávio

BAIAFRO - MÚSICA POPULAR BRASILEIRA CONTEMPORÂNEA (LP/1978) Djalma Corrêa

LUIZ CLÁUDIO RAMOS - MÚSICA POPULAR BRASILEIRA CONTEMPORÂNEA (LP/1980) Luiz Cláudio Ramos

MUTAÇÃO - MÚSICA POPULAR BRASILEIRA CONTEMPORÂNEA (LP/1981) Célia Vaz

NELSON AYRES - MÚSICA POPULAR BRASILEIRA CONTEMPORÂNEA (LP/1978) Nelson Ayres

NIVALDO ORNELAS - MÚSICA POPULAR BRASILEIRA CONTEMPORÂNEA (LP/1978) Nivaldo Ornelas

OCTÁVIO BURNIER - DANÇA INFERNAL - MÚSICA POPULAR BRASILEIRA CONTEMPORÂNEA (LP/1979) Octávio Burnier

ROBERTINHO SILVA - MÚSICA POPULAR BRASILEIRA CONTEMPORÂNEA (LP/1981) Robertinho Silva

STENIO MENDES - MÚSICA POPULAR BRASILEIRA CONTEMPORÂNEA (LP/1980) Stenio Mendes

TRILHOS - MÚSICA POPULAR BRASILEIRA CONTEMPORÂNEA (LP/1980) Túlio Mourão

Figura 5: Lista de LP´s lançados pela Phillips na série “Música popular brasileira contemporânea”. 87

Nesses três primeiros anos, apesar do quadro econômico complicado, a participação desses espaços e projetos da esfera pública carioca foram determinantes para a sobrevivência e difusão do mercado da MIB, que democratizando e popularizando a música popular brasileira, visava “defender a cultura nacional da invasão estrangeira”. Essas ações, associadas a um mercado auto-sustentável que começara a surgir na vida noturna das cidades, irão sustentar e fomentar um mercado que na segunda metade ganhará novos vultos. No começo da década de 1980 tem-se um aumento gradativo de bares e casas noturnas que apresentam shows de música instrumental e jazz na noite da zona sul do Rio de Janeiro. Um espaço multi-cultural inaugurado em 1981 no bairro Lagoa, “O Aleph”, apresentava shows de música instrumental toda terça-feira, com casa lotada, segundo Marcos Ariel: “Em 1981, O Aleph era um barzinho que tocava música instrumental na Lagoa, eu tocava lá com o meu grupo Usina, a gente lotava a casa toda terça-feira, de ir parar polícia, joaninha e tudo na porta. Nessa época tinham muitos lugares, o Tio Patinhas, em Copacabana onde o Marcos Resende tocava, tinha também um lugar na Barra, que o Márcio Montarroyos tocava, estavam surgindo muitos lugares de música instrumental.”115

Além dos bares e espaços experimentais surgiam cada vez mais restaurantes sofisticados na noite do RJ que inseriam shows de jazz como atração para seus ricos clientes, políticos e socialites.116 No ano de 1983, uma matéria do Jornal O Globo, intitulada “Jazz, um som cada vez mais ouvido na noite do Rio”, anuncia a inauguração das duas casas que foram nessa década as de maior circulação e projeção do jazz até os anos 1990: O Jazzmania e o “Mistura Fina”: “A Rio Jazz Orchestra e a Rio Dixieland Jazz Band, dois grupos formados na década de 70, tocam hoje, às 21h, na Sala Cecília Meireles, um programa comentado sobre a História do Jazz. O momento não poderia ser mais oportuno. Afinal, parte da razão do sucesso de bares como o People, no Leblon e O Viro da Ipiranga, em Laranjeiras, justifica a abertura até o final de novembro de pelo menos mais duas casas noturnas na cidade, o Jazzmania, no sobrado do Barril 1800, em Ipanema, e o Mistura Fina Estúdio, no mesmo bairro. O jazz está em via de se tornar o dono da noite carioca.”117

O Jazzmania foi inaugurado em dezembro de 1983 como um resultado da sociedade do empresário Luis Antônio Cunha e do pianista Marcos Ariel, que, após terem investido no projeto “A música que os músicos querem fazer”, no restaurante Barril 1800,

115 Marcos Ariel apud LEVY (2010, P. 50). 116 É o caso do “Al Buon Gustaio”, inaugurado na Lagoa em 1980, que anunciava um show de Hèlio Delmiro. Acessível em: http://memoria.bn.br/DocReader/docreader.aspx?bib=030015_10&PagFis=7188, acessado em 17/05/2016. 117 Matéria do Jornal O Globo RJ, 2º caderno em 19/08/1983.

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partem para um empreendimento maior e mais caro, com a criação de uma casa de espetáculos preparada para receber um contingente maior de artistas e público. A casa foi inaugurada com um show da Banda “Usina” de Marcos Ariel e passou a contar com uma programação diária de shows de artistas de MIB e jazz, se tornando o maior ponto de referência dessa programação, até o ano de seu fechamento, em 1996. Possuía tratamento acústico especializado, vista para o pôr-do-sol do Arpoador, um bom restaurante com chef de cozinha especializado em comida brasileira (cujos pratos levavam nomes de ritmos brasileiros), capacidade para 280 pessoas, distribuídas em 70 mesas e um trio de piano se apresentando antes do show da noite. Era o local que os artistas que se apresentavam no Free jazz Festival, a partir de 1985, iam depois do show para participarem das “canjas” (ou ainda, jam sessions) com outros músicos, nacionais e internacionais. Tornou-se um ponto referencial do jazz e da MIB no Rio de Janeiro, ao lado do restaurante Mistura Fina, durante toda a década de 1980.

Figura 6: Matéria do Jornal Correio da manhã, janeiro de 1984.

O Mistura Fina Studio, também conhecido pelo apelido de “Misturinha”, foi inagurado nesse mesmo mês e ano do Jazzmania, e também era localizado no bairro de Ipanema, na Rua Garcia D’ávila, na quadra da praia. O restaurante já vinha funcionando na mesma casa, no andar de baixo. O andar de cima, fechado e ocioso foi o local escolhido pelo dono do empreendimento, Pedro Paulo Machado para em sociedade com o trompetista Márcio Montarroyos criar um novo Clube de Jazz. O espaço era pequeno, com capacidade 89

média de 80 pessoas e foi feito um tratamento acústico à prova de vazamento de som. A sociedade com Márcio Montarroyos durou até 1984 mas a casa funcionou no segundo andar desse endereço até 1992. De 1984 a 1988 o nome muda para Mistura Up, e nesse ano ganha o nome definitivo Mistura Fina. Em 1992 se muda para uma casa de dois andares na orla da Lagoa Rodrigo de Freitas, onde permaneceu durante toda a década de 1990, fechando suas portas no ano de 2002. Foi a última casa noturna do gênero a fechar suas portas. “O fato de eu ter chamado o Márcio Montarroyos já foi uma opção pelo jazz e pelo instrumental. E o Márcio indiscutivelmente, dos músicos que faziam a chamada música instrumental, era assim, dos mais queridos e mais expoentes.[..] A opção pelo jazz e pela música instrumental foi uma coisa mais pessoal, uma questão de gosto, jazz eu sempre gostei. De maior identidade, que eu achava que tinha mais a ver com a noite de Ipanema, com a boemia, com a coisa até altas horas.”118

O empresário se refere constantemente ao jazz e a música instrumental separadamente. Ao que tudo indica, a casa agradou ao público prontamente. Segundo Pedro Paulo, Márcio Montarroyos tocou diariamente com seu grupo nos três primeiros meses de funcionamento da casa, com lotação máxima todos os dias. Outras casas do gênero inauguraram no rastro do sucesso dessas duas: a boate People, o Teatro do Copacabana Palace Hotel, o Rio Jazz Club e o Café de-la-Paix no Hotel Méridien, o Gula Bar no Hotel Marina em Ipanema, entre outros. O sucesso do jazz na noite da zona sul carioca estava consolidado em meados de 1980, dando espaço de atuação para artistas brasileiros e internacionais consagrados, e também em fase de consagração. Em São Paulo, desde 1977, um programa transmitido diariamente pela Rádio Jovem Pan de São Paulo, o "Programa do Zuza", tocava uma programação de jazz e MIB “sem distinção de gênero”, até 1988.119 O programa se tornou líder de audiência às 5 horas da tarde e recebeu diversos prêmios. Era apresentado pelo escritor, crítico e jornalista Zuza Homem de Mello, que havia sido também o curador dos festivais de Jazz de São Paulo- Montreux.120

Os espaços em São Paulo no início da década de 1980 também aumentaram:

118 Pedro Paulo Machado apud LEVY (2010, P.53). 119 Zuza Homem de Mello apud LEVY (2010, P.54). 120 Zuza Homem de Mello é ex-aluno de contrabaixo das universidades americanas de jazz School of Jazz, em Tanglewood e Juilliard School of Music, em Nova York Como músico e jornalista, congregou as duas aptidões e participou ativamente da cena do jazz paulista a partir deste programa e de sua atuação como crítico e jornalista nesse campo. Sua participação na curadoria de festivais de jazz se deu desde o primeiro, em 1978 e se repetiu em todos os outros que vieram a partir de então. Se tornou uma figura referencial do jazz no país.

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“Os espaços que programavam música instrumental e jazz, em São Paulo, eram tipicamente alternativos, com ingressos acessíveis ao público, formado em grande parte por estudantes universitários. Esse circuito incluía a Sala Guiomar Novaes da Funarte (Fundação Nacional de Arte), o auditório do MASP (Museu de arte de São Paulo), e o Teatro Lira Paulistana, o mais alternativo desses espaços (...) Já nos primeiros anos da década de 1980, outros dois espaços recém-inaugurados e melhor equipados ampliaram esse circuito: o Centro Cultural São Paulo e a Unidade do Sesc (Serviço social do comércio), no bairro da Pompéia.”121

Alem do Teatro Lira Paulistana, que tinha um perfil universitário e agregador de diferentes expressões culturais, havia o Bar Penicilina, no qual Nico Assumpção foi o responsável por uma programação diária de música, caracterizando uma relação semelhante a que Marcos Ariel teve com o empresário na administração do Jazzmania.122 Nesse processo, pode-se perceber claramente um aumento de ações da iniciativa privada por conquistas de espaços no mercado, coexistindo com espaços que o poder público estabeleceu de preservação. Essa transformação gradativa do mercado é colocada por CANCLINI, quando os procedimentos de distinção simbólica, nos anos finais da década de 1970, passam a operar mediante uma dupla separação: de um lado, entre o tradicional administrado pelo Estado e o moderno auspiciado por empresas privadas; de outro, a divisão entre o culto moderno ou experimental para elites promovido por um tipo de empresa e o massivo organizado por outro. E conclui que a tendência é a de que toda modernização, seja da cultura de elite ou de massas, vá para as mãos da iniciativa privada (2013, p.89). Neste ponto, observa-se que o segmento da música instrumental, visto que não era necessariamente o choro tradicional, ou música de câmara erudita, nem tampouco cultura massiva, se situava num lugar intermediário na organização do capital simbólico daquele momento (cultura erudita, cultura popular e folclore). Vimos que a esfera pública a entendia como “cultura erudita”, pelo conjunto de ações que promoveu no campo dentro nova política cultural da Funarte a partir de 1980, com o objetivo de democratização das artes eruditas. Por outro lado, o jazz, que começava a ser visto como o “culto moderno”, adentrava o mercado brasileiro. Duas linhas de ação irão caracterizar, portanto, o mercado a partir de 1980: por um lado ações de democratização e preservação da MIB enquanto expressão brasileira (a principio, entendida mais como erudita) promovida pelo Estado, e por outro, o fomento de um mercado crescente de jazz que começa a dividir os mesmos espaços, a criar e fomentar novos.

121 Carlos Callado, em libreto comemorativo dos 30 anos do Grupo Pau-Brasil. Disponível em: http://www.grupopaubrasil.com/livro/book.swf, acessado em 16/05/2016. 122 Carlos Calado relata no libreto comemorativo do grupo Pau-Brasil. Disponível em: http://www.grupopaubrasil.com/historia.php. Acessado em 03/05/2016. 91

Foi realizada uma pesquisa num dos maiores jornais de circulação no Rio de Janeiros, o Jornal do Brasil (RJ), através da hemeroteca digital, em dois períodos, entre 1970 e 1979 e 1980 a 1989, com os termos “show de música instrumental” e “show de jazz” na cidade do Rio de Janeiro e foram encontrados os seguintes resultados:

A) Busca pelo termo “show de jazz”: 1) 1970 a 1979 - 36 ocorrências. 2) 1980 a 1989 - 122 ocorrências.

B) Busca pelo termo “show de música instrumental”: 1) 1970 a 1979 - 64 ocorrências 2) 1980 a 1989 - 192 ocorrências

Esses dados nos revelam: anúncios de “show de jazz” aumentaram 240% de uma década para outra, e de “show de música instrumental” aumentaram 200%. O termo “show de música instrumental” na década de 1970 apresentou cerca de 3,4 vezes ocorrências a mais que o termo “show de jazz”, e na década de 1980, cerca de 3,0 vezes ocorrências a mais. Sobre esses dados percebe-se: a) que ambos os termos aumentaram em média 220% de uma década para outra; b) o termo ‘”show de jazz” teve um crescimento maior que o de “show de música instrumental” na década de 1980. Os dois rótulos, portanto, coexistem e se confundem muitas vezes na avaliação das pessoas, que ora se referem a um, ora se referem a outro, ou às vezes a ambos (como é o caso do empresário Pedro Paulo Machado, que se refere a sua programação como “música instrumental” e “jazz”). Os limites começam a ficar borrados entre o jazz e a MIB, mas para os músicos brasileiros o momento apontava para um bom horizonte: o aumento do número de espaços para shows e espaços nas rádios fomentava a necessidade de investimentos em discos, coisa que naquela época ainda se mostrava uma tarefa complicada no campo da música instrumental. Os anos iniciais da década de 1980 no Brasil foram marcados por graves crises econômicas, como veremos no capitulo a seguir.

3.4.1 Sobre a indústria fonográfica

A indústria fonográfica também se ressentiu da crise dos primeiros anos da década de 1980, conforme relata Midani:

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“Surgia uma crise econômica mundial de grandes proporções, que pioraria, e muito, no Brasil, por causa do fracasso de mais um plano econômico que assolava o país ciclicamente. Duas crises simultâneas com efeito cumulativo foram fatais para a nossa economia. De repente, o mercado de discos, que vinha crescendo ao ritmo de 10% ao ano, caiu repentinamente em 30%. Na Warner, havíamos previsto um crescimento, naquele ano, de uns 20%. E ficamos 50% abaixo de nossas previsões.”123

A indústria fonográfica multinacional se ressentia da crise e as possibilidades de contratos com as grandes majors - que já eram difíceis por conta da seletividade na escolha dos investimentos (sempre em função de uma lógica mercadológica padronizada e visando grandes lucros) - ficavam cada vez mais distantes para a música instrumental. Nesse momento uma via alternativa foi protagonizada pelo pianista Antônio Adolfo, a do disco independente, como fez com “Feito em casa” em 1977 com recursos próprios. Essa possibilidade ainda constituía um investimento alto nessa época, mas foi um caminho adotado por alguns, com sucesso. Os álbuns “A Divina Increnca” e “Bambú” e “Nico Assumpção” foram também gravados de maneira independente, em 1980 e 1981. Com a injeção de investimentos, o mercado crescia com a novidade do jazz e a renovação da música instrumental, e era preciso ter um disco para competir por espaços nas rádios que tocariam suas músicas na programação diária caso fossem escolhidas, e não em somente em programas de jazz ou música instrumental específicos:

“Antigamente, os radialistas eram diferentes de hoje em dia, procuravam coisas novas e iam atrás das gravadoras para obter novidades. Ninguém impunha nada a eles. Se gostavam da música, começavam a tocar. Com isso, a nossa música ganhou muitos artistas novos, algo que não se vê mais atualmente, quando vivemos sob imposições de gravadoras e radialistas sem nenhum conhecimento do que acontece em nosso país.”124

Especial importância deve ser dada à atuação do selo e gravadora “Som da Gente”, que existiu entre maio de 1981 e meados do ano de 1992, fundado pelo casal de compositores Walter Santos e Tereza Souza, em São Paulo. Atuou a partir de uma estrutura empresarial intermediária entre a produção independente de música e a produção em grandes gravadoras multinacionais, as majors. Durante este período foram produzidos no estúdio da gravadora, “Nossoestúdio”, 51 discos, sendo que 46 deles contêm apenas instrumentos em suas faixas e

123 MIDANI apud LEVY (2010, p.66). 124 MAZZOLA apud LEVY (2010, p.49). 93

os outros 5 trazem o elemento instrumental dominante na sua concepção estética.125 Estreiou com o álbum do Grupo Medusa, em 1981, de nome homônimo, e no mesmo ano lançou “Mantiqueira”, de Nelson Ayres, outro álbum também referencial. E ainda, outros importantes nomes da MIB, como Hermeto Pascoal, Hélio Delmiro, Roberto Sion, Grupo D’alma, Grupo Cama de Gato, etc. A situação econômica só começa a dar sinais de melhora em 1983, com a retomada do crescimento do PIB, estabelecido em função de ajustes na economia, em contraponto a inflação que subia vertiginosamente. Ainda assim, nessa primeira metade da década de 1980, os investimentos no segmento da MIB na indústria fonográfica eram menores em comparação à segunda metade, como veremos mais adiante.

3.5 – Colonização x antropofagia e expansão territorial

Azael Rodrigues e Rodolfo Stroeter (baterista e contrabaixista do Divina Increnca e Grupo Um) foram convidados pelo pianista Nelson Ayres, em 1978, para formar um trio, depois que Ayres deixou sua Big Band de 18 músicos. Logo em seguida o trio se tornou quarteto com a entrada do saxofonista Roberto Sion. O grupo ficou em cartaz por dois anos no Bar Lei Seca, quando o saxofonista Hector Costita integrou o grupo, que foi batizado então de Pau Brasil. Rodolfo Stroetter relata que “procurar um repertório mais autoral e brasileiro era uma coisa natural naquela época, um impulso geracional”. 126 O grupo dava ênfase às composições autorais que apresentavam em seus shows e haviam sido gravadas individualmente pelo Selo Som da Gente em 1981 (Ayres, Sion e Costita). Logo depois, Hector Costita foi substituído por Paulo Bellinatti, violonista paulistano que havia retornado de sua estadia na Suíça, onde se apresentava com seu grupo de música brasileira, com ênfase em ritmos nordestinos, proveniente de sua experiência profissional no norte e nordeste. Todos

125 Segundo MULLER, O fato de o selo Som da Gente ter se dedicado exclusivamente a produções dentro de um segmento bastante restrito, associado ao passado de seus executivos (músicos, aficcionados por música instrumental e bossa nova), aponta para a verificação de uma tendência que encontraria similaridades na atuação do “produtor/artista”, como foi em Aloysio de Oliveira na década de 60, com sua gravadora Elenco, e na dos empresários da indústria incipiente do jazz (Hobsbawn, 1991). (MULLER). 126 “Este termo tinha um duplo sentido: deu nome a uma árvore no país, cuja madeira (hoje rara) foi bastante comercializada durante o período colonial; também batizou um manifesto poético (Manifesto da Poesia Pau- Brasil), que o escritor poeta modernista Oswald de Andrade lançou em 1924 (...) Como o movimento modernista não tinha ainda uma representação musical, eu achava que a gente devia fazer algo assim”. Disponível em: http://www.grupopaubrasil.com/livro/book.swf. Acessado em 25/05/2016.

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possuíam experiência em jazz, mas desejavam fazer uma música instrumental brasileira, como revela Stroetter: “O caminho que queríamos seguir era uma música instrumental com linguagem e personalidade brasileiras, na qual cada um dos componentes do grupo pudesse contribuir com sua capacidade criativa (...) Isso tinha a ver com uma atitude antropofágica do grupo: o material musical era misturado dentro do grupo. Pouca coisa chegava pronta.”127

O caminho da “linguagem e personalidade brasileiras” é o mesmo grupo Medusa, como viu-se no capitulo 3.2, mas a forma como se vêem no processo é diferente. A contribuição da “capacidade criativa” é o espaço que se concede ao músico para o uso de sua liberdade criativa que leve a novos caminhos, através de fusões ou hibridações, pré-requisito do músico da MIB de forma geral. No grupo Pau Brasil, uma “atitude antropofágica” é usada no sentido de se nutrir de elementos para a construção musical, feita de forma que não haja a “perda das raízes” no resultado final, ou seja, haja um pronto reconhecimento da brasilidade na música, apesar da presença de outros elementos. A diferença entre ambos está na percepção de seu lugar no processo: enquanto o Grupo Medusa se vê refém das coisas impostas de fora, e ao assumir isso demonstra que deseja fazer uma fusão musical com esses elementos, o Pau-Brasil se vê como um grupo nacionalista que antropofagiza elementos de fora. A ideia de antropofagia parece oposta à ideia de “colonizado” do grupo Medusa. Há uma inversão no processo: a imposição não vem de fora, e sim parte do músico que busca elementos de fora para sua música. Na visão do Pau- Brasil, o grupo não está em uma posição passiva, sendo colonizado, e sim, numa posição ativa, antropofagizando.128 Essa atitude pró-ativa se reflete também em sua visão estratégica sobre o mercado internacional:

127 O Pau Brasil era um dos grupos e artistas que se apresentavam no Teatro Lira Paulistana, que aglutinava artistas que representavam a vanguarda paulista da época, entre eles o Grupo Rumo, Premeditando o Breque, Língua de Trapo, compositores como Arrigo Barnabé e Itamar Assumpção, e cantoras como Ná Ozzetti e Tetê Espíndola, entre outras. Além disso, outros grupos instrumentais expoentes, como o Grupo D’alma, Pé ante Pé, Freelarmônica, Banda Metalurgia, Acaru, Alquimia, Papavento, Syncrojazz, Grupo Um e Divina Increnca integravam o cenário instrumental paulistano da época.127 O grupo lançou seu primeiro álbum em 1983, gravado no estúdio Intersom para o selo Lira Paulistana e lançado pela gravadora Continental. Foi o primeiro álbum de 11 lançados até hoje. O grupo se tornou mundialmente conhecido no campo do jazz e da MIB e é atuante ainda nos dias de hoje, tendo sido premiado em 2013 no 24º. Prêmio da Música Brasileira e ganho o patrocínio da Petrobrás para o lançamento de um Caixote comemorativo de 30 anos do grupo (2012) com um libreto de 146 páginas contando sua trajetória, escrita pelo especialista Carlos Calado.Disponível em: http://www.grupopaubrasil.com/livro/book.swf. Acessado em 25/05/2016. 128 Independente da visão que cada grupo tinha de seu fazer musical, ambos chegavam a resultados semelhantes: uma música hibridizada A ideia de antropofagia se manifestava musicalmente nas hibridações realizadas entre elementos de diferentes proveniências: do jazz, música nordestina, samba, música contemporânea e outros, como em “Na baixa do sapateiro” que ganhou uma roupagem “moderna” com subversões rítmicas que prolongavam a

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“Contar com Brasil no nome do grupo também poderia funcionar como um recurso mercadológico. Naquela época já havia consenso entre os cinco integrantes de que, a exemplo de Hermeto Pascoal ou Egberto Gismonti, o Pau Brasil tinha potencial para desenvolver sua carreira fora do país. Assim como Ayres, Sion e Costita, os mais experientes do grupo, já haviam se apresentado diversas vezes nos Estados Unidos, Stroetter fez sua primeira turnê de shows pela Europa com o Symetric Ensemble, que incluía os tecladistas Lelo Nazário e Félix Wagner, em fevereiro de 1981. (Stroetter apud Calado). 129

Como vimos, Egberto e Hermeto são músicos que atuaram e tiveram reconhecimento no mercado internacional do jazz na década de 1970 e contribuíram para a difusão da música brasileira no exterior. O grupo ambicionava, portanto, movimento semelhante ao de seus ícones, visando o mercado externo. Viu-se que aquele era um momento em que o mercado do jazz se expandia, tanto no Brasil quanto na Europa. Que já havia iniciado esse processo na década de 1970, agregando elementos tanto de gêneros europeus quanto latinos, de culturas exóticas ou da música contemporânea. Segundo Berendt (2007), o jazz europeu vinha se constituindo como gênero em vias de distinção do jazz norte-americano.130 O jazz vinha portanto se desterritorializando, sem perder nunca suas raízes: pois continuava sendo “jazz” e o jazz todos sabem que nasceu nos EUA. Mantinha-se inextinguível porque não violentava sua característica conceitual central, o ethos do gênero: a liberdade improvisativa. Impulsionado por um mercado crescente, sendo antropofagizado ou antropofagizando, o “espírito do jazz” é a chave que permite essa expansão territorial, protegida pelo escudo de seu nome, sua marca de identidade consolidada: jazz.

Esse processo de expansão e desterritorialização é agora continental no campo, tanto na Europa e nas Américas. No Brasil, a MIB, agente no campo e sócia no crescente mercado de jazz, vive os mesmo ares de expansão territorial, tanto em termos musicais quanto mercadológicos. Ao mesmo tempo em que visa uma internacionalização a níveis mercadológicos, vive essa expansão a nível musical: também deseja uma renovação através da hibridação de novos elementos para se modernizar. Na visão desses músicos do Medusa e do Pau-Brasil, a música instrumental brasileira adota a mesma ideologia de liberdade criativa exposição do tema e a retiravam do lugar comum do samba (7/4, 6/8 e 4/4), bem como rearmonizações e sonoridades como o baixo fretless e a guitarra semi-acústica. 129 Libreto comemorativo de 30 anos do grupo, por Carlos Calado. Disponível em: http://www.grupopaubrasil.com/livro/book.swf. Acessado em 25/05/2016. 130 Segundo o pianista inglês Howard Riley, o jazz europeu naquele momento estava constituindo uma linguagem própria, que, se não pudesse ser chamada de jazz, também não era música de concerto moderna, pois o feeling se baseava no jazz e na improvisação. Segundo ele, essa música ainda não havia encontrado um “veículo adequado para sua divulgação”. (Berendt, 2007, p.354).

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do jazz, se hibridiza com elementos provenientes de gêneros distintos e se reposiciona no novo campo, que agora é mais cosmopolita, internacional, mas que se preocupa em “não perder suas raízes”.

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CAPITULO 4 - A SEGUNDA METADE DA DÉCADA DE 1980

4.1 O Free Jazz Festival

O país chegava ao ano de 1985 com uma inflação que havia ultrapassado os 200% anuais no final de 1984, uma dívida externa de US$105 bilhões 131 e a expectativa da aproximação de um civil na Presidência do país, depois de longos 20 anos de ditadura militar e um governo que durou longos seis anos de transição democrática e sucessivas crises econômicas. A 1º. edição do Rock in Rio, que aconteceu de 11 a 20 de janeiro em um espaço criado para o evento, a Cidade do Rock em Jacarepaguá (RJ), mostrou ao país e ao mundo que a cidade possuía um promissor mercado para o show business em mega eventos: o público final foi de 1 milhão e 380 mil pessoas.132 No mês de abril tomou posse o primeiro presidente civil depois do período da ditadura, o vice-Presidente José Sarney, do PMDB, que se tornou presidente em função do falecimento do presidente eleito em eleições indiretas Tancredo Neves, em 21 de abril. O Ministério da Cultura é criado neste mesmo ano, se separando então do antigo Ministério da Educação e Cultura. Em meio a esse cenário, na segunda metade do ano, a cidade viveu um clima semelhante ao que havia acontecido em São Paulo sete anos antes: a efervescência cosmopolita do jazz. As empresárias Monique e Sylvia Gardenberg, que com a Dueto Produções já administravam as carreiras do cantor Djavan, grupo Sempre-livre e Flávio Venturini, depois de fazer contatos importantes em uma participação no Kool Jazz Festival em Nova York, se lançavam, com o produtor Paulo Albuquerque, o saxofonista José Nogueira e o crítico Zuza Homem de Mello à empreitada de realizar um novo festival de jazz no eixo Rio–São Paulo. Monique Gardenberg afirma, em entrevista ao JB em 04/07/1985:

“Ele faz parte de uma campanha pela música instrumental aqui no Brasil. O momento é propício a isso, com muitas casas noturnas especializadas, o sucesso dos shows instrumentais da Catacumba e do Parque Lage. As gravadoras e os meios de comunicação precisam perceber isso também, e gravar mais, abrir mais espaço.”

A 1ª. Edição do Free Jazz Festival aconteceu de 2 a 6 de agosto de 1985 no

131 VIDAL LUNA & KLEIN (2007, P.76) 132 Fonte: http://rockinrio.com/rio/rock-in-rio/historia/. Acessado em 28/05/2016.

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Palácio de Convenções do Anhembi em SP, e 5 a 11 de agosto no Teatro do Hotel Nacional, RJ. Foram 10 noites de apresentações e além dos shows houveram aulas práticas com músicos de jazz internacionais no RJ (Joe Pass, Pat Metheny, Toots Thielemans e outros) ao custo de Cr$10mil cruzeiros para músicos sindicalizados e Cr$15 mil para não-sindicalizados. Os ingressos no Hotel Nacional custaram entre Cr$80mil e Cr$100 mil. Eram vendidos também na boate People, no Museu da Imagem e do som e no Jazzmania. Houveram também promoções de ingressos pela Rádio Cidade. No RJ, Sonny Rollings tocou à tarde gratuitamente no Parque da Catacumba. Em São Paulo, os shows dos dias 5 e 6 aconteceram no Palace, com apenas o guitarrista norte-americano Pat Metheny. O investimento estimado foi de CR$4 bilhões e o patrocínio exclusivo foi da gigante de cigarros Souza Cruz133, que nomeou o festival com o nome de um de seus produtos, a marca de cigarros “Free”, que não remetia diretamente ao sub-gênero free jazz, mas que indiretamente dava um sentido de “liberdade” ao conceito do festival.134 É um dos primeiros casos desse modelo de patrocínio cultural no país, no qual a marca do patrocinador, ou um produto de sua empresa nomeia o evento, em troca de oferecer a maior cota do patrocínio (o Kool Jazz Festival tinha o mesmo modelo de patrocínio). Esse modelo será bastante empregado em festivais de jazz a partir deste momento.135 Houve também uma parceria da TV Bandeirantes com a Souza Cruz para a transmissão diária de exibições sobre o festival no canal 7 e o apoio da Rádio Cidade.

133A Souza Cruz é uma empresa brasileira, criada pelo imigrante português albino Souza Cruz em 1903. Em 1914 o controle acionário foi para a multinacional British American Tobacco, transformando-se em sua acionista majoritária. A empresa, de capital pulverizado, tem sede em Londres. 134 Interessante observar que o slogan do cigarro em 1985 era “Uma simples questão de bom senso”. Com o passar das edições do festival, ele mudou para “Cada um na sua”, e depois, “Cada um no seu estilo, mas com alguma coisa em comum”. O slogan de marketing do cigarro foi se moldando ao conceito do festival, que permitia diferentes linguagens musicais sob o rótulo de jazz. A inclusão da palavra “estilo” também acompanhou a grande abertura que o festival deu na década de 90. A associação do produto com o festival se intensificou a tal ponto, que a marca do festival se impôs ao produto, estando ambos finalmente totalmente associados, oferecendo um sinal de que a associação da imagem foi um marketing acertado, que provavelmente se traduziu em grandes lucros para a empresa. 135 “A trajetória do Free Jazz Festival é resultado da união entre a ideia de uma produtora musical e uma marca de cigarros cuja proposta era a de ser reconhecida como inovadora – a Free, da Souza Cruz. O evento teve sua primeira edição em 1985, justamente no mesmo ano em que nascia o Rock in Rio. Diferente na abrangência e na grandeza, o Free Jazz foi um evento proprietário direcionado a um público de preferências refinadas e que lançou as bases para a atitude de marca na área de entretenimento, tanto conceitual como estruturalmente. Como conceito, o Free Jazz era a principal expressão da marca, que tangibilizava (sic) a percepção que desejava criar junto ao público a partir dos atributos e do universo simbólico criado pelo evento. Os anúncios e outras comunicações do produto baseavam-se nesta narrativa e demonstravam conexão a sua principal promessa. A atitude, portanto, caracterizou-se como centro da história contada pela Free. Em termos estruturais, o festival foi determinante para a criação de uma inteligência voltada à organização de eventos no País, no qual se criou uma rede integrada de produtores, fornecedores, entre outros agentes.” Por Letícia Born, disponível em: http://comatitude.com.br/2011/10/27/free-jazz-festival-lancou-bases-para-atitudes-de-entretenimento-no-brasil/. Acessado em 27/05/2016. 99

O Free Jazz obteve sucesso a partir da primeira edição e teve edições com esse nome ate o ano de 2001, com outros patrocínios entrando ao longo das edições. Na 1ª edição a companhia aérea Pan Am cedeu as passagens aéreas em troca de um lugar na barra de logotipos. Em 1986 tem-se o Free e a PanAm; em 1992, vê-se outras marcas, de hotéis, da Coca Cola, da fabricante de palhetas Ébano e um agradecimento de apoio do fabricante de pianos Bösendorfer. Em 1998, lê-se: “oferecimento” para Free, Co-patrocínio Visa e Ford, e a marca da Lei Rouanet e Minc. Em 1995, realiza-se a primeira edição do festival em Porto Alegre. Em 1998 é o primeiro ano em que o Festival utiliza a Lei Roaunet, com edições do festival em Rio de Janeiro, São Paulo, Porto Alegre e Curitiba. Esse formato de patrocínio vai até o ano de 2001, última edição realizada. A 17ª edição, em 2002, foi cancelada em função da alta do dólar, a qual teria sido a última, pois em 2003, entrou em vigor a lei que proíbe o patrocínio de eventos culturais pela industria do tabaco.136

Quadro 5: Programação do 1º.Free Jazz Festival em São Paulo. Dia 02 (sexta) Dia 03 (sáb) Dia 04 (dom) Dia 05 (seg) Dia 06 (ter)

Bobby Mc Ferrin Zimbo Trio Pau Brasil Pat Metheny Pat Metheny Group Group (Palace) (Palace)

Gilson Joe Pass Toots Peranzzetta e Thielemans Ricardo Pontes

Joe Pass Grupo D’Alma Bob Mc Ferrin

Egberto Toots Toninho Gismonti Thielemans Horta

Sivuca

136 Fonte:https://omelete.uol.com.br/musica/noticia/2002-sem-free-jazz-festival/. Acessado em 30/05/2016.

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Quadro 6: Programação do 1º Free Jazz Festival no Rio de Janeiro.

Dia 05 (segunda) Dia 06 Dia 07 Dia 08 Dia 09 Dia 10 Dia 11 (terça) (quarta) (quinta) (sexta) (sábado) (domingo)

Abertura: Orquestra Heraldo Pat Metheny Sérgio Phil Época de Homenagem a Tabajara do Monte Group Dias Woods Ouro Radamès Quintet Gnatalli e Moacir Santos

Maurício Bob Mc Hélio Ernie Luiz Eça Hubert Laws Einhorn Ferrin Delmiro Watts Quartet

Joe Pass Pat Bob Mc Uakti Ricardo Chet Baker Metheny Ferrin Silveira Group

Toots Márcio Sonny Mc Coy Paulo Moura Thielemans Montarroyos Rollings Tyner e bateria da Imperatriz

Wagner Sonny Rollings Tiso (Pque. Catacumba)

4.1.1 - As homenagens

Foi um total de 20 shows brasileiros para 21 estrangeiros. Em São Paulo o festival estreiou numa sexta-feira com o show do único cantor do evento, Bob Mc Ferrin. Os primeiros brasileiros a estrearem no festival foram Gilson Peranzzetta e Ricardo Pontes. A programação seguiu equilibrada, com sete atrações brasileiras e sete internacionais. A segunda e a terça-feira foram reservadas apenas para o guitarrista norte-americano Pat Metheny, no palco do Palace, encerrando o festival e fazendo uma interseção na segunda-feira com a abertura do festival no Rio de Janeiro, com os shows de Radamés Gnatalli (acompanhado de Joel Nascimento e Camerata Carioca) e Moacir Santos e banda, sendo estes os homenageados. 101

No Rio de Janeiro, após as homenagens do primeiro dia, a abertura do segundo dia se deu com uma orquestra brasileira, com foi também no Monterey Jazz Festival. Das atrações internacionais, apostou-se em Pat Metheny para segurar com o público jovem os dias do meio da semana, e reservou o final de semana para as esperadas estrelas do jazz Sonny Rollings, Ernie Watts, Mc Coy Tyner, Phil Woods, Hubert Laws e Chet Baker. O encerramento no domingo, dia 11, se deu com brasileiros, com o tradicional “Época de Ouro”, abrindo a noite, e o encerramento do festival com Paulo Moura e a bateria da Imperatriz Leopoldinense, como já era tradição nos festivais de jazz no Brasil. No último dia, o saxofonista Sonny Rollings “bisava” seu show gratuitamente para o Parque da Catacumba lotado, na parte da tarde. No Rio de Janeiro houveram mais atrações brasileiras (14) do que internacionais (13), contando com Sonny Rollings no Parque da Catacumba e duas apresentações de Pat Metheny. Para Radamés Gnattali, 1985 parecia ser um ano de muitas homenagens, apesar de estar completando 79 anos, já cumpria uma agenda de comemorações pelos seus 80 anos, com concertos promovidos pela Funarte em sua homenagem, em Rio de Janeiro, São Paulo e Brasília, além do lançamento do livro “Radamés Gnattali, o eterno experimentador”, com sua biografia e catálogo de obras, das escritoras Valdinha Barbosa e Anne Marie Devos. Além disso, ainda nesse ano, assinava a direção musical e os arranjos do álbum duplo de Dorival Caymmi, “Caymmi - som, imagem, magia” e lançava dois LP´s, o primeiro gravado ao vivo na Sala Cecília Meireles, em dezembro de 1984 com composições de autorias diversas, e o segundo um lançamento da Funarte, com composições de amigos próximos, como Tom Jobim.137 O convite para a abertura do Free Jazz Festival encontrou uma vaga na apertada agenda e o show aconteceu com a participação da Camerata Carioca e do bandolinista Joel Nascimento. Uma matéria de capa do Caderno B, intitulada “Radamés deixa a plateia em emoção plena”, ilustra o impacto da apresentação no festival:

“O Free jazz Festival começou de forma pouco jazzística, mas com o pé direito. Os sete rapazes da Camerata Carioca, sem se preocuparem em reajustar seu repertório à ocasião, executaram música brasileira do melhor sabor, com a competência e a sensibilidade costumeiras, Joel (bandolim), Henrique (cavaquinho), Luiz Otávio, Maurício e Joaquim (violões), Beto (percussão) e Dazinho (flauta e sax alto) deixaram claro que numa festa do jazz – entendendo-se como tal o modo de viver a música, aberta em todas as direções – há lugar também para choros, valsas, frevos e baiões. Se os organizadores quiseram marcar essa posição logo de saída, foram bem-

137 Jornalista João Máximo, 06/08/1985. Fonte: http://www.radamesgnattali.com.br/site/index.aspx?lang=port. Acessado em 28/05/2016.

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sucedidos. Se não quiseram, acertaram no que não viram. De qualquer forma, na abertura da fase carioca do festival, a Camerata não soou fora do tom”.138

A performance de Radamés foi também muito exaltada na mesma matéria do jornalista João Máximo: “Há muitas tradições musicais por trás do teclados que os dedos do mestre percorrem. A dos velhos pianeiros, a dos chorões, a das salas de concerto e também a do jazz. É um músico total”. A colocação do jornalista atribui ao sucesso de sua apresentação o fato que assegura, “de saída”, o lugar da MIB no festival, que é um lugar que não precisa fazer nenhuma concessão para estar ali e que é conquistado por sua luz própria. Ao colocar o jazz como um “modo de viver a música, aberta em todas as direções”, parece ter superado os paradigmas dos festivais anteriores, atestando aquilo que foi aqui falado sobre espírito jazzístico e desterritorialização do jazz. Moacir Santos estava, na ocasião, há 20 anos morando nos EUA, para onde se mudou em 1967, por ocasião da estreia mundial de um filme para o qual havia composto a trilha “Amor no Pacífico”, depois de atuar como arranjador por 19 anos na Rádio Nacional. Foi morar em Pasadena, Califórnia e teve grande êxito como arranjador e compositor. No show foi acompanhado por: Zé Nogueira (sax soprano), Bidinho (trompete), Zé Carlos Bigorna (sax tenor); Rique Pantoja (teclados), Luizão Maia (baixo), o americano Frank Zottoli (piano); Wilson das Neves (bateria), Café e Marçalzinho (percussão). Recebeu da organização do festival uma placa de homenagem e sua apresentação foi consagrada na crítica. Nas palavras de Tárik de Souza, em matéria do JB de 07/08/85, de título “Uma noite que vem confirmar a lenda”, lê-se: “O maestro e saxofonista Moacir Santos, “que não és um, mas és tantos”, como pluralizava o poeta Vinícius de Moraes em seu Samba da Benção, correspondeu à lenda, na noite de estreia do Free Jazz Festival, segunda-feira no Hotel Nacional. Homenageado com uma placa entregue pela organizadora do evento, Monique Gardenberg, Moacir, vestido como americano, calça preta e paletó roxo de veludo, camisa vermelha com bolinhas brancas, não se cansou de exaltar a “alta monta” do festival.”139

O jornalista Tárik de Souza disse ainda que o Maestro se sentiu “como se tivesse virado nome de rua, a exemplo do grande maestro Pixinguinha”. 140 Sua contribuição é reconhecida hoje no país como “um dos maiores valores da cultura nacional”, como traz a

138 Disponível em: http://memoria.bn.br/DocReader/DocReader.aspx?bib=030015_10&PagFis=101085. Acessado em 28/05/2016. 139 Idem. 140 Fonte: http://memoria.bn.br/DocReader/DocReader.aspx?bib=030015_10&PagFis=101116. Acessado em 28/05/2016. 103

sinopse do recente livro de Andréa Ernest Dias, “Moacir Santos ou os caminhos de um músico brasileiro”(2014). Outra homenagem vem de uma extensa matéria não-assinada no JB na semana anterior ao festival, dando toda a cobertura da programação e finalizando a apresentação de Moacir Santos com a seguinte frase: “Será uma noite histórica e irônica: quem foi acusado de receber influência do jazz, finalmente é homenageado por ele. Imperdível”.141 Como primeiro ponto, a questão da acusação da influência do jazz não é um problema: este discurso é do tempo da bossa nova, há muito superado. A questão estava na ironia de agora o jazz estar no papel do homenageador, diferente de tempos anteriores, sugerindo que agora a música de Moacir Santos foi finalmente reconhecida pelo próprio campo do jazz, dentro do Brasil. Agora ele é homenageado em seu país, cujo momento dá sinais de comportar um mercado para sua música. A ironia também, é a do destino, algo a ver com o sentido do ditado “como um dia após o outro”. É que agora um músico negro, nascido no sertão de Pernambuco, órfão aos 3 anos de idade e músico andarilho do Nordeste, é homenageado em seu país após 20 anos, depois se consagrado no mercado do jazz internacional. Nesse sentido, na matéria, o jazz ganha o papel do anfitrião, do homenageador, de quem reconhece o talento. Apesar da MIB ser a homenageada, na fala do jornalista, não é ela que entrega o prêmio a Moacir Santos, e sim, o jazz. Radamés, para a mesma entrevista, responde: “o que eu tenho a ver com o jazz? Nada. Vai ver que estão me homenageando porque me dedico a música instrumental desde o início da minha carreira”. A resposta de Radamés deixa clara sua visão da diferença entre gênero musical e mercado.

4.1.2 - O jazz-pop

Em São Paulo, a programação brasileira buscou contemplar os três estados do sudeste (RJ, SP, MG) e equilibrar as atrações veteranas e os que estavam em vias de consagração. Nelson Ayres, que já havia participado dos primeiros festivais de São Paulo em 1978 de trio (e acompanhado Dizzy Gillespie e Benny Carter no metrô paulista142) e em 1980 com Maurício Einhorn, agora participava da abertura do Free Jazz a frente do Grupo Pau-

141 Matéria de 28/07/2016. Disponível em: http://memoria.bn.br/DocReader/DocReader.aspx?bib=030015_10&PagFis=100654. Acessado em 28/05/2016. 142 Fonte: http://memoria.bn.br/DocReader/docreader.aspx?bib=030015_09&PagFis=186250. Acessado em 02/05/2016.

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Brasil, que vinha se destacando no cenário paulista a apenas cinco anos, tendo lançado seu primeiro LP em 1983. , guitarrista representante da escola do “jazz mineiro”, já havia feito sucesso nos EUA, tendo sido classificado pela revista Britânica Melody Maker como o melhor guitarrista do mundo em 1977.143 Lançou no Brasil, em 1980, seu primeiro LP solo “Terra dos Pássaros”, Toninho Horta e Orquestra Fantasma, pela Emi-Odeon. O grupo D’Alma, trio de violões que hibridizava elementos de gênero brasileiros diversos, já possuía três LPs no mercado desde 1980: “A quem interessar possa”, pela gravadora CLAM, e pela Som da Gente, “D’Alma”(1981) e D’alma(1983). Um trio de violões, três guitarristas, um trio de piano, baixo e bateria, um gaitista e um acordeonista fizeram o crítico de jazz sentir falta do símbolo do festival em São Paulo, representado na “solitária figura de Roberto Sion”144. Solitária também foi a única representante feminina, a flautista Lena Horta, irmã e integrante do grupo de Toninho Horta.

No Rio de Janeiro, alem das homenagens a Gnattali e Santos, se apresentaram a Orquestra Tabajara, o gaitista Maurício Einhorn, os guitarristas Heraldo do Monte, Hélio Delmiro, Sérgio Dias e Ricardo Silveira, o trompetista Márcio Montarroyos, o grupo mineiro Uakti, os pianistas/tecladistas Luiz Eça e Wagner Tiso, o conjunto Época de Ouro e o saxofonista Paulo Moura e a bateria da Imperatriz Leopoldinense. A profusão de guitarristas chama a atenção, bem como a presença de Sérgio Dias, que havia sido o integrante dos Mutantes e representava a guitarra do rock brasileiro. Sua presença no festival demonstrava o caráter aberto de seu conceito, sinalizando de saída, o quão “heterogêneo” o festival poderia ainda vir a ser. 145

O guitarrista Ricardo Silveira já era um músico requisitado, tanto em estúdio quanto nos palcos, quando participou da turnê de Elis Regina “Essa mulher”, tendo tocado em seguida com Milton Nascimento, Maria Bethânia, Gilberto Gil e outros. Em 1984 lançou seu primeiro álbum solo, “Bom de tocar”, pela Polygram, que foi um sucesso de mercado especialmente no Rio de Janeiro, tendo a música “carro-chefe” de nome homônimo, se tornado um hit entre os músicos e estudantes brasileiros. A música tem uma “levada” pop

143 Fonte: http://www.clubedejazz.com.br/ojazz/jazzista_exibir.php?jazzista_id=200. Acessado em 28/0 144 Fonte:http://memoria.bn.br/DocReader/DocReader.aspx?bib=030015_10&PagFis=101053. Acessado em 29/05/2016. 145 Sérgio Dias, após a difícil tarefa de levar os Mutantes após a saída de Rita Lee, passou 4 anos nos EUA “acompanhando gente de jazz e rock, como John McLaughlin, Flora Purim, Airto Moreira e L.Shankar.” Ao retornar ao país montou a banda Zod, que vinha se destacando no Rio de Janeiro. 105

“funkeada”, com uma harmonia diatônica, no esquema (Im-IV7/ VI7M- Vm7 - IVm7 - V7). A instrumentação usa clavinete na base, teclados, guitarras elétrica “pipocadas”e baixos “funkeados", As outras faixas do álbum seguem esquema semelhante: “levada” pop, arranjo econômico, solos de guitarra, teclados de base e um perceptível domínio do instrumento e do arranjo, resultando num álbum coerente, que transita pela linguagem pop norte-americana. Apenas na última música que Silveira, propositadamente ou não, resolveu fechar o disco com um baião de nome sugestivo: Raízes. O caráter assumidamente pop do disco traz, como diferencial em relação a outros do mesmo segmento, uma pitada de “tempero” brasileiro, perceptível em alguma harmonias, justificáveis pelo back-ground harmônico de Silveira, formado na bossa nova como a maioria dos músicos de sua geração.

“Bom de tocar” irá refletir, naquele momento, seu domínio na linguagem do gênero pop norte-americano - proveniente de sua vivência musical nos EUA, tanto como músico profissional, quanto como aluno da Berklee School of Music - e sua compreensão acerca de um novo segmento do jazz que vinha crescendo gradativamente dentro do mercado. Neste momento o jazz, no mercado americano, sofria uma invasão de artistas jazz-pop, cujos trabalhos encontravam público tanto no mercado do jazz quanto no do pop:

“O jazz -pop começou a espelhar a paisagem musical mudando, no processo de atingir um público mais amplo do que nunca. Artistas como Chuck Mangione, Spyro Gyra, Bob James e George Benson tornaram-se estrelas em meados para o final dos anos 70, com o equilíbrio entre as influências do pop, jazz e R&B, variando de acordo com o indivíduo.”146

Nos primeiros anos da década de 1980, essa linguagem ganha terreno. Além dos nomes acima citados, o tecladista George Duke (que fez sua passagem de instrumentista de jazz para R&B em 1977 e esteve no Brasil em 1980 para o Monterey jazz festival, onde recebeu críticas por sua atuação147), o pianista/tecladista Bob James, o saxofonista David Sanborn, os jovens guitarristas Lee Ritenour e o inovador Stanley Jordan são alguns nomes que desenvolveram trabalhos nessa linha. Neste momento percebe-se que a expansão que o jazz vinha fazendo, desde a década de 1970, com a fusão com o rock e o funk, também vinha expandindo seu público, e

146 “The jazz-pop began to mirror the shifting musical landscape, in the process reaching a wider audience than ever before. Artists like Chuck Mangione, Spyro Gyra, Bob James, and George Benson became stars in the mid- to late '70s, with the balance between pop, jazz, and R&B influences varying according to the individual.” Fonte: http://www.allmusic.com/subgenre/jazz-pop-ma0000011906/artists. Acessado em: 02/06/2016. 147 Fonte: http://www.allmusic.com/album/follow-the-rainbow-mw0000455064. Acessado em 02/06/2016.

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consequentemente garantindo suas margens de mercado numa indústria cada vez mais poderosa. A necessidade de expansão do jazz e a expansão de mercado que a indústria do pop apresentava, aliado ao potencial que acenava ainda apresentar, foram alguns dos fatores que favoreceram o surgimento desse sub-gênero. O jazz-pop contribuiu amplamente, nesse momento, para garantir a faixa do jazz nas gigantescas montas que somavam os lucros da indústria fonográfica no limiar da década de 1980, que começavam a ser cobiçadas pelas grandes majors, e viriam a se tornar em meados da década, os grandes holdings dos conglomerados de comunicação de Wall Street. (LEVY, 2010. P.09)

4.1.3 - A MIB impulsiona o jazz

Dos artistas internacionais veteranos, o gaitista belga Toots Thielemans já havia tido outros encontros com músicos brasileiros: gravado em Estocolmo com Elis Regina em 1969, e no Rio de Janeiro, em abril de 1985, um LP de dueto com Sivuca, com composições de Francis Hime, Chico Buarque, Caetano Veloso e Luiz Avellar, lançado na Suécia, no mesmo ano, e no Brasil no ano seguinte.148 Thielemans era uma apaixonado confesso da música brasileira e dela queria se aproximar: “Não é apenas o ritmo que me encanta nos brasileiros, mas também sua harmonia. Ou melhor, a forma como compositores brasileiros juntam a melodia à harmonia. É uma forma única, bem singular.”149 Para ele, “só o brasileiro faz bem música brasileira.” 150 Subiu ao palco no show de Sivuca no Anhembi, para interpretarem juntos duas músicas de seu recente dueto e convidou ao palco o gaitista Maurício Einhorn, que já havia participado do II Festival Internacional de Jazz de São Paulo/Montreux, para uma “canja”. Músico prestigiado em todo o mundo, com uma discografia de 178 trabalhos (entre participações e discos solo) Thielemans gravou posteriormente, em 1992 e 1993, 2 LP’s intitulados “The Brasil Project” e “The Brasil Project vol.2”, pelo selo “Private music”, lançado no Brasil pela gravadora BMG-Ariola, tendo cada faixa um convidado brasileiro. Estes discos tiveram grande repercussão musical no Brasil, intensificando ainda mais as relações de Thielemans com a músicos brasileiros.

148 Acompanharam Toots e Sivuca: Paulo Braga (bateria), Luizão Maia (baixo), Ricardo Silveira (guitarra) e Luiz Avelllar (teclados), Marçal e Ohana (percussão) 149 Fonte: http://memoria.bn.br/DocReader/DocReader.aspx?bib=030015_10&PagFis=101092. Acessado em 30/05/2016. 150 Fonte: http://memoria.bn.br/DocReader/docreader.aspx?bib=030015_10&PagFis=95578. Acessado em 31/05/2016. 107

Pat Metheny também já tinha uma relação antiga com a música brasileira: seu ídolo confesso era Milton Nascimento e a música brasileira em geral: “muitas músicas pop do mundo são, hoje em dia, muito simples harmonicamente, mas a música popular brasileira continua harmonicamente complexa.” Até aquele momento, já havia gravado com Naná Vasconcelos e com a violonista/compositora Célia Vaz.151 Depois, terá inúmeros encontros com a música brasileira, com Toninho Horta, Milton Nascimento, entre outros, além dos lançamentos de seus discos e suas apresentações no país. Ficou conhecido como um músico que revolucionou o som da guitarra no jazz, não apenas por seu talento precoce (aos 19 anos já dava aulas na Berklee School) mas pelo pioneirismo na utilização de recursos eletrônicos tanto no instrumento quanto nos arranjos e composição. Talvez por essa razão o jornalista o tenha chamado de “mago da música contemporânea (…) com seu equipamento de 3 toneladas e 500 quilos de peso, pilotado por seis técnicos, enquanto o grupo tem apenas cinco instrumentistas”. O músico havia ganhado, no ano anterior, o prêmio Grammy por seu álbum “First Circle", como melhor disco de jazz fusion vocal ou instrumental. Pat Metheny compartilhava o conceito de Chick Corea: para ele, a única definição de jazz era improviso; qualquer música cuja característica principal é a improvisação, ele considera rotulável como jazz. 152 No Brasil, além da fama entre os aficcionados por jazz, o músico tinha um público que vinha também do rock.153. Dos artistas que atraíam um público de rock, além de Sérgio Dias e Pat Metheny, o saxofonista Ernie Watts também soma-se à categoria, por sua participação numa recente turnê dos Rolling Stones. A aproximação que se dá entre músicos brasileiros e estrangeiros (um dos objetivos do primeiro festival de 1978), se mostrará posteriormente longeva ainda nas próximas edições, com as levas anuais de artistas estrangeiros. E essa aproximação musical se refletirá na produção musical desses artistas, quando artistas passam a vir buscar na MIB, fonte de elementos para sua música, o jazz. A “influência” que outrora havia sido de João Gilberto e Tom Jobim, ou ainda Hermeto Pascoal ou Egberto, na década de 1970, passa a ser exercida, na década de 1980, por

151 Disponível em: http://memoria.bn.br/DocReader/DocReader.aspx?bib=030015_10&PagFis=100947. Acessado em:30/05/2016. 152 Fonte:http://memoria.bn.br/DocReader/DocReader.aspx?bib=030015_10&PagFis=101116 153 “Ultimamente, a boate People, reduto exclusivo de jazzistas cariocas e um dos pontos de venda para ingressos ao festival, tem sido invadida por jovens que usam blusões de couro preto pregueados de tachinhas. Os habitués do local adivinham de cara: querem entrada para a noite do Pat Metheny.” Disponivel em: http://memoria.bn.br/DocReader/DocReader.aspx?bib=030015_10&PagFis=100657. Acessado em 30/05/2016.

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Milton Nascimento, Ivan Lins ou Uakti, por exemplo. O Free Jazz Festival será um facilitador dessa aproximação a partir desse ano de 1985. O festival se revelou um empreendimento acertado em vários quesitos: produção, equilíbrio quantitativo da programação entre MIB e jazz, curadoria dos artistas, marketing, e mais tantos outros, demonstrados em sua longevidade (seguiu até 2001 com esse nome, continuando depois como Tim Jazz Festival, BMW Jazz Festival e Brasil Jazz Fest). Tárik de Souza elogiou a produção do festival e analisou, no JB de 13/08/85, em matéria intitulada ‘O Rio entra para o mapa do jazz’:

“Acima de tudo, o Free Jazz privilegiou a música, em seu formato instrumental. Que outro festival poderia exibir com a adesão entusiasmada da plateia um final reunindo os pastorais violões, pandeiro, cavaco e bandolim, do longevo conjunto Época de Ouro, fundado por Jacob do Bandolim?” 154

A participação do Conjunto Época de Ouro, criado por Jacob do Bandolim em 1964, confirma um movimento de retomada do choro que vinha acontecendo desde os anos finais da década anterior, como vimos no capitulo 1. O choro chega ao ano de 1985 com um espaço conquistado no heterogêneo cenário instrumental do Free Jazz. Expressões brasileiras consagradas “puras”, como o choro e o samba, ao lado das atrações representativas da “cena moderna” da MIB, revelam uma intenção de contemplar os diferentes segmentos da MIB que que compunham a “cena” da MIB no eixo Rio-São Paulo. As homenagens na abertura do festival do RJ, reverenciando dois mestres prestigiados pelos agentes do campo da música brasileira e também por agentes do campo do jazz, conferiu ao festival um sinal de distinção frente aos outros festivais. Ao dedicar a noite de abertura exclusivamente às homenagens, o festival lhes confere destaque no campo e os reverencia. Estes por sua vez, em contrapartida, ao emprestar-lhe seus prestígios, conferem ao festival um sinal de virtuosidade e legitimidade no campo da MIB. Dessa forma, o festival “nasce” como que “abençoado” pelos grandes mestres da música brasileira, na “vitrine” da cidade do Rio de Janeiro.155 Alem das homenagens e da amplitude em relação a representatividade instrumental brasileira, consagraram-se no festival nomes expoentes que vinham se destacando no mercado da MIB desde os anos finais de 1970 como Márcio Montarroyos, Ricardo Silveira, Pau Brasil, Toninho Horta e Uakti. Além da consagração dos novos, a amplitude da programação brasileira também é representada pela diversidade na escalação

154 Fonte:http://memoria.bn.br/DocReader/DocReader.aspx?bib=030015_10&PagFis=101451. Acessado em 0§/06/2016. 155 Faz-se uma ressalva apenas: essa distinção, que se deu no RJ, não conseguiu fugir porém da velha fórmula de encerramento dos festivais de jazz no Brasil, que vinha sendo a do exotismo carnavalesco. 109

dos consagrados de décadas anteriores: Paulo Moura, Gilson Peranzzetta, Egberto Gismonti, Zimbo Trio, Sivuca, Mauricio Einhorn, Heraldo do Monte, Hélio Delmiro, Sérgio Dias e Luiz Eça. A unidade que a curadoria conseguiu alcançar na programação brasileira na estreia desse festival conferiu-lhe distinção em relação aos anteriores. O saldo de acertos do festival na programação brasileira parece ter sido maior do que o dos festivais de Jazz de São Paulo de 1978 (onde público e crítica se mostravam ainda muito desconfiados em relação a participação da MIB) e de 1980 (tanto em SP, quanto no RJ, os festivais foram muito criticados pelas participações de cantores, como por exemplo, A cor do Som, Jorge Ben ou Baby Consuelo). No campo do jazz a ação foi diferente: procurou-se trazer o jazz tradicional e o contemporâneo. E a única inserção de um cantor, na abertura da primeira edição, sinaliza que o festival irá sim abrigar atrações vocais, como de fato aconteceu em edições futuras. Com essa fórmula, o festival foi consagrado no mercado brasileiro, instaurando-se como o principal evento anual, o pólo atrativo e impulsionador de estrelas do mercado do jazz no Sudeste do país, por toda a década de 1980, e adiante, nos anos 90.156 A implementação de um mercado de jazz no Brasil através de festivais sendo implementada na verdade desde 1978, desde o primeiro festival de Jazz de São Paulo. Vimos que os dois mercados vinham crescendo em diferentes ações: o Estado cuidava do patrimônio impulsionando a MIB e o mercado vendia o jazz. Os músicos brasileiros atuavam em ambos. A sustentação e o desenvolvimento que a MIB encontrou no ínterim dos cinco anos dos festivais foram o esteio para que o Free Jazz chegasse numa hora propícia para dar certo. E além disso, o festival entrava no mercado funcionando dentro do novo modelo de patrocínio e marketing cultural (construído a partir de preceitos da ideologia neo-liberal importada dos EUA)157 que irá operar cada vez mais a partir daquele ano de redemocratização de 1985. Por essa razão, era necessário que o sucesso de um representante do jazz consagrasse o campo no novo território e é isso que o crítico Tárik de Souza retrata na mesma matéria (bem como José Domingos Rafaelli, em outra similar):

156 É importante ressaltar que essa via de mercado que o festival abria, atendia diretamente ao público de seu patrocinador: os ingressos eram caros, e portanto, a frequência do festival era da classe média para cima. 157 As empresárias Monique e Sylvia Gardemberg, ao fazerem contato com o modelo do Kool Jazz Festival de Nova York, idealizam o Free Jazz, convidam os artistas, montam a programação e saem em busca do patrocínio nos mesmo moldes do Kool Jazz, que era patrocinada pela marca “Kool”. Conseguem vender a ideia para a Souza Cruz e o patrocínio foi confirmado num prazo muito próximo da estreia. O JB só confirma o nome do festival em matéria do dia 23/0

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“De qualquer forma, só por desempenhos superlativos como o do saxofonista Sonny Rollings, o Free Jazz já pisou na balança dos eventos internacionais do porte do Kool Jazz americano, do Jazz de Berlim ou Montreux.”158

Essa afirmativa mostra que um festival de jazz em sua estreia no Brasil não poderia ser consagrado por um representante da MIB. Isso teria que acontecer por um “superlativo” do jazz para se consagrar no cenário mundial dos festivais. Por outro lado, essa afirmativa que consagra Sonny Rollings distingue claramente o jazz da MIB e mantém seus agentes em cada campo, diferentemente da fala do crítico na Revista Pop nº.73, que consagrou a Hermeto Pascoal o lugar máximo do festival de 1978. Dessa forma, percebe-se que o espaço da MIB na estreia do Free Jazz Festival, embora tenha sido contemplado em diferentes linhas, se encontra hierarquizado em relação ao jazz, que era o rótulo do produto a ser lançado no mercado brasileiro. Lançando o produto jazz, que vinha em primeira mão como sendo importado dos EUA e portanto não acessível no mercado interno, fomentava-se primeiramente o consumo da música dessas estrelas consagradas. Mas o lugar de destaque conferido através das homenagens e uma programação em número praticamente igual à estrangeira conferiram à MIB, nesta primeira edição em 1985, um posicionamento melhor em relação aos festivais anteriores, de fato mais “lado a lado” com as atrações internacionais. Percebe-se então que, assim como a entrada do jazz no mercado brasileiro fomentou uma renovação na qual a MIB ganhou impulso, da mesma forma a MIB impulsionava e sustentava também o mercado recém turbinado do jazz (ainda que de forma hierarquizada), através da manutenção deste nas entre-safras dos festivais. E esteticamente, a partir das trocas resultantes dos encontros que passaram a acontecer por conta do crescimento do mercado, também a música brasileira fornecia elementos para o jazz (como aconteceu por exemplo com a atuação de Airto Moreira e Flora Purim na década de 1970 no mercado do jazz norte-americano) e agora na década de 1980, dentro do Brasil, como vimos aqui.

158 O crítico José Domingos Rafaelli usa as mesmas palavras: “ainda que o festival não fosse um sucesso, bastaria a presença de Sonny Rollings para justificar sua realização”. Fonte: http://memoria.bn.br/DocReader/docreader.aspx?bib=030015_10&PagFis=101270. Acessado em 02/06/2016. 111

4.2 - A “explosão” do jazz e o novo cenário

4.2.1 - O internacional mercado brasileiro do jazz

A partir de 28 de fevereiro de 1986 instaura-se o Plano cruzado, reforma que mudou o regime monetário nacional e congelou todos os preços, alcançando sucesso durante todo aquele ano (LUNA&KLEIN, 2007). Esse quadro deu tranquilidade para as transações monetárias e para a confiança empresarial no mercado. Em matéria do Caderno B do JB de 18/06/1986, o crítico José Domingos Raffaelli assinala a “Explosão do jazz no Brasil”.159 Artistas internacionais que haviam se destacado no Free Jazz do ano anterior retornam ao país para turnês e apresentações (mais à capital carioca que à paulista), inserindo de fato as capitais na rota internacional dos artistas de jazz. Na segunda metade da década, a regularidade dos Free Jazz Festival funcionou como um marco anual que fomentava um mercado todo o ano, principalmente em suas entre-safras. A consagração de Pat Metheny no mercado do jazz no Rio de Janeiro a partir da 1ª.edição do festival pode ser medida pela extensão da temporada que fez no Jazzmania: de 03 a 15 de março de 1986 (shows diários de segunda a sábado, com workshops pagos na parte tarde).160 O músico tocou praticamente em troca das passagens, estadia e alimentação. O Jazzmania esteve lotado todos os dias da temporada (300 lugares). Além da presença de inúmeros artistas brasileiros na platéia, a programação de “jazzistas ilustres” nos meses seguintes, seguiria no Jazzmania com as apresentações do trompetista John Faddis, a cantora brasileira radicada nos EUA, Astrud Gilberto, o trompetista americano Wynton Marsalis e o violinista francês Jean Luc Ponty, configurando o que o crítico Tárik de Souza intitulou como “Pan American Jazz Circuit”.161 Além destes, em 1986 vieram para shows, fora do festival, Bob Mc Ferrin (Canecão) e os trompetistas Dizzy Gillespie (Teatro do Hotel Nacional) e Chuck Mangione (Teatro Municipal). Em São Paulo, em menor escala, também o Free Jazz estimulou o mercado do jazz: o trompetista Chet Baker se apresentou no Palace em 20/08/85, logo após a 1.edição do

159 Fonte: http://memoria.bn.br/DocReader/docreader.aspx?bib=030015_10&PagFis=116832. Acessado em 09/06/2016. 160 Pat Metheny aproveitou as férias de sua banda para montar junto com Charlie Haden (baixo), Ernie Watts(saxes) e Harvey Mason (bateria). O critico José Domingos Rafaelli, em entrevista, afirma que o músico “sabe que o brasileiro gosta de jazz”. Fonte: http://memoria.bn.br/DocReader/docreader.aspx?bib=030015_10&PagFis=111174. Acessado em: 05/06/2016. 161 Estavam programados aquele ano para o Jazzmania, Astrud Gilberto, Wynton Marsalis, Jean Luc Ponty, Fonte: http://memoria.bn.br/DocReader/docreader.aspx?bib=030015_10&PagFis=112046. Acessado em: 05/06/2016.

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Free Jazz. 162 O contrabaixista Stanley Clarke (não estava na programação do Free Jazz, mas esteve no Rio Monterrey Jazz Festival, em 1980) veio de Los Angeles para uma apresentação em um novo espaço no centro da cidade, intitulado Projeto SP, “um circo com 3 mil lugares” na esquina das ruas Caio Prado e Augusta.163 Em 28/04/1986 o crítico Nêumanne Pinto lamenta o encontro de Milton Nascimento e Wayne Shorter perdido pelos cariocas, apresentado no palco desta casa de shows. Essa parceria era na verdade o reeencontro musical que já existia desde meados da década de 1970 (Wayne Shorter já havia gravado dois discos com Milton Nascimento, em 1975 e 1976, em “Native Dancer” e “Milton”, ambos nos EUA). O crítico acrescenta, em função do final do show onde se juntaram todos (a banda de Shorter com “parte da Banda High Life” que acompanhou Milton, além de Robertinho Silva):

“Se juntaram em um casamento musical que pode certamente se transformar num marco daquele não-estilo musical-instrumental, que os críticos estão chamando de fusion (fusão). Talvez um impacto semelhante ao provocado pelo Weather Report, marca de respeito da melhor música instrumental americana (site).164

Além das turnês, muitos músicos estrangeiros, muitas vezes através da constituição de famílias no país, se mudavam definitivamente para o Brasil, como é o caso do pianista/tecladista uruguaio Hugo Fattoruso, o saxofonista francês Idriss Boudrioua, o trompetista americano Don Harrys, o baixista Bruce Henry, o saxofonista Bob Wyatt e o baterista Paul Liberman. “A velha máxima do meio instrumental - a saída do brasileiro é o aeroporto - entrou na contramão. Cresce o número de instrumentistas que, acima do encantamento com o país e sua música, como ocorreu nas recentes temporadas, de Pat Metheny, Hubert Laws e Wayne Shorter decidem radicar-se aqui e enfrentar as dificuldades de um mercado restrito (site)165

A presença de músicos estrangeiros no circuito noturno do jazz naturalmente dividia os espaços com os músicos brasileiros, como admite o saxofonista Mauro Senise na mesma entrevista, mas “por outro lado são músicos tão bons que a concorrência é estimulante”. (site)166 Existe então um aspecto ambíguo na história: ao mesmo tempo que compete pelo espaço com a MIB, o jazz faz parte do conjunto das ambições artísticas deste músico da década de 1980, que desejava ampliar sua liberdade criativa. Os músicos

162 Fonte: http://acervo.folha.uol.com.br/fsp/1985/08/20/21//4158517. Acessado em 13/06/2016. 163 Fonte: http://acervo.folha.uol.com.br/fsp/1985/09/22/2//4301061. Acessado em 13/06/2016. 164 Fonte: http://memoria.bn.br/DocReader/DocReader.aspx?bib=030015_10&PagFis=114103. Acessado em 14/06/2016. 165 Fonte: http://memoria.bn.br/DocReader/docreader.aspx?bib=030015_10&PagFis=115309. Acessado em 09/06/2016. 166 idem. 113

compartilhavam os mesmos anseios de expansão musical. Mais uma vez, o “espírito do jazz” foi a chave que favoreceu e promoveu essa troca. Por essa razão que também a música brasileira passou a fazer parte do mesmo conjunto de ambições para muitos músicos norte- americanos. Além das apresentações internacionais ocorreu também uma circulação de artistas brasileiros que tinham se apresentado na 1ª edição do festival nos circuitos do RJ e SP. Espaços novos surgiam, como o Teatro Ipanema no RJ e o Projeto SP, no centro da capital paulista. Músicos paulistas se apresentam no RJ e músicos cariocas em SP. Artistas internacionais em ambas as capitais, ou ainda em Belo Horizonte, na casa de shows do tecladista Wagner Tiso, o Cabaré Mineiro. O Jazzmania foi a partir daí cada vez mais o local de profusão do jazz no RJ, como uma extensão do festival:

“Que a música instrumental anda em alta, ninguém duvida, principalmente depois do empurrão publicitário representado pelo Free Jazz Festival, há quatro meses atrás. As temporadas costumam ser curtas, como as de Hélio Delmiro, que fica até amanhã no Teatro Ipanema, e a de Rique Pantoja e grupo, só hoje no Jazzmania.” (site).167

Hotéis de luxo, como o Copacabana Palace no RJ e o Maksoud Plaza em SP adentram o segmento, apresentando artistas das MIB. Mas a profusão de shows de artistas internacionais, tanto no RJ quanto em SP (mais forte no primeiro que no segundo) que a “moda” vigente do jazz instaurou a partir do festival não estava alinhada com um mercado anterior de discos no país, neste segmento. Em matéria de 25/08/85 da Folha de São Paulo, lê- se: “O jazz esta em alta. Se outros méritos não tivesse - e ele apresentou vários - o Free Jazz Festival, em suas duas versões, elevou consideravelmente o interesse pelo jazz. Acontece que o mais importante veiculo de difusão do jazz - o disco - vem sendo bastante maltratado pelas subsidiárias das gravadoras aqui instaladas.”168

Naturalmente a percepção desse desalinho se deve ao fato de que agora o jazz chamava a atenção e o mercado estava sendo fomentado. O Free Jazz Festival passou a funcionar como um marco anual de lançamentos: com o impulso do festival, as gravadoras começaram a perceber um mercado potencial para seus catálogos de artistas internacionais do jazz. As gravadoras começaram a antecipar lançamentos de artistas internacionais anunciados no Free Jazz, como foi o caso do lançamento do pianista norte-americano Keith Jarreth, de

167 Fonte: http://memoria.bn.br/DocReader/docreader.aspx?bib=030015_10&PagFis=104092. Acessado em 05/06/2016. 168 Fonte: http://acervo.folha.uol.com.br/fsp/1985/08/25/2//4160714. Acessado em 13/06/2016.

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seu disco “Standards, Vol.1”, pela Polygram169, e o pianista brasileiro João Donato, que gravou pela WEA um disco ao vivo no bar People, para lançar na ocasião do Festival.170 Contratos com grandes gravadoras eram coisas difíceis de serem alcançadas para músicos brasileiros, mas as participações nos Free Jazz Festival eram sem dúvida um selo de distinção definitivo que pesava na escolha das gravadoras para seus investimentos. Muitos brasileiros, depois de se apresentarem no festival, conseguiam contratos com majors para seus próximos lançamentos. Para alguns expoentes brasileiros porém, restava ainda o investimento independente, como foi o caso do saxofonista francês radicado no Brasil, Idriss Boudrioua, convidado para a 2ª edição do Free Jazz, que lançou em 1986 seu álbum independente “Esperança”, recebido pelo crítico José Domingos Rafaelli como “jazz de verdade”: “desde os tempos de Victor Assis Brasil, não ouvíamos dessa qualidade realizado entre nós”.171

4.2.2 - Rio: a capital do jazz

“Tinha glamour, exatamente! Existia glamour nesse ambiente. Porque estava conectado ao 1º mundo! Eu acho que é por isso que tinha glamour. 172

A 2ª edição do Free Jazz Festival aconteceu de 27 a 31 de agosto no Centro de Convenções do Anhembi em SP e de 2 a 7 de setembro de 1986 no Teatro do Hotel Nacional, no RJ. A Pan Am 173 , que havia apoiado a 1ª edição com passagens, entrou como co- patrocinadora na 2ª edição em 1986, ao lado da Souza Cruz. O festival ganhou um happening de abertura no Morro da Urca e a divulgação da TV Globo com flashes jornalísticos e cinco edições compactas. Após o festival, fechou contrato com a TV Manchete para a exibição completa dos 11 dias do festival. Houveram também workshops no Hotel Nacional, com

169 Fonte: http://memoria.bn.br/DocReader/DocReader.aspx?bib=030015_10&PagFis=116432. Acessado em 13/06/2016. 170 Fonte: http://memoria.bn.br/DocReader/DocReader.aspx?bib=030015_10&PagFis=116432. Acessado em 13/06/2016. 171 Fonte: http://memoria.bn.br/DocReader/DocReader.aspx?bib=030015_10&PagFis=115658. Acessado em 13/06/2016. 172 A pianista-compositora-arranjadora Délia Fischer, em entrevista concedida a autora em 04/08/2010. (LEVY, 2010). 173 A Pan American World Airways, mais conhecida como Pan Am, foi a principal companhia aérea estadunidense da década de 1930 até o seu colapso em 1991. A ela foram creditadas muitas inovações que deram forma à indústria das companhias aéreas no mundo todo, como a utilização em larga escala e difundida de aviões a jato, de aviões Jumbo e do sistema de reservas computadorizado. Identificada pela sua tradicional logomarca e pelo uso do "Clipper" nos nomes de seus aviões, a Pan Am foi um ícone cultural do século XX. Em 1985, já em dificuldades, havia encolhido para 21%, vendendo suas rotas para Ásia, Austrália e Ilhas do Pacífico para United Airlines. Fonte:https://pt.wikipedia.org/wiki/Pan_American_World_Airways. Acessado em 05/06/2016. 115

Wynton Marsalis, Larry Carlton, David Sanborn e Keith Jarret, a Cz$50,00 por aula. Os ingressos saíram, na nova moeda, entre Cz$250,00 a Cz$300,00.

Quadro 7: Programação da 2ª edição do Free Jazz Festival em São Paulo, em 1986. Dia 27 (quarta) Dia 28 (quinta) Dia 29 Dia 30 (sáb) Dia 31 (dom) (sexta)

Turibio Santos Marcos Ariel The Ricardo The Dirty Dozen (Tributo a Villa- Manhattan Silveira Brass Band Lobos) Transfer

Larry Carlton Stanley Jordan Paulo Moura Stanley Jordan Cesar Camargo Mariano

Joao Donato David Sanborn Gerry Ray Charles Ray Charles Mulligan

Winton Marsalis

Quadro 8: Programação da 2ª edição do Free Jazz Festival no Rio de Janeiro, 1986. Dia 02 Dia 03 Dia 04 Dia 05 Dia 06 Dia 07 (terça) (quarta) (quinta) (sexta) (sábado) (domingo)

Egberto Rique Idriss Stanley Domingui The Dirty Doz- Gismonti Pantoja Boudrioua Jordan nhos en Brass Band (Tributo a Villa Lobos)

Leni Stanley Larry Carlton Grupo Victor Azymtuh Andrade Jordan D’alma Biglione

Ray Charles Ray Gerry The David Wynton Charles Mulligan Manhattan Sanborn Marsalis Transfer

Stanley Jordan no Parque da Catacumba

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A respeito dessa programação podem ser feitas as seguintes observações: a) A fórmula de abertura com homenagem a um músico brasileiro foi mantida nesta edição, homenageando Villa-Lobos, por outros músicos: em SP o violonista Turíbio Santos e no RJ, Egberto Gismonti. b) As atrações internacionais estiveram nas duas cidades, diferentemente da 1ª edição, onde teriam estado em maior número no RJ; c) A diferença entre o número de shows estrangeiros e brasileiros superou bastante o primeiro festival: 20 estrangeiros sobre 14 brasileiros (na 1ª. edição foram 21 estrangeiros para 20 brasileiros, tomando-se Idriss Boudrioua e Victor Biglione como músicos brasileiros por serem moradores da cidade e estrangeiros radicados); d) A presença de artistas cariocas é bem superior à presença dos paulistas e das demais partes do país; tem-se a seguinte configuração total: 10 cariocas, 2 paulistas, 1 nordestino e 1 radicado fora do país; e) O encerramento final do festival, que não se deu com uma atração carnavalesca brasileira, mas com o show do trompetista Wynton Marsalis, apesar da participação do sambista João Nogueira encerrando o show do grupo Azymuth, que foi considerada pela crítica como “menos apropriado possível”. 174 O patrocínio da Souza Cruz e da Pan Am foi de Cz$500 milhões. O jornalista escreve: “Há muito tempo não aparecia um investimento tão bom para os cruzados (…) É como se Nova York fosse aqui, logo depois do túnel Dois Irmãos, e sem os 25% de ágio.”175 Todos os ingressos do festival foram esgotados. O crítico Raffaelli escreveu para o JB a dois dias do fim do ano de 1986: “O movimento jazzístico em 1986 bateu o recorde em apresentações de artistas estrangeiros, deixando um saldo positivo em termos de qualidade e sucesso de público. Mas lamentava que teria havido um descompasso das grandes gravadoras para lançamentos no Brasil, e muitos teriam ficado para o próximo ano, se perguntando se realmente as vendas do mercado fonográfico do jazz haviam aumentado no Brasil”.176

174 Disponível em: http://memoria.bn.br/DocReader/DocReader.aspx?bib=030015_10&PagFis=121621. Acessado em 16/06/2016. 175 Fonte: http://memoria.bn.br/DocReader/DocReader.aspx?bib=030015_10&PagFis=119057. Acessado em 13/06/2016. 176 Fonte: http://memoria.bn.br/DocReader/DocReader.aspx?bib=030015_10&PagFis=129628. Acessado em 16/06/2016. 117

Após o Free Jazz de 1986, novas levas de encontros entre brasileiros e norte- americanos: o grupo The Manhattan Transfer anunciava uma lista de vários compositores brasileiros para seu próximo disco, e concluía a respeito da riqueza da música brasileira: “quanto mais escuto a música brasileira mais confuso fico. Vocês recebem influências do mundo todo, e produzem uma diversidade enorme de ritmos e canções”.177 Outros empresários adentram o campo do jazz jogando pesado: Manoel Poladian traz Miles Davis ao RJ (Canecão, de 08 a 11/09/86) e SP (Anhembi) após 12 anos sem se apresentar em palcos brasileiros.178 Sua vinda levantou uma disputa jazzística na mídia com Wynton Marsalis, que havia encerrado a 2ª.edição recente e se preparava para uma temporada no Jazzmania. A internacionalização que havia se instaurado no Rio de Janeiro, através do fomento do jazz na mídia, a rotatividade de shows, a entrada de novos poderosos empresários neste mercado, o incremento dos patrocínios do festival foram fatores que contribuíram para a alcunha para o Rio de Janeiro de “capital do jazz”. Mas no ano de 1987 desejava-se resolver a pendência que Keith Jarret havia deixado, ao cancelar sua vinda ao Free Jazz Festival em 1986 em cima da hora e sendo substituído as pressas pelo grupo vocal The Manhattan Transfer, em função da impossibilidade da produção do evento em atender sua exigência de noite exclusiva para a sua apresentação no festival. Era um investimento alto (uma despesa de US$150 mil), sem margem de lucro imediato, mas com um alto potencial de retorno de imagem, por seu altíssimo valor simbólico no campo do jazz, transformado então em mito. É nesse momento, que agentes do campo erudito adentram também o promissor campo do jazz: a produtora Dell’Arte, de Miriam Dauelsberg, conhecida por sua atuação no campo erudito negociou a vinda do pianista para apresentações solo no Teatro Municipal do RJ, sob o nome de ‘Piano- Solo Improvisations’. As negociações foram exitosas, conduzidas entre a família de Miriam (o violoncelista Peter Dauelsberg e seu filho, o pianista Cláudio Dauelsberg) diretamente com Jarret, que se sentiu confiante, e “bem tratado”.179 Foram dois concertos no Teatro Municipal do RJ e um o Palácio do Anhembi, em SP.

177 Fonte: http://memoria.bn.br/DocReader/DocReader.aspx?bib=030015_10&PagFis=120895. Acessado em 16/06/2016. 178 Fonte: http://memoria.bn.br/DocReader/DocReader.aspx?bib=030015_10&PagFis=121568. Acessado em 16/06/2016. 179 Fonte: http://memoria.bn.br/DocReader/DocReader.aspx?bib=030015_10&PagFis=139217. Acessado em 16/06/2016.

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4.2.3 - A luta pela MIB na “Catacumba”

“Dá vontade de deixar de ser brasileiro”, desabafa o pianista Luiz Eça. “Isso é típico do nosso país, quando uma coisa está indo bem, acaba.” completa o Maestro Roberto Gnattali (site).180

A indignação acima está se referindo ao anúncio do término do projeto Rio Arte Instrumental, também conhecido como “Música na Catacumba”, publicado na Revista de Domingo do JB de 06/10/1985. Firmado como espaço democrático da música instrumental, conhecido destino do público familiar de saída da praia de domingo no RJ, trazia ainda em sua memória recente o happening de Sonny Rollins no Free Jazz, ilustrada nas frases do crítico: “As frases escapuliam do sax como folhas sobre as cabeças dos que estavam embaixo das árvores do parque”.181 O contrato de patrocínio da Petrobrás, através da Lubrax, firmado há um ano e meio, não seria renovado. Uma carta que data de 10/12/85, expressava publicamente o descontentamento de uma cidadã com o fim do projeto:

“Gostaria de levar ao público meu desapreço pela atitude da Lubrax de suspender o seu patrocínio ao projeto Rioarte Instrumental, realizado nos domingos de sol no Parque da Catacumba. Sem desmerecer qualquer outro projeto em que essa empresa esteja empenhada, acho que muitos perdemos com a extinção de um programa que unia a tarde agradável do verão carioca a oportunidade de se assistir as mais diversas expressões da música instrumental. Vale lembrar que músicos de primeira linhada nossa música popular ali apresentaram seus trabalhos individuais. Perdemos como público, eu e tantos outros. Perderam os músicos que ali encontravam um público certo e atento a ouví-los. Perdeu a cidade, desprovida que ficou de um de seus mais agradáveis programas de domingo”.182

O projeto foi interrompido e somente em maio de 1986 foi encontrado registro de novo show no parque, do percussionista Naná Vasconcelos que estava no país.183 Em 29 de

180 Na matéria lê-se números do projeto: recordes de público de 6 a 8 mil pessoas e uma média de 400 músicos haviam se apresentado até aquela data. Além disso fala-se de um jornal Catacumba com tiragem de 35 mil exemplares mensais. Fonte: http://memoria.bn.br/DocReader/docreader.aspx?bib=030015_10&PagFis=103444. Acessado em 05/06/2016. 181 O JB contabilizou uma platéia de 8 mil pessoas no show de Sonny Rollins, no Parque da Catacumba no último dia do Free Jazz Festival, “jovens de shorts, sem blusa, vindo da praia”. A matéria ressalta não apenas a lotação do parque, mas como a plateia assistiu ao show atenta, ouvindo e dançando, interessada e semi- conhecedora do trabalho do artista, que apresentou um show “com latinidade explodindo em todas as músicas” (Joaquim Ferreira dos Santos). Disponível em: http://memoria.bn.br/DocReader/docreader.aspx?bib=030015_10&PagFis=101412. Acessado em 11/06/2016. 182 Maria Guadalupe Seabra. Fonte: http://memoria.bn.br/DocReader/docreader.aspx?bib=030015_10&PagFis=107031. Acessado em 11/06/2016. 183 O percussionista brasileiro Naná Vasconcelos, considerado já na época como um dos melhores do mundo, residente em Nova York, volta ao Rio de Janeiro e realiza dois shows no Golden Room do Copacabana Palace com a ganhadora do Festival dos Festivais da Rede Globo, a cantora Tetê Espíndola, em abril de 1986. Esses shows foram dentro do projeto “A luz do Solo”, que tinha como foco o artista solo, patrocinado pela Petróleo

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julho uma nota na coluna do jornalista Ancelmo Góis anunciava um novo contrato de patrocínio com a Lubrax, para a retomada do projeto.184 O processo porém parece ter sido moroso: uma carta da diretora da Divisão de Música da RioArte e responsável pelo projeto, Lilian Zaremba, publicada em novembro do mesmo ano informa que a “RioArte destinou parte de sua verba para garantir a continuidade dos shows, até que todos os tramites [normais e morosos] de assinatura de patrocínio com a Lubrax se completem”. 185 Os shows se confirmam no final de 1986 e pelo ano de 1987. Uma notícia de março de 1987 informa que a Rioarte, que estava em vias de ser desativada e incorporada a Fundação Rio, foi mantida por influência do presidente das duas instituições, Geraldo de Mello Mourão, que se reuniu junto ao prefeito Saturnino Braga. O projeto porém, sofreu um corte de 50% por cento nas verbas. Uma nota no Jornal do Brasil de 27/04/87 informa que a empresa Microtec, através da Lei Sarney, apoiará o projeto Rioarte Instrumental. Em novembro do mesmo ano, o ator Francisco Milani (apresentado como um “comunista” declarado) é empossado presidente da RioArte.186 O ator anuncia uma maior democratização da música em diferentes regiões da cidade e uma ampliação do Rioarte também aos sábados no Parque da Catacumba. 187 Respeitada a interrupção de todos os anos entre janeiro e março, o projeto prossegue em 1988 mas é novamente interrompido, por conta da falência da prefeitura de Saturnino Braga. A próxima ocorrência só irá acontecer em maio de 1989, anunciando a reestreia do projeto com o show do saxofonista Mauro Senise com “quase um ano de abstinência do projeto”, além de informar que o custo do projeto para a prefeitura era de NCz$5 mil.188 Dois meses depois, porém, em 07/07/89, o Jornal do Brasil noticiou uma grande chuva na cidade e disse que o “Parque da Catacumba submergiu nas águas da Lagoa”. Depois disso o projeto não aconteceu mais naquele local, mas sobreviveu itinerante até 1995: vai para o Parque Garota de Ipanema, no Arpoador, depois para a pista de skate da Praça Padre Ambrósio, no Largo do Tanque, Jacarepaguá, e depois para o “Cebolão da Barra”, com o nome de “Rioarte Instrumental Barra

Ipiranga e realizado no suntuoso principal salão do hotel mais requintado da cidade, com acesso exigia “traje compatível” e boa condição financeira para os altos ingressos. Fonte: http://memoria.bn.br/DocReader/docreader.aspx?bib=030015_10&PagFis=113105. Acessado em 11/06/2016. 184 Fonte: http://memoria.bn.br/DocReader/DocReader.aspx?bib=030015_10&PagFis=118983. Acessado em 05/06/2016. 185 Matéria de 04/11/86. Fonte: http://memoria.bn.br/DocReader/DocReader.aspx?bib=030015_10&PagFis=125234. Acessado em 05/06/2016. 186 Fonte: http://memoria.bn.br/DocReader/DocReader.aspx?bib=030015_10&PagFis=151027. Acessado em 05/06/2016. 187 Fonte: http://memoria.bn.br/DocReader/DocReader.aspx?bib=030015_10&PagFis=153673. Acessado em 05/06/2016. 188 Fonte: http://memoria.bn.br/DocReader/DocReader.aspx?bib=030015_10&PagFis=191139. Acessado em 05/06/2016.

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ao cair da tarde”. Encerrou na praça Nossa Senhora da Paz, em Ipanema, em 27/05/1995, com os shows de Guinga, Lula Galvão e Carlos Malta.189 Vimos no capitulo 3, que esse projeto se iniciou a partir de uma utilização política da cultura por parte do Estado, que visava ‘democratizar a cultura de elite e incentivar as manifestações populares no espaço cosmopolita’, num ambiente pós-repressão, a partir de 1979. A pesquisa da trajetória de seu patrocínio revelou com clareza os processos de transição da apropriação do capital cultural, que se iniciou nas mãos do Estado e foi passando para a iniciativa privada ao longo da década, até o seu término. Teve-se no primeiro momento, a criação pela esfera federal, a partir da Funarte, passando então para as mãos do Município, no segundo ano, através da Rioarte. E teve-se um terceiro momento, em 1983, no qual o patrocínio passou a ser então pela inciativa privada, através da Petrobrás. Observa-se porém que a interrupção do patrocínio em 1985 ocorreu justamente no ano em que o mercado de jazz se instaurou mais profundamente, com a recém estreia do Free Jazz. O projeto que, nas palavras da produtora Monique Gardenberg havia contribuído para uma “campanha pela música instrumental no Brasil”, tem interrompido seu patrocínio quando outro agente de mercado se instaura. Nesse momento, porém, já pareceu existir um público do segmento formado e sua interrupção causou um efeito contrário, negativo para a imagem da empresa, que correspondeu com o retorno do patrocínio. A partir de então, o Rioarte Instrumental seguiu nesse modelo com algumas intervenções da esfera pública no sentido de dar continuidade, ou mesmo impedir seu fim, tendo sido levado adiante por quinze anos. Esta ação do Estado teve um papel fundamental para o fomento e preservação da MIB, como uma rara opção gratuita dentro de um mercado considerado caro, sustentado por um público de alto poder aquisitivo, que podia pagar pelas noitadas nas casas noturnas da zona sul do RJ ou ingressos para os shows do Free Jazz Festival.

4.2.4 - As conquistas da MIB

A 3ª edição do Free Jazz aconteceu de 2 a 7 de setembro de 1987 no Hotel Nacional e 9 a 13 de setembro no Centro de convenções do Anhembi, em SP, invertendo-se pela primeira vez a ordem das cidades para as apresentações. O nome cogitado para a abertura

189 Eliana Fonseca, produtora dos shows, relata ainda: “terminou na Praça N.S. da Paz, em Ipanema onde foi realizado o último show, em homenagem ao aniversário de morte de Pixinguinha, com a Orquestra Pixinguinha, em frente à Igreja onde ele teria falecido. Esse foi o último show do projeto RioArte Instrumental: isso fechou um ciclo, nunca mais a gente conseguiu voltar com o projeto”. (LEVY, 2010, P.54). 121

foi o de Tom Jobim, mas segundo publicado no JB, o alto cachê pedido pelo compositor (US$20 mil) não foi aceito pela produtora e o contrato não foi fechado.190 A abertura ficou então a cargo do violonista Laurindo de Almeida, radicado nos EUA desde a década de 1950. Houve, pela primeira vez, stands da Hi-Fi discos, com os últimos lançamentos dos artistas, mas com menor parcela de brasileiros: apenas o saxofonista Léo Gandelman e o pianista Rique Pantoja (seu disco de duo com o trompetista Chet Baker) estavam com lançamentos nas lojas.191 O investimento da Souza Cruz este ano era ainda maior: em torno de 1 milhão e 200 mil dólares para o festival (com a divisão girando em torno de 500 mil dólares de cachês e produção, para o qual o retorno de bilheteria é em torno de 25% e 450 mil para mídia). O investimento apostava num retorno de imagem que era maior do que a vendagem de cigarros propriamente dita: os ingressos esgotados para o show de Sarah Vaughan no segundo dia de vendagem são um “indício de um retorno pretendido, através da ligação, já muito forte, entre o festival e o produto (cigarros Free).192 Não era apenas o lado artístico que o festival fomentava, mas também toda uma rede de fornecedores e parceiros, desde a área de sonorização e iluminação (que na 3ª edição ficaram em torno de 60 mil dólares ) como de logística (no caso das passagens aéreas, a Pan Am fornecia como co-patrocinadora; a parte terrestre demandava ônibus e carros de aluguel, motoristas e etc), hospedagem (parceria com rede de hotéis), cathering (empresas de fornecimento de camarim), jornalistas (na 3ª edição foram cerca de 180 credenciados). A reportagem finaliza afirmando que na 1ª edição a Dueto Produções havia ficado no vermelho, no segundo havia empatado, e no terceiro, vinha “pra cima do público”.193 A clara relação mercantilista do patrocínio do festival com seu público se revelava nos eventos satélites ao festival, como no coquetel de abertura, onde a presença de recepcionistas uniformizadas e patrocinadores sorridentes se misturavam às personalidades do campo do jazz e da MIB. Era possível detectar alguns sentimentos de músicos da MIB que, segundo o jornalista, tinham um ar “levemente magoado, embora o dia fosse de festa”:

190 Fonte: http://memoria.bn.br/DocReader/docreader.aspx?bib=030015_10&PagFis=139217. Acessado em 16/06/2016. 191 Fonte: http://memoria.bn.br/DocReader/docreader.aspx?bib=030015_10&PagFis=145127. Acessado em 16/06/2016. 192 Fonte: http://memoria.bn.br/DocReader/DocReader.aspx?bib=030015_10&PagFis=145997. Acessado em 16/06/2016. 193 Fonte: http://memoria.bn.br/DocReader/DocReader.aspx?bib=030015_10&PagFis=145997. Acessado em 16/06/2016.

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“Quem é esquecido durante o ano, de repente está brilhando, diz Antônio Adolfo. Durante o festival, me sinto como uma cinderela; durante o ano todo é aquele negocio de carregar os problemas debaixo do braço, e, de repente, é essa celebração. Não deveria ser assim, afinal merecemos festa o ano inteiro”. (site)194

O festival em sua terceira edição já não era uma novidade, e estavam ficando claras as diferenças entre um evento do porte do Free Jazz, que pagava altos cachês e cumpria com todas as excentricidades dos artistas e o mercado interno do resto do ano, que sobrevivia de cachês de casas noturnas, na maioria das vezes percentuais, ou de shows que dependessem de bilheteria e lutavam para gravar seus discos, numa década de sucessivas crises econômicas. O que o Free Jazz já havia mostrado existir na high life do mundo do jazz contrastava com a realidade do resto do ano para os músicos da MIB. Que o festival provocou um aumento progressivo na vendagem de discos de jazz no mercado fonográfico brasileiro não restam dúvidas, vimos que em 1985 isto começou a se movimentar. Mas qual a parcela dos lançamentos brasileiros, e se o impulso midiático que era dado às produções estrangeiras era o mesmo dado as produções brasileiras, restam dúvidas. A esta altura, já começava a se perceber o efeito do festival no mercado fonográfico. Em matéria de Tárik de Souza no JB de agosto de 87, intitulada “Mercado aquecido”, o crítico diz que o maior cardápio de lançamentos de discos de jazz naquele momento era o da gravadora CBS, e cita 10, sendo 9 norte-americanos e 1 brasileiro, o da cantora/pianista radicada nos EUA Tânia Maria. Diz que o saxofone é o instrumento “privilegiado” e cita os nomes de 7 saxofonistas da atualidade, dentre eles apenas 1 brasileiro, Léo Gandelman. Diz que Miles Davis foi o jazzista mais editado e mais vendido no mercado brasileiro em 1987 e cita outros tantos lançamentos futuros da CBS, todos de jazzistas norte-americanos.195 O Free jazz alimentava a venda de discos de estrelas do jazz norte-americano no Brasil, mas para os artistas da MIB o mercado interno parecia ainda não dispor de confiança suficiente. Além disso, o interesse das gravadoras majors no mercado brasileiro pendia mais para o lado do rock nacional, que estava em plena explosão. O jazz era um segmento paralelo em crescimento, mas de menor interesse frente ao mercado pop-rock, em vias de atingir o ápice de seu crescimento. Ainda assim, com o incremento do mercado e o Free Jazz as gravadoras lançavam no Brasil seus artistas de catálogo, bem como novos lançamentos de artistas que vinham para o festival. Além disso, o jazz já possuía um espaço consagrado junto

194 Fonte: http://memoria.bn.br/DocReader/DocReader.aspx?bib=030015_10&PagFis=146041. Acessado em 16/06/2016. 195 Mateira de 27/08/87. Fonte: http://memoria.bn.br/DocReader/docreader.aspx?bib=030015_10&PagFis=146101. Acessado em 16/06/2016. 123

a grandes gravadoras, há muito tempo e a maioria já possuía uma sucursal instalada no país. A MIB lidava com uma realidade diferente: vimos que muitas vezes os contratos dos músicos com as grandes gravadoras dependia de uma participação no Free Jazz; que poucas gravadoras brasileiras, como a Kuarup e o selo Som da Gente se dedicavam a lançamentos de MIB, ou ainda que produzir de forma independente, sendo dono do próprio selo, era a alternativa. Mas no mercado da “noite” o músico brasileiro dominava. O “aquecimento” para o Free Jazz já era conhecido, e o mercado lotava de shows de música instrumental e jazz. Os mesmos artistas do Free Jazz se apresentavam em bandas, duos e solos nas casas noturnas do RJ, não apenas no consagrado Jazzmania, que mantinha sempre uma banda anfitriã antes, durante e depois do Free Jazz, mas no Mistura Up, People e muitos outros. Na crítica especializada brasileira também começou a conquistar espaços. Em reportagem de 6 páginas na Revista de Domingo do JB em agosto de 87, com uma foto estampada em meia página, onde aparecem de corpo inteiro os pianistas Marcos Ariel, Antonio Adolfo e Guilherme Vergueiro, o violonista Rafael Rabello e o saxofonista Léo Gandelman, o que se lê é a valorização da MIB: “apesar das estrelas estrangeiras, a seleção nacional se prepara para o III Free Jazz Festival disposta a brilhar com a mesma grandeza. O Brasil é o centro da música no mundo, pontificou esta semana o gênio musical Hermeto Pascoal.”196 Rafael Rabello, um virtuose do violão que chegou a ser considerado no meio musical como um “gênio”, afirma na mesma entrevista que “participar do Free Jazz, além de ser uma grande credencial para o músico nacional, está virando um prestigio para os músicos estrangeiros”. E ainda, que o festival de Montreux é “um festival que considero desorganizado, desacreditado lá fora. As noites brasileiras de Montreux acabam como os bailes de Carnaval no Canecão. O Free Jazz dá de 20, e tem um repercussão incrível”.197 A valorização do músico brasileiro surgia nessa edição de forma mais madura, ajudando a modificar o quadro no mercado fonográfico. Léo Gandelman era então um músico de 31 anos, que lançava seu primeiro disco solo após ter participado da gravação de mais de 500 LP’s nos últimos sete anos. Surgia naquele ano como a grande revelação, apesar de já ter participado do I Free jazz com Ricardo Silveira, no show e na gravação da música de abertura do festival. Naquele mesmo ano, sua

196 Matéria de 30/08/87. Fonte: http://memoria.bn.br/DocReader/DocReader.aspx?bib=030015_10&PagFis=146348. Acessado em 16/06/2016. 197 idem

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composição “A ilha” entrou para a trilha sonora da novela da TV Globo “Brega-chic”. Seu primeiro LP “Léo Gandelman” saiu pela gravadora CBS. Pode-se dizer que sua música se tratava de um instrumental pop, linguagem que trazia fresca de seus estudos em Berkley e também por sua atuação no universo pop da MPB (era saxofonista do cantor pop Lulu Santos). A partir desse lançamento Léo Gandelman se destacou como saxofonista do jazz pop no Brasil, e teve inúmeras participações de destaque, uma discografia de 15 lançamentos e inúmeros prêmios. Marcos Ariel, que havia feito seu primeiro lançamento por seu selo independente “Bambú”, em 1981, e a partir daí lançado mais três independentes e um com a Banda Zil198, pela gravadora Continental, e participado da edição anterior do festival para o Anhembi lotado, foi convidado a participar da edição daquele ano no RJ. Após este espetáculo, recebeu de Monique Gardenberg o convite para gravar um novo LP, para pelo selo Musician, da WEA de Midani. Primeiro LP de sua carreira solo lançado por uma gravadora, “Terra do índio” foi o trabalho que após o sucesso de sua participação nos festivais lhe abriu as portas para o exterior, onde realizou lançamentos no ano seguinte. Já Antônio Adolfo possuía uma trajetória a parte: inaugurou o mercado de independentes em 1977 e naquele ano de 1987, já possuía uma discografia independente de 9 discos lançados por seu selo “Artesanal”. Músico formado na bossa nova, reunia em torno de sua apresentação um time de “primeira linha” de músicos brasileiros. Não se interessava mais por um contrato com gravadora: em suas próprias palavras, já havido construído uma “engrenagem própria.”199 A legitimação no festival veio pelas palavras do crítico: “foi uma aula de timing, com a participação de um insuspeitado band leader, a altura dos maiores do jazz”.200 Estes foram alguns espaços conquistados naquele ano de 1987. Os anos finais da década de 1980 se tornarão os mais produtivos em termos de gravação e circulação das obras. O jazz estava agora consolidado no eixo Rio - São Paulo naqueles anos finais da década de 1980. Uma nota de capa do JB anunciava em 02/09/1987: “Conheça um pouco da história deste gênero musical no Rio de Janeiro: uma história de amor que começou com os fox-trots do conjunto de Harry Kosarin, lá pelos idos de 20, enfrentou algumas crises e

198 A Banda Zil foi uma banda semi-instrumental (por possuir um cantor que se utilizava muito de vocalises), formada por Marcos Ariel, Jurim Moreira (bateria), Ricardo Silveira (guitarra), Zé Nogueira (sax), Zé Renato (voz), Claudio Nucci (voz) e Joao Batista (baixo). 199 ibidem 200 Disponivel em: http://memoria.bn.br/DocReader/DocReader.aspx?bib=030015_10&PagFis=146645. Acessado em 16/06/2016. 125

atravessa agora uma nova lua-de-mel”.201 O envolvimento pessoal do Secretário de Cultura do Estado, Eduardo Portella, do secretário extraordinário de comunicação social, Ricardo Boechat e do governador Moreira Franco, para a liberação do piano Steinway D do Teatro Municipal do RJ para o festival, dá uma dimensão do que o festival já havia se tornado. Em troca, a produção deveria contribuir financeiramente para a reforma de outro Steinway do teatro.202 Duas coisas inéditas surgiam nessa terceira edição: a primeira participação de Hermeto Pascoal e um corpo de jurados do JB julgando os shows de 0 a 4 estrelas para cada artista, formado por personalidades do campo. O pianista paulista Guilherme Vergueiro tocou na mesma noite do afamado Chick Corea, que fazia também sua primeira participação no festival. O músico, que já era uma celebridade do jazz, se apresentou com sua Elektric band, trabalho considerado um marco do jazz fusion. O crítico Rafaelli, numa matéria intitulada “Uma lição de modernidade”, consagra Chick Corea na edição de 07/09/1987:

“Fechando a noite de sábado, a Elektric band do tecladista-compositor-arranjador Chick Corea colheu um triunfo consagrador, atendendo a vários bis no final de um concerto que mostrou a diferença entre a criatividade desse e dos demais conjuntos que tocaram música de fusão no festival.’(site).203

Na mesma página, em outra matéria ao lado da matéria de Chick Corea lê-se uma crítica de José Domingos Rafaelli intitulada “Uma surpresa de cair o queixo”, elogiando a performance de Guilherme Vergueiro. O festival caminhava cada vez mais para a heterogeneidade. O jazz e a MIB haviam encontrado um espaço e um estímulo no Brasil para se desterritorializar conforme desejasse. A presença do compositor minimalista Phillip Glass, ou de King Sunny Adé, ou ainda o jazz pop de Léo Gandelman, já eram um sinal desse caminho.

201 Disponível em: http://memoria.bn.br/DocReader/DocReader.aspx?bib=030015_10&PagFis=146497. Acessado em 16/06/2016. 202 Fonte: http://memoria.bn.br/DocReader/DocReader.aspx?bib=030015_10&PagFis=146532. Acessado em 16/06/2016. 203 Fonte: http://memoria.bn.br/DocReader/DocReader.aspx?bib=030015_10&PagFis=146941. Acessado em 16/06/2016.

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Quadro 9: Programação da 3ª edição do Free Jazz Festival, de 2 a 7 de setembro no Hotel Nacional, RJ.

Dia 02 Dia 03 Dia 04 (sexta) Dia 05 Dia 06 Dia 07 Dia 08(terca) (quarta) (quinta) (sábado) (domingo) (segunda) noite extra

Laurindo de Antonio Marcos Ariel Guilherm Rafael Orquestra de Hermeto Almeida Adolfo e Rabello cordas Pascoal Vergueiro dedilhadas de Pernambuco

Michel King Sun- Lee Ritenour Léo Jim Hall Art Blakey & Gil Evans Petrucciani ny Adé Gandelm the Jazz Mes- Orquestra ann sengers

Jim Hall (*) Spyrogyra King Sunny The Chick Phillip Sarah Vaughan Adé Corea Glass Elektric Ensemble Band

(*) O guitarrista Jim Hall substituiu, na última hora, a Gil Evans Orquestra, que não conseguiu chegar ao RJ por problemas no vôo.

Quadro 10: Programação do III Free Jazz Festival no Palácio de Convenções do Anhembi, SP. Dia 09 (quarta) Dia 10 (quinta) Dia 11 Dia 12 (sáb) Dia 13 (dom) (sexta)

Laurindo de Dominguinhos Nivaldo Hermeto Cama de gato Almeida Ornellas Pascoal

Jim Hall e Michel Spiro Gyra Art Blakey & Gil Evans Lee Ritenour Petrucciani The Jazz Orquestra Messengers

Phillip Glass Sarah Vaughan Sarah The Chick King Sunny Adé Ensemble Vaughan Corea Elektric Band

É abandonada a forma de tributo na abertura, mas a fórmula de trazer um brasileiro radicado nos EUA é mantida para a abertura na figura de Laurindo de Almeida. Além da participação solo de Nivaldo Ornellas, o estreante grupo Cama de gato, formado pelos experientes músicos Mauro Senise (sax), Arthur Maia (baixo), Rique Pantoja (teclados) 127

e Pascoal Meirelles (bateria) havia recém-lançado seu primeiro LP pela gravadora Som da Gente, em 1986, com grande impacto no mercado do RJ. A fórmula do encerramento carnaval brasileiro é definitivamente abandonada. O festival seguiu lotando todas as suas edições ainda naquela década. O Free Jazz Festival seguiu até o ano de 2001, com exceção para apenas um ano: o de 1990, ano marcado pela posse de Fernando Collor de Mello na presidência. O Plano Collor lançado no mês de março deste ano confiscou da noite para o dia 80% de todos os depósitos do overnight, das contas correntes ou das cadernetas de poupança que excedessem a NCz$50mil (cruzados novos) e foram congelados por 18 meses. Essa medida teve um impacto muito grande na credibilidade geral, e nesse ano, a Souza Cruz suspendeu o patrocínio impedindo sua realização. O clima era de investimentos a curto prazo, pois não havia confiança na economia para se investir em nada que implicasse em risco, ou que não desse retorno imediato. Isso foi um duro golpe no jovem e frágil mercado fonográfico da MIB naquele ano, um segmento já bem desinteressante para as majors, como explica Manolo Camero:

“A credibilidade para que as matrizes entendessem o investimento[…] você não podia pensar em nada de três anos porque isso era: “fora!” Quando você tem que puxar a rédea, você as vezes o faz em detrimento de algum produto qualitativo, mas que ainda não está te trazendo a volta para a continuidade dele para mais dois anos e aí por diante, você está me entendendo? Aí, você freia projetos que certamente te dariam volta em dois ou três anos, principalmente a música boa!204

A crise que o Plano Collor instaurou, ainda que passageira, no ano de 1990, parece ser um marco divisório onde, a partir daí, o mercado começa a decrescer. As casas noturnas, que ao longo da década fizeram seus nomes ligados ao jazz, também passam a diversificar suas programações a partir de 1990, abrindo espaços para a MPB na tentativa de assegurar sua sobrevivência frente a crise. O Plano Collor caiu feito uma bomba em todo o mercado cultural, não apenas na música, como no cinema (nesse mesmo ano extingue-se a Embrafilme) e as artes em geral (extingue-se também a Funarte).

O Free Jazz Festival sobrevive a crise e vai diversificando a cada ano sua programação em outras direções. Muitos músicos saem do país, ou ficam mantendo os espaços em ambos os países. A partir de 1990 a dominação da música pop americana através

204 O ex-presidente da BMG-Ariola e da ABPD, o empresário Manolo Camero, em entrevista concedida a autora em 27/07/2010. (LEVY, 2010).

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da expansão da indústria fonográfica encontrou seu auge. A partir desse período, a nova mentalidade de operacionalização da indústria fonográfica, voltada para grandes lucros imediatos, impossibilitou o desenvolvimento de produtos que não dessem tal retorno. E o jazz e a música instrumental não davam o retorno imediato que a canção mostrou nessa época ser capaz de dar. Sua operacionalização não se insere num mercado de extrema velocidade de consumo e produção. Em outras palavras, não se insere no mercado do “descartável”, que vinha se instaurando desde o começo década de 1980, em diversos segmentos.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

Os objetivos iniciais dessa pesquisa consistiam em traçar um perfil musicológico do “Brazilian Jazz”no eixo Rio São Paulo na década de 1980, com o objetivo de identificar sua relevância no contexto histórico-cultural do país. Sabia-se de início, que a adoção do termo “Brazilian Jazz” trazia em si um grande problema a ser respondido: o descompasso entre a adoção do termo no exterior e sua pouquíssima adoção no país. Se o tratássemos como o rótulo representativo da música instrumental brasileira produzida no Brasil na década de 1980 estaríamos esbarrando num erro fatal: percebeu-se que a naturalização do termo como um gênero consolidado, transpassava essa questão e deixava uma grande lacuna. Não seria possível naturalizar o termo sem compreender o descompasso. Esse problema indicou o caminho da pesquisa e percebeu-se então que somente através da reconstrução histórica haveríamos de encontrar uma luz que nos desse o ponto de partida. Para isso, optou-se primeiramente por se tratar os campos com distinção, ou seja, a música instrumental brasileira como MIB e o jazz como jazz. Através da pesquisa jornalística na hemeroteca digital buscou-se descrever uma sequência de acontecimentos que foram se apresentando relacionados entre si desde o ponto de partida tomado, em 1976, costurados sob uma ótica multidisciplinar. Percebeu-se que apenas a análise estética não seria suficiente: era fundamental analisar os movimentos do mercado, para uma compreensão crítica do processo. À medida que adentrávamos o processo cultural criticamente, tangíamos questões sócio- culturais de dominação, encontradas em discursos como o de “colonizador” e “colonizado”. Por essa razão, tomar apenas a noção de Canclini para acomodar o “gênero” [processos socioculturais nos quais estruturas ou práticas discretas, que existiam de forma separada, se combinam para gerar novas estruturas, objetos ou práticas, sendo que as ‘práticas discretas’ também são estruturas já hibridizadas (CANCLINI, 2008)] não era mais suficiente para compreender o descompasso. Contextualizar e analisar os fatos parecia ser o caminho. Ao tratarmos como campos distintos, pôde-se compreender as lutas por tomadas de posição. À luz do projeto de modernização da America Latina de Canclini testou-se alguns pontos: a mudança do capital cultural das mãos do Estado para a iniciativa privada e a tomada do jazz como agente “modernizador” dentro de um processo modernizante do país, que vinha desde a segunda metade do século. O mercado do jazz começa a se estabelecer no Brasil em nome dessa modernização, tanto no aspecto cultural quanto no financeiro, onde se instaurava

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já uma abertura de mercado (liberalismo econômico) que se desenvolveria ao longo de toda a década de 1980. A ampliação de mercado das gravadoras multinacionais norte-americanas, ligado ao crescimento vertiginoso da indústria fonográfica em todo o mundo, impulsionou o jazz em novas direções, cujo mercado interno havia se afunilado nos EUA. Essa ótica nos levou a compreensão dos diferentes discursos frente aos acontecidos e a um nível de clareza muito maior sobre como as práticas se combinaram para gerar novas práticas. O que estava em jogo tangia um processo macro, o da modernização do país, operado também a nível micro: como os músicos e público foram se “jazzificando” na década de 1980, até se consolidar um mercado de jazz no eixo Rio São Paulo. O uso do termo “Brazilian jazz” foi, ao mesmo tempo, um problema e uma provocação que nos conduziu até esse ponto. Duas questões permearam o cenário da música instrumental do eixo Rio-São Paulo no limiar da década de 1980: a livre experimentação artística - buscada durante toda a década de 1970 - e as novas lógicas de mercado. O desejo de experimentação, representado nas figuras de Hermeto Pascoal e Egberto Gismonti rompia as barreiras do discurso nacionalista, hibridizando elementos diversos e ilimitados da música brasileira, contemporânea e do jazz, abrindo novos caminhos. Os festivais de 1978 e 1980 instauraram no eixo Rio-São Paulo o começo de uma “cultura do jazz”, representados pela importação de estrelas e sustentado pelos músicos da MIB, que atuavam no duplo mercado crescente. Seu projeto de implementação consistiu em se introduzir no frágil mercado da MIB no eixo Rio-São Paulo no final da década de 1970. Os festivais de jazz compunham uma programação, por vezes equilibrada, entre as “as estrelas do jazz” e a “constelação da MIB”, criando uma dupla visibilidade através de seus representantes: para uma música que era entendida como jazz, feita por jazzistas estrangeiros, e outra, que ora era entendida como jazz, ora como MIB, feita por músicos brasileiros. O mesmo mercado passou a operar sob dois rótulos: jazz e MIB, e os conceitos muitas vezes se misturaram. Nessa hibridação, o mercado se desenvolveu tanto por ações de preservação e difusão, promovidas pelo Estado, quanto pelos investimentos da iniciativa privada: o Estado sustenta a MIB e o mercado investe no jazz, e ambos frequentam os mesmos palcos. Esse desenho se estende até os anos finais da década de 80, a despeito das grandes dificuldades econômicas da década, entrando em decadência a partir do Plano Collor, em 1990. Nesse novo desenho, gêneros brasileiros procuravam se renovar para conquistar seu espaço no novo cenário, ao qual Hermínio Bello de Carvalho denominou de “invasão da música estrangeira no país”. No Brasil, o jazz fusion foi o rótulo que mais favoreceu esse 131

movimento de desterritorialização do jazz e da MIB. A entrada de gêneros norte-americanos no país desde o começo do século, a crescente aproximação com o jazz até a formação de músicos brasileiros nos EUA foram fatores que contribuíram para que a MIB fosse cada vez mais se hibridizando. O elemento improviso, assimilado no seio da música instrumental brasileira é o mínimo denominador comum e o fator de interseção com o jazz; a semelhança, mesmo que tudo o mais fosse a diferença. No campo do jazz contemporâneo, entendemos que todas as diferenças são assimiladas pelo jazz, sem distinção, desde que possuam essa semelhança, que aqui denominamos de “espírito jazzístico”. Essa desterritorialização do jazz na década de 1980 e o consequente aumento de sua hibridação com a música brasileira, agora percebida como interceptada pelo jazz através da semelhança, favoreceu a apropriação da produção brasileira de música instrumental e sua inclusão no universo do termo “Brazilian Jazz”, no qual já estavam inseridas a Bossa Nova e a MIB da década de 1970. Nesse processo, no nosso entendimento, territorializa-se novamente a produção, ao denominá-la de “Brazilian Jazz”, ou jazz brasileiro, e portanto, jazz. À luz dessa ideia de apropriação cultural compreendem-se todos os processos de aproximação com o território do brasileiro, desde sua nomeação como jazz, como da apropriação de elementos musicais hibridizados nas produções de músicos norte-americanos. Apesar disso, o termo Jazz Brasileiro só veio a ser adotado no país recentemente. Durante os anos 1980, não era reconhecido como tal, e sim, como MIB. A resistência dos músicos brasileiros em não adotar o termo jazz para sua música pode ter garantido sua sobrevivência a posteriori, na década de 90, quando o mercado do jazz começou a ruir. A MIB prosseguiu como MIB até os dias de hoje; o termo sobreviveu à década de 1990, especialmente no diálogo com formas de choro e samba, e aos anos 2000, mesmo que muitas vezes desgastado. O “Brazilian jazz” foi cada vez mais adotado no exterior, e posteriormente, como vimos, sua tradução no mercado interno brasileiro. Atualmente, assiste-se a um movimento de “renovação” do jazz, gerando um novo mercado considerado ainda incipiente. Isso nos prova como as questões puramente mercadológicas influenciam diretamente as escolhas dos agentes do campo, e suas jogadas no tabuleiro da indústria cultural. Este trabalho contribui para a musicologia brasileira oferecendo um panorama da música instrumental e do jazz no eixo Rio-São Paulo da década de 1980. Contribui também para identificar um processo cultural que se desenvolveu dentro de um projeto macro de modernização do país, no qual estava inserido e a serviço. Viu-se como a música instrumental brasileira se desenvolveu dentro desse cenário, onde as fronteiras foram borradas e os espaços

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compartilhados. E como a relação entre os artistas brasileiros e norte-americanos foi por vezes ambígua por compartilharem o mesmo “feeling” e terem mútua admiração musical entre si. Dos pontos que não foi possível responder com esse trabalho, destaca-se um que está relacionado às consequências do impacto das trocas artísticas entre músicos brasileiros e norte-americanos na representatividade da MIB no exterior. Percebeu-se ao longo deste trabalho que a música brasileira contribuiu fortemente no desenvolvimento do jazz, e a continuação dessa investigação, a partir do período aqui estudado, é de interesse dessa pesquisadora. 133

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ANEXOS

Anexo 1 - Capa do álbum “Águia não come mosca” - 1º. álbum do Grupo Azymuth.

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Anexo 2 - Cartaz do 1º.Festival Internacional de Jazz São Paulo/Montreux.

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Anexo 3 - Fotografia de Hermeto Pascoal e Chick Corea no I Festival Internacional do Jazz, no Palácio de Convenções do Anhembi, SP, em 1978 (Foto: Bernardino G. Novo / CEDOC FPA).

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Anexo 4 - Capa de Miécio Caffé para o álbum do Grupo Divina Increnca.

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Anexo 5 – Hermeto Pascoal e Grupo no II Festival Internacional de Jazz de São Paulo- Montreux, 1980. (Foto: Júlio C.Soares/CEDOC FPA).

Anexo 6 - Cartaz do Rio Jazz Monterrey Festival - 1980.

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Anexo 7 - Partitura manuscrita de Bambú, de Marcos Ariel. Fonte: Acervo pessoal do artista.

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Anexo 8 -Partitura editada de Baiana (Cláudio Bertrami), faixa 1 do primeiro álbum do grupo.

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Anexo 9 - Logotipo do Free Jazz Festival, 1985.

Anexo 10 - Anúncio de jornal da 2ª. edição do Free Jazz Festival, em1 setembro/1986. Fonte: http://raycharlesvideomuseum.blogspot.com.br/2012/03/ray-charles-live-in-rio-1986.html

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Anexo 11 - Moacir Santos homenageado na 1ª edição do Free Jazz Festival, em 1985. Da esquerda para direita: Moacir Santos (sax barítono), Zé Nogueira (tenor), José Carlos Bigorna (alto) e Bidinho (trompete). Fonte: https://comendadoralbuquerque.wordpress.com/tag/free- jazz-festival/.

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Anexo12 - Programação do 11º Festival de Jazz de Montreux na Suíça- 1977.

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Anexo13 - Quadro de Apresentacão do Grupo Azymuth no Programa do 11º Festival de Jazz de Montreux.