Quick viewing(Text Mode)

Roberto Serafim Simoes.Pdf

Roberto Serafim Simoes.Pdf

PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC - SP

Roberto Serafim Simões

O PAPEL DOS KLESAS NO CONTEXTO MODERNO DO IOGA NO BRASIL: UMA INVESTIGAÇÃO SOBRE OS POSSÍVEIS DESLOCAMENTOS DA CAUSA DO MAL E DA PRODUÇÃO DE NOVOS BENS DE SALVAÇÃO POR MEIO DA FISIOLOGIA BIOMÉDICA OCIDENTAL.

DOUTORADO EM CIÊNCIAS DA RELIGIÃO

SÃO PAULO 2015

PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC - SP

Roberto Serafim Simões

O PAPEL DOS KLESAS NO CONTEXTO MODERNO DO IOGA NO BRASIL: UMA INVESTIGAÇÃO SOBRE OS POSSÍVEIS DESLOCAMENTOS DA CAUSA DO MAL E DA PRODUÇÃO DE NOVOS BENS DE SALVAÇÃO POR MEIO DA FISIOLOGIA BIOMÉDICA OCIDENTAL.

Tese apresentada à Banca Examinadora, como exigência parcial para a obtenção do Título de Doutor em Ciências da Religião pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, sob orientação do Professor Eduardo Rodrigues da Cruz

DOUTORADO EM CIÊNCIAS DA RELIGIÃO

SÃO PAULO 2015

SIMÕES, Roberto Serafim, O papel dos klesas no contexto moderno do ioga no Brasil: Uma investigação sobre os possíveis deslocamentos da causa do mal e da produção de novos bens de salvação por meio da fisiologia biomédica ocidental. São Paulo, 2015. 175f.

Doutorado – Pontifícia Católica De São Paulo, 2015

Área de Concentração: Ciências da Religião

Banca Examinadora

______

______

______

______

______

DEDICATÓRIA

Aos meus pais, meu irmão e à minha família, Miila e Jolie.

AGRADECIMENTOS

Ao meu orientador, Prof. Dr. Eduardo Cruz, pela sua dedicação e parcimônia.

À CAPES, pelo apoio para a elaboração deste projeto.

RESUMO. O período antigo do ioga emerge em meio a uma sociedade indiana estratificada e influenciado por religiões como o samkhya e o hinduísmo bramânico, sistematizando-se como um dársana ortodoxo hinduísta por meio da escritura antiga Ioga Sutras (IS) alguns séculos antes de era cristã. O IS explica tanto as causas do sofrimento humano quanto a promessa de uma boa vida iogue, baseando-se na teoria comportamental dos klesas (apego, aversão, medo da morte, orgulho e ignorância) como nefastos a evolução espiritual. Um caminho óctuplo ou asthanga ioga (AI) edifica-se a partir dele como a proposta ioguica de salvação da alma. O AI visa, por meio de condutas éticas, práticas rituais corporais e a experiência mística do atenuar os klesas em busca da união com deus/Isvara. Na idade média indiano, entre os séculos X-XV d.C., esse sistema de crenças ioguico encontra a religiosidade tântrica, jainista e budista elevando o valor do corpo em detrimento a outros aspectos doutrinais do IS. A fase moderna do ioga, no entanto, está sendo erigida por influência de um novo contexto social-religioso. Atualmente, muito mais do que brâmanes e swamis, o ioga busca a sua legitimidade como caminho espiritual sob a égide da racionalidade científica e de novos movimentos religiosos do ocidente. Nesse processo, o ioga ressignifica a sua linguagem mística que circulava entre os ashrams e florestas indianos dos tempos antigo e medieval, para um público que enfrenta os desafios estressantes de se viver nos grandes centros urbanos ocidentais, sobretudo, uma sociedade do consumo, secular e privatizada religiosamente. Sabe-se que nos tempos atuais o ioga ressignifica a sua fisiologia metafísica à luz da ciência biomédica, desconfio que a teoria dos klesas, pode estar passando por uma reforma religiosa também. Para buscar compreender essas possíveis transformações soteriológicas do ioga atual, saí a campo e conduzi de forma semiestruturada entrevistas com dez iogues e três cientistas brasileiros da área psicobiológica que investigam o sistema de atos ioguicos como terapia e cura. Os dados revelaram uma percepção de clivagem no ioga moderno, entre pertencer a uma terapêutica Nova Era ou mais uma técnica biomédica ocidental. A partir dessa conjuntura novas crenças despontaram para legitimar o discurso do ioga frente ao panorama social-religioso em que ele vive atualmente. Mais do que simples ressignificação simbólica, a soteriologia ioguica moderna está passado hoje por um processo de transformação soteriológica. As principais transformações que se destacaram, estão: 1) na elevação da concepção de estresse ao nível de klesa ou obstáculo espiritual; e 2) o relaxamento, antagônico ao estresse-klesa, conquista natureza mística do samadhi; e 3) por consequência, a salvação/libertação dos klesas- estresse adquiri substância “empírica” de um estado espiritual imutável de não-estresse ou de uma espécie de “homeostase divina”. Conclui-se que a racionalidade científica ao invés de promover o desencantamento religioso do ioga, legitima-o como um novo sistema de crenças e produz novos bens de salvação (estresse-klesa, relaxamento-samadhi e homeostase- kaivalya). A associação dos benefícios para a saúde das práticas do ioga defendidos e propalados pela fisiologia biomédica associado ao desassossego dos centros urbanos ocidentais, pode ter enfraquecido a teoria comportamental dos klesas como causa essencial do sofrimento humano.

Palavras-chave: ioga, fisiologia, klesas, salvação espiritual, relaxamento, estresse.

ABSTRACT. The ancient period emerges amid a stratified Indian society and influenced by religions like samkhya and the Brahmanical if systematizing it as an orthodox Hindu darśana through ancient scripture Yoga Sutras (IS) some centuries before the Christian era. The IS explains both the causes of human suffering and the promise of a good life, based on the behavioral theory of klesas (attachment, aversion, fear of death, pride and ignorance) as adverse spiritual evolution. An eightfold path or asthanga yoga (AI) is built-from it as the yogic proposal for salvation of the soul. The AI aims, through ethical conduct, practices corporal rituals and mystical experience of samadhi mitigate klesas seeking union with God/Isvara. On average Indian age, between X-XV centuries AD, this system of yogic beliefs is the Tantric religiosity, Jain and Buddhist raising the body's value over the other doctrinal aspects of IS.

The modern phase of yoga, however, is being erected under the influence of a new social - religious context . Currently, more than Brahmins and swamis , yoga seeks its legitimacy as spiritual path under the aegis of scientific rationality and new religious movements in the West . In this process , the yoga reframes its mystical language circulating among ashrams and Indian forests of ancient and medieval times to an audience facing the stressful challenges of living in large Western cities, above all, a society of consumption, secular and privatized religiously. It is known that nowadays the yoga reframes its metaphysical physiology in the light of biomedical science , I suspect that the theory of klesas , may be going through a religious reform as well. In order to understand these possible soteriological transformation of the current yoga, I led 13 semi-structured interviews with ten way and three Brazilian scientists psychobiological area investigating the yogic system acts as therapy and healing. The data revealed a cleavage perception in the , between belonging to a therapeutic New Age or more a Western biomedical technique. From this juncture new beliefs emerged to legitimize the discourse yoga against the social- religious situation in which it now lives. More than just symbolic reframing, modern yogic soteriology is passed today by a salvific transformation process. The main changes that stood out are: 1) the elevation of design stress level of klesa or spiritual obstacle; and 2) the relaxation antagonistic to stress-klesa, achievement mystical nature of samadhi; and 3) consequently, salvation/liberation of klesas-stress acquire substance "empirical" an unchanging spiritual state of no stress or a kind of "divine homeostasis." It is concluded that scientific rationality rather than promote religious yoga disenchantment, it legitimizes it as a new system of beliefs and produces new goods of salvation (stress-klesa, relaxation-samadhi and homeostasis-kaivalya) . The association of the health benefits of yoga practices defended and propagated by biomedical physiology associated with the restlessness of the western urban centers , may have weakened the behavioral theory of klesas as essential cause of human suffering.

Key words: yoga, physiology, klesas, spiritual salvation, relaxation, stress.

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO...... 11

Capitulo 1. O IOGA ATRAVÉS DOS TEMPOS: DO IOGA ANTIGO DESCRITO NO IOGA SUTRAS AO SURGIMENTO DO IOGA MODERNO ...... 25 1.1. Período pré-clássico do ioga...... 25 1.2. Período clássico do ioga...... 27 1.2.1. Apresentação da proposta de salvação do ioga clássico...... 29 1.3. Período pós-clássico, pré-moderno ou medieval do ioga...... 31 1.3.1. O inicio da corporificação do ioga e a sua medicalização a partir do ayurveda.32 1.4. O surgimento do ioga moderno...... 38 1.4.1. A Renascença Indiana...... 38 1.4.2. Ioga moderno...... 39

Capitulo 2. OS KLESAS NO MUNDO MODERNO...... 44 2.1. Os primeiros iogues da geração moderna: a ressignificação das escrituras do ioga moderno a luz da ciência biomédica e fisiologia...... 44 2.1.1. A ressignificação das escrituras do ioga moderno a luz da ciência biomédica e fisiologia...... 47 2.1.2. A ciência legitima o discurso religioso do ioga...... 52 2.2. Teoria dos klesas corporificada: sinônimo de estresse e emoções...... 56 2.3. Klesa e estresse...... 61 2.3.1. Estresse biológico...... 63 2.3.2. Relaxamento...... 65 2.3.3. é real...... 68 2.4. Profanação do ioga...... 69

Capitulo 3 : IOGA NO BRASIL...... 72 3.1. As origens do ioga brasileiro a partir da história latino-americana...... 72 3.1.1. Fase místico-esotérico...... 74 3.1.2. Fase visitando à Índia...... 76 3.1.3. Fase do ioga indiano conhecendo os iogues latino-americanos...... 78 3.1.4. Fase da busca identitária e singular do ioga latino-americano...... 80 3.1.5. Fase de tensão entre os iogues “híbridos” e os “tradicionalistas” no Brasil.... 83 3.2. Ioga para Nervosos de Hermógenes versus Ioga para Normais do DeRose: iogaterapeutas híbridos e os iogues tradicionalistas...... 86

Capitulo 4. O IOGA BRASILEIRO: CONVERSANDO COM IOGUES E CIENTISTAS SOBRE O MAL, O BEM E VIAS DE SALVAÇÃO MODERNAS...... 90 4.1. Considerações preliminares...... 90 4.2. O universo da pesquisa...... 92 4.3. Entrevistados...... 94 4.3.1. Ravi...... 94 4.3.2. Centurion...... 95 4.3.3. Vishnu...... 96 4.3.4. Ganesh...... 96 4.3.5. Bento...... 97 4.3.6. Shanti...... 98

4.3.7. Hermes...... 99 4.3.8. Rudá...... 100 4.3.9. Andurá...... 100 4.3.10. Osiris...... 101 4.3.11. William...... 102 4.4. Questões de aproximação...... 102 4.4.1. Prática e Estado de ioga ressignificados com vistas a deslegitimar cientistas104 4.4.2. Ciência e Ioga na construção de uma nova espiritualidade terapêutica em andamento...... 108 4.4.3. Fase de transição na comunidade ioguica brasileira em busca da sua identidade religiosa...... 115 4.4.4. A crença na ordem cósmica e prana estabelecendo dialética entre o estresse e o relaxamento espiritualizados no convívio social...... 119 4.4.5. A busca pela homeostase eterna por meio do relaxamento espiritualizado...... 125

Capitulo 5. A REFORMULAÇÃO DA PROPOSTA SOTERIOLÓGICA DO IOGA NA MODERNIDADE: KLESAS, SAMADHI E KAIVALYA SE CORPORIFICAM POR UMA FISIOLOGIA RELIGIOSA EM ANDAMENTO NO IOGA BRASILEIRO...... 130 5.1. Meu caminho até aqui...... 130 5.2. O ioga moderno como produtor de rituais de cura/healing...... 134 5.3. O ioga como promotor de rituais corporais de cura na restruturação de sua realidade em que se vive...... 139 5.4. Aproximação entre relaxamento-samadhi e homeostase eterna-kaivalya como resposta espiritual do ioga a vida social brasileira em que habitam...... 144 5.5. O mal-estar, o sofrimento e o sintoma: uma nova perspectiva sobre a soteriologia do ioga...... 148 5.6. Ioga moderno como nova religião em processo...... 152 5.7. Ambivalência dos iogues brasileiros...... 156 5.8. Alteridade e Alienação presentes nas práticas rituais de cura do ioga moderno... 158 5.9. Kaivalya à brasileira...... 160

CONCLUSÃO...... 165

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS...... 169

INTRODUÇÃO

Devo confessar que escolho o ioga como objeto pois me sinto mais confortável em investigar a religiosidade brasileira através dele. Isto porque, em primeiro lugar, é o universo aonde posso transitar tanto quanto um insider quanto outsider. Observo colegas estudando campos religiosos que pouco conhecem e percebo o tempo que investem até compreenderem melhor o seu funcionamento interno. Bem antes de pensar em ingressar na academia já convivia com pessoas vivendo em ashrams, alimentando-se de prana, lendo chackras e permanecendo horas sentadas ou de ponta-cabeça em busca do samadhi. Não esboço qualquer traço de ironia ou inferioridade ao descrever essas crenças, pois não julgo nada como excêntrico e enxergo todas as formas de convicção – até mesmo na ciência como responsável em prolongar a vida com seus cosméticos antirrugas, inteligências artificiais, programas de treinamento psicofísico e cirurgias plásticas - se igualando a qualquer outro sistema religioso. E, por último, opto pelo ioga e o seu vínculo com a fisiologia biomédica, pois pertencem a uma lacuna nos escaninhos da ciência da religião brasileira que ainda não recebem o devido interesse. Demorei para divisar que há poucos acadêmicos fora do âmbito biológico preocupados em compreender o universo social brasileiro do ioga. Dessa forma, o ioga continua me instigando a compreende-lo melhor e, a partir dele, a religiosidade do brasileiro também pode se revelar.

O ioga atualmente dialoga com a ciência biomédica e a educação física elevando o valor da saúde em detrimento a outros aspectos éticos de sua doutrina. Algumas pesquisas apontam inclusive uma nova tipologia de iogues surgindo, o que indica inovações sobre o papel do ioga em sociedades modernas: seja de um iogue mais pragmático ou cientista que compreende a sua prática apenas como técnica profilática e de condicionamento psicofísico, até o iogue místico convicto que deus e ele são um. Além da ciência, o ioga desde o início do século passado vem sincretizando os seus princípios hinduístas com o jainismo e o budismo no período medieval indiano, e movimentos religiosos denominados Nova Era desde a virada do século passado, e no Brasil especificamente, de os anos de 1960, com expressões católicas, espíritas, daimistas e umbandistas.

11

Elencar, no entanto, os benefícios psicofisiológicos para terapia e cura das técnicas de ioga é hoje tarefa simples pela quantidade de trabalhos em biomedicina sendo realizados, mas poucos são os acadêmicos que se atreveriam a designar nas ciências sociais o ioga numa classificação definitiva e absoluta. É somente no anos de 1990 que as “humanidades” se aventuram em tais desafios na Europa e nos Estados Unidos efetivamente (ALTER, 2004, p.85; GUERRIERO, 2014).

Foi a partir das minhas investigações neurobiológicas sobre o ioga (DANUCALOV & SIMÕES, 2009, p.371) e depois conhecendo outros autores dentro do programa de ciência da religião, que me deparei também com as repercussões religiosas que estes estudos fisiológicos da biomedicina infligiam sobre a doutrina ioguica (SIMÕES, 2011).

Percebo somente agora no final do doutorado, que desde o meu primeiro trabalho sobre o tema em 2006 e, em seguida, ingressando no programa de pós- graduação em ciências da religião em 2009, venho investigando de certa forma o o ioga sob a mesma perspectiva, ainda embrionária no Brasil: a Fisiologia da Religião. Antes da minha admissão na academia, demonstrei as repercussões neuroquímicas das práticas contemplativas do ioga e seus benefícios terapêuticos. No mestrado, expus os arrolamentos da doutrina do ioga contemporâneo com a fisiologia biomédica, mas não me interessei quanto aos seus benefícios terapêuticos como o fizera outrora, enveredei pelo aspecto das ciências sociais. A dissertação mostrou que a fisiologia poderia estar além das óbvias implicações terapêuticas de práticas religiosas e se infiltrar ressignificando antigas escrituras espirituais com termos biomédicos (Ibid.).

De todo esses estudos sobre o microuniverso ioga, percebo que em complexas sociedades modernas a secularização, ao invés de diminuir crenças com base no sobrenatural, autorizou, através da privatização religiosa, novas espiritualidades ingressassem no campo religioso mundial disputando a hegemonia com as antigas dominantes (WEBER, 2001; BOURDIEU, 2011, p.79-98). Assim, práticas rituais e concepções mágicas antes incorporadas exclusivamente no seio de religiões já institucionalizadas - como o ioga no Hinduísmo, o tai-chi chuan no Taoísmo ou a cabala no Judaísmo - foram transplantadas do oriente para o ocidente, mas ornadas como terapêuticas espirituais (HANEGRAAFF, 1999) associadas ao movimento religioso mais amplo que denominamos Nova Era (CHAMPION, 1989), permitindo-

12

os sobreviver ao desencantamento do mundo (HANEGRAAFF, 2003). Assim, qualquer alteração no contexto sociocultural de uma dada denominação religiosa suscitará mudanças em sua estrutura de conhecimento do mundo, e com o ioga não poderia ser diferente.

O ioga, antes um dársana ou “escola filosófica” hinduísta ortodoxa, parece revelar-se hoje um misto de terapia biomédica e aula de ginástica aonde a ciência, mais do que qualquer outra religiosidade institucionalizada, mostra-se legitimadora do seu discurso em sociedades modernas (ver ALTER, 2004). Até o Ministério da Saúde brasileiro discute a inclusão do ioga em seu Sistema Único de Saúde (SUS)1 e debates sobre o papel do ioga como prática médica não-convencional são debatidas acadêmica e politicamente no país (SIEGEL, 2010).

A esta altura, seria lícito supor um ioga sendo praticado destituído de suas singulares características religiosas, como ocorreu com a acupuntura, haja vista a difusão indistinta de crenças antigas ioguicas com outras espiritualidades, mas sobretudo, pela inclusão dos seus ritos corporais em laboratórios científicos e hospitais, ou seja, em ambientes (aparentemente) laicos e seculares, aonde a teoria dos klesas, prana, samadhi ou kaivalya não teriam o menor interesse. No entanto, não é isso que parece ocorrer e alguns pesquisadores já apontam o ioga revelar-se como uma nova religião em andamento, sobretudo em cidades modernas, com foco em suas práticas rituais corporais de cura, como veremos.

Para adentramos nesta discussão sem nos perdermos em terminologias em sânscrito e questões filosóficas sobre a sua espiritualidade, escolhemos apresentar, mesmo que de forma sucinta e inicial, a soteriologia considerada “tradicional” ou antiga do ioga, e a confrontarmos com as possíveis alterações acolhidas no seu contato com a cultura moderna ocidental na configuração do que muitos investigadores denominam hoje de ioga postural moderno (DeMICHELIS, 2004). Abaixo descrevo alguns aforismos (sutras) de uma das mais conhecidas e propaladas escrituras ioguicas, o Ioga Sutras (IS) para que nos auxilie sobre as possíveis alterações sobre o conceito de klesa como causa iogue do sofrimento humano:

1 http://www.saude.es.gov.br/download/SESA_MANUAL_PIC_VERSAO_FINAL.pdf, acessado em 01/10/2014.

13

1.2. Yoga é a supressão dos movimentos da consciência [ou citta vrttis nirodha].

2.2. Com o propósito de produzir a integração [samadhi] e também com o propósito de tornar tênues as aflições [klesas ou obstáculos espirituais].

2.3. As aflições [klesas] são: ignorância, sentido de autoafirmação, desejo, aversão e apego à vida.

2.25. Da inexistência desta ignorância [avidya], resulta a conjunção [samadhi]: esta é a revogação do problema, o isolamento (kaivalya), no absoluto, do poder de ver.

2.29. Refreamentos [], observâncias [], postura [], controle do alento [], bloqueio das interações [prathyahara], concentração [dharana], meditação [dhyana] e integração [samadhi]: estes são os oito componentes do Yoga [ou asthanga ioga, o caminho espiritual óctuplo] (GULMINI, 2002, p.115-262).

Mesmo compreendendo não ser aqui o local acadêmico para realizarmos uma exegese das escrituras ioguicas, julgo ser pertinente esclarecer melhor os seus significados. Por isso, se faz necessário que se comente as suas passagens para uma maior compreensão posterior, aonde analisarei as possíveis reformas soteriológicas sofridas destes aforismos do ioga com o mundo moderno. Saliento, contudo, que tenho consciência de que muitos comentaristas modernos do Ioga Sutras (IS), especialmente brâmanes e acadêmicos europeus do início do século XX, intentaram adequá-lo ao pensamento racional do ocidente, destituindo-o, em parte, de sua linguagem mística e mágica para uma racionalidade mais condizente com o pensamento acadêmico (SARBACKER, 2008, p.165; SINGLETON, 2008, p.77-99).

O ioga de Patanjali descrito no IS, possui um ponto de vista dual da realidade. O corpo (prakrti) e a alma (purusa), portanto, são irreconciliáveis. É a “consciência” (citta)2, por meio dos “órgãos sensitivos” (indriyas), que estabelece o rompimento dos homens e mulheres com a perenidade harmônica de citta-purusa. O iogue crê que a alma exista em um estado de “não-movimento” ou “harmonia perene”, denominado em suas escrituras como kaivalya, aonde a alma e a consciência experienciam uma Bem-aventurança divina constante (ARANYA, 1983, p.22; BERRY, 1992, p.82-87).

2 Citta é formada pelo “intelecto” ou lit. perceber (buddhi), o “ego” ou lit. princípio individual (ahamkara) e a “mente” ou lit. ato de pensar (manas).

14

Por outro lado, a inevitável ligação que se estabelece entre a consciência e o mundo por intermédio do corpo, Patanjali deixa evidente ser a responsável em gerar um estado espiritual nefasto ao indivíduo, denominado de citta-vrttis ou “movimentos da mente/consciência”, “turbilhão da mente/consciência” ou “confusão mental/consciêncial”. Por isso que no sutra 1.2, Patanjali define o próprio ioga como “a supressão dos movimentos da mente/consciência” (citta-vrtti-nirodha), e no sutra 2.2 anuncia a experiência mística transitória advinda de suas práticas corporais, denominado de samadhi, como o retorno da consciência (citta) à sua natureza perene e imutável, símbolo de uma espécie de “estabilidade divina da alma”3 presente em purusa (BERRY, 1992, p.101-107, p.111; SARBACKER, 2008, p.163).

O IS esclarece que a dificuldade de se restabelecer ao estado harmônico divino primordial reside nas condutas impuras que se comete deliberadas pelos comportamentos associados aos klesas (lit. aflição) (SARBACKER, 2008, p.165). No sutra 2.25 nos é apresentado o “klesa-mãe” ou responsável vital por todo o sofrimento humano: a ignorância ou a ausência de conhecimento dos indivíduos em não se reconhecerem já livres de toda e qualquer dor ou angústia existencial (ARANYA, 1983, p.122). Os outros klesas ou causas das aflições ou mal-estar são revelados no sutra 2.3 como “filhos da ignorância” pelos comportamentos de apego, aversão, medo da morte e a falsa identidade/orgulho. Os iogues, ao contrário dos cristãos por exemplo, acreditam que nascem puros e em harmonia; mas no contato com o mundo e desatentos ou alienados de sua natureza estável de Bem-Aventurança, criam um ciclo nocivo de sofrimento e “confusão mental” (citta-vrttis) na identificação do corpo e da consciência com o mundo.

O caminho espiritual óctuplo proposto pelo IS ou asthanga ioga, é ordenado por oito passos de igual importância, sendo os dois primeiros uma espécie de “dez mandamentos” que um devoto ao ioga deve seguir na vida diária (yamas e niyamas); os próximos três descrevem a sua prática ritual corporal (asana, pranayama e o estado ioguico de prathyahara ou “abstenção dos estímulos externos”); a meditação propriamente dita é apresentada nos dois seguintes passos (dharana e dhyana); e, finalmente, a experiência mística de integração novamente da consciência com a alma

3 Ver sutra 4.18: “Os movimentos da consciência [citta] são sempre conhecidos por seu soberano [purusa], em virtude da imutabilidade do ser incondicionado” (GULMINI, 2002, p.381).

15

incondicionada (ou deus/Isvara) ou samadhi no oitavo momento, como citado no sutra 2.29: o retorno ao estado harmônico eterno ou encontro com a alma imaculada e em constante Bem-aventurança (BERRY, 1992, p.92-107; SARBACKER, 2008, p.162-164).

Ao findar a defesa da minha dissertação me perguntei se não haveria a ciência influenciado mais o ioga do que apenas a ressignificação simbólica dos seus preceitos metafísicos com termos da fisiologia biomédica. Digo isso, pois conversando com iogues e praticantes posteriormente, mas sobretudo, cursando formações ioguicas e vivenciando rituais das mais diversas no Brasil entre os anos que escrevia minha dissertação e esta tese, percebi o quanto do discurso ioguico havia mudado com relação as escrituras antigas do ioga (IS) que delineei sucintamente acima. Não eram apenas os chackras que haviam se transformado em glândulas endócrinas ou nadis em sistema nervoso autônomo. A grande causa do sofrimento iogue não parecia mais surgir dos comportamentos associado aos klesas, mas do estresse aferido empiricamente pelos instrumentos da ciência advindo do ritmo de vida das sociedades de consumo. Os professores e alunos de ioga atuais citam mais termos fisiológicos do que os sutras de Patanjali em suas aulas; e os klesas, o grande obstáculo espiritual ioguico de outrora, parecia não mais pertencer ao discurso ioguico moderno. O que ficou evidente a mim foi um ioga adaptando-se a cadência e as exigências do mundo moderno brasileiro, mas ainda não compreendia o que isso significava exatamente sob o ponto de vista da ciência da religião.

Revelamos pela exposição acima do IS, quatro conceitos fundamentais à proposta antiga de salvação/libertação do ioga: os klesas, os vrttis, kaivalya e o samadhi. Ao contrário do que se apregoava antigamente, os iogues e praticantes hoje parecem manifestar maior interesse na aquisição de saúde e bem-estar, do que reverenciar algum tipo específico de ética religiosa, conduta espiritual de culto a deus ou à qualquer outra religião institucionalizada (ALTER, 2004).

Estudos mostram que as diferenças que caracterizam a passagem do ioga antigo para o moderno residem na sua medicalização e, por conseguinte, na popularização dos seus ritos corporais em técnicas terapêuticas de combate ao estresse (DeMICHELIS, 2008, p.23-27). Essa transformação, ainda em processo, parece

16

acontecer em algumas escolas ioguicas sem incorrer na perda total de sua espiritualidade.

Numa pesquisa realizada em Londres em 2002 com 750 praticantes de ioga, descobriu-se que 80-83% destes iogues compreendem as suas práticas tanto como auxiliares no combate ao estresse, quanto na experiência igualmente válida de uma vida espiritual plena. Suzane Newcombe concluiu até mesmo ser possível classificar o ioga hoje como uma religião mística, segundo o conceito desenvolvido por Colin Campbell a partir de Ernst Troeltsch (NEWCOMBE, 2005). A relação que possa existir entre estresse e religião a pesquisadora não incluiu em suas perguntas, mas as suas descobertas ganham mais sentido quando expomos um dos pensamentos de B.K.S.Iyengar, o líder espiritual da escola de ioga investigada por Newcombe e um dos iogues mais populares e respeitados do mundo. Segundo ele: “a pessoa indisciplinada é alguém sem religião; a pessoa disciplinada é religiosa; a saúde é religião; a doença é falta de religião” (IYENGAR, 2001, p.38). O seu discurso associado a nossa argumentação até aqui nos direcionam a concluir haver uma estreita relação se estabelecendo entre a biomedicina e o ioga moderno, que ao invés de desencantá-lo, pode estar legitimando-o como uma nova religião.

Nas ciências da religião, pesquisas revelam a ocorrência do entrelaçamento entre doença-sagrado, medicina-religião e cura-salvação em diversas religiões (FULLER, 2008, p.131-152; LAPLANTINE, 2011, p.213-252). A cientista Sarah Strauss corrobora essas aproximações nos esclarecendo que o diálogo saúde-doença para o ioga moderno não corresponderia a um simples mecanismo resultante da fisiologia compreendida pela biomedicina, mas da experiência subjetiva de um sentir- se mal, quase como uma angústia ou uma dor incorporada (STRAUSS, 2008). Dessa forma, é legítimo explorar a provável dialética estabelecida modernamente entre as noções de klesa como gerador da experiência do mal-estar e do conceito de estresse para o ioga que vem se instituindo no contexto sociocultural ocidental.

Segundo R.T. Rao, mas corroborado por outros pesquisadores, numa interpretação moderna do IS, os klesas poderiam hoje corresponder ao agente estressor ou estresse propriamente dito, fruto dos nocivos comportamentos dos klesas (tradicionalmente considerado os comportamentos de apego, aversão, medo da morte, e orgulho, como vimos). O asthanga ioga (AI) - os oito princípios espirituais do ioga

17

antigo que versamos anteriormente4 - por sua vez, poderiam estar sendo entendidos como as técnicas para dominar o “estresse-klesa” (BHAVANANI, 2007; RAO, 2012).

Essas observações são deveras interessantes, mas ao considerar o estresse como sinônimo de klesa nos faz concluir equivocadamente que toda a manifestação fisiológica do estresse seria nefasta para a vida humana. Todavia o estresse, na perspectiva estrita da fisiologia biológica, nunca foi compreendido assim. O estresse como sinônimo de doença é uma noção popularizada sem o devido respaldo da ciência e, talvez, incorporada de alguma forma ao complexo sistema de crenças do ioga moderno.

Os klesas, como demonstramos acima, até o surgir da modernidade sempre foram sinônimo das cinco aflições espirituais responsáveis por perpetuar o estado de servidão ou sofrimento humano (SCHONFELD, 2010). Assim, é provável que os comportamentos dos klesas (ignorância, apego, aversão, medo e orgulho) possam estar adquirindo outras conotações associadas a resposta biológica do estresse.

Digo isso, pois o estresse biológico é um estado absolutamente normal e neutro (nem bom ou ruim), muitas vezes benéfico para a manutenção da vida e somente em situações extenuantes e persistentes, desvantajoso a saúde. Já o estresse ioguico, revelado por R.T. Rao e Bhavanani, como sinônimo de klesa, fica evidente se tratar de uma nova concepção criada no seio da espiritualidade ioguica moderna. Há, assim, um hiato entre o que iogues e biólogos compreendem sobre a noção de estresse. Todavia, os iogues tendem a associar as manifestações psicofisiológicas de estresse com as suas antigas crenças em corpos metafísicos e energias sutis ou transfisiológicas (BHAVANANI, 2007, p.30-40).

Medicalizar o ioga, portanto, atribuindo a ele associações entre estresse e klesa, pode ter sido uma porta que se abriu para os iogues modernos difundirem as suas crenças entre a sociedade ocidental. No Brasil por exemplo, temos o Prof. Hermógenes, iogue brasileiro mais conhecido e carismático do país, que conseguiu aliar a medicalização das práticas ioguicas com o cristianismo e o espiritismo fortalecendo, como ele mesmo diz, a saúde física e mental em busca da “auto- perfeição pelo hatha-ioga” como terapia espiritual para “nervosos” (HERMÓGENES,

4 Yamas, Niyamas, , , Prathyahara, Dharana, Dhyana e Samadhi.

18

2010; 2011).

Não há dúvidas que o ioga moderno enveredou, como já expomos, para sua medicalização e as suas práticas como técnicas profiláticas em muitos setores da saúde. Por outro lado, pesquisas apontam igualmente que nunca existiu um “ioga puro”, e a tradição de ioga do período medieval - o hatha-ioga – seria a responsável (e não o estilo de vida moderno) pela maior valoração dada ao corpo em detrimento às suas escrituras antigas (LIBERMAN, 2008, p.113). Esse fato poderia refletir não uma corrupção dos preceitos espirituais ioguicos “tradicionais”, como afirmam alguns estudiosos contemporâneos ao ioga (SINGLETON, 2005), mas uma reforma soteriológica legítima dos seus antigos bens de salvação frente ao transplante do ioga aos grandes centros urbanos do ocidente. No Brasil, provavelmente mais do que em qualquer outro país, a associação klesa-estresse-salvação/libertação pode revelar-se mais nítido e compreensível. Digo isso, pois entre os brasileiros, aliar o ioga como benéfico para a saúde é bastante popular como revelamos acima com o Prof. Hermógenes. Além disso, a América Latina em geral, por ter edificado o ioga sem a influência tão vigorosa de gurus de renome internacional como Iyengar, Jois, Sivananda e outros, possivelmente pela barreira idiomática, pode ter desenvolvido características próprias e, talvez, únicas.

Mesmo que escassos, estudos brasileiros corroboram essa possível singularidade do ioga no Brasil. Pesquisas revelam que o ioga vem perdendo o seu atributo de errância que predominam em espiritualidades Nova Era (NUNES, 2008), exprimindo que os iogues brasileiros tem se tornado mais fiéis ao seu guru ou professor de “formação”. Ao mesmo tempo, o ioga já desperta discussões sobre o seu papel social, seja de terapêutica ou ginástica laicas (FERNANDES & DA ROCHA, 2005), chegando até mesmo a defender-se politicamente por sua independência do Conselho Federal Brasileiro de Educação Física, o que favoreceu alguns afirmarem o seu caráter vivo de sincretismo com a religiosidade brasileira, fomentando algum tipo novo de espiritualidade (GNERRE, 2010).

Não parece de todo inválido pensar o ioga desenvolvido no Brasil um terreno fértil para se investigar as possíveis transformações ocorridas na teoria comportamental dos klesas e a sua dialética com o estresse biológico e provável produção de novos bens de salvação. Por mais que denominações espirituais possam

19

ter milênios de conhecimento, a sua trajetória é fluida e suas imbricações sociais e religiosas estarão sempre determinando novos caminhos. Cabe-nos aqui saber realizar as perguntas corretas.

Dessa forma, pensamos em problematizar a nossa pesquisa concentrando-se em compreender o papel dos klesas (comportamentos de apego, aversão, medo da morte, orgulho e ignorância) no panorama social brasileiro. Talvez o impacto soteriológico no transplante do ioga – de uma sociedade estratificada indiana antiga – para uma sociedade capitalista de consumo, secular e privatizada religiosamente, como oficialmente o Brasil se apresenta, pode ter reformado a teoria dos klesas para uma relação direta com a experienciar psicofisíca do estresse. Dessa forma, descobertas fisiológicas sobre o relaxamento psicofísico, como “produto” das práticas ioguicas, sobretudo reveladas e propaladas em meios acadêmicos e revistas populares, podem estar refletindo na diminuição do valor comportamenal dos klesas no ioga praticado e professado entre os brasileiros. Essa hipótese, associada ao caráter mutante da religiosidade brasileira poderia estar contribuindo na construção de um ioga brasileiro mais sincrético religiosamente. Infelizmente as pesquisas sobre o ioga brasileiro, fora do âmbito biomédico são bastante escassas, por isso, nossos dados para serem conclusivos precisariam de um número mais substancial de acadêmicos interessados sobre o tema. Por isso escolhemos dez iogues e três cientistas que, mesmo reduzido, podem representar uma parcela do microuniverso ioguico brasileiro ainda em formação.

O processo de secularização e privatização religiosa pode estar refletindo na relação do ioga com as ciências da saúde que, ao invés de extinguir a religiosidade ioguica, torna-se responsável por suscitar novos problemas e soluções religiosas que não seriam possíveis em outros termos. O ioga, antes subordinado a religião hinduísta e recentemente às terapêuticas espirituais de novos movimentos religiosos Nova Era, vem adaptando-se ao racionalismo da ciência e a agitação dos grandes centros urbanos consumistas, utilizando as descobertas empíricas de promoção de relaxamento físico e atenção mental das pesquisas em fisiologia biomédica sobre as suas práticas rituais, para reformar a sua antiga teoria dos klesas como causa do sofrimento humanos e produzir novos bens de salvação.

20

No Brasil, por sua característica cultural de sincretismo religioso mas, sobretudo, pela vinda tardia de iogues indianos, o ioga encontra aqui condições singulares de desenvolvimento aonde o poder terapêutico religioso de suas práticas revelou-se de forma mais evidente. Não é coincidência, por exemplo, que as obras de iogaterapia do Prof.Hermógenes tenham alcançado popularidade, mas as suas implicações podem ser mais profundas do que a simples mudança de klesas para a sua ressignificação ao estresse. Talvez, a análise do papel dos klesas no ioga brasileiro possa refletir também a causa do sofrimento que afeta uma parcela de brasileiros que transitam o microuniverso ioguico do país.

Quiçá, a relação cura-salvação, o processo de secularização e privatização religiosa, aliado a racionalização científica, podem ser os responsáveis pela diminuição no Brasil do valor ético da teoria comportamental dos klesas. A elevação das sensações e percepções psicocorporais ioguicos de relaxamento, propalados pela ciência biomédica, por outro lado, podem estar contribuindo como pano-de-fundo às reformas soteriológicas ioguicas frente aos grandes centros urbanos brasileiros.

Assim, a ressignificação das escrituras modernas do ioga à luz da fisiologia biomédica podem evidenciar uma adaptação racionalizante em sua proposta soteriológica. Um exemplo disso são as descobertas terapêuticas da fisiologia biomédica sobre o efeito benéfico a saúde das práticas ioguicas no combate ao estresse biológico crônico. Estas comprovações científicas refletem positivamente e podem se tornar uma das responsáveis principais por converter o estresse em klesa ou obstáculo espiritual. Por conseguinte, o estresse ioguico pode vir a adquirir o caráter de gerador de vrttis ou “agitação da mente” (citta-vrttis). Se isso se confirmar, o estresse ioguico poderá elevar a resposta orgânica antagônica ao estresse biológico, o relaxamento, ao nível de espiritual, diminuindo sensivelmente o peso comportamental e ético dos klesas de outrora por outro mais “baseado na experiência pessoal”. Essa hipótese conduz o kaivalya por sua vez, a um caráter mais “fisiológico” também, metaforizando-se numa busca pessoal suprassensível por uma espécie de “homeostase divina”.

O meu objeto é o ioga e o deslocamento religioso dos klesas em sociedades urbanas do Brasil. Os comportamentos associados aos klesas sempre foram considerados a base ética da vida de um iogue, o seu foco para se diminuir os vrttis e,

21

por resultado, a sua salvação/libertação em vida das aflições humanas na comunhão com Deus/Isvara (kaivalya). No entanto, percebo modernamente um desvio da atenção dos klesas para uma atenuação do estresse que toma características do mal a ser exorcizado em vista as suas repercussões corporais “empíricas”. Focar-me-ei na dialética estabelecida entre o ioga com a ciência biomédica como contributiva capital na possível reforma da sua proposta de salvação/libertação religiosa moderna na busca de uma natureza de “homeostase divina” ou kaivalya.

Para esse intento, vou buscar dados por meio de entrevistas semiestruturadas com iogues e cientistas psicobiólogos que investigam as práticas ioguicas como terapia-cura. O meu modo de escolha dos iogues foi selecionar àqueles responsáveis diretamente em difundir a cultura do ioga no país por meio de cursos de formação periódicos, retiros espirituais a Índia e workshops, palestras e aulas em universidades brasileiras sobre a cultura iogue da vida que vale a pena ser vivida. Com relação aos cientistas, escolhi três que respeitam aos seguintes critérios: pesquisarem o ioga como terapia, ministrarem palestras e workshops sobre o ioga e as suas práticas e repercussões biológicas, possuírem artigos sobre o tema publicados internacionalmente envolvendo a relação ioga e saúde, além de participarem como palestrantes nos cursos de formação ioguica.

O objetivo central estará em compreender a transformação dos klesas no ioga moderno em dialética com a ciência biomédica e a religiosidade brasileira. Mas para isso, precisaremos apresentar primeiro, a proposta de salvação antiga do ioga no intuito de contextualizar a sua origem antiga. No segundo momento, descreveremos o transplante do ioga indiano para o ocidente e a tensão que emerge no seu acesso à modernidade. Dessa tensão ioga-ciência, emerge o ioga moderno e seu enlace com a biomedicina ocidental. Mas na América Latina esse transplante pode ter desenvolvido as suas singularidades, como adianrtamos, devido as décadas de insulamento que o ioga passou. No Brasil em específico, a sua particularidade foi o sincretismo com religiões nativas e cristãs, mas principalmente, da utilização do discurso laico da ciência sobre os seus ritos corporais para espiritualizar o relaxamento e adaptar a sua proposta soteriológica à luz do contexto social moderno.

Entre os meus marcos teóricos, estão os trabalhos de Joseph Alter e Elizabeth DeMichelis, que nos permitirão esclarecer os objetivos do ioga medieval se encontrar

22

e beneficiar-se no seu enlace com a educação física e a biomedicina ocidentais possibilitando se tornar uma terapêutica espiritual de cura. Com a ajuda teórica de DeMichelis o ioga, transplantado do oriente no fim do século passado para as sociedades ocidentais, me permitirá percebe-lo como moderno sem diminui-lo em sua religiosidade. A pesquisadora Andrea Jain ajuda-me a compor a disseminação do ioga moderno entre as camadas urbanas ocidentais, de uma perspectiva de contracultura, do início dos anos de 1960, para a cultura de consumo, a partir dos anos de 1980. Os trabalhos realizados e organizados por Mark Singleton e colegas (Liberman e Sarbacker) servirão de base para evidenciar as transformações soteriológicas ocorrendo com o ioga moderno.

Em nosso primeiro capítulo descreveremos a proposta soteriológica do ioga clássico, aonde os klesas são apresentados como as causas das aflições espirituais do ioga. No mesmo capítulo ainda, mostramos como o ioga indiano em contato com o ocidente, sobretudo a partir da colonização inglesa, ressignifica as suas escrituras e práticas a partir da fisiologia biomédica. No capítulo dois, discutimos como os klesas vão sendo metaforizados como estresse e emoções consideradas nefastas ao ioga moderno. A causa das aflições ioguicas agora, adquirem características bem mais corporais e medicamentosa, estabelece uma dialética saúde-salvação. A partir do terceiro capítulo, afunilamos o espectro da nossa investigação nos limitando ao contexto brasileiro a partir da história do ioga nas terras latino-americanas. Nesse momento da história moderna do ioga, os países da América Latina recebem o ioga via discípulos da teosofia e outras ordens esotéricas ocidentais.

Nesse período pouco investigado da história moderna do ioga, percebemos ele mesclado com diversas influências espirituais, mas sem a legitimidade de algum iogue verdadeiramente indiano, dando margem a todo tipo de sincretismo, como ocorre nos Estados Unidos e Europa. No Brasil, o ioga cresce pelas mãos de dois agentes carismáticos – Hermógenes e DeRose – que popularizam o ioga no país e influenciam gerações de professores e praticantes de ioga. No capítulo quarto, saio a campo e entrevisto dez líderes de ioga brasileiros e mais três cientistas que me fornecem subsídios para minha argumentação hipotética sobre as transformações dos klesas ou causas do mal ioguico. Suponho que entre os iogues brasileiros à permanência das crenças em energias transfisiológicas e ordem cósmica, mas também

23

a gênese de outras, como da distinção entre estado e prática de ioga. No último capítulo investigo a hipótese que a mudança ocorrendo com os klesas, podem refletir a formação de novos bens de salvação/libertação do ioga brasileiro. Hipotetizo que a transformação soteriológica em processo no país seja fruto do surgir do ioga como um novo movimento religioso, já desvinculado do hinduísmo e da Nova Era, e permitindo entrevê-lo como um produtor de sentido para um específico microuniverso de indivíduos que buscam nas escrituras e práticas de ioga uma nova forma de vida.

24

Capitulo 1

O IOGA ATRAVÉS DOS TEMPOS: DO IOGA SUTRAS AO SURGIMENTO DO IOGA MODERNO

Os aforismos de Patanjali (aproximadamente século II a.C.) marcaram o alvorecer do período considerado clássico do ioga, que se estende até à idade medieval indiana, quando os iogues entram na sua terceira era histórica, intitulada, segundo historiadores da religião, como pós-clássica, medieval ou pré-moderna. É nesta fase histórica que surgem dois dos seus textos basilares, o Hatha-Ioga Pradipika (HIP) e o (GS). Será a partir dessas escrituras dos séculos X-XV que o ioga mostra a sua vertente mais corporal - com uma descrição mais minuciosa de posturas, respiratórios e limpezas – e terapêutica – quando correlaciona as suas práticas físicas com a medicina tradicional indiana. Portanto, é no período medieval indiano, que a medicalização e corporificação do ioga tem início. No entanto, mesmo com todas as suas transformações medievais, o ioga mantem-se sob a égide do hinduísmo. O que vai realmente marcar o advento do ioga moderno é o seu desvinculamento gradativo com o hinduísmo quando da sua transplantação para o contexto ocidental urbano.

A partir do séc.XX, o discurso do , no primeiro parlamento mundial das religiões (1893), marca o advento da fase moderna do ioga (STRAUSS, 2008, p.58-62). A passagem por esses períodos da história do ioga se mostra relevante para compreendermos as imbricações deste com outros sistemas de crenças e as transformações que se impingem na compreensão iogue de realidade religiosa e não sucumbir a laicidade pelo mundo moderno.

1.1 - Período pré-clássico do ioga

O início do ioga remonta a uma Índia pré-ariana, da tradição nativa dos drávidas (ELIADE, 1998, p.296). Este povo parece ter florescido como uma grande civilização às margens do Vale do rio Indo, semelhante em grandeza com outras civilizações do seu tempo, como os egípcios no Nilo e os sumérios, entre o Tigre e o Eufrates. O território dravidiano teria sido invadido por uma sociedade, conhecida como ariana, por volta de 1500-1200 a.C. (GULMINI, 2002, p.24). Acredita-se que

25

um tipo de ioga já era praticado pelos drávidas e a sua religiosidade sofrerá influência do que depois veio a ser conhecido como Hinduísmo pelo brâmanes, a alta casta sacerdotal ariana.

Supostamente este proto-ioga dravidiano já era uma prática religiosa voltada para a concentração mental, o controle da respiração, a adoração ritualística, cujos objetivos principais eram a invocação, a visualização e a união mística com suas inúmeras divindades (FEUERSTEIN, 1998, p.133-168). Como a religião dos arianos não aceitava esse ioga arcaico no início, ele foi sumariamente considerado um sistema religioso heterodoxo pelos seus sacerdotes (ZIMMER, 2000, p.67).

No entanto, aos poucos, talvez por força popular, os brâmanes vão absorvendo paulatinamente esse ioga nativo como parte das suas próprias crenças. Com o passar do tempo, uma quantidade admirável de hibridismos foi sendo realizada com esse proto-ioga dando origem às diversas organizações e tradições ioguicas, algumas perduram até hoje.

Segundo (1998), podem-se identificar citações desse ioga autóctone dos drávidas já nos versos do Rig-Veda, os antigos hinos bramânicos (p.152; 155; 158)5. Em outro livro dos Vedas, o Atharva - que inclui uma extensa coletânea de encantamentos de amor, maldições e preces aos deuses em busca de prosperidade - também se podem ler hinos relacionados ao ioga do período pré- clássico (Ibid., hino 10.7).

Outras referências históricas ao ioga, consideradas pré-clássicas, estão nas Upanisads, textos pós-védicos que prometiam, igualmente ao ioga mais tarde, uma “união mística com o Ente Supremo”, muito parecidos com as escrituras ioguicas de Patanjali, autor de uma geração ioguica posterior (FEUERSTEIN, 1998, p.169), que veremos adiante.

O que busco salientar aqui é a origem antiga do ioga como caminho religioso para a transcendência com Deus por meio de práticas rituais corporais e o seu hibridismo com o Hinduísmo, o conhecimento dominante do seu contexto sócio- cultural. Além disso, fica nítido os sincretismos sofridos pelo que conhecemos como ioga ao longo da sua história. O ioga e os iogues parecem assemelhar-se, neste

5 Ver também alguns hinos escolhidos pelo autor nas p.152-160.

26

período, muito mais a categoria de magos protegendo-se e lançando feitiços contra seus inimigos através de suas práticas corporais que trabalhavam com as energias sutis, do que a de um clero instituído.

1.2 - Período clássico do ioga

O período clássico ioguico marca, no entanto, o aparecimento do documento que trata especificamente daquilo que se entende como ioga, o Ioga Sutra (IS), uma coletânea de 196 aforismos que o define e amplia a sua proposta soteriológica e, com isso, apresenta a causa do sofrimento humano e seus bens de salvação. Ainda hoje, as escrituras que versam sobre o ioga reverenciam este antigo tratado, fortemente associado à doutrina religiosa Samkhya, com a diferença de incluir o conceito de Deus/Isvara, muito provavelmente para ser aceito a ortodoxia hinduísta (GULMINI, 2002, p.173-185).

O IS foi compilado por Patanjali, filósofo brâmane, gramático, médico e figura semidivina indiana que, provavelmente, viveu séculos antes de Cristo. Patanjali não inventou o ioga, mas o codificou e o sistematizou como caminho espiritual óctuplo conhecido como o asthanga-ioga (AI), o ioga real, o ioga clássico ou o raja-ioga.

Segundo o IS, a realização do Si-mesmo é denominada de kaivalya, termo que significa literalmente solidão e equivale ao termo salvação espiritual. Sendo assim, o Si-mesmo transcendente (purusa) é solitário (lit.kevala), separado da natureza, portanto, do corpo (prakrti ou matriz fenomênica, ver GULMINI, 2002, p.438). Enquanto isto não ocorrer (purusa ou alma perceber-se desvinculado das aflições de prakrti ou corpo) fica-se condenado a um ciclo de renascimentos (samsara) infinito em vidas ilusórias ou de dor/sofrimento (maya ou avidya-purusa). O sofrimento espiritual (lit.dukha), por sua vez, é originado pelo contato do corpo com o mundo. Em outras palavras, dos estímulos sensoriais (bhutas) com os órgãos psicofísicos de interação de cada indivíduo (indriyas: jnanendriyas e karmendriyas) 6 , os quais

6 Audição (ouvido) palavra (voz); tato (pele) preensão (mãos); visão (olhos) locomoção (pés); gustação (língua) excreção (ânus); olfato (nariz) gozo (sexo) e também a “mente” (manas) que na filosofia do IS é considerado um indriya, pois decodifica as percepções captadas pelos sentidos externos e as retransmite ao “Ser interno” que, além de gerar respostas a estes estímulos, coordena os karmendriyas. O intelecto (buddhi) apenas reconhece ou conceitua, mas não age sobre eles (GULMINI, 2002, p.127-128).

27

informam, a todo o momento, à consciência (citta) do mundo externo. A consciência (citta) de um leigo, no contato com o mundo fenomênico, não consegue diferenciar do que se origina de purusa (alma imaculada) ou de prakrti (corpo material). Nessa confusão consciencial (citta-vrttis), os klesas (sentimentos de apego, aversão, medo da morte e orgulho) manifestam-se no Ser e a dor e o sofrimento surgem enquanto a plenitude original desaparece. O indivíduo agora está fadado a viver na ignorância (avidya) ou alienado da sua real natureza divina e em harmonia energética (GULMINI, 2002, p.125-133).

É importante esclarecermos que o caminho espiritual do ioga não está na conquista que ainda não temos, mas naquilo que é universal, eterno e divino em nós. Em outras palavras, ao contrário dos cristãos que já nascem portadores do pecado, o no ioga, os indivíduos nascem puros mas são contaminados pelo mundo (através do corpo). Suas práticas clássicas – sobretudo a meditação - são descritas como vias de salvação/libertação pela purificação do corpo (prakrti) e da mente/consciência ou espírito (citta). Há, portanto, um estado de harmonia perene que já somos, mas que os klesas desestabilizam e nos entorpecem.

No entender do ioga, conclui-se, a suprema realização pressupõe a não identificação do(s) corpo(s) com o purusa ou alma. O prakrti ou corpo fenomênico, por sua vez, é composto por uma tríplice chamada de rajas (agitação), tamas (inércia) e sattva (equilíbrio entre a agitação e a inércia que traz inteligência), intitulados nas escrituras por gunas (Ibid., p.255-256). No momento em que o sistema purusa-prakrti entra em contato com o mundo material, o indivíduo ordinário que não conhece as práticas e doutrina ioguicas, rompe o equilíbrio dinâmico de sattva em seu corpo- mente. Com o equilíbrio de sattva rompido – que é universal e inato - inicia-se todas as ilusões (maya) criadas sobre si mesmo e o mundo à sua volta, acarretando infelicidade, angústia e dor existencial (dukha). Em suma, a causa primária de toda sorte de angústia humana advém dos klesas por romperem o equilíbrio dinâmico, universal e divino de sattva. Todas as práticas ioguicas – de Patanjali, passando por Matsyendra e Iyengar – funcionam como técnicas espirituais com o objetivo de kaivalya, portanto, de retorno do conjunto purusa-prakrti ao equilíbrio eterno e divino de sattva, aonde purusa não mais se contamine – ou se aliene - pelas ilusões do mundo material e os livrando do ciclo de samsara ou roda de renascimentos.

28

O que se buscou acima revelar é o valor do corpo para o sistema de crenças iogue. O corpo é, ao mesmo tempo, o responsável por manter e livrar os seres humanos da sua angústia espiritual. O mundo fenomênico impinge ao Ser, por intermédio dos corpos, a sua força e ludibria o indivíduo no seu jogo sensível (lila). É só por meio das práticas ioguicas que o seu adepto poderá vir a vislumbrar novamente a essência imaculada de sua alma (purusa) e estabelecer-se em equilíbrio ou sattva (Ibid., p.120; 125), na experiência última de kaivalya.

1.2.1 - Apresentação da proposta de salvação/libertação do ioga clássico

Para adentramos nesta discussão sem nos perdermos em terminologias em sânscrito e questões filosóficas, escolhemos apresentar, mesmo que de forma sucinta e inicial, a proposta de aniquilamento do sofrimento humano considerada “tradicional” ou antiga do ioga, e a confrontarmos com as possíveis alterações acolhidas no seu contato com a cultura moderna ocidental na configuração do que muitos investigadores denominam hoje de ioga moderno (DeMICHELIS, 2004). Abaixo, descrevo alguns aforismos (sutras) de uma das mais conhecidas e propaladas escrituras ioguicas, o Ioga Sutras (IS), que adiantamos na introdução para que nos auxilie sobre as possíveis alterações sobre o conceito de klesa como causa iogue do sofrimento humano:

1.2. Yoga é a supressão dos movimentos da consciência [ou citta vrttis nirodha] (GULMINI, 2002, p.115).

2.2. Com o propósito de produzir a integração [samadhi] e também com o propósito de tornar tênues as aflições [klesas ou obstáculos espirituais] (Ibid.).

2.3. As aflições [klesas] são: ignorância, sentido de autoafirmação, desejo, aversão e apego à vida (Ibid., p.212).

2.25. Da inexistência desta ignorância [avidya], resulta a conjunção [samadhi]: esta é a revogação do problema, o isolamento (kaivalya), no absoluto, do poder de ver (Ibid., p.255).

2.29. Refreamentos [yamas], observâncias [niyamas], postura [asana], controle do alento [pranayama], bloqueio das interações [prathyahara], concentração [dharana], meditação [dhyana] e integração [samadhi]: estes são os oito componentes do Yoga [ou asthanga ioga, o caminho espiritual óctuplo] (Ibid., p.262).

29

O ioga de Patanjali descrito no IS, possui um ponto de vista dual da realidade (BERRY, 1992, p.110; SARBACKER, 2008, p.162). O corpo (prakrti) e a alma (purusa), portanto, são irreconciliáveis (ARANYA, 1983, p.10; BERRY, 1992, p.77). É a “consciência” (citta)7, por meio dos “órgãos sensitivos” (indriyas), que estabelece o rompimento dos homens e mulheres com a perenidade harmônica ou sattva de citta- purusa quando alcançam kaivalya. O iogue crê que a alma exista num estado de “não- movimento” ou “harmonia perene”, denominado em suas escrituras como kaivalya, aonde a alma e a consciência experienciem uma Bem-aventurança divina constante e eterna (ARANYA, 1983, p.22; BERRY, 1992, p.82-87). Samadhi, no entanto, é uma experiência religiosa transitória produzida a partir das práticas ioguicas, que possibilita aos iogues vivenciarem temporariamente um espaço liminar aonde cessa- se a ação dos klesas em prakrti e o indivíduo sentir a harmonia perene de purusa. Retorna-se de samadhi com discernimento espiritual maior sobre si-mesmo e os outros. Seria como um vislumbre de kaivalya – o retorno a perenidade de purusa – mas com retorno ao mundo ordinário e as suas aflições.

A inevitável ligação que se estabelece entre a consciência e o mundo por intermédio do corpo, Patanjali deixa evidente ser a responsável em gerar um estado espiritual nefasto ao indivíduo, denominado de citta-vrttis ou “movimentos da consciência”, “turbilhão da mente” ou “confusão mental”. Por isso que no sutra 1.2, Patanjali define o próprio ioga como “a supressão dos movimentos da consciência” (citta-vrtti-nirodha), e no sutra 2.2 anuncia a experiência mística do samadhi, como o retorno da consciência (citta) à sua natureza perene e imutável, símbolo de uma espécie de “estabilidade divina da alma”8 presente em purusa (BERRY, 1992, p.101- 107, p.111; SARBACKER, 2008, p.163).

O IS esclarece que a dificuldade de se restabelecer ao estado harmônico divino primordial reside nas condutas impuras que se comete deliberadas pelos comportamentos associados aos klesas (lit. aflição) (SARBACKER, 2008, p.165). No sutra 2.25 nos é apresentado o “klesa-mãe” ou responsável vital por todo o sofrimento humano: a ignorância, alienação ou a ausência de conhecimento dos indivíduos em não se reconhecerem já livres de toda e qualquer dor ou angústia existencial

7 Citta é formada pelo “intelecto” ou lit. perceber (buddhi), o “ego” ou lit. princípio individual (ahamkara) e a “mente” ou lit. ato de pensar (manas). 8 Ver sutra 4.18: “Os movimentos da consciência [citta] são sempre conhecidos por seu soberano [purusa], em virtude da imutabilidade do ser incondicionado” (GULMINI, 2002, p.381).

30

(ARANYA, 1983, p.122), ou seja, viventes de um estado permanente de Bem- Aventurança. Os outros klesas ou causas das aflições são revelados no sutra 2.3 como “filhos da ignorância” pelos comportamentos de apego, aversão, medo da morte e a falsa identidade/orgulho ou orgulho. Os iogues, como salientei em outra passagem, acreditam que nascem puros e em harmonia; mas no contato com o mundo e desatentos ou ignorantes de sua natureza estável de Bem-Aventurança, criam um ciclo nocivo de sofrimento e “confusão mental” na identificação do corpo e da consciência com o mundo. No entanto, é importante deixar sublinhado, a alma (purusa) estará sempre em estado de harmonia perene ou equilíbrio não sendo maculada pelo corpo.

O caminho espiritual óctuplo proposto pelo IS ou asthanga ioga (AI), é ordenado por oito passos de igual importância: a ética dos yamas e niyamas; a prática ritual corporal do asana, pranayama; o estado ioguico de prathyahara ou “abstenção dos estímulos externos”; a meditação propriamente dita em dharana e dhyana; e samadhi, como citado no sutra 2.29: o retorno ao estado harmônico eterno ou encontro com a alma imaculada e em constante Bem-aventurança (BERRY, 1992, p.92-107; SARBACKER, 2008, p.162-164).

Se a proposta de salvação/libertação descrita acima do ioga antigo já não está mais tão evidente no discurso moderno, porém a espiritualidade do ioga não foi esquecida, o que se alterou? Provavelmente modificações soteriológicas podem estar ocorrendo, e com relação a teoria dos klesas, a experiência mística do samadhi e o estado espiritual de kaivalya, mas quais? O intento aqui estará em apontar possíveis caminhos de interpretação de tais reformas na proposta moderna de salvação/libertação do ioga no microuniverso ioguico brasileiro.

1.3 - Período pós-clássico, pré-moderno ou medieval do ioga

Indiscutivelmente, o ioga mais difundido no mundo atualmente advém do período pós-clássico, que ficou conhecido como hatha-ioga (HI). Na busca etimológica da palavra HI, pode-se traduzir hatha por força ou forte, logo, segundo Eliade, o HI é considerado o ioga do “elogio ao corpo” (2001, p.192-193). O HI inicia a sua jornada na confluência das religiões e dos movimentos contraculturais que

31

apareceram na Índia no primeiro milênio da Era atual, portanto mais de mil anos de história se passaram desde o IS aos primeiros registros pós-clássicos do ioga.

Assim como Patanjali sistematiza os princípios soteriológicos do ioga em seu período clássico, Matsyendra e Goraksha, iogues da tradição ioguica Natha, desenvolvem mais pormenorizadamente as práticas corporais e repercussões fisiológicas espirituais para a união com Deus (LIBERMAN, 2008, p.100-116). Enquanto no período clássico o ioga fundamenta as suas crenças no Samkhya, no período medieval o ioga busca no , na alquimia islâmica, no Vedanta Advaita e no Budismo o fundamento religioso e filosófico de suas crenças.

1.3.1 - O início da corporificação do ioga e a sua medicalização a partir da medicina Ayurveda

A disciplina na execução das posturas, dos exercícios respiratórios, das vocalizações e das mentalizações por longo tempo, e a devoção por partes específicas do corpo são muito mais evidentes nos textos ioguicos do período pós-clássico do que no seu anterior, e o corpo adquire agora uma natureza divina, como um “templo” para o iogue medieval. Diferente do iogue clássico, que por causa de sua visão dual, lidava com o corpo como um estorvo para a transcendência. Essa mudança será significativa, pois quando o ioga encontra o mundo moderno ocidental, de cultura consumista e individualista, essa visão positiva dada ao corpo incentiva a popularização das suas práticas e investigação acadêmica sobre as suas repercussões terapêuticas.

A palavra corpo também vai adaptando os seus significados ao longo das eras. Em sânscrito, por exemplo, corpo pode ser designado tanto por deha, derivado do radical dih, que ao mesmo tempo em que pode significar “macular” ou “estar manchado” (ainda indicando uma forte imagem do corpo contaminado ou de ser um empecilho) ou “ungir”, como “aquilo que é untado ou investido”. No entanto, há outra expressão para corpo bem mais antiga e resgatada na história medieval do ioga, que é sharira, do radical shri, que significa “sustentar” ou “apoiar”, evidenciando que o corpo é também um “meio pelo qual o Self pode vivenciar o mundo” (FEUERSTEIN, 2004, p.164-165). Também há a terminologia ghata, a qual pode ser traduzida como

32

pote ou, muitas vezes, por “unidade psicofísica”, segundo alguns iogues (IYENGAR, 2001, p.243) e especialistas contemporâneos em ioga (SOUTO, 2009, p.257-258).

Os textos elaborados filosoficamente por Shankaracharya, o Vedanta Advaita, é popularizado neste período do ioga. A sua base está no conceito de um mundo não- dual, dessa forma, diferente das escrituras dualistas de Patanjali que compreende a alma (purusa) como imaculada pelo corpo (prakrti). Os iogues medievais, pelo contrário, na busca por desvencilhar-se do klesa-mãe, a ignorância, e do sofrimento do Ser, percebem o corpo (prakrti) refletindo a alma (purusa). Assim, se preocupam menos com os tratados filosóficos de sua religiosidade, muito mais pautada pelo sectarismo teológico dos brâmanes, e desenvolvem um arsenal de práticas fisiológicas espirituais bem mais sofisticadas do que ao longo dos séculos anteriores9. Para os hatha-iogues, portanto, o mundo não é mera ilusão agora, eles acreditam que o sensível e o material são um só e a manifestação da suprema de Deus. Como tudo é divino, o corpo também o é, e compreender a corporeidade significa também descobrir o que se é espiritualmente como disse Feuerstein (1998, p.461-463).

Os (hatha)yogins estabeleceram que o corpo humano é homólogo ao Universo, assim, nomearam os nadis e os chackras como rios, montanhas etc. A ideia era buscar a verdade dentro de si mesmo. Se Deus está no Universo, também podemos buscá-lo dentro de nós mesmos (SOUTO, 2009, p.26).

Eliade (2001) corrobora o que se afirmou, comentando que em certa época, talvez entre os séc.VII-XI, ocorre “uma nova revelação” entre os tântricos, os budistas, os alquimistas, os hinduístas e os hatha-iogues, que não proclamavam algo de original, “mas apenas reinterpretavam as doutrinas atemporais segundo a necessidade do seu tempo”, numa espécie de síntese dos elementos religiosos em comum (p.252).

Uma vez o corpo estando saudável e forte, o hatha-iogue dá início ao despertar de uma energia suprassensível adormecida, a , descrita pela sua fisiologia espiritual como uma “serpente” enrolada na base da coluna vertebral. A ascensão da kundalini surge com mais ênfase nos textos medievais e, segundo as escrituras hatha-iogues, os devotos avançados, desenvolvem uma gama de

9 Mesmo que já existissem, é evidente que, no período que os pesquisadores intitulam de “pré- moderno”, a ênfase física é bem maior do que nos períodos históricos anteriores.

33

capacidades transfisiológicas que os qualificam para kaivalya, mas que não é um privilégio dos iogues medievais, pois outras religiões como o Budismo também possuem descrições fisiológicas extraordinárias (ver USARSKI, 2009, p.43-44). O último sutra do tratado mais importante do HI medieval, o HIP, afirma que:

Hatha-Ioga Pradipika (HIP): IV.114 - Enquanto o prana não entrar em sushumna (middle channel), penetrando o Brahmarandhra [lit. porta de ou Isvara, enquanto o bindu [fluxo vital masculino] não ficar estável por pranavata (controle do movimento de prana) e a mente (citta) sob controle em meditação (contemplação), a Suprema Realidade (Brahman ou Isvara) não aparece com um estado natural da mente [citta], e falar de Jnana [conhecimento religioso] é apenas hipocrisia sem fundamento (PANCHAM SINH, 1914, p.63; SOUTO, 2009, p.238).

Os antigos manuais hatha-iogues, como na citação acima, evidenciam que o conhecimento religioso - Jnana – só poderia advir, primeiro, por meio do controle do corpo – controle do prana pelos exercícios respiratórios para obter domínio da mente. O que está em jogo aqui, é uma crítica ao clero hinduísta preso a exegese das escrituras e a superioridade dos hatha-iogues ao que eles denominam no texto de “hipocrisia sem fundamento”. Por isso, o HI descrever um número tão elevado de limpezas transfisiológicas (kriyas), posturas (ásanas), controle da respiração (pranayama), gestos e contrações musculares específicas ( e bandhas), inibição sensorial (), concentração (dharana), meditação (dhyana) e êxtase ou experiência religiosa (samadhi), como marca da evolução na trilha ioguica (FEUERSTEIN, 1998, p.471-482). O que está como pano-de-fundo, reforço, dessas transformações religiosas é o sistema de castas na Índia, que segregava às castas não- religiosas o alcance da libertação ou kaivalya. O HI, por outro lado, subvaloriza as escrituras erigidas e mantidas pelos brâmanes, a alta casta sacerdotal indiana, e prometem o fim dos klesas e obtenção de kaivalya por meio das experiências do samadhi descrevendo com pormenores cada técnica e vivências rituais, antes no domínio exclusivo do clero hinduísta. Lembremos que o ioga tem sua origem anterior aos Vedas, mas na subjugação da cultura conquistada, a sua filosofia mágico-religiosa foi sendo substituída pelo saber bramânico que o adequou, sobretudo no IS de Patanjali, como um darsana hinduísta. Para o HI não ser banido como prática heterodoxa, como foi o budismo, os iogues medievais asseguraram a sua legitimidade na autoridade de uma versão não-dual do vedanta, o Vedanta Advaita.

34

Segundo o Vedanta Advaita, o ser humano possui mais do que o corpo físico10 e esse fato é relevante, pois será essa fé no corpo como parte do divino que manterá o ioga como caminho espiritual mesmo em sociedades modernas. Em outras palavras, a crença em energias transfisiológicas e sua dialética na salvação/libertação por meio de ritos corporais desenvolvidos neste período medieval, serão mantidos no sistema de crenças moderno do ioga, como veremos adiante. O candidato a iogue realizado agora deverá revelar condições transfisiológicas específicas que o qualificarão para a sua integração com Deus e não apenas nascimento ou educação adequados, como se valiam os sacerdotes hindus de outrora (ELIADE, 2001, p.205-209; SOUTO, 2009, p.46-50). Dessa forma, a fisiologia suprassensível do ioga adquire papel central no êxito de seus devotos, pois será por meio dos seus rituais corporais que os iogues medievais conseguirão diminuir as volições de citta e desenvolver certo discernimento espiritual (viveka) na busca pela salvação/libertação em vida das agruras da vida e comunhão com Deus.

Gheranda Samhita (GS): I.6-8 – O corpo das criaturas viventes é o resultado das boas e más ações. O corpo, a seu tempo, dá origem à ação e, desse modo, o ciclo continua como um ghatiyantra [lit. roda de água]. Como a cisterna sobe e desce a água do poço movida pelos bocéis, similarmente o ciclo da vida e morte de cada indivíduo é impulsionado por seus karmas ou suas ações. O corpo é como uma vasilha de barro cru que, se submergida na água desintegra-se. Por isso, deve ser exposto ao fogo do Yoga para fortalecer-se e purificar-se (Gharote 11 apud SOUTO, 2009, p.266-267).

10 Os três corpos ou shariras correspondem a um orgânico e mais dois sutis-esotéricos, que são: 1) o sthula sharira ou físico, constituído pelos músculos, pelos ossos, pelos órgãos e pelos tecidos; 2) o sukshma sharira, formado pela intuição, pela memória ou pelo conhecimento e pelas emoções; e 3) karana sharira ou causal, também denominado “receptáculo” ou “veículo” da alma individual. Também no Vedanta está a descrição dos cinco ou invólucros do Ser, que são 1) o annamáyákosha ou corpo físico (igual ao sthula sharira); 2) o pránamáyákosha, constituído pelas energias prânicas que percorrem os nadis; 3) o manomáyákosha, corpo formado pelas emoções, mente e os sentidos ou indriyas; 4) o vijñánamáyákosha, constituído pelo intelecto e pelo raciocínio (é o “autor” das ações); e 5) o ánandamáyákosha, o corpo que transita além das misérias humanas (WOODROFFE, 2004, p.43-48; IYENGAR, 2001, p.247-265). 11 O prof. Ghatote é um importante discípulo do , precursor da tradição de Kaivalyadhama, famosa por iniciar as primeiras pesquisas científicas com o ioga sob a perspectiva fisiológica e suas repercussões terapêuticas e biomédicas ainda na década de vinte. O Prof. Gharote foi o iogue indiano que mais contribuiu com a disseminação dessa tradição de ioga no Brasil, e as suas visitas ao país motivaram professores de ioga advindos do ambiente universitário da Universidade de São Paulo iniciarem as pesquisas de ioga no Brasil a partir da década de noventa, além de participações das formações de ioga em São Paulo. Atualmente, os livros do Prof. Gharote e Kuvalayananda foram traduzidos em português e seus discípulos, incentivados por eles, são em sua maioria, iogues com formação acadêmica e pesquisadores importantes do ioga como terapia no Brasil.

35

Aqui se percebe que, sendo o corpo responsável pelas ações dos seres humanos, a prática e doutrina fisiológica ioguica tem o poder de modificar e até mesmo de interromper este ciclo de reencarnações, indicando assim a liberdade intrínseca do indivíduo para se desenvolver pelo fruto de suas próprias ações (Ibid., p.257).

GS: I.10-11 – Os satkarmas purificam o corpo, os ásanas o fortificam, os mudras lhe dão firmeza, o pratyahara produz calma. O pranayama leva à leveza, dhyana leva à realização do Ser e samadhi leva ao isolamento, que é a verdadeira libertação (mukti) (SOUTO, 2009, p.268).

Conclui-se que, enquanto os iogues antigos (pré-clássicos e clássicos) propõem alcançar o kaivalya pela purificação dos pensamentos, os hatha-iogues (pós- clássicos ou medievais) preferem antes (ou em conjunto) a purificação fisiológica espiritual para o mesmo fim (FEUERSTEIN, 1998, p.541; SOUTO, 2009, p.287).

Se há algo em comum entre os períodos históricos, no entanto, está o seu cuidado extremo no desenvolvimento de uma presença mental ininterrupta com o livre fluir de prana com fins a certa harmonia ou equilíbrio energético. Por outro lado, aos hatha-iogues, partes do corpo ganham contornos místicos. Por exemplo, os iogues medievais crêem que a energia espiritual de kundalini reside no kanda (um equivalente na anatomia científica seria o períneo); dessa forma, desenvolvem técnicas de estimulação desta região, cujo intento é ativar a corrente prânica (SOUTO, 2009, p.292).

GS: II.7 – : pressionando o períneo [ou ânus e genitais]12 com o calcanhar posicionado contra ele, descansando o outro tornozelo sobre este ou sobre o pênis, posicionando o queixo no peito, mantendo-se sem movimento, com as indriyas [lit. sentidos] sob controle e olhando fixamente entre as sobrancelhas, esse é chamado siddhasana, que rompe as portas da libertação (moksha) [ou kaivalya] (SOUTO, 2009, p.290).

As escrituras, como se lê, vão aos poucos perdendo parte da sua força legitimadora da fé e o corpo adquirindo contornos de revelador pessoal da evolução espiritual do iogue. A experiência espiritual transitória do samadhi agora ganha

12 Em sânscrito está yonisthânakamanghrimûlaghatitam sampidya gulphetaram, a tradução moderna de yoni está vinculada à região do períneo, mas lit. refere-se a atar, juntar, fonte, casa ou vulva, e no contexto ioguico períneo ou vagina (FEUERSTEIN, 1998, p.267-268).

36

explicações que permeiam as sensações corporais e a compreensão do funcionamento do corpo se entrosa com a medicina tradicional indiana, a ayurveda. O ioga medieval fez surgir uma maior popularização das suas práticas e alcance da sua proposta de salvação, libertação, purificação ou eliminação dos klesas. Ao invés de regrar as condutas diárias em observação aos comportamentos nefastos de apego, aversão, medo da morte e orgulho, os hatha-iogues autorizam a qualquer indivíduo, independente de sua casta social, purificar o corpo diariamente por meio de práticas corporais específicas com o mesmo intento dos iogues-brâmanes: vivenciar temporariamente o samadhi na busca por conhecimento espiritual e livrar-se em vida de todo o sofrimento humano advindo da agitação da mente/consciência.

Assim se faz a relação da consciência (citta) com o respirar (prana) e o vivenciar com o divino por exemplo. O primeiro sutra do GS mostra que, praticando pranayama, “o homem pode assemelhar-se a um Deus” (verso V.1; SOUTO, 2009, p.385; GRIEGO, 2008, p.23). Os iogues medievais creem agora que o tempo de vida humano é ditado pelo fluxo de ar (prana) no organismo (verso V.83-84; GRIEGO, 2008, p.29; SOUTO, 2009, p.420) e não pelo nascimento apenas; assim se dedicam com afinco às funções sutis da fisiologia dos pranayamas e no controle e execução corretos destes que podem conduzi-los de um simples devoto praticante (sadhaka) a iogue realizado (que atingiu kaivalya ou estado de equilíbrio eterno das energias metafísicas que atuam nos corpos) (verso V.91 em GRIEGO, 2008, p.30; SOUTO, 2009, p.422).

GS: V.56-57 – O tipo inferior de pranayama produz calor (indicativo da ativação de kundalini, geralmente associado a algum ). O moderado produz tremores especialmente na coluna vertebral, enquanto os mais elevados levam à levitação e desperta-se a energia espiritual [kundalini]. O êxito no pranayama é caracterizado por essas três experiências sucessivamente. (...) Pelo pranayama, a mente experimenta felicidade e o praticante a encontra. (Ibid., p.408-409)

A corporificação do ioga não é assunto moderno, como já adiantamos, mas fruto de sua popularização e parte do movimento contracultural indiano medieval denominado de Tantra. Quando o ioga aporta nas sociedades secularizadas ocidentais, esse aspecto sobressai-se e ganha novos significados. O que se transforma realmente na passagem para os tempos atuais ioguico, reside em quem valida o discurso religioso do ioga. Até aqui (era medieval), mesmo com todos os hibridismos sofridos

37

com outras religiosidades, o ioga se mantém como escola ortodoxa hinduísta, um darsana. O ioga, ao contrário do Budismo, não pode ser percebido ainda como uma religião autônoma na Índia medieval por força hinduísta, mas como parte deste complexo sistema religioso. Na contemporaneidade, no entanto, esse quadro se modifica sensivelmente.

1.4 – O Surgimento do ioga moderno

O ioga, na sua faceta moderna, se viu envolto por outros desafios, que obrigou os iogues, mais uma vez, a se ajustarem às novas racionalidades que surgiram, sobretudo, no seu contato com a ciência moderna ocidental. A fisiologia e a neurociência trouxeram soluções que antes eram monopólio exclusivo da fisiologia espiritual do ioga medieval. Desse modo, explicar o samadhi, o poder espiritual dos ásanas, pranayamas e kryias não era mais agora algo exclusivo de sacerdotes hinduístas ou iogues ascetas, mas estava sendo também investigado por um novo sistema de conhecimento, a ciência.

1.4.1 - A Renascença Indiana

É no período denominado de renascentista que alguns indianos vão estudar na Europa e percebem que o seu país, apesar da grandiosidade da sua terra, a sua história e cultura, sofre com a precariedade do seu sistema de saúde, com as crenças populares envoltas pela sua religiosidade, com uma educação ineficiente e pela economia explorada pelos britânicos. Muitos destes jovens entendem que seu povo poderia (e deveria) se beneficiar também dos avanços da ciência, da tecnologia e da medicina ocidental que eles testemunham, geralmente nos centros acadêmicos do mesmo país que os colonizava.

Os intelectuais de Bengali, como ficaram conhecidos, abriram o diálogo com os ingleses, instituindo uma ideologia e a modernização do seu país, o que veio a inspirar na formatação de um ioga menos místico e mais condizente com o pensamento racional-empírico e positivista do ocidental que os colonizava. Foi uma espécie de movimento de contracultura sobre o domínio britânico, concedendo os

38

direitos políticos das mulheres, a extinção das castas, da poligamia e das crenças populares religiosas, assim como tornaram obrigatório o ensino da língua inglesa nas escolas. Além disto, eles tentaram instituir um Deus único dentro do panteão hindu, tendo sido os primeiros a traduzirem a literatura védica para o inglês, permitindo um debate inter-religioso e crítico.

Foi assim, por meio de uma verdadeira reforma social, política, cultural e religiosa, que esses indianos buscaram construir e expor ao mundo uma perspectiva mais secular de seu país e de sua religiosidade menos “primitiva e mágica”. Com isto, o ioga, como um emblema da sua religiosidade, sofreu influências que transformariam o seu sistema de crenças, soteriologia e de práticas rituais sofrendo mutações e propiciando o advento de modernas organizações e tradições ioguicas, sendo algumas bem mais seculares do que outras. Um dos resultados dessa abertura e privatização religiosa do ioga foi o embate entre o materialismo da ciência ocidental e a mística e mágica do ioga medieval (DeMICHELIS, 2008, p.20-21, 30; ELIADE & COULIANO, 2009, p.183).

Desta forma, o ioga antigo, pautado altamente por uma fisiologia espiritual e pelas crenças populares, perde espaço frente ao progresso e o renascimento do continente indiano e sua entrada em uma economia neoliberal e capitalismo de consumo e, com estes, todos os problemas teológicos que os acompanham, como secularização e privatização religiosa, obrigando aos iogues da geração moderna (re)construírem o seu complexo sistema de crenças, bem como os seus bens de salvação/libertação frente as descobertas da fisiologia biomédica ocidental sobre as suas práticas rituais corporais que tomavam contato agora.

1.4.2 - Ioga moderno

Desde 1757 que a colonização indiana pelos britânicos teve início, mas para o ocidente, o ioga desembarca oficialmente nas suas terras com o swami Vivekananda (1863-1902), em 1893, na cidade de Chicago nos Estados Unidos. A sua visita foi, por convite do primeiro parlamento mundial das religiões, como o representante do Hinduísmo nesse evento. No seu discurso apresenta já um ioga com distintos sincretismos dos tempos pré-modernos (pós-clássico ou medieval), tanto em termos

39

ideológicos quanto fisiológicos (STRAUSS, 2008, p.58-63). Para Vivekananda, iogue discípulo de Ramakrishna, líder religioso da renascença indiana, o ioga é considerado como um ideal de religião universal (ver o seu discurso no parlamento em VIVEKANANDA 2007)13. Sendo médico de formação, Vivekananda foi um dos primeiros a ressignificar a fisiologia espiritual do ioga em termos biomédicos ocidentais modernamente (KUVALAYANANDA, 2008, p.103-104 em notas; STRAUSS, 2008, p.63).

O ioga que Vivekananda oferece aos emissários das principais religiões ali presentes, é o de uma tradição religiosa pautada em uma das formas pela qual o ser humano alcança a sua verdadeira liberdade e manifesta a sua divindade interior. Não havia ainda uma pretensão de classificar o ioga como uma “espiritualidade” e, portanto, diferente de “religião”. Vivekananda, na verdade, se propõe a demonstrar, nos seus pronunciamentos e depois em outras palestras e livros, que a religiosidade indiana, condensada por ele com o nome ioga, se sustentaria tanto filosoficamente quanto cientificamente e estaria à altura de qualquer outra religião ali representada. Vivekananda dá entrada ao que modernamente se populariza entre os iogues atuais, o início da instituição do ioga como um novo movimento religioso ainda em andamento (DeMICHELIS, 2004, p.248-260; NEWCOMBE, 2005; JAIN, 2014, p.95-129).

O seu discurso ficou bastante popular, o que lhe possibilitou fundar organizações ioguicas por cidades do mundo inteiro, tendo o seu pensamento, em relação à religiosidade ioguica e à ciência formado a base intelectual e ideológica de uma geração de iogues que veio depois dele 14 (DESIKACHAR et.al., 1980). Vivekananda também ficou conhecido como um defensor da tolerância religiosa, tornando-se um dos grandes ídolos do hinduísmo moderno, além de um grande inspirador dos novos movimentos religiosos que primam, assim como o ioga moderno, por assimilar os seus ensinamentos religiosos como os científicos (NANDA, 2007; STRAUSS, 2008, p.64-65; VALLE, 2008, p.200).

O ioga, então, inicia mais uma vez as suas relações híbridas com novas culturas, sociedades, políticas, economias e geografias, como em outros momentos

13 E até hoje essa imagem transmitida por ele continua viva nos meios ioguicos ver DESIKACHAR (2006), p.10. 14 “O ioga é uma cultura universal” (IYENGAR, 2001, p.41).

40

históricos que apresentamos anteriormente. Contudo, agora, esse contato vai alterar o caráter do iogue renunciante do mundo de tempos passados, para um ascetismo que dialoga com o mundo nos tempos atuais (STRAUSS, 2008, p.64), pautando-se em escrituras religiosas como o Bhagavad-Gita. Os iogues indianos modernos desenvolvem discursos retóricos que os autorizam a participar das sociedades ocidentais e não mais ser necessário se retirar em ashrans na floresta para vivenciarem o samadhi e o viveka (lit. discernimento espiritual), o que veremos que os iogues brasileiros irão denominar em suas audições de “estado de ioga”.

Consideremos agora a diferença entre um yogue-asceta e um monge samsari (que se propõe a participar do jogo exterior de maya). Diga-se desde já que o “samsari” não precisa jogar obedecendo ao ego. Com efeito, é grato por Deus e muito útil ao desenvolvimento espiritual participar do jogo divino sem recorrer ao ego, em vez de procurar envolvê-lo no processo. (, 2007, p.241)

Nos períodos anteriores do ioga, o ioga precisava se afastar de samsara e não participar da vida social com o motivo de não se envolver no “jogo exterior de maya” ou de ilusão. Agora, no período moderno e longe do manto protetor da religiosidade hinduísta, os iogues precisam aprender a lidar com novos desafios e, por conseguinte, com novos obstáculos que afligem a vida e seus novos discípulos/alunos. Enquanto aqueles iogues clássicos e medievais abandonavam o convívio social e dedicavam a sua busca religiosa retirados do convívio leigo (ver sutra I.16 do HIP)15, os modernos se globalizam e adquirem a preocupação de difundir os seus ensinamentos para o mundo, se tornando assim bem mais proselitistas do que em tempos passados sob a tutela hinduísta. Esta passagem histórica de renúncia necessária ao mundo e agora, de participar do mundo e difundir as suas ideias ioguicas aos outros, se configura uma das características mais marcantes do ioga que se conhece atualmente segundo Sarah Strauss (2008, p.63-64). Esse período de transição do ioga medieval para o moderno também marca o questionamento por parte de acadêmicos e iogues do fim da espiritualidade e, por conseguinte, a exigência do “retorno” a sua essência e “tradição”. Muito desses discursos virão da aproximação que o ioga moderno fará com a ciência, mas sobretudo pelos seus inúmeros hibridismos. Esses fatos são os

15 “O Yoga é realizado com muito êxito quando se cumprem estes seis requisitos: entusiasmo, determinação, coragem, compreensão correta, fé no guru e abandono do contato público” (SOUTO, 2009, p.91-92).

41

responsáveis pela busca dessa tese em desvendar a transformação que a proposta soteriológica do ioga sofreu no seu contato com as sociedades modernas ocidentais.

Segundo estudiosos contemporâneos, o ioga atual precisou aprender a lidar com os acontecimentos, principalmente os advindos do nacionalismo indiano, do ocultismo ocidental, da filosofia neo-vedanta, dos sistemas de cultura físicos modernos (DeMICHELIS, 2008, p.20), do islamismo, do cristianismo primitivo, da ciência moderna (principalmente a fisiologia e a biomedicina ocidental) e do movimento religioso Nova Era (LIBERMAN, 2008, p.100-117). Este será o novo pano-de-fundo que configurará o ioga que se conhece atualmente.

Elizabeth DeMichelis salienta os pontos-chaves que facilitam a compreensão do surgimento do ioga moderno. Segundo DeMichelis (2008), desde 1600, por intermédio da Companhia das Índias Orientais, que a Índia vem estabelecendo relação com os países da Europa e América, mas é a partir de 1750 que as sociedades ocidentais voltam o seu interesse para a economia, o sistema sócio-político e a cultura indiana. Com isto, de 1830 em diante que surgem os debates devido aos movimentos de reforma sócio-religiosa na Índia Britânica, abrindo-se um diálogo entre os intelectuais e as autoridades sobre a anglicização da colônia. Os primeiros sinais de uma ocidentalização da religiosidade indiana ocorrem por volta de 1850, como se pode ler nos escritos do naturalista, poeta e transcendentalista norte-americano, Henry David Thoreau (p.30)16.

No início do século XX, presencia-se o surgimento do movimento Nova Era e a rápida modernização das religiões asiáticas, as quais dão início a um produtivo diálogo com outras crenças e culturas, fato que continua até hoje. Entre 1914 e 1945, devido às duas grandes guerras mundiais, a disseminação das ideias modernas do ioga diminui a sua influência, sendo retomada novamente a partir da independência da Índia em 1947. Por intermédio de iogues carismáticos e convidados pela onda contracultural que acontece nos anos sessenta, várias organizações do ioga se popularizam por todo o mundo. Após um período de certa indiferença pelo ioga, na década de oitenta, nos anos noventa surge uma entusiástica aculturação por uma

16 “... I would fain practice the yoga faithfully... To some extent, and a at rare intervals, even I am a yogi”... De bom grado praticar o yoga fielmente... Até certo ponto, e em raros intervalos, eu mesmo sou um iogue”.

42

geração de praticantes e de devotos seguidores da sua proposta salvífica e de saúde (DeMICHELIS, 2008, p.21).

O ioga, no início da década de 1990, se lança no mundo, principalmente por meio de alguns iogues, entre tantos outros, como swami Vivekananda, sri Yogendra, , swami Kuvalayananda, swami Sivananda e Krishnamacharya (ALTER, 2004, p.73-108; FEUERSTEIN, 2005, p.53-55; SINGLETON & BYRNE, 2008, p.17-35; p.40-74). Os métodos ioguicos mais populares e praticados contemporaneamente se devem aos iogues mencionados acima, tendo as suas ideias edificado algumas das inúmeras escolas, tradições ou organizações ioguicas religiosas no mundo atual17. Pode-se afirmar que somente as organizações ioguicas que aprenderam a fomentar e a divulgar a religiosidade ioguica por intermédio de pesquisas fisiológicas dos seus métodos e tradições, é que sobreviveram no mundo moderno. Algumas, inclusive, se orgulham de terem artigos publicados em revistas científicas sobre os benefícios das suas práticas para a saúde18.

O interessante aqui é o apelo à saúde que a prática religiosa do ioga oferece agora e o diálogo que aprendeu a estabelecer com a biomedicina. A ciência, ao invés de desencantar o ioga, serviu-lhe de veículo proselitista. Para se entender o que permitiu esta configuração atual, o que transformou a religiosidade ioguica numa espécie de panaceia, mas sobretudo, reformou os antigos conceitos de mal contido nos klesas para uma linguagem atual e “científica”, será necessário evidenciar como as escrituras antigas e medievais indianas foram ressignificadas pela ciência biomédica e fisiologia. A vivência integrativa transitória do samadhi, o estado permanente de equilíbrio de kaivalya e os klesas, como obstáculos espirituais ioguico agora, ganharão correspondentes fisiológicos empíricos da biomedicina ocidental. Não há nada de novo, mas um desdobramento da corporificação e medicalização do ioga medieval a um novo contexto social, político, econômico e religioso, mas que implicará em profundas mudanças na via salvífica/libertadora do ioga moderno.

17 (1918), de sri Yogendra; Self-Realization Fellowship (1920), de Paramahansa Yogananda; Kaivalyadhama Yoga Institute (1924), do swami Kuvalayananda; “Yoga de Krishnamacharya” (1924), de Krishnamacharya; : The Divine Life Society (1936), do swami Sivananda; e o Vivekananda Kendra Yoga Research Foundation (1972), fundada por Eknathji Ramkrishna Ranade (1914-1982), organização esta baseada nos princípios de Vivekananda. 18 Ver TELLES, NAGARATHNA & NAGENDRA (1994); http://www.kdham.com/srd.html, acessado 27/08/2010; http://www.vkendra.org/projects, acessado 27/08/2010; e http://www.sivanandaonline.org/html/sadhanapages/yoga/Yoga.shtm, acessado 27/08/2010.

43

Capitulo 2

OS KLESAS NO MUNDO MODERNO

2.1 - Os primeiros iogues da geração moderna: a ressignificação das escrituras do ioga moderno a luz da ciência biomédica e fisiologia

Os iogues19 a partir de Vivekananda inauguram as primeiras denominações religiosas do ioga moderno no mundo, com a missão bem clara em difundir a ciência do ioga (ver SIMÕES, 2011). A ciência, assim, será o grande canal proselitista que o ioga se empenha a utilizar para disseminar as suas ideias religiosas nas sociedades urbanas ocidentais (DeMICHELIS, 2008, p.23; STRAUSS, 2008, p.62-67). A partir de agora, o ioga vai desenhando novos bens de salvação mesclando seu conhecimento dos períodos históricos passados com o saber da ciência biomédica e sua fisiologia pautada na racionalidade ocidental. As doenças devem ser combatidas pelos ásanas, pranayamas e meditação, mas mesclando-se a nervos, hormônios e partes específicas do cérebro com energias transfisiológicas.

por meio dos exercícios [de ioga] mantemos nossa flexibilidade e força da coluna vertebral, assim a circulação [sanguínea] é aumentada e os nervos mantém seus suprimentos de nutrientes e oxigênio. Os ásanas também afetam os órgãos internos e o sistema endócrino20.

[A intenção do instituto de Kaivalyadhama é] desvencilhar [o ioga] de toda uma capa de misticismo acumulada ao longo de séculos de transmissão oral Isso só poderia ser conseguido com pesquisa exaustiva em textos e escrituras originais [doutrinas], e por meio de experimentação laboratorial [fisiologia biomédica empírica-racional do Ocidente]. (KUVALAYANANDA, 2008, p.2)

Andrea R. Jain, avaliou as formas como um dos métodos do ioga moderno (Preksha Dhayan de Acharya Mahaprajna) se apropria do discurso científico ocidental na sua doutrina (JAIN, 2010), em particular, das técnicas corporais e meditativas dos sistemas de ioga clássicos e pré-modernos e baseando-se no discurso biomédico ocidental.

19 Sri Yogendra (1897-1989), seguido por Paramahansa Yogananda (1893-1952), swami Kuvalayananda (1883-1966), swami (1887-1963) e sri Turumalai Krishnamacharya (1888-1989). 20 Grifo meu. Ver http://www.sivananda.org/teachings/fivepoints.html acessado 06/01/2011.

44

A autora percebeu que o corpo no ioga investigado, tornou-se uma “sutil metafísica somatizada”, utilizando-se da compreensão biomédica da fisiologia para localizar e identificar as funções de partes dos corpos sutis e os processos fisiológicos da realidade empírica. Para a pesquisadora, esta reinterpretação não substituiu apenas a simbologia fisiológica espiritual antiga pela científica moderna, mas a reinventou, formatando uma fisiologia ioguica agora com elementos científicos.

Eu avaliei a apropriação das técnicas físicas e meditativas dos sistemas de ioga antigos em suas explicações metafísicas do ioga pelo discurso biomédico. Eu demonstro como, no sistema Mahaprajna Preksha, o corpo metafísico sutil foi somatizado. Em outras palavras, Mahaprajna utiliza-se do conhecimento biomédico da fisiologia para localizer e identificar as funções das partes sutis do corpo metafísico e processos da fisiologia do corpo (JAIN, 2010).

O que se indica, é que o fato mencionado por Jain não é algo isolado de um grupo religioso, tradição ou iogue específico, mas da própria história do ioga na modernidade que vem ganhando contornos espirituais próprios e dialogando mais com os padrões ocidentais de racionalidade do que a magia medieval indiana; assim, essas ressignificações e reformas teológicas se justificam pela aculturação que o complexo religioso ioguico sofreu no contato com os outros povos e seus sistema de crenças, na busca por manter o seu discurso legítimo em um mundo onde a lógica científica parece prevalecer mais do que a fé (ou a lógica religiosa).

No livro Afirmações, por exemplo, Yogananda procura correlacionar o poder terapêutico do ioga por meio de descrições científicas, profetizando que a fisiologia cardiorrespiratória científica explicaria o pranayama (parte da prática ioguica composta por respiratórios mais intensos), “cuja aplicação o ser humano pode alcançar uma experiência pessoal e direta com Deus (...) comum a toda religião verdadeira” no intuito de promover harmonia entre os diversos povos e os países do mundo. Não é apenas ele, mas outros como Iyengar também fazem frequentes referências à junção religiosa ioga-ciência. A partir de agora, o ioga como uma religião terapêutica virá aos poucos sendo configurada.

O pranayama é o elo de ligação entre o organismo fisiológico do homem e sua dimensão espiritual. Tal como o calor físico é o cerne de nossa vida, o pranayama é o cerne do ioga (IYENGAR, 2001, p.183).

45

O ioga moderno vai alicerçando-se, segundo os seus emissários contemporâneos, com auxílio de “um conjunto de técnicas científicas utilizadas para alcançar a comunhão com Deus” (Ibid., p.130-131). A sua doutrina antiga funda-se modernamente – proclamam os iogues do início do séc.XX - também na fisiologia científica para, assim como os iogues clássicos e medievais o fizeram com as outras sabedorias, dialogar com os conceitos fisiológicos espirituais de outrora. Desta forma, a fisiologia biomédica científica e os tratados religiosos ioguicos se hibridam.

Se estimarmos a quantidade de sangue expulsa em cada contração dos ventrículos do coração, soma ao redor de cento e dez mililitros, este órgão move um peso equivalente a oito quilogramas de sangue por minuto. Assim, no lapso de um dia, o coração impulsiona aproximadamente doze toneladas de sangue. Estas cifras demonstram o enorme trabalho do coração. O controle consciente do sono – aprender a dormir e despertar com nossa vontade - forma parte do treinamento yoguico que capacita o ser humano em regular os batimentos cardíacos. Quando se é capaz de controlar conscientemente a frequência cardíaca, se alcança o domínio da morte. (YOGANANDA, 2008, p.134)

a cortisona [principal hormônio do estresse] do ioga é vislumbrar a alma (IYENGAR, 2001, p.138).

Nas citações acima evidencia-se as aproximações “científicas” do ioga moderno. Quando Yogananda diz poder vencer a morte controlando-se a frequência cardíaca e a respiração, pode estar evidenciando algo que desenvolverei mais adiante: os obstáculos do ioga, os klesas, estão se transformando em doenças psicossomáticas e sentimentos nefastos a serem exorcizados pelas práticas corporais do ioga moderno. Importante relembrar que os klesas, como responsáveis em produzir o turbilhão da mente/consciência (citta-vrttis), estarão intimamente relacionados agora em modificações fisiológicas advindas das imbricações construídas modernamente com a linguagem da ciência biomédica. Dessa forma, quando Yogananda acima afirma que se “alcança o domínio da morte” no controle consciente dos batimentos cardíacos, associa diretamente (mesmo sem mencionar) um dos klesas (Medo da morte) vencido no controle de repercussões corporais.

46

2.1.1. A ressignificação das escrituras do ioga moderno a luz da ciência biomédica e fisiologia

O discurso do conhecimento fisiológico da ciência legitima o iogue moderno a abrir mão da sua antiga teoria ética para aniquilação do Mal/klesa, para o controle deste por meio de rituais corporais de purificação ou exorcizo do klesa que vai sendo materializado por assim dizer. Os hatha-iogues já o faziam isso na Índia medieval; o novo, no entanto, é a ressignificação pela linguagem científica. Outro dado a recordar são os motivos que conduziram os iogues medievais a corporificarem seus discursos. Esse processo deveu-se na crítica que faziam ao sistema estratificado da sociedade indiana que impedia acesso a salvação (kaivalya) de quem não pertencia a mais alta casta social. Em outras palavras, aos indianos de castas inferiores, só lhes restavam obedecer aos ditames bramânicos para total extinção do Mal/klesa. A motivação de muitos líderes religiosos que participaram do movimento renascentista na Índia no final do séc. XIX, estava, entre outros, na eliminação das diferenças das castas da sociedade (FARQUHAR, 1915, p.387-429). Assim, parece lícito supor que o pano- de-fundo que encobre o discurso corporificado dos iogues modernos pode estar ainda fundado, não apenas em um simples ajuste ou adaptação simbólica, mas numa crítica social moderna por uma parcela insatisfeita com a vida dos grandes centros urbanos.

Quando Yogananda associa o “treinamento ioguico” na diminuição dos “batimentos cardíacos” e aniquilação de um dos klesas, pode estar ponderando sobre o ritmo agitado da vida ocidental urbana que agora estes iogues indianos tomam contato e, percebendo o mal à dialética saúde-salvação que esse ritmo implica aos seus indivíduos, desenvolve novos métodos de ioga para serem aplicados a um novo coletivo. Segundo Iyengar, “ao controlar a respiração, você está controlando a consciência, e, ao controlar a consciência, você dá ritmo à respiração”. Como veremos, essa moderna dialética ioguica se estabelecendo pode, como alguns pesquisadores apontarão, transformar os klesas, o samadhi e kaivalya em conceitos advindo da fisiologia biomédica, reformulando o Mal, a vivência espiritual e a salvação/libertação religiosa do ioga moderno.

O iogue Yogananda faz uma releitura moderna do HIP (sutras I-41 e II-2), dizendo que “quando não há movimento nas células, na mente ou em qualquer um dos

47

vasos da alma, prevalece o que se chama de ” (p.29, 185)21. Assim como Kuvalayananda tentou aliar o valor religioso com o científico do ioga, Iyengar (2001) também se dedicou às correlações entre a anatomia e a fisiologia biomédica com a religiosidade do ioga.

aplicando-se fundamentalmente a vontade, deverá fixar-se a atenção entre sobrancelhas [shambavi ]; quando se utilizam afirmações do tipo intelectual, o centro da concentração será o bulbo raquídeo (centro da força vital inteligente); e as afirmações devocionais, a concentração se focará no coração. Por meio da prática dessas afirmações, adquire-se o poder de dirigir conscientemente a atenção para as fontes vitais da vontade, do pensamento e do sentimento (YOGANANDA, 2008, p.76).

Concentrar-se, com os olhos fechados, na região do bulbo raquídeo, e sentir que o poder da visão, presente nos olhos, fluem através do nervo óptico para a retina. Fixar o olhar entre as sobrancelhas, imaginando que o fluxo da energia vital se dirige desde o bulbo raquídeo para os olhos, transformando estes últimos em dois focos de luz. Este exercício produz benefícios tanto físicos como mentais (Ibid., p.114).

Yogananda, desta forma, faz uma releitura de um clássico e importante mudra da doutrina medieval do HI, o shambavi mudra, pelo prisma da fisiologia científica. Em outra obra, Kriyananda (2007), comentando o seu guru Yogananda, volta a se referir ao bulbo (ou medula oblonga) e ao sushumna como a espinha, e prana como energia.

(...) o caminho do despertar divino é, conforme dissemos, a espinha. A energia penetra no corpo através da medula oblonga, na base do cérebro. (...) A energia (...) transita pelos nervos [nadis] (...) até o cérebro, desce pela espinha (...). Quando, por ocasião da morte, a consciência se retira do corpo, a energia primeiro recua das extremidades para a espinha, sobe por ela e sai pela medula oblonga, deixando o corpo (p.51).

O bulbo ou medula oblonga (porção anatômica inferior do tronco encefálico e responsável pelas funções vitais do corpo) para Yogananda possui também, um pólo negativo e outro positivo. O primeiro, que corresponde ao ajna chackra, situa-se no próprio bulbo; e o segundo, que o reflete, localiza-se na confluência dos três principais nadis (ida, pingala e sushumna), que ele reinterpreta como sendo os nervos (Ibid., p.51), da região conhecida como shambavi mudra, dentro da anatomia e da fisiologia espiritual do ioga (WOODROFFE, 2004, p.56).

21 Grifo meu.

48

Dentro desta lógica ioga-ciência que vem se edificando no microuniverso ioguico moderno, a região cerebral do bulbo - como responsável por inúmeros nervos motores e sensitivos cranianos - influirá também na dialética prana-citta ou energia cósmica absorvida a cada ato respiratório e a consciência. Na próxima subseção, perceberemos que essa corporificação da fisiologia sutil do ioga se estenderá também a noção de klesa e a sua conversão, de conceito metafísico, ao das emoções possíveis de serem sentidas e percebidas no corpo. Consequentemente, “materializada” e possível de mensuração empírica - mesmo que a ciência ocidental, admitem muitos dos iogues que entrevistei, ainda não possui mecanismos tecnológicos para isso. Se as noções de prana, citta, nadis e demais símbolos transfisiológicos do ioga se corporificam modernamente, é bem provável que encontremos correspondentes fisiológicos empíricos para os klesas, samadhi e kaivalya, mesmo que sejam conceitos ideais erigidos pela ciência.

No HIP, segundo Iyengar (2001), o ioga é prana-vrtti-nirodha (acalmar as flutuações da respiração); já o IS afirma que ioga é citta-vrtti-nirodha (acalmar as flutuações da mente) (p.29); assim, é lícito pensar, dentro da nova racionalidade fisiológica religiosa do ioga moderno, que o bulbo tenha participação direta nesse processo, como afirmam os iogues acima, pois ele (o bulbo) também é o centro respiratório pela fisiologia biomédica. Se relembrarmos que os klesas são os responsáveis pela produção dos vrttis, e estes, pela corporificação que o ioga vem sofrendo, podem estar assumindo um caráter de induzir as “flutuações da mente” (IS 1:2). Dessa forma, supor a participação real dos klesas em estados mentais/emocionais modernamente, pode ser possível.

A citação abaixo reforça a transformação da transfisiologia medieval aos padrões ocidentais de racionalidade. Kriyananda (J. Donald Waters), um ocidental discípulo direto de Paramahansa Yogananda, insiste no caráter empírico de ajna chackra, quando busca demonstrar que a meditação ioguica nessa região metafísica pode desbloquear energias espirituais no corpo. No fundo, o objetivo dos iogues modernos está em permitir o livre fluir das energias (prana) através das suas novas técnicas rituais. Serão, logo, elas as técnicas ioguicas - e não mais a autoridade do alto clero – as responsáveis por eliminar as manifestações maléficas dos klesas.

49

[O iogue] pode-se perguntar: o olho espiritual [ajna chackra] é puramente simbólico? Não, é real e constitui, de fato, um reflexo da medula, a partir da qual a energia desce a espinha por três nadis ou canais sutis de força vital [prana]. (...) A espinha é o canal principal por onde a energia flui. O fluxo ascendente da energia [que conduz kundalini] pode ser bloqueado por alguns plexos [chackras] na espinha, de onde ela passa para o sistema nervoso e daí para o corpo, sustentando e ativando os diferentes órgãos e membros. Quando em meditação profunda, o yogue transfere energia do corpo exterior [koshas] para a espinha e a faz subir para o cérebro [último chackra], ele encontra essa passagem bloqueada pelo fluxo externo de energia proveniente daqueles plexos (ou centros, mas que nos tratados yoguicos recebem o nome de chackras). A energia de cada chackra deve ser conduzida para a espinha a fim de prosseguir sua jornada ascendente (KRIYANANDA, 2007, p.52-53).

Kriyananda acima nos exemplifica a “realidade” das energias “bloqueadas” com correspondentes nos plexos, coluna vertebral e glândulas, locais anatômicos pertencentes ao conhecimento científico. Mas, o que as bloqueia agora, acreditam os iogues modernos, são as contrações musculares, a alimentação inadequada e as doenças. Dessa forma, os músculos relaxados pela ação de posturas ioguicas específicas, combinados aos respiratórios (pranayamas), alimentação vegetariana devem agir no desbloqueio de prana nos chackras e, consequentemente, no reestabelecimento da saúde. No fundo, não devemos nos esquecer que o responsável real por essa configuração nefasta (de energias bloqueadas) são a ação dos klesas, que produzem o “turbilhão da mente” e permitem que doenças se instalem em nossos corpos e mentes em desequilíbrio por uma má circulação prânica. No entanto, para se compreender a lógica aqui se desenhando é preciso também, estimar os klesas - o mal a ser aniquilado – como responsáveis velados desse processo. Com isso, novos bens de salvação se configuram como uma possível reforma no modo como os iogues modernos percebem a causa do mal que os atormenta e os afastam de kaivalya, que representa, desde os tempos antigos, um estado perene de equilíbrio divino em sattva ou o estado da alma/purusa imaculada.

Como exemplo da busca incessante por corporificar todas as manifestações suprassensíveis das escrituras antigas, tomemos como exemplo os chackras. Os chackras, vórtices de energia que canalizam e potencializam prana, sempre foram de natureza mística, mas eles também sofreram reformulações significativas na sua interação com o sistema de crenças da ciência. Eles (os chackras) continuam a ser representados nos corpos transfisiológicos do ioga, mas ganharam correspondências das mais variadas dentro da fisicalidade orgânica da fisiologia ocidental, como plexos,

50

glândulas e junções celulares (gap junctions), como se observa nas pesquisas fisiológicas modernas da religião, mas também na voz da doutrina ioguica atual.

Chakras são centros da energia espiritual. Eles estão localizados no corpo astral, mas eles possuem correspondência com centros no corpo físico também. (...) há certos plexos no corpo físico (SIVANANDA, 2000, p.7).

Mais de dois milênios atrás, Patanjali deu-se conta da importância do cérebro. Ele descreveu a parte frontal como o cérebro analítico, a posterior como o cérebro do raciocínio, a inferior com a sede do estado de graça (o que, a propósito, corresponde às descobertas da ciência médica moderna, segundo a qual o hipotálamo, situado na base do encéfalo, é o centro do prazer e da dor), e a parte superior como o cérebro criativo ou sede da consciência, a nascente do ser, do ego ou do orgulho, o berço da individualidade (IYENGAR, 2001, p.174).

Por meio (...) das posturas do Yoga, podemos ajudar a suprimir e aliviar a congestão dos nervos ou das vértebras (nadis), facilitando assim o livre fluxo da energia vital (prana) (YOGANANDA, 2008, p.43).

O iogue, segundo Yogananda (2009):

(...) faz circular mentalmente sua energia vital [prana] (por meio das técnicas físicas, kriyas, ásanas, mudras e pranayamas), em direção ascendente e descendente, ao redor dos seis centros da coluna vertebral [chackras] (plexos medular, cervical, dorsal, lombar, sacral e coccígeo)” (p.248).

Percebe-se as aproximações que as escrituras ioguicas modernas se esforçam em estabelecer com a fisiologia biomédica ocidental. De certa forma, estes adquirem aspectos milenaristas e têm ultrapassado as simples analogias anatômicas. Há, portanto, uma esperança (e fé) de que a ciência “comprove” os benefícios do ioga como caminho espiritual. Mais do que isso, que a ciência alie-se ao ioga – demonstrando a eficácia de suas práticas espirituais – no combate ao Mal/klesa. Com isso em mente, o Mal/klesa não pode continuar centrado em condutas éticas pautadas por brâmanes indianos do séc.II a.C.; o Mal/klesa precisa também ser ressignificado. Se, como já sabemos, os klesas impedem o acesso a kaivalya pois produzem “agitação mental”, é necessário que o sistema nervoso autônomo, responsável por induzir involuntariamente – desse modo, por forças que não cabe a nenhum indivíduo controlar – o indesejável movimento mental, estar associado a forças e localizações de uma anatomia transcendente. O respirar e o prana agora serão associados como mediadores dos mundos material e espiritual. Assim, as posturas e os respiratórios do

51

ioga adquirem agora os responsáveis por conduzir, durante as práticas corporais, seus praticantes, igualmente, a um espaço transitório de acesso ao espiritual.

2.1.2. A ciência legitima o discurso religioso do ioga

No plano fisiológico, pingala corresponde ao sistema nervoso simpático; ida, ao parassimpático; e susumna, ao sistema nervoso central. A frieza atribuída a ida [pois, corresponde dentro da representação simbólica da fisiologia do HI medieval como chandra-nadi, ou “canal da lua; e pingala como surya-nadi, ou “canal do sol”] no HIP é explicada, pela ciência moderna, em virtude de sua ligação com o hipotálamo, situado na base do cérebro, e que é o centro responsável pela manutenção da temperatura estável do corpo. Assim, o hipotálamo é o plexo lunar, do qual desce ida, assim como pingala ascende de sua base no plexo solar. Susumna corresponde ao sistema nervoso central, e essa energia divina, produzida pela fusão de ida e pingala, é vista como energia elétrica (kundalini [nota autor]), segundo a fisiologia. Susumna existe em todas as partes do corpo e não apenas na espinha, porque o sistema nervoso central age em todo o organismo (IYENGAR, 2001, p.188-190).

O pranayama está na fronteira entre os mundos material e espiritual, e o [músculo do] diafragma é o ponto de encontro dos planos fisiológico e espiritual do seu corpo. Lembre que kumbhaka não é segurar o fôlego; é reter energia [prana] (Ibid., p.186).

Kuvalayananda (2008), nos seus comentários, faz extensas exposições fisiológico-anatômicas precisas e condizentes com o pensamento da ciência ocidental, e desfere duras críticas aos seus companheiros de fé que descrevem a fisiologia espiritual das práticas ioguicas como “crenças populares”, pois não estão pautadas, segundo ele, em pesquisas laboratoriais sob a perspectiva da lógica ocidental, como ele o faz (p.104 em notas). No entanto, frequentemente e ao longo de seus principais livros (Asana e Pranayamas), não deixa de salientar o “valor espiritual” do ásana e do pranayama. Essa ambivalência (CRUZ, 2008, p.13) 22 acompanha os iogues modernos e, o que pode parecer uma contradição, se revelará adiante, uma posição ideológica de legitimação importante ao microuniverso religioso do ioga que vem se configurando contemporaneamente. Os iogues modernos lutam por desvencilhar-se da magia hinduísta medieval, mas esse desencantamento se revelará na substituição por novas crenças igualmente mágicas, mas fundamentadas numa nova proposta de

22 Ver uma discussão aprofundada sobre a “dupla face” da realidade.

52

salvação/libertação estabelecida entre a dialética saúde-Bem-equilíbrio-Kaivalya e doença-Mal-desequilíbrio-klesa.

[Paschimatana é executado quando] Sentado, o estudante mantêm as pernas esticadas e unidas. Inclina então o tronco um pouco para a frente, forma um gancho com os dedos indicadores e segura com eles os grandes artelhos com os dedos assegura não só o completo relaxamento, como também um completo estiramento dos músculos posteriores das pernas (Ibid., p.120).

A Paschimatana é considerada de grande valor espiritual. São conhecidos casos em que sua prática por cultores espiritualistas permitiu que o praticante ouvisse o Anahata Dhvani, isto é, o som sutil. O tempo de permanência na Paschimatana deve ser criteriosamente regulado. Quando continuado por muito tempo, causará prisão de ventre. Para finalidades espirituais, entretanto, esta Asana deverá ser praticada diariamente por mais de uma hora (Ibid., p.122).

Como exemplo, selecionou-se do seu livro Asanas alguns trechos que esclarecem a ambivalência originada pelas pesquisas fisiológicas empíricas ocidentais que se querem mostrar, sobre o uddiyana bandha e paschimotanasana (ou paschimatana). Percebe-se claramente que os ásanas possuem a capacidade de induzir ao relaxamento e liberar o aprisionamento de prana, ao mesmo tempo que essa falha no fluxo energético prânico possui extensões terapêuticas, como a prisão de ventre. Se a agitação da mente é fruto agora da manifestação física dos klesas, as práticas corporais do ioga (fundadas em posturas, respiratórios e meditação) resultam em um profundo relaxamento documentado pela ciência da fisiologia biomédica. O kaivalya deve estar em algum ponto advindo do relaxamento psicofísico, um estado no qual os klesas cessem definitivamente de atuar e o equilíbrio de purusa manifeste- se.

Em Asanas, por exemplo, Kuvalayananda (2005) dedica um capítulo inteiro ao “Estudo científico das posturas yóguicas” (p.147-164), dividindo os ásanas em “Meditativos” e “Culturais”. O objetivo das posturas Culturais é puramente orgânico, segundo o autor. Kuvalayananda descreve toda a sua formação em pesquisas empíricas da fisiologia ocidental aplicada a investigar e propalar os benefícios terapêuticos, em particular do fortalecimento e alongamento da coluna vertebral, assim como as posições anatômicas e as inserções articulares e os principais grupos musculares envolvidos. No aspecto Meditativo dos ásanas, o alvo é estabelecer-se numa postura confortável para a execução dos pranayamas e dos estados

53

contemplativos do ioga, respeitando toda a tradição antiga ioguica desde Patanjali. No entanto, entre as narrações altamente versadas sobre a ciência biomédica e as suas observações, surgem demonstrações pautadas em uma fisiologia transfisiológica e não na fisiologia científica. Por exemplo, após descrever que os ásanas Culturais têm por objetivo fortalecer a coluna, influenciar as áreas cerebrais e produzir “o mais alto vigor orgânico para todo o corpo”, esclarece que isto deve ocorrer para que ambas “possam suportar a interação da força espiritual do kundalini, quando a mesma for despertada pelas práticas yoguicas adiantadas” (Ibid., p.147)23.

Esse aumento do suprimento sanguíneo e o consequente fortalecimento dos nervos é responsável até certo ponto pelo despertar de Kundalini (KUVALAYANANDA, 2005, p.162).

Isso não significa que os ateus não possam praticar as posturas yoguicas. Queremos dizer, portanto, sendo todos os outros fatores iguais (doutrina e fé), um genuíno “teísta” poderá praticar os asanas com maiores vantagens que um ateu (KUVALAYANANDA, 2005, p.50 em notas).

Essa dialética, entre o que é ciência e o que faz parte da espiritualidade ioguica, conduziu os iogues modernos a uma situação singular, pois mesmo a fisiologia científica não explicando, por si só, a fisiologia transfisiológica dos nadis, da kundalini e dos chackras, eles (os iogues) não deixaram de associar as suas escrituras religiosas da profana e secularizante ciência. Mas por que arriscaram-se a desencantar a sua religiosidade e transformar seus rituais corporais de transcendência numa simples terapêutica a serviço exclusivamente da biomedicina ocidental (ALTER, 2004, p.76)? A resposta é simples: proselitismo religioso e fé. Os iogues modernos acreditam em suas práticas corporais como transformadoras de indivíduos, e se fortalecem ainda mais quando respaldados pelos resultados positivos que a ciência biomédica revela sobre as suas práticas e terapia de doenças.

O ambicioso objetivo de Swami Kuvalayananda, (...) era alcançar uma reconstrução espiritual da sociedade em escala mundial. (...) Estes experimentos [científicos empíricos] o convenceram de que a antiga ciência do Yoga, abordada pelos métodos experimentais da ciência moderna, poderia ajudar a humanidade a revivescer física e espiritualmente. Esta se tornou a missão de sua vida (KUVALAYANANDA, 2008, p.2-3).

23 Grifo meu.

54

O ioga moderno, conclui Strauss (2008), parece ter causado uma reorientação fundamental baseada numa “nova teoria para uma antiga prática”, convidando a sua comunidade a exercer a sua religiosidade ao lado também dos avanços da ciência, sobretudo da fisiologia biomédica empírica (p.49-74). A secularização trazida pelo contato com a ciência associada à privatização religiosa presente nas sociedades ocidentais originou reformas profundas na disputa, produção e manutenção dos bens de salvação e soteriologia do ioga na modernidade. Por isso, o ioga pode não estar mais sendo acolhido pelo hinduísmo e nem por nenhuma outra espiritualidade que lhe dê legitimidade de discurso (JAIN, 2014, p.130-157), não porque não tenha legitimidade espiritual, mas porque talvez esteja se configurando como um novo movimento religioso.

O discurso ioguico vai se pautando na ciência da fisiologia biomédica, não apenas para erigir um “novo discurso coerente” e desmistificado, mas talvez, igualmente como os iogues medievais o fizeram em seu tempo, para reformular a sociedade urbana ocidental de sistema capitalista de consumo e economia neoliberal em que foram transplantados. O Mal/klesa, samadhi e kaivalya podem estar modificados agora, pois o alvo não está mais apontado para o alto clero indiano que mantinham rígidos princípios éticos e uma sociedade em castas sem mobilidade social (LIBERMAN, 2008, p.100-115). O ioga moderno podem estar se desvinculando dos seus antigos laços hinduístas e erigindo novos contornos espirituais. Alguns autores inclusive já o identificam como uma nova prática religiosa do corpo (JAIN, 2014, p.95-129), uma religião mística (NEWCOMBE, 2004) e/ou uma religião secular com rituais de cura (DeMICHELIS, 2004, p.248-260).

2.2 - Teoria dos klesas corporificada: sinônimo de estresse e emoções

Iyengar, um dos iogues modernos mais influentes nas sociedades ocidentais, descreve no capítulo Bem-Aventurança: O corpo divino, do seu livro Luz na Vida: A jornada do ioga para a integridade, os klesas com sensíveis transformações. Uma das primeiras influências que se percebe está em relação ao recurso literário da comparação com o cristianismo. Iyengar (2006, p.188) se utiliza de uma parábola de Jesus para explicar o sentido do klesa-mãe, a Ignorância:

55

O Senhor Jesus explica isso bem (a Ignorância). Ele disse que se você construir a sua casa na areia, isso vai ceder. Se você construir ela na rocha, vai ficar firme. Isso significa que a vida precisa ser erigida em uma fundação firme da realidade. Infelizmente, o que parece firme, isto é, as coisas da vida que nos oferecem segurança , riqueza, posses, preconceitos, crenças, privilégio e posição, não são sólidos em tudo. Que remete para quando eu disse que aprender a viver com a incerteza é a grande arte de viver. Jesus também quis dizer que, somente uma vida construída sobre valores espirituais estará baseada firmemente na verdade e vai se manter de pé até aos choques da vida.

Para Iyengar, os klesas são como forças do mal inatas nos seres humanos no qual as sociedades ocidentais associam ao Demônio, ele diz. O Mal/klesas seria responsável por causar as “flutuações da consciência”, como já elencamos. Conduzir a vida baseada na Ignorância, no Medo da morte, no Apego, na Aversão e no Orgulho é como construir uma casa na areia, compara. E continua, o “demônio no ioga” (klesa) é alienado ou alienante: “Ele [klesa] é ignorante. Na verdade, ele é a Ignorância dele mesmo. Para os hindus, o arquinimigo é o estado do não- conhecimento” (IYENGAR et.al., 2005, p.190).

Para explicar os klesas, Iyengar também se utiliza de comparações corporais com a saúde e áreas encefálicas específicas. O klesa Medo da morte, por exemplo, possui existência, acredita, em nível psicobiológico e corresponde aos lobos posteriores do cérebro pelas mesmas razões que os chackras foram associados às glândulas e os nadis ao sistema nervoso:

Abhinivesa (medo da morte) é um instintivo apego a vida. Abhinivesa pode facilmente ser experienciado se você prolongar bastante a retenção no fim da exalação. O pânico se instala. Isso é ignorância, ou um equívoco fundamental da Realidade, que sustenta e alimenta todas as outras aflições (IYENGAR et.al., 2005, p.199).

A Ignorância (avidya) e a Falsa identidade de si-mesmo (asmita), possuem correlação aflitiva na porção encefálica da “inteligência” (Ibid., p.196): “Aqui a falta do conhecimento espiritual combinado com orgulho ou arrogância inflam o ego, causando presunção e a perda do senso do eu em harmonia”. O klesa Apego (raga) produz na mente o desejo, enquanto o klesa Aversão, (dvesa), ódio. Essas klesas, segundo Iyengar:

56

Produzem uma desarmonia entre o corpo e a mente, nos quais podem originar desordens psicossomáticas. (...) E ambos os klesas, possuem correspondentes cerebrais no hipotálamo (Ibid.).

Iyengar conclui em sua análise moderna aos klesas, que “devemos manter o nosso corpo tão saudável quanto possível no caminho espiritual”, pois na doença nós esquecemos nossos corpos e os klesas, constantemente modificados pelos estímulos externos, causam flutuações em nossos ciclos respiratórios e consciências – portanto, ao fluxo prânico, como vimos na subseção anterior - corrompendo nossas vidas e viciando nossas melhores intenções.

O que sublinhei em suas duas citações anteriores (harmonia e desarmonia) é crucial para o nosso entendimento da reforma em andamento, pois Iyengar segue o mesmo caminho que descrevemos no início deste capítulo, de associar os antigos conceitos transfisiológicos do ioga com os da fisiologia biomédica, no entanto, com relação aos klesas, não ocorre uma simples ressignificação, mas uma verdadeira reforma em como percebê-los, senti-los e combate-los. Os klesas como Mal para Iyengar, por “agitar a consciência”, influi na harmonia do(s) nosso(s) corpo(s) através do bloqueio de prana pelo mal funcionamento (fisiologia, lit. estudo do funcionamento do corpo) dos chackras (agora, glândulas e plexos com influência no sistema nervoso autônomo, como vimos). Em última instância, kaivalya relaciona-se de alguma forma com a harmonia perene do corpo fisiológico, pois com o diálogo saúde-salvação estabelecido, as doenças nos afastam de kaivalya para Iyengar.

Com a corporificação do klesa e a medicalização do ioga - em menor valor com a ayurveda e com maior intensidade com a biomedicina ocidental -, percebe-se, como argumentaremos no quarto capítulo, uma preocupação em observar as reações psicofísicas com a perda de certa harmonia fisiológica perene inata aos seres humanos, acreditam os iogues, que associarei ao estado de kaivalya, a libertação final do sofrimento. Mais do que observância nos comportamentos éticos contidos, por exemplo, nos yamas e niyamas (os dois primeiros passos do AI, a proposta antiga de Patanjali para um iogue se safar do sofrimento advindo do ciclo de samsara ou reencarnações), a questão se privatiza e é transferida para a prática corporal propriamente dita.

57

Ao que tudo indica, as práticas corporais do ioga, estariam voltadas como rituais “purificadoras” das forças maléficas dos klesas, ao mesmo tempo que solidificariam a vida ioguica na “rocha da verdade”, parafraseando Iyengar em sua analogia dos klesas com a parábola de Jesus. Há inclusive um dos métodos/tradições de ioga mais populares no mundo, o Asthanga Vinyasa Yoga, que se destaca por suas rígidas séries de posturas combinadas com respiratório (ujjay), contrações musculares específicas (bandhas) e saltos (os vinyasas), aonde o objetivo está literalmente – e fisiologicamente - elevar o calor físico, para assim “eliminar substâncias nocivas ao corpo” através de . A orientação é praticar com janelas e portas fechadas para suar ou produzir tapas como purificador. A expressão tapas, lit. significa austeridade, mas como deriva da palavra tap, pode exprimir “fornecer calor” ou ainda “fazer-se quente” (SMITH, 2008, p.143-150).

Tapas provê ao devoto um “calor na cabeça” [head heat], transformando-o em um vidente. De um modo semelhante, o esforço da prática ascética acende o “fogo interior” [inner fire] da iluminação, em uma visão de êxtase. Como o rsis [místicos hindus que escreveram os textos religiosos do hinduísmo], o asceta, através de tapas, é capaz de “ver”. Neste contexto, tapas adquire a forma de um “meditar cognitivo” [cognitive brooding], ou “intensa meditação”. O poder aqui empregado para tapas é claramente de “poder contemplativo” (KAEBLER, 1989, p.145-146)

Com o calor corporal gerado pela prática ioguica, o praticante pode alcançar a iluminação e ser capaz de “ver” como os antigos místicos hindus. Em outras palavras, para o ioga moderno, desde os hatha-iogues, o corpo vem adquirindo caráter não só de “templo divino”, mas de referência de caminho espiritual e determinante no alcance a kaivalya ou o estado permanente de equilíbrio. Outro ponto são as práticas corporais do ioga como rituais de cura, como já apontou DeMichelis e descreveremos melhor no quinto capítulo. Desse modo, o samadhi, como vivência transitória do cessar do citta-vrttis (ou agitação mental), torna-se não somente de “cura de doenças”, mas principalmente da eliminação do Mal/klesas como resultado das suas práticas de corpo. Com a materialização dos klesas, os valores espirituais do ioga se desprendem das crenças metafísicas das suas antigas escrituras, transformando a saúde em referência do Bem e a doença, sinônimo do Mal, portanto, dos klesas.

Em outro artigo mais sofisticado, a filósofa da religião Anindita Balsev aproxima os klesas aos conceitos da emoção. A sua análise nos permite compreender como a noção dos klesas, samadhi e kaivalya podem estar atualmente atrelando a

58

soteriologia do ioga ao corpo, aonde, como expusemos acima, suas práticas se transformaram em rituais de cura e purificação.

A autora inicia nos lembrando que um dos comentaristas mais famosos e citados do IS, Vyasa, revela que o objetivo do ioga é diminuir as agitações da mente, no entanto, ele diz: “O rio chamado mente flui em duas direções” (BALSEV, 1991). E Balsev nos explica:

A imagem das “duas direções” transformam o fluxo da vida mental... As duas direções são primeiro caracterizadas como fluindo em direção ao bom e através do mal (vahati kalyaanaaya vahati papaayaca), pelos quais expressam primariamente uma consideração ética. (...) fluir em direção a discriminação (viveka) e isolamento/salvação (kaivalya) é bom, enquanto o que nos prende na existência neste mundo (samsara) é o mal, claramente indicando uma proposta soteriológica. (...) Esta metáfora da mente como um rio em duas direções, porém, adquire um significado técnico no Yoga-Sutras introduzindo uma divisão dos estados da mente, classificando-as em dois grupos: klista [ou klesa/dor/Mal] e aklista-vrtti [não-klesa-vrtti/não- sofrimento].

Em outras palavras, Balsev argumenta que a palavra klesa é usada sempre como sinônimo de dukha ou sofrimento, mas que não é meramente o oposto de sukha ou prazer. O significado de klesa é uma oposição à busca salvacionista/libertadora em direção ao rompimento do ciclo de samsara ou renascimentos, o que significa se apropriar do estado de kaivalya. Teríamos então uma busca por kaivalya não somente pela atenuação do apego, da aversão, do medo da morte e do orgulho, causados pela ignorância, mas na igualmente busca dos seus opostos ou aklista-vrtti – o movimento da mente para longe do sofrimento, de klesa. Por isso, a autora vai buscar os correspondentes emocionais dos klesas para trabalhar com a ideia que certas emoções seriam nefastas por nos acorrentar na agitação da mente e, por conseguinte, nos enredar no ciclo de samsara.

Como os klesas aparecem, pergunta Balsev. Os IS afirmam ser o klesa- Ignorância, a mãe de todos os outros klesas. Desse modo, a filósofa argumenta que a aversão adviria das sementes da dor e a falsa cognição que certos objetos da mente, associados a dor, causariam sempre sofrimento, por isso nos manteríamos afastados, em aversão a eles. Assim, objetos mentais denominados de klesa-Aversão estariam associados aos sentimentos de retaliação, de malícia, da vingança e do ódio, centros,

59

portanto, dos klesas Apego e Aversão, aonde o desejo e o prazer seriam os núcleos emocionais destes.

Para a autora, o klesa Medo da morte, incidiria do temor angustiante dos seres humanos em saber que vão morrer mas não quando. O klesa-Senso do Eu ou Orgulho, estaria no erro de julgamento, segundo a autora, da base intelectiva para os três erros de julgamento anteriores, pois tanto o desejo, quanto ódio ou o medo estariam centrados em nosso ego individual que não percebe ainda que somos purusa, o ser Imaculado e em equilíbrio e harmonia eternos (sattva), por isso associa o klesa- Orgulho ao sentimento do egoísmo.

Estas quatro aflições, comenta Balsev, não estão sempre presentes em suas formas totalmente manifestas. Em tom psicanalítico, continua, a descrição dos klesas encontradas no IS 2:4, descrevem-nos de forma dormentes (prasupra), atenuados (tanu), interceptados (vicchinna) e manifestos plenamente (udaara). Este é, de fato, um aspecto significativo da análise dos klesas no ioga em conexão com a perspectiva transcultural do estudo da emoção que a filósofa conduz em sua argumentação:

A mente, como o Yoga o vê, é naturalmente atraído em direção a samsara. A mente é cativa dos Klesas. Suas modificações incessantes estão, em grande parte, ligados a isso. Egoísmo, desejo, ódio e medo dominam a vida mental, mal dando-lhe uma chance para discriminar a si mesmo. Assim, falhando por causa da ignorância em descobrir a sua fundação não intencional (o purusa) carrega a ideia errônea sobre a natureza do eu: raiz do do Klesa asmita [ignorância]. Este, por sua vez, envolve-se mais com as polaridades que são características do redemoinho de existência que é samsara. Virtude e vício, prazer e dor, e apego e aversão são os seis raios da roda de samsara [ou ciclo de renascimentos]. Transcendendo o papel psicológico e ético da vida mental, a descrição soteriológica emerge. A vida mental é percebida não apenas como uma teia de estados coloridos com aflições; estes são interceptados por aqueles que se opõem a esta tendência. Para usar o imaginário do Yoga, estes aklista vrttis (movimento da mente não causador do sofrimento) produzem brechas que podem orientar para o conhecimento discriminativo (viveka) e para a salvação [kaivalya].

Em resumo, pode-se pensar que há emoções que deveriam ser cultivadas para ajudar diretamente na criação de um estado de espírito apropriado, portanto, útil para a prática de ioga. Seriam estas emoções que, gradualmente e eventualmente, “purgariam” a mente de suas impurezas. Dispondo os klesas como emoções, Balsev argumenta, a partir da sua interpretação do IS, que não seriam meramente consequência de uma ação, mas os principais responsáveis (motivação) pelas ações humanas, uma espécie de aspecto natural dos seres humanos ainda enredados na

60

ilusão ou alienação da vida espiritual (maya). Os klesas não teriam, desta forma, valores morais ou imorais, racionais ou irracionais, mas ativamente propulsores de ações e responsáveis pela permanência dos homens e mulheres em samsara. Balsev esclarece que a mente, no ioga, seria espontaneamente cativa dos klesas. Purusa ou alma, que é imaculada e perene, ou seja, não contaminada por prakrti ou corpo/emoções, é o objetivo do ioga. Kaivalya, então, seria o retorno da nossa consciência, livre das perturbações emocionais dos klesas (egoísmo, desejo, ódio e medo), ao estado de equilíbrio eterno de purusa ou alma. Sendo a Ignorância, a matriz dos klesas, a busca espiritual ioguica é conhecer a verdade que está por trás das perturbações mentais advindas dos klesas (BALSEV, 1991).

Outro ponto ressaltado pela autora está não somente na pura e simples “cessar da mente”, mas do cessar do fluir da mente presa na “direção” das emoções atreladas aos klesas. Assim, as práticas do ioga devem conduzir o devoto a cessar a influência dos klesas, mas correr em direção ao fluxo das emoções opostas aos klesas, ou seja, do apego-desejo, aversão-ódio, medo da morte ao medo como “resposta biológica” e orgulho-egoísmo. Em suma, da fuga do mal em busca do bem. As práticas de ioga seriam então rituais de cura também dessas emoções deletérias para a proposta da vida ioguica que vale a pena ser vivida.

A partir dessa análise e das colocações de Iyengar anteriormente, que associam os klesas com enfermidade, a prática corporal moderna do ioga parece se tornar um ritual exorcista das emoções do medo, do ódio, do desejo e do egoísmo que, por sua vez, possuiriam extensões negativas ao fluir de prana pelos chackras e a elevação consequente, dos níveis de estresse, fruto de tensões musculares. Mas qual a relação sendo estabelecida entre essas emoções/klesas apresentadas por Balsev, com a manifestação de doenças psicofísicas?

2.3 - Klesa e estresse

Nas ciências da religião, pesquisas revelam a ocorrência do entrelaçamento entre doença-sagrado, medicina-religião e cura-salvação em diversas religiões (FULLER, 2008, p.131-152; LAPLANTINE, 2011, p.213-252). A cientista Sarah Strauss corrobora essas aproximações com o ioga moderno nos esclarecendo que no

61

ioga moderno a doença seria uma espécie de sintoma a um sentir-se mal, angústia ou dor incorporada (STRAUSS, 2008), talvez um mal-estar. Dessa forma, é legítimo explorar o provável diálogo estabelecido modernamente entre as noções da experiência do mal/angústia/dor e de certas emoções nefastas, como o fez Balsev, e/ou conceito de estresse, originado na obstrução prânica devido aos bloqueios psicofísicos descritos por Iyengar e todos os líderes do ioga que citamos.

Segundo R.T. Rao, mas corroborado por outros pesquisadores, os klesas poderiam hoje estabelecer correspondência ao agente estressor ou estresse propriamente dito; e dukha (lit.dor), à experiência dolorosa ou o próprio sofrimento espiritual advindo dos nocivos comportamentos dos klesas. O asthanga ioga (AI) - os oito princípios espirituais do ioga clássico 24 - por sua vez, poderia estar sendo versado, dentro da comunidade ioguica atual, como as técnicas para dominar e eliminar tanto as emoções-klesa quanto o estresse originado por essa dialética do mal (BHAVANANI, 2007; RAO, 2012).

Essas observações - considerar o estresse como sinônimo de klesa ou resultado de certas emoções -, por outro lado, nos faz concluir equivocadamente que toda a manifestação fisiológica do estresse seria nefasta para a vida humana ou produtora do desejo, do ódio, do medo ou egoísmo – e ainda considerar essas emoções sempre como moralmente condenáveis para a vida humana; o que é uma inverdade, ao menos não-científica por ser irrefutável. Todavia o estresse especificamente, na perspectiva estrita da biologia, nunca foi compreendido assim. O estresse como sinônimo só de doença é uma noção popularizada sem o devido respaldo da ciência e, talvez incorporada de alguma forma ao complexo sistema de crenças do ioga moderno.

Os klesas até o surgir da modernidade sempre foi sinônimo de cinco aflições espirituais responsáveis por perpetuar o estado de servidão ou sofrimento humano em samsara (SCHONFELD, 2010). Assim, é plausível pensar nos comportamentos dos klesas adquirindo outras conotações se estabelecendo a resposta biológica do estresse, de emoções nefastas, bloqueios energéticos sutis, contrações neuromusculares crônicas e manifestações de doença. Por força, talvez, da agitação das grandes cidades urbanas, local este aonde o ioga moderno se populariza, o estresse pode estar sendo

24 Yamas, Niyamas, Asanas, Pranayamas, Prathyahara, Dharana, Dhyana e Samadhi.

62

associado como grande causador das moléstias do mundo, por isso, fonte das nefastas emoções de ódio, egoísmo, desejo e medo. Mas, o estresse causador de doenças é uma construção moderna e não nasce da fisiologia biomédica, mas de construções contemporâneas do senso-comum.

2.3.1 - Estresse biológico

Em 1916, o fisiologista norte-americano Walter Cannon apresenta pela primeira vez o termo estresse num artigo publicado na revista Nature, no intento de elucidar uma resposta fisiológica natural de emergência dos seres vivos, contida na sua hoje clássica, teoria de luta-ou-fuga (CANNON, 1927). Em 1932, o mesmo autor denomina de homeostase (homeo stasis ou estado de equilíbrio) a capacidade do organismo em preservar um conjunto de mecanismos regulatórios que mantém a constituição do seu meio interno dentro de limites adequados para a sua sobrevivência que pode ser rompido em situações estressantes, como hipoglicemia, um leão correndo para nos atacar ou uma fatura vencida por dificuldade financeira.

Assim, o conceito de homeostase é um estado psicofísico ideal, nunca alcançável, pois nosso organismo está a todo instante numa luta intensa de busca pelo equilíbrio dinâmico de suas forças, estado este (homeostase) só alcançado definitivamente na morte. Quando acordamos por exemplo, depois de oito horas de sono, nossos níveis de glicose estão baixíssimos – o que denominamos de hipoglicemia, por isso, em desajuste fisiológico e longe dos níveis ideais de homeostase. A hipoglicemia aciona o nosso eixo-do-estresse e mecanismos fisiológicos regulatórios inatos entram em ação. Nesse momento, até tomarmos nosso desjejum, a fisiologia humana busca mecanismos compensatórios ao agente estressor hipoglicemia. Em outras palavras, de restituir o estado fisiológico ideal e utópico de “harmonia” ou homeostase. No estado estressante hipoglicêmico, o pâncreas inibe a secreção do hormônio insulina (responsável por transportar a glicose do sangue para as células) e aciona o seu antagonista, o hormônio glucagon. O glucagon secretado pelo pâncreas, por sua vez, vai direto ao fígado degradar o glicogênio estocado e ofertá-lo na forma de glicose (a menor parte molecular do glicogênio). Quando esse processo atinge níveis satisfatórios de glicose circulante no sangue, quimioreceptores

63

de glicose informam ao sistema nervoso central que inibe o glucagon e aciona novamente o hormônio insulina a entrar em ação e transportar essa glicose para as células e reestabelecer a homeostase desse sistema. Mas o processo continua, pois no desjejum os sistemas digestórios são acionados e, após alimentar-se, o fígado precisará processar as gorduras e carboidratos excedentes na forma de glicogênio no fígado, aguardando um novo momento de hipoglicemia. Em suma, apesar de exaustiva a descrição, o que saliento é a presença constante do estresse/Mal e da homeostase/Bem atuando no teatro do corpo, no qual os iogues transplantaram – não somente como metáfora, como vimos até então – da linguagem neutra da fisiologia biomédica da ciência para a simbologia da sua fisiologia religiosa, sutil ou metafísica. É lícito supor, que o klesa como estresse ou emoções específicas, é uma narrativa religiosa moderna do ioga.

Hans Seyle em 1936, concordou com Cannon, mas ampliou a concepção de estresse classificando-a em três fases distintas: 1) Alarme: quando o organismo reage instintivamente a um agente estressor qualquer na resposta de luta-fuga e rompe a sua homeostase, esse equilíbrio dinâmico do organismo; 2) Adaptativa: manifesta no momento em que organismo gera uma resposta satisfatória e “equilibra” novamente seu estado homeostático; e 3) Crônica: um estado em que a resposta fisiológica ao agente estressor não é suficiente ao organismo retomar seu estado homeostático normal. Segundo Seyle e Cannon, mas ainda válido na atual fisiologia, seria somente na terceira fase (a crônica) em que o estresse, como resposta orgânica natural, poderia refletir negativamente sobre a saúde do organismo e, inclusive desenvolver respostas emocionais negativas a saúde do indivíduo, como o medo, a raiva, a fome e a dor (ver CANNON, 1927; SEYLE, 1976), impossíveis de não serem associadas pela interpretação de Balsev. Walter Cannon, logo, assim como os iogues, também associou emoções com a manifestação do estresse. Os iogues modernos podem estar ajustando a causa do mal de sua soteriologia, ou seja, os klesas, a doenças associadas ao estresse como ansiedade e a depressão, frutos agora, do ódio, do desejo, do medo e do egoísmo (PINEL, 2005, p.459-465; ver SAPOLSKY, 2008).

Assim, enquanto o estresse biológico é um estado fisiológico normal e neutro na fisiologia humana, na sua maioria benéfico para a manutenção da vida, como quando nos prepara para um jogging ou enfrentar uma banca de defesa de doutorado;

64

é somente em situações extenuantes e persistentes, desvantajoso à saúde. O estresse ioguico, por outro lado, revelado por R.T. Rao e Bhavanani como sinônimo de klesa, assim como os klesas-emoções negativas de Balsev, fica evidente se tratar de uma nova concepção criada no seio da religiosidade ioguica moderna. Há, logo, um hiato entre o que iogues e biólogos compreendem sobre a noção de estresse e emoções. Além disso, os iogues tendem a associar as manifestações psicofisiológicas de estresse e das emoções sem perder de vista as suas antigas crenças em corpos metafísicos e energias transfisiológicas como o demonstrei na subseção anterior (BHAVANANI, 2007, p.30-40), algo inadmissível no meio acadêmico.

Dois fatos interligados podem esclarecer melhor a contenda que busco expor entre o cenário aparentemente sereno que envolve o ioga e a ciência. A primeira diz respeito à resposta psicofisiológica de relaxamento que a ciência propala como resultado empírico dos ritos corporais ioguicos modernos, portanto, uma resposta “cientificamente” antagônica ao do estresse biológico, mas de estreita relação com a ideia de homeostase revelada anteriormente. E a segunda, reside na permanência da crença em energias tranfisiológicas, sobretudo prana, entre os iogues modernos (FULLER, 2008, p.133-150; SAMUEL & JOHNSTON, 2013). O relaxamento, resultado inequívoco das práticas ioguicas, pois legitimado pela fisiologia ocidental, e a crença em energias transfisiológicas são peças chaves na elucidação da questão klesa-estresse-emoção-ignorância e kaivalya-homeostase-conhecimento.

2.3.2 - Relaxamento

Walter Cannon alertava, ainda 1919, sobre as consequências fisiológicas que sofremos sob estresse, mesmo que em estado natural de sobrevivência, não se tratando de estresse crônico. Ainda assim, o processo digestivo, por exemplo, sofreria forte influência quando - ainda que mentalmente, e não apenas de forma ambiental – manifestamos certas emoções inatas. Isso diz que, quando com raiva, medo, fome e dor, nosso corpo reage também com a mesma resposta fisiológica do estresse, pois representam para o organismo, por milhares de anos de evolução humana, essas emoções foram associadas ao perigo da morte (CANNON, 1927).

Neil Jacobson, em 1932 compilava em seus livros títulos imperativos como

65

You Must Relax: Practical Methods for Reducing the Tensions of Modern Living, aonde alertava sobre a necessidade do momento de relaxamento para as tensões ocasionadas pela vida moderna. Eles construiu teorias importantes sobre os “Nervos da Guerra”, por exemplo, devido a sua preocupação como medo que assombrava na época, ou o excesso de estresse sofrido por aqueles que passavam horas trabalhando em hospitais de guerra e cuidando de soldados feridos (JACOBSON, 1934).

Para Petho Sandor, médico húngaro que desenvolve o método terapêutico do toque sutil e leciona na Pontíficia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Sandor percebeu enquanto tocava partes do corpo durante o atendimento em feridos da segunda grande guerra, uma benéfica resposta ao relaxamento. Assim, desenvolveu seu método psicoanalítico aonde o relaxamento ocupa uma posição de destaque em suas obras de psicologia. Ele analisa as comutações dos processos fisiológicos associados ao relaxamento: suas autoregulações psicofisiológicas, aquisição e manutenção de memórias, mas sobretudo, em como os processos de relaxamento atuam sobre a afetividade humana. O resultado clínico, segundo o autor, além do descanso em nível fisiológico de equilíbrio orgânico, atinge processos inconscientes que auxiliam na introspecção dos pacientes a reproduzir de forma construtiva antigas vivências, emoções e sentimentos, promovendo assim, novas coordenações e estruturações psicobiológicas (SANDOR, 1974).

O método de Sandor pretende pelo relaxamento progressive conduzir o paciente a experimentar “um outro modo de relacionamento consigo mesmo, e com o mundo circundante, e a enfrentar as tensões que lhe eram pouco conscientes” (Ibid., p.13). Por influência das couraças neuromusculares do caráter de W.Reich e da “energia psíquica” de G.Jung – dentre outros -, o autor visa pelo relaxamento, o paciente voltar a viver e a experimentar as situações que o angustiam, para que assim, “seja expectador de suas próprias vivências internas desatando ao mesmo tempo certas inibições, principalmente corticais, que podem se manifestar como crítica, ceticismo e intelectualização exagerada.” (Ibid.). Através das sessões psicoterapeuticas de relaxamento de Sandor, ele analisa as narrativas dos pacientes “nestes estados oníricos” conduzidos por ele, percebe que o contato dos pacientes, durante esses estados, possibilita a eles tomarem decisões assertivas em suas vidas, como comentado abaixo:

66

Vimos através da exposição [comentada extensivamente por Sandor em seu livro com pormenores cada conteúdo inconsciente resgatado durante as suas sessões de relaxamento], como [a paciente] entrou em uma longa e ininterrupta série de mutações e como no processo de liberação vem adquirindo a função diretora [da sua vida]. Transfere para si a responsabilidade de auto-direção, e notamos que assumindo-a, está ampliando sua consciência. Assim tornam-se conscientes os conteúdos em virtude da apropriação, assimilação, transformação dos elementos até então inconscientes. Isto significa um aumento e extensão do nível de integração, organização e utilização sempre mais produtiva, do próprio dinamismo psíquico (Ibid., p.18).

Assim como o ioga no Brasil o fará modernamente, o relaxamento aqui ganha contornos de uma técnica psicoterapêutica de acesso ao inconsciente e de um “processo de liberação” e com o poder de “ampliar a consciência”. Se Sandor se apoia no ioga ou ao contrário não temos como saber, mas que o relaxamento conquista um sentido de “integrar, organizar e utilizar” o conteúdo inconsciente reprimido para ganho de maior “dinamismo psíquico”, não há dúvidas. E serão esses atributos que, somados a corporificação e medicalização do ioga, transformarão o relaxamento em parte indissociável e importante no processo que acompanha qualquer prática de ioga brasileira. Não será coincidência que o relaxamento fará parte de todos os discursos de iogues e cientistas brasileiros.

A partir da década de trinta, como vimos, publicações de divulgação científica em fisiologia e biomedicina preocupam-se sobre como atenuar as angústias advindas do terror da segunda guerra mundial e das atribulações cada vez maiores dos trabalhadores dos centros urbanos que, a partir da revolução industrial, mas sobretudo no intuito de reconstruir a vida do estresse da violência humana alcançam popularidade entre os meios alternativos das sociedades ocidentais25 desejosos de transformação social. Com isso, a ciência fez a sua parte elevando o caráter benéfico do relaxamento, particularmente sobre os primeiros achados com meditadores e a elevação das ondas eletroencefálicas alfa, sabidamente associadas com profundos estados de relaxamento, portanto, associadas a diminuição da pressão sanguínea, dos batimentos cardíacos e baixa do metabolismo (BENSON, 2000). Com o ioga, mas também a partir do estudo de novas terapias trazidas como espiritualidades Nova Era,

25 The wisdom of the body: How the human body reacts to disturbance and danger and maintains the stability essential to life de Walter B. Cannon (1932); The Relaxation Response de Herbert Benson (1975); You Must Relaxation: Practical Methods for Reducing the Tensions of Modern Living de Neil Jacobson (1976), e Stress in the health and disease de Hans Seyle (1976).

67

descobre-se meios terapêuticos de baixo custo que poderiam ser estendidos a grandes populações.

Benson, através dos estudos preliminares de Walter Cannon, Jacobson, Seyle e Sandor, desenvolve a hipótese que, se nascemos dotados de um eixo do estresse para lutar ou fugir da raiva, medo, fome e dor, deveríamos também possuir um outro processo fisiológico antagônico a esse, responsável por reestabelecer o organismo ao estado de homeostase. A esse estado hipotético, o autor denominou de resposta do relaxamento, tese esta defendida em seu principal livro The Relaxation Response, com cursos ministrados na Universidade de Harvard até hoje. Concomitantemente, os trabalhos de Herbert Benson (ver BENSON, 2000) difundem a prática meditativa e a do ioga como promotores inequívocos à saúde da resposta do relaxamento, impulsionando a crença moderna do ioga como terapia de combate ao estresse e suas correspondentes emocionais por meio de práticas corporais específicas.

No entanto, toda essa fundamentação fisiológica da biomedicina ocidental, deveria fundamentar a total aniquilação do ioga como proposta soteriológica não preservá-lo como “caminho espiritual” em sociedades laicas e fundadas pela razão das ciências empíricas.

2.3.3 - Prana é real

Com a imbricação do ioga com o racionalismo e o empirismo da ciência moderna, o conceito religioso de prana, ao invés de desencantar-se, se ressignifica e ganha existência “real” a partir do Mesmerismo de Franz Mesmer e do conceito de orgone e das couraças neuromusculares do caráter desenvolvidos na psicologia de W. Reich (SINGLETON, 2005; SAMUEL & JOHNSTON, 2013). O psicólogo da religião William James ainda no início dos anos de 1900 e Robert Fuller atualmente, revelam que seria a fé em tal existência metafísica de energia corpórea a responsável pelo qual, os iogues atuais e os religiosos investigados por James, perceberem as doenças fundamentadas não na fisiologia apenas, mas em algum tipo de desequilíbrio energético sutil ou esotérico (JAMES, 1995, p.59-88; FULLER, 2008, p.133; p.143- 144).

Os klesas, originalmente, comportamentos pautados nos ditames hinduístas,

68

atualmente vêm ganhando interpretações corporificadas, como demonstramos e prana, como energia transfisiológica, exerce papel fundamental na permanência dos klesas como causa do mal associado ao estresse e emoções nefastas.

Atualmente, as práticas ioguicas permaneceram com o seu caráter de purificação do corpo aonde o foco está na obtenção, por meio delas, do livre fluir de prana. Como vimos em outras citações, é fundamental a crença em energias transfisiológicas por dois motivos: primeiro por permitir aos praticantes de ioga possam, eles mesmos, perceber a atuação dos klesas/Mal, pois a obstrução dos canais energéticos no corpo faz com que surja doenças, cansaço e fadiga, causas encarnadas da atuação nefasta dos klesas. Em segundo, mantendo a crença em prana, retira do saber científico qualquer possibilidade de secularizar o ioga. Em outras palavras, sendo o prana real sob o ponto de vista da fisiologia religiosa do ioga, reserva apenas aos líderes ioguicos a manipulação de sua força mágica na eliminação do sofrimento humano. Os cientistas podem investigar as repercussões fisiológicas da sua biomedicina, mas da cura dos klesas, apenas aos iogues se mantém esse poder.

Essa corporificação, seja como manifestação de doença ou em componentes emocionais, deslegitimaram as escrituras antigas do ioga, privatizando a sua análise pelos próprios iogues. Os líderes ioguicos, com isso, perceberam a perda de autoridade sob a sua comunidade em detrimento a ciência biomédica e, com isso, reformaram, como veremos, a causa do mal ioguico sob o manto da “ciência” e caminharam para o seu afastamento da religião hinduísta, erigindo os seus contornos de religiosidade própria e distinta, longe, tanto da nebulosa Nova Era, quanto da ortodoxia hinduísta, mas revelando para alguns, uma profanação do ioga.

2.4 - Profanação do ioga

Mark Singleton se aprofunda neste tema, tendo como marco teórico o artigo A salvação pelo relaxamento de W. James, e demonstra que o rótulo de “combate ao estresse” que as práticas do ioga moderno conquistaram, seriam consequência da imbricação do ioga com as terapias proprioceptivas ocidentais e não de sua origem hinduísta de comunhão com deus/Isvara, como exposta no IS e reveladas no capítulo primeiro. Segundo ele, o ioga em contato com o estilo de vida agitado das grandes

69

cidades do mundo ocidental teria direcionado a sua salvação para o relaxamento. Esse fato pode revelar uma corrupção da ancestralidade espiritual do ioga em detrimento a uma coletividade que não descansa, contribuindo dessa forma, com a ideologia capitalista do consumo e do trabalho (SINGLETON, 2005).

Não há dúvidas que o ioga moderno enveredou, como já expomos, para sua medicalização e as suas práticas como técnicas profanas em muitos setores da saúde. Por outro lado, pesquisas apontam igualmente que nunca existiu um “ioga puro”, e a tradição de ioga do seu período medieval - o hatha-ioga – seria a responsável (e não o estilo de vida moderno) pela maior valoração dada ao corpo em detrimento às suas escrituras clássicas (LIBERMAN, 2008, p.113). Assim, a influência social capitalista desenvolveu, sem dúvidas, no florescer do relaxamento como “produto” contemporâneo mais importante revelado pelo ioga. E a ciência, não o IS (Ioga Sutras), são a base intelectiva para isso ocorrer. No entanto, ao contrário do que Singleton mesmo afirma, esse fato poderia refletir não uma corrupção dos preceitos espirituais ioguicos clássicos, mas uma reforma soteriológica legítima dos seus antigos bens de salvação. A proposta de salvação ioguica, antes pautados exclusivamente nos ensinamentos hinduístas dos klesas, kaivalya e samadhi perdem o seu sentido religioso em meio a sociedades secularizadas e privatizadas religiosamente. Reflexo disso são os debates que ocorrem discutindo se o ioga de Patanjali teria mesmo influência do hinduísmo ou não seria fruto de um sincretismo de outras religiões como o Budismo (NICHOLSON, 2013). O Brasil, mesmo (aparentemente) laicizado, por sua própria característica cultural sincrética, pode revelar com maior nitidez as matizes religiosas dessa transformação em processo que autoriza iogues modernos a transformar os seus próprios bens de salvação.

O que podemos resumir da nossa discussão neste capítulo, é a conotação que os klesas assumiram no ioga moderno. A partir de 1915, fisiologistas ocidentais descobrem e nomeiam uma resposta orgânica natural acionada na raiva, no medo, na fome e na dor que denominaram de resposta de luta-fuga que aciona o eixo do estresse e rompe com o equilíbrio fisiológico do organismo, a homeostase. Mais tarde, os mesmos fisiologistas julgam haver uma igual resposta inata, mas oposta a do estresse que denominaram de reposta do relaxamento. Cria-se aí uma polaridade do estresse-Mal-sofrimento e do relaxamento-Bem-cura como uma experiência, mesmo que transitória, do Bem no microuniverso espiritual do ioga moderno. A homeostase,

70

seria o estado ideal, utópico, portanto, inalcançável, mas essencial para a vida humana.

O ioga quando importado da Índia para as grandes cidades ocidentais já encontra esse panorama e, talvez, apenas esteja adaptando e ajustando a sua fisiologia religiosa neste novo contexto. Admitindo esses fatos, nos é lícito supor porquê os klesas venham assumido a responsabilidade de causa o estresse-ioguico, o samadhi envolvendo-se com o relaxamento. Como explica o próprio Sandor, o relaxamento pode permitir acesso ao inconsciente e as mais profundas emoções e memórias.

71

Capitulo 3

IOGA NO BRASIL

3.1. As origens do ioga brasileiro a partir da história latino-americana

Não é tarefa fácil traçar um panorama histórico e social do ioga na América Latina. Sempre que buscamos referencias do ioga, invariavelmente, o encontramos descrito sem identidade própria e parte indistinta de algum outro fenômeno religioso. É como se o ioga apenas “emprestasse” partes da sua doutrina e práticas corpóreas para compor outras religiosidades e não possuísse o seu próprio microuniverso religioso de atuação (GUERRIERO, 2006; Id., 2014). O caráter mais terapêutico das práticas ioguicas são as que recebem o apelo maior do meio acadêmico. No entanto, para um praticante do ioga e cientista da religião já está bem documentado o ioga como possível fenômeno religioso autônomo em processo (DeMICHELIS, 2004; JAIN, 2014; GUERRIERO, 2014). Mas não foi sempre assim, o ioga dos seus períodos antigo e medieval era percebido como darsana hinduísta, o que significa pertença ao Hinduísmo. Um iogue rezando o pai-nosso, pais-de-santo fazendo surya- namaskar, daimistas cantando e iogues reconhecendo os seus mestres em terreiros de umbanda são cenários, sem dúvidas, do universo brasileiro26.

O ioga no seu encontro com o mundo ocidental sofre modificações, sobretudo da teosofia, da educação física, da biomedicina e da economia capitalista de consumo (SINGLETON, 2005). Isso fez com que emergisse o ioga postural moderno (DeMICHELIS, 2004) como uma prática religiosa do corpo (JAIN, 2014). O meu desafio, no entanto, está em construir não somente a origem do ioga brasileiro, mas mostrar que, ao contrário de países de língua inglesa, o ioga latino-americano recebeu influências sócio-religiosas diferentes destes, o que ocasionou reformas na sua proposta de salvação baseada na teoria dos klesas.

26 Ver relato de Swami Sevananda com a Umbanda no Brasil em SEVANANDA, S. 1953. Yo que caminé el mundo. Montevideo, Uruguay. Com relação a citação dos pais-de-santo realizando posturas ioguicas antes da gira faz parte de acervo do autor em entrevistas para esta tese. O umbandista em questão é Alexandre Cumino de São Paulo. A respeito de iogues rezando a referência está nos livros do Prof. Hermógenes, mas também em FRANCA, N.M.; RAHM, H.J. & ROQUE, M.X.C. 2007. Yoga crista e a espiritualidade de Santo Inacio de Loyola. São Paulo: Edições Loyola. Na imbricação mencionada do Santo Daime com ioga ver DAWSON, A. 2013. Santo Daime: A new world religion. London: Bloomsbury Academic, p.37.

72

O insulamento, que demonstrarei abaixo, que o ioga latino-americano passou ao longo de cem anos foi escolhido por ser um período pelo qual o ioga se desenvolve nos países latino-americanos sem qualquer legitimação indiana presente. Isso parece ter ocorrido por um afastamento natural - talvez devido a barreira idiomática (espanhol e português ao invés do inglês) - o que dificultou a vinda e permanência de gurus indianos e, consequentemente, no estabelecimento tardio de organizações ioguicas indianas27. Esse fato, por outro lado, não desautorizou o ioga a disseminar-se em países sul-americanos, pelo contrário, produziu crenças, gurus e sistemas de práticas sincretizados por elementos religiosos nativos e cristãos, tornando algumas expressões ioguicas únicas - como é o caso do ioga brasileiro Caminho do Coração do Swami Prem Baba, o SwáSthya-Yôga do Mestre DeRose e a Yogaterapia do Prof. Hermógenes.

Pela escassez de informações acadêmicas coletei o maior número possível de dados sobre as principais escolas e tradições ioguicas que chegaram às cidades sul- americanas nos próprios sites de divulgação das mais importantes organizações ioguicas presentes e, depois identifiquei os principais personagens nativos e estrangeiros que participaram (e participam ainda) na difusão do ioga como fenômeno religioso na América Latina. Por fim, verifiquei a veracidade desses dados com iogues representantes hoje dessas instituições e com livros, teses e dissertações acadêmicas sobre o assunto, além da coleta de dados advindas das minhas próprias entrevistas para esta tese (descritas no próximo capítulo). A partir da análise desses documentos, identifiquei cinco fases distintas que compuseram a identidade do ioga na América Latina: 1) Fase Místico-esotérico, 2) Fase visita à Índia, 3) Fase do ioga indiano conhecendo os iogues latino-americanos, 4) Fase da busca identitária e singular do ioga latino-americano e 5) Fase de tensão entre os iogues híbridos e os tradicionalistas no Brasil. A análise da configuração do ioga latino-americano ajudará a perceber os caminhos pelos quais aos iogues brasileiros reformam a teoria dos klesas emprestando termos e conceitos biomédicos.

27 Como veremos o ioga chega por volta de 1900 em países latino-americanos, mas o primeiro guru indiano a se instalar por aqui só ocorre em 1970 na Nicarágua enfrentando grande resistência de frentes católicas.

73

3.1.1. Fase místico-esotérico

Segundo informações colhidas dos sites dos próprios personagens e de outras fortes, o ioga desembarca na América Latina entre 1899-1900 com a norte-americana Katherine Augusta Westcott Tingley. Essa discípula de Blavatsky funda a primeira academia de ioga que se tem notícia na América Latina, o Academy, na capital cubana 28 (TINGLEY, 2012). O objetivo de Tingley será o mesmo dos próximos três personagens que aparecem neste início de ioga latino-americano: difundir os ensinamentos ioguicos por meio de denominações esotéricas, como a teosofia, o martinismo, a rosa-cruz e a maçonaria. Neste momento, pela ausência de iogues indianos que legitimassem o que era ou não da “tradição do ioga”, figuras carismáticas e controversas, em sua maioria pertencentes de instituições herméticas e ocultistas como Tingley, farão o ioga implantar-se no contexto latino-americano entre os anos de 1900-1950. A principal contribuição deles para o ioga é o caráter de terapia espiritual e hibridismo religioso que difundem entre os discípulos e iogues que formam.

Assim como Tingley, acredita-se que outro imigrante, o francês Léo Alvarez Costet de Mascheville (antes Jehel, depois swami Servananda) viaja a Argentina, Uruguai e Brasil, entre os anos de 1924-1947, arrolando ensinamentos secretos de uma ordem iniciática chamada de Grupo Independente de Estudos Esotéricos (GIDEE). O GIDEE apresenta o ioga como veículo de desenvolvimento espiritual, ao lado da cabala, astrologia, budismo e outros elementos ocultistas de origem martinista e da Associação Mística Internacional (AMO), ordem esotérica originada por outro iogue francês estabelecido no Uruguai, Cesar Della Rosa29.

Serge Raynaud de la Ferriere, o nosso último personagem da primeira fase ioguica latino-americana, parece ter chegado a Medellin/Colômbia em 1947, se propondo a difundir o ioga através da Grande Fraternidade Universal ou A Missão da Ordem de Aquarius. Em Caracas/Venezuela, Serge Raynaud inaugurará a primeira

28 http://www.britannica.com/EBchecked/topic/596592/Katherine-Augusta-Westcott-Tingley acessado 05/01/15; http://www.theosophy-nw.org/theosnw/theos/kt-selec.htm, http://libraries.ucsd.edu/speccoll/DigitalArchives/bp510_p633-h37- 1922/bp510_p633-h37-1922.pdf, http://www.theosociety.org/pasadena/sunrise/47-97-8/th-ktgk1.htm acessado 05/01/2015. 29 http://www.escuelainternacionaldeyoga.biz/fundador.html acessado 05/01/2015.

74

sede da sua ordem esotérica e um ashram com aulas gratuitas de ioga, repetindo o mesmo acontecimento na capital colombiana em 195830.

O ioga entre os latino-americanos, até meados dos anos de 1960, pode-se pressupor, ainda não possui características autônomas de uma espiritualidade singular, como já pode se perceber em organizações ioguicas indianas e importadas já para o ocidente - como de Kaivalyadhama, Instituto de Yogendra e outras - mas se mantém envolto pelo esoterismo de movimentos espiritualistas herméticos de ordens ocultistas. Tingley, Léo Alvarez, Cesar Della Rosa Bandio e Serge Raynaud de la Ferriere, influenciam a disseminação de um ioga esotérico e místico e exercem um papel quase mítico na história do ioga pelos países latino-americanos. Cesar Bandio, por exemplo, é reconhecido ainda hoje em alguns círculos ioguicos modernos, como discípulo direto de Ramakrshina e amigo pessoal do swami Sivananda - fatos estes não confirmados pelos discípulos contemporâneos de Sivananda e Ramakrishna.

Registros atribuem a Cesar Bandio, a fundação da primeira Federação Internacional de Ioga na França, Uruguai e Argentina, entre os anos de 1936-1941. Os fatos mostram também a importância de Léo Costet no início do ioga sul-americano. Em 1947, Costet teria realizado uma palestra sobre ioga, provavelmente em alguma ordem esotérica do Rio de Janeiro/Brasil, despertando o interesse do público conservador e católico, em especial do General Caio Miranda, que virá a ser o primeiro e grande difusor do ioga brasileiro, e depois do Coronel Hermógenes. Interessante registrar neste momento, que o iogue brasileiro DeRose citará em algumas passagens de sua autobiografia ter sido considerado - por iniciados de ordens ocultistas do Brasil e pela sincronicidade de sua data de nascimento (18/02)31 - a reencarnação de Ramakrishna, assim como se declarar simpatizante de Sivananda, a exemplo de Leo Costet. De alguma forma, a legitimidade de Léo Costet ainda é importante na configuração do ioga brasileiro, mesmo que atualmente seja fortemente combatido por uma nova geração de iogues mais ortodoxos que negam as ligações destes primeiros iogues europeus com tradições indianas.

Até aqui, podemos perceber que o ioga aporta na América Latina pelas mãos de místicos personagens que apresentavam um ioga, de certa forma, pouco envolvido

30 http://www.elfez.com.br/SRF.pdf acessado 05/01/2015. 31 DeRose (2006), p.27: “Encarnei em 1944, cento e oito anos após o nascimento de Rámakrishna”; Ibid., p.48: “Alguns ficavam cativados pela profundidade das técnicas que eu ensinava e pela seriedade que sempre marcou minhas atitudes. Esses extrapolavam a meu favor, declarando que eu devia ser a reencarnação de algum Mestre hindu”.

75

com o Hinduísmo e muito mais com as suas próprias ordens ocultistas de origem ocidental. Não são, nem indianos e muitos menos representantes autorizados por nenhuma escola de ioga tradicional conhecida ou confirmadas historicamente que trazem o ioga neste primeiro momento, mas sem dúvidas serão eles os responsáveis por apresentar e disseminar o ioga ao longo dos próximos sessenta anos em terras latino-americanas.

3.1.2. Fase visitando à Índia

Mesmo que em 1929, tenhamos notícia da visita do swami Yogananda, o primeiro iogue indiano a pisar em solo latino-americano32, o estabelecimento efetivo de organizações indianas de ioga só virá acontecer realmente a partir de 1950. Neste período agora, que marca os anos de 1950-1973 - portanto mais de setenta anos de ioga desde a chegada de Tingley -, serão os próprios latino-americanos que se aventurarão a traduzir o ioga da Índia para a sua cultura. Como exemplo do que buscamos identificar, em 1987, o colombiano Luz Fanny Vargas narra apresentar ao seu país a tradição de ioga Anaisa, recebido por ele os ensinamentos desta tradição ioguica em preparação de anos por lamas tibetanos, budistas e indianos33 - mas que ninguém tem notícia ou consegue confirmar, a não ser os seus próprios discípulos diretos - e por sucessivas experiências místicas no Peru. O iogue brasileiro Mestre DeRose teve o primeiro contato com seu mestre espiritual não-encarnado – Bhávajánanda - em um terreiro de Umbanda em 1969, no Rio de Janeiro. Enquanto Hermógenes, outra figura importante no cenário ioguico brasileiro, foi buscar, no mesmo período, confirmação de seu trabalho com o ioga em sessões espíritas com Chico Xavier, no qual foi amigo e professor de ioga.

Estamos no auge dos movimentos de contracultura e o ioga, que se popularizou entre os meios esotéricos-místicos mais formais das grandes lojas maçônicas e fraternidades esotéricas no período passado, ganha um público elitizado e interessado por uma vertente mais terapêutica-holística do que mágica-tradicional. Essa segunda fase vai sendo marcada por novas descobertas e uma nova geração de iogues latino-americanos que já iniciam sincretismos do ioga com religiões nativas e

32 http://yoganandaharmony.com/yogananda-history-chapter-1 acessado 05/01/2015. 33 http://www.yogamedellin.info/practica/centros-yoga/anaisayoga acessado em 05/01/2015.

76

cristãs, além de terapêuticas medicinais. Mas também por uma segunda geração carente de escrituras ioguicas, se aventurando agora a buscá-las diretamente na Índia.

Um dos primeiros iogues a se arriscar nessa jornada de busca pelo ioga indiano, é o chileno Don Benjamim Gusman. A partir de informações colhidas entre os seus próprios discípulos, Don Benjamin foi iniciado pelo iogue indiano Sri Janárdana da ordem ioguica Suddha Dharma Mandalam (SDM)34. O curioso é que este chileno nunca esteve na Índia. Ele recebeu toda a iniciação do SDM por cartas entre os anos de 1918-192435. Após esse período de extensas correspondências, Don Benjamim Gusman teria auferido o nome iniciático de Sri Vayera Yogui Dasa e autorizado a fundar, segundo seus discípulos, três organizações de sua ordem religiosa no Chile, no Brasil e depois no Uruguai ao longo das três próximas décadas.

Será somente em 1967, que uma sul-americana, a brasileira Ignez Novaes Romeu, retorna da Índia realmente com os ensinamentos tradicionais de uma escola ioguica moderna. Ignez estuda e se inicia no ioga de Kaivalyadhama do swami Kuvalayananda, considerado o primeiro iogue a iniciar exames laboratoriais e a aplicar as práticas rituais ioguicas como terapia com aval da ciência biomédica (ALTER, 2004). Outra brasileira a visitar a Índia neste período é Maria Helena de Bastos Freire que em 1973 conhece Sri K. Pattabhi Jois, discípulo Krishnamacharya e considerado “pai do ioga moderno” (SINGLETON, 2010). Agora, mesmo sem os principais gurus modernos do ioga visitando os países latino-americanos, diversos iogues da porção sul e central da américa vão absorver o conhecimento do ioga diretamente da Índia e de gurus legitimados por alguma tradição ioguica verdadeiramente indiana.

Os principais líderes do ioga latino-americano iniciam as primeiras interpretações e traduções elementares da doutrina clássica do ioga. Até então, o que os latino-americanos conheciam do ioga vinham dos ensinamentos orais da primeira geração de iogues descritos acima, portanto, sem nenhuma literatura expressiva do ioga.

No início dos anos de 1970, um grupo de iogues discípulos brasileiros de Léo Costet, visitam o ashram de Sri Yogendra na Índia - famoso por mesclar as práticas

34 http://sarvamangalamashram.blogspot.pt/2012/11/sri-vajera-yogui-dasa.html acessado 05/01/2015 35 Dados confirmados por documentos cedidos por Erick Schulz por email, discípulo da ordem SDM no Brasil.

77

de ioga com a biomedicina ocidental - e retornam ao Brasil com a ideia de unificar e institucionalizar todos os tipos de ioga praticados nos países latino-americanos. Esse movimento marca uma nova fase ioguica brasileira que visa agora a consolidação do ioga como prática regulamentada. O ioga, nesta próxima fase, irá ganhar popularidade e iogues mais ortodoxos - preocupados na crescente descaracterização dos valores espirituais do ioga - buscam institucionalizar o ioga.

3.1.3. Fase do ioga indiano conhecendo os iogues latino-americanos

Com o primeiro contato estabelecido entre iogues latino-americanos e os indianos, inicia-se uma inevitável comparação - e busca por legitimação - entre o ioga praticado por décadas de transmissão via as grandes ordens místico-esotéricas europeias - da primeira fase descrita acima - com o ioga de “tradição” ou linhagem de gurus “verdadeiramente” indianos, sobretudo dos iogues advindos da segunda fase latino-americana. Isso ocasiona, a partir de 1970, um movimento entre a comunidade ioguica sul-americana por regularizar o que era ou não ioga e quem estaria ou não autorizado a ensiná-lo. Assim, congressos e confederações de ioga começam a surgir nas principais capitais sul-americanas. É também nesta fase, que os iogues indianos começam a visitar a América Latina com maior interesse proselitista. As escolas e organização de ioga indianas já percebem o interesse pelo ocidente de sua religiosidade, algo que inicia com Vivekananda, como já mostramos anteriormente, mas o olhar agora também se volta a promissores países como Argentina, Brasil e Uruguai.

Mesmo o registro histórico desses acontecimentos venham de fontes não acadêmicas, em geral, de documentos fornecidos pelas próprias instituições, não nos furta de estabelecer o registro. De qualquer forma, acredita-se que depois do swami Yogananda, em 1929 no México, apenas em 1950, que pequenos círculos de meditação da Self-Realization Fellowship (SRF) do swami Yogananda se fizeram presentes na capital cubana36. Em 1970, o indiano swami guru Devanand Sarawati Ji Maharaj, discípulo de Mauna Swami, funda pessoalmente na Nicarágua a primeira organização ioguica latino-americana, a Sociedade Internacional da Realização

36 http://mhaiyoga.com/mhai-cuba/yoga-history acessado 05/01/2015

78

Divina (ou Escola de Yoga Ascética e Iniciática de Shankara)37. Alguns anos mais tarde, os discípulos mexicanos Sri Ramesh e Jose Luis Pallaviccini Norori fundam na capital mexicana, em 1974, a ordem do Centro Devanand de Meditação já com distintos traços sincréticos cristãos, como podemos ler nos pronunciamentos de Norori abaixo:

Cristo volverá para no irse nunca más ¡Cristo es un estado evolutivo que se alcanza cuando se Ilumina el quinto Chacra, un estado sublime de verdad, Amor, Armonía, Paz, nosotros en esta escuela y con la gracia de nuestro Amado Maestro, estamos en un estado más profundo.38

Entre os anos de 1971-1972, em viagem pela América Latina, swami , discípulo de Sivananda, estabelece as bases da no Uruguai, Colômbia, Brasil, Chile, Argentina, Cuba e Porto Rico. Mas será apenas em 1976, agora pelas mãos do swami Vishnudevananda que o primeiro instituto sul-americano de ioga de Sivananda - o Divine Life Society (DLS) – é fundado no Uruguai 39, depois na Argentina em 2000 e, posteriormente no Brasil em 200140. No Paraguai, em 1972, conforme fonte de seus próprios discípulos, o indiano Shrii Shrii Anandamurti, discípulo de Dada Haratmananda, lança as bases da Sociedade de Yoga Ananda Marga (AVADUTHA, 1996). Em 1975, swami Satyananda, discípulo de Sivananda, funda o Satyananda Ashram em Brasília/Brasil sob a orientação do brasileiro, iniciado na Índia, swami Hamsananda Sarasvati.

Ao longo dos anos de 1980, um fato peculiar pode representar o que pretendo salientar na próxima fase de implantação da espiritualidade ioguica brasileira. Ocorre um dos mais marcantes sincretismos do ioga com as religiões nativas latino- americanos, a fusão deste com o Santo Daime. Um terapeuta holístico e pertencente da religião brasileira Santo Daime veio configurando o que mais tarde se tornará a primeira fusão do ioga com uma religião nativa sul-americana, o Caminho do Coração, hoje com filiais nos Estados Unidos, Índia e Brasil (ver LABATE, 2000). Nesta mesma toada e período, outros dois iogues também irão configurar contornos

37 http://elmaestrodelpresente.org/category/maestros-de-sabiduria/ acessado 05/01/2015 38 http://elmaestrodelpresente.org/actual-guru-devanand-eloy/ acessado 05/01/2015. “Cristo voltará para nunca mais voltar. Cristo é um estado evolutivo alcançado quando se ilumina o quinto , um estado sublime de verdade, amor, harmonia, paz, nós, desta escola almejamos com a graça de nosso Amado Mestre de Luz, que está em um estado mais profundo.” 39 http://www.sivananda.org/montevideo/ acessado 05/01/2015 40 http://www.sivanandayogatradicional.com.br/index.php?pgref=quemsomos acessado 05/01/2015

79

bem brasileiros, como a Iogaterapia do Prof. Hermógens que mescla muito bem elementos cristãos, espíritas e da medicina holística e o SwáSthya Yôga do Mestre DeRose que, mesmo influenciado por ordens ocultistas, trilhou um caminho ortodoxo no ioga. A justificativa para o seu “tradicionalismo” reside na codificação que recebeu através de processos mediúnicos de um ioga pré-védico, portanto, antes até mesmo do IS de Patanjali. No entanto, mesmo que velado, é possível identificar fortes elementos da magia umbandistas em seus discursos e construções espirituais ioguicas, como a utilização de amuletos e diversos processos de “proteção espiritual”, que são ausentes na literatura do ioga moderno norte-americano e europeu, por exemplo. Os paradoxos e ambivalências são uma característica do ioga brasileiro, assim, precisaria de uma outra tese para me aprofundar nas influências específicas que cada líder do ioga brasileiro recebeu para configurar o ioga que professa. De qualquer modo, nos concentraremos na dialética que nos interessa aqui entre saúde-salvação e as transformações soteriológicas em samadhi, kaivalya e os klesas.

Parece lícito estimar que nesta terceira fase, entre os anos de 1950 e meados de 1980, o ioga na América Latina começa a conhecer e se aprofundar com o ioga advindo da Índia propriamente dita e a desenhar o que os acadêmicos estrangeiros denominaram posteriormente de ioga moderno (DeMICHELIS, 2004), mas com fortes nuances do sincretismo religioso brasileiro.

3.1.4. Fase da busca identitária e singular do ioga latino-americano

A partir da década de 1970, o ioga na América Latina já formou os seus próprios gurus e importou diversas organizações e linhagens do ioga moderno. Agora, os iogues latino-americanos buscam compor a sua própria identidade. Neste tempo, nasce uma luta por quem possui ou estabelece melhor as regras de conduta de um professor e escola (ou linhagem) de ioga. Assim, inúmeras associações, federações e confederações tem início e marca esse quarto período ioguico latino-americano.

O ioga agora, especificamente entre os anos de 1980-1990, ganha grande popularidade e corporifica sobremaneira as suas práticas corporais, se confundindo entre uma prática de educação física, técnica terapêutica ou atividade religiosa, como em outras partes do mundo (SHAVER, 2010). No Brasil, o governo federal entra no

80

congresso nacional visando incluir o ioga como método exclusivamente físico, o que desautorizaria os líderes do ioga “formarem”41 seus próprios professores/discípulos e ministrarem suas aulas sem antes passar por uma inspeção federal. Em outras palavras, essa proposta legitimaria o Conselho Federal de Educação Física (CONFEF) para fiscalizar as práticas ioguicas, tornando totalmente laico o exercício de lecionar ioga no país.

A contenda causa grande repercussão na comunidade ioguica latino-americana e se resolve estabelecendo entre as duas partes - governo brasileiro e comunidade ioguica brasileira - que o ioga não poderia ser fiscalizado por nenhum órgão governamental, pois se trataria de uma atividade filosófica-religiosa e não exclusivamente corporal. Hoje em dia, a discussão está sob outro ângulo: a inclusão ou não do ioga como terapêutica não-convencional no Sistema Único de Saúde brasileiro (ver SIEGEL, 2010). No entanto, essas propostas vão, aos poucos, minando a hegemonia da vertente ioguica híbrida e permitindo a ala mais tradicional do ioga brasileiro levantar a sua voz.

Esses fatos sociais registram o espírito desta fase histórica do ioga na América Latina, marcada pela desavença e conflitos de identidade do papel e legitimidade do ioga professado. O episódio do CONFEF ocorrido no Brasil pode ser compreendido como o marco de uma crise identitária para os iogues brasileiros, que buscam agora estabelecer as diretrizes e delimitações da sua prática, ensino e formação de novos professores de ioga no cenário religioso do país. O ioga já não é mais incipiente e começa a se popularizar entre a população brasileira, sobretudo é percebido pelas religiões dominantes que imprimem as suas retóricas de aniquilação (USARSKI, 2001) sobre a proposta religiosa alternativa no qual o ioga representa agora 42 (APOLLONI, 2004).

Parte dessa busca por uma identidade se faz nas inúmeras tentativas dos iogues se reunirem em torno de federações e confederações nacionais, latino- americanas, sul-americanas e internacionais. A história credita ao iogue francês Cesar Della Rosa, o idealizador da primeira federação de ioga na América Latina, no Uruguai ainda em 1936, como vimos. Mas, pode-se pensar que o seu nome apareça

41 Termo insider que significa introduzir a um iniciante os ensinamentos e práticas corporais do ioga. 42 http://blog.comshalom.org/carmadelio/29260-pode-um-cristao-praticar-yoga acessado 05/01/2015, https://laverdadysololaverdad.wordpress.com/2011/06/30/15-razones-del-por-que-el-yoga-es-sumamente-peligroso/ acessado 05/01/2015

81

como “fundador” apenas para legitimar a autoridade dessas fundações que começam a despontar agora nesta última fase.

Esses núcleos seriam as primeiras tentativas de reunir as diferentes escolas ioguicas latino-americanas sob a mesma égide de pensamento. Em 1975, a brasileira Maria Helena de Bastos Freire estabelece uma associação internacional que reuniria todos os professores de ioga, a International Yoga Teachers Association (IYTA), muito motivada pelo o que assistiu no congresso de ioga que participou na Austrália em 1971. A partir disso, inúmeros outras associações, uniões nacionais e congressos vão sendo realizadas em toda América Latina que perduram até os dias de hoje, todavia a ideia das federações nunca ganhariam a força que pretendiam possuir.

Mesmo sem o sucesso ou adesão requerido, a partir de 1985, o argentino Fernando Estevez Griego (ou swami Maitreyananda), ex-discípulo do tradicionalista Mestre DeRose, associado a outros iogues latino-americanos funda a União Latino- Americana de Yoga (ULAY) no intuito de agrupar as já existentes federações e associações nacionais de ioga como da Argentina, Brasil, México, Chile, Colômbia, Uruguai, Cuba e Quebec, além de promover intercâmbios e formar o Conselho Latino-Americano de Yoga (CLAY). A partir de agora, Griego articula-se com diversos outros líderes de federações de ioga mundiais para fechar acordos entre elas e a ULAY. O intento de Griego gera frutos e, em 1987, ocorre o primeiro de inúmeros congressos latino-americanos e mundiais de ioga, em geral, tendo ele mesmo - Griego ou seus amigos e discípulos - na presidência das bancas e das federações. Nenhuma delas, entretanto, conseguem estabelecer um diálogo integrativo entre todas as diversas linhagens e denominações de ioga moderno existentes no território latino- americano43.

Outro aspecto do ioga neste período, e que se torna o grande propulsor do ioga e fonte de rendimentos financeiros, é o estabelecimento de cursos regulares de formação de professores de ioga44. Um dos primeiros cursos de formação, ocorre em 1981, através de um romeno radicado no Brasil, Georg Kritikós (ou swami Sarvananda), discípulo de Léo Costet no Rio de Janeiro/Brasil (SANCHES, 2014). A partir do sucesso desses cursos de formação, aumenta-se a demanda de professores de

43 http://www.federacaointernacionaldeyoga.org/history.html acessado 05/01/2015 44 Um curso de duração média de um ano que autoriza os seus “formandos” a lecionar o ioga a outros. O custo do curso é bastante elevado, o que sustenta financeiramente grande parte dos líderes de ioga latino-americanos.

82

ioga e a popularização do ioga (e vice-versa). Parte desse público de professores do ioga moderno se tornam devotos de seus líderes espirituais responsáveis pela sua formação, diferenciando o ioga moderno dos demais novos movimentos religiosos Nova Era de característica “errantes”45 (NUNES, 2008). Essa característica de não- errância pode ser um indicativo do ioga agora já ir se configurando como uma possível denominação religiosa autônoma e, por isso, responsável por constituir contornos mais definidos de sua religiosidade, como legitimação de seus líderes, mas também de apresentar uma proposta soteriológica adaptada a cultura que se insere agora. As suas escrituras vão sendo ressignificadas pela biomedicina, como vimos no capítulo segundo, e os klesas ganhando contornos fisiológicos biomédicos por décadas no Brasil da associação do ioga com a cura e terapia de doenças.

Outras duas formas características do ioga moderno brasileiro, talvez pela escassez ainda de gurus indianos, se concentram nas regulares viagens à Índia e a outros locais sagrados do mundo (como Machu Pichu, Japão, Jerusalém e Nepal) promovido pelos seus novos líderes espirituais, e comercialização de livros, cd’s e dvd’s e outros produtos, como divulgação de suas propostas espirituais e sustento financeiro. Essa proliferação de produtos ofertados pela demanda do ioga unido ao fator sincretismo religioso, fez surgir uma tensão entre iogues ortodoxos ou “tradicionalistas” e iogues mais tolerantes e incentivadores dos “hibridismos” do ioga com outras religiões e práticas. Dois exemplos desses hibridismos que comporão a última fase ioguica são as novas escolas que veem se estabelecendo, como o AcroYoga de Gabriel Watel e o Yoga Restaurativo de Miila Derzett46. O próximo estágio se aprofunda no momento atual do cenário ioguico brasileiro.

3.1.5. Fase de tensão entre os iogues “híbridos” e os “tradicionalistas” no Brasil

Com o fracasso da tentativa de unificação de diversas denominações de ioga em federações e alianças, além do evidente desmembramento de elementos das suas práticas rituais - como a meditação e os ásanas – alocados em outros fenômenos religiosos e investigados pela ciência biomédica, como em outros países (ALTER, 2004). O ioga nesta última fase pode ser compreendido de diversas formas, seja

45 Ver o termo “errância” em AMARAL, 2000. 46 http://acrobrasil.com/ acessado 10/01/2015; http://yogarestaurativa.blogspot.com.br/ acessado 10/01/2015.

83

técnica terapêutica laica, exercício físico ou ritual terapêutico espiritual. DeMichelis nos ajuda a compreender melhor este período alocando o ioga moderno em cinco disposições: 1) Ioga Moderno Psicossomático de Vivekananda, 2) Ioga Moderno de inspiração Neo-Hinduísta, 3) Ioga Moderno Postural, 4) Ioga Meditativo e 5) Formas Denominacionais de Ioga (DeMICHELIS, 2004). Há de certa forma, principalmente dentre as diversas denominações modernas do ioga mais tradicionalistas, uma percepção de “ressignificação simbólica” de suas escrituras antigas em andamento (sobretudo pela ciência biomédica) (SIMÕES, 2011) e buscam resgatar os valores espirituais “originais” neste estágio atual.

O ioga, antes um dársana ou “escola filosófica” hinduísta ortodoxa (JOHNSON, 2010, p.93-94), parece revelar-se agora um misto de terapia de relaxamento aonde a ciência, mais do que o Hinduísmo (NICHOLSON, 2013), mostra-se legitimadora do seu discurso em sociedades modernas (ver ALTER, 2004; SIMÕES, 2011).

Nicholson analisa em seu artigo Is yoga hindu? discute a legitimidade do ioga moderno. O autor começa citando uma campanha que ocorreu nos Estados Unidos, da comunidade hinduísta, sobre a descaracterização do ioga, pois, segundo eles, seria uma prática genuinamente hinduísta que estaria sendo deturpada pelo ocidente em aulas profanas de ginástica. Por outro lado, o autor nos lembra que em 1989, Joseph Cardinal Ratzinger alertava a todos os cristãos que a fusão da meditação cristã com outras formas não-cristãs poderia ser examinada como um perigo a fé por induzir ao sincretismo. O próprio Patanjali é suspeito, por alguns autores, de não ser tão hindu assim no seu IS. Nicholson assim, faz uma viagem histórica pelas influências ioguicas de sua origem até o momento presente e conclui ser muito difícil determinar um só influência religiosa “legítima”. O fascinante de seus argumentos está na posição de marginalidade que a história colocou os iogues medievais – os hatha-iogues – por sua verve contrária a autoridade dos Vedas e da autoridade bramânica, mas também pela aproximação da tradição hatha-ioguica dos Nathas com os ensinamentos dos sufis, um ramo de místicos islâmicos.

Porém, quando nós olhamos os caminhos em que o yoga foi descrito nos textos entre os séculos XIV-XVII no nordeste da Índia, frequentemente nós encontramos formas do que nós agora pensamos como um “ioga hindu” sincretizado com as práticas islâmicas dos sufis. Eles parecem ter ímpeto tansgressor desta borda para os dois lados: no lado hindu, pelo grupo

84

associado como Hatha-Yoga conhecidos como Natha iogues, e entre os muçulmanos, pelos sufis das ordens Chishti e Shattari. O fenômeno dos muçulmanos praticando yoga na India continuou bem até o período da colonização inglesa.

Nicholson conclui que a proposta do “Yoga Cristão”, assim como da junção do Hatha-Ioga com os sufis, mais do que sinal do apocalipse ou de Kali Yuga (era das trevas no hinduísmo), deveria ser considerada algo positiva, pois conclui: “nós estaremos melhor se a considerarmos uma promissora nova confluência e não uma corrupção da sua religiosidade”. No Brasil, as influências distintas também ocorreram como nos tempos passados descritos por Nicholson. Destacam-se neste período duas linhas bem distintas de atuação do ioga no Brasil. A primeira descendente daqueles primeiros místicos que trouxeram o ioga para terras latinas da América. Deles, herda- se o aspecto do ioga como terapia espiritual que figuram em iogues como Prof. Hermógenes e swami Prem Baba no Brasil, e Eduardo Pimentel, atual presidente da associação cubana de ioga. Estes se mostram bem mais “híbridos” e tolerantes aos sincretismos modernos do ioga e elevam os seus aspectos iogaterapêuticos. A segunda linha de iogues, são os iogues ortodoxos tradicionalistas que iniciam um movimento forte de resgate da cultura ioguica “original”, considerando-se os verdadeiros responsáveis portadores da “essência do ioga”. Mesmo que também tenham, como vimos, sincretizado com elementos religiosos de seus países e não neguem os benefícios terapêuticos demonstrados pela ciência, julgam-se os responsáveis por eliminar as permissividades advindas da ala híbrida do ioga, como veremos mais explícito nas narrativas do capítulo 4.

A partir desse contexto híbridos versus tradicionalistas, o ioga brasileiro veio delimitando naturalmente os seus contornos singulares, e revelando iogues mais fiéis ao seu guru ou professor de “formação” como uma tendência a partir dos anos de 2000 no Brasil (NUNES, 2008). Ao mesmo tempo, despertam discussões sobre o papel social e psicológica das práticas do ioga, seja de terapêutica ou ginástica laicas (FERNANDES & DA ROCHA, 2005), chegando até mesmo alguns iogues defenderem-se politicamente por sua independência da educação física (como revelamos anteriormente), o que favoreceu alguns afirmarem o seu caráter vivo de sincretismo com a religiosidades brasileiras, fomentando algum tipo novo de espiritualidade (GNERRE, 2010).

85

3.2. Ioga para Nervosos de Hermógenes versus Ioga para Normais do DeRose: iogaterapeutas híbridos e os iogues tradicionalistas

Em estudo recente, o historiador Raphael Sanchez disserta sobre as representações do ioga no Brasil sob a figura de Hermógenes e DeRose. A dissertação de Sanchez em suas considerações finais demonstra como a mídia brasileira – a partir da análise de capas das duas maiores revistas direcionadas ao público ioguico no país - “demonizou” o tradicionalismo defendido por DeRose enquanto percebe em Hermógenes o “mais querido e referência espiritual” no país (SANCHEZ, 2014).

Durante os anos de 1900-1960, o ioga brasileiro permanecia circunscrito a meios esotéricos das grandes fraternidades ocultistas, predominantemente da elite brasileira e nada conhecido do público em geral. Era um ioga sem características próprias e fazendo parte de uma colcha de retalhos mística e mágica. A partir dos anos de 1960-1990, o ioga brasileiro foi construindo a sua própria identidade, aonde o aspecto terapêutico-cristão-espírita de Hermógenes sobressaiu-se ao ortodoxo- mágico-hinduísta de DeRose.

As trajetórias de Hermógenes e DeRose possuem similaridades. Ambos desenvolvem seus trabalhos com o ioga no Rio de Janeiro e, apenas da diferença de idade, são contemporâneos. Os dois também publicam muitos livros e se dedicam com afinco na divulgação do ioga com distintas particularidades e não possuem um guru ou mestre de referencia propriamente dito, que os indiquem a seguir uma “tradição” por assim dizer. A diferença mesmo reside na posição ideológica que adotam.

O Prof. Hermógenes foi um capitão da reserva do exército brasileiro que aos 35 anos de idade, em 1955, é diagnosticado com tuberculose. O ioga entra nesse período, como é descrito em bibliografia (CARUSO, 2012, p.18). Hermógenes dedica-se, durante o repouso obrigatório para o tratamento, lendo, relaxando, meditado, autossugestões e vivências espirituais. Em 1960, lança o seu primeiro livro, Autoperfeição com Hatha Yoga e em 1962 abre a Academia Hermógenes. Como não existia literatura sobre ioga e muito menos, como dissemos, líderes de ioga autorizados por qualquer tradição indiana, as primeiras leituras de Hermógenes foram

86

as obras Sport et Yoga, de Selvarajan Yesudian e Elisabeth Haich e The Yoga System of Health and Relief from Tension, de Yogi Vithaldas (Ibid., p.35). A perspectiva medicinal do ioga foi porta de entrada para Hermógenes que foi revelando a dialética cura-salvação até o final de sua vida.

Desejo tirar de você a ansiedade por curar-se depressa, mostrando o andamento da libertação. A cura demasiado rápida, em muitos casos, é ilusória. Não pretendo para você uma frustradora pseudocura. O que realmente lhe convém é cada vez uma dose maior de sattvidade [refere-se aqui ao conceito de sattva que já comentamos e associamos ao estado de homeostase], de paz, de integração de si mesmo e maior penetração nos planos mais divinos de seu ser (HERMÓGENES, 2011, p.81).

Outra forte aproximação para o ioga praticado e disseminado por Hermógenes é a do sincretismo com o cristianismo e espiritismo. Hermógenes é hábil em alinhavar os conceitos da teosofia com o ioga, budismo e Jesus. Seus livros como Yoga caminho para Deus (1975), Superação (1975), Yoga, paz com a vida (1978), Convite a não-violência (1983), Deus investe em você (1985), O essencial da vida (1989) e Viver em Deus (1992), representam a tônica do hibridismo que queremos revelar como diretriz do ioga que professa (SANCHEZ, 2014, p.51-53). Além do cristianismo, Hermógenes estabelece um vínculo de discípulo do guru indiano Sai Baba, tornando-se o principal difusor da mensagem do mestre no Brasil e Portugal. Em sua biografia, relata-se o aparecimento da silhueta de Sai Baba por trás do iogue brasileiro (CARUSO, 2012, p.95). Há o registro também de carta psicografada por intermédio de Chico Xavier, do espírito Bezerra de Menezes endereçada a Hermógenes, confirmando “que o seu trabalho tem a ajuda de uma elevada equipe espiritual de apoio” (Ibid., p.73).

Essas e outras referências de renome espiritual no Brasil e no mundo, vão gabaritando um iogue brasileiro, sem tradição legitimada no contexto ioguico, a justificar e autorizar o seu discurso iogaterapêutico:

Na pessoa nervosa, os “corpos” ou “planos de ser” se encontram em desarmonia. Seus nervos e glândulas estão em desarranjo. O estresse pode ter origem na perturbação da economia energético-vital. Pode ser gerado por emoções em conflito, bem como resultar de estarmos afastados dos níveis divinos do Espírito. Pode ser que tudo isso junto, interagindo, é que mantém o sofrimento. Yoga é a redenção desse sofrimento, mercê de seu poder hamonizador e reequilibrante. Onde reina o caos, o yoga leva o cosmo. Razão por que se constitui salvação contra o nervosismo. Se você não é nervoso, salva-o, preventivamente. Se já o é, salva-o curativamente. Nervosismo é desarmonia. Yoga é harmonia. Yoga e estresse não coexistem

87

(HERMÓGENES, 2011, p.45).

De um modo geral, como mesmo afirma Sanchez, são muitas as frentes que buscam construir a imagem de Hermógenes em torno de um líder ioguico legitimado (SANCHEZ, 2014, p.58).

O iogue DeRose, por outro lado, foge dos sincretismos religiosos, apesar das aproximações que desenvolveu no seu início com a sociedade Rosa Cruz e presença em uma sessão de umbanda, relatado em sua própria autobiografia (DEROSE, 2006, p.45-94). No entanto, o que fica presente é a sua ortodoxia com relação aos hibridismos de Hermógenes:

O Yôga (yoga) proporciona saúde e vitalidade, mas se pessoas enfermas ou idosas tentarem praticar, terão que satisfazer-se com uma interpretação tão extremamente simplificada e adaptada que termina comprometendo a autenticidade e transformando-se numa outra coisa que não pode mais chamar-se Yôga (yoga), nem tem a mesma proposta.47

O iogue DeRose busca fundamentação de sua tradição (hoje método) em estudos, segundo ele, de antigos textos (que ele nunca revela) que eles mesmo codifica e que afirma terem origem pré-védica. Com essa retórica, anula qualquer tipo de especulação de sua veracidade. De qualquer modo, DeRose toma um caminho totalmente oposto a que Hermógenes enveredou: em um modelo tipo “empresarial” aonde seus professores/discípulos se filiam a sua escola/tradição/método e são proibidos de ler livros não autorizados por ele e ameaçados de expulsos imediatamente caso infrinja qualquer regra. O seu discurso é altamente sectário portanto, ao contrário de Hermógenes que nem curso de formação desenvolveu formalmente, todos os seus professores foram formados pelo contato direto com as aulas dele. Segundo o próprio Sanchez:

Por meio de um discurso de autenticidade, DeRose criou elementos que lhe deram suporte para negar as outras modalidades, vistas como formas deturpadas de Yoga, cuja memória não merece ser acessada. Uma memória impedida que pode ser nociva e comprometedora dos estudos daqueles que a acessarem. Dessa forma, recomenda não frequentar outras escolas, outras

47 Disponível em: http://www.uni-yoga.org/cultura-e-entretenimento/tudo-sobre-yoga/#iten7. Acessando em 30/06/15.

88

egrégoras e não experimentar outros métodos. (SANCHEZ, 2014, p.64)

Dessa forma, DeRose deslegitima o iogaterapia de Hermógenes como “formas deturpadas de Yoga”, e considera o seu método (Swasthya Yôga) “pré-védico”, portanto, numa posição irrefutável, pois se trata de um conhecimento oral antes de qualquer escritura que a possa autorizar. No entanto, a partir do final de 1990 e início dos anos 2000, o Brasil recebe, com maior volume, institutos e organizações de ioga com base na Índia e outras denominações norte-americanas. Com a abertura de novos modelos de ioga, por assim dizer, a autoridade desses dois grandes líderes de ioga no país decresce, culminando com DeRose retirando em meados de 2004 o nome ioga de suas escolas e optando por “Método DeRose de qualidade de vida”. O ioga, como os próprios entrevistados no próximo capítulo revelarão, passa por uma transição no Brasil, pois o próprio DeRose agora, mais do que sair do microuniverso ioguico brasileiro, parece não mais acreditar no ioga como via salvífica. Seu método agora se utiliza também de outras técnicas para “o desenvolvimento pessoal”, como ele mesmo diz. Será o ioga híbrido e permissivo de Hermógenes vencendo a ortodoxia e elitismo de DeRose ou apenas a virada de mais uma fase nos ajustes e acomodações do ioga latino-americano?

Para compreender o sucesso de um e o fracasso de outro, é necessário antes partir de uma outra perspectiva que não revelamos: não há vencedores e perdedores. O ioga, como estrutura religiosa autônoma e ainda em processo, mantém a sua lógica a partir do jogo entre iogues híbridos e ortodoxos. Dito de outra forma, sem a permissividade sincrética dos híbridos, personalizado na figura do Prof. Hermógenes, o ioga não teria se popularizado e galgado os laboratórios de fisiologia científicos. Por outro lado, os sincretismos advindos dos iogues híbridos poderiam ter diluído os ensinamentos ioguicos em meio as mais diversas construções, se não existissem os iogues tradicionalistas que freiam aos avanços híbridos e promovem, através do sectarismo e mecanismos retóricos de deslegitimação de discursos, o resgate e manutenção de conceitos caros ao ioga. O contorno que desenha e determina certa estrutura do ioga brasileiro é assegurado pelos discursos contraditórios e ambivalentes de híbridos e tradicionais.

Enquanto DeRose deixa claro que ioga “é qualquer metodologia estritamente prática que conduza ao samádhi”. Hermógenes afirma que: “O verdadeiro religioso

89

faz do relaxamento um ato essencialmente místico. Para ele o relaxamento é um modo prático, concreto e vivencial de rezar. No relaxamento, confia-se em Deus”. Com isso em mente, no próximo capítulo, revelarei que a reforma na proposta salvífica do ioga brasileiro desenvolveu discursos díspares, mas inclusivos. Em outras palavras, o hibridismo de Hermógenes e o tradicionalismo do DeRose, diferentes no formato, são complementares no microuniverso ioguico brasileiro. Enquanto a ala híbrida vincula- se com o catolicismo popular brasileiro e biomedicina ocidental e pouco com os elementos hinduístas; os tradicionalistas estão em constante alerta a traduções do ioga sem o devido respaldo das suas escrituras.

Talvez a reforma soteriológica em processo no país se fez necessária - período este que os iogues entrevistados a seguir se reportarão como “fase de transição” - para desenvolver a versão iogaterapêutica de Hermógenes, hegemônica no país por mais de setenta anos, menos pragmática devido a sua aproximação e apropriação da ciência. Assim, hoje, a teoria dos klesas, a experiência mística do samadhi e o estado libertador de kaivalya não pareçam mais estar fundamentadas nas escrituras tradicionais hinduísta tão-somente, mas estabelecendo-se dialeticamente entre saúde- salvação. As entrevistas a seguir confirmarão aprofundarão essa discussão.

90

Capitulo 4 O IOGA BRASILEIRO: CONVERSANDO COM IOGUES E CIENTISTAS SOBRE O MAL, O BEM E VIAS DE SALVAÇÃO MODERNAS

4.1. Considerações preliminares

O ioga, apesar de sua visibilidade nacional, foi objeto de escassas investigações no Brasil e América Latina sobre os princípios espirituais que o norteiam contemporaneamente. Talvez por essa deficiência acadêmica, é bastante comum, mesmo entre antropólogos e sociólogos, envolver o ioga dentro de novas denominações espirituais e sem os limites que o singularizam. Defendo aqui o ioga com características próprias e, no Brasil particularmente, a Iogaterapia do Prof. Hermógenes prevaleceu como hegemônica ao longo de mais de cinquenta anos sobre o Swasthya yôga do Mestre DeRose. Mas isso não significa que esse microuniverso espiritual seja monolítico. Para facilitar a minha investigação por meio de entrevistas, adotei o ioga brasileiro em três grupos de agentes ou interlocutores ideais: 1) professores, 2) mentores e 3) cientistas.

O primeiro grupo de agentes é formado pelos professores que operam no microuniverso religioso do ioga brasileiro ministrando aulas regulares em academias, studios e espaços exclusivos. Estes são os principais divulgadores do grupo mentores, pois mesmo que alguns não se sintam “discípulos” destes, propalam, vendem e compram produtos proselitistas para serem divulgados aos seus alunos. O segundo grupo é constituído pelo o que eu denomino de mentores do ioga. Estes são os principais responsáveis por conservar, reformar, construir e disseminar os princípios espirituais ioguicos no Brasil. Os mentores se diferenciam do anterior por: 1) organizarem os seus próprios cursos de formação de professores de ioga, dessa forma, renovando também os divulgadores da sua própria espiritualidade, tradição, método ou escola ioguica entre alunos/praticantes; 2) os mentores também detém o poder de fomentar seus ideias ioguicos através da produção e distribuição de seus próprios produtos de ioga, como workshops, kirtans ou satsangs, livros, cd’s, dvd’s e etc; e 3) por meio de retiros, viagens e/ou peregrinações a lugares especiais ao microuniverso do ioga - como Índia, Japão, Machu Pichu, Nepal, Tibete e outros - conduzem alunos e professores de ioga promulgando os princípios ioguicos que professam.

91

Durante as minhas primeiras entrevistas, no entanto, percebi que o grupo cientistas que investigam as práticas ioguicas como terapêuticas também contribuíam com a divulgação do ioga e de suas práticas corporais. Serão esses agentes, ao lado dos mentores, que justificarão a eficácia das práticas do ioga entre os alunos e professores. Senti a necessidade de incluir, então, o grupo cientistas, pois identifiquei também uma forte presença de elementos da ciência nos discursos dos mentores.

Poderia inclusive ter incluído um quarto grupo, o de alunos/praticantes, mas entendo que estes, mesmos mais numerosos (obviamente), atuam como consumidores religiosos do que determinantes na construção e manutenção de novos bens de salvação como os agentes anteriores. Se a minha pergunta fosse outra, provavelmente a inclusão destes seria imprescindível. Outro ponto a não considerá-los, é o comportamento difuso e errante que ainda prevalece neste grupo - apesar de estar em processo de transição. A categoria alunos/praticantes cessam, algumas vezes, esse comportamento (difuso e errante) quando ingressam em algum curso de formação, mas neste momento, deixam de agir como alunos/praticantes e são autorizados à categoria de professores ou mesmo mentores, dependendo da postura que exercerem no microuniverso ioguico brasileiro.

4.2. O universo da pesquisa

Compreendo que as três categorias acima (professores, mentores e cientistas) funcionam de forma orgânica - e não institucional – permitindo coesão ao ioga brasileiro como entidade espiritual autônoma. Dito em outras palavras, estes agentes organizam e dirigem o ioga como uma estrutura religiosa “invisível”. Ao contrário da Índia, Europa ou Estados Unidos, aonde tradições e escolas modernas de ioga se instalaram com toda a legitimidade de seus líderes instituídos por linhagens ancestrais, o ioga na América Latina, como mostramos na sua história, precisou organizar a sua própria estrutura que o impedisse de romper seus limites de fenômeno religioso singular. Essa estruturação legitima, interpreta e constrói suas próprias doutrinas e sistemas de atos e está baseada entre duas instâncias de pensamento ideias: iogues híbridos - na figura do Prof. Hermógenes - e tradicionalistas - na figura do mestre DeRose. Como descreverei em próximas subseções, a história dos meus

92

entrevistados vai se configurar como discípulos diretos, dissidentes ou simpatizantes do ioga híbrido ou tradicionalista de alguma forma.

Escolhi assim, dez iogues do grupo mentores e mais três cientistas. A escolha por esses dez iogues obedecem a importância destes na configuração e legitimidade do discurso do ioga brasileiro. Há outros que poderiam compor esse quadro, mas não acredito que se modificaria o conteúdo registrado. Através de entrevistas de caráter qualitativo busquei hipotetizar qual o papel dos klesas no contexto espiritual do ioga brasileiro.

As perguntas de forma semi-estruturadas, foram elabordas deixando os entrevistados falarem com certa fluidez sobre os assuntos pré-abordados: 1) Trajetória de vida: aqui consegui perceber que, mesmo conversando com dez iogues, poderiam dividi-los em apenas dois grupos como adiantei acima (híbridos e tradicionais); 2) Relaxamento: como minha hipótese partiu da ideia do estresse ter se revelado um “obstáculo espiritual” - ou klesa – no ioga moderno, precisei discutir sobre o seu oposto fisiológico (relaxamento) e perceber como os iogues entreviatados se posicionariam sobre tal tema. O assunto surgia, geralmente, com a pergunta: “O que o Sr. X pensa sobre o papel do relaxamento nas práticas e filosofia do ioga?”; 3) Hinduísmo: aqui me preocupei em colher informações sobre o papel desta religiosidade sobre o ioga moderno. A minha hipótese é que talvez o ioga não esteja mais unicamente vinculado aos preceitos religiosos hinduístas; 4) Ecumenismo: neste tópico conduzi a discussão sobre a influência de outras religiões e espiritualidades sendo incluídas ao microuniverso religioso do ioga. Aqui pude analisar com mais acuidade as tênues linhas que o sustentam (ou não) como identidade singular; 5) Ioga, religião e suas influências espirituais: a pergunta aqui era, invariavelmente, direta e sem rodeios como “O Sr.X considera o ioga uma religião? Por quê? Como o Sr. classificaria o ioga?”. Meu foco nesta questão estava em compreender se os iogues entrevistados ainda se comportariam como os adeptos da nova era, que rejeitam o rótulo de “religioso”; 6) Ciência: o tema surge com o intento de revelar o quanto do discurso científico afeta a comunidade do ioga; 7) Estresse, klesas e obstáculos espirituais: por motivos óbvios a questão busca revelar as possíveis nuances estabelecidas entre os temas centrais da tese.

93

4.3. Entrevistados

A escolha dos iogues entrevistados e classificados como “mentores”, como se revelará a seguir, foi proposta por uma tríade que os separam dos professores e alunos/praticantes. A tríade é formada por: 1) Estabelecimento de um curso de formação que solidifique a ideologia espiritual que professe; 2) Edificação de produtos sobre a proposta espiritual ioguica, como livros, cd’s, dvd’s e outros; e 3) Peregrinações organizadas e guiadas a locais de importância espiritual para o ioga, mas sobretudo, ao mentor e o seu ideal ioguico propriamente dito. Essa tríade funciona e sustenta a estrutura religiosa “invisível” que comentei anteriormente.

A exceção se faz ao Prof. Hermógenes, que nunca possuiu uma escola de formação propriamente dita, mas as suas obras se constituem verdadeiros livros didáticos de ingresso ao microuniverso da sua cosmovisão do ioga, como veremos na história de alguns mentores. Por respeito aos entrevistados, todos terão aos seus nomes preservados.

4.3.1. Ravi

Pertence à tradição do swami Kuvalayananda e conhece o ioga no ambiente acadêmico da Universidade de São Paulo (USP) na década de setenta pelas mãos de Dona Inêz, também discípula do mesmo mestre e primeira iogue mulher no Brasil. Assim como sua mentora, Ravi foi estudar em Lonavla/Índia no instituto de Kaivalyadhama por quase dois anos. Lá, teve como mentor o Prof. Gharote entre os anos de 1979-1980, coordenador na época do instituto fundado por swami Kuvalayananda e considerado um dos primeiros incentivadores do “ioga científico” e discípulo direto do swami. Ravi, inclusive, foi responsável por trazer o Prof. Gharote diversas vezes ao Brasil em seus cursos de formação.

Em 1981 começa a lecionar ioga no campus da USP e se mantém lá até hoje. A partir de 1996, inaugura o seu curso de formação em professor de ioga com a chancela de uma universidade de São Paulo, aonde forma muitos professores de ioga no Brasil na mesma perspectiva que estudou na Índia. Conseguiu incentivar os estudos científicos do ioga, por isso possui entre os seus alunos, muitos com formação acadêmica superior - inclusive ele mesmo possui mestrado em Neurologia. Ravi e

94

seus formados incentivam o ioga e as suas práticas a serem investigadas como forma terapêutica no Brasil. Além dos cursos de formação que promove, organiza retiros, palestras e viagens periódicas à Índia, mas também recentemente, ao Japão com a monja Coen – conhecida representante do zen budismo no Brasil. Possui, devido a sua formação e fidelização apenas a Kuvalayananda, forte tendência tradicionalista.

4.3.2. Centurion

De origem espírita teve fortes experiências, como narra, do curandeirismo por parte dos seus avós. Se considera um “cristomaníaco” e possui em suas costas tatuado a figura do anjo São Gabriel, com quem diz conseguir se comunicar e pedir aconselhamentos.

Nasce em 1965 e com 25 anos (1980) descobre o ioga com um professor da tradição de Iyengar no Brasil, em reuniões de uma organização de estudos esotéricos em São Paulo no qual fazia parte. Foi aluno do DeRose por um ano, mas depois decidiu se aprofundar mais no ioga e viajou para Índia por quase dois anos. Foi quando aprendeu a iogaterapia e ayurveda pela tradição da Bihar School, do swami Satyananda - discípulo de Sivananda. Na Índia ainda, conhece o iogue Pattabhi Jois, idealizador de um dos métodos de ioga mais conhecidos Ocidente, o Asthanga Vinyasa Yoga.

Foi o primeiro professor representante brasileiro desta tradição e se torna bastante popular por lecionar para artistas nacionais. Possui, inclusive dvd’s de ensino deste método. Após um incidente ocorrido em um dos seus retiros no ano de 2008, é praticamente banido pela comunidade ioguica, mas mantém o seu ashram em funcionamento em São Paulo. Enquanto atuava com maior autoridade no microuniverso do ioga brasileiro, formou os principais professores do método de Jois no país, além de possuir escolas de ioga, promover palestras e retiros de ioga. Por seu sincretismo com a figura de Jesus Cristo, São Miguel e o espiritismo é considerado aqui como híbrido.

95

4.3.3. Vishnu

Nascido em Campinas, cidade do interior de São Paulo, conhece o ioga por intermédio de sua mãe que já praticava através dos livros do Prof. Hermógenes em casa na década de 1980. Em 1990, com 18 anos, vai estudar nos Estados Unidos e se gradua no equivalente ao curso de Educação Física, e continua no estrangeiro trabalhando em algumas cidades deste país e na Espanha com treinamento desportivo e ioga. Neste período, entra em contato com outros métodos de ioga moderno, como o , e se aperfeiçoa neste.

Em 1994, ainda nos Estados Unidos, diz ter “sentido um chamado” de voltar ao Brasil para disseminar o conhecimento do ioga. Estabelecendo-se na cidade de Florianópolis percebe o ioga brasileiro, segundo ele: “respirando dois ambientes: ou se era Hermógenes ou DeRose”. Depois de praticar alguns meses no método Swasthya Yôga, diz ter sido hostilizado pelo professor e saiu. Decide então, abrir a sua própria escola de ioga na cidade e é o primeiro professor de Power Yoga no país. Conta que ensinava “yoga fitness”, divertindo-se hoje do nome que inventou na época.

A partir dos anos de 2000, envereda por um trabalho bem mais sincrético espiritualmente no intuito de proteger-se dos rótulos e denominações diferentes de ioga no país, mas também fugir da comparações de praticar e ensinar um ioga “americanizado”. Neste mesmo projeto, além dos cursos de formação, retiros, workshops com temas bastante ecléticos que sincretizam Jesus, xamanismo brasileiro com ensinamentos do , lança cd’s e dvd’s de encontros musicais ecumênicos de mantras e canções de comunhão espiritual. Viaja anualmente para Índia e outros locais como Machu Pichu e os Andes promovendo encontros xamânicos com o ioga. Sua vertente é claramente híbrida e se tornou um dos iogues mais conhecidos no Brasil desta vertente atualmente.

4.3.4. Ganesh

Conhece o ioga na juventude no Uruguai, seu país natal. Estabeleceu-se no Brasil como um dos principais formados do mestre DeRose. Depois de mais de dez anos praticando e promovendo o Swasthya Yôga rompe com DeRose por divergências

96

doutrinais. Essa ruptura gera insultos entre ambos e até hoje é fruto de discussões e ofensas.

Anos mais tarde se filia ao mestre Pattabhi Jois e se torna divulgador e praticante do método Asthanga Vinyasa Yoga, mas abandona anos depois, novamente por não acreditar mais na proposta e objetivo dessa tradição de ioga. Há alguns anos se aprofunda nos ensinamentos vedantinos do guru indiano swami Dayananda Saraswati. O Swami Dayananda Ashram é um centro de estudos do vedanta advaita de Shankara e sânscrito estabelecido na Índia desde os anos de 1960. Dayananda e seus discípulos, como uma interpretação mais voltada para os problemas contemporâneos do mundo através dos textos clássicos hinduístas promovem retiros e cursos de ioga, sânscrito e vedanta para indianos, mas sobretudo estrangeiros48.

Ganesh produz cursos de formação em ioga e viaja às principais cidades brasileiras e algumas da Europa promovendo o ioga e seu guru. Além disso, guia anualmente (em geral seus formados) em peregrinação ao ashram do seu mestre e a outras cidades da Índia no intuito, como todos os mentores do ioga brasileiro, difundir e conservar a tradição do ioga que confessam. Seu posicionamento a favor do tradicionalismo do ioga é o mais evidente entre todos os entrevistados, assumindo, muitas vezes, uma ortodoxia mais forte do que DeRose.

4.3.5. Bento

Era um empresário bem sucedido do ramo da telefonia com mais de 500 funcionários, mas cansou do ritmo da sua vida acelerada de executivo e trocou tudo pela espiritualidade do ioga. Começou como aluno em uma das unidades do Swasthya Yôga de DeRose. Decidiu fazer uma formação de ioga e as concluiu em duas no Brasil: de Ravi e Visnhu.

Após as formações decidiu comprar uma escola de ioga em São Paulo e ingressou em uma viagem de quase dois meses à Índia com um renomado professor de ioga do estilo Iyengar. Durante a viagem diz ter sofrido uma profunda angústia e pensou que iria morrer. Foi quando obteve uma “revelação aos pés do Himalaia” que

48 Ver www.dayananda.org/swami-dayananda.html, acessado 01/07/2015.

97

mudaria definitivamente a sua vida. O conteúdo da revelação girava em torno de por que os professores e iogues (mentores, como denomino) que conheceu no Brasil “não eram boas pessoas”. Percebeu que o ioga que ensinavam e praticavam não estava funcionando a elas e, obviamente, também não funcionaria para os alunos que formavam. Assim, decidiu montar o seu próprio curso de formação, organizar viagens à Índia e promover cursos, workshops e sat sanghas para difundir o ioga. No mesmo período fundou uma Organização Não-Governamental, o Ser Humano Sem Fronteiras.

Possui, ao contrário de todos os outros entrevistados, um guia espiritual católico, Dom Alexandre, seu “guru”. Dom Alexandre ministra cursos e orienta leigos e religiosos na meditação cristã da Igreja de São Bento em São Paulo. Foi na mesma igreja, que Bento, após mais uma de suas crises existenciais, encontrou Dom Alexandre que ofereceu encaminhamento espiritual a ele nunca mais interrompeu. Sua linha de disseminação do ioga é obviamente plural, sincrética e híbrida, portanto.

4.3.6. Shanti

Inicia no ioga aos 14 anos na cidade de Florianópolis (1987) e considera-se uma “buscadora espiritual”. Foi aluna e professora do método do mestre DeRose por muitos anos, quando se desentendem por discordâncias doutrinais. Morou na Europa por quase dois anos e conhece novas escolas de ioga em sua estada. Quando viajou pela Índia por seis meses se interessou pelo ioga de Satyananda, discípulo de Sivananda, e estuda na Bihar School, conhecida por mesclar o conhecimento do ioga com princípios da biomedicina Ocidental e o ayurveda indiano.

Por intermédio de um professor de ioga no Brasil conhece o Asthanga Vinyasa Yoga e, até recentemente, dedica-se ao ensino e formação de outros iogues neste método. Após uma formação no estado da Califórnia, nos Estados Unidos, conhecido reduto de fomentação de novos métodos de ioga, toma conhecimento de uma formação em Asthanga Vinyasa Yoga promovido sistema It’s Yoga e conhece em Bali/Indonésia a sua guruji (não mencionada o nome).

Há alguns anos foi acometida de um linfoma que muda drasticamente a sua vida, a sua prática de ioga e forma de viver a vida. O estilo de ioga Asthanga é

98

bastante vigoroso fisicamente, desta forma, com o câncer e o tratamento medicamentoso, Shanti diminui drasticamente o seu ritmo de prática corporal e, consequentemente, revê o seu ioga espiritualmente também. Frente a esses fatos, e aconselhada por outros amigos iogues, se volta aos ensinamentos iogaterapêuticos do Prof. Hermógenes e encontra consolo espiritual em suas obras. Deste modo, de tradicionalista vem ressignificando a sua prática pessoal, discurso em suas formações, retiros e viagens a Índia que organiza para uma vertente se aproximando do sincretismo, portanto, do ioga mais híbrido de Hermógenes.

4.3.7. Hermes

Inicia no ioga desde criança com a mãe, professora de ioga formada pelo método do mestre DeRose. No entanto, são com os livros do Prof. Hermógenes que primeiro trava contato literário com a doutrina do ioga. Hermes aos 16 anos inicia a sua formação nas escolas de ioga que DeRose coordenava no Rio de Janeiro na década de 80, aonde se destaca e se transforma professor e a lecionar na própria metodologia.

Anos após professor do Swasthya, rompe com o mestre DeRose e inicia caminhada própria no microuniverso do ioga brasileiro, abrindo escola, organizando formações, palestras e apresentações de método próprio em desenvolvimento. Nesse ínterim, muda-se para São Paulo, lança livros e ganha notoriedade em âmbito nacional. Atualmente organiza também viagens à Índia, mantém seus cursos de formação e venda de produtos de ioga em escola própria.

Assim como outros dissidentes do mestre DeRose, Hermes verte por um ioga mais tradicionalista do que híbrido. Durante as entrevistas, por exemplo, apesar de ser grato pela contribuição do Prof. Hermógenes não vê com bons olhos o sincretismo que promove com o cristianismo e terapia, acreditando que haverá um dia em que todos saberão as deformações que se fez com o hatha-ioga no Ocidente.

99

4.3.8. Rudá

Estabelece contato com o ioga pela primeira vez com a mãe. Segundo ele, durante o processo depressivo da mãe, o pai de Duda presenteia-a com um livro de ioga do Prof. Hermógenes na ânsia de resgatá-la desse quadro enfermo. Anos mais tarde, ele e a mãe ingressam em curso de formação do Prof. Cláudio Duarte em São Paulo.

O Prof. Cláudio Duarte foi um conhecido iogue brasileiro que nos anos de introdução do ioga no Brasil (anos de 1970-1980), travou dissensões com a autoridade do mestre DeRose e seu “yôga”, por isso Duarte sempre grafou “yóga” justamente para diferenciar-se do Swasthya Yôga. Essa discussão gramatical é clássica entre os iogues brasileiros entre as décadas de sessenta aos anos de 2000, e revela na verdade, uma disputa que ajudou ao ioga brasileiro consolidar-se como fenômeno religioso singular, ao mesmo tempo que acarretou desentendimentos. O que nos interessa aqui, é ter conhecimento que Rudá participou e vivenciou muito dessa contenda, assim como todos os mentores anteriores que descrevi e que entrevistei.

Após formar-se em Educação Física, em 1998, Rudá inicia outra formação, mas agora com o Centurion no método do Asthanga Vinyasa Yoga. A sua formação acadêmica em Educação Física e vivência entre o meio ioguico brasileiro o capacitou ser convidado ministrar o ioga como disciplina de graduação em universidade paulista. Participou integralmente na idealização de uma formação para professores de ioga e, mesmo não desenvolvendo ainda peregrinações periódicas a locais “sagrados” ao ioga como seus colegas, a posição de formador de professores de ioga com a chancela acadêmica, algo realizado apenas por Ravi e DeRose anos passados, o autorizam como um mentor em andamento de sua própria metodologia de ensino espiritual. Por sua vivencia mais abrangente, ensina e professa o ioga híbrido.

4.3.9. Andurá

O cientista Andurá conhece o ioga e a meditação através das artes marciais ainda jovem. Segundo ele, fez e conheceu as mais diversas práticas meditativas, mas as considerava todas “muito místicas”. Quando convidado pela Universidade Federal

100

de São Paulo para o seu doutorado envereda na discussão das benéficas repercussões da meditação para gestantes.

Em 1994, a sua tese gera ótima recepção da comunidade acadêmica internacional pela definição operacional que concebe para a meditação - descrita na subseção 4.4.4. Atualmente ainda atua como pesquisador, mas a sua principal ocupação está voltada para os cursos que produz e ministra de formação para facilitadores de meditação em saúde. Seu curso, de certa forma, se assemelha com as formações em ioga realizadas pelos mentores do ioga descritos acima, no quesito a referência aos textos do ioga (mesmo que historicamente) a respeito da meditação. Como veremos, o posicionamento de Andurá com relação aos mentores do ioga brasileiro, chega a ultrapassar, em alguns momentos, os limites do que a ciência está autorizada a discutir. Sua figura, no entanto, em alguns núcleos ioguicos é valorizada, enquanto que abolida em outros, e suas definições sobre estados e práticas meditativas/ioguicas podem chegar a desautorizar discursos ioguicos alheios.

4.3.10. Osiris

A cientista Osiris conhece a meditação/ioga através da vida como desportista nas artes marciais. Sua graduação em biologia pela Universidade de São Paulo e depois os anos do mestrado (1999), doutorado (2002) e pós-doutorado (2012) pelo Albert Einstein de São Paulo, a autorizaram ser considerada uma das mais importantes pesquisadoras na área de meditação do país.

Atualmente é professora afiliada do departamento de Psicobiologia da Universidade de São Paulo e as suas principais pesquisas abordam a neurofisiologia de estados de consciência como a meditação através da neuroimagem funcional e a avaliação de intervenções que envolvem treinamento de habilidades cognitivas e comportamentais que promovam uma melhor qualidade de vida e bem-estar. Está hoje também bastante envolvida com o Instituto Palas Athena de São Paulo que divulga, entre outros assuntos, a vinda do Dalai Lama ao Brasil e outros cientistas e monges que investigam práticas espirituais de contemplação.

101

4.3.11. William

Aprende as práticas de ioga e meditação ainda adolescente com o seu pai em São Paulo. Graduado em Educação Física, deu continuidade a vida acadêmica com o mestrado em Farmacologia e o doutorado investigando o ioga como uso terapêutico.

Praticando ioga depois em Santos/SP, aprende uma espiritualidade muito mais medicinal do que vedântica, pois o seu professor na época foi bastante inspirado nas obras do Prof. Hermógenes. Já adulto resolve ingressar em uma formação para professores de ioga com Ravi, no “ioga científico”. Ministra aulas na rede pública da cidade de Santos/SP, mas depois abandona e segue a vida de professor acadêmico aonde atua até hoje. Seu doutorado concorreu a prêmios nacionais de revelação acadêmica e possui artigos acadêmicos publicados pelo mesmo departamento da Universidade Federal de São Paulo de seus dois colegas anteriores.

4.4. Questões de aproximação

A partir da análise das sete questões pré-elaboradas iniciais (1. Trajetória de vida; 2. Relaxamento; 3. Hinduísmo; 4. Ecumenismo; 5. Ioga, religião e influências espirituais; 6. Ciência; e 7. Klesas, estresse e obstáculos espirituais) agrupei os comentários em quatro subseções que seguem: 4.4.1. Práticas e estados de ioga ressignificados; 4.4.2. Ciência e ioga na construção de uma nova espiritualidade terapêutica em andamento; 4.4.3. Fase de transição na comunidade ioguica brasileira em busca da sua identidade religiosa; 4.4.4. A crença na ordem cósmica e prana estabelecendo dialética entre o estresse e o relaxamento espiritualizados; 4.4.5. Aproximação entre relaxamento-samadhi e homeostase eterna-kaivalya; 4.4.6. A crença na ordem cósmica e prana estabelecendo dialética entre o estresse e o relaxamento espiritualizados.

A ordem das perguntas não necessariamente seguiram-se como expostas acima, mas serviram muito bem de estrutura para as gravações das entrevistas. Os conteúdos das questões formaram a base para elaboração das questões subsequentes e me ajudaram a organizar os argumentos discutidos no capítulo cinco.

102

Com relação as quatro subseções a seguir, elas são cruciais para se hipotetizar a lógica que sustenta a estrutura do ioga como um novo movimento religioso, desvinculado do hinduísmo e demais denominações advindas da Nova Era, mas sobretudo, para se buscar ampliar a compreensão dos meandros que levaram possivelmente o ioga brasileiro acomodar as causas do Mal/klesas à configuração atual. No primeiro momento, apresento uma divisão que os líderes do ioga realizaram entre “prática ou método” de “estado ou experiência” do ioga, permitindo a eles mesmos excluírem do seu microuniverso qualquer tentativa de secularizar o ioga pela fisiologia científica biomédica. Essa estratégia resguarda a promessa ioguica de salvação/libertação, ao mesmo tempo em que autoriza os avanços da ciência na investigação dos seus benefícios terapêuticos.

Na subseção ulterior, exponho pela primeira vez uma nova categoria de agentes atuando na manutenção e reformulação do discurso do ioga. Mesmo sem a intenção real (e muitas vezes, contra a pretensão dos agentes), o conteúdo discursivo dos cientistas os incluem como parte inclusiva, junto com a dos mentores, ao microuniverso ioguico em formação brasileiro. Logo, posso supor algumas colocações dos cientistas, uma condição destes de “cientistas-monges” ou “meditadores-cientistas”. Esta posição de cientistas-monges, não os encaixa nem como alunos e muito menos como mentores. De alguma forma, durante a análise das entrevistas, foi se evidenciando cada vez mais a importância do conteúdo da fala dos cientistas na construção compreensiva dos klesas ao lado do posicionamento dos mentores sobre o mesmo tema.

A partir do relato dos cientistas entrevistados, aflora em alguns momentos, um discurso que visa desautorizar a fala dos mentores do ioga com relação aos conteúdos doutrinários e práticos, por exemplo. Em palavras mais simples, há críticas de mentores contra posicionamentos de cientistas, mas também de cientistas criticando o conhecimento (e posicionamento ético) inadequado dos mentores sobre suas doutrinas e sistema de atos espirituais. A contenda não reside – reforço - entre ciência e ioga, mas entre cientistas e iogues. Desse modo, ao invés de analisá-los como um posicionamento da ciência, avalio-os como parte integrante da estrutura religiosa “invisível” que, hipoteticamente ainda, parece reger o ioga brasileiro.

103

Na análise da terceira subseção, mostro uma fase de transição com o fim da disputa entre os agentes mais populares ao longo de setenta anos do ioga brasileiro, o embate entre o Prof. Hermógenes e Mestre DeRose. O término dessa contenda (em processo ainda), entretanto, não impede que novos mentores do ioga surjam em cena com o mesmo mote discursivo: híbridos versus tradicionalistas. A diferença agora fica a cargo do maior tom propalado pelos “herdeiros” atuais da ortodoxia ioguica brasileira. Em suma, a hegemonia está em processo de inversão, agora são os tradicionalistas, herdeiros de certa forma do mestre DeRose, levantarem as suas vozes contra os hibridismos e permissividades religiosas, talvez, no intento de resguardar ou “resgatar” certo “purismo” no ioga em que vivem.

Na última subseção percebo duas crenças antigas que permanecem e alinhavam os novos símbolos e bens de salvação do ioga no país: prana ou energia transfisiológica, e a ideia de ordem cósmica que rege desde a natureza, a sociedade, o funcionamento dos corpos até a vida em si. Essas duas crenças irão substanciar as transformações advindas do entrelaçamento do ioga com a fisiologia científica, sobretudo, estabelecendo diálogo espiritual entre o conceito do estresse-ioguico com os klesas e emoções nefastas à dialética saúde-salvação, já levantada em capítulos anteriores e retomada aqui.

4.4.1. Prática e Estado de ioga ressignificados com vistas a deslegitimar cientistas

Analisaremos ao longo deste capítulo trechos das entrevistas, tanto com iogues quanto cientistas brasileiros, no intuito de apresentar os seus discursos que podem estar em movimento de uma nova proposta de salvação do ioga no país. Notaremos uma reforma espiritual ocorrendo na compreensão brasileira da teoria dos klesas no seu encontro com o microuniverso religioso ioguico. Segundo o psicanalista brasileiro Christian Dunker, podemos pressupor o sofrimento centrado no desejo de uma vida diferente; esta angústia, na perda da experiência de uma forma de viver ainda não reconhecida, implicaria na necessidade de compreende-la como obstáculo ou contradição não reconhecidas (DUNKER, 2015, p.19-22). Os klesas, como os obstáculos à kaivalya ou causa do sofrimento espiritual, podem estar centrados no desejo de iogues brasileiros por uma vida diferente ou em experiências de um jeito de vida ainda não descoberto.

104

Dessa forma, a teoria clássica dos klesas - ou os obstáculos que originam o sofrimento de um grupo de iogues indianos do século II a.C. - quando encontram cultura e sociedade diferentes, torna-se plausível supor, modificarem os sintomas e/ou causas do que foi o impedimento à felicidade de outrora (ignorância, apego, aversão, medo da morte e orgulho). Logo, investigar os klesas no microuniverso do ioga brasileiro, pode contribuir - o mínimo que seja - na compreensão das causas do sofrimento existencial dos que buscam no ioga uma vida mais plena e feliz. Abaixo, inicio apresentando o diálogo estabelecido entre o estresse como obstáculo espiritual ao samadhi, a vivência religiosa transitória que antecede kaivalya:

Hermes: o estresse impede a [experiência do] samadhi.

Bento: o estresse impede ao estado de ioga. Tem o estresse controlado, que as vezes é necessário, mas tem o estresse que é um realmente um obstáculo (...) o método abaixa o estresse-obstáculo e assim, auxilia-nos a atingir o estado. (...) Não existe deus no ioga, pois Isvara é um estado.

Shanti: o estresse nos afasta, nos desconecta [do estado]. E é o estado de ioga que abaixa o estresse. Ele acalma a mente, aterra... e assim, nos ajuda a conectar novamente.

O “estado” ao qual os iogues mencionam parece se referir a experiência do próprio samadhi ou comunhão com deus/Isvara como explicitou Bento, enquanto a “prática” ou o “método” vem configurando-se como o sistema de atos com empíricas repercussões averiguadas pela ciência no intuito do alcance da cura de doenças (sejam de ordens físicas ou psíquicas). O objetivo permanece: diminuir os efeitos do “estresse-ioguico” no corpo, mas o pano-de-fundo se revela em curar-se de forma transcendente de certa angústia latente ou obstáculo/klesa que impede que o samadhi ou “estado de ioga” ocorra. Outros entrevistados, inclusive cientistas, aprofundam a questão nos fornecendo mais chaves-de-leitura:

Shanti: Reagir é algo negativo porque não se tem consciência na reação. O ioga lhe traz para o momento presente. A prática no tapete é um ritual de nos trazer para o presente, o Eu.

Rudá: o ioga diminui a agitação, o estresse e a ansiedade da minha vida, ao mesmo tempo o ioga me dá energia, me tira de um estado torpor e me deixa no estado de ioga. O estresse me desconecta e me faz sair do estado de ioga... a união. A respiração [pranayama] me traz para o aqui-e-agora e diminui os meus vrttis [causador da agitação mental advindo dos klesas] e meu estresse.

105

Andurá: Meditar serve para reduzir estresse e aumento da performance mental e aumenta o sistema autoimune. Meditar pode desacelerar a mente e ajudar pessoas em tratamento psicoterapêuticos.

Osiris: Ioga é para redução de estresse. A resposta do estresse salva vidas. Mas na cultura do ioga o estresse atinge o status de ser melhor manejado. Os iogues buscam diminuir o estresse, aumentar o bem-estar e ser alguém melhor. Não ser tão afetável pela sociedade moderna, de consumo e estressada, é um dos grandes objetivos dos iogues com quem convivo e estudo. (...) As posturas do ioga podem diminuir as aflições mentais e conduzir ao relaxamento. Nunca vi ninguém meditar sem relaxar, é a primeira fase da meditação. (...) O ioga tem uma vertente “terapia” sim. Ioga é instrumento anti-estresse pela maiorias das pessoas.

William: Sem dúvidas, a prática ioguica repercute na redução do estresse a melhora do sistema autoimune de seus adeptos.

A dicotomia entre prática e estado no ioga foi se evidenciando durante as minhas audições, mas no decorrer da coleta de dados fui percebendo ser possível correlacionar essa separação apresentada, entre prática e estado de ioga, como uma nova compreensão dos klesas ou causa da angústia, estresse, emoções extremas ou ansiedade. Se adotarmos modernamente, pela fundamentação do capítulo 2, os klesas a partir das repercussões deletérias do estresse e sentimentos/emoções específicas, a manifestação do estado de ioga pode estar sendo relacionada com menores manifestações de doenças no corpo-mente. Como consequência, esses fatos corroboram as nossas suposições de que as práticas de ioga estabeleceriam uma relação em processo entre terapia-cura-salvação específica ao contexto brasileiro. Por enquanto, o que fica é que as práticas corporais e o estados de ioga foram ressignificados e distinguidos.

O contato do ioga com a ciência – além de outros fatores como veremos – pode ter enfraquecido a força das escrituras ioguicas calcadas no hinduísmo e outras religiões ao longo de séculos na Índia, e elevado o das sensações corporais e as suas repercussões terapêuticas legitimados pela ciência desde o início do séc. XX.

Centurion: o ioga sempre esteve desvinculado do hinduísmo enquanto religião.

Vishnu: o ioga está desvinculado do hinduísmo modernamente.

Ravi: A imbricação do ioga com as religiões é algo ruim para ele. É um erro achar que juntar duas religiões pode gerar uma terceira melhor. Não acho correto rezar o pai-nosso no ioga. Cada religião deve manter as suas concepções restritas ao seu próprio contexto religioso. Não preciso do hinduísmo para praticar o ioga. Mesmo que o ioga peça alguma divindade a quem entregar-se. Isvara é o deus pessoal e você o compõe. A ciência

106

corrobora com o ioga. Prana não é científico porque a ciência ainda não conseguiu provar. É uma questão de tempo.

Shanti: o encontro do ioga com a ciência foi excelente para o ioga. O ioga produz saúde. A ciência afasta a mística do ioga.

Fica evidente acima que o hinduísmo vem perdendo a sua força de coesão da comunidade moderna do ioga, e a ciência, como uma das principais ferramentas proselitistas do ioga moderno (ALTER, 2004), possivelmente auxiliando a elevar os aspectos mais corporais e terapêuticos do ioga. Assim, mesmo que a face mais física e terapêutica do ioga exista desde os seus tempos medievais (como demonstramos no primeiro capítulo), contemporaneamente, foi o enfraquecimento do ioga como religiosidade autônoma, o fator que o diferencia de tempos passados. É bastante comum, mesmo cientistas da religião, incluírem diversas denominações de ioga sob a esfera de novos movimentos religiosos (GUERRIERO, 2006, p.111-132), ao invés de pertencentes ao mesmo microuniverso religioso, o que remove a perspectiva de investigá-lo como uma religião autônoma. Isso reduz o ioga e não nos permite compreende-lo em sua íntegra.

O ioga moderno, por questões sociais que desenvolvemos no capítulo 1, teve a ciência como seu principal veículo de ajuste e adaptação quando da transplantação do ioga indiano para os grandes centros urbanos ocidentais (DeMICHELIS, 2008, p.17- 21). Isso aproximou muitos cientistas conhecerem, praticarem e investigarem o ioga e a meditação com fins medicinais. No Brasil, como expomos no terceiro capítulo, foram os próprios brasileiros que vieram estabelecendo suas diretrizes de conduta ética e causas do sofrimento. Os discursos versados nas obras de Amit Goswami, Fritjof Capra, Allan Wallace, Deepak Chopra e outros, que criticam o realismo materialista da ciência, a origem mística das religiões e a capacidade delas em transmitir a essência de suas experiências para as sociedades modernas (NOGUEIRA, 2010), parecem ter autorizado, ambivalentemente, cientistas brasileiros a disputarem com os iogues, na produção e manutenção de novos bens de salvação no ioga, fazendo surgir o que identifiquei aqui como cientistas-monges. Com base em caracteres fisiológicos, estes cientista-monges e o iogues-mentores (como Hermógenes), acabaram legitimando com a chancela da ciência as práticas modernas do ioga como inibidoras do estresse e promotoras da saúde via experiência do relaxamento.

107

Andurá: Não podemos confundir o estado de dhyana [meditação propriamente dita] com o método de dhyana. Com isso, perdemos a essência dos sutras de Patanjali. Ninguém mais sabe o que ele quis dizer. Eles [os iogues] não aceitaram a minha definição operacional de meditação [acadêmica, portanto legítima]. Para eles, não existe prática de dhyana, é só estado, e isso é um erro. A prática meditativa não é sagrada do ponto de vista mental.

William: Quando assistimos um iogue afastar dois de seus professores porque um deles relaciona ioga com religião, fica evidente que se eles falam [mentores] que ioga é religião perdem mercado, é uma hipocrisia e ignorância alimentadas por uma necessidade de sobreviver nesse mundo caótico. É o mundo do capital. Hoje ninguém domina no campo do ioga. O DeRose foi um grande dominante, as demais pequenas seitas sendo esmagadas o destruíram. Talvez por isso DeRose diz que não trabalha mais com ioga. Há um desgaste do nome ioga. O ioga pode ter virado uma PNL [Programação Neolinguística]. Talvez se o ioga assumir que é religião tomará de mil a zero das religiões pentecostais: tem promessas mais divertidas do que a do ioga. O ioga promete diminuir estresse e dor nas costas. O ioga nos anos 1960-70 tinha uma grande promessa, mas foi diluída no movimento contracultural peace and love.

A partir das citações dos cientistas acima, percebe-se que o foco não está na desmistificação do ioga, mas em deslegitimar o discurso dos mentores do ioga brasileiro pelos cientistas-monges. Quando Andurá, por exemplo, afirma que os iogues não sabem o que Patanjali quis dizer, se posiciona como detentor deste saber e não os iogues com quem convive e investiga em seu laboratório. Para ele, por exemplo, dhyana não é apenas um “estado de ioga” - portanto, do alcance exclusivo de iogues autorizados pela “tradição” - mas também uma “técnica”. Sendo uma técnica, convida a ciência – e a si-mesmo - a participar do microuniverso religioso/espiritual do ioga, no qual apenas os iogues-mentores possuíam o direito de discursar até início do séc. XX. Com as práticas e estados ioguicos divididos a sua autoridade entre iogues e cientistas, o ioga brasileiro busca meios próprios de autorizar seus líderes de existir e delimitar seus limites como espiritualidade autônoma.

4.4.2. Ciência e Ioga na construção de uma nova espiritualidade terapêutica em andamento

Segundo Silas Guerriero, classificar novos movimentos religiosos não é tarefa das mais fáceis. Contudo, todas as religiões, sem exceção, surgem do seio de sociedades e são elas reflexos da maneira de viver de núcleos sociais específicos e

108

concretos (GUERRIERO, 2006, p.21; Id., 2014), por isso ajudam a responder (e erigir muitas vezes também) o sofrimento dos indivíduos que a compõem. Em cada sociedade moderna, no entanto, centenas de religiões convivem entre si e, muitas vezes, o encontro de duas – ou mais - delas possibilitam o aparecimento de uma terceira. Guerriero cita o exemplo da ISKSON, um novo movimento religioso que aparece em Nova Iorque e São Francisco, nos Estados Unidos, com a vinda de um guru indiano, mas que depois se expande a dezenas de outras cidades ocidentais. A ISKCON (Sociedade Internacional para a Consciência de Krishna), a exemplo do ioga, é transplantada da Índia e depois acaba ganhando contornos espirituais definitivamente singulares que a tornaram possível hoje, distingui-la como uma religião particular, com suas próprias práticas, doutrinas e líderes constituídos. Mesmo comparada ao Hinduísmo, a sua principal influência religiosa, a ISKCON é absolutamente autônoma e independente (GUERRIERO, 2001). Talvez o ioga moderno possa enverdar pelo mesmo caminho.

As influências do ioga moderno são vastas, dos hinduístas - sua referência mais óbvia – aos jainistas, shikhis, budistas, tântricos, sufis muçulmanos e, recentemente bebeu de movimentos ocultistas europeus, mas sobretudo, da ciência biomédica ocidental (ALTER, 2004; DeMICHELIS, 2004; SINGLETON & BYRNE, 2008; SINGLETON, 2010). No Brasil, os iogues-híbridos e os cientistas-monges comungam de certa permissividade com outras espiritualidades, além de acalentarem o romantismo do surgir de uma “nova ciência” – como leremos - que na verdade, corresponde ao desejo de ruptura com a ordem vigente, tanto das religiões dominantes quanto do empirismo da ciência, pensamento típico da espiritualidade Nova Era (AMARAL, 2000, p.21-32). E é justamente neste ponto, que talvez os agentes do ioga brasileiro parecem concordar. Híbridos, tradicionalistas e cientistas-monges parecem direcionar as suas narrativas na busca de traduzir a espiritualidade do ioga, cada um com as suas particularidades – como estamos destacando -, mas atuando na sociedade brasileira como agentes religiosos na cura do sofrimento espiritual do microuniverso que atuam.

O ioga brasileiro, no entanto, ainda não permite definições tão evidentes de um novo movimento religioso estabelecido como já ocorre com a ISKCON, mas todo início requer certa motivação tanto de seu microuniverso consolidar-se, quanto da ciência da religião em compreende-los. Mas algumas pesquisas no universo europeu e

109

norte-americano (DeMICHELIS, 2004; NEWCOMBE, 2008; JAIN, 2010) e no Brasil também já apontam tais aproximações (GNERRE, 2010; GUERRIERO, 2014; SANCHEZ, 2014). Como esclarece Guerriero, as religiões não surgem do nada ou da “mente de um líder criativo”, mas da ruptura ou posição contrária à revelação original (GUERRIERO, 2006, p.21). Talvez o ioga brasileiro, e as suas transformações que revela-se sobre a sua soteriologia venham corroborar tal posição de um novo movimento religioso em formação. As principais características dos novos movimentos religiosos modernos são o seu forte sentimento de mudança social e a universalidade que proclamam suas crenças (Ibid., p.74-76). Das duas características dos novos movimentos religiosos descritas por Guerriero, o sentido de pertença a uma religião universal está presente no ioga moderno desde os pronunciamentos de swami Vivekananda, ainda no final do século XIX, como já expomos no primeiro capítulo. Com relação ao desejo por mudanças sociais, teceremos justificativas nas subseções que se seguem que poderão auxiliar as ciências da religião na classificação do ioga como um novo movimento religioso em processo no Brasil. Por ora, analisaremos as audições que solidificam a influência de cientistas e iogues nas transformações soteriológicas do ioga no Brasil.

Rudá: Vivemos em um mundo que precisamos de comprovações científicas, mas se as pessoas não experienciarem o estado de relaxamento espiritual do ioga, não haverá mudança de estar presente. O entrosamento do ioga com a ciência é necessário.

Ravi: A ciência precisa da espiritualidade para comprovar seus dados, não é o ioga que necessita dela. A ciência reconhece a espiritualidade para a cura de doenças.

Centurion: o estresse é uma crença científica. Ele na verdade não existe [sic], mas o ioga pode eliminar essa crença.

Por isso talvez, cientistas e mesmo alguns iogues entrevistados, parecem elevar a técnica ou a prática mais do que o valor das suas escrituras. A questão que levanto, no entanto, é o discurso do ioga e da ciência se assimilarem em diversas passagens com relação à maior ênfase na prática do ioga do que no valor das escrituras e de seus líderes exclusivamente:

Shanti: [O ioga] É estar presente. Agir e não reagir. O iogue deve transpirar e transbordar ioga. O ioga deve se transformar em conhecimento. Não preciso ser nada para ser iogue. Só preciso praticar. (...) Não precisa ter fé

110

no ioga, é fazer e vem a sensação. A ciência provocou uma certeza inabalável em minhas crenças.

Ravi: O ioga é uma técnica. Aplique as suas técnicas que funciona.

DeRose: As técnicas conduzem ao autoconhecimento.

Centurion: O ioga é um amplificador. O ioga é um caminho científico que comprova ou nega as minhas crenças. O ioga é uma técnica.

Pela exposição acima podemos identificar no discurso dos iogues Shanti e Rudá, por exemplo, positividade na aproximação do ioga com a ciência, assim como o fizeram os primeiros iogues modernos como Vivekananda, Kuvalayananda, Sivananda, Iyengar e outros. Há uma certeza, que nasce com os teóricos que investigam o que chamaram de processo secularização (HANEGRAAFF, 2000; PARTRIDGE, 2005, p.1), pelo qual a ciência afastaria a religião de toda manifestação de magia e da superstição de outrora, ou como afirmaram os iogues Shanti e Centurion, a ciência assevera o surgir de uma fé nas suas próprias crenças ioguicas.

À primeira vista, a afirmação pode não fazer sentido, mas como vimos no capítulo 2, a confiança no ioga foi testada no início do século passado mais pelos resultados laboratoriais da biologia sobre as suas práticas, do que na exegese de seus preceitos espirituais. Quando o iogue Centurion afirma que o estresse é uma “crença” desenvolvida e disseminada pela ciência, ou quando Ravi pondera que é a ciência e não o ioga, que se beneficiou da aproximação com a espiritualidade; eles estão, ao mesmo tempo, criticando a posição da realidade materialista de alguns setores da ciência, como reafirmando um sincretismo religioso ocorrendo entre o ioga e ciência, típicos do movimento Nova Era (CHAMPION, 1989, p.158; Id. 2001). Quando o cientista Andurá, na passagem transcrita abaixo, assegura que se a ciência continuar sob o estrito paradigma materialista, “inviabilizará” o seu próprio desenvolvimento, defende, de certa forma, o ioga como verdade universal:

Andurá: Um cientista que medita pode no máximo encontrar um estado de relaxamento da lógica absoluto, mas nunca experimentar a dissolução do ego oriental [sic], da fusão com o todo, o absoluto. Um dia a ciência irá inviabilizar a própria ciência. Acredito no surgir de uma nova ciência. Estamos rasgando tudo ao meio: o ioga, a ciência... Existe um ponto de relaxamento de função mental absolutamente fora dos padrões habituais e científicos. O iogue/meditador alcança esse estado desperto e a ciência não consegue ainda explicar. Todo meditador já percebeu, experimentou o nada. Tudo são conceitos. O estado que vem depois, um estado inexplicável, incognoscível... é o que a ciência não alcança.

111

O ioga parece ter se beneficiado da força proselitista da ciência em difundir as suas práticas espirituais como promotoras da saúde e bem-estar desde os anos de 1920 (ALTER, 2004). Por isso, incorporou em seus discursos uma supervalorização da prática, técnica ou método do ioga em relação ao estado ou experiência, como apresentei na subseção passada. É possível entrever, no entanto, a insistência de alguns iogues e todos os cientistas entrevistados, que o ioga seja “só prática”, sem nenhuma referência religiosa, provavelmente, por força da privatização religiosa ocidental. Contudo, posicionamentos extremistas vindo dos cientistas visam, talvez, deslegitimar o discurso religioso dos iogues-tradicionais principalmente:

William: Duvido do conceito de “iluminação” e "libertação" apregoado por iogues modernos. Não consigo mais ver valor nisso, na juventude acreditava, mas hoje acho patético. Acho que é um delírio e não me interesso mais por isso. Me importo, pessoalmente, apenas em ser uma pessoa melhor. Acredito que deveriam estar preocupado em se perguntar qual a proposta deles para a salvação do ioga! O ioga não ajuda em termos do diálogo com o outro. O ioga/meditação é in... O ioga pode ajudar a aumentar a tolerância e não a legitimação do discurso do outro. O ioga corre o risco de desenvolver o egoísmo.

Osiris: As práticas religiosas são passíveis de serem averiguadas pela ciência, é inevitável que a ciência as estudem, e isso empresta capital a elas, mas a ciência não se interessa com a filosofia das práticas religiosas, mas para a melhora da saúde e da atenção. A junção do ioga com a biomedicina é natural, pois o ioga afirma que a sua prática é boa para a saúde e a ciência vai averiguar. Os próprios textos clássicos do ioga afirmam que é bom para a saúde.

Esse estado ao qual William apregoa como “patético”, Osiris afirma “não interessar à ciência” e no qual Andurá assegura ser o “estado que vem depois” e que a “ciência não alcança”, pode ser a própria experiência religiosa do samadhi, conteúdo discursivo dos líderes espirituais do ioga, mas que muitos neuroteólogos visam reduzir a neurotransmissores, hormônios e regiões encefálicas e trazê-los ao campo do saber científico exclusivamente (MARINO JR, 2005).

Andurá: Muitos iogues sofrem do “orgulho espiritual”. Eles [os iogues], estão, ao mesmo tempo, tendo um aporte acadêmico de dados mas, por outro lado, têm um aporte de posturas espiritualizadas, de uma nova forma de vida, de perceber o mundo em que vive. Eles precisam, na minha opinião, retirar todos os valores culturais das práticas meditativas [e de ioga], de oração e etc. Isso [cultura que envolve os preceitos ioguicos] são ações mentais. Meditação deve levar ao não eu, você deve se fundir na meditação ou na prática que faz. O meditador experiente perde a capacidade de sentir emoções extremas. Iogue tem que ensinar a prática. Os conceitos do ioga, vedanta, tradição e etc, deveriam ser evitados. Há um excesso de discurso no mundo do ioga. Isso afasta o iogue da meditação. O iogue

112

precisa esquecer toda a sua doutrina para não incorrer no risco de conduzir o ioga para uma religião.

Em seu discurso retórico, Andurá se utiliza da ciência para comprovar a eficiência do seu próprio “método” de meditação a partir da experiência pessoal e de sua tese de doutoramento e suas inúmeras pesquisas científicas. Outro ponto importante, que aparece levado em sua fala, é a afirmação de que iogues experientes (ou mentores) devem desenvolver uma capacidade de arrefecer as suas “emoções extremas”, “evitar” e “esquecer” toda a sua doutrina espiritual. Essa estratégia de aniquilação do discurso religioso do ioga, argumentarei nas próximas subseções, pode estar fomentando o regresso de iogues mais ortodoxos no Brasil, herdeiros do discurso tradicionalista do iogue DeRose. Se o ioga se institucionalizar como uma religião organizada, como algumas investigações já sugerem, o projeto de estabelecer o ioga como algo secular, como pretende Andurá e outros cientistas-monges, cai por terra. Dito de outra forma, quando Andurá sugere aos iogues-mentores ensinar “apenas a prática”, remove o estado do ioga da discussão, pois como ele mesmo diz em outro momento, “esse estado a ciência não consegue explicar”; desse modo, a sua posição de “cientista” não o autoriza a participar do debate.

Andurá: A ciência comprovou academicamente que a meditação faz bem. Não é mentira... criação como o da religião. Não é um truque para a pessoa alcançar outro estado e convencer as pessoas a meditar, pois depois levo-os a experimentar um estado além. Só falo sobre isso [o estado além que a ciência não alcança] para o meu grupo de facilitadores [adeptos de sua formação mais “avançados”]. No ioga/meditação, deve se ter confiança, pois a fé só se entende quando se alcança o estado final. Quando a onda se percebe parte do oceano [sic]. Aí, a consciência da ligação não se perde mais... isso é fé ou amor.

Osiris: A maior parte das pessoas nem entendem o que é o ioga atualmente. O ioga se encaixa talvez mais como um processo espiritual. A meditação muda a sua vida realmente. Por isso, o ioga não pode ser autodidata se o seu objetivo é espiritual. Sinto que o principal da prática meditativa é você por você mesmo. Agora, se o ioga se declarasse uma religião perderia adeptos.

William: O ioga não é ciência e muito menos filosofia. Filosofia e ciência são criações ocidentais. O que caracteriza a filosofia, por exemplo, é estabelecer um pensamento racional para suportar conclusões. Dizer que o ioga é uma filosofia é uma apropriação indevida assim como o ioga é ciência também. No ioga não há nada lógico. É uma conclusão atrás da outra, e não premissas que levam a uma conclusão lógica, racional. O ioga é experiencial. Enquanto você não têm experiência, você precisa acreditar... crer em quem diz que teve. São critérios de validação diferentes. Isso não torna o ioga, a ciência ou a filosofia melhor, mas são critérios de validação diferentes.

113

Acima, pode-se entrever que entre os cientistas entrevistados é possível identificar semelhanças de legitimação de seus discursos com a fala dos iogues- mentores. Quando Andurá articula que a ciência não é “mentira” ou “criação religiosa”, toma para si, de alguma maneira, parte da posição de líder espiritual. Esse discurso é o que denominamos como a de um cientista-monge, pois ele se coloca como um “facilitador” – o equivalente, neste momento, de um líder do ioga - na condução de um “estado além”, um “outro estado”, no qual, como ele mesmo pondera, nem a ciência consegue explicar. Tanto Osiris quanto William também desautorizam o ioga como religião, talvez nem tanto (como Andurá) para galgar posicionamentos de liderança no microuniverso do ioga/meditação no Brasil, mas para desvencilhar seus trabalhos acadêmicos a mística dos estados de ioga. Estes, assim garantem, que se o ioga assumir para si a denominação de religião, perderá adeptos e se tornará ilógico e irracional frente ao público leigo que o pratica.

O ioga, dividindo-se, como visto na subseção anterior, entre técnica e estado, por um lado reduz o valor das compreensões estritamente fisiológicas da biomedicina, e por outro eleva as suas experiências e estados espirituais. Essa tática religiosa, constituída sem uma liderança em específico ou organizada, afasta qualquer redução da religiosidade de seus “estados” por parte de cientistas, mas torna fértil o terreno ao discurso negativo dos cientistas que buscam desmerecer retóricas ortodoxas de grupos ioguicos tradicionalistas no país. Enquanto o cientista Andurá se esmera em defender o estado místico de dhyana, como plausível de ser compreendido também como método ou prática de ioga/meditação, pode estar, na verdade, buscando enfraquecer a fala de iogues-tradicionalistas, mas não do ioga/meditação em si. Não é de se estranhar portanto, que o setor mais tradicionalista do ioga brasileiro se levante contra esse tipo de posicionamento. Um reflexo concreto dessa “fase de transição” se mostra na preocupação recente entre iogues brasileiros de preservar a pronúncia correta do sânscrito, do cuidado na tradução das escrituras e posicionamentos não velados em obras e sites da internet desmerecendo aproximações do ioga com outras religiões - como a católica, a daimista e a espírita. Mesmo carecendo de uma pesquisa mais abrangente, nossos dados apontam uma sensível mudança de posicionamento na comunidade ioguica brasileira de híbrida e permissiva aos sincretismos, para uma fase bem mais tradicionalista.

114

4.4.3. Fase de transição na comunidade ioguica brasileira em busca da sua identidade religiosa

Como vimos em outros capítulos, o ioga moderno se adaptou no seu deslocamento da Índia para os centros urbanos das grandes cidades ocidentais. O racionalismo empírico da ciência proporcionou a popularização do ioga como promotor da saúde via as suas repercussões fisiológicas de diminuição do estresse pelo relaxamento de suas práticas. O iogaterapia e o sincretismo religioso do Prof. Hermógenes no Brasil marcaram uma época mais híbrida do ioga, por outro lado, o seu aspecto físico foi, ambivalentemente, sendo mais ressaltado do que as suas escrituras advindas da espiritualidade hindu. Esse fato autorizou novos “iogas” e agentes surgirem ao microuniverso ioguico brasileiro, inclusive cientistas, sobretudo a partir dos anos de 2000 com a influência do ioga e cientistas-monges norte- americanos. Assim, a demanda também se diversificou. Nem todos buscam as aulas de ioga para a transcendência e comunhão com Deus, mas para diminuir dores nas costas, emagrecer, aumento do rendimento esportivo e etc. (SINGLETON, 2010).

O que está em jogo, entretanto, defendo, talvez não esteja na preocupação pela elevação do aspecto corporal e medicamentoso do ioga em contraposição à sua espiritualidade. A questão por trás no Brasil pode estar na transição da hegemonia do discurso híbrido para o despontar da ala tradicionalista em resguardo a legitimidade do ioga como espiritualidade singular no Brasil. Esse provável deslocamento sensível que vem ocorrendo imprime os tons de transição de discursos e marca a chegada de novos líderes e a saída de outros.

Ravi: O ioga passa por mais uma transição. A comunidade ioguica no Brasil melhorou dos tempos dos anos de 1980. Há alguns iogues de interesse sério, que falam a mesma linguagem, mas há outros que se preocuparam apenas com os ásanas (competição e moda). Ioga é para dar liberdade. Ioga é meditação. Mas no mundo moderno o ioga se desvinculou da meditação, por estar muito vinculado as posturas que compete com a educação física e perde espaço pela incompetência dos professores de ioga. A “Americanização do ioga” é sinônimo da predominância do lado físico do ioga. Muitos esqueceram-se da meditação, desatrelou-se uma coisa da outra.

Hermes: Estamos em uma fase de transição da fisicalidade para a não fisicalidade. Não há resgaste do ioga, mas uma correção de direção. (...) O ioga hoje esta sendo recontada por indianos, assim, passa-se por uma transição que a revisa pelo olhar dos próprios indianos. O ioga atual está todo errado, foi interpretado incorretamente.

115

Shanti: Em 2000 eu e o Ganesh dávamos cursos e lotava. Hoje não é mais assim. Acredito que ainda existe uma procura, mas há mais gente e tipos de ioga e assim, diminuiu a demanda. Há a concorrência com o pilates, [ginástica] funcional e novos estereótipos do ioga... Há um preconceito com os professores de ioga que cresce na mídia [cita a série da TV brasileira “Surtadas do Yoga” que é transmitido pela GNT como exemplo].

Bento ironiza: Todo mundo no ioga brasileiro se acha parte da centelha divina.

Osiris: Há uma tribo de iogalike... querem fazer parte de um grupo. O grupo do ioga é cool.

O principal aspecto que se mostra é a preocupação dos iogues e cientistas entrevistados à exagerada perspectiva física do ioga que se sobrepõe às manifestações, segundo eles, mais sutis e espirituais. O iogue DeRose, por exemplo, substituiu o nome “swasthya yôga” que carregou por décadas em suas escolas, para “Método DeRose” em meados de 2007-2008. Como ele mesmo relata em sua entrevista: “Precisei reformular-me e migrar do setor ioga para o setor cultural. O ioga está em um período de transição, sem dúvidas”.

Entre os iogues, é possível perceber uma mudança na forma como eles se percebem e à sua comunidade. Hermes diz que inclui ásanas em suas aulas, por exemplo, de forma estratégica e mercadológica, pois afirma: “As pessoas não querem ioga, querem o que veem nas revistas”. Ele inclusive confirma adicionar em sua formação de ioga muito de “saúde” para satisfazer os alunos, mas depois do primeiro mês começa a mudar o discurso para incluir a mente, o inconsciente e depois a “criação do espaço mítico [sic]”, influenciado, segundo ele, pela tradição dos Nathas (iogues medievais indianos) e tântricos (ELIADE, 2001, p.180-198). A iogue entrevistada Shanti declara algo bem parecido. Ela afirma que “o ioga sempre a salva”, mas com receio de tratar do ioga como religião e ser “mal interpretada”, direciona o conteúdo religioso no qual acredita, durante a prática física do ioga, que ela mesmo define “como um ritual em cima do mat [tapetinho de prática]”. E é esse ritual que possibilita seus alunos “conectarem-se novamente”:

Shanti: Prefiro enganar as pessoas que o ioga não é religião, pois sei que depois da prática elas vão se sentir conectadas, e isso é religião para mim. As pessoas do ioga não falam de religião, pois querem ter mais alunos.

Bento: No Brasil há um preconceito entre as religiões e os espaços de ioga. Mesmo entre os iogues, recebo muitas críticas devido as minhas relações com o cristianismo. Vou ser sincero com você: esse mercado do ioga é pior do que o da telefonia aonde eu trabalhava.

116

Centurion: Ioga no Brasil é business. Há uma briga por poder no ioga, mesmo na Índia.

Vishnu: O ioga possui um mercado e por isso não se falam em religião. O ioga se divide em estado de ioga-meditativo e um método ou prática. Este segundo é igual a qualquer outra religião.

Os iogues entrevistados chegam a declarar, como lemos, que omitem a se pronunciar sobre a religiosidade do ioga no qual acreditam abertamente para “não perderem alunos”. Não porque consideram algo menor intelectual ou ideologicamente, mas por questões de estratégia de mercado e adaptação social. Com o movimento da renascença indiana no início do século XX, como apresentamos, a religiosidade ioguica foi sendo traduzida pelos experimentos da ciência biomédica sobre as suas práticas. Desse modo, podemos supor que os resultados terapêuticos do ioga se sobrepuseram aos da sua ética espiritual, portanto, dos klesas. Não seria surpresa constatarmos que além dos klesas estarem sendo encarnados em estresse e emoções, o samadhi e kaivalya, venham também construindo correspondentes igualmente corporificados. Relembrando que samadhi aqui é interpretado como uma vivência religiosa transitória advinda das práticas corporais do ioga; e kaivalya o estado de libertação final das agruras da vida, portanto, o fim permanente da ação dos klesas, logo, do estresse-ioguico.

Como alerta Joseph Alter, o conceito de saúde foi ganhando novas perspectivas no contexto ioguico moderno e abrindo espaço para o espiritual como um modelo de terapêutica religiosa (ALTER, 2004, p.XII). Esse modelo estende-se também para os círculos acadêmicos como podemos assistir em hospitais e o próprio ministério da saúde brasileiro (SIEGEL, 2010). Entretanto, o proselitismo do ioga moderno em difundir-se como uma terapêutica religiosa imbricada com a ciência, e sem uma organização mais formal de estrutura religiosa, pode estar abrindo o leque de opções ioguicas no mercado religioso a tal ponto dos iogues perceberem a sua religiosidade sem contornos definidos.

Com isso, a ala ortodoxa ioguica no Brasil levanta a sua voz com receio de assistir passivamente a extinção do ioga pela “corporificação excessiva”, como alguns comentaram nas entrevistas que fizemos. Esses fatos, defendo, podem estar contribuindo para que diversas “linhagens” de ioga surjam competindo no mercado religioso brasileiro. A resposta do microuniverso ioguico do país frente a esse

117

panorama atual, pode refletir no retorno de discursos mais tradicionalistas, herdeiros da ortodoxia de DeRose, como se lê nas audições de Ganesh e Hermes:

Ganesh: o ioga é uma espiritualidade originalmente. Eu gosto da palavra “resgate”. Me considero responsável pelo resgate da tradição do ioga no Brasil. Faço parte de uma tradição ancestral de ioga. Há uns malucos neo- iogues que pregam algo diferente da tradição. Se utilizam de conceitos do vedanta sem fazer parte da tradição e misturam com um pensamento mágico... Eu sou contra a isso. Eu sou um guardião da tradição do ioga original. Sou seguidor de um sidantha. A minha opinião não serve para nada, pois eu falo através da tradição, não do meu ego. Me preocupo em não distorcer a palavra do vedanta, pois a visão do ioga é plenamente em si mesmo e plena. Não pode ser acrescida e nem tirada. É uma posição ortodoxa, irredutível, tenho consciência disso e não me arrependo, pois respeito a tradição. O ioga é uma visão que mostra uma possibilidade para você perceber-se vinculado com algo que você já é, e no qual você têm lampejos ou intuição, mas que você ainda não percebeu plenamente. É um método de transmissão dessa visão da tradição.

Hermes: O ioga tinha uma verve de terapia no seu início aqui no Brasil. Haviam aqueles que praticavam o ioga como terapia. Isso foi errado. O ioga não é uma terapia.

A crítica dos iogues no Brasil, dessa forma, pode não residir na fisicalidade do ioga, mas no seu pragmatismo terapêutico, ou seja, pelo seu exclusivo uso prático na remissão de doenças psicofísicas. O que, percebem os iogues-tradicionalistas, autorizam a entrada indiscriminada dos cientistas-monges e competição na legitimação das suas escrituras e práticas. No entanto, não há uma crítica direta a ciência, ou seja, ela continua importante mesmo aos iogues tradicionalistas que se mostram contra a fisicalidade de suas práticas. Verifico que a reforma soteriológica do ioga em andamento com relação aos klesas, talvez não exortarão as descobertas científicas; nem mesmo os iogues ortodoxos como Ganesh, Hermes e DeRose parecem intentar esse fato. Abaixo, descreverei com mais propriedade a dialética estabelecendo-se entre saúde-salvação-kaivalya e relaxamento-prática-samadhi, no intento de corroborar com estudos de outros países que já apontam o ioga como religião (DeMICHELIS, 2004; NEWCOMBE, 2005; JAIN, 2010):

Shanti: Não precisa ter fé no ioga, é fazer e vem a sensação. A ciência provocou uma certeza inabalável em minhas crenças [sic]. (...) as aulas de ioga precisam ser preenchidas de espiritualidade.

Rudrá: Não quero dar aula para pessoas doentes. Quero e sempre dei aulas para pessoas sãs. Mas sei que a prática pode prevenir de doenças, pois diminui o estresse. Posso relatar por experiência que os alunos vão

118

percebendo que a sua saúde melhora com a prática. A prática de ioga aumenta a consciência sobre a própria saúde.

Os iogues mais tradicionalistas parecem já ter percebido que a relação estreita ciência-ioga estabelecida ao longo de mais de cem anos, tem ultrapassado os ditames materialistas da ciência empírica. Essa aliança tríplice, marcada pelo diálogo entre iogues híbridos, tradicionalistas e cientistas-monges - nem sempre pacífica mas em equilíbrio dinâmico – é a possível responsável em comandar uma reforma em processo da proposta salvífica do ioga moderno no Brasil, mesclando dados da fisiologia biomédica sobre as práticas ioguicas e de seus antigos conceitos espirituais: klesas, samadhi e kaivalya.

4.4.4. A crença na ordem cósmica e prana estabelecendo dialética entre o estresse e o relaxamento espiritualizados no convívio social

Há a presença, no conteúdo de todos os iogues entrevistados, da crença de uma certa “harmonia perene” ordenada cosmicamente que é desfeita na experiência nefasta do estresse, responsável pelo desarranjo energético sutil, que viemos expondo desde o capítulo 2. Os iogues no Brasil acreditam no estresse como indicativo corporal e transfisiológico de desvio do caminho divino proposto para cada ser humano, aonde a doença estaria no centro dessa desarmonização em nível psicofisiológico. Mas qual seria a origem de tal sofrimento que tornou possível o estresse tornar-se o obstáculo espiritual, tomando o papel original dos klesas. As práticas do ioga, funcionam no Brasil, como profilaxia e tratamento espiritual de doenças como ansiedade, insônia e depressão. Como comentado por Osiris, com base em artigo científico, quase 20% dos paulistanos sofrem de desordens mentais deste tipo, que possuem como base fisiológica o estresse crônico. O estresse crônico, por sua vez, tem suas razões de manifestação nefasta decorrentes de estímulos psicofísicos decorrentes do meio em que se vive. Assim, desvelar o panorama social aonde vivem e atuam os agentes do microuniverso ioguico brasileiro (alunos/praticantes, professores, mentores e cientistas-monges) pode revelar o âmago de suas transformações soteriológicas em andamento.

119

O sofrimento humano no Brasil contemporâneo urbano, segundo Dunker, advém na perda de experiência de uma forma de vida social ainda não reconhecida, como apresentado em sua lógica do condomínio (DUNKER, 2015), que abordaremos abaixo. Por ora, me refiro ao sofrimento ioguico brasileiro como busca de uma vida social em harmonia, pois como já argumentamos no primeiro capítulo, o iogue moderno ao abandonar a vida solitária de asceta, se lança na procura da harmonia perene de kaivalya na vida urbana dos grandes centros ocidentais. Como demonstramos na subseção anterior com Guerriero, religiões surgem de contextos sociais e são expressões latentes das maneiras encontradas destes grupos conviverem, resolvendo problemas e adaptando realidades. Portanto, o microuniverso do ioga brasileiro pode refletir uma promessa de vida boa em resposta aos anseios de uma camada específica da sociedade urbana bastante estressada, pois como exaustivamente argumentamos até aqui, os klesas, causa do mal, estão sendo corporificados em reações como desejo, ódio, medo e egoísmo, frutos da ignorância de não saber o que estão fazendo com suas vidas, por isso a crença na ordem cósmica. A crença numa ordem cósmica pode prover de sentido a alienação da vida. Há, talvez, permeando o nosso objeto, uma esperança metafísica (quase milenarista) de um lugar melhor para se viver. O que os iogues brasileiros buscam, talvez esteja, mais do que o egoísta equilíbrio físico e mental, na harmonia social.

A promessa edificada pelos brasileiros, de “harmonia social” e a “imagem de felicidade”, nas expressões do próprio Dunker, podem ter sido colhidas, sobretudo, do cinema e programas televisivos norte-americanos e “revestidas de ascetismo” (ascetismo aqui empregado no sentido de alcançar uma vida), mas refletidas dentro dos condomínios: ilhas imaginárias que refletiriam a ordem nas relações sociais (DUNKER, 2015, p.50-51). Havia, no imaginário brasileiro do início da década de setenta (com a construção de Alphaville em São Paulo) os condomínios como projetos ideários de amor e amizade, de uma vida social sem “muros e grades” (Ibid., p.48). No entanto, complementa o autor, o plano “teológico e metafísico” da vida social harmônica em condomínios no Brasil escapou do esperado:

A forma de vida em condomínios vem sendo retratada, de forma sistemática, como repleta de mau gosto, investida de artificialidade, de superficialidade e esvaziamento. O crime ressurgiu dentro dos condomínios: primeiro, pequenas desobediências de trânsito, depois, consumo de drogas e, finalmente, desavenças entre vizinhos.” (Ibid., p.51).

120

É possível entrever essa “lógica do condomínio” de Dunker na fala dos iogues. Mesmo não podendo afirmar que todos os iogues brasileiros vivam esse panorama descrito por Dunker, é bem provável pelo público de alta renda que circula no microuniverso ioguico do país que não fuja muito deste cenário. Só para se ter uma ideia, a revista norte-americana Brasil, especializada em ioga no Brasil, necessita de um investimento de R$16,90/mês, a mensalidade média de duas aulas semanais de ioga gira em torno de R$ 350,00/mês, um curso de formação R$ 4.500,00 e as viagens anuais de peregrinação à Índia não saem por menos do que R$ 15.000,00. Definitivamente, a religiosidade ioguica não é para todo mundo, mas ao que tudo indica, aos moradores dos condomínios fechados de São Paulo, Rio de Janeiro, Florianópolis, Belo Horizontes e outras cidades de alto poder aquisitivo. De qualquer forma, a narração dos iogues-mentores, que ensinam e convivem com esse grande público, muitas vezes, por mais de um mês - em retiros, cursos de formação e longas estadas nos melhores hotéis da Índia - refletem uma grande insatisfação e estresse com a vida em que vivem:

Ravi: Vivemos papéis que são falsos (pai, cientista, professor). Antes de nascer já éramos alguma coisa e depois de morrer continuaremos ser. O que somos então? São as identificações dos papéis [que ocupamos] que originam o sofrimento humano.

Hermes continua: o personagem constrói a realidade física da pessoa. Há um eu por trás que você já é.

Ganesh: O estresse existe, mas não tem razão de se deixar manifestá-lo físico e mentalmente, pois o estresse é fruto da ignorância de não se perceber dentro de uma ordem [cósmica]. Todos nós somos parte dela. As causas do sofrimento humano está em não se compreender que você não é o papel que ocupa [na sociedade ou família]. O ioga lhe dá a possibilidade de você perceber-se algo que você já é, mas que você não percebe plenamente.

Vishnu: Os obstáculos do ioga são nossas próprias máscaras.

Rudrá: Os obstáculos sou eu mesmo que construo.

Shanti: Isvara é a consciência que permeia tudo. Estamos imersos em Isvara. Não temos consciência dele, mas o ioga ajuda na conexão com deus que está dentro de nós. Eu me conecto comigo, eu me conecto com o universo. Há um plano maior de Isvara.

Andurá: a meditação nos ajuda a contar menos histórias sobre nós mesmos. Sob o ponto de vista operacional, a meditação é um procedimento autoinduzido e com técnica específica. Mas os dois itens operacionais mais importantes são aqueles que chamamos de “âncora” e de “relaxamento da lógica”. Âncora é um artifício de autofocalização. O relaxamento da lógica

121

consiste em não se envolver nas próprias sequências de pensamento. Como isso é possível? Ora, mantendo a atenção na âncora, guardando apenas um pouquinho de energia para uma sutil atenção ao eventual envolvimento em sequências de pensamento. Sempre que o meditador se perceber envolvido nelas, ele deve “abandoná-las” e voltar sua atenção apenas para a âncora.

Esses discursos denotam, como dissemos, a crença de que existe algo perene, em harmonia eterna e imutável, mas que perdemos ou nos “desconectamos” com o advento do estresse, nos tornando ignorantes, portanto, de quem somos, mas sobretudo, de como vivemos. Essa promessa de harmonia divina é purusa inserido na vida em sociedade. Mesmo na fala do cientista Andurá, há uma crença em algo perene e harmônico que se manifesta “no relaxamento da lógica”. A ignorância, klesa-mãe de todos males, se ressignifica fisiologicamente, no estado do estresse, na “sequência dos pensamentos” que devemos “abandonar” para compreender algo que ainda não conhecemos, que perfaz “nossas máscaras” que os klesas-estresse encobrem. Os iogues julgam que tudo o que pensamos ser faz parte da construção de um “personagem”, de uma ilusão. Imagem muito parecida com a descrição da vida em condomínio retratada acima. É o antigo conceito de maya ou avidya, mas revisitado modernamente por influência da biomedicina, mas a sua origem manifestante pode estar, em última instância, na sociedade em que os iogues vivem e/ou percebem e buscam, como todas as religiões, maneiras de resolver.

O estresse-ioguico pode estar representando agora um desequilíbrio também na vida social, concebido como desordem cósmica pelos iogues. A doença para eles, pode significar um indicativo de viver fora da proposta de Deus, da ordem cósmica, como argumentam. A biomedicina ocidental, ao lado das escrituras ioguicas, também autorizam aos iogues - pela “comprovação científica” – que uma vida em desarmonia, provoca o mal manifesto em doenças advindas do estresse cotidiano e, consequentemente, de uma vida agitada e sem o descanso/relaxamento adequados. Os iogues e os cientistas, podem estar, logo, tecendo uma critica ao estilo de vida moderno, como afirma a cientista Osiris:

Osiris: Ioga é para redução de estresse. A resposta do estresse salva vidas. Mas na cultura do ioga o estresse atinge o status de ser melhor manejado. Os iogues buscam diminuir o estresse, aumentar o bem-estar e ser alguém melhor. Não ser tão afetável pela sociedade moderna, de consumo e estressada, é um dos grandes objetivos dos iogues com quem convivo e estudo. (...) As posturas do ioga podem diminuir as aflições mentais e conduzir ao relaxamento. Nunca vi ninguém meditar sem relaxar, é a

122

primeira fase da meditação. (...) O ioga tem uma vertente “terapia” sim. Ioga é instrumento anti-estresse pela maiorias das pessoas. Só para se ter ideia, uma pesquisa recente [2012] com habitantes da cidade de São Paulo, indicou que 20% da população é afetada por desordens mentais de ansiedade. O ioga e a meditação dispõe de meio concretos e de baixo custo para amenizar o sofrimento de muita gente.49

O estresse e o relaxamento, desse modo, parecem estabelecer relação com a nova espiritualidade ioguica brasileira e auxiliam na sua proposta de salvação ou de fim do sofrimento. Mais do que a busca por uma boa vida reclusa e de afastamento social, os iogues modernos almejam alcançar a vida que vale a pena ser vivida no convívio com outras pessoas. É lícito supor, que os iogues que orbitam o seu microuniverso, podem estar propondo, além de técnicas “anti-estresse”, uma via de salvação/libertação que promete a possibilidade de uma existência em comunhão feliz e sem estresse, através de práticas espiritualizadas de relaxamento e busca de uma vida harmônica, tanto psicofísica, quanto social e espiritual.

As informações colhidas nas entrevistas com os cientistas sobre a relação estresse-ioga parecem corroborar as nossas argumentações. As duas falas ioguicas abaixo, novamente reproduzem a dialética estabelecendo-se entre klesas-estresse, samadhi-relaxamento e kaivalya-homeostase.

Shanti: Reagir é algo negativo porque não se tem consciência na reação. O ioga lhe traz para o momento presente. A prática no tapete é um ritual de nos trazer para o presente, o Eu.

Rudá: o ioga diminui a agitação, o estresse e a ansiedade da minha vida, ao mesmo tempo o ioga me dá energia, me tira de um estado torpor e me deixa no estado de ioga. O estresse me desconecta e me faz sair do estado de ioga... a união. A respiração [pranayama] me traz para o aqui-e-agora e diminui os meus vrttis [causador da agitação mental advindo dos klesas] e meu estresse.

O estresse-biológico, como já expomos repetidas vezes, é uma reação autônoma do organismo a qualquer agente/estímulo estressor. Mas na cosmovisão ioguica moderna, a referência ao “reagir”, como vimos no discurso de Shanti acima, é sempre algo “negativo”, o próprio “mal” ou klesa. Portanto, é imprescindível que as práticas ioguicas eliminem ou purifiquem o corpo-mente de suas manifestações.

49 ANDRADE, L.H. et al. 2012. Mental disorders in megacities: findings from the São Paulo megacity mental health survey, Brazil. PLoS One, 7(2): e31879.

123

Qualquer reação automática - leia-se comportamento - que produza estresse, é geradora inequívoca dos klesas e precisam serem removidas. Os argumentos que os iogues e os cientistas alinharam sobre o estado meditativo/ioga, sugerem que “reagir sem pensar” é prejudicial, causa da dor e sofrimento, portanto. Explico-me melhor: quando o cientista Andurá afirmou anteriormente que o meditador experiente (iogue-mentor ou cientista-monge) perde a sua capacidade tanto de sentir emoções extremas quanto de se envolver na sequência de pensamento, significa que durante esse momento transitório do estado de ioga/meditação, pode controlar as suas reações instintivas, portanto, inconscientes. É o mesmo que Shanti denominou do “reagir sem pensar” como negativo, e que o iogue Rudá asseverou, quando afirma o ioga conseguir removê-lo do “estado de torpor” da sua vida.

Se a resposta inata de luta-fuga, promovida por agentes estressores é o reagir “sem pensar” ou “inconscientemente”, está intrínseco (digamos até biológico-inato) que o estresse se torna um obstáculo para o ioga e sinônimo de klesa, como mostrado no capítulo 2, mas não por motivos biomédicos apenas, mas sobretudo, pois furta transitoriamente a “consciência” do seu “estado presente”, como alguns entrevistados descreveram como empecilho a se atingir o estado de ioga. Relembremos que no capítulo 1, ioga é cessar voluntariamente as modificações da mente/consciência e não extingui-la, como Patanjali no sutra 1:2. A doença, metáfora para o sofrimento espiritual dos iogues brasileiros, pode revelar-se, em nível social, uma existência ignorante50, de tomada de decisões sem pensar ou viver em “estado de torpor”, como adiantou Rudá. Já é possível conjurar neste momento da reflexão, que o estresse-ioguico pode ser interpretado ultrapassando os reduzidos limites das representações físicas e mentais. A crença na ordem cósmica e energias transfisiológicas, pode justificar o estresse e o relaxamento estarem conquistando caracteres espirituais de convívio social mais benfazejos e seguros.

50 Em termos gerais, o conceito de ignorância que vem do sânscrito avidya, significa ser ignorante da sua real natureza e do seu real relacionamento com o mundo, que resulta em instância espiritual, sofrimento (ver JOHNSON, 2010, p.40).

124

4.4.5. A busca pela homeostase eterna por meio do relaxamento espiritualizado

Sem dúvidas o relaxamento, como já comentamos, é uma construção moderna do ioga por meio da ciência. Foi a ciência, e não as antigas escrituras ioguicas, que demonstraram a manifestação do relaxamento como resultado da prática de ioga e benéfica para a saúde dos seus adeptos. Provavelmente, mesmo que inconsciente, por ser uma experiência antagônica ao estresse, o relaxamento pode ter sido eleito a referência física benéfica da espiritualidade do ioga; e o estresse, o mal a ser combatido.

Bento: O relaxamento é uma referência física do estado de ioga.

Ravi: O relaxamento é uma característica do ioga.

Vishnu: O ioga é relaxamento.

Ganesh: O relaxamento é uma parte inicial do ioga. Para se compreender quem se é, a pessoa precisa estar relaxada, segundo a minha tradição.

Shanti: O relaxar nos ajuda a estar presentes.

Rudrá: Não consigo pensar no ioga sem o relaxamento que ele produz.

O relaxamento veio adquirindo, assim, ao longo das últimas décadas, uma acepção maior do que apenas referência física: o relaxamento pode ter conquistado o status de espiritual e convidado a participar da proposta de salvação/libertação do ioga moderno (SINGLETON, 2005). Em nenhum outro momento histórico do ioga, o relaxamento é citado em suas escrituras. Na verdade, como já discutimos, o relaxamento foi introduzido no ioga a partir da psicologia de W. Reich, das explicações biomédicas de Petho Sandor e da educação física, por isso, o “bem-estar” e o “estar presente” dos relatos acima, aparecem com o “estado” dos iogues em vivenciar o todo maior organizado e determinado pela ordem cósmica, que relatamos acima. Os iogues que entrevistei acreditam ter um papel a cumprir no universo, e o relaxamento é o meio que os ajudam a compreender-se ou não na senda correta do ioga, no caminho para Deus.

O conceito de “conectar” citados ao longo deste capítulo, nos fornece duas ideias importantes a considerar: a primeira é a do ioga nos restaurar a um plano de vida divino; e o segundo, é a dialética que o ioga estabeleceu entre perceber-se nesta ordem cósmica ou equilíbrio perene com o adoecimento. A doença, assim, assume

125

tanto o papel de punição ou aviso divino de estar fora do desígnio projetado por Deus/Isvara. Introduzo essa discussão a partir de uma citação do iogue Ganesh publicada em uma importante revista especializada em ioga no Brasil, sobre como ele compreende a depressão e a ansiedade:

Ganesh: Se a ansiedade é a dificuldade para lidar com o excesso de aprêmios no cotidiano, a depressão é a falta mais absoluta de horizontes, estímulos ou inspiração para agir. Assim, se quisermos ficar distantes desses dois extremos, devemos encontrar o caminho do meio. Isso é chamado sattva. Ioga é um relaxamento dos pensamentos. O mundo está estressado e precisa de relaxamento. O ioga então é uma proposta filosófica-espiritual para isso. Relaxamento é a parte inicial do ioga. Para se compreender quem se é, precisamos estar relaxados, segundo a minha tradição. Relaxar, focar, expandir, reavaliar seus paradigmas, isso é a meditação propriamente dita. Emocionalmente falando, o ioga nos ensina a colocar-se. Isto se traduz numa postura mais serena e numa melhor disposição no cotidiano. O relaxamento e os exercícios de concentração tomam conta desta esfera. O ioga possui como efeitos mais evidentes deixar o praticante em estado de equilíbrio.

Assim como Hermógenes e Smith (2008), Ganesh resgata novamente a ideia de sattva ou “estado de equilíbrio” rompido pelo “mundo estressado”. O ioga foi traduzido nas entrevistas de alguns iogues-mentores como sinônimo de “relaxamento dos pensamentos” ou “para se compreender que se é, precisamos de relaxamento”. Desse modo, quando a ciência define homeostase, como um estado de equilíbrio orgânico ideal na fisiologia biomédica, mas impossível de se conquistar sob a perspectiva da ciência; dentro da espiritualidade ioguica moderna, ela se torna a própria tradução da liberdade conquistada pelo equilíbrio (corporal, mental, social e espiritual) desejado. É plausível, logo, considerar que o estado de homeostase adquirindo a categoria equivalente a kaivalya: “o caminho do meio” ou estabelecimento permanente em sattva. O grande causador ou obstáculo espiritual do ioga moderno, o estresse e o medo, são forças maléficas que impedem o estado de homeostase estabelecer-se definitivamente. A luta entre o mal e o bem ioguicos, podemos supor, se arrefece a cada relaxamento espiritual promovido pelas suas práticas.

Ravi: Relaxamento é uma característica do ioga. Ioga é um processo de relaxamento dos pensamentos. O mundo está estressado e precisa de relaxamento. O ioga então é uma proposta filosófica espiritual para este fim. O grande perturbador do ioga moderno. Ficar quieto é um problema para a sociedade moderna.

126

Vishnu: O ioga é sinônimo de relaxamento. O estresse impede ao estado.

Bento: o relaxamento é uma referência física do estado de ioga.

Osiris: O bem-estar que o ioga me traz me provoca o relaxamento, e o relaxar nos ajuda a estar presentes.

Rudrá: Não consigo pensar na prática do ioga sem o relaxamento que ela produz. O estresse me desconecta e me faz sair do estado de ioga, de união.

Andurá: O relaxamento corporal e a respiração ioguica adequada já o prepara para uma prática meditativa.

Osiris: Nunca vi ninguém meditar sem relaxar, é a primeira fase da meditação.

Centurion: O ioga é a união para harmonizarmos. O ioga é a união das diversidades. O ioga nos deixa com um mental mais calmo, equilibrado.

DeRose: o estresse impede ao samadhi.

Shanti: O estresse nos afasta, nos desconecta. O ioga abaixa o estresse, acalma a mente... aterra, e assim, nos ajuda a conectar novamente.

Hermes: No ioga moderno o estresse ocupa um lugar que não fazia parte do ioga antigo, que ele está revelando. A diminuição do estresse físico tem uma correlação direta com moksa [equivalente a kaivalya].

Posso pensar agora que, para o iogue compreender o seu lugar social na ordem cósmica, é preciso atingir antes uma profunda vivência de “relaxamento” a partir das técnicas ioguicas. O estresse, portanto, o estado antagônico ao relaxamento, pode estar sendo concebido modernamente como condição espiritual que afastaria os iogues do seu objetivo: o kaivalya (lit. liberdade). Mesmo entre os cientistas entrevistados, revelou-se que a prática de ioga pode estreitar relação positiva entre o relaxar e a ponderação dos próprios problemas cotidianos.

Andurá: Com um relaxamento corporal e a uma respiração adequada, você já está bem preparado para uma prática meditativa. A busca é alcançar o relaxamento da lógica, que demora em torno de 5-10min.

Osiris: as posturas do ioga podem diminuir as aflições mentais. Nunca vi ninguém meditar sem relaxar, é a primeira fase da meditação.

William: Sempre que estabeleci uma rotina de meditação/ioga obtive maior serenidade em meus comportamentos com os outros.

Abaixo reforço, propositadamente, essa questão do equilíbrio inato e perene na fala dos iogues para revelar suas lógicas com a homeostase-kaivalya:

127

Ganesh: O ioga lida com aquilo que é universal e eterno, que não muda. Os valores [do ioga são] universais e suas diferentes aplicações, bem como as formas de encontrar a felicidade e a liberdade que são inatas a nós mesmos. Filosofias vão e vem, como opiniões e teorias, mas a visão do ioga permanece.

Hermes: O ioga me dá a convicção, a certeza que estou no caminho certo. Algo ou alguém cuida de mim e de você. O ioga lhe dá estabilidade para perceber isso, você se apoia em você mesmo. E isso o liberta para se realizar no mundo.

Rudrá: O ioga ajuda a afirmar nosso propósito de vida, nosso dharma ter um propósito, um Dever a cumprir.

Shanti: O ioga me mostra que cada um de nós veio para fazer algo.

As ideias da harmonia eterna e divina e do relaxamento espiritual se complementam. Neste ponto, a iogue Shanti nos auxilia quando esclarece o processo do equilíbrio energético como o oposto ao estado deletério do estresse no ioga e iniciado com iogues renascentistas que revelamos no capítulo 1 e exposta anteriormente com as obras iogaterapêuticas de Hermógenes:

Shanti: A doença tem a ver com a sua história pessoal; tem um sentido. Se eu não praticasse o ioga seria obesa e depressiva [sic]. A doença é uma desarmonia da energia sutil. Os chackras desalinhados repercutem em doenças. A energia (prana) circula e a sua má circulação ocasiona em doenças. O ioga é uma forma de se conectar consigo mesmo. O ioga afina o corpo, que com a doença desafina, como um instrumento.

Como comentamos no terceiro capítulo, a história pessoal do Prof. Hermógenes com o ioga também ocorreu por meio de uma doença: a tuberculose. A partir daí, os seus ensinamentos ioguicos sincretizaram a doutrina ioguica, com a advinda do cristianismo popular brasileiro combinados com os benefícios terapêuticos do ioga para a saúde descobertos cientificamente. Foi o Prof. Hermógenes, como apresentei, que consolidou no Brasil o mote ioga-saúde-salvação e disseminou, por meio de suas obras, o ioga como terapia no Brasil.

Permanece a crença em energias sutis, como teóricos já alertaram nos capítulos anteriores. Entretanto, a ideia do desalinhamento energético originado pelo estresse, se reflete em doenças físicas e mentais advindas, ao que parece ser lícito julgar, de problemas também do meio social. Para o microuniverso ioguico brasileiro, o câncer em Shanti, a tuberculose em Hermógenes ou as origens da ansiedade e da depressão, como comentado por Ganesh, possuem as suas causas em desarranjos

128

energéticos transfisiológicos, fruto do estresse cotidiano. Em outras palavras, de uma vida vivida fora da ordem cósmica, de uma vida alienante que, em última análise, pode ter ligação com uma narrativa ioguica do mal-estar de um microuniverso de brasileiros. A doença manifesta física e mentalmente, seria apenas um sintoma do mal-estar de origem espiritual, cármica possivelmente.

129

Capitulo 5

A REFORMULAÇÃO DA PROPOSTA SOTERIOLÓGICA DO IOGA NA MODERNIDADE: KLESAS, SAMADHI E KAIVALYA SE CORPORIFICAM POR UMA FISIOLOGIA RELIGIOSA EM ANDAMENTO NO IOGA BRASILEIRO

5.1. Meu caminho até aqui

Apresento no capítulo 1, a proposta soteriológica do ioga clássico mostrando que o obstáculo espiritual estava contido na teoria dos klesas. Os klesas, por sua vez, foram apresentados por Patanjali, no Ioga Sutras, como cinco comportamentos: Ignorância, Apego, Aversão, Medo da morte e Orgulho. Seriam eles, portanto, o cerne do mal do ioga, motivo de todo sofrimento humano (dukha). O klesa-Ignorância, precursor de todos os outros, nasceria de uma mente/consciência entorpecida (citta- vrttis) no contato da alma (purusa) com o corpo e o mundo (prakrti), enredando os seres humanos no ciclo de samsara. A visão de mundo é dual e a reencarnação possui caráter negativo (GULMINI, 2002).

Os iogues clássicos acreditavam que existiria uma ordem cósmica e as suas posições sociais, vivendo em uma rígida estrutura de castas, eram determinadas pelos deuses e mantidas pelos sacerdotes brâmanes, a mais alta casta desta estrutura social, religiosa e política. A proposta soteriológica do ioga deste período, sendo erigida e mantida pelo clero, determinava oito passos espirituais (asthanga-ioga) que prometiam o cessar do turbilhão da mente/consciência (citta-vrttis) em direção a comunhão com deus/Isvara e o fim da vida enredada por samsara, portanto, do sofrimento humano (dukha). O samadhi constituiu o último passo espiritual da via salvífica do ioga e é apresentado como uma experiência religiosa – transitória - do cessar voluntário de citta-vrttis. Com o cessar da mente/consciência, adviria a harmonia energética transfisiológica de prana no complexo corpo-mente/consciência, denominada de sattva. Neste espaço transitório de samadhi, fruto da prática corporal do ioga, os devotos experienciam o retorno em sua real natureza divina - purusa - ou estado Imaculado da alma em eterno equilíbrio sattvico. O kaivalya, o estado Último do ioga, é logo, representado como o momento em que o estado transitório do samadhi se converte em permanente cessar de citta-vrttis. O devoto em kaivalya se

130

liberta em vida do klesa-mãe Ignorância e compreende samsara sem as ilusões (maya) que o envolviam na dor (dukha) e no sofrimento humano (klesas) (Ibid.).

Na fase histórica posterior, o ioga adentra ao seu período medieval ou pré- moderno. Estamos agora por volta do séc. X e a configuração social da Índia também se altera. Dentro desse novo panorama social e político, surge uma tradição de iogues- místicos denominados de hatha-iogues ou iogues do corpo. Estes, agora, dispensam o sentido de pertença na alta casta sacerdotal para serem ordenados líderes espirituais no ioga e, indícios históricos apontam, serem os hatha-iogues os responsáveis em popularizar as práticas incrementando as suas técnicas corporais e imbricando-se com a medicina ayurveda, o tantrismo, o budismo, o islamismo e a versão não-dual do Vedanta Advaita (LIBERMAN, 2008, p.100-116).

Os hatha-iogues questionam a infalibilidade dos Vedas e a legitimidade bramânica na manutenção social em castas. A tradição hatha-ioguica diminui os valores das escrituras e supervalorizam as suas práticas corporais. A exemplo dos místicos judeus e cristãos, os hatha-iogues elevam as técnicas corporais dos iogues clássicos (ásanas, pranayamas, mudras, mantras, kriyas) ao nível de rituais de comunhão com deus sem a intermediação de sacerdotes instituídos pela estrutura religiosa hinduísta vigente. Um exemplo são as descrições do samadhi, agora, carregadas de símbolos de uma fisiologia transfisiológica espiritualizada, aonde sensações corporais e poderes mágicos () obtém posição importante em sua cosmovisão. Desse modo, enquanto os klesas para os iogues clássicos eram conquistados exclusivamente por uma rígida ética religiosa pautada na doutrina, os iogues pré-modernos dispensam as escrituras erigidas e mantidas pela elite sacerdotal indiana, e encontram meios singulares de afastar os klesas-Mal de suas vidas por meio de práticas rituais (PANCHAM SINH, 1914, p.63; SOUTO, 2009, p.238).

O período pré-moderno do ioga marca, assim, uma época de contestação da ordem cósmica bramânica e estratificação da sociedade indiana, transformado os klesas em bloqueios energéticos transfisiológicos e responsáveis pela manifestação de doenças. A reencarnação ainda era um problema, pois as castas permaneciam instituídas pelo clero hinduísta e incorporadas pela cultura vigente, mas a medicalização e a corporificação do ioga carregavam consigo o objetivo implícito espiritual de prolongar a vida do hatha-iogue na busca por kaivalya e afrontar o status

131

quo social, político e religioso da sociedade indiana medieval (ELIADE, 2001, p.205- 209; SOUTO, 2009, 46-50).

No capítulo 2, descrevo como a partir de 1858, com a chegada da colonização inglesa na Índia, o ioga se defronta com a perspectiva do mundo ocidental moderno, sobretudo a realidade empírica da ciência e a moral cristã protestante. Os klesas, como ética religiosa, definitivamente deixam de fazer qualquer sentido frente ao pensamento “lógico” de seus colonizadores, que rejeitam as práticas físicas e crenças em energias metafísicas, como métodos aniquilatórios do Mal/klesas. Dessa forma, a partir de 1920, uma nova geração de hatha-iogues surge, influenciando e influenciados por um movimento contracultural conhecido como Renascença Indiana, que visava a independência do seu país do colonialismo inglês (FARQUHAR, 1915, p.387-429). Estes iogues modernos aventuram-se a demonstrar, pela “lógica” científica, o poder terapêutico de seus rituais corporais na promoção da saúde, principalmente pela resposta psicofísica ao relaxamento, diminuição do estresse, elevação do sistema autoimune e condicionamento físico, agora corroborados também pela ciência fisiológica da biomedicina ocidental. As escrituras ioguicas de outrora, de Patanjali a Matsyendra, vão sendo ressignificadas por novos conceitos e sendo incluídos a fisiologia religiosa do ioga (SIMÕES, 2011).

Modernamente, considerações antes transfisiológicas e místico-mágicas como prana, nadis, kundalini e chackras ganham correspondentes da empiria fisiológica como sistema nervoso simpático, glândulas endócrinas, áreas encefálicas, neurotransmissores e hormônios. As práticas ioguicas são agora, investigadas nos maiores e bem conceituados laboratórios de fisiologia do mundo, e as suas repercussões clínicas dissecadas por tomógrafos e ressonantes magnéticos. Os klesas modernamente, assim como ocorreu em suas escrituras, foram sendo ressignificados por conceitos psicofisiológicos empíricos da ciência ocidental: o klesa-Ignorância ganha contornos de estresse; o Apego se converte no sentimento de desejo; a Aversão em ódio; o Medo da morte em temor de envelhecer e adoentar; e o Orgulho em egoísmo (BALSEV, 1991; BHAVANANI, 2007; RAO, 2012).

No capítulo 3, no intento de restringir meu objeto, fui investigar os klesas no contexto brasileiro. A escolha por esse afunilamento se deve, como argumento com mais propriedade no texto, pelo isolamento por quase setenta anos desde a chegada do

132

ioga no continente latino-americano até a vinda do primeiro mestre iogue verdadeiramente indiano no Brasil. Esse fato pode revelar a estrutura que rege as adaptações do ioga moderno quando transplantado para as sociedades urbanas ocidentais, mas sem a influência da cultura indiana, como nos países em que ele foi implantado pelas mãos dos próprios iogues indianos (SINGLETON & GOLDBERG, 2014). No Brasil especificamente, por barreira idiomática ou desinteresse proselitista, este período de insulamento possibilitou ao ioga verde-amarelo construir o seu sentido de existência espiritual entre dois personagens principais – Hermógenes e DeRose - (GNERRE, 2010) e mesclando religiões populares), como o catolicismo, o espiritismo, a umbanda, o santo daime e a medicina ocidental.

O caminho de estabelecimento do ioga brasileiro passou por fases distintas e é marcado por disputas internas entre iogues mais permissivos a sincretismos, os iogues-híbridos: com o objetivo de popularizar a filosofia e prática religiosa do ioga; e outros mais ortodoxos e “puristas”, os iogues-tradicionalistas: que buscaram o sectarismo da prática e de sua filosofia numa posição de preservação da “essência” do ioga. Essa disputa originou uma estrutura religiosa regulatória “invisível” e não- institucionalizada, mas responsável em manter, produzir e aniquilar elementos soteriológicos e bens de salvação ao ioga brasileiro. Os klesas e suas novas configurações, com certeza, passaram (e passam ainda) pelas mãos dessa estrutura religiosa regulatória. Por isso, saí a campo para entrevistar líderes híbridos e tradicionalistas do ioga brasileiro e conhecer o que eles compreendem hoje como as causas do Mal, e/ou se a teoria ética dos klesas clássicos ainda trazem conforto espiritual frente o sofrimento de uma parcela de brasileiros que frequentam aulas de ioga regularmente com fins espirituais.

No capítulo 4, escolhi dez iogues (entre híbridos e tradicionalistas) e mais três cientistas brasileiros que investigam as práticas ioguicas exclusivamente com fins terapêuticos. Dos resultados apresentados, vimos que: 1) a junção do ioga com a ciência biomédica convidou profissionais da área da saúde adentrarem ao microuniverso religioso do ioga como “facilitadores” na aplicação dos princípios éticos, terapêuticos e de condicionamento psicofísico ao público leigo, competindo com iogues híbridos e tradicionalistas. Como resultado, 2) um novo tipo de líder de ioga surge, os cientistas-monges, que intensificam ainda mais a corporificação e medicalização do ioga, mas sobretudo, ajudam a legitimar o discurso da fisiologia

133

religiosa de híbridos e tradicionalistas em uma simbiose ambivalente. Os líderes de ioga no Brasil estabeleceram, assim, 3) uma latente dialética entre saúde-salvação. Contudo, para manter o ioga como um movimento religioso e não se desintegrar como prática laica e diferenciar-se das espiritualidades terapêuticas Nova Era, produziram uma distinção entre 4) “prática ou método” e “experiência ou estado” de ioga. Essas distinções auxiliam à sua estrutura religiosa do ioga em andamento deslegitimar ou aceitar métodos/práticas de ioga atuarem no seu microuniverso em formação ou serem excluídas como heréticas. Duas crenças, no entanto, permanecem vivas dos períodos históricos indianos anteriores: 5) a crença em energias transfisiológicas (como prana, kundalini, chackras e nadis), e 6) em uma ordem cósmica que rege o mundo.

Se buscarmos localizar aonde se encaixam a teoria do klesa-estresse/Mal, a resposta certamente deve surgir na dialética estabelecida entre saúde-salvação, da crítica social em que os iogues vivem, mas traduzida por uma linguagem simbólica religiosa condizente com a sua nova fisiologia.

5.2. O ioga moderno como produtor de rituais de cura/healing

Mostrei até aqui a ciência se apoderando de muitas das práticas ioguicas, ao mesmo tempo, fornecendo respostas neurofisiológicas para narrativas fisiológicas espirituais do ioga moderno. As técnicas do ioga moderno se transformaram em soluções biomédicas anti-estresse, auxiliando a medicina ocidental criar uma dezena de novas formas de tratamento de baixo custo para as mais diversas enfermidades. O próprio Ministério da Saúde Brasileiro instituiu práticas de ioga e meditação em suas unidades básicas de saúde e criou um novo setor que estuda implantações de terapias antes alternativas, agora integrativas e complementares. Em suma, há um crescente interesse no ioga como terapia. Dessa forma, seria lícito supor que o ioga se encaminhe para secularização (CARRETE & KING, 2005). Mas não é só isso que constatam as pesquisas no âmbito das ciências da religião.

Para Andrea Jain, o ioga moderno não seria uma terapia secular ou um mero produto espiritual do mercado religioso de consumo Nova Era, mas descendente de uma religiosidade indiana mais antiga, inserido aos problemas contemporâneos do seu

134

encontro com o mundo moderno ocidental (JAIN, 2010, p.95-125). A autora analisa em seu livro , que o ioga moderno derivaria a sua definição de duas forças históricas: a cultura de consumo advinda do capitalismo globalizado, e de um desdobramento do pensamento do ioga pré-moderno ou medieval indiano. Ela credita a capacidade do ioga de se moldar em novos formatos sem perder certa homogeneidade espiritual. Ela confirma ser o ioga atual fruto da cultura de consumo (CARRETE & KING, 2005), mas que não possui apenas significados e funções utilitaristas ou hedonistas, pois todas as religiões atuantes hoje em dia passam e passaram pelas mesmas adaptações, essa crítica, logo, não seria exclusividade do ioga. O ioga moderno vem se estabelecendo, conclui, como uma verdadeira prática religiosa corporal como respostas às adversidades contemporâneas (JAIN, 2010, p.172-174).

Com relação aos valores e ética modernos do ioga, Jain corrobora conosco dizendo que o problema do sofrimento no ioga moderno – contidos no complexo klesas, samadhi e kaivalya - está intrinsecamente ligado a questão da saúde (JAIN, 2010, p.95-129). Apresentamos em outros momentos que na antropologia da doença é bastante investigada a dialética estabelecida entre saúde-salvação e doença-sofrimento espiritual (HANEGRAAFF, 1998; LAPLANTINE, 2011, p.213-252). O ioga moderno, ao invés de secularizar as suas práticas no encontro com a ciência biomédica, sacralizou o corpo e desenvolveu, a partir dos iogues medievais (JAIN, 2010), práticas corporais de purificação para a cura de doenças e do estresse cotidiano (DeMICHELIS, 2004; SMITH, 2008, p.140-159) no intuito de alcançar kaivalya ou libertação do sofrimento. A via salvífica que abrange esse intento, sem dúvidas, pode estar centrado de alguma forma na experiência transcendente e “integrativa” do samadhi, pois como vimos no capítulo anterior, o “estado” ou “experiência” do ioga está frequentemente associado esse conceito. Sarbacker encontrou similaridades dessa experiência com o conceito de espaço liminar na obra de Victor Turner (SARBACKER, 2008, p.166-179).

Victor Turner em Floresta de Símbolos, descreve como Liminaridade, a fase de transição (ou liminar) aonde os indivíduos que participam de processos rituais perdem, momentaneamente, o seu status social e alcançam uma posição de “entre- lugar” (betwixt and between). Seria um afastamento que lhe fornece um conhecimento específico com o poder de relevar a arbitrariedade das convenções sociais em que

135

vivem e se submetem (TURNER, 2005, p.138). Segundo o autor ainda, ao mesmo tempo que é impossível viver na liminaridade eternamente, ela conserva em si a potencialidade desagregadora e revolucionária de produzir narrativas possíveis de solucionar problemas existenciais da vida humana, pois o inconsciente é posto em questão neste momento. Para o indivíduo compreender a si mesmo e a sua posição na estrutura biopsicossocial é primeiro necessário distanciar-se dessa estrutura, como se morresse. Ele passa então, por um processo liminar, como uma experiência transcendente temporária, em que ele é colocado em igualdade e humildade, desprovido de qualquer posição social privilegiada que, porventura, ocupe fora da liminaridade. Após isso, ele volta a integrar-se à sua estrutura biopsicossocial, mas agora provido de um novo discernimento espiritual sobre si-mesmo e os outros como se tivesse renascido (Ibid., p.116-159). É possível correlacionar essa descrição com o samadhi e o conhecimento espiritual advindo de viveka.

DeMichelis em sua obra , descreve as aulas de ioga moderno como um ritual de cura a partir de três fases: 1) A fase de separação, onde se introduz os praticantes a um tempo de aquietação e recolhimento; 2) A Fase da prática de posturas propriamente ditas; e 3) A fase de incorporação ou relaxamento final. A primeira fase duraria em média uns dez minutos e corresponderia a chegada dos alunos a sala de prática e um momento de aquietamento. Recriando o modelo de Van Gennep (1960) considerado por Turner: Fase inicial de separação simbólica do seu meio; Fase Liminar propriamente dita; e Fase de Passagem ou Retorno (TURNER, 2005, p.138).

A primeira fase funcionaria como que abrindo um espaço do cotidiano/profano para a concentração de um momento mais introspectivo e de foco em si-mesmo. A segunda fase está baseada nas práticas de posturas e respiratórios. O objetivo está no desbloqueio das energias transfisiológicas e seria o momento da “purificação” e/ou “desintoxicação”, como alguns iogues denominam, constituindo aí a liminaridade. Na última fase é o momento em que autora se refere como “transição”, aonde o samadhi ou espaço liminar vai ser desfeito e o aluno inicia o seu retorno a realidade ordinária. Mas a volta traz consigo um novo conhecimento sobre si-mesmo e o mundo que o rodeia ou samsara propriamente dito. Nesta fase final, por meio do relaxamento profundo conduzidos com o aluno deitado em decúbito dorsal sobre seu mat, postura (ásana) esta denominada de savasana, que significa

136

literalmente postura do cadáver ou do morto. De acordo com DeMichelis, é durante esse momento que, como transportados à morte, os iogues vivenciam um processo de limpeza ou de revigoração (cleansing/revivifying process) espiritual consumado (DeMICHELIS, 2004, p.248-260).

O relato de uma prática de ioga descrito por DeMichelis sugere esse espaço liminar e todo o processo ritual de forma mais explícita:

Quando eu entro na sala de prática aonde eu tenho minhas aulas de Hatha, eu sempre sinto como seu eu estivesse me separando de mim mesmo e do mundo agitado lá fora. Eu deixo meus sapatos fora da sala, meu despertador e meu celular, com meu estresse e meus prazos. Todos meus problemas deixo lá fora, eu entro no santuário da minha sala de ioga. A sala tem uma parede de janelas e uma claraboia iluminando o chão de madeira, paredes cor creme com luz natural. Os sons de natureza calmos tocando, e algumas plantas ajudam criar a ilusão que eu entrei em um jardim secreto. Eu encontro um lugar para meu tapete de ioga entre vinte ou mais outros alunos, maioria mulheres, que veem também deixar seus estresse na porta. Nossa instrutora, Beth, esta sentada em posição de lótus na frente da sala, cumprimentando-nos com um sorriso de boas vindas para sentarmos em nossas versões da posição de lótus. Ela inicia a aula com uma oração. Sua voz emana calma, ajudando-me a deixar meus olhos descansar e meu corpo relaxar para que a minha mente possa focar. A partir daí, nós vamos realizar uma série de alongamentos. Com cada postura, eu encontro um novo músculo e perco-me com a ajuda da minha respiração. Apesar dos lentos movimentos, meu corpo é fortemente exigido na permanência de cada postura e eu posso sentir o suor em minhas costas a partir do aquecimento do meu corpo. Eu sou convidada para a postura de relaxamento final e meditação. Como se eu não estivesse ali, Beth me acalma, a sua voz relaxante me guia através de uma oração, a qual me relembra que meu esforço deve permanecer na devoção apenas no meu próprio ser (DeMICHELIS, 2004, p.259-260 apud Dalton, 2001, p.37).

Depois da morte simbólica advinda do relaxamento profundo, como explicou DeMichelis, os alunos retornam ao mundo “normal” do dia-a-dia, mas restaurados pelo contato com a experiência do samadhi-liminaridade. O ioga postural moderno, conclui DeMichelis, construiu um espaço mágico-religioso em suas aulas – o espaço liminar - como uma passagem e defendendo o ioga atual como uma religião secular de cura ritual. O ioga moderno e as suas práticas rituais de cura, conclui a autora, são uma forma religiosa privatizada em resposta a uma demanda das sociedades contemporâneas na busca por Deus ou “realização pessoal”, que encontrou certamente, um lugar singular em nossa sociedade (Ibid.).

137

Hanegraaff, entretanto, nos ajuda a ampliar a compreensão do papel da espiritualidade e ritual de cura ioguico moderno comentado por DeMichelis e Jain, quando sugere que movimentos religiosos advindos da Nova Era, uma das influências do ioga moderno (SINGLETON, 2010), não possuem apenas objetivos utilitaristas nas curas físicas, mas podem implicar soluções religiosas para os problemas mais íntimos do mundo moderno que não puderam ser resolvidos pela tecnologia científica (HANEGRAAFF, 1998, p.44-47). E complementa, propondo que quando se fala em “crescimento pessoal”, pode-se entender como um modelo de “salvação religiosa” também (Ibid., p.23-35). Os livros do Prof. Hermógenes, conhecido como o “pai da medicina holística brasileira”, podem denotar essa característica, sobretudo nas obras: Autoperfeição com Hatha Yoga, Yoga para Nervosos, Dê uma chance a Deus, Deus investe em você, Yoga : Caminho para Deus e outros.

Dessa forma, a manutenção do ioga como proposta soteriológica e não apenas terapêutica orgânica parece se perfazer. A “cura” sobre o qual o ioga moderno se debruça pode não estar meramente no corpo orgânico ou na “mente”. Quando os iogues se referem a kaivalya, talvez estejam em busca da libertação de um mal-estar representado metaforicamente em sofrimento advindo do “estresse” e suas derivações emocionais.

Para Hanegraaff há uma diferença entre disease/doença e illness/“mal-estar”. Disease/doença refere-se a uma anormalidade na estrutura e/ou funcionalidade dos órgãos e sistemas, é um estado patológico culturalmente organizado por um modelo biomédico. Illness/mal-estar, por sua vez, refere-se as percepções e experiências pessoais de estados socialmente desvalorizados, que podem ou não incluir doenças e possuem seus próprios sentidos para a cura. Essa distinção, continua o autor, é de crucial importância para diferenciar a medicina tradicional - como o ayurveda de onde o ioga medieval iniciou a sua medicalização e corporificação - da medicina ocidental – aonde o ioga ressignifica a sua doutrina e prática ritual modernamente. Curing/remediar, assim, se remete ao tratamento da disease/doença, enquanto healing/”restaurar” ao illness/mal-estar. Curing/remediar pode encontrar lugar, quando se ocupa apenas do órgão afetado; e healing/restaurar, quando se preocupa com todos os aspectos que englobam o illness/mal-estar (Ibid., p.23-25), ou seja, aos aspectos físicos, psicológicos, sociais e espirituais.

138

Os críticos à medicina ocidental dizem que seus médicos se especializaram em curar doenças, mas se esqueceram da “arte de healing/restaurar”. Hanegraaff credita a isso ao enorme crescimento de aproximações de healing/tratamentos “restaurativos” alternativos, mais do que apenas o curing/”remediações” de disease/doenças. Assim, o ioga e seus rituais de cura pelo relaxamento está implícito, como expõe Hanegraaff, uma crítica à medicina ocidental oficial. Illness/mal-estar portanto, como base dos rituais de cura ioguicos modernos, pode ser interpretado não apenas como um simples fato biofísico, mas parte total da experiência fenomênica de transformação pessoal para eliminar todo e qualquer tipo de sofrimento ou angústia humana. A salvação/libertação religiosa pode se configurar como uma forma radical de “healing/restaurativa”, conclui o autor (Ibid. p.42-47).

Parece lícito incluir o conceito de kaivalya nessa proposta, aonde os seus rituais adquiririam um caráter, a partir da discussão até aqui, de “restaurar do mal- estar” (illness healing) os iogues modernos, com a intenção de atuar na construção de novas narrativas para uma boa vida a partir da interpretação do samadhi como espaço liminar.

5.3. O ioga como promotor de rituais corporais de cura na restruturação de sua realidade em que se vive

Os hatha-iogues como apresentamos no primeiro capítulo, muito antes dos iogues modernos, já se imbricavam com a profilaxia de doenças por meio da dialética estabelecida com a medicina ayurveda, como também numerosos exemplos de obtenção de perfeição corporal, beleza e outros poderes físicos e transfisiológicos. No entanto, havia uma preocupação em afastar-se do convívio social para se alcançar a libertação (kaivalya) e tais poderes adquiridos por meio de suas práticas rituais (samadhi). Como já expomos no primeiro capítulo, o iogue acredita na sua alma imaculada (purusa) e em equilíbrio divino (estado sattvico). O contato da alma imaculada com o mundo fenomênico, ou seja, o mundo sensível, logo, em relação com outras pessoas, o complexo corpo/mente-alma (prakrti) pode estar propenso a originar as agitações na mente/consciência (os citta-vrttis), estes os klesas e, por fim, o sofrimento (dukha). Por isso, nas escrituras medievais do ioga, afirma-se:

139

I:12. Deve-se praticar Hatha Yoga em uma pequena e solitária ermida (matha), livre de pedras, água e fogo (excessiva exposição aos elementos naturais), em uma região onde impere a justiça, a paz e a prosperidade. (KUPFER, 2002, p.19)

I:14. Neste lugar, o yogi, livre de toda preocupação, dedicar-se-á unicamente à prática do Yoga, seguindo as instruções do seu guru. (Ibid., p.20)

Mas quando o ioga encontra o ocidente, esse panorama se inverte, e os iogues são convidados a participar mais “ativamente” do convívio social. No primeiro capítulo, descrevemos extensivamente sobre os motivos de tais transformações. Algo, no entanto, permaneceu, como as energias transfisiológicas, a ordem cósmica e a corporificação de tais símbolos. Mas ao invés da fisiologia e anatomia advinda do ayurveda, houve a sua ressignificação a partir da ciência biomédica (ver capítulos 1 e 2).

Victor Turner nos alerta que é bastante comum que os aspectos cognitivos adquiridos nos espaços liminares (samadhi) serem simbolizados pela fisiologia humana como “modelo para ideias e processos sociais, cósmicos e religiosos”. Essas metáforas, continua o autor, são “uma variante de um tema iniciático amplamente difundido: o de que o corpo humano é um microcosmo do universo” (TURNER, 2005 p.153). O que buscamos revelar, no entanto, é que o conhecimento adquirido pelo samadhi em busca de kaivalya pode estar estabelecendo relação direta com a permanência da crença na ordem cósmica e, portanto agora, com a harmonia do corpo. Mas a ordem social pode se articular “nos termos de um paradigma humano anatômico” também (Ibid.). E continua:

O corpo é encarado como uma espécie de modelo simbólico para a comunicação de gnosis, do conhecimento místico sobre a natureza das coisas e de como vieram a ser o que são (Ibid.).

O que o iogue moderno busca, entretanto, pode não ser em almejar um mundo celestial, no sentido de fora desta realidade, mas transformar a sua própria realidade a partir do conhecimento apreendido pelos encontros liminares em samadhi. Dito de outra forma, para os iogues modernos que renunciaram viver afastados da sociedade, kaivalya e samsara podem estar coexistindo no mesmo mundo real, mas numa geografia suprassensível diferente (USARSKI, 2007, p.190). Esse conhecimento

140

transcendente seria adquirido, como já expomos, dos vivenciados a cada aula ritual de ioga. Samsara, considerado o mundo como normalmente experienciamos (JOHNSON, 2010, p.286), continua sendo o local gerador dos klesas e do sofrimento. Mas o sofrimento no ioga advém do klesa-ignorância, logo, é um sofrimento desconhecido, um mal-estar: uma aflição mal definida ou indisposição que não chega a configurar doença51. O praticante sabe que sofre, mas não o por quê: ele está alienado, ignorante do real motivo do seu sofrimento. A ideia de kaivalya, a libertação final do ioga, a partir da sua fase moderna que desenvolve-se no centro urbano das grandes cidades ocidentais, é lícito supor, tecer diálogo com o mundo fenomênico, consequentemente, com o outro também: adquirir, de alguma forma, certa alteridade. Afirmamos isso, baseando-se na discussão da passagem do ioga medieval para o moderno, quando abandona aos seus votos de asceta renunciante que se retirava nos ashrams das florestas indianas (SARBACKER, 2008, p.173-177).

O pesquisador Sarbacker, a partir do processo ritual do ioga descrito na subseção anterior, vai associar a experiência advinda do samadhi/liminaridade com a aquisição dos iogues de certo poder numinoso ou estado de divindade. Segundo ele, essa divindade adquirida, poderia estar sendo associada, como já comentamos, com beleza física, um corpo sem doenças, mas também a aquisição de uma “alteridade espiritual” na contemporaneidade (Ibid., p.177). O autor explica que essa alteridade ou distinção espiritual frente ao meio social, a partir do poder simbólico de suas deidades em conjunto a gnosis advinda do samadhi, pode ter desenvolvido a ideia de que os seus rituais edifiquem no praticante uma certa convicção - disposição, vontade, motivação – da necessidade de transformação real do mundo em que vive. Traduzido, como explica Jain, no discurso de justiça social, direitos humanos e sustentabilidade planetária (JAIN, 2010, p.95-129).

As deidades do ioga são representações tangíveis do numinoso poder do ioga, a representação simbólica do poder e “alteridade” (antiestrutura) através do qual o praticante de ioga se esforça a alcançar. (...) Estas [deidades, como Shiva, Krsna e etc.] contribuem na criação de um ambiente que simbolicamente represente uma realidade alternativa ou idealizada que o praticante espera entrar ou fazer parte através da prática (SARBACKER, 2008, p.177.).

51 Dicionário de Português licenciado para Oxford University Press [português].

141

Trabalhos recentes no Brasil corroboram com Sarbacker quando expõem relatos de indivíduos que depois de um curso de formação em ioga, mudam drasticamente o estilo de vida:

Eu não conhecia nada do Yoga. Eu não fazia idéia de toda a filosofia que tinha por trás. Sabia o que todo mundo sabe, que a pessoa fica mais calma que alonga, asanas né? Eu tinha tido um problema no joelho muito sério, e tinha ficado um ano praticamente mancando. E aí superei essa fase. Teve muito de psicológico nesse meu problema do joelho, né? Eu jogava muita frustração e ele não conseguia melhorar. Resolvi que, não, tudo bem, está certo, temcoisas erradas na minha vida e eu resolvi arrumar.

E eu vejo muito nesse sentido como se realmente várias técnicas e várias maneiras de você conduzir um estilo de vida voltado para o autoconhecimento e que consegue integrar realmente as várias facetas da vida. Desde a sua vida conjugal, sua vida profissional. A sua vida com relação com o teu corpo, com relação a tudo. Mas acima de tudo é esse grande objetivo do autoconhecimento no sentido da libertação mesmo, de moksa [equivalente a kaivalya]. No momento quando eu via o Yoga aind como uma técnica, ou seja, ali eu vou praticar Yoga e você toma contato com certas coisas, entra em certos tipos de pontos de vista com relação as coisas e depois você entra em outras práticas de trabalho e vê que tudo motive para a prática de Yoga. Hoje para mim o Yoga é um estilo de vida, uma maneira de ver o mundo econsequentemente a gente mesmo. Mas no início não era. Como eu falei eu tinha um interesse desde o início que era s uma questão física (NUNES, 2008).

A questão da alteridade espiritual desenvolvida no praticante, pode o capacitar positivamente a perceber um mundo melhor para se viver, um mundo em que os klesas cessem de agir e o mal-estar e sofrimento desapareçam. Segundo o autor, o samadhi/liminaridade desenvolveria no praticante a fé, como “aquisição” de certa “divindade” que os rituais iriam lhe proporcionando:

O estúdio [sala moderna onde é praticado o ioga] tornam-se uma morada para o divino, um espaço numinoso que está mais perto do mundo ideal que os iogues se esforçam para criar ou viver (SARBACKER, 2008, p.177).

O Prof. Hermógenes nos ajuda a compreender essa certeza distintiva de um outro mundo a partir do ioga; mas neste, não em outro. Em sua obra Yoga, um caminho para Deus, esclarece:

Que tem Yoga com tudo isso? Yoga é exatamente a viagem dos que, intoxicados de divertimento, acordado pelas abençoadas pancadas das vicissitudes, saudosos da “casa do Pai”, já decisivamente convertidos, tornaram-se aspirantes ao Eterno. Yoga é o caminho e o caminhar que conduzem a Deus.

142

Você, ainda estranhado, poderia perguntar: “Como pode uma ginástica fazer tanto?!” Yoga não é ginástica. Nenhuma ginástica, só, é Yoga. Há uma ginástica muito inteligente chamada Hatha Yoga que ajuda o caminhante, dando-lhe adequadas condições físicas e psicológicas para que vença as obstruções e as fadigas do caminhar. Mas é apenas um aspecto particular de todo um nobre sistema que, alquimicamente, leva a alma a Deus (HERMÓGENES, 2005, p.30-32).

Se o que mais nos afasta de Deus e nos vincula ao mundo é nosso imperfeito amar, é a nossa incapacidade para o verdadeiro amor, nosso caminhar tem de ser não contra o mundo, mas a favor de Deus. Será a universalização e divinização de nosso amor que poderá cortar as amarras de servidão e dar- nos, na unificação com o Deus que amemos, a libertação salvadora (Ibid., p.20).

É errôneo pensar que o yoguin, pelo fato de ter despertado e visto o falso valor do que é mundano, deva abandonar a sociedade, a convivência, e partir para uma floresta, para a beira de um rio ou para uma caverna na montanha. Nada disso. Agora, desperto e armado de discernimento, mais do que antes, pode e deve participar, e de forma mais fecunda (Ibid., p.184).

As narrativas poéticas de Hermógenes nos conduzem a julgar que ele mesmo tenha atingido essa alteridade espiritual que lhe dava esta convicção do poder do ioga como “caminho para Deus” ou “libertação salvadora”, argumentados por Sarbacker. Não é coincidência também que Hermógenes e DeRose tenham se tornado, por anos no Brasil, duas autoridades sobre a “verdade” do ioga. O primeiro exaltando o sincretismo, e o segundo uma perspectiva tradicionalista do ioga no Brasil. A convivência de ambos pensamentos, entretanto, não eliminou nenhum nem o outro de atuarem no país. Pelo contrário, ambos jeitos de viver o ioga brasileiro, apesar de contendas descritas ao longo do capítulo 3, pode ter fomentado a diversidade e singularidade que buscamos evidenciar desse ioga. A similaridade entre ambas cosmovisões em processo ainda no Brasil está na promessa de cura pelo Hermógenes, e de crescimento pessoal em DeRose, ambos, como vimos, sinônimos de salvação religiosa.

Os processos rituais do ioga, para cura ou “crescimento pessoal”, pode estabelecer dialética com a saúde. No entanto, a cura restaurativa/illness não deve estar centrada egoisticamente em si-mesmo, caso contrário, o iogue incorre na dor decorrente do klesa-egoísmo. A cura restaurativa em direção a kaivalya, portanto, deve abranger numa transformação na forma e no mundo propriamente dito em que se vive. A libertação final, kaivalya, logo, pode residir na modificação do próprio “samsara” em mundo melhor.

143

5.4. Aproximação entre relaxamento-samadhi e homeostase eterna-kaivalya como resposta espiritual do ioga a vida social brasileira em que habitam

Como argumentou Balsev no segundo capítulo, podemos associar modernamente os klesas - os clássicos obstáculos a vida espiritual plena no ioga, causa de um viver ignorante ou “inconsciente” - não somente ao estresse, mas a sentimentos e emoções específicas como desejo, ódio, medo e egoísmo (BALSEV, 1991). Sabe-se, pela psicofisiologia, que a sensação de medo pode ser o principal gatilho para a resposta de luta-fuga do estresse, mas também de explicações religiosas (FULLER, 2008, p.28-49). Robert Fuller explica em seu livro Spirituality in the flesh, no capítulo Religion and natural selection, que as emoções podem ser estratégias adaptativas, e que o medo poderia estar envolvido na criação, por exemplo, de anjos e deuses protetores no intuito de aplacar as mais profundas ansiedades e angústias humanas. O autor nos fornece o exemplo da imaginação apocalíptica, esclarecendo que, se esta crença sobrevive mesmo em tempos modernos, seria lícito presumir que ela esteja incorporada em nossas mais íntimas motivações, mais do que puramente fruto da cultura erigida por um povo (Ibid., p.32-33).

Logo, o medo, como principal acionador do estresse no ioga, pode estar estabelecendo relações com a ideia negativa da “aniquilação da consciência” ou do “viver entorpecido”, como alguns iogues comentaram. As práticas ioguicas corporais modernas, para o brasileiro, poderiam estar funcionando para o libertar, ao invés de samsara (pois no Brasil reencarnar é algo positivo), do medo. Mas medo do quê? Difícil afirmar algo, mas provavelmente os klesas possam estar envolvidos nesta construção narrativa.

Resgatando as contribuições de Balsev sobre os klesas do segundo capítulo, o sentimento de desejo como desdobramento emocional do klesa-apego, pode ser associado a carência de algo, de sentir falta ou do próprio medo de não ter, de faltar. O ódio, emoção negativa advinda do klesa-aversão, é uma das principais respostas emocionais ao medo também, sobretudo quando não temos o que desejamos. O egoísmo, definido quando um indivíduo coloca os seus desejos acima dos demais ou não considera o dos outros, guardaria em si a força de irromper o sentimento anterior de ódio ou a emoção do medo ao estranho, logo, do diferente de mim. Visto

144

por essa ótica estritamente psicofisiológica, todos os klesas, carregam em si as mesmas reações do estresse ao medo: de estar constantemente em alerta, em prontidão para lutar ou fugir. As metáforas corporais do ioga moderno descritos ao longo deste capítulo, de desconexão com o viver, do vazio, do torpor e outras similares, podem indicar que os agentes espirituais do microuniverso do ioga brasileiro venham de encontro a buscar soluções para o sofrimento de si-mesmos e da sua comunidade, sobretudo da alienação ou ignorância de quem são e qual papel devem ocupar na sociedade e suas próprias vidas, consequentemente. Esse indivíduo social que vive com medo e em “alerta”, logo, se não carecesse de nada, não desejaria; e assim, sofreria bem menos os efeitos nefastos do medo desencadeador do estresse/klesa, promotor em última instância, da “extinção momentânea da consciência”, do “estado de ioga” ou da alienação. As práticas corporais do ioga, a partir disso, extrapolam os fins orgânicos, eles abarcam uma dimensão espiritual de cura no sentido da doença/illness comentado por Hanegraaff anteriormente.

Quando a cientista Osiris coloca que o principal motivo dos iogues com quem convive é “não ser tão afetável pela sociedade moderna, de consumo e estressada”, conjura os argumentos acima. Dito mais simples, a ignorância (klesa-mãe), pode manifestar-se no desejar o que não se têm ou, estar socialmente despossuído de acesso a isso. A cientista Osiris, moradora de São Paulo e pesquisadora de técnicas meditativas/ioguicas como terapia, durante sua fala cita um artigo científico sobre como a ansiedade é comum nos grandes centros urbanos brasileiros, como já comentamos. A chave para o fim da angústia existencial que perturba o microuniverso ioguico, pode centrar-se assim, na extinção do medo de uma parcela de brasileiros da classe média social através das suas práticas espirituais. Um medo de não ter como satisfazer os seus desejos, de odiar por não ter, e/ou do medo egoísta de colocar os seus apetites acima dos outros. O medo, como gatilho psicofisiológico acionador do estresse, transforma-se, devido aos iogues-mentores e cientistas-monges, em sinônimo do klesa-mãe Ignorância, pois “furta a consciência”, “desconecta da realidade”, afasta os seus da ordem cósmica, aproxima-os de doenças, mas sobretudo, aliena-os no sentido hegeliano aonde a consciência se afasta de sua real natureza52, purusa. A doença, na nova doutrina ioguica sendo

52 Alienação: no hegelianismo, processo em que a consciência se torna estranha a si mesma, afastada de sua real natureza. Dicionário de Português licenciado para Oxford University Press (português).

145

estabelecida, como ansiedade, depressão, insônia e demais ligadas ao estresse- ioguico, a manifestação última do afastamento de purusa ou da alma com Deus.

Assim, as vivências espirituais liminares do samadhi, sinônimo da momentânea extinção do estresse-ioguico, podem estar relacionadas as práticas corporais purificadoras do estresse e ordenadora das energias cósmicas. A via, no entanto, mais segura para a promessa de purificação do klesa-estresse, logo, pode estar pautado no relaxamento conduzido em nível espiritual. Em suma, a dialética é simples: a experiência transitória do samadhi é central nas práticas ioguicas, pois contrária à manifestação dos klesas; assim como, a experiência do relaxamento somente manifesta-se na ausência do estresse ou medo, seja em nível fisiológico, psicológico ou social, mas também agora, em nível espiritual.

As obras do Prof. Hermógenes são ricas em construções espiritualizadas entre saúde, harmonia e salvação que buscamos elencar. No capítulo O que é curar-se do livro Yoga para nervosos, Hermógenes evidencia um estado de perfeita harmonia alcançado pelo relaxamento obtido nas práticas corporais do ioga: “Não pretendo para você uma frustradora pseudocura. O que realmente lhe convém é cada vez uma dose maior de sattvidade” (HERMÓGENES, 2011, p.81).

E sattva, no glossário do mesmo livro, representa “o princípio de sabedoria, serenidade, santidade...” (Ibid., p.465). Já vimos que sattva simboliza também, pautado nas escrituras antigas do ioga, uma experiência transitória de equilíbrio perfeito e de comunhão com Deus. O conceito de sattva, portanto, pode ser compreendido metaforicamente a um equilíbrio das forças energéticas que governam os corpos suprassensíveis. Kaivalya, a libertação ou estado Último do ioga, como já discutido no primeiro capítulo, representaria a conservação eterna do estado sattvico, quando as forças maléficas dos klesas, enfim cessariam definitivamente de agir (ver capítulo 1, subseção 1.2).

O Prof. Hermógenes, no livro Yoga: caminho para Deus, no capítulo que trata especificamente do hatha-ioga, A austera disciplina, diz:

Se o caminhante tem as pernas frágeis para tão longe e duro caminho, deve fortalece-las antes de começar a andar. Quando os Mestres aconselham “pratiquem tapas” estão querendo salvar os caminhantes de uma provável derrota. Ela [tapas] não é para os que cedem às fadigas, aos desconfortos, às

146

ciladas, aos desafios, às barreiras... O yoguin, praticando tapas, queima, no fogo da austeridade, as sementes da impureza. E defende-se de todos os cansaços, desânimos, preguiças, fossos e fossas. Tapas é para dar ao corpo higidez, energia, resistência e para prolongar-lhe juventude e vida. Hatha Yoga é para aprimorar o corpo como instrumento. Para o yoguin, “o corpo é o templo do Espírito Santo”. Tapas conserta, aprimora e purifica o templo (HERMÓGENES, 2006, p.81-82).

Em outra passagem do Yoga para nervosos, no capítulo Os milagres do relaxamento, do Prof. Hermógenes, a relação relaxamento-samadhi ou “libertação” é evidenciada como um “milagre”:

Nem mesmo os psicotrópicos mais fortes, administrados pelo especialista [da área médica psiquiátrica], tinham conseguido fazê-la dormir. Havia seus dias porém que, sem qualquer medicamento, vinha dormindo normalmente. Havia seis dias que lhe ensinara a relaxar. O semblante de felicidade com que contava sua libertação convenceu a todos [ele estava em uma conferência médica] de que, de fato, o “milagre” ocorrera (HERMÓGENES, 2011, p.69).

Como vimos na seção 2.2 desta tese, Teoria dos klesas corporificada: sinônimo de estresse e emoções, o pesquisador Benjamin Smith (2008), analisando um dos métodos modernos mais populares do hatha-ioga, conclui que tapas é o fator primordial nas tradições modernas do ioga. O conceito de tapas se materializaria no intuito de elevar o calor corporal, eliminando “no fogo de tapas” todas as “substâncias nocivas ao corpo” ou, como coloca Hermógenes acima, “as sementes da impureza”. É a mesmo lógica discursiva. Como expomos, são os klesas a presença nociva e impura a serem expurgados para o firme reestabelecimento da “higidez” ou a boa saúde, como nos explica Hermógenes.

Já discutimos também que o estresse, em nível psicofisiológico científico, desestabiliza o organismo, removendo-lhe da sua homeostase ideal, de um estado de equilíbrio dinâmico no jogo bioquímico que só tem fim na morte. O organismo passa a sua vida inteira se ajustando psicobiologicamente, em uma eterna e vã luta por um estado de homeostase eterno que não pode ser alcançado em vida. Talvez, como fruto da ressignificação que a doutrina e prática do ioga sofreu modernamente, kaivalya tenha se traduzido, dentro da linguagem de uma fisiologia da religião, na conquista de um estado homeostático eterno e divino. Mas para isso se confirmar, seria necessário que o braço forte do hinduísmo, que percebe o ioga como darsana (ou lit. um ponto de vista filosófico-religioso), diminuísse a sua pressão legitimadora. Em outras

147

palavras, seria preciso que a ortodoxia e o tradicionalismo se calasse e o hibridismo com a sua permissividade sincrética se revelasse, para que novas soluções religiosas surgissem. No Brasil, ao longo de décadas, esse panorama se fez dominante. Além disso, o Brasil e os seus problemas sociais podem estar servindo de diretriz para os líderes do ioga aqui, identificarem outras as causas do sofrimento humano.

5.5. O mal-estar, o sofrimento e o sintoma: uma nova perspectiva sobre a soteriologia do ioga

O psicanalista Christian Dunker diferencia mal-estar, sofrimento e sintoma. Para ele, mal-estar não é a própria angústia ou dor, mas uma deficiência perceptiva da origem do sofrimento propriamente dito (DUNKER, 2015, p.205).

O tormento, a angústia que se repete, que se remói, a angústia cuja causa, razão ou motivo não se discerne muito bem, pode ser então predicado como mal-estar (Ibid.).

Dunker, a partir de uma interpretação do clássico conceito de Freud, conceitua mal-estar como a impossibilidade de estar, a negação do estar, e não apenas a negação pura e simples do bem-estar (Ibid., p.192). Assim, o autor sugere que o mal-estar é essa ausência de lugar ou sensação de impedimento de ascender espiritualmente (“escansão do ser”) ou, parafraseando a metáfora do próprio psicanalista: “a impossibilidade de ‘uma clareira’ no caminhar da floresta da vida” (Ibid.). O autor comenta que a tradução para o mal-estar freudiano é difícil, pois remete a algo que não pode ser designado objetivamente, por isso a utilização das metáforas – sobretudo nesse caso – são imprescindíveis para defini-lo.

A noção de sofrimento, definida como o “reconhecimento da dimensão do mal-estar”, deve responder essencialmente a três condições: uma teoria que identifique e nomeie o sofrimento; estruturar o sofrimento dentro de uma narrativa; e deve envolver meios de determinar o sentido de sofrer e inverter o seu significado para não mais senti-lo (Ibid., p.219-220).

Os atos de reconhecimento determinam a ontologia da experiência de sofrimento, estabelecendo, por exemplo, a linha de corte entre o sofrimento que dever ser suportado como necessário e o sofrimento que é contingente e

148

pode ser modificado. (...) Nesse sentido, todo sofrimento contém uma demanda de reconhecimento e responde a uma política de identificação.

A segunda condição (...) exprime um processo transformativo que é reconhecido num âmbito da linguagem intermediário entre o discurso e a fala (...) teorias sexuais infantis, o romance familiar do neurótico, assim como o mito individual do neurótico, são expressões psicanalíticas do que chamamos de narrativa.

A terceira condição da experiência de sofrimento é que ela envolve processos de indeterminação de sentido e de inversão de significação. É a experiência psicológica que a criança experimenta quando suspende e confunde a relação entre aquele que pratica a ação e aquele que sofre a ação (Ibid., p.219).

O sintoma para o mal-estar, explica Dunker, como não poderia ser de outra forma, organiza-se sempre por meio de metáforas: a “metáfora do sintoma”, diz o autor (Ibid., p.212). O sintoma, ou modos de sofrer, é um fragmento de liberdade perdido, imposto a si e aos outros (Ibid., p.32). Assim, a normalidade é apenas uma normalopatia, ou seja, um “excesso de adaptação ao mundo tal como ele se apresenta”, mas que revela sempre um sintoma de extrema tolerância às agruras da vida (Ibid., p.185-272). Assim, kaivalya, por sua própria definição (liberdade, libertação ou liberação), pode representar “um fragmento da liberdade perdida”, metaforizada na ideia da alma (purusa) contaminada em contato com o mundo (samsara). As aulas de ioga modernas, processos rituais de retorno/passagem transitória na purificação de uma alma que sofre, poderiam representar uma alternativa para o fim do sofrer. Há uma promessa implícita de um dia, pelo conhecimento espiritual advindo do samadhi/liminaridade, libertar enfim, do mal- estar que acomete seus alunos/praticantes.

Há um insistente reconhecimento dessa dimensão do mal-estar como inerente às relações entre existência e verdade (Ibid., p.193).

Dunker explica que o cerne das narrativas de sofrimento são sempre transversais, ou seja, possuem causalidade específicas. Assim, a incapacidade do sujeito em reconhecer-se em sua própria história particular ou com dificuldade de estabelecer formas sociais universalmente compartilháveis, causam, em última instância, essa perda da experiência da causa de seu mal-estar (Ibid., p.273).

O diagnóstico, seja ele formal ou informal, clínico ou crítico, disciplinar ou discursivo, reconhece, nomeia e sanciona formas de vidas entendidas como perspectiva provisória e montagem híbrida entre exigências de linguagem, de desejo e de trabalho. (...) Assim, o ressentimento social é um diagnóstico, a biopolítica é um diagnóstico, a personalidade autoritária é um

149

diagnóstico, o declínio do homem público é um diagnóstico, a cultura do narcisismo é um diagnóstico. (...) Fica claro, assim, que o que estamos chamando de diagnóstico não deve ser entendido como classificação ou inclusão do caso em sua regra correspondente, como absorção da variável à cláusula genérica, como um juizado de pequenas causas, mas como reconstrução de uma forma de vida (Ibid., p.274).

Dito de forma mais simples, o mal-estar reside na eminência da morte, representada pela finitude do nosso corpo, mas sobretudo, na violência generalizada dos grandes centros urbanos e na insegurança e medo das relações humanas. Esse mal-estar sem possibilidade de nomeação determinante nos dispõe à repetição angustiante da dor de existir. Precisamos criar, assim, uma forma de vida condizente à nossa narrativa de vida, pois não há manual de classificação que abarque todas as mazelas existenciais. Uma nova forma de vida significa, segundo o autor, “nada mais do que uma perspectiva” (Ibid., p.280). Daí, talvez, a justificativa da resistência das religiões instituídas existirem e novos fenômenos religiosos surgirem, pois, de fato, religiões são criativos depositórios de novas formas de se viver, novas narrativas para justificar a angústia, portanto, que se repete devido ao mal-estar. As práticas e doutrinas religiosas funcionariam como “diagnósticos” nomeando sofrimentos, acalentado sintomas e produzindo legitimação espiritual ao sofrimento humano.

Se queremos pensar o diagnóstico como reconstrução de uma forma de vida – no duplo sentido, prático e teórico -, devemos partir da evidência discursiva de que as diferentes formas de vida pressupõem suas próprias práticas produtivas ou improdutivas de nomeação do mal-estar (autodiagnostico) (Ibid., p.276).

Diagnosticar é reconstruir uma forma de vida, definida pelo modo como esta lida com a perda da experiência e com a experiência da perda (Ibid., p.282).

A questão da perda da experiência ou experiência da perda, como ressalta o autor acima, reside no conceito de alteridade e alienação, causadores do mal-estar e os mecanismos desenvolvidos – novas formas de se viver - para superar o sofrimento. A alienação centra-se em não saber, ser ignorante portanto, da origem do mal-estar; e a necessidade de desenvolvimento de certa alteridade ou qualidade pessoal que o distinga dos outros, assim, tenha condições em erigir um jeito próprio de produzir as suas próprias “clareiras no caminhar pela floresta”, metáfora utilizada pelo próprio Dunker.

150

O autor comenta que no século XIX era comum que a aceleração da vida moderna, com o seu nervosismo, sua irritabilidade e seu cansaço, fossem o quadro de referência para o diagnóstico psicanalítico da neurastenia, uma fadiga extrema que atingia tanto física quanto intelectualmente parte da população europeia. Era o mesmo momento histórico e geográfico que o ioga estava sendo apresentado ao mundo moderno. Assim, é bem provável que a origem da metaforização moderna dos klesas em estresse e emoções associadas como nefastas, assim como sintomas correspondentes como agitação da mente, irritação, neuroses e nervosismo, tenham aqui a sua origem.

Neste ponto da discussão já nos é possível apresentar os klesas, causas espirituais da ignorância de conhecer a si-mesmo, ao conceito de alienação. Sendo o samadhi condição da aquisição de certa alteridade espiritual, como vimos em Sarbacker (2008), e kaivalya, a superação (lit. liberdade ou liberação) do klesa- Ignorância, nos parece lícito pensar nos klesas mais do que simples fomentadores da “agitação mental” ou repercussões ao eixo psicofisiológico do estresse. Com vistas a aquisição de discernimento espiritual ou gnosis da experiência liminar do samadhi, e pensando no klesa-Ignorância como o principal obstáculo espiritual a kaivalya, é permitido compreende-lo como causa, portanto, da alienação espiritual dentro da narrativa discursiva do ioga moderno, mas ressignificado – metáfora com o corpo, como Victor Turner adiantou na subseção anterior.

Dunker esclarece ainda, que ao longo dos tempos históricos modernos, criou- se vários jeitos de sofrer o mal-estar inominável: neurastenia e psiscatenia no fim do séc. XIX; neuroses do caráter nos de 1940; narcisismo pós-guerra; borderlines na década de 1980 e depressão, pânico e anorexia em 2000 (Ibid., p.32). Podemos pensar em outras maneiras erigidas para suportar o mal-estar a partir das narrativas modernas do ioga também.

A permanência na crença de energias transfisiológicas e a questão da ordem cósmica, dialogam dando coerência a forma de se viver ioguica moderna também. A causa do mal no ioga é pautada hoje no estresse e emoções como ódio, desejo, egoísmo e medo, de certa forma, como já demonstramos em outros autores, giram em torno de causadores de nervosismo, irritabilidade, fadiga e agitação mental. Na verdade, a definição de ioga que nos chegou, é justamente a “diminuição voluntária

151

das modificações mentais”. Uma das fases do processo ritual do ioga é descrito literalmente como uma “postura de relaxamento final”; e o seu objetivo, na criação de um “espaço transitório simbólico/liminar” – samadhi ou estado de ioga - entre o mundo estressante das grandes cidades. Isso tudo atrelado a inversão no qual os iogues medievais, na passagem para a sua fase história moderna, precisaram se adaptar, não mais sendo possível retirar-se do convívio social, metáfora de samsara. A sua busca para um “mundo prometido” – kaivalya -, aonde os klesas não mais atuem e a alma liberte-se do seu mal-estar inominável, precisou ser modificado.

Estamos tratando aqui, provavelmente, de nova uma narrativa metafórica moderna em aliviar o sofrimento de muitos brasileiros. Dessa forma, os rituais corporificados do ioga moderno podem estar sendo encarregados de capacitar seus devotos de certa alteridade que os aliviem da alienação, compreendidos aqui, como a ausência do sentir, da falta experiência, a causa intrínseca do mal-estar que os afligem.

5.6. Ioga moderno como nova religião em processo

Podemos afirmar que desde a chegada do swami Vivekananda no ocidente, o ioga começou a ser percebido como um novo movimento religioso em andamento (DeMICHELIS, 2004, p.248-260; NEWCOMBE, 2005; JAIN, 2014, p.95-129). Mas classificá-lo, assim como qualquer outra religião não é tarefa simples. DeMichelis, como vimos, define o ioga como uma religião secular de cura; Newcombe como uma religião mística; e Jain uma prática religiosa corporal. Além disso, inúmeros trabalhos têm se esforçado em legitimar o ioga moderno como uma nova espiritualidade e não apenas atividade física e/ou terapia biomédica (LIBERMAN, 2008, p.100-116; SMITH, 2008, p.140-160; SINGLETON, 2010; GNERRE, 2010; GUERRIERO, 2014).

A história do ioga como religião singular, desvinculado assim tanto do hinduísmo quanto da Nova Era, tem início a partir dos novos movimentos religiosos indianos durante ainda o século XIX, no período que comentamos no primeiro capítulo, de Renascença Indiana (FARQUAR, 1915). DeMichelis afirma que o movimento religioso Brahma Samaj, nascido neste período, teria sido o estopim para

152

uma releitura moderna das escrituras vedantinas dando início ao Neo-Hinduísmo e/ou Neo-Vedanta (DeMICHELIS, 2004, p.51-66). Desse movimento surge Vivekananda, porta-voz de um ioga já ressignificado pela fisiologia biomédica científica com práticas rituais de cura e mensagem de “religião universal” (VIVEKANANDA, 2007). O ioga agora entra no seu período moderno da história e as implicações sobre a sua soteriologia e religiosidade serão profundas.

A proposta soteriológica do ioga, continua viva, mas estudos indicam que precisou ser muito bem ajustada no seu transplante da Índia para o mundo moderno ocidental. Se na Índia pré-colonial britânica, ao longo de milhares de anos, o ioga sempre foi descrito como um darsana hindu, em menos de 50 anos de contato com as sociedades urbanas do ocidente, no entanto, suas diretrizes salvífica/libertadoras foram, consideravelmente, transformadas: klesas, samadhi e kaivalya vem adquirindo novos contornos e objetivos que, mesmo o mais perspicaz guru retirado por anos nas mais longínquas florestas e cavernas indianas, sequer um dia vislumbrou em suas práticas meditativas.

Observações a partir das descrições de Victor Turner, sugerem o espaço liminar um espaço transicional aonde o indivíduo no processo ritual é um não-algo ou algo entre. O ritual do ioga, portanto, como representante ioguico deste espaço, se torna o entre-lugar de “refúgio” aonde se possa vivenciar, a cada aula de ioga, adquirindo discernimento (gnosis), mas sobretudo, uma sensação de “estar em casa” ou “retornar ao seu equilíbrio”, no sentido de igualdade social, espiritual, psíquica e física. Turner ressalta isso quando diz que na liminaridade o participante do processo ritual:

Não tem status, propriedade, insígnia, vestimenta secular, graduação, posição de parentesco, nada que possa distingui-los, estruturalmente, de seus companheiros (TURNER, 2005, p.143).

Turner esclarece ainda que é um lugar aonde “As pessoas podem ser elas mesmas, quando não desempenham papéis institucionalizados”. Quando perguntei aos iogues brasileiros sobre a causa do mal, quase em uníssono eles responderam como “o falso papel que ocupam na sociedade” ou “as máscaras que vivemos”. O kaivalya, poderia representar a libertação final destes papéis, pois para Turner a liminaridade representa a mudança no Ser (Ibid., p.137-158). Assim, cada aula de

153

ioga, o praticante vivencia essa mudança no Ser, que representaria, hipoteticamente, o remover das máscaras e o falso papel que ocupam na sociedade. Mas, sobretudo, produziria uma geografia suprassensível que motivaria cada iogue ansiar um mundo melhor a se viver, longe dos klesas, portanto, longe da alienação, do apego, do ódio, do medo e do egoísmo e, quiçá, mais perto da alteridade, do desapego, do amor, da esperança e do altruísmo.

Turner, no entanto, se preocupa em explicar que o espaço liminar não se trata de uma irracionalidade, mas “um modo de provocar os pensamentos”, aonde uma ou duas coisas podem ser interpretadas de formas diferentes na liminaridade.

A liminaridade é o reino da hipótese primitiva, onde há uma certa liberdade para prestidigitar com os fatores da existência. Como nas obras de Rabelais, há uma promíscua mistura e justaposição das categorias de evento, experiência e conhecimento, com uma intenção pedagógica. Essa liberdade tem, no entanto, limites bastante estreitos. Os neófitos voltam à sociedade secular com as faculdades mais alertas, talvez, e conhecimento incrementado sobre como são as coisas, mas são, uma vez mais, obrigadas à lei e ao costume. Como à menina Bemba (...) mostram-lhes que as maneiras de agir e pensar diferentes daquelas estabelecidas pelos deuses e ancestrais, em última análise, não funcionam e podem ter consequências desastrosas (Ibid., p.152).

Defendo que essa experiência liminar de Turner advinda de processos rituais, seja o estado de ioga relatado pelos iogues brasileiros. Respeitando a tendência do ioga moderno, toda a linguagem foi ressignificada pela da fisiologia biomédica, e no ioga brasileiro isso não foi diferente. Portanto, como DeMichelis (2004) mesmo descreve, esse espaço liminar pode ter sido simbolicamente ressignificado como o “relaxamento” produzido por suas práticas corporais, mas agora com o status de espiritualizada.

Ganesh: Ioga é um relaxamento dos pensamentos. O mundo está estressado e precisa de relaxamento. O ioga então é uma proposta filosófica-espiritual para isso. Relaxar, focar, expandir, reavaliar seus paradigmas, isso é a meditação propriamente dita. Emocionalmente falando, o ioga nos ensina a colocar-se. Isto se traduz numa postura mais serena e numa melhor disposição no cotidiano. O relaxamento e os exercícios de concentração tomam conta desta esfera. O ioga possui como efeitos mais evidentes deixar o praticante em estado de equilíbrio.

Ravi: Ioga é um processo de relaxamento dos pensamentos. O mundo está estressado e precisa de relaxamento. O ioga então é uma proposta filosófica espiritual para este fim. Portanto, o grande perturbador do

154

ioga moderno. Ficar quieto é um problema para a sociedade moderna.

Centurion: O ioga nos deixa com um mental mais calmo, equilibrado.

DeRose: O estresse impede ao samadhi.

Bento: O estresse impede ao estado.

Shanti: O estresse nos afasta, nos desconecta. O ioga abaixa o estresse, acalma a mente... aterra, e assim, nos ajuda a conectar novamente.

Se, como vimos, o estresse adquiriu características de klesa, e o relaxamento de espiritual em dialética com o samadhi/liminiaridade, é lícito supor pensar em kaivalya, um estado onde não há mais a influência dos klesas, agora estresse e conquistado na gnosis do relaxamento espiritual advindo das práticas rituais de cura do ioga moderno, deve estar relacionado a algum termo da fisiologia que represente esse equilíbrio e harmonia sem a influência do estresse e local de manifestação propícia ao relaxamento. Defendo a ideia da homeostase espiritual como denominação de kaivalya modernamente. Como já apresentei o conceito de homeostase no primeiro capítulo, permito-me apenas a relembrar que a homeostase é um estado ideal e nunca estabelecido definitivamente, apenas na morte encontraremos um estado “eterno” de homeostase. Homeostase é sempre um estado de eterna luta contra forças contrárias na busca constante de reequilíbrio. Portanto, se kaivalya representaria a salvação/libertação espiritual do ioga moderno. No Brasil, kaivalya- homeostase divina, pode significar que os iogues brasileiros acreditam no fim do sofrimento, da dor e do mal-estar que os atormentam, no equilíbrio diário de forças contrárias que agem constantemente. Em outras palavras, o iogue brasileiro pode compreender que o fim da sua dor, só com a morte, pois em vida, a batalha contra o mal é cotidiana.

Essa religiosidade ioguica brasileira pode ser encontrada nas narrativas dos nossos entrevistados quando revelam que ioga é “viver o presente”, “reagir é algo negativo, pois nos tira do agora” ou “a prática no tapete funciona como um ritual para reequilibrar as energias do corpo que se desarmonizam no dia-a-dia”. Nenhum dos iogues entrevistados, por exemplo, demonstrou qualquer receio da reencarnação, algo bastante preocupante ao iogue indiano que acredita que as suas ações neste mundo podem faze-lo vir numa próxima vida como um inseto, por exemplo. O brasileiro não

155

parece se preocupar com isso. O seu grande foco parece estar na resolução dos seus problemas neste exato momento. Outra característica que pode ajudar na compreensão do novo panorama social-religioso do ioga brasileiro está na redução do aspecto “errante” dos praticantes e professores. Nunes (2008), mostrou que os indivíduos que atuam no microuniverso ioguico brasileiro têm se fixado mais em torno do seu professor ou líder de ioga. Isso evidencia o princípio que ele denominou de “retorno à tradição”, mas que poderíamos conceber como criação de maior vínculo com um mestre de ioga em desenvolvimento. Seria lícito supor, que este poderá se configurar o caminho natural para a institucionalização das diversas tradições, escolas e métodos em estruturas religiosas mais “estáveis”, similares ao de igreja.

Se as religiões, sem exceção, surgem do seio de sociedades e são elas reflexos da maneira de viver de núcleos sociais específicos e concretos (GUERRIERO, 2006, p.21; Id., 2014); talvez o ioga brasileiro possa vir a ajudar a responder o sofrimento de uma parcela de indivíduos devotados às suas crenças de algum forma.

5.7. Ambivalência dos iogues brasileiros

Não há dúvidas que o ioga tenha suas influências na Nova Era e das sociedades que vivem sobre o regime capitalista globalizado. Mas, como esclarece Jain (2014), esse fato é algo vivido por todas as religiões modernas e não exclusividade do ioga. Mostramos também que o ioga, mesmo tendo tido as suas práticas dissecadas pela fisiologia biomédica e investigadas por tomógrafos, a ciência não conseguiu secularizá-lo. Pelo contrário, como elencamos na exposição do capítulo dois e três, o ioga conseguiu reverter a situação e, além de ressignificar as suas escrituras sob o signo da fisiologia biomédica ocidental, “converteu” muitos cientistas a representarem seus paradigmas de investigação como Deepak Chopra, Amit Goswami, Allan Wallace, e outros que chegam, até mesmo, a discutir a legitimidade das narrativas religiosas com iogues, como mostrado no capítulo 4, pela apresentação das entrevistas de cientistas. Dessa forma, o ioga não pode ser compreendido como uma simples técnica biomédica para remissão de doenças. O seu discurso revela uma via de salvação/libertação para o sofrimento de uma parcela de indivíduos que segue a sua espiritualidade de forma religiosa, ou seja, dando-lhes um

156

sentido de vida pautado no transcendente, talvez com a mesma verve de criatividade intelectiva do espiritismo brasileiro.

o esoterismo leva não apenas a uma “ciência alternativa”, mas também a uma maneira de relacionar religião e ciência. Com menos traços esotéricos há o importante movimento espírita-kardecista. Ao contrário do esoterismo, que basicamente traduz ou reproduz material importado, o espiritismo brasileiro é genuinamente criativo. É um movimento típico da classe média branca, com muitas pessoas detentoras de graus universitários elevados e que trabalham em instituições acadêmicas respeitadas. Por conta de sua ênfase na leitura e na crença em “doutores espirituais”, sua forma peculiar de “diálogo religião-ciência” segue o esforço de justificar racionalmente o valor médico e psicológico de terapias religiosas. Sociedades acadêmicas tem sido constituídas, e esta tendência racionalista e empiricamente orientada tem se tornado comum em várias regiões do país (CRUZ, 2007, p.275).

No Brasil especificamente, houve um esforço em conjunto não só de iogues, como Hermógenes e DeRose, mas também de médicos, psicólogos, educadores físicos, fisioterapeutas e demais cientistas, que se esforçaram para interpretar a sua doutrina e transformá-lo em prática aceita até mesmo pelo ministério da saúde. Por mais de cinco décadas de total insulamento de seu conhecimento, como descrevemos na história do ioga latino-americano, o ioga brasileiro pode seguir o mesmo caminho que o espiritismo no que diz respeito ao seu enlace positivo entre ciência-religião relatado acima. A discussão, por exemplo, que alimenta compêndios acadêmicos de nossos vizinhos europeus e norte-americanos no esforço em justificar o ioga moderno tão “autêntico” quanto o antigo ou clássico (JAIN, 2010), nunca sequer foi cogitado verdadeiramente por aqui. O brasileiro nunca se preocupou com a autenticidade do ioga propalado no país. Mesmo ocorrido contendas sobre grafias e acentos do nome ioga, ou tentativas frustradas de unificação dos “iogas” no Brasil, não houve realmente grandes contendas, como no caso que descritos no trabalho Jain sobre o ioga ser hinduísta, budista ou jainista (Ibid.).

Parece lícito supor que na ausência de mestres e gurus indianos, assim como acesso a escrituras autorizadas, as primeiras décadas de instalação do ioga no Brasil se construiu a partir tão somente das próprias experiências e vivências, como fez Hermógenes na cura da sua doença ou DeRose no mergulho da mística sincrética, o ioga brasileiro se apossa do ioga indiano chegou até ele e o transforma em narrativa espiritual própria em mais uma alternativa para compreensão do seu mal-estar: em mais uma forma de viver e sofrer. É lícito supor que os iogues brasileiros tenham

157

erigidos as suas próprias vias de salvação do mal-estar que os aflige, assim como a descrição do mundo ideal a ser conquistado na aquisição da sabedoria de kaivalya.

Tracei, portanto, a partir da figura de dois líderes do ioga brasileiro – Hermógenes-híbrido e DeRose-tradicionalista – a história de consolidação do ioga brasileiro. Mesmo distinguindo os dois entre híbridos e tradicionalistas, a divisão se deu por motivos metodológicos e ilustrativos de “tendências”, pois ambos se consideram genuinamente autênticos ao mesmo tempo concebidos de forma original. Quando no caso do governo federal brasileiro sugerir fiscalizar os professores de ioga pelo conselho de educação física ambos, híbridos e tradicionalistas, se uniram contra o poder do Estado. O ioga brasileiro, mesmo diferente, se complementa. Isso ficou evidenciado durante as entrevistas, na diferenciação entre “prática” e “estado” de ioga. Essa distinção, como descrevemos, primeiro, não precisou de nenhuma reunião entre os líderes do ioga no Brasil, foi estabelecido espontaneamente ao seu microuniverso para afastar de qualquer poder governamental o direito de fiscalizá-lo; e segundo, que o ioga, como religiosidade, não pudesse ser fiscalizada como “atividade física”, ou seja, quem legitima o que é ou não ioga no Brasil, são os próprios líderes de ioga no país, mas de forma ainda não-institucionalizado. Essa forma ambígua e paradoxal pode ter sido o que permitiu tanto Hermógenes quanto DeRose se tornarem líderes e formadores da maioria dos professores e novos líderes de ioga.

5.8. Alteridade e Alienação presentes nas práticas rituais de cura do ioga moderno

Andrea Jain em seu livro Selling Yoga, apresenta o termo ritual ioguico como uma série de comportamentos que evocam ou orientam o praticante em direção a uma “dimensão sagrada” que transcenda a compreensão de vida convencional e ordinária (JAIN, 2010, p.126). Ao invés da expressão “dimensão sagrada”, prefiro assumir a mesma terminologia utilizada pelos líderes de ioga que entrevistei no Brasil: estado de ioga. O estado ou experiência de ioga corresponde ao samadhi e advém do cessar voluntário das flutuações da mente/consciência (citta-vrttis-nirodha). Em outras palavras, a via de salvação/libertação do ioga moderno, como mostramos, capacita

158

aos iogues modernos uma certa alteridade espiritual que o liberta do aprisionamento social em que vive em sofrimento.

O entrelaçamento entre samadhi e alteridade espiritual, e o klesa-Ignorância em dialética com o alienação (SARBACKER, 2008, p.173-179), hipotetizamos que kaivalya pode também ser interpretado como libertação/salvação da alienação espiritual de “quem somos”.

É evidente que o jeito de viver de um iogue existe e o motiva a transformações. Há uma esperança de uma vida melhor, de uma vida que permita, mesmo que durante os sessenta minutos de aula de ioga, vivenciem o samadhi/liminaridade que diminua seus sintomas da dor e do sofrimento. O que almejam é alcançar o relaxamento espiritual de seus rituais, mas sobretudo, purificarem o klesa-Ignorância metaforizado em estresse da sociedade em que vivem, instaurando a homeostase espiritual de kaivalya.

Os rituais do ioga e seus espaços liminares que produzem relaxamento e fé em uma vida sem estresse, podem representar tentativas de uma parcela da população brasileira em buscar novas alternativas religiosas às suas mais profundas angústias sociais, políticas e econômicas ajuizadas na ética do ioga moderno. O ioga em contato com as sociedades ocidentais - leia-se novas formas de viver, mas também de sofrer - ressignificaram toda a sua doutrina e práticas corporais por conceitos da ciência fisiológica biomédica (ALTER, 2004; JAIN, 2010; SIMÕES, 2011), transformando os seus principais obstáculos espirituais (klesas) à salvação (kaivalya) em estresse (BHAVANANI, 2007; RAO, 2012) ou emoções específicas (BALSEV, 1992).

Contudo, agora, esse contato altera o caráter do iogue renunciante do mundo de tempos passados, para um ascetismo que dialoga com o mundo nos tempos atuais (STRAUSS, 2008, p.64). Assim, em cada sociedade que o ioga toma contato adapta e acomoda as suas narrativas de formas de viver. No Brasil, com certeza, o ioga indiano encontrou um sofrimento diferente a ser combatido que o fez rever a sua doutrinas e significados de prática. O conhecimento advindo (gnosis) do samadhi/liminaridade pode não ser o mesmo que de outras instâncias. O que atormenta um indiano medieval pode não corresponder a um brasileiro moderno. Mesmo que, hipoteticamente, o mesmo estado liminar/samadhi promovido pela mesma prática ritual tenham sobrevividos da época de Patanjali, um praticante brasileiro moderno deve obter outro

159

tipo de conhecimento (viveka), pelo simples motivo que a dor que ele sofre ser advinda de outro mal-estar que o aflige. Assim, é lógico que os klesas, ou obstáculos espirituais do ioga não sejam mais os mesmos de outrora. Mas qual mal-estar atormenta os brasileiros?

5.9. Kaivalya à brasileira

No Brasil, segundo a tese de Dunker, impera-se duas forças contrárias que convivem em harmonia ao espírito dos brasileiros, por assim dizer: uma que o percebe como “cordial” e outra como “intolerante”. A perspectiva cordial, retomada a partir de intérpretes clássicos como Silvio Romero, Afonso Celso, Paulo Prado, Manuel Bonfim e Cassiano Ricardo enfatiza o problema da ausência do Estado nas resoluções particulares que autorizam os brasileiros a burlar normas e ordens vigentes. É o exemplo, segundo a interpretação psicanalítica do autor, do caráter brasileiro ser classificado como o “malandro”, pois na ausência da figura paterna, simbolizada pelo Estado que o abandona e, percebida como explorador e ausente ao mesmo tempo, legitima-o a resolução das suas angústias do seu jeito. Sob o ponto de vista da intolerância, o que se sublinha é o excesso de Estado que dificulta a individualização necessária para que o brasileiro realize as funções que se destina, como no caso do massacre em Canudos, gesto exemplar contra uma comunidade que desafia a autonomia do Estado – do pai – e este age com força desmesurada e violenta aos seus que desafiam a sua autoridade (Ibid., p.137). O primeiro aspecto do caráter nacional lhe permite certa alteridade, do “jeitinho brasileiro”; mas o segundo, funciona como mecanismo de alienação, do “não adianta fazer nada mesmo”. Esse jogo de forças contrárias e ambivalentes é o que define o problema da identidade do brasileiro e a causa do seu mal-estar e sofrimento. A solução encontrada, conclui o autor, é a “união dos contrários” com a persistente sensação de estar num “estado de exílio permanente” (Ibid., p.171).

Talvez ser essa sensação de não-lugar que o estado de exílio representa, que os iogues brasileiros não tenham podido identificar os obstáculos espirituais que os impedem à kaivalya quando das entrevistas. Nenhum iogue brasileiro conseguiu definir com clareza ou identificar a causa específica do sofrimento no ioga a partir dos klesas. Na verdade, os klesas não são sequer citados, na maioria das vezes. Isso

160

poderia representar falta de conhecimento, mas não é esse o caso. Os iogues brasileiros são muito claros e possuem um discernimento e compreensão bem definida da espiritualidade do ioga. Muitos dos líderes entrevistados inclusive, possuem seus próprios gurus indianos e estabelecem contato periódico com a cultura indiana e acadêmica. Essa falta sobre os klesas pode refletir que os obstáculos espirituais ao iogue brasileiro, globalizado e secular, não tenham mais contornos tão definidos como na sociedade de Patanjali. Ou, essa não clareza da natureza dos klesas possa estar relacionada na ambivalência da “alma antropofágica” do brasileiro esclarecida por Dunker.

A ambiguidade e paradoxalidade característica do brasileiro é diferente de puro e simples sincretismo que somam duas características e criam uma terceira totalmente diferentes das duas anteriores. A antropofagia da alma brasileira, estaria mais relacionada com a convivência dos contrários e uma “nova forma de vida” (DUNKER, 2015, p.273-320). Enquanto DeRose, por exemplo, se posiciona oficialmente como um tradicionalista, alguém que foi buscar a mais pura essência do ioga em sua origem pré-védica, a sua tradição de ioga é obscura e legitimada, como ele mesmo descreve, por um espírito de luz indiano desencarnado (Bhajavananda) que o auxilia na decodificação de seu método e que aparece a ele num terreiro de candomblé no Rio de Janeiro, como comenta em entrevista e na própria autobiografia. É nessa gira, por intermediação de preto-velho que DeRose percebe “que está no caminho certo para trabalhar com o ioga”. Por outro lado, a característica híbrida de Hermógenes é ao mesmo tempo marcada por um respeito de reverência ímpar aos princípios de seu guru, Sai Baba, digno de um iogue ortodoxo brâmane. A classificação realizada aqui – tradicionais e híbridos - foi puramente ideal e por questões metodológicas, como ressaltamos desde o início. Rotular o ioga brasileiro é tarefa difícil, senão inclassificável, mas foi necessária para agora mostrar a sua própria indefinição de “alma”. E é nesse ponto que retomo o cerne da tese aqui apresentada: O que liberta os iogues brasileiros do seu sofrimento? Ou de outra forma, do que os brasileiros dedicados à espiritualidade do ioga querem se libertar/salvar?

Entre as narrativas dos iogues brasileiros entrevistados, pode-se perceber certa indefinição da causa do sofrimento humano. Os klesas ou equivalentes, não puderam ser identificados com clareza. Talvez pelo número reduzido de entrevistados, mas

161

mesmo que assim o fosse, os dez entrevistados líderes de ioga são os responsáveis por uma parcela expressiva de novos professores que adentram ao microuniverso ioguico brasileiro e difundem o que aprenderam com estes líderes aos seus alunos. Dessa forma, é lícíto supor que, mesmo restrito o número de entrevistas, elas puderam revelar que a salvação/libertação espiritual do ioga brasileiro, possa estar inserida na resolução dos problemas da sociedade, no mundo fenomênico e não em outro. O brasileiro se preocupa com esse mundo. O obstáculo à salvação/libertação espiritual proposta pelo ioga no Brasil pode ainda estar indefinida, não possuindo um lugar, uma resposta orgânica específica ou uma emoção singular, como vimos elencada por nossos colegas em outras instâncias. No Brasil, pelo contrário, os klesas podem residir num jogo de polaridades permanente.

Ravi: Vivemos papéis que são falsos (pai, cientista, professor). Antes de nascer já éramos alguma coisa e depois de morrer continuaremos ser. O que somos então? São as identificações dos papéis [que ocupamos] que originam o sofrimento humano.

Hermes: O personagem constrói a realidade física da pessoa. Há um eu por trás que você já é.

Ganesh: O estresse existe, mas não tem razão de se deixar manifestá-lo físico e mentalmente, pois o estresse é fruto da ignorância de não se perceber dentro de uma ordem [cósmica]. Todos nós somos parte dela. As causas do sofrimento humano está em não se compreender que você não é o papel que ocupa [na sociedade ou família]. O ioga lhe dá a possibilidade de você perceber-se algo que você já é, mas que você não percebe plenamente.

Vishnu: Os obstáculos do ioga são nossas próprias máscaras.

Rudá: Os obstáculos sou eu mesmo que construo.

Shanti: Isvara é a consciência que permeia tudo. Estamos imersos em Isvara. Não temos consciência Dele, mas o ioga ajuda na conexão com Deus que está dentro de nós. Eu me conecto comigo, eu me conecto com o universo. Há um plano maior de Isvara.

Andurá: A meditação nos ajuda a contar menos histórias sobre nós mesmos.

Em todos os discursos acima está implícito uma insatisfação e anomia do seu desempenho social ou na ordem cósmica, por assim dizer. Os iogues brasileiros, habitantes da classe média, em geral profissionais liberais ou microempresários, descrevem os klesas indefinidamente como algo que os alienam e responsaveis por afastar os indivíduos da “harmonia”, ordem cósmica, portanto, da homeostase

162

espiritual que kaivalya promete e está representado no corpo. Kaivalya no Brasil, parece manifestar-se dentro de uma lógica dinâmica, assim, de difícil classificação, pois muda a todo instante à mais sutil oscilação. A sua narrativa, no entanto, pode estar obedecendo a mesma lógica na qual os klesas, o samadhi e as energias suprassensíveis correspondem e como ressaltamos ao longo de toda a tese: na ressignificação da fisiologia biomédica ocidental. Por isso, o representamos aqui nesse equilíbrio dinâmico metaforizado em homeostase, descrito no segundo capítulo, por forças internas do organismo em busca constante (eternas, por assim dizer) da manutenção da harmonia do nosso corpo-mente e o colocar em “relaxamento”: em um estado ideal que não precise fazer nenhum esforço. O objetivo último do ioga no Brasil, parece estar em adquirir as mesmas características da “união de forças contrárias” e “exílio permanente” que Dunker afirma serem as motivações do mal- estar brasileiro.

Kaivalya para o brasileiro não aparece como “estado final”, mas algo que os “conecta novamente” ou “em equilíbrio”. Em outras palavras, há um possível “entrar e sair” do estado de ioga e não um definitivo “local salvífico/libertador”, como o céu cristão. Kaivalya está mais para o “Nosso Lar” espírita, no sentido estrito de lugar de transição ou purificação, pois logo em seguida os iogues descrevem o “desconectar” de novo num eterno retorno do estado ordinário ao sublime. Nada parece indicar um estado definitivo em kaivalya para o brasileiro.

O que o ioga, como caminho espiritual em processo, mas sobretudo como promulgador de uma nova forma de vida, propõem libertar seu devoto do estado de alienação ou klesa-mãe-Ignorância (avidya), que foi traduzido metaforicamente modernamente como estresse e outras emoções, que podem ser, na verdade, reflexos ou sintomas – para utilizar as expressões de Dunker – de um sofrimento maior advindo do mal-estar. Kaivalya poderia refletir o libertar não apenas do estresse, no sentido conservador, que o associa com o “estilo de vida agitado das grandes cidades”, mas de uma nova narrativa, uma metáfora de um estado de eterno equilíbrio de estar, portanto, com alteridade, vencendo o mal-estar de não estar. Kaivalya- homeostase não seria, talvez, o fim do sofrimento, mas o discernimento da causa espiritual do mal-estar, da angústia da alma. Estabelecer-se na Verdade de kaivalya, talvez esteja mais em tomar consciência que se sofre, mas resiste com a coragem e a fé que a cada prática ritual, o praticante ou aluno de ioga pode superá-lo mais um dia,

163

no constante jogo de equilíbrio do viver. O kaivalya verde-amarelo pode estar mais na impermanência, no jogo de cintura, como o próprio jeito do brasileiro, do que no alcance do estado permanente de não-sofrimento do ioga indiano.

164

CONCLUSÃO

O ioga é um fenômeno espiritual desde a sua definição como darsana na tradição do hinduísmo indiano. Atualmente, o enlace da espiritualidade do ioga aos conceitos da ciência fisiológica biomédica moderna ocidental, vem possibilitando a diversos autores contemporâneos o perceberem como um novo fenômeno religioso (DeMICHELIS, 2004; NEWCOMBE, 2008; JAIN, 2010). Devido a isso, a proposta soteriológica do ioga moderno possui estreitos laços com as suas aplicações terapêuticas, ao mesmo tempo que a ciência também tem se utilizado das suas práticas como terapia de baixo custo em muitos indivíduos, sobretudo no Brasil (SIEGEL, 2010). Essa ponte ciência-religião estabelecendo-se entre setores da saúde brasileiros e o ioga, muitos médicos, fisioterapeutas, psicólogos e profissionais de educação física têm se utilizado das práticas corporais ioguicas. No entanto, essa aproximação com a ciência não o secularizou, pelo contrário, a ciência se tornou sua via explicativa religiosa em busca da salvação/libertação para o ioga moderno.

Os klesas, os grandes responsáveis pelo sofrimento ou mal-estar humano na perspectiva ioguica clássica, foram sendo ressignificados, assim como todas as escrituras modernas do ioga, à luz da ciência fisiológica biomédica (SIMÕES, 2011). Assim, o klesa-Ignorância recebeu contornos de estresse, o klesa-Apego de sentimento de desejo, o klesa-Aversão de ódio, o klesa-Medo de Morte de medo como gatilho responsivo ao estresse, e o klesa-Orgulho de egoísmo. No Brasil em específico, por causa ao insulamento que o ioga sofreu por mais de cinquenta anos sem a presença de líderes indianos do ioga que o legitimassem como religiosidade, o ioga verde-amarelo desenvolveu particularidades que o pudemos classificar idealmente em duas grandes perspectivas: os iogues híbridos, na figura do Prof. Hermógenes, muito mais permissivos a sincretismos com religiões nativas e do cristianismo primitivo; e os iogues tradicionalistas, inspirados pelo Mestre DeRose, que buscam primar pela “essência” e “purismo” do ioga ortodoxo da Índia.

Pelos dados coletados das entrevistas com dez líderes de ioga e mais três cientistas que investigam os aspectos terapêuticos do ioga, identificamos cinco características: 1) A ausência da presença dos klesas em suas narrativas como obstáculos espirituais, assim como uma definição específica de algo similar; 2) Houve

165

uma distinção muito clara entre prática ou método de ioga, de estado ou experiência/vivência de ioga. O primeiro parece se referir a qualquer prática, mesmo secular; e o segundo ao foco de quem se devota religiosamente as práticas e compreensão das suas escrituras. 3) Todos se referem ao momento atual como uma “fase de transição” do ioga brasileiro do hibridismo ao tradicionalismo; 4) Duas crenças permanecem de seus períodos históricos anteriores, numa Ordem Cósmica que rege o mundo e o corpo, e em energias transfisiológicas; 5) Parece haver uma relação estabelecida entre relaxamento e os conceitos espirituais de samadhi e kaivalya.

Dentro desse quadro investigativo e de nossos marcos teóricos, mostramos que as práticas corporais do ioga se transformaram em rituais corporais de cura (DeMICHELIS, 2004; JAIN, 2010). A partir da descrição de processo ritual em Victor Turner desenvolvido por DeMichelis (2004), Liberman (2008), Sarbacker (2008) e Andrea Jain (2010), o conceito de samadhi no ioga nos permite estabelecer correlação com o espaço liminar ou liminaridade elevando o relaxamento, como terceira fase das práticas rituais corporais do ioga, em espiritual e responsável pelo ritual de passagem do estresse cotidiano do ambiente das grandes cidades ocidentais ao conhecimento (gnosis) advindo da liminaridade (TURNER, 2005). Essa gnosis, ou discernimento espiritual do ioga (viveka), ficou estabelecido que empossa o praticante de ioga de certa “alteridade espiritual” que remove a alienação ou ignorância e o põe em processo de “crescimento pessoal”, que segundo Hanegraaff (1998) pode ser considerado similar ao conceito de salvação/libertação religiosa, portanto, kaivalya. Os klesas-estresse e emoções equivalentes na relação com a resposta do estresse, como indicamos, seriam os empecilhos para que o relaxamento espiritual propiciasse a vivencia do samadhi.

Os conceitos de klesa metaforizados em estresse, como apresentados por Bhavanani e Rao no segundo capítulo e/ou emoções em Balsev, assim como a sua ausência no microuniverso do ioga brasileiro investigado, necessitam de pesquisas com maior abrangência, mas ainda assim, podem revelar uma nova concepção das causas do mal ioguico moderno. Nossa investigação nos permite supor que esses fatos podem revelar uma nova concepção para os klesas, dessa forma, alertar o ioga como um novo movimento religioso em processo. No Brasil, particularmente, os klesas parecem estar relacionados com a carência do iogue brasileiro conseguir firmar a sua

166

alteridade na sociedade, sobretudo nas narrativas de que vivem em “máscaras” e “papéis sociais” que precisam desempenhar. Isso pode corroborar com a análise de Dunker sobre a sociedade brasileira que foge de seu sofrimento com a fantasia da vida em forma de condomínio. Aquela que imaginamos poder nos isolar do mundo estressante que nos alfige por meio dos excessivos ruídos, violência, trânsito e etc. atrás dos muros, catracas e grades dos condomínios. Associei essa configuração com os papés que precisamos sustentar dentro dessa lógica que Dunker descreveu com alienante do indivíduo. Pareceu-me bastante similar com a proposta do ioga brasileiro em criar rituais coporais de relaxamento espiritual como via de salvação/libertação desta “lógica dos muros” do condomínio. Os obstáculos espirituais ao ioga no Brasil parece ser mais “concreto” do que o estresse e emoções específicas. O iogue brasileiro parece ainda não conseguir nomear a causa. Talvez tenha muitas causas, ou vise de forma mais urgente certa alteridade espirtitual, como mostramos.

No Brasil em específico, essa alteridade espiritual indicado por Sarbacker (2008), indicaria o kaivalya ao estado de ioga descrito pelos entrevistados, obedecendo a ressignificação que passa o ioga pela linguagem metaforizada pela fisiologia ocidental, um caráter de “homeostase divina”. Escolhemos o termo homeostase para representar uma metáfora em fisiologia, pois kaivalya ao iogue brasileiro parece não representar, como no caso do seu conceito clássico indiano, o “fim do sofrimento”, mas um equilíbrio dinâmico, assim como o conceito utilizado pela fisiologia científica e caracterizado pelos iogues entrevistados. A não identificação dos klesas no discurso ioguico nacional pode relevar não haver, portanto, para este contexto sócio-religioso, um ou demais “obstáculos espirituais” à salvação/libertação final, definição clássica à kaivalya. No Brasil, como sugerimos pelo estudo psicanalítico e histórico do mal-estar e causas do sofrimento brasileiro, pode ser algo que não não tenha definição clara. O mal-estar que assola os brasileiro modernos, segundo Dunker (2015), residiria na sensação de “exílio permanente” que faz com os brasileiros talvez sintam o seu mal-estar ou sofrimento existencial em um “não-estar” presente. Desse modo, é lícito supor kaivalya, ao microuniverso ioguico verde-amarelo, como buscando espiritualmente certa “harmonia” e “equilíbrio” reiteradamente citada nas narrativas dos iogues nacionais. Ambivalentemente, o kaivalya brasileiro não está compreendido como um estado ou local geográfico suprassensível, mas talvez por um permanente e eterno não-sofrer em samsara ou na

167

própria existência. Kaivalya à brasileira, portanto, estaria mais para um eterno jogo dinâmico de equilíbrio de forças contrárias do aqui-e-agora e não em um mundo vindouro ou “supramental”, mas similar ao conceito fisiológico de homeostase, como propomos, um estado de bem-aventurança mas sujeito a mudança por qualquer sutil oscilação corpo-mente-ambiente, que caracterizaria, em nossa comparação pela análise de Dunker (2015), a forma de viver do brasileiro.

Como pano-de-fundo da discussão acima, reside o valor da “fisiologia da religião” (USARSKI, 2007, p.13) como uma possível subdisciplina auxiliar em processo na ciência da religião no Brasil. Em outras instâncias, o seu valor heurístico pode ser já percebido (LAKOFF & JOHNNSON, 1999; FULLER, 2008; WINKELMAN & BAKER, 2010), mas no Brasil ainda bastante incipiente as pesquisas que consideram o corpo como parte importante na compreensão de um fenômeno religioso. Outro ponto que levantamos, está na ciência funcionando como legitimadora de discursos religiosos ao invés de responsável pela secularização de narrativas religiosas. Com o ioga percebeu-se aqui que ela é uma das mais importantes responsáveis por fomentar o surgir de seus novos bens de salvação (klesas, samadhi e kaivalya).

A investigação do ioga, fora dos muros que o cercam como terapêutica espiritual ou secular de cura e profilaxia de doenças, pode ampliar o espectro de sua religiosidade na compreensão das mais profundas angústias existenciais de uma parcela determinada das sociedades urbanas no Brasil, que o praticam não apenas para aquisição de uma boa saúde, mas como uma nova forma de viver e sofrer.

168

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ALTER, J. 2004. Yoga in Modern India: The Body between Science and Philosophy. New Jersey: Princeton University Press. AMARAL, L. 2000. Carnaval da alma: comunidade, essência e sincretismo na Nova Era. Petrópolis: Vozes. APOLLONI, W. 2004. Entre a Cruz e o Asana: Respostas cristãs à popularização do Yoga no Ocidente. Revista de Estudos da Religião, 3: 50-73. ARANYA, H.S. 1983. Yoga philosophy of Patanjali. New York: State University of New York Press. AVADUTHA, A.P. 1996. O amor de Ba’Ba’ pela América do Sul. São Paulo: Publicações Ananda Marga. BALSEV, A.N. 1991. The Notion of Kle`sa and Its Bearing On the Yoga Analysis of Mind. Philosophy East and West. 41(1): 77-88. BENSON, H. 2000. The relaxation Response. New York: Harpertorch. BERRY, T. 1992. Religions of India: Hinduism, Yoga, . Chambesburg: Anima Publications. BHAVANANI, A.B. 2007. A yogic approach to stress. 2a. Edição. Puducherry: Dhivyananda Creations. BOURDIEU, P. 2001. A produção da crença: Contribuição para uma economia dos bens simbólicos. 3a. edição. Porto Alegre: Editora Zouk. CANNON, W.B. 1927. Bodily changes in pain, hunger, fear and rage. New York: D. Appleton & Cia. CARRETTE, J. & KING R. 2005. Selling spirituality. The silent takeover of religion. New York: Routledge. CARUSO, V. 2012. Hermógenes: Vida, Yoga, Fé e Amor. São Paulo: Bodigaya. CHAMPION, F. 1989. Les Sociologues de La post-modernité religieuse et La nébuleuse mystique-ésoterique. Archives de Sciences Sociales des Religions, 67(1): 155-165. CRUZ, E.R. 2007. Em busca de uma história natural da religião. In: O espectro disciplinar da Ciência da Religião. São Paulo: Paulinas, p.259-280. ––––––––––. 2008. A persistência dos deuses: religião, cultura e natureza. São Paulo: UNESP. DANUCALOV, M.A. & SIMÕES, R.S.S. 2009. Neurofisiologia da Meditação. São Paulo: Phorte Ed.

DeMICHELIS, E. 2004. A history of modern yoga: Patañjali and Western Esotericism. London: Continuum Books.

169

––––––––––––––. 2008. Modern Yoga: History and Forms. In: SINGLETON, M. & BYRNE, J. (orgs.) Yoga in the Modern World, Contemporary Perspectives. London: Routlege, p.17-35. DEROSE, L.S.A. 2006. Quando é preciso ser forte: Um aprendizado sobre superação, determinação e sucesso. São Paulo: Editora Nobel. DESIKACHAR, T.K.V. 2006. O coração do Yoga. São Paulo: Editora Jaboticaba. -–––––––––––––––––––.; SKELTON, M.L. & CARTER, J.R. 1980. Religiousness in Yoga: Lectures on theory and practice. Boston: University Press of America. DUNKER, C.I.L. 2015. Mal-estar, sofrimento e sintoma: Uma psicopatologia do Brasil entre muros. São Paulo: Boitempo Editorial. ELIADE, M. 1998. Xamanismo e as técnicas arcaicas do êxtase. São Paulo: Martins Fontes. ––––––––––. 2001. Yoga: Imortalidade e Liberdade. São Paulo: Editora Palas Athena. ––––––––––. & COULIANO, I.P. 2009. Dicionário das Religiões. 2ª.Tiragem. São Paulo: Martins Fontes. FARQUAR, J.N. 1915. Modern Religious Movements in India. New York: The MacMillan Company. FERNANDES, E. & DA ROCHA, V.M. 2005. A imagem do yoga como terapia e como ginástica: Uma construção ocidental. Vivência Artigos: 29: 311-326. FEUERSTEIN, G. 1998. A tradição do yoga: história, literatura, filosofia e prática. São Paulo: Editora Pensamento. –––––––––––––––. 2004. Tantra: Sexualidade e Espiritualidade. São Paulo: Editora Nova Era. –––––––––––––––. 2005. Enciclopédia de Yoga. São Paulo: Ed. Pensamento. FULLER, R.C. 2008. Spirituality in the flesh: Bodily sources of religious experience. New York: Oxford University Press. GNERRE, M.L.A. 2010. Identidades e paradoxos dos yoga no Brasil: Caminho espiritual, prática de relaxamento ou atividade física? Fronteiras: 12(21): 247-270. GRIEGO, F.E. 2008. El Gheranda Samhita. Versión y Traducción de Dharmachari Swami Maitreyananda. Buenos Aires: Recopilación del Curso de Yoga y Hatha Yoga dictado en CCRRR. Extensión Universitaria de la Universidad de Buenos Aires, Fundación Aurobindo de Yoga Integral, Aurobindo Sivananda Ashram® y Federación Internacional de Yoga. GUERRIERO, S. 2001. O Movimento Hare Krishna no Brasil: uma interpretação da cultura védica na sociedade ocidental. Revista de Estudos da Religião (REVER). 1(1): 44-56.

170

–––––––––––––. 2006. Novos movimentos religiosos: O quadro brasileiro. São Paulo: Paulinas. –––––––––––––. 2014. Até onde vai a religião: um estudo do element religioso nos movimentos da Nova Era. Horizonte, 12(35): 902-931.

GULMINI, L.C. 2002. O YogaSutra, de Patanjali: Tradução e análise da obra, à luz de seus fundamentos contextuais e linguísticos. Dissertação de Mestrado, Área de Semiótica e Linguística Geral da Universidade de São Paulo. HANEGRAAFF, W. 1998. New Age Religion and Western Culture, Esotericism in the Mirror of Secular Throught. New York: State University of New York Press. ––––––––––––––––––. 1999. New Age spiritualities as secular religion: a historian’s perspective. Social Compass, 46(2): 145–160 –––––––––––––––––. 2000. New Religion and Secularization. NUMEN (47): 288- 312. ––––––––––––––––––. 2003. How magic survived the disenchantment of the world. Religion, 33: 357–380 HERMÓGENES, J. 2005. Yoga: um caminho para Deus. Rio de Janeiro : Nova Era. –––––––––––––––. 2006. Yoga: caminho para Deus. Rio de Janeiro : Nova Era. –––––––––––––––. 2010. Autoperfeição pelo Hatha-Yoga. Rio de Janeiro: Nova Era. –––––––––––––––. 2011. Yoga para nervosos. Rio de Janeiro: Nova Era. IYENGAR, B.K.S. 2001. A árvore do ioga: a eterna sabedoria do ioga aplicada à vida diária. São Paulo: Editora Globo. –––––––––––––––.; EVANS, J.J. & ABRAMS, D. 2005. Light on life: The Yoga Journey to Wholeness, Inner Peace and Ultimate Freedom. United States of America: Holtzbrinck Publishers. JACOBSON, E. 1934. You Must Relax: Practical Methods for Reducing the Tensions of Modern Living. Chicago: Mcgraw-Hill. –––––––––––––. 1938. Progressive relaxation. Chicago: University of Chicago Press. JAIN, A.R. 2010. and Endocrine Glands: Metaphysics and Physiology in the Preksha Dhyana of Acharya Mahaprajna. Bulletin for the Study of Religion, 39(2). ––––––––. 2014. Selling yoga: from counterculture to pop culture. New York: Oxford University Press. JAMES, W. 1995. As variedades da experiência religiosa: Um estudo sobre a natureza humana. São Paulo: Editora Cultrix. JOHNSON, W.J. (org.) 2010. Dictionary of Hinduism. New York: Oxford University Press Inc.

171

KAELBER, W.O. 1989. Tapta Marga: Ascetism and initiation in vedic India. Albany: State University of New York Press. KRIYANANDA, S. 2007. A essência do Bhagavad Gita: Explicada por Paramanhsa Yogananda. São Paulo: Ed.Pensamento. KUPFER, P. 2002. : Luz sobre o Hatha Yoga. Florianópolis: Dharma. KUVALAYANANDA, S. 2005. Asanas. São Paulo: Phorte Editora. –––––––––––––––––––––. 2008. Pranayama. São Paulo: Phorte Editora. LABATE, B.C. 2000. A reinvenção do uso da ayahuasca nos centros urbanos. Dissertação de Mestrado, Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da Universidade Estadual de Campinas. LAKOFF, G. & JOHNSON, M. 1999. Philosophy in the flesh: The embodied mind and its challenge to western thought. New York: Basic Books. LAPLATINE, F. 2011. Antropologia da doença. São Paulo: Martins Fontes. LIBERMAN, K. 2008. The Reflexivity of the Authenticity of Hatha Yoga. In: SINGLETON, M. & BYRNE, J. (orgs.) Yoga in the Modern World, Contemporary Perspectives. London: Routlege, p.100-116. MARINO JR, 2005, p. A religião do cérebro: As novas descobertas da neurociência a respeito da fé humana. São Paulo:Editora Gente. NANDA, M. 2007. O Quanto Somos Modernos? As contradições culturais da modernidade da Índia. Revista de Estudos da Religião. Março: 164-182. NEWCOMBE, S. 2005. Spirituality and ‘Mystical Religion’ in Contemporary Society: A Case Study of British Practitioners of the Iyengar Method of Yoga. Journal of Contemporary Religion. 20(3). NICHOLSON, A.J. 2013. Is yoga hindu? On the fuzziness of religion boundaries. Common Knowledge, 19 (3): 490-505. NOGUEIRA, P. 2010. Espiritualidade Quântica? Consciência, Religião e Ciência no pensamento de Amit Goswami. Dissertação de Mestrado, Programa de Pós-Graduação em Ciências da Religião da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. NUNES, T.C.L. 2008. Yoga: Do corpo, a consciência; Do corpo à consciência: O significado da experiência corporal em praticantes de Yoga. Dissertação de Mestrado, Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da Universidade Federal de Santa Catarina. PANCHAM SINH. 1914. Hatha Yoga Pradipika. http://www.sacred- texts.com/hin/hyp/index.htm acessado 10/02/2011. PARTRIDGE, C. 2005. Alternative Spiritualities, occulture and the re- enchantment of the West. The Bible In Transmission.

172

PINEL, J.P. 2005. Biopsicologia. 5a.Ed. Porto Alegre: Artmed. RAO, R.T. 2012. Stress management throught yoga and yogic diet. International Journal of Multidiscplinary Educational Research. 1(3): 123-130. SAMUEL, G. & JOHNSTON, J. (orgs.) 2013. Religion and the in Asia and the West: Between mind and body. New York: Routledge Studies in Asia Religion and Philosophy. SANCHES, R.L. 2014. Curar o corpo, salvar a alma: As representações do Yoga no Brasil. Dissertação de Mestrado, Programa de Pós-Graduação em História da Faculdade de Ciências Humanas da Universidade Federal da Grande Dourados (UFGD). SANDOR, P. 1974. Técnicas de relaxamento. São Paulo: Ed. Vetor. SAPOLSKY, R.M. 2008. Por que as zebras não têm úlceras? O mais conceituado guia sobre como lidar com o estresse e os males e doenças associados a ele. São Paulo: Editora Landscape. SARBACKER, S.R. 2008. The numinous and cessative in modern yoga. In: SINGLETON, M. & BYRNE, J. (orgs.) Yoga in the Modern World, Contemporary Perspectives. London: Routlege, p.161-183. SCHONFELD, M. 2010. Yoga. In: LEEMING, D.A.; MADDEN, K. & MARLAN, S. (eds.) Encyclopedia of psychology and religion. Springer, p.987-990. SEYLE, H. 1976. Stress in the health and disease. New York: Butterworth. SHAVER, M. 2010. The Yoga Production: Authentic Claims of Mind and Body. Spring 2010 Honor Thesis and Undergraduate Recipient of Research Stipendhttps://www.academia.edu/2230504/The_Yoga_Production_Authentic_Claims _of_Mind_and_Body Acessado 05/01/2015. SIEGEL, P. 2010. Yoga e saúde: O desafio da introdução de uma prática não- convencional no SUS. Tese de Doutorado, Programa de Pós-Graduação em Saúde Coletiva, da Faculdade de Ciências Médicas da Universidade Estadual de Campinas. SIMÕES, R. 2011. Fisiologia da Religião: Uma análise sobre vários estudos da prática religiosa do Yoga. Dissertação de Mestrado, Programa de Pós-Graduação em Ciências da Religião da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. SINGLETON, M. 2005. Salvation through Relaxation: Proprioceptive Therapy and its Relationship to Yoga. Journal of Contemporary Religion. 30(3): 289-304. ––––––––––––––. 2008. The classical reveries of modern yoga: Patañjali and constructive orientalism. In: SINGLETON, M. & BYRNE, J. (orgs.) Yoga in the Modern World, Contemporary Perspectives. London: Routlege, p.77-99. ––––––––––––––. 2010. : The origins of Modern Posture Practice. Oxford University Press.

173

––––––––––––––. & BYRNE, J. (org.) 2008. Yoga in the Modern World, Contemporary Perspectives. London: Routlege. –––––––––––––. & GOLDBERG, E. 2014. Gurus of Modern Yoga. New York: Oxford University Press. SIVANANDA, S. 2000. The science of pranayama. Distt. Tehri-Garhwal, Uttar Pradesh, Himalayas, India: A Divine Life Society Publication. http://www.dlshq.org/ acessado em 16/02/2011. SMITH, B.R. 2008. “With heat even iron willbend”: Discipline and authority. In: SINGLETON, M. & BYRNE, J. (orgs.) Yoga in the Modern World, Contemporary Perspectives. London: Routlege, p.161-183. SOUTO, A. 2009. A essência do Hatha-Yoga. São Paulo: Phorte Editora. STRAUSS, S. 2008. Adapt, Adjust, Accommodate: the Production of Yoga in a Transnational World. In: SINGLETON, M. & BYRNE, J. (orgs.) Yoga in the Modern World, Contemporary Perspectives. London: Routlege, p.49-74. TINGLEY, K.A.W. 2012. Theosophical Path Volume Ñ,. 18. Miami/Florida: Rare Books Club. TURNER, V. W. 2005. O processo ritual. Petrópolis: Ed. Vozes. USARSKI, F. 2001. A retórica de “aniquilação” – Uma reflexão paradigmática sobre recursos de rejeição a alternativas religiosas. Revista de Estudos da Religião, 1: 91- 111. –––––––––––. 2007. O espectro disciplinar da Ciência da Religião. São Paulo: Paulinas. –––––––––––. 2009. O Budismo e as outras: Encontros e desencontros entre as grandes religiões mundiais. Aparecida: Editora Ideias & Letras. VALLE, E. 2008. Psicologia e experiência religiosa. 2ª.Edição. São Paulo: Edições Loyola. VIVEKANANDA, S. 2007. O que é religião. 2ª Edição Rev. Rio de Janeiro: Lótus do Saber Editora. WEBER, M. 2001. A ética protestante e o espírito do capitalismo. São Paulo: Centauro. WINKELMAN, M. & BAKER, J.R. 2010. Supernatural as natural: A biocultural approach to religion. New Jersey: Pearson Prentice Hall. WOODROFFE, S.J. 2004. Introduction to Tantra Sastra. Thanikachalam Road, T.Nagar: Ganesh & Co. YOGANANDA, P. 2008. Afirmaciones cientifícas para La curación. Los Angeles: Self-Realization Fellowship. –––––––––––––––. 2009. Autobiografia de um Iogue. 3ª.Ed. Rio de Janeiro: Ed.Lótus do Saber.

174

ZIMMER, H. 2000. Filosofias da Índia. 5ª Edição. São Paulo: Editora Palas Athena.

175