Indianismo e anti-indianismo: interpretações distintas sobre um tema em comum LUCAS SANTIAGO RODRIGUES DE NICOLA *

Raul d’Ávila Pompeia nasceu em 12 de abril de 1863, em Jacuacanga, município de , na fazenda canavieira de seus avós maternos. Sua família, por conta das atividades açucareiras, vivia com certo conforto. O pai, Antônio d’Ávila Pompeia, bacharel em direito, homem rígido e austero, proporcionou ao filho uma infância, apesar de assegurada em termos educacionais, excessivamente reclusa; foram poucos os conhecidos dos tempos de pequeno, o que fez do menino um ser recluso, bastante inclinado aos estudos e à leitura (OTÁVIO, 1978:196). Não sem motivo, portanto, que O Ateneu , romance de acentuado caráter autobiográfico, começa com a conhecida cena de Sérgio e seu pai à porta do colégio interno; em trajes burgueses, cartola e casaca, mãos às costas do menino – descrição conforme desenho do próprio Pompeia –, o patriarca encoraja o mais novo: “vais encontrar o mundo, disse-me meu pai, à porta do Ateneu . Coragem para a luta”. O poeta e crítico Lêdo Ivo, em ensaio sobre a obra, dá um sentido profundo a tal cena, tomando-a como elemento fundamental para entender o desenrolar da narrativa: abre-se o livro com as palavras conjuratórias que impõem a um menino, em termos de advertência e estímulo, uma projeção da visão do universo. E essa frase afortunada, que instiga ao desvelamento da realidade e alicia para uma reflexão sobre o jogo da existência, ilumina todo o romance com a sua luz matinal e feroz (IVO, 1963:11). Essa projeção de futuro é a única aparição da figura paterna no romance, quase um abandono, uma passagem súbita de responsabilidade; arranca o jovem do seio materno, onde havia conforto e cuidados, para lançar-lhe, ainda despreparado, no mundo que existe fora da casa, no microcosmo da sociedade que é este Ateneu . O sujeito aburguesado quer o filho pronto para a luta, para a prova que o aguarda não muito distante; cumpre, assim, seu dever: transmitir os valores necessários para o triunfo, para a conquista do lugar ao sol. No entanto, nessa vontade de fazer do menino um homem, revela-se a falsidade do projeto, surgem claros seus aspectos insustentáveis, que desmoronam a partir da experiência e implodem sob a “luz matinal e feroz”. O jovem, a partir desse momento, se vê por conta própria e incapaz de lutar sozinho, enredado em situações que lhe afiguram complexas e escapam ao controle.

* Mestrando, sob orientação do professor doutor Stelio Alessandro Marras, do Programa de Culturas e Identidades Brasileiras do Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de São Paulo – IEB/USP. Bolsista CAPES. E-mail: [email protected]

2

A vivência no colégio interno, trauma experimentado por Raul Pompeia quando, aos dez anos, fora matriculado pelo pai no Colégio Abílio – instituição que, segundo o crítico Brito Broca, “recebia alunos de todos os recantos do Brasil, passando por ser a última palavra em matéria de pedagogia na época” –, transforma-se num dínamo crítico. O futuro escritor passaria a entender, através da precocidade e do conhecimento de uma ríspida pedagogia, que é pela posição insubmissa, pelo questionamento lançado aos poderes estabelecidos que se fazem as mudanças – uma visão de mundo que o acompanharia por toda a vida e, por fim, o levaria à trágica morte. Como diz Brito Broca, em um belo ensaio sobre o escritor, publicado no ano 1955, “o temperamento suspicaz, ressabiado do homem, começava a moldar-se nessa primeira experiência que o menino colhia da humanidade e do mundo” (BROCA, 1981:202- 203). Em 1879, seguindo o roteiro escolar, Raul foi matriculado no Colégio Pedro II, destino comum a muitos jovens da elite do Império. Foi durante os estudos na renomada instituição, contudo, que o furor republicano se acentuou; em 1880, envolveu-se nos conflitos da Revolta do Vintém, mergulhou a fundo no turbilhão das manifestações e teceu um ríspido panfleto condenando o aumento das passagens de bonde na capital, assim como a repressão policial imposta pelo Estado imperial. Ficava delineada a sua personalidade de agitador e sensível a sua pena afiada, que se manifestava em textos ágeis, diretos e incendiários. A mensagem de Pompeia não deixava margem a dúvidas: a monarquia era maléfica para com a população, chegava a ser, ao roubar os vinténs do povo carioca, um regime criminoso. Obras de juventude, nesses panfletos desponta o republicano radical e intransigente, que clama pela mudança no regime político (POMPEIA, 1995:VII). No ano seguinte ao da Revolta do Vintém, rumou para São Paulo, a fim de realizar o curso de Direito na Faculdade do Largo São Francisco. A trajetória de Pompeia, a princípio semelhante à de muitos rebentos da elite imperial, vai assumir, entretanto, um aspecto distinto, escapar ao roteiro da normalidade. Na capital paulista, intensificaram-se suas relações culturais e políticas; conheceu escritores e figuras políticas de relevo, a exemplo de Luiz Gama, líder de campanhas contra a escravidão. Pompeia entrega-se às manifestações republicanas e abolicionistas com afinco, seja pela publicação de textos e caricaturas, ou, até mesmo, pelo engajamento efetivo, como fez ao participar de ações realizadas pelos Caifazes ,

3

grupo abolicionista paulista que promovia o resgate e a fuga de escravos em fazendas do interior do estado (BROCA, 1981:212). O radicalismo dos tempos da Faculdade lhe valeu, por fim, a expulsão. Reprovado nos exames do 3º ano jurídico foi transferido, junto de mais noventa e quatro colegas, para a Faculdade de Direito do . O período vivido na capital pernambucana, diferente da efervescência dos anos anteriores, foi de aprofundamento nos estudos e de formação intelectual, de solidão e introspecção. Começou a se delinear, segundo era o comentário de pessoas próximas, a marcante figura do esquisitão; sujeito que, apesar de divertido e conversador, é estranho e imprevisível. Uma imagem que o acompanhou por toda a vida. Este o Pompeia que, após completar bacharelado em Direito, voltou à capital do Império, onde, ao lado de figuras como , Aluísio e , , , dentre outros, participou ativamente da vida cultural da cidade. É importante ressaltar que não se pode tomar a atividade de escritor – pela qual Raul Pompeia ficou conhecido – em separado da de jornalista. Mais do que um importante literato, ele foi exímio cronista da vida política e social do Império, notadamente do (PEREIRA, 2009:303). O contexto no qual entrou na vida adulta, final do século XIX, período em que se anunciavam grandes mudanças, é marcado por esta interpenetração entre os campos político e cultural; não havia literato que, a fim de reverberar suas ideias junto à população letrada, não estivesse envolvido com manifestações políticas; escritor que não tivesse interesse em publicar crônicas nos jornais. Como diz Brito Broca, “não experimentaram essa sedução quase todos os escritores brasileiros no século passado, sobretudo durante a Monarquia?” (BROCA, 1981:163) Os textos publicados nessa época, de acordo com Angela Alonso, tanto nos jornais quanto em edições baratas, na maioria dos casos, não eram obras que mostravam um pensamento político complexo e bem acabado; tratavam-se, sobretudo, de escritos baseados em um repertório amplo de ideias e feitos para repercutir. A partir da retórica afiada e de narrativas bem ajustadas, as ideias passavam por uma seleção, eram rearranjadas e se tornavam significativas no contexto da crise estrutural do Império (ALONSO, 2002:35-49). As consequências dessa crise do legado imperial – o trinômio escravidão , latifúndio e monocultura , mantido firme durante longos anos, cada vez mais perdia o seu significado (ALONSO, 2002:77) – atingiam elementos distintos, e faziam mais explícitos os

4

descontentamentos com o regime monárquico. As crônicas e folhetins publicados na imprensa da época, textos marcados pelo tom republicano, eram escritos para dar novo sentido à experiência social daqueles que se sentiam excluídos da política imperial. Pompeia atendeu essa demanda: foi um escritor múltiplo, transitou entre o folhetim e a escrita artística, entre a crônica e o poema em prosa. Sua obra, por assim dizer, se constitui na dialética entre o engajamento político e a criação literária, a agitação republicana e o recolhimento do trabalho da escrita; grande parte de seus textos, dessa maneira, encontraram espaço ideal de publicação em jornais do Rio de Janeiro, São Paulo e Minas Gerais, tornando-se elementos ativos da vida social. Em um contexto no qual a atuação política se confunde com a produção cultural, ou, mais precisamente, uma atividade compõe a outra , o engajamento de Raul Pompeia se tornou cada vez mais explosivo. Diante da crise estrutural do Império, avolumou a atuação como jornalista, em detrimento da de ficcionista; mesmo naquilo em que produziu enquanto literato, parte da crítica não deixa de ressaltar a perspicácia de analista político: dentre os escritores do Segundo Reinado, “é um dos que mais lucidamente documentam a estrutura econômico-social e política então vigente”. Um dos exemplos disso é o próprio Ateneu , que “com a sua pedagogia utilizada para fazer dinheiro e atrair estudantes ricos, é um símbolo de uma sociedade hierarquizada, alicerçada em privilégios” (IVO, 1963:16). Característica de seu republicanismo, essa perspicácia crítica, aliada ao seu ímpeto de debatedor e de analista social, para além de gerar textos vivazes, fez com que Raul Pompeia estivesse constantemente envolvido em polêmicas e confusões. A última delas, a que resultou no seu dramático suicídio, envolveu figuras de destaque do campo literário: Olavo Bilac e Luis Murat. Desde a eclosão da Revolta da Armada, em 1892, quando Pompeia defendeu a ação repressiva do governo de , ao contrário de Bilac, que tomou a dianteira nos ataques ao presidente, a relação entre os dois literatos vinha estremecida. Chegaram, inclusive, a marcar um duelo, que só não ocorreu por conta do bom senso de mediadores e testemunhas, que já aceitaram como honrosa a coragem de ambos comparecerem ao local e hora marcada. No entanto, ao que parece, nenhum dos dois se deu por satisfeito com o desfecho. Sem perder tempo, Bilac partiu para a ofensiva: escreveu, no jornal O combate , um artigo no qual acusava Pompeia de “amolecimento cerebral” e de passar as noites se masturbando ao pensar nas moças que vira ao longo do dia pelas ruas da cidade (MISKOLCI

5

& BALIEIRO, 2011). Em contexto sociopolítico no qual os valores de honra e moralidade contavam muito – segundo lembra Roberto Ventura, havia nessas polêmicas uma convergência paradoxal entre as teorias modernas colocadas em debate e as práticas pautadas em valores tradicionais, tais como desafio e valentia, difamação pessoal e conspurcação da honra (VENTURA, 1991: 143) –, os ataques feitos por Olavo Bilac, calcados em fatores políticos, mas incidindo em aspectos particulares, surtiram efeito; Pompeia, agora, mais do que nunca, passou a ser visto como elemento deturpado e arredio, imprevisível e explosivo. O drama atingiu o ápice quando, em 1895, o Marechal Floriano Peixoto morreu. Pompeia proferiu um dos discursos fúnebres e, segundo informação de alguns dos presentes, teria criticado , então presidente da República, que estava – ou estivera – participando da cerimônia de sepultamento. Novamente, o escritor tentou se defender dos ataques; entretanto, tudo em vão. No final do ano, teria tomado conhecimento, através de um infeliz comentário feito durante reunião na Confeitaria Colombo, de um artigo escrito por Luiz Murat – cujo título já dá monta de seu teor: “Um louco no cemitério” – e publicado em um jornal paulista meses antes; o texto fazia duras referências a Pompeia, defendia sua demissão do funcionalismo público e tratava-o por uma série de adjetivos pejorativos e vulgares: abjeto, pusilânime, exaltado, insano, demagógico e, mais que tudo, covarde. De acordo com as convenções sociais, o silêncio do atacado, a fuga do conflito e a ausência de resposta, somente corroboravam essa sua suposta covardia. Tudo vinha à tona, de uma só vez; para um homem de sensibilidade excessivamente pronunciada, era atormentador. Como alerta Rodrigo Otávio, Raul era um exaltado, e qualquer coisa que lhe ferisse a extrema suscetibilidade assumia proporções extraordinárias; muitas vezes, por fúteis razões e mesmo sem razão alguma, explodira em movimentos bruscos. Além disso, muito desconfiado, vivia permanentemente alerta à menor palavra, ao menor gesto, à menor atitude, em que pudesse ver uma alusão, uma indireta, um remoque (OTÁVIO, 1978:220). O artigo de Luis Murat fora duro golpe; ia além de qualquer comedimento. Pompeia, muito pior do que a má fama costumeira, estava agora completamente exposto e humilhado. Era preciso limpar o nome e recuperar a honra perdida; isso só se fazia matando o difamador, ou a si mesmo. Em 25 de dezembro de 1895, noite de natal, optando pela segunda alternativa, o escritor suicidou-se; um só tiro à queima-roupa, e pôs termo a tudo que o atormentava. Como disse Ventura, “com a honra maculada e impossibilitado de se defender na imprensa”,

6

Pompeia “purificou seu nome com o sacrifício da própria vida” (VENTURA, 1991:145). Seu bilhete final, curto e simples, é prova de como fora um homem dedicado ao debate público e como sucumbira por conta do desvirtuamento deste mesmo debate: “À Notícia e ao Brasil declaro que sou um homem de honra”. As últimas palavras, secas para um homem tão ardoroso, não deixam de ser emblemáticas: ficavam dedicadas ao país pelo qual lutara e ao principal veículo de sua luta.

Pode-se dizer que, avançando um pouco sobre os limites cronológicos, Raul Pompeia foi um dos mais controversos e intrigantes membros da chamada geração de 1870 ; apesar de ter nascido em 1863 e ser, portanto, mais novo do que as figuras normalmente tomadas como representativas, sua trajetória nos permite inseri-lo nesse grupo. Angela Alonso, em seu livro Ideias em movimento , demonstra como as principais características desta geração eram a não autonomia plena do campo intelectual em relação ao campo político; a utilização de um repertório seletivo de ideias vindas da Europa, o que possibilitava uma postura crítica face à política imperial; e a insatisfação diante de uma “estrutura de oportunidades limitadas”, fato que tornava arredios indivíduos que, apesar de gabaritados para participar da vida política, tinham os meios de acesso a ela bloqueados (ALONSO, 2002:38-45). É importante ressaltar que, ainda de acordo com Alonso, toda crise amplia as possibilidades de ação política, o próprio ambiente fornecendo incentivos para a intervenção, para o engajamento em ações coletivas; a instabilidade, invariavelmente, aumenta a tensão e os conflitos, afeta as perspectivas de sucesso ou fracasso. A “estrutura de oportunidades” depende da forma como estão organizadas as relações de poder em uma sociedade, da forma como se dão as disputas pelo poder. O Império, a partir de 1868, entra em um complexo processo de crise, manifestada em dimensões inter e intraclasses: assuntos como a organização do trabalho e a participação política de grupos alijados do comando passaram a ser debatidos com afinco e publicidade. É este contexto que possibilita aquilo que a autora chama de “clarificação”: a crise política explicita todos os conflitos internos da sociedade, possibilitando mudanças sociais e culturais (ALONSO, 2002:42). 1

1 Segundo Angela Alonso: “Do processo sociopolítico das últimas décadas do Império, três dimensões são relevantes para entender a formação do movimento intelectual da geração de 1870. Primeiro, a configuração de um dilema intra- elite: a percepção da necessidade de reformas essenciais na organização da economia e do sistema político e o temor de abalar as instituições políticas e a ordem social abriram uma crise que

7

Nesse sentido, o da “clarificação” política e intelectual, os membros da geração de 1870 vão se defrontar com a tradição cultural do Império, apontando seus limites e a necessidade de mudança; a crise manifesta-se no questionamento aos seus três principais núcleos. Primeiro, o indianismo romântico; nada havia de empírico nas alegorias indianistas, a idealização da nacionalidade era baseada na imagem de uma colonização épica, polarizada pelo bom selvagem e pelo civilizador. Segundo Alonso, a geração 1870 vai redimensionar o romantismo, pensando em termos de ação política, e buscará referenciais culturais no cabedal camoniano (negar o tupi e valorizar o português castiço, por exemplo); a história do Brasil vai ser repensada e os personagens rebeldes, antes subversivos e esquecidos, serão alçados ao status de heróis (o caso da releitura positiva da Inconfidência Mineira é o mais significativo). Negava-se, assim, a história feita pelo Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB), órgão oficial incumbido da tarefa de tecer a narrativa histórica nacional, e buscavam-se novas referências a partir das quais reescrever a história brasileira (ALONSO, 2002:243). O segundo foco de clarificação foi o “liberalismo estamental”. De acordo com Alonso, a estrutura sociopolítica do Império era, na prática, bastante próxima à do antigo regime, na qual preponderavam as figuras do rei e dos grandes proprietários. Tal situação criava uma “hierarquia de recursos sociais, de poderes econômicos e direitos políticos”, que pautava, para além da vida política imperial, a própria margem de participação em uma sociedade de corte – mesmo que não se tratasse, por certo, de uma corte plenamente estruturada. A atuação política e a liberdade de percorrer os meios oficiais ficavam, assim, restritas “à ‘boa sociedade’, resguardada como cerne dos direitos e atribuições do estamento senhorial: era um liberalismo que começava e terminava na liberdade do senhor”. A sociedade imperial distinguia, portanto, qualitativamente os seus membros; “a política era arena de disputas internas ao estamento senhorial”, o que gerava exclusão e insatisfação (ALONSO, 2002:60). Parte dos membros da geração de 1870, um apanhado de sujeitos não inseridos ou não plenamente inseridos no estamento senhorial, alguns bastante qualificados intelectualmente, que encontrava nos

desestabilizou o precário equilíbrio entre as facções da elite imperial e enfraqueceu o regime monárquico. Segundo, os recursos materiais, políticos e simbólicos de todos os grupos sociais foram afetados tanto pela crise política quanto por uma modernização conservadora, gerando simultaneamente descontentamentos e possibilidades de expressá-los. Os contornos da população capacitada para a mobilização política se dilatava: vários grupos sociais marginalizados pelo arranjo político imperial adquiriram condições para expressar publicamente seus dissensos e projetos. Terceiro, a combinação entre mudança social e crise política forçou a explicitação das assunções tácitas do universo cultural do Império no debate público, gerando uma ‘clarificação’” (ALONSO, 2002:42).

8

empregos públicos de baixo escalão e no jornalismo as formas de subsistência, restava desprestigiada. Era um conjunto de descontentes, indivíduos que emergiam como agentes políticos desestabilizadores. Por fim, o terceiro foco de clarificação se constituía pela crítica ao catolicismo hierárquico. Era através do catolicismo que se irmanava a sociedade; ou seja, era pela via religiosa que os elementos excluídos politicamente eram integrados ao Império. Tratava-se, no contexto da crise, de uma comunhão simbólica que precisava ser desmascarada, daí porque o anticlericalismo vai ser marca comum a diversas correntes da geração 1870. De acordo com Angela Alonso, as tópicas dessa geração são, no conjunto, “um espelho invertido do mundo saquarema: o anticlericalismo, o anti-indianismo romântico, o antiliberalismo imperial. A construção dessa tríade negativa é produto da assimilação da política científica” (ALONSO, 2002:178). Raul Pompeia foi um fruto de todos estes questionamentos, foi um dos intelectuais brasileiros mais “clarificados” e atuantes no sentido de uma mudança política e social. Poucos elementos de sua geração parecem ter sido tão excluídos da ordem aceita como ele; a marginalização de Pompeia foi mais do que relativa: como já comentado, apesar de ter seguido a trajetória de vida comum a seus pares (Colégio Pedro II, Faculdade de Direito, atuação nos meios jornalísticos e no funcionalismo público), ele não se acordava aos padrões sociais, escapava à moral estabelecida, posicionava-se essencialmente como um outsider .

O primeiro livro de Pompeia, publicado em 1880, quando o autor contava apenas dezessete anos, é uma mostra de como as preocupações da geração de 1870 estão presentes em sua obra. Uma tragédia no Amazonas , apesar de não o ser explicitamente, é um interessante libelo anti-indianista. Pompeia vai lançar a ação de sua narrativa nos confins de uma Amazônia não idealizada, onde a civilização gerava espanto: no ponto em que a estrada ia dar na floresta, “erguia-se, há alguns anos, uma habitação de aparência alegre, pintada de branco e edificada de maneira que causaria pasmo a quem não esperasse encontrar o civilizado em lugares onde a natureza reina” (POMPEIA, 2010:12). Na sua estória, pouco aparece o elemento indígena, a selva não é o coração do Brasil, de um Brasil essencial e mítico; pelo contrário, é o lugar de tenebrosas tormentas, da natureza incontrolável e perigosa, onde qualquer mínimo sinal de progresso é novidade. Este o cenário da terrível tragédia anunciada no título, da qual participam o homem branco, os escravos negros e os estrangeiros;

9

é nesse cenário, até então tornado ideal pelas criações indianistas, que Pompeia vai narrar, sobretudo, a violência da escravidão. Como ressalta Capistrano de Abreu, um dos poucos amigos do escritor, em uma breve crítica da novela – trata-se de uma crônica publicada em duas ocasiões, 27 de fevereiro e 28 de março de 1880 –, o livro apresentava muita audácia, se não na forma, ao menos na sua inventividade e no seu próprio caráter trágico: Sua Tragédia no Amazonas é um esforço audacioso. O autor não é nortista; nunca foi ao Norte; é provável mesmo que nunca tenha lido viagem ao Norte. Entretanto, com a Geografia de Abreu e com o Atlas de Cândido Mendes, meteu mãos à obra e levou-a a termo. Notem bem este título: Tragédia . O talento de Pompeia é ultratrágico. Não há uma só pessoa que não morra na Tragédia . Por quê? Disse-me um companheiro que para demonstrar que não há Providência. Disse-me ele que por ser a morte a única coisa séria da vida. Escolham o que quiserem (ABREU, 1975:163). Eustáquio, o personagem central da narrativa, é subdelegado de polícia da modesta povoação de São João do Príncipe; configura-se, portanto, como um representante da força do Estado brasileiro; mais do que isso, é encarnação da própria presença do Estado em meio à selva. Em torno de sua família desenrola-se a ação; ao ter reprimido uma revolta de escravos e encarcerado alguns dos rebelados, o subdelegado passou a ser alvo da vingança dos mesmos; quando os escravos conseguem fugir da prisão, começam os ataques da desforra. A narrativa, apesar de bastante simples, segue uma linha de mistério, com as ações se desenrolando fora do controle dos personagens centrais, que restam reféns de estranhos acontecimentos. Junto dos escravos, um grupo de estrangeiros, que havia passado ao Brasil por meio da floresta, também participa das ofensivas à família de Eustáquio: queriam roubar-lhe a fortuna que, segundo acreditavam, não haveria de ser pequena e estaria guardada na casa. De maneira oportunista, assim se refere o líder do bando estrangeiro à aliança firmada com os escravos fugidos: “nós, brancos, uniremos nossos esforços para facilitarmos a vingança que vocês desejam, e vocês, escravos, unirão os seus para facilitarem a nossa pretensão, isto é, a posse do dinheiro do tal Eustáquio” (POMPEIA, 2010:88). Estão bem desenhados, na ótica do escritor, os dois principais inimigos do Brasil: a brutal escravidão e os estrangeiros gananciosos de se apoderar das riquezas nacionais – lembre-se que, ao longo de sua vida, Raul Pompeia vai revelar um profundo sentimento xenófobo em relação aos estrangeiros que viviam no Brasil, notadamente os portugueses. Nesse sentido, a narrativa evidencia que, tanto em questões internas quanto externas, a condução da política imperial era equivocada, fazia- se mais do que necessário rever a organização da mão de obra, botar fim à escravidão, assim

10

como rearranjar o trato com as demais nações, tanto em termos de negociações internacionais, quanto no que dizia respeito à imigração. No que concerne aos escravos, fica claro durante a leitura que os inimigos não são os negros em si, e sim o sistema escravocrata, a exploração que os tornava vingativos e violentos. Tanto é assim que o próprio Eustáquio dedicava amor fraternal a alguns de seus serventes negros, tendo total confiança neles. Da mesma forma, também não é qualquer estrangeiro o adversário: na narrativa aparece a figura de um viajante francês, homem sábio que percorria a Amazônia em missão científica; ele é estimado pelo delegado, que o acolhe em sua casa. Além disso, o filho desse mesmo viajante morre, em notável prova de coragem e dedicação, ao tentar defender a casa dos ataques perpetrados pelos escravos fugidos e pelos assaltantes estrangeiros. Existem, portanto, nuances importantes a ser destacadas no folhetim: não se deve confundir negros com escravos, assim como não se deve tomar qualquer estrangeiro por oportunista. Raul Pompeia faz, neste que é seu primeiro livro, escrito ainda nos tempos de estudante e pontuado por alguns defeitos, uma alegoria da crise do Segundo Reinado. Na novela, como bem disse Capistrano de Abreu, ainda há resquício de romançalhão : roubos, assassinatos, coups de main e o deus “ex-máquina põe de vez em quando a calva à mostra”. Na ânsia de dar corpo à crítica, sofrem as qualidades formais da narrativa, o texto ganha ares de rocambole; como disse Abreu, “os propulsores usurpam o lugar das molas íntimas, apontando como era urgente dar fim à escravidão” (ABREU, 1975:164). No entanto, se há certa ingenuidade na concepção, é inegável que o autor consegue, metaforicamente, mostrar aquilo que quer: era necessária uma reforma política para o Brasil. O caminho do Segundo Reinado, caso não fosse revista a questão da mão de obra e a da relação com os estrangeiros, era o da tragédia. Acima de tudo, era necessária a mudança do regime político, o fim da monarquia e a proclamação da República. No fim da narrativa, quando todos os personagens caem mortos, somente um deles não é relacionado entre os que tiveram fim trágico, sendo que sua presença, durante o conflito final, não é citada: o filho recém-nascido de Eustáquio, que viera ao mundo no sete de setembro último. O desaparecimento da criança, nascida precisamente na data pátria, demonstrava, por um lado, que ainda havia possibilidades para o país; por outro, apontava a indefinição quanto ao futuro nacional.

11

Surge, a partir desses comentários, uma interessante, porém não comprovada, hipótese: a de que Uma tragédia no Amazonas pode ser entendida enquanto uma releitura do romance O Guarani , de José de Alencar. São muitos os pontos de contato entre as obras, o que permite a aproximação. Para além da ação, do cenário – mesmo que não localizados geograficamente no mesmo lugar – e das referências, ambos são textos que, cada um ao seu modo, se insurgem contra o padrão político-cultural estabelecido e oficial. Ao longo de seu romance, Alencar arquiteta a imagem de uma origem mestiça do Brasil, um mundo social costurado pela religião cristã, pela honra feudal e pelo amor puro; os inimigos são, essencialmente, a ganância, a vilania e a selvageria, elementos que desestabilizam a harmônica relação entre os diferentes e colocam em risco a grandeza do projeto arquitetado. O vilão do romance, Loredano, é um veneziano, nascido no cerne do ideal mercantilista; é representante do comércio e dos interesses materiais, que põem em risco a altivez nobiliárquica do mundo comandado por D. Antônio de Mariz. Além do mais, Loredano é herege, um traidor do cristianismo e da Igreja católica; é, portanto, tudo aquilo que contradiz os ideais de José de Alencar. O escritor cearense não se sujeitava aos aspectos modernizantes que a sociedade brasileira adquiria na segunda metade do século XIX, defendendo em suas obras a manutenção de um mundo social equilibrado e baseado em princípios morais rígidos, pautados em virtudes de uma idealizada matriz feudal– a casa de D. Antônio, lembre-se, “fazia as vezes de um castelo feudal na Idade Média” (ALENCAR, 1999:59). Como bem expresso n’ O Guarani , Alencar entende que valores modernos são desestabilizadores, põem em risco a ordem social vigente; na obra, são os aventureiros, sujeitos que cruzam os matos e florestas em busca de ouro, aqueles que garantem as reviravoltas folhetinescas da narrativa. No entanto, não só os valores modernos são os inimigos deste incipiente Brasil, que é defendido pelo corajoso e devoto Peri; a falta de civilidade dos aimorés, que teimam em vingar seus mortos e praticar rituais selvagens, está na outra ponta das ameaças. Estes rústicos, que não se alinham com uma honra de caráter feudal, devem ser combatidos, numa espécie de releitura da guerra justa e das guerras santas medievais. Fator fundamental é que, ao contrário da novela de Raul Pompeia, no decorrer das centenas de páginas do romance, não aparece, em nenhum momento sequer, algum negro ou qualquer referência à escravidão ligada ao mundo do trabalho. Todos os momentos em que se

12

fala em escravidão, seu sentido semântico é o da devoção, da dedicação incondicional de Peri na busca pela felicidade de sua Ceci. Brutalizados pelo trabalho escravo e por sua falta de civilização, os negros pouco teriam influído na constituição da nacionalidade brasileira e, consequentemente, não deveriam participar do mito fundador. É preciso levar em conta que, no século XIX, para aqueles que viviam nas cidades do litoral, os índios eram quase uma miragem, uma ausência da paisagem brasileira, enquanto, por outro lado, os negros eram uma realidade premente, uma necessidade e um risco constante. Logo, na trilha do romance alencariano, ignoram-se os conflitos do presente e a brutalidade da colonização para valorizar o distante e o desconhecido; o mito confunde-se com a história quando se trata de encontrar a origem idealizada da nacionalidade, assim como para ser cético com relação ao presente e indicar um futuro tormentoso. No correr do romance, é sensível e angustiante – o que vai marcando o ritmo do folhetim – a situação de perene ameaça sob a qual vive o mundo ideal dos Mariz. Conforme aumenta a tensão e o perigo, aumenta a grandeza do desenlace da história, do destino dessas nobres figuras que lutam pela vida e por suas crenças. Após vencer a onça/tigre, a ganância dos homens brancos, a selvageria dos aimorés e o veneno do sacrifício, restava a Peri lutar contra a própria natureza, contra a intempérie; é o desafio final para o índio que se convertera à fé cristã, é a sua última prova para poder ser acreditado como herói nacional. O epílogo do romance, no qual se conjugam os mitos cristão e indígena – Noé e Tamandaré compõem o Antigo Testamento do Brasil –, é um alerta ao leitor: Ceci e Peri aceitaram partilhar de uma só morte, fundiram-se em uma só vida, um único ser, o brasileiro; o leitor deveria, também ele, aceitar o mesmo destino dos personagens, reconhecer-se como brasileiro e estar disposto a sacrificar-se pela nação. A cena final, na copa da palmeira boiando sobre a enchente, os dois personagens, tão distintos quanto unidos pelo destino, abraçados, flutuando para a vida ou a morte, deixa em aberto, da mesma forma que faria Pompeia, o futuro do próprio Brasil. O interessante, porém, é que José de Alencar, diferentemente de Raul Pompeia, conhece o desenlace da sua história, pois vive no século XIX, vive no futuro da alegoria de Ceci e Peri, e não gosta dos rumos que seu país vai tomando. Alencar parece dizer que o Brasil da segunda metade do século XIX está carente de Cecis e Peris, precisando, talvez, de uma nova enchente, de um trauma capaz de recolocar a nação na senda aberta por aquele cadinho de

13

fraternidade e harmonia que era a casa de D. Antônio de Mariz, de cujo cerne saíram o índio devoto e a menina santa, exemplos de conduta e de virtude. As inúmeras referências feitas por Alencar a cronistas que viveram ou passaram pela América portuguesa têm uma função primordial para a efetivação de seu intento: asseguram um caráter de “verdade” ao texto, o que o equipara a relatos não ficcionais – ressalte-se que, no prólogo, o autor diz que o leitor tem em mãos não um romance, mas a cópia de um manuscrito, bastante danificado pela umidade e pelos cupins, que fala de coisas que “não são comuns atualmente”. Além disso, as citações colocam o mito em condições de questionar a própria história; afinal, como assegurado no decorrer da narrativa, os personagens que viviam na casa/castelo de D. Antônio de Mariz, embrenhados na portentosa e purificadora natureza americana, uma “pátria da liberdade”, uma paisagem intrinsecamente repleta de referências nobiliárquicas e católicas – os rios são vassalos e tributários, as copas das árvores são abóbodas e torres –, um cenário não contaminado ainda pela civilização, conheciam muito melhor os indígenas do que os cronistas, por isso não tinham um entendimento negativo sobre o Brasil. Pelo contrário, os personagens amam o lugar em que vivem, nele transcorre a vida em ritmo idílico, numa harmonia que só é rompida por elementos exógenos ou por nativos que não compartilham do código de conduta ditado pelo patriarca. Ceci é exemplo maior: criada desde pequena na Serra dos Órgãos, no fim do romance, quando começam a serem evidentes seus sentimentos pelo índio protetor, a jovem decide abandonar a possibilidade de uma vida no Rio de Janeiro, em meio ao conforto aburguesado da cidade, para dedicar-se à cristianização de seu “irmão”, para viver em meio a um mundo virgem e virtuoso, cenário ideal para erigir uma nova pátria. Curiosamente, mesmo sendo crítico da sociedade moderna, é na literatura burguesa, na “literatura industrial” (MEYER, 1996:59), que Alencar vai encontrar a estrutura de sua obra, o romance de folhetim; qualquer narrativa que escapasse deste modelo não surtiria o efeito desejado, pois não teria o alcance necessário a uma obra que se julgasse nacional. O romance de Alencar é feito para ser lido por todos os públicos em condições de acessá-lo – as mulheres, por exemplo, são fundamentais em O Guarani , tanto como personagens quanto como leitoras –, sua narrativa fluida e pontuada de emoções cativa o leitor, prendendo-o a uma história de emoções e aventuras.

14

Das páginas deste romance, feito para ser lido e apreciado por Cecis e Peris em potencial, o índio emerge como o mito fundador da nação, é o nativo idealizado a raiz profunda de uma nacionalidade rica e original. Além do indígena, quem emerge como mito é o colono positivado: o português composto de honrarias feudais e fervoroso cristianismo, justo e incorruptível, que ama o cenário de sua morada e respeita os nativos que se fazem respeitar. O Brasil imaginado por José de Alencar, portanto, é uma conjugação de mitos, que se faz sob uma ideologia conservadora. Com O Guarani , que começou a ser publicado em 1º de janeiro de 1857 (metáfora concreta do recomeço, da volta à origem), os dilemas que podiam existir com os portugueses estão bem resolvidos; como afirma , os polos nativo/invasor, na narrativa alencariana, são tratados de forma antidialética, o que evita conflitos gratuitos (BOSI, 1992:180). Assim, o índio idealizado e o colonizador benévolo convergem para a formação da nacionalidade brasileira, numa relação que vai superando inimigos e adversidades, mas que jamais se desfaz, posto que pautada em nobres valores. É o símbolo de um Estado-nacional em busca de estabilidade, uma estabilidade incontestável; afinal, possuía origens míticas e arraigadas no passado brasileiro. Ao falar do índio como mito nacional, Alencar faz a apologia da colonização; nessa visão, nem o índio nem a colonizador são históricos; são, por outro lado, criações ideológicas, representações de uma relação harmônica e sadia entre a cultura europeia e a novidade americana. O romance de Alencar, portanto, é marcado por um nativismo assimétrico, só existe enquanto respaldado na cultura alienígena, com o índio submisso ao colono europeu. O nacionalismo do autor é eivado de uma postura reacionária, que teme pelo futuro e conserva aspectos positivos do passado; do passado não se evidencia o massacre dos indígenas, e sim o encontro, a mestiçagem que está na base da nacionalidade brasileira, a miscigenação feita entre duas raças que, mesmo distintas, encontram veias de comunicação na honra e nas relações baseadas em códigos feudais. Dessa forma, não é a noção sócio-racial que baliza o romance de Alencar, e sim as concepções de moral e virtude difundidas pelo colonizador, é isso que lhe permite escapar de dilemas e retardar o movimento da história. Raul Pompeia, por sua vez, escreve imbuído de um nacionalismo progressista, quer a mudança profunda, acelerar o movimento da história, fazer a República. Para ele, a pátria está em constante ameaça e deve mudar ou ruir; não sem motivo, a casa de Eustáquio acaba atacada e destruída.

15

No entanto, o mesmo destino não tivera, antes, o “castelo feudal” de D. Antônio de Mariz? Percebe-se, assim, como ambas as obras convergem para um mesmo ponto. Se os dilemas são parecidos, as soluções, contudo, são bastante distintas; tratam-se de remédios opostos para diagnósticos semelhantes. Os estrangeiros, para os dois autores, não são confiáveis, pois desestabilizam aquilo que há de bom e lançam olhares gananciosos sobre o Brasil; devem ser combatidos, são os vilões a serem derrotados. Se no que diz respeito às ameaças externas ambos se assemelham, para os problemas internos as diferenças se evidenciam – mesmo que o problema não esteja essencialmente no índio, em um caso, e no negro, noutro. A escravidão, para Pompeia, é o obstáculo a ser superado, fator interno de instabilidade, condenável humana e politicamente. Para Alencar, o caminho é o oposto, pois é a escravidão que garante o equilíbrio nacional; isso é uma realidade dada e incontestável, daí porque vai tratar, em seu romance, do índio mítico, e não do negro cativo. Os problemas começam, n’ O Guarani , no momento em que os colonizadores, atrapalhados em sua missão, não conseguem estabelecer uma civilização católica e baseada na economia agrária; não se discute, portanto, as formas de propriedade e de exploração do trabalho, mas aquilo que as impede de funcionar corretamente. Naquilo que Alencar tem de retrógrado e conservador, Pompeia tem de propositivo e radical (termos, estes, que devem ser entendidos em seus sentidos fortes). São duas concepções distintas de história, dois movimentos contrários: um para trás, o outro, para frente; um teme a modernidade, o outro a quer. Curiosamente, aquele que olha para o futuro é o mais pessimista, o que fica bem expresso ao se comparar os dois finais. Ambas as histórias se mantém em aberto, mas com cargas diferentes: no livro de Alencar, há um otimismo quase mítico; no de Pompeia, não há idealizações, há uma triste realidade em potencial, é a nota trágica que sobressai. Se Alencar escreveu seu livro para, deliberadamente, se opor ao romantismo radical, ao indianismo antilusitano de Gonçalves Magalhães, Pompeia escreveu sua novela contra o indianismo idealizado e harmonioso de Alencar. O foco contestador de ambos, indianismo alencariano ou anti-indianismo pompeiano , no entanto, é o mesmo: tecidas a partir da ficção, em épocas e por razões distintas, são avaliações desfavoráveis do Segundo Império.

16

BIBLIOGRAFIA ABREU, Capistrano de. “Raul Pompeia”. In: Ensaios e estudos – 1ª série . Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1975, pp. 161-164. ALENCAR, José de. O Guarani . Apresentação e notas de Eduardo Vieira Martins. São Paulo: Ateliê editorial, 1999. ALONSO, Angela. Ideias em movimento: a geração de 1870 na crise do Brasil-Império. São Paulo: Paz e Terra, 2002. BOSI, Alfredo. Dialética da colonização. São Paulo: Companhia das Letras, 1992. COUTINHO, Afrânio. A literatura no Brasil – vol. II . Rio de Janeiro: Editorial Sul Americana S. A., 1955. IVO, Lêdo. O universo poético de Raul Pompeia . Rio de Janeiro: Livraria São José, 1963. MEYER, Marlyse. Folhetim: uma história . São Paulo: Companhia das Letras, 1996 PEREIRA, Leonardo Affonso de Miranda. “A realidade como vocação: literatura e experiência nas últimas décadas do império”. In: GRINBERG, Keila & SALLES, Ricardo (Orgs.). O Brasil Império, volume III; 1870-1889. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2009, pp. 271-312. MISKOLCI, Richard & BALIEIRO, Fernando de Figueiredo. “O drama público de Raul Pompeia: sexualidade e política no Brasil finissecular”. In: Revista Brasileira de Ciências Sociais , fevereiro de 2011, vol. 26, nº 75, pp. 73-88 (texto disponível em www.scielo.com.br).

17

ORTIZ, Renato. Cultura e modernidade . São Paulo: Brasiliense, 1991. OTÁVIO, Rodrigo. Minhas memórias dos outros: primeira série . Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1978. POMPEIA, Raul. O Ateneu / As joias da coroa . Introdução e comentários de José De Nicola. São Paulo: Scipione, 1995. POMPEIA, Raul. Uma tragédia no Amazonas . São Paulo: Incluir Edições / Editora Reflexão, 2010. RIBEIRO, José Alcides. “Raul Pompeia e a ficção nos jornais: ironia, humor e visualidade”, In: Revista USP , nº 72, São Paulo, fevereiro de 2007 (texto disponível em www.scielo.com.br). VENTURA, Roberto. Estilo Tropical: história cultural e polêmicas literárias no Brasil (1870-1914). São Paulo: Companhia das Letras, 1991.