O centenário de Carmem Costa e os artistas negros na “Era do Rádio” 1

Raphael Fernandes Lopes Farias2 Universidade Paulista – UNIP, São Paulo - SP Silvia Sena3 Universidade Paulista – UNIP, São Paulo - SP

RESUMO: O presente trabalho aborda o centenário da cantora Carmem Costa e o contexto midiático do auge de sua carreira. Conhecido como “Era do Rádio” (anos 1940-1950), trata-se de um período em que os artistas negros tinham menor espaço e visibilidade nas mídias, ainda que os que lograssem sucesso fossem intérpretes e autores de muitas canções célebres e pertencentes à memória da cultura musical brasileira. Nesse sentido, propomos uma avaliação de cunho memorialista por uma perspectiva sociocultural e midiática. Recorremos a arquivos audiovisuais (discos, programas de rádio gravados, filmes etc), materiais de imprensa da época, dicionários musicais e uma bibliografia especializada que engloba história, comunicação e sociologia. Notadamente, reconhecemos Carmem Costa como um patrimônio musical do Brasil, infelizmente muitas vezes eclipsada por cantores de maior fama. Palavras-chave: música popular brasileira; carmen costa; era do rádio; movimento negro.

1 INTRODUÇÃO

Por felicíssima coincidência, o 9º Encontro Musicom e os autores deste trabalho tomaram a iniciativa de homenagear a cantora Carmen Costa, por ocasião de seu centenário. Carmen, pseudônimo de Carmelita Madriaga, foi um dos nomes de destaque naquilo que a literatura convencionou chamar de Era do Rádio, no Brasil, abrangendo sobretudo os anos de 1940 e 1950. Conforme nos ensina o historiador Marcos Napolitano em suas muitas pesquisas voltadas para a música nacional, o período em questão marca a consolidação da indústria cultural no Brasil, via rádio e mercado fonográfico. Ao mesmo tempo, as políticas populistas e nacionalistas de Getúlio Vargas apelavam para um neonacionalismo, no qual o samba foi elevado à categoria de expressão cultural máxima das musicalidades nacionais.

1 Artigo apresentado no GT 01- Memória e história midiática da música do IX Musicom. 2 Doutorando e mestre em Comunicação e Cultura Midiática pelo PPGCOM-UNIP. Pesquisador do Centro de Estudos em Música e Mídia – MusiMid. E-mail: [email protected] 3 Mestranda em Comunicação e Cultura Midiática pelo PPGCOM-UNIP. Professora na Universidade Paulista – UNIP. E-mail: [email protected] 1

O gênero, oriundo dos terreiros, onde parte da população negra se reunia para exercer sua cultura com liberdade, sem a necessidade de passar pelo crivo da burguesia branca e protegidos da violência policial, recebeu o nome de “samba”, que consistia na livre expressão de suas poéticas naquele local de socialização (NAPOLITANO, 2005). O nome acabou cunhado como gênero musical sobretudo a partir da gravação de músicas do gênero, a exemplo de Pelo telefone, em 1917, de e Baiano. Foi então, nesse contexto de enaltecimento da musicalidade negra como símbolo nacionalista, de urbanização e de fortalecimento das mídias sonoras, que Carmelita se tornou Carmen Costa. O samba, que dominou as ondas do rádio e ganhou as telas de hollywood através de outra Carmen, a Miranda, configurou-se, então, naquilo que Heloísa Valente (2003) classifica como canção das mídias, isto é, uma produção pensada para se tocar e se ouvir dos espaços e aparatos midiáticos, seja o rádio ou o disco nas salas de estar ou salões de festa. Os entusiastas do nacionalismo na música popular urbana viram aí uma oportunidade de alimentar um modelo de Brasil por meio do que ficou conhecido como “samba-exaltação”, ao qual pertencem canções célebres como Aquarela do Brasil e Brasil pandeiro, a primeira de e a segunda de Assis Valente. Contudo, enquanto o Brasil de matriz Africana era exaltado, a população negra não gozava em seu cotidiano os efeitos do que fizeram de sua cultura musical. As relações simbólicas e os usos da música dos negros, o apagamento de sua imagem enquanto indivíduo e as dificuldades no mercado musical serão abordadas nas linhas a seguir, tendo Carmen Costa como figura condutora para estas discussões.

2 Gênese da música popular brasileira: matrizes e contradições

O brasileiro é formado pelo tripé dos povos indígenas, europeu e africano, dentre os negros escravizados no Brasil foram traficados do século XVI até o século XIX, os Bantus, Fons (conhecidos como Jejes) e os iorubas (conhecidos como nagôs), nessa mesma ordem. Os povos africanos tem uma contribuição enorme na estrutura linguística do nosso português, chamado por Lélia Gonzalez e Carlos Hasenbalg (1982) de “pretoguês”, assim como, contribuiu na culinária, na agricultura, na

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mineração, nas artes, na vestimenta, na educação oralizada e na música com seus instrumentos preponderantemente de percussão, e com células rítmicas arrojadas e sincopadas. O momento histórico da primeira metade do século XX apresentava teses que que confundiam conceitos de “cultura” com “raça”, e buscavam demonstrar a superioridade de determinadas raças em detrimento de outras, de modo a explicar o sucesso ou o fracasso de algumas sociedades, conforme explica o antropólogo João Baptista Borges Pereira (1967). Nesse sentido, a sociedade “amestiçada” do Brasil passou a ser objeto de conflito e interesse, que poderia confirmar ou refutar tais pensamentos. Retomando a ideia da formação étnica trinitária brasileira – indígena, europeia, negra – chegou-se à seguinte questão: o elemento indígena já fora enaltecido, a exemplo dos romances literários do século XIX; a cultura europeia, ainda que estruturalmente vista com certa superioridade, rechaçaria o almejado nacionalismo, tendo em vista a consolidação daquelas culturas em si mesmas. Sobrou, então, a matriz africana e, segundo Pereira (1967), a ela foram fiéis todos os artistas e intelectuais que encamparam o ideal nacionalista naquele momento, inclusive na música de concerto. Calcada fortemente no elemento rítmico, a música de matriz africana se encontrava em posição privilegiada no começo do século XX. Mário de Andrade (1962) apontou a predominância rítmica do momento, favorecendo manifestações musicais como o Jazz; na música de concerto, Stravinsky apresentou sua grande novidade principalmente por meio do ritmo. No Brasil, Francisco Mignone, Camargo Guarnieri, Lorenzo Fernandez e até Villa-Lobos4 possuem produções que destacam a música dos povos africanos. A fonografia, isto é, o advento das mídias de gravação e reprodução sonora, possibilitou o surgimento e a popularização de gêneros musicais. As impressões do compositor e educador musical húngaro Bartók nos chegam através de François Delalande (2007), quando aquele afirma que as músicas de tradição oral, como o jazz, passam a serem gravadas, reprodutíveis e analisáveis. É possível, então, fazer uma

4É bem mais abundante a produção de Villa-Lobos que alude a elementos indígenas, no entanto. 3

analogia entre o jazz nos Estados Unidos e alguns gêneros na América Latina – nisso inclui-se o Brasil - que voltaram seus processos de criação para essas mídias. E, se analisarmos bem, todos os gêneros musicais de destaque oriundos das Américas têm como elemento principal a matriz africana: O jazz, o samba, o bolero, o tango etc. Em 1942 aproveitando a tônica nacionalista, Áureo Contreiras, poeta e jornalista, escreveu uma crônica intitulada “ O valor dos cordões e das batucadas no carnaval”, publicada no Jornal A Tarde e no ano seguinte no Diário de Notícias. Em sua crônica, ele argumentava que as instituições carnavalescas populares de bairro mais pobres eram o chamariz do carnaval, que as batucadas eram frutos das dificuldades, das amarguras e também das alegrias desse povo afro que evocava o som das senzalas e dos Terreiros de Candomblé, vindo dos instrumentos musicais como: pandeiro, cuíca e reco-reco, um som central para formação cultural do Brasil. Nesse texto, ele também valorizava o trabalho das afro-baianas e das costureiras, ou seja, um protagonismo afro-baiano empurrando a “cultura negra” em um movimento de valorização nacional. Atesta José Ramos Tinhorão (1969) que, a partir dos anos 1940, se verificou que não havia de fato uma música popular brasileira definida como gênero, mas vários gêneros musicais feitos nas cidades para atender ao gosto das diferentes camadas socioeconômicas que se encontravam naquele ambiente urbano de crescente industrialização:

emboladas, modas de viola, côcos e baiões dirigidos às camadas rurais atingidas pelo rádio; marchas frevos batucadas e sambas batidos destinados a atender à necessidade do ritmo de carnaval das cidades e, finalmente, valsas, choros, canções e sambas-canções, para serem cantados ou prestarem-se a música de dança para a classe média em geral. (TINHORÃO, 1969, p. 9)

Não seria leviano afirmar que todos os gêneros e ritmos desenvolvidos em solo brasileiro se ramificam de uma mesma raiz: a África, essa contribuição africana se consolida no século seguinte ao primeiro navio negreiro: o maracatu (século XVII), o baião (século XIX) e o samba (entre o final do século XIX e início do século XX). No contexto da gênese da industrialização e urbanização brasileiras, o samba despontou como gênero musical de prestígio, a despeito das contradições sociais pelo critério

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racial que perdurariam. Esse DNA negro está presente, ainda, na bossa nova, na tropicália, no mangue beat, no funk carioca, entre tantos outros gêneros populares.

3 A urbanização e a Era do Rádio

A abolição da escravidão ocorrida no final do século XIX, nos termos em que foi promulgada, criou uma camada social numericamente altíssima e de mão-de-obra pouco qualificada para as exigências do processo industrial. Uma população desempregada, sem bens materiais e sem direitos sociais assegurados, que carregavam um estigma na própria cor da pele. Foi nesse contexto que nasceu Carmelita Madriaga, em uma fazenda do interior do . Sobre os primeiros anos de vida da cantora que viria a ser Carmen Costa, e a sua chegada ao Rio de Janeiro, nos conta seu biógrafo, João Carlos Viegas (1991). Filha da colona Avelina Basílio com o colono Antônio José (Tonho) Madriaga, mestiço descendente de espanhóis, a quem viera a conhecer somente aos oito anos de idade. Carmelita frequentou por pouco tempo a escola na roça, de onde quis sair ao perder um papel em um teatrinho escolar para a filha de um fazendeiro da região. Concluiu a alfabetização sozinha. A menina se instalou no Rio de Janeiro em 1935, e se deparou com a situação urbana consequente do que relatamos: morou em diversos morros – território marcadamente preto – e arranjou, inicialmente, o trabalho de cabeleireira. Depois, seguiu para o ramo da maioria das mulheres negras daquele período (PEREIRA, 1967): tornou-se empregada doméstica. Primeiro, em uma casa onde a patroa tocava piano, o que despertou em Carmelita o desejo de aprender música e a levou a adquirir um violão. Carmelita teve seus primeiros contatos com uma estação de rádio na Rádio Ipanema, local que frequentava para assistir à orquestra do maestro Napoleão Tavares5. Naquele ambiente, recebeu uma indicação de trabalho, ainda doméstico,

5 Napoleão Tavares (1904-1965). Mineiro, de Ubá, foi um trompetista, maestro e arranjador que trabalhou em rádios e gravadoras no Rio de Janeiro até os anos 1950. (BENEVIDES, 2020). 5

na casa de ninguém menos que Francisco Alves6, o Chico Viola, cantor de imenso sucesso e popularidade entre os anos 1930 e 1940. Os auditórios das rádios, de acordo com Pereira (1967) se tornaram um ponto de encontro para a população preta. Para além da possibilidade de entretenimento barato – às vezes, gratuito – e da aproximação de seus ídolos artísticos, pessoas célebres, ou até de oportunidades de trabalho, havia a questão da livre associação. Convém trazer as palavras de Pereira (1967):

Ao lado dessas tentativas de estabelecer contato com “gente importante” há, em outro plano, simples anseios de conviver com amigos e colegas da mesma cor, de participar de situações associativas, relativamente institucionalizadas, onde sua presença humana é notada e, até mesmo, valorizada. Para se compreender o fascínio que tais situações exercem sobre o homem de cor [sic], deve-se levar em consideração todas as dificuldades que, historicamente, o negro tem encontrado para se associar livremente, para formar grupos de interesse. (PEREIRA, 1967, p.110)

Mesmo as agremiações culturais ou musicais eram dificultadas para a população negra, tendo em vista que o próprio samba, antes de gozar do sucesso fonográfico e radiofônico, era mal visto e impedido de acontecer, coibido até com violência policial. Tais mecanismos atrapalharam a mobilidade social dessa população dentro da estrutural geral da sociedade e manteve o “privilégio branco”. Perpetuou-se uma ideia de que “[...] negros em grupo é prenúncio de atitudes e ações desafiadoras dos padrões de conduta socialmente aprovados” (PEREIRA, 1967, p. 111). Nos auditórios das rádios, essa pressão não era sentida, e, conforme o dito, a presença daquelas pessoas era, inclusive, valorizada, enxergada como “cortesãos” pelos radialistas. Os programas de calouros, onde artistas amadores iam se apresentar para concorrer a algum prêmio em dinheiro, e, principalmente, para obter visibilidade e uma possibilidade de emprego no setor radiofônico e artístico, era uma das grandes chances vislumbradas pelas pessoas negras que viam na mídia a escada para outro patamar social. E assim foi com Carmelita:

6 Francisco Alves morreu em 1953, vítima de um acidente automobilístico na rodovia Presidente Dutra, que liga São Paulo e Rio de Janeiro. 6

...[ela] enfrentou enchente para se inscrever no Programa Ary Barroso, na Rádio Cruzeiro do Sul. [...] escolheu Bonequinha de seda, música de um filme dirigido por Gilda de Abreu (uma das raras mulheres a dirigir filmes no cinema mundial). [...]. Essa foi a primeira vez que Carmelita tomou contato com uma partitura. [...] tirou nota cinco [a máxima] e voltou para várias apresentações [...]. Essa passagem pelo crivo de Ary Barroso, crítico feroz de calouros e profissionais sem talento, deu experiência e segurança à Carmelita, que se aventurou cantando em diversos clubes e gafieiras. (VIEGAS, 1991, p. 27)

Esse cenário, contudo, teve seu lado de escárnio por parte da sociedade e dos próprios profissionais de rádio. A miséria do povo, que levava muitos ao desespero em suas tentativas de conseguir notoriedade nesses programas, os inúmeros fracassos e vexames, foram muitas vezes motivos de riso e causa do entretenimento de muitas plateias e ouvintes. Do mesmo modo, o comportamento de certas fãs nos auditórios das rádios gerou o conhecido termo “macacas de auditório”, certamente em referência às características físicas da ancestralidade africana presentes na maioria daquelas pessoas. (NAPOLITANO, 2005; PEREIRA, 1967). Vale retomar ao ponto em que carmelita foi trabalhar na casa do cantor Francisco Alves. Lá, ela conheceu artistas como , que lhe deu a oportunidade de participar do coro da Pequena Notável, em diversas ocasiões, experiência fundamental em sua carreira (VIEGAS, 1991). Tal fato nos remete ao que Pereira (1967) chama de “apadrinhamento”. Em uma sociedade na qual o preto ocupa as partes menos privilegiadas da estrutura e vive imobilizado tanto pela carência de recursos e de qualificação, quanto pelo estigma racial, era comum que alguém já inserido nas esferas mais altas elevasse outro em que reconheceu atributos positivos. E, muitas vezes, essa era a única possibilidade. Em 1944, Carmen gravou Chamego, de , sendo ela, uma das primeiras a gravar músicas do compositor. Interessante destacar este ponto, em que Carmen ajuda a projetar um compositor nordestino, em um encontro de figuras socialmente depreciadas até então, seja pela cor, pelo regionalismo ou por outros motivos. E, justamente, a valorização da música regionalista nordestina dos centros urbanos mais ao sul, receptáculos de levas de migrantes, era o que pretendia Luiz Gonzaga naquele momento. Convém citar alguns versos da canção “Chamego”: [...] Todo mundo quer saber o que é o chamego/ E ninguém sabe se ele é branco, se é mulato ou negro / Ninguém sabe se ele é branco, se é mulato ou negro”.

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Retornando à história de Carmelita, foi quando se apresentava no Clube Aliança que conheceu um homem que lhe prometeu ajudá-la a se profissionalizar. Era Henrique Felipe da Costa, o Henricão, cantor e compositor já de alguma fama e inserido no meio musical. Casaram-se (informalmente) e Carmelita passou a se chamar, artisticamente, como Carmen Costa, em 1939. Henricão fazia muitas viagens a pretexto de negócios. Por ocasião de uma dessas viagens, Carmen, esperando o companheiro, perdeu a oportunidade de participar do Teatro Experimental do Negro (TEN)7, ao lado do ator . A propósito, naquele momento histórico surgiram diversos movimentos com o intuito de promover melhorias sociais para a população negra, principalmente pela escolarização e instrução, o que qualificaria melhor aquelas pessoas para competir na sociedade moderna:

Note-se que a educação formal e a preparação profissional foram sempre perseguidas pelos negros organizados, em diferentes épocas. A Frente Negra Brasileira em São Paulo, nos anos 1930, constituiu extensas turmas de alfabetização. Os diretores fundadores do Renascença Clube do Rio de Janeiro (nos anos 1950) chegavam mesmo a comprar livros para os alunos em dificuldades. O TEN criou escolas de atores e aulas de alfabetização. A União Cultural dos Homens de Côr do DF constituiu diversos cursos de corte e costura para empregadas domésticas. Outro ponto do seu estatuto determinava que todos os seus membros alfabetizados deveriam tomar para si a responsabilidade de alfabetizar pelo menos uma pessoa ligada aos seus quadros, garantindo, desta forma, que no fufuto todos os que a ela fossem filiados, deixassem de ser analfabetos. (SILVA, 2003, p. 227)

Há um ponto a se salientar sobre a profissionalização do negro no rádio. Um dos fatores que colocava o rádio em tal perspectiva para a população negra era que, no campo programático da estrutura radiofônica, isto é, na área onde aconteciam os programas que iam ao ar, o nível de escolarização era pouco ou nada exigido para cargos artísticos, principalmente para cantor popular. Justamente, o cantor popular

7 Segundo Abdias do Nascimento (2004), um dos fundadores do movimento, o Teatro Experimental do Negro, ou TEN “surgiu, em 1944, no Rio de Janeiro [...] que se propunha a resgatar, no Brasil, os valores da pessoa humana e da cultura negro- africana, degradados e negados por uma sociedade dominante que, desde os tempos da colônia, portava a bagagem mental de sua formação metropolitana europeia, imbuída de conceitos pseudo-científicos sobre a inferioridade da raça negra. Propunha-se o TEN a trabalhar pela valorização social do negro no Brasil, através da educação, da cultura e da arte” (NASCIMENTO, 2004, s.n.) 8

era aquele que usufruía de maior prestígio pelos ouvintes e, o samba entre outros gêneros populares dominavam a programação radiofônica (PEREIRA, 1967). Existia, ainda, um outro lado do rádio, menos glamouroso, principalmente em se tratando de estações menores. Quando Carmen foi participar de um programa na Rádio Clube Fluminense, em 1939, descobriu a magia por trás dos bastidores de muitos programas transmitidos. Para o ouvinte, em casa, o programa passava a ideia de que o apresentador recebia convidados em algum cassino, em meio a roletas, copos de uísque e orquestra ao fundo. Nos estúdios da Rádio Clube Fluminense, ela viu o apresentador acompanhado do operador de mesa de som e objetos que emitiam os sons descritos anteriormente. Ali, ela esteve com Abelardo Barbosa, conhecido como por causa da localização da rádio, em uma chácara na Rua Icaraí. A parceria amorosa e musical com Henricão8 não durou muito, no entanto, além do seu nome artístico, Carmen deve a isso seu primeiro grande sucesso, a marchinha Está chegando a hora. Conta Viegas (1991), que, Carmen e Henricão estavam se apresentando em Recife quando viram um casal dançando ao som de Cielito Lindo, uma canção mexicana, o que teria inspirado Carmen a escrever os famosos versos “ai, ai, ai, ai... / Tá chegando a hora! / o dia já vem raiando meu bem / eu tenho que ir embora!”. A canção, usada para encerrar os bailes de carnaval, encerrou seu primeiro baile no tradicional evento carnavalesco do Teatro Municipal do Rio de Janeiro, e venceu o carnaval daquele ano. Na assinatura de autoria, Carmen foi excluída9.

4 Quase sempre... a Outra

Após longa e turbulenta temporada morando nos Estados Unidos e casada com um estadunidense, Carmen retorna ao Brasil em 1949, e a sua carreira nos anos 1950. Ela conhece, na boate carioca Mocambo, o compositor Mirabeau, com quem permaneceu em união estável por quatro anos. De Mirabeau, veio outro sucesso: a

8 De acordo com o biógrafo de Carmen Costa, Henricão teria batizado “mais de quinze cantoras com o sobrenome Costa prometendo sucesso em suas vidas artísticas, tentou colocar Carmen na “zona” para ganhar algum dinheiro às custas dela [...] e nunca dividia os lucros com as músicas”. (VIEGAS, 1991) 9 Carmen foi autora e coautora de algumas canções, sob o pseudônimo de Dom Madri – em referência ao sobrenome espanhol, Madriaga. 9

marchinha carnavalesca Cachaça, que foi gravada em parceria com o humorista Colé, em 1952. A partir de 1954, mudou seu estilo de interpretação, que passou a ser mais coloquial e intimista, obtendo grande sucesso nacional com sambas-canções como Quase e Eu sou a outra, escrita pelo pai de sua única filha, Silézia, o compositor Mirabeau, e a segunda por Ricardo Galeno. Para isso, passou a cantar em tons mais graves. A canção Quase é apontada por Jairo Severiano e Zuza Homem de Mello (1999) como um dos maiores sucessos de 1954. Todavia, a música Eu sou a outra contém traços autobiográficos de sua vida com seu terceiro marido10, o compositor Mirabeau. Após algum tempo da união, ela descobre que Mirabeau já era casado e tinha outros filhos. Assim mesmo, a relação continuou, e junto com ela, os escândalos explorados pela mídia da época. Relata Viegas (1991, p.53) que Carmen sustentava o lar com seu trabalho de cantora e que foi “o lado ‘terra’ de um homem [Mirabeau] que vivia compondo e distribuindo parcerias porque acordava muito tarde e não tinha disposição para divulgar suas músicas”. Segundo o jornalista Rodrigo Faour (2017), Carmen Costa foi a primeira “diva” negra do rádio. Lembramos que o rádio estava para o Brasil naquele momento como o cinema estava para os Estados Unidos: havia todo um star system de cantores que provocavam frisson em seus ouvintes. O concurso Rainha do Rádio talvez seja o melhor exemplo da dinâmica de funcionamento daqueles tempos. No entanto, Carmen Costa nunca ganhou a coroa durante os mais de 20 anos de realização do concurso. Nem ela e nem nenhuma outra cantora declarada ou inconfundivelmente negra11. Em 1959, já separada de Mirabeau, Carmen retoma seu casamento com Hans e vai para os Estados Unidos. Como da primeira vez, a relação fracassa, mas a estada naquele país trouxe novas experiências à Carmen, que lá exerceu outras ocupações como arrumadeira, como operária em fábrica de armamentos, em hospitais e até na prensagem de discos na RCA-Victor. Indagada por seu biógrafo (VIEGAS, 1991) sobre ter enfrentado racismo nos Estados Unidos, Carmen alega que era vista como

10 Oficialmente, Carmen só se casou com o estadunidense Hans Van Koehler. 11 Fazemos uma ressalva para Ângela Maria, que embora nitidamente mestiça, não encontramos posicionamento definitivo nessa questão no tocante à cantora. Ela não traz o elemento da “cor da pele” no âmbito do “colorismo” que marcou por muito tempo a divisão étnica nacional. 10

artista pelos estadunidenses e que acreditava que o sucesso de outros artistas negros na mesma época amenizavam a situação. Contudo, afirma que as vezes em que sentiu-se vítima de preconceito, foi por parte de brasileiros que moravam nos Estados Unidos. E aí vem a situação que teria estremecido a relação de Carmen com a música e principalmente com os músicos brasileiros: o Show da noite brasileira, no Carnagie Hall. Antes de entramos no assunto, porém, cabe ressalvar que, a despeito da negação de Carmen sobre o racismo em relação a ela nos Estados Unidos, seu ex- marido, Hans, segundo a mesma, teria transferido bens para outras pessoas, de modo a evitar que fossem para Carmen, e proferia sentenças se referindo às brasileiras como “vagabundas e ladras”. O depoimento de Carmen também trouxe a informação de que na fábrica de armamentos, a mão-de-obra era basicamente de pessoas oriundas de países latino-americanos (VIEGAS, 1991). Voltemos à 22 de novembro de 1962, noite do show em Nova Iorque. Momento triunfante da Bossa Nova, os únicos negros que participaram foram Carmen Costa e os violonistas José Paulo e Bola Sete. Durante o ensaio, naquela noite, alguém perguntou o que ela (Carmen) fazia ali, se “o show era de bossa-nova e ela era bossa- velha” (VIEGAS, 1991). Carmen já se encontrava nos Estados Unidos quando os bossa-novistas chegaram. Ela havia excursionado por várias cidades do país, cantando, inclusive, composições de João Gilberto, e feito amizade com músicos como Dizzie Gillespie e Lionel Hemington. Viegas (1991, p. 61), chama atenção: “cada geração que se sucede na música popular brasileira gosta de empurrar a anterior para o abismo como se estivesse com seu lugar ameaçado pelos que já estavam quando ela chegou”. De fato, há uma enorme dificuldade de se encontrar menções à Carmen Costa e aos violonistas nos documentos, notícias e na literatura em geral, relacionados àquela noite no Carnagie Hall. É preciso mencionar o projeto estético da Bossa-Nova de se apresentar como rompimento com o passado musical brasileiro e como um gênero que aglutina todas as influências musicais de que o Brasil moderno e urbano representava (NAPOLITANO, 2010; BRITO,1993). Nesse sentido, não só Carmen Costa, mas muitos outros artistas foram preteridos pela “novidade” musical.

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5 Considerações finais

Buscamos demonstrar ao longo deste trabalho a relação entre a população negra no Brasil e a mídia radiofônica em meados do século XX, período em que o rádio exerceu hegemonia dentre os veículos de comunicação. Mais ainda, o rádio concentrou em suas estruturas o poder simbólico de chancela cultural; seletor e difusor das músicas que se ouviam e de quem as tocava e cantava. Como mote para abordar o assunto, utilizamos do centenário da cantora Carmen Costa, em 2020, ou, entramos no assunto graças a essa efeméride. Ficou claro que o Brasil valorizou a matriz africana na produção musical, tanto da música popular como na de concerto. Entretanto, nota-se que mesmo a valorização desses elementos, não transferiu automaticamente prestígio e tampouco mobilidade social para a população negra, amarrada em estruturas históricas que privilegiaram a branquitude em detrimento de uma mão-de-obra barata e pouco escolarizada do povo preto. Nesse sentido, o rádio tanto pode ser considerado uma ferramenta de ascensão social quanto de estigmatização; em outras palavras, a mesma mídia que permitiu a alguns artistas alcançarem um status social mais elevado, serviu de filtro para manipular as estruturas sociais via símbolos culturais. A música de matriz africana foi útil para representar e prestigiar o país, mas a população negra não esteve representada e nem usufruiu desse prestígio em seu cotidiano. O Brasil representado por uma música “negra”, e o estereótipo do indivíduo negro com aptidões musicais, causaram ainda mais embaraços às discussões ao longo do tempo. Valem as palavras de Pereira (1967):

O preconceito, alimentando-se deste estereótipo até certo ponto positivo, atua de maneira tão sutil e tão fundamental que chega até a embotar [sic] a sensibilidade do negro para percebê-lo. De outro lado, também a preocupação quase escrupulosa de não se tocar na cor como entrave de carreira, sugere espécie de acordo tácito entre brancos e pretos de não se desafiar o padrão de ideologia racial brasileira, que coloca as relações interétnicas em termos de democracia racial. (PEREIRA, 1967, p.138).

A trajetória de Carmen Costa, por sua vez, mostrou que fatores como a escolaridade eram menos relevantes do que o “apadrinhamento”, conforme ocorreu

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com ela a partir do trabalho doméstico na residência do cantor Francisco Alves, onde conheceu Carmen Miranda, o que a introduziu no meio artístico de seu tempo. Ainda assim, Carmen destacou a tentativa de apagamento de sua participação – e de mais dois músicos negros - na Noite Brasieira, promovida pelos bossa-novistas em Nova Iorque. Os autores deste trabalho alertam, também, para a ausência de referências bibliográficas a respeito de Carmen Costa. Há apenas uma biografia sobre a cantora, livro com 126 página, muitas delas preenchidas com fotografias e letras de música. Embora reconheçamos o esforço de Viegas (1991), o que deveras contribuiu para este texto, há cantoras contemporâneas de Carmen que tiveram muito mais linhas dedicadas a suas vidas. Do mesmo modo, nos deparamos com a ausência ou pequeníssimas menções ao nome de Carmen em obras dedicadas a história do samba, da música popular brasileira, dos artistas de rádio/gravadoras. Portanto, para se chegar a fatos relacionados à homenageada deste ano – e deste trabalho – tem- se que recorrer a outras biografias, notícias de veículos de comunicação antigos, acervos particulares etc. Impõe-se a necessidade de melhor registrar a história desta cantora e de seu círculo artístico, que era majoritariamente negro.

REFERÊNCIAS

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