Boletim de Minas, 54 - Tema em Destaque - Rochas Ornamentais - 2019-2020

Lioz – Rocha Património, foi Real em e Transportou Arte e Cultura para o Brasil

Zenaide Carvalho G. Silva Geóloga, Profª. Associada c/ Agregação, Jubilada, GeoBioTec, Departamento de Ciências da Terra, Faculdade de Ciências e Tecnologia, Universidade Nova de Lisboa, Portugal Email: [email protected]

Palavras Chave: Lioz, rocha património, arte, Portugal, Brasil

RESUMO

O estudo do calcário português lioz, abordado neste artigo, abrange uma breve referência à sua história geológica e uma outra, mais extensa, ao seu papel como veículo de divulgação de arte e cultura portuguesa e europeia no Brasil. O lioz, sendo um calcário microcristalino com propriedades físicas e tecnológicas próprias para a construção, é também utilizado como elemento decorativo, uma vez que tem coloração diversa, em branco-marfim, rosa claro e escuro, amarelo dourado e amarelo forte, recebendo por esta razão denominações diferentes na indústria das rochas ornamentais. É um calcário de ambiente recifal, portador de fósseis rudistas que lhe conferem uma textura singular. Ocorre nas zonas de Lisboa e arredores, incluindo a região do município de Sintra, principalmente em Pêro Pinheiro, de cujas pedreiras saiu a maior parte do material para construção em Portugal e no Brasil, desde o século XVIII até o presente. Usado durante décadas em construções na área de Lisboa, em estilos arquitetónicos diversos, em Mafra materializou o complexo arquitetónico emblemático de D. João V, Convento, Igreja e Biblioteca, tornando-se a “pedra real”. Foi transportado para o Brasil como lastro de navios que circulavam entre Portugal e a nova colónia, onde no século XVIII foi a rocha preferida para as grandes construções, principalmente de igrejas e templos de culto religioso, cópias de igrejas portuguesas ou nelas inspiradas, perpetuando a arte e arquitetura transportadas da Europa. Deixou em Salvador, na uma exposição valiosa do património de arte e cultura portuguesas. O lioz tem hoje o estatuto de “Rocha Património Global” por preencher os requisitos adotados pela Heritage Stone Subcomission (HSS) da UNESCO.

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ABSTRACT

The Portuguese limestone lioz is reported in this paper focusing two distinct approaches, a concise geological history and a very different one characterizing the lioz as a vehicle of diffusion of European and Portuguese art and culture in . Lioz is a microcrystalline limestone used in construction due to its technological properties suitable for that purpose, being also used as a decorative stone as it has a unique texture and varied colors: ivory white, light and dark pink, golden yellow, dark yellow. Due to that color variation and different appearance according to the way the rock is cut, lioz answers for a variety of designations given by the stone industry. The rock has been identified as a reef limestone and carries rudist fossils which give a pretty texture to it. Lioz occurs in and vicinities, namely in the Sintra region, mainly in Pero Pinheiro region where many quarries are located. Most of the material extracted for construction both in Portugal and Brazil from the XVIII century to present, came from that area. During several decades lioz was the preferred rock used in churches and other monuments, as well as in governmental buildings, in very diverse architectonic styles. The monumental complex of Mafra (convent, church and library) under D. João V reign was totally built and decorated in lioz in such a way that the rock got the designation of “Royal Stone”. During the XVIII century lioz limestone was carried to Brazil as ballast in vessels that travelled across the ocean in commercial missions. It was then used in the new Portuguese colony as building and decorative stone for many churches and religious temples, which were similar as Portuguese counterparts, associated with several architectonic styles and different artistic symbols. In Salvador, Bahia, the most important Brazilian town at that time, an expressive exposition of that European art was left constituting a testimony of Portuguese art and culture. Today the lioz limestone has the recognized status of a Global Heritage Stone as defined by the Heritage Stone Subcomission of UNESCO.

1. INTRODUÇÃO com Portugal um comércio intenso de bens da metrópole. Essas naus transportavam para o Brasil sal e mantimentos, ouro e prata trabalhados, sedas, produtos O calcário microcristalino denominado lioz, de ocorrên- provenientes da Ásia, drogas, alfaias para a agricultura cia na região de Lisboa e arredores, tem expressiva (Arruda, 1980) e retornavam da colónia trazendo atividade extrativa e de transformação na região produtos da terra como madeira, açúcar, tabaco, mel, de Pêro Pinheiro e municípios limítrofes, de onde a plantas medicinais (ipecacuanha) e, mais tarde, algodão, rocha tem sido fonte de matéria-prima para muitos couros, aguardente, ouro, pedras preciosas. Foi nas monumentos e construções, em Portugal e em outros localidades que abrigavam aqueles portos que o lioz países, durante séculos. É esta rocha, clara e de textura foi mais utilizado para construções, em especial em muito característica que alicerça as grandes construções, edifícios públicos e monumentos, sobretudo em igrejas, reveste edifícios públicos e pavimenta muitas ruas da cuja construção manteve uma atividade muito intensa. cidade de Lisboa. As igrejas satisfaziam os projetos de ordens religiosas, Sendo uma rocha património (Cooper et al., 2013), como as jesuítas, franciscanas, beneditinas, carmelitas reconhecida pela comunidade geológica e de património e em menor escala, de associações de comerciantes que global (Silva, 2019), além da sua história geológica, o também se organizaram em confrarias ou irmandades, lioz tem uma outra história, fascinante, em especial legitimando-as com a construção de templos religiosos para Portugal e para o Brasil, graças ao papel que semelhantes aos de Portugal. Foi num clima de euforia desempenhou como veículo de arte e cultura europeias comercial e abundância de recursos, além do entusiasmo para a nova terra Brasil, principalmente durante os e determinação protagonizados por D. João V, então rei séculos XVII e XVIII. Foi transportado para a então de Portugal, que o Brasil recebeu a herança artística recente colónia como lastro (IPAC, 1997) das naus que e cultural religiosa portuguesa, estampada nas suas compunham frotas dirigidas ao Brasil e desembarcou igrejas, com predominância na Bahia, que tinha a nos principais portos da costa brasileira que mantinham cidade de Salvador como sede do governo no Brasil.

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Em menor escala, Rio de Janeiro, Recife, São Luís do períodos da história da cidade, desde os romanos Maranhão e Belém do Pará também receberam parte aos tempos modernos. Contudo, é na zona de Pêro desta herança, mas é na Bahia que ela está mais patente, Pinheiro, no concelho de Sintra, que atualmente estão em abundância e requinte. Hoje é possível identificar-se localizadas as maiores e mais conhecidas ocorrências e correlacionar-se em igrejas que foram construídas do lioz onde a rocha tem sido extraída e trabalhada em tempos próximos, no Brasil e em Portugal, com os para comercialização durante séculos. A ocorrência “parentescos” artísticos entre elas visíveis para além de algumas variedades de lioz está documentada por do “toque” dos seus autores, arquitetos e artesãos que Martins (1991) na região de Lameiras e Pêro Pinheiro nelas deixaram a sua marca. Foi através do seu saber Este. Foi das pedreiras de Pêro Pinheiro (Figs. 1 e 2) que e arte que o Brasil recebeu de Portugal, e também da saiu um grande volume de lioz, de muitas variedades Itália e Espanha, uma enorme riqueza patrimonial. A (branco-marfim, rosa, cinza, amarelo) para a construção Bahia é hoje um museu vivo desta herança portuguesa, do Complexo arquitetónico de Mafra, no século traduzindo parte da história luso-brasileira cultural e XVIII e é neste Complexo que se encontra uma vasta artística muito acentuada no século XVIII (Silva, 2007). exposição, concebida com arte e significado religioso, das variedades desta rocha.

2. BREVE HISTÓRIA GEOLÓGICA E CARACTE- FIGURA 1 RIZAÇÃO DA ROCHA Pedreira antiga em Pêro Pinheiro

Ocorrência

O calcário lioz ocorre na região de Lisboa e aflora em localidades situadas a noroeste de Lisboa, como Oeiras e Paço d’Arcos e principalmente em Pêro Pinheiro, Lameiras, Morelena, Pedra Furada, áreas estas que estiveram submersas durante períodos geológicos que correpondem ao Cretácico, com cerca de 120 milhões de anos. Deve-se a Choffat (1900) a primeira descrição destas rochas, pertencentes a uma unidade estratigráfica referida como “calcário cristalino com rudistas”. Estes organismos são identificados com faunas de águas rasas, claras e quentes típicas de ambientes recifais. Na região de Lisboa o lioz ocorre em várias localidades (Sousa, 1897; FIGURA 2 Pinto, 2005), sendo que atualmente pouco se conhece dos Blocos de lioz multicolor em pedreira de Pêro Pinheiro afloramentos, sendo exceção o do vale de Alcântara, junto ao aqueduto das Águas Livres, local este que hoje é reconhecido como um Geosite: o Geomonumento Avenida Calouste Gulbenkian. Campolide, Rio Seco, Monsanto, e Belém são também locais de ocorrência do lioz, dentro de Lisboa, a partir das quais foi possível Zbyszewski (1963) resumir a estratigrafia da sequência descrita por Choffat, já mencionada. Também com base nas ocorrências citadas de Alcântara, Negrais e Pêro Pinheiro, Callapez (2008) tipifica o lioz como um calcário de plataforma. A ocorrência do lioz em várias localidades na região de Lisboa explica de certo modo o seu uso nas construções locais, abrangendo longos

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Caracterização Petrográfica variedade de lioz, de cor vermelho roxo em decoração de pavimentos, como na igreja de São Paulo, em Lisboa. Esta variedade é também encontrada em pavimento de Do ponto de vista petrográfico, a rocha apresenta-se como capelas na igreja da Misericórdia, em Salvador, na Bahia. um calcário microcristalino, cuja cor mais frequente é o branco-marfim, sendo também conhecidos o rosa claro, o rosa escuro, às vezes referido como “Encarnadão”, ou FIGURA 3 ainda menos frequente, o amarelo dourado discreto. Textura típica do lioz rosa escuro, exibindo os vestígios fósseis (em branco) As diferenças de cor são resultantes da presença de óxido de ferro, por vezes hidratado na matriz da rocha. Estas diferenças dão origem a nomes específicos para a rocha, atribuídos pela indústria, embora se trate da mesma rocha, o lioz. Deve-se salientar que a orientação do corte também é motivo para a atribuição de nomes distintos, de que é exemplo o “chainnette”, resultante de um corte da rocha não paralelo à estratificação. A variedade amarelo-laranja recebe a designação de Amarelo Negrais, mostrado na figura 2 e corresponde a uma variação localizada de fácies do lioz. Contém óxido de ferro hidratado e minerais argilosos, e é menos resistente à ação da atmosfera agressiva, poluída. Perde rapidamente o brilho em placas polidas quando expostas à atmosfera, em fachadas exteriores. A rocha contém fósseis bivalves, rudistas, de tamanhos Caracterização Química variados, imprimindo uma textura típica ao lioz, com destaque nas variedades coloridas, devido ao contraste entre a matriz cristalina, parcialmente oxidada e o O lioz é essencialmente um calcário formado por calcite material conchífero, mais claro, os fósseis (Fig.3). microcristalina. A composição química dos tipos mais Atualmente é possível identificar-se acabamentos em lioz usados nas construções (lioz branco-marfim, chainnette, cinza, lioz rosa claro, polido em colunas interiores, em encarnadão e amarelo Negrais está ilustrada na Tabela 1 prédios construídos em meados do século XX, em Lisboa, e mostra que as diferenças de alguns óxidos são pequenas bem como lioz contendo fósseis de tamanho avantajado entre elas e podem indicar apenas variações locais, (10-12 cm), como na escadaria do Teatro A Barraca, em possivelmente em alguns horizontes da sequência Santos. De aplicação mais rara, conhece-se uma outra estratigráfica.

TABELA 1 Análise química das quatro variedades de Lioz mais conhecidas

Óxidos % Lioz Chainnette Encarnadão Amarelo Negrais

SiO2 0,31 0,55 0,35 1,59

Al2O3 0,48 0,18 0,25 0,25

Fe2O3 0,02 0,05 0,07 0,37 MgO 0,48 0,85 0,36 1,29 CaO 55,49 54,21 55,27 53,02

Na2O 0,05 0,18 0,06 0,07

K2O 0,07 0,07 0,04 0,07 L.O.I. 43,35 43,48 43,78 43,22 Total 100,25 99,57 100,18 99,83

(Segundo Casal Moura, IGM, 1992-1996).

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Caracterização Física e Tecnológica verifica-se que rochas cuja porosidade tem valores mais elevados, resistem menos à ação das atmosferas agressivas, principalmente ao nevoeiro salino (Silva As propriedades físicas ou tecnológicas que permitem & Simão, 2009). Nesta situação, observa-se que as o uso do lioz como material de construção não variam rochas calcárias perdem massa em relação direta com significativamente entre os tipos de lioz, em função das a porosidade aberta, e no caso específico do lioz, é a pequenas variações na composição química (presença variedade amarelo Negrais aquela que mais perde, de óxidos de ferro), mas são afetadas pelo modo como a correspondendo a 1.18% de porosidade aberta. Em rocha é cortada, se paralelamente ou não à estratificação. alguns locais de Lisboa é possível observar-se o tipo de Sendo a rocha um calcário resultante da precipitação alteração exibida por esta rocha em fachada externa, de carbonato de cálcio e da deposição simultânea de sendo notória a exposição na parede externa do Aquário organismos que deram origem aos registos fósseis, os Vasco da Gama, em Algés, ao longo da Avenida Marginal. modos distintos de corte deixam características parti- A perda de brilho da rocha e consequente opacidade culares na textura: ou expondo os contornos da concha, da parede foi rápida e pode ser contrastada com o arredondados, quando o corte é paralelo à estratificação, aspeto de paredes internas da mesma rocha, observada ou exibindo seções diferentes da concha e mostrando as em várias outras construções. Finalmente, é de referir linhas irregulares dos estratos, estilólitos, quando em o mais comum tipo de alteração do lioz, patente em corte diferente dos planos de estratificação, motivando vários monumentos portugueses resultante do efeito da uma textura distinta, utilizada pelos arquitetos como humidade sobre a rocha que, combinado com a presença realce decorativo nas construções. de SO2 na atmosfera, conduz à formação de gesso, um Uma discussão mais alargada do comportamento sulfato de cálcio hidratado, desenvolvendo crostas negras tecnológico dos calcários da região de Lisboa, incluindo na rocha. Entre os exemplos bem conhecidos está o o lioz, está contida no trabalho de Figueiredo (1997). claustro do Mosteiro dos Jerónimos que entre 1998 e 2001 A Tabela 2 mostra algumas propriedades tecnológicas foi sujeito a uma intervenção cuidadosa para limpeza e relativas às variedades de lioz realçadas neste trabalho. remoção do material alterado. Estas e outras alterações Essas propriedades foram escolhidas para exemplificação no mesmo local foram objeto de estudo cuja discussão porque algumas são determinantes no uso da pedra está disponível em Aires-Barros (2001). Na Torre de como material de construção com desempenho estrutural Belém o mesmo autor (Aires-Barros, 2000) descreve e outras porque revelaram ter um papel essencial na em pormenor a intervenção de conservação e restauro vulnerabilidade da rocha à alteração. Neste contexto, naquele monumento, com alterações semelhantes.

TABELA 2 Propriedades geotécnicas das quatro variedades do calcário Lioz mais comuns: Lioz, Chainnette, Encarnadão e Amarelo Negrais

Propriedades Lioz Chainnette Encarnadão Amarelo Negrais Geotécnicas (Lameiras) (Lameiras) (Lameiras) (Negrais) Resistência mecânica à compressão(kgf/cm2) 900 1296 937 1442

Resistência mecânica à 185 221 198 203 flexão (kgf/cm2)

Massa volúmica aparente 2695 2708 2701 2674 (kg/cm3) Absorção de água à P.At. (%) 0.16 0.07 0.10 0.44 PorosidadeAberta 0.42 0.17 0.28 1.18 (%) Resistência ao desgaste (mm) 2.3 1.8 2.6 2.8

(Segundo Casal Moura, IGM, 1992-1996).

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Faz-se a seguir uma breve referência ao papel do permite-lhe um comportamento específico, exibindo acabamento das superficies das placas de lioz quando propriedades tecnológicas comparáveis às de muitas aplicadas no exterior e a resposta que é observada rochas de natureza silicatada. Esta circunstância confere- na rocha, em cada tipo de acabamento. De um modo -lhe o “estatuto” de rocha capaz de ser utilizada como geral, as superficies polidas resistem mais à ação dos elemento estrutural nas construções, garantindo-lhes agentes de alteração e as superficies bujardadas são as durabilidade e de ser trabalhada manualmente com que mais se alteram perante as mesmas condições (Silva alguma facilidade. Este tipo de calcário é encontrado em et al., 2013; Silva & Cruz, 2013). Em Lisboa, na Praça construções e outras aplicações em todo Portugal, mas do Império, em Belém, onde vários monumentos em por ocorrer na região de Lisboa e arredores, é nestas lioz estão expostos, tem-se um mostruário valioso para áreas que o seu uso é mais expressivo. a observação destes comportamentos. Nesta Praça, na Ao longo do tempo, o lioz foi material de construção mais recente construção, o Centro Cultural de Belém, em grandes obras em Lisboa, como o Aqueduto da as placas de lioz têm um acabamento distinto (Fig. 4), o Águas Livres (Fig.5), no vale de Alcântara, o Mosteiro escacilhado, e embora ainda seja cedo para este tipo de dos Jerónimos, a Torre de Belém (Fig.6), o Monumento estudo, são um expositor ideal para tais observações e aos Descobrimentos, o Museu da Marinha, o Palácio da acompanhamento da evolução das alterações no tempo. Ajuda, a Assembleia da República, o Centro Cultural de Belém e em muitas igrejas do centro e da periferia da FIGURA 4 cidade, como a igreja de São Vicente de Fora e a Basílica Acabamento escacilhado das placas de lioz, da Estrela, a Sé Catedral, a igreja da Madre de Deus, no Centro Cultural de Belém, Lisboa Beato, a do Menino de Deus, em Alfama, e muitas outras, localizadas na Baixa lisboeta. Estas construções trazem consigo testemunhos de várias épocas e de vários estilos arquitetónicos, marcando a presença do lioz, algumas com interiores exibindo um lioz bem trabalhado, exemplificado aqui com os túmulos de Camões e de Vasco da Gama e em arcos no claustro no Mosteiro dos Jerónimos (Fig.7).

FIGURA 5 Aqueduto das Águas Livres, Lisboa

3. O LIOZ NA CONSTRUÇÃO EM PORTUGAL

O lioz é uma rocha que, por sua natureza física e química, se enquadra num tipo petrográfico específico de rochas que de um modo geral se comportam como materiais mais frágeis, quando comparados com rochas de natureza silicatada, como a generalidade dos granitos, sienitos e outras rochas similares. Tendo uma composição essencialmente calcítica, mineral de baixa dureza (3 na escala de dureza de Mohs), tem características de “rocha mole”, próprias para ser trabalhada. No entanto, a sua história geológica e textura (microcristalina, compacta),

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FIGURA 6 desde tempos medievais e trabalhado até o presente, o Torre de Belém, Lisboa lioz compõe parte da charola e é pavimento em algumas dependências.

FIGURA 8 Embutidos em lioz policromado em capela da Igreja de São Roque, Lisboa

FIGURA 7 Pormenor do claustro do Mosteiro dos Jerónimos, Lisboa

A aplicação do lioz como pedra de revestimento em edifícios, em residências e em pavimentos tem-se Em algumas igrejas, os trabalhos artísticos que adornam de novo acentuado nas últimas décadas, depois de capelas e pilares expõem variedades de lioz numa um período em que a pedra parecia esquecida. A combinação artística do lioz marfim, lioz encarnadão construção do Centro Cultural de Belém (1989 a 1992) e amarelo Negrais, em geral partilhados com outro e a expansão do metropolitano de Lisboa contribuiram calcário, este preto, de Mem Martins, em “embutidos” para esta “redescoberta” da rocha, referida por Lopes delicados e de padrões diversos. É na igreja jesuíta de (2017) e hoje a sua exposição está marcada como pedra São Roque, no largo da Misericórdia, que se encontram de revestimento e trabalhada em escultura, como talvez os melhores exemplos deste tipo de composição exemplificado em estátua do Marquês de Pombal, entre exibidos em algumas das suas capelas (Fig.8). Trabalhos as linhas do metropolitano na Estação do Marquês. semelhantes são encontrados em outras localidades, como em Évora, na Igreja do Espírito Santo e na Catedral. A norte de Lisboa, o lioz marca presença na 4. LIOZ – PEDRA REAL Catedral de Santarém e nos seus arredores, compondo um ambiente agradável estendendo-se aos pavimentos da O uso alargado do lioz na região de Lisboa deve-se área que contorna a catedral. Em Tomar, no Convento em primeiro lugar à sua ocorrência, já mencionada, de Cristo, monumento construído em calcário local nas proximidades da cidade, tornando-se durante

143 Boletim de Minas, 54 - Tema em Destaque - Rochas Ornamentais - 2019-2020 décadas, desde tempos longínquos, a fonte de recurso acompanhando atividades semelhantes em Portugal. A natural por excelência, facilitada pela sua localização escolha do lioz como pedra preferida para as construções e disponibilidade. Tal facto está registado nas diversas foi natural, uma vez que ela já era a pedra “da moda” construções públicas, de palácios residenciais a nas mais marcantes construções em Lisboa, havia reserva monumentos históricos e a edifícios públicos, alguns já disponível em Lisboa e lugares próximos, existia um mencionados. Tendo atravessado períodos diversos de porto em Lisboa que já era o mais movimentado em história e de estilos artísticos, é natural que esteja presente Portugal e de onde partia a maioria das frotas em direção em construções de diferentes estilos arquitetónicos, ao Brasil e oriente, facilitando o comércio de bens da sendo que há registos da presença de mais de um estilo metrópole e, entre eles, a pedra para construções, o lioz. na mesma obra, em especial naquelas cujo tempo de A construção de igrejas foi, no século XVIII e no Brasil, construção foi longo. Um bom exemplo desta situação é um grande motor de atividade cultural, tendo em vista o complexo arquitetónico de Mafra, construído durante a pluralidade de Ordens religiosas que lá aportaram o reinado de D. João V (1706-1750), em que há registos e consolidaram a sua presença através dos templos de estilos arquitetónicos desde o Românico, atravessando erigidos. Ao lado das Ordens, surgiram as irmandades, o Gótico, o Manuelino, Renascimento e Maneirismo e que, na generalidade, eram expansão do que havia já que traduzem a influência daqueles estilos em voga na em Portugal, embora algumas tenham surgido por Europa. influência de comerciantes abonados que desejaram A construção do complexo de Mafra idealizado e rever Portugal no Brasil, através das representações conduzida por D. João V corresponde a um período religiosas. Várias cidades-portos receberam estes da história de Portugal em que o comércio com a templos, mas foi a cidade de Salvador, na Bahia, onde nova colónia na América do Sul, o Brasil, era intenso. eles foram erigidos em quantidade, testemunhando um Havia recursos provenientes da colónia, havia trocas de forte traço de cultura e arte portuguesa. O lioz esteve mercadorias de Portugal para o Brasil e vice-versa e o lioz sempre presente, também em peças de decoração nas presenciou e viveu esta movimentação. Havia, sobretudo, igrejas, desde pias de água benta a lavabos e pavimentos a vontade de um rei, que pretendia construir em Portugal decorativos com o lioz policromado. Tanto os estilos algo que tivesse a grandeza de uma Versailles, de França, arquitetónicos como os interiores dos templos trazem ou de Schönbrunn, na Áustria, ou do Palácio Real de traços de arquitetos e artistas que trabalharam em Madrid, em Espanha. Na visão de Gandra (1998), a Portugal, sendo bons exemplos as contribuições dos construção do complexo de Mafra tinha o propósito de discípulos de Filipe Terzio, arquiteto-mor de Filipe II, que ser “o centro espiritual do Quinto Império, réplica da transportou a arte renascentista da Itália para Portugal Nova Jerusalém, vaticinada no Apocalipse.” O estudo e mais tarde para o Brasil (Rocha & Mateus, 1977), de daquela construção, dos pormenores relacionados com o que na Bahia são exemplos a Santa Casa da Misericórdia, simbolismo de cada pedra, na sua cor, forma e colocação o Mosteiro de São Bento e outros. Mais tarde, um naquela obra é objeto cuidadoso e até apaixonante discípulo de Frederico Ludovice, o arquiteto alemão daquele autor (Gandra, 1995). Convento, igreja e que trabalhou para D. João V em Portugal, construiu biblioteca, referido como o complexo arquitectonico de a Igreja da Conceição da Praia (Ott, 1989), também Mafra é todo construído em lioz, o de Pêro Pinheiro. A na Bahia. Esta igreja foi toda trabalhada em Portugal escolha desta rocha, pelas razões já mencionadas e pela nos telheiros de Paço d’Arcos, na região de Lisboa, em sua beleza, em tantas obras majestosas, com o patrocínio lioz, por encomenda, e transportadada para montagem oficial, conferiu-lhe o estatuto de “Pedra Real”, pois a na Bahia (Valladares, 1982, Santos, 2002). Esta igreja sua presença nas grandes obras e igrejas nunca faltou. é considerada a primeira manifestação do barroco de D. João V no Brasil (IPAC, 1997). Na Conceição da Praia 5. LIOZ – EMBAIXADOR DE PORTUGAL NO são encontrados belos pavimentos com embutidos em lioz BRASIL COLONIAL, VEÍCULO DE ARTE E CUL- policromado. A história da construção desta igreja está descrita em pormenor por Silva (2007), onde a autora TURA também relata a chegada de D. João VI ao Brasil em 1808, na Bahia, por força de mudança de rota devido O século XVIII viu florescer no Brasil um tipo de aos ventos. No seu relato, escreve: ”Foi em 24 de janeiro atividade na construção muito intensa, de certo modo de 1808 que os sinos da Conceição da Praia dobraram

144 Boletim de Minas, 54 - Tema em Destaque - Rochas Ornamentais - 2019-2020 saudando a família real e em 4 de fevereiro era naquela a preocupação expressa por Pereira & Marker (2016). igreja celebrada a cerimónia religiosa em sua honra. Ainda neste contexto, faz-se referência à existência D. João, que deixara Mafra, obra de seu bisavô D. João V, dos chamados “Geosítios”, sendo conhecidos o de Rio seu convento, igreja e biblioteca repletos de lioz, mais Seco (Lopes, 2017) e o de Alcântara, já referido. Este familiar acolhida não poderia ter que a saudação branca conjunto de condições assegurou a referida atribuição e limpa do lioz de Pêro Pinheiro, resplandecente, à frente da designação de Rocha Património ao lioz. da Conceição da Praia, na Bahia.”

7. CONCLUSÃO 6. LIOZ, PEDRA PATRIMÓNIO GLOBAL

O lioz com as suas características como rocha, compo- A ocorrência de rochas que se tornaram elementos sição mineralógica, propriedades químicas e tecnológicas fundamentais para construções, por motivos os mais foi e continua a ser pedra de construção. As suas texturas variados, ou por serem o único ou o mais abundante ou e as suas cores variadas conferiram-lhe uso requintado o mais apropriado material disponível em determinado como elemento decorativo e artístico. Foi usado durante local, tem sido reconhecida pela comunidade científica séculos em Portugal e não só, como elemento estrutural dedicada às rochas ornamentais. Esta circunstância e decorativo em muitas construções e o seu uso intensivo despertou a vontade de se fazer a divulgação destas no século XVIII, patrocinado por D. João V, conferiu- rochas, que, tendo sido usadas em determinado local, -lhe o estatuto de “Pedra Real”. Ao longo de séculos teve ou locais, ao longo do tempo, fossem reconhecidas como um papel de relevo na transferência de cultura e arte “Rochas Património Global”, embora o termo “Global” da Europa para o Brasil e está presente em igrejas e ainda seja objeto de discussão entre os profissionais, monumentos nas principais capitais costeiras, com relevo à procura de um termo mais adequado. Isto porque a em Salvador na Bahia. Um relato do percurso do lioz designação “global” pode excluir o enquadramento de como rocha e como património é feito por Silva (2007) rochas que apenas tiveram uso em uma localidade, mas no seu livro “O Lioz Português – de Lastro de Navio a cujo papel foi desempenhado ao longo de gerações. Arte na Bahia”, onde testemunha e ilustra a sua presença Em 2016, no Congresso Geológico Internacional que e papel de rocha património em Portugal e no Brasil. decorreu em Cape Town, na África do Sul, em reunião da IUGS Council, foi ratificada a criação da Comissão Internacional das Rochas Património, conjunta com os Geoparques (Pereira e Cardenas, 2019) e, mais tarde, BIBLIOGRAFIA foram definidos os requisitos para que uma determinada rocha pudesse ser considerada como tal (Pereira & AIRES-BARROS, L. (2000) - Torre de Belém, Intervenção de conservação exterior – Exterior conservation work. Ed. Instituto Português do Marker, 2016). O mármore de Carrara e o mármore Património Arquitectónico, IPPAR, Ministério da Cultura, Portugal. de Estremoz figuram entre as primeiras rochas que ISBN 972-8087-70-5. obtiveram este estatuto e recentemente, de Portugal, AIRES-BARROS, L. (2001) - As rochas dos monumentos portugueses, há mais duas: a brecha da Arrábida (Kullberg & Prego, tipologias e patologias. Ed. Instituto Português do Património 2019) e o lioz (Silva, 2017 e 2019). Arquitectónico, IPPAR, Ministério da Cultura, Portugal. ISBN 972- O lioz com reconhecida presença em Portugal e no Brasil 8087-81-0. ao longo de séculos, tendo desempenhado um papel de ARRUDA, JOSÉ JOBSON de (1980) - O Brasil no Comércio Colonial – Ensaios 64, São Paulo. EditoraÁtica 710 p. relevo, já mostrado, na preservação de testemunhos da sua presença em monumentos históricos em Portugal e no CALLAPEZ, P. (2008) - Paleobiogeographic evolution and marine faunas of the Mid-Cretaceous Western Portuguese Platform. Thalassas, 24, 29-52. Brasil, continua a ser utilizado como pedra de construção CASAL MOURA, A. (1992-1996) - Catálogo de Rochas Ornamentais e transmissor de conhecimento de arquitetura e arte Portuguesas. Instituto Geológico e Mineiro, Ministério da Indústria e nestes países. A existência de pedreiras em exploração Energia, 2ª Ed., 4 vols., Portugal. na atualidade garante, adicionalmente, a possibilidade CHOFFAT, PAUL (1900) - Recueil de monographies stratigraphiques sur le da manutenção deste calcário nas construções antigas Système crétacique du Portugal. Prémier étude. Contrées de Cintra, Bellas e preservação do património arquitetónico, responde et de Lisbonne. Mem. Sec. Geol. Portugal, 76 p. 3 est.

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