Anistia. Memória e Justiça

Cecília Coimbra E mais: As marcas indeléveis da tortura >> Elena Battaglini A política na condução do Castor Ruiz desenvolvimento sustentável Esquecer a violência: uma segunda >> Paul Freston injustiça às vítimas Protestantismo e catolicismo na América Latina: desafios da 358 democracia e do Ano X José De La Fuente pluralismo religioso 18.04.2011 Pinochet e a herança grotesca da ditadura ISSN 1981-8769 Anistia. Memória e Justiça

Países como Argentina, África do Sul, Chile e Espanha, entre outros, têm, no que se refere à anistia, à memória e à justiça dos crimes cometidos durante os regimes ditatoriais que assolaram seus povos, uma experiência diferente da nossa, no Brasil. Mais de 40 anos depois do golpe militar de 1964, ainda não conseguimos desatar este nó. A presente edição da revista IHU On-Line volta a debater o tema neste início do governo da presidenta Dilma Rousseff. Para o presidente da Comissão Nacional de Anistia e secretário nacional do Ministério da Justiça, Pau- lo Abrão, o Brasil tem o maior programa de reparações já empreendido desde o final da II Guerra. Mesmo assim, o tabu em torno de temas como a tortura é uma realidade. Na opinião do filósofo espanholCastor Ruiz, professor e pesquisador da , um Estado que compactua com o esquecimento da violência cometida por seus funcionários, instituições e estruturas permite a reprodução da barbárie como norma- lidade política, além de transmitir sensação de impunidade. O também espanhol Reyes Mate, filósofo, acentua que a ditadura franquista foi tão longa que, quando terminou, as pessoas haviam se esquecido da crueldade inicial. As universidades de seu país foram submetidas a “tomismo-leninismo”. Para a presidente do Grupo Tortura Nunca Mais, do Rio de Janeiro, Cecília Coimbra, ex-presa política torturada no DOI-CODI, a coisificação do ser humano, que vira apenas um outro perigoso, dá uma pálida noção do que significa a tortura. A produção de subjetividades criminosas e a criminalização da pobreza esteiam essa prática inadmissível. O Parque da Memória, um monumento para não esquecer o terrorismo de Estado, em Buenos Aires, é o tema debatido pela presidente da instituição, Nora Hochbaum. Manter viva a história de homens e mulheres que morreram vítimas da ditadura argentina é a grande luta que empreendem. O professor chileno José De La Fuente fala sobre a herança grotesca da ditadura de Pinochet, julga- do como ladrão antes de sua morte. Ele menciona, ainda, a estreita colaboração entre os países latino- americanos na Operação Condor, trocando know-how de tortura. O filósofoEdson Teles, o mais jovem preso político brasileiro da ditadura militar, afirma que a apuração da verdade é o grande medo das instituições militares, que temem pelos erros cometidos no passado. Na análise do advogado José Carlos Moreira Filho, professor e pesquisador da PUCRS, anistia não significa esquecimento ou amnésia. Prevendo seu fim, a ditadura brasileira criou o expediente da anistia, apli- cada de forma vaga. Uma entrevista com o advogado Jair Krischke completa a presente edição, examinando a lei da anistia e o esquecimento da barbárie da ditadura. “A verdade completa sobre o terrorismo de Estado brasileiro precisa vir à tona”. Os avanços tecnológicos e os desafios da educação são o tema do artigo da professora e coordenadora pedagógica da Modalidade EJA no Município de Dois Irmãos, RS, Nadia Helena Schneider. A socióloga italiana Elena Battaglini, professora da Universidade de Roma La Sapienza e da Faculda- de de Arquitetura de Roma Tre, na entrevista publicada nesta edição fala sobre a política na condução do desenvolvimento sustentável. A narrativa da história de vida do historiador Claudio Pereira Elmir, completa esta edição. Na próxima semana a revista IHU On-Line não será publicada. Ela volta a circular, normalmente, no dia 02 de maio de 2011, segunda-feira. A todas e todos uma boa leitura, uma excelente semana e uma Feliz Páscoa!

IHU On-Line é a revista semanal do Instituto Humanitas Unisinos – IHU – Universidade do Vale do Rio dos Sinos - Unisinos. ISSN 1981-8769. Diretor da Revista IHU On-Line: Inácio Neutzling (inacio@unisinos. br). Editora executiva: Graziela Wolfart MTB 13159 ([email protected]). Redação: Anelise Zanoni MTB 9816 ([email protected]), Márcia Junges MTB 9447 ([email protected]) e Patricia Fachin MTB 13062 ([email protected]). Revisão: Isaque Correa ([email protected]). Colaboração: César Sanson, André Langer e Darli Sampaio, do Centro de Pesquisa e Apoio aos Trabalhadores – CEPAT, de Curitiba-PR. Projeto gráfico: Bistrô de Design Ltda e Patricia Fachin. Atualização diária do sítio: Inácio Neutzling, Greyce Vargas ([email protected]), Rafaela Kley e Stefanie Telles. IHU On-Line pode ser acessada às segundas-feiras, no sítio www.ihu.unisinos.br. Sua versão impressa circula às terças-feiras, a partir das 8h, na Unisinos. Apoio: Comunidade dos Jesuítas - Residência Conceição. Instituto Humanitas Unisinos - Diretor: Prof. Dr. Inácio Neutzling. Gerente Administrativo: Jacinto Schneider ([email protected]). Endereço: Av. Unisinos, 950 – São Leopoldo, RS. CEP 93022-000 E-mail: [email protected]. Fone: 51 E x p e d i e n t e 3591.1122 – ramal 4128. E-mail do IHU: [email protected] - ramal 4121. Leia nesta edição

PÁGINA 02 | Editorial

A. Tema de capa

» Entrevistas PÁGINA 05 | Cecília Coimbra: As marcas indeléveis da tortura PÁGINA 10 | Castor Ruiz: Esquecer a violência: uma segunda injustiça às vítimas PÁGINA 16 | Edson Teles: A apuração da verdade: grande medo das instituições militares PÁGINA 19 | Jair Krischke: A lei da anistia e o esquecimento da barbárie da ditadura PÁGINA 22 | José Carlos Moreira Filho: A anistia não é esquecimento ou amnésia PÁGINA 27 | José De La Fuente: Pinochet e a herança grotesca da ditadura PÁGINA 34 | Nora Hochbaum: Parque da Memória, um monumento para não esquecer o terrorismo de Estado PÁGINA 38 | Paulo Abrão: A ditadura e a cultura do medo PÁGINA 40 | Reyes Mate: Justiça, o dever da memória

B. Destaques da semana

» Teologia Pública PÁGINA 43 | Paul Freston: Protestantismo e catolicismo na América Latina: desafios da democracia e do pluralismo religioso » Entrevista da Semana PÁGINA 46 | Elena Battaglini: A política na condução do desenvolvimento sustentável » Coluna do Cepos PÁGINA 48 | Nadia Helena Schneider: Avanços tecnológicos e os desafios da educação » Destaques On-Line PÁGINA 50 | Destaques On-Line

C. IHU em Revista

» Eventos » IHU Repórter PÁGINA 54 | Cláudio Pereira Elmir SÃO LEOPOLDO, 18 DE ABRIL DE 2011 | EDIÇÃO 358   SÃO LEOPOLDO, 18 DE ABRIL DE 2011 | EDIÇÃO 358 As marcas indeléveis da tortura Coisificação do ser humano, que vira apenas um outro perigoso, dá uma pálida noção do que significa a tortura, afirma Cecília Coimbra, ex-presa política.rodução P de subjetivi- dades criminosas e criminalização da pobreza esteiam essa prática inadmissível

Por Márcia Junges

ós, que passamos pela tortura, podemos afirmar que ela é algo indizível. Ela desuma- niza, vê o outro como objeto, como seu inimigo”. Contundentes, verdadeiras, essas palavras foram ditas por Cecília Coimbra, presidente do Grupo Tortura Nunca Mais (www.torturanuncamais-rj.org.br), do Rio de Janeiro, na entrevista que concedeu por telefone à IHU On-Line. Presa política de agosto a novembro de 1970, ficou dois dias “Nno DOPS e o restante do tempo no DOI-CODI. Foi torturada, e garante que as marcas são inapagáveis, pois permanecem na alma de quem passou por esse horror. Contudo, é preciso saber o que fazer com essas mar- cas: “Elas devem ser instrumentos de luta. Elas mostram como é você ser olhada pelo outro como se fosse um simples objeto perigoso”. A exportação de know-how de tortura made in para outros para outros países latino-america- nos e a violência de Estado que continua a aterrorizar a população também foram abordados na con- versa com a IHU On-Line. Ela enfatiza que a sociedade brasileira deveria indignar-se quando acontece tortura e violência não apenas junto à classe média ou alta, mas também junto às classes mais pobres: “Em nome da história, temos que pensar o presente criticamente”. As conquistas do Grupo Tortura Nunca Mais são outro tema que suscita reflexões. Militante do Partido Comunista, Cecília Coimbra era estudante do curso de História. A seguir, já professora, aproximou-se do Movimento Revolucionário 8 de Outubro – MR8 e iniciou a graduação em Psicologia. É professora aposentada, porém mantendo vínculo com o Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal Fluminense - UFF. Interessada no nexo que une a psicologia à di- tadura, afirma que não se trata de acaso o fato desta ciência e da psicanálise terem se desenvolvido tanto em nosso país no período autoritário. Ex-integrante do Conselho Regional de Psicologia, foi presi- dente da Comissão Nacional de Direitos Humanos do Conselho Federal de Psicologia. À frente do Tortura Nunca Mais, trava batalha incessante em nome da verdade e da memória de um período sombrio de nossa história. Confira a entrevista.

IHU On-Line - Qual é a importância são fundamentais de serem trazidas e Aqui existe toda uma lógica de pro- de se resgatar a memória histórica resgatadas para a sociedade, de serem dução de esquecimento e silenciamen- do período da ditadura brasileira? afirmadas pelas diferentes pessoas que to, bem diferente do que aconteceu e Cecília Coimbra - No Brasil há uma ten- foram atores e testemunhas desse perío- que vem ocorrendo nos países latino- dência em se desqualificar a memória, do. Essa é a luta do Grupo Tortura Nunca americanos que passaram por situa- de não ligar para fatos históricos e do- Mais, do Rio de Janeiro, que existe há ções políticas semelhantes. A questão cumentos, de um modo geral, que não 26 anos, surgido logo após o período da da memória é fundamental principal- são levados a sério ou em consideração ditadura civil militar, porque as questões mente para as novas gerações. Sou pelos diferentes governos. Isso se dá, so- referentes a esse período estavam sendo professora universitária e sei como as bretudo, em relação ao período da dita- jogadas para baixo do tapete. Assim, o novas gerações ignoram esses fatos. É dura civil militar que se abateu em nosso Grupo surge num momento em que ha- como se houvesse uma lacuna nesse país, em especial a partir de 1968, com via um clamor na sociedade brasileira período histórico da ditadura. o AI-5, quando se instala o terrorismo de para que pudéssemos conhecer nossa Há alguns dias recebi um e-mail de Estado e a tortura passa a ser instrumen- história, algo que foi e continua sendo uma ex-aluna, psicóloga, que está tra- to oficial. As memórias desse período negado. balhando no Centro de Direitos Huma- SÃO LEOPOLDO, 18 DE ABRIL DE 2011 | EDIÇÃO 358  nos de Petrópolis, onde estão fazendo “Durante algum tempo, esses arquivos não são pessoais coisís- um levantamento e uma campanha mui- sima alguma. Esses arquivos são rouba- to bonita para que a chamada Casa da enquanto estive presa, dos da nação. Isso é crime e o governo Morte (aparelho clandestino da repres- federal sabe disso em suas diferentes são que funcionou em Petrópolis numa acreditei que meu filho gestões. casa alugada pelo Centro de Informa- ções do Exército) seja transformada em havia sido entregue ao IHU On-Line - Qual é a expectativa museu da memória. Isso emocionou-me sobre esse tema a partir do governo muito, pois as novas gerações já estão juizado de menores. Dilma? se apropriando da história. Por isso, re- Cecília Coimbra - Como ex-presa polí- pito que a questão da memória é fun- Era o que me diziam” tica que fui, e com todo respeito pela damental, para que conheçamos mais história da Dilma e de outros compa- sobre nosso passado. ção espanhola. Vemos a participação nheiros, digo que a tortura, a prisão e da população da Argentina de forma o testemunho de sofrimento de vários IHU On-Line - Por que inúmeros ou- ativa na questão dos mortos e desa- companheiros e da morte de outros são tros países da América Latina já re- parecidos políticos. O Brasil caminha marcas que estão nos nossos corpos, solveram suas contas com o passado timidamente nessa direção. A socieda- invisibilizadas, muitas vezes. Aqueles autoritário e nós ainda engatinhamos de brasileira não sabe, em absoluto, que conseguiram sobreviver, como nesse processo? Por que há tanta di- dos arbítrios e das perversidades que nós, sabem que essas marcas não se ficuldade do Brasil lidar com seu pas- foram cometidos durante aquele perí- apagam nunca. Espero que essas mar- sado ditatorial? odo. Isso é desconhecido pela maioria cas que estão no corpo e na mente da Cecília Coimbra - Realmente, o Brasil da população. É uma série de forças presidenta possam ter um eco mais ainda está engatinhando nessa ques- que entram em jogo nessa questão. forte do que as alianças políticas que tão. Somos o último país na América Na Argentina, com o governo de Al- estão sendo feitas. Latina a efetivar um processo de repa- fonsín, houve uma ruptura com o con- ração. Nos anos 1970 fomos campeões servadorismo anterior. No Brasil não IHU On-Line - Quais são as semelhan- na exportação do know-how de tortura houve essa ruptura. O que houve, aqui, ças entre as ditaduras do Brasil e do para as ditaduras latino-americanas. foi uma política de continuidade, tanto restante da América? Nessa lógica, Exportamos manuais de tortura e tor- que a anistia vem em pleno período de como a Operação Condor serviu de turadores. Temos informações de que ditadura. A anistia foi imposta. Nós per- padronização aos atos desses totali- no Chile, Argentina e Uruguai havia demos no Congresso Nacional por cinco tarismos? torturadores brasileiros participando votos. Em 1978-79, exigíamos, junto Cecília Coimbra - As diferenças en- de interrogatórios. O Brasil, que foi o dos movimentos sociais, uma anistia tre as ditaduras latino-americanas são campeão de exportação de tortura nos ampla, geral e irrestrita. Ela não veio várias. No Brasil sempre houve uma anos 1970, hoje é uma das nações mais assim. A anisitia que foi vencedora no propaganda intensa com relação aos atrasadas do continente. Isso porque Congresso nacional foi a anistia que vi- direitos humanos. Nos anos 1940 e o processo de reparação, como a pró- nha do governo militar, extremamente 1950 tratava-se de um anticomunismo pria ONU diz, é um processo no qual reduzida, fruto de alianças que conti- ferrenho. Hoje, vemos os meios de co- primeiramente se investigam e escla- nuam hoje. Os governos civis de 1985 municação de massa fazerem uma es- recem as circunstâncias das mortes, para cá fizeram parcerias e alianças pécie de continuidade a essa posição. desaparecimentos e das prisões arbi- com as forças conservadoras e até re- Precisamos pensar em não naturalizar trárias cometidas naquele período. O acionárias que respaldaram o período o que está acontecendo hoje com re- Brasil é o último, nesse sentido. Isso de terrorismo de estado. Por isso, até lação à violência urbana e rural. Rotu- porque começamos pelo final do pro- hoje não há vontade política efetiva la-se para que se criminalizem e des- cesso de reparação. É como se fosse dos governos para que essa história qualifiquem os diferentes movimentos um “cala a boca”. possa ser contada efetivamente. Boa sociais. Antes éramos chamados de parte de nossos arquivos foi queimada, terroristas, de inimigos da pátria, Vontade política mas ainda resta outra parte. Isso é dito aqueles que colocavam em risco a se- pela imprensa. Alguns militares, como gurança nacional. Hoje, o alvo é a po- Desde 1995, com Fernando Henri- Sebastião Curió, um dos repressores breza, que cada vez mais, sobretudo que Cardoso, foi instalada uma Comis- da guerrilha do Araguaia, e o falecido em função desse período autoritário, são Especial de Mortos e Desaparecidos general Bandeira, têm arquivos ditos é apontada como perigosa. O Brasil Políticos e, muito timidamente, vai-se pessoais. Quero dizer claramente que promove uma forte desqualificação e tentando esclarecer algumas ques- criminalização da pobreza e dos mo-  Raúl Ricardo Alfonsín: foi um advogado e tões relativas a esse assunto. Por que político argentino, presidiu o país de 1983 a vimentos sociais. Isso ocorre também isso? Por muitos fatores. Temos uma 1989. Foi uma das figuras mais importantes da no restante da América Latina. É a história muito diferente dos demais história de seu partido, a União Cívica Radical. chamada formação das “classes peri- Faleceu em 2009. (Nota da IHU On-Line) países da América Latina, de coloniza- gosas”, daqueles que põem em risco

 SÃO LEOPOLDO, 18 DE ABRIL DE 2011 | EDIÇÃO 358 nossa segurança, algo que tem muito “Só quando nos sentimos fingimos que não vemos. a ver com a doutrina de segurança na- Torturar é um treinamento. E isso cional, instaurada em toda a América objeto na mão do outro é ainda vem acontecendo nas Forças Ar- Latina naquele período. madas, nas Polícias Militares, nos Bopes Atualmente, vemos os mesmos dis- que podemos nos acercar “da vida”, no Rio de Janeiro. Lembro positivos que foram aplicados pela di- desse comportamento dos torturado- tadura sendo aplicados à pobreza. Te- da dimensão terrível da res do DOI-CODI onde estive presa, na mos que chamar a atenção para isso. Polícia do Exército. Há todo um treina- Os pobres são criminalizados como se tortura” mento no qual você é levado para ver todos fossem traficantes e bandidos. o outro não como um ser humano, mas Como se toda favela fosse reduto de IHU On-Line - Sob quais aspectos a como uma coisa perigosa que deve ser assassinos. Essas políticas são planetá- tortura é uma desumanização do exterminada. Em psicologia, falamos rias, fascistas e mais do que conserva- humano por parte do algoz e da ví- em produção de subjetividade. Produ- doras, discriminatórias. O pior é que tima? zem-se sujeitos perigosos, descartá- a população aplaude. Produz-se algo Cecília Coimbra - Nós, que passamos veis e não humanos. Toda pessoa que muito parecido com o que se produziu pela tortura, podemos afirmar que ela já tenha sido presa e torturada em sua naquele período em termos de propa- é algo indizível. A luta contra a tortura vida sabe disso. Essas marcas não se ganda oficial. Em nome da minha se- está acima de qualquer pendência po- apagam nunca. Devemos saber o que gurança, devo vigiar o outro e, se pos- lítica, de qualquer partido político. A fazer com essas marcas. Não podemos sível, prendê-lo e eliminá-lo, pois ele tortura desumaniza, vê o outro como encarnar o papel de vítimas, mas usar é um perigo para a minha segurança. objeto, como seu inimigo. A questão essas marcas como instrumentos de Isso é doutrina de segurança nacional. da doutrina de segurança nacional, luta. Elas mostram como é você ser que é a produção do inimigo interno, olhada pelo outro como se fosse um Operação Condor cria uma paranoia na sociedade, em simples objeto, perigoso. Então, é que uma insegurança e um terror são uma desumanidade de quem aplica e  A Operação Condor não se forma implantados. Aquele que está ao seu de quem sofre. de uma hora para a outra. Em 1969, lado pode ser seu inimigo. Isso hoje é tinha um amigo preso no Uruguai, produzidíssimo e muito aceito pela so- IHU On-Line - A tortura é um produto trazido cladestinamente ao Brasil e ciedade em geral. As novelas apontam da barbárie ou da hiper-racionaliza- trocado por tupamaros que estavam isso reiteradamente através da figura ção do humano? presos, também clandestinos, em Por- do psicopata. Estamos vivendo num Cecília Coimbra - Não acredito na to Alegre. Essa ligação dos serviços de mundo em que não se pode confiar em noção do instinto. Sou crítica a uma informação começa a ser feita bem ninguém, onde a paranoia grassa. Isso determinada leitura hegemônica da antes de alguns golpes militares serem tem muito a ver com os dispositivos psicanálise. Trabalho com autores da dados, como é o caso do Chile. Havia produzidos pela ditadura civil militar filosofia da diferença, como Deleu-    essa cooperação, efetivamente. Mais no Brasil, embora esse seja um fenô- ze , Guattari e Foucault , que falam 0 Batalhão de Operações Especiais tarde, registra-se o sequestro de Uni- meno planetário hoje. Estou falando versindo Dias e Lilian Celiberti. Vai se (Bope), do Rio de Janeiro. (Nota IHU On- na produção da insegurança, do medo, Line) formando, aos poucos, uma colabora- do terror. ção entre os serviços de informação,  Gilles Deleuze (1925-1995): filósofo fran- Lembro de uma frase da Marilena cês. Assim como Foucault, foi um dos estudio- sobretudo no Cone Sul, para a troca  Chauí que me impactou sobremaneira. sos de Kant, mas tem em Bérgson, Nietzsche não apenas de prisioneiros, mas de Ela disse que a tortura é como se fos- e Espinosa, poderosas interseções. Professor da Universidade de Paris VIII, Vincennes, De- informações. Isso veio dar na chama- se um teatro: você pensa que isso não da Operação Condor. Após o golpe do leuze atualizou ideias como as de devir, acon- está acontecendo com você, é um pe- tecimentos, singularidades, conceitos que nos Chile, esse tipo de “irmandade” se in- sadelo. A violência é tamanha que não impelem a transformar a nós mesmos, inci- tando-nos a produzir espaços de criação e de tensifica, torna-se mais técnica, cien- há como explicar. Por mais que se leia tífica. O Brasil participou disso. Diz-se produção de acontecimentos-outros. (Nota da o que ela é, como eu havia feito antes IHU On-Line) que pouco participamos da Operação da minha prisão, não se tem noção do  Pierre-Félix Guattari (1930-1992): filósofo e militante revolucionário francês. Colabo- Condor. Em absoluto! Temos vários que ela significa antes de vivenciar essa brasileiros desaparecidos “graças” à rou durante muitos anos com Gilles Deleuze, experiência. Só quando nos sentimos escrevendo com este, entre outros, os livros Operação Condor. objeto na mão do outro é que podemos Anti-Édipo, Capitalismo e Esquizofrenia e O que é Filosofia?. Félix Guattari, dotado de um nos acercar da dimensão terrível da estilo literário incomparável, é, de longe, um 0 Leia mais na entrevista especial com Neu- tortura. E digo que isso a pobreza vem dos maiores inventores conceituais do final do sa Maria Romanzini Pires, publicada no dia sentindo na carne constantemente. E século XX. Esquizoanálise, transversalidade, 28-05-2007 em Notícias do Dia. Disponível em ecosofia, caosmose, entre outros, são alguns http://bit.ly/fGZVIa 0 Marilena Chauí: filósofa brasileira reconhe- dos conceitos criados e desenvolvidos pelo au- 0 Universindo Dias e Lilian Celiberti: casal cida pela sua ativa participação no contexto tor. (Nota da IHU On-Line) de militantes da oposição uruguaia. (Nota da do pensamento e política brasileira. (Nota IHU  Michel Foucault (1926-1984): filósofo fran- IHU On-Line) On-Line) cês. Suas obras, desde a História da Loucu- SÃO LEOPOLDO, 18 DE ABRIL DE 2011 | EDIÇÃO 358  da produção de sujeitos, de como “A sociedade brasileira plementadas e as quais aplaudimos? eles são criados, seus modos de pen- O filósofo italiano Giorgio Agamben10 sar, sentir e agir no mundo de forma não sabe, em absoluto, fala que vivemos um estado de exce- extremamente conservadora. É o que ção. Os campos de concentração estão vemos cada vez mais na grande mídia dos arbítrios e das aí. As polícias ditas comunitárias não hegemônica. têm nada de comunitárias. A pessoa que participa da tortura perversidades que foram Pensar o período da ditadura mili- é treinada a tal ponto que, efetiva- tar, quando muitos filhos da classe mé- mente, acredite que está agindo para cometidos durante dia, como foi meu caso e o da Dilma, o bem estar do país. Os treinamentos foram atingidos, é importante. Mas são para isso. As pessoas são coisas, aquele período. Isso é não podemos ficar indignados apenas as mulheres são todas prostitutas, quando a tortura e o extermínio atin- vagabundas. É o mesmo conceito que desconhecido pela gem determinados segmentos sociais. se aplica às mulheres de homens que Quando atinge segmentos médios e estão aprisionados. O pobre é conside- maioria da população” altos, a sociedade fica indignada, gri- rado bandido e perigoso, e sua família ta, sai às ruas. Mas quando a violência é considerada desestruturada. Nós, atinge segmentos pauperizados e mar- enlouqueceu. É muito difícil dizer por presos políticos, éramos vistos assim. ginalizados, achamos isso natural. Em que alguém se desestruturou e outro A primeira coisa que faziam com as nome da história, temos que pensar o superou a tortura. Até hoje há pesso- mulheres quando presas era despi-las, presente criticamente. as na esquerda que recriminam quem a fim de produzir cada vez mais a sua falou na tortura, quem revelou coisas fragilização. Durante algum tempo, IHU On-Line - Poderia citar algumas durante as sessões. Esses companhei- enquanto estive presa, acreditei que das conquistas do Grupo em relação ros foram rotulados como traidores, meu filho havia sido entregue ao juiza- aos torturadores da ditadura? que colaboraram com a repressão. Di- do de menores. Era o que me diziam. A Cecília Coimbra - O Grupo Tortura Nun- zer isso é de uma perversidade absur- tortura vai sendo produzida no sentido ca Mais surgiu pontualmente a partir da da. Isso é absolver os torturadores. não só de deixá-lo nas mãos dos outros, questão de torturadores ocupando car- mas de acreditar em fatos inventados. gos de confiança num governo popular e IHU On-Line - Que resquícios de vio- Frei Titto, frade dominicano, que se dito democrático, que era o governodor lência ditatorial (incluindo a tortura) suicidou por não suportar a tortura, Leonel Brizola, no Rio de Janeiro. Quan- permanecem em instituições reco- do se descobriu que havia torturadores ra até a História da sexualidade (a qual não nhecidas como a polícia e em insti- pôde completar devido a sua morte) situam- ocupando postos de confiança naquele se dentro de uma filosofia do conhecimento. tuições ilegais, como os grupos de Suas teorias sobre o saber, o poder e o sujeito extermínio? 10 Giorgio Agamben (1942): filósofo italiano. romperam com as concepções modernas des- É professor da Facolta di Design e arti della tes termos, motivo pelo qual é considerado Cecília Coimbra - Quando fazemos IUAV (Veneza), onde ensina Estética, e do Col- por certos autores, contrariando a sua própria análise do que é o Brasil hoje, com lege International de Philosophie de Paris. For- opinião de si mesmo, um pós-moderno. Em suas “políticas de insegurança públi- mado em Direito, foi professor da Universitá di duas edições a IHU On-Line dedicou matéria Macerata, Universitá di Verona e da New York de capa a Foucault: edição 119, de 18-10- ca”, não podemos ignorar o período University, cargo ao qual renunicou em pro- 2004, disponível para download em http://mi- de ditadura civil militar. Enquanto testo à política do governo norte-americano. gre.me/vMiS e a edição 203, de 06-11-2006, essa história não for conhecida e es- Sua produção centra-se nas relações entre fi- disponível em http://migre.me/vMj7. Confi- losofia, literatura, poesia e fundamentalmen- ra, também, a entrevista com o filósofo José sas memórias não forem narradas para te, política. Entre suas principais obras, estão Ternes, concedida à IHU On-Line 325, sob o toda sociedade em termos de sua pu- Homo Sacer: o poder soberano e a vida nua título Foucault, a sociedade panóptica e o su- blicização, continuaremos a naturali- (Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2002), A linguagem jeito histórico, disponível em http://migre. e a morte (Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2005), me/zASO. De 13 a 16 de setembro de 2010 zar a violência que atualmente existe. Infância e história: destruição da experiên- aconteceu o XI Simpósio Internacional IHU: O É comum dizer que violência vem do cia e origem da história (Belo Horizonte: Ed. (des)governo biopolítico da vida humana. Para tráfico, mas a origem é bem anterior e UFMG, 2006); Estado de exceção (São Paulo: maiores informações, acesse http://migre. Boitempo Editorial, 2007), Estâncias – A pa- me/JyaH. Confira a edição 343 da IHU On- estrutural. Ela está presente na socie- lavra e o fantasma na cultura ocidental (Belo Line, intitulada O (des)governo biopolítico da dade capitalista através dos agentes Horizonte: Ed. UFMG, 2007) e Profanações vida humana, publicada em 13-09-2010, dis- do Estado. É o Estado aquele que mais (São Paulo: Boitempo Editorial, 2007). Em 04- ponível em http://bit.ly/bi5U9l, e a edição 09-2007 o site do Instituto Humanitas Unisinos 344, intitulada Biopolitica, estado de excecao viola direitos humanos. São seus agen- – IHU publicou a entrevista “Estado de exce- e vida nua. Um debate, disponível em http:// tes os que mais violam as constitui- ção e biopolítica segundo Giorgio Agamben”, bit.ly/9SQCgl. (Nota da IHU On-Line) ções. Essa herança nefasta do período com o filósofo Jasson da Silva Martins. A edição 236 da IHU On-Line, de 17-09-2007, publicou  Frei Titto: frade católico brasileiro, nasceu da ditadura militar e do Estado Novo a entrevista “Agamben e Heidegger: o âmbito em Fortaleza. Assumiu a direção da Juven- foi pouco falada e avaliada. Falar so- originário de uma nova experiência, ética, po- tude Estudantil Católica em 1963 e foi preso bre esses períodos é poder pensar criti- lítica e direito”, com o filósofo Fabrício Carlos por participar de um congresso clandestino da Zanin. A edição 81 da IHU On-Line, de 27-10- União Nacional dos Estudantes em Ibiúna. Foi camente a respeito do que aconteceu. 2003, teve como tema de capa O Estado de fichado pela polícia e tornou-se alvo de per- Esses passados estão muito presentes. exceção e a vida nua: a lei política moderna. seguição da repressão militar. (Nota da IHU Quais políticas são essas que são im- Para conferir o material, acesse www.unisinos. On-Line) br/ihu. (Nota da IHU On-Line)  SÃO LEOPOLDO, 18 DE ABRIL DE 2011 | EDIÇÃO 358 governo, espontaneamente alguns ex- nossa denúnica, teriam dado laudos fal- ciso colocar as mãos diretamente para presos políticos e familiares de mortos sos sobre os opositores mortos sob tortu- estar envolvido na tortura. A respon- e desaparecidos começaram a se reunir. ra. À época militar era comum dar três sabilidade vem desde a presidência da É quando surge o Tortura Nunca Mais. versões oficiais para as mortes: tiroteio, República, passando pelos diferentes Conseguimos ser ouvidos pelo governo, atropelamento e suicídio. Conseguimos agentes do Estado e esses profissio- coletamos depoimentos através de uma fotos de perícia que mostravam marcas nais, que com suas práticas estão res- Comissão de Defesa de Direitos Huma- de tortura e o teatrinho do “morto em paldando essa máquina mortífera. nos, Segurança Pública e Cidadania. Ini- tiroteio” ou atropelamento. Alguns des- ciamos o afastamento desses colabora- ses médicos foram cassados. dores com a tortura dos cargos públicos A tortura é uma grande máquina que, que ocupavam. Essa foi nossa primeira azeitada por diferentes práticas profis- Baú da IHU On-Line grande vitória, inclusive antes da criação sionais, vai se consolidando. Não são A IHU On-Line já produziu outras edições oficial do Grupo, que se deu em novem- só a Polícia, o Exército, a Marinha ou sobre aos temas abordados nesta publicação. O material está disponível na página eletrônica do bro de 1985. O nome do Grupo foi inspi- a Aeronáutica os responsáveis por tais IHU (www.ihu.unisinos.br). rado na Comissão Sábado da Argentina, práticas. Até o Corpo de Bombeiros teve do governo Alfonsín, e que investigava envolvimento na repressão. Psicólogos, • América Latina: um giro à esquerda? Edição nú- mero 176, de 17-04-2006. Disponível em http:// os crimes cometidos na ditadura daque- psiquiatras, advogados faziam parte da bit.ly/hTyYIp le país. máquina mortífera. Esse era o fim de li- • Intérpretes do Brasil: A redescoberta do Brasil Fizemos inúmeras campanhas no nha, aqueles que legalizavam a tortura. como problema. Edição número 165, de 21-11- 2005. Disponível em http://migre.me/pHNe sentido de impedir que homenagens Alguns médicos que solicitamos investi- • 1985-2005. A Nova República. 20 anos depois. fossem feitas a ex-torturadores. Con- gar foram cassados pelo próprio Conse- Edição 132, de 14-3-2005. Disponível em http:// seguimos que ruas, creches e escolas lho Federal de Medicina. migre.me/pHQ4 • Leonel de Moura Brizola – 1922-2004. Edição nú- aqui no Rio de Janeiro recebessem no- mero 107, de 28-06-2004. Disponível em http:// mes dos opositores mortos e desapa- Escola de tortura bit.ly/f1fwfm recidos durante a ditadura. Isso é algo • O regime militar: a economia, a igreja, a im- prensa e o imaginário. Edição número 96, de 12- inédito a nível mundial e criou juris- Não se trata apenas de uma ques- 04-2004. Disponível em http://bit.ly/ijMw6b prudência. tão de punição, mas da escola que • Hora de passar o Brasil a limpo. Edição núme- essas pessoas fazem na sociedade. Es- ro 95, de 05-04-2004. Disponível em http://bit. ly/cpkXIN Máquina mortífera ses profissionais formaram outros que • O Estado de exceção e a vida nua: A lei política hoje estão em atuação. Atualmente, moderna. Edição número 81, de 27-10-2003. Dis- Abrimos processo no Rio e São Paulo quando um detento é torturado, al- ponível em http://bit.ly/cH3OMb • O mal, a vingança, a memória e o perdão. Edi- contra médicos legistas. Solicitamos aos guns profissionais chegam a dizer que ção número 323, de 29-03-2010. Disponível em Conselhos de Medicina desses estados não se trata de tortura, mas de sarna. http://bit.ly/g9dsF3 que investigassem médicos que, segundo Isso é legitimar a tortura. Não é pre-

21 de maio

Escola de Formação Fé, Política e Trabalho 2011 Da alienação à conscientização para uma prática transformadora da realidade. Assessoria: Prof. Dr. Pedrinho Guareschi – PUC/RS

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SÃO LEOPOLDO, 18 DE ABRIL DE 2011 | EDIÇÃO 358  Esquecer a violência: uma segunda injustiça às vítimas Estado que compactua com o esquecimento da violência cometida por seus funcionários, instituições e estruturas permite a reprodução da barbárie como normalidade política, além de transmitir sensação de impunidade, pondera o filósofo Castor uizR

Por Márcia Junges

m país que ainda não fez a memória de sua violência, “não julgou a nenhum responsável por tortura, morte nem desaparecimento político durante a ditadura militar. A mensagem que com isso se transmite é a de impunidade”. A análise refere-se ao Brasil e parte do filósofo espanhol, radicado no Brasil, Castor Ruiz, na entrevista que concedeu por e-mail à IHU On-Line. A respeito da anistia que aqui se fez, menciona que o expediente foi celebrado tanto por exilados políticos, Upor permitir sua volta e iniciar a transição democrática, quanto pelos agentes da ditadura como verdadeiro trunfo, uma vez que, com uma só cartada, permitia a “impunidade do passado e a transição ‘regrada’ para um regime que não lhes pediria contas de seus atos passados”. Nesse sentido evidencia-se a importância da memória: “A justiça não se faz pelo esquecimento, mas pela memória”, e esquecer a violência é cometer uma segunda injustiça com as vítimas “condenando-as ao desaparecimento definitivo da história”. Professor dos cursos de graduação e pós-graduação em Filosofia da Unisinos, Castor Ruiz é gradu- ado em Filosofia pela Universidade de Comillas, na Espanha, mestre em História pela Universidade Federal do – UFRGS, e doutor em Filosofia pela Universidade de Deusto, Espanha. É pós-doutor pelo Conselho Superior de Investigações Científicas. Escreveu inúmeras obras, das quais destacamos: As encruzilhadas do humanismo. A subjetividade e alteridade ante os dilemas do poder ético (Petrópolis: Vozes, 2006); Propiedad o alteridad, un dilema de los derechos humanos (Bilbao: Universidad de Deusto, 2006); Os Labirintos do Poder. O poder (do) simbólico e os modos de subjetiva- ção (Porto Alegre: Escritos, 2004) e Os Paradoxos do imaginário (São Leopoldo: Unisinos, 2003). Leia, ainda, o livro eletrônico do XI Simpósio Internacional IHU: o (des)governo biopolítico da vida humana, no qual Castor contribui com o artigo A exceção jurídica na biopolítica moderna, disponível em http:// bit.ly/a88wnF. Confira a entrevista.

IHU On-Line - No Brasil estamos vi- realidades, regime autoritário e violên- feito)? É nesta intersecção que, desde vendo uma transição inacabada em cia, é conveniente distingui-las porque a a segunda metade do século XX, vem-se muitos aspectos entre a pós-ditadura superação de cada uma tem dinâmicas elaborando a chamada “justiça de tran- militar e a sociedade democrática. diferentes. É muito mais fácil fazer a sição”. Como podemos pensar a transição de transição de um regime autoritário para A transição de um regime de exceção um regime de exceção para um esta- outro democrático, do que a recupe- para um estado de direito se realizou no do de direito? ração dos efeitos humanos e sociais da Brasil e no caso na Espanha com acor- Castor Ruiz - Todas as experiências de sua violência. A violência produz inexo- dos políticos. Contudo, o problema dos estados de exceção deixam um lastro ravelmente vítimas, cujas vidas se en- acordos políticos é que, em nome da es- de destruição humana. O desafio das contram irremediavelmente truncadas tabilidade do Estado, sacrifica-se, mui- sociedades na pós-ditadura é superar as pela barbárie. Mas também produz vi- tas vezes, a dignidade das vítimas e se marcas da violência. Definitivamente, a timários, responsáveis por essa barbárie ignora a responsabilidade dos vitimários. violência é inerente ao autoritarismo. e que continuam agindo nas instituições Embora a transição do estado de exce- Contudo é mais fácil superar o autori- sociais. Como recuperar a dignidade das ção para estado de direito possa se fazer tarismo (enquanto sistema político) que vítimas? Como fazer justiça às vítimas mediante um acordo de esquecimento. as sequelas da sua violência. Ainda que (restaurando o mal sofrido) e aos viti- As sequelas da violência não podem se se confundam habitualmente estas duas mários (responsabilizando-os pelo mal apagar pelos acordos.

10 SÃO LEOPOLDO, 18 DE ABRIL DE 2011 | EDIÇÃO 358 Violência como normalidade política “Ninguém está a salvo do temor a um novo regime autoritário, a rejeição à ditadura foi alastrando por Na transição pactuada a violência co- do embrutecimento ao todas as esferas sociais. Todos os símbo- metida persiste como continuidade viva los da ditadura foram sumaria e publica- e dolorosa na vida das vítimas, ou na sua qual a violência reduz mente abolidos. Todas as ruas com no- ausência. As marcas da violência não se mes de generais ou símbolos da ditadura anulam pelos meros acordos políticos. A a condição humana do foram mudadas; quase todos os monu- violência provoca um corte profundo no mentos que lembravam a vitória do di- seio da vida humana por ela atingida e, vitimário” tador e seu regime foram retirados. Em como consequência, na sociedade que a poucas décadas todas as instituições do sofre. A vítima sofre os efeitos mais per- histórica. Não é o esquecimento da in- Estado, incluído o Exército, democrati- versos da violência, mas o vitimário tam- justiça que legitima a justiça de transi- zaram-se ao ponto de rejeitar quaisquer bém fica contaminado pela violência; sua ção. A transição histórica não se conclui proximidades com o passado franquista. condição humana fica degradada pela in- com a mudança do regime de governo. Nenhum político ou pessoa pública rele- sensibilidade; torna-se uma permanente Para que essa transição seja completa há vante quer ser associado com quaisquer ameaça de violência para o conjunto da que se levar em conta as vítimas da vio- símbolos do franquismo. sociedade. O vitimário, ainda que seja lência. A injustiça por elas sofrida é, em um agente público (ou talvez ainda pior muitos casos, irreparável, mas em todos O Brasil e os símbolos da ditadura por essa condição), é contaminado pela os casos há responsabilidade (e possi- violência ao ponto de fazer dela um ato bilidade) histórica de suturar as feridas Entendo que esta, entre outras, é e normalidade política. Ninguém está a abertas pela violência. Esta sutura, que uma matéria pendente da transição po- salvo do embrutecimento ao qual a vio- tornará viável a transição social e não só lítica no Brasil. A maioria, por não dizer, lência reduz a condição humana do viti- política, só é possível através de atos de a totalidade dos símbolos da ditadura mário. Ele, quando não se faz a devida justiça reparadora. Não existem a priori permanecem onde estavam. Muitas das responsabilização social dos seus atos, formais nem contratuais que possam se principais ruas, praças, colégios e outros torna-se uma ameaça potencial. aplicar numa justiça de reparação. Cada símbolos públicos continuam se denomi-   A violência contamina tudo o que conjuntura histórica haverá de encon- nando Castelo Branco , Costa e Silva , toca: pessoas, valores, instituições, há- trar o meio mais justo de fazer justiça bitos, leis, etc. Ela tem uma potência às vítimas da violência estrutural. Em contaminante das pessoas, da cultura e qualquer caso, e em todos os casos, a das instituições. O estado de exceção é condição necessária para que a justiça uma forma política de extrema violência de transição seja justa é fazer memória que contamina a sociedade, as institui- das vítimas. A justiça não se faz pelo es- ções, os valores e as pessoas que com ele quecimento, mas pela memória. compactuam. A sociedade sob o estado de exceção fica irremediavelmente mar- IHU On-Line - Que paralelismos e di- cada pela violência ao ponto dos mode- ferenças haveria entre a transição los políticos contratualistas de acordos política da Espanha, após a ditadura formais tornarem-se insuficientes para de Franco, e a experiência de transi-  Humberto de Alencar Castello Branco apagar as suas marcas. ção no Brasil? (1900-1967): ditador militar e político bra- A violência, por ser a negação da Castor Ruiz - Os contextos de transição sileiro, presidente da República designado vida humana, é o ato de injustiça por após o Golpe Militar de 1964. Nomeado chefe política de Espanha e Brasil têm alguns do Estado-Maior do Exército por João Goulart excelência. As marcas da violência, da pontos comuns e diferentes. Na Espanha, em 1963, Castello Branco foi um dos líderes sua injustiça, permanecem nos corpos ainda quando da morte de Franco os mi- do Golpe de Estado de 31 de março de 1964, dos torturados, das vidas exiladas cujo que depôs Goulart. Eleito presidente pelo Con- litares mantinham o poder férreo, todas gresso, assumiu a presidência em 15 de abril passado é irrecuperável, dos mortos as forças políticas fizeram uns acordos de 1964, e ficou no posto até 15 de março de encontrados, dos desaparecidos, dos (chamados acordos da Moncloa) que 1967. Durante seu mandato, Castello Branco filhos que cresceram sem os pais (de- desmantelou a esquerda do Congresso e aboliu incluíam uma anistia geral, como meio todos os partidos. Foi sucedido pelo seu minis- saparecidos), dos pais que até hoje para evitar que os militares perpetuas- tro de Guerra, Marechal Costa e Silva. (Nota amargam a ausência dos filhos (de- sem o modelo de ditadura franquista. da IHU On-Line) saparecidos). Como fazer justiça aos  Artur da Costa e Silva (1899-1969): ditador Depois, os acordos da Moncloa serviram militar e político brasileiro, o segundo presi- que sofreram a violência do estado de de inspiração para o modelo de anistia dente do regime militar instaurado pelo Gol- exceção? no Brasil. pe Militar de 1964. Seu governo iniciou a fase mais dura e brutal do regime de terrorismo Contudo, algumas diferenças são evi- de Estado brasileiro, à qual o general Emílio Esquecimento e justiça dentes. Na Espanha, houve uma rejeição Garrastazu Médici, seu sucessor, deu continui- geral ao passado de ditadura franquista dade. Sob seu governo foi promulgado o AI-5, Definitivamente não é o esquecimen- que lhe deu poderes para fechar o Congresso e seus símbolos. Na medida em que a so- Nacional, caçar políticos e institucionalizar a to que faz justiça às vítimas da violência ciedade espanhola foi-se desvencilhando repressão e a tortura. (Nota da IHU On-Line) SÃO LEOPOLDO, 18 DE ABRIL DE 2011 | EDIÇÃO 358 11 Médici, Geisel, Figueiredo. Muitos dos “A anistia (...) é um pela ditadura histórica serviu de base políticos atuais são os mesmos que esta- jurídica para os atos de reparação po- vam durante a ditadura: Sarney é o sím- conceito polissêmico e lítica e moral às vítimas. bolo vivo dessa continuidade não revis- Na medida em que os fatos estão ta. Muitos torturadores continuaram um ato político ambíguo” ainda vindo à luz, a impressão geral exercendo cargos públicos na transi- que fica é que se cometeu uma enor- ção, hoje aposentados ou falecidos me injustiça contra as vítimas, pelo es- transição espanhola e qual o para- por idade têm em seus filhos dignos re- quecimento do acontecido. Um dado, lelismo que poderia ser feito com as presentantes políticos e públicos. In- que serve de exemplo do que estamos encontradas no Brasil? clusive sua memória é exaltada como falando, chamou muito atenção. Como Castor Ruiz - A anistia dos acordos da benfeitores da pátria. O pior é que o o regime de exceção durou 40 anos, há Moncloa, a semelhança da que também dia 1º de abril ainda é oficialmente ce- várias fases e fatos de violência extre- se reivindicou no seu momento no Bra- lebrado na maioria (talvez na totali- ma nesse período. Além dos milhares sil, significou a reintegração política dade) dos quartéis militares de forma de fuzilados e desaparecidos durante de todos os exilados e banidos pelo es- oficial como dia da revolução. Há um as execuções sumárias de civis no perí- tado de exceção. Foi um avanço políti- setor das forças armadas e da classe odo de guerra, constatou-se que após co possível naquele momento. Porém, política no Brasil que se identifica com a guerra civil, 1939, havia uma popu- com o passar do tempo, o medo inicial o regime de exceção e justifica a dita- lação carcerária de mais de 1 milhão do retorno do autoritarismo deu lugar dura como um mal necessário. Neste de presos, a maioria políticos. Quando à necessidade da verdade sobre a bar- caso, esses setores se autocompreen- a Segunda Guerra Mundial termina, bárie da ditadura. A grande pergunta dem sempre de prontidão para voltar em 1945, os arquivos mostram que há que ficou na transição espanhola, as- atuar quando as circunstâncias assim o pouco mais de 400 mil presos. Quan- sim como está ocorrendo no Brasil, é requerer, segundo a sua opinião. do as comissões foram pesquisar com o direito à verdade sobre as vítimas da O melhor antídoto da violência é a mais detalhe nomes e processos de violência. memória. Por isso é conveniente lem- execução dos presos, constatou-se um Se a transparência é o que define a de- brar que setores das forças armadas, procedimento de fuzilamento massivo mocracia, os regimes de exceção fa- chamados de legalistas, se opuseram e indiscriminado em todas as cadeias zem do esquecimento e do ocultamen- ao estado de exceção; alguns até fo- franquistas, caracterizando um au- to os cúmplices de seus atos políticos. ram mortos por isso. É o caso do te- têntico genocídio silencioso, que até A transição, para que seja justa, há de nente-coronel Alfeu de Alcântara Mon- datas muito recentes havia ficado des- levar em conta a injustiça cometida teiro, aos efeitos o comandante da percebido porque não se tinha noção contra as vítimas. Qualquer transição base aérea de Canoas, na época. Foi da dimensão da barbárie cometida. justa demanda, como primeiro pas- morto o dia 04-04-64 por se negar a Definitivamente, o esquecimento so, conhecimento da verdade do que bombardear o Palácio Piratini, Porto da violência comete uma segunda in- aconteceu com as vítimas. O segundo Alegre, sede da resistência legalista. justiça contra as vítimas, condenan- passo será julgamento dos responsá- do-as ao desaparecimento definitivo veis pelo acontecido. Terceiro passo, IHU On-Line - Quais foram as prin- da história. Neste ponto cabe lembrar atos de reparação possível para as víti- cipais dificuldades encontradas na um outro fato, o de milhares de crian- mas, num sentido amplo do termo. Em  Emílio Garrastazu Médici (1905-1985): di- ças que tiveram que exilar-se do país tador militar e político brasileiro, presidente quarto lugar, e quando concluídos to- sem seus pais. Foram vários barcos só do Brasil entre 30 de outubro de 1969 e 15 de dos os anteriores, poderá se falar em março de 1974. Obteve a patente de general. com crianças enviados com destino ao perdão político aos responsáveis ainda Seu governo foi considerado o mais obscuro e México e à Rússia. Crianças cujos pais repressivo de toda a história do Brasil indepen- vivos. Mas o perdão tem algumas con- tinham morrido ou estavam lutando; dente. (Nota da IHU On-Line) dições.  Ernesto Geisel (1908-1996): ditador militar e crianças que, arrancadas pela violên- político brasileiro. Eleito presidente da Repú- cia, cresceram longe de sua família blica por um Colégio Eleitoral (1973), indicado Genocídio silencioso pelos militares, tomou posse em 15 de março original; crianças que nunca mais vol- de 1974, como penúltimo ditador militar de- taram e cujos destinos ficaram, na sua pois do golpe de 1964. Buscou em seu governo Na Espanha criara-se uma Comis- maioria, desconhecidos. Igualmente uma gradual saída do regime militar. Deixou a são Nacional da Memória Histórica, presidência em 1979, quando assumiu o último triste foi o destino de milhares de re- ditador do regime autoritário instaurado em como instrumento para aferir a verda- fugiados que fugiram da guerra para 1964.(Nota da IHU On-Line) de das vítimas. Em torno dela surgiu França.  João Batista de Oliveira Figueiredo (1918- uma grande rede de Associações de 1999): político e ditador militar brasileiro, o 30º presidente do Brasil, de 1979 a 1985. (Nota Vítimas. Estas, por iniciativa própria IHU On-Line - Os arquivos da ditadu- da IHU On-Line) e com apoio da Comissão Nacional da ra espanhola foram abertos? O que  Alfeu de Alcântara Monteiro (1922-1964): Memória Histórica, foram levantando militar brasileiro, aviador, coronel da Força isso significou à consolidação da de- Aérea Brasileira, um dos primeiros oficiais le- fossas de desaparecidos, estudando mocracia no país? galistas a tombar em defesa da democracia arquivos, revendo os casos de tortu- Castor Ruiz - O estado de exceção no Brasil, vítima do golpe de estado de 1964. ras, etc. A verdade dos fatos ocultados (Nota da IHU On-Line) sempre oculta ao máximo sua barbá- 12 SÃO LEOPOLDO, 18 DE ABRIL DE 2011 | EDIÇÃO 358 rie. Uma parte importante da violên- te de justiça anamnética (das vítimas) cia não fica registrada, é simplesmen- “A Argentina (...) está contra a impunidade amnésica (dos vi- te impetrada. Há que se aplicar uma timários) que devemos situar no Brasil hermenêutica da violência para poder julgando de forma a polêmica sobre a abertura dos arqui- ler o não dito no dito. Ou melhor, in- vos, a comissão da verdade, o julga- vertendo a lógica hermenêutica, o sistemática muitos mento dos responsáveis, etc. que deveria ser dito naquilo que não A violência cometida pelo estado foi dito. Em qualquer caso, a verdade torturadores e assassinos de exceção do último regime militar aparece sempre como a grande inimi- no Brasil permanece silenciada, ocul- ga da violência. Daí que os regimes de da sua ditadura militar, tada oficialmente. Isso quer dizer que exceção e seus cúmplices na transição muitos de seus personagens continu- tentem evitar ao máximo as comissões tornando a violência do aram (e continuam) atuando como de verdade. O Brasil vive este momen- agentes públicos, instruindo a colegas to crucial. A encruzilhada em que ain- estado um tema de e subordinados no uso desses mesmos da é possível trazer à luz muita da vio- métodos. Instituições que não fizeram lência ocultada pela ditadura militar. debate público em que memória de sua violência histórica A abertura para o reconhecimento continuam acobertando-a como meio da verdade histórica da barbárie atua se espelham agentes legítimo (normal) para determinadas como um autêntico termômetro do situações em que eles a considerem estado de direito. Quando os regimes e instituições” necessária. e governos colocam sucessivos obstá- O Brasil não fez memória de sua culos para que a verdade da violência bém o meio mais eficiente para neutra- violência. Não julgou a nenhum res- seja conhecida, é um sintoma claro de lizá-la. A violência que se oculta tende ponsável por tortura, morte nem de- que há um déficit, grave, de demo- a reproduzir-se mimeticamente. A vio- saparecimento político durante a di- cracia nas instituições públicas. Se as lência tem um potencial mimético que tadura militar. A mensagem que com penumbras do encobrimento são uti- tende a sua reprodução, de uma ou de isso se transmite é a de impunidade. O lizadas como estratégia política pelo outra forma, quando não é convenien- Estado brasileiro com o silêncio e a po- estado de exceção, a transparência temente neutralizada. O efeito mimé- lítica de esquecimento está conferin- é o rosto da democracia. Quando se tico se dá em toda forma de violência. do impunidade para atos de violência oculta a violência significa que ainda Aparece na violência familiar e social, histórica. Isso tem uma consequência há cumplicidade, explícita ou tácita, mas também na violência política. grave para o presente: o Estado con- com os seus responsáveis. A memória (anamnese é o antídoto serva em seu seio setores violentos em No caso da transição espanhola os mais eficiente para neutralizar a vio- linha de continuidade com a violência princípios anteriormente esboçados lência, qualquer violência, enquanto o institucional do passado que fazem do também se cumpriram. Entanto, as esquecimento (amnésia) é seu princi- silêncio e o esquecimento sua estraté- diversas instâncias do Estado manti- pal aliado. Daí que a justiça das vítimas gia de perpetuação. Não é uma casua- nham simpatizantes do regime fran- seja sempre uma justiça anamnética, lidade que o percentual de torturas e quista. Foram inúmeros os obstáculos enquanto a impunidade da violência é maus tratos cometidos pela polícia na para abertura dos arquivos das dele- sempre amnésica. O silêncio e o esque- Argentina (uma realidade social próxi- gacias, da central de inteligência e cimento são os meios pelos quais a vio- ma) seja muito inferior àquele que se das prisões. Na medida em que os sim- lência se reproduz e perpetua nas pes- comete no Brasil. A Argentina, desde patizantes do regime franquista eram soas, na sociedade e nas estruturas. O há décadas, está julgando de forma expurgados das instituições públicas, Estado que decide ocultar ou esquecer sistemática muitos torturadores e as- incluído o Exército, a transparência se a violência cometida por parte de seus sassinos da sua ditadura militar tor- tornou mais efetiva. A correlação entre funcionários, instituições ou estruturas nando a violência do Estado um tema transparência pública e conhecimento está propiciando que esses mesmos fun- de debate público em que se espelham da violência é um dos mensuradores cionários (ou seus colegas sucessores), agentes e instituições. da solidez democrática do estado de instituições e estruturas reproduzam a direito ou de seu déficit. violência no seu seio como um ato de IHU On-Line - E por que a anistia foi a normalidade política. A amnésia torna a opção adotada em nosso país? IHU On-Line - Por que o Brasil não violência algo normal. A normalização da Castor Ruiz - A anistia foi inicialmente consegue fazer as contas com o seu violência, propiciada pela amnésia, ten- uma reivindicação dos exilados. Era o passado ditatorial? de a legitimá-la como meio útil para o passo necessário para a transição de- Castor Ruiz - Talvez tenhamos aqui um governo social. mocrática. Os militares do governo dos pontos nevrálgicos dos efeitos per- sabiam disso e fizeram da anistia um versos da violência. A memória da vio- Sensação de impunidade instrumento para negociar, também, lência não é só um ato de justiça para a impunidade a respeito da violência com as vítimas que a sofreram: é tam- É neste contexto político conflitan- cometida durante o regime de exce-

SÃO LEOPOLDO, 18 DE ABRIL DE 2011 | EDIÇÃO 358 13 ção. Daí que a própria anistia tivesse “A correlação entre de dos outros. Nossas democracias são historicamente esse duplo sentido. marcos jurídicos de princípios formais Celebrada pelos exilados políticos transparência pública e que reconhecem os quesitos neces- como um ato de vitória que permitiu sários para se exercer a autonomia. sua volta e abriu as portas para a tran- conhecimento da Porém nelas operam dispositivos de sição democrática, foi também cele- poder que investem em técnicas de brada pelos agentes da ditadura como violência é um dos produção de subjetividades e fabrica- seu trunfo por ter conseguido, numa ção de condutas. O sujeito jurídico do só cartada, a impunidade do passado mensuradores da solidez direito formal é invertido por objeto e a transição “regrada” para um regi- a ser governado. Vivemos uma tensão me que não lhes pediria contas de seus democrática do estado permanente entre os dois aspectos atos passados. que encurralam a vida humana como Por isso o termo anistia ecoa de de direito ou de seu objeto a ser governado através de for- forma ambígua. Com base nessa ambi- mas de normalização. Esta é uma das guidade semântica o Supremo Tribunal déficit” crises das nossas democracias em es- Federal ditou sentença no ano passado cala global. dizendo que a lei de anistia tinha anis- Jobim. Dentro do governo há pessoas Esclarecido o marco agônico da de- tiado também quaisquer possibilidades e fatias que têm uma clara posição mocracia formal em que estamos ten- de julgamento pelos atos cometidos política a respeito da necessidade de sionados, cabe conferir ao presente durante a ditadura. Mas o STF poderia abertura dos arquivos da ditadura, do um valor relativo. Sua relatividade é, ter utilizado essa mesma ambiguidade julgamento dos casos de tortura e de- entre outros aspectos, em referência semântica da anistia para interpretar saparecimento, para talvez depois po- ao passado que o constitui. O presen- que a lei foi também uma imposição der falar em anistia geral. te de uma sociedade, contrariando o autoritária de um governo violento que Contudo, as pressões pela ma- contratualismo, não existe como um declarou sua autoanistia, o que torna nutenção dos arquivos fechados e a momento zero da história: ele é o re- seu ato uma ilegalidade jurídica. negação de qualquer julgamento é sultado dessa história. Toda sociedade A ambiguidade da anistia autode- muito firme. Haja vista que continua se constrói sobre os cimentos ou es- clarada pelos militares a torna um ato se reelegendo como presidente do Se- combros do seu passado. A violência jurídico dúbio (suscetível de anulação) nado, mediante acordos com o gover- é o entulho que toda sociedade quer e um ato político de imunização da jus- no, um dos expoentes políticos mais esconder de si mesma, como se o mero tiça futura. Ninguém pode anistiar-se nítidos do regime de exceção: Sarney. ato formal de esquecimento possibili- a si mesmo das barbáries cometidas, Sua eleição implica acordos políticos tasse a desaparição das suas consequ- que é o que representa a autoanistia do governo, que deve conceder mui- ências históricas. A violência ocultada da maioria das ditaduras do mundo. to às forças que o apoiam. Ele, sendo pelo esquecimento (mas não neutrali- Por isso os acordos internacionais assi- um símbolo da ditadura, mantém uma zada) persiste nas instituições sociais nados pelo Brasil reconhecem a tortu- rede política e econômica de influên- e se reproduz na conduta dos indiví- ra um crime contra a humanidade que cias mediante a qual controlam pontos duos como um ato de normalidade. O é imprescritível no tempo e no espa- estratégicos do poder no Brasil. Isso esquecimento tende à normalização ço, e não é suscetível de anistia. Cabe quer dizer que o Brasil mudou de regi- da violência. ao governo ter vontade política para me, mas nem tanto. Muitas pessoas do manter estes princípios. antigo regime (as que morreram foram Memória da barbárie fielmente sucedidas por seus filhos e IHU On-Line - A partir do governo netos, como Magalhães Neto) continu- A violência esquecida coloca em Dilma, quais são as expectativas em am muito bem posicionadas política, xeque o próprio estado de direito. relação à abertura dos arquivos dos econômica e militarmente. O estado de direito, que já oculta a anos de chumbo? exceção jurídica como uma sombra Castor Ruiz - É difícil fazer prognós- IHU On-Line - É possível fazer demo- ameaçadora da ordem que ele mesmo ticos neste campo. Porém, podemos cracia sem acertar as contas com o institui, dificilmente poderá fazer do dizer que os rumos das decisões do passado? Como? direito uma forma de justiça se ocul- governo Dilma neste sentido depende- Castor Ruiz - A democracia é um re- ta a violência como meio normal de rão muito da intensidade com que a gime de governo que tem como prin- governar a vida humana, seja ou por sociedade pressione a respeito. Já no cípio a autonomia dos sujeitos e seu agentes públicos, ou por atos institu- governo Lula era notória e pública a autogoverno coletivo. Há muito que se cionais ou por instituições do Estado. divergência de posições dentro do pró- questionar a respeito de se as atuais O meio mais eficiente de neutra- prio governo sobre este ponto. Lem- democracias formais são efetivamente lizar a violência do presente é fazer bremos do conflito público entre o en- democráticas ou nelas impera um re- memória da violência passada. A me- tão ministro da Justiça, Tarso Genro, gime biopolítico de governo da vonta- mória faz presente as vítimas e as con- e o ainda ministro do Exército, Nelson sequências perversas da violência e 14 SÃO LEOPOLDO, 18 DE ABRIL DE 2011 | EDIÇÃO 358 sua barbárie. Ela permite depurar dos xa que torna sua dimensão política aparatos do Estado os resquícios de “Todas as experiências algo difícil; em muitos casos torna violência que ainda perduram gruda- inviável. Mas quando as condições hu- dos em práticas, instituições, agentes, de estados de exceção manas e políticas do perdão se dão, como atos de normalidade política. ele pode ser um eficiente instrumen- Lembrando que violência e autorita- deixam um lastro de to de reconciliação social. Há algumas rismo existem como práticas políticas experiências muito positivas de ex- coimplicadas. Quanto mais insistente destruição humana. O terroristas do IRA (irlandês) que fize- seja a rememoração da violência, mas ram o gesto político de reconciliação eficiente será seu expurgo das práticas desafio das sociedades na pública com os filhos e esposas das autoritárias do estado de direito. vítimas que eles mataram. Tal gesto pós-ditadura é superar as reintegra a dignidade das vítimas, a IHU On-Line - Em que aspectos o quem se reconhece a injustiça sofri- perdão não deve ser confundido marcas da violência” da. E aos próprios terroristas que, de- com esquecimento? pois do devido julgamento e prisão, Castor Ruiz - Esta questão nos conduz de ponto final, que são leis de impuni- puderam se reintegrar à atividade po- ao ponto culminante do que pode- dade. Não são leis de perdão, mas de lítica sem as marcas da violência. mos denominar uma justiça de tran- autoperdão. O autoperdão, que pode A anistia costuma ser um sucedâ- sição. O perdão, a princípio, é uma ser um dispositivo psíquico de autor- neo do perdão. Ela, como indicamos categoria ética que pode ter fortes reconciliação, só é viável quando há antes, é um conceito polissêmico e um implicações políticas. Em primeiro um reconhecimento público do mal ato político ambíguo. Como conceito lugar, cabe assinalar que só se pode feito e um pedido público de perdão foi utilizado pela maioria dos ditado- perdoar o que se lembra; ninguém paras as vítimas. Desde a perspecti- res como instrumento jurídico para pode perdoar aquilo do que não tem va política, o perdão só pode ser ou- autoimunizar-se da violência cometi- conhecimento ou memória. O perdão torgado pelas vítimas após o devido da. Este é o tipo de anistia que está processo de justiça. A reconciliação demanda a memória, anamnese. Em sendo questionada no Brasil. Contudo, segundo lugar, o perdão não pode ser do perdão não tem por objetivo prin- cabe pensar em um outro momento da confundido com impunidade. Em tal cipal a impunidade dos violentos, mas anistia. A justiça de transição devida caso, procede-se ao desvirtuamento a integração social digna das vítimas. às vítimas exige a verdade dos atos do perdão, a seu uso instrumental por O perdão é o gesto político por exce- violentos, o julgamento dos envolvi- parte dos violentos como meio de im- lência em que as vítimas conseguem dos e que os tribunais ditem sentença punidade política. Algo que não cor- reconciliar-se, dentro do possível, com a pena correspondente. Após o responde ao perdão. com a violência sofrida. julgamento dos responsáveis e como O perdão só pode ser concedido forma de reconciliação política, cabe- pelas vítimas. Há uma dimensão pes- 1º de abril, uma humilhação ria pensar numa anistia da pena. Esta soal do perdão em que as vítimas, anistia não seria um esquecimento, feito o devido reconhecimento da O perdão ainda requer o autorre- senão uma forma política de perdão verdade, o devido julgamento e até a conhecimento da culpa dos violentos. institucional. Ela não nega os fatos, condenação dos culpados, têm o po- Sem reconhecimento por parte dos não esquece, senão que faz justiça às der de perdoar para trazer a reconci- violentos da responsabilidade política vítimas reconhecendo a verdade e, liação pessoal e social. Esta dimensão do mal feito, o perdão se torna inviá- como ato político de reconciliação, ética do perdão tem profundas raízes vel. Nesse caso, a violência continua dependendo das circunstâncias, pode religiosas (principalmente cristãs e ainda viva como uma potência amea- outorgar o perdão institucional (anis- budistas), mas também amplas impli- çadora que se autoproclama um meio tia) da pena. cações políticas. político legítimo quando necessário. Embora há muito debate a este res- Quando não há arrependimento, a vio- peito, entendemos que há uma dimen- lência ainda se mantém como ameaça são política do perdão. As sociedades para as vítimas e para ela todos somos que viveram rasgadas pela violência: potenciais vítimas. O ato violento do o caso da ditadura no Brasil, mas ou- qual não há arrependimento persiste Leia Mais... tros casos até mais graves como Áfri- como sombra ameaçadora da própria ca do Sul, Guatemala, El Salvador, Co- dignidade das vítimas. Por isso resulta Castor Ruiz já concedeu outras entrevis- lômbia, e também sociedades com o humilhante para os torturados, mor- tas à IHU On-Line. Confira. tos e desaparecidos da última dita- * Alteridade, dimensão primeira do sujeito. Edi- terrorismo endêmico como Irlanda ou ção número 334, revista IHU On-Line, de 21-06- País Basco (Espanha), tem que encon- dura militar que ainda se celebre no 2010, disponível em http://bit.ly/ce9wfa; trar um ponto de reconciliação social Brasil o dia 1º de abril como um gesto * A exceção jurídica na biopolítica moderna. Edi- memorável, e não humilhante. ção número 343, revista IHU On-Line, de 13-09- com a violência sofrida. Essa reconci- 2010, disponível em http://bit.ly/dk0SvS. liação nunca será tal através das leis A relação do perdão é tão comple- SÃO LEOPOLDO, 18 DE ABRIL DE 2011 | EDIÇÃO 358 15 A apuração da verdade: grande medo das instituições militares Militares de hoje temem pelos atos cometidos por seus pares no passado, pois pesquisas históricas comprovam que a ditadura nada teve de “branda”, afirma EdsonTeles. Casos do Chile, Argentina e África do Sul servem como inspiração para o Brasil

Por Márcia Junges

onsiderada a mais violenta da América Latina pelos pesquisadores Edson Teles e Vladimir Safatle, a ditadura brasileira precisa ser mensurada não pelos desaparecidos que produziu, “mas pelo impacto que gerou no país, o que se percebe pela herança autoritária vivida em democracia”, acentua Teles na entrevista que concedeu por e-mail à IHU On-Line. Entre os inúmeros “restos” deixados por esse regime autoritário em nosso país, o maior deles é a cultura da impunidade C“que privilegia a violência e os que detêm o poder político em detrimento da ideia de uma cidadania ple- na”. Tal impunidade vale, inclusive, para aqueles que pensam que podem torturar “bandidos” e pessoas “perigosas”. Já que torturadores da ditadura não receberam a devida punição, por que alguém que tortura presos e menores infratores a receberia? Teles analisa, também, o motivo pelo qual as Forças Armadas de hoje não querem que se apurem crimes de ontem. Para ele, trata-se de uma questão de poder político: “as instituições militares detêm um poder abusivo em nossa democracia, garantido pela Constituição Federal, e a apuração da verdade do período ditatorial apontaria com clareza algo que já está comprovado pelas pesquisas históricas: a ditadura não foi ‘branda’ e sua ação repressiva não foi fruto de um setor radicaliza- do dos militares”. E ressalta: “A reforma institucional, fruto da apuração da verdade, é o grande medo das instituições militares”. Teles foi o mais jovem preso político brasileiro, com apenas dois anos de idade, quando foi detido com seus pais, César Augusto Teles e Maria Amélia de Almeida Teles, bem como a irmã Janaína, na época da dita- dura militar. Em 2007, junto com os pais, a irmã e sua tia, processou o coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, para que ele fosse declarado torturador, tendo obtido ganho de causa na primeira instância. Graduado, mestre e doutor em Filosofia pela Universidade de São Paulo – USP, escreveu a tese Brasil e África do Sul: Memória política em democracias com herança autoritária. Leciona na Universidade Federal de São Paulo e é um dos organizadores das seguintes obras: O que resta da ditadura: A exceção brasileira (São Paulo: Boitempo, 2010), Desarquivando a Ditadura: memória e justiça no Brasil (São Paulo: Hucitec, 2009) e Dossiê Ditadura: mortos e desaparecidos políticos no Brasil (1964-1985) (São Paulo: Impressa Oficial, 2009). Confira a entrevista.

IHU On-Line - O que resta da ditadura aspectos, especialmente aqueles que IHU On-Line - Por que você e Vladi- em nosso país? Qual é a pior herança se referem às estruturas jurídicas e mir Safatle afirmam que a ditadura deixada pelos torturadores? institucionais do sistema de segurança  Vladimir Safatle: filósofo brasileiro, gradu- Edson Teles - Há uma série de “restos” pública e das Forças Armadas em qua- ado pela Universidade de São Paulo – USP e em Comunicação Social pela Escola Superior da ditadura militar. Poderíamos dizer se nada foram alterados em relação à de Propaganda e Marketing – ESPM. Também que a maior delas encontra-se na im- Constituição outorgada pelos militares é mestre em Filosofia pela USP e doutor pela posição de uma cultura de impunida- em 1967. A ingerência das Forças Ar- Université de Paris VIII. Atualmente, é profes- sor da USP. É um dos coordenadores da Inter- de, que privilegia a violência e os que madas na política brasileira e os pri- national Society of Psychoanalysis and Philoso- detêm o poder político em detrimento vilégios que os militares têm indicam phy. É autor de A paixão do negativo: Lacan e da ideia de uma cidadania plena. Ape- que a nossa Lei em democracia ainda a dialética (São Paulo: Unesp, 2006) e Lacan (São Paulo: Publifolha, 2007) e um dos organi- sar de sairmos da ditadura com uma fez a opção pela consolidação de cida- zadores de A filosofia após Freud (São Paulo: Assembleia Constituinte (1986-1988) e dãos que são “melhores” e mais pode- Humanitas, 2008). Confira as seguintes entre- a nossa Constituição ser considerada rosos do que a maioria de nós. vistas concedidas por Safatle à IHU On-Line: A verdadeira face do Supremo Tribunal Federal, liberal e democrática, uma série de disponível em http://bit.ly/gNzDRv; Raciona- 16 SÃO LEOPOLDO, 18 DE ABRIL DE 2011 | EDIÇÃO 358 brasileira foi a mais violenta da Amé- “Hoje se governa mais litar. De posse desta verdade, a socie- rica Latina? dade brasileira necessariamente terá Edson Teles - Há um forte aspecto de com decretos e medidas que rever a função dos militares, ou violência da ditadura brasileira que ao menos refletir se são estas Forças é justamente sua herança. Além dos provisórias do que em Armadas que queremos para o futuro limites apontados anteriormente, há do país. A reforma institucional, fruto uma ação política no país cuja marca é qualquer outra época da da apuração da verdade, é o grande o autoritarismo. Hoje se governa mais medo das instituições militares. com decretos e medidas provisórias história de nossa do que em qualquer outra época da IHU On-Line - Quais são as semelhan- história de nossa República, mais in- República, mais inclusive ças e diferenças entre as democra- clusive do que no período militar. Um cias com heranças autoritárias do bom exemplo é o desejo do Executivo do que no período Brasil e da África do Sul? atual de decidir por decreto o valor do Edson Teles - A África do Sul fez a op- salário mínimo. O grave problema que militar” ção pela narrativa e publicidade dos este tipo de instrumento jurídico im- crimes do Apartheid. O Brasil escolheu plica é o descumprimento dos procedi- o silêncio. A anistia sul-africana foi in- figura como um instrumento de- blo mentos democráticos de decisão sobre dividual, caso a caso, crime a crime, queio da política autoritária. Ela é o futuro do país, alijando da política a e só foi concedida depois da confissão um significante modo de articulação grande maioria da sociedade civil. pública do ato criminoso e do esclare- das relações sociais e políticas e seu A ideia forte que eu e Vladimir pro- cimento do que foi feito com o corpo benefício está em permitir a nossa so- curamos mostrar é a de uma ditadura das vítimas. No Brasil, como vocês sa- ciedade refletir sobre o que ocorreu não se mede pelo número de mortos e bem, a anistia foi genérica e, simbo- e o que ocorre e, a partir dos deba- desaparecidos que produziu (cerca de licamente, acabou por tornar inimpu- tes produzidos, propiciar a criação de 500 no Brasil, 20 mil na Argentina e 5 táveis os autores de crimes bárbaros mecanismos democráticos de garantia mil no Chile), mas pelo impacto que praticados enquanto eram funcioná- de direitos e de justiça. O que quero gerou no país, o que se percebe pela rios do Estado, com salários pagos pelo dizer é que a memória deve ser livre, herança autoritária vivida em demo- contribuinte e sem qualquer motiva- não deve ser nem um dever, nem um cracia. ção política. direito, mas ser exercida e praticada livremente em uma esfera pública de- IHU On-Line - Há uma espécie de con- IHU On-Line - A África do Sul parece mocrática. senso em calar, abrandar ou negar o ter lidado melhor com as questões que houve nos anos de chumbo. Qual do período ditatorial do que o Brasil. IHU On-Line - Por que as Forças Ar- é o papel da memória e da resistên- A que se deve isso? madas de hoje temem a punição dos cia nesse sentido? Edson Teles - Há uma série de fatores. torturadores de ontem? Edson Teles - Este consenso favorece Porém, o principal deles é a coragem Edson Teles - Certamente boa par- não só os setores diretamente envolvi- e determinação dos que assumiram a te dos membros das Forças Armadas dos com a repressão política (militares construção da nova democracia mul- de hoje não foram torturadores na e sistema policial), mas uma boa par- tirracial. Eles sabiam que a maioria ditadura. Entretanto, ainda assim, te dos partidos e instituições políticas negra não iria aderir ao novo regime a instituição não aceita a apuração que obtém vantagens com a democra- se não houvesse atos de justiça con- dos crimes praticados pelos generais cia nos dias atuais. Vejamos um exem- sistentes. No Brasil, a maior parte dos daquela época. Isto se deve, ao que plo: se os torturadores da ditadura não democratas, dos que vivenciaram a parece, principalmente a uma questão são punidos, qual o receio em praticar transição política, escolheram a com- de poder político. Como já disse, as a tortura por parte de certos funcio- posição com os antigos criminosos. instituições militares detêm um poder nários das antigas Febens (instituições Como podemos ter uma democracia abusivo em nossa democracia, garanti- para adolescentes infratores) ou das plena se o presidente de um dos três do pela Constituição Federal, e a apu- delegacias de polícia? Muito pequeno. poderes da República encontra-se nas ração da verdade do período ditatorial Cria-se e dissemina-se uma ideia na mãos de um dos maiores líderes civis apontaria com clareza algo que já está sociedade de que a tortura é algo per- da ditadura, José Sarney (lembre-se comprovado pelas pesquisas históri- mitido, desde que seja para os “ban- que ele liderava a Arena, partido do cas: a ditadura não foi “branda” e sua didos”, pessoas “perigosas”, como fo- governo militar, quando da aprovação ação repressiva não foi fruto de um se- ram os “subversivos” de então. da Lei de Anistia em 1979). tor radicalizado dos militares (a cha- Contudo, a memória não se con- mada “linha dura). Ela foi muito bem lidade cínica, raiz da anomia social, disponível IHU On-Line - O recurso da anistia organizada e sofisticada; a tortura e o em http://bit.ly/fEVumn; Totalitarismos: uma também foi usado na África do Sul? reflexão político-social e libidinal, disponível desaparecimento serviram a uma polí- Por que essa foi a medida tomada no em http://bit.ly/gkK1qn. (Nota da IHU On- tica decidida no mais alto escalão mi- Line) SÃO LEOPOLDO, 18 DE ABRIL DE 2011 | EDIÇÃO 358 17 caso de nosso país? No caso da África “O passado de alguém de de Minnesota (EUA), demonstrando do Sul a questão da ditadura foi re- que os países da América Latina que solvida em função de Nelson Mandela é muito importante puniram os torturadores do passado e ter sido preso político e primeiro pre- apuraram a verdade de suas ditaduras sidente eleito democraticamente? na compreensão de seu sofreram uma considerável redução da Edson Teles - Não. O passado de alguém violência atual se comparados com os é muito importante na compreensão de presente, mas não países que quase nada ou nada fizeram seu presente, mas não garante que ele como o Brasil. vá agir de algum modo determinado. garante que ele vá Os dois primeiros presidentes eleitos IHU On-Line - Como as experiências de nossa democracia que terminaram agir de algum modo do Uruguai, Argentina, Chile e El Sal- o mandato foram vítimas da ditadura. vador com suas ditaduras ajudam a Contudo, nem FHC e nem Lula tiveram determinado” redesenhar o mapa dos direitos hu- a coragem (aquela que teve Mandela) manos e da memória na América La- de abrirem os arquivos militares e lo- tina? calizarem os desaparecidos políticos. Edson Teles - A Argentina nos mostra Ao contrário, como dissemos, preferi- que é possível e, mais do que isto, circunstâncias dos crimes, localizar os ram compor com os setores herdeiros desejável, que nossas democracias restos mortais dos desaparecidos, en- da ditadura. apurem os crimes. Hoje, temos no tre outras medidas. banco dos réus naquele país dois ex- IHU On-Line - Nessa lógica, Dilma presidentes generais, um dos quais já IHU On-Line - O que uma possível Rousseff, por ter sido presa política, condenado em outro processo à prisão abertura dos arquivos da ditadura irá dar um tratamento diferenciado perpétua, e nenhum golpe ou instabi- por Dilma Rousseff pode mudar em às questões relacionadas à ditadura? lidade foi provocado por isto. relação à memória que temos do pe- Edson Teles - Novamente não. É cla- O Chile, ao começar seus processos ríodo militar, e em relação às gera- ro que conhecer tão bem quanto ela pela punição dos crimes de desapare- ções futuras? o que se passou no período abre uma cimento, levou em consideração que Edson Teles - A mudança será extre- chance de ouro para a nossa democra- este é um crime de sequestro continu- ma. Veremos que o país ainda vive sob cia. Mas ela sofre e sofrerá as maiores ado, já que o corpo não foi localizado. instituições autoritárias que devem ser pressões para que nada se modifique. Isto permite ao ordenamento jurídico reformadas para que a democracia e a O que poderá garantir um tratamen- não levar em consideração anistias justiça ganhem um valor maior. Pode- to diferenciado é a pressão política como a brasileira de 1979, na medida remos, inclusive, começar a transfor- e social para que aprofundemos nos- em que estes crimes continuaram após mar a cultura de violência e impunida- sa democracia. Cito um exemplo: faz a aprovação destas leis. No Brasil, po- de, não só em relação aos crimes do mais de 10 anos que os movimentos demos julgar e condenar os responsá- passado, mas em relação à violência de direitos humanos ligados ao tema veis pelos desaparecimentos mesmo dos dias atuais. Há um estudo da soci- exigem uma Comissão da Verdade e da sem reinterpretação da lei de anistia, óloga Kathryn Sikkink, da Universida- Justiça no país. Somente agora, do ano como fez o Chile. passado para cá, é que nossa democra-  Kathryn Sikkink: cientista política norte- americana, graduada em Relações Interna- cia começou a tocar no assunto. Por cionais pela Universidade de Minnesota (onde que será? Certamente se deve ao fato leciona), e mestre na mesma área, pela Uni- de a Corte Interamericana de Direitos versidade de Columbia. Estudou no Instituto para Estudos Latino-Americanos e Ibéricos e tions: developmentalism in Brazil and Ar- Humanos, da Organização dos Esta- é Ph.D em Ciências Políticas e Relações In- gentina (New York: Cornell University Press, dos Americanos - OEA, ter condenado ternacionais, pela Universidade de Columbia. 1991). ��������������������������������������Confira a entrevista concedida por- Si o Estado brasileiro a responsabilizar Sikkink é especialista em políticas de direitos kkink à IHU On-Line: Ninguém está acima da humanos, direitos femininos e justiça social. lei, disponível em http://bit.ly/fY81pB. (Nota penalmente os criminosos, apurar as É autora de, entre outros, Ideas and institu- da IHU On-Line)

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18 SÃO LEOPOLDO, 18 DE ABRIL DE 2011 | EDIÇÃO 358 A lei da anistia e o esquecimento da barbárie da ditadura A verdade completa sobre o terrorismo de Estado brasileiro precisa vir à tona, acentua Jair Krischke. Resquícios do entulho autoritário continuam existindo, como o paradigma da impunidade e a violência das polícias, vinculadas ao Exército brasileiro

Por Márcia Junges

om a Lei de Anistia os militares brasileiros queriam “promover o esquecimento do barbarismo que promoveram durante os largos anos de ditadura. Equivocaram-se redondamente! A toda hora, saltam dos mais variados ‘armários’ esqueletos que os interrogam com toda a veemência. Não ha- verá trégua até que se conheça toda a verdade sobre o terrorismo de Estado que foi promovido no Brasil”. A constatação é do advogado Jair Krischke na entrevista que concedeu por e-mail à IHU COn-Line. Para ele, um dos problemas mais graves que enfrentamos em nosso país é a impunidade, que vai se consolidando como paradigma. “Muito se fala em reconciliação da sociedade brasileira, mas esquecem-se de que, para haver uma verdadeira reconciliação, faz-se necessário, fundamental mesmo, o autor da ofensa reconhecê-la como de sua autoria, arrepender-se e pedir perdão à vitima. Com o ânimo ainda existente nas forças armadas brasileiras, seria possível esperar este gesto?” E completa: “Historicamente, os militares sempre se dão bem no Brasil, mesmo quando praticam crimes os mais horrendos”. Formado em História pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul - UFRGS, Krischke é ativista dos direitos humanos no Brasil, Argentina, Uruguai, Chile e Paraguai. Em 1979, fundou o Movimento de Justiça e Direitos Humanos do Rio Grande do Sul, a principal organização não governamental ligada aos Direitos Humanos da Região Sul do Brasil. Também é o fundador do Comitê de Solidariedade com o Povo Chileno. Confira a entrevista.

IHU On-Line - Hoje a Lei de Anistia mência. Não haverá trégua até que se co, aos Servidores dos Poderes Legis- brasileira representa esquecimento? conheça toda a verdade sobre o ter- lativo e Judiciário, aos Militares e aos Por que e em que sentido? rorismo de Estado que foi promovido dirigentes e representantes sindicais, Jair Krischke - A memória, diz Pilar no Brasil. punidos com fundamento em Atos Ins- Calveiro, encarrega-se de desfazer e titucionais e Complementares. de refazer, sem tréguas, aquilo que IHU On-Line - Como compreender § 1º - Consideram-se conexos, para evoca. Porque é um ato de recriação que a Lei de Anistia tenha abrangido efeito deste artigo, os crimes de qual- do passado desde a realidade do pre- crimes contra a humanidade, como quer natureza relacionados com cri- sente, projetando-se para o futuro. aqueles perpetrados pelos militares mes políticos ou praticados por moti- É desde as premências atuais que se torturadores? vação política. interroga o passado, rememorando-o. Jair Krischke - Qualquer pessoa, razo- Os agentes do Estado, quer sejam Entretanto, ao mesmo tempo, é das avelmente alfabetizada, lendo o texto civis ou militares, não podem cometer particularidades desse passado, res- da Lei de Anistia, poderá entender que “crimes políticos ou conexos”, pois re- peitando suas coordenadas específicas, não é bem assim. Senão, vejamos: presentam o “Estado”, que, no exer- que podemos construir uma memória Art. 1º - É concedida anistia a to- cício de seu múnus, não praticam atos fiel. Certamente, os militares brasilei- dos quantos, no período compreendi- “políticos”, e sim atos de Estado. É por ros pretendiam com esta Lei de Anistia do entre 2 de setembro de 1961 e 15 essa razão que nós, os militantes de di- promover o esquecimento do barbaris- de agosto de 1979, cometeram crimes reitos humanos, chamamos estes acon- mo que promoveram durante os largos políticos ou conexo com estes, crimes tecimentos de “terrorismo de Estado” anos de ditadura. Equivocaram-se re- eleitorais, aos que tiveram seus direi- dondamente! A toda hora saltam dos tos políticos suspensos e aos servidores IHU On-Line - Por que foi escolhido o mais variados “armários” esqueletos da Administração Direta e Indireta, de recurso da anistia na esteira pós-di- que os interrogam com toda a vee- fundações vinculadas ao poder públi- tadura com o recorte específico que

SÃO LEOPOLDO, 18 DE ABRIL DE 2011 | EDIÇÃO 358 19 teve? Quais são suas principais limi- “A Justiça, quer seja no pronunciou-se pela constitucionali- tações e por que ela não pode valer dade da Lei de Anistia, tal qual a in- para ambos os lados (os que lutavam Brasil ou em qualquer terpretam os que violaram os direitos pela liberdade do Brasil, e aqueles humanos dos brasileiros. Mesmo os mi- que se valiam do aparato estatal outra parte, é sempre nistros que votaram favoravelmente, para cometer crime de lesa-humani- o fizeram usando uma argumentação dade)? o último poder a simplesmente lamentável. Jair Krischke - O recurso da Lei de Em relação à Argentina, o Supremo Anistia tem um histórico muito ex- redemocratizar-se” Tribunal julgou absolutamente inconsti- pressivo na América Latina, seguida- tucional as leis de Obediencia Debida e mente sacudida por ditaduras cruéis. a de Punto Final. Daí em diante, toda terpretação da lei da anistia pode É a forma de reconciliar aqueles que, a Justiça da Argentina retomou os jul- representar para a memória e os frente à tirania, decidiram rebelar-se, gamentos de muitíssimas causas, com direitos humanos no Brasil? E como lutando para reconquistar um patamar um número apreciável de condenações. isso pode repercutir na consolidação democrático aceitável. Estes, sim, são No Uruguai passou-se o mesmo: sua Su- da nossa democracia ainda jovem e passiveis dos benefícios da anistia e prema Corte entendeu inconstitucional imperfeita? ninguém mais. Na Declaração dos Di- a Lei de Caducidad, para alguns casos, Jair Krischke - Não se trata de uma nova reitos do Homem e do Cidadão (Revo- que foram demandados. Por outro lado, interpretação, trata-se tão só e simples- lução Francesa), já se encontrava con- o plebiscito que pretendia anular a refe- mente de interpretá-la corretamente. sagrado o direito à rebelião: rida Lei de Caducidad foi derrotado nas Além do mais, com a decisão da Corte Art. 2.º A finalidade de toda asso- ultimas eleições, impedindo assim, uma Interamericana de Direitos Humanos, ciação política é a conservação dos total abrangência. Mas, mesmo com di- que condenou o Brasil por descumprir direitos naturais e imprescritíveis do ficuldades, o último presidente eleito sua obrigações internacionais, determi- homem. Esses direitos são a liberdade, antes do golpe, Bordaberry (um golpista nou que a Lei de Anistia é totalmente a propriedade, a segurança e a resis- por excelência), e o presidente da dita- inválida, no que se refere a impunidade tência à opressão. dura, general Gregório Alves, cumprem dos repressores, não sendo reconhecida Também na novel constituição por- pena de 25 anos de prisão, bem como em nível internacional. tuguesa encontramos: um ex-ministro de Relações Exteriores, Quanto à memória, ou seja, o co- e vários oficiais de alta patente. nhecimento da verdade dos acon- Artigo 21. No Chile, mesmo vigente uma Lei tecimentos, ao que parece vamos Direito de resistência de Anistia, vários generais e coronéis lentamente avançando. Isto porque cumprem largas penas de prisão. Na encontra-se no Congresso Nacional um verdade, poucos arquivos foram aber- Todos têm o direito de resistir a projeto de lei quer trata da criação tos; porém, já se tem acesso a muito qualquer ordem que ofenda os seus de uma “Comissão da Verdade” que, material da repressão nestes países. direitos, liberdades e garantias e de segundo a impressa, é prioritário para Como se pode ver, nada de maior repelir pela força qualquer agressão, a presidenta Dilma. São atos e fatos aconteceu no processo de redemocra- quando não seja possível recorrer à que vão consolidando uma jovem de- tização dos países referidos, prova de autoridade pública. mocracia, de um país que não é muito que é possível avançar, consolidando a Não ser igual para ambos os lados, afeito a ela. creio haver respondido anteriormente. democracia em nossos países. Mesmo sem a abertura de arquivos, Mas sempre é bom chamar a atenção IHU On-Line - A Justiça brasileira está vamos progredindo a cada dia. São para o seguinte: longe de seguir os exemplos dos tri- aquelas vítimas que, amedrontadas, bunais da Argentina, Chile e Uruguai, ainda não haviam contado suas histó- Lei de Anistia que já abriram seus arquivos da épo- rias, o que está acontecendo agora. ca da ditadura? Como esses países li- Por exemplo, agora mesmo, um cida- § 2º - Excetuam-se dos benefícios daram com o pós-ditadura? dão argentino que vivia com sua famí- da anistia os que foram condenados Jair Krischke - A Justiça, quer seja no lia e trabalhava em Passo Fundo, foi pela prática de crimes de terrorismo, Brasil ou em qualquer outra parte, é vítima de uma Operação Condor, em assalto, sequestro e atentado pessoal. sempre o último poder a redemocrati- 12 de setembro de 1978. Na ocasião, Este parágrafo 2º diz claramente o zar-se. A Constituição diz solenemente intervimos com o Alto Comissariado que não foi anistiado pela Lei, os cha- que todo o poder emana do povo e em das Nações Unidas para Refugiados e mados “crimes de sangue”. Depois da seu nome será exercido. Não conheço conseguimos levá-los para a Suécia, na promulgação da lei, muitos militantes qualquer pessoa que, em um pleito condição de asilado. Nunca mais tive continuaram presos, tanto que até eleitoral, tenha sido chamada a votar notícias deles. Agora, ele reaparece, greve de fome fizeram. em juízes e desembargadores. Para  Juan María Bordaberry Arocena (1928): cúmulo, nosso Supremo Tribunal Fe- militar e presidente uruguaio de 1972 a 1976. IHU On-Line - O que uma nova in- deral, provocado pela OAB Nacional, (Nota da IHU On-Line)

20 SÃO LEOPOLDO, 18 DE ABRIL DE 2011 | EDIÇÃO 358 bem documentado, provando o que atual do aparato policial foi plantada lhe aconteceu naqueles dias. na ditadura? Jair Krischke - Vamos examinar alguns IHU On-Line - Não se trata de vin- dados sobre o aparelho repressivo no gança, mas de justiça o fato de se Brasil: punir os crimes cometidos contra a Número de agentes: 24 mil humanidade no período da ditadura Prendeu por razões políticas: 50 mil brasileira. Poderia comentar essa di- pessoas ferença de interpretação quanto ao Torturou: 20 mil pessoas que realmente significa punir os tor- É bom ter em conta que nossas po- turadores? lícias sempre foram violentas e adep- Jair Krischke - Punir aos torturado- tas da tortura. O que mudou com a res significa fazer justiça tão somen- ditadura foi a sofisticação da tortura. te. Um dos mais graves problemas de Também faz parte do entulho autori- nosso país é justamente a impunida- tário a criação das polícias militares de, que certamente se origina neste por Decreto Lei, vinculadas ainda hoje fato, ou seja, se pode matar, torturar, ao Exército brasileiro. Em Brasília, desaparecer que não acontece nada. no famoso Forte Apaches, existe uma Esta cultura pouco a pouco vai im- porta com a placa “Inspetor Geral das pregnando o tecido social, tornando- Polícias Militares”, exercido por um se paradigma. Muito se fala em recon- general. Sempre é bom lembrar, quan- ciliação da sociedade brasileira, mas do nos dizem, por exemplo: a Brigada esquecem-se de que, para haver uma Militar tem 170 anos. Sim, é verdade, verdadeira reconciliação, faz-se ne- mas como exército particular do go- cessário, fundamental mesmo, o autor vernador do estado, é o mesmo caso da ofensa reconhecê-la como de sua das Forças Públicas de São Paulo, Mi- autoria, arrepender-se e pedir perdão nas Gerais e Pernambuco. à vitima. Com o ânimo ainda existente nas forças armadas brasileiras, seria possível esperar este gesto? Leia Mais... IHU On-Line - Na Europa há toda uma Jair Krischke já concedeu outras entrevistas conscientização sobre o que signi- à IHU On-Line. ficou o Holocausto. Já no Brasil, os • PNDH-3. Verdade, justiça e reparação. Entrevista anos de chumbo da ditadura são ma- especial com Jair Krischke, publicada nas Notícias do Dia 09-01-2010, disponível em http://migre. quiados, para dizer o mínimo. O que me/42IS7; explica essa diferença de conduta e • Os 30 anos da anistia no Brasil. Entrevista especial compreensão? com Jair Krischke, publicada nas Notícias do Dia 31- 08-2009, disponível em http://migre.me/42J2L. Jair Krischke - Vejamos alguns dados. Confira outras entrevistas e notícias relacionadas ao Tribunal de Nuremberg tema da anistia. 285 dias de julgamentos • Governo Dilma: as esperanças para a Comissão da twitter.com/_ihu Verdade. Entrevista especial com Jair Krischke, pu- Ouviu 240 mil testemunhas – anotou blicada nas Notícias do Dia 07-01-2011, disponível 300 mil declarações – gerando 4 bi- em http://migre.me/42IRg; lhões de palavras • Memória e ditadura militar: ‘Precisamos passar a limpo o que aconteceu’. Entrevista especial com Acesse o Twitter do IHU IHU do Twitter o Acesse Acusação final: 25 mil páginas Christa Berger, publicada nas Notícias do Dia 13-09- Condenados: 9 à morte – 12 à perpétua 2008, disponível em http://migre.me/42ITm; – 6 a penas de 10 a 20 anos – 3 absol- • Desaparecido político não é vergonha, diz minis- tro. Notícia publicada nas Notícias do Dia 04-01- vidos. 2011, disponível em http://migre.me/42IVB; É a diferença de cultura. Aqui, os • Tortura, crime contra a humanidade. Um debate poderosos podem tudo! Historicamen- urgente e necessário. Edição 269 da revista IHU On- Line te, os militares sempre se dão bem no • Anistia: “O povo tem memória, sim”. Entrevista Brasil, mesmo quando praticam crimes especial com Oswaldo Munteal Filho, publicada nas os mais horrendos. Notícias do Dia 26-08-2009, disponível em http:// migre.me/42J0D; • Lembranças vivas, feridas abertas: a punição aos IHU On-Line - A violência das For- torturadores da ditadura no Brasil. Entrevista espe- ças Armadas do período ditatorial cial com José Carlos Moreira da Silva Filho, publi- cada nas Notícias do Dia 22-08-2009, disponível em migrou para que outras instituições http://migre.me/42J1D; brasileiras? A semente da violência SÃO LEOPOLDO, 18 DE ABRIL DE 2011 | EDIÇÃO 358 21 A anistia não é esquecimento ou amnésia Com base no exemplo da África do Sul, a anistia não pode ser tomada por esquecimento, pondera José Carlos Moreira Filho. Prevendo seu fim, a ditadura criou o expediente da anistia, aplicada de forma vaga

Por Márcia Junges

s crimes cometidos pelo Estado devem ser o principal foco de uma sociedade preo- cupada em diminuir a violência que a aflige e em respeitar os direitos humanos”. A afirmação é do advogado José Carlos Moreira Filho, na entrevista que concedeu por e-mail à IHU On-Line. E continua: “A ditadura anteviu o seu próprio fim e garantiu que ele fosse o mais vantajoso possível para os seus agentes e torturadores, concedendo “Oa eles, de modo propositadamente vago, uma anistia isenta de qualquer investigação ou esclarecimento em relação aos seus crimes, enquanto que para os perseguidos políticos a anistia não foi geral, visto que os condenados pela participação na luta armada não foram anistiados por esta lei”. José Carlos Moreira da Silva Filho é mestre em Teoria e Filosofia do Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC, doutor em Direito das Relações Sociais pela Universidade Federal do Paraná – UFPR. Atualmente é professor da Faculdade de Direito da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul – PUCRS, Conselheiro da Comissão de Anistia do Ministério da Justiça; Membro-Fundador do Grupo de Estudos sobre Internacionalização do Direito e Justiça de Transição – IDEJUST. Confira a entrevista.

IHU On-Line - O que o Brasil tem a ficará um retrocesso democrático ou cida a incrível margem de autonomia e aprender com a experiência de pa- uma instabilidade política. Muito pelo discricionariedade dos agentes públicos íses vizinhos como a Argentina e contrário. na definição do que é violência legítima. Uruguai, e de outros mais distantes O Estado detém um vasto aparelho re- como a Espanha e a África do Sul na Violência legítima pressivo, composto de polícias e forças condução dos seus processos pós-di- armadas, organizado, burocrático e for- tadura? Os piores crimes que podem ser co- temente armado. Nenhuma organização José Carlos Moreira Filho - Sem dú- metidos são exatamente os crimes prati- criminosa pode igualar tal poderio, a não vida que, com relação aos processos cados pelo Estado. É célebre a afirmação ser que seja uma espécie de protoesta- transicionais de ditaduras para demo- de Max Weber de que o Estado detém o do. Isto significa que os crimes cometi- cracias, o Brasil tem muito a aprender monopólio da violência legítima dentro dos por ele devem ser o principal foco de com a Argentina, o Uruguai, a África de uma sociedade, e também é conhe- uma sociedade preocupada em diminuir do Sul e ainda outros países, como o  Max Weber (1864-1920): sociólogo alemão, a violência que a aflige e em respeitar Chile, por exemplo. Em relação aos considerado um dos fundadores da Sociologia. os direitos humanos. Uma sociedade que países que mencionei, o Brasil é o que Ética protestante e o espírito do capitalismo expõe os crimes cometidos pelos seus (Rio de Janeiro: Companhia das Letras, 2004) menos avançou no campo da justiça é uma das suas mais conhecidas e importan- agentes públicos e deles exige uma con- de transição, que engloba o direito à tes obras. Cem anos depois, a IHU On-Line duta compatível com o respeito aos di- memória e à verdade, a justiça, a re- dedicou-lhe a sua 101ª edição, de 17-05-2004, reitos mais básicos de todos os cidadãos intitulada Max Weber. A ética protestante paração e a reforma das instituições. e o espírito do capitalismo 100 anos depois, é, sem dúvida, uma sociedade que inibe Creio que o maior aprendizado ofere- disponível para download em http://migre. a violência e que produz um espaço pú- cido por estas experiências a qualquer me/30rKx. De Max Weber o IHU publicou o Ca- blico mais digno e democrático. dernos IHU em Formação nº 3, 2005, chama- país que queira aprender, e ao Brasil do Max Weber – o espírito do capitalismo. Em Os índices de violência policial e em particular, é perceber que a ver- 10-11-2005, o professor Antônio Flávio Pierucci judicial estão aí para quem quiser ob- dade não deve ser temida, que expor ministrou a conferência de encerramento do I servar. O Brasil se apresenta como uma Ciclo de Estudos Repensando os Clássicos da publicamente as atrocidades cometi- Economia, promovido pelo IHU, intitulada Re- espécie de campeão desses índices e o das por agentes do Estado não signi- lações e implicações da ética protestante para silêncio e a negação são o ambiente o capitalismo. (Nota da IHU On-Line) 22 SÃO LEOPOLDO, 18 DE ABRIL DE 2011 | EDIÇÃO 358 ideal para a propagação e a continui- Herança ditatorial dade da violência. Por isto não deve- “O processo transicional mos temer a verdade. Temos o dever Na Argentina, a ausência de uma de investigá-la e de expô-la. espanhol é parecido com coesão entre os militares e a elite judi- cial levou os militares a considerarem Anistia não é amnésia o brasileiro, no sentido o judiciário pouco ou de modo algum “confiável”. Não havia, portanto, me- Na África do Sul a anistia concedida de que ainda se cerca do diadores institucionais entre a violên- aos agentes perpetradores vinculados à cia direta dos agentes da repressão e política criminosa do Apartheid não foi silêncio como os seus alvos. A estratégia adotada foi uma anistia branca e geral, como foi por claramente a da eliminação e do desa- aqui. O princípio posto em prática, ainda característica central” parecimento em massa dos opositores que concretizado com falhas e lacunas, políticos. Contudo, se a forte coesão  era o de que a condição para a anistia paradoxo no caso brasileiro. De todos institucional ocorrida na ditadura mi- era a revelação da verdade, o reconheci- os três países, o Brasil foi aquele que litar brasileira e a sua máscara de le- mento das atrocidades praticadas. Fica melhor judicializou a repressão ditato- galidade foram responsáveis por uma claro, a partir do exemplo sul-africano, rial e construiu uma legalidade autori- cifra menor de mortos e desaparecidos que anistia não pode ser confundida com tária mais ampla, arraigada e vinculada do que em relação à Argentina, elas esquecimento ou amnésia. Esta também à ordem jurídica anterior. Tal se deve, mantiveram no Brasil a continuidade é outra grande lição que o Brasil deveria entre outros fatores, ao alto grau de da herança autoritária no período pós- aprender. Quanto à Argentina, sem dú- coesão entre as elites judiciais e as for- ditatorial. Herança que continua forte vida o país mais avançado em suas po- ças armadas, o que levou os condutores até hoje, ao contrário do que ocorre na líticas e processos transicionais, dentre do golpe e da sua manutenção à opinião Argentina. Após a ditadura brasileira, as inumeráveis lições que poderiam ser de que o judiciário era “confiável”, e nenhum juiz, por mais conivente que aprendidas, eu destaco a existência de que, portanto, os tribunais poderiam se fosse com o regime, nenhum policial, uma Suprema Corte que respeita os tra- prestar ao papel de intermediário entre por mais que tenha torturado e assas- tados internacionais de direitos humanos a ação repressiva direta dos agentes de sinado opositores, nenhum político ou e os coloca em hierarquia superior no segurança pública e aqueles que eram dirigente, por mais que tenha aprova- ordenamento jurídico. Neste sentido, a perseguidos políticos, tidos no contex- do, ordenado ou tenha sido conivente diferença entre ela é o Supremo Tribunal to da ditadura como criminosos e ter- com a tortura, foi demitido, exonera- Federal brasileiro é abissal. roristas. Se por um lado os milhares de do ou responsabilizado pelos seus atos. Quanto à Espanha, mencionada na julgamentos ocorridos na ditadura bra- Muitos deles simplesmente continuam pergunta, creio que não se deve in- sileira faziam vistas grossas em relação a atuar no Poder Público, transferindo cluí-la no rol de países mais avançados às denúncias de tortura e compactua- agora o foco da sua impunidade para nos processos de transição. A ditadura vam com leis draconianas, como eram os criminosos comuns e os suspeitos de franquista foi tão ou mais sanguinária os Atos Institucionais e seus derivados, o serem, que continuam a ser barbara- que a ditadura argentina. No entanto, contando com juízes que defendiam e mente torturados nas delegacias e nos há uma grande diferença sobre como incorporavam a ideologia do regime, presídios, sempre com o aval de juízes ambos os países lidam com seu passado por outro, tais julgamentos contavam que os mandam ou os mantêm por lá, ditatorial. O processo transicional es- com um arsenal razoável de garantias e que justificam, em muitos casos, a panhol é parecido com o brasileiro, no e procedimentos e permitiam em gran- sua decisão a partir de uma avaliação sentido de que ainda se cerca do silên- de parte dos casos evitar que os opo- totalmente arbitrária da personalidade cio como característica central. Basta sitores políticos fossem simplesmente do criminoso ou suspeito como sendo ver a reação das elites judiciais espa- eliminados. Em sua pesquisa, Anthony um “indivíduo de alta periculosidade”. nholas e outras em relação à iniciativa Pereira notou também que, no Brasil, É compreensível, portanto, embora do juiz Baltazar Garzon de investigar os advogados de defesa de presos polí- não justificável, que, diante deste qua- os crimes da ditadura franquista. ticos possuíam uma relativa liberdade dro, o Brasil tenha grande dificuldade e autonomia para atuar nas cortes polí- em lidar com o seu passado ditatorial. IHU On-Line - Por que o Brasil não ticas e conseguiram, por vezes, induzir Como não houve uma depuração das consegue dialogar com seu passado os juízes a interpretarem a legislação nossas instituições - especialmente ditatorial? autoritária de uma maneira mais benig- das forças armadas, do judiciário e das José Carlos Moreira Filho - Em seu li- na para os seus clientes. forças policiais -, a manutenção do dis- vro Ditadura e Repressão, no qual pro- curso apologético da ditadura e a ne- sor do Departamento de Ciência Política da move um estudo comparado sobre a ju- Tulane University, em Nova Orleans, Louisiana, gação dos crimes contra a humanidade dicialização da repressão na Argentina, Estados Unidos. (Nota da IHU On-Line) cometidos continuam a ser a moeda no Chile e no Brasil, o cientista político  PEREIRA, Anthony W. Ditadura e repres- corrente, endossada igualmente pelos  são: o autoritarismo e o estado de direito Anthony Pereira identifica um curioso no Brasil, no Chile e na Argentina. São meios de comunicação de massa, que  Anthony Pereira: cientista político, profes- Paulo: Paz e Terra, 2010. em grande parte também apoiaram a SÃO LEOPOLDO, 18 DE ABRIL DE 2011 | EDIÇÃO 358 23 ditadura e foram cúmplices dos crimes as normas da caserna à Constituição presentes em lugar de honra suas ex- praticados, não tendo assim muito in- Federal. Resultado: o Capitão Fernan- companheiras de cela e no qual ela não teresse na busca dessa verdade. Con- do está preso e sofre a ameaça de ser se furtou a fazer generosas referências tinuamos a ter uma justiça militar com expulso da força. O mesmo acontece à geração que combateu a ditadura. O jurisdição inclusive sobre civis, e uma com o autor do livro Exército na Se- firme empenho da ministra Maria do espinha organizacional, tanto das for- gurança Pública: uma Guerra Contra o Rosário em prol da Comissão da Ver- ças armadas quanto das policiais, que Povo Brasileiro, o capitão Mário Soa- dade também é um sinal positivo. impõe uma forte e violenta estrutura res, mais conhecido por Capitão Mari- hierárquica, que possui predominância nho e também gaúcho. Condenação da Corte Interamericana em relação ao respeito pelos direitos de Direitos Humanos humanos, não só dos seus alvos mas IHU On-Line - Essa realidade tende a também dos seus próprios agentes. mudar com o governo Dilma? Quais Recentemente a presidenta este- são suas expectativas? ve em Porto Alegre para homenagear a Negação do golpe José Carlos Moreira Filho - Acredito memória das vítimas do Holocausto, e que no governo Dilma teremos menos na mesma ocasião ela cancelou a visita É igualmente espantosa a forte vi- hesitação com este tema. Recente- já programada à Usina de Candiota. Na são institucional que permeia as forças mente, o chefe do Gabinete de Se- época, os jornais gaúchos noticiaram o armadas quanto ao passado ditatorial. É gurança Institucional da Presidência fato lamentando o cancelamento da vi- quase como se a confissão dos seus erros da República, o general ‘ deu uma sita e fazendo especulações sobre o seu e abusos fosse significar a dissolução da declaração infeliz, para dizer o míni- motivo. O que me espantou, mas não me sua própria identidade, ainda enfatica- mo, sobre os desaparecidos políticos surpreendeu, é que nenhum deles notou mente sustentada na ideologia da segu- da ditadura militar, afirmando que as a contradição que seria a presidenta ho- rança nacional. Isto vale tanto para mi- forças armadas não tinham nada do menagear as vítimas do Holocausto e, no litares mais jovens como veteranos. Há que se vangloriar ou se envergonhar a dia seguinte, inaugurar as novas instala- uma barreira que parece quase intrans- respeito do assunto. Imediatamente, ções da Usina chamada Presidente Mé- ponível e que impede que os nossos mili- a presidenta Dilma o repreendeu de dici, exatamente o nome do governante tares possam fazer o que fizeram os mi- modo claro e direto, sem se demorar ditatorial responsável pelo período mais litares argentinos (nem todos, é claro), em esforços conciliatórios. O fato da sangrento da ditadura. reconhecendo as atrocidades cometidas presidenta Dilma ter sido uma ex-per- Por outro lado, ainda não foi pos- e pedindo desculpas à nação. Enquanto seguida política, militante vinculada sível perceber nenhuma ação concre- isto, no Brasil, os militares comemoram a uma das organizações clandestinas ta de maior envergadura do governo o golpe com festas e negam que tenha mais combativas do período ditatorial, Dilma em prol do direito à memória e havido a tortura sistemática como polí- a VAR-Palmares, tendo sofrido prisões à verdade e da reparação. A Comissão tica de governo. De todo modo, a espe- e torturas bárbaras, é algo por demais de Anistia, por exemplo, vem sofrendo rança continua viva. simbólico e importante para o amadu- desde a saída de Tarso Genro do Minis- Em uma palestra que dei ano passa- recimento da nossa democracia. Antes tério da Justiça uma drástica redução do na Universidade Federal do Paraná, de ela assumir, tive o receio de que de pessoal e de condições estruturais fui interpelado por um jovem militar, justamente em função da sua forte para o seu trabalho, o que motivou a aluno de Direito, que me indagou so- vinculação ao tema, ela procuraria se suspensão do trabalho ordinário da Co- bre o que se podia fazer para que os manter distante dos inevitáveis em- missão e uma reconfiguração na qual militares reconhecessem o seu erro, bates que surgiriam a partir da im- certamente se diminuirá em quase 90 evitassem repeti-lo e conseguissem plementação de políticas públicas de % a quantidade de processos julgados democratizar a instituição militar. Eu memória. Mas esta impressão sofreu e de ações educativas em prol da me- disse a ele que isto só iria acontecer um certo abalo após o seu discurso e mória política, como o são as Carava- de fato a partir de pessoas como ele, a cerimônia de posse, na qual estavam nas da Anistia. Também não se tem que estão dentro da instituição e que-  MARINHO, Capitão. Exército na Segu- uma clara sinalização de se ou como o rem que ela mude. Isto ainda é muito rança Pública: uma Guerra Contra o Povo atual governo cumprirá a sentença da difícil, como pode ser comprovado a Brasileiro. Curitiba: Juruá, 2010. Corte Interamericana de Direitos Hu-  José Elito Siqueira: general, chefe do Gabi- partir das consequências atualmente nete de Segurança Institucional (GSI) do gover- manos que condenou o Brasil no caso sofridas por qualquer militar que ouse no de Dilma Rousseff. Em janeiro de 2011, afir- Araguaia. É certo que o governo está questionar a deficiência democrática e mou que “Nós temos que ver o 31 de março de  Maria do Rosário Nunes (1966): professora 1964 como dado histórico de nação, seja com e política brasileira, formada em pedagogia a violência da sua instituição, como é o prós e contras, mas como dado histórico. Da pela UFRGS, com especialização pela USP, e caso do capitão paraquedista Luiz Fer- mesma forma, os desaparecidos são história da atualmente exerce o cargo de Ministra da Se- nando Ribeiro de Sousa, mais conheci- nação, que não temos que nos envergonhar ou cretaria de Direitos Humanos da Presidência nos vangloriar”. Em função dessa declaração da República e ocupa também uma cadeira na do como Capitão Fernando. Ele lidera foi chamado pela presidenta Dilma para pres- Câmara Federal. (Nota da IHU On-Line) no Rio Grande do Sul um movimento tar explicações. Confira mais sobre esse tema  Guerrilha do Araguaia: movimento guerri- que se intitula de “capitanismo”, e na entrevista concedida por Jair Krischke em lheiro existente na região amazônica brasi- 07-01-2011 às Notícias do Dia, disponíveis em leira, ao longo do rio Araguaia, entre fins da cuja reivindicação central é adequar http://bit.ly/hoiRPf. (Nota da IHU On-Line) década de 1960 e a primeira metade da dé- 24 SÃO LEOPOLDO, 18 DE ABRIL DE 2011 | EDIÇÃO 358 apenas começando, mas devemos não por isto. O Estado não faz nada menos do só esperar para ver como também nos “Na Argentina, foi que o seu dever em dar vida ao princípio mobilizarmos e cobrarmos das auto- jurídico universal de que se devem inde- ridades constituídas um investimento somente após a nizar aqueles que foram prejudicados de realmente sério e palpável no tema forma ilícita, ainda mais quando quem dos direitos humanos. conclusão dos trabalhos os prejudicou foi exatamente o próprio Estado. IHU On-Line - O que foi e é exata- da Comissão da Verdade Por fim, a recente decisão -do Su mente a Lei de Anistia aplicada no premo Tribunal Federal sobre a inter- Brasil? que se iniciaram os pretação da lei de anistia de 1979 é José Carlos Moreira Filho - Primeira- um dos sinais mais veementes da forte mente, é preciso entender que exis- julgamentos por presença entre nós da herança autori- tem duas leis de anistia no Brasil: a Lei tária da ditadura militar, bem naquela 6.683/79 e a Lei 10.559/02. Há uma di- violações de Direitos linha do que eu dizia em minha respos- ferença profunda entre ambas. A lei de ta à segunda pergunta desta entrevis- 1979 foi editada e promulgada em ple- Humanos, tendo sido de ta. Sobre esta decisão e os absurdos na ditadura militar, por um Congresso jurídicos e históricos apresentados submisso e desconfigurado pelo pacote inestimável importância pela maioria dos ministros remeto o de abril de 1977. Geisel, invocando o leitor a um artigo que escrevi intitu- AI-5, havia dissolvido o Congresso, ins- o relatório produzido lado “O julgamento da ADPF 153 pelo tituído os senadores biônicos e mudado Supremo Tribunal Federal e a inacaba- as regras de composição da casa, de tal pela Comissão” da transição democrática brasileira”. maneira que não fosse possível a apro- vação de qualquer projeto de lei que seus crimes, enquanto que para os per- IHU On-Line - Por que motivos foi contrariasse os interesses ditatoriais. seguidos políticos a anistia não foi geral, adotado esse recurso? Era o melhor No espectro destes interesses estava a visto que os condenados pela participa- que se podia ter feito? Por quê? anistia, vista pelos seus arquitetos muito ção na luta armada não foram anistiados José Carlos Moreira Filho - Além do mais como uma maneira de escapar de por esta lei. que eu já disse sobre o tema, acres- uma eventual prestação de contas dos Por outro lado, não se pode deixar centaria que, no contexto de 1979, não agentes públicos que facilitaram, orde- de reconhecer que a luta pela anistia, havia condição de se manter em aberto naram e praticaram crimes contra a hu- com fôlego especialmente renovado a um processo de responsabilização dos manidade do que um meio de libertar os partir de 1975 pelos inúmeros comitês agentes ditatoriais. Como eu já disse presos políticos e permitir o retorno dos brasileiros pela anistia, deu um belís- antes, ainda vivíamos uma ditadura. É exilados. A ditadura anteviu o seu pró- simo exemplo de movimentação popu- claro que seria pior se não tivesse ocor- prio fim e garantiu que ele fosse o mais lar, ainda que o governo de Figueiredo rido a anistia dos perseguidos políticos vantajoso possível para os seus agentes o ignorasse completamente. Também naquele ano, mas isto não significa que, e torturadores, concedendo a eles, de não se pode deixar de observar que o agora, no ano de 2011, com uma de- modo propositadamente vago - afinal, Brasil teve um ganho inestimável para mocracia estável e sob a égide de uma não reconheciam, como continua sendo o seu processo político e democrático Constituição cidadã e democrática, até hoje, as atrocidades cometidas -, com o retorno dos exilados e a liberta- não tenhamos condições de finalmente uma anistia isenta de qualquer investi- ção dos presos políticos. confrontar o nosso passado e promover gação ou esclarecimento em relação aos as necessárias responsabilizações, bem cada de 1970. Criada pelo Partido Comunista Revisão da lei de anistia na linha do respaldo jurídico já forne- do Brasil (PCdoB), uma dissidência armada cido pela sentença da OEA. do Partido Comunista Brasileiro (PCB), tinha Já a Lei 10.559/02 veio regulamentar como o objetivo fomentar uma revolução so- cialista, a ser iniciada no campo, baseada nas o Art. 8º do Ato das Disposições Constitu- IHU On-Line - O que essa lei signifi- experiências vitoriosas da Revolução Cubana e cionais Transitórias, que trata da repara- cou para torturadores e torturados? da Revolução Chinesa. Combatida pelo exérci- ção aos que foram perseguidos políticos José Carlos Moreira Filho - Sobre isto to a partir de 1972, quando vários de seus in- tegrantes já haviam se estabelecido na região pela ditadura. Note-se bem que no texto apenas acrescento que um dos signi- há pelo menos seis anos, o palco das operações da nossa Constituição de 1988 nada se ficados mais perversos que a lei de de combate entre a guerrilha e o Exército se diz com relação a uma anistia para agen- anistia de 1979 acabou trazendo foi o deu onde os estados de Goiás, Pará e Maranhão faziam fronteira. Desconhecida do restante do tes do regime e torturadores, nada se diz de alimentar o discurso de que havia país à época em que ocorreu, protegida por sobre crimes conexos ou de qualquer na- uma cortina de silêncio e censura a que o mo- tureza. O foco desta anistia, cuja missão  SILVA FILHO, José Carlos Moreira da Sil- vimento e as operações militares contra ela va Filho. O julgamento da ADPF 153 pelo foram submetidos, os detalhes sobre a guer- é de responsabilidade da Comissão de Supremo Tribunal Federal e a inacaba- rilha só começaram a aparecer cerca de vinte Anistia do Ministério da Justiça, é a re- da transição democrática brasileira. In: anos após sua extinção pelas Forças Armadas, paração dos que foram perseguidos polí- PIOVESAN, Flávia; SOARES, Inês Prado. já no período de redemocratização. (Nota da Direito ao desenvolvimento. São Paulo: IHU On-Line) ticos e pagaram um elevadíssimo preço Fórum, 2010, p. 515-545. SÃO LEOPOLDO, 18 DE ABRIL DE 2011 | EDIÇÃO 358 25 dois lados, que cometeram crimes e pretenderá ou não cumprir a sentença ra. Por exemplo, em Direito Administra- que depois fizeram um acordo. O que da Corte da OEA. tivo seria importante que, antes de se se teve, na verdade, foi um grupo de De todo modo, entendo que, mesmo fazer uso da obra didática de Hely Lo- cidadãos brasileiros perseguido pelo sem a possibilidade de responsabiliza- pes Meirelles - uma das mais utilizadas governo do seu próprio país, que não ção, a existência de uma Comissão da nos cursos de Direito -, se soubesse que teve os seus direitos mais básicos res- Verdade no Brasil seria muito importan- ele, quando foi secretário de Segurança peitados por quem mais tinha o dever te. Além de ela sempre poder trazer a Pública do Estado de São Paulo, apoiou de respeitá-los: o Estado. O que se teve possibilidade de que alguns agentes se entusiasticamente a formação do Esqua- foi um governo golpista que depôs um sintam arrependidos e falem, ou de en- drão da Morte, liderado pelo sanguinário presidente eleito pelo povo, que ras- corajar pessoas que não participaram Sergio Paranhos Fleury. gou os fundamentos da Constituição diretamente a contarem o que sabem, é de 1946, e, de outro lado, um grupo possível que muitos documentos secretos IHU On-Line - As ditaduras que caem de brasileiros que exerceu o legítimo em poder das Forças Armadas possam vir em dominó na Tunísia e Egito e a que direito de resistência à tirania. à luz, e que a publicização das atroci- treme na Líbia, onde Khadafi está dades venha a causar uma mobilização prestes a ruir, são sinais de esperan- IHU On-Line - Em que medida a Co- social em prol da responsabilização. Na ça para um mundo mais justo e de- missão da Verdade irá resolver os ca- Argentina, foi somente após a conclusão mocrático? Por quê? sos obscuros da ditadura? dos trabalhos da Comissão da Verdade José Carlos Moreira Filho - Acredito que José Carlos Moreira Filho - Será de que se iniciaram os julgamentos por vio- sejam sim, pois mostram que, quando a fundamental importância o trabalho lações de Direitos Humanos, tendo sido sociedade se organiza e se mobiliza, ela do Congresso Nacional para que a Co- de inestimável importância o relatório pode conquistar direitos, de modo mui- missão da Verdade no Brasil seja uma produzido pela Comissão. to mais legítimo, pacífico e eficiente do realidade efetiva. Acredito que a mera que qualquer intervenção estrangeira. E aprovação do projeto de lei enviado IHU On-Line - Esquecer é matar duas esta é a forma mais elevada de demo- pelo Executivo não será o suficiente. vezes. Como conscientizar e infor- cracia, aquela que vem de baixo para É preciso fazer modificações no texto mar os jovens do que houve em nos- cima, das ruas para as instituições. Pen- do projeto. Para começar, o tempo de so país há tão pouco tempo? so também que o ocorrido é importante dois anos é muito pouco a fim de que José Carlos Moreira Filho - Para isto, é para que o mundo ocidental reveja o seu se consiga realizar minimamente o fundamental a publicização dos crimes preconceito etnocêntrico em relação que se pretende. Este problema pode- cometidos pela ditadura, pois somen- ao mundo árabe, percebendo que parte ria ser resolvido com a menção de que te assim poderemos sair do signo do expressiva do seu povo possui vocação e o prazo fixado poderá ser prorrogado silêncio e da negação e, inclusive, ter- desejo para a construção de sociedades caso necessário. Outro ponto não mui- mos mais condições de inserirmos este democráticas, e que, mesmo no âmbito to claro do texto do projeto é o que tema na nossa formação educacional, de teocracias como a iraniana, existem se refere aos documentos sigilosos. Ali seja nos livros didáticos ou nas aulas pessoas e grupos que não compactuam se diz que a Comissão deverá ser sigi- ministradas por nossos professores em com o extremismo religioso e a violência losa na manipulação de tais documen- todos os níveis de ensino. Indispensável, que dele emana. tos, mas não se afirma que este sigilo igualmente, que a conscientização e a deverá ser eliminado no momento da informação ocorram também no âmbito Leia Mais... divulgação do relatório final. formativo das nossas instituições de se- Com relação à possibilidade real de gurança, como o Judiciário, as polícias >> José Carlos Moreira Filho já concedeu outras entrevistas à IHU On-Line. O material está se descobrir novas informações sobre o e as Forças Armadas. Penso, por fim, disponível no sítio do IHU (www.ihu.unisinos.br). que aconteceu na repressão promovi- que é extremamente estratégica uma • Políticas de memória, um dever social. Entrevista da pela ditadura, entendo que o afas- mudança nos cursos de Direito do país publicada na IHU On-Line número 343, de 13-09- 2010, disponível em http://migre.me/41KGS; tamento de qualquer possibilidade de no sentido de abarcarem a temática e • Lembranças vivas, feridas abertas: a punição aos responsabilização aos seus agentes é de promoverem o resgate da memória torturadores da ditadura no Brasil. prejudicial. Afinal, o que poderia levar política em sala de aula, afinal é das Entrevista especial com José Carlos Moreira da Silva Filho, concedida em 22-8-2009, para as Notícias do um agente que torturou, assassinou e faculdades de Direito que saem nossos Dia, disponível em http://migre.me/41KIx. promoveu o desaparecimento forçado juízes e delegados de polícia. Em abril • A afirmação positiva da diferença. Entrevista pu- de pessoas, bem como quem ordenou, de 2010, tive a oportunidade de realizar blicada na IHU On-Line número 266, de 28-07-2008, disponível em http://migre.me/41KJA; apoiou ou sustentou tais ações, a reve- uma oficina especificamente sobre este • Um direito mais amplo e interdisciplinar. Entrevis- lar a verdade, já que não haveria ne- tema no Encontro da Associação Brasilei- ta publicada na IHU On-Line número 305, de 24-08- nhum risco de uma responsabilização ra de Ensino do Direito (ABEDi) ocorrido 2009, disponível em http://migre.me/41KKa. a partir da qual se pudesse negociar na FGV do Rio de Janeiro. Nesta oficina uma anistia, como foi feito na África percebemos que em todas as disciplinas  Hely Lopes Meirelles (1917—1990): jurista do Sul? Uma eventual responsabiliza- do curso de Direito é possível trabalhar brasileiro, reconhecido como um dos princi- pais doutrinadores do Direito Administrativo e ção, hoje, depende de como o governo o conteúdo da memória política brasilei- do Direito Municipal brasileiro. (Nota da IHU On-Line) 26 SÃO LEOPOLDO, 18 DE ABRIL DE 2011 | EDIÇÃO 358 Pinochet e a herança grotesca da ditadura Julgado como ladrão, o ditador chileno não foi condenado como “organizador do crime político e do estado policial”, lamenta José De La Fuente. Colaboração entre países la- tino-americanos solidificou a atuação da Operação Condor e promoveu um know-how da tortura

Por Márcia Junges | Tradução Benno Dischinger

ma herança grotesca de perseguição, desaparecimento de pessoas, “encarceramentos maciços e assassinatos de militantes de esquerda”. Eis alguns dos principais legados da ditadura de Augus- to Pinochet, no Chile, avalia o professor chileno José De La Fuente. “No período da ditadura, o poder Judiciário praticamente não funcionou, atuou em conluio com o regime, negou sistemati- camente o direito à defesa e o habeas corpus”, pontua. Além disso, a hegemonia desse regime Ufoi baseada na “organização de um aparato de Estado policial permanente, convencida de seu messianismo salvífico para evitar que o Chile e a América Latina ‘caíssem nas mãos do comunismo soviético’”. Há de se ressaltar que “o principal responsável e condutor da criminalidade política, o ditador Augusto Pinochet, morreu tendo sido julgado como ladrão, porém não condenado como organizador do crime político e do es- tado policial”. A colaboração entre os países latino-americanos na Operação Condor, iniciada na década de 1960, é outro aspecto debatido na entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line: “Os generais Garrastazu Médici, Geisel e Batista Figueiredo sem dúvida orientaram Pinochet e o ajudaram com a Operação Condor e no preparo de torturadores”. Essa organização, acredita, “não morreu com o desaparecimento de Pinochet ou de Stroessner”. Em seu ponto de vista, “o interesse dos Estados Unidos em apoiar este tipo de ditadu- ras e de facínoras, não era outro que impedir o desabrochar da participação popular, da organização e do protagonismo da inteligência política dos povos em sua ascenção à recuperação do poder social e político. Talvez o caso do Chile seja o mais patético”. A respeito do governo de Michelle Bachelet, dispara: “O fim da ditadura não significou um reencontro dos chilenos com os ideais democráticos socialistas que a presidente declarava. Bachelet não pôde mudar os enclaves ditatoriais como o Sistema Eleitoral Binominal, substituir a Constituição deixada pelo ditador e o modelo econômico neoliberal e reivindicar os direitos ancestrais da nacionalidade mapuche”. José De La Fuente é professor de espanhol, mestre em Literatura Hispânica e doutor em Estudos America- nos pela Universidade de Santiago do Chile. Atualmente, leciona na Universidade de Santiago do Chile e na Universidade Cardenal Raúl Silva Henríquez. É membro do Comitê Acadêmico Internacional da rede Corredor das Ideias do Conesul, do Grupo de Estudos Eidéticos da Universidade de Talca. De suas publicações citamos Narrativa de Vanguardia, identidad y conflicto social en la novela latinoamericana (2007) e De la escritura a la vida (1996), de poesias. Confira a entrevista.

IHU On-Line - Qual é a pior herança em todas as atividades e aspirações “caíssem nas mãos do comunismo so- da ditadura chilena de Pinochet, que sociais, especialmente em educação, viético”. A permanente ação policial durou 17 anos? em participação política, em partidos, do regime fratura a identidade cultu- José De La Fuente - Num mesmo pla- sindicatos e cooperativas, na imprensa al e política, impõe pela violência o no de importância no tempo, a pior autenticamente democrática. A pro- neoliberalismo, excluindo-se o pensa- herança ficou marcada na idiossincra- longada ditadura baseou sua hegemo- mento alternativo e democrático com sia e no caráter dos chilenos, aspectos nia na organização de um aparato de um recorrente desprestígio da política centrais de sua identidade. O século XX Estado policial permanente, convenci- e dos políticos. Do medo às ideias e foi uma época de paulatina ascensão e da de seu messianismo salvífico para à autocensura, a sociedade chilena integração do povo e das faixas médias evitar que o Chile e a América Latina ainda não conseguiu sanar-se. Pelo SÃO LEOPOLDO, 18 DE ABRIL DE 2011 | EDIÇÃO 358 27 contrário, os governos pós-ditadura, “A população chilena não José De La Fuente - As agrupações que administraram o país de 1990 até denominadas Detidos-Desaparecidos, 2010, através do conglomerado políti- tem um duelo pendente; Presos e Torturados Políticos; a Comis- co chamado “Concentração para a de- são Ética contra a Tortura – CECT, que mocracia”, pelas leis de amarração do segue vivendo no inferno funcionou durante dez anos; a Asso- pinochetismo e do império norte-ame- ciação de Executados Políticos – AFEP, ricano, terminaram vergonhosamente do cinismo e da que declara mais de 1.176 execuções; aumentando os efeitos de iniquidade algumas igrejas, organismos como a político-econômica do neoliberalismo. banalidade dos Anistia Internacional e ONGs têm man- Foram incapazes de derrogar e modifi- tido uma mobilização e um alerta per- car a Constituição de 1980, promulga- ‘operadores políticos’” manente para impedir as intenções de da por Pinochet e, até o dia de hoje, grupos corporativos, da direita fascis- rege o Sistema Eleitoral Binominal, ta e de nostálgicos pinochetistas, de que impede o governo das maiorias, A população chilena não tem um perdoar sem mais os carrascos, tortu- favorecendo o empate político e a ide- duelo pendente; segue vivendo no in- radores e assassinos a soldo de Pino- ologia econômica de um capitalismo ferno do cinismo e da banalidade dos chet. As mulheres dos Detidos-Desapa- desregulado e perverso para os mais “operadores políticos”: os parlamen- recidos fizeram uma luta exemplar, da pobres. tares, salvo exceções, parece carece- mesma firmeza e perseverança que o O Chile é um dos países do mundo rem de ideias próprias. Todos querem movimento de mulheres Mães da Praça onde existe a pior distribuição da ri- se assemelhar uns aos outros; há temor de Maio da Argentina e de outros paí- queza que provém do trabalho de seu à dissidência; evitam a distinção e as ses do Cone Sul. povo e da venda de matérias primas, diferenças ideológicas. A uniformidade Em 1978, a ditadura, por meio do especialmente do subsolo e do patri- militar – obediência devida? – parece decreto de Lei Nº 2.191, conhecido mônio mineiro. que ficou para sempre incrustada em como Lei de Anistia, pretendeu be- seus cérebros. neficiar os autores, encobridores e Herança grotesca cúmplices dos delitos cometidos em Etapas mentais tempos de estado de sítio. Fundamen- Finalmente, a ditadura deixa a gro- talmente, este decreto favoreceu os tesca herança da perseguição, do de- Desde a perspectiva psicanalítica, esbirros da ditadura, expulsando-os saparecimento de pessoas, dos encar- a sociedade passou por diferentes eta- do país. Posteriormente, a ditadura já ceramentos maciços e assassinatos de pas mentais; e, entre elas, a partir de se viu impedida dessas ações de enco- militantes de esquerda. Aí estão os in- 1973 entra num estado mental paranoi- brimento legal. Para os opositores ao formes testemunhais: o Informe Rettig co, no qual “o outro” é o inimigo que regime, serão outros organismos que de Verdad y Reconciliación (1991), que quer destruir-nos e, por isso, é preciso atenderão às petições de indultos. dá conta de 3.195 detidos e desapare- eliminá-lo. Com a dissolução da Dire- Porém, a maioria dos perseguidos chi- cidos e o Informe Valech de la Comisi- ção de Inteligência Nacional – DINA, lenos não obteve o benefício de anis- ón Nacional sobre Persecución Política passa-se a um estado mental narcisis- tia. Pelo contrário, a injustiça e a ar- y Tortura (2005), que consigna mais de ta ou maníaco, que expressa a sensa- bitrariedade, permanentes por várias 28 mil violentados, incluindo crianças, ção de triunfo e desprezo pelo adver- décadas, consolidou no povo chileno anciãos e mulheres grávidas. sário. De 1989 em diante entra-se num uma resistência ativa para opor-se ao Com efeito, todos estes fatos de- estado neurótico, em que os diversos esquecimento e consolidar em sua me- ram origem ao “apagão cultural” que, grupos se ameaçam mutuamente. E, mória um verdadeiro tribunal de cons- desde então até o dia de hoje, se tra- desde 1990, a banalidade transforma ciência social. No período da ditadura, duz num sistema educativo privado os políticos numa classe decadente na o poder Judiciário praticamente não com fins de lucro, que não se interes- qual muito poucos, especialmente os funcionou, atuou em conluio com o sa pela reeducação cívica e, menos jovens, confiam. É preciso não esque- regime, negou sistematicamente o di- ainda, por democratizar os claustros cer que o modelo neoliberal, como o reito a defesa e o habeas corpus. Uma universitários e onde tanto faz um assinala o historiador Sergio Grez, “no vez recuperada uma fração da demo- governo de “direita”, de “esquerda” Chile é um modelo que tende à frag- cracia em começos de 1990, alguns ju- ou “democrata cristão”, inclusive de mentação do corpo social, que não ízes começam a atender às acusações se viver ou não em democracia. To- estimula a que a gente se reúna, dis- contra os torturadores e assassinos. dos são ideologicamente uma mesma cuta, participe, senão que propicia o amálgama regulada pela colusão de individualismo, as soluções puramente Retorno à impunidade? Reagan e Thatcher, que condicionaram pessoais e não coletivas”. as ditaduras e os intermináveis gover- Em fins de maio de 2010, 782 ex- nos de transição, incluídos os socialis- IHU On-Line - Como funcionou a anis- agentes de serviços de segurança foram tas, segundo o famoso “Consenso de tia no Chile? Foi realizada de manei- processados e condenados por crimes Washington”. ra adequada? associados a violações de direitos huma- 28 SÃO LEOPOLDO, 18 DE ABRIL DE 2011 | EDIÇÃO 358 nos. Entre os anos 2000 e 2010, aproxi- “Incute-me vergonha a Fundação e Arquivo de la Vicaria madamente 290 ex-agentes das forças (www.archivovicaria.cl); o Museu de de segurança de Pinochet receberam um cívica recordar que la Memoria (www.museodelamemoria. total de 505 sentenças condenatórias cl), etc. por crimes associados a violações de di- Pinochet, depois de ter Em termos estritamente políticos, reitos humanos. Porém, quase a metade a conta não está saldada. Nenhum dos desses agentes, 145, recebeu algum tipo sido ditador, foi governos, a partir dos anos 1990, tem de benefício, como redução de pena ou sido capaz de convocar o povo a um liberdade vigiada em sentenças ratifi- Comandante em Chefe referendo nacional por meio de uma cadas pela Corte Suprema de Justiça. Assembleia Constituinte para redigir, Não obstante as vacilações e contradi- do Exército, aceito por discutir e aprovar uma nova Consti- ções com que opera o sistema judicial, tuição. A entrega da simbólica faixa o braço direito de Pinochet e principal Aylwin, e logo ingressou presidencial que o ditador pôs no pei- ideólogo da política de extermínio do to ao primeiro presidente do Acordo, regime, o General Manuel Contreras Se- no Parlamento como Patrício Aylwin, se fez transacionando púlveda, chefe da DINA e da CNI – am- com o imperialismo, com a oligarquia bos organismos de inteligência –, está senador vitalício” interna, com outros poderes factuais e em prisão perpétua com condenações com a ditadura certas questões funda- reais e simbólicas que somam mais de mentais, como: um remedo de Parla- 200 anos de cárcere. Mas, o principal sível. A juventude, dos anos 1990 em mento integrado por “notáveis”, sena- responsável e condutor da criminalida- diante, assume a FUNA, que consiste dores e juízes vitalícios, mantendo o de política, o ditador Augusto Pinochet, numa ação pública de justiça popular, modelo econômico de capitalismo des- morreu tendo sido julgado como ladrão, espontânea e de rápida conformação, regulado; o sistema eleitoral binomi- porém não condenado como organizador contra aqueles que não têm sido jul- nal; a filosofia e administração do sis- do crime político e do estado policial. E gados nem condenados. A FUNA é uma tema educacional; a segurança social agora, ao cumprir-se um ano de exer- forma de sentenciar publicamente os e a saúde transformada num grande cício do governo de Sebastián Piñera, o esbirros. Depois de um paciente e sigi- negócio de empresários privados na- qual governa com os mesmos símbolos loso seguimento, os “funeiros” surpre- cionais e transnacionais; a atomização da ditadura e com o apoio político dos endem o delator, cúmplice ou crimi- da organização obreira e a perda do partidos e burocratas que colaboraram noso num lugar público (restaurante, potencial negociador dos sindicatos; com Pinochet, formula a possibilidade praça, rua, estádio, bairro residencial, a desnacionalização das riquezas mi- de indulto para os violadores dos direitos interior de uma igreja, etc.), rodeiam nerais; a desnacionalização das orlas humanos, cuja maioria se constitui hoje o “funado”, julgam-no e o sentenciam marinhas e lacustres; a venda da água em dia de anciãos e enfermos. Volta ao a viva voz. (este bem natural já não é do Estado Chile a impunidade? nem do povo, pois está todo vendido a Memoriais empresas privadas). IHU On-Line - Como a sociedade Incute-me vergonha cívica recor- chilena conseguiu “acertas as con- Outra maneira de “acertar as con- dar que Pinochet, depois de ter sido tas” com o passado ditatorial de seu tas” com o passado ditatorial tem sido ditador, foi Comandante em Chefe do país? a criação e fundação de memoriais Exército, aceito por Aylwin, e logo in- José De La Fuente - A resposta é bas- pelos Detidos-Desaparecidos na maio- gressou no Parlamento como senador tante complexa e tem muitas arestas. ria das cidades do Chile e mais de 14 vitalício. Com efeito, o ajuste de con- O ajuste de contas tem sido lento e instituições, sob um verso do poeta tas tem sido muito deficitário, com a  protelado no tempo. A cifra de con- Mario Benedetti , que se converteu balança sempre inclinada para o lado denados, que dei na resposta ante- em lema: “O olvido está cheio de me- dos nostálgicos do pinochetismo, um rior, vista fora de contexto e da dor mória”. Entre as instituições mais im- perigo ideológico latente para as futu- acumulada por feridas que ainda não portantes figuram: o Parque pela Paz ras gerações. cicatrizam na geração dos sobrevi- Villa Grimaldi (ex-Quartel Terranova, ventes nascidos entre 1930 a 1960, campo de concentração e tortura, IHU On-Line - Qual é o fio condutor poderia ser eloquente e decisória da hoje transformado num museu aberto que une as ditaduras na América La- ação de tribunais e juízes que, mui- da memória); a Fundação Victor Jará, tina? A Operação Condor esteve por tos deles a contrapelo, assumem seu  Mario Benedetti: poeta, escritor e ensaís- trás delas? ofício tardiamente segundo o mandato ta uruguaio. Integrante da Geração de 45, a José De La Fuente - O fio condutor e juramente jurídico-social. Este ajus- qual pertencem também Idea Vilariño e Juan que une as ditaduras responde à re- Carlos Onetti, entre outros. Considerado um te de contas se tem traduzido em não dos principais autores uruguaios, iniciou a ação dos grupos oligárquicos internos ceder nenhum espaço de impunidade carreira literária em 1949 e ficou famoso em de cada país e aos cálculos de domi- aos carrascos da ditadura e a construir 1956, ao publicar “Poemas de Oficina”, uma nação ou de neocolonialismo do im- de suas obras mais conhecidas. (Nota da IHU museus e memoriais onde fosse pos- On-Line) pério norte-americano no contexto da SÃO LEOPOLDO, 18 DE ABRIL DE 2011 | EDIÇÃO 358 29 Guerra Fria. Naquela época, o proces- Em 1966 cria-se a Operação Condor o interesse dos Estados Unidos em so de democratização continental era unilateral; e logo, a partir de 1975, apoiar este tipo de ditaduras e de fa- evidente, envolvente e convincente. surge a Operação Condor multilateral cínoras, não era outro que impedir o Para eles era inaceitável que a Améri- integrada pelos governos do Brasil, desabrochar da participação popular, ca Latina, imbuída da filosofia para a Uruguai, Paraguai, Argentina e Chile. da organização e do protagonismo da integração econômica ideada pela CE- Os ideólogos são Henry Kissinger, Pi- inteligência política dos povos em sua PAL, do Pacto Andino, da Teologia da nochet, Hugo Bánzer, Stroessner, ascenção à recuperação do poder so- Libertação, da teoria da dependên- Videla, etc. Para estes malfeitores, cial e político. Talvez o caso do Chile cia, da ascensão crescente da revolu- os que não lhes rendem preito ou não seja o mais patético: o império aborta ção cubana, da nova liderança juvenil aderem aos seus interesses são consi- a via democrática do socialismo “a la com a recuperação de sua inteligência derados “lixo social”. Atualmente, o chilena” porque, ao avaliar o impacto universitária e solidária, etc., se cons- Plano Condor está em mãos da Confe- de ter sido eleito um presidente como tituísse em modelo alternativo socia- rência de Exércitos Americanos – CEA Salvador Allende no contexto de uma lista ante a decadência do capitalismo (composta por 20 países e 5 membros tradição republicana e dentro do ima- regional e que se superariam as iniqui- observadores) e o dirige das sombras o ginário de uma ordem burguesa, sem dades em outras partes do mundo sub- comandante em chefe do exército pe- disparar um tiro e utilizando o mesmo desenvolvido. ruano Otto Grivovich. Pode-se inferir aparato jurídico imposto pela burgue- Outro fio desta corda é a educação que esta organização não morreu com sia, este fato qualificam-no como “um dos oficiais dos exércitos latino-ame- o desaparecimento de Pinochet ou de mau exemplo” para o processo de ma- ricanos em escolas de formação nor- Stroessner. Pelo contrário, continua turação da socialdemocracia latino- te-americanas; é a matriz ideológica gozando da impunidade que lhe outor- americana, a superação do populismo e pedagógica que assegurou histori- gam nossas “democracias representa- e a recuperação dos territórios nacio- camente o poder dos endinheirados tivas”, invocando o amor à pátria e o nais como autêntica soberania econô- sobre a maioria de pobres e margina- cuidado do povo. mica e autonomia política. lizados. E, sem dúvida alguma, a Ope- Esta foi a projeção e o cálculo do ração Condor, que se inicia na déca- IHU On-Line - Qual foi o interesse dos império a partir da década de 1970. da de 1960, é o braço clandestino da Estados Unidos em apoiar este tipo Seus interesses imperiais começavam grande cruzada que organiza o fascis- de regimes? a ser questionados e iniciava-se a recu- mo latino-americano, manipulando os José De La Fuente - Por sua parte, peração da soberania dos distintos pa- exércitos e as polícias nacionais, para íses da região. Alguns países europeus, propagar a perseguição e os tratamen-  Henry Alfred Kissinger (1923): diplomata inclusive, viam com bons olhos a expe- estado-unidense que teve um papel importan- tos cruéis e degradantes contra os de- te na política estrangeira dos EUA entre 1968 riência chilena. Em outros termos, faz mocratas que acreditavam que “esse e 1976. Em 1938, devido às perseguições anti- tempo que cheguei à convicção de que outro mundo era possível”, com a re- semitas na Alemanha, emigrou com seus pais os Estados Unidos jamais aceitariam para os EUA. Serviu na Segunda Guerra Mun- ativação da utopia social por uma vida dial, e recebeu o Ph.D. de Harvard em 1954, que países do terceiro mundo alcan- melhor. A Operação Condor, denun- tornando-se instrutor na mesma universidade. çassem e concretizassem estágios de ciada pelo Prêmio Alternativo da Paz Kissinger foi conselheiro para a política es- desenvolvimento cívico e político hu- trangeira de todos os presidentes dos EUA de (2002), o doutor em Educação e advo- Eisenhower a Gerald Ford, sendo o secretário manizadores, inclusive a caminho da gado paraguaio Martín Almada, em seu de Estado, conselheiro político e confidente de plenitude democrática e da distribui- livro Paraguay, la cárcel olvidada, el Richard Nixon. Em 1973 ganhou, com Le Duc ção dos bens, com autêntica justiça e Tho, o Prêmio Nobel da Paz, pelo seu papel na país del exílio, com mais de 10 edi- obtenção do acordo de cessar-fogo na Guerra ética social. Jamais poderia render-se ções, mais outras denúncias como o do Vietnam. (Nota da IHU On-Line) à evidência de que a curto prazo ter- Descubrimiento de los Archivos del  Augusto José Ramón Pinochet Ugarte minariam superando-o e invalidando (1915-2006): general do exército chileno, foi terror e ingreso a la Técnica, Los se- presidente do Chile entre 1973 e 1990, depois seu decadente e obsoleto modelo civi- cretos del General, os Vestígios de um de liderar um golpe militar que derrubou o go- lizador, depredador da natureza e das sueño y Museos de las Memórias, en- verno do presidente socialista, Salvador Allen- identidades culturais. de. (Nota da IHU On-Line) trega todas as evidências de um plano  Hugo Banzer: foi um general e político boli- A atual crise interna dos Estados secreto para o extermínio seletivo e viano, presidente da República por duas vezes. Unidos, seu alto endividamento, o maciço com a vênia da CIA. (Nota da IHU On-Line) desmoronamento de sua imagem como  Alfredo Stroessner Matiauda (1912-2006): político, general de exército e presidente di- país de “imprensa livre” por dentro e Operação Condor tador do Paraguai entre 1954 e 1989. (Nota da de gendarme do mundo para fora, o IHU On-Line) mais contaminador do planeta, o país  Teologia da libertação: corrente teológica  Jorge Rafael Videla: ex-militar argentino que desclassifica documentos secre- que engloba diversas teologias cristãs desen- que ocupou a presidência do país entre 1976 e tos a cada 40 anos sobre as malfeito- volvidas no Terceiro Mundo ou nas periferias 1981. Chegou ao poder em um golpe de estado rias cometidas por seus governantes pobres do Primeiro Mundo a partir dos anos que depôs a presidente María Estela Martínez 70.São baseadas na opção preferencial pelos de Perón, exercendo uma cruel ditadura. Seu submetidos à inteligência militar em pobres contra a pobreza e pela sua libertação. período esteve marcado por violações aos di- distintas partes do mundo, o qual pre- Desenvolveu-se inicialmente na América Lati- reitos humanos e por um conflito fronteiriço tende instalar a ideologia de “a guerra na. (Nota da IHU On-Line) com Chile. (Nota da IHU On-Line) 30 SÃO LEOPOLDO, 18 DE ABRIL DE 2011 | EDIÇÃO 358 de civilizações” e outros fatores que queles dias e que nunca se derrogaram seria longo enumerar, demonstrou que “Nenhum dos governos, nem aplicaram, e as utilizou Salvador em suas entranhas se iniciou um lento Allende para expropriar e reordenar a e irreversível processo de decadência a partir dos anos 1990, favor do povo aspectos da economia e moral e de sustento emancipador. Que do comércio. Esta tradição civilista é porcentagem de cidadãos norte-ame- tem sido capaz de a que permanecia de algum modo na ricanos crê, hoje em dia, na vigência consciência social de aviadores como interna da frase de Abraham Lincoln convocar o povo a um o General Alberto Bachelet, pai da que lutou, entre 1861 e 1865, pela ex-presidente Michelle Bachelet, que “democracia do povo, para o povo e referendo nacional por morreu no cárcere e foi torturado por com o povo”? seus próprios companheiros de armas. meio de uma Assembleia Recordo também que até 1975, aos IHU On-Line - Quais eram as relações presos políticos chilenos se começou entre o Chile e o Brasil na época da Constituinte para redigir, a torturar com o suplício do “pau-de- ditadura de Pinochet? arara”, nome de fantasia que nesse José De La Fuente - Finalmente, as re- discutir e aprovar uma momento se dava ao produto de ex- lações entre o Chile e o Brasil durante portação não tradicional do militaris- o período de Pinochet foram bastante nova Constituição” mo brasileiro para atormentar os pre- naturais e fluidas pela afinidade ideo- sos, pendurando-os numa árvore com lógica e formação comum que existia experimentando uma lenta maturação um pau atravessado entre suas pernas entre os oficiais e marechais de ambos política e espera até “a nova repúbli- e com a cabeça pendendo para o solo. os exércitos, a oligarquia e a ingerên- ca”, que começa em 1988, para apro- Todas as ditaduras são do mesmo jaez; cia do imperialismo norte-americano var democraticamente a Constituição sua identidade reside em seus delírios em ambos os países, com a diferença Federal. Os Generais Garrastazu Mé- de grandeza, na exclusão, na fobia à e vantagem de o Brasil haver inicia- dici, Geisel e Batista Figueiredo sem diversidade, em crerem-se possuido- do seu exercício ditatorial a partir de dúvida orientaram Pinochet e o ajuda- ras da verdade absoluta. Sua maquina- 1964, prolongando-se até 1985. Com o ram com a Operação Condor e no pre- ria de poder se alimenta do medo e da golpe que depôs Goulart, oficiais chi- paro de torturadores. banalidade dos súditos que as repre- lenos como Pinochet aprenderam cedo Por outra parte, recordo que o Gol- sentam e as justificam. a lição de como manipular a ideologia pe de Estado no Chile se iniciou com populista, aplicando prolongados esta- uma “Junta Militar de Governo”. Du- IHU On-Line - Em termos de redemo- dos de exceção, censurando a impren- rante o segundo semestre de 1973 e cratização, o que significou a presi- sa e reprimindo os jornalistas e os par- até abril de 1974, Pinochet só presidia dência de Michele Bachelet, filha de tidos políticos. Penso que a repartição essa Junta, eram os três comandan- um ativista torturado e morto pelo do poder em frações temporais entre tes em chefe (Marinha, Aeronáutica e regime de Pinochet? cinco marechais e generais brasileiros, Exército), mais o diretor geral da Polí- José De La Fuente - Em primeiro lugar, desde Castelo Branco até João Batis- cia de Carabineiros, os que começam devo esclarecer que o pai de Bachelet ta Figueiredo, não serviu à ditadura governando e decidindo em uníssono. não foi um ativista político na acepção chilena devido às diferenças entre os Logo se soube que, entre eles, se te- que esta palavra tem na gíria política processos históricos e à resistência ria chegado a um acordo para nomear chilena (militante de um partido po- revolucionária que obrigou o braço ar- um presidente que iria se alternando lítico dedicado ao proselitismo e às mado da oligarquia chilena a reajustar no tempo, porém Pinochet deu, após atividades cotidianas de propaganda, o discurso jurídico e as “leis de amar- poucos anos, um golpe interno, elimi- com capacidade de organizar ações de ração” para preparar, contra sua von- nou do cargo o general da Aeronáutica, rua e células de reflexão para integrar tade, uma saída menos desonrosa para destituiu todos os generais da Força novos aderentes à causa). O general a transição pós-ditatorial. Pinochet se Aérea, a qual foi sitiada pelo Exérci- Bachelet foi um militar republicano adiantou em impor uma nova Consti- to, enquanto Pinochet se autoprocla- com especial sensibilidade e consci- tuição em 1980, enquanto o Brasil vai ma presidente da República e capitão ência social madura, homem culto e geral de todos os níveis e soldados do  Abraham Lincoln: político americano, foi o com sentido de justiça. Foi um cola- 16° presidente dos Estados Unidos de março Exército. borador de Salvador Allende nos mo- de 1861 até seu assassinato em abril de 1865. A Força Aérea é o único ramo do mentos mais críticos de seu governo, Liderou o país de forma bem-sucedida durante Exército chileno que tem uma tradição sua maior crise interna, a Guerra de Secessão, quando a direita sabotava a produção preservando a União e abolindo a escravidão. curiosa: em 1931, a mando do Gene- e importação de alimentos; o general Antes de sua eleição em 1860 como o primeiro ral Marmaduque Grove, deu um golpe organizou a distribuição dos escassos presidente Republicano, Lincoln atuou como populista de esquerda e estabeleceu advogado de condado, legislador pelo estado produtos que permaneciam no merca- de Illinois, membro da Câmara dos Represen- por cem dias a chamada “República do para colocá-los ao alcance da po- tantes e duas vezes candidato derrotado ao Se- socialista”. E é curioso e quase mágico pulação. nado dos Estados Unidos. Oponente declarado recordar que várias leis se ditaram na- à expansão da escravidão nos Estados Unidos. Em termos de redemocratização SÃO LEOPOLDO, 18 DE ABRIL DE 2011 | EDIÇÃO 358 31 do país, o governo de Michele Bache- Assembleia Constituinte na qual se liberdade pelas ruas, embora o mo- let não agregou nada substancial ao expressasse em plenitude a vontade vimento estudantil começasse a ser que vinham fazendo os governos pre- popular. Os desmandos do capitalis- reprimido a partir de 2006, quando cedentes de Patrício Aylwin, Eduardo mo não foram minorados, porque em se inicia o protesto dos estudantes de Frei e Ricardo Lagos. Com a presen- termos de coesão social o princípio educação básica e média (movimento ça de Bachelet se chegou à Festa do ético da igualdade não teve lugar. E “pinguino”), o qual mobilizou todo o Bicentenário da República, com um o princípio de fraternidade, que influi país e que nos anos seguintes mobili- discurso democrático bastante contra- na reconstrução da identidade nacio- zaria o mundo universitário por uma ditório. A direita nunca abandonou sua nal sobre a base de nosso “ser com o reforma educacional integral. Se Ba- nostalgia pela “democracia protegida, outro”, nunca foi real e com Bachelet chelet, o Acordo (a Concertación) e autoritária, integradora, tecnicizada” tampouco se pôde restituir em sua di- seu partido socialista tivessem real- etc. A continuidade das políticas de mensão mítica ou real. mente apoiado o movimento estudan- Bachelet esteve baseada na ideia de Bachelet também nada fez para til, teria passado à história restituindo governar “na medida do possível”, fra- subtrair o poder econômico às Forças a almejada consigna que acunhou, em se cunhada por Aylwin em 1990 e que Armadas, as quais seguem acumulan- 1938, o governo de Pedro Aguirre Cer- justificaria qualquer freio ou negocia- do 10% das entradas brutas do cobre da: “Governar é educar”. Pelo contrá- ção com a direita, para dar passos que que produz o Estado chileno. São so- rio, em nível de governo, o movimen- aprofundassem e ampliassem os espa- mas siderais dentro de um sistema to “pinguino” terminou envolvido em ços de poder popular. “Na medida do econômico que é o menos equitativo e acordos com a direita e hoje, pratica- possível” justificou todo tipo de tran- com a pior distribuição de ingresso per mente, do ponto de vista financeiro e sações com a direita, com os milita- capita do mundo. Se estes 10 milhões custos transferidos às famílias e aos res, os comerciantes, a Igreja Católica ou mais de dólares estivessem somen- jovens, não existe educação pública e grupos corporativos transnacionais. te em parte destinados à precária (e nacional. A escassa porcentagem que Sob este lema, a política se reduz à em vias de extinção) educação pública permanece de escolas públicas está falácia de uma prática intermediária nacional, o Chile disporia de um pres- em franca agonia e com um claro des- entre o Estado e a sociedade civil, e suposto milionário e em menos de dez prezo por um punhado de mestres que a consistência da democracia se reduz anos poder-se-ia recuperar o direito nelas se desempenham heroicamente. a uma “boa comunicação” entre esse de educação gratuita e de qualidade Nos liceus, as disciplinas mais minora- Estado e as massas. para todas as crianças do Chile. das ou quase inexistentes são a filoso- fia, a educação cívica e, no segundo Democracia restringida Discriminação feminina semestre de 2009, o governo de Piñera tentou reduzir em uns 25% os períodos O governo de Bachelet foi o exer- Uma das fortalezas da administra- curriculares do ensino da história. cício de uma democracia restringi- ção de Bachelet foi o capital simbólico da e obediente às decisões do Banco que se acumulou no imaginário nacio- Manejo midiático Mundial, o qual sempre assegura o re- nal a favor da reivindicação dos direi- torno dos capitais que promove ou os tos da mulher, de seu protagonismo e Com efeito, ao manejo midiático empréstimos aos governos, vigiando inteligência em termos de paridade e comunicacional, Michelle Bachelet a situação interna de cada país, para de gênero e responsabilidade política. soube conjugar muito bem sua simpa- assegurar-se a devolução. O investiga- Outra fortaleza foi deixar instalada a tia pessoal, sua formação ideológica e dor Grinor Rojo sustenta quatro teses proteção à infância e à velhice, com militância socialista, suas qualidades sobre a falta de correspondência en- políticas sociais de apoio à saúde e nu- intelectuais, o fato de ter estado apri- tre os ideais do modelo da democracia merosos subsídios às famílias mais po- sionada por Pinochet num dos campos moderna e a realidade chilena que cul- bres. Sem embargo, apesar do grande de concentração e tortura da época mina com os governos do acordo e com esforço por reivindicar os direitos da (Villa Grimaldi ou quartel Terranova) o de Bachelet. O fim da ditadura não mulher numa sociedade tão machista, e ser filha de um general democráti- significou um reencontro dos chilenos retalhadora e feminicida como a chi- co que teve presença ativa no gover- com os ideais democráticos socialistas lena, a mulher profissional continua no de Salvador Allende. Por estas ca- que a presidente declarava. Bachelet discriminada porque o sistema de em- racterísticas, a ex-presidente deixou não pôde mudar os enclaves ditato- prego, em igual nível profissional e em o governo, segundo pesquisas, com riais como o Sistema Eleitoral Binomi- exigências laborais, a considera e lhe aproximadamente 80% de reconheci- nal, substituir a Constituição deixada paga na média uns 30% menos do que mento e gratidão dos chilenos, o que pelo ditador e o modelo econômico aos homens. No único setor em que não pode ser confundido com os reais neoliberal e reivindicar os direitos an- isto quase não ocorre é no magistério aportes à redemocratização estrutu- cestrais da nacionalidade mapuche. nacional. ral da sociedade chilena. Sem dúvida, Depois de Pinochet, nenhum dos A presidente soube controlar a bru- o apreço popular à sua pessoa é um governos do Acordo, incluindo o de talidade das forças da ordem pública, tema digno de ser estudado em pers- Bachelet, conseguiu levantar uma permitiu manifestar-se com inteira pectiva histórica, existencial e até re- 32 SÃO LEOPOLDO, 18 DE ABRIL DE 2011 | EDIÇÃO 358 ligiosa. Sua presença, perseverança e “Todas as ditaduras são desta aliança? Tentou-se a destruição capacidade de entrega em favor dos de Cuba, assumiram o poder as dita- mais desprotegidos continuará desper- do mesmo jaez, sua duras no Cone Sul e se pôs em marcha tando simpatias em todos os setores, a Operação Condor com a intervenção qualidades, por certo, da maioria das identidade reside em direta da CIA. mulheres chilenas. O discurso que Obama pronunciou Se por redemocratizar entende- seus delírios de no dia 22 de março de 2011, para to- mos uma recuperação paulatina de das as Américas, no Centro Cultural participação e gestão direta do povo grandeza, na exclusão, do Palácio de Governo do Chile, fun- nas decisões políticas, com mudanças damentou-se no conceito de “aliança reais na estrutura da sociedade clas- na fobia à diversidade, igualitária”, anunciando planos de sista chilena, no poder Judiciário, na cooperação energética, segurança ci- mudança curricular para a formação em crerem-se dadã, crescimento econômico e de- dos quadros das Forças Armadas, com senvolvimento, democracia e direitos imprensa alternativa e pluralista que possuidoras da verdade humanos. Obama elogia o modelo retomasse os caudais do pensamento econômico chileno, sua exitosa tran- e a reflexão encaminhada para a trilha absoluta. Sua maquinaria sição da ditadura à democracia e o da utopia pós-capitalista, o governo de que promete são vagas intenções de Bachelet interveio somente com ações de poder se alimenta do memórias, cartas e ideias gerais para cosméticas, sempre ajustadas à prédi- a cooperação científica e o desenvol- ca dos bispos do neoliberalismo, entre medo e da banalidade vimento cultural. Omitiu uma agenda eles Milton Friedman, Ronald Reagan, de trabalho e tratou de distanciar-se Margaret Thatcher, etc. dos súditos que as do discurso de Kennedy, evitando de- O carisma pessoal de Michelle Ba- clarar montantes de ajuda em dinhei- chelet não teve nenhuma incidência representam e as ro e anos de duração para esta “nova no interior do partido socialista e tam- era de cooperação”. Quando um jor- pouco influiu ideologicamente para justificam” nalista lhe pergunta se devia mostrar corrigir o rumo equivocado do conglo- colaboração em casos emblemáticos merado político que a apoiou. ocorridos no Chile, como a morte de John Kennedy, quando, aos 13 de mar- Salvador Allende e de Eduardo Frei Obama reedita J. Kennedy? ço de 1961, em discurso pronunciado Montalva e se se mostraria disposto a na Casa Branca, ante os embaixadores pedir perdão pela participação da CIA Quando já concluíamos esta entre- da América Latina, lança seu Programa e do governo de seu país durante a di- vista, chega ao território nacional a vi- de Aliança para o Progresso, no qual tadura militar de Pinochet, respondeu: sita anunciada do presidente dos Esta- marca as linhas do que seria a relação “Qualquer solicitude que se faça a par- dos Unidos, Barack Obama. Sua entrada entre os Estados Unidos e a América tir do Chile para obter mais informa- triunfal me fez imaginar como teriam Latina. Naquela oportunidade, Ken- ção do passado é algo que certamen- sido, naquelas épocas, as viagens dos nedy disse: “Reunimo-nos aqui como te consideraremos e gostaríamos de antigos reis e imperadores aos lugares firmes e velhos amigos, unidos pela cooperar (...). Devemos aprender de onde tinham repartidos os súditos e história e pela experiência e por nossa nossa história e entender nossa histó- lacaios ao seu serviço. Com a mesma determinação de fazer avançar os va- ria, porém não nos sentir atropelados parafernália de defesa, rodeados de lores da civilização americana, porque pela história, porque temos hoje mui- um exército privado, substituindo hoje este nosso novo mundo não é um mero tos desafios para o futuro, nos quais em dia os cavalos por limusines blinda- acidente da geografia”. Quatro meses devemos concentrar atenção”. O pre- das, os helicópteros voando em bando depois, na cidade uruguaia de Punta sidente Sebastian Piñera, anfitrião de e rodeados por aviões de combate? del Este, este novo tratado foi firma- Barack Obama, ao termo da cerimônia A que veio a El Salvador, ao Brasil e do no seio do Conselho Interamericano alçou a taça e brindou como sócio dos ao Chile? Reedita-se, com os matizes Econômico e Social da OEA. E o que Estados Unidos, os quais disse apreciar próprios dos novos tempos, a visão de sucedeu 10 anos depois do anúncio com carinho e admiração.

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SÃO LEOPOLDO, 18 DE ABRIL DE 2011 | EDIÇÃO 358 33 Parque da Memória, um monumento para não esquecer o terrorismo de Estado Monumento às Vítimas do Terrorismo de Estado, mais conhecido como Parque da Memó- ria, em Buenos Aires, quer manter viva a história de homens e mulheres que morreram vítimas da ditadura argentina, afirma a diretora da instituição, Nora Hochbaum

Por Márcia Junges | Tradução Benno Dischinger

m 24 de março de 1976 começavam os anos de chumbo na Argentina, mediante um golpe de estado militar, o sexto na história democrática daquele país. “Este golpe de Estado se caracterizou por uma nova metodologia: o terrorismo de Estado e o desaparecimento forçado e sistemático de pes- soas”, denuncia a diretora do Parque da Memória – Monumento às Vítimas do Terrorismo de Estado. Indiscriminadamente, “os militares intervieram em todos os âmbitos da vida social do país”, proi- Ebiram e queimaram inúmeros livros, perseguiram intelectuais, artistas, escritores e forçaram-nos ao exílio no exterior. Cerca de 10 mil presos políticos e mais de dois milhões de exilados, além de centenas de pessoas que eram jogadas de aviões sobre o Rio da Prata, são o saldo que “as botas” dos militares legaram à nação. Além do alijamento de uma geração inteira de intelectuais, a Argentina amargou um período de decadência econômica, com o aumento da dívida externa. Para que o país e o mundo não esqueçam dessa vergonha, organismos de direitos humanos se uniram para criar o Parque da Memória, localizado exatamente em frente ao Rio da Prata. “Nosso objetivo é conseguir que a sociedade participe, em sua totalidade, da complexa ta- refa de reconstrução do tecido social e cultural desarticulado pela ditadura militar. Este é o grande desafio do Parque da Memória”. E completa: “[Este] é um lugar de recordação e testemunho, porque ali estão os nomes desses seres que se quis apagar”. Professora nacional de belas artes, especialista em gestão cultural em instituições públicas, Nora trabalha de o início dos anos 1980 como curadora e produtora independente em exibições, bienais e eventos relacio- nados com artes visuais e gestão cultural. Atuou em diversas instituições nacionais e internacionais dos Esta- dos Unidos, Cuba, Santo Domingo, Espanha e França. Foi diretora do Centro Cultural Recoleta da Cidade de Buenos Aires, e da Casa Argentina em Paris. Atualmente é a diretora do Parque da Memória – Monumento às vítimas do terrorismo de Estado. Para maiores informações sobre o Parque da Memória, visite http://www. parquedelamemoria.org.ar. Confira a entrevista.

IHU On-Line - O que é o Parque da culturas comemorativas. A iniciativa foi selho de Gestão do Parque da Memória Memória e qual é sua importância apresentada na Legislatura da Cidade de – Monumento às Vítimas do Terrorismo para os argentinos e para as outras Buenos Aires em dezembro de 1997. A de Estado. Este conselho está integra- nações? partir dessa data o trabalho foi incessan- do pelo governo da cidade de Buenos Nora Hochbaum - O Parque da Memória te. A Lei 46, de 1998, dispôs a construção Aires, pela Universidade de Buenos surge como uma iniciativa de organismos do Parque da Memória e do Monumento Aires - UBA e por organismos de direi- de direitos humanos que decidiram im- às Vítimas do Terrorismo de Estado. Com tos humanos. As características deste pulsionar um projeto para criar um lu- tal objetivo criou-se a Comissão Pró-Mo- conselho constituem um precedente gar de recordação e homenagem frente numento que se encarregou de levar em na participação da sociedade civil na ao Rio da Prata: um Parque da Memória frente sua construção e de convocar ao administração de um espaço público. que incluísse um monumento com os concurso internacional de esculturas que nomes dos desaparecidos e assassinados seriam colocadas no espaço. Jogados no rio na Argentina durante a última ditadura A partir do ano de 2009, com a militar, rodeado por um conjunto de es- aprovação da lei 3078, criou-se o Con- O Parque da Memória – Monumen-

34 SÃO LEOPOLDO, 18 DE ABRIL DE 2011 | EDIÇÃO 358 to às Vítimas do Terrorismo de Esta- ção se impuseram planos e programas de presos políticos e hoje estão desapa- do - é hoje um espaço público de 14 estudo de diferentes temas, como a te- recidos. hectares, localizado na franja costei- oria de conjuntos em matemática, ou o O âmbito da cultura também se ra do Rio da Prata adjacente à cidade cubismo na arte. Foram proibidos certos viu afetado com a queima de livros de universitária e alberga o Monumento métodos e técnicas de ensino, como os conteúdo político-social valioso, como às Vítimas do Terrorismo de Estado, trabalhos grupais de reflexão, e também O Capital de Karl Marx, A pedagogia um conjunto de obras escultóricas e a não se podiam mencionar alguns autores do oprimido de , a cen- sala Presentes Ahora y Siempre – PAYS. e cientistas argentinos ou estrangeiros, sura de certos autores e obras literá- O Parque se levanta frente ao Rio da como Elsa Bornemann, García Márquez, rias como O Pequeno Príncipe de Saint Prata, porque às suas águas foram jo- Mario Benedetti, Marx, bem como suas Exupéry, canções de Nacha Guevara, gadas muitas vítimas. teorias e documentos. Houve supressão películas como A Patagônia Rebelde. Nosso objetivo é conseguir que a de centros de estudantes e agrupações Devido a essa perseguição, intelectu- sociedade participe, em sua totalida- estudantis de todo tipo: os estudantes ais, autores e artistas de todas as dis- de, da complexa tarefa de reconstru- eram revisados permanentemente quan- ciplinas precisaram exilar-se e publi- ção do tecido social e cultural desarti- to à sua forma de vestir e ao seu modo car suas obras no exterior. culado pela ditadura militar. Este é o de apresentação (uniformes, cabelo cur- A ditadura também significou uma grande desafio do Parque da Memória. to, maquiagem, minissaia, jeans, etc.). política econômica prejudicial, com o Além disso, este monumento é o Quanto ao trabalho, foram eliminadas as incremento da dívida externa em que único que congrega, a nível nacional, leis e as conquistas dos trabalhadores. a dívida privada passou a ser do Esta- os nomes de todas as vítimas do terro- Foi proibido o direito à greve e os sindi- do, os salários ficaram congelados e rismo e inclui estrangeiros desapareci- catos foram eliminados. ante o desaparecimento dos grêmios dos ou assinados no país. Incluímos a e sindicatos resultava ser impossível lista de desaparecidos e assassinados Livros queimados reclamar pelos mesmos. de nacionalidade brasileira. Por esta Toda reunião em lugar público es- razão, cobra importância a nível na- Todas as atividades políticas foram tava proibida e, inclusive, gerava cional e também regional, sendo este proibidas, razão pela qual militantes suspeitas transitar pela rua em horas Memorial um espaço de características e dirigentes dos partidos foram, em noturnas. Também era obrigatório le- únicas na região. grande número, condenados como var consigo o Documento Nacional de Identidade, pois caso contrário era IHU On-Line - Quais foram, em linhas  Elsa Isabel Bornemann (1952): escritora ar- motivo de detenção. gentina de contos, canções, novelas e peças gerais, as características do terroris- teatrais para crianças e jovens. (Nota da IHU Quase tudo isso se impunha atra- mo de Estado argentino? On-Line) vés de práticas violentas, chamadas Nora Hochbaum - Em nosso país, em  Gabriel García Márquez (1928): escritor operativas e destinadas a bloquear colombiano, autor de Crônica de uma morte 24 de março de 1976, começou a di- anunciada. 26. ed. Rio de Janeiro: Record, qualquer atividade ou opinião contrá- tadura mediante um golpe de Estado 2000. Sobre a obra do autor, confira a IHU On- ria ao regime. Por isso se perseguiu, militar. Foi o sexto golpe que sofria a Line n° 221 Cem anos de solidão. Realidade, encarcerou, torturou e fez desapare- fantasia e atualidade, disponível para donwlo- democracia na história da Argentina. ad em http://bit.ly/dGmr4Z. (Nota da IHU cer grande quantidade de pessoas que Este golpe se caracterizou por uma On-Line) já tinham uma participação política, nova metodologia: o terrorismo de Es-  Mario Benedetti (1920-2009): poeta, escri- associativa ou cultural prévia. Outros tor e ensaísta uruguaio. Integrante da Geração tado e o desaparecimento forçado e de 45, a qual pertencem também Idea Vilariño  Paulo Freire (1921-1997): educador bra- sistemático de pessoas. e Juan Carlos Onetti, entre outros. Escreveu sileiro. Como diretor do Serviço de Extensão As Forças Armadas (Exército, Mari- “Poemas de Oficina”. (Nota da IHU On-Line) Cultural da Universidade de Recife, obteve su-  Karl Heinrich Marx (1818-1883): filósofo, cesso em programas de alfabetização, depois nha e Aeronáutica) tomaram o gover- cientista social, economista, historiador e re- adotados pelo governo federal (1963). Esteve no, aprisionaram a então presidente volucionário alemão, um dos pensadores que exilado entre 1964 e 1971 e fundou o Instituto Isabel Perón e seus ministros, rompe- exerceram maior influência sobre o pensamen- de Ação Cultural em Genebra, Suíça. Foi tam- to social e sobre os destinos da humanidade no bém professor da Unicamp (1979) e secretário ram a ordem constitucional, deixaram século XX. Marx foi estudado no Ciclo de Estu- de Educação da prefeitura de São Paulo (1989- de funcionar, no Congresso da Nação, dos Repensando os Clássicos da Economia. A 1993). No II Ciclo de Estudos sobre o Brasil, as duas câmaras (de deputados e de edição número 41 dos Cadernos IHU Ideias, de do dia 30-09-2004, o professor Dr. Danilo Stre- autoria de Leda Maria Paulani tem como título ck, do PPG em Educação da Unisinos, apresen- senadores). Toda decisão passou, des- A (anti)filosofia de Karl Marx, disponível em tou o livro A Pedagogia do Oprimido, de Paulo de então, pelo poder Executivo (no http://migre.me/s7lq. Também sobre o autor, Freire. Sobre a obra, publicamos um artigo de princípio a Junta Militar e, em segui- confira a edição número 278 da IHU On-Line, autoria do professor Danilo na 117ª edição, de 20-10-2008, intitulada A financeirização do de 27-09-2004. Confira, ainda, a edição 223 da, o presidente) que governava me- mundo e sua crise. Uma leitura a partir de da revista IHU On-Line, de 11-06-2007, inti- diante decretos – não leis. Afastam-se Marx, disponível para download em http:// tulada Paulo Freire. Pedagogo da esperança, os juízes da democracia e nomeiam-se migre.me/s7lF. Leia, igualmente, a entrevista disponível para download em http://migre. Marx: os homens não são o que pensam e dese- me/2peDT. (Nota da IHU On-Line) juízes afins às ideias e práticas dos mi- jam, mas o que fazem, concedida por Pedro  Antoine Foscolombe de Saint-Exupéry litares. de Alcântara Figueira à edição 327 da revista (1900-1944): escritor, ilustrador e piloto da Se- Os militares intervieram em todos os IHU On-Line, de 03-05-2010, disponível para gunda Guerra Mundial, terceiro filho do conde download em http://migre.me/Dt7Q. (Nota Jean Saint-Exupéry e da condessa Marie Fosco- âmbitos da vida social do país. Na educa- da IHU On-Line) lombe. (Nota da IHU On-Line) SÃO LEOPOLDO, 18 DE ABRIL DE 2011 | EDIÇÃO 358 35 puderam escapar e se exilaram, não “Durante a última teve a tarefa de redigir um documen- podendo regressar ao país até a volta to extensíssimo, de vários tomos, que da democracia. ditadura houve 10 mil se intitulou Nunca Mais. Essa comissão levou adiante a tarefa, contando com Sequestro presos políticos e cerca o esforço de investigadores, médicos forenses e organismos de direitos hu- As operações estatais consistiam em de dois milhões de manos, entre outros. invasões (irrupções violentas em domi- Com base nesta investigação le- cílios, fábricas ou instituições, com o exilados” vou-se em frente, no ano de 1985, o fim de buscar elementos que justificas- primeiro julgamento das juntas milita- sem as detenções), em que não só se res. Ali se expuseram testemunhos de levavam as pessoas, senão que ademais Parque defrontar-se-ão ali com a me- sobreviventes e provas científicas que se tomava parte de seus bens como mória do horror cometido e tomarão permitiram acercar-se à verdade do despojos de guerra e roubo de todos os consciência da necessidade de velar acontecido. seus pertences. Também há aproxima- para que nunca mais se repitam esses damente 500 casos de filhos de detidos fatos. IHU On-Line - Os arquivos da ditadu- aos quais se tirou sua verdadeira identi- ra argentina estão disponíveis para dade, mediante o sequestro e posterior IHU On-Line - Como foi discutido serem consultados? entrega a outras famílias, majoritaria- pela sociedade argentina o período Nora Hochbaum - Salvo os documentos mente de militares. da ditadura e seus mortos, seus de- refletidos no Nunca Mais e os obtidos Os detidos eram encarcerados em saparecidos? posteriormente pela Equipe Argenti- prisões do Estado ou levados ao que Nora Hochbaum - Durante a ditadu- na de Antropologia Forense – EAAF, os se conhece como Centros Clandesti- ra, antes de conhecer o saldo total de arquivos da ditadura não estão dis- nos de Detenção. Estes estão ocultos suas vítimas, a sociedade civil se orga- poníveis na Argentina. A metodologia à vista da população e funcionam em nizou em grupos de familiares e ami- repressiva utilizada, em seu inten- lugares bastante diversos (galpões, só- gos. Surgem na Argentina, em meados to de não deixar rastros, propôs-se a tãos, edifícios da polícia, casas aban- dos anos 1970, organismos de direitos apagar os nomes, a história e a vida donadas, ou nos próprios edifícios das humanos, que perduram até hoje. O daqueles que foram sequestrados e as- FF.AA., etc.), como no Clube Atlético papel dos organismos foi fundamental sassinados. Futuramente o Parque da ou no Olímpo de Floresta. Durante a para a conscientização sobre o ocor- Memória albergará um centro de inter- última ditadura houve 10 mil presos rido, tanto em nível nacional, como pretação que terá uma base de dados políticos e cerca de dois milhões de internacional. com a informação sobre cada uma das exilados. Os vínculos destes organismos com pessoas incluídas no Monumento às Ví- a comunidade internacional, incluindo timas do Terrorismo de Estado, que o IHU On-Line - Muitos políticos argen- a brasileira, foram muito importantes público poderá consultar. Deste modo, tinos foram lançados no Rio da Prata. para a difusão de informação, a prote- será possível acessar dados pessoais, O que significa o desaparecimento de ção de documentos e a instalação do testemunhos sobre as circunstâncias uma pessoa sem que sua família nun- debate na sociedade, já desde muito de desaparecimento ou assassinato, ca mais saiba onde está (nem como cedo, na ditadura. fotos, recordações, anedotas, cartas, morreu)? Devido ao fato de, até o dia de hoje, poesias, tirando-as assim do anonima- Nora Hochbaum - O Parque da Memó- as forças militares não terem revelado to, para que deixem de formar parte ria não pretende curar feridas nem os documentos sobre a detenção e o de um número incerto que nada diz suplantar a verdade e a justiça. Nada desaparecimento das vítimas da dita- sobre quem foi cada um deles. Os devolverá a paz real aos familiares que dura, o trabalho de investigação e di- colaboradores da área de Nomina do não puderam conhecer o destino final fusão veio, em primeira instância, da Monumento se dedica diariamente à de seus entes queridos, torturados e parte da sociedade civil. tarefa de atualização do Monumento e assassinados de maneira cruel e selva- No ano de 1983, com o fim do pro- recepção de documentação relativa às gem, nem nada preencherá o vazio so- cesso ditatorial, chega ao poder o pessoas que nele figuram. cial que deixou sua ausência. O Parque primeiro governo democrático na Ar- da Memória é um lugar de recordação gentina, em mãos do Dr. Raúl Ricardo IHU On-Line - Qual é a principal “he- e testemunho, porque ali estão os no- Alfonsín. Uma das primeiras medidas rança” da ditadura argentina? mes desses seres que se quis apagar. do novo governo foi impulsionar a Nora Hochbaum - Em primeiro lugar, o Eles estarão presentes na evocação criação de uma comissão para levar horror da ditadura deixou como saldo que se faça de suas vidas truncadas e em frente uma meticulosa investiga- a perda de grande parte de uma ge- na permanente homenagem aos ideais ção que permitisse à justiça conhecer ração de jovens militantes, intelectu- de liberdade, solidariedade e justiça, os casos de desaparecimento ou mor- ais, cientistas e trabalhadores. Esta pelos quais viveram e lutaram. As ge- te produzidos durante o terrorismo amputação de grande parte do setor rações atuais e futuras que visitarem o de Estado. Dita comissão, a Conadep, pensante da sociedade tem sequelas 36 SÃO LEOPOLDO, 18 DE ABRIL DE 2011 | EDIÇÃO 358 na sociedade ainda hoje. A política so- seguiram lidar com seu totalitaris- Nora Hochbaum – Não. A justiça é a freu no país as graves consequências mo? Em que aspectos a experiência causa que ainda hoje defendem os do desaparecimento de grande parte argentina pode inspirar o Brasil para organismos. Durante muitos anos, na de suas figuras mais destacadas e pro- rever seus anos de morte e sangue? Argentina, as leis de “ponto final” e missoras. Nora Hochbaum - O Parque da Memó- “obediência devida”, bem como os Em matéria econômica, o Estado ria – Monumento às Vítimas do Terro- decretos de exoneração dos militares argentino sofreu, durante a ditadura rismo de Estado - tem como objetivo que haviam sido julgados, atrasaram a e posteriormente a ela, as consequên- difundir a experiência argentina em obtenção de justiça nas causas relati- cias sociais do enorme endividamento matéria de direitos humanos, como vas à tortura e ao desaparecimento. A público que gerou a estatização de também de promover a defesa destes partir do ano de 2003, uma série de dívida contraída por setores privados. direitos em todo o mundo. medidas, impulsionadas a partir do go- Isto significou o princípio de esvazia- Durante o ano de 2010, o Parque da verno nacional, reativou o acionamen- mento do Estado, que se aprofundou Memória foi convidado a participar da to da justiça, de modo que, no dia de durante os anos 1990. 29ª Bienal de São Paulo. Na delegação hoje, têm sido julgados e condenados Em matéria de legado histórico, a que participou de dito evento, con- (majoritariamente à prisão perpétua) sociedade em geral entendeu a impor- tou-se com a presença de organismos os responsáveis pela perpetuação da tância da defesa e proteção do regime de direitos humanos que durante sua tortura e do assassinato. democrático (excetuando a presença viagem deram conferências, visitaram de insignificantes grupos que reivindi- memoriais ou museus e participaram IHU On-Line - Por que a memória, do cam, hoje em dia, a tortura). Além do em debates organizados por associa- ponto de vista das vítimas, pode ser papel que cada cidadão teve durante ções brasileiras, transmitindo suas “perigosa”? aqueles anos, a sociedade inteira com- experiências. Durante toda a viagem Nora Hochbaum - Não consideramos preendeu que a metodologia utilizada a delegação foi muito bem recebida e que a reflexão, dentro dos limites que pelos militares é inaceitável, bem a vontade de parte da sociedade bra- estabelece a democracia, seja em como imprescritível, por ser conside- sileira de instalar o debate no país se absoluto nociva para a sociedade. O rada de lesa humanidade. fez notar permanentemente. Parque da Memória aposta no debate democrático dos fatos acontecidos em IHU On-Line - Por que considera que IHU On-Line - Memória é sinônimo de nosso país. países como o Brasil ainda não con- justiça? Por quê?

4 de maio

Ciclo de Palestras: Renda básica de cidadania Emancipação cidadã e autonomia.

Palestrante: Prof. Dr. Josué Pereira da Silva - Unicamp

Informações: www.ihu.unisinos.br

SÃO LEOPOLDO, 18 DE ABRIL DE 2011 | EDIÇÃO 358 37 A ditadura e a cultura do medo Brasil tem o maior programa de reparações já empreendido desde o final da II Guerra, aponta Paulo Abrão. Mesmo assim, o tabu em torno de temas como a tortura é uma reali- dade. Essa é uma das heranças perniciosas da ditadura, analisa

Por Márcia Junges

ditadura como um todo nos relegou uma cultura do medo instalada no sentido de que determinados assuntos não podem ser debatidos”, afirma o presidente da Comissão Na- cional de Anistia e secretário nacional do Ministério da Justiça, Paulo Abrão, na entre- vista que concedeu por e-mail à IHU On-Line. Outro legado negativo daqueles anos de chumbo é parcela da atual corrupção brasileira, que conseguiu se instalar naquele tempo “Aem função da censura, uma vez que ninguém poderia “questionar as autoridades públicas”. Segundo Paulo, “a dignidade do perseguido político necessita ser resgatada e restaurada no local onde ela foi ferida no seio daqueles que os estigmatizaram no passado causando sofrimento”. Analisando o motivo pelo qual o espólio das ditaduras do Brasil e seus vizinhos foram conduzidos de forma tão diversa, explica: “É evidente que Ar- gentina e Chile fizeram muito na área de memória, mas o Brasil hoje possui, sem nenhuma dúvida, o maior programa de reparações já empreendido desde o final da II Grande Guerra, além de estar avançando na consolidação de políticas de segurança cidadã. Realmente existem déficits, mas é importante procurarmos olhar para nosso processo como diferente, e não como inferior a de nossos vizinhos”. Paulo Abrão é graduado em Direito, pela Universidade Federal de Uberlância - UFU, além de mestre e doutor em Direito pela Unisinos e pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro - PUC-Rio, respectivamente. Sua dissertação intitulou-se O poder judiciário em busca do Estado Democrático de Direito: crise (diagnóstico e versões) e transição paradigmática. Atualmente, leciona na Faculdade de Direito da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul - PUCRS. É organizador de várias obras, entre elas Anais do II Congresso Interna- cional Transdisciplinar Ambiente e Direito (Porto Alegre: Edipucrs, 2005). Confira a entrevista.

IHU On-Line - Quando e por que sur- de uma demanda prática: a Comissão ciedade em seu entorno. A dignidade giram as Caravanas da Anistia, o pro- passou a receber e atender muitos pe- do perseguido político necessita ser jeto Marcas da Memória e o Memorial didos da sociedade civil, até perceber resgatada e restaurada no local onde da Anistia do Brasil? O que cada um que organizar um edital e fomentar ela foi ferida no seio daqueles que os deles objetiva? tais projetos de forma orgânica seria estigmatizaram no passado causando Paulo Abrão - Todos estes projetos o modo mais eficiente de garantir uma sofrimento. O Memorial é um local têm uma raiz comum no ano de 2007, difusão democrática das diversas me- de reparação coletiva, que religa as na gestão do ministro Tarso Genro, mórias do período, em especial a me- utopias interrompidas pelo Golpe com quando uma nova equipe assume a mória das vítimas. a vida política do presente, restabe- Comissão de Anistia com a missão de lecendo elos democráticos em nossa aproximar a temática da juventude e IHU On-Line - Em que aspectos esses história. O Marcas da Memória per- evitar que o processo de reparação, projetos ajudam-nos a recuperar e mite aos próprios perseguidos conta- que é por excelência um processo de manter a memória de um dos perío- rem sua história, com meios técnicos reconciliação moral e de educação, dos mais violentos de nosso país? e financiamento apropriado. A vozes se transformasse em uma pauta emi- Paulo Abrão - Cada um dos três pro- caladas no passado autoritário agora nentemente econômica. Em 2008 lan- jetos enfoca a memória desde um ân- têm vez na democracia. O objetivo, çamos as Caravanas e começamos a gulo. As Caravanas levam as histórias sobremaneira, é democratizar a pró- trabalhar no Memorial da Anistia, que reais de diversos indivíduos de volta pria memória e permitir que ela seja deve ser entregue à sociedade no final à cena local pública, para que sejam construída para além dos relatos ofi- de 2012. O Marcas da Memória surgiu conhecidas e reconhecidas pela so- ciais constantes nos parcos arquivos

38 SÃO LEOPOLDO, 18 DE ABRIL DE 2011 | EDIÇÃO 358 da repressão disponibilizados. Esta “O que realmente os internacionais – é da Corte Interame- memória pertence ao país, e não a um ricana de Direitos Humanos. Presente ou outro cidadão ou grupo político. perseguidos políticos na Declaração Universal dos Direitos do Homem de 1948, a dignidade da IHU On-Line - Qual é a pior herança buscam é, simplesmente, pessoa humana constitui bem jurídico deixada pelos torturadores? de proteção transnacional e não mais Paulo Abrão - Principalmente a per- que o Estado processe os direito de amparo tão somente inter- cepção de que em alguns contextos a no. A Corte Interamericana de Direitos tortura é admissível. A ditadura como crimes na forma da Lei” Humanos declarou a lei de autoanistia um todo nos relegou uma cultura do brasileira inválida. A exemplo de ou- medo instalada no sentido de que de- tras condenações, esta sentença deve terminados assuntos não podem ser déficits postos é o de que ainda não ser cumprida e o Brasil deve investigar debatidos. A estigmatização, até os conseguimos sinalizar nitidamente e levar a julgamento as violações aos dias de hoje, das formas de participa- a não repetição da mesma violência direitos humanos cometidas durante ção dos cidadãos no espaço público, do passado e o repúdio aos crimes de a ditadura. Eis o desafio posto para o na vida política e nos movimentos so- lesa-humanidade em qualquer tempo, poder Judiciário resolver. ciais é outro legado nocivo. Parcela da em qualquer circunstância. Estamos corrupção e suas práticas atualmente em busca do melhor legado ético civi- IHU On-Line - Quais são os principais existentes foram instaladas naque- lizacional pós-Nuremberg. desafios que essa nova interpreta- la época onde vigia a censura e que ção traz? O que mudará em relação ninguém podia questionar as autorida- IHU On-Line - Por que praticamente àqueles que torturam e os que foram des públicas. Ainda temos espaços go- todos nossos países vizinhos já abri- torturados? vernamentais nas esferas federativas ram seus arquivos e dialogaram com Paulo Abrão - Nada muda a tortura. pouco transparentes. sua história de totalitarismos e nós O que uma eventual reinterpretação ainda não o fizemos? promove é uma sinalização dupla, para IHU On-Line - Por que o Brasil tem Paulo Abrão - Temos que saber relati- o passado e para o futuro: para o pas- dificuldade em fazer as contas com vizar esta afirmação. Cada um de nos- sado, é um gesto de reconhecimento seu passado autoritário? sos vizinhos abordou seu passado por em relação às vítimas e seu direito à Paulo Abrão - Cada país tem uma con- um ângulo. É evidente que Argentina verdade, à memória e à justiça; para o juntura e um modo de enfrentar o e Chile fizeram muito na área de me- futuro, um sinal de que a tortura, em passado. A cultura política brasileira, mória, mas o Brasil hoje possui, sem nenhuma hipótese, será tolerada. da grande conciliação entre as elites, nenhuma dúvida, o maior programa de acaba em certa medida induzindo e reparações já empreendido desde o fi- IHU On-Line - Não se trata de vin- consolidando uma ideia geral de que nal da II Grande Guerra, além de estar gança, mas de justiça o fato de se alguns temas – por mais relevantes que avançando na consolidação de políti- punir os crimes cometidos contra a sejam – saiam de pauta e não sejam cas de segurança cidadã. Realmente humanidade no período da ditadura discutidos. Somando-se a isso o qua- existem déficits, mas é importante brasileira. Poderia comentar essa di- dro de conservadorismo do judiciário procurarmos olhar para nosso processo ferença de interpretação quanto ao e a proliferação de centenas de cau- como diferente, e não como inferior que realmente significa punir os tor- sas para a sociedade civil lutar após a de nossos vizinhos, de maneira que turadores? a democratização, configurou-se um possamos enfrentá-los (os déficits), Paulo Abrão - Responsabilizar crimes quadro em que as pautas transicionais considerando não apenas a experiên- na forma da lei nunca será uma for- levaram muito tempo para emergir. Os cia que eles desenvolveram, mas tam- ma de vingança. É isso que diferen- direitos da transição tornaram-se se- bém aquilo que temos de melhor. cia o Estado de Direito das ditaduras. cundários diante da explosão de direi- Deixar de apurá-los é que é algo au- tos da Carta Cidadã. De todo modo, o IHU On-Line - Em que sentido é pre- toritário e excludente para parcela tempo é uma variável que pode se tor- ciso reinterpretar a Lei de Anistia? da sociedade. A proposta “vingativa” nar em um grande aliado em matéria Paulo Abrão - No sentido de a tornar seria a de submeter os algozes a atos de justiça de transição. compatível com nossos compromissos análogos aos que perpetraram. O que constitucionais e com os tratados in- realmente os perseguidos políticos IHU On-Line - Como podemos com- ternacionais de direitos humanos. O buscam é, simplesmente, que o Esta- preender nossa democracia se esse cenário agora é o seguinte: o STF é, de do processe os crimes na forma da Lei acerto de contas ainda não foi rea- fato, a mais alta corte do nosso Judici- (até na hipótese de que uma anistia lizado? ário e declarou a lei válida para todos impeça o cumprimento da pena). Ain- Paulo Abrão - A democracia é um pro- os crimes do terrorismo de Estado. Po- da, a condenação moral é algo valioso cesso em permanente construção. Por rém, a competência para o julgamento para as vítimas, pois demonstra que a isso é que, ao identificarmos déficits, dos crimes de tortura sistemática e ge- morte, o desaparecimento e a tortura devemos procurar atacá-los. Um dos neralizada – que consistem em crimes a qual foram submetidos seus familia- SÃO LEOPOLDO, 18 DE ABRIL DE 2011 | EDIÇÃO 358 39 “Estamos em busca do melhor legado ético Justiça, o dever da memória civilizacional Em todos os países, o dever da memória é fazer justiça, asse- pós-Nuremberg” gura o filósofo Reyes Mate. Ditadura franquista foi tão longa que, quando terminou, as pessoas haviam esquecido-se da res ou a si próprios não é um ato que crueldade inicial. Universidades espanholas foram submetidas passa despercebido para o restante da humanidade. A percepção de que a de- a “tomismo-leninismo” mocracia é distinta da ditadura e reco- nhece o direito à proteção judicial das Por Márcia Junges | Tradução Benno Dischinger pessoas lesionadas, além de sinalizar que a justiça é a mesma para todos, é uma questão de princípio. ma ditadura tão longeva que, ao seu final, conseguiu fazer o povo esquecer-se de sua crueldade dos primórdios. Assim foi a ditadura IHU On-Line - A lista dos desapare- franquista ocorrida na Espanha de 1939 a 1976. Nessa época, “os cidos políticos no Brasil é extensa, direitos humanos brilhavam por sua ausência, o que não impedia mas não contempla os desaparecidos indígenas que opuseram resistência que fosse um regime abençoado pela Igreja Católica, tanto a na- aos militares. Como podemos com- Ucional como a vaticana, e apoiado pelos Estados democráticos do Ocidente, preender isso? porque lhes vinha bem o feroz anticomunismo do regime”, afirma o filósofo Paulo Abrão - Muitas formas de per- espanhol Reyes Mate na entrevista que concedeu por e-mail à IHU On-Line. seguição política são pouco registra- Na universidade ventos gélidos condenaram uma geração de intelectuais ao das. O fato central é que demandas silêncio ou ao exílio, um verdadeiro desastre: “Impôs-se, em lugar do pen- transicionais, assim como demandas samento crítico, o que chamávamos de ‘tomismo-leninismo’, quer dizer, a por reconhecimento, dependem fun- escolástica tomista convertida em ideologia de um regime fascista”. Quanto damentalmente da mobilização da à transição política na Espanha, Reyes Mate menciona que esta aconteceu em sociedade civil. É a sociedade civil condições de “inferioridade para os democratas. Foi preciso transigir muito. quem, no jogo democrático, mais in- Se a oposição ao franquismo reivindicava ‘a anistia para os presos’ (antifran- fluencia a tomada de decisões tran- quistas), os primeiros governos da transição decretaram duas anistias que sicionais, e isso é verdadeiro para qualquer conjunto de pessoas viola- favoreciam, sobretudo, os criminosos franquistas. Por isso falamos hoje de das. Sobre a perseguição política aos olvido, de esquecimento”. Dentro e fora da Espanha, o dever da memória é povos indígenas tivemos uma reunião um dever de justiça, ressalta o pensador. “Se levarmos a sério a justiça, é com o presidente da Funai para tratar preciso fazer memória da injustiça”. E arremata: “a memória das vítimas é do assunto e teremos novidades sobre um dever. Se não se faz, é porque os vitimadores continuam sendo poderosos isso no futuro. Há muitas outras histó- ou porque continua havendo medo, ou porque falta uma cultura da memória rias ainda veladas. nos formadores de opinião pública”. Reyes Mate é professor do Instituto de Filosofia do Conselho Superior de Pes- quisas Científicas – CSIC e autor do livro Justicia de las víctimas. Terrorismo, memoria, reconciliación (Barcelona: Anthropos, Editorial del Hombre, 2008), en- tre outros. Em português, citamos Memórias depois de Auschwitz (São Leopoldo: Nova Harmonia, 2005). Confira a entrevista. Leia Mais...

>> Paulo Abrão já concedeu outra entre- vista à IHU On-Line. Confira. * “Nossa transição democrática está incompleta”. IHU On-Line - Você poderia fazer Porém, hoje os estudos que estão Publicada nas Notícias do Dia 19-03-2009, dispo- referência ao contexto (sociopolí- sendo feitos mostram a vontade ex- nível em http://migre.me/41EJq. tico) vivido durante a ditadura de terminadora de todos os valores rela- Franco? cionados com o republicanismo. Não  A pergunta se baseia na notícia Índios Wai- Reyes Mate - Foi tão longeva esta di- foi uma ditadura meramente “totali- miri-Atroari desaparecidos na Ditadura, dis- tadura que no final conseguiu que se tária”, senão inicialmente fascista e ponível em http://grem.io/8ed. (Nota da IHU On-Line) esquecesse a crueldade do princípio. criminosa até o final. 40 SÃO LEOPOLDO, 18 DE ABRIL DE 2011 | EDIÇÃO 358 IHU On-Line - Como foram esses anos “A transição não fez nal, basta que passe o tempo para que de morte na Espanha? tudo seja esquecido? Reyes Mate - Há muita literatura so- nenhum ajuste de bre isso. Os direitos humanos brilha- IHU On-Line - Como considera que os vam por sua ausência, o que não im- contas, senão um países que sofreram ditaduras devam pedia que fosse um regime abençoado lidar com esse fato no presente? pela Igreja Católica, tanto a nacional esquecimento forçado Reyes Mate - Levando a sério o dever como a vaticana, e apoiado pelos Esta- de memória. Um presente construído dos democráticos do Ocidente, porque pelas circunstâncias. sobre o esquecimento da injustiça, di- lhes vinha bem o feroz anticomunismo ficilmente poderá ser justo. Não terá do regime. A Espanha era um solar em É hoje que se está escrúpulos em recorrer à injustiça que a criação e a inteligência tinham como arma política. que fazer-se clandestinamente. A situ- propondo a revisão dessa ação na universidade era desastrosa, IHU On-Line - De seu ponto de vista, pois nos privaram de uma geração que forma de esquecimento. o que impede o Brasil de abrir os seus foi assassinada ou condenada ao exí- arquivos da ditadura e dialogar com lio. Impôs-se, em lugar do pensamento A Lei da Memória seu totalitarismo, quando a maior crítico, o que chamávamos de “tomis- parte dos países da América Latina já mo-leninismo”, quer dizer, a escolásti- Histórica foi um tímido o tem feito? ca tomista convertida em ideologia de Reyes Mate – Vocês são os que devem um regime fascista. passo em frente” responder a essa questão. Do ponto de vista moral, a memória das vítimas é IHU On-Line - Há desaparecidos polí- um dever. Se não se faz, é porque os vi- ticos desse período? timadores continuam sendo poderosos Reyes Mate - No pós-guerra houve mui- IHU On-Line - Os arquivos da ditadu- ou porque continua havendo medo, ou tos desaparecidos do grupo dos venci- ra espanhola estão disponíveis ao pú- porque falta uma cultura da memória dos. Muitos foram aparecendo. Porém, blico para serem consultados? Como nos formadores de opinião pública. ainda hoje se calculam em mais de se levou a cabo esse processo? cem mil os que desapareceram. Reyes Mate - Alguns estão disponíveis. IHU On-Line - Países como Tunísia e Mas, o problema é que muitos docu- Egito acabam de derrubar seus dita- IHU On-Line - De que maneira a Es- mentos foram destruídos consciente- dores. Khadafi, na Líbia, treme en- panha combateu esses ressaibos da mente durante o tempo da transição. castelado no poder, sem deixar de ditadura? Existiu alguma lei de Anis- promover uma repressão sangrenta. tia ou foi utilizado outro tipo de re- IHU On-Line - Como se mantém a me- Qual é o futuro dos totalitarismos e curso? mória histórica desse período? que tipo de democracia se pode es- Reyes Mate - A transição política es- Reyes Mate - Com dificuldade, pois é perar depois destas mudanças? panhola se fez em certas condições de preciso vencer a resistência dos polí- Reyes Mate - O que ocorreu nesses pa- inferioridade para os democratas. Foi ticos da transição (também os de es- íses é um sinal de esperança que obri- preciso transigir muito. Se a oposição querda), dos historiadores e da opinião ga os ocidentais a um profundo exame ao franquismo reivindicava “a anistia de muita gente que não quer recordar de consciência. Não se pode construir para os presos” (antifranquistas), os esse passado. Quando alguém tenta o bem-estar de uns sobre o mal-estar primeiros governos da transição decre- fazer um juízo sobre o passado, como de outros. O aí ocorrido é uma lição taram duas anistias que favoreciam, ocorreu ao Juiz Garzón, acaba ele para o Ocidente rico. sobretudo, os criminosos franquistas. mesmo sendo justiçado. Por isso falamos hoje de olvido, de es- quecimento. IHU On-Line - Com respeito à Espa- nha, qual é o dever da memória his- IHU On-Line - Quais foram as causas tórica? Leia Mais... (os motivos) que levaram a Espanha Reyes Mate - O dever de memória na >> Reyes Mate já concedeu outras entre- a realizar esse ajuste de contas com Espanha e fora da Espanha é de jus- vistas à IHU On-Line. Confira o material na nos- sa página eletrônica (www.unisinos.br/ihu). o passado? tiça. Se levarmos a sério a justiça, é Reyes Mate - A transição não fez ne- preciso fazer memória da injustiça. Se * O campo de concentração está se convertendo nhum ajuste de contas, senão um es- não o fazemos, se passamos páginas, no símbolo da política moderna. Edição número 160 da IHU On-Line, de 17-10-2005, intitulada Os quecimento forçado pelas circunstân- estamos criando as condições para desafios da justiça e as políticas para uma cultura cias. É hoje que se está propondo a que a injustiça se repita. Basta, sim, da paz, disponível em http://migre.me/43zOu; revisão dessa forma de esquecimento. que passe o tempo para que se olvide * A memória como antídoto à repetição da bar- bárie. Edição número 291 da IHU On-Line, de 04- A Lei da Memória Histórica foi um tími- a injustiça: o que impede construir a 05-2009, disponível em http://migre.me/43zSd. do passo em frente. política sobre novas vítimas, se, no fi-

SÃO LEOPOLDO, 18 DE ABRIL DE 2011 | EDIÇÃO 358 41 42 SÃO LEOPOLDO, 18 DE ABRIL DE 2011 | EDIÇÃO 358 Teologia Pública

Protestantismo e catolicismo na América Latina: desafios da democracia e do pluralismo religioso?

“A ideia de Igreja como algo que se confunde com a nacionalidade e reivindica um certo sta- tus preferencial dentro da sociedade está cada vez mais ameaçada”, aponta o pesquisador

Por Greyce Vargas

esquisas recentes indicam o crescimento do pentecostalismo no Brasil. Há, portanto, e isso é ine- gável, uma mudança no status religioso nacional. Segundo o sociólogo Paul Freston, o motivo deste declínio da Igreja Católica se dá porque o pluralismo e a democracia se apresentam como os gran- des desafios para a religião. “É difícil manter a hegemonia na sociedade civil porque ela é cada vez mais independente, autônoma e plural. Assim, as ditaduras, mesmo aquelas que perseguiram Pa Igreja, eram situações mais favoráveis para a manutenção da posição social da Igreja”, explicou durante a entrevista que concedeu à IHU On-Line, por telefone. Paul Charles Freston nasceu na Inglaterra e é brasileiro naturalizado. Graduou-se em História e Antropologia Social pela University of Cambridge (Inglaterra) e fez mestrado em Latin American Stu- dies pela University of Liverpool. Também é mestre em Christian Studies pela Regent College. Já no Brasil, fez doutorado em Ciências Sociais pela Universidade Estadual de Campinas. Recebeu o título de pós-doutor pela University of Oxford. Atualmente, é pesquisador sênior da Baylor University (EUA) e professor na Universidade Federal de São Carlos (SP). Confira a entrevista.

IHU On-Line – O senhor destaca os Paul Freston – A questão é exatamen- IHU On-Line – O que caracteriza e o desafios da democracia e do plura- te essa: que superação seria possível que define, especialmente no Brasil, lismo religioso para a Igreja Católica. nesse momento? Não é fácil, porque, o pluralismo religioso? Como se dão esses desafios? na realidade, os projetos da Igreja são Paul Freston – No Brasil, o pluralismo Paul Freston – A questão do pluralismo muito ambiciosos e é difícil realizá- pode ser destacado em vários senti- e da democracia é um grande desafio los. Nesse sentido, cada episcopado dos. Temos o declínio de declaração para a Igreja Católica. Nesse ponto, nacional acaba fazendo sua própria católica, de adesão nominal. Nós ainda tenho usado muitos apontamentos de escala de prioridades. É difícil manter não temos os dados religiosos do mais uma cientista política estadunidense a hegemonia na sociedade civil porque recente censo. Seria interessante ver Frances Hagopian que trata bastante ela é cada vez mais independente, au- isso. Mas os censos anteriores e pes- da democracia e do pluralismo reli- tônoma e plural. Assim, as ditaduras, quisas mais recentes indicam que na gioso reforçando-se mutuamente para mesmo aquelas que perseguiram a adesão nominal a Igreja vem perdendo desafios relativos à Igreja Católica. Igreja, eram situações mais favoráveis cerca de 1% da população por ano. Aí Para ela, a democracia sem pluralismo para a manutenção da posição social temos o crescimento, principalmente, religioso seria mais fácil para a Igreja da Igreja. Nesse período era mais fácil do pentecostalismo, do protestantis- manejar, ou o pluralismo sem demo- identificar o “inimigo” e era mais fá- mo histórico – menos, mas também cracia, mas as duas coisas ao mesmo cil a Igreja agir como “guarda-chuvas” impresso – e o crescimento dos cha- tempo são um desafio maior. de grupos oposicionistas. Nesse senti- mados “sem religião”. Estes últimos do, essa situação era mais favorável à formam um grupo muito heterogêneo. IHU On-Line – A Igreja se encaminha manutenção da situação da Igreja em As outras religiões crescem menos, para uma possível superação desses relação à realidade atual, que é mais pelo menos em termos de declaração obstáculos? democrática e pluralista. no censo. Sabemos que há muita dupla

SÃO LEOPOLDO, 18 DE ABRIL DE 2011 | EDIÇÃO 358 43 filiação que não aparece no censo. “Na Europa há um to marcado pelo monopólio oficial. A Além disso, tem o aspecto da ques- América Latina se distanciou bastante tão do pluralismo interno católico, ou crescente pluralismo, porque produziu esse setor protestan- seja, pluralismo nas maneiras de ser te, principalmente pentecostal, que a católico, nas maneiras de crenças en- mas ele advém do Europa latina não produziu. Por outro tre aqueles que se declaram católicos lado, a América Latina não produziu e isso é uma coisa que também vem processo de o secularismo antirreligioso que é en- crescendo cada vez mais. Então, temos contrado em várias partes do sul da vários tipos de pluralismo religioso. secularização e também Europa. A situação aqui é bem diferen- te. Então, cada vez mais a América La- IHU On-Line – O senhor afirma que, do processo de imigração tina vai se distanciando de tais partes diante do “pluralismo multidimen- da Europa. sional”, a Igreja Católica perderá seu de pessoas mais status de “igreja no sentido weberia- IHU On-Line – Que fatores culturais e no”. Como isso acontece? religiosas” sociais diferem do cenário europeu- Paul Freston – Em parte por uma ques- americano do cenário latino-ameri- tão numérica. Quando você representa cano? possibilidade de a igreja ter essa influ- uma porção cada vez menor da popula- Paul Freston – A América Latina é uma ência que ela deseja. A sociedade civil ção, torna-se mais difícil justificar que terceira coisa: não é nem o processo vai se portando cada vez mais de for- certos privilégios sejam formalizados, que teve no norte da Europa (que foi ma autônoma. Então, esse projeto de justificados. A ideia de igreja é de algo o processo de reformas nacionais e uma reconquista da cultura vai se tor- que se confunde com a nacionalidade depois uma fragmentação dentro do nando menos viável, o que complica e reivindica um certo status preferen- campo protestante) nem o processo do também, obviamente, a porcentagem cial dentro da sociedade. É isso que sul da Europa (que foi de continuação da população católica e a debilidade está cada vez mais ameaçado. da hegemonia católica). Porém, criou institucional, ou seja, a falta de clero. Além do declínio numérico, depen- um setor antirreligioso muito forte. Essa é uma questão crônica na Améri- de também de outros fatores como o Depois, basicamente as outras formas ca Latina. peso histórico da instituição dentro de religiosas permaneceram fracas. Tam- cada país e dentro da América Latina bém não foi o processo americano de há diferenças nesse sentido. Há países IHU On-Line – Grande parte dos es- um processo de pluralismo já de saí- onde a Igreja tem um peso histórico tudos sobre o fenômeno religioso da na própria formação da nação. Por maior do que em outros. Também de- tem como ponto de partida o cenário causa disso, houve a decisão de sepa- pende da questão de prática. Ou seja, europeu ou anglo-saxônico, como os rar a Igreja e o Estado, a aproxima- não é apenas uma questão de adesão desafios do esvaziamento das igre- ção com a ideia de nacionalismo e a nominal. Nesse sentido, é claro que o jas, do islamismo crescente, do de- criação do fenômeno da denominação. catolicismo vem se transformando na saparecimento do sentido religioso. A Igreja Católica nos Estados Unidos medida em que, perdendo devotos, as Na América Latina, ao contrário, que teve que se enquadrar nisso e acabou pessoas que permanecem tendem a pontos o senhor destacaria como adquirindo várias características das ser mais atuantes, praticantes e iden- centrais para compreender o cenário denominações protestantes. tificadas. O catolicismo, então, vai se religioso? Paul Freston – Na Europa há um cres- tornando, cada vez mais, uma religião IHU On-Line – Por trás da “descato- cente pluralismo, mas ele advém do de escolha no Brasil e não mais uma lização” e da “protestantização” da processo de secularização e também religião simplesmente herdada cultu- AL, não estaria também a questão da do processo de imigração de pessoas ralmente. O sentido de ser católico, relevância do discurso (das lingua- mais religiosas. Obviamente, imigran- portanto, vai mudando. gens, das gramáticas) de cada uma tes muçulmanos vêm logo à mente. dessas correntes religiosas no con- Mas há imigrantes hindus e cristãos IHU On-Line – O senhor fala de um texto atual? nessa “leva” para a Europa, sejam projeto católico comum, a Nova Paul Freston – Não é isso que está africanos, latino-americanos... Então, Evangelização, adotado oficialmente acontecendo. O que ocorre é uma mu- isso é o que marca a questão do plura- em 1992. Poderia explicá-lo? dança no status público da Igreja Ca- lismo na Europa. Paul Freston – É um pouco vago, na tólica, mas também de uma transição Já a América Latina não tem esse realidade, porque é um projeto de protestante que é o fato de que muito aspecto da imigração e a seculariza- reconquistar a influência junto à - so dificilmente o protestantismo vai che- ção, ou seja, não existe no mesmo pa- ciedade civil, de ter uma influência gar a ser maioria em algum país lati- tamar que acontece na Europa. O que não tanto diretamente do Estado. Isso no-americano. Certamente, no Brasil ocorre aqui é um processo interno de é complicado. É justamente aí que o a perspectiva não é essa. Prevejo que fragmentação religiosa a partir de um pluralismo e a democracia se compli- nas próximas décadas o crescimento passado de hegemonia católica mui- cam, porque limitam o alcance e a protestante vai estabilizar, vai chegar

44 SÃO LEOPOLDO, 18 DE ABRIL DE 2011 | EDIÇÃO 358 num patamar e se estabilizar. Ficare- “As relações entre imigração novamente. Se isso não ocor- mos entre 20 e 35%. Quando estabili- rer, a população vai estabilizar, vai ficar zar aí tudo muda. Essa é a questão. católicos e protestantes mais envelhecida, e isso trará desafios Teremos um quadro religioso to- diferentes para todas as religiões. Essa talmente transformado nesse país; serão bem diferentes situação irá exigir outras abordagens teremos um protestantismo que já e outras formas mais apropriadas para não cresce como hoje. Não vai haver e, além disso, teremos esse perfil demográfico. o mesmo triunfalismo e o mesmo jeito Além do mais, creio que, se as coi- aguerrido. Vão ser produzidos outros um setor razoavelmente sas continuarem como estão, com uma tipos de líderes, outras relações entre democracia consolidada e uma situação as diferentes religiões e com a política. grande de pessoas econômica melhor, a tendência vai ser Vai ser muito diferente do que é hoje. que a política e a vida pública terão es- Ao mesmo tempo, a Igreja Católica adeptas a outras religiões paços para outras questões. Nas ultimas vai estabilizar. Porém, de uma forma eleições vimos um início disso: a presen- diferente do que sempre foi. Pode até ou ‘sem religião’” ça da questão do aborto adquirindo uma ser minoria; é possível que o censo do proeminência nos debates que não tinha ano passado já dê uma minoria católica antes nas eleições brasileiras. Isso pode é mais nem menos favorável: é dife- no estado do Rio de Janeiro, não no país ser um reflexo de uma situação de maior rente. A tendência é produzir outros todo. E quando estabilizar os “fiéis” da estabilização econômica e consolidação tipos de igreja ou a transformação de Igreja serão descritos como mais prati- democrática. igrejas existentes que vão se adequar cantes, identificados, compromissados. Não creio que essa questão do abor- à nova situação. As relações entre católicos e pro- to tenha mudado o curso das eleições, testantes serão bem diferentes e, além como algumas pessoas dizem. Um dia IHU On-Line – Quais são as questões disso, teremos um setor razoavelmen- depois do primeiro turno fui pergunta- socioculturais mais importantes às te grande de pessoas adeptas a outras do por muitos meios de comunicação quais as igrejas deveriam prestar religiões ou “sem religião”. Essa situa- sobre isso e falei que seria imprová- mais atenção nesse cenário? ção pluralista vai ser mais difusa e não vel que essa questão teria sido a razão Paul Freston – Aí já é uma coisa mais vai haver uma protestantização. de haver um segundo turno. Depois, a normativa para as igrejas que eu não pesquisa do Datafolha mostrou isso de ousaria fazer. É claro que alguma coi- IHU On-Line – Nessa sociedade pós- fato. Mostrou que o debate acerca do sa irá acontecer e que já sabemos que moderna, e especialmente no con- aborto não foi o suficiente para mudar está em curso: a questão do envelheci- texto brasileiro, as igrejas estão sa- a situação. De toda forma, foi um tema mento da população. O Brasil vai passar bendo encontrar o seu lugar? que teve mais visibilidade em eleições a ter um outro perfil demográfico, com Paul Freston – Tudo indica que sim. Al- brasileiras do que em momentos ante- uma população mais estável, se não gumas mais do que outras. Além disso, riores. Isso pode ser um prenúncio do houver imigração. É possível que haja, outras vão surgir totalmente novas. que vem por aí, se a situação geral do porque o Brasil pode virar um país de A princípio, a pós-modernidade não país continuar melhorando.

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SÃO LEOPOLDO, 18 DE ABRIL DE 2011 | EDIÇÃO 358 45 Entrevista da Semana

A política na condução do desenvolvimento sustentável O capital social pode ser utilizado para finalidades diversas, de acordo com o contexto no qual está inserido, assinala a socióloga Elena Battaglini

Por Patricia Fachin e Graziela Wolfart | Tradução Benno Dischinger

política pode transformar o capital social em recursos positivos para o desenvolvimento sustentável de um território”, defende Elena Battaglini, em entrevista concedida à IHU On-Line por e-mail. Segundo a socióloga italiana, a política desempenha um “papel crucial” ao mediar a relação entre sociedade e mercado “porque pode fornecer quadros de referência: a valoração de um escopo geral, de um sistema de valores e identitários, “Abaseado na inclusão social”. Elena Battaglini ressalta que é preciso não confundir a sociedade civil com o mercado e para isso, aconselha: “é necessário saber olhar longe, além dos termos eleitorais ou os lucros de curto prazo. E pensar no futuro das próximas gerações. Gerações às quais é preciso poder pelo menos fazer desfrutar dos recursos (já escassos) aos quais faziam referência os nossos pais. PhD em Sociologia Ambiental, Elena leciona na Faculdade de Sociologia da Universidade de Roma La Sapienza e Faculdade de Arquitetura da Roma Tre. Confira a entrevista.

IHU On-Line - O que se entende por tabelece, se lê através de lentes inter- Elena Battaglini - As tensões entre sociologia do ambiente? pretativas dos paradigmas (em sentido ator e estrutura, entre cultura e con- Elena Battaglini - A sociologia do am- kuhniano) ou das teorias de referência texto e entre as polaridades simbólico biente, na Itália como no resto do mun- (e nesta modalidade de resposta me e material que caracterizam o debate do, se desenvolve a partir da discussão coloco mais como socióloga construti- das ciências sociais, sobretudo na Eu- dos paradigmas da mainstream socio- vista do que estruturalista...). ropa, se refletem nas tensões teóricas logy na trilha do debate sociopolítico No meu trabalho adoto, em par- entre produção e consumo, âmbito no sobre a crise ambiental. O nascimento ticular, as perspectivas teóricas da qual se coloca a alimentação. da sociologia do ambiente está rela- sustentabilidade tridimensional (am- Em temas de alimentação, é neces- cionado a dois artigos seminais de Cat- biente, economia e sociedade) pelo sário indagar as modalidades com as ton e Dunlap (1978; Dunlap e Catton, estudo do território; como aquelas da quais disciplinas como a economia ou 1980) dos quais se origina a teorização modernização ecológica para a análise a sociologia rural, de uma parte, e a de um “novo paradigma ecológico” de práticas de empresa que se enqua- sociologia da alimentação, de outra, que se opõe àquele do “isencionalis- dram em fenômenos de “alta via de tematizam o alimento, cada uma com mo” ou “excecionalismo humano”. inovação” para a análise da percepção linguagem própria e estatuto discipli- Na Itália, os ecos deste debate che- social dos riscos, importante driver da nar. É este o desafio teórico no qual se garão mais tarde, uns 10 anos depois demanda de bens materiais e imate- coloca o meu trabalho e ao qual tenho e se substanciarão na constituição de riais de “qualidade”, principalmente tentado contribuir com o meu livro O cátedras sobre a disciplina em algumas nas sociedades industrializadas. E este Gosto Reflexivo. Para uma Sociologia universidades italianas e numa série último interesse-chave me constringe, da Produção e do Consumo alimentar. de estudos de cunho teórico, antes do como estudiosa, a encontrar novas sín- que empírico. teses nos debates entre estruturalistas IHU On-Line - Pode explicar-nos o e construtivistas que empenha há dé- conceito de capital social e como IHU On-Line - Como se estabelece a cadas a sociologia europeia. este poderia responder às críticas de interação (a relação) entre sistema “esquerda”, feitas a este conceito? social, ambiental e territorial? IHU On-Line - Quais são os principais Elena Battaglini - Sobre o conceito de Elena Battaglini - A interação ente sis- elementos da sociologia da produção capital social tem sido escritos rios de temas ambientais e sociais não se es- e do consumo alimentar? tinta a partir dos trabalhos de Bour-

46 SÃO LEOPOLDO, 18 DE ABRIL DE 2011 | EDIÇÃO 358 dieu, Granovetter e Putnam. Pessoal- na Itália, me provoca uma dor pun- mente, retenho que, principalmente gente. Deixar de lado a emotividade nos estudos territoriais, este conceito de quem, como eu, junto a muitos seja útil se for considerada a relevân- outros, está assistindo ao desmantela- cia “situacional e dinâmica” (PISELLI, mento de um sistema pedagógico que 2001). Como afirma um conhecido es- até poucos anos atrás constituía uma tudioso italiano: “o capital social pode excelência na Europa, escusai-me, re- ser utilizado para finalidades diversas, quer certo esforço. Considerado isso, segundo os vínculos e as oportunida- o estudo universitário, a meu ver, deve des determinadas do contexto insti- contribuir para formar nos estudantes tucional no qual está inserido. O uso três aspectos: se modifica no tempo ao mudar das — a consciência crítica: numa pa- exigências de adaptação dos atores lavra, a curiosidade no lançar-se além com respeito ao contexto” (TRIGILIA, das aparências e, conjuntamente, a 2001). Como estudiosa devo afirmar paixão pelo rigor e o método de uma que, lastimavelmente, o alcance se- argumentação, verdadeiro parâmetro mântico deste conceito não tem sido com que distinguir verdades científi- satisfatoriamente operacionalizado cas de afirmações subjetivas; em nível empírico. Como pessoa de — o senso do relativo: o saber posi- “esquerda” digo que, para os fins da cionar um fenômeno ou uma argumen- sustentabilidade, é a política que pode tação no contexto espaço-temporal do transformar o capital social em recur- qual se faz expressão; sos positivos para o desenvolvimento — a capacidade de captar os nós sustentável de um território. A política dos sistemas (complexos): objeto de à qual assinalo tem um papel crucial estudo e, quem sabe, a vontade de no mediar a relação entre sociedade e analisar a direção causal dos liames mercado, visto que pode fornecer qua- entre estes. dros de referência: a valoração de um Eis, um estudante que queira, di- escopo geral, de um sistema de valo- gamo-lo assim, cavalgar as flutuações res e identitário, baseado na inclusão do mercado, e não ser, ao invés, atro- social (cf. GARIBALDO, 2003). pelado por elas, deve poder adquirir estas competências. IHU On-Line - Qual é a importância das universidades em relação à for- IHU On-Line - Qual é o papel do capi- mação de capital humano, um capital tal social no atribuir valor ao territó- humano que não seja sujeito às flu- rio, principalmente quando falamos tuações do mercado? de sustentabilidade? Elena Battaglini - Responder a esta Elena Battaglini - O papel do capital pergunta, neste momento histórico, social em nível territorial se desem-  Pierre Bourdieu (1930-2002): sociólogo penha em termos de qualidades de francês. De origem campesina, filósofo de for- dinâmicas relacionais entre os atores mação, chegou a docente na École de Socio- logie du Collège de France, instituição que o socioeconômicos e os cidadãos, na consagrou como um dos maiores intelectuais qualidade do patrimônio de conheci- de seu tempo. Desenvolveu, ao longo de sua mentos, também tácitos e, enfim, na vida, mais de trezentos trabalhos abordando a questão da dominação e é, sem dúvida, um confiança entre sujeitos e entre estes dos autores mais lidos, em todo mundo, nos e as instituições. campos da Antropologia e Sociologia, cuja con- tribuição alcança as mais variadas áreas do co- nhecimento humano, discutindo em sua obra IHU On-Line - O que é preciso fazer IHU do eventos dos Participe temas como educação, cultura, literatura, para não confundir a sociedade civil arte, mídia, linguística e política. Seu primei- com o mercado? ro livro, Sociologia da Argélia (1958), discute a organização social da sociedade cabila e, em Elena Battaglini - É necessário saber www.ihu.unisinos.br Informações particular, como o sistema colonial interferiu olhar longe, além dos termos eleito- nesta sociedade, em suas estruturas e descul- rais ou os lucros de curto prazo. E pen- turação. Dirigiu, por muitos anos, a revista Actes de la recherche en sciences sociales e sar no futuro das próximas gerações. presidiu o Comitê Internacional de Apoio aos Gerações às quais é preciso poder pelo Intelectuais Argelinos – Cisia, sempre se posi- menos fazer desfrutar dos recursos (já cionado clara e lucidamente contra o liberalis- mo e a globalização. (Nota da IHU On-Line) escassos) aos quais faziam referência os nossos pais. SÃO LEOPOLDO, 18 DE ABRIL DE 2011 | EDIÇÃO 358 47 Avanços tecnológicos e os desafios da educação

Por Nadia Helena Schneider*

Ao observar o atual cenário mun- bal, que requer educação continuada dial no qual o capitalismo intensifica e capacitação qualificada para reali- o processo de mudança de sua base zar trabalhos altamente complexos. técnica e organizacional, apoiado por Observe-se que, diante desse quadro, mecanismos neoliberais, a informa- as TICs, responsáveis pelas transfor- ção, a comunicação e a educação pas- mações dos processos de trabalho, da sam a ter um papel fundamental na reorganização dos modos produtivos infraestrutura básica responsável pelo e comerciais das empresas capitalis- desenvolvimento econômico e social tas e das relações interpessoais, são de um país. Diante dessa realidade, o elementos-chave que impõem, à so- presente artigo traz uma breve refle- ciedade e suas instituições, a aqui- xão sobre os avanços das Tecnologias sição de equipamentos, linguagens da Informação e da Comunicação – TIC e conhecimentos específicos, sem os no campo da educação, enfatizando quais as condições de efetivar o pro- a informação, o conhecimento, e o palado desenvolvimento dificilmente processo educacional como subsídios se efetiva. para o aprendizado e a construção Sendo essa a realidade, no cam- de novos saberes capazes de elevar o po da educação, há algumas políti- crescimento de uma nação. o apren- cas que buscam enfrentar os reflexos dizado e a construção de novos sabe- das exigências da economia global, res capazes de elevar o crescimento em cenário neoliberal, na tentativa de uma nação. Compreendendo a de sanar o tamanho do impacto das informação como matéria-prima tec- novas possibilidades tecnológicas e nológica e recurso de poder da atual propor alternativas, no processo en- organização mercadológica, a comu- sino aprendizagem, visando qualificar nicação, através dos novos aparatos e adequar a educação, segundo novas tecnológicos, atuando no processo de exigências. Entretanto, existe clara- difusão e a educação como formadora mente um descompasso entre os es- de novas competências, o que deve- forços da iniciativa estatal em reduzir ria ser feito? Em dimensão societária, os impactos da crise educacional, fla- deveríamos estar preparando reparar grada nos últimos anos, e o aumento os indivíduos para um mercado glo- nos incentivos mercadológicos.

* Doutora em Ciências da Comunicação na Universidade do Vale do Rio dos Sinos - Unisinos, membro do Grupo de Pesquisa Comunicação, Economia Política e Sociedade – Cepos (apoiado pela Ford Founda- tion), professora e coordenadora pedagógica da Modalidade EJA no Município de Dois Irmãos. E-mail: .

48 SÃO LEOPOLDO, 18 DE ABRIL DE 2011 | EDIÇÃO 358 Ressalta-se que a forma mais efi- “Existe claramente um dificulta a ampliação do exercício da ciente para promover o desenvolvi- democracia por todos os atores so- mento de um país é por meio da edu- descompasso entre os ciais, bem como o desenvolvimento cação. E quanto mais precoce melhor. econômico do país. Isto porque ela permite a formação esforços da iniciativa Portanto, é indiscutível o fato de de bons hábitos desde a infância, e a que o acesso à informação e a uma oportunidade para desenvolver preco- estatal em reduzir os educação capaz de transformar essas cemente a consciência de ser cidadão, em conhecimento é forte fator decisi- aspecto importante na formação de impactos da crise vo para a ampliação das possibilidades futuros profissionais de um país que de inserção no mercado de trabalho, ambiciona competir no mercado eco- educacional, flagrada nos assim como acesso a qualidades fun- nômico mundial. damentais para o exercício da cidada- Levando em conta que as políti- últimos anos e o aumento nia, na atualidade. cas sociais neoliberais dão ênfase à Sendo assim, dada as possibilida- competitividade e defendem a ideia nos incentivos des tecnológicas vislumbrarem novas de que o mercado deva ser o gran- maneiras de aprender e ensinar que de instrumento de regulação social, mercadológicos” podem assegurar a produção de novas a eficiência produtiva é considerada subjetividades, novos saberes e, por- peça fundamental na reestruturação tanto, mudanças culturais e sociais, da. Também é oportuno disponibilizar do capital. Sendo assim, o emprego são imprescindíveis políticas gover- situações e atividades por meio das de uma mão de obra qualificada e es- namentais articuladas entre a propo- mídias, para a construção de novos colarizada está diretamente relacio- sição e a materialização, envolvendo conhecimentos, nos espaços educa- nado a alcançar maiores índices de ações de planejamento sistemático, cionais, que possibilitem ao jovem, competitividade econômica. Desse para modificar a deficiente realidade desde a formação fundamental até o modo, avançar com políticas públicas educacional do país. término do ensino superior, estímulo educacionais que pensem e favoreçam Diante do que foi pontuado, cabe para interferir na melhoria das con- a utilização das TICs na educação, enfatizar que o cenário característico dições de vida de sua comunidade, como práticas sociais transformado- da sociedade da informação e o surgi- conscientizando-o do seu papel como ras, requer igualmente pensar em mento das novas tecnologias de mídias cidadão. políticas de inserção dessas tecnolo- digitais desafiam a sociedade civil or- Embora a educação busque acom- gias nas escolas dos diversos níveis de ganizada a buscar novos rumos de or- panhar os movimentos históricos, ensino. O mesmo vale ao se discutir ganização e novas formas de gestão da numa relação de cumplicidade com tanto questões referentes à alocação informação, onde exista controle e fis- as necessidades e os objetivos da de- de recursos públicos quanto a refletir calização, bem como ficar atenta com manda social vigente, é visível o cres- sobre o processo de trabalho, espe- relação às políticas públicas de comu- cimento de um contingente cada vez cialmente do ensino a distância. Isto nicação e educação, a fim de garantir maior de infoexcluídos. Isto, conse- não apenas como suporte, mas como a formação de cidadãos não só bem quentemente, acirra a desigualdade prática intelectual e cultural qualifi- informados, mas, sobretudo, livres e entre as classes sociais e, por sua vez, cada, horizontalizada e cooperativa- autônomos.

SÃO LEOPOLDO, 18 DE ABRIL DE 2011 | EDIÇÃO 358 49 Destaques On-Line

Essa editoria veicula entrevistas que foram destaques nas Notícias do Dia do sítio do IHU. Apresentamos um resumo delas, que podem ser conferidas, na íntegra, na data correspondente.

Entrevistas especiais feitas pela IHU On-Line e disponíveis Escola da Amazônia. Uma experiência de amor à floresta nas Notícias do Dia do sítio do IHU (www.ihu.unisinos.br) de Entrevista especial com Silvio Marchini, biólogo 11-04-2011 a 16-04-2011. Confira nas Notícias do Dia 14-04-2011 Acesse no link http://migre.me/4fLEs Complexo Termelétrico de Candiota: “Uma licença Autor do livro Guia de Convivência Gente e Onças, Silvio Mar- nula por natureza” chini defende que, para proteger a floresta amazônica, é Entrevista especial com Paula Schirmer, promotora preciso aproximar as pessoas à floresta. Criador da Escola da da República Amazônia, Marchini desenvolve um trabalho de conscientiza- Confira nas Notícias do Dia 11-04-2011 ção da população e diz que a desinformação é a grande inimiga Acesse no link http://migre.me/4fKK1 da floresta. A procuradora da República do município de Bagé, Paula Schirmer, pediu a suspensão da operação das Fases A e B da A mobilidade urbana de Porto Alegre e região usina termelétrica de Candiota e a anulação da licença de metropolitana operação da Fase C. Segundo ela, além de gerar poluição, o Entrevista especial com Luciana Rohde e João complexo termelétrico de Candiota compromete os recursos Fortini Albano hídricos da região. Confira nas Notícias do Dia 15-04-2011 Acesse no link http://migre.me/4fLLH “A intelectualidade de massas é o futuro” Ao analisar a mobilidade urbana da capital gaúcha e região Entrevista especial com Ivana Bentes, jornalista e metropolitana e os projetos para melhorar o tráfego, os pesquisadora pesquisadores dizem que bons projetos são perdidos ou en- Confira nas Notícias do Dia 12-04-2011 calhados em função da burocracia e das limitações finan- Acesse no link http://migre.me/4fKNy ceiras. Segundo Luciana Rohde, as obras da RS-010 são um Para a diretora da Escola de Comunicação da UFRJ, Ivana exemplo emblemático de falta de planejamento. “O Estado Bentes, o desafio dos cursos de jornalismo e da profissão é [do RS] alega não possuir recursos para viabilizar a obra e a pensar a mídia dentro de um espaço mais amplo, da Cultura saída proposta pelo governo anterior – parceria público-pri- Livre. Isso ocorrerá a partir da mudança de mentalidade em vada – esbarrou em limitações jurídicas”. Para Albano, esses relação ao modelo de democracia que queremos. problemas acontecem porque o modelo de planejamento urbano é fraco. Fernando Lugo segundo a imprensa brasileira Entrevista especial com Rafael Foletto, sociólogo Protestantismo e catolicismo na América Latina: desafios Confira nas Notícias do Dia 13-04-2011 da democracia e do pluralismo religioso Acesse no link http://migre.me/4fLr7 Entrevista especial com Paul Freston, sociólogo O sociólogo Rafael Foletto comenta nesta entrevista alguns Confira nas Notícias do Dia 16-04-2011 aspectos de sua dissertação, intitulada De bispo a presidente: Acesse no link http://bit.ly/f8naqy as representações de Fernando Lugo na mídia impressa bra- Pesquisas recentes indicam o crescimento do pentecostalismo sileira. Para ele, o jornalismo constrói estratégias de produção no Brasil. Há, portanto, e isso é inegável, uma mudança simbólica em torno da figura do presidente do Paraguai, re- no status religioso nacional. Segundo o sociólogo, o motivo tratando o país como uma nação econômiac e socialmente deste declínio da Igreja Católica se dá porque o pluralismo atrasada e que só pode crescer com o apoio dos latifundiários e a democracia se apresentam como os grandes desafios brasileiros que produzem soja no país. para a religião.

50 SÃO LEOPOLDO, 18 DE ABRIL DE 2011 | EDIÇÃO 358 Programação de Páscoa IHU 2011

Debate sobre cuidado da vida na cultura contemporânea e Ciclo de Filmes e Debates: Sociedade Sustentável no cinema

Exibição de Filme: Home – Nosso planeta, nossa casa (Yann Arthus-Bertrand, 2009, 90 min) Apresentação: Prof. MS Gelson Luiz Fiorentin - Unisinos

Local: Sala Ignacio Ellacuría e Companheiros – IHU De 30/03 a 28/04 Informações no endereço eletrônico www.ihu.unisinos.br

SÃO LEOPOLDO, 18 DE ABRIL DE 2011 | EDIÇÃO 358 51 52 SÃO LEOPOLDO, 18 DE ABRIL DE 2011 | EDIÇÃO 358 Agenda da Semana

Confira os eventos desta semana realizados pelo IHU. A programação completa dos eventos pode ser conferida no sítio do IHU (www.ihu.unisinos.br).

Dia 19-4-2011 Evento: Páscoa IHU 2011 – Debate sobre cuidado da vida na cultura contemporânea Apresentação: Bel. Ana Maria Casarotti - Unisinos Jesus no cinema - Exibição do filme A Paixão de Cristo (Mel Gibson, EUA, 2004, Drama, 126min) Local: Sala Ignacio Ellacuría e Companheiros - IHU Horário: 19h30min às 22h Dia 26/4/2011 Evento: Páscoa IHU 2011 – Debate sobre cuidado da vida na cultura contemporânea Apresentação: Prof. MS Gelson Luiz Fiorentin - Unisinos Sociedade sustentável no cinema - Exibição de Filme: Home – Nosso Planeta, Nossa Casa (Yann Arthus-Bertrand, 2009, 90 min) Local: Sala Ignacio Ellacuría e Companheiros - IHU Horário: 19h30min às 22h Dia 27/4/2011 Evento: Observasinos - Oficina Indicadores Socioeconômicos e Tratamento Estatístico Apresentação: Profa. MS Claudia Angelita Fagundes Raupp - Unisinos Local: Sala Ignacio Ellacuría e Companheiros – IHU Horário: 14h às 17h Dia 28/4/2011 Evento: IHU Ideias - Abril 2011 - Mutações no mundo do trabalho: a concepção de trabalho de jovens pobres (Lançamento do Cadernos IHU com o mesmo título) Apresentação: Prof. Dr. André Langer - Centro de Pesquisa e Apoio aos Trabalhadores - CEPAT/ Curitiba Local: Sala Ignacio Ellacuría e Companheiros – IHU Horário: 17h30 às 19h

21 de maio Escola de Formação Fé, Política e Trabalho 2011

Da alienação à conscientização para uma prática transformadora da realidade. Assessoria: Prof. Dr. Pedrinho Guareschi – PUC/RS www.ihu.unisinos.br

SÃO LEOPOLDO, 18 DE ABRIL DE 2011 | EDIÇÃO 358 53 IHU Repórter

Claudio Pereira Elmir

Por Márcia Junges e Anelise Zanoni | Foto Arquivo Pessoal

trajetória de vida da família sírio-libanesa, que chegou ao Rio Grande do Sul no início do século XX, inspira parte dos estudos e da formação do professor de História Cláudio Pereira Elmir. Natural de Porto Alegre, ele reconhece em autores que falam da imigração um pouco de sua própria história. Com os estudos e a experiência de vida, o professor formado pela Universida- Ade Federal do Rio Grande do Sul - UFRGS iniciou a docência aos 22 anos. Cursou mestrado e doutorado em História na mesma instituição e, desde 1989, é professor da Unisinos, onde hoje atua na graduação e pós-graduação. Sua pesquisa atual trata de narrativas de ex-exi- lados políticos do período das ditaduras civil-militares na América do Sul.

Origens - Nasci em Porto Alegre, entrava meu bisavô de carroça. crimes, especificamente com os famo- cidade em que minha família mora. Lembro de, na infância, conviver sos crimes da Rua do Arvoredo, ocorri- Pertencemos a um núcleo familiar pe- bastante com minha irmã mais velha, dos em Porto Alegre na segunda meta- queno: meu pai é filho único e minha que hoje, aos 45 anos, é funcionária do de do século XIX. mãe tem apenas um irmão, que vive TRT, e que nos deu uma linda e inteli- em Santa Catarina. gente sobrinha. Minha irmã mais nova Mercado de trabalho - Na verdade, Atualmente, a família é composta nasceu quando eu tinha 16 anos. É qua- a profissão de historiador não é regu- por minha avó, minha mãe, meu pai e se uma filha para mim, e hoje, aos 28, lamentada, mas existe a profissão de duas irmãs. Recentemente, uma pes- trabalha na Caixa Econômica Federal. professor. Embora tenhamos o bacha- soa muito especial, o Volnei, se incor- relado, o campo é relativamente res- porou à nossa família e vive comigo há Escolha profissional - Sempre tive trito, com algumas vagas em arquivos pouco mais de três anos. muito interesse pela disciplina de His- e museus. Além disso, tem aumentado Pelo lado paterno, somos de ori- tória no colégio. Acho que pelo fato de o campo de oportunidades, porque sur- gem sírio-libanesa e com tradição de ter boas professoras na época. Entre- gem memoriais na Justiça, principal- pequenos comerciantes. A partir da tanto, tinha muita dúvida sobre qual mente em locais como Tribunais de Jus- minha geração e a das minhas irmãs, carreira seguir quando fiz o vestibular. tiça, Ministério Público. Nessas áreas cessou esta trajetória. Meus avós são Optei por tentar História na UFRGS e podemos construir a história das insti- filhos de imigrantes que chegaram ao Direito na PUCRS. Também cogitava o tuições e de seus membros. São poucas Brasil durante a I Guerra Mundial. Jornalismo. as pessoas, porém, que conseguem ter Passei a infância em Porto Alegre, Passei nos dois vestibulares, mas inserção nas histórias institucionais. no bairro Azenha. No local onde os escolhi estudar História. O interessan- Também há possibilidade de escre- meus bisavôs moravam, uma proprie- te é que, ao longo da minha formação, ver sobre grandes empresas ou indús- dade da década de 1920, vive a mi- dei-me conta que aproximei as três trias que querem registrar a própria nha avó, de 88 anos, atualmente na áreas. No mestrado, trabalhei com o trajetória e que buscam contratar his- companhia dos meus pais. Não é mais discurso sobre o crime na imprensa, toriadores para este trabalho. No en- a mesma casa, mas é o mesmo lugar. articulando a História ao Jornalismo tanto, há, nestes casos, um inevitável Para mim, isto é muito significativo. e ao Direito. Estudei o jornal “Última comprometimento com a empresa, e o Até hoje é mantida na calçada uma Hora”, o antecessor da “Zero Hora”. historiador não pode ter tanta autono- pequena rampa de pedras, por onde No doutorado, também trabalhei com mia no seu ofício.

54 SÃO LEOPOLDO, 18 DE ABRIL DE 2011 | EDIÇÃO 358 Vida acadêmica - Toda minha Hoje, o contexto é outro. É difícil, “Cidades Invisíveis” e “Por que ler trajetória acadêmica se deu na por exemplo, pensar na contratação os clássicos”. , um UFRGS. Entrei na graduação em de um professor que tenha apenas autor brasileiro de origem libanesa, 1985 e, quando me graduei ingres- a graduação, como acontecia até é um grande escritor. Ele tem uma sei imediatamente no mestrado e, a década de 1980. Atualmente, os produção pequena, muito inter- depois, no doutorado. Considero processos de gestão da universida- mitente, mas todos os livros muito minha formação pouco diversifica- de são mais profissionalizados e os elogiados e premiados. da porque estive sempre na mesma controles são múltiplos. Aos poucos, reconheci na li- instituição, o que não é recomenda- teratura de imigração muitos dos do. Entretanto, esta foi a trajetória Esportes e lazer - Sou bastan- fragmentos da minha trajetória fa- que eu cumpri, e da qual tenho al- te sedentário, mas gosto muito da miliar, o tipo de funcionamento da guns motivos para me orgulhar. praia e temos uma casa em Rainha família, as relações sociais, as ati- Quando terminei a graduação, do Mar, que é uma espécie de refú- vidades profissionais, especialmen- fui imediatamente contratado gio para a gente respirar. Vou à praia te o comércio. Gosto muito do seu pela Unisinos, em 1989. Na época, o ano todo, gosto de caminhar, ler, livro de estréia, “Relato de um cer- tinha 22 anos, tendo sido o meu curtir a casa. Gosto das atividades to Oriente”. Estes temas também primeiro emprego. Fiquei na insti- que fazemos na praia e dos encon- encontramos nas obras de Raduan tuição durante um ano e meio e fui tros familiares que ocorrem por lá. Nassar, que escreveu o livro “La- demitido em agosto de 1991, du- Reunir primos e criar momentos voura Arcaica”, um dos relatos mais rante um momento de crise aguda gastronômicos é muito bom. Cozi- dramáticos que conheço, tratando da universidade. Em seguida, fui nho um pouco, sei fazer coisas tri- de conflitos familiares, e que virou contratado pela Ulbra e, em 1993, viais, mas as faço especialmente na filme. Caio Fernando Abreu também me chamaram novamente para praia. O Volnei é muito melhor do tem textos lindos, especialmente os trabalhar na Unisinos. Consegui que eu neste ponto. volumes de crônicas de sua última trabalhar nas duas universidades Também visito minha família em fase e o livro de cartas publicado até o ano 2000, quando optei ape- Porto Alegre todos os finais de se- postumamente. nas pela Unisinos para poder me mana, porque decidi morar em São dedicar ao doutorado, o qual con- Leopoldo há cerca de quatro anos, Sonhos - Acho que não tenho cluí no final de 2002. já que passo quase todas as tardes e muitos sonhos. Diferentemente da algumas noites trabalhando na Uni- maioria das pessoas que conheço, Momentos distintos - Considero sinos. Outra atividade que gosto é ir não tenho especial interesse por via- que tenho duas casas, a UFRGS e a ao cinema, mas tenho frequentado jar. Especialmente porque eu odeio Unisinos. A primeira delas porque fiz pouco - os últimos a que assisti foram aviões. Quero viver uma vida tran- toda minha formação lá e sou que- “Cisne Negro” e “O Discurso do Rei”. quila, estar com as pessoas de quem rido pelos colegas, que no passado Desde que fecharam os cinemas eu gosto, construir uma carreira com foram meus professores, e pelos Guion do aeroporto passei a ir menos seriedade e comprometimento e ter atuais professores, que antes foram ao cinema, porque considerava o lo- o reconhecimento entre meus colegas meus colegas de aula. A Unisinos cal bastante prático, e os filmes, em da História. Eu vivo de afetos. Preciso também é a minha casa, porque é o geral, muito bons. Meu filme prefe- me sentir interpelado pessoalmente e meu primeiro emprego, onde passo rido, se tivesse que apontar apenas afetivamente pelas pessoas. Isto é o a maior parte do dia, e porque pos- um, é “O céu que nos protege”, de que me move. so ter orgulho de aqui trabalhar. Em Bernardo Bertolucci. Ali é possível se 2007, o Curso de História sediou o deparar com o sublime. IHU - Não acompanho muito de mais importante congresso científi- perto o funcionamento do Instituto co da área no país e creio ter sido o Leituras - Leio muitas coisas que Humanitas Unisinos, mas sempre maior evento promovido pela UNI- são obrigações do ofício, como dis- percebemos que o IHU é um lugar SINOS, reunindo, em pleno recesso sertações e teses. Atualmente estou privilegiado para a construção do de julho, mais de cinco mil pessoas trabalhando, na pesquisa, textos li- conhecimento, para a discussão de (pesquisadores, professores e alu- terários de dois autores: Flávio Ta- questões que, muitas vezes, não nos) no câmpus. Até hoje temos a vares e Ariel Dorfman, este último encontramos pautadas no dia a dia repercussão positiva deste simpó- um escritor chileno. Tenho explo- e no cotidiano da sala de aula. Além sio nos mais diferentes recantos do rado bastante a literatura de teste- disso, ele se destaca pelos even- Brasil. Acho que a instituição mudou munho e recentemente li uma obra tos internacionais, quase todos de muito nestes últimos anos e está da argentina Tununa Mercado, “Em grande porte. Também considero a cada vez mais em busca da serie- estado de memória”, publicada em revista muito interessante, porque dade acadêmica. Este fenômeno é Buenos Aires em 1990, mas traduzi- mantém qualidade em edições se- muito visível, especialmente na pós- da apenas agora para o português. manais, o que é uma coisa rara de graduação. Os momentos difíceis Alguns autores me chamam se ver, especialmente fora do cir- dentro da instituição coincidiram atenção e eu sigo perseguindo-os, cuito da grande imprensa. Eu sem- com situações de crise econômica. como Ítalo Calvino – gosto muito de pre passo os olhos por ela. Destaques

Cadernos IHU Mutações no mundo do trabalho – A concepção de trabalho de jovens pobres é o tema abordado na última edição do Cadernos IHU, número 34, de autoria de André Langer. Doutor em Sociologia pela Universidade Federal do Paraná – UFPR, Langer analisa a proximidade de jovens entre 18 e 29 anos com as novas tecnologias e, paradoxalmente, as dificuldades que eles encontram no mercado de trabalho em função da reestruturação capitalista que exige mais qualificação. O Cadernos IHU será lançado no dia 28-04-2011, quando André Langer, pesquisador do Centro de Pesqui- sa e Apoio aos Trabalhadores – CEPAT, parceiro estratégico do Instituto Humanitas Unisinos –IHU, proferirá no Instituto Humanitas Unisinos – IHU uma palestra sobre o assunto. A seguir haverá um debate com o público. O evento acontecerá às 17h30min, na Sala Ignacio Ellacuría e Companheiros – IHU. A versão impressa do Cadernos IHU número 34 está disponível no IHU. No mês de maio, a publicação estará na página eletrônica do IHU (www.ihu.unisinos.br) para download.

Sociedade sustentável no cinema O consumo excessivo tem um impacto direto sobre a Terra e mudanças comportamen- tais são necessárias para reduzir os efeitos nefastos gerados até então. Foi com a ideia de conscientizar a sociedade que Yann Arthus produziu o documentário Home – Nosso Planeta, Nossa Casa, que será exibido na Sala Ignacio Ellacuría e Companheiros – IHU, no dia 26-04-2011, às 19h30min. O evento faz parte da Programação de Páscoa IHU 2011, que tem como temática este ano a sociedade sustentável. O filme será apresentado pelo professor Ms. Gelson Luiz Fiorentin, da Unisinos..

Mamãe não está em casa Qual é o papel da mãe na sociedade contemporânea? Na atual realidade social, as mulheres desempenham diversas funções e tentam conciliar o tempo para atender a todas as demandas. Elas são profissionais, chefes de família, estudantes, esposas, mães. araP falar sobre os desafios das mulheres, hoje, e das relações entre mães e filhos, o psicanalistaAlfredo Jerusalinsky ministrará a palestra Mamãe não está em casa. Complexidade e nuances da maternidade contemporânea. O evento acontece em 5 de maio, na Sala Ignacio Ellacuría e Companheiros – IHU, às 17h30min. Mais informações no sítio do IHU (www.ihu.unisinos.br).

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