1 O Centenário De Carmem Costa E Os Artistas Negros Na
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O centenário de Carmem Costa e os artistas negros na “Era do Rádio” 1 Raphael Fernandes Lopes Farias2 Universidade Paulista – UNIP, São Paulo - SP Silvia Sena3 Universidade Paulista – UNIP, São Paulo - SP RESUMO: O presente trabalho aborda o centenário da cantora Carmem Costa e o contexto midiático do auge de sua carreira. Conhecido como “Era do Rádio” (anos 1940-1950), trata-se de um período em que os artistas negros tinham menor espaço e visibilidade nas mídias, ainda que os que lograssem sucesso fossem intérpretes e autores de muitas canções célebres e pertencentes à memória da cultura musical brasileira. Nesse sentido, propomos uma avaliação de cunho memorialista por uma perspectiva sociocultural e midiática. Recorremos a arquivos audiovisuais (discos, programas de rádio gravados, filmes etc), materiais de imprensa da época, dicionários musicais e uma bibliografia especializada que engloba história, comunicação e sociologia. Notadamente, reconhecemos Carmem Costa como um patrimônio musical do Brasil, infelizmente muitas vezes eclipsada por cantores de maior fama. Palavras-chave: música popular brasileira; carmen costa; era do rádio; movimento negro. 1 INTRODUÇÃO Por felicíssima coincidência, o 9º Encontro Musicom e os autores deste trabalho tomaram a iniciativa de homenagear a cantora Carmen Costa, por ocasião de seu centenário. Carmen, pseudônimo de Carmelita Madriaga, foi um dos nomes de destaque naquilo que a literatura convencionou chamar de Era do Rádio, no Brasil, abrangendo sobretudo os anos de 1940 e 1950. Conforme nos ensina o historiador Marcos Napolitano em suas muitas pesquisas voltadas para a música nacional, o período em questão marca a consolidação da indústria cultural no Brasil, via rádio e mercado fonográfico. Ao mesmo tempo, as políticas populistas e nacionalistas de Getúlio Vargas apelavam para um neonacionalismo, no qual o samba foi elevado à categoria de expressão cultural máxima das musicalidades nacionais. 1 Artigo apresentado no GT 01- Memória e história midiática da música do IX Musicom. 2 Doutorando e mestre em Comunicação e Cultura Midiática pelo PPGCOM-UNIP. Pesquisador do Centro de Estudos em Música e Mídia – MusiMid. E-mail: [email protected] 3 Mestranda em Comunicação e Cultura Midiática pelo PPGCOM-UNIP. Professora na Universidade Paulista – UNIP. E-mail: [email protected] 1 O gênero, oriundo dos terreiros, onde parte da população negra se reunia para exercer sua cultura com liberdade, sem a necessidade de passar pelo crivo da burguesia branca e protegidos da violência policial, recebeu o nome de “samba”, que consistia na livre expressão de suas poéticas naquele local de socialização (NAPOLITANO, 2005). O nome acabou cunhado como gênero musical sobretudo a partir da gravação de músicas do gênero, a exemplo de Pelo telefone, em 1917, de Donga e Baiano. Foi então, nesse contexto de enaltecimento da musicalidade negra como símbolo nacionalista, de urbanização e de fortalecimento das mídias sonoras, que Carmelita se tornou Carmen Costa. O samba, que dominou as ondas do rádio e ganhou as telas de hollywood através de outra Carmen, a Miranda, configurou-se, então, naquilo que Heloísa Valente (2003) classifica como canção das mídias, isto é, uma produção pensada para se tocar e se ouvir dos espaços e aparatos midiáticos, seja o rádio ou o disco nas salas de estar ou salões de festa. Os entusiastas do nacionalismo na música popular urbana viram aí uma oportunidade de alimentar um modelo de Brasil por meio do que ficou conhecido como “samba-exaltação”, ao qual pertencem canções célebres como Aquarela do Brasil e Brasil pandeiro, a primeira de Ary Barroso e a segunda de Assis Valente. Contudo, enquanto o Brasil de matriz Africana era exaltado, a população negra não gozava em seu cotidiano os efeitos do que fizeram de sua cultura musical. As relações simbólicas e os usos da música dos negros, o apagamento de sua imagem enquanto indivíduo e as dificuldades no mercado musical serão abordadas nas linhas a seguir, tendo Carmen Costa como figura condutora para estas discussões. 2 Gênese da música popular brasileira: matrizes e contradições O brasileiro é formado pelo tripé dos povos indígenas, europeu e africano, dentre os negros escravizados no Brasil foram traficados do século XVI até o século XIX, os Bantus, Fons (conhecidos como Jejes) e os iorubas (conhecidos como nagôs), nessa mesma ordem. Os povos africanos tem uma contribuição enorme na estrutura linguística do nosso português, chamado por Lélia Gonzalez e Carlos Hasenbalg (1982) de “pretoguês”, assim como, contribuiu na culinária, na agricultura, na 2 mineração, nas artes, na vestimenta, na educação oralizada e na música com seus instrumentos preponderantemente de percussão, e com células rítmicas arrojadas e sincopadas. O momento histórico da primeira metade do século XX apresentava teses que que confundiam conceitos de “cultura” com “raça”, e buscavam demonstrar a superioridade de determinadas raças em detrimento de outras, de modo a explicar o sucesso ou o fracasso de algumas sociedades, conforme explica o antropólogo João Baptista Borges Pereira (1967). Nesse sentido, a sociedade “amestiçada” do Brasil passou a ser objeto de conflito e interesse, que poderia confirmar ou refutar tais pensamentos. Retomando a ideia da formação étnica trinitária brasileira – indígena, europeia, negra – chegou-se à seguinte questão: o elemento indígena já fora enaltecido, a exemplo dos romances literários do século XIX; a cultura europeia, ainda que estruturalmente vista com certa superioridade, rechaçaria o almejado nacionalismo, tendo em vista a consolidação daquelas culturas em si mesmas. Sobrou, então, a matriz africana e, segundo Pereira (1967), a ela foram fiéis todos os artistas e intelectuais que encamparam o ideal nacionalista naquele momento, inclusive na música de concerto. Calcada fortemente no elemento rítmico, a música de matriz africana se encontrava em posição privilegiada no começo do século XX. Mário de Andrade (1962) apontou a predominância rítmica do momento, favorecendo manifestações musicais como o Jazz; na música de concerto, Stravinsky apresentou sua grande novidade principalmente por meio do ritmo. No Brasil, Francisco Mignone, Camargo Guarnieri, Lorenzo Fernandez e até Villa-Lobos4 possuem produções que destacam a música dos povos africanos. A fonografia, isto é, o advento das mídias de gravação e reprodução sonora, possibilitou o surgimento e a popularização de gêneros musicais. As impressões do compositor e educador musical húngaro Bartók nos chegam através de François Delalande (2007), quando aquele afirma que as músicas de tradição oral, como o jazz, passam a serem gravadas, reprodutíveis e analisáveis. É possível, então, fazer uma 4É bem mais abundante a produção de Villa-Lobos que alude a elementos indígenas, no entanto. 3 analogia entre o jazz nos Estados Unidos e alguns gêneros na América Latina – nisso inclui-se o Brasil - que voltaram seus processos de criação para essas mídias. E, se analisarmos bem, todos os gêneros musicais de destaque oriundos das Américas têm como elemento principal a matriz africana: O jazz, o samba, o bolero, o tango etc. Em 1942 aproveitando a tônica nacionalista, Áureo Contreiras, poeta e jornalista, escreveu uma crônica intitulada “ O valor dos cordões e das batucadas no carnaval”, publicada no Jornal A Tarde e no ano seguinte no Diário de Notícias. Em sua crônica, ele argumentava que as instituições carnavalescas populares de bairro mais pobres eram o chamariz do carnaval, que as batucadas eram frutos das dificuldades, das amarguras e também das alegrias desse povo afro que evocava o som das senzalas e dos Terreiros de Candomblé, vindo dos instrumentos musicais como: pandeiro, cuíca e reco-reco, um som central para formação cultural do Brasil. Nesse texto, ele também valorizava o trabalho das afro-baianas e das costureiras, ou seja, um protagonismo afro-baiano empurrando a “cultura negra” em um movimento de valorização nacional. Atesta José Ramos Tinhorão (1969) que, a partir dos anos 1940, se verificou que não havia de fato uma música popular brasileira definida como gênero, mas vários gêneros musicais feitos nas cidades para atender ao gosto das diferentes camadas socioeconômicas que se encontravam naquele ambiente urbano de crescente industrialização: emboladas, modas de viola, côcos e baiões dirigidos às camadas rurais atingidas pelo rádio; marchas frevos batucadas e sambas batidos destinados a atender à necessidade do ritmo de carnaval das cidades e, finalmente, valsas, choros, canções e sambas-canções, para serem cantados ou prestarem-se a música de dança para a classe média em geral. (TINHORÃO, 1969, p. 9) Não seria leviano afirmar que todos os gêneros e ritmos desenvolvidos em solo brasileiro se ramificam de uma mesma raiz: a África, essa contribuição africana se consolida no século seguinte ao primeiro navio negreiro: o maracatu (século XVII), o baião (século XIX) e o samba (entre o final do século XIX e início do século XX). No contexto da gênese da industrialização e urbanização brasileiras, o samba despontou como gênero musical de prestígio, a despeito das contradições sociais pelo critério 4 racial que perdurariam. Esse DNA negro está presente, ainda, na bossa nova, na tropicália, no mangue beat, no funk carioca, entre tantos outros gêneros populares. 3 A urbanização e a Era do Rádio A abolição da escravidão ocorrida no final do século XIX, nos termos em que foi promulgada, criou uma camada social numericamente altíssima e de mão-de-obra pouco qualificada para as exigências