DESASTRADA MAQUINARIA DO DESEJO a Prosa do observatório de Julio Cortázar

Por Mônica Genelhu Fagundes

Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Ciência da Literatura da Universidade Federal do Rio de Janeiro como quesito para a obtenção do título de Doutor em Ciência da Literatura (Literatura Comparada)

Orientador: Professor Doutor Edson Rosa da Silva

Rio de Janeiro Março de 2008 2

DESASTRADA MAQUINARIA DO DESEJO a Prosa do observatório de Julio Cortázar Mônica Genelhu Fagundes Orientador: Professor Doutor Edson Rosa da Silva

Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-Graduação em Ciência da Literatura da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, como parte dos requisitos necessários para a obtenção do título de Doutor em Ciência da Literatura (Literatura Comparada).

Aprovada por:

Presidente, Prof. Doutor Edson Rosa da Silva – UFRJ

Prof. Doutor Ary Pimentel – UFRJ

Prof. Doutor Eduardo de Faria Coutinho – UFRJ

Prof. Doutor João Camillo Penna – UFRJ

Profª Doutora Lívia Reis – UFF

Prof. Doutor Luiz Edmundo Bouças Coutinho – UFRJ (Suplente)

Profª Doutora Silvia Cárcamo – UFRJ (Suplente)

Rio de Janeiro Março de 2008 3

Fagundes, Mônica Genelhu Desastrada maquinaria do desejo: a Prosa del observatorio de Julio Cortázar/ Mônica Genelhu Fagundes – Rio de Janeiro: UFRJ/ FL, 2008. xi, 315 f.; il. Orientador: Edson Rosa da Silva Tese (doutorado) – UFRJ/ Faculdade de Letras/ Programa de Pós-Graduação em Ciência da Literatura, 2008. Referências bibliográficas: f. 309-315. 1. Julio Cortázar 2. Prosa do observatório 3. Imagem 4. Poema em prosa 5. Utopia. I. Silva, Edson Rosa da. II. Universidade Federal do Rio de Janeiro, Faculdade de Letras, Programa de Pós-Graduação em Ciência da Literatura. III. Desastrada maquinaria do desejo: a Prosa do observatório de Julio Cortázar

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AGRADECIMENTOS

Ao Professor Doutor Edson Rosa da Silva, que acreditou nesta tese quando era apenas um projeto em formação, participou ativamente de seu crescimento com idéias inspiradoras e me proporcionou o apoio, a calma e a confiança sem os quais não teria sido possível realizá-la; aos Professores Doutores Eduardo Coutinho e João Camillo Penna, que conheceram este trabalho num estágio inicial e para ele contribuíram com preciosas sugestões; ao Professor Doutor Ary Pimentel, que me apresentou Cortázar, me ensinou tanto sobre a literatura e o ensino, e, sobretudo, me fez querer ir sempre mais além; aos Professores Doutores Teresa Cristina Cerdeira da Silva, Luiz Edmundo Bouças Coutinho, Eucanaã Ferraz e Vera Lins, decisivos em minha opção pela literatura; a Guito Moretto, meu professor de fotografia, que, mais do que a técnica, me ensinou o olhar; ao Mauricio, pela cumplicidade ainda à distância, pelo amor muito de perto;

à minha mãe e ao Emílio, pela dedicação e pelo carinho de sempre, e muito especialmente por todo o incentivo que deram a este trabalho; ao meu pai – meu modelo, meu amigo – pelo apoio incondicional ao longo de toda a minha formação;

à Mariana, ao Ricardo, ao Alexandre e à Vanessa, amigos queridos, com quem sempre posso contar; a meus alunos na Faculdade de Letras da UFRJ, cujo entusiasmo contagiante reparou muitas vezes meu desânimo e meu cansaço; e à CAPES, que proporcionou o suporte financeiro que possibilitou a realização deste trabalho. 5

RESUMO

Escritura alegórica de uma máquina do mundo em que se aliam exercício estético e pensamento teórico, fabulação mítica e reflexão histórica, Prosa del observatorio consuma o que será, provavelmente, o princípio essencial da literatura de Julio Cortázar, e seu móvel: a aspiração utópica a uma reordenação do real que se realiza por meio de sua transfiguração em imagem. Partindo da leitura desse texto, que se revela, portanto, nuclear para a compreensão da poética de seu autor, nossa tese pretende estudar este trabalho da imagem – seus fundamentos, suas estratégias, seus efeitos e seu sentido – transitando entre os domínios do artístico, do filosófico e do político.

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RÉSUMÉ

Écriture allégorique d’une machine du monde, dans laquelle s’allient l’exercice esthétique et la pensée théorique, la fabulation mythique et la réflexion historique, Prosa del observatorio réalise à perfection ce qui sera, probablement, le principe essentiel et le mobile de la littérature de

Julio Cortázar: l’aspiration utopique à une réordination du réel qui se réalise par l´intermédiaire de sa transfiguration en image. En partant de la lecture de ce livre, qui se révèle, donc, nucléaire pour la compréhension de la poétique de son auteur, notre thèse a pour but d’étudier ce travail de l’image – ses fondements, ses stratégies, ses effets et son sens – en transitant entre les domaines artistique, philosophique et politique.

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ABSTRACT

Being an allegoric scripture of a “world machine” in which aesthetic exercise and theoretical thinking, mythical fable and historical reflexion form alliances with each other, Prosa del observatorio consummates the essential principle of Julio Cortázar’s literature: the utopic aspiration to a reordination of reality that comes to term through its transfiguration into image. Starting off from this text, which reveals itself crucial for the comprehension of his author’s poetic, our thesis intends to study this work of image – its fundaments, its strategies, its effects and its sense – transitting between the domains of artistic, philosophic and politic.

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En ese segundo, con la omnisciencia del semisueño, medí el horror de lo que tanto maravilla y encanta a las religiones: la perfección eterna del cosmos, la revolución inacabable del globo sobre su eje. Náusea, sensación insoportable de coacción. Estoy obligado a tolerar que el sol salga todos los días. Es monstruoso. Es inhumano. Antes de volver a dormirme imaginé (vi) un universo plástico, cambiante, lleno de maravilloso azar, un cielo elástico, un sol que de pronto falta o se queda fijo o cambia de forma. Ansié la dispersión de las duras constelaciones, esa sucia propaganda luminosa del Trust Divino Relojero.

JULIO CORTÁZAR , RAYUELA .

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SUMÁRIO

Lista de ilustrações...... 10

Introdução: maquinar, imaginar...... 12

1. Manual de instruções...... 35

1.1. Instruções para montar um caleidoscópio...... 36

1.2. Instruções para tirar fotografias...... 47

1.3. Instruções para fazer dobraduras...... 77

1.4. Instruções para dançar...... 90

1.5. Instruções para criar uma máquina do mundo...... 110

2. O dedo e a lua: uma história de bobos...... 138

2.1. Magos e poetas...... 142

2.1.1. O Trauerspiel barroco...... 154

2.1.2. O romantismo de Jena...... 159

2.1.3. A lírica moderna...... 164

2.2. O escritor fotógrafo e um sultão que gostava de observar estrelas...... 220

3. A gesta da imagem...... 255

Conclusão...... 300

Bibliografia...... 309 10

LISTA DE ILUSTRAÇÕES

1. Vista do Jantar Mantar de Delhi...... 16

2. Prosa del observatorio I...... 48

3. Esquema do Samrat Yantra...... 49

4. Samrat Yantra: princípio e operação...... 49

5. Prosa del observatorio II...... 53

6. Jaya Prakasha Yantra...... 54

7. Prosa del observatorio XXVIII...... 79

8. Prosa del observatorio XXIX...... 80

9. Anel de Moebius II (E.M. Escher)...... 81

10. Céu e água II (E.M. Escher)...... 82

11. Prosa del observatorio XXXV...... 90

12. Bailarina ajustando sua sapatilha (Edgar Degas)...... 96

13. Depois do banho (Edgar Degas)...... 96

14. Mulher se enxugando (Edgar Degas)...... 96

15. Prosa del observatorio I...... 112

16. Papilla estelar (Remedios Varo)...... 130

17. Gran Verre (Marcel Duchamp)...... 133

18. Prosa del observatorio I...... 138

19. La Page Blanche (René Magritte)...... 218

20. Gran Oval (Antoni Tàpies)...... 231

21. Blanco con manchas rojas (Antoni Tàpies)...... 231 11

22. Prosa del observatorio XXV...... 232

23. Prosa del observatorio VIII...... 232

24. Prosa del observatorio XIII...... 233

25. Prosa del observatorio XV...... 238

26. Prosa del observatorio XVI...... 239

27. Prosa del observatorio XIX...... 239

28. Suplício chinês...... 276

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INTRODUÇÃO : MAQUINAR , IMAGINAR

Desastre, desejo

No cerne destes nomes, uma ausência, um abandono. O desastre: “solidão que irradia, vazio do céu” 1, o exílio do homem despojado dos astros, seu desterro no caos. O desejo: o ato de desistir das estrelas, de deixar de olhar as estrelas, de privar-se de sua orientação. 2 Imagens emblemáticas da separação, condição do homem que, por arbítrio cósmico ou decisão própria, se vê relaxado à contingência, ao acaso, à falta de sentido, à descontinuidade e – por uma operação dialética de sentidos – liberado de superiores desígnios, apto a conduzir a si mesmo, a tomar, sozinho, suas próprias decisões. Ser condenado à experiência desastrosa da diferença, da solidão, da incomunicabilidade; e votado à busca desejosa da semelhança, do contato, da relação. Vazio e consciência dolorosa de vazio que o constituem como ser cindido e sujeito de uma falta, e que estarão inscritos em suas mais autênticas criações – formas do desastre e do desejo.

Máquinas

A palavra chega ao português oriunda do latim mach ĭna,ae – máquina, aparelho; máquina de guerra; armas, meios, esforços; expediente, artifício, invenção –, a partir do grego mēkhan ē, ês – invenção engenhosa; máquina; máquina de teatro; qualquer meio

1 “Solitude qui rayonne, vide du ciel” Maurice Blanchot. L’écriture du désastre , 1980. p. 220. (Tradução nossa) A etimologia de désastre como ausência ou separação dos astros é desenvolvimento poético de Blanchot. A etimologia tradicional indica que a palavra teria vindo – tanto para o francês quanto para o português – do vocábulo italiano disastro : mau astro e, por derivação, aquilo que se dá sob influência de uma má estrela. 2 Marilena Chauí. “Laços do desejo”. In: NOVAES, Adauto (Org.) O desejo , 1990. p. 22-3. 13 engenhoso de conseguir um fim; habilidade, talento de imaginar, de inventar.3 Em sua elasticidade, a etimologia circunscreve o aspecto essencial de toda estrutura que se possa definir como máquina: o papel de agente de um trabalho de produção, criação ou transformação; e nos recorda – a nós modernos, amantes das máquinas como símbolos do progresso técnico – seu pendor para o artístico e sua relação com a imaginação. Toda máquina é objeto, instrumento e trabalho da imaginação.

Encarnação e perpetuação de uma potência criadora, a máquina se faz elo entre o homem e a divindade: o demiurgo que constrói a máquina do mundo e o ser que, parte fundamental deste mecanismo, esforça-se por compreendê-lo em sua ordem e por reproduzir em seu interior seu gesto original de criação. É ritualística e corruptora esta iniciativa; apropriação pelo plano imanente do pragmatismo de uma virtualidade que é herança transcendental, mas servirá a desafiar este legado, alterando-o. Obras do desastre e do desejo, as máquinas guardam a memória da ordem que as gerou e de que são imagem, e cumprem o gesto e o trabalho de sua transformação.

Para Michel de Carrouges, a quem coube estudá-las em sua inscrição artística, representam um mito maior do nosso tempo. As suas machines célibataires 4, representações plásticas ou literárias de máquinas que para além de simples mecanismos pragmáticos se descobrem alegoria, seriam expressões míticas da complexidade do mundo moderno e da subjetividade que nele se conforma: signos do desastre e do desejo, incorporam o sentido de um desafio à autoridade da lei cósmica e, como fragmentos problemáticos de uma ordem que se rompe, antinomias dialéticas em que se cruzam um impulso de apreensão (nova apreensão) do mundo (cindido, decaído), que se revela

3 Cf. Dicionário Houaiss da língua portuguesa , 1ª Edição, 2001. 4 Michel de Carrouges. Les Machines Célibataires , 1954. 14 mesmo erótico, e a impossibilidade de êxito desta empresa. Neste drama celibatário do desejo em que se afirma a potência do erotismo e se nega sua consumação, cancela-se a virtualidade produtiva que seria devida a toda máquina. Máquinas que não produzem, nas machines célibataires o mecanismo subverte o próprio mecanismo em sua essência fundamental. Traços do desastre ineludível e corpos investidos de um desejo cuja realização é continuamente elidida, instaura-se nestas máquinas permanentemente desejantes e um tanto desastradas – enguiçadas, como que em curto, incontroláveis e subversoras – uma nova norma de funcionamento, descrito por Deleuze e Guattari, leitores de Carrouges, como auto-erótico ou automático .5 Gesto reflexivo de um mecanismo que, em virtuosa corrupção, admirável defeito, se volta sobre si mesmo, auto- crítico e auto-irônico, e se descobre capaz de imprevistas e insondadas potencialidades.

Transformações da máquina pela própria máquina, do mito por si mesmo, para fundação de universos novos, dotados de novos sentidos.

Assim se poderia começar a descrever o funcionamento do mecanismo que Julio

Cortázar cria em sua Prosa del observatorio – desastrada maquinaria do desejo: livro- máquina que se apropria de outras máquinas e a elas se acopla para introduzir-lhes o que

Deleuze e Guattari chamaram uma “função de defeito”; para alterar decisivamente seu funcionamento e fazê-las (num termo caro a Guattari) delirar .

As máquinas de Sawai Jai Singh

No início do século XVIII, entre 1720 e 1735, um sultão indiano apaixonado por

Astronomia fez construir observatórios astronômicos em cinco cidades de uma já então decadente Índia monárquica. Em Delhi, Jaipur, Varanasi, Ujjain e Mathura, Sawai Jai

5 Gilles Deleuze e Felix Gattari. L’Anti-Oedipe . Capitalisme et Schizophrénie, 1972. 15

Singh fez erguer variados instrumentos de observação celeste – muitos deles idealizados e desenhados por ele próprio – que até hoje impressionam seus estudiosos tanto por sua precisão como por sua arquitetura imponente. Dispensando o telescópio (embora tivesse conhecimento desta tecnologia já amplamente utilizada na Europa naquele momento), Jai

Singh inspirou-se sobretudo na tradição hindu e na escola islâmica de Astronomia para criar seus próprios artefatos, baseados na observação a olho nu dos astros e dos traçados de luz e sombra que suas órbitas projetavam na superfície dos instrumentos. Construídos em pedra e alvenaria, sendo muitas vezes recobertos por mármore, eles permanecem um caso único na história da Astronomia por suas grandes dimensões. Seu conjunto (ou

Jantar Mantar 6 como é conhecido popularmente cada um dos observatórios de Jai

Singh), cria um espaço que é, a um só tempo, científico e pragmático, mas também religioso, artístico e lúdico, como se o propósito matemático dos artefatos do sultão cedesse em meio a uma paisagem algo fantástica de escadas que não levam a lugar algum, curvas interrompidas, formas geométricas livres, arabescos, que lembra um misterioso labirinto, o templo de uma religião desconhecida, um cenário cubista 7 ou um estranho parque de diversões.

6 A etimologia e o sentido da expressão em sânscrito são controversos, sendo listadas por Vivendra Nath Sharma algumas possibilidades: (1) Jantar como corruptela de Jantra – “instrumento”, seguida de Mantar , palavra que atuaria apenas como reforço de sentido, segundo a prática coloquial de formar expressões pelo acréscimo de uma segunda palavra que rime com a primeira com propósito de ênfase; (2) Ainda combinação pleonástica de Jantar, cujo significado popular é “diagrama mágico”, e Mantar: “palavras mágicas”; (3) a expressão Jantar Mantar como corruptela de Yantra Mandira – “Templo de Instrumentos”. Cf. Vivendra Nath Sharma, Sawai Jai Singh and his Astronomy , 1995. p. 98. 7 Já em 1935, Penelope Chetwode publica em The Architectural Review um artigo intitulado “Delhi Observatory, the paradise of an Early Cubist”. 16

Tal espaço teria de fascinar Julio Cortázar, que, em 1968, visitou os Jantar

Mantars de Jaipur e Delhi, conheceu um pouco da história do sultão astrônomo do século

XVIII e fotografou seus instrumentos. Já então inutilizados como aparelhos de observação e medição astronômica, eles se erguem diante do escritor e fotógrafo amador como testemunho preservado do ideal de um homem que, condenado a assistir ao declínio do império de seus antepassados, líder enfraquecido de uma era sem glórias, soube extrair da crise e do ocaso a que fora relegado um impulso de renovação, e erguer, entre os escombros de seu reino, o projeto de uma nova ordem de mundo. O pequeno poder que lhe restava Jai Singh usou para criar cidades (é de sua autoria o plano urbanístico de Jaipur) e construir observatórios que constituem um autêntico plano de arquitetura cósmica, proto-paisagem de um universo reordenado. Monumentos do desastre e do desejo que Cortázar lê e preserva, como memória e como utopia, em sua

Prosa del observatorio .

A máquina de Cortázar

Como os observatórios de que se apropria, este livro quer se fazer também máquina de olhar, máquina de imagens. Já não buscará, porém, os astros que brilham altos no céu: como mostram as fotografias que o compõem, este é um observatório des- 17 astrado : corrompido, feito imagem de si mesmo, separado dos astros que buscava, capaz de visar apenas a corpos que já não estão postos nas alturas, mas que são, como eles, fragmentos de mundo transcritos nas imagens fragmentárias do texto de Cortázar. Nas páginas de uma obra que, construindo-se como objeto óptico, constitui-se como uma espécie de observatório rebaixado – que já não eleva o olhar, mas o mantém reto ao chão; que não lida com a grandiosidade de planetas e estrelas, mas com fragmentos menos nobres do mundo; que não dá a ver autênticas e míticas constelações, mas figuras que, embora feitas à sua imagem, compõem-se de matéria terrena e pobre: mosaicos.

Observatório desastrado, o livro de Cortázar se constrói como caleidoscópio. Forma que era, para o escritor, um signo de utopia; instrumento que incorpora o projeto sugerido por sua própria literatura, que, baseada num “otro modo de mirar”8, desagrega, desloca e reordena elementos do real – os mais humildes e desprezíveis, os que menos se notam – para formar novas figuras, novas imagens do mundo, que se querem mais autênticas.

Procedimento óptico que se faz texto, que se enuncia e se põe em prática na Prosa del observatorio .

Instrumento óptico a criar imagens da utopia, o livro se faz máquina desastrada e desejante – defeituosa e alterada, cujo funcionamento já não se baseia na norma prevista nos manuais, mas em outras leis. Máquina que já não produz e reproduz em cadeia, mas, anti-mecanismo a destilar a crítica de si mesmo 9, engendra seus elementos numa engrenagem de reflexão, criadora de imagens que pensam a si mesmas e a sua geração.

Máquina que se volta sobre si mesma e a todo tempo se pensa e se transforma.

8 A expressão é usada por Cortázar no conto “Axolotl”, de . 9 Assim qualifica Octavio Paz o Gran Verre de Marcel Duchamp, obra inspiradora do conceito de machine célibataire , de Carrouges. 18

O livro é composto pelas fotografias dos observatórios tiradas por Cortázar – e posteriormente trabalhadas por Antonio Gálvez – e por um texto que nos parece algo de inclassificável: embora definido no título como “prosa”, constrói-se com uma linguagem e com recursos próprios ao poético; por vezes, parece aproximar-se do modelo do ensaio, mas comporta também elementos de ficção; polifônico, mobiliza discursos distintos e se propõe ponte entre ciência e arte, fundando um espaço de confluência de linguagens. A esta forma híbrida em que se mesclam o visual e o verbal, e uma variedade de gêneros, corresponde um conteúdo em que se interpenetram temas diversos. A poética Prosa del observatorio discorre sobre o fascínio de Jai Singh pelas estrelas, contrapondo-o ao interesse científico de um grupo de ictiólogos por enguias, algo de que Cortázar toma conhecimento pela leitura de um artigo publicado em Le Monde , em 1971.

Transfiguradas em imagem diante do olhar atento dos observatórios que as espreitam de suas fotos entre as páginas – também eles vistos , também eles imagens –, enguias e estrelas tornam-se elementos que, embora díspares, são postos em diálogo, sendo este “encontro fortuito” um tanto surrealista o ponto de partida para uma reflexão que tem como alvo o homem e sua relação com o mundo. Um mundo e um homem que são também transfigurados em imagem e intimados a ver-se como tal, “vítimas” de um texto que, observatório , a tudo e a si mesmo transforma em coisa vista , imagem , num jogo especular de reflexões, de olhares cruzados: o mar das enguias e o céu das estrelas, os ictiólogos e Jai Singh, a ciência e a arte, a realidade e a utopia, a linguagem e a coisa dita; o observatório que tudo olha, mas, impotente enfim, é ele próprio visado – fotografado e visto nas páginas do livro; que toma voz nesta sua prosa, mas é, também 19 nela, lido . Olhares que se cruzam na imagem, que se faz lugar, tempo, trabalho, forma de reflexão.

Com seu foco sobre máquinas para ver , a Prosa del observatorio faz-se um ensaio – fotográfico, discursivo – sobre o olhar, sobre modos de olhar e, mais precisamente, sobre um olhar que se volta sobre si mesmo: movimento de reflexão crítica que cumpre a câmera ao fotografar os instrumentos de observação de Jai Singh – um aparelho ótico a olhar o outro e a ser visto pelo outro; as fotografias a se articularem com o texto num jogo inter-semiótico; os diferentes discursos que se confrontam e interpenetram no texto de Cortázar; estrelas e enguias: as múltiplas imagens que se cruzam na Prosa del observatorio , a impor umas às outras um mecanismo de reflexão.

Peças de um mecanismo a transformar-se e a transformar o mundo de que é imagem: nova máquina do mundo a se vislumbrar desde as páginas de um livro-observatório.

Mito de fundação e microcosmos de um universo a reordenar-se, a obra de

Cortázar encena, por meio de suas imagens e das relações que entre elas se estabelecem, uma nova situação de realidade – não a invenção de um outro real, mas uma transformação, ou, mais precisamente, uma revisão daquele que se toma como verdadeiro. Re-visão mesmo, já que o empreendimento de Prosa del observatorio é essencialmente trabalho de um olhar que se faz reflexivo, que se observa observando e transforma a si mesmo e a seus objetos a partir deste novo regime do olhar em que já não se sustentam, como instâncias separadas e hierarquicamente distintas, um sujeito olhante e um objeto olhado, mas em que se cria um espaço virtual de troca e contato no qual olhares se encontram e se devolvem. Meio aurático por excelência, segundo aquela que é 20 possivelmente a mais conhecida definição da aura benjaminiana: “a capacidade de uma coisa de revidar o olhar” 10 .

Trata-se, portanto, neste fluxo aurático do olhar, de um jogo de reflexividade complicado, alterado : uma operação de reflexividade não-egocêntrica, não-narcísica, que não se define apenas pelo movimento de um sujeito – ou de um olhar – que se volta sobre si mesmo, mas faz necessária a presença de um outro que, não sendo apenas suporte de um espelhamento, mantendo seu estatuto de alteridade, torne possível ao eu um conhecimento que será sempre em relação ; autoconhecimento que se constituirá como alter-conhecimento . No cenário desta complexa gnosis, corrompem-se as identidades fixas e definidas, destrói-se a individualidade como fechamento, produzem-se (enquanto imagens, é preciso lembrar) seres cindidos, descentrados, projetados ao outro e abertos ao outro. Como veremos nos exempla de Cortázar – personagens de um novo mito de criação –, enguias que nas estrelas encontram a razão de seus ciclos, estrelas que como enguias migram pelo céu dos astrônomos. Correspondências que o olhar de um fotógrafo escritor redescobre observando o olhar de um sultão do século XVIII, preservado nos seus instrumentos de observação dos astros que previam sua existência. Este sistema de aberturas, encontros e trocas – conexões virtuais possibilitadas por um olhar que toma forma em imagens que, desejantes, põem em questão mas não anulam a distância e a diferença impostas pelo desastre – faz-se operação em curso no livro-máquina de

Cortázar, assumindo aí o sentido de um jogo erótico.

Por si só, o erotismo é dinâmica fundada no desastre e no desejo, empresa vital de seres descontínuos em busca da continuidade perdida, como expôs Georges Bataille.

10 Walter Benjamin. Charles Baudelaire , um lírico no auge do capitalismo. Obras escolhidas v. 3, 1994. p.134. 21

Drama psíquico e biológico do homem que Cortázar converte em princípio geral das relações entre os seres, entre as formas. Menos tema do que mecanismo, o erotismo é o motor da máquina do mundo apresentada em Prosa del observatorio . Se do Empíreo dos altos céus de Dante era o Amor , divina entidade, que movia o céu e as mais estrelas , a tudo e a todos consagrando, do observatório terreno de Cortázar é o desejo, carnal e humano, que se dissemina pelo universo inteiro e pelo próprio texto, que foge a toda abstração e se atém à materialidade das coisas, no exercício de um fazer artístico que, operando com imagens, cumpre-se eminentemente como trabalho de forma, sobre as formas, postas em jogo, testadas em seus limites, experimentando-se, transformando-se, conectando-se umas às outras num impulso de fusão sempre suspenso pela provação do desastre que move enguias, estrelas, sultão, palavras: imagens, peças de uma máquina que se quer ela própria nova imagem do mundo, que o observatório – não mais o de Jai

Singh, mas o de Cortázar – dá a ver.

Fragmentária, lacunar, incompleta, mutável e plural terá de ser esta imagem, engendrada por formas que incorporam como brecha, intervalo, abertura irredutível o espaço – vazio, sim, mas vazio concreto , tramado – de desastre e de desejo que se fará núcleo de sua estrutura e de seu sentido, descaracterizando-as como objetos definíveis, fechados, estáveis, para fazer delas o lugar de um trabalho 11 : de formação, de deformação, de transformação. Dinâmica cuja compreensão exigirá mesmo “uma nova maneira de pensar as formas, processos versus resultados, relações instáveis versus termos fixos, aberturas concretas versus fechamentos abstratos, insubordinações materiais

11 O termo é tomado aqui no sentido usado por Freud para abordar as formas “formantes e deformantes mais do que formadas” do sonho e do sintoma em A interpretação dos sonhos . 22 versus subordinações à idéia”. 12 Em suma, um novo saber sobre a forma, que não parta de sua concepção como estrutura definida e particularizada, mas se deixe guiar por outros parâmetros. Notavelmente, o pensamento de Bataille, que desenvolverá uma percepção da forma como materialização do trabalho do informe : constatação que desafia o princípio de “que cada coisa tenha sua forma” 13 – pressuposto que estabelece uma relação unívoca entre forma e identidade, e possibilita a distribuição dos seres em classes que os definem.

Esta problematização da concepção de forma é empreendida pelo pensador francês – como exercício que extrapola a mera elaboração teórica para se concretizar em experiência – em Documents . A revista, dirigida por Bataille, era orientada por um projeto multidisciplinar, acolhendo temas diversos como a arqueologia, as belas artes e a etnografia, e tinha como fundamento um trabalho de articulação de texto e imagem que, deslocando e pondo em contato elementos díspares, criando associações inusitadas entre eles e desconstruindo sua disposição e seu sentido canônicos, trazia à tona relações perturbadoras entre seres e coisas. Esta montagem irônica, na qual a diferença desempenhava papel tão importante quanto o da analogia, se baseava numa operação com as formas: no plano das formas e não naquele dos sentidos é que Bataille ia buscar os elos e as razões de suas perversas articulações, explorando, por exemplo, as antinomias fisiológicas das flores, a fantasmagoria visual de um dedão do pé, o fantástico de um olho que se transforma em monstro devorador numa gravura de Grandville, a redução ao informe de corpos de homens e animais abertos em cerimônias sacrificiais. Formas

12 « une nouvelle façon de penser les formes, processus contre résultats, relations labiles contre termes fixes, ouvertures concrètes contre clôtures abstraites, insubordinations matérielles contre subordinations à l’idée. » Georges Didi-Huberman. La ressemblance informe ou le gai savoir visuel selon Georges Bataille, 2003, p. 22. (Tradução nossa) 13 « que chaque chose ait sa forme » Georges Bataille. Documents , 1968, p. 178. 23 levadas ao seu limite, rompidas em seu fechamento, corrompidas em sua idealidade abstrata, transformadas, deformadas, desastradas . Como analisa Georges Didi-

Huberman,

Bataille quis produzir na revista que ele dirigia uma heurística do desastre, e mais precisamente um conhecimento – fatalmente paradoxal, fatalmente acidental – das formas do desastre : estas formas que ele procurava por toda parte, em todos os níveis da realidade ou da representação, no presente mais próximo ou no passado mais longínquo. 14

As formas do desastre são, porém, formas também do desejo. No processo de sua destruição, “um limite se apaga (...), mas, no mesmo momento, um limiar se abre” 15 .

Desafiadas em sua integridade, destituídas de sua identidade, revelando-se frágeis e incompletas, estas formas reconquistam, embora vicariamente – ou, melhor dizendo, virtualmente, pois se trata de um trabalho de imagem, como já veremos – a liberdade da matéria indistinta, a potencialidade de assumir qualquer outra forma, de se tornar qualquer outra coisa. Citando novamente Didi-Huberman, “se as formas têm o poder do informe (...), isto significa que elas têm o poder de atravessar os reinos, os gêneros e toda sorte de ‘ordens’ que pressupõem uma designação de identidade.” 16 Deste modo, segundo uma muito batailliana lógica dialética, as formas sacrificadas, vítimas do desastre, são investidas de desejo, e se lançam numa busca erótica pela plenitude perdida que põe em questão toda ordem constituída, e subverte toda hierarquia.

Assim o fazem as estrelas, as enguias, as máquinas de mármore de Jai Singh recolhidas por Cortázar no mosaico em movimento que é Prosa del observatorio :

14 « Bataille a voulu produire dans la revue qu’il dirigeait une heuristique du désastre, et plus précisément une connaissance – fatalement paradoxale, fatalement accidentelle – des formes du désastre : ces formes qu’il recherchait partout, à tous les niveaux de la réalité ou de la représentation, dans le présent le plus proche ou dans le passé le plus lointain. » Idem, p. 149. (Tradução nossa) 15 Georges Didi-Huberman. O que vemos, o que nos olha , 1998, p. 232. 16 « Si les formes ont le pouvoir de l’informe (...), c’est qu’elles ont les pouvoir de traverser les régnes, les genres et toutes les sortes d’ supposant une assignation d’identité. » Georges Didi-Huberman. La ressemblance informe ou le gai savoir visuel selon Georges Bataille, 2003, p. 199. (Tradução nossa) 24 fragmentos de mundo arrancados ao seu lugar próprio e lançados numa esteira de múltiplas associações e transformações. Formas cindidas, minadas em sua identidade, abertas à alteridade, lugares da transgressão que se fazem também lugares do pensamento. Focos de um exercício reflexivo, auto-reflexivo: pensamento crítico da forma pela forma baseado numa crise da forma.

A experiência da forma como lugar de abertura crítica e, portanto, de reflexão, fundamenta a obra de Cortázar, constituindo um princípio essencial de sua poética.

Avessa a abstrações e vôos metafísicos, sua literatura lida com o concreto, com a materialidade das coisas. É neste plano da fisicalidade que seu projeto utópico se manifesta: não como transcendência, mas como transformação: trabalho de formas que se põem em questão e engendram a partir de si mesmas um mecanismo de reflexão.

Este trabalho com as formas encontra sua expressão artística – retórica e plástica – em estruturas a que Walter Benjamin chamou “imagens dialéticas”, a manifestação possível da aura na modernidade. O sentido da aura e da transformação de sua experiência no mundo moderno é uma das questões que mais interessaram a Benjamin ao longo de suas reflexões teóricas. A ela o filósofo alemão retorna repetidas vezes, em textos escritos em momentos distintos e abordando temas diversos. Lançando-lhe diferentes olhares num exercício de multiperspectivação sempre renovado, produz um conceito (melhor seria dizer uma concepção, forma ativa que conserva o sentido de uma ação em curso) aberto, vasto, plural, que, mais do que estar sujeito a, propõe discussões e releituras. Aceita pelo teórico de arte francês Georges Didi-Huberman, esta provocação intrínseca ao conceito rende uma interessante reinterpretação da aura, baseada na análise de artes plásticas. Didi-Huberman supera sua compreensão mais rasa como estatuto de 25 elevação ou sacralidade que cerca a obra de arte e o explora, sobretudo, naquilo que nele fala de uma experiência especial de percepção, de um modo singular de relação entre homem e mundo calcado numa orientação analógica e manifestado como uma operação mimética de produção de imagens. Evocando sua condição dialética, atribui-lhe uma virtude reflexiva, uma vocação de autenticidade e uma potencialidade de intervenção.

Como produto destas qualidades, da manifestação moderna, secularizada, da aura, surgiriam as chamadas “imagens críticas” ou “imagens dialéticas” , formas legítimas, anti-alienadas, de apreensão da realidade pelo sujeito.

A transfiguração do real em “imagens críticas” parece constituir uma estratégia fundamental da literatura de Cortázar. Ela se constitui como busca por uma experiência outra – mais autêntica – do real, mas não aspira a uma redentora transcendência, que seria, por fim, apenas uma ilusória obliteração da realidade histórica; quer, sim, fazer-se um meio de reordenação do real, uma reflexão crítica acerca do mundo em que está inserida e ao qual não pode escapar: projeto utópico, sim, mas ainda, e sobretudo, humano – realizado pelo homem e visando a ele.

Fundada nesta ética, a opção – lógica, enfim – por uma estética que se baseie num modo de lidar com o mundo que permita transformá-lo a partir de seus próprios elementos, reais, concretos: é sobre eles que recai o olhar, é sobre eles que se escreve.

Este olhar e esta escrita, porém, são modos de ver e de pensar reflexivos, críticos; transformadores do real, sim, mas também permanentemente ponderadores e transformadores de si mesmos. Trabalho de constante dialética que a forma tensa da imagem crítica opera, a dobrar-se sempre sobre si mesma para apontar para algo que nela 26 não está, que nela existe apenas como vazio, carência, perda ou desejo. Dinâmica de busca que se cristaliza numa forma.

Forma que, produto de uma maquinaria investida de desastre e desejo, constitui o núcleo estrutural e semântico da Prosa del observatorio : texto organizado como um

“sistema de imagens” 17 , regido por uma escritura que parte delas como de exempla para propor uma nova ordem de mundo (uma espécie de discordia concors , como o metafórico encontro de enguias e estrelas), baseada numa nova relação entre o homem e a realidade que no espaço da arte se traduz como um outro modo de ver as coisas, como um outro discurso sobre elas. Olhar e discurso fundados numa concepção analógica do real, que rejeita o pensamento racionalista, objetivador e segregatório hegemônico no

Ocidente e celebra uma percepção do mundo como imagem, um discurso que fale por imagem.

Num tom que muitas vezes a aproxima do manifesto, a Prosa del observatorio anuncia e dá início a esse projeto. Propõe a busca por uma nova realidade, fundada na harmonia do diverso, movimento enunciado ao longo do texto e condensado em cada uma das imagens que o compõem; dialéticas, elas encenam, em sua forma mesma, a proposta do texto como um todo, a operação de sua maquinaria: o esforço de abrir uma passagem no mundo conhecido para um outro estatuto de realidade, não místico ou transcendente, mas ainda construído pelo homem a partir dos elementos concretos de que dispõe. Realidade vislumbrada na paisagem textual de enguias e estrelas e no cenário fotografado dos observatórios – “imagens críticas” que não cedem à morte simbólica de dizer o outro anulando-se. Que evocam a utopia, mas permanecem tautologicamente

17 A expressão é utilizada pelo próprio Cortázar num breve comentário sobre Prosa do observatório feito em entrevista a Ernesto González Bermejo. Conversas com Cortázar , 2002. p. 19. 27

(desastradas, mas desejantes) sendo o que são: peixes que migram do Atlântico para os rios da Europa e de volta ao oceano onde se reproduzem e morrem, numa vida que é busca constante; astros distantes cujas órbitas Jai Singh queria conhecer; e, sobretudo, palavras que desejariam ser estes peixes e estrelas mesmos que dizem, mas se assumem e se pensam como palavra no seu drama dicotômico de linguagem. Gesto de reflexão que está também nas fotografias de observatórios que enunciam como busca continuada o desejo cósmico que parece ser o sentido da Prosa del observatorio como um todo.

Cortázar não ilustra seu livro com fotos de estrelas, imagem, talvez, de uma busca que alcança seu fim; também não o ilustra com foguetes ou naves espaciais que pudessem tirar o homem da Terra e elevá-lo aos céus; ilustra-o com observatórios que, por mais proeminentes que sejam, no solo permanecem, à espera dos astros que neles venham refletir-se, e, apenas como luz ou sombra – figurações da ausência –, podem conter estrelas. Imagem de uma utopia na Terra, projeto de autoria humana, baseado numa reflexão do homem sobre seu próprio mundo e a relação que com ele estabelece.

Móvel de toda a literatura cortazariana, este projeto que poderíamos classificar como político – no sentido amplo do termo –, não se faz ouvir em sua obra na forma fácil do texto panfletário. Mesmo quando assume mais abertamente seu engajamento político e o de sua literatura 18 , Cortázar a preserva como espaço fundado no estético, no erótico, no lúdico; interlúdio – ainda que não-alienado – do mundo; forma de beleza que se faz necessário repouso do guerreiro 19 , como escreve o próprio autor no prólogo a seus

Territorios . Portanto, se o compromisso ético-político aí se insinua – e o faz – não é na

18 Algo que acontece sobretudo em El , publicado em 1973. 19 Julio Cortázar. Prólogo a Territorios , 1998. p. 7. 28 forma crua do discurso de palanque, mas artisticamente traduzido em recursos estéticos, como o fantástico, a paródia, a “imagem crítica”.

Essa articulação entre fazer estético e compromisso ético-político é uma constante da obra de Cortázar, mas a Prosa del observatorio parece-nos um texto especialmente interessante para compreendê-la, sobretudo a partir de uma declaração feita por Cortázar a Ernesto González Bermejo a respeito da obra: “Entendo como poema até mesmo textos escritos com o intuito de comunicar algo, como é o caso de Prosa del observatorio . [...]

O funcionamento [do texto] se faz por analogia; há um sistema de imagens, de metáforas e de símbolos e, acima de tudo, a estrutura de um poema.” 20 . Reconhecendo não apenas o estatuto literário, mas também a construção poética do texto, o que o tornaria possivelmente ainda menos apto à sua declarada finalidade comunicativa, o comentário de Cortázar parece expor uma aparente incoerência entre a “intenção” e a realização discursiva da Prosa del observatorio . A suposta contradição, no entanto, se justifica dialeticamente se pensada a partir da exigência barthesiana de uma “responsabilidade de forma”. De acordo com este conceito, um discurso que se queira desafiador, renovador, utópico não se pode deixar trair por uma forma conservadora, referendária dos valores da tradição que desafia. À luz da reflexão de Barthes, o refinamento formal da Prosa del

Observatorio torna-se não um paradoxo em relação à sua intenção comunicativa, mas, antes, a condição necessária ao bom êxito de seu projeto político: proposta de uma reordenação do real, revolução a ser executada por meio da imaginação e seu produto: a imagem. “Imagem dialética”, crítica de si mesma, construída como objeto de reflexão e instrumento político de transformação, potência ética que lhe é conferida pelo trabalho estético que a suporta.

20 Julio Cortázar apud Ernesto González Bermejo, Conversas com Cortázar , 1999. p. 19. 29

Representação estética de formas abertas, em aberto, em processo, a “imagem dialética” preserva e perpetua, o mais ativamente possível, o germe de crítica e transformação que incorpora. Todo o exercício de Prosa del observatorio se faz disseminação deste gesto original. Explorando as imagens e as palavras que o povoam, testando-as em suas múltiplas possibilidades de evocação e associação, o texto se faz verdadeiro laboratório de formas e sentidos, trabalho de imaginação e composição permanentemente em curso. Crônica de um poema a se criar, o texto de Cortázar se faz poema em prosa: forma híbrida, cindida, a desafiar seus próprios limites. Autêntico

“informe” batailliano em inscrição textual, o poema em prosa, evitando uma certa fixidez

– ou maior estabilidade – própria do poema em versos (sobretudo metrificado), aparentaria o caráter provisório e inacabado daquilo que está ainda a tomar forma, a mudar de forma. Seria, assim, escrita de sua própria escrita, escritura que se pensa a si mesma em sua elaboração. Nenhum outro gênero seria, talvez, mais adequado à expressão literária de “imagens dialéticas”.

Baudelaire, que iniciou a tradição literária do poema em prosa, julgou que seria este o gênero de dicção poética mais próximo à vida moderna e o ideal para representá-la.

Transpondo para a poesia a fluidez da prosa, suas tonalidades múltiplas e sua capacidade de se apropriar de todo tipo de material da realidade, o poema em prosa seria capaz de captar os ritmos diversos e toda a amplitude de experiências do mundo moderno em constante transformação, transfigurando-o em imagens dialéticas e lançando-o numa esteira de reflexão. Dessacralizado e afeito ao cotidiano, ao prosaico , mesmo ao desprezível; desvencilhado do caráter aurático de elevação que ainda cingia (agora para mal) as formas clássicas da poesia; e envolto numa aura de outra espécie, o poema em 30 prosa baudelairiano se faz instrumento de crítica da realidade presente e de pensamento sobre a condição do homem na realidade moderna.

Com Rimbaud e Mallarmé, perpetuadores da tradição de Baudelaire, a nova forma tem enfatizada sua potência desconstrutora e, em direta proporção, sua virtualidade utópica. Criando um mundo reordenado com fragmentos de imagem e de linguagem, estes poetas postulam uma realidade transformada, que se sabe, no entanto, concebível apenas no espaço de seus poemas, onde, frágil e provisória, é apenas vislumbrada.

Apresentada honestamente em “imagens críticas”, que evocam mas não restituem um real que, no mais, é ainda projeto inconcluso e impossível enunciado na forma aparentemente acidental e inacabada do poema em prosa.

Herdeiro da poesia problemática de Baudelaire, Rimbaud e Mallarmé, Cortázar retoma, em Prosa del observatorio , a composição – com todo o valor estético agregado ao termo – de um mundo novo por meio de um exercício de fragmentação, reflexão e imaginação utópica. Seu projeto toma forma em “imagens dialéticas” reunidas, associadas umas às outras e pensadas num poema em prosa. A empresa de Prosa del observatorio é, porém, mais ambiciosa. O livro concretiza visualmente a impressão de fragmentariedade e inacabamanto própria ao poema em prosa intercalando ao texto as fotografias – também elas “imagens críticas” – dos instrumentos astronômicos de Jai

Singh. A articulação (ou não) do texto e das fotos fica por conta do leitor, que tem diante de si, portanto, uma obra aos pedaços em cuja montagem deve auxiliar. Acolhendo formas abertas e criando-se a partir delas, o livro de Cortázar se cria, assim, como “obra aberta”. 31

O conceito de Umberto Eco define certas produções estéticas musicais, visuais ou literárias que seriam caracterizadas por uma relativa indeterminação de formas. Segundo o teórico italiano, estas obras

não consistem numa mensagem acabada e definida, numa forma univocamente organizada, mas sim numa possibilidade de várias organizações confiadas à iniciativa do intérprete, apresentando-se, portanto, não como obras concluídas, que pedem para ser revividas e compreendidas numa direção estrutural dada, mas como obras “abertas”, que serão finalizadas pelo intérprete no momento em que as fruir esteticamente. 21

São, portanto, estruturas lacunares, fragmentárias e inacabadas, cujos elementos constitutivos propõem uma multiplicidade de relações que conduzem a diferentes conformações – nenhuma definitiva ou soberana. Sua forma é, assim, postulada como um campo de possibilidades de configuração e de sentido, escapando a determinações de identidade e de classe.

Assim é Prosa del observatorio . Máquina de imagens, caleidoscópio de signos que se cruzam em inesperadas e múltiplas associações. Cenário complexo de um mundo a reordenar-se numa operação em que todo leitor é intimado a tomar parte. Grande obra utópica que investe nos poderes da imaginação, da reflexão e da escritura visando a uma transformação radical da realidade.

Sobre este trabalho

A reflexão sobre o processo de transfiguração do real em imagem, praticado e pensado na Prosa del observatorio , gesto essencial de sua maquinaria, é o foco desta

Tese, em que pretendemos analisar as diferentes imagens – verbais e fotográficas – em torno das quais se organiza o livro, observando de que modo cada uma delas, bem como

21 Umberto Eco. Obra aberta , 2005, p. 39. 32 o sistema em que interagem, parece, por sua estrutura, seu sentido e seu exercício de representação/deslocamento do real, já encenar no plano discursivo o projeto de transformação da realidade prenunciado pelo texto. Com base no estudo destas imagens, esperamos poder relacionar a proposta estética de transfiguração realizada na Prosa del observatorio ao projeto “político” deste texto e da literatura cortazariana como um todo: uma reordenação do mundo e das relações entre os seres que o habitam.

A análise que este trabalho propõe não tem como foco isolado uma análise puramente estética do fazer artístico de Cortázar; visa também a estabelecer relações entre esta sua prática estética – sua construção discursiva, os recursos que emprega, sua forma – e os princípios filosóficos, éticos e políticos que a suportam: a necessidade de um pensamento sobre a história e o mundo, uma busca de liberdade em sentido amplo, um impulso revolucionário que se inicia no texto e se expande para além dele. Como guias para este estudo em que se cruzarão, portanto, o pensamento sobre o estético e o histórico, elegem-se construções teóricas que apontam para este exercício e o praticam: as reflexões de Michel de Carrouges, Gilles Deleuze e Felix Guattari sobre a máquina, mito da modernidade com suas potencialidades dialéticas de criação, reprodução e subversão; a concepção do que seria uma “escritura do desastre”, segundo Maurice

Blanchot; as reflexões de Walter Benjamin a respeito da “imagem dialética” e os desdobramentos operados sobre este conceito por Georges Didi-Huberman a partir de um diálogo estabelecido com as Artes Plásticas, a Psicanálise e o pensamento de Georges

Bataille; o pensamento do próprio Bataille sobre o erotismo e sua elaboração conceitual sobre a forma , que articulamos à reflexão de Umberto Eco sobre a obra ; e as proposições 33 de Roland Barthes sobre a escritura como potência de deslocamento e a necessária articulação entre forma literária e compromisso político.

Nosso trabalho recorre ainda a outras obras de Cortázar – seus escritos ficcionais, seus ensaios, seus textos de crítica de arte – e também à de outros artistas que, num paralelo mais ou menos direto com o autor, auxiliam-nos a pensar o lugar, o estatuto e o sentido de Prosa del observatorio e do pensamento estético e ético que nele se desenvolve. Assim, recorremos ao Barroco e ao Romantismo Alemães, e à lírica moderna de Baudelaire, Rimbaud e Mallarmé, a fim de ter uma visão que se extenda além da teoria da “imagem crítica” benjaminiana. A obra desta tríade de poetas nos apresenta ainda os fundamentos do poema em prosa, forma híbrida eleita por Cortázar para o texto de Prosa del observatorio , e cuja escolha, longe de ser aleatória, implica o compromisso com uma certa concepção do mundo e da arte, indissociáveis numa forma poética que nasce – com

Baudelaire – votada a captar e traduzir em poesia a experiência múltipla e fragmentária da realidade moderna. Consciência e comprometimento que parecem determinar também a composição geral dessa obra de Cortázar, baseada na articulação de elementos tão diversos – enguias e estrelas, sultão astrônomo e ictiólogos, palavras e imagens – que nos leva a pensar no collage que cubistas e surrealistas tanto prezavam como modo de a um só tempo refletir sobre a realidade que tinham diante de si e transformá-la.

Com estes e outros diálogos, pontes que se lançam em diversas direções, constrói- se este trabalho sobre um livro-máquina que se quis, ele próprio, lugar de encontros, de relações, de olhares cruzados e reflexão dialogada.

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Nota sobre a organização

Como uma observação final àqueles que iniciam a leitura deste trabalho, cabe fazer um breve anúncio e uma ressalva quanto à sua organização. A tese é composta por três capítulos: “Manual de instruções”, “O dedo e a lua: uma história de bobos” e “A gesta da imagem”. O primeiro investiga a poética de elaboração da imagem cortazariana, apresentada alegoricamente em Prosa del observatorio ; o segundo se detém sobre a forma desta imagem e da construção textual que em torno dela se cria no livro de

Cortázar; o terceiro explora a base ética e o possível alcance político desta obra.

Apesar de constituírem ensaios relativamente independentes – cada um com seu núcleo próprio de sentido desenvolvido o mais exaustivamente possível em sua (cara) inesgotabilidade – estas diferentes partes do texto logo se revelarão interligadas, e não só por uma mais tradicional e esperada linearidade seqüencial como ainda por cruzamentos que se dão – explicitamente ou não (embora tenhamos tentado chamar atenção para eles o mais das vezes) – em diferentes momentos de seu desenvolvimento. Assim, neste estudo de uma obra cuja concepção está ligada à forma que, por sua vez, é em si mesma pronunciamento ético, as reflexões traçadas em diferentes momentos do texto se sobrepõem, se comunicam e se completam, tecendo uma trama, que será, possivelmente, a melhor imagem para este trabalho que sobre o trabalho da imagem se detém.

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1. MANUAL DE INSTRUÇÕES

Preâmbulo

Em “Queremos tanto a Glenda”, a afetuosa e terrível ironia de Cortázar nos apresenta o drama dos fãs de uma atriz famosa que, muito devotados a ela, assumem a nobre responsabilidade de melhorar seus filmes por meio de alguns pequenos ajustes: cortar cenas desnecessárias, remontar seqüências excessivamente previsíveis, modificar desfechos. Amoroso esforço que implica diversas dificuldades, como conseguir acesso a todas as cópias de cada filme e lidar com a boa memória de alguns espectadores que, alheios ao importante trabalho em curso, acusam publicamente as alterações. Nada, porém, que possa enfraquecer a determinação dos fãs de alçar à perfeição a obra de seu

ídolo. Recém completada, porém, a difícil empresa é posta em risco por ninguém menos do que a própria Glenda, que, inesperadamente, decide voltar a filmar. Percalço diante do qual resta apenas uma coisa a fazer: matá-la, pois, como sentencia o desfecho do conto,

“no se baja vivo de una cruz” 22 .

A perversa concretização ficcional da metáfora barthesiana da morte do autor encenada por Cortázar nos encoraja a levar a cabo a idéia de um inofensivo – e, queremos crer, providencial e bem-vindo – acréscimo à obra deste escritor que, afinal, sempre concebeu seu leitor ideal como uma espécie de co-autor de sua obra, personagem ativo que dela participasse preenchendo-lhe lacunas, montando-a qual quebra-cabeça com múltiplas soluções, inventando-lhe significados novos. Sentindo-nos, portanto, até certo ponto autorizados – e somente porque queremos tanto a Cortázar – protocolamos a

22 Julio Cortázar. “Queremos tanto a Glenda”, in: Cuentos completos , v. 2, 1996, p. 337. 36 seguinte observação: é de surpreender, parece-nos, que não se tenham incluído no

“Manual de instrucciones” das Historias de Cronopios y de Famas alguns itens fundamentais. Neste manual às avessas que se embate contra o hábito e ensina a desaprender – empreendimento “contra o pragmatismo y la horrible tendência a la consecución de fines útiles” 23 –, deveria haver espaço, por exemplo, para umas

“Instruções para montar um caleidoscópio” (de que se poderiam derivar outras instruções para brincar com as formas do mundo) que fizessem justiça a esse objeto tão caro a

Cortázar, que lhe serviu de modelo para a utopia como sua própria obra a proclamava; maravilhoso mecanismo que transforma o olhar, que põe diante dos olhos uns poucos fragmentos desprezíveis do mundo e lhes revela imprevisíveis, cambiáveis, abstratas paisagens de formas e cores, imagens de um universo livremente reordenado.

Diante de tal ausência injusta, caberia um reparo.

1.1 Instruções para montar um caleidoscópio (ousadia em forma de pastiche)

Não é muito o material necessário: um tubo cilíndrico e dois círculos de papel ou plástico para fechar suas extremidades – um translúcido, outro obscuro, no qual se deve fazer um orifício bem ao centro; espelhos dispostos em seu interior ao longo do comprimento; e uns poucos pedaços de vidro colorido, miçangas, confeitos, sementes, grãos, ou outros destes pequenos objetos cujas ínfimas dimensões mal comportam tal designação, mas não merecem um nome só para si.

O kit poderá ser comprado em boas lojas de brinquedo (os adultos não desconfiam, já se esqueceram, do poder que deixam nas mãos dos pequenos), de onde

23 Julio Cortázar. Historias de Cronopios y de Famas . In: Cuentos completos , v. 1, 1996. p. 427. 37 virá embrulhado em papel colorido, acompanhado de explicações de que, já se sabe, ninguém precisará, pois aqui as tem, mas enfim, neste mundo tudo se quer bem explicado. Ou, com muito maior diversão e aventura, e bem pequeno risco, poder-se-á recolher tudo de que se precisa em casa mesmo, ou no quintal, se houver: um pedaço de cano ou um rolo de papel usado, uns cacos do espelho quebrado que à tia ainda renderá bons anos de azar, uma cuidadosa vistoria pelo chão da cozinha, do quarto de costura ou da gaiola dos periquitos hão de bastar. Com tudo reunido, você irá a um canto sossegado e, com bem pouca habilidade artesanal e uns pingos de cola, far-se-á demiurgo, mestre das formas e das cores do mundo.

Montado o caleidoscópio, sustente-o diante de um dos olhos (à sua escolha) com uma das mãos (também à sua escolha), erga-o em direção à luz e, com movimentos concertados do polegar e do indicador, gire-o lentamente. O que se verá são as leis da física óptica em ação, mas é também um miraculoso espetáculo de formas a se combinar e se converter umas nas outras, mosaicos efêmeros e irrepetíveis; buquês de flores fantásticas, telas que ainda nenhum pintor expôs, céus de astros coloridos fora do alcance de qualquer telescópio, um universo particular que se desdobra, até onde a vista alcança, no interior de um cilindro espelhado.

Apenas não deixe que o vejam: condenações e zombarias terríveis esperam aqueles que em pleno dia cheio de ocupações se perdem a olhar admirados pelo orifício de um caleidoscópio. Impossível que saibam a verdade do que ali se passa, impossível que sequer suspeitem o trabalho de composição e decomposição, o ritual de criação e destruição, a dança de morte e vida em que se empenham as formas ali dispostas, fragmentos dispersos do mundo aos pedaços que provisoriamente se reúnem em 38 mosaicos a se fazer e desfazer, vislumbres do concerto universal a se reordenar no interior do brinquedo.

Mas não se inquiete: quando você estiver quase a perceber a grandiosidade disso que o caleidoscópio lhe revela, virá alguém chamá-lo para o jantar ou para qualquer outra coisa e, cortês e solícito, você deixará de lado esta máquina maravilhosa de ver, esta miniatura do mundo que suas próprias mãos puseram a girar. Tão poderoso e tão inofensivo, o caleidoscópio permanecerá então inerte no fundo de alguma caixa ou no canto de uma estante, até que alguém por acaso o veja e se lembre de seu segredo, apenas para esquecê-lo novamente.

A Cortázar agradava descobrir nos objetos mais comuns uma certa fantasmagoria, um viés mágico que, alheio ao valor de uso das coisas, fizesse delas ponte a ligar diferentes dimensões do sensível, chave a abrir na realidade conhecida e costumeira passagens para um espaço mais amplo, ainda real, porém mais livre, regido já não pelos ditames da razão, e sim pelos poderes da imaginação, do sonho, do desejo. Destino utópico de toda a sua escritura, paisagem que vislumbra nos observatórios de Jai Singh, cenário que anuncia em seus contos fantásticos, território cujo mapa recebe por herança de românticos, surrealistas e dos escritores por ele próprio denominados poetistas 24 . De um Novalis que pressente que “está apenas na fraqueza de nossos órgãos que não nos

24 Cortázar denomina Poetismo à corrente literária constituída nas primeiras décadas do século XX por autores como Proust, Joyce, Rilke e Virginia Woolf, cujos romances seriam verdadeiras experiências poéticas, concretizando uma união até então impensável da narrativa e da poesia, apresentando situações não mais simplesmente representadas por meio de linguagem, mas, efetivamente, constituídas por uma escritura que se faz poética. Julio Cortázar. Teoría del tunel . Obra crítica , v. 1, 1994. 39 vemos em um mundo feérico” 25 ; de um Aragon que suspeita “na inquietação dos lugares fechaduras que se trancam mal sobre o infinito” 26 ; de um Rilke cujo Malte Laurids

Brigge experimenta a irrupção do estranho, do terrível, da perversão naquilo que lhe é mais familiar 27 .

Como eles, Cortázar e suas personagens querem intuir os mistérios por trás da aparência serena e servil dos objetos, da beatitude dos lugares. Diante de seu olhar, imbuído do que chamou uma concepção poética do mundo – uma percepção do mundo por imagem, por analogia – as coisas se deslocam de seu contexto habitual e se desdobram, têm rompido seu véu de univocidade e revelam dimensões secretas, sentidos outros para além daquele determinado por sua função ou por sua história, e se fazem, desde sua natureza banal, desde sua existência prosaica, figuras de uma nova mitologia, fundada no desastre e no desejo. 28 Assim as amarelinhas transpostas das calçadas de Paris para as páginas de Rayuela , versão mundana, de humano traçado, do grafismo metafísico das mandalas indianas, expressão do sagrado. Assim também as enguias e os instrumentos astronômicos de Jai Singh, convertidos em alegorias do utópico em Prosa del observatorio . E o caleidoscópio, que, não só exemplo a mais deste processo de transformação do real por meio da reordenação dos elementos que o constituem, se faz modelo e símbolo desta poética, encenando seu trabalho de fragmentação, deslocamento e reordenação, e evocando, na dança de seus fragmentos coloridos, de suas figuras que continuamente se formam e se deformam, o evento aistórico do desastre e a vocação

25 Novalis. Pólen , 2001, p. 158. 26 Louis Aragon. O Camponês de Paris , 1996, p. 44. 27 Rainer-Maria Rilke. Os cadernos de Malte Laurids Brigge , 1996. 28 Para uma análise mais aprofundada desta poética de desdobramentos na obra de Cortázar, bem como sua relação com o Romantismo, o Surrealismo e o Poetismo, cf. nossa dissertação de mestrado: Mônica Genelhu Fagundes. Literatura como caleidoscópio : mosaicos do cotidiano em Julio Cortázar e Clarice Lispector, Rio de Janeiro: UFRJ, Faculdade de Letras, 2004. 40 humana para o desejo que lhe servem de princípios. Que é preciso continuamente passar pelo desastre do mundo aos pedaços e investir no desejo das combinações para se construir a utopia dos mosaicos: eis o que o caleidoscópio ensina, qual ritual que se faz jogo. À sua imagem, a literatura de Cortázar se inscreve no mundo do desastre, incorpora a si a experiência do desastre e, a partir daí, se empenha na busca da utopia como projeto terreno, expressão de humano desejo.

É ao Oliveira de Rayuela que se anuncia o saber de que assim deveria ser feito, não pela voz de qualquer anjo descido dos céus, mas pela experiência mesma do mundo em seu aspecto menos nobre, num espaço de desastre em que, todavia, se verá surgir o desejo. Como numa daquelas epifanias que tinha Joyce ao andar pelas ruas miseráveis de

Dublin ou numa daquelas iluminações profanas 29 que experimentavam os surrealistas ao caminhar pelas passagens de Paris condenadas à demolição, é num meio corrompido, abandonado, marcado pela ruína que à personagem de Cortázar será feita uma desastrada revelação na forma de um caleidoscópio.

Caminhando certa noite às margens do Sena, junto aos clochards , um Oliveira frustrado e desiludido relembra a idéia do seu “kibbutz do desejo”, ponto de chegada de uma busca que é utopia em si mesma.

Kibbutz del deseo, no del alma, no del espíritu. Y aunque deseo fuese también una vaga definición de fuerzas incomprensibles, se lo sentía presente y activo, presente en cada error y también en cada salto adelante, eso era ser hombre, no ya un cuerpo y un alma sino esa totalidad inseparable, ese encuentro incesante con las carencias, con todo lo que le habían robado al poeta, la nostalgía vehemente de un territorio donde la vida pudiera balbucearse desde otras brújulas y otros nombres. 30

29 A expressão é usada por Benjamin para se referir à percepção surrealista no ensaio “O Surrealismo: o último instantâneo da inteligência européia”, in: Walter Benjamin. Magia e técnica, arte e política, 1994, p. 23. 30 Julio Cortázar. Rayuela , 1996, p. 170. 41

Espaço utópico que neste mundo mesmo se teria de buscar, de se construir pelo desejo – de-siderio : impulso do homem que se desvencilha da influência dos astros para conduzir- se a si próprio, ousando confrontar-se com sua natureza inteira, corpo e alma, espera de plenitude e consciência de vazio. Exercício constante a caminho de uma terra que não é prometida, que deve ser conquistada pela transformação, sempre renovada, do mundo mesmo em que se vive, como descobrirá Oliveira – bêbado e em irônico idílio com

Emmanuelle, uma clocharde romântica – em meio àquilo que é mais miserável, mais repulsivo, mais incomodamente real. Preso por atentado público ao pudor, dentro de uma viatura da polícia que compartilha com a clocharde que canta a nostalgia de “Les temps des cerises” a altos brados e dois pederastas que admiram um caleidoscópio, o personagem intelectual de Cortázar, conhecedor de refinadas teorias filosóficas, finalmente compreende: a busca teria de seguir por outra direção.

Seria preciso aprender – reaprender – com as crianças que pulam amarelinha nas calçadas de Paris que ao Céu se chega empurrando uma pedrinha com a ponta do sapato.

E descobrir, como os pederastas sentados diante dele, que é preciso olhar pelo lado certo do caleidoscópio para que se veja nele surgir a imagem desejada. Um deles se lamenta por não ver, no fundo do tubo de metal, os prometidos “patterns pretty as can be” 31 , e o outro lhe mostra, solícito, que ele segurava o caleidoscópio do lado errado, que bastava virá-lo e acender um fósforo atrás dele para ver, na escuridão da viatura, os desenhos se formarem. Neste estranho collage (montagem bizarra de uma realidade que, caleidoscópica, produz os mais inusitados mosaicos) de clocharde bêbada que se joga ao chão a cantar, pederastas que se deliciam com “patterns pretty as can be” e jogo da amarelinha riscado nas calçadas, em que Oliveira mergulha como, segundo a anedota, o

31 “os mais bonitos desenhos” Idem, p. 178. (citado em inglês no texto; tradução nossa) 42 grande Heráclito se afundara num monte de bosta para se curar da hidropsia 32 , desenha-se para o personagem de Cortázar o mapa de um outro – talvez único possível – caminho para o seu kibbutz, percurso que tem de se render ao desastre para alcançar o desejo:

un camino al kibbutz, tal vez el único camino al kibbutz, eso no podía ser el mundo, la gente agarraba el calidoscopio por el mal lado, entonces había que darlo vuelta (…), tirarse al suelo como Emmanuelle y desde ahí empezar a mirar desde la montaña de bosta, mirar el mundo a través del ojo del culo, and you’ll see patterns pretty as can be, la piedrita tenía que pasar por el ojo del culo, metida a patadas por la punta del zapato, y de la Tierra al Cielo las casillas estarían abiertas, el laberinto se desplegaría como una cuerda de reloj rota haciendo saltar en mil pedazos el tiempo de los empleados, y por los mocos y el semen y el olor de Emmanuelle y la bosta del Oscuro se entraría al camino que llevaba al kibbutz del deseo, no ya subir al Cielo (subir, palabra hipócrita, Cielo, flatus vocis), sino caminar con pasos de hombre por una tierra de hombres hacia el kibbutz allá lejos pero en el mismo plano que la Tierra en la acera roñosa de los juegos, y un día quizá se entraría en el mundo donde decir Cielo no sería un repasador manchado de grasa, y un día alguien vería la verdadera figura del mundo, patterns pretty as can be, y tal vez, empujando la piedra, acabaría por entrar en el kibbutz. 33

Utopia de projeto humano, a que só se pode chegar rejeitando toda transcendência e percorrendo o mundo dos homens, seguindo um caminho sinalizado pela matéria de suas entranhas – o catarro, o sêmen, o cheiro natural, sem artifícios, da clocharde , a bosta

–, matéria torpe e interdita que expõe o homem – seu espírito, sua inteligência – à sua intratável fisicalidade bruta, à sua condição dual de ser dotado de alma e corpo, ser cindido que para alcançar alguma possível plenitude terá de se aceitar como forma desastrada, aberta, corpo em que opera o informe, em que se abrigam e se produzem o abjeto e o impuro, processo que não desvirtua, mas constitui o humano.

A consciência desta natureza cindida e híbrida de si mesmo se estende para além da contemplação da auto-imagem, derivando-se numa visão do mundo como espaço fragmentário, heterogêneo e não hierarquizado, ordem do desastre a que o impulso do

32 Idem, p. 175. 33 Idem, p. 179. 43 desejo – seja manifestado em termos ontológicos, eróticos, religiosos ou mesmo políticos

– buscará compreender e harmonizar, sem que o processo implique, no entanto, uma neutralização ou uma assimilação da fratura, da desordem e da diferença que se revelam princípios conformadores – e deformadores – do real. (Se na publicidade do caleidoscópio as “patterns pretty as can be” são as mais belas dentre todas, como imagem utópica do mundo são tão belas quanto possam ser, são a beleza no horizonte do possível.) Este o plano de Morelli (alter-ego de Cortázar presente no romance por meio de citações e, mais tarde, como personagem mesmo) para seu irrealizado livro, que deveria se compor como um conjunto de fragmentos livres sem declarada ligação ou necessária continuidade, para os quais o autor

parecía buscar uma cristalización que, sin alterar el desorden en que circulaban los cuerpos de su pequeño sistema planetario, permitiera la comprensión ubicua y total de sus razones de ser, fueran éstas el desorden mismo, la inanidad o la gratuidad. Una cristalización en que nada quedara subsumido, pero donde un ojo lúcido pudiese asomarse al calidoscopio y entender la gran rosa policroma, entenderla como una figura, imago mundis [sic] que por fuera del calidoscopio se resolvía en living room de estilo provenzal, o concierto de tías tomando té con galletitas Bagley. 34

Traduzir o mundo inapreensível num mosaico de caleidoscópio: forma aberta, em constante movimento, indeterminada e aleatória, constituída dos mais diversos fragmentos, contidos, mas não subsumidos, numa ordem da imagem – imagem de um cosmos de humano desejo, de humana ordenação. Operação engendrada por uma vontade de saber, uma vontade de conhecer, mas não segundo os princípios coercitivos, redutores e pragmáticos que guiam tradicionalmente a ciência. Saber de outro modo: desenvolvendo uma sensibilidade para as formas do mundo, geralmente diluídas no

“living room de estilo provençal” ou no chá com biscoitos das tias; percebendo estas

34 Idem, p. 387. 44 formas e brincando com elas, montando com elas um caleidoscópio; contemplando as múltiplas figuras que nele se formam por um jogo de olhares reflexos, proliferação de imagens numa pluralidade de formas e olhares sobre as formas, geração de um objeto polióptico e polimórfico. Plano de que Prosa del observatorio é teoria e praxis.

Fundado numa gestualidade da imagem, sobre um trabalho de abertura de sentidos sustentado pela forma, o texto pratica este exercício desde o título, já uma imagem plurissignificativa, que joga com múltiplas possibilidades de compreensão. Para tanto, seu primeiro recurso é uma ambigüidade gramatical mesmo, calcada na incerteza sobre o caráter passivo ou ativo da locução genitiva “del observatorio”. Não fosse este um texto poético, a dúvida provavelmente sequer seria levantada, afinal um observatório não fala

(e muito menos escreve), logo, não poderia ser sujeito do discurso. A Prosa seria, portanto, o que dele se diz. E, de fato, não deixa de sê-lo, sendo também, no entanto, um discurso que ele próprio parece enunciar, talvez não verbalmente, mas por meio de suas fotografias.

Decerto que também nelas o observatório seria objeto e estaríamos, assim, mais uma vez, diante de um discurso sobre ele e não por ele enunciado, não fosse o que, segundo Barthes, constitui a arte da fotografia: “anular-se como medium , não ser mais um signo, mas a coisa mesma” 35 . Magia mais do que arte, imagem que se torna manifestação daquilo que mimetiza, tornando invisível sua própria natureza (de superfície opaca fotossensível), a fotografia deixaria falar a coisa mesma, com sua própria voz. Haveria, então, uma polifonia na Prosa del observatorio , um diálogo, na acepção mais literal do termo, entre as fotografias do observatório – sua fala – e o texto de Cortázar, que, de

35 Roland Barthes. A câmara clara , 1984, p. 73. 45 certo modo, parece tentar traduzir aquilo que as fotos – ou mesmo a arquitetura ali figurada – lhe dizem , o que o observatório lhe ensina. E aqui chegamos à segunda ambigüidade perceptível no título do livro, que diz respeito ao significado do termo

“observatório”: a princípio, numa função substantiva, o parque com aparelhos de medição astronômica construído por Jai Singh, mas, se tomado como adjetivo, o ato de observar . Assim, o discurso do observatório (a própria Prosa del observatorio ) teria como tema a observação mesma, trataria de um modo de ver, ensinaria uma forma de olhar. Como um livro que se faz aparelho óptico, concretização do projeto do Livro de

Morelli.

De fato, abrir Prosa del observatorio é como olhar pelo orifício de um gigantesco caleidoscópio. No interior do cilindro, diante de múltiplos espelhos a refletir-se uns aos outros, assistimos a um espocar de imagens como fogos de artifício, a um jogo de formas que se combinam e se transformam umas às outras. Neste caso, não sementes, grãos, miçangas ou pedacinhos de papel – aleatórios cacos que se combinam em fantásticos e provisórios mosaicos virtuais como nos caleidoscópios tradicionais, mas estrelas, enguias, ictiólogos, um sultão do século XVIII e seus observatórios astronômicos, desvinculados dos astros e eleitos eles próprios objetos de observação. Fragmentos de mundo já dotados de sentido que, no entanto, por uma seqüência de operações de desagregação, deslocamento e reordenação se transformam quando lançados no interior de um aparelho óptico em que se dá um infinito jogo de reflexões e a gênese de uma nova imagem do real, que se quer mais autêntica.

Está aí delineado o projeto de uma nova máquina do mundo como a queria (e o queria) Cortázar. Cosmos humano visto desde os terraços de um observatório que, 46 desastrado, se perde das estrelas e descobre que o único céu que vale a pena buscar não está nas alturas dos astros e dos mitos, mas ao rés-do-chão, onde vivem os homens.

Mecanismo de desastre e desejo que recolhe resíduos do universo partido e faz deles peças numa engrenagem que produz sempre novas e insólitas conexões, num processo de constante transformação de si mesma, de seus próprios eixos. Trabalho artístico por excelência, como o definiram Deleuze e Guattari: “o artista é o mestre dos objetos; ele integra na sua arte objetos quebrados, queimados, estragados para conduzi-los ao regime das máquinas desejantes, cujo defeito faz parte do funcionamento mesmo”. 36 Moldadas e montadas pelo desastre, as máquinas desejantes se revelam máquinas desastradas, que

“só funcionam enguiçadas, enguiçando-se sem cessar” 37 . Ao contrário das máquinas técnicas, cujo bom funcionamento é atestado por uma plena eficácia de reprodução de acordo com uma regulação pré-determinada – produção servil e em série de um sempre- igual –, estas máquinas de outra classe prevêm o defeito; funcionam em desordem e pondo em desordem tudo o que tocam. São verdadeiros anti-mecanismos, auto-críticos e auto-irônicos, a induzir seu próprio defeito, pondo a si mesmos em curto-circuito.

Máquinas delirantes a se fazer mecanismos de subversão, como explicam mais eloqüentemente, ainda uma vez, Deleuze e Guattari:

as máquinas técnicas evidentemente só funcionam se não estiverem enguiçadas; seu limite próprio é a usura, não o defeito. (...) As máquinas desejantes, ao contrário, não cessam de se enguiçar funcionando, não funcionam a não ser enguiçadas. (...) A arte utiliza freqüentemente esta propriedade para criar verdadeiros fantasmas de grupo que curto- circuitam a produção social com uma produção desejante, e introduzem uma função de defeito na reprodução das máquinas técnicas. 38

36 L’artiste est le maître des objets; il intègre dans son art des objets cassés, brûlés, détraqués pour les rendre au régime des machines désirantes dont le détraquement fait partie du fonctionement même.Gilles Deleuze e Felix Guattari. L’Anti-Oedipe . Capitalisme et Schizophrénie, 1972, p. 39. (Tradução nossa) 37 Les machines désirantes ne marchent que détraquées, em se détraquant sans cesse. Idem, p. 14. (Tradução nossa) 38 Les machines techniques ne fonctionnent évidemment qu’à condition de ne pas être détraquées; leur limite propre est l’usure, non pas le détraquement. (...) Les machines désirantes au contraire ne cessent de 47

Subvertendo as normas de produtividade e uniformidade das máquinas técnicas, as máquinas desastradas e desejantes praticam a desconstrução e engendram a diferença.

Com a imprevisibilidade característica de seu mecanismo, agem sobre as formas corrompendo-as e alterando-as para produzir o inusitado, e a tudo contaminam com sua persistência assistemática, desorganizando classes e hierarquias, desafiando conceitos e sentidos cristalizados a partir da transformação operada sobre as formas que os sustentam.

Assim o observatório desastrado de Cortázar, construído a partir das ruínas dos instrumentos com que Jai Singh sondava os céus. Máquinas que já não funcionam como delas se espera, aparelhos obsoletos, inutilizados, que, no entanto, serão reinvestidos de desejo no texto e nas fotografias que os resgatam. Numa redenção dialética à maneira de

Benjamin, que não reconstrói ruínas, mas as redime, enquanto tais, como objetos de reflexão, Cortázar toma o que restou dos observatórios de Jai Singh e, numa operação que alia memória e imaginação, recria-os a partir de seus fragmentos, dotando-os de um poder de abertura e crítica do real, de uma potencialidade utópica de transformação de si mesmos e do cosmos reordenado cuja imagem darão a ver.

1.2 Instruções para tirar fotografias

Nas fotografias de Cortázar, os instrumentos astronômicos de Jai Singh apresentam-se como formas cindidas, que se abrem ao informe por meio de um olhar maquínico que desconstrói sua arquitetura pragmática, que os fragmenta, recortando-os e se détraquer em marchant, ne marchent que détraquées (...) L’art utilise souvent cette propriété en créant des véritables fantasmes de groupe qui court-circuitent la production sociale avec une production désirante, et introduisent une fonction de détraquement dans la reproduction de machines techniques.” Idem, p. 39. 48 revelando deles detalhes nunca vistos; que desfaz a ordem de sua engrenagem e recombina suas peças criando mecanismos impossíveis: experiências de um olhar crítico sobre as formas que ensaia outras, múltiplas perspectivas, e busca brechas de passagem, meios de acesso a um conhecimento diverso do mundo. Utopia reflexiva e transformadora.

Esta operação de abertura e reordenação das formas já se anuncia na seqüencia inicial de Prosa del observatorio , composta pelo primeiro movimento do texto escrito entremeado por duas imagens. Este fragmento introdutório do livro poderia ser pensado como uma espécie de pórtico de entrada da obra e da dimensão de realidade que nela e por ela se instaura. Portal – que na própria imagem se vê – que abre passagem para um universo reordenado.

A escadaria é parte de um instrumento astronômico, o Samrat Yantra, construído por Jai Singh com fins pragmáticos. Convertido em imagem pela fotografia de Cortázar e citado – transposto do espaço aberto do observatório indiano para um livro em que os próprios observatórios são observados, não mais produtores ou suportes de imagens celestes, mas imagens em si mesmos –, o Samrat Yantra perde, porém, tanto sua função 49 instrumental como a aparência primeira de um aparelho de observação para assumir uma outra plasticidade e outros sentidos, forjados na perspectiva da foto e na articulação desta com o texto de Prosa del observatorio .

Segundo o físico Vivendra Nath Sharma, que estudou os instrumentos construídos por Jai Singh, esse artefato funciona como um relógio de sol, sendo o horário indicado pela extremidade da sombra do gnômon (o ponteiro triangular) do instrumento refletida na superfície graduada de um de seus quadrantes (os quartos de círculo dispostos de cada lado do gnômon). 39 Os esquemas abaixo 40 ilustram a forma e o princípio de funcionamento do aparelho.

O leitor que pela primeira vez abre a Prosa del observatorio , porém, não sabe nada disso; não sabe nem mesmo onde se encontra esta construção e qual o seu propósito

(o título dá uma pista muito sutil, a ser compreendida mais tarde). Tem diante de si a imagem em sua pura visualidade. A presença dominante, imponente, de uma escadaria a ocupar a quase totalidade da fotografia, que, por sua vez, ocupa uma página inteira do livro. Retalhos do que se supõe o céu – totalmente negro, na foto em preto-e-branco 41 – de cada lado da figura, emolduram o alto da foto. A escolha da objetiva utilizada,

39 Para uma explicação mais detalhada a respeito deste instrumento, cf. Vivendra Nath Sharma, Sawai Jai Singh and his Astronomy , 1995, pp. 41-57. 40 Ambos retirados de Barry Perlus. “Architecture in the service of Science. The astronomical observatories of Jai Singh II”, in <<>>, consultado em 24/05/06. 41 Efeito necessariamente criado pelo uso de um filtro, provavelmente vermelho, na objetiva da câmera, recurso sem o qual o céu se apresenta, na revelação P&B, com um tom esbranquiçado, ou “lavado”, na expressão dos fotógrafos. 50 provavelmente uma grande-angular 42 , proporciona um distanciamento dos planos, estendendo a perspectiva, e uma deformação de massas e volumes, fazendo a escada parecer mais larga e mais alta. Também o jogo de claro e escuro colabora para o impacto da fotografia, evidenciando a construção em sua forma e conferindo-lhe mais peso e volume por meio do forte contraste estabelecido pelo céu negro e pelas sombras duras nas laterais internas da escada, em contraste com o cinza muito claro de sua superfície exterior. Esta diferença brusca de tons acentua as linhas verticais da imagem, criando-se um efeito de aumento das dimensões da construção, o que confere a ela um aspecto mais opressivo. Em contraste gráfico com as linhas verticais laterais, estão as linhas horizontais formadas pelo ângulo externo dos degraus, riscos no mesmo tom de cinza claro da superfície lateral externa da escada, que se destacam sobre o cinza escuro – tom mais neutro nesta fotografia de contrastes duros – da face vertical dos degraus. Este jogo de linhas horizontais e verticais confere à imagem uma impressão de movimento, necessariamente em ascensão, como determinam as linhas verticais da foto – linhas de fuga a guiar o olhar do observador para o alto, onde convergem num ponto de fuga já fora dos limites do quadro – e a disposição progressivamente mais próxima das linhas horizontais dos degraus. Estes elementos de composição definem a perspectiva da imagem, o ângulo de visão de baixo para cima que a orienta. Guiando-se por ele, o olhar do observador da foto alcança o topo da escadaria, onde se vê uma espécie de arco de traçado tipicamente árabe do qual aparece apenas o contorno, de uma leveza que contrasta com o peso impactante da escadaria de pedra.

Esta composição cinética da imagem confere a ela uma gestualidade de fato alegórica, transmitida do fotógrafo com sua câmera à realidade que captura, imprimindo-

42 A informação não se deve a testemunhos factuais; constitui uma dedução a partir da análise da fotografia. 51 se nela como a percepção de um instante de inércia imediatamente anterior ao movimento. O corte acima do solo, como que já a meio da escada, o grafismo e a perspectiva da foto determinam o movimento em ascensão, como se o fotógrafo estivesse a subir a escadaria. Ação em curso que se transmite a seu observador, a quem ela se mostra como um cenário em terceira dimensão que o incluísse. A imagem apresenta-se assim como uma espécie de desafio: “Subirás a escada? Esta escada da qual não conheces nada, nem o solo onde pousa nem a altura onde vai dar; esta escada que conduz ao desconhecido? Ousarás continuar este percurso começado quando abriste este livro?” E, no entanto, não há retorno. Se não se sabe aonde vai dar a escadaria, também não é possível voltar dela. O caminho indicado pela fotografia é um só: para cima, para o alto, em direção a um portal que se abre não se sabe para onde – ou talvez: para um espaço de infinito, de que não se tem qualquer referência. Espaço que, no entanto, importa em si mesmo menos do que a passagem para ele, do que o portal que a ele conduz – este, sim, visado por esta foto que, como veremos ao longo deste trabalho, poderia ser tomada como uma metáfora visual, uma alegoria de todo o projeto poético cortazariano, posto em prática no curso de uma obra que é exercício contínuo e sempre renovado de alteração das formas que constituem o real, e para a qual o aberto importa menos do que a abertura, o escrito menos do que a escritura. Aspecto notável em Prosa del observatorio , texto em constante trabalho de busca e transformação que não se prende a nenhuma estrutura fixa, mas tenta superá-las todas, fazendo-se experiência de provação no limite da forma.

Esta experiência da forma como lugar de uma abertura – de fato exercitada em

Prosa del observatorio – fundamenta toda a obra de Cortázar, constituindo o que parece ser o princípio de sua poética, tanto no sentido de fundamento filosófico-estético que esse 52 termo pode assumir, como naquele mais raso – mas nem por isso desprezível – de ponto de origem. Estes dois níveis de sentido se combinam numa declaração dada pelo escritor a Ernesto González Bermejo, em que Cortázar aponta a percepção – ou criação – de brechas na realidade como uma vivência constante e o impulso de sua criação:

Na vida aparentemente unilateral que levamos, e que nos impõe de certa forma uma inteligência pragmática, utilitária e seletiva, acontece sempre comigo, nos momentos de distração, uma coisa que é o processo inverso ao que usamos para tirar uma fotografia. Quando você vê duas imagens no visor da sua câmara, você as superpõe para que fiquem em foco e aí bate a foto. Eu, para tirar a foto, tenho que separar as imagens. Ou seja: em determinados momentos, as coisas se apartam de mim, se movem, correm para o lado e, então, desse oco, dessa espécie de interstício que eu não sei exatamente o que é, surge um estímulo que, em muitos casos, me leva a escrever , ou pelo menos me coloca em um estado de porosidade ou receptividade que faz com que me sinta incentivado a comunicar, faz com que o texto me volte mais fácil. 43

Embora esteja perfeitamente em foco, a fotografia do Samrat Yantra – bem como muitas outras que compõem Prosa del observatorio – é representação concreta de uma abertura que o olhar percebe – e constrói , como se constrói uma imagem – nas formas do real, revelando aí algo como aquilo a que Benjamin se referiu, num paralelo com a

Psicanálise, como um “inconsciente ótico”: espaço de uma ação e de uma percepção inconscientes, até então desconhecidas, ocultas ao olhar comum, que seria descoberto pela “câmara com seus inúmeros recursos auxiliares” 44 , seu olhar maquínico, seu “otro modo de mirar”. Operação por excelência da obra de Cortázar, que, fundada na cisão – nos interstícios, nos ocos do real – e produtora de formas cindidas – imagens separadas, fraturadas – se exerce sobretudo como trabalho subversivo da forma, cumprindo-se sobre a fisicalidade das coisas, sobre sua forma visível ou, mais amplamente, sensível. É neste nível do concreto que se dará início a uma subversão que atingirá, sim, idéias e conceitos,

43 Julio Cortázar apud Ernesto González Bermejo. Conversas com Cortázar , 2002, p. 37-8. 44 Walter Benjamin. “A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica”, in: Magia e técnica, arte e política , 1994, p. 189. 53 mas que se baseia numa ação sobre formas – tocadas, atingidas, violadas, mesmo. Na literatura de Cortázar, parece haver uma vontade (por vezes algo cruel) de evidência das formas, um esforço de sensorialidade que afeta os signos mais diversos – seres, objetos, palavras, texto, livro –, que são continuamente postos em questão: são subvertidos por uma operação que seria mais bem identificada como transformação : transgressão que se cumpre na forma, em sua substancialidade, em seu aspecto, em sua identidade física mesma, para só então repercutir sobre o sentido.

Este trabalho de abertura do real para o qual o próprio Cortázar usa uma metáfora fotográfica encontra um exemplo concreto e emblemático na segunda fotografia de Prosa del observatorio :

A figura do portal, que já se apresentava no alto da escadaria da primeira foto, reaparece, multiplicada e diversa, nesta segunda imagem, corte em diagonal de uma fotografia tirada com a câmera posicionada no alto, voltada para a parte de baixo do que parece ser o interior de uma sala circular com diversos portais e um chão graduado como um grande transferidor. Esta imagem é, porém, uma anamorfose provocada pelo enquadramento da foto. Seu referente real é um Jaya Prakasha, artefato desenhado pelo 54 próprio Jai Singh e considerado o mais elaborado de seus instrumentos de observação.

Ele tem funções múltiplas, tais como a localização de astros diversos ao longo do dia e, à semelhança do Samrat Yantra, a determinação do horário solar. Construídos normalmente em pares, o que permite a observação contínua dos objetos celestes no decorrer do dia e da noite, os instrumentos têm a forma de hemisférios côncavos no interior dos quais são entalhados diversos arcos segmentados, como podemos ver na fotografia abaixo, que mostra o par de Jaya Prakashas do Jantar Mantar de Jaipur.

45

A comparação desta fotografia documental – em que se verificaria um barthesiano grau zero da fotografia – com aquela tirada por Cortázar e provavelmente trabalhada em seus contrastes por Antonio Gálvez revela o truque de trompe-l’oeil da imagem incluída na

Prosa del observatorio . O que ali parecia ser espaço vazado penetrado pela luz numa parede escura se revela nesta outra foto – uma espécie de negativo da primeira imagem – espaço preenchido: segmentos de arco recobertos de mármore; e o que parecia parede construída se descobre, em contrapartida, uma série de vãos. E, no entanto, a leitura

“equivocada” da imagem a que conduzem a perspectiva e o corte da foto de Cortázar parece combinar-se ao propósito real do instrumento para compor um cenário que

45 Vivendra Nath Sharma. Sawai Jai Singh and his Astronomy , 1995, p. 157. 55 representa visualmente um até então irrepresentável lugar-entre apontado nas primeiras linhas da Prosa del observatorio :

Esa hora que puede llegar alguna vez fuera de toda hora, agujero en la red del tiempo, esa manera de estar entre, no por encima o detrás sino entre, esa hora orificio a la que se accede al socaire de las otras horas, de la incontable vida con sus horas de frente y de lado, su tiempo para cada cosa, sus cosas en el preciso tiempo, estar en una pieza de hotel o de un andén, estar mirando una vitrina, un perro, acaso teniéndote en los brazos, amor de siesta o duermevela, entreviendo en esa mancha clara la puerta que se abre a la terraza, en una ráfaga verde la blusa que te quitaste para darme la leve sal que tiembla en tus senos, y sin aviso, sin desnecesarias advertencias de pasaje, en un café del barrio latino o en la última película de Pabst, un arrimo a lo que ya no se ordena como dios manda, acceso entre dos ocupaciones instaladas en el nicho de sus horas, en la colmena día, así o de otra manera (en la ducha, en plena calle, en una sonata, en un telegrama) tocar con algo que ya no se apoya en los sentidos esa brecha en la sucesión, ( PO , p.7)

Qual inscrição explicativa gravada sobre um pórtico, estas linhas iniciais da Prosa del observatorio nos anunciam a aventura desse livro – dessa máquina do mundo –, um tanto como as terríveis palavras gravadas sobre as “Portas do Inferno” anunciaram a

Dante a epopéia que o esperava uma vez atravessada aquela passagem. É sem deixar toda esperança, porém (é o mundo da utopia e não o da eterna danação que diante dele se abre), que o leitor de Cortázar penetrará neste texto que já principia instaurando um tempo, ou, melhor dizendo, uma temporalidade própria: “Esa hora que puede llegar alguna vez fuera de toda hora, agujero en la red del tiempo”.

Sem antecedente gramatical, o dêitico “esa” indica uma hora determinada mas não especificada, e qualificada, em sua particularidade indefinida, em sua diferença já gramaticalmente marcada pelo pronome, como intervalo, como exceção mesmo: é uma hora fora de toda hora, seja por não se enquadrar numa seqüência temporal concebida como linearidade contínua, seja por subverter a percepção mesma desta abstração 56 enquanto experiência, como temporalidade homogênea e vazia (no dizer de Benjamin) manifestada na rotina do sempre igual 46 . Na excentricidade de “esa hora”, traduzida na imagem plástica de um buraco na rede do tempo, poderíamos reconhecer uma virtualidade originária, no sentido que o mesmo Benjamin deu a esta expressão:

A origem, apesar de ser uma categoria totalmente histórica, não tem nada a ver com a gênese. O termo origem não designa o vir-a-ser daquilo que se origina, e sim algo que emerge do vir-a-ser e da extinção. A origem se localiza no fluxo do vir-a-ser como um torvelinho, e arrasta em sua corrente o material produzido pela gênese. O originário não se encontra nunca no mundo dos fatos brutos e manifestos, e seu ritmo só se revela a uma visão dupla, que o reconhece, por um lado, como restauração e reprodução, e por outro lado, e por isso mesmo, como incompleto e inacabado. Em cada fenômeno de origem se determina a forma com a qual uma idéia se confronta com o mundo histórico, até que ela atinja a plenitude na totalidade de sua história. A origem, portanto, não se destaca dos fatos, mas se relaciona com sua pré e pós-história. 47

Mônada, cruzamento de passado e presente, “esa hora” originária é instante imediatamente próximo e infinitamente distante; acontecimento esperado na ausência de sua presença sempre adiada; evento desconhecido, sem referencialidade possível, mas reconhecível (como já indica a indeterminação relativa do pronome “esa”) como aquele muito aguardado da manifestação do messiânico. Momento de exceção que instaura na ordem um estado de desordem. Hora que, por engenhosidade da escritura e da imaginação de Cortázar, deriva-se em orifício , buraco a ameaçar a trama coesa da “red del tiempo”. Anúncio de uma redenção que, já sabemos, não será manifestação de transcendência alguma; que deve ser, algo ao acaso, descoberto ; e que se fará discernir por seu caráter autêntico :

o autêntico – o selo da origem dos fenômenos – é objeto de descoberta, uma descoberta que se relaciona, singularmente, com o reconhecimento. A descoberta pode encontrar o autêntico nos

46 Consciente da dimensão ditatorial e algo monstruosa do hábito, Cortázar se refere a este como “la Gran Costumbre”, aproximando-o do Big Brother de George Orwell. 47 Walter Benjamin. Origem do drama barroco alemão ,1984, pp. 67-8. 57

fenômenos mais estranhos e excêntricos, nas tentativas mais frágeis e toscas, assim como nas manifestações mais sofisticadas de um período de decadência. 48

Conforme o prenúncio de Benjamin, é no estranho e no excêntrico, no frágil e no tosco, ou nas ruínas de sofisticação em meio à decadência que Cortázar irá descobrir “esa hora orificio”, “esa brecha en la sucesión”, a passagem para o aberto, para uma realidade mais ampla cujo acesso poderá se fazer desde os observatórios de Jai Singh (espólios de um passado glorioso) ou a partir de momentos/lugares aleatórios, ao acaso. Ou não tanto: o acaso como entendido pelos surrealistas, prenhe de ofertas para quem souber tomá-las.

Não será certamente por acaso que surgem nessa seqüência de abertura do texto imagens tão caras a eles: o quarto de hotel (a habitação estranha, estrangeira, de passagem), a estação (ponto de partida para a viagem, espaço de trânsito), a vitrine (que já seduzia Baudelaire com seus objetos deslocados e expostos como espetáculo, e se tornaria cenário do maravihoso cotidiano para Aragon em Le paysan de Paris ), o cão

(lembremo-nos de “Un chien andalou”, de Buñuel, com cenários de Dalí), o café parisiense, a rua, o telegrama (e sua associação com a escrita automática), todos signos de uma possível passagem para uma dimensão de realidade em que se rompem os limites impostos pela lógica racional: a linearidade do tempo, a geometrização do espaço, a descontinuidade dos seres, para dizer com Bataille.

O Surrealismo é uma referência fundamental à literatura cortazariana, seja como prática estética, seja como ideário filosófico e político, aspectos já reunidos na aliança de imaginação e ação proposta por Breton. Aliança esta que Cortázar retoma, inscrevendo-se na tradição de uma arte que é manifestação de uma imaginação produtiva, que não se

48 Idem. p. 68. 58 limita a representar o real, mas o apresenta, criando-o num contínuo fazer e refazer.

Compromisso de uma literatura que se compraz na subversão, que se constrói como invenção e inventário de formas alternativas de pensar e de se relacionar com o mundo, com o outro .

Projeto que se pratica em Prosa del observatorio por meio da imagem, expressão

– em suas formas visual e verbal (diálogo inter-semiótico também tão caro aos surrealistas) – de uma utopia representada de modo autêntico: como busca em curso.

Busca por uma realidade ordenada segundo um princípio de conciliação do diverso que já inspirava os encontros fortuitos de um Lautréamont que celebrava a beleza da reunião de um guarda-chuva e uma máquina de costura sobre uma mesa de dissecação. Cruzamentos deste tipo, aleatórios e surpreendentes, constituíam, para os surrealistas, vislumbres de uma Supra-realidade ( Surrealité , em francês), em que já não houvesse barreiras a separar a realidade e a irrealidade, o real e o imaginário, a vigília e o sonho, a razão e a loucura, a vida e a morte. Onde não existisse distinção entre as percepções conscientes e inconscientes, produtos da razão ou do delírio, sendo todas percepções igualmente válidas de um homem enfim integral, de visão plena, num mundo inteiramente revelado.

O modo de penetração neste território anuncia-se desde o pórtico de abertura de

Prosa del observatorio . Institui-se aí a operação que em todo o livro se realizará: um trabalho de imaginação, em seu sentido primeiro de geração de imagens e em sua derivação como um pensamento que se faz por imagens , ou seja, liberta elementos de seu contexto categórico padrão e de suas relações semânticas tradicionais de semelhança ou diferença, para lançá-los a outros possíveis planos de significado e estabelecer entre eles novas estratégias de conexão. Deslocamento que não corresponde a uma abstração, mas, 59 bem ao contrário, opera por meio de concretização, ou, mais exatamente, de uma sensibilização, de uma conversão ao sensível, ao sensório, processo de evidenciação e trabalho de abertura da forma tão caro a Cortázar.

No caso das fotos, este processo se verifica sobretudo pelos jogos de perspectiva que, apoiando-se na percepção sensorial – na ilusão de óptica –, transformam a aparência dos instrumentos fotografados e agregam à sua imagem novos sentidos. É na articulação com o texto poético que estes finalmente se consumam: a imagem do portal buscado na primeira fotografia e as diversas falsas aberturas (descobertas justamente onde na realidade instrumental do aparelho elas não existem) sugeridas na segunda encontram aí uma espécie de legenda que potencializa tanto a visualidade das fotos como a semântica do texto. São ilustrações de possíveis “brechas en la sucesión”, aberturas que as imagens dos observatórios moldam e sustentam, e que o olhar maquínico empregado por Cortázar revela.

Aberturas conscientemente construídas por um gesto verbal ou fotográfico, por um trabalho da imagem que funda para si um espaço próprio – intervalar, que seja – e aí atua. A brecha se faz, então, não passagem para uma realidade transcendente, mas interrupção que se abre – ou se descobre, pois pode lá já estar, à espera de um olhar que por acaso a perceba – naquela nossa mesma realidade de todo dia, e que, no entanto, se apresenta falseada diante de nós por tanto hábito, tanto discurso cerceador, tantos nomes e números arbitrários que, codificando-a, domesticam-na e encobrem-na. Discursos que seria preciso dobrar, distorcer, deturpar mesmo, como ensaiará Cortázar com a ictiologia dos pesquisadores franceses e a astronomia de Jai Singh, ironizando e reescrevendo aquela, e fazendo uma leitura própria, algo ficcionalizada, desta; deformações nada 60 ingênuas que se verificam também na construção do sentido das duas fotos de Prosa del observatorio que estamos analisando.

Como citações, que elas, de fato, são – Susan Sontag escreve que “uma foto também poderia ser descrita como uma citação” – estas fotografias capturam (como por mágica, pensaríamos com os primeiros homens que conheceram o daguerreótipo) os instrumentos de Jai Singh 49 e os transportam para Prosa del observatorio . O transporte é, no entanto, inevitavelmente, transformação – de aparência e de sentido – e, portanto, manifestação de uma violência: necessária violência que, como veremos, está na gênese de toda imagem. Nas fotos de Cortázar, a escadaria do Samrat Yantra e o Jaya Prakasha já não são os objetos reais que eram – são ainda – em Jaipur, mas imagens deles 50 . Como instrumentos de medição e observação celeste, eles estão aí destruídos: são rastros, ruínas, traços. Mas o são num sentido benjaminiano de repositórios da memória como reminiscência, objetos anacrônicos cuja existência presente opera – como perda – e permite reconstituir – embora apenas como virtualidade – seu pretérito. Este jogo de memória e imaginação, dialética reconstrução prospectiva do passado, encena-se em

Prosa del observatorio pela interação de texto e imagem.

Se, fotografados, os observatórios de Jai Singh perdiam sua referência de sentido como tais, lidos pelo texto que os acompanha eles a recuperam, ainda que como uma espécie de memória conscientemente ficcionalizada e formulada num tom de hipótese que respeita a impossibilidade de saber que condiciona todo discurso sobre o passado.

49 Susan Sontag. Sobre fotografia , 2004, p. 86. 50 Mesmo em Jaipur estes objetos já não são o que eram nos tempos de Jai Singh. Foram muito danificados, passaram por diversas reformas e não estão em funcionamento. Quando Cortázar os visitou, em 1968, já eram apenas monumentos. Mesmo em sua realidade objetiva, portanto, poderiam ser lidos como ruínas benjaminianas. 61

Este trabalho arqueológico 51 do texto proporcionará uma leitura dupla – dialética, melhor dizendo – das fotografias, em que anacronicamente se cruzarão passado e presente para a articulação de um sentido.

Redescoberto o sentido pretérito das construções fotografadas como instrumentos astronômicos, a articulação que se faz entre as duas primeiras fotografias de Prosa del observatorio e o início de texto se revela ainda mais imbricada. Além de serem ilustrações do que constituiria este pórtico de abertura para a obra e representações visuais das brechas para as quais aí se aponta, os aparelhos fotografados cumprem – ou ao menos cumpriam, no tempo de Jai Singh – o mesmo trabalho praticado pelas primeiras linhas de Prosa del observatorio : um trabalho, já vimos, de transfiguração de elementos da realidade em imagens. Ou, no caso deste primeiro movimento do texto, de transfiguração de duas categorias da realidade em imagem: o tempo e o espaço.

De fato, tudo em um observatório (ainda que desastrado), que é, antes de mais nada, uma máquina de olhar, parece se converter em imagem. Em Prosa del observatorio , tempo e espaço se tornam tempo-imagem e espaço-imagem – tempo e espaço sensíveis, experimentados, dotados de uma fisicalidade, e reversíveis um no outro, princípio de que Jai Singh teria de se lembrar a cada vez que quisesse saber as horas, ou a posição de um astro, ou a distância a que este se encontrava da Terra examinando seus instrumentos de observação celeste. Tanto o Samrat Yantra como o Jaya Prakasha (bem como qualquer relógio de sol) são mensuradores de tempo baseados em paradigmas de espaço e mensuradores de espaço baseados em paradigmas de tempo. Tempo espacializado e espaço temporalizado é o que temos na arquitetura dos Jantar Mantares e

51 Georges Didi-Huberman relaciona o texto, enquanto trabalho da citação, à Arqueologia. 62 no trecho de Cortázar citado há pouco: um tempo como lugar (“nicho de sus horas”), em que o sujeito ocupa postos (“esa manera de estar entre , no por cima ou detrás , sino entre ” – grifos nossos), cujas horas já não se medem e identificam por números, mas se percebem por sua posição (“sus horas de frente y de lado ” – grifos nossos) – um tempo visto , convertido em espaço, um quando que se marca por um onde ; e um espaço que, por sua vez, se reverte em tempo, o onde assumindo a função do quando , um lugar sendo um momento (“su tiempo para cada cosa, sus cosas en el preciso tiempo, estar en una pieza de hotel o de un andén, estar mirando una vitrina, un perro”). Embaralhados e tornados concretos, sensíveis, tempo e espaço têm ameaçada sua dureza cartesiana inflexível para fazerem-se imagem na máquina do mundo que é Prosa del observatorio .

Concebida a partir do modelo surrealista, ela é figuração de um universo imensamente mais rico, que permanece enigmático e desconhecido, mas alcançável por meio de um pensamento poético gerador de imagens que abrem brechas na realidade restrita que habitamos para o que está além dela, bloqueado pelos véus tecidos pela razão e pelos limites de apreensão por ela impostos. Para os surrealistas, esta concepção poética do real é uma disposição do espírito que se manifesta no sonho, no delírio, no transe ou no estado a que se referem como distração meditativa . São ocasiões em que o ser, livre das amarras da razão, se abre para o mundo de outra forma, percebendo as coisas por outra ótica.

Em Nadja , André Breton registra que, no que lhe diz respeito, “mais importantes ainda que o encontro de certas disposições de coisas para o espírito [lhe] parecem as disposições do espírito em relação a certas coisas, duas espécies de disposições que 63 regem por si mesmas todas as formas da sensibilidade” 52 . As fotografias que fazem parte do romance mostram lugares públicos de uma Paris à vista de todos. Sob a ótica de

Breton, porém, e inseridos em seu texto, eles são dotados de fantasmagoria, parecem ter algo de insólito, ocultar algo extremamente precioso e um tanto ameaçador.

Fenômeno semelhante ocorre com a Passage de l’Opéra e o Parque Buttes-

Chaumont percorridos por Louis Aragon em O camponês de Paris . Sob o olhar ambíguo de alguém que, como expressa o título da obra, é a um só tempo estranho ao espaço em que se encontra, mas mantém com ele uma relação visceral como a do homem do campo com a terra 53 , os lugares vistos adquirem um poder encantatório e enigmático. O próprio

Aragon percebe nestas paisagens a presença de esfinges a propor questões mortais. Tais monstros sedutores, porém, não irão deter o passante, a não ser que, em sua distração meditativa , este lhes volte sua atenção e se deixe envolver pelo enigma. Colocando-se disponível em suas errâncias, Aragon sente que alguns objetos usuais o mergulham no mistério e neles pressente uma chave, uma passagem. O mesmo suspeita Cortázar, como já vimos, em certas vitrines, cães, sonatas, telegramas...

A essa percepção do mistério, do milagre nos objetos usuais, nos lugares comuns, nas situações triviais, o Surrealismo denomina “maravilhoso cotidiano”, fenômeno que seria produto de uma visão dialética do real, que “vê o cotidiano como impenetrável e o impenetrável como cotidiano” 54 . Esse saber que fundamenta sua visão de mundo promove os exercícios de deslocamento e livre-associação em que esses poetas se comprazem. Deslocando as coisas de seu contexto usual, de sua funcionalidade,

52 André Breton. Nadja , 1999, p. 16. 53 Flávia Nascimento in Louis Aragon. O camponês de Paris , 1996, p. 24. 54 Walter Benjamin. “Surrealismo: último instantâneo da inteligência européia”, in: Magia e técnica, arte e política , Obras escolhidas I , 1994, p. 33. 64 desvendam suas potencialidades ocultas. Associando-as livremente umas às outras, numa espécie de articulação arbitrária (que assim o é apenas no plano de realidade em que vivemos mas não naquele que se quer alcançar) que despreza critérios lógicos como a semelhança e a comparação, criam imagens que provocam iluminações profanas e permitem vislumbrar a supra-realidade, nova ordem mais autêntica do que aquela que conhecemos. Como explica Aragon, a imagem é o elemento fundamental da prática surrealista:

O vício chamado Surrealismo é o emprego desregrado do estupefaciente imagem , ou melhor, da provocação sem controle da imagem por ela mesma e por aquilo que ela traz consigo no domínio da representação de perturbações imprevisíveis e de metamorfoses. Pois cada imagem a cada lance força-os a revisar todo o Universo. E há para cada homem a encontrar uma imagem que aniquila todo o Universo. 55

Também Cortázar constrói imagens dotadas deste poder aniquilador, violento, desastroso, que ameaça destruir a realidade como se conhece. Imagens desastradas (qual mão ou cotovelo que, distraídos, quebram um jarro) que fraturam a realidade, criando nela fissuras, brechas. Engrenagens de uma maquinaria que opera em defeito: máquina do mundo que corrompe, pondo em desordem, o mundo cuja ordem deveria representar e perpetuar. Expressões, no entanto, também do desejo; de um impulso utópico de transformação, de ampliação e reordenação do real que nelas mesmas se inicia, construtos que são da analogia.

Em Prosa del observatorio põe-se em prática este trabalho da imagem.

Representação paradigmática da operação de uma máquina desastrada e desejante, e representação alegórica do mundo como máquina desastrada e desejante, o livro encena um pensamento do real por imagem e a transformação que deste trabalho advém. No microcosmos de enguias e estrelas que se observa desde as máquinas de mármore de Jai

55 Louis Aragon, Opus cit, p. 93. 65

Singh, na interação destas formas postas em relação nas imagens do texto de Cortázar, revelam-se as operações de quebra e conexão que, traduzidas numa retórica metafórica e metonímica, e numa estética de montagem fotográfica, servem à criação de uma nova imagem de mundo: espaço no qual as formas, liberadas de toda inscrição de autoridade

(seja religiosa, científica, política ou cultural) que as cingisse numa estrutura de conexões rígidas e arbitrárias, se deslocam e se recombinam ao fragor de uma escritura que, regida pela analogia e constituída por imagens, institui novas relações entre os seres.

Deslocadas de seu contexto próprio e lançadas num meio de conexões livres, as figuras constituintes do mosaico que se projeta em Prosa del observatorio se desvencilham de seus sentidos rigidamente constituídos e se recordam formas ainda indefinidas, indecifradas, em metamorfose, em processo; formas em crise, formas cindidas: abertas a sua própria alteração e à associação com outras formas. Entregam-se a um olhar e a um desejo de saber que, desdenhando da rigidez das classificações e dos conceitos, descontruindo-os mesmo, optam pela liberdade da imagem e fundam o campo aberto de possibilidades da analogia. Assim, livres da “lengua muerta” ( PO , p.17) que as embalsama, do vocabulário científico que batiza com sofisticados nomes cada estágio de sua existência (leptocéfalo, angula, anguila amarela, anguila prateada), as enguias se revelam no texto de Cortázar formas em trabalho de constante transformação no decurso de uma existência que é busca sempre recomeçada. Recém-nascidas, são incontáveis

“miriadas microscópicas” ( PO , p.19) que “un calidoscopio gigantesco combina entre cristales y medusas y bruscas sombras de escualos o cetáceos” ( PO , p. 17). Unidas em sua migração, são “cintura desceñida” a estender-se por quilômetros, “informe cabeza toda ojos y bocas y cabellos” ( PO , p.15) a abrir caminho para uma fantástica serpente 66

“con billiones de ojos dientes lomos colas bocas, inconcebible por demasiado, absurda por cómo, por porqué” ( PO , p.19) que depois se desmembrará em “múltiplas serpientes al asalto de los ríos europeos” ( PO , p.25). Rendendo-se a este trabalho do informe, as enguias vivem, assim, empenhadas numa saga cuja peripécia recorrente é a transformação de si mesmas, regida por uma razão que não está, porém, nelas, mas nos astros observados por Jai Singh:

como guiadas por una fórmula de estrellas, que Jai Singh pudo medir con cintas de mármol y compases de bronce, se desplazarán hacia las fuentes fluviales, buscando em incontables etapas un arribo del que nada puden esperar; su fuerza no nasce de ellas, su razón palpita en otras madejas de energía que el sultán consultó a su manera, desde presagios y esperanzas y el pavor primordial de la bóveda llena de ojos y de pulsos. (PO , p.35)

Este céu estrelado, ele próprio investido do poder do informe (“abóbada cheia de olhos e palpitações”) em sua reinvenção pela escritura de Cortázar, revela-se nas imagens de Prosa del observatorio personagem fantástico, capaz de uma espécie de licantropia virtual por meio da qual as constelações se transfiguram numa “multitud de caballos centelleantes y hostiles” ( PO , p.39), “lluvia de abejas de medianoche” ( PO , p.47) ou

“hormiguero de metódica rabia” ( PO , p.53) penetrado pela vontade de saber do sultão astrônomo.

Compõe-se com estas imagens um universo maravilhoso: um oceano habitado por absurdas serpentes, um céu dominado por animais monstruosos, em constante metamorfose. Mundo a princípio muito diverso daquele que conhecemos e que, no entanto, nada mais é do que uma outra percepção dele mesmo. Cristalizado em imagens, o olhar de Cortázar transforma assim o real, redescobrindo aí o mistério, como faziam os surrealistas, relacionando e pondo em pé de igualdade o visível e o invisível, o presente e a memória, o sensível e o imaginado, para perceber nos objetos ou situações 67 aparentemente mais inofensivos aquele poder aniquilador e transformador das imagens.

Como Aragon alerta em O camponês de Paris :

os homens vivem com os olhos fechados em meio aos precipícios mágicos. Eles manejam inocentemente símbolos negros, seus lábios ignorantes repetem sem saber encantamentos terríveis, fórmulas semelhantes a revólveres. Há razões para estremecer ao ver uma família burguesa que toma seu café com leite pela manhã, sem observar o inconhecível que transparece nos quadrados vermelhos e brancos da toalha de mesa. 56

O Surrealismo se rebela contra essa cegueira coletiva, provocada pela ditadura da razão prática, que suprime o papel da imaginação na vida diária, e pela rotina (a que

Cortázar, conhecendo a sua dimensão monstruosa, chamava “La Gran Costrumbre”), que furta ao homem sua capacidade de percepção do excepcional. Automatizado pelo hábito, pela repetição exaustiva dos mesmos atos, pela visão sempre repetida dos mesmos lugares, o homem já não estranha, já não se surpreende. E ainda que lhe sobrevenha um acontecimento ou uma visão sem parâmetros em sua experiência, a razão tratará de remeter esse evento a algum outro já familiar, neutralizando seu poder e anulando-o por completo.

Contra esse mecanismo reducionista, “a mania incurável que consiste em reduzir o desconhecido ao conhecido, ao classificável, [que] só serve de entorpecer os cérebros” 57 , o surrealismo intervém com seu lema: é preciso praticar a poesia , dar plena liberdade à imaginação e renovar o olhar, passos imprescindíveis para que se torne possível alcançar a tão ambicionada supra-realidade. A realização deste projeto não implica uma transformação do homem, mas sua reconstituição ontológica, sua restituição

à dimensão humana, anterior à automatização, ao estado de cegueira em que é mergulhado pelo costume.

56 Idem, p. 201. 57 André Breton. Opus cit, p. 22. 68

A luta por este ideal é reeditada pela literatura cortazariana. Também aí se preza o estado de distração que torna o homem propenso a iluminações. Num belo texto intitulado “Cristal con una rosa dentro”, Cortázar observa que “El estado que definimos como distracción podría ser de alguna manera una forma diferente de la atención, su manifestación simétrica más profunda situándose en otro plano de la psiquis; una atención dirigida desde o a través e incluso hacia ese plano profundo.” 58 . Esse outro plano psíquico seria a fantasia, ou imaginação, um meio de perceber no real o que não é de todo visível, o que apenas roça a superfície do mundo que habitamos, ocultando-se sob a aparência banal de situações e objetos que resguardam o mistério, a passagem para o desconhecido. Essa brecha se revela por meio de uma imagem constituída nos moldes surrealistas, pela livre-associação, como explica Cortázar continuando a frase que citamos acima:

No es infrecuente que en el sujeto dado a ese tipo de distracciones (lo que se llama papar moscas) la presentación sucesiva de varios fenómenos heterogéneos cree instantáneamente una aprehensión de homogeneidad deslumbradora. En mi condición habitual de papador de moscas puede ocurrirme que una serie de fenómenos iniciada por el ruido de una puerta al cerrarse, que precede o se superpone a una sonrisa de mi mujer, al recuerdo de una callejuela en Antibes y a la visión de una rosa en un vaso, desencadene una figura ajena a todos sus elementos parciales, por completo indiferente a sus posibles nexos asociativos o causales, y proponga – en ese instante fulgural e irrepetible y ya pasado y oscurecido – la entrevisión de otra realidad en la que eso que para mí era ruido de puerta, sonrisa y rosa constituye algo por completo diferente en esencia y significación. 59

Da heterogeneidade à homogeneidade: processo de conciliação que se cumpre no instante iluminado em que é gerada a imagem poética surrealista, intromissão em nossa realidade finita de uma supra-realidade infinita em que as contradições se dissolvem na analogia, a disparidade se faz unidade, a descontinuidade é cancelada pela continuidade

58 Julio Cortázar, “Cristal con una rosa dentro” Último round , 2001 p. 127. 59 Idem, pp. 127-8. 69 que liga todos os seres. Alcançar esse espaço – que não é mais do que o nosso próprio espaço ampliado – é a busca de Cortázar, que apenas o vislumbra em suas irrupções súbitas e fugazes. “Imposible que lo retengamos, puesto que no sabemos des-plazarnos.

Queda una ansiedad, un temblor, una vaga nostalgia. Algo que estaba ahí, quizá tan cerca. Y ya no hay más que una rosa en su vaso, en este lado donde a rose is a rose is a rose y nada más.” 60

Consciente da impossibilidade de um deslocamento definitivo, Cortázar celebra cada momento de iluminação em sua efemeridade mesma e continua sua busca por outras passagens, outros encontros, outros vislumbres de um mundo mais amplo em que tudo esteja em conciliação. É este todo o movimento de Prosa del observatorio , máquina de um mundo a reordenar-se pela imaginação, figuração de um território “abierto a otro sentido que a su vez nos abre” ( PO , p.49), realidade cuja ordem já não é aquela fixada nos mapas tradicionais, mas uma outra, na qual o homem se deixará conduzir – mais honesto seria dizer seduzir , já que tudo aqui será desvio e subversão – por um itinerário imagético em que se fundem o distante e o desconexo e ao longo do qual se dão fortuitos encontros:

entonces se sale a vagar de noche (...), y si se vive de veras, si la noche y la respiración y el pensar enlazan esas mallas que tanta definición separa, puede ocurrir que entremos en los parques de Jaipur o de Delhi, o que en el corazón de Saint-Germain-de-Prés alcanzemos a rozar otro posible perfil del hombre; puede pasarnos cosas irrisorias o terribles, aceder a ciclos que comienzan en la puerta de un café y desembocan en una horca sobre la plaza mayor de Bagdad, o pisar una anguila en la rue du Dragon, o ver de lejos como en un tango a esa mujer que nos llenó la vida de espejos rotos y de nostalgías estructuralistas (ella no terminó de peinarse, ni nosotros nuestra tesis de doctorado); porque no se trata de ahuecar la voz, esas cosas ocurren como los gatos de golpe o el desbordarse de la boñadera mientras atendemos al teléfono, pero solamente les ocurren a los que llevan el gato en el bolsillo, la noche es pelirroja y húmeda, alguien silva bajo un portal, la zona franca empieza (PO , p. 55-7)

60 Idem, p. 129. 70

O banal e o extraordinário, o cotidiano e o insólito se combinam neste fragmento de Prosa del observatorio para compor o itinerário de uma busca que, rumo ao aberto, a uma “zona franca”, toma a errância como roteiro e confia no fortuito das possibilidades, no acaso das associações para alcançar seu destino. Não é de qualquer modalidade de manifestação do sagrado que aqui se trata, ou de qualquer tentativa de transcendência, mas de acontecimentos que, sejam corriqueiros como uma banheira que transborda enquanto se atende ao telefone ou pouco usuais como a presença de uma enguia em plena

Rue du Dragon (sugestão sem dúvida espirituosa), dão-se todos no plano concreto de um mundo que todos acreditamos real – como os gatos, cujos saltos podem causar surpresa, fazer susto, talvez, mas que criamos em casa como mascotes. A estranheza, a desconfiança que podem provocar (certos acontecimentos e os gatos todos) vem da traição que neles se suspeita: fazendo parte do mundo do costume, ameaçam abrir nele uma fissura, ou revelar-lhe uma prega, que, desdobrando-se, descerra aos nossos olhos aquela realidade mais vasta, desconhecida ou encoberta a que eram tão afeitos os surrealistas.

Este gesto de abertura implica, como já sugeríamos, uma certa violência e um elemento de crueldade, aspectos que podem estar abrandados, como na recordação nostálgica e irônica de um relacionamento de desfecho infeliz, com espelho quebrado, mulher despenteada e tese inacabada; ou mais explícitos, como no ciclo realmente terrível que leva de um café em Paris a uma forca em Bagdá. Como veremos mais adiante, esta violência e esta crueldade são inerentes a toda imagem que cristaliza em si uma forma em trabalho de abertura, uma forma como materialização do trabalho do informe , para recordar a expressão de Bataille. Constituem a contraparte de desastre da 71 operação de desejo que se manifesta nas imagens como vocação analógica, conferindo a elas sua potência evocatória e seu poder de associação.

A reflexão sobre estes trabalhos de desastre e desejo, de violência, crueldade, evocação e associação implicados na abertura das formas e na construção das imagens, cujo apontamento talvez pareça por ora um vôo de abstração, converte-se em narrativa em alguns contos fantásticos de Cortázar, que se tornam, portanto, instrumentos interessantes para sua compreensão.

Como o autor o concebe, o fantástico faz-se em si mesmo um modo de operar, sobre a materialidade do real, uma abertura. Segundo a definição já clássica de Roger

Caillois, “o fantástico torna manifesto um escândalo, uma ruptura, uma irrupção insólita, quase insuportável no mundo real”. 61 Tomaria, assim, o sentido de uma agressão à nossa realidade conhecida por algo que lhe é estranho e que, portanto, põe em questão sua solidez, sua segurança, sua verdade. Esta conceituação não é alheia ao fenômeno de transformação do real praticado nos relatos cortazarianos considerados fantásticos. No entanto, caberia fazer aqui algumas ressalvas: em primeiro lugar, a noção do fantástico como escândalo não é de todo bem recebida por Cortázar, que o concebe como algo de certo modo familiar, embora não ordinário. Como declara a González Bermejo, para ele, o fantástico

é uma coisa muito simples, que pode acontecer em plena realidade cotidiana, neste meio-dia ensolarado, agora, entre você e eu, ou no metrô, quando você estava vindo para este encontro. // Trata-se de algo absolutamente excepcional, concordo, mas que não tem por que ser diferente, em suas manifestações, da realidade que nos envolve. O fantástico pode acontecer sem que haja uma mudança espetacular das coisas. 62

61 “lo fantástico pone de manifiesto un escándalo, una ruptura, una irrupción insólita, casi insoportable en el mundo real” Roger Caillois, “Prefacio”, in: ---. Antología del cuento fantástico , 1970, p. 8. 62 Julio Cortázar, apud Ernesto González Bermejo. Opus cit., p. 37. 72

Esta percepção de um fantástico cotidiano se aproxima da noção surrealista de

“maravilhoso cotidiano”. Conforme vínhamos discutindo, para os surrealistas bem como para o próprio Cortázar, este maravilhoso ou este fantástico não parece ser, necessariamente, a irrupção na realidade de algo absolutamente estranho a ela, mas a percepção, nela mesma, de aberturas, brechas, cisões que abrem passagem a um território que permanece inalcançável, desconhecido e incompreensível para a mente que opera apenas racionalmente, mas que nem por isso é menos real, pois que acessível por um recurso a outras operações, como a imaginação, o sonho, o delírio, a loucura, a errância, a distração – estados mentais supostamente liberados do domínio absoluto da razão. Menos que a irrupção de um outro mundo no nosso, o fantástico cortazariano parece manifestar, portanto, um desdobramento do mundo mesmo que conhecemos, ampliado, transformado diante de uma certa percepção do real que não é muito diversa daquela que levou o grupo de André Breton a descobrir a supra-realidade.

Concebido desta maneira, o fantástico não implicaria o rompimento súbito de uma fronteira entre mundos distintos, embora mantenha preservada, na sua manifestação, a potencialidade de pôr em questão a estabilidade, a definição e os limites da realidade conhecida. Desafio que se fará, talvez, mais crítico, já que imposto por um processo que não é externo a essa realidade, mas que nela mesma opera, como um batailliano trabalho do informe atuando no real, forma que se abre à deformação, à transformação; que é lançada a um contínuo movimento em que tudo se desloca, como na fábula de um pobre cronópio de Cortázar:

Un va a abrir la puerta de calle, y al meter la mano en el bolsillo para sacar la llave lo que saca es una caja de fósforos, entonces este cronopio se aflige mucho y empieza a pensar que si en vez de la llave encuentra los fósforos, sería horrible que el mundo se hubiera desplazado de golpe, y a lo mejor si los fósforos están donde la llave, 73

pude suceder que encuentre la billetera llena de fósforos, y la azucarera llena de diñero, y el piano lleno de azúcar, y la guía del teléfono llena de música, y el ropero lleno de abonados, y la cama llena de trajes, y los florejos llenos de sábanas, y los tranvías llenos de rosas, y los campos llenos de tranvías; así que este cronopio se aflige horriblemente y corre a mirarse al espejo, pero como el espejo está algo ladeado lo que ve es el paragüero del zaguán, y sus presunciones se confirman y estalla en sollozos, cae de rodillas y junta sus manecitas no sabe para qué. Los famas vecinos acuden a consolarlo, y también las esperanzas, pero pasan horas antes que el cronopio salga de su desesperación y acepte una taza de té, que mira y examina mucho antes de beber, no vaya a pasar que en vez de una taza de té sea un hormiguero o un libro de Samuel Smiles. 63

Intitulado “La foto salió movida”, o texto narra o que seriam as conseqüências daquele processo cortazariano de tirar uma fotografia descrito pelo próprio autor a

González Bermejo. A operação consistia em não colocar a cena enquadrada em foco, gerando imagens duplas, cindidas e deslocadas. Esta a imagem de mundo dada a ver ao aflito cronópio, para quem tudo parece estar fora do lugar, como se os planos do espaço se tivessem descolado e corrido um pouco para o lado, alterando as posiçoes dos objetos, tirando-os subitamente do lugar a que era tão certo pertencerem. Operação física, como esclarece tão bem a explicação para a imagem absurda que o espelho mostra ao cronópio que nele se olha: “como el espejo está algo ladeado ”, não é a sua forma de criatura esverdeada, mas a de um guarda-chuva, que ele vê.

A esta sensação material mesmo de deslocamento Cortázar se referia como um

“sentimento de não estar de todo”, definido – num discurso cujo vocabulário se mantém no nível da fisicalidade e que se vale mais uma vez de uma metáfora fotográfica – como um “paralaje verdadero”, uma “lateralidad”, um “estar siempre un poco más a la izquierda o más al fondo del lugar donde se debería estar para que todo cuajara

63 Julio Cortázar. Historias de cronopios y de famas , in Cuentos completos , v. 1; p. 489. 74 satisfactoriamente en un día a más de vida sin conflictos”. 64 Esta última declaração deixa claro: há algo de subversivo nestes deslocamentos do real, como se o deslocamento das formas implicasse e engendrasse um deslocamento do pensamento – dos conceitos, das certezas, da verdade mesma do mundo, que será preciso relativizar a partir deste trabalho transgressor que se opera nas formas e do qual o fantástico é para Cortázar uma expressão, bem como o é a imagem, já explicita a referência à fotografia no título do fragmento.

Todo ele deixa evidente a interação entre fantástico e imagem na literatura de

Cortázar. Por meio de recursos diversos e de uma retórica própria, estes construtos de linguagens diferentes cumprem aí um mesmo papel: são ambos inscrições de uma visão de mundo que aspira não a um simples registro de seu objeto, mas à sua transformação.

Atuam, assim, como recursos complementares de um mesmo projeto poético.

Em muitos sentidos, como esperamos esclarecer ao longo desta tese, as imagens de Cortázar são “cristalizações fulgurantes” (para ficar com uma expressão benjaminiana) ou concretizações virtuais de seu projeto poético de reordenação do real, que aparece desenvolvido ao longo de seus textos. Assim, relembrando o que vínhamos desenvolvendo em páginas anteriores, do mesmo modo que a estratégia de composição de uma imagem podia servir a Cortázar como paralelo para explicar o modo de construção de seus textos (como vimos no trecho em que o autor compara sua realização ficcional ao ato de tirar uma fotografia desfocada), reciprocamente a operação que seus textos ficcionalmente realizam sobre a realidade muito tem a dizer sobre seu processo de construção de imagens, sejam elas fotografias de fato, como as que integram Prosa del

64 Julio Cortázar. “Del sentimiento de no estar del todo”, in: ---. La vuelta al día en ochenta mundos , 1993, p. 22. 75 observatorio , ou imaginadas em textos de ficção, como aquelas citadas em contos como

“Apocalipsis de Solentiname” e “Las babas del diablo”, que leremos no terceiro capítulo; sejam imagens literárias, configurações poéticas à maneira daquelas projetadas pelos surrealistas segundo um processo explicitado pelo próprio Cortázar em “Cristal con una rosa dentro”. Revelam, assim, muito mais próximos do que a princípio se poderia pensar, os contos fantásticos de Cortázar e um livro como Prosa del observatorio , poema constituído como “sistema de imagens”, unidos por um mesmo trabalho de abertura e reordenação do real.

Como o próprio Cortázar observa,

El génesis del cuento y del poema es sin embargo el mismo, nace de un repentino extrañamiento, de un desplazarse que altera el regímen “normal” de la conciencia (...) Cada vez que me ha tocado revisar la traducción de uno de mis relatos (...) he sentido hasta qué punto la eficacia y el sentido del cuento dependían de esos valores que dan su carácter específico al poema y también al jazz: la tensión, el ritmo, la pulsación interna, lo imprevisto dentro de parámetros pre-vistos 65

Poema e conto seriam, assim, produtos de um deslocamento, e dependeriam, para sua

“eficácia”, para a confirmação do efeito que deles se espera, da presença de um

“imprevisto dentro de parâmetros pré-vistos”: uma brecha, uma fissura, uma abertura da forma constituída por essa forma mesma. Algo que se cumpre, na obra de Cortázar, pela escritura do fantástico e pelo trabalho da imagem, e cujo modelo o autor encontra no jazz, gênero musical mais apreciado por Cortázar e que tem grande importância em sua literatura, que estabelece com ele um verdadeiro diálogo inter-semiótico.

Algo que se deve ao fato de as peças de jazz serem essencialmente obras abertas, cuja execução exige um trabalho de criação do intérprete, que desenvolve improvisos relativamente livres, que devem respeitar apenas a tonalidade e a linha melódica apontada

65 Julio Cortázar. “Del cuento breve y sus alrededores”, in: Último round , 2001, p. 78. 76 nas frases musicais da partitura. Na sempre diversa invenção de variações, portanto, a música se cria num trabalho contínuo de abertura, alteração e risco de sua própria forma, que existe, de fato, apenas como deformação, materialização do informe no plano sonoro.

Como Cortázar declara a González Bermejo, o jazz desempenha um papel importante na sua obra devido à “maneira pela qual pode sair de si mesmo sem nunca deixar de ser jazz.

Como uma árvore que abre seus galhos à direita, à esquerda, para cima, para baixo, permitindo todos os estilos, oferecendo todas as possibilidades, cada qual buscando o seu caminho” 66 Esta imagem da árvore cujos galhos se expandem em diferentes direções é bastante próxima da que Bataille elegeu como emblema: uma aranha de muitas pernas.

É de acordo com este paradigma que se constrói a literatura de Cortázar, arregimentando objetos que Didi-Huberman qualifica como auráticos, a partir da formulação de Benjamin: “Entende-se por aura de um objeto oferecido à intuição o conjunto das imagens que (...) tendem a se agrupar em torno dele”. 67 Desenvolvendo a definição sucinta do pensador alemão, o teórico francês explica:

Aurático, em conseqüência, seria o objeto cuja aparição desdobra, para além de sua própria visibilidade, o que devemos denominar suas imagens , suas imagens em constelações ou em nuvens, que se impõem a nós como tantas figuras associadas, que surgem, se aproximam e se afastam para poetizar, trabalhar, abrir tanto seu aspecto quanto sua significação, para fazer delas uma obra do insconsciente. 68

Revelam-se, assim, auráticas, as enguias, a partir das quais se conforma em Prosa del observatorio um autêntico cardume de imagens: cabeça informe cheia de olhos e bocas, serpente absurda constituída por múltiplas serpentes, rios no oceano; e o céu estrelado, lugar de uma constelação imagética formada por “caballos centelleantes y hostiles”, “abejas de medianoche”, “hormiguero de metódica rabia”. Nuvens enbrionárias

66 Julio Cortázar apud Ernesto González Bermejo. Opus cit, p. 89 67 Walter Benjamin apud Georges Didi-Huberman. O que vemos, o que nos olha , 1998.p. 149. 68 Georges Didi-Huberman. Idem, p. 149. 77 de imagens, formas abertas em seu aspecto e em sua significação, que, explorando ainda mais sua propensão ao informe, estendendo seu trabalho de contínuas alterações numa provação da forma pela forma, irão se expandir em relações para além do mimético, a ponto de se interpenetrar, fazendo-se ponte entre o diverso, numa operação de abertura e conciliação “cuando otra esclusa empieza a abrirse en mármol y en peces, cuando Jai

Singh con un cristal entre los dedos es ese pescador que extrae de la red, estremecida de dientes y de rabia, una anguila que es una estrella que es una anguila que es una estrella que es una anguila” (PO, p.13).

Lugar de um trabalho de desastre, a maquinaria de imagens de Prosa del observatorio recolhe astros decaídos e peixes capturados, e, isolando-os de seus ambientes de céu e mar, destruindo-os (que são estrelas baixadas do firmamento?) ou assassinando-os (não sobreviverão as enguias fora das águas) numa violência necessária, incorpora-os a uma engrenagem de desejo que os faz converterem-se uns nos outros e novamente em si mesmos. Este fluxo anadiômeno, movimento de interminável vai-e- vem, descreve um circuito cíclico e dinâmico de orientação analógica cujo modelo estrutural e semântico Cortázar irá encontrar no protótipo matemático do anel de

Moebius. É esta, de fato, a definição que no próprio texto de Prosa del observatorio se dá

à escritura em curso no livro: “tan simplemente anillo de Moebius y de anguilas y de máquinas de mármol” ( PO , p.11)

1.3 Instruções para fazer dobraduras

O anel de Moebius é uma figura constituída a partir de uma tira de papel ou de uma fita cujas extremidades são unidas de tal modo que não se possa determinar qual seja 78 o lado exterior e qual o interior – um anel cujos lados acabam por se revelar um só e o mesmo. Planificada, a figura é o símbolo matemático do infinito ( ∞), lugar hipotético em que se encontram as paralelas, como no anel se encontram os dois lados da fita, até então irremediavelmente separados. O anel representa, assim, uma possibilidade de reunião do diverso; não uma fusão anuladora da diferença, mas uma promessa de conciliação por meio de um mecanismo dinâmico de encontros, contatos e trocas. Concretização virtual do infinito – trazido para o mundo ainda finito que por ora se conhece por obra de uma simples tira de papel dobrada de determinado modo –, faz-se um instrumento de abertura, uma forma construída, à semelhança das imagens de Cortázar de que tratávamos mais acima a partir da reflexão de Didi-Huberman, como aberturas no aspecto e na significação das coisas, meio de passagem para o aberto – vocação que se transmite à máquina do mundo construída e revelada em Prosa del observatorio : tentativa em curso, no plano da imagem (manifestação ainda vicária) de uma fundação do infinito no finito.

O projeto se concretiza visualmente por intermédio da metáfora do anel de

Moebius no jogo de montagem de duas fotografias de Cortázar com um fragmento de seu texto, que anuncia: “un dibujo de la realidad trepa por las escaleras de Jaipur, ondula sobre sí mismo en el anillo de Moebius de las anguilas, anverso y reverso conciliados, cinta de la concordia en la noche pelirroja de hombres y astros y peces” ( PO , p.71). As fotografias dispostas nas páginas seguintes à que traz este trecho citado lembram uma seqüência de instruções de um origami falseado, apenas imaginado na superfície bidimensional das fotografias, que fazem jogos de grafismo com as formas dos instrumentos de Jai Singh para formar o tal desenho de uma realidade reordenada idealizado por Cortázar. 79

A primeira fotografia mostra o Rama Yantra do observatório de Delhi. O instrumento, inventado pelo próprio Jai Singh para medir a altitude de objetos celestes como o Sol ou a Lua, é estruturado em duas partes complementares: duas circunferências de laterais vazadas, constituídas por colunas, que, reunidas, formam um cilindro completo. 69

Formas, portanto, cindidas e abertas uma à outra, e construídas como tais, que Cortázar combinará no seu “álbum de fotografias”. Não, porém, nos moldes da circunferência perfeita – imagem totalitária, signo da plenitude – que se poderia esperar, mas, como indica a fotografia seguinte, numa espécie de gigantesco anel de Moebius de que, por ora, só um fragmento se deixa ver na curva de duas fitas paralelas cujo encontro se anuncia no ponto de fuga da imagem.

69 Vivendra Nath Sharma. Sawai Jai Singh and his Astronomy , 1995, pp. 81-3. 80

Num exemplo concreto das operações de fragmentação e deslocamento realizadas por Cortázar sobre as formas, esta imagem recorta um ângulo do Misra Yantra de Jaipur, a curvatura de um dos semicírculos que constituem sua parte central, e recorda o elementar desta estrutura, o mais básico de sua composição: as linhas, os planos, os contrastes de claro e escuro no jogo e sombra. Reduzindo a forma ao mínimo, ao essencial, a imagem libera potencialidades antes nela insuspeitadas e lhe confere uma impressão de movimento a que o corte do quadro acrescenta um sentido de ilimitude.

Parece haver, de fato, um apelo de infinito nesta imagem, dotada de uma força de abstração que, no entanto, deriva por inteiro de um trabalho com a concretude da forma.

Como ocorria com o anel criado por Moebius, a imagem construída por Cortázar proporciona uma experiência – sensorial mesmo – do infinito no território do finito.

Percorrendo a superfície do anel de Moebius com a ponta do dedo, está-se ora no interior ora no exterior da estrutura, sem qualquer interrupção ou aviso de passagem; fazendo o mesmo com um lápis, verifica-se que o traço marca as duas faces da fita: lados que, embora encontrem entre si uma relativa continuidade, não se fundem 81 definitivamente um no outro anulando sua identidade. O anel de Moebius se faz, assim, estrutura dinâmica na qual se sucedem, cíclica e indefinidamente, passagens de dentro para fora, de fora para dentro e assim por diante, interminavelmente – movimento capturado no drama da formiguinha presa na armadilha desta conhecida gravura de

Escher ( Anel de Moebius II )

e apontado por Cortázar na engrenagem de uma máquina do mundo cujas formas desastradas – sejam elas enguias, astros, sultão, máquinas de mármore ou palavras – deformam-se qual anel retorcido que se abre ao infinito e empenham-se na utopia de uma busca sempre recomeçada pela conciliação do diverso: “una anguila que es una estrella que es una anguila que es una estrella que es una anguila”

Uma outra gravura de Escher, Céu e água I (1938), confere visualidade a esta imagem-gangorra de Cortázar, estrutura lúdica cujo mecanismo joga com as formas entre 82 pólos opostos num movimento pendular e contínuo, ir-e-vir como o de estrelas e enguias que são agora pássaros e peixes.

Na imagem reversível e dinâmica de Escher, assiste-se à constituição da forma nos intervalos da forma. O fenômeno lembra aquele apontado por Cortázar como princípio de seu fazer literário, descrito como o processo inverso ao de tirar uma fotografia: separação das imagens que faz surgir entre elas um interstício, um oco que se revela produtivo. De fato, a gravura de Escher pode ser lida como uma concretização visual da operação cortazariana em todas as suas etapas. Nas extremidades de sua imagem, tem-se um pássaro e um peixe perfeitamente em foco: bem definidos, precisos e detalhados.

Conforme se vai aproximando do centro da figura, no entanto, eles vão perdendo progressivamente detalhamento e definição. Feita a passagem para a parte superior ou inferior da gravura, mostram-se, por fim, indefinidos, borrados como uma imagem 83 desfocada, praticamente impossíveis de distinguir entre as outras formas surgidas a partir de seus limites esgarçados. Assim, sem que se anule a diferença entre pássaros e peixes, mas justamente pelo investimento nesta diferença – na imagem manifestada como contraste –, surgem peixes a partir de pássaros que se dissolvem, e ressurgem pássaros a partir de peixes que se desfazem, num processo de transformação que não é jamais definitivo, mas se repete ao infinito. Esta figura nada mais é do que outro modo de representação do anel de Moebius: as duas faces da fita são aqui o plano dos pássaros e o plano dos peixes, que se superpõem e se cruzam, fundindo-se e tornando a se separar num movimento continuado. O mesmo se poderia dizer da imagem textual de Cortázar, anel de Moebius que se faz escritura no deslizamento de identidade de enguias e estrelas.

Este drama de formas cindidas e abertas uma à outra é encenado também em dois contos de Cortázar, “Lejana” e “Axolotl”. No primeiro, cumpre-se a partir de um atentado à linguagem enquanto forma, ao corpo dos signos – atacados diretamente em sua materialidade, literalmente cindidos –, efeito que se estenderá ao corpo que os escreve, também levado à desagregação, e à integridade do sujeito nele encarnado.

O texto do conto é constituído quase inteiramente pelo diário da protagonista,

Alina Reyes, uma burguesa de Buenos Aires que apenas no espaço secreto do diário e pelo processo por ele engendrado – uma escritura do eu por si mesmo – se revela para além de seu papel social. Sua escrita revela-a sujeito cindido, dividido entre uma aparência pública e uma outra face que vem à tona no diário. Um ser que se rebela e se liberta através da linguagem, menos por utilizá-la como mero meio de expressão de seu descontentamento do que por jogar com ela, fragmentando e reordenando palavras para criar anagramas; inventando palíndromos no gozo de descobrir que o invertido pode ser 84 ainda o mesmo: fazendo das palavras o lugar de uma transgressão, expondo sua forma definida e familiar apenas como um “acidente da forma” 70 , para além do qual muitas outras provisórias estruturas e outros sentidos poderiam se formar – enfim, revelando sua forma como trabalho do informe. E, a partir daí, sugerindo subversivas associações entre as noções e os seres que estas palavras nomeiam. Exercício também praticado por

Cortázar em Prosa del observatorio , ao relacionar águias e enguias como signos da abertura, e perceber na proximidade entre os nomes dos animais – águila e anguila em espanhol – outra daquelas “casualidades” como as anunciadas no pórtico do livro,

“brecha en la sucesión”:

antes y después está lo abierto, lo que el águila estúpidamente alcanza a ver, lo que el negro río de las anguilas dibuja en la masa elemental atlántica, abierto a otro sentido que a su vez nos abre, águilas y anguilas de la gran metáfora quemante. (Y como por casualidad descubrir que sólo una consonante diferencia esos dos nombres; y decirse una vez más que la casualidad, esa palabra tranquilizadora, ese otro umbral de la apertura...)” ( PO , p.49)

Também Alina irá arriscar-se nesta casualidade, investindo no aspecto acidental da linguagem, que pode associar e pôr em relação os seres mais distintos. Num ato de ousadia maior, ela desintegra seu próprio nome e o desdobra, de Alina Reyes fazendo Es la reina y... O jogo de quebra e reordenação da estrutura revela um vazio, e a expressão que se forma, desfalcada, inconclusa, torna consciente o sentimento de incompletude da personagem e cria a brecha, opera a abertura do ser inicialmente fechado em si mesmo ao outro . O processo subversivo desta escritura lembra, embora se faça aqui mais ousado, o trabalho de linguagem empregado na imagem-gangorra de Cortázar em Prosa del observatorio : “una anguila que es una estrella que es una anguila...”. O pronome relativo

70 “a forma não é pensável senão como perpétuo acidente da forma”, escreve Didi-Huberman. (« la forme n’est pensable que comme l’accident perpétuel de la forme » Georges Didi-Huberman. Opus cit, 2003, p. 191.) 85 que opera aí a função dupla e dialética de abertura e conexão. Anunciando um adjunto com função de qualificação ao nome, impõe uma cisão à expressão, que será preenchida, no entanto, não com um atributo explicativo ou restritivo de sua identidade, como prevê a gramática, mas com um predicativo que terminará de abri-la, definindo-a como uma alteridade e lançando-a num jogo de conexões. Algo semelhante fará a construção “Es la reina y...” em “Lejana”. A esta quebra do nome da protagonista, subversão da palavra, corresponderá o surgimento de um ser subversivo, uma outra Alina, vivendo em condições opostas às da burguesa portenha, como uma mendiga em Budapeste. Alina começará a sentir, fisicamente , o frio, a dor, o sofrimento ou a alegria que sente esta sua outra que está distante, mas que se manifesta nela como perda, como ausência sensível que, no entanto, a constitui – algo a que Didi-Huberman se referiria como uma

“dessemelhança constituinte”, propriedade das formas abertas ao informe. Em paralelo, o discurso da outra vai aos poucos invadindo o discurso do eu e usurpando-lhe a posição e o estatuto de identidade, compartilhando mesmo o uso da primeira pessoa gramatical no texto íntimo do diário. Também este corpo textual estará então comprometido, lugar de emergência de uma alteridade que não lhe é externa, mas que, integrando-o, deforma-o – de dentro.

Movida por uma trágica curiosidade, Alina cede à necessidade de encontrar a mendiga e parte para Budapeste, cidade em si mesma cindida, unida por pontes, signos da passagem tão importantes para Cortázar. É sobre uma delas que as duas personagens se abraçam: encontro de formas, de seres cindidos que, por fim reunidos, experimentam um momento efêmero de fusão que muito em breve se dissolve em nova separação, mas diversa. Na fórmula cortazariana da utopia como busca sempre fracassada e sempre 86 continuada, Alina e a mendiga trocam de corpos, e a burguesa permanece na ponte a olhar a outra que dela se afasta.

“Axolotl” tem construção bastante semelhante a “Lejana”, novamente pondo em questão a estabilidade de corpos e identidades, mas de maneira ainda mais radical, pois aí interagem não mais dois seres da mesma espécie, mas um homem e um anfíbio. Eles acabam, como Alina Reyes e sua outra , por transmutar-se um no outro. O anúncio deste fenômeno, porém, é feito logo no primeiro parágrafo do conto, estratégia que faz com que o interesse do leitor – surpreendido, mas já ciente do desfecho da história que lê – se volte mais para o processo que conduz à transformação do que ao fato fantástico em si.

Não é a mudança de corpos o tópico do conto, mas a crise de forma e, conseqüentemente, de identidade, que a desencadeia.

A identidade fragmentada e híbrida do narrador – que fora humano e agora diz ser um anfíbio (ser dual em si mesmo) – se deixa perceber discursivamente pelo uso de uma problemática primeira pessoa – que remete ora ao homem, ora ao animal –, para relatar a história de um personagem que, numa visita casual ao Jardin des Plantes de Paris, descobre os axolotl e fica fascinado por eles. Num crescente reconhecimento, homem e animal se descobrem duplos um do outro, numa identificação perturbadora, mas irreprimível. A evidente diferença que os separa acaba por se tornar um fator a mais – na verdade decisivo – a contribuir para a percepção da proximidade entre o homem e o animal: o reconhecimento não se apoiava em analogias fáceis, mas em algo mais profundo: “No eran seres humanos, pero en ningún animal había encontrado una relación tan profunda conmigo” 71 . A esta percepção de uma semelhança dessemelhante , condição dialética de formas postas em relação por um trabalho do informe que nelas opera, segue-

71 Julio Cortázar. “Axolotl”, in : ---. Cuentos completos , v. 1, 1996, p. 383. 87 se uma inversão das posições dos seres diversos, conectados num breve instante de plenitude que precede a inevitável separação: o homem torna-se axolotl e fica preso no aquário do Zoológico; o animal toma forma humana, mas se perde na alienação, gradualmente se afastando do outro que lhe é complementar e necessário. Em nova forma, ambos parecem deslocados em seus corpos e em seus mundos, pressentindo ainda a necessidade do contato, mas conscientes de sua impossibilidade, ou, ao menos, da efemeridade de toda tentativa.

Nestas tramas de duplos – burguesa e mendiga, homem e animal – que, aspirando a uma utópica unidade, trocam de lugar apenas para se redescobrirem incompletos e

(como sugere o desfecho dos contos de Cortázar) ainda votados à busca do outro que os completaria, inserindo-se num círculo vicioso de metamorfoses como o que traçam emblematicamente as enguias e estrelas do anel de Moebius de Prosa del observatorio e os pássaros e peixes da gravura de Escher, lançam-se as bases de uma nova dialética, que não se funda nos terrenos da filosofia, da história ou da ética (embora neles repercuta), nem segue o esquema de tese – antítese – síntese que aí assume, segundo o modelo hegeliano clássico. Dialética que se urde na forma da imagem, em sua visualidade cindida e problemática, em sua escrita de abertura e conexão, que lança as oposições à vertigem de um movimento que não prevê nenhuma síntese: “uma dialética da imagem só pode ser uma dialética sem síntese ”72 , escreve Didi-Huberman.

Como uma dialética acidental ou sintomal 73 poder-se-ia classificar esta dialetização da própria dialética, comprometida em sua idealidade sintética por um ato de abertura que repõe em jogo suas oposições, que apenas acidentalmente – qual

72 « une dialectique de l’image ne peut être qu’une dialectique sans synthèse » Georges Didi-Huberman. La ressemblance informe ou le gai savoir visuel selon Georges Bataille, 2003, p. 352. (Tradução nossa) 73 Idem. 88 eventualidade imprevista e sem intenção – encontram uma síntese, que já de início se suspeita problemática e provisória, ponto de passagem e não de definição, como a reunião de Alina e sua outra sobre uma ponte em Budapeste ou de um homem e um ajolotle através do vidro de um aquário. Unidade frágil que logo se mostrará vicária, revelando sua estrutura fraturada como a do sintoma, lugar de uma falsa segurança na qual já se pressente o conflito iminente. Ponto de chegada e de partida de um percurso que se faz cíclico, utópica busca sempre fracassada e sempre recomeçada pela conciliação. Desta dialética desiludida, que não prevê nenhum apaziguamento para os opostos que põe em tensão – e para a qual não parece de fato haver melhor paradigma do que o anel de Moebius – contos como “Lejana” e “Axolotl” são a glosa, e Prosa del observatorio , a imagem.

Imagem que se deve pensar aqui não como ícone, não como coisa, mas como trabalho: de reflexão, de transformação. Assim, dizer que Prosa del observatorio nos dá uma imagem da dialética como a concebia e praticava Cortázar não é afirmar que ali se encontrará uma sua ilustração, mas sim que esta dialética se faz ali imagem e a partir daí opera , libertando-se de sua rigidez conceitual e um tanto mesmo de sua herança histórica

– sem evidentemente esquecê-la – para recuperar o que seriam suas virtualidades originais: sua vocação para a conciliação, sua potencialidade utópica; passando então a ditar o movimento de continuada luta, de sempre renovadas revoluções em prol de uma utopia que só o será realmente se estiver sempre em construção, projeto sempre a se rever e a se transformar 74 : “retorno dialéctico donde se cumple el ritmo cósmico” ( PO , p.65,

74 A Cortázar não agradam as utopias perfeitas e definitivas. Em sua crítica veemente destes construtos ilusórios, mata Marini, sua personagem de “La isla a mediodía” que imaginara ter conquistado a plenitude ao chegar à ilha sobre a qual projetara uma utopia pessoal; e faz um Robinson Crusoe que volta à sua ilha decepcionar-se terrivelmente com a utopia de civilização que ali fundara – na capital moderna e populosa, 89 grifo nosso). A esta expressão Cortázar acrescenta um comentário metadiscursivo essencial: “empleo a sabiendas las palabras más mancilladas por la retórica, de muchas maneras me he ganado el derecho a que brillen aquí como brilla el mercurio de las anguillas y el girasol vertiginoso en las máquinas de Jai Singh” ( PO , p.65). Faz-se explícita aí não apenas a consciência do desgaste da dialética, mas, sobretudo, o trabalho de sua reformulação em que se empenha Cortázar. É de fato uma outra dialética, já agora desiludida e crítica, que se exerce em Prosa del observatorio bem como na obra do autor como um todo, definindo o estatuto de realidade com que em toda ela se lida, as relações entre identidade e alteridade tematizadas em contos como “Lejana” e “Axolotl”, a forma de suas imagens e a reflexão que por meio delas se tece, como veremos ainda no decorrer deste capítulo e, sobretudo, no seguinte.

Regido por esta dialética que se incorpora à imagem e se faz imagem na figura do anel de Moebius de enguias e estrelas, Prosa del observatorio , máquina do mundo regida pelo desastre e pelo desejo – sentidos dialeticamente complementares –, projeta a utopia de uma realidade mais ampla e ordenada de outro modo, que é preciso sempre continuar a buscar, pois

lo abierto sigue ahí, pulso de astros y anguilas, anillo de Moebius de una figura del mundo donde la conciliación es posible, donde anverso y reverso cesarán de desgarrarse, donde el hombre podrá ocupar su puesto en esa jubilosa danza que alguna vez llamaremos realidad. (PO , p.79)

Ideal que a última fotografia do livro de Cortázar realiza visualmente, ainda como plano em esboço, em esquema, no grafismo de uma imagem que é como que a versão em abstrato dos pássaros e peixes de Escher, das estrelas e enguias de Prosa del

ele se percebe mais solitário do que quando náufrago. Resta a Sexta-Feira ensinar-lhe que a redenção possível já não está nas mãos dos grandes heróis como ele se julgava, mas nas dos homens comuns, que vão deixar as “ilhas dos Robinsons” e voltar à terra firme para ali mesmo construir, juntos, a utopia. 90 observatorio , de homem e axolotl, de burguesa e mendiga: anverso e reverso que são aí claro e escuro, superfície e vão, matéria e intervalo, a formar um ao outro, segundo um modelo dialético dinâmico, cujo movimento se imprime à imagem como sugestão de uma realidade em dança, na qual os opostos já não se podem, de fato, desgarrar.

1.4 Instruções para dançar

Concebida como movimento constante ao ritmo do qual as formas se abrem umas

às outras, transformando-se, e as oposições convivem em sua diferença, conectadas pela analogia, a realidade projetada por Cortázar encontra na dança sua metáfora. Já fora ela o modelo de Mallarmé para a concepção de “Un coup de dés” (“Um lance de dados”), poema de revolucionária forma gráfica cujos signos seguem uma espécie de organização coreográfica, como veremos no próximo capítulo, e que é também expressão da utopia de um cosmos humanamente constituído. E, de fato, a dança incorpora em sua dinâmica os sentidos do desastre e do desejo, princípios de criação de uma utopia terrena, que se constrói a partir de um necessário divórcio de toda ordem superior e de um investimento 91 no humano, em tudo aquilo que faz parte deste mundo. Esta complexa transformação moral e política, exercida na esfera do abstrato, cumpre-se como gestualidade – trabalho em que se empregam formas concretas – no bailado da dançarina, que se alça, assim, à categoria de um ritual – profano, já se sabe, pois encenação rememorativa da ruptura com o sagrado e da opção pelo mundano.

Como a descreve Valéry, a dançarina é “o ato puro das metamorfoses” 75 . Seus movimentos encenariam o trabalho da forma que se abre ao informe, que reconhece sua potencialidade de transformação e se incorpora – literalmente entregando e empregando seu corpo – numa cadeia de metamorfoses que, no entanto, retorna invariavelmente ao corpo em seu estado inicial, cumprindo um percurso que é mais uma vez a descrição do circuito cíclico do anel de Moebius.

Em um texto escrito para Documents sobre a figura de Kâlî 76 , a deusa dançarina do panteão hindu e uma das representações da esposa de Chiva, Bataille reconheceu nessa gestualidade da dança a reminiscência de um trabalho sacrificial. Como observa

Didi-Huberman a respeito do texto,

esta descrição mitológica reúne de fato os dois elementos que Bataille havia até então tentado aproximar mais ou menos livremente: por um lado o recorte óptico de seu próprio corpo que toda dançarina induz, por meio de seus movimentos, na imaginação de seus espectadores; por outro lado o recorte orgânico – material, sangrento – que o sacrificador efetua sobre o corpo de sua vítima, ou que o carrasco efetua sobre o corpo do supliciado. 77

75 Paul Valéry. “A alma e a dança”, in: A alma e a dança e outros diálogos , 1996, p. 48. 76 Georges Bataille. “Kâlî”, in: Documents , 1968, p. 178-80. 77 « cette description mythologique réunit en fait les deux éléments que Bataille avait jusque-là tenté de rapprocher plus ou moins librement : d’une part la découpe optique de son propre corps que toute danseuse, par ses mouvements, induit dans l’imagination de ses spectateurs ; d’autre part la découpe organique – matérielle, sanglante – que le sacrificateur effectue sur le corps de sa victime, ou que le bourreau effectue sur le corps du supplicié » Georges Didi-Huberman . La ressemblance informe ou le gai savoir visuel selon Georges Bataille, 2003, p. 73. (Tradução nossa) 92

A dança repetiria, assim, a mecânica do sacrifício (que é também aquela do suplício), cumprindo visualmente uma operação de desmembramento, destruição do corpo constituído; e encenando virtualmente – num jogo de imagem – a violência do informe, do desastre a atuar sobre as formas. Este sentido é cristalizado na iconografia de Kâlî e confirmado por sua mitologia, como se percebe neste fragmento do artigo de Bataille:

Kâlî é a deusa do terrível, da destruição, da noite e do caos. Ela é a patrona do cólera, dos cemitérios, dos ladrões e dos prostituídos. Ela é representada enfeitada com um colar de cabeças humanas cortadas, seu cinto é feito de uma franja de antebraços humanos. Ela dança sobre o cadáver de Chiva, seu esposo, e sua língua, da qual escorre o sangue do gigante que ela acaba de decapitar, está completamente estendida para fora da boca, porque ela está horrorizada de ter faltado com respeito ao gigante morto. Conta a lenda que sua alegria por ter combatido e vencido os gigantes a levou a um tal grau de exaltação que sua dança fez tremer e oscilar a terra. Chiva acorreu atraído pelo tumulto, mas como sua mulher havia bebido o sangue dos gigantes, sua embriaguez a impediu de vê-lo: ela o derrubou, submeteu-o a seus pés e dançou sobre seu corpo. 78

Uma alegoria do desastre poderia ser considerada esta lenda de uma deusa que, carrasco de gigantes supliciados, dança em delírio sobre o corpo morto do próprio marido. Da mesma forma, sua representação, que preserva a força da violência e da desordem contidas em sua história, seria um perfeito emblema do informe, com a imagem da dançarina desfigurada e em êxtase sobre o cadáver, ornada por partes de corpos humanos decepados. Diante deste mito de destruição e caos, os hindus ofereceram homens e animais em sacrifício ao longo da história, e, ainda na época em que Bataille escreveu seu artigo, os crentes mais abastados presenteavam a deusa com antebraços de prata, línguas e olhos de ouro. 79

78 « Kâlî est la déesse de l’épouvante, de a destruction, de la nuit et du chaos. (...) Elle est représentée ornée d’un collier de têtes humaines coupées, sa ceinture est faite d’une frange d’avant-bras huains. » Georges Bataille. Opus cit., p. 180. (Tradução nossa) 79 Idem. 93

Esta manifestação do desastre e do informe como destruição da figura humana – de que o mito de Kâlî, fazendo a articulação entre suplício, dança e sacrifício, é um exemplo fundamental – era um dos principais focos de interesse de Bataille em

Documents . Cortázar propõe semelhante paralelo em um conto de nome “No se culpe a nadie”, cuja temática banal e o cenário doméstico farão apenas aumentar o impacto da violência que aí se manifestará. O relato é expressão daquele fantástico cortazariano que, conforme vínhamos observando, faz-se modo de manifestação “concreta” de uma concepção do real como forma aberta, suscetível a alterações que são, sim, agressões, mas não de monstruosos seres de outro mundo e sim da forma sobre si mesma.

Praticando este tipo de subversão muito caro ao autor, o conto apresenta uma situação usual e aparentemente inócua que se abre ao fantástico, desdobrando-se num evento insólito. Uma única cena constitui a narrativa: um homem, em seu quarto, a vestir um pulôver de lã azul. Ação corriqueira, cumprida sem que se pense no que se está a fazer, num automatismo que o início do relato comunica por meio da atitude algo enfadada mas descontraída do personagem, que, começando a vestir-se diante do espelho, assovia, se lamenta do tempo frio do outono, pensa na esposa que o espera para comprarem um presente de casamento. Aos poucos, porém, toda sua atenção terá de se voltar para sua ação imediata, que não se cumpre com a facilidade esperada.

Um índice colocado ainda nas primeiras linhas do conto põe em questão a banalidade da situação: depois de com muito custo ter conseguido enfiar um braço na manga do pulôver e fazer emergir dela um de seus dedos, o personagem tem a impressão de vê-lo transformado, “arrugado y metido para adentro, con una uña negra terminada em 94 punta” 80 . Este primeiro sinal de um trabalho do informe que se operará no conto é, porém, negligenciado pelo protagonista, que, retirando novamente o braço do pulôver, vê sua mão como sempre fora e, aliviado, recomeça a vestir-se.

A cada momento, porém, a tarefa se torna mais difícil. O pulôver, que o homem parece ter vestido erradamente, enfiando um braço numa das mangas e o outro na gola

(prendendo, assim, a cabeça), atrapalha seus movimentos e começa mesmo a sufocá-lo, grudando-se ao seu rosto, tapando-lhe a boca e o nariz. A descrição da cena é um primoroso trabalho discursivo. Não há quebra de parágrafos e as frases são longuíssimas

(algo pouco comum nos textos de Cortázar), impondo-se um ritmo de leitura que corta o fôlego do leitor, fazendo-o experimentar a sensação de sufocamento do personagem cuja desdita acompanha. Esse compartilhar da experiência é ainda intensificado pela narração em discurso indireto livre, que cria um efeito de aproximação entre leitor e personagem, como se se pudesse ouvir um seu monólogo interior enquanto se acompanha sua ação.

Além disso, a enumeração de todos os mínimos gestos por fim ineficazes do homem torna o texto angustiante, suspenso em expectativa (efeito criado pela técnica narrativa da divisão do acontecimento relatado em etapas) e constante fracasso, como se estivesse, ele próprio, preso numa armadilha. É, porém, sobretudo a combinação desta indicação precisa e exaustiva de cada gesto à especificação da parte do corpo nele implicada que se faz significativa para a compreensão do fenômeno diante do qual Cortázar nos coloca e que nos faz, de certa forma, experimentar.

Seguindo os gestos do personagem que inutilmente tenta arrumar o pulôver, o leitor parece assistir a uma estranha coreografia, que deixa o personagem desorientado no espaço conhecido mesmo de seu quarto

80 Julio Cortázar. “No se culpe a nadie” in Cuentos completos , v. 1, 1996, p. 293. 95

después de haber girado tantas veces com esa especie de gimnasia eufórica que inicía siempre la colocación de una prenda de ropa y que tiene algo de paso de baile disimulado, que nadie puede reprochar porque responde a una finalidad utilitaria y no a culpables tendencias coreográficas. 81

Não nos passará despercebida, por toda a discussão que nos trouxe até aqui, esta referência à dança: por definição, emprego do corpo num movimento que não serve a qualquer finalidade objetiva; que, como dizíamos, insere-o num ciclo de sucessivas alterações de sua própria forma, uma espécie de trabalho voluntário do informe que mais uma vez Paul Valéry cristalizou admiravelmente numa definição da dançarina: “essa mulher bizarramente desenraizada, que se arranca sem cessar da própria forma” 82 . Algo que ocorrerá, embora involuntariamente, ao personagem de “No se culpe a nadie”, que, como traído pela metáfora de seu solilóquio, acaba por executar uma dança absurda, levada ao extremo literal de seu sentido de metamorfose corporal, quando, na verdade, tentava apenas vestir-se.

Degas, pintor e escultor de tantas bailarinas, já fazia esta aproximação entre certa gestualidade pragmática e a dança, que Cortázar sugere em “No se culpe a nadie”, baseando-se, como o escritor, na percepção de um estado semelhante de alteração da forma intuído nos dois casos. Analisando a obra do artista francês, Valéry chama atenção para telas em que não são figurados passos de dança, poses coreografadas ou arabescos, mas gestos e posturas capturadas no decorrer da ação corriqueira do cotidiano: mulheres passando roupa, escovando os cabelos, banhando-se ou enxugando-se após o banho, bailarinas a calçar suas sapatilhas – formas cristalizadas pelo artista no limite tenso de sua transformação. Em posições anti-naturais, dobradas sobre si mesmas ou alongando ao máximo seus membros, torcidas, tensas, num esforço de postura necessário ao

81 Idem, p. 295. 82 Paul Valéry. A alma e a dança e outros diálogos , 1996, p. 44. 96 cumprimento da ação que desempenham, estas figuras de mulher desafiam sua própria forma, deformada, desequilibrada, posta em questão.

Estes “instantâneos” de Degas (são posiçoes insustentáveis por mais de alguns segundos, impossíveis de durar, momentos de passagem o que o pintor capta) poderiam ser tomados como uma espécie de contraparte visual dos gestos do personagem de “No se culpe a nadie”, que Cortázar registra por meio daquele procedimento de estratificação e especificação 83 que comentávamos mais acima. Através desta estratégia, o texto põe em evidência, como o fazem os quadros de Degas, a forma do corpo, que, levada a um limite tenso de si mesma por seus gestos, se contorce e se deforma dentro do pulôver.

Também a peça de roupa é exposta em sua materialidade e em sua forma, que desempenham papel fundamental no conto. É o contato do pulôver com o corpo do homem que o veste que desencadeará a operação do informe atuante em ambos. Ela

83 Cortázar o utiliza também em “Instrucciones para subir una escada”, de Historias de cronopios y de famas , mas para produzir um efeito de humor, muito diverso da agonia provocada pela cena de dilaceramento do conto aqui analisado. 97 parece se dar a partir de um deslocamento das formas, ou, melhor dizendo, de um deslocamento na relação que entre estas formas se estabelece. Estrutura aberta (no sentido raso, apenas físico, do termo), o pulôver é feito para comportar perfeitamente a parte superior do corpo humano, deixando de fora a cabeça e as mãos. Entre o corpo do personagem de Cortázar e seu agasalho de lã azul, porém, não se dá esta conformação harmoniosa. Uma relação equívoca se instaura entre as formas a partir do equívoco do homem ao vestir o pulôver, que já não comporta seu corpo,

como si él tuviera los hombros demasiado anchos para ese pull-over, lo que en definitiva prueba que realmente se ha equivocado y ha metido una mano en el cuello y la outra en la manga, con lo cual la distancia que va del cuello a una de las mangas es exactamente la mitad de la que va de una manga a outra, y eso explica que tenga la cabeza un poco ladeada a la izquierda 84

A deformação das formas, que já não se encaixam confortavelmente, mas, bem ao contrário, se forçam ao limite uma à outra – corpo comprimido, pulôver estirado –, dá início a um processo mais radical de transformação da figura humana, que o discurso do conto sustenta. Há na narrativa de Cortázar uma insistência em esmiuçar os movimentos já desordenados de seu personagem, evidenciando seu corpo e, mais do que isso, fragmentando-o. Isolando cada ação de cada um dos membros que o compõem, o discurso faz com que a consciência específica, material, independente dessas partes do corpo – mão esquerda, mão direita, braço esquerdo, braço direito, pescoço, cabeça, boca, nariz, olhos – se sobreponha à noção deste corpo como um todo íntegro, desconstruindo- o, decompondo-o. A estratégia narrativa, que opera uma espécie de esquartejamento discursivo, corrobora e fundamenta o conteúdo ficcional que apresenta: o personagem do conto sente seu corpo desmembrar-se. Percebe-se incapaz de coordenar os movimentos

84 Julio Cortázar. Opus cit, 1996, p. 294. 98 de suas diferentes partes, que lhe parecem desconexas; descobre que sua mão direita já não está sob seu controle, já não é a sua mão, embora continue presa a ele:

hay que utilizar la mano metida en la manga izquierda, si es la manga y no el cuello, y para eso con la mano derecha ayudar a la mano izquierda para que pueda avanzar por la manga o retroceder y zafarse, aunque es casi imposible coordinar los movimientos de las dos manos, como si la mano izquierda fuese una rata metida en una jaula y desde afuera otra rata quisiera ayudarla a escaparse, a menos que en vez de ayudarla la esté mordiendo porque de golpe le duele la mano prisionera y a la vez la otra mano se hinca con todas sus fuerzas en eso que debe ser su mano y que le duele a tal punto que renuncia a quitarse el pull-over, prefiere intentar un último esfuerzo para sacar la cabeza fuera del cuello y la rata izquierda fuera de la jaula y lo intenta luchando con todo el cuerpo. 85

Fragmentado e alterado, o corpo luta, num embate da forma consigo mesma, violência que se dá no nível da fisicalidade e se traduz na imagem cada vez menos metafórica e mais concreta e ficcionalmente factual das mãos evocadas como ratas. Não bastasse estarem dissociadas do corpo de que eram parte, elas já não são nem mesmo percebidas como elemento humano: são animais e animais asquerosos, um a lançar-se contra o outro para mordê-lo. Violento trabalho do informe em que o corpo tem rompida sua unidade e, cindido, revela um elemento de transgressora dessemelhança que lhe é constituinte e que, numa transgressão da forma pela forma, ameaça devorar sua própria semelhança, como nos diz tão emblematicamente a imagem das mãos, como ratas, mordendo uma à outra.

Dizer que as formas trabalham para sua própria transgressão é dizer que um tal ‘trabalho’ – debate e acomodação, fragmentação e entrelaçamento – faz com que as formas se lancem contra outras formas, com que sejam devoradas por outras formas. Formas contra formas e, vamos rapidamente constatar, matérias contra formas, matérias agredindo e, por vezes, engolindo formas. 86

85 Idem, p. 295. 86 « Dire que les formes ‘travaillent’ à leur propre transgression, c’est dire qu’un tel travail – débat autant qu’agencement, déchirure autant que tressage – fait se ruer des formes contre d’autres formes, fait dévorer des formes par d’autres formes. Formes contre formes et, nous allons vite le constater, matières contre formes, matières touchant et, quelques fois, mangeant des formes. » Georges Didi-Huberman. La ressemblance informe ou le gai savoir visuel selon George Bataille, 2003, p. 21-2. 99

O conto de Cortázar ilustra perturbadoramente este fragmento de Didi-Huberman.

A violência encenada por e sobre suas formas manifesta-se numa transgressão que parece ultrapassar os limites da própria transgressão, sugerindo uma volta à animalidade.

Procede-se no relato a uma destruição do corpo como organismo ordenado e à sua transformação em massa informe, constituída por um excesso de formas que lutam entre si como animais presos numa armadilha que já foi um pulôver de lã azul. Libertando-se dela por si mesma e vista pelo homem que finalmente consegue também livrar sua cabeça, a mão esquerda revela-se transformada em monstruosas garras negras, prontas para atacar o corpo do qual ainda faz parte, mas contra o qual se volta. Sem saída, o personagem defende-se puxando novamente o pulôver sobre a cabeça e, lançando-se para trás, numa tentativa de fugir de si mesmo, cai pela janela de seu apartamento, trágico desfecho de uma situação absurda que justifica o título do conto, versão profana – profanada – de um sacrifício que se faz suplício auto-imposto.

Aniquilado, violentado por algo de monstruoso que não lhe é externo, mas que o constitui, ameaça interna de sua própria forma que opera um trabalho do informe, este corpo não é objeto, mas lugar de uma transgressão que consiste num atentado à figura humana e ao antropomorfismo como um todo, posto em questão no processo violento de uma transformação que significativamente se dá sobre a mão, sobre os dedos de um homem, partes de seu corpo cujo controle fino o capacita para o trabalho, signo de sua separação da animalidade. Comparada a uma rata, transformada por fim em garras, esta mão desfigurada faz irromper no cerne mesmo da humanidade esta animalidade banida e

– sobretudo isto é importante frisar – não como alteridade que vem se opor à identidade, mas como alteração dela mesma que a põe em questão. 100

Repousa aí a crueldade do processo e do conto de Cortázar, que põe em cena o jogo dialético de uma semelhança dessemelhante que, por meio do trabalho do informe, atinge a figura humana, deformando-a, fazendo dela uma aberração que, monstruosa embora, é ainda e assustadoramente: figura humana. Cisão no antropomorfismo que concerne também ao leitor do relato: também ele tendo experimentado, por intermédio do discurso, o poder do informe, reconhecendo-se na figura de um homem que começa a vestir-se ao espelho, tendo diante de si a imagem de sua semelhança – como a tinha o leitor no personagem – e que por fim morre tentando escapar de sua mão transformada em garras, imagem de sua dessemelhança – signo que o próprio personagem constitui passa a constituir para o leitor, também ele posto a confrontar-se com a passagem da semelhança à dessemelhança. 87

Reedita-se neste conto de Cortázar, uma vez mais, a relação que se estabelece entre o fenômeno do informe (efeito do desastre, da cisão com uma ordem conformadora ) e a violência do sacrifício e do suplício. Não se faz presente aí, no entanto, uma outra associação de sentido que se faz essencial à compreensão deste trabalho do informe e que Bataille já sugeria com o texto sobre Kâlî, na imagem da deusa que dança extasiada sobre o corpo do marido: a questão do erotismo, para o teórico francês intimamente ligado ao sacrifício e ao suplício, tanto no que diz respeito ao seu mecanismo quanto no que tange ao seu sentido:

O sacrifício, se é uma ação consciente, é a ação deliberada cujo fim é a súbita transformação do ser que é a sua vítima. Esse ser é imolado.

87 Seria interessante comentar, a respeito deste processo de espelhamento de personagem e leitor do qual o segundo acaba saindo “ferido”, que “No se culpe a nadie” se segue imediatamente a “Continuidad de los parques” em Final del juego . Este conto propõe justamente uma ligação – uma inesperada continuidade – entre a vida de um personagem e a trama do romance que lê, que acabam se revelando, a nós leitores do conto, uma mesma história. O personagem, porém, leitor passivo como não os queria Cortázar, não percebe que está lendo a própria história, descobrindo o caso amoroso de sua mulher e o plano que ela e o amante têm para matá-lo. Acaba mesmo morto, no que parece ser uma punição a servir de exemplo a todo leitor. 101

Antes de ser sacrificado, ele estava fechado na particularidade individual. (...) sua existência é então descontínua . Mas esse ser, na morte, é reconduzido à continuidade do ser, à ausência de particularidade. Essa ação violenta – que priva a vítima de seu caráter limitado e lhe dá o ilimitado e o infinito que pertencem à esfera sagrada – é desejada em sua conseqüência maior. Ela é desejada como a ação daquele que desnuda a vítima que deseja e quer penetrar. O amante não desintegra menos a mulher amada que o sacrificador ao sangrar o homem ou o animal imolado. A mulher nas mãos daquele que a ataca é despossuída de seu ser. Ela perde, com seu pudor, esta firme barreira que, separando-a do outro, tornava-a impenetrável: ela se abre bruscamente à violência do jogo sexual deflagrado nos órgãos da reprodução, à violência impessoal que, vinda de fora, a ultrapassa. 88

Sacrifício e erotismo seriam, portanto, segundo Bataille, modos de ruptura da descontinuidade e passagem à continuidade, transição que se cumpre, em ambos os casos, por intermédio de uma ação de violência, de violação: uma abertura do corpo, da particularidade do ser, ao outro, que o desintegra. Trabalho do informe levado às últimas conseqüências (a morte ritual) pelo carrasco e suspenso na conclusão vicária e efêmera do clímax erótico (a “ pequena morte”) pelo amante.

Em um conto muito emblematicamente intitulado “Anillo de Moebius”, porém,

Cortázar estende para uma dimensão de além-vida esta operação do informe desencadeada por um ato erótico que será aí efetivamente e por todos os meios uma violação – trata-se de um estupro – e que se concluirá em morte, revelando sua clara associação com o suplício e com o sacrifício. Acompanhando suas personagens numa espécie de limbo post mortem , a escrita de Cortázar descreve o movimento de contínua metamorfose do corpo que, como a executar uma dança (segundo a concepção de

Valéry), perde toda definição de limites e toda rigidez de identidade, e se entrega a um fluxo de transformações, confirmando-se, enquanto forma, como “materialização do trabalho do informe”.

88 Georges Bataille. O Erotismo , 1987, p. 84. 102

Já a epígrafe do conto, retirada de Perto do coração selvagem , de Clarice

Lispector, remete a este trabalho do informe, processo de uma forma que se abre à decomposição de si mesma. Eis o fragmento, citado em espanhol por Cortázar:

Imposible explicarlo. Se iba apartando de aquella zona donde las cosas tienen forma fija y aristas, donde todo tiene un nombre sólido y inmutable. Cada vez ahondaba más en la región líquida, quieta e insondable donde se detenían nieblas vagas y frescas como las de la madrugada. 89

Este movimento de uma forma que sai da realidade ordenada, em que as coisas estão bem definidas e individualizadas, e mergulha numa zona de indiferenciação, mobilidade e suspensão, capturado como mistério no fragmento de Clarice, é o núcleo de sentido do conto de Cortázar, cuja temática será mais uma vez, como em “Lejana” e “Axolotl”, a relação problemática entre seres distintos que resulta num confronto de formas no plano mesmo da fisicalidade. Novamente, o paradigma estrutural deste jogo das formas é o anel de Moebius, aqui incorporado à própria disposição gráfica do texto, na qual trechos com fonte e margens regulares se alternam com parágrafos recuados e em fonte reduzida, correspondendo cada formatação ao ponto de vista ou aos acontecimentos relativos a um dos personagens do relato.

O enredo factual é simples: Janet, uma jovem inglesa em férias no interior da

França é atacada por Robert, um rapaz francês, enquanto passeia de bicicleta por um bosque. Ela é estuprada e morta, ele é julgado e condenado à morte, mas acaba por se suicidar em sua cela. A escritura de Cortázar, porém, bem como a estrutura de montagem de seu relato, alternando as perspectivas num jogo que se faz mesmo visual, agregam sofisticação à trama um tanto banal, transformando-a no mote de uma reflexão sobre a

89 Clarice Lispector apud Julio Cortázar. “Anillo de Moebius”, in: Cuentos completos , v. 2, 1996, p. 409. 103 relação dialética que se estabelece entre sacrifício e erotismo, desastre e desejo, também incorporados ao anel de Moebius que une as personagens de Cortázar.

O relato se inicia pela perspectiva de Janet, que passeia distraída pelo bosque. A cena é cortada então, como numa montagem cinematográfica, para Robert, que passara a noite num hangar deste “otro bosque aunque fuera el mismo bosque” 90 , expressão cuja lógica é aquela do anel de Moebius, cujos lados são sempre dois e o mesmo, e que anuncia tanto a oposição como a conexão que entre as personagens do conto se estabelecerá. Segue-se o encontro, o desconcerto de Janet ao se deparar com um homem no bosque no mais deserto, sua tentativa de seguir em frente e a intervenção de Robert, que a ataca como se tudo aquilo estivesse prenunciado – “Antes de que Janet lo viera él ya sabía todo, todo de ella y de él en una sola marea sin palabras, desde una inmovilidad que era como un futuro agazapado” 91 . Por duas perspectivas diversas, então, o mesmo estupro e, mais cruel do que o evento em si, a percepção da absoluta incomunicabilidade entre estes dois seres muito diversos postos em contato num ato extremo, que a construção multiperspectivada do conto de Cortázar revela ser, na verdade, um equívoco, um engano de trágico desperdício, pois por trás da violência da ação de Robert parece surgir um certo cuidado por Janet, e por trás dos gritos dela e de seus esforços para se libertar, compreende-se um horror que

no venía totalmente de la bestia barbuda porqué no era una bestia, su manera de hablarle al oído y sujetarla sin hundirle las manos en la piel, sus besos que caían sobre su cara y su cuello con picor de barba crecida pero besos, la revulsión venía de someterse a ese hombre que no era una bestia hirsuta pero un hombre 92

90 Julio Cortázar. “Anillo de Moebius”, in: Cuentos completos , v. 2, 1996, p. 409. 91 Idem, p. 410. 92 Idem, p. 411. 104

Aí já se percebe – a própria Janet percebe – que não vêm do contato com a diferença seu horror e sua repulsa, mas do ato sexual em si, da violência que este exerce e representa quaisquer que sejam as circunstâncias, da abertura do ser que aí se opera. É como “tortura” – esta a palavra escolhida por Cortázar, tão próxima do suplício – que

Janet sente a penetração de Robert, no momento mesmo em que ele, sem intenção e sem sequer perceber de imediato, a estrangula.

O assassinato, para além da conotação de suplício, assume o sentido de um sacrifício: imolação de um inocente – Janet era virgem – por um algoz que cumpre uma missão que não depende de sua vontade, que é expressão de um desígnio de outra ordem, incompreensível, mas incontestável, como demonstra este fragmento do monólogo interior de Robert:

que esa chica no se debatiera absurdamente puesto que él no quería hacerle daño, que comprendiera la impossibilidad de escaparse o de ser socorrida y se sometiera quietamente, ni siquiera sometiéndose, dejándose ir como él se dejaba ir tendiéndola sobre la paja y gritándole al oído que se calara 93

O conto de Cortázar recupera, assim – e acentua – a aproximação feita por

Bataille entre sacrifício e ato sexual. Desnudada e penetrada por Robert, e de fato morta por ele, Janet é vítima imolada, desintegrada em seu corpo e em sua particularidade, ato de violência e transgressão a partir do qual se abre um espaço de ilimitude e continuidade.

Não era, porém, o extremo da morte de Janet o que Robert pretendia. Qual patético gigante desastrado que ignora seu tamanho e sua força, e mata sem querer a bela virgem que lhe é oferecida em sacrifício, ele descobre confuso, desapontado e aborrecido

93 Idem, p. 411. 105 que ela já não se move, já não grita, já não pode vê-lo. É apenas um corpo sem resistência, sem sentido, um brinquedo quebrado:

Veía la boca entreabierta y torcida, el hilo de baba rosada resbalando por el mentón, los brazos en cruz con las manos crispadas, los dedos inmóviles, el pecho inmóvil, el vientre desnudo con sangre brillando, resvalando lentamente por los muslos entreabiertos. Cuando gritó, levantándose de un salto, creyó por un segundo que el grito venía de Janet, pero desde arriba, parado como un muñeco oscilante, venía las marcas en la garganta, el torcimiento inadmisible del cuello que ladeava la cabeza de Janet, la volvía algo que estava burlando de él con un gesto de títere caído, todas las cuerdas cortadas. 94

É o signo de uma semelhança dessemelhante que Robert vê no corpo de Janet, que, morto, impõe o que Didi-Huberman chamou uma “modalidade inelutável do visível”: um ato de ver que abre, naquilo que vemos, um vazio que nos olha ; “um trabalho do sintoma no qual o que vemos é suportado por (e remetido a) uma obra de perda”. 95 Em sua imobilidade (tão ressaltada por Cortázar em sua descrição), em sua forma ainda humana, mas já alterada, que logo começará a se decompor, o cadáver se anuncia como o semelhante que incorpora o vazio, “traço de uma semelhança perdida” 96 , prenúncio do informe que em todo corpo se manifestará: índice do desastre iniludível.

Assim que Janet, já não mais humana – “títere caído” –, é esse “algo” que zomba de

Robert – ele próprio já um “boneco oscilante” –, revelando-lhe seu próprio fim, sua própria morte, o vazio que nele próprio se irá instalar.

Quanto a Janet, corpo violado, cindido, lugar-vazio, forma corrompida e aberta ao informe, produto do desastre, ela penetra num meio líquido em que as formas parecem dissolver-se, como anunciava a epígrafe de Clarice; espaço de indiferenciação e metamorfose que a tudo mergulha num estado de instabilidade e movimento contínuo:

94 Idem, p. 413. 95 Georges Didi-Huberman. O que vemos, o que nos olha , 1998, pp. 33-4. 96 Idem, p. 35. 106

un ser en viento o ser en follaje, o ser de nuevo en cubo, ser cada vez más Janet en, ser Janet en el tiempo, ser eso que no era Janet pero que pasaba del estado cubo al estado fiebre o volvía al estado oruga, porqué cada vez más los estados se fijaban y establecián y de algún modo se delimitavan no solamente en el tiempo sino en el espacio, se pasaba de uno a otro, se pasaba de una placidez cubo a una fiebre circuito matemático o follaje de selva ecuatorial o interminables botellas cristalinas o torbellinos de maelstrom en suspensión hialina o reptación penosa sobre superfícies de doble cara o poliedros facetados .97

O “circuito matemático” que aí se descreve não é ainda, porém, anel de Moebius: permanece superfície de duas faces separadas , poliedro de lados distintos , círculo vicioso. Percorrendo-o, Janet não é ainda a formiguinha de Escher, que passa livremente do lado de dentro para o lado de fora de um anel cujos lados são o mesmo lado. Ela está ainda no seu lado, como estivera em vida no seu bosque. Sua dança é ainda apenas evolução de uma forma entregue ao informe, suplício de deformação – desastre de um corpo solto num espaço de caos. Ela acabará, porém, por se fazer movimento voluntário, revelando sua contraparte de desejo ao final de mais um ciclo sobre um círculo que, não mais vicioso, se torce para dar acesso a um outro lado:

cuando al término de lo indeterminado todo coaguló en el estado cubo, no fue el horror sino el deseo lo que la esperaba al otro lado del término , con imágenes y palabras en el estado cubo, con el goce de su cuerpo en el ser en olas. Comprendiendo, reunida con sí misma, invisiblemente ella Janet, deseó a Robert, deseó otra vez el hangar de otra manera, deseó a Robert que la había llevado a lo que era ahí y ahora, comprendió la insensatez bajo el hangar y deseó a Robert, y en la delicia de la natación entre cristales líquidos o estratos de nubes en la altura lo llamó, le tendió su cuerpo boca arriba, lo llamó para que consumara de verdad y en el goce la torpe consumación en la paja maloliente del hangar. 98

O vazio aberto em Janet pela violência de um ato erótico sacrificial passa assim a impulso de seu desejo por uma consumação autêntica do erotismo, não menos violenta, mas agora voluntária, visando a uma superação – ainda que provisória – da diferença, da separação e da incomunicabilidade numa fusão amorosa com aquele que fora seu

97 Julio Cortázar. “Anillo de Moebius”, in: Cuentos completos , v. 2, 1996, p. 415. (grifos nossos) 98 Idem, p. 416. 107 carrasco: “violación entre convulsiones de protesta donde ahora anidaba el deseo, la voluntad de finalmente ceder entre lágrimas de goce, de aceptación agradecida, de

Robert” 99 . Cumpre-se aí o arco que une o suplício (e o sacrifício) ao erotismo, e o desastre ao desejo: lados de uma figura matemática que acabará por revelá-los diversos, mas um só e o mesmo, neste – por fim – “Anillo de Moebius” em que mesmo os extremos da morte e da vida se tocam brevemente, quando Janet se faz cubo de diamante na cela de Robert que, mesmo sem vê-la, suicida-se, passando para o seu lado, agora um só lado no mesmo parágrafo do texto de Cortázar, onde continuará a busca, a passagem de um a outro estado, de uma a outra forma, dança que se faz movimento de desejo, até que “alguna vez al término del tibio balanceo en olas cristales una mano alcanzaría la mano de Janet, sería al fin la mano de Robert” 100 .

Também as enguias de Prosa del observatorio desempenham uma dança como esta, cumprindo passo a passo uma coreografia curiosamente semelhante às metamorfoses de Janet, qual balé de repertório executado por companhias bem diversas que, no entanto, executam os mesmos arabescos e as mesmas piruetas para encenar um mesmo drama de sacrifício e erotismo, desastre e desejo.

Para as enguias, tudo começa, termina e recomeça com uma “danza de muerte y de renacimiento” ( PO , p.17):

inseminadas al término de un ciclo de lentas mutaciones, las anguilas que tantos años vivieron al borde de los filos del agua vuelven a sumergirse en la tiniebla de cuatrocientos metros de profundidad, ocultas por medio kilómetro de lenta espesura silenciosa ponen sus huevos y se disuelven en una muerte por millones de millones, moléculas del plancton que ya las primeras larvas sorben en la palpitación de la vida incorruptible. (PO, p.17)

99 Idem, p. 417. 100 Idem, p. 418. 108

Na dinâmica natural deste sacrifício das enguias adultas que desovam e morrem para dar lugar a seus filhotes, e servir-lhes mesmo de alimento, como sugere o fragmento de

Cortázar, ilustra-se da maneira mais material e concreta a relação dialética que une a vida e a morte, como explica Bataille neste trecho de O Erotismo que constitui uma análise precisa do fragmento de Prosa del observatorio :

A morte de um é correlativa ao nascimento do outro, que ela anuncia e de que é a condição. A vida é sempre um produto da decomposição da vida. Ela é tributária, em primeiro lugar, da morte, que desocupa o lugar; em segundo, da corrupção, que acompanha a morte, e repõe em circulação as substâncias necessárias ao incessante aparecimento de novos seres. 101 Fica clara aí a interdependência que entre morte e vida se estabelece. A vida depende da morte, que abre lugar para uma nova vida – ou para uma nova forma de vida, como vimos no caso de Janet, que, morta, penetra num espaço de continuidade e transformação, passando de uma forma a outra, numa cadeia cíclica como a das enguias, que, a partir da morte de seus genitores, vivem um ciclo de metamorfoses que as levará de larvas a leptocéfalos e então a angulas, a enguias amarelas, finalmente a enguias prateadas, quando então, depois de completado seu tempo de vida nos rios, mais uma vez

(única para cada uma delas, mas ritualística repetição para sua espécie) se tornarão amorfas e se entregarão à correnteza das águas, deixando-se levar como Janet passava, esquecida de si mesma, de um a outro estado em seu mundo líquido, até que por fim, reinvestidas de desejo, de uma vontade de procriação e morte correspondente ao desejo de Janet por Robert, serão

eso que vuelve a su origen sin que se sepa cómo, eso que es otra vez la serpiente atlántica, inmensa cinta plateada con bocas de agudos dientes y ojos vigilantes, deslizándose en lo hondo, no ya movida pasivamente por una corriente, hija de una voluntad para la que no se conocen palabras de este lado del delirio, retornando al útero inicial, a los

101 Georges Bataille. O Erotismo , 1987, p. 53. 109

sargazos donde las hembras inseminadas buscarán otra vez la profundidad para desovar, para incorporarse a la tiniebla y morir en lo más hondo del vientre de leyendas y pavores. ( PO , p.41)

Nesta nova dança – mas a mesma dança – em que se cruzam morte e vida, as enguias dão continuidade à sua espécie, fechando um ciclo para iniciar outro, mapeando um percurso que é ainda círculo fechado – “orden cerrado / centro / concentración” 102 em palavras de Cortázar. Como Janet, são formas em mutação, formas em que opera o informe, mas são ainda elas mesmas: “espejos fusiformes que se replican y se desdoblan en una lenta danza” ( PO , p.31). No entanto, a desastrada maquinaria do desejo de Prosa del observatorio quebra este jogo de espelhamentos, abre e torce o ciclo dos peixes em operações de analogia, em trabalhos de imagem (efetivamente concretizados em imagens, se nos lembrarmos daquele “manual de origami” formado pelas fotografias do Rama

Yantra e do Misra Yantra: círculos separados na primeira imagem, curva de anel retorcido na segunda), fazendo enguias encontrarem estrelas por meio de uma escritura que faz das palavras, pontes – “la galaxia negra corre en la noche como la otra dorada allá arriba en la noche corre inmóvilmente” ( PO , p.15) – fundindo ciclos na promessa de um mundo conciliado:

imagen donde todo está esperando; en este mismo instante las jóvenes anguilas llegan a las bocas de los ríos europeos, van a comenzar su asalto fluvial; acaso ya es de noche en Delhi y en Jaipur y las estrellas picotean las rampas del sueño de Jai Singh; los ciclos se fusionan, se responden vertiginosamente ( PO , p.77)

Abre-se assim, em Prosa del observatorio , um “campo de contacto” ( PO , p.51), de correspondência, um espaço de imagem: mosaico de caleidoscópio projetado por uma maquinaria que, movida a desastre e a desejo, abre, desloca e combina formas, encenando

102 Julio Cortázar. Caderno de Bitácora, in: Rayuela , 1996, p. 478. 110 com estrelas e enguias episódios de sacrifício e erotismo que compõem a mitologia de um universo reordenado, a origem de uma nova história.

1.5 Instruções para criar uma máquina do mundo

Esta a proposta maior (e muito ousada) deste livro: a fundação, na esfera do mito

– mas não do misticismo – de uma nova máquina do mundo: subversiva, revolucionária, calcada na transgressão (“princípio de uma desordem organizada” segundo Bataille 103 ): trabalho de imagens concebidas no jogo sacrificial e erótico de formas que se abrem umas às outras. Imagens que, portanto, incorporam operações de rompimento e associação, deformação e metamorfose, desastre e desejo, e põem em movimento as engrenagens de uma maquinaria alegórica, produtora de sentidos sempre novos para si mesma e para o mundo que representa. Um modelo particular de “máquina desejante”

(retomando o conceito de Deleuze e Guattari já apresentado) a que Michel de Carrouges chamou “máquina celibatária” (“machine célibataire”) 104 .

De acordo com sua análise, estas máquinas, descobertas em obras estéticas – plásticas e literárias –

fazem aparecer em traços de fogo o mito maior onde se inscreve a quádrupla tragédia de nosso tempo: o nó górdio das interferências do maquinismo, do terror, do erotismo e da religião ou da anti-religião. São prodigiosos sinais de alarme que elas nos dirigem, do alto de seus

103 Georges Bataille. O Erotismo , 1987, p. 112. 104 Michel de Carrouges. Les machines célibataires , 1954. Cabe ressaltar que o conceito de Carrouges é anterior ao de Deleuze e Guattari. 111

observatórios erigidos sobre altas torres, no coração do oráculo moderno. 105 Observatório de fato – embora desastrado, transportado para as páginas de um livro – Prosa del observatorio afirma-se emblematicamente nesta função crítica que

Carrouges atribui às “máquinas celibatárias”: constrói-se como uma espécie de mito

(embora alegoria seja um termo mais preciso, já que o trabalho aí posto em prática é justamente a empresa de uma ruptura com o sagrado e de um investimento no humano que se concretiza em imagens) para o qual convergem as grandes questões da época moderna. No seu microcosmos de enguias, estrelas, ictiólogos e sultão indiano, o religioso (ou o anti-religioso), o erótico, o mecânico e o terrível de nosso tempo interagem numa representação do mundo que supera os limites da mímese para se fazer meio de reflexão, e vai além mesmo da postura de trágico oráculo apontada por

Carrouges erigindo-se – sem prejuízo da consciência crítica que encarna, mas justamente a partir dela – em arauto da utopia.

Observar a realidade e reordenar seus elementos – esta a proposta da literatura de

Cortázar, enunciada na alegoria de um maravilhoso observatório desde onde um sultão vê astros e peixes, e os recolhe – “pescador que extrae de la red, estremecida de dientes y de rabia, una anguila que es una estrella, que es una anguila que es una estrella que es una anguila” (PO, p.13) – para formar com eles um mosaico de caleidoscópio. Desastre – queda de astros e captura de peixes – a partir do qual se exerce o desejo – enguias e estrelas em perseguição no infinito do anel de Moebius: princípios da formação de uma imagem crítica e utópica do mundo – produto desta maquinaria do olhar que Cortázar

105 “font apparaître em traits de feu le mythe majeur où s’inscrit la quadruple tragédie de notre temps: le noeud gordien des interférences du machinisme, de la terreur, de l’érotisme et de la réligion ou de l’anti- religion. // Ce sont des prodigieux signaux d’alarme qu’ils nous adressent, du haut de leurs observatoires érigés sur de hautes tours, au coeur de l’orage moderne.” Idem, p. 24-5. (Tradução nossa) 112 inscreve em seu livro, efetivamente representando seu funcionamento em rituais

(profanos – fora do templo , como veremos) sacrificiais e eróticos.

Para compreendê-los, observemos uma vez mais aquela primeira fotografia de

Prosa del observatorio :

Esta imagem se constrói como um signo de abertura 106 em diversos níveis de sentido. Em primeiro lugar, é emblema do pórtico de entrada de Prosa del observatorio , função que se encarna o mais concretamente possível na figura do portal no alto da escadaria. A foto do Samrat Yantra se torna, assim, uma espécie de iconografia da abertura, conferindo concretude e visualidade ao impulso que inicia o texto de Cortázar: a busca da “brecha en la sucesión” (PO, p.9), que encontra na arquitetura dos observatórios de Jai Singh seu lugar. A fotografia não se limita, porém, a uma representação ou a um

índice da abertura: é também produto de uma abertura, concepção já implicada em sua gênese, composição de uma imagem produzida por meio de um instrumento óptico que deforma o real, fragmentando-o e abrindo-a a outros sentidos, como faz toda fotografia, potencialidade intensificada pelo uso da objetiva grande-angular.

106 Signo, não símbolo, pois lugar de uma articulação de forma e sentido, significante e significado que não se sobrepõem um ao outro como necessariamente tem de ocorrer na operação simbólica, abstracionista, mas que continuamente remetem um ao outro, não apenas em atos de reafirmação, mas também em atentados de fratura e alteração que tocam a concretude da forma e repercutem no sentido que esta assume. 113

Com seus efeitos de deformação de massas e volumes, e convergência de linhas verticais – essenciais para a composição desta imagem que analisamos – a grande-angular

é um poderoso instrumento de alteração das formas e, justamente, a partir de uma operação de abertura que é a essência do seu funciamento. Já diz o nome: a objetiva grande-angular é um conjunto de lentes cujo ângulo de abrangência é maior do que aquele que o olho humano é capaz de alcançar. Ela produz, portanto, uma verdadeira abertura do olhar, que se torna apto, por intermédio do seu jogo de lentes, a captar imagens mais amplas da realidade. Olhar o mundo por uma grande-angular ou observar imagens por ela produzidas é como ver abrir-se a moldura em que normalmente enquadramos o real, alargando-se ele próprio neste processo, como uma tela que se estica e carrega consigo as formas nela delineadas, tensionadas até o limite de sua deformação.

Uma realidade mais ampla e uma realidade transformada o que se dá a ver, portanto, nas imagens produzidas por esse instrumento que não à toa os fotógrafos surrealistas usavam muito e ao qual se atribui, para além ou a partir de seu poder técnico de alteração da forma, a potencialidade subjetiva – ou mesmo psicológica, poderíamos dizer – de investir suas imagens de uma espécie de fantasmagoria decorrente do processo de deformação / transformação que nelas se dá. Esta objetiva revelaria, a partir de um trabalho sobre a forma sensível – visual – das coisas, sua dimensão de sintoma. O instrumento óptico tomaria a imagem de objetos conhecidos da realidade empírica e os transformaria virtualmente segundo um procedimento dialético que, conservando-os em sua recognoscibilidade, revelaria, na familiaridade mesma de sua forma, elementos e aspectos estranhos, não exteriores, mas desde sempre constituintes dela, apenas não vistos, não percebidos pelo olhar comum: índices de dessemelhança constituinte – 114 retomemos o conceito – que engendra na forma o trabalho do informe, para o qual a grande-angular seria um catalisador. Operação que implica, como já vimos, uma violência fundamental, e que se baseia num princípio de crueldade segundo o qual se estabelecem, na estrutura cindida, dialética da imagem, processos de deformação das formas e relações transgressoras entre as formas. Como observa Didi-Huberman,

Reivindicar o informe não quer dizer reivindicar as não-formas, mas se engajar num trabalho das formas equivalente ao que seria um trabalho de parto ou de agonia: uma abertura, uma fragmentação, um processo aflitivo levando alguma coisa à morte e, nesta negatividade mesma, inventando algo absolutamente novo, trazendo-o à tona e expondo-o a uma crueldade do trabalho nas formas e na relação entre as formas – uma crueldade nas semelhanças . 107

Este o drama que vimos desenrolar-se em contos como “Lejana”, “Axolotl”, “No se culpe a nadie” e “Anillo de Moebius”, em que se narra o processo sempre violento de uma abertura – não importando o meio pelo qual se dê, seja quebra da linguagem, cisão do sujeito na descoberta de um duplo, esquartejamento de um corpo ou sua morte num ato de violação –, instituição de um vazio desastroso a partir do qual as formas cindidas e incompletas se empenham numa busca movida pelo desejo, alterando-se, transformando- se, descobrindo-se outras em si mesmas e migrando para outras formas, estabelecendo transgressoras e cruéis relações de semelhança, como as que temos visto entre uma burguesa de Buenos Aires e uma mendiga de Budapeste; um visitante do zoológico e um ajolotle preso em seu aquário; um homem e suas mãos monstruosas; uma jovem, a miríade de formas em que seu corpo violado se dissolve e seu estuprador. Transgressoras

107 « Revendiquer l’informe ne veut pas dire revendiquer des non-formes, mais plutôt s’engager dans un travail des formes équivalente à ce qui serait un travail d’accouchement ou d’agonie : une ouverture, une déchirure, un processus déchirant mettant quelque chose à mort et, dans cette negativité même, inventant quelque chose d’absolument neuf, mettant quelque chose au jour, fût-il le jour d’une cruauté au travail dans les formes et dans les rapports entre formes – une cruauté dans les ressemblances. » Idem, p. 21-2. (Tradução nossa) 115 associações entre formas a partir das quais se constroem transgressoras dialéticas conceituais: sacrifício e erotismo, morte e vida, desastre e desejo.

Estas abstrações tomam corpo no contexto alegórico-mítico que se cria em Prosa del observatorio . Dialética que se faz imagem, sua primeira fotografia, sua pedra fundamental, é signo de desastre e desejo, de morte e vida, de sacrifício e erotismo – sentidos de que serão investidas todas as formas que transpuserem o portal no alto dos degraus para fazer-se imagem desta máquina do mundo em que tudo o é.

O informe opera na imagem da escadaria, produzida a partir de um trabalho maquínico de abertura do olhar que introduz naquilo que vê e registra potencialidades de decomposição e de proliferação – ato de estética violência, correspondente ao esquartejamento de um corpo, cujos membros decepados iriam aos poucos se decompondo, se alterando pela ação dos elementos, pela proliferação de organismos que os habitariam e devorariam, transformando-os por completo. Processo que virtualmente se verifica na escadaria do Samrat Yantra fotografada por Cortázar – arrancada ao seu contexto próprio e lançada a um meio que irá devorá-la e transformá-la, fazendo-a incorporar diferentes semelhanças e diferentes sentidos: uma escadaria, um falo, uma serpente, um altar de sacrifício. Por qualquer um destes aspectos poder-se-ia começar o estudo desta imagem. Comecemos pelo último.

Para o leitor de Cortázar que olha a foto ainda sem conhecer seu referente real, a forma nela figurada pode trazer à lembrança o cenário místico pré-colombiano de escadarias íngremes que conduziam a templos religiosos construídos no topo de grandes pirâmides escalonadas. De fato, voltando a nossas breves considerações técnicas sobre a arte da fotografia, a estratégia de composição desta foto – em que se articulam 116 procedimentos como a tomada do ângulo de visão de baixo para cima, o enquadramento em close e, sobretudo, o uso da grande-angular – produz uma anamorfose: um jogo de linhas convergentes pelo qual se tem a ilusão de que a escada é muito mais larga na parte de baixo, estreitando-se progressivamente até o alto. Cria-se assim uma figura de contorno triangular que se mostra, com o efeito da perspectiva, como uma pirâmide. No alto de construções assim, no lugar mais próximo do céu onde habitariam os vários deuses louvados pelos antigos povos da América, eram celebrados ritos sacrificiais. Subir as escadarias íngremes das pirâmides representava, para os membros daquelas civilizações, uma ascensão rumo ao sagrado. Este sentido, enraizado na memória de um

Cortázar latino-americano, parece insinuar-se na fotografia da escadaria do Samrat

Yantra de Jaipur, ainda que a forma da pirâmide seja aí resultado de um trabalho de perspectiva – ou um tanto por isso, podemos pensar.

Aquela “crueldade nas semelhanças” apontada por Didi-Huberman manifesta-se nesta associação resultante de um efeito de deformação da imagem que fará com que nela se cruzem dialeticamente elementos tão opostos mas tão necessariamente complementares quanto os claros e escuros que a constituem: um instrumento de observação astronômica e um templo de sacrifício; um elemento considerado alto produto da civilização e um monumento que é, para muitos, testemunho da barbárie; ciência e religião; ordem e violência; razão e magia; saber e não-saber; profano e sagrado; trabalho e festa; mensuramento e desmedida; contenção e excesso; construção e destruição; erotismo e morte; continuidade e descontinuidade; interdito e transgressão... Opostos implicados no mecanismo daquela dialética sem síntese da imagem, que já conhecemos: trabalho que sobre as formas se cumpre, operando a partir de sua alteração uma 117 desestabilização e uma relativização de conceitos, que, deslocados, têm minada a fixidez de seu lugar e de seu valor, pondo-se em movimento, contaminando-se num processo de interpenetração que não predita, porém, fusão, super-dominância ou definitiva inversão de, neste caso, barbárie primitiva e modernidade civilizada, mas a elaboração de uma percepção e de um saber sintomais, que desvelam algo de bárbaro no civilizado e algo de civilizado no bárbaro.

Dinâmica a que Cortázar dá vida num conto de nome “La noche boca arriba”, no qual os conceitos abstratos de civilização e barbárie se manifestam como noções depreendidas de modos concretos de ação sobre o corpo, sobre as formas em sua fisicalidade. A estrutura do relato segue, mais uma vez, o modelo estrutural do anel de

Moebius, concretizado exemplarmente (por meio de recursos gráficos, inclusive) no conto cujo título já apontava para esta estrutura matemática, mas praticado também em muitos outros textos do autor. No caso do que analisamos agora, ele se concretiza no desenvolvimento de duas linhas discursivas correndo lado a lado, de duas histórias que convergem e se bifurcam ao longo do texto, articulando-se numa operação de montagem determinada por relações de semelhança e dessemelhança estabelecidas por traços de similaridade e diferença disseminados pelas linhas narrativas diversas. Mecanismo que é semelhante em sua lógica àquele que, segundo Freud, comanda a constituição do sintoma e do sonho, formas definidas por operações de deformação e alteração. Em “La noche boca arriba”, esta referência psicanalítica não se limita, porém, a um paradigma estrutural de construção (como no caso de outros contos de Cortázar, e na dialética subversiva por ele praticada, a que o mecanismo do sintoma serve de modelo formal), penetrando de fato na trama do relato, constituído por linhas narrativas definidas como os estados de vigília 118 e sonho do protagonista. Acordado, ele é um rapaz que sofre um acidente de moto nas ruas de uma grande cidade moderna, é socorrido e levado a um hospital, operado e posto em repouso num leito de enfermaria. Adormecido, sonha que é um fugitivo moteca (um dos povos que habitavam a América pré-colombiana) capturado por guerreiros astecas no tempo da chamada “guerra florida”, período sagrado durante o qual inimigos eram feitos prisioneiros para serem oferecidos aos deuses em sacrifício. Alguns elementos aparentemente circunstanciais estabelecem pontes entre as duas histórias, à semelhança do que acontece nos sonhos, que recuperam, deformando-os e alterando-os, num processo ainda potencializado pelo recurso ao fantástico, elementos da realidade experimentada na vigília.

O primeiro destes elementos é um traço discursivo: a semelhança fonética dos termos motocicleta (abreviada em moto ) e moteca . A partir desta relação estabelecida no plano verbal, teremos a corrida de moto vivida pelo personagem do conto transposta para o seu sonho como a corrida em fuga de um moteca . Esta aproximação de duas situações e de dois sujeitos tão diversos a partir de um jogo de palavras lembra, para além dos exercícios de livre-associação surrealista, a trama de “Lejana”, que já comentamos. Ali, a quebra e a reordenação dos fragmentos do nome da protagonista, Alina Reyes, produzia uma forma aberta, “es la reina y...”, deformação e abertura operadas no corpo da linguagem que repercutiam no corpo físico e na subjetividade por ela definidos, abrindo- se caminho para uma inusitada conexão entre uma burguesa de Buenos Aires, a “rainha”, como já apontava seu sobrenome Reyes, e aquela que não o era: uma mendiga de

Budapeste. Em “La noche boca arriba”, a conexão soa ainda mais inusitada, reunindo um homem do século XX que vive numa cidade moderna e um habitante da América pré- 119 colombiana. Eles são associados numa relação de problemática identidade por meio de um jogo imbricado e subversivo de linguagem, no qual a semelhança formal entre os significantes motocicleta /moto e moteca (aproximação já transgressora, porque equívoca: não há justificativa morfológica para esta proximidade fonética, espécie de lapso do código lingüístico) é apenas a primeira etapa de uma articulação em três níveis.

A proximidade sonora constitui o índice da associação entre os elementos, e seu estopim; isolada, não basta, porém, para conferir sentido à relação que sugere. Isto caberá

às etapas seguintes do processo de articulação por meio do qual esta relação efetivamente se define. Trata-se de uma retórica, pois são signos os termos aí manipulados e empregados em tropos, trabalhos figurados da linguagem, trabalhos de imagem.

Tentemos descrevê-la: ultrapassada a etapa primária, fonética, da articulação, teremos, em nível secundário, uma operação metonímica. A metonímia é definida por Barthes como uma relação de contigüidade estabelecida entre elementos que ocupam níveis diferentes em cadeias paradigmáticas diversas: 108 neste caso, entre um homem – o moteca que corre para escapar de seus perseguidores – e o objeto possuído por um outro – a moto que o homem moderno usa para se locomover. Deste modo, em lugar de uma associação direta entre um e outro sujeito, que definiria uma metáfora, vemos estabelecer-se uma relação em deslocamento, metáfora defasada e deturpada: metonímia. Esbocemos um esquema:

Cadeia 1: sujeito Cadeia 2: objeto

homem moderno moto

(metáfora) metonímia

moteca

108 Roland Barthes. “A metáfora do olho”, in: Georges Bataille. História do olho , 2003, p. 126. 120

É à metáfora que se aspira, porém, e a ela se chegará, embora numa operação não imediata, mas mediada – e corroída – pela metonímia. A adiada relação metafórica, terceira etapa da articulação entre os termos das histórias paralelas do conto, se constitui

– como relação de afinidade entre termos dessemelhantes 109 – a partir de fragmentos diversos disseminados pelo texto, desdobrando-se em situações diversas que criam uma um elo de identidade corrompida – já a interferência da metonímia o determinava – entre o homem moderno que corre de moto pela cidade e o moteca que corre pela selva.

Paisagens discrepantes cujo percurso aproxima, porém: a rota de fuga do moteca, que inicialmente segue por uma trilha desbastada na selva e depois se embrenha nela, na tentativa de se esconder num lugar mais secreto, sendo por fim capturado ali, parece recuperar o trajeto do motociclista pelo centro da cidade e depois por uma rua pouco movimentada cercada de árvores e jardins, onde ocorre o acidente. Também este evento é reeditado no sonho da vítima, representado no momento da captura do moteca, golpeado pelas costas pelos astecas; o condutor da moto, que se esforçara para freá-la e não atropelar uma pedestre, fora lançado para trás no momento do choque inevitável, caindo de costas no pavimento da rua com um baque violento. Segundo o mesmo mecanismo, a posição do paciente deitado em seu leito de enfermaria, com um braço engessado e suspenso por cordas e roldanas, remete ao modo como os astecas deixaram seu prisioneiro, amarrado e deitado no chão das masmorras de um templo. Carregado para o sacrifício, de barriga para cima percorrendo os corredores da masmorra e depois rumo ao alto de uma pirâmide escalonada, o personagem parece repetir a situação de seu salvamento após o acidente, quando o carregaram até uma farmácia e depois, de

109 Idem, p. 121. 121 ambulância, até o hospital. Finalmente, estando para ser morto no alto do templo pelo facão de pedra do carrasco, o homem parece ver reproduzir-se deformada a seqüência de sua operação no hospital, o momento em que fora transferido para a mesa de cirurgia como o moteca era colocado sobre o pedestal do sacrifício, a aproximação do facão de pedra do carrasco lembrando a visão do bisturi do médico.

No entanto, na virada fantástica do conto, invertem-se as posições do sonho e da realidade. O protagonista do relato já não é um homem do século XX que, internado após sofrer um acidente, sonha que é um moteca prestes a ser sacrificado; é um moteca que, no momento em que vai ser morto, pensa na mentira de um sonho absurdo no qual corria sobre um enorme inseto de metal pelas ruas de uma cidade estranha e assombrosa. A civilização é desmentida como um sonho delirante; a barbárie é real. A crueldade nas semelhanças que sustentava a operação metafórica do conto – segundo a qual se associam a solidariedade dos que ajudam no resgate do acidentado e a crueldade dos que transportam a vítima para o sacrifício; a intenção de curar do médico e a de matar do carrasco – assume um perturbador valor de verdade. O sonho, suposta metonímia da vida

– uma sua parcela apenas –, faz-se metáfora na retórica transgressora deste conto no qual, onde deveria haver metáfora, há metonímia, e, onde deveria haver metonímia, há metáfora. Tropo que transgride seu estatuto retórico e assume amplitude de fato ficcional, concretizando o saber barroco de que “la vida es sueño” 110 . Fórmula dialética potencializada pelo fantástico de Cortázar, que torna indeterminados e intercambiáveis os lugares do sonho e da realidade, chegando ao extremo de pôr em questão o estatuto desta como tal. Jogo reflexivo que já não tem em vista propriamente um debate acerca dos juízos de valor atribuídos às categorias de civilização e barbárie, propondo uma hipótese

110 Este o título de uma das mais conhecidas peças de Calderón de la Barca. 122 que de certo modo ultrapassa essa discussão: a noção de uma equivalência ou mesmo de uma identidade entre uma e outra, ambas caracterizadas pondo em cena sujeitos, atos e acontecimentos transgressoramente semelhantes, cuja suposta oposição, tão prezada e reafirmada pela civilização, repousaria tão-somente numa questão de interpretação. Esta a dessemelhança mais flagrante entre as cenas das já indefiníveis realidades de sonho ou vigília do conto de Cortázar: diferença de sentido muito mais que de forma, constituindo- se esta como base de semelhança e aproximação por meio de suas propriedades de deformação e alteração.

Critério de equiparação e identidade – problemática, mas possível – aplicável também à fotografia da escadaria do Samrat Yantra em sua visualidade múltipla e transgressora. Imagem aberta que comporta dialeticamente civilização e barbárie; e que exibe em si mesma o caminho difícil rumo à abertura para um território em que esta dialética é possível: um portal de passagem – que é também um lugar de sacrifício.

Na retórica visual da fotografia, este ato é representado metonimicamente pelo espaço em que se cumpre. Metonímia já enraizada num equívoco referencial, pois de fato não é uma pirâmide escalonada, templo pré-colombiano, que a fotografia de Cortázar reproduz; sua forma aí se dá a ver graças a um trabalho de deformação da imagem, operação de violência que engendra uma relação de semelhança cruel como aquela traçada em “La noche boca arriba”. Atentado contra a forma constituída, aberta e deformada, que, se pensarmos analogicamente, constitui o procedimento essencial do sacrifício, de que esta imagem não é, portanto, mera iconografia metonímica, mas objeto e lugar. Significando sua própria forma e o trabalho que esta engendra sobre si mesma, ela cumpre reflexivamente uma operação de abertura e violação que penetra a esfera do 123 sacrifício. Sacrifício virtual, porém, pois oferecido em altar profano, construído como imagem, mas que é ainda espaço aurático, porque lugar de concepção de outras imagens: corpos tocados (como num atentado ou numa violação) por um dom de distinção que não

é aquele do sagrado, conferido pelo sacrifício efetivo, mas que em muito se assemelha a ele, como nos explica Jean-Luc Nancy:

a distinção da imagem – em tudo se assemelhando muito ao sacrifício – não é propriamente sacrificial. Ela não legitima e ela não transgride: ela transpõe a distância da separação conservando-a mesmo por sua marca de imagem. Ou melhor: pela marca que ela é, ela instaura simultaneamente a separação e uma passagem que, porém, não atravessa. A essência de uma tal passagem é que ela não estabelece uma continuidade: ela não suprime a distinção. Ela a mantém justamente fazendo contato. (...) Trata-se menos de um transporte que de uma relação. 111

Esta imagem que incorpora uma dialética fundamental segue em sua concepção – gesto dialético de geração que se conserva na estrutura forjada como trabalho – uma lógica semelhante em princípio à do sacrifício. Este consiste num ato de transgressão ritual, violação consentida que visa à ruptura da descontinuidade e à passagem à continuidade por meio da violência assistida da morte, dissolução da forma constituída. 112

Também a imagem se cria por meio de uma operação de abertura violenta da forma, rompida em sua descontinuidade isolada de coisa em si e aberta à continuidade, à fusão com outras formas, não mais definindo-se como estrutura auto-contida, mas verdadeiramente imagem: forma que remete a outra forma. Apenas como evocação à distância, e a uma distância cuja travessia não se empreende, no entanto: a imagem não se funde à outra forma, distinta dela, que ela evoca; não alcança com ela a autêntica

111 « la distinction de l’image – tout en ressemblant beaucoup au sacrifice – n’est pas proprement sacrificielle. Elle ne légitime pas et elle ne transgresse pas : elle franchit la distince du retrait tout en la maintenant par sa marque d’image. Ou plutôt: par la marque qu’elle est, elle instaure simultanément le retrait et un passage qui pourtant ne passe pas. L’essence d’un tel franchissement tient à ce qu’il n’établit pas une continuité : il ne supprime pas la distinction. Il la maintient tout en faisant contact (...). C’est moins un transport qu’un rapport. » Jean-Luc Nancy. Au fond des images, 2005, p. 14. (Tradução nossa) 112 Sobre o sacrifício, cf. Georges Bataille. O erotismo , 1987, cap. 8. 124 continuidade obtida pela morte sacrificial; permanece forma viva e cindida como num rito interrompido, conservando-se em ativo trabalho de abertura a uma continuidade impossível, inscrita nela como ausência que a investe de uma aura que já não é sagrada, mas decaída: signo do desastre e do desejo.

Assim as formas que, sacrificadas, abertas, feitas imagem, constituirão o mosaico de caleidoscópio de Prosa del observatorio : enguias deslocadas do Atlântico e dos rios europeus, estrelas baixadas do firmamento, observatórios capturados em fotografias em preto-e-branco. Fragmentos esparsos de um mundo acometido pelo desastre que Cortázar recolherá, porém, para montar sua máquina [do mundo] desejante : produtora de imagens que se constituem numa obra de abertura e perda, num ato de sacrifício – mas de profícuo sacrifício – como signos do desastre que se converterão, segundo uma dinâmica de reversão dialética que já conhecemos, em signos do desejo: fraturados, cindidos, abertos; mas abertos a um outro, à alteridade impulsionados numa busca cujo sentido será erótico.

Obra de uma máquina celibatária, que atua precisamente no intervalo entre o desejo e sua não-realização, abrindo formas, sacrificando-as, corrompendo-as, mas para lançá-las mais além de si mesmas. Como afirmam Deleuze e Guattari sobre esta máquina de Carrouges:

“nos suplícios ou na morte que ela provoca, ela manifesta algo de novo, uma potência solar” 113 . Potência erótica, potência de imagem, cujas implicações vão muito além do estético, como ainda veremos.

Também o erotismo se inscreverá, como o sacrifício com o qual tem tanta afinidade, já o dizia Bataille, na visualidade múltipla da imagem do Samrat Yantra: em seu contorno fálico, em sua semelhança com a serpente – ela própria convocada como

113 « dans les supplices ou la mort qu’elle donne, elle manifeste quelque chose de nouveau, une puissance solaire » Gilles Deleuze e Felix Guattari. L’Anti-Oedipe , 1972, pp. 24-5. (Tradução nossa) 125 imagem fálica pelo texto de Cortázar, na alegoria do cardume de enguias – “serpiente de incontables ojos” ( PO , p.21) à maneira de Arcimboldo – cuja migração para os rios europeus se apresenta em Prosa del observatorio como um ato erótico com o mundo:

imposible prever donde, a qué alta hora la informe cabeza toda ojos y bocas y cabellos abrirá el deslizamiento río arriba, pero los últimos corales han sido salvados, el agua dulce lucha contra una defloración implacable que la toma entre légamos y espumas, las angulas vibrantes contra la corriente se sueldan en su fuerza común, en su ciega voluntad de subir, ya nada las detendrá, ni ríos ni hombres ni esclusas ni cascadas, las múltiples serpientes al asalto de los ríos europeos dejarán miriadas de cadáveres en cada obstáculo, se segmentarán y retorcerán en las redes y los meandros, yacerán de día en un sopor profundo, invisibles para otros ojos, y cada noche reharán el hirviente tenso cable negro (...) se desplazarán hacia las fuentes fluviales, buscando en incontables etapas un arribo del que nada saben, del que nada pueden esperar ( PO , pp.23-5)

É mais uma vez de um trabalho com a concretude, com a visualidade, com o mecanismo das formas que aí se trata. Para elaborar o jogo metafórico e metonímico destas serpentes fálicas (metáfora) de enguias feitas (metonímia) que penetram os rios deflorando-os (metáfora) e disseminando em suas águas enguias-espermatozóides

(metáfora) que os percorrem até sua fonte (metáfora), cumprindo um intercurso sexual

(metonímia) – que é também um ato erótico, na transferência de uma particulariedade humana para as enguias – é em relações de semelhança física, visual, motora que

Cortázar se baseará. O próprio ritmo imposto à leitura – veloz, ininterrupto até perder-se o fôlego – evoca sensorialmente, calcando-se o máximo possível na experiência, um ato sexual. É de fato um mecanismo erótico o que o autor descreve, evitando toda abstração, atendo-se a um empirismo que, embora transfigurado, permanece extremamente concreto, cunhando em bases sólidas o suporte da alegoria de um erotismo planetário, motor que põe em movimento a máquina do mundo representada em Prosa del observatorio . 126

y llega el día en que las angulas se han adentrado en lo más hondo de su cópula hidrográfica, espermatozoides planetarios ya en el huevo de las altas lagunas, de los estanques donde sueñan y se reposan los ríos, y los tortuosos falos de la noche vital se acalman, se acaman, las columnas negras pierden su flexible erección de avance y búsqueda, los individuos nacen a si mismos, se separan de la serpiente común, tantean por su cuenta y riesgo los peligrosos bordes de las pozas, de la vida; empieza, sin que nadie pueda conocer la hora, el tiempo de la anguila amarilla, la juventud de la raza en su territorio conquistado, el agua al fin amiga ciñendo sin combate los cuerpos que reposan. ( PO , p.27-9)

O ritmo – melhor: o andamento do texto se faz aí perceptivelmente mais lento do que no seu movimento anterior. A cópula das enguias com as águas (metonímia) se conclui com a fecundação das altas lagoas (metáfora), relaxam os “falos de la noche vital” (metáfora), que “se acalman, se acaman”, nesta imagem extremamente visual que é também um precioso burilamento com as palavras. Ultrapassado o clímax erótico, que

Bataille aponta como momento de provisória continuidade dos corpos, “los individuos nacen a si mismos”, separando-se então definitivamente da “serpiente común”, cumprindo o marco fundamental da descontinuidade do ser. Tem início aí sua formação como indivíduos, que, no entanto, guardarão sempre “a nostalgia da continuidade perdida” 114 . Consciência de perda e vazio que fará com que ao final de sua vida adulta, chegada a hora da reprodução, entreguem-se à correnteza dos rios e depois se empenhem, investidas de desejo, como vimos, em voltar ao oceano, submergindo juntas novamente para desovar e morrer naquela sua “última danza de muerte y de renacimiento” (PO , p.17).

Construindo sobre a migração das enguias para os rios europeus uma alegoria sexual, Cortázar lança as bases da mitologia de um erotismo geral, energia que organiza e faz funcionar sua máquina do mundo. Cristaliza assim, em imagem alçada a estatuto mítico, algo que já sugerira em Rayuela , não com enguias em particular, ali ausentes, mas

114 Georges Bataille. O Erotismo , 1987, p. 15. 127 pela presença de outros peixes que marcam cenas decisivas do relacionamento amoroso de Oliveira e a Maga. Segundo afirma Davi Arrigucci

como símbolo erótico, preso, metonimicamente, ao mundo das águas, o peixe se infiltra pelas páginas da obra e, através dele, se pode acompanhar, concretamente, a trajetória do amor como força unitiva, que vale também no nível da própria construção, alinhavando por dentro os fragmentos. 115

Investe-se assim na potência essencial do erótico – sua faculdade de enlace, seu dom de reconstituição provisória da continuidade – para fazer dele um meio de ligação, formal mesmo, como Arrigucci observa em Rayuela, entre os fragmentos desconexos do mundo.

Formulado em termos alegóricos no contexto mítico de Prosa del observatorio , o erotismo se ergue como novo princípio ordenador de um universo que, corrompido em sua unidade pelo desastre, buscará no desejo um meio alternativo para novamente – mas de outro modo – se harmonizar. Este rompimento com o poder de uma lei cósmica até então condutora do mundo, e o investimento no erotismo como seu sucedâneo representam uma inversão fundamental, um pronunciamento do humano diante de toda ordem sobre-humana, de toda superioridade metafísica, de toda potência sagrada, distinta e intocável. Gesto subversivo, libertador e revolucionário que é encenado em Prosa del observatorio pela astronomia sedutora de Jai Singh, que já não consulta os astros como seus antepassados, reconhecendo seu poder e sua influência 116 , mas os deseja e os desafia, movido por uma vontade de saber e de conquista.

De Jai Singh se presume que hizo construir los observatorios con el elegante desencanto de una decadencia que nada podía esperar ya de las conquistas militares, ni siquiera talvez de los serrallos donde sus mayores habían preferido un cielo de estrellas tibias en un tiempo de aromas y de músicas; serrallo del alto aire, un espacio inconquistable tendía el deseo del sultán en el límite de las rampas de mármol; (...) su

115 Davi Arrigucci Jr. O escorpião encalacrado , 1973, p. 330. 116 Até a época de Jai Singh a astronomia indiana não se diferenciava da astrologia. O estudo dos astros a que procedia servia à previsão de eventos futuros e era considerado em decisões como declarações de guerra, investidas militares, casamentos e etc. 128

mirada y sus máquinas organizando el frío caos violeta y verde y tigre: medir, computar, entender, ser parte, morir menos pobre, oponerse pecho a pecho a esa incomprensibilidad tachonada, arrancarle un jirón de clave, hundirle en el peor de los casos la flecha de la hipótesis, la antecipación del eclipse, reunir en un puño mental las riendas de esa multitud de caballos centelleantes y hostiles. (PO, pp.37-9)

Concebido como este “serrallo del alto aire”, o céu estrelado já não é fonte de um poder superior e incompreensível que ao homem se impõe; converte-se em objeto do desejo: aquilo que, segundo Bataille, concede ao homem “a possibilidade de exceder (...) limites” 117 . Imbuído desta vontade, Jai Singh se empenha numa ciência que se traduz, na leitura que dela faz Cortázar a partir das ruínas dos instrumentos que o sultão construiu, como empenho corporal, investida apaixonada, violenta, erótica:

Las máquinas de mármol, un helado erotismo en la noche de Jaipur, coagulación de luz en el recinto que guardan los hombres de Jai Singh, mercurio de rampas y hélices, grumos de luna entre tensores y placas de bronce; pero el hombre ahí, el inversor, el que da vuelta las suertes, el volatinero de la realidad: contra lo petrificado de una matemática ancestral, contra los husos de la altura destilando sus hebras para una inteligencia cómplice, telaraña de telarañas, un sultán herido de diferencia yergue su voluntad enamorada, desafía un cielo que una vez más propone las cartas transmisibles, entabla una lenta, interminable cópula con un cielo que exige obediencia y orden y que él violará noche tras noche en cada lecho de piedra, el frío vuelto brasa, la postura canónica desdeñada por caricias que desnudan de otra manera los ritmos de la luz en el mármol, que ciñen esas formas donde se deposita el tiempo de los astros y las alzan a sexo, a pezón y a murmullo. Erotismo de Jai Singh al término de una raza y una historia, rampas de los observatorios donde las vastas curvas de senos y de muslos ceden sus derroteros de delicias a una mirada que posee por transgresión y reto y que salta a lo innominable desde sus catapultas de tembloroso silencio mineral. ( PO , pp.43-5)

Como a compreender o ensinamento que recebeu Oliveira naquela distante viatura da polícia parisiense, quando soube, ouvindo a conversa de dois pederastas, que “la gente agarraba el calidoscopio por el mal lado, entonces había que darlo vuelta”118 , este Jai

Singh personagem de Cortázar faz-se aí inversor do destino e da realidade. Já não rende

117 Georges Bataille. O Erotismo , 1987, p.133. 118 Julio Cortázar. Rayuela , 1996, p. 179. 129 obediência ao céu, ao seu poder sobre os homens, à sua influência sobre suas vidas; ergue diante dele uma “voluntad enamorada” que faz jus à virtualidade contestatória e subversiva que Bataille reconhecia no erotismo: “Falamos de erotismo sempre que um ser humano se conduz de uma maneira que apresenta uma oposição bem acentuada a certos tipos de comportamento e de julgamento que nos são habituais.” 119 Rompendo com os pressupostos de distanciamento e objetividade que regulam a ciência, faz da observação dos astros um ato erótico. Na alegoria de Cortázar, cada instrumento astronômico do sultão, onde se refletiam e se mediam os astros e suas órbitas num contato à distância, anos-luz à distância, revela-se “lecho de piedra”, lugar do erótico, como já sugeria, embora numa visualidade de outra ordem, a fotografia da escadaria do Samrat Yantra que tanto já comentamos. Sobre estes “leitos” Jai Singh violará, num trabalho de transgressão, todo interdito imposto pelo elevado, pelo sagrado: sua separação, seu caráter intocável, sua distinção. Um desastre movido pelo desejo o que provoca esta astronomia erótica que não se deixa conduzir pelos astros, mas os seduz e os possui numa metonímica cópula cósmica. As medições de seus instrumentos tornam-se carícias que desnudam. Os desenhos astrais, violados por um olhar investido de desejo que os alcança desde os observatórios (“catapultas de tembloroso silencio mineral”) e os transforma, são por ela interpretados como sensuais curvas de seios e coxas que se oferecem ao olhar do amante.

Tudo se torna imagem nesta violação das formas do cosmos por um olhar desejante que irá abri-las, trabalhá-las, lançá-las a metamorfoses. Operação que lembra a

Cortázar o romantismo de Novalis, poeta dos “Hinos à noite”, e a pintura surrealista e matemática de Remedios Varo.

119 Georges Bataille. O Erotismo , 1987, p. 102. 130

Como en las pinturas de Remedios Varo, como en las noches más altas de Novalis, los engrenajes inmóviles de la piedra agazapada esperan la materia astral para molerla en una operación de caliente halconería. (PO, p.45)

Evocando um olhar como aquele que Cortázar atribuia a Jai Singh diz Novalis nos

“Hinos à noite”: “Temos olhos que a noite abriu em nosso interior, mais divinos que as estrelas brilhantes. Sua visão alcança além dos incontáveis hóspedes mais pálidos da noite. Sem auxílio da luz eles penetram as profundezas que abrangem as regiões elevadas com inefável delícia .” É mais uma vez um erotismo óptico que parece aí sugerir-se, desta vez diante de um poeta que vê na noite “o símbolo solene de um desejo distante”. 120

É em relação a Remedios Varo, porém, que a referência do texto se mostra mais precisa, fazendo uma leitura poética de um quadro da pintora: Papilla estelar [Papinha estelar].

Na cena pintada, uma jovem mói estrelas para alimentar seu astro de estimação, uma lua – ainda em crescimento – criada numa gaiola. Na analogia que Cortázar

120 Novalis. “Hinos à noite”. (Tradução de Sophia de Melo Breyner Andresen) 131 estabelece entre o quadro e a astronomia de Jai Singh, a função do moinho é transmitida aos instrumentos de observação do sultão, que “esperan la materia astral para molerla en una operación de caliente halconería”. O falcão, que representa o espaço celeste em muitas culturas orientais, seria aqui um símbolo dos astros de que Jai Singh quer se apropriar, e que pretenderia, nos moldes daquela ousada inversão de poderes ensaiada na sua astronomia, conhecer e controlar como a falcões treinados, astros que pudessem ser criados em gaiolas como a luazinha de Remedios Varo. Obra de desastre cujo sentido se confirma na imediata continuação do texto, que conclui o diálogo com o quadro e, retornando ao campo do erótico, sugere uma inversão do mito de Endimião e Selene:

Jaulas de luz, gineceo de estrellas poseídas una a una, desnudadas por un álgebra de aceitadas falanges, por una alquimia de húmedas rodillas, desquite maniático y cadencioso de un Endimión que vuelve las suertes y lanza contra Selene una red de espasmos de mármol, un enjambre de parámetros que la desceñirán hasta entregarla a ese amante que la espera en lo más alto del laberinto matemático, hombre de piel de cielo, sultán de estremecidas favoritas que se rinden desde una interminable lluvia de abejas de medianoche. (PO, p.45-7)

Segundo o mito em sua versão mais corrente, Endimião era um jovem pastor por quem a deusa Selene, a Lua, se apaixonou. Para não ter que dividi-lo com mais ninguém, ela lançou sobre ele um feitiço de sono eterno, e todas as noites descia do céu e vinha deitar-se ao lado do amado. Na subversora mitologia criada por Cortázar em Prosa del observatorio , a astronomia de Jai Singh é vingança friamente calculada – em parâmetros matemáticos – de um Endimião que já não espera pela deusa a que passivamente se entrega, aprisionado na inconsciência do sono. Novo Endimião, Jai Singh “vuelve a las suertes”, fazendo-se parte ativa de um ato erótico que é desejo de conhecimento; amante a que o céu se entregará, refletindo-se no mármore de seus instrumentos de observação e em sua pele (“hombre de piel de cielo”), numa comunhão virtual, de imagem, entre o homem e os astros. 132

Imagens o que produzem as máquinas de Jai Singh acopladas à maquinaria de

Prosa del observatorio ; máquinas de desastre e desejo, que seduzem e violam astros, sacrificando-os e investindo-os de desejo no jogo de um erotismo maquínico que promove, como afirmam Deleuze e Guattari, “um prazer que se pode qualificar de auto- erótico ou, melhor, de automático, onde se contratam as núpcias de uma nova aliança, novo nascimento, êxtase vertiginoso como se o erotismo maquínico liberasse outras potências ilimitadas” 121 .

Potências de imagem como aquelas liberadas pelo sacrifício virtual; impulso à abertura, ao contato e à comunicação de que serão investidos os astros dessacralizados de

Prosa del observatorio , integrados na engrenagem de conexões de uma escritura que os ligará às enguias (“la galáxia negra corre en la noche como la otra dorada allá arriba en la noche corre inmóvilmente” – PO , p.15) e as ligará a Jai Singh e seus observatórios (“las anguilas y también las máquinas de mármol, la noche de Jai Singh bebiendo un flujo de estrellas, los observatorios bajo da luna de Jaipur y de Delhi, la negra cinta de las migraciones” – PO , p.9), unidos todos na estrutura de uma máquina do mundo em que tudo está em comunicação: as máquinas de Jai Singh recebendo “los signos morse, el alfabeto sideral que en otra dimensión de lo sensible se vuelve plancton, viento alisio, naufragio del petrolero “Norman” (8 de mayo de 1957), eclosión de los cerezos de Naga o de Sivergues, larvas del Osorno, anguilas llegando a puerto” ( PO , p.21); as enguias cumprindo sua peregrinação “guiadas por una fórmula de estrellas, que Jai Singh pudo medir con cintas de mármol y compases de bronce” ( PO , p.25). Vai-se definindo assim a poética desta máquina do mundo literária de Cortázar, calcada na analogia, concretizada

121 Gilles Deleuze e Felix Guattari. L’Anti-Oedipe , 1972, p. 25. 133 na imagem que lhe dá forma e encenada em si mesma em ritos virtuais de sacrifício e erotismo.

Ela se cria como um mecanismo delirante , à semelhança dos que criou Marcel

Duchamp, sobre os quais escreve Octavio Paz: “seu funcionamento é mais sexual do que mecânico, mais simbólico do que sexual (...) São máquinas de símbolos.” 122 O exemplar principal desta categoria é o Gran Verre ou La Mariée mise à nu par ses célibataires même [Grande Vidro ou a Noiva desnudada por seus pretendentes, numa tradução precária, como veremos], paradigma original do conceito de máquina celibatária de

Carrouges.

Segundo Octavio Paz, esta obra é “descrição gráfica do funcionamento de uma máquina e representação de um ritual erótico”. 123 Na metade superior da estrutura, vê-se

122 Octavio Paz. Marcel Duchamp : o castelo da pureza, 2004, p. 16. 123 Idem, p. 67. 134 a “Noiva”, referida nos apontamentos de Duchamp como a “Via Láctea”, transformada em um mecanismo composto por uma forma de nuvem e por uma engrenagem que faz funcionar o “Motor-Desejo”. Colocado na metade inferior da placa de vidro, à direita, ele faz girar a roda dos celibatários, o carrossel de manequins à esquerda. O desejo é, assim, o móvel desta máquina, que encena, porém, num jogo auto-irônico, a frustração do erotismo, não pelo interdito da castidade, mas pela impossibilidade de fusão concreta dos corpos, de uma autêntica concretização erótica. Assim, sem cancelá-lo, esta máquina celibatária por excelência suspende o erótico, como já sugere seu nome, descrição sintética do mecanismo e de seu sentido: a “Noiva” é desnudada, ou posta a nu , por aqueles que seriam seus pretendentes, numa clara referência ao erotismo, que o será também – observa ainda Octavio Paz – ao suplício: “ mise à nu não quer dizer exatamente despida ou desvestida; é uma expressão muito mais enérgica que nosso particípio: posta a nu, ex-posta. Impossível não associá-la com um ato público ou um rito: o teatro ( mise-en- scène ), a execução capital ( mise à mort )”. De um modo ou de outro, seja no contexto do erotismo ou do sacrifício, a “Noiva” está, portanto, aberta, como já demonstra sua representação informe como nuvem. De maneira correspondente, seus pretendentes são representados como bonecos decapitados (brinquedos quebrados como a Janet de “Anillo de Moebius”), pendurados numa roda que muito lembra um instrumento de tortura e referidos como “celibatários” – não apenas solteiros, mas solteiros que, supostamente, assim permanecerão: sós, mas efetivamente indisponíveis. O título incorpora, deste modo, a ironia da estrutura de Duchamp, que encena simultaneamente o erotismo e sua impossibilidade, operação de uma máquina desejante cuja manutenção depende de uma sabotagem feita pela engrenagem sobre si mesma, de um boicote auto-imposto que 135 paradoxalmente preservará a estrutura em funcionamento: afinal, concretizado, o desejo se extingue. Nesta cristalização de um erotismo flagrante mas irrealizável, esta máquina intencionalmente defeituosa e improdutiva permanece na esfera do simbólico.

Processo semelhante se cumpre com a Prosa del observatorio , maquinaria movida a desastre e a desejo, que encena ritos de sacrifício e erotismo, mas a tudo reenvia sempre

à esfera da imagem, do virtual. Do mesmo modo que a “Noiva”/“Via Láctea” do Gran

Verre de Duchamp jamais seria efetivamente possuída por seus pretendentes celibatários, postos a girar continuamente no suplicio cortês do carrossel, também o céu estrelado permanece fora do alcance concreto de Jai Singh, que o captura apenas em imagens – jogos de luz e sombra na superfície de mármore dos observatórios, jogos retóricos – metafóricos e metonímicos – na escritura de Cortázar. E é também apenas em imagens, em poéticas correspondências, que se encontrarão enguias e estrelas, na projeção de um novo concerto universal.

De qualquer modo, porém, no processo sacrificial, erótico, desastroso, desejante de construção destas imagens produzidas por uma maquinaria crítica de si mesma, que sabe que produz “apenas” imagens (já Didi-Huberman atentara à “condição paradoxal – duplo regime – que marca simultaneamente o pouco de coisa que é uma imagem e o caráter propriamente ilimitado do seu poder. (...) Porque as imagens são multiplicáveis – e montáveis ao infinito” 124 ), elabora-se uma nova concepção do utópico, identificada por

Cortázar nas máquinas de mármore de Jai Singh:

esas máquinas no sólo fueran erigidas para medir derroteros astrales, domesticar tanta distancia insolente; otra cosa debió soñar Jai Singh, alzado como un guerrillero de absoluto contra la fatalidad astrológica

124 « Condition paradoxale – double régime – que marque à la fois le peu de chose qu’est une image et le daractère proprement illimité de son pouvoir. (...) Parce que les images sont multipliables – et ‘montables’ – à l’infini. » Georges Didi-Huberman. La ressemblance informe ou le gai savoir visuel selon Georges Bataille, 2003, p. 378. (Tradução nossa) 136

que guiaba su estirpe, que decidía los nacimientos y las defloraciones y las guerras; sus máquinas hicieran frente a un destino impuesto desde fuera, al Pentágono de galaxias y constelaciones colonizando al hombre libre, sus artificios de piedra y bronce fueran las ametralladoras de la verdadera ciencia, la gran respuesta de una imagen total frente a la tiranía de planetas y conjunciones y ascendentes ( PO , pp.73-5)

A imagem se propõe, assim, como um pronunciamento de independência do homem, que contesta o estatuto de poder ditatorial de um cosmos incompreensível, inalcançável e temível – de dimensões mesmo monstruosas – que desde uma distância metafísica lhe rege o destino; e se esforça por conhecê-lo, por dominá-lo, por domesticá- lo num gesto de contornos heróicos:

el hombre Jai Singh, pequeño sultán de un vago reino declinante, hizo frente al dragón de tantos ojos, contestó a la fatalidad inhumana con la provocación del mortal al toro cósmico, decidió encauzar la luz astral, atraparla en retortas y hélices y rampas, cortarle las uñas que sangraban a su raza; y todo lo que midió y clasificó y nombró, toda su astronomía en pergaminos iluminados era una astronomía de la imagen, una ciencia de la imagen total, salto de la víspera al presente, del esclavo astrológico al hombre que de pie dialoga con los astros. (PO , pp.75-7)

É por obra de engenho e artifício que a figura sempre frágil do toureiro conquista o touro na arena. De modo análogo, o “pequeño sultán” de Cortázar fará da imagem seu artifício engenhoso de provocação, de saber, de superação e de diálogo. Nas imagens da astronomia de Jai Singh, inverte-se a ordem metafísica e anuncia-se seu sucedâneo: nelas se reescreve (ou se redesenha) o céu a mão humana; nelas se firma o compromisso de um homem que assume a direção de seu próprio destino, como as enguias “trazando su ideograma planetario en la tiniebla” ( PO , p.51).

Cortázar elege estas imagens como uma espécie de gênese mítica de toda imagem autêntica, aurática (dotada, como sugeriam Benjamin e os surrealistas, de poder de abertura e transformação): expressão de desastre e desejo, perda e evocação – construto humano no qual se inscreve o germe original (novamente no sentido benjaminiano do termo) da utopia de um cosmos reordenado: feito da matéria e das formas do mundo 137 presente e próximo; projetada por um homem que aprende a olhar estas formas de outro modo, a transformá-las com seu olhar, a conciliá-las na sua diferença, a integrá-las em figuras dotadas de sentido, nenhuma “a verdadeira” ou “a única”, todas possíveis:

“patterns pretty as can be” – “ imago mundis ” no mosaico de um caleidoscópio a se montar. Prosa del observatorio é seu mito de criação; sua história, caberá a nós criá-la.

138

2. O DEDO E A LUA : UMA HISTÓRIA DE BOBOS

Eu não sou eu nem sou o outro. Sou qualquer coisa de intermédio: Pilar da ponte de tédio Que vai de mim para o Outro.

M ÁRIO DE SÁ-CARNEIRO

O bobo, por não se ocupar com ambições, tem tempo para ver, ouvir e tocar no mundo. O bobo tem oportunidade de ver coisas que os espertos não vêem. Bem aventurados os bobos porque sabem sem que ninguém desconfie.

“Das vantagens de ser bobo” CLARICE LISPECTOR

“Quando alguém aponta a lua, o bobo olha o dedo.” Desastre e desejo se inscrevem no engano – ou desengano, teremos que ver – desta frase, máxima da filosofia espiritual zen-budista popularizada no ocidente como ditado espirituoso. Literal, figurativa e conceitualmente, a expressão define o trabalho de imagem empreendido por

Cortázar em Prosa del observatorio , sendo aí efetivamente encenada, numa operação performática e visual de citação, pela fotografia da escadaria do Samrat Yantra de Jaipur, que, embora já conheçamos, convirá uma vez mais observar:

139

Na origem desta imagem, está um gesto fotográfico: ação do fotógrafo que seleciona seu objeto, para ele volta sua câmera, enquadra-o e captura-o a partir de uma determinada perspectiva. Trabalho óptico de desagregação, deslocamento e reordenação como aquele do caleidoscópio, e também gesto de apontar, desdobrado, que se transmite do plano da fisicalidade da ação – o fotógrafo que aponta a câmera para seu objeto transformando-o em coisa vista, imagem – para a representação que daí resulta, já que a fotografia mostra um instrumento de observação, também um aparelho óptico, que aponta para os astros e os dá a ver. E, no entanto, ocorre aí uma interrupção – curto- circuito de uma máquina que funciona enguiçando-se – que resulta num efeito especular: a cadeia de desdobramentos não alcança os astros, detém-se no instrumento que até eles deveria conduzir o olhar. Pela opção de um fotógrafo desastrado, o observatório astronômico se torna objeto observado. O dedo aponta a lua; o fotógrafo, bobo, olha o dedo – de fato sugerido, com unha e tudo, no contorno da escadaria com seu capitéu.

Forma que, convertendo-se em imagem na operação de violenta abertura executada pelo fotografar – ato em que estão implicados sacrifício e desejo – se faz lugar do trabalho do informe, perdendo sua referencialidade única e disseminando-se em possibilidades, para ser pirâmide, falo, serpente, escada, ou dedo que o olhar do bobo prefere à lua.

Nesta proposição e na fotografia de Cortázar que a representa – num movimento auto-reflexivo de imagem que pensa sua própria construção e seu próprio estatuto – tem- se uma encenação complexa – diacrônica e dialética – da experiência da aura, fundamento de toda imagem autêntica. Diacrônica porque a cena evoca o percurso histórico 125 de secularização da aura, de seu valor primitivo sagrado a seu valor moderno

125 Quando falamos aqui em histórico não pensamos na História como estrutura representável pela reta do tempo, paradigma segundo o qual os eventos e as eras se dispõem de forma linear e sucessiva, mas num 140 utópico. Dialética porque aí se explicita o sentido duplo, ambíguo mesmo, do gesto que institui o aurático e que permanece conservado – como memória ativa – em toda experiência aurática: o gesto de apontar. Por meio dele, trama-se o que Didi-Huberman chamou (estruturando como conceito uma percepção de Benjamin) uma dupla distância , um espaçamento tramado entre aquele que olha e aquele que é olhado, que, postos em relação, se fazem dialeticamente próximos e longínquos. O dedo que aponta seria, assim, simultaneamente, a rota para um olhar capaz de superar a distância e alcançar a lua, e a prova material, concreta, irrefutável da existência insuperável desta distância. Como sentencia Jean-Luc Nancy, a aura “se aproxima através da distância, mas aquilo que ela traz consigo para perto é a distância” 126 .

Incorporando esta distância, a imagem aurática se constitui como forma aberta, instituída por um trabalho de abertura como aquele representado nos vicários rituais sacrificiais e eróticos de Prosa del observatorio . Ela se molda, assim, no jogo de forças de uma dialética sem síntese que a dilacera entre a atração para a alteridade e a resistência da ipseidade, tensão que nela instaura um intervalo produtivo: espaço de um jogo transfigurador e reflexivo com as formas que a imagem engendra por meio de seu mecanismo cindido em potência evocatória e consciência de perda; desejo e desastre.

Operação que faz dela lugar dialético no qual o impulso utópico transformador encontra a reflexão crítica, conforme nos indica Bataille, que, segundo Didi-Huberman, “sempre pensou o jogo das formas no ritmo literalmente aurático de uma ‘visão do mais distante’

modelo de palimpsesto, em que se podem superpor, interpenetrar diferentes épocas históricas, com suas configurações e imaginários próprios. 126 « Il s’approche à travers la distance, mais ce qu’il apporte au plus près, c’est la distance. » Jean-Luc Nancy. Au fond des images , 2003, p. 16. (Tradução nossa) 141 que ‘nos perde e nos transfigura’ do mesmo modo que nos faz tocar com o dedo nossa própria relação contemporânea com as formas” 127 .

Nos moldes desta dialética se conforma, num processo assistido, a poética de imagem de Prosa del observatorio : engrenagem produtora de imagens que, voltando-se sobre si mesma, faz-se lugar de um pensamento sobre a imagem; alegoria cósmica de uma nova máquina do mundo – de uma nova imagem do mundo – que se quer espaço de reflexão crítica sobre a vida presente. Articulam-se, assim, no livro de Cortázar, pensamento teórico-estético e crítica política e social: aspectos que se revelarão aí lados paralelos conciliados num dialético anel de Moebius, metáfora estrutural e ética da obra como um todo e de cada uma de suas imagens auráticas, como já vínhamos observando e veremos com maior aprofundamento no decorrer deste capítulo.

Caberá antes, porém, mapear o percurso que conduzirá até este ponto de sua trajetória o trabalho da imagem e o estatuto do aurático, desde a vinculação com o sagrado até a dessacralização utópica – transformação que a Prosa del observatorio recorda encenando atos sacrificiais e eróticos como ritos virtuais, artifícios de imagem; e que o próprio Cortázar analisou teoricamente num texto intitulado “Para una poética”, esboçando um paralelo entre o mago primitivo e o poeta moderno que aqui exploraremos mais a fundo, guiados por Walter Benjamin e Hugo Friedrich, que nos conduzirão às poéticas fundamentais do Trauerspiel (drama trágico, ou, ao pé-da-letra, drama do luto) barroco, do Romantismo da Escola de Jena e da lírica moderna de Baudelaire, Rimbaud e

Mallarmé. O desvio será, talvez, demasiado longo; alguns poderão mesmo julgá-lo

127 « Bataille pensa toujours le jeu des formes dans le rythme littéralement auratique d’une ‘vision du plus lointain’ qui ‘nous égare et nous transfigure’, dans la mesure mêmeoù elle nous fait toucher du doigt notre propre rapport ‘contemporain’ aux formes. » Georges Didi-Huberman. La ressemblance informe ou le gai savoir visuel selon Georges Bataille, 2003, pp. 267-8. (Tradução nossa) 142 desnecessário. A nós ele parece, porém, tão dispensável como o são os “capítulos prescindibles” de Rayuela : o romance se entende sem eles, mas é outro romance. Falta- lhe diálogo, falta-lhe jogo.

2.1. Magos e poetas

Em seu sentido primeiro – primitivo – a experiência aurática exige que se aprenda com a sabedoria antiga e se faça do dedo que aponta a lua mero instrumento, meio para um fim que se anula uma vez alcançado. Perceber a aura sagrada de um objeto significa obliterar sua realidade física própria em prol daquela outra, simbólica, inefável, intangível, para a qual ele aponta e que nele se vem manifestar, misticamente. Para vivenciar o sagrado, não se pode ser bobo, não se pode olhar o dedo; ou melhor dizendo, não se pode deter o olhar no dedo – este dedo metafórico que são o ídolo, a relíquia, a imagem de barro ou de gesso, a hóstia, o próprio corpo em certas circunstâncias. Embora não se possa dispensá-lo, é preciso não vê-lo, torná-lo invisível, insensível e, então, capaz de revelar o outro para o qual já não aponta , pois não mais existe em si mesmo, como elemento individualizado, independente e autônomo. (Que é um dedo diante da lua? que

é uma imagem em meio a um êxtase religioso, que é uma rodela de pão diante do Messias oferecido em sacrifício? que consciência têm de seu corpo um licantropo primitivo, um medium que psicografa o discurso de um espírito, um praticante de candomblé que recebe um santo?). O objeto aurático sagrado adere plenamente à alteridade que evoca, sendo a coisa mesma que representa. Perceber a aura sagrada de um objeto seria, assim, 143 acompanhar este processo de transubstanciação, ou, mais precisamente, des- substanciação, em que um elemento se torna outro, se perde em outro.

Esse fenômeno mimético é fruto de uma relação entre homem e mundo orientada pelo analógico. Propensão à conexão de elementos dispersos, à percepção de semelhança entre seres que objetivamente se julgariam diversos, esta tendência é aparentemente compartilhada por toda a humanidade, caracterizando-se como um atributo natural e ineludível da espécie. Sua motivação, conforme sugerem mitos e alegorias cosmogônicas das mais diversas culturas, é nostálgica: memória dolorosa de um rompimento com o sagrado e de um consecutivo estilhaçamento do mundo, cujas partes se teriam dispersado uma vez perdida sua ligação com a supremacia que as mantinha unidas umas às outras, em concerto, sujeitas a um mesmo poder e a uma mesma lei. Habitando um universo cuja unidade se perdeu, mundo aos pedaços cuja ordem e cujo sentido se fazem inapreensíveis, o homem desterrado viveria em busca de um reencontro com a totalidade, com o absoluto em que a plenitude de todas as coisas e a sua própria estariam restabelecidas. Este ideal está na base de alguns dos principais motores da humanidade: o fenômeno religioso (já diz o próprio termo religião , que vem do latim re-ligare ), o impulso erótico, a empresa do conhecimento – modos de descentramento do ser, que, percebendo-se incompleto em si mesmo, procura no contato com a alteridade a plenitude perdida.

É na magia primitiva que esta empreitada é originalmente posta em prática de forma efetiva, exercendo-se como modo de domínio do real. A operação de conquista e reordenação do universo em que o mago se empenha procede por meio de uma comunhão entre seus elementos calcada na analogia – na semelhança – segundo um movimento 144 inverso ao das correntes científicas preponderantes na modernidade, que fundamentam o controle da natureza pelo homem com base em sua superioridade – sua diferença – em relação aos demais seres. Esta oposição e o sentido da interação primitiva entre homem e mundo são esclarecidos no fragmento antropológico de Lévy-Brühl, citado por Cortázar:

Conocer es, en general, objectivar; objectivar es proyectar fuera de sí, como algo extraño, lo que se ha de conocer. Por el contrario, ¡qué comunión íntima aseguran las representaciones colectivas de la mentalidad prelógica entre los seres que participan unos de otros! La esencia de la participación consite, precisamente, en borrar toda dualidad; a despecho del principio de contradicción, el sujeto es a la vez él mismo y el ser del cual participa... 128

Pode-se pensar que este sentido de participação próprio à magia tenha sido, como ela, proscrito na modernidade, eliminado progressivamente por um crescente racionalismo objetivador, segregacionista e classificatório. De fato, este pensamento baseado em uma apreensão lógica do mundo e no princípio de identidade descontínua dos elementos que o constituem baniu a concepção analógica do terreno fáctico da realidade, sobre o qual ela se exercia magicamente como mecanismo de domínio efetivo das coisas.

Não foi capaz, porém, de extirpar por completo a faculdade mimética do homem.

Subjugada na realidade prática do mundo colonizado pela razão, ela persiste, como força de substrato, no campo óbvio – mas marginalizado – do religioso e, de forma mais sutil e por isso mesmo mais poderosa, no fenômeno geral da linguagem, meio – instrumento e lugar – de contato e relação do diverso. Segundo Walter Benjamin,

a linguagem seria a mais alta aplicação da faculdade mimética: um medium em que as faculdades primitivas da percepção do semelhante penetraram tão completamente, que ela se converteu no medium em que as coisas se encontram e se relacionam, não diretamente, como antes, no espírito do vidente ou do sacerdote, mas em suas essências, nas substâncias mais fugazes e delicadas, nos próprios aromas. Em outras palavras: a clarividência confiou à escrita e à linguagem as suas antigas forças, no correr da história. 129

128 Lévy-Brühl apud Julio Cortázar. “Para una poética”, in: ---. Obra Crítica , v. 2, 1999, p. 272. 129 Walter Benjamin. “A doutrina das semelhanças”, in: ---. Magia e técnica, arte e política , 1994, p. 112. 145

Se toda linguagem recebe como legado os poderes miméticos da magia, é a poesia, porém, que se apresenta como sua mais legítima herdeira, reconhecendo “en la dirección analógica una faculdad esencial, un medio instrumental eficaz” 130 , como atesta

Cortázar no ensaio “Para una poética”. O argumento deste texto, inserido na tradição já significativamente longa de um pensamento que vincula as figuras do mago e do poeta, postula não propriamente uma relação de identidade, mas uma linha de sucessão a ligá- los: “este mago vencido y este poeta que le sobrevive” 131 , guiados ambos por uma concepção analógica da realidade e empenhados ambos em fazer dela um modo de conquista do real. Aspiração que assume, porém, estatutos diferentes para um e outro, o primeiro interessado, conforme já comentamos, num domínio efetivo das coisas; o segundo voltado, como apontava o fragmento de Benjamin, para o que constituiriam suas essências. Isto o que separa o mago e o poeta, isto o que garante que este resista à derrota imposta àquele.

Se o mago manipula objetos em sua materialidade concreta, visando a apropriar- se das coisas como tais, o poeta procede a um “abandono de la cosa como cosa (...) por su esencia entendida poéticamente” 132 , escreve Cortázar. Ao contrário do que parece sugerir, esta renúncia não anuncia nenhuma modéstia de ambição: indica a superação de um desejo de posse física, circunstancial e pragmaticamente orientado, pela aspiração a um enriquecimento ontológico, um ganho de ser, que segue rumo a uma busca do desconhecido, do novo, do absoluto. Este o ideal do poeta, que quer fazer de sua palavra

“portadora de lo que al fin y al cabo es la cosa misma en su forma, su idea, su estado más

130 Julio Cortázar. Opus cit., p. 269. 131 Idem, p. 271. 132 Idem, p. 280. 146 puro y alto”, 133 como aquela flor enunciada de Mallarmé, “l’absente de tous bouquets” 134 .

Não a coisa em si, presente em sua concretude aleatória e perecível, mas uma forma sua depurada, reduzida a traços elementares, reconduzida à sua essência. Procedimento de criação poética que tem sua raiz na magia, no caldeirão da feiticeira onde se reduz o caldo de tantos inusitados ingredientes para se prepararem poções maravilhosas, no crisol do alquimista que macera substâncias para apurá-las até atingirem um grau máximo de simplicidade, estado elementar a partir do qual toda matéria poderia se transmutar em qualquer outra. Operações que, transpostas da cozinha da bruxa e do laboratório do alquimista para a mesa do poeta, se redefinem como trabalho com palavras, por meio das quais a matéria do mundo se recria, convertendo-se em imagem. Ainda empresa de transfiguração, embora já não mágica, mas poética; obra não do mago que põe coisas diversas em participação e pode, a partir desta quebra de suas identidades descontínuas, tomá-las para si e virá-las umas nas outras, mas do poeta, seu herdeiro, cuja escritura engendra uma participação de outra ordem, que Baudelaire definiria como correspondência: relação baseada em ecos, contigüidades, aproximações.

A imagem poética é instrumento e lugar destes encontros do diverso, constituindo-se, assim, tanto pela vocação conectiva que a define quanto pela posição que ocupa numa escala de valor de realidade, como forma de intermédio: menos do que coisa, mas meio de contato entre coisas; forma frágil por seu pouco de realidade, mas poderosa pelos desdobramentos, agenciamentos e associações que opera no plano do real. É ela o recurso a que o poeta confia “su angustia personal de enajenamiento” 135 , na expressão

133 Idem, p. 280. 134 “a ausente de todos os buquês” Stéphane Mallarmé. “Crise de vers”, in: ---. Igitur, Divagations, Un coup de dés , 1999, p. 259. (Tradução nossa) 135 Julio Cortázar. Opus cit., p. 278. 147 cortazariana: seu desejo de ser mais do que apenas ele próprio, sua vontade de conexão com o mundo – impulso de expansão que se estende virtualmente ao infinito.

Convertendo suas palavras em imagens, o poeta abre, no espaço do poema, o caminho que conduz a este absoluto.

Como reconhece Cortázar, “el poema y la imagen analógica que lo nutre son la zona donde las cosas renuncian a su soledad y se dejan habitar, donde alguien hay que puede decir: ‘... yo no soy un poeta, ni un hombre, ni una hoja, / pero sí un pulso herido que ronda las cosas del otro lado’.” 136 Estes versos de García Lorca exprimem, como também o fazem aqueles de Sá Carneiro que nos servem de epígrafe para este capítulo –

“Eu não sou eu nem sou o outro. / Sou qualquer coisa de intermédio: / Pilar da ponte de tédio / que vai de mim para o Outro.” – a potência de alteração e de alteridade da imagem, e seu poder de contato. Dons que se revelam indissociáveis, porém, de sua fragilidade intrínseca. “Pulsar ferido que ronda as coisas do outro lado” ou “pilar da ponte de tédio /que vai de mim para o Outro”, a imagem poética se reconhece forma a caminho, estrutura fragmentária e incompleta em si mesma que se põe em busca daquilo que lhe falta, que lhe faltará sempre, pois, herdeira da magia embora, o encantamento nela não se cumpre, a transcendência mística nela fracassa, a ilusão nela se põe em jogo .

A aura desta imagem poética, forma em crise e crítica de si mesma, não tem o sentido de um índice de elevação, de sacralidade. É, para lembrar Baudelaire mais uma vez, aura decaída, secularizada, que deixa as alturas e se planta no chão. Em sua queda, passa de símbolo de transcendência sagrada a signo de humana utopia. Já não representa a fusão com uma alteridade privilegiada, projetada além dos limites do mundo dos homens. Assinalando a condição de intermédio da imagem que marca, faz dela não o

136 Idem, p. 285. 148 lugar de uma reconciliação dos fragmentos mundanos no concerto universal (sugestão que é, em toda imagem, ilusão, engano), mas memória redescoberta da perda e da busca desta unidade. Esta nova aura se quer menos atributo, sinal, adereço do sagrado manifesto do que testemunho de uma experiência humana: firma de autenticidade de uma ação ainda e sempre em curso, de um trabalho de busca que se realiza por inteiro neste plano mesmo da imanência, e que importa menos pelo fim que possa alcançar do que pelo exercício que engendra. Empresa humana que, embora movida por um ideal postulado à distância, não implica uma evasão ou uma superação da realidade dos homens, mas, bem ao contrário, nela se exerce, como potência crítica e ação transformadora.

Um fragmento de Eduardo Galeano nos faz perceber a concretude deslizante e inapreensível deste projeto humano e impossível referido como utopia: “Ela está no horizonte... Aproximo-me dois passos, ela se afasta dois passos. Caminho dez passos e o horizonte fica dez passos mais longe. Por muito que caminhe, nunca a alcançarei. Para que serve a utopia? Para isto serve: para caminhar.” 137 O percurso deste caminhar sempre mais adiante que define o utópico articula dialeticamente o próximo e o longínquo: visando ao distante, a utopia põe o próximo em questão. As imagens por ela investidas comportam e engendram esta dinâmica de uma dupla distância, que agora revela sua potência crítica. Virtualidade das formas auráticas modernas que, como já vimos, também

Bataille tinha em vista, tendo pensado o jogo das formas como algo que simultaneamente nos faz ver o distante e nos transfigura, e nos dá a conhecer, numa concretude que podemos “tocar com o dedo”, as formas do presente. As imagens auráticas modernas cumprem, assim, um movimento desdobrado em duas direções: um ir além, em direção ao ideal, que se reverte, reflexivamente, num retorno ao real.

137 Eduardo Galeano. As palavras andantes , 1994, p. 310. 149

Dotado de consciência histórica e subjetividade reflexiva, o homem moderno capaz de vivenciar a experiência aurática é o bobo que olha o dedo quando alguém lhe aponta a lua. Tendo transformado o sentido original de sua moral, nosso provérbio cumpre seu percurso histórico, diacrônico, e se torna moderno, dialético. Já não instila o impulso de uma consagração transfiguradora. Guarda a consciência de uma utopia crítica, que encena em sua forma.

Se a aura dos objetos mágicos, dos ídolos sagrados, mesmo das primeiras expressões artísticas (cuja função primordial era religiosa e não estética) promovia uma obliteração da materialidade do suporte em proveito da manifestação do divino, a aura secular constitui-se justamente num exercício dialético de auto-reflexividade. A imagem moderna dotada de aura é aquela que conserva, em sua potencialidade metafórica de desdobramento de sentido, a memória de sua própria materialidade; que encena a perda que a sustenta, forma a remeter a outra forma presente apenas como ausência; que revela, no momento mesmo em que se metamorfoseia, uma consciência crítica de que permanece sendo menos e mais do que o objeto que mimetiza, mas nunca a coisa mesma. A aura moderna não é trampolim para um salto transcendente: inscreve-se na imanência da linguagem e da história e sobre esta imanência atua, advindo daí sua potencialidade de intervenção crítica e transformadora do real.

É, portanto, simultaneamente produto e crítica da modernidade, tendo sido forjada na dinâmica dialética que orienta sua história e molda a subjetividade dos indivíduos que dela participam, servindo de base a sua visão de mundo, sua experiência e suas criações.

Subjetividade dilacerada e problemática, ambígua e contraditória, prospectiva e auto- irônica, destrutiva e produtiva, desagregadora e reordenadora, marcada por uma 150 consciência de exílio e por uma sede de utopia que se cristalizam na forma da imagem aurática do nosso tempo.

Também produto desta conjuntura problemática e exercício de reflexão sobre ela, a obra de Walter Benjamin adota a “imagem crítica” como elemento fundamental para a compreensão do fenômeno da modernidade. A reflexão do filósofo alemão se articula como um pensamento por imagens, executado a partir delas e por meio delas, valendo-se de sua potência auto-reflexiva. Sob a ótica benjaminiana, a “imagem crítica” assume sua condição dual de construto e problematização do meio no qual se constitui. É objeto deste meio, mas não se deixa assimilar por ele. Reflete sua realidade, mas não a reproduz, não a repete, não a recupera como sempre igual; na semelhança, na norma, no acordo, introduz a diferença – a différance , no “não-conceito” de Derrida, que coaduna pelo menos dois sentidos complementares: o de distinção e o de distância.

A “imagem crítica” não se constitui como cópia exata do objeto que mimetiza, simulacro ilusório e enganador que pretende assumir o lugar do original; é “imagem dialética”, que se sabe e se revela imagem, que reflete sobre si mesma e seu processo de criação. Não é imagem de um universo reconciliado na unidade, mas de um mundo fragmentário, de perda e busca em exercício. Não encena uma comunhão plena – e falsa

– com o outro. Evoca seu objeto, mas sem obliterar sua própria materialidade, sem se colar inteiramente a ele, permanecendo a uma distância cujo sentido é auto-irônico: consciência de um signo que sabe não ser aquilo que diz. Constitui-se como uma imagem que não pretende tomar o lugar da realidade diante do homem e, assim, contribuir para sua alienação, mas, antes, combatê-la, erguendo-se entre sujeito e mundo para criar um espaço-tempo de mediação em que se possa exercer reflexão, em que se possa pensar 151 uma realidade não mais percebida de forma imediata, irrefletida. Forma da différance , é intervalo e contraposição, fissura da realidade de que faz parte, mas instrumento para seu conhecimento reflexivo.

Infiltrando-se nas mais altas elaborações da civilização moderna – sua arte, sua filosofia –, a “imagem crítica” desafia esta civilização, pondo em questão alguns de seus princípios mais fundamentais: a razão, a técnica, a crença no progresso. Tomadas como normas históricas inabaláveis, na imagem elas são postas em questão, postas em contraste

– num jogo dialético cuja síntese é insistentemente adiada em prol da manutenção da diferença – com os princípios de outra temporalidade, outra cosmovisão e outra lógica.

Trabalho por excelência da “imagem dialética” como pensada por Benjamin, que a define como lugar de um fulgurante anacronismo crítico:

Uma imagem (...) é aquilo no qual o Pretérito encontra o Agora num relâmpago para formar uma constelação. Em outras palavras: a imagem é a dialética em suspensão. Pois, enquanto a relação do presente com o passado é puramente temporal, a relação do Pretérito com o Agora é dialética: não é de natureza temporal, mas de natureza imagética. Somente as imagens dialéticas são imagens autenticamente históricas, isto é, não arcaicas. A imagem que é lida – quero dizer, a imagem no Agora da recognoscibilidade – traz no mais alto grau a marca do momento crítico, perigoso. 138

Superando a diacronia para se fazer dialética, a imagem aurática moderna – autenticamente histórica – desempenha sua virtualidade crítica. No domínio moderno do racional e do científico, ela restitui o mágico, a concepção analógica do real: não como viabilidade efetiva, é certo, mas tão-somente impulso desenganado, tendência frustrada, irrealizável em sua plenitude, que faz da imagem poética o que ela é: não realidade consumada, mas frágil forma de intermédio. Numa peripécia heróica, este desengano que penetra e determina a estrutura da “imagem crítica” será revertido, porém, em advertência

138 Walter Benjamin apud Georges Didi-Huberman. O que vemos, o que nos olha , 1998, p. 182. 152 e em trunfo. Pois se toda imagem é magia desencantada, a “imagem crítica” não se ressente deste falimento e não o disfarça: faz do desencanto parte de seu sentido e rememora, assim, a derrota dos magos e o exílio dos seres e das coisas, condenados à sua solidão e à sua finitude na imanência do desastre: falência irremediável de que se faz, no entanto, impulso utópico. Busca, no mundo aos pedaços da desilusão, por outras formas de relação, por outras formas de redenção: não mais transcendência, mas saber – consciência que possa mudar o mundo, não num passe de mágica, mas por meio de uma continuamente exercitada atitude de reflexão crítica.

Segundo Hugo Friedrich, teórico a que ainda recorreremos muitas vezes no decorrer deste capítulo, a poesia moderna tem uma “substância tão corrosiva quanto mágica”. 139 Explicitando o estatuto dialético das imagens auráticas modernas, esta sua observação, que vem perfeitamente ao encontro do pensamento que vimos desenvolvendo até aqui, diz respeito especificamente à chamada lírica moderna, expressão poética fundada por Baudelaire, Rimbaud e Mallarmé a partir de meados do século XIX. Acreditamos, porém, que a expressão faria justiça, igualmente, a poéticas anteriores, que a nomenclatura da periodização literária não reconhece como modernas

(Baudelaire é considerado o inaugurador da modernidade literária), mas que são já expressões estéticas da ampla experiência sócio-política, econômica, cultural e filosófica da modernidade, em fases anteriores de seu desenvolvimento. Estamos nos referindo ao barroco alemão do século XVII e ao romantismo da Escola de Jena, de finais do século

XVIII.

Estes dois movimentos, bem como a lírica de Baudelaire, que muito dialogou com eles, foram estudados por Walter Benjamin e muito contribuíram para o desenvolvimento

139 Hugo Friedrich. Estrutura da lírica moderna , 1978, p. 36. 153 da obra do teórico. Contendo em si mesmas um aspecto auto-reflexivo, estas expressões artísticas transgrediram a posição de meros objetos de estudo passivos diante do pesquisador e ofereceram a Benjamin a base de um instrumental de pensamento não só para a arte, como para a história e a experiência presente do mundo – realidades, no mais, indissociáveis na reflexão do filósofo alemão. Da poesia baudelairiana, do romantismo de

Novalis e Schlegel, do Trauerspiel , Benjamin extrai modos de pensamento, imagens e conceitos – como os de aura, reflexão, ruína, alegoria – que irá reelaborar em seus textos, deslocando-os de seu contexto próprio, revelando sua potência crítica e seu valor reflexivo de intervenção. Libertando-os de um sentido fixo, trata-os menos como conceitos filosóficos do que como figuras do pensamento , complexas e dinâmicas estruturas que abrangem uma extensa gama de sentidos, por vezes contraditórios, e abrem caminho ao desenvolvimento de outras conceituações (termo cujo sufixo de movimento parece amenizar, ainda que precariamente, a rígida fixidez do conceito ). Com efeito, é nas imagens criadas pela tragédia barroca alemã, pela reflexividade romântica e pela lírica de Baudelaire que parece estar a origem da “imagem crítica” ou “dialética” benjaminiana. Exercendo sua virtualidade reflexiva, constituindo-se como objetos de saber e lugar de consciência crítica, e revelando-se constituídas daquela “substância tão corrosiva quanto mágica” apontada por Friedrich, estas imagens constituiriam a base de elaboração dessa figura do pensamento benjaminiano que tanto nos vem interessando.

Conviria, portanto, voltar brevemente a estas “imagens críticas” fundadoras para melhor compreender a estrutura, o sentido e o trabalho destas formas. Prestar uma visita ao barroco e ao romantismo alemães e repensar, com Benjamin, a lírica de Baudelaire, estendendo ainda nosso percurso a Rimbaud e a Mallarmé, cuja poesia (em muito 154 devedora daquela praticada pelos românticos e por Baudelaire, e, por derivação, de muitos aspectos da concepção de mundo barroca) projeta poderosas elaborações da

“imagem dialética”.

2.1.1. O Trauerspiel barroco

No drama barroco alemão, ela assume a forma de um modelo peculiar de alegoria.

Contrapondo-se ao símbolo clássico e à alegoria cristã, formas de significação imediata, unívoca e universal cujo mecanismo de sentido remete a uma forma de redenção transcendental, a alegoria barroca carrega a insígnia da história. História como o barroco a concebia: “história mundial do sofrimento, significativa apenas nos episódios de declínio”. 140 Sentido que determina não apenas a figurabilidade da alegoria que o representa assumindo as formas da ruína ou da caveira, mas ainda seu processo de construção estrutural.

Conforme afirma Benjamin numa colocação já muito citada, “as alegorias são no reino dos pensamentos o que são as ruínas no reino das coisas”. 141 Para se converter em alegoria, os objetos têm que passar por um processo de destruição, de decomposição, que não se reverte em qualquer tipo de sublimação simbólica elevada, mas tão-somente em significação imanente. A alegoria barroca, fincada na história, recusa toda solução de transcendência. O trabalho alegórico é martírio sem redenção espiritual: a alegoria se apresenta, no palco barroco, como fragmento, destroço, ruína que não significa nada mais do que o próprio declínio. Seu sentido é sua forma; sua forma é sua história: ela

140 Walter Benjamin. Origem do drama barroco alemão , 1984, p. 188. 141 Idem, p. 200. 155 permanece prisioneira nesta imanência. Nela mesma encontra, porém, uma redenção de outra ordem: forma decaída, destruída, aos pedaços, a alegoria barroca já não é imagem elevada, mas se revela objeto de saber.

Benjamin recomendou ao historiador consciente que voltasse sua atenção às ruínas e com elas aprendesse a função redentora que lhe cabe. Elas cristalizam em sua forma um percurso temporal e o sentido de uma historicidade. Na indecidibilidade de sua aparência visual, configuração dialética que remete tanto ao processo de construção como de destruição do objeto em questão, ouve-se o apelo de um passado cujos ideais fracassados o presente pode redimir: apelo messiânico que já não se dirige a alguma manifestação do divino, mas aos homens futuros; não à eternidade, mas à história.

Essa virtualidade messiânica da imagem é o sentido essencial daquele fragmento de Benjamin citado mais acima 142 e que agora, à luz das reflexões do pensador alemão sobre o Trauerspiel , pode ser mais bem compreendido. A “imagem autenticamente histórica” é ali definida como “uma dialética em suspensão”, cristalização de temporalidades distintas que, na forma de estilhaços históricos, ruínas, se encontram para formar uma constelação. Estrutura complexa que propõe uma nova relação de sentido – uma nova legibilidade – para o processo histórico, não mais figurado como linha reta a apontar sempre em frente, para o futuro, e salpicada de acontecimentos históricos cuja seqüência passa do significado inicialmente neutro (embora parcial) de sucessão meramente temporal a um outro, ideologicamente comprometido, de progresso e evolução. Esta determinação única de direção e sentido imposta pela ordenação linear do tempo histórico é rompida por sua organização imagética, que assume a forma aberta e fragmentária da constelação. A relação que ali se estabelece entre os eventos históricos

142 Cf. p. 148. 156 não é seqüencial, mas dialética: encontro de momentos que podem estar muito distantes uns dos outros, mas convergem, por uma associação da ordem da analogia, na forma de uma imagem que, com o fulgor de uma constelação, anuncia o perigo e uma possibilidade de redenção histórica.

A alegoria barroca, “imagem autenticamente histórica”, incorpora em sua forma esta imanência irredutível, esta temporalidade anacrônica e este impulso utópico. Na cena do Trauerspiel , os destroços de uma casa representam a história de sua construção e de seu declínio; uma caveira dá a ver a biografia de um homem e seu fim desastroso. O poeta barroco diz “rosa” e não quer dizer simbolicamente a Beleza essencial e eterna, mas a vida e a morte de uma flor que desabrocha, murcha, despetala. A imagem barroca não salva objetos convertendo-os em idéias abstratas: investe-os de sentido por meio de uma operação que segue rumo inverso ao da abstração simbólica. Nesta se procede a uma anulação da forma concreta em prol de uma significação que a supera, trabalho de sublimação assinalado por uma aura sagrada. Já no caso da alegoria barroca – objeto aurático moderno, secular –, o sentido não é revelado por uma assimilação transcendental da forma que o sustenta. Aspecto incorporado a esta forma como seu princípio de estruturação, seu sentido é indissociável dela, consuma-se apenas em sua presença.

A alegoria se constitui por meio de um processo de decomposição de uma forma empírica, arrancada de seu contexto próprio, desestruturada e deslocada. Fragmento, ela está pronta a incorporar outro sentido, que é, neste caso, o histórico mesmo de sua destruição: representação dinâmica, no plano da imagem, de um processo histórico.

Como afirma Sérgio Paulo Rouanet a partir da teoria de Benjamin sobre o Trauerspiel , a 157 destruição – ou a morte – é significado e modo de organização da alegoria. 143 Reflexiva, esta estrutura significa seu próprio trabalho, que corresponde, por sua vez, à história de seu tempo. Deste modo, a alegoria barroca contém em si mesma, como trabalho de composição e como sentido, o percurso histórico de declínio que a gerou. Encenando-o reflexivamente, ela se torna também instrumento para pensá-lo e para redimi-lo como saber e alerta para tempos futuros. Aí repousa seu potencial utópico, virtualidade de toda

“imagem crítica”.

Como alegorias num palco barroco decorado com ruínas surgem os instrumentos astronômicos de Jai Singh nas páginas de Prosa del observatorio . Por si mesmos, eles são obra de uma era de decadência, como foi o reinado daquele “pequeño sultán de un vago reino declinante” ( PO , p.75), que, como pondera Andreas Volwasen, os teria concebido sobretudo como monumentos: “tendo em vista os enormes custos de construção e o modesto valor científico das obras de Jai Singh, parece razoável supor que este foi o caso de um monarca determinado que quis construir monumentos imensos e extravagantes para si mesmo” 144 . Embora não seja esta em absoluto a leitura dos Jantar Mantares de Jai

Singh feita por Cortázar – para quem eles representam não a expressão fútil de um orgulho desmedido, mas um pronunciamento heróico do humano diante da tirania cósmica – o julgamento de Volwasen reforça a percepção dos observatórios como lugares de preservação da memória, e da memória de uma perda: a glória que o reino de Jai Singh já não tinha no momento mesmo da construção de suas máquinas, que teriam, portanto, sido concebidas como ruína no ato mesmo de sua criação.

143 Sérgio Paulo Rouanet. Apresentação in: Walter Benjamin. Opus cit, 1984, p. 38. 144 “In view of the enormous building costs and the modest scientific value of Jai Singh’s works, it seems reasonable to assume that this was a case of a headstrong monarch looking to construct huge and extravagant monuments for himself.” Andreas Volwasen. Cosmic architecture in India . The astronomical monuments of Maharaja Jai Singh II, 2001, p. 103. (Tradução nossa) 158

Este valor de ruína dos observatórios é acentuado nas fotos de Cortázar, que os conheceu quando eram efetivamente ruínas: estruturas mal conservadas e objetos de curiosidade histórica para turistas. As fotografias os arrancam a seu contexto próprio e os deslocam, num trabalho de violência implicado na construção da imagem que o próprio conteúdo visual das imagens revela, criando-se um jogo de espelhamento auto-reflexivo correspondente ao da alegoria barroca estudada por Benjamin. Fossem lidas numa perspectiva simbólica, as imagens dos observatórios poderiam representar a unidade cósmica, a união com o sagrado. O modo como Cortázar as captura, porém, com uma

ênfase algo obsessiva na concretude da matéria e no desenho das formas, cancela a hipótese desta tendência abstracionista. Na maioria das fotografias, seja por efeitos de enquadramento, pelos cortes ou pela montagem dos negativos, as máquinas de Jai Singh aparecem fragmentadas, decompostas, sem referência de totalidade; em todas elas, as estruturas estão desvinculadas dos astros que lhes conferiam função e sentido. Vemos assim que, como no caso das alegorias benjaminianas, também para estas imagens das máquinas de Jai Singh vigora uma relação de correspondência entre história, forma e significação: testemunhos de uma história de declínio, representadas nas fotografias de

Cortázar como observatórios “des-astrados”, elas se constroem como signos do desastre e tornam-se pontos de partida para uma reflexão sobre o desastre. Como já sabemos, porém, o mecanismo dialético da maquinaria de Prosa del observatorio investirá de desejo estes objetos desastrosos que recolhe, engendrando-os numa cadeia de transformações e conexões que, sem comprometer seu pacto com a imanência, os colocará em movimento e os abrirá a outras significações, numa operação que parece ressoar a filosofia dos primeiros românticos alemães. 159

2.1.2. O Romantismo de Jena

Numa formulação de cunho menos histórico e mais filosófico do que esta que vimos no drama barroco, a forma da “imagem crítica” voltaria a se fazer presente como elemento decisivo de uma poética quase dois séculos mais tarde, na empreitada romântica da Escola de Jena, sobre a qual Benjamin já se detivera alguns anos antes de sua pesquisa acerca do Trauerspiel . O foco de seu trabalho sobre os primeiros românticos alemães, especialmente Novalis e Friedrich Schlegel, recai sobre o conceito de crítica de arte que desenvolveram. Elemento essencial de seu pensamento, a crítica não constitui para estes poetas / filósofos um apêndice teórico à margem de seu fazer artístico, mas um princípio internalizado e essencial a este fazer. Segundo a filosofia estética do Primeiro

Romantismo Alemão, toda forma artística autêntica inclui em si mesma sua crítica; engendra e inicia, ela própria, um exercício reflexivo a que seu fruidor deverá dar continuidade. É, portanto, lugar de reflexão. Movimento que estes românticos tornam fundamento de sua obra e alçam à categoria de conceito.

A reflexão romântica pode ser definida, de maneira bastante simplificada, como um pensamento que se volta sobre si mesmo, que se pensa a si próprio, constituindo-se a atividade do pensar como objeto mesmo desse pensar. Segundo Schlegel, uma

“capacidade de ser o Eu do Eu” 145 . Processo dinâmico de transformação que se expande ao infinito, postulando um absoluto que pode ser concebido (e o foi inicialmente por

Schlegel) como o próprio sujeito, que atuaria como essência mediadora entre todas as

145 Friedrich Schlegel apud Walter Benjamin. O conceito de crítica de arte no romantismo alemão , 1999, p. 30. 160 coisas por meio de uma reflexão cuja infinitude é “antes de tudo não uma infinitude da continuidade, mas uma infinitude da conexão.” 146

Tal operação não disfarça sua raiz mágica, herança cara aos românticos alemães, que se reconheciam, enquanto poetas, sucessores dos magos. Sua filosofia segue os princípios da magia, orientando-se como conhecimento reflexivo que se cumpre fundamentalmente como uma participação , pois se dá sempre como um autoconhecimento, ainda que um paradoxal autoconhecimento do outro . Na formulação de Benjamin:

a coisa, na medida em que aumenta a reflexão em si mesma e abrange em seu autoconhecimento outras essências, irradia sobre estas seu autoconhecimento originário. Também desta maneira o homem pode se tornar partícipe daquele autoconhecimento de outras essências; 147

Pensada nos termos de uma participação , a relação de saber não será uma relação privilegiada, hierarquizada, de sujeito e objeto, conforme se define de acordo com a lógica racionalista e científica, mas se projetará como uma interpenetração de seres postos em contato.

Parece ser este o modelo epistemológico proposto por Cortázar em Prosa del observatorio como uma nova forma de relação entre o homem e o mundo. Sua inspiração prática é a astronomia erótica de Jai Singh, “ciencia de la imagen total” (PO, p.77), empresa de saber movida a desejo que é posta em contraste com a ictiologia, ciência formal que estuda as enguias respeitando os pressupostos de objetividade e distanciamento próprios à ciência moderna, demarcando rigidamente os lugares do sujeito e do objeto de saber, valendo-se de classificações e nomenclaturas que Cortázar

146 Walter Benjamin. Idem, p. 36 147 Idem, p. 64. 161 julga falseadoras, meros paliativos para o temor do desconhecido, de uma realidade mais ampla que o homem deveria buscar:

Bella es la ciencia, dulces las palabras que siguen el decurso de las angulas y nos explican su saga, bellas y dulces y hipnóticas como las terrazas plateadas de Jaipur donde un astrónomo manejó en su día un vocabulario igualmente bello y dulce para conjurar lo innominable y verterlo en pergaminos tranquilizadores, herencia para la especie, lección de escuela, barbitúrico de insomnios esenciales ( PO , p.27)

Embora aparentemente o próprio sultão tivesse de se render à tradição científica, nos seus observatórios Cortázar descobre uma alternativa a esta busca de conhecimento do real que julga cerceadora e enganosa:

Vea usted, en el parque de Jaipur se alzan las máquinas de un sultán del siglo dieciocho, y cualquier manual científico o guía de turismo las describe como aparatos destinados a la observación de los astros, cosa cierta y evidente y de mármol, pero también hay la imagen del mundo como pudo sentirla Jai Singh, como la siente el que respira lentamente la noche pelirroja donde se desplazan las anguilas; esas máquinas no sólo fueran erigidas para domesticar tanta distancia insolente; otra cosa debió soñar Jai Singh alzado como un guerrillero de absoluto contra la fatalidad astrológica que guiaba su estirpe ( PO , p.73-5)

Um cosmos em conciliação, no qual todas as formas estivessem postas em contato e em conexão seria esta imagem do mundo intuída e sonhada por Jai Singh, buscada na sua prática de observação dos astros. Para os românticos alemães, observação era uma terminologia mística, que consistia em estabelecer uma relação de identificação com o objeto que se olha, num exercício de participação , como explica Benjamin no trecho a seguir:

Observar uma coisa significa apenas impeli-la para o seu autoconhecimento. Que o experimento tenha sucesso, isto depende de quanto o sujeito do experimento está em condições de, via aumento da própria consciência, via observação mágica, como se poderia dizer, se aproximar do objeto e, finalmente, incluí-lo em si.148

148 Idem, p. 67. 162

Cortázar atribui a Jai Singh um impulso de saber correspondente a este dos românticos herdeiros dos magos: fundamentado na participação , oposto àquele proposto pela ciência objetivista:

en centro de la tortuga indiana, vano y olvidable déspota, Jai Singh asciende los peldaños de mármol y hace frente al huracán de los astros; algo más fuerte que sus lanceros y más sutil que sus eunucos lo urge en el hondo de la noche a interrogar el cielo como quien sume la cara en un hormiguero de metódica rabia: maldito si le importa la respuesta, Jai Singh quiere ser eso que pregunta, Jai Singh sabe que la sed que se sacía con el agua volverá a atormentarlo, Jai Singh sabe que solamente siendo el agua dejará de tener sed. ( PO , p.53)

Esse desejo de conhecimento é poético por excelência, como indica o próprio

Cortázar em “Para una poética”:

O poeta é aquele que conhece para ser; toda a ênfase está no segundo, na satisfação existencial diante da qual toda complacência circunstanciada de saber se aniquila e se dilui. Pelo conhecer se chega ao ser; ou melhor: o ser da coisa poeticamente conhecida (‘sida’) irrompe do conhecimento e se incorpora ao ser que o anseia. Nas formas absolutas do ato poético, o conhecimento como tal (sujeito cognoscente e objeto conhecido) é superado pela fusão direta de essências: o poeta é aquilo que anseia ser. 149

Este conhecimento poético de princípio analógico não pretende, porém, pôr efetivamente em prática uma autêntica participação mágica. Como já nos avisam as palavras de Schlegel citadas mais acima, o ideal romântico de reunificação de um universo marcado pela fragmentação e pela dispersão não supõe uma relação de continuidade entre os seres, com uma completa neutralização de sua diferença; concebe, sim, uma cadeia de conexões que os põe em contato e em comunicação na vigência mesma desta diferença que os separa. A analogia já não é neste caso princípio transcendental a serviço do mago encantado primitivo, mas artifício do poeta moderno desiludido. Segundo Octavio Paz,

A poética da analogia só podia nascer em uma sociedade fundamentada – e corroída pela crítica. Ao mundo moderno do tempo linear e suas

149 Julio Cortázar. Opus cit, p. 269. 163

infinitas divisões, ao tempo da mudança e da história, a analogia opõe, não a unidade impossível, mas a mediação da metáfora. A analogia é o recurso da poesia para enfrentar a alteridade.150

A analogia romântica não implementa, portanto, a continuidade, não viabiliza uma unidade plena entre as coisas, algo que esta poética moderna desencantada postula apenas como ideal transcendente, que pode indicar a direção a seguir, o objetivo a buscar, mas não pavimenta o caminho que a ele conduz. É este caminho que está em obra na imagem romântica reflexiva, cuja propensão analógica segue lado a lado com uma consciência irônica que, conforme nos esclarece Márcio Seligmann-Silva, “engendra dentro da busca da unidade uma crítica constante da possibilidade de se estabelecer esta unidade”. 151 Pela via da reflexão, a transcendência se inscreve na imanência.

Nestes moldes é postulada a cadeia de conexões traçada em Prosa del observatorio por artes de uma escritura produtora de imagens dilaceradas entre um impulso mágico de fusão do distinto – enguias, estrelas, observatório, sultão – e a consciência irônica da impossibilidade de concretização deste desejo. Questão que se coloca para todo poeta moderno. Sua arte surge no mundo, no plano da materialidade das coisas, e a ele retorna, inscrevendo-se na história. O desejo deste vicário mago que sobrevive não é se transportar a uma outra realidade, mas compreender e transformar aquela em que se encontra por meio de seu ofício, trabalho poético com a linguagem.

Segundo o pensamento romântico alemão, a poesia almejaria ser uma tradução do código perdido do universo, uma decifração de seus segredos, um meio de devolver ao homem o conhecimento do absoluto de que ele fora privado. Se a poesia decifra o mundo, ela o faz, porém, cifrando-o novamente. Ponte entre a realidade dos fragmentos e a totalidade a que

150 Octavio Paz. Os filhos do barro , 1984, p. 100. 151 Márcio Seligmann-Silva. Ler o livro do mundo , 1999, p. 39. 164 aspiram, é elo e separação entre uma e outra, passagem e obstáculo a ultrapassar; mapa rumo à transcendência desenhando um caminho que se percorre como utopia. A infinitude que o poeta pode esperar descobrir na linguagem, ele o sabe, não é o absoluto sagrado prometido pelas religiões, mas as intermináveis conexões de um pensamento que ele próprio põe em marcha para criar as imagens desejosas, prospectivas, mas críticas, de sua arte: “a mais íntima comunidade de finito e infinito” 152 , em palavras de Novalis.

2.1.3. A lírica moderna

Esta busca pela transcendência que a consciência crítica e irônica dos românticos transforma não em trágico fracasso mas em persistente utopia – gesto que vale por si mesmo, pela busca em si mais do que por seu objetivo – é sua herança para a futura lírica moderna de Baudelaire, Rimbaud e Mallarmé, autores de uma poesia transgressora e insurrecta, subversiva em seu conteúdo e em sua forma, autêntica utopia da linguagem cujo ideal era, numa expressão mallarmeana, “mudar a língua para mudar o mundo”. A escritura destes poetas instaura no interior mesmo da sociedade burguesa capitalista uma crítica virulenta à sua ordem, aos princípios que a sustentam, ao modo de vida que engendra, e propõe uma reforma radical desta realidade, trabalho que se inicia numa escrita que desafia e reordena as formas tradicionais da linguagem poética para desafiar e propor uma reordenação das normas instituídas da sociedade civil.

Baudelaire, Rimbaud e Mallarmé empreendem em sua poesia, cada um a seu modo, um mesmo esforço de abrir numa realidade empírica que percebem cerceadora e falseada uma passagem para um universo mais amplo e mais autêntico (impulso que,

152 Novalis. Pólen , 1988, p. 121. 165 como já vimos, Cortázar compartilha). Para tanto, procedem a operações de desestruturação e reordenação da expressão poética, pondo em questão sua linguagem, suas formas e gêneros clássicos, suas imagens mais tradicionais. Do movimento cíclico e contínuo de destruição do velho e construção do novo característico da modernidade fazem mecanismo poético, e criam uma poética do fragmento, fundada na destruição, indispensável para o seu projeto de descobrir passagens para o mais além, para o desconhecido, para o novo.

Apenas nestes termos indefinidos é possível referir o ideal a que visam estes poetas. Sua busca, iniciada por um atentado contra as formas constituídas da poesia e do real, prossegue rumo a uma idealidade que acaba por se revelar lugar de uma

“transcendência vazia”, na expressão tão acertada de Hugo Friedrich, que assim explana o conceito: “a meta da ascensão não só está distante, como vazia, uma idealidade sem conteúdo. Esta é um simples pólo de tensão, hiperbolicamente ambicionado, mas jamais atingido”. 153 Diante da consciência do fracasso, resta o retorno ao real e à linguagem, que, violados, no entanto, estão desfeitos, aos pedaços, sendo recuperáveis apenas como fragmentos. Eles serão ponto de partida para um novo salto em direção ao mistério, movimento inevitavelmente frustrado, definindo-se assim o vicioso ciclo da lírica moderna. A transcendência constitui seu motor, mas não penetra seu conteúdo senão como categoria negativa, ausência pressentida mas inapreensível.

Baudelaire

153 Hugo Friedrich. Opus cit, p. 48. 166

Esta vocação utópica do poético, que parte numa busca que supõe o fracasso, assume um aspecto dinâmico na poesia de Baudelaire. De acordo com Hugo Friedrich, a

“idealidade vazia” é convertida, em sua obra, numa “força de atração que, despertando uma tensão excessiva para cima, repele o homem que está em tensão para baixo” 154 . Este jogo de forças estabelecido a partir da postulação da transcendência elevada, que, embora indefinida e sem conteúdo, atua como pólo de tensão da busca poética, se traduz nesta poesia num esquema de alternância de contrários formulados como baixo e alto, grotesco e sublime, satânico e divino, perdição e salvação, “ spleen e ideal”...

Esta lógica dialética e dinâmica que orienta a poesia de Baudelaire é fixada emblematicamente no poema “Le Gouffre” (“O Abismo”): “– Hélas! tout est abîme, – action, désir, rêve, / Parole! (...)” 155 A convergência de abismo e ideal posta em cena nestes versos é expressão de uma consciência trágica (mescla de consternação e secreta espera do mal, percepção crítica levada a um extremo) que revelará a própria palavra – instrumento da ação, do desejo, do sonho do poeta – como abismo. Baudelaire reconhecia o vestígio mágico que, ao menos como impulso, teria restado na linguagem, meio em que se põem em relação, em correspondência , coisas distintas: “Há na palavra algo de sagrado que nos impede de fazer dela um jogo de azar. Manejar com engenho uma língua significa exercer uma espécie de magia evocadora” 156 , escreveu ele. Esta crença numa aura da linguagem não o impede, porém, de reconhecer na palavra manejada pela poesia moderna o abismo, signo do fracasso. Segundo o pensamento dialético que fundamenta a poesia de Baudelaire – e toda a poesia de autêntica expressão moderna –, porém, a

154 Idem, p. 48. 155 “– Ai, tudo é abismo, – sonho, ação, desejo intenso / Palavra! (...)” Charles Baudelaire. As flores do mal , 1985, p. 472-3. (Tradução de Ivan Junqueira) 156 Charles Baudelaires apud Hugo Friedrich. Opus cit, p. 52. 167 passagem pelo abismo, pelo fracasso, mesmo pela morte, é não apenas considerada tolerável como necessária na empresa de busca pelo novo – “Plonger au fond du gouffre,

Enfer ou Ciel, qu’importe ? / Au fond de l’Inconnu pour trouver du nouveau !” 157 , conclui o poeta em “Le Voyage” (“A Viagem”), em versos ecoados por Cortázar em

Prosa del observatorio, onde também se julga, como observávamos no capítulo anterior, que é preciso inverter a perspectiva, dar volta ao caleidoscópio para olhá-lo do lado certo, optar pelo desastre, pela desordem, pelo desconhecido, pelo novo:

no es tan difícil perder la razón, los zeladores de la torre no se darán demasiada cuenta, qué saben de anguilas o de esas interminables teorías de peldaños que Jai Singh escalaba en una lenta caída hacia el cielo; porque él no estaba de parte de los astros como algún poeta de nuestras tierras sureñas, no se aliaba a la señora M.-L. Bauchot para la más correcta identificación de los congrios o de las magnitudes estelares. Sin otra prueba que las máquinas de mármol sé que Jai Singh estaba con nosotros, del lado de la anguila trazando su ideograma planetario en la tiniebla que desconsuela a la ciencia de mesados cabellos ( PO , p.51)

Como este ideograma planetário das enguias que já não se pode – e nem se quer – compreender no mundo desconcertado do desastre encenado por Cortázar, a própria palavra já não é, em Baudelaire, meio de perfeita transcendência, de fusão com um absoluto finalmente apreensível; magia corrompida, faz-se abismo, lugar do vazio, do desconhecido, da queda: este o sentido de sua aura, não mais signo transcendental de elevação, mas memória de uma queda, experiência de destruição visando à transformação.

Este é o princípio essencial da lírica de Baudelaire, que reverte o trágico em utópico e transforma em saber poético a experiência traumática da modernidade no espaço novo da grande cidade. Transpondo-a para sua obra, o poeta inaugura a expressão literária moderna: arte que assume a destruição e a decomposição como princípios

157 “Ir ao fundo do abismo, Inferno ou Céu, que importa? / Para encontrar no Desconhecido o que ele tem de novo !” Charles Baudelaire. Opus cit, p. 452-3 (Tradução de Ivan Junqueira, modificada) 168 criativos; que lida com o fragmentário, o provisório, o efêmero; que se esforça para dar forma e sentido à vivência num mundo que a todo momento ameaça se perder na velocidade com que se transforma. Consciência dada ao poeta pela crueza concreta da experiência.

Vivenciando a reforma de Paris, transformada num grande canteiro de obras,

Baudelaire circula diariamente por um espaço em que convivem, lado a lado, o velho e o novo, a construção e a destruição: meio no qual as fundações dos novos edifícios e a pavimentação dos novos bulevares confinam com os escombros dos antigos prédios demolidos e com o que resta do calçamento dos velhos becos e ruelas. Este cenário em ruínas, lugar de uma autêntica vivência dialética, o poeta transpõe para seus poemas por meio de um trabalho de alegorização que de certo modo reedita a poética do Trauerspiel .

Como ali ocorria, novamente a alegoria se fará, na lírica do poeta moderno, recurso para trazer a história para a obra de arte, dando-lhe uma forma por meio da qual seja possível pensá-la. Transportadas das ruas de Paris para os versos de Baudelaire, passando de ruínas a alegorias, estas formas da modernidade em que convergem os sentidos de construção e destruição, e se vislumbram o ideal e sua frustração, recebem a aura que lhes é devida: não mais o signo de consagração e eternidade que a elas poderia ser conferido pela lírica antiga, mas o índice de uma outra redenção – como objetos de saber

– que lhes pode atribuir a lírica moderna. Ela não elude a condição de destroço, de fragmento, dos objetos que humildemente recolhe. Também não reconstitui sua inteireza e sua grandiosidade perdidas. Age de acordo com o que Baudelaire considerava o heroísmo da modernidade – um heroísmo da penúria , que faz da necessidade uma 169 virtude 158 – e transforma a perda que naquelas estruturas se opera em potência de reflexão, sua tragédia presente em utopia de transformação prospectiva, por meio de um saber que nelas investido se faz matéria de consciência crítica – exercício da “imagem dialética” por excelência.

O exercício desta consciência crítica da modernidade é compromisso da poesia melancólica de Baudelaire, que, sabendo não poder salvar na eternidade os objetos que se perdem no fluxo de transformação do moderno, salva-os na alegoria, lugar de reflexão. O poema “Le Cygne” (“O Cisne”) cumpre e pensa este trabalho poético heróico construindo uma alegoria da experiência moderna que aborda criticamente não apenas o sentido da modernidade como experiência e fenômeno histórico, mas também o lugar que o poeta ocupa e a função que desempenha neste cenário.

Baudelaire promove neste poema uma identificação entre o cisne e o poeta, retomando uma associação recorrente na tradição lírica, sobretudo romântica. O cisne era ali posto a flutuar sobre as águas límpidas de lagos feéricos, celebrado por sua beleza imponente e por seu canto, sua figura cingida de uma aura de distinção e superioridade, símbolo de pureza e elevação. Sentido e valor que, no imaginário romântico, caberiam igualmente ao poeta, também ele celebrado como ser diverso dos outros homens e superior a eles, habitante de um mundo à parte, isolado da realidade vulgar cujo contato conspurcaria sua alma e sua poesia.

No poema de Baudelaire, é ainda à figura do cisne que o poeta se associa. É diverso, porém, o eixo de sentido desta relação. Arrancando (ou libertando) o cisne de seu cenário etéreo e protegido – gaiola dourada em que o pusera a poesia romântica –,

158 Walter Benjamin. Charles Baudelaire : um lírico no auge do capitalismo, 1994, p. 72. 170

Baudelaire o traz para a história, para o presente da cidade moderna em ruínas, espaço da lírica moderna, onde ele assumirá o heroísmo de um mito fora de lugar:

Un cygne qui s’était évadé de sa cage, Et, de ses pieds palmés frottant le pavé sec, Sur le sol raboteux traînait son blanc plumage. Près d’un ruisseau sans eau la bête ouvrant le bec

Baignait nerveusement ses ailes dans la poudre, Et disait, le coeur plein de son beau lac natal: “Eau, quand donc pleuvras-tu? Quand tonneras-tu, foudre?” Je vois ce malheureux, mythe étrange et fatal,

Vers le ciel quelquefois, comme l’homme d’Ovide, Vers le ciel ironique et cruellement bleu, Sur son cou convulsif tendant sa tête avide, Comme s’il adressait des reproches à Dieu! 159

Deslocado na paisagem estranha da cidade, em tudo diversa do seu “belo lago natal”, ferido pelo pavimento áspero e sujando-se no pó junto a um riacho seco, a cantar não mais a sublime beleza, mas a aflição do exílio, este cisne arruinado é símbolo corrompido, mito historicizado: alegoria. Sua imagem já não é manifestação da Beleza, da pureza, da Elevação – idealidade atemporal; incorporada à história, a imagem incorpora em si a história: processo de destruição e transformação que a penetra, como mecanismo de construção e como sentido.

Conforme vimos ao comentar o drama barroco alemão, a alegorização implica a destruição do objeto que é sua matéria; dele permanece um vestígio: uma ruína, uma caveira – objetos cenográficos – no palco em que se encena o Trauerspiel ; palavras no poema. Apenas traços, que são, porém, investidos de sentido; que se perdem como realidade, mas se salvam como significação. Assim o cisne de Baudelaire, feito signo

159 “Um cisne que escapara enfim ao cativeiro / E, nas ásperas lajes os seus pés ferindo, / As alvas plumas arrastava pelo solo grosseiro. / Junto a um regato seco, a ave, o bico abrindo, // No pó banhava as asas cheio de aflição, / E dizia, a evocar o seu lago natal: / “Água, quando cairás? quando soarás, trovão?” / Eu vejo esse infeliz, mito estranho e fatal, / Tal qual o homem de Ovídio, às vezes num impulso, / Erguer-se para o céu cruelmente azul e irônico, / A cabeça a emergir do pescoço convulso, / Como se a Deus lançasse uma reprovação.” Charles Baudelaire. Opus cit, p. 326-7. (Tradução de Ivan Junqueira, modificada) 171

(não esqueçamos a homofonia entre os termos cygne – cisne – e signe – signo – em francês) poético e histórico. Em sua nostalgia pelo lago onde já não está, em sua evocação à chuva que poderia salvá-lo da aridez que o cerca, o cisne convoca temporalidades diversas, fazendo convergirem passado e futuro para o presente de uma imagem que se faz, portanto, dialética, e, por isso, crítica e autenticamente histórica.

Pondo em confronto temporalidades distintas, ela se faz instrumento de reflexão sobre seu presente e, lugar de aguda consciência trágica, exclui a possibilidade de redenção transcendental: no espaço imanente da história, o céu que paira sobre o cisne é

“cruelmente azul e irônico”; despreza todo apelo, queixa ou desafio que a ave possa lhe lançar. Quem ouve o canto agônico do cisne é o poeta, cujo olhar melancólico reconhece a cena de desolação, de ruína que tem diante de si e a transforma em imagem alegórica, preservando-a como objeto de saber.

Paris change! Mais rien dans ma mélancolie N’a bougé! palais neufs, échafaudages, blocs, Vieux faubourgs, tout pour moi devient allégorie, Et mes chères souvenirs sont plus lourds que des rocs. 160

As alegorias do poeta, em que se cruzam o velho e o novo em cristalizações fulgurantes (como constelações), guardam – memória gravada em pedra sólida e grave, presença ostensiva e incontornável – um saber e um alerta: tudo se perde, e mesmo o que

é novo hoje será muito em breve substituído por outra novidade. Esta consciência é tudo que se pode preservar. A poesia de Baudelaire assume esse compromisso ético. O poeta moderno não deve se perder em devaneios, não deve se desvencilhar da história, que penetra mesmo o espaço até então reservado dos mitos, que, por sua vez, se constituem

160 “Paris muda! mas nada em minha nostalgia / Mudou! Novos palácios, andaimes, lajedos, / Velhos subúrbios, tudo em mim é alegoria, E essas lembranças pesam mais do que rochedos.” Idem, p. 326-7. (Tradução de Ivan Junqueira) 172 agora (embora precariamente) no tecido histórico, na trama dos acontecimentos vividos e das transformações da existência, por obra de uma poética da alegoria.

Este fenômeno verifica-se também em Prosa del observatorio . Como já sugeríamos em nosso primeiro capítulo, o livro de Cortázar constrói o mito de uma máquina do mundo reordenada. A novidade desta invenção não está, porém, fundamentalmente na imagem do cosmos que ela projeta, mas na proposta e no propósito de montagem desta imagem, bem como na seleção dos elementos que irão constituí-la: enguias, ictiólogos, um sultão indiano do século XVIII, seus observatórios astronômicos em ruínas – elementos dispersos, recolhidos no fluxo da história e no cotidiano vivido do escritor: na viagem que o levou a conhecer monumentos que guardavam a memória histórica de um monarca decadente e amante de astronomia, na matéria de jornal que o fez tomar ciência das últimas descobertas da ictiologia sobre as enguias – aleatórios fragmentos de mundo que, reunidos num texto que lhes confere novo sentido e entre eles estabelece inusitadas relações, servirão de mote para uma reflexão crítica do autor sobre sua realidade histórica e política, exercício para o qual o mito não apenas abre, mas constitui espaço. Cumprindo um papel que é correspondente ao da alegoria do cisne de

Baudelaire, construto de um poeta que, definindo seu compromisso com o moderno, assume a missão de dar forma e criar meios de reflexão para as novas experiências que testemunha.

No cenário da metrópole moderna, este poeta estará permanentemente deslocado e atrapalhado, em desgraça como o cisne a se arrastar em meio à aridez, como o albatroz de um outro tão conhecido poema de Baudelaire, que, descido do céu ao chão, perde sua elegância e sua nobreza para ser alvo de zombaria. Não lhe cabe, porém, tentar escapar à 173 sua condição. O poeta moderno deve se comportar heroicamente, fazendo de seu exílio e de seu estranhamento num meio que não é o seu recurso e matéria de sua poesia. Esta a missão do poeta moderno que, como o cisne, já não pode viver num patamar isolado do mundo e dos outros. Deve penetrar a realidade, a história, a vida presente; misturar-se à impureza, comprometer-se com ela; “sentar praça no coração da multidão, em meio ao fluxo e ao refluxo do movimento, em meio ao fugidio e ao infinito” 161 , como escreve

Baudelaire no ensaio “O pintor da vida moderna”.

Este novo estatuto do poeta moderno – cisne conspurcado a arrastar-se no pó, albatroz decaído em meio hostil – é firmado por Baudelaire no poema em prosa “Perte d’auréole” (“Perda de auréola”), breve anedota alegórica dialogada.

– Eh! quoi! vous ici, mon cher? Vous, dans un mauvais lieu! vous, le buveur de quintessences! vous, le mangeur d'ambrosie! En vérité, il y a là de quoi me surprendre. – Mon cher, vous connaissez ma terreur des chevaux et des voitures. Tout à l'heure, comme je traversais le boulevard, en grande hâte, et que je sautillais dans la boue, à travers ce chaos mouvant où la mort arrive au galop de tous les côtés à la fois, mon auréole, dans un mouvement brusque, a glissé de ma tête dans la fange du macadam. Je n'ai pas eu le courage de la ramasser. J'ai jugé moins désagréable de perdre mes insignes que de me faire rompre les os. Et puis, me suis-je dit, à quelque chose malheur est bon. Je puis maintenant me promener incognito, faire des actions basses, et me livrer à la crapule, comme les simples mortels. Et me voici, tout semblable à vous, comme vous voyez! – Vous devriez au moins faire afficher cette auréole, ou la faire réclamer par le commissaire. – Ma foi! non. Je me trouve bien ici. Vous seul, vous m'avez reconnu. D'ailleurs la dignité m'ennuie. Ensuite je pense avec joie que quelque mauvais poète la ramassera et s'en coiffera impudemment. Faire un heureux, quelle jouissance! et surtout un heureux qui me fera rire! Pensez à X, ou à Z! Hein! comme ce sera drôle! 162

161 Charles Baudelaire apud Marshall Berman. Tudo que é sólido desmancha no ar . A aventura da modernidade, 1986, p. 141. 162 “– Mas o quê? você por aqui, meu caro? Você em tão mau lugar! você, o bebedor de quintessências! você, o comedor de ambrosia! Francamente, é de surpreender! // – Meu caro, você bem conhece o meu pavor dos cavalos e das carruagens. Ainda há pouco, quando atravessava a toda pressa o bulevar, saltitando na lama, através desse caos movediço onde a morte surge a galope de todos os lados a um só tempo, a minha auréola, num movimento precipitado, escorregou-me da cabeça e caiu no lodo do macadame. Não tive coragem de apanhá-la. Julguei menos desagradável perder as minhas insígnias do que ter os ossos rebentados. De resto, disse com os meus botões, há males que vêm para bem. Agora posso passear incógnito, praticar ações vis e entregar-me à crápula, como os simples mortais. E aqui estou, igualzinho a 174

Já de início, o texto salienta a condição de deslocamento do poeta no ambiente urbano moderno, seja no “mau lugar” indeterminado (Marshall Berman sugere um lugar de má reputação, como um bordel 163 ) onde seu interlocutor se surpreende ao encontrá-lo, seja no bulevar enlameado cujo movimento apavora o “bebedor de quintessências”.

Assustado com o trânsito veloz dos cavalos que por ali circulam, ele deixa sua auréola resvalar do alto de sua cabeça indo pousar diretamente no macadame, material do calçamento dos novos bulevares de Paris e autêntico signo da modernização da cidade.

Até este ponto da narrativa, o poeta parece tão atrapalhado quanto o cisne a se arrastar no pó de um regato seco ou o albatroz a tropeçar em suas asas grandes demais para o solo.

No entanto, num gesto que faz jus perfeitamente à definição do heroísmo moderno de

Baudelaire, ele reverte sua perda em ganho: percebe que, desprovido de sua insígnia de elevação, pode de fato vivenciar a experiência moderna, sobretudo no que esta oferece de mais vil. Se a experiência caótica da cidade moderna provoca a perda da auréola, só desvencilhando-se dela é possível vivenciar efetivamente essa experiência. Consciente disso, o poeta abandona sua auréola e mergulha na massa, tornando-se autenticamente moderno.

A queda da aura constitui uma espécie de princípio ético da poesia de Baudelaire, modernamente heróica – dessacralizada e plantada no coração da grande cidade. No movimento que a imagem incorpora manifesta-se mais uma vez aquela dinâmica de atração entre baixo e elevado, abismo e ideal característica da expressão baudelairiana, você, como está vendo. // – O senhor deveria ao menos pôr um anúncio, ou comunicar a perda ao comissário. // – Ah! Não. Estou bem assim. Só você me reconheceu. Aliás, a dignidade me entedia. Depois, alegra-me pensar que talvez algum mau poeta encontre a auréola e com ela impudentemente se adorne. Fazer alguém feliz, que prazer! e sobretudo um feliz que me fará rir! Pense no X, ou no Z! Xi! como será engraçado!” Charles Baudelaire. Pequenos poemas em prosa , 1976, p. 252-3 (Tradução de Aurélio Buarque de Hollanda Ferreira) 163 Marshall Berman. Opus cit, p. 150. 175 tensão que se resolve, provisoriamente, numa trajetória para baixo, descida ao fundo do abismo ou ao lodo do macadame que será, no entanto, curva parcial de um movimento de perene oscilação entre pólos opostos. Segundo este mecanismo, o revés da perda da aura acaba por se converter em virtude. É a consciência disso – consciência heróica – que faz um poeta de fato moderno, capaz de vivenciar a modernidade e de traduzi-la poeticamente, conferindo-lhe forma e sentido.

Empenhado nesta empresa, Baudelaire chega ao ponto de criar um novo gênero literário: o poema em prosa, 164 por ele idealizado como um procedimento de observação da vida moderna, que seria capaz de captar com maior fidelidade do que a prosa ou a poesia versificada a sua atmosfera, por estar mais afinado a ela. Na dedicatória/prólogo de Petits poèmes en prose , texto que poderia ser considerado uma primeira teoria concisa do poema em prosa, escreve o poeta: “c’est surtout de la fréquentation des villes énormes, c’est du croisement de leurs innombrables rapports que naît cet idéal obsédant”. 165 O poema em prosa estaria, portanto, vinculado à metrópole moderna desde sua origem, tendo sido criado para traduzi-la poeticamente, propondo-se menos como uma obra de escrita estética do que como um processo de escritura que fosse também exercício ativo de percepção desse ambiente e reflexão sobre seu sentido. Fiel a este propósito, ele preserva em sua forma e em sua linguagem um aspecto de obra em curso, em que o momento da escrita parece coincidir com o presente da realidade que registra. Esta sugestão de um modo de composição “ao vivo” do poema em prosa torna-se possível

164 Na dedicatória de Petits poèmes en prose , Baudelaire aponta o Gaspard de la nuit , de Aloysius Bertrand, como obra inaugural do gênero e sua primeira fonte de inspiração. Os poemas em prosa de Baudelaire são, no entanto, bastante diversos daqueles compostos por seu predecessor, e tiveram uma repercussão infinitamente maior. Daí que Petits poème en prose seja considerada a obra fundadora do gênero. 165 “É sobretudo da freqüentação das grandes cidades, é do cruzamento das suas inúmeras relações que nasce este ideal obsessor.” (Tradução de Aurélio Buarque de Hollanda Ferreira) Idem, p. 11. 176 graças à sua liberdade formal e à sua maleabilidade estrutural e rítmica, traços que conferem a esta forma um grau de proximidade com a experiência jamais conseguido pela poesia tradicional versificada e uma capacidade de adaptação a situações diversas certamente necessária a uma escritura que pretende captar a experiência moderna.

A modernidade conhecida por Baudelaire no ambiente da grande cidade tem a fragmentação, a transitoriedade e a diversidade como seus atributos fundamentais. Estes traços definidores são perceptíveis concretamente na paisagem urbana moderna – múltipla, heterogênea e em permanente transformação. Seu desenho é uma espécie de palimpsesto constituído de elementos diversos e contrastantes entre si, que se sobrepõem uns aos outros, gerando uma imagem aos pedaços, como a de um puzzle mal montado cujas partes comprometem a percepção do todo (lembremo-nos da canção folclórica americana que dizia que Yankee Doodle não pôde ver a cidade porque havia casas demais). Para além desta impressão inicial de confusão, o movimento de que está impregnado o cenário urbano moderno torna-o caótico, a alterar-se continuamente – mas não em modo constante – segundo os ritmos múltiplos e variáveis de seus elementos móveis: passantes e veículos, cuja circulação ou aglomeração – nas multidões – põe em contato as diferenças que constituem a cidade que se moderniza, cena de contradições em que estão lado a lado o velho e o novo, o pobre e o rico, o cidadão honesto e o criminoso.

Os poemas em prosa de Baudelaire dão forma a esta experiência fragmentária, múltipla e cambiante, captando seus diversos ritmos e suas imagens mais variadas, transpondo-os para uma escrita que, no contato íntimo com a vida na grande cidade moderna, realiza o milagre – não transcendental, mas poético, “d’une prose poétique, musicale sans rythme et sans rime, assez souple et assez heurtée pour s’adapter aux 177 mouvements lyriques de l’âme, aux ondulations de la rêverie, aux sobressauts de la conscience”. 166 Exercitando esta expressão que improvisa e se metamorfoseia – fluida ou entrecortada, objetiva ou alegórica, pontual ou fantasiosa, idílica ou irônica – os poemas em prosa baudelairianos acompanham a cidade e seus habitantes, registram a turbulência de seu percurso e as oscilações de sua sensibilidade, traçam um perfil de seu mundo social e psíquico, ambos truncados e contraditórios – modernos. Seguem os passos da

Bela Dorotéia: altivos, voluptuosos, e então humildes e devotados; desposam a multidão vária, desconhecida e imprevista; traduzem o olhar dos pobres, a piedade, a intolerância e a incomunicabilidade dos amantes; compartilham o tormento dos artistas. Imergindo na vida moderna, conhecendo seus mais diversos fenômenos e personagens, realizam o compromisso ético da poesia baudelairiana, e se fazem reconhecer como forma estética autenticamente moderna.

O poema em prosa é expressão da arte modernamente heróica ou heroicamente moderna de Baudelaire, que cria uma forma poética na qual a poesia desconstrói e reordena a si mesma, para se tornar – como o cisne dessacralizado que se faz signo da modernidade – forma capaz de melhor apreender esta experiência, de expressá-la e refletir criticamente sobre ela. Destituindo-se do estilo sublime, sisudo e solene, algo pomposo que caracterizava a poesia em versos (sobretudo em nobres alexandrinos) produzida até aquele momento na literatura francesa, o poema em prosa baudelairiano busca a espontaneidade da prosa, sua expressão mais livre, sua cumplicidade humilde com a realidade mais simples e banal, terra-a-terra, para a qual não houvera, até então, lugar na grande poesia. Como nos conta “Perda de auréola” – alegoria de toda a poética

166 “de uma prosa poética, musical sem ritmo e sem rima, bastante maleável e bastante rica de contrastes para se adaptar aos movimentos líricos da alma, ás ondulações do devaneio, aos sobressaltos da consciência” (Tradução de Aurélio Buarque de Hollanda Ferreira) Idem, p. 11. 178 baudelairiana e da arte moderna como um todo, mas também alegoria de si mesma, forma reflexiva a pensar o trabalho que nela se cumpre –, o poema em prosa é o solo onde vem pousar a aura que escorrega da cabeça do poeta e – não, não se perde: apenas se torna matéria de imagem. E “imagem dialética” – consciente de sua forma e crítica de si mesma e do mundo que figura.

Esta conversão do sagrado a imagem profana já observamos em Prosa del observatorio , maquinaria que encena ritos precários de erotismo e sacrifício que não conduzem as formas a eles submetidas a uma consumação consagradora, recuperando-as em jogos de deslocamento e transfiguração, operação caleidoscópica de geração de uma imagem de mundo que se reconhece isto mesmo: imagem. Sugestão de um mito cosmogônico profanado, que dispensa os deuses e revela suas raízes humanas.

Esta operação de desmistificação é tema de um outro poema em prosa de

Baudelaire: “Les tentations ou Éros, Plutus et la Gloire” (“As tentações ou Eros, Pluto e a

Glória”), narrativa de teor alegórico que se nutre tanto do modelo cristão como do modelo clássico do alegórico 167 , para, por fim, desconstruir a ambos e fazer mais uma vez da alegoria “imagem dialética” – inevitavelmente fincada na história, destituída de poder transcendental, mas investida de potência crítica.

O texto narra a visita que, em sonho, dois Satãs e uma Diaba prestam a um homem comum. Cada um tem uma aparência altiva e impressionante: o primeiro, Eros, é dotado de um semblante de sexo ambíguo, de um corpo flácido como o de um Baco, de

167 Ambigüidade que já se pode perceber pelo título duplo da composição. Sua primeira parte – “As tentações” – estaria de acordo com as alegorias religiosas de viés didático, que encenavam um embate de vícios e virtudes com evidente e previsível exaltação destas e depreciação daqueles. Já a designação “Eros, Pluto e a Glória” remete às narrativas alegóricas de molde clássico, nas quais deuses encarnando valores abstratos entravam em contato com mortais, deste contato de seres diversos advindo resultados o mais das vezes problemáticos. 179 um ar trágico e sorridente; o segundo, Pluto, tem um imenso ventre do interior do qual vem um tilintar como de metal e gemidos de lamento; a Diaba, Glória, é sedutora como uma bela mulher envelhecida, de olhar enfeitiçante e voz misteriosa. Os três seres surgem adornados com o que parecem ser atributos mágicos: Eros porta à guisa de cinto uma serpente da qual pendem frascos com líquidos misteriosos, um violino e grilhões de ouro nos pés; Pluto traz tatuadas na barriga imagens de homens e mulheres miseráveis; Glória leva uma gigantesca trombeta enfeitada com manchetes de jornais do mundo inteiro que faz ressoar pelo universo o som que por ela passar. Cada uma dessas criaturas oferece ao narrador, qual gênio saído da lâmpada, a realização de um desejo: o poder erótico de conhecer “le plaisir, sans cesse renaissant, de sortir de [soi]-même por [s]’oublier dans autrui, et d’attirer les autres âmes jusqu’à les confondre avec la [sienne]” 168 ; uma matéria fantástica: “ce qui obtient tout, ce qui vaut tout, ce qui remplace tout” 169 ; e a glória universal.

O homem, porém, rejeita todas as graças que lhe são oferecidas, desmascarando seus benfeitores demoníacos como falsos deuses. Dessacralizados como a aura do poeta que mergulha na realidade moderna, os adornos que portam – supostos atributos místicos a atestar sua ligação com o sagrado – são recuperados pelo discurso irônico do poema como referentes concretos e contextualizados: não elos transcendentais, mas vestígios do mundano, matéria fragmentária da alegoria metafísica convertida – ou corrompida – em sua forma moderna de “imagem crítica”. Este efeito é produzido no poema em prosa de

Baudelaire mediante uma operação que poderia ser descrita como dessimbolização:

168 “o prazer, ininterruptamente renovável, de sair de ti mesmo para te esqueceres em outrem, e de atrair as outras almas até confundi-las com a tua” Charles Baudelaire. (Tradução de Aurélio Buarque de Hollanda Ferreira) Pequenos poemas em prosa, 1976, p. 60. 169 “aquilo que obtém tudo, que vale tudo, que substitui tudo” Idem, p. 60. 180 desconstrução do símbolo (do grego sym + ballein: lançar junto) por meio da separação, do isolamento de seus componentes abstrato e concreto. Processo que seria, segundo o teórico Clive Scott, favorecido pela estrutura da prosa, pois aí, “privadas do intercâmbio contínuo e desimpedido entre o literal e o figurativo que temos na poesia, as palavras são reduzidas a um significado mínimo; o correspondente objetivo torna-se novamente objeto.” 170 Nesta remissão ao concreto das formas, interrompe-se a eficácia evocatória do símbolo, movimento de conjunção que já não se pode cumprir com o desembaraço necessário – anulando inteiramente a realidade presente em prol de uma significação de outra ordem; e procede-se à restituição da referencialidade real, objetiva das coisas em forma de traços, signos que já não apontam para o transcendental, mas para o imanente, para os objetos em si e não para sua transfiguração.

Parece haver, portanto, na prosa, a negação de um certo pacto poético – definido pelo “intercâmbio contínuo entre o literal e o figurativo” – que constituiria, em poesia, mecanismo semelhante à “suspensão temporária da descrença” fixada pelo pacto ficcional. Convém, no entanto, reforçar bem que o que se verifica no exercício da prosa poética não é uma completa obliteração desse pacto poético, como se este jamais tivesse existido, mas seu rompimento, operado no interior mesmo da forma – trabalho em curso

– do poema em prosa. Entre a poesia e a prosa, sendo ambas e nenhuma delas, também ele forma de intermédio, o poema em prosa recorda, daquela, o impulso analógico (já desencantado e voltado em outra direção, mas ainda ativo como função figurada da linguagem) herdado da magia; e incorpora, desta, o ceticismo prático que lhe vem de sua função pragmática de comunicação. A forma híbrida se torna, assim, dialética e

170 Clive Scott. “O poema em prosa e o verso livre”, in: M. Bradbury e J. Mc Farlane. Modernismo , 1989, p. 292. 181 desiludida, confronto do mago primitivo e de seus deuses e demônios com a realidade presente. Este encontro desastroso testemunhamos em “As tentações...”.

Um a um, os demônios vão sendo ali desmascarados conforme vão sendo restituídos à sua referencialidade banal e desprezível sua figura emblemática, os objetos que portam e os presentes que oferecem. Na voz sedutora da Glória, suspeita-se a rouquidão provocada por um excesso de aguardente. No ruído de metais da enorme pança de Pluto ouve-se o tilintar de moedas, bem como no seu riso de dentes estragados se recorda a satisfação egoísta dos que se empanturram às custas de outros que passam fome. Na “floresta de símbolos” que é a figura exuberante de Eros – de semblante andrógino e compleição báquica, envolvida pela serpente da tentação carregada de vidrinhos com poções misteriosas e complementada por um frasco de duvidoso sangue ofertado (não mais para redimir os pecados da humanidade em comunhão com o divino, mas como “parfait cordial”) deixa-se perceber o aparato exagerado e vulgar de certo esoterismo fajuto. O mesmo processo de rebaixamento ocorre com as graças que estes falsos deuses oferecem, destituídas de sua substância de milagre e reconhecíveis como baixas ambições – a glória feita fama de manchete de jornal; o desejo de absoluto feito ganância, sede de uma riqueza de notas de dinheiro (“richesse attristée, comme um papier de tenture, de tous les malheurs” 171 ); o amor universal feito delírio narcótico. Quebrada a ilusão das imagens, os Satãs e a Diaba são revelados pelo poema – numa mística invertida em consciência crítica – projeções de certos personagens, bastante indignos, do mundo mesmo habitado pelo narrador: um falso feiticeiro, um burguês, uma prostituta.

171 “riqueza entristecida, como um papel pintado, por todas as desgraças representadas na tua pele” Charles Baudelaire. Pequenos poemas em prosa , p. 61. 182

Não se encerra aí, porém, o poema em prosa. Resta cair ainda uma aura de elevação: a do narrador, que vinha bravamente escapando à corrupção dos falsos deuses e das baixas graças da modernidade. Uma vez desperto do sonho em que fora visitado pelos demônios, porém, o até então digníssimo sujeito se arrepende e se lamenta de sua veemente demonstração de nobreza de espírito: “En vérité, me dis-je, il fallait que je fusse bien lourdement assoupi pour montrer de tels scrupules. Ah! s’ils pouvaient revenir pendant que je suis éveillé, je ne ferais pas tant le délicat!”172 . Segundo a lógica de

Baudelaire, não há virtude ou heroísmo algum na abnegação demonstrada por esse personagem, tolo que rejeita o que se lhe oferece. Sua recusa é, como ele próprio reconhece, equívoco que um homem consciente (em mais de um sentido) não cometeria, como nos mostra o poeta de “Perda de auréola”, este sim autêntico herói moderno, que não renega a realidade que o cerca, que a percebe criticamente mas não ousa dela evadir- se.

Esta afirmação soa polêmica, como o é a própria poesia de Baudelaire – já

Benjamin apontou suas virtuosas contradições. Quanto à que ora se levanta, talvez não haja expressão que melhor a sustente do que “L’invitation au voyage” (“O convite à viagem”). Como argumentar a favor de um compromisso de permanência como fundamento da poética baudelairiana se o poeta dá tal título instigador de partida não a uma, mas a duas de suas composições: um poema e um poema em prosa? E, no entanto, em um como no outro, cada um a seu modo, o que se tem é aquele mesmo movimento que descrevemos não só com relação a Baudelaire, mas também a Rimbaud e Mallarmé: desejo de superação da realidade e busca do ideal, que nada mais será, no entanto, do que

172 “Em verdade – disse comigo – era preciso que eu estivesse muito pesadamente entorpecido para manifestar semelhantes escrúpulos. Ah ! se eles pudessem voltar enquanto estou desperto, não me faria de tão delicado !” Charles Baudelaire. Pequenos poemas em prosa , p. 61. 183 realidade transformada poeticamente na forma de imagens que se reconhecem como tais.

Isso nos mostra Baudelaire em verso e prosa, em duas composições que parecem seguir o postulado reflexivo da arte romântica da Escola de Jena, que compreendia toda autêntica obra de arte como forma crítica de si mesma que fosse capaz de engendrar, para além de si, uma continuidade desta reflexão nela iniciada a partir da qual se gerariam, em cadeia, outras obras de arte. Assim, o segundo “O convite à viagem” (poema em prosa) seria uma reflexão em obra sobre o primeiro poema (em versos) ou, dito de modo, talvez mais apropriado em termos da concepção de um poema em prosa, uma sua tradução.

Como aponta Suzanne Bernard, uma das pioneiras no estudo do poema em prosa como gênero, a expressão em prosa poética 173 tem sua origem nas versões em prosa de poemas traduzidos de outras línguas. Esta prática esteve muito em voga no decorrer de todo o século XIX, inserida nos esforços de expansão do público leitor então empreendidos, como modo de tornar obras poéticas mais acessíveis. (O próprio

Baudelaire faria uma tradução em prosa de “The Raven” – “O Corvo” – de Edgar Allan

Poe.) Estas versões não podem ainda ser consideradas poemas em prosa (expressão que lhes serviria como descrição, mas não como definição), mas na prosa poética nelas exercitada estariam os primórdios da forma que mais tarde seria de fato estruturada e definida por Baudelaire. Assim sendo, em suas origens, o poema em prosa está ligado à tradução. Conforme o gênero se desenvolve, criando uma tradição própria, esta afinidade vai-se elipsando. No caso dos dois “Convites à viagem” de Baudelaire, porém, parece

173 Diante do surgimento deste termo, convém uma observação: prosa poética e poema em prosa não são conceitos equivalentes. O primeiro designa um certo modo de escrita em prosa que faz uso de recursos tipicamente usados em poesia, dos quais o principal parece ser a expressão por imagens. A prosa poética pode se fazer presente no mais diversos textos em prosa: romances, contos, ensaios, etc. Já o nome poema em prosa , por sua vez, se refere a uma forma literária específica. Relacionando as duas expressões, poderíamos dizer que todo poema em prosa é prosa poética, mas nem toda prosa poética constitui um poema em prosa. 184 justo recordá-la. Evidentemente não se faz na passagem de um ao outro um trabalho de tradução no sentido mais estrito do termo: versão de um texto para uma língua diversa daquela em que ele é originalmente escrito. Se, no entanto, nos permitirmos lidar com um conceito mais amplo de tradução, teremos aí uma caracterização válida não só para a relação que se estabelece entre os “Convites” de Baudelaire como, ousaríamos dizer, para um trabalho que estaria na base de muitos poemas em prosa que, sem ter qualquer versão correspondente em verso, constituem virtualmente exercícios de tradução.

O poeta e teórico português Jorge de Sena assim define este trabalho:

A tradução é muito menos que um remedeio, para tornar acessível um texto a quem não domina a língua dele, que um meio efetivo de apropriação (...) De resto, a tradução é uma forma de decifração estilística; e dado que o homem não possui efetivamente aquilo que não faz (ou não refaz pela consciência crítica), ela é, também, uma forma dialéctica de consciencialização. (...) A tradução não é uma escola de imitação. Só se imita o que não se conhece por dentro. 174

Traduzir um texto – especialmente um texto literário – seria, portanto, um modo de apropriar-se dele, conhecendo-o de maneira muito mais profunda do que possibilitaria a simples leitura. Para se transpor um romance, um conto, um poema de uma língua para outra, não basta apreender superficialmente seu sentido e repeti-lo com termos mais ou menos correspondentes em outro idioma: isto é imitação; para traduzir um texto, é preciso penetrar sua estrutura, compreender não apenas o que sua forma significa, mas como – por meio de que estratégias, segundo que lógica de sentido – esta forma significa.

É preciso desmontá-la para recriá-la novamente; é preciso conhecê-la por dentro para transformá-la. Então a tradução se faz crítica, se faz reflexão: geração de uma forma que

é releitura consciente de outra.

174 Jorge de Sena. Dialécticas aplicadas da literatura , 1978, p. 272. 185

Este trabalho dialético concebido a princípio como relação que se estabelece entre textos diversos parece incorporar-se como operação intra-textual em muitos poemas em prosa, definindo mesmo a estratégia discursiva desta escritura em prosa que se apropria da poesia, ou desta escritura poética que se apropria da prosa. Para o exame desta hipótese e para a compreensão de suas implicações, a existência dos dois “O convite à viagem” de Baudelaire é providencial. Na comparação destes poemas, faz-se verificável, sem qualquer elucubração fantasiosa acerca de um original que apenas virtualmente existiria, a operação de tradução que, como vimos sugerindo, estaria na base da concepção do poema em prosa.

O tema das composições – muito caro a Baudelaire, como vimos no início deste comentário sobre sua obra – é a viagem rumo a um espaço de absoluto, de plenitude do ser – busca que adquire nestes poemas uma conotação erótica e, num segundo plano de articulação de sentido, um significado auto-reflexivo: “O convite à viagem” é convite ao amor e convite à poesia, discurso de sedução sustentado por imagens que projetam o desejo do eu-lírico pela mulher amada e o trabalho (em nada distante do erótico) do poeta com a linguagem na grande metáfora de uma viagem a um país distante, exótico e delicioso que é delas – mulher e poesia – a imagem:

Mon enfant, ma soeur, Songe à la douceur D'aller là-bas vivre ensemble ! Aimer à loisir, Aimer et mourir Au pays qui te ressemble ! (...) Tout y parlerait A l’âme en secret Sa douce langue natale. 175

175 “Minha doce irmã,/ Pensa na manhã/ Em que iremos, numa viagem,/ Amar a valer,/ Amar e morrer/ No país que é a tua imagem! (...) Tudo aí à alma/ Falaria em calma/ Seu doce idioma natal.” Charles Baudelaire. As flores do mal , 1985, pp. 234-5. 186

O ritmo, as rimas e o refrão do poema metrificado criam, em conjunto com as imagens plenas de sensorialidade que o compõem, uma atmosfera onírica e sensual que parece envolvê-lo. Sobretudo os dois versos do refrão incorporam uma espécie de tom ritualístico e potência invocatória, assemelhando-se a uma fórmula de encantamento – preservada através dos tempos, a guardar qualquer poder misterioso que seria transferido ao poema – que não apenas faria referência a um lugar ou situação, mas poderia, magicamente, conjurá-los. Ritualisticamente, os versos repetem :

Là, tout n’est qu’ordre et beauté, Luxe, calme et volupté. 176

Mais do que o sentido das palavras, sua sonoridade parece atuar aí para criar uma impressão mágica que já não se obtém por encantamento, mas por labor de linguagem: ritmo, rima, aliteração, alternância de timbres e interrupções plosivas na cadeia fônica a produzir no poema uma reverberação da experiência erótica nele idealizada.

A tradução em prosa das imagens do poema versificado implica um enfraquecimento desta ilusão sugerida, embora precariamente, pela sonoridade dos versos. Por outro lado, a extensão da prosa desdobra estas imagens que, na poesia, estavam cristalizadas em expressões mínimas, tornando-as assim, menos invocatórias, talvez, porém mais desenvolvidas. Se “O convite à viagem” em versos era capaz de produzir uma impressão – bastante sensorial, inclusive – do mundo idealizado a que o

êxtase erótico e o trabalho poético poderiam conduzir, sua versão em prosa proporciona não só um saber – mais distanciado, todavia mais amplo – sobre esta realidade imaginada, como, principalmente, uma consciência do exercício de imaginação que lhe dá forma e sentido.

176 “Lá, tudo é paz e rigor, / Luxo, beleza e langor” Charles Baudelaire. As flores do mal , 1985, pp. 234-5. (Tradução de Ivan Junqueira) 187

Trabalho de tradução, o poema em prosa se apropria da versão em versos que o precede, fazendo-se, assim, um novo “O convite à viagem”, mas sendo também seu comentário, sua crítica, uma reflexão sobre seu sentido, como é, mais ou menos explicitamente, queremos crer, todo poema em prosa. Sua escritura não apenas cria – ou recria – imagens poéticas: penetra-as e pensa-as. Se as decompõe, não o faz para anulá- las ou para desmenti-las, mas porque as quer conhecer por dentro, descobrir sua matéria, acompanhar – passo a passo – seu trabalho de busca muitas vezes fracassada mas sempre novamente empreendida.

Assim, se os versos do primeiro “O convite à viagem” projetam uma partida, a prosa pensa o desejo que a impulsiona: “Tu connais cette maladie fiévreuse qui s’empare de nous dans les froides misères, cette nostalgie du pays qu’on ignore, cette angoisse de la curiosité ?”; e pondera a possibilidade real de alcançar este espaço imaginado que se reconhece imagem: “Vivrons-nous jamais, passerons-nous jamais dans ce tableau qu’a peint mon esprit, ce tableau qui te ressemble?”. Sobretudo, porém, a prosa desmistifica o desejo. O país utópico que sua linguagem postula é paraíso dessacralizado, que se descobre nos braços da amada e nas imagens da poesia: sabedoria daquele que se desvia da transcendência para buscar por outros meios uma plenitude possível, e disso se gaba, irônico, sobre os místicos sempre à caça do inalcançável:

Qu’ils cherchent, qu’ils cherchent encore, qu’ils reculent sans cesse les limites de leur bonheur, ces alchimistes de l’horticulture ! Qu’ils proposent des prix des soixante et de cent mille florins pour qui résoudra leurs ambitieux problèmes! Moi, j’ai trouvé ma tulipe noire et mon dalia bleu .177

177 “Procurem, tornem a procurar, dilatem continuamente os limites de sua felicidade, esses alquimistas da horticultura ! Ofereçam prêmios de sessenta e cem mil florins a quem lhes resolver os ambiciosos problemas! Por mim, encontrei a minha tulipa negra e a minha dália azul !” Charles Baudelaire. Pequenos poemas em prosa , p. 52. 188

Esta descoberta não se refere a uma iluminação transcendental e não é resultado de uma busca espiritual. É matéria e exercício de uma poesia – a amada do poeta – que desordena o mundo, toma seus fragmentos e o recria em imagem; postula o absoluto, mas retorna sempre ao seu ponto de partida. Movimento reflexivo cuja descrição encerra o poema em prosa de Baudelaire, forma dialética que aponta além e se verte sobre si mesma; expressão de uma poesia que remete o pensamento a um infinito por ela própria instaurado e de sua própria matéria feito – uma utopia de linguagem – para então trazê-lo de volta, enriquecido:

Ces trésors, ces meubles, ce luxe, cet ordre, ces parfums, ces fleurs miraculeuses, c’est toi. C’est encore toi, ces grands fleuves et ces canaux tranquilles. Ces énormes navires qu’ils charrient, tout chargés de richesses, et d’où montent les chants monotones de la manoeuvre, ces sont mes pensés qui dorment ou qui roulent dans ton sein. Tu les conduit doucement vers la mer qui est l’infini, tout en réfléchissant les profondeurs du ciel dans la limpidité de ta belle âme; – et quand, fatigués par la houle et gorgés des produits de l’Orient, ils rentrent au port natal, ce sont encore mes pensées enrichies qui revienne de l’infini vers toi. 178

Se parece excessivamente longa esta digressão pela poética do poema em prosa baudelairiano, ela se justifica aos nossos olhos como fundamento necessário para se compreender, em toda a sua dimensão ética e estética, a opção formal da Prosa del observatorio . Já de antemão, podemos apontar a maleabilidade do poema em prosa, sua capacidade de acomodar uma amplitude significativa de temas, uma multiplicidade de ritmos e discursos diversos (esta adaptabilidade que faz dele, segundo Baudelaire, a forma ideal para registrar a experiência moderna) como um critério importante para sua

178 “Esses tesouros, esses móveis, esse luxo, essa ordem, esses perfumes, essas flores miraculosas, tudo isso és tu. És tu, ainda, aqueles grandes rios e aqueles canais sossegados. Os enormes navios que eles carregam, atestados de riquezas, e donde sobem os monótonos cantos da manobra, são os meus pensamentos que dormem ou que rolam sobre o teu seio. Docemente os conduzes para o mar que é o Infinito, a refletir as profundezas do céu na limpidez de tua bela alma ; e quando, fatigados do marulhar das ondas e repletos dos produtos do Oriente, eles reentram no porto natal, são ainda os meus pensamentos enriquecidos que do infinito volvem para ti.” Idem, p. 52-3. 189 eleição para um texto caleidoscópico que reúne, como já sabemos, objetos muito distintos, campos diversos do saber e do pensar, uma pluralidade de olhares e uma polifonia de discursos. A estrutura do poema em prosa parece, assim, adequada à escritura de conciliação sem anulação das diferenças proposta por Cortázar em Prosa del observatorio . Para além deste aspecto, sobressai ainda este último aspecto do poema em prosa que discutíamos com relação a Baudelaire: a propriedade auto-reflexiva que se inscreve mesmo em sua forma, na cadeia de pensamento que inscreve as imagens de que se compõe – desenvolvidas, ponderadas, refletidas mesmo num trabalho poético auto- crítico como o que examinamos em “O convite à viagem”. Acima de tudo o mais, porém, o poema em prosa apresenta-se em suas origens baudelairianas como um lugar privilegiado de expressão da dessacralização, da queda da aura, do exercício de uma imaginação crítica que dá forma a “imagens dialéticas”, 179 virtualidades de que se investe o próprio mito desastrasdo e desejante da maquinaria representada (usamos o termo confiando em seu dinamismo dramático) em Prosa del observatorio .

Caberá ainda, porém, antes de entrar numa análise per se do texto cortazariano, conhecer outras potencialidades desta forma que lhe foram sendo agregadas ao longo de seu desenvolvimento. Passemos, então, a alguns comentários sobre Rimbaud e Mallarmé, que como Baudelaire, contribuiram para o estabelecimento do poema em prosa como gênero e elegeram a “imagem crítica” como instrumento fundamental para o pensamento poético utópico que era proposta maior de suas obras.

179 Não queremos sugerir com isso que apenas no poema em prosa possam se encontrar imagens dialéticas. Elas se encontram igualmente na poesia versificada, no drama, na prosa ensaística ou ficcional, como já temos visto e ainda veremos no decorrer deste trabalho. Achamos interessante ressaltar, porém, que o poema em prosa tem com esta forma de imagem uma série de potencialidades afins (a abertura, o impulso auto-reflexivo, a virtude crítica, a vontade dessacralizadora), acentuadas no seu encontro, como observaremos mais detidamente na análise da Prosa del observatorio em si. 190

Rimbaud

A poesia de Rimbaud leva ainda mais longe do que a de Baudelaire a busca de uma realidade alternativa que se realiza a partir de uma decomposição e de uma reordenação daquela conhecida. A operação resultará, uma vez mais, na descoberta de uma “idealidade vazia” e num movimento reflexivo de retorno desiludido e consciente ao mundo presente e próximo – movimento essencial da imaginação crítica assinalada pela aura poética moderna. O percurso poético de Rimbaud torna bastante claro este roteiro, que será conscientemente seguido por toda a poesia moderna, definida mesmo, segundo

Cortázar, pela consciência dilacerada desta sua busca fracassada e utópica, mágica e corrosiva.

Poder-se-á dizer que a poesia é uma aventura em direção ao infinito; mas ela parte do homem e a este deve voltar. Ela lhe é conferida como graça que permite franquear as dimensões; mas o triunfo não consiste em ‘rondar as coisas do outro lado’, como disse Frederico [García Lorca], mas em ser a pessoa que as ronda. A aventura de Rimbaud é um ponto de partida para a dilacerada poesia do nosso tempo, que supera em consciência de si mesma qualquer outro momento da história espiritual; agora, sendo mais modestos, somos ao mesmo tempo mais ambiciosos; agora conhecemos a grandeza e a miséria dessa Poesia. 180

Hugo Friedrich sumariza em três atos esta obra fundadora de Rimbaud, analisando desta maneira o que denomina a “tríplice tessitura da ação” do poeta: “deformação da realidade, ímpeto à amplidão, final na ruína pois a realidade é restrita demais, a transcendência, vazia demais”. 181 Trata-se de um drama trágico: destrói-se a realidade conhecida em busca do desconhecido; esta busca fracassa, porém, revelando apenas uma

“idealidade vazia”; resta, então, apenas voltar àquela primeira realidade que já se encontra, no entanto, irreversivelmente fragmentada, deturpada, incompreensível. Este o

180 Julio Cortázar. Opus cit, 1999, p. 20. 181 Hugo Friedrich, Opus cit, p. 75. 191 mundo que Rimbaud põe em cena, criando algo que ainda Hugo Friedrich chamou uma

“irrealidade sensível”, composta por estilhaços da realidade previamente ordenada que se reúnem de modo anormal, absurdo, inconcebível: impossível senão como imagem poética 182 , e imagem que tem de se reconhecer apenas isso: artifício de linguagem incapaz de sugerir uma realidade de fato.

“Imagem crítica”, portanto, consciente de sua natureza de encenação e jogo, que

Rimbaud confessa em diversas passagens dos poemas em prosa que compõem Une saison en enfer ( Uma temporada no inferno ) e Illuminations ( Iluminações ). Nestes livros e na famosa “Lettre du Voyant” (“Carta do Vidente”), teoria informal formulada pelo poeta acerca de seu próprio fazer, podemos ler uma espécie de roteiro, embora fragmentado e nada linear, é certo, do percurso poético rimbaudiano, de sua recusa da realidade que o cerca à sua empresa de libertação dela, cumprida afinal não como transcendência, mas como transfiguração poética.

Farto de um mundo que se queria – segundo os princípios deterministas do

Positivismo e do cientificismo dominantes no final do século XIX – absolutamente explicável e explicado, previsível e pré-formatado – “Assez vu. (...) Assez eu. (...) Assez connu” 183 , como se enuncia em “Départ” (“Partida”) –, Rimbaud determina que o poeta se faça “voleur de feu” 184 : novo Prometeu, novo herói fundador – ainda trágico – de uma nova civilização. Esta outra realidade a se criar na sua poesia não deve surgir, porém, como espaço distante, metafísico, fora do mundo. Não cumpre escapar dele, mas

182 Idem, p. 80. 183 “Suficientemente visto. (...) Suficientemente tido. (...) Suficientemente conhecido. (...)”, numa precária tradução ao pé-da-letra. Ivo Barroso optou por “Farto de ver. (...) Farto de ter. (...) Farto de saber. (...)”. Arthur Rimbaud. 1998) p. 224-5. 184 “ladrão de fogo” Arthur Rimbaud. Uma estadia no inferno, poemas escolhidos, A Carta do Vidente , 2005, p. 82. 192 reformá-lo. A partida anunciada pelo poeta não se realiza propriamente como afastamento da realidade conhecida; propõe, sim, sua transformação a partir de seu interior mesmo: “On ne part pas – Reprenons les chemins d’ici”, 185 diz ele em “Mauvais sang” (“Sangue maldito”). No espaço da poesia, este novo mundo começa a se forjar, por meio de uma operação que sobre as coisas mesmas se cumpre, operação de visão e de escrita, de criação e transformação, operação de imaginação, de jogo. Proposta que, já o sabemos, está também no cerne do projeto poético de Cortázar, no ideal de um “otro modo de mirar”, a concretizar-se em um livro que crie uma imagem do mundo como mosaico de caleidoscópio: jogo de imaginação com as formas do real.

Prática subversiva, por inútil e desinteressada, o jogo instaura no mundo da razão e do trabalho um intervalo, tanto de tempo como de espaço, em que vigoram outras regras, em que os corpos já não servem senão a si mesmos, em que o mundo perde sua séria rigidez e se torna maleável, como no faz-de-conta das crianças, no qual a imaginação produz a realidade. Como nos poemas em prosa de Rimbaud: “Je me crois en enfer, donc j’y suis.” 186 , anuncia o poeta em “Nuit de l’enfer” (“Noite infernal”). Em

“Royauté”(“Realeza”), descreve mesmo a brincadeira:

Un beau matin, chez un peuple fort doux, un homme et une femme superbes criaient sur la place publique. “Mes amis, je veux qu’elle soit reine !” “Je veux être reine!” Elle riait et tremblait. Il parlait aux amis de révélation, d’épreuve terminée. Ils se pâmaient l’un contre l’autre. En effet ils furent rois toute une matinée où les tentures carminées se relevèrent sur les maisons, et toute l’après-midi, où ils s’avancèrent du côté des jardins de palmes. 187

185 “Mas não se parte – Retomemos os caminhos do aqui.” Arthur Rimbaud. Prosa poética , 2005, p. 82. (Tradução de Ivan Junqueira) 186 “Eu me creio no inferno, logo estou nele.” Idem, p. 146-7. (Tradução de Ivo Barroso) 187 “Numa bela manhã, num país de gente muito amável, um homem e uma mulher magníficos gritavam na praça pública. “Meus amigos, quero que ela seja rainha!” “Quero ser rainha!” Ela ria e tremia. Ele falava aos amigos sobre revelação, uma prova concluída. Desfaleciam agarrados um ao outro. De fato, foram reis durante toda a manhã, quando as tapeçarias carmesins voltaram a recobrir as casas, e toda a tarde, quando se encaminharam para os jardins plantados de palmeiras.” Idem, p. 226-7. (Tradução de Ivo Barroso) 193

No espaço demarcado do poema, eles brincam: querem ser reis e o são. No faz-de-conta, o mundo se abre em possibilidades, e qualquer um pode ser rei, mendigo, poderoso demiurgo... Ação de deslocamento que está mesmo na essência do jogo. Espécie de magia profanada em que o sagrado cede lugar ao lúdico, ele se baseia, segundo Johan

Huizinga, “na manipulação de certas imagens, numa certa ‘imaginação’ da realidade (ou seja, a transformação desta em imagens)” 188 , trabalho em tudo semelhante ao da própria linguagem poética.

Feitas imagens, as coisas se tornam mais do que elas mesmas; desafiam todo determinismo de forma, uso, sentido; revelam em si o outro, não como superação transcendente, mas como reflexividade auto-irônica. Exercício magnífico de liberdade, mas também trágico dilaceramento que Rimbaud encena em si mesmo com seu impactante “Je est un autre.” 189 da “Carta do Vidente”. Apenas ponto de partida, em obediência à regra enunciada na mesma carta, segundo a qual “la première étude de l'homme qui veut être poète est sa propre connaissance, entière”190 . Rimbaud começa, assim, por si mesmo, descobrindo no cerne de sua identidade a alteridade, num processo de desintegração e descentramento do sujeito que mais tarde se estenderá ao mundo como um todo.

Provação, exercício de limites em que também os personagens de Cortázar se arriscam, como vimos em contos como “Lejana”, “Axolotl”, “No se culpe a nadie”,

“Anillo de Moebius”: histórias de personagens que se descobriram cindidas, que se depararam com seus duplos, que tiveram de buscar no outro algo que os desafiaria e os

188 Johan Huizinga. Homo ludens , 2000, p. 7. 189 “Eu é um outro.” Arthur Rimbaud. Uma estadia no inferno, poemas escolhidos, A Carta do Vidente , 2005, p. 79. 190 “o primeiro estudo do homem que quer ser poeta é o seu próprio conhecimento, inteiro” Idem, p. 79. 194 completaria, ou que sentiram a alteridade emergir em seus próprios corpos, num “Eu é um outro” corpóreo, visceral. Salto à alteridade de que o próprio Cortázar, como criador de imagens, dá testemunho, ao afirmar que “o que o poeta consegue expressar com as imagens é transposição poética de sua angústia pessoal de alienação ”191 , desejo de ser mais do que apenas si próprio, de agregar à sua outras essências, de ir ao outro para voltar a si enriquecido, numa expressão semelhante à do “Convite à viagem de Baudelaire”: “ce sont encore mes pensées enrichies qui reviennent de l’infini vers toi”.

Esta empresa é dirigida na poética de Rimbaud por aquela que parece ser a principal regra contida na “Carta do Vidente”: “le poète se fait voyant par un long, immense et raisonné dérèglement de tous les sens” 192 . Emblemática da perversão dessa poética em que o desregramento se faz regra, a recomendação de Rimbaud aponta para uma necessária transformação do modo de apreensão do mundo a partir de uma transformação dos instrumentos – os sentidos – que facultam essa apreensão. Alteração indispensável para que o poeta se torne voyant – vidente, termo relacionado à magia que

Rimbaud utiliza para marcar um contraste, para definir um modo de ver alternativo

àquele que caracteriza uma concepção racional do mundo, que tudo converte em conceitos. O vidente exercita um outro modo de olhar, que sonda o invisível no visível, o desconhecido no conhecido: percepção que o conceito elude mas a imagem revela. E que constitui a essência de um regime de visão – de vidência – para o qual o ato de ver não se limita à operação física e passiva de sensibilização da retina pela luz e decodificação cerebral do dado sensorial, mas se faz ação criadora de imagens, capaz de conceder a cada coisa sua alteridade potencial, de reconhecer em toda forma aparentemente dada

191 Julio Cortázar. Opus cit, p. 263. 192 “O poeta se faz vidente por meio de um longo, imenso e refletido desregramento de todos os sentidos.” Arthur Rimbaud. Uma estadia no inferno, poemas escolhidos, A Carta do Vidente , 2005, p. 82. 195 uma capacidade de estar sempre a transformar-se em outras. De fato, trabalho de vidência – Rimbaud escreve “je travaille à me rendre voyant” 193 – que, produzindo imagens, cria novas formas e novas relações entre formas. Trabalho caleidoscópico.

Mas não se encerra aí a empreitada: transformada a apreensão do real, faz-se necessária uma nova maneira de dizê-lo, e o poeta, já feito vidente, deve agora descobrir uma língua capaz de traduzir suas visões e uma forma capaz de comportá-las. Visões que melhor seria chamar vislumbres, sempre a sugerir o provisório, o acidental, o fugaz; imagens a que não se dá completude, de que se mostra o processo, o trabalho dinâmico de uma formação que jamais chega ao fim, que jamais se fecha numa estrutura definida, reconhecível, conceituável. Fragmentos incompletos e instáveis; imagens enigmáticas, inominadas, indomesticáveis, em vertigem, que só mantendo essa virtuosidade podem ser traduzidas para a linguagem das palavras. Expressas aí em jogos dissonantes de sinestesia, de paradoxo, em fórmulas que sugerem sem dizer, em nomes que, longe de fixar, deixam circular os sentidos: o desregramento feito verbo.

O poema tradicional, em sua forma clássica, não o tolera. “Les inventions d'inconnu réclament des formes nouvelles.” 194 , proclama Rimbaud. Este desconhecido que o vidente descobre no conhecido, subvertendo-o, desafiando-o, não pode ser enunciado pelas plácidas formas da convenção. A uma subversão corresponde a outra: atitude nova diante do mundo, nova percepção do real, nova linguagem que a traduza, nova forma que a ordene. A rebeldia não é gratuita. As formas fixas da poesia, os versos metrificados, as estruturas pré-determinadas e regulares de fato não parecem aptas a comportar imagens que estão constantemente a desafiar a si mesmas, forjando-se na

193 “Eu trabalho a me tornar vidente.” Idem, p. 82. 194 “As invenções do desconhecido reclamam formas novas” Idem, p. 84. 196 tensão entre a forma e sua dissolução, o sentido e o absurdo, o conhecido e o desconhecido, numa experiência crucial em que o limite entre a criação e o extermínio se atenua a ponto de, muitas vezes, se anular. Imagens em que se cumprem virtualmente ritos sacrificiais e eróticos.

Mais do que o verso livre, que Rimbaud usa em alguns poemas, como “Partida”,

“Marine” (“Marina”) e “Mouvement” (“Movimento”), os três de Illuminations , é o poema em prosa que parece mais propicio à expressão do poeta vidente. Já de início porque a ética mesma de sua forma compartilha com as imagens de Rimbaud a condição indecidível. Como definir esta forma limítrofe, em constante tensão, erguida na estreita passagem de um combate? Entre a prosa e a poesia, não sendo nem uma nem a outra, sendo as duas, o poema em prosa, ao menos como praticado por Rimbaud, parece ser, como as imagens da sua poesia, uma forma descentrada, a pôr em jogo e em risco os seus limites oblíquos de forma e informe. Tensão que Suzanne Bernard capta e assim enuncia:

O poema em prosa quer ir além da linguagem, e se serve da linguagem; quer romper a forma, e cria formas; quer escapar à literatura, e eis que se torna um gênero literário catalogado. É esta contradição interna, esta antinomia essencial que confere a ele o caráter de uma arte icárica, que tende a uma impossível superação de si mesma, por meio de uma negação de suas próprias condições. 195

Seja por essa dinâmica de permanente tensão interna, seja pelo ritmo mais fluido próprio da prosa, o poema em prosa parece acolher, melhor do que os versos (mesmo os livres), as imagens de Rimbaud, em constante formação e transformação, nunca prontas, nunca estáveis numa estrutura definida e fechada, sempre improvisos a se ensaiar, a se pôr à prova. Segundo Clive Scott, “uma das qualidades fundamentais do poema em prosa

195 Suzanne Bernard. Le poème en prose de Baudelaire jusqu’à nos jours , 1994, p. 13. (tradução nossa) É interessante notar que o mito de Ícaro, este mito que nos fala da ousadia e da tragédia daqueles que ousam desafiar os seus limites, e que Suzanne Bernard associa aqui ao poema em prosa, é constantemente associada à figura de Rimbaud. 197

é sua capacidade de preservar sua natureza acidental, sua novidade incontrolável ”196 . Se tal atributo lhe é conferido pelas imagens que o constituem ou se é ele que a elas transmite tal propriedade é discussão que só nos poderá fazer resvalar na tautologia: a questão é que o poema em prosa rimbaudiano parece celebrar o perfeito encontro de um discurso e uma forma, reforçando uma idéia que já trazíamos de Baudelaire e que em

Prosa del observatorio poderá confirmar-se.

Essa afinidade se verifica também num outro sentido, ainda concernente à natureza das imagens de Rimbaud. Fragmentárias, incompletas, elas não cabem no verso, que as falseia e ameniza, atribuindo-lhes, pelo ritmo, pela quebra, uma unidade que em tudo contradiz seu ideal de forma aberta, de forma que comporta o informe. Em termos estruturais porque, postas em verso, por mais que seu sentido escape, por mais herméticas que se possam mostrar, as imagens se insinuam completas, como se se bastassem em si mesmas, independentes. Já encadeadas num poema em prosa, estrutura cujo senso de unidade não mais está em cada verso, mas no seu conjunto, definido este por uma cadência que não é pré-determinada ao poema como nas formas clássicas da poesia, mas reconhecido apenas no momento mesmo de sua leitura, as imagens não mais constituem um todo em si mesmas, revelando-se partes interdependentes entre si e cujo sentido depende do todo do poema, só nele podendo completar-se. Desfecho harmônico que

Rimbaud o mais das vezes frustra, fazendo suas imagens passarem de partes de um todo reconhecível a fragmentos de um conjunto que se revela impossível, abrindo-se para o vazio, aniquilado como em “Les ponts” (“As pontes”):

Des ciels gris de cristal. Un bizarre dessin de ponts, ceux-ci droits, ceux-là bombés, d’autres descendant ou obliquant en angles sur les premiers, et ces figures se renouvelant dans les autres circuits éclairés

196 Clive Scott. Opus cit, p. 286. 198

du canal, mais tous tellement longs et légers que les rives, chargées de dômes s’abaissent et s’amoindrissent. Quelques-uns de ces ponts sont encore chargés de masures. D’autres soutiennent des mâts, des signaux, des frêles parapets. Des accords mineurs se croisent, et filent, des cordes montent des berges. On distigue une veste rouge, peut-être d’autres costumes et des instruments de musique. Sont-ce des airs populaires, des bouts des concerts seigneuriaux, des restants d’hymnes publics? L’eau est grise et bleue, large comme un bras de mer. – Un rayon blanc, tombant du haut de ciel, anéantit cette comédie. 197

A súbita conclusão do poema, raio que irrompe do céu interrompendo a visão e instaurando o silêncio, nega a esperança final de revelação de suas imagens, partes imprecisas, dúbias, incertas, constituintes de um cenário que poderia conferir-lhes sentido, mas que, implodido, condena-as ao estatuto de fragmentos cujo significado é uma lacuna, uma ausência.

Esta ausência, porém, não se faz sentir apenas por “fechos” como o de “As pontes”, que recusa a explicação da cena que o poema sugere e a desmascara como isso mesmo: cena, comédia. A desconstrução da ilusão com uma conseqüente abertura para o vazio se faz presente em muitas imagens dos poemas em prosa de Rimbaud, motivada pelo desafio à unidade que sua forma proclama. Para compreender este processo, convém retomarmos a comparação com a poesia metrificada, agora em termos de sentido e referencialidade. Conforme observamos ao tratar de “O convite à viagem”, de Baudelaire, o verso dispõe de recursos, sobretudo de musicalidade, que se fazem menos presentes na prosa – mesmo na prosa poética –, para produzir a ilusão de uma união entre palavra e coisa, expressão poética e referente real, conseguindo, assim, com maior sucesso, criar

197 “Céus cinzentos de cristal. Um estranho desenho de pontes, aqui retas, ali arqueadas, além descendo ou obliquando em ângulos sobre as primeiras, e essas imagens se renovando nos outros circuitos iluminados do canal, mas todas tão compridas e leves que as margens, acumuladas de cúpolas, se abaixam e se amesquinham. Algumas dessas pontes ainda estão carregadas de casebres. Outras sustêm mastros, sinais, frágeis parapeitos. Acordes menores se cruzam e fogem, das margens sobem cordoalhas. Distingue-se uma roupa vermelha, talvez outras vestes e instrumentos de música. São árias populares, trechos de concertos senhoriais, restos de hinos públicos? A água é cinza e azul, larga como um braço de mar. – Um raio branco, caindo do alto do céu, aniquila esta comédia.” Arthur Rimbaud. Prosa poética , 1998, p. 238-9. 199 uma impressão de completude da imagem, que parece preencher-se da coisa mesma que representa. Não é esta a operação das imagens rimbaudianas, que jamais buscam a ilusão da unidade, de uma plenitude que as castraria, que as fixaria como unívocas, que as despojaria de sua potência de alteridade. Elas não querem parecer mais do que imagens, não querem se colar a coisa alguma, não se querem definir. São “imagens dialéticas”, autênticas, no sentido que Benjamin conferia à expressão. Conscientes de si mesmas, autocríticas, revelam o trabalho de perda que implica sua própria formação, reconhecem o vazio que as constitui, ostentam sua falta, sua lacuna, a incompletude que lhes garante a liberdade de multiplicar-se em sentidos sem jamais fixar-se em algum, permanecendo em suspenso, à deriva, em jogo.

Jogo autêntico que, nos diz Johan Huizinga, “possui, além de suas características formais e de seu ambiente de alegria, um outro traço dos mais fundamentais, a saber, a consciência, mesmo que seja latente, de estar ‘apenas fazendo de conta’.” 198 . Elemento essencial ao ludismo de Rimbaud, esse saber irônico e dilacerador se manifesta mais explicitamente do que em qualquer outro poema em “La Vierge Folle” (“A virgem louca”), o primeiro dos delírios de Une saison en enfer . O que Rimbaud parece pôr aí em jogo é sua própria biografia, feita em fragmentos, deslocada, transfigurada em imagens.

Em sua viagem ao inferno, o poeta, à moda de Dante, encontra um companheiro e ouve seu testemunho. Sua história, porém, parece fazer referência a acontecimentos da vida de

Rimbaud e Verlaine, de tal modo que o leitor é conduzido a associar Verlaine à figura da virgem louca e Rimbaud à de seu “esposo infernal”. O poema faz-se, assim, palco de encenação para a fórmula do “Je est un autre”, exercício do poeta vidente que, num

“desregramento de todos os sentidos”, se desdobra em outros e desloca seu olhar para se

198 Johan Huizinga. Opus cit, p. 26. 200 ver como outro, se ver sendo visto, ver o outro – ele mesmo – como este o vê.

Estranhando-se, revelando-se como enigma – “j’étais sûre de ne jamais entrer dans son monde” 199 , recorda a virgem louca – mas, sobretudo desmascarando-se como quem joga, numa estratégia duplamente perversa, já que a quebra da ilusão se faz por meio do elemento mesmo que poderia servir pra reforçá-la. A personagem do companheiro de inferno que, a princípio, poder-se-ia pensar, atuaria como recurso de verossimilhança, de confirmação de que a estadia no inferno fora mais do que um puro delírio do eu, de fato incursão no metafísico, é justamente o instrumento por meio do qual se vai tornar explícita, consciente, a natureza ilusória desta experiência, tornando-a de fato jogo. Como outro falando de si mesmo, mas um si mesmo que já é apenas máscara nesse jogo de representações em que o eu se dilacera e para sempre se perde, Rimbaud desvela o mecanismo de seu faz-de-conta poético: “Je voyais tout le décor dont, en esprit, il s’entourait; vêtements, draps, meubles: je lui prêtais des armes, une autre figure. Je voyais tout ce qui le touchait, comme il aurait voulu créer pour lui.” 200 . A consciência da ilusão não significa, porém, sua destruição e o fim do jogo; ao contrário, gera uma tensão que o constitui enquanto tal.

Tensão lúdica entre a imagem e a realidade, a ilusão e sua quebra, a forma e o informe, o preenchimento e o vazio, a unidade e a fragmentação, o poema e o silêncio que se encena na estrutura mesma do poema em prosa, cara a Rimbaud, que soube tão bem promover uma abertura do verso para promover uma abertura do mundo e brincar com as formas, as imagens, os sentidos de um e outro.

199 “tinha certeza de jamais penetrar o seu mundo” Arthur Rimbaud, Prosa poética , 1998, pp. 154-5. (Tradução de Ivo Barroso) 200 “Eu via toda a encenação de que ele, mentalmente, se cercava : vestes, roupagens, móveis; eu lhe atribuía armas, uma nova imagem. Eu via tudo o que lhe respeitava, da maneira como ele o teria querido criar para si.” Idem, p. 154. (Tradução de Ivo Barroso) 201

Seus jogos de encenação e enigma, rimbaudiana imaginação da realidade, parecem encontrar seu espaço ideal na forma tensa, porém flexível, do poema em prosa, que em Rimbaud se aproxima, muitas vezes, do modelo da adivinha, sobretudo em “H”, poema em que se vão encadeando pistas para se propor, ao fim, o desafio à solução do enigma:

Toutes les monstruosités violent les gestes atroces d’Hortense. Sa solitude est la mécanique érotique, sa lassitude, la dynamique amoureuse. Sous la surveillance d’une enfance elle a été, à des époques nombreuses, l’ardente hygiène des races. Sa porte est ouverte à la misère. Là, la moralité des êtres actuels se décorpore en sa passion ou en son action – ô terrible frisson des amours novices sur le sol sanglant et par l’hydrogène clarteux ! trouvez Hortense. 201

Fórmula desafiadora que já recebeu variadas respostas, nenhuma seguramente comprovada, nenhuma absolutamente refutada, permanecendo todas no suspense em que as mantêm as imagens abertas de Rimbaud. Imagens que, neste poema, insinuam a existência dessa misteriosa Hortência, mas que só como ausência a retêm e podem revelá- la, de modo que o desafio final do poema poderia a elas mesmas se dirigir, criando-se assim na composição aquela tensão tão própria da poesia de Rimbaud e do poema em prosa como forma.

Também a adivinha é estrutura em tensão. Afirmação não assertiva, ela diz sem dizer, constrói-se como discurso em torno do silêncio, congrega imagens para dar forma ao vazio, define sentidos cuja consumação não conhece senão como falta, desejo de preenchimento que em si retém apenas como perda, expressa num simples “o que é, o que é?” a que só a solução do enigma poderá, talvez, satisfazer. E, mesmo assim, satisfazer ao reconvocar a pergunta, transposta na explicação que acompanha, o mais das

201 “Todas as monstruosidades violam os gestos atrozes de Hortência. Sua solidão é a mecânica erótica, sua lassidão, a dinâmica amorosa. Sob a vigilância da infância tem sido, em numerosas épocas, a ardente higiene das raças. Sua porta está aberta à miséria. Ali, a moralidade dos seres atuais se descorpora em sua paixão ou em sua ação – Ó frêmito terrível dos amores noviços no solo sangrento e à luz do hidrogênio! encontrai Hortência!” Idem, p. 292-3. 202 vezes, a sua resposta, que, em si mesma, parece não se bastar. A adivinha configura-se, assim, como forma à deriva, cujo eixo de sentido está constantemente deslocado: na resposta ao se propor a pergunta, na pergunta ao se proclamar a resposta.

Círculo vicioso criado por um jogo de aparecimento e desaparecimento, mostrar e esconder, que se encena não apenas na estrutura da charada, mas também em cada imagem – “crítica” – que constitui o seu discurso, seja esta charada o desafio crucial que a Esfinge propõe a Édipo: “O que é que pela manhã caminha sobre quatro patas, ao meio- dia sobre duas e à tarde sobre três?”, seja o aparentemente ingênuo enigma contido no folclórico “O que é, o que é? Tem escama mas não é peixe, tem coroa mas não é rei.”.

Estas imagens, embora infinitamente menos sofisticadas do que aquelas dos poemas em prosa de Rimbaud, são, como elas, incompletas, resistentes a todo esforço de unidade, seja nos moldes da referencialidade, em que a imagem se colaria à coisa mesma que representa, seja em relação às outras imagens com as quais ela tenderia a formar um conjunto harmônico.

Construídas como cifras a partir de uma fragmentação de seu referente real e de sua subseqüente transposição para uma estrutura verbal ambígua, numa operação em que se sucedem, portanto, uma divisão e uma multiplicação rumo a uma pluralidade potencializada, estas imagens são, ao mesmo tempo, menos e mais do que dizem, mas jamais a coisa mesma. O homem não é, de fato, definido em sua plenitude pelo discurso da esfinge, assim como o abacaxi não o é pelo da adivinha popular: há ali apenas fragmentos de tais elementos reais; fragmentos que a fórmula enigmática tende a esparzir ainda mais por meio de uma ampliação figurativa de sentido das palavras que os representam. Jogo que só pode funcionar – ou seja, tornar-se passível de decifração – se o 203 jogador intuir este mecanismo de fragmento e ambigüidade que o constitui. Conseguirá chegar, então, a uma unidade, a da resposta, que supostamente sintetiza a pluralidade imagética da pergunta. Esta resposta, porém, é freqüentemente percebida – mesmo por aquele que a adivinha – como um logro, exercício de um truque necessário para concluir um jogo que, na verdade, como já vimos, não se fecha, sobretudo porque toda resposta de uma adivinha – operação de imagem – permanece ainda imagem; e só enquanto imagem não convertida em conceito é aceitável como resposta.

Também Prosa del observatorio propõe perguntas que não se querem respondidas: que se querem exercício de pensamento constante, que não busca definições, conclusões, provas de um certo perfeito entendimento das coisas que acabam por fechá-las ao olhar, quando, muito pelo contrário, o que se quer é abri-las ao convívio, a um conhecimento por empatia, por identificação, como aquele saber romântico e participativo de Jai Singh – “maldito si le importa la respuesta, Jai Singh quiere ser eso que pregunta, Jai Singh sabe que la sed que se sacía con el agua volverá a atormentarlo,

Jai Singh sabe que solamente siendo el agua dejará de tener sed” ( PO , p.53). A resposta se faz, assim, imagem, como nas adivinhas de Rimbaud, expressão de um outro entendimento das coisas, de um outro modo de relação com as coisas que se deve buscar, escapando ao domínio científico que tudo quer saber, enquadrando os seres em classes rígidas, definitivas, separadas, como se um conhecimento objetivo do mundo pudesse nos dar a chave do seu concerto. O absurdo desse pensamento instrumental o aponta

Cortázar, retomando os dilemas da ictiologia que não consegue explicar o que quase parece um “erro” das enguias:

¿Por qué, se pregunta la señorita Callamand, un retorno que condenará a las larvas a reiniciar el interminable remonte hacia los ríos europeos? ¿Pero qué sentido puede tener ese por qué cuando lo que se busca en la 204

respuesta no es más que cegar un agujero, poner la tapa a una olla escandalosa que hierve y hierve para nadie? Anguilas, sultán, estrellas, profesor de la Academia de Ciencias: de otra manera, desde otro punto de partida, hacia otra cosa hay que emplumar y lanzar la flecha de la pregunta. ( PO , pp.41-3)

Rimbaud o sabe, como demosntram suas adivinhas sem solução, respondidas por imagens que preservam uma abertura de forma e de sentido que em algumas delas se faz ainda mais explícita e subversiva, porque expressa como uma espécie de provocação. Em composições como “Les ponts”, “Fleurs” e “Parade”, o poeta feito interrogador parece depositar tal confiança na indecidibilidade de suas imagens, em sua invulnerabilidade a definições redutoras e conclusivas, que anuncia, no título mesmo dos poemas-adivinha, sua solução. Os poemas-enigma de Rimbaud passam a encenar, assim, entre seu corpo e seu título, o círculo vicioso que caracteriza o discurso da adivinha – e da “imagem dialética” – em seu inerente descentramento. E, de fato, a inversão da ordem de pergunta e resposta não parece enfraquecer minimamente a potencialidade de diferença das imagens que compõem os poemas: pelo contrário, testa-a e comprova-a, numa experiência que faz reconhecer como imagens também autênticas, também abertas, os próprios títulos a princípio referenciais destes poemas, que, deslocados, ao invés de solucionarem seu enigma, acabam de cifrá-lo.

É o que ocorre em “Fleurs” (“Flores”), poema cujo sentido parece trabalhado justamente pela tensão criada entre seu corpo e seu título, calcada no eixo que liga, na estrutura da adivinha, pergunta e resposta. E se repete, embora com um mecanismo diverso, em “Parade” (“Parada”), poema cujas imagens poderiam parecer mais referenciais e, portanto, determináveis, induzindo leitores a pensar que seria possível identificar a tal parada para a qual o título aponta. Ilusão, porém, que o poeta logo dissipa, frustrando os possíveis méritos de adivinho de seus leitores, sem dar-lhes a 205 chance de pô-los à prova, anunciando no fecho do poema: “J’ai seul la clef de cette parade sauvage.” 202 . O sentido se conserva, assim, como enigma, o que parece ser mesmo a vontade de Rimbaud, inventor de imagens que se revelam autenticamente livres, repositórios seguros do desconhecido no conhecido, do invisível no visível, da utopia do poeta vidente cifrada em seus poemas em prosa.

Cortázar também revela um gosto em preservar os enigmas, respondendo perguntas com imagens que as preservam em aberto, em exercício, e criando em sua máquina do mundo uma paisagem em dispersão, universo metonímico de que se conhecem fragmentos esparsos, cenário de uma utopia ainda e sempre em construção, em transformação. Quadro à moda dos poemas em prosa de Rimbaud, visões esboçadas em pinceladas rápidas e propositalmente precárias:

las anguilas, por ejemplo, la región de los sargazos, las anguilas y las máquinas de mármol, la noche de Jai Singh bebiendo un flujo de estrellas, los observatorios bajo la luna de Jaipur y de Delhi, la negra cinta de las migraciones, las anguilas en plena calle o en la platea de un teatro, dándose para el que las sigue desde las máquinas de mármol, ese que ya no mira el reloj en la noche de París ( PO , p.9)

Na reunião destes fragmentos de mundo começa a tomar forma uma utopia à moda de mosaico. Resta pôr esta imagem em movimento, algo que Mallarmé soube fazer com maestria.

Mallarmé

Se Rimbaud trabalha para se fazer vidente e constrói em seus poemas uma realidade lúdica e delirante, Mallarmé, por sua vez, parece empenhar-se num trabalho de

202 “Só eu possuo a chave desta parada selvagem” Idem, p. 214-5. (Tradução de Ivo Barroso) 206 alquimia, fazendo de sua poesia o lugar de uma transmutação da matéria vil do mundo em essência pura. Este o ideal traduzido na imagem de sua famosa flor, que já lembramos no início deste capítulo. Assim o enuncia o poeta: “Je dis: une fleur! et, hors de l’oubli où ma voix relègue aucun contour, en tant que quelque chose d’autre que les calices sus, musicalement se lève, idée même et suave, l’absente de tous bouquets.” 203 Flor que, tornando-se palavra e imagem do poema, já não é objeto mundano; escapa à impureza e à precariedade da realidade para existir tão-somente como espécime poético, noção pura, essencial. Produto de um processo de depuração a que Mallarmé submete todos os seus objetos poéticos: fragmentados, desfigurados, corroídos em sua substancialidade, em sua integridade familiar e reconhecível; reconduzidos a um estado elementar a partir do qual podem assumir outras formas e outros sentidos, segundo uma operação que, visando à essência das coisas, não procura alcançá-la por meio da abstração de sua materialidade sensível, mas, sim, de uma exploração sensorial mesmo desta concretude. Fenômeno que podemos ler – e sentir – neste fragmento de “Las de l’amer repos” (“Cansado do repouso amargo”):

Une ligne d’azur mince et pâle serait Un lac, parmi le ciel de porcelaine nue, Un clair croissant perdue par une blanche nue Trempe sa corne calme en la glace des eaux, Non loin des trois grands cils d’émeraude, roseaux.204

Desobjetivada e decomposta, apresentada em traços mínimos, linhas puras, formas simples, a paisagem que se forma e se deforma nestes versos é quadro a se pintar

203 “Eu digo: uma flor! e, para além do esquecimento a que minha voz relega todo contorno, como alguma coisa outra que não os cálices conhecidos, musicalmente se levanta, idéia mesma e suave, a ausente de todos os buquês.” Stéphane Mallarmé. “Crise de vers”, in: ---. Igitur, Divagations, Un coup de dés , 2003, p. 259. (Tradução nossa) 204 “Uma linha de azul fina e pálida traça / Um lago, sob o céu de porcelana rara, / Um crescente caído atrás da nuvem clara / Molha no vidro da água um dos cornos aduncos, / Junto a três grandes cílios de esmeralda, juncos.” Stéphane Mallarmé. Mallarmé , 1974 p. 36-7. (Tradução de Augusto de Campos)

207 diante de nossos olhos, menos cenário do que cena. Um termo caro a Baudelaire o definiria justamente: arabesco – desenho espiritual: traçado de uma forma que, repetindo- se, refletindo-se infinitamente, esboça uma geometria onírica, um sonho da razão; passo de dança: forma a deformar-se em seus movimentos livres; frase poética: variação verbal de objetos que se fazem imagem de poesia, libertando-se de si mesmos em sua potencialidade de transformação. Trabalho de alquimia verbal de um poeta que toma a corriqueira paisagem de um lago ao anoitecer, lugar-comum da poesia, e faz dela um exercício para o olhar e a imaginação.

Também Cortázar ensaia este trabalho em Prosa del observatorio , fazendo de seu texto e de suas fotografias espaços de uma visão renovada das formas, desvinculadas de definções calcificadas, de leituras cristalizadas, de estigmas fixos; conhecidas novamente a partir de um olhar que trabalha para recuperar uma certa inocência não ingênua, que se esforça por se desligar dos vícios do costume e ver o mundo de outra forma, como se novamente pela primeira vez, sendo construído por um olhar que o vai desenhando com pontos, linhas, planos, como veremos detidamente mais adiante.

Esta decomposição do objeto em traços essenciais a partir dos quais ele se põe em movimento e se lança a transformações de forma e sentido é o procedimento básico da poesia de Mallarmé. Em seus melhores poemas, atinge efeitos ainda mais decisivos do que no fragmento citado. Se aí somos capazes de reconstruir sem maiores dificuldades a paisagem desmembrada, obtendo como resultado algo como um espaço reconhecível, compreensível, em muitos poemas mallarmeanos a decomposição e a transfiguração da realidade – acompanhadas por uma correspondente quebra e reordenação transgressora da sintaxe verbal – alcançam um nível tal que esta reconstituição é impossível. Isso ocorre, 208 por exemplo, em “Autre éventail (de Mme Mallarmé)” (“Outro leque (de Mme

Mallarmé)”), composição meta-poética (como muitas de Mallarmé) que põe em cena a imagem de um leque que atua como metáfora da operação poética a se cumprir sobre ele próprio. Trata-se de uma manobra de “imagem dialética” por excelência: operação auto- reflexiva de uma forma que, evocando um sentido outro, à distância, se volta sobre si mesma, explicitando e pensando seu trabalho. Neste poema, o traçado deste gesto crítico

(flexão do ser sobre si mesmo) forma um ângulo ainda mais agudo, pois a auto- reflexividade da “imagem dialética” serve aí à auto-reflexividade do meta-poema, potencializando sua operação crítica numa dobra sobre a dobra, movimento como o das folhas de um leque ao fechar-se. Este gesto, encenado no poema, encerra o sentido do trabalho que nele se cumpre: operação da “imagem crítica” que se abre à alteridade e, no seu ir-e-vir – como o de leque abanado – da forma à idéia, ameaça desaparecer, perder sua substância – como leque mal vislumbrado na ligeireza de seu movimento – na cadeia de suas mudanças, para, então, novamente se fechar sobre si mesma, reflexiva e concreta ainda, imagem preservada nos signos do poema.

O rêveuse, pour que je plonge Au pur délice sans chemin, Sache, par un subtil mensonge, Garder ton aile dans ta main.

Une frâicheur de crépuscule Te vient à chaque battement Dont le coup prisonnier recule L’horizon délicatement.

Vertige! Voici que frissonne L’espace comme un grand baiser Qui, fou de naître pour personne, Ne peut jaillir ni s’apaiser.

Sens-tu le paradis farouche Ainsi qu’un rire enseveli Se couler du coin de ta bouche Au fond de l’unanime pli!

209

Le sceptre des rivages roses Stagnants sur les soirs d’or, ce l’est, Ce blanc vol fermé que tu poses Contre le feu d’un bracelet. 205

Neste vertiginoso movimento de leque que agita o espaço e o põe em movimento

(“Vertige! Voici que frissonne / L’espace...”), a realidade perde a nitidez, sua substância quase a elidir-se no contínuo transmutar-se de uma forma a outra, seu sentido apenas vagamente pressentido, mas quase inapreensível objetivamente no fluxo ligeiro das passagens proporcionadas pelo “subtil mensonge”, “sutil engano” desta poesia: ilusionismo da imagem que transforma leque em asa, asa em cetro, cetro em leque, que, como ave que recolhe suas asas terminado o vôo, se fecha finalmente sobre um punho.

Assim se encerra o movimento do poema, o trabalho de suas imagens – vôo de pássaro, abanar de leque que revela com seus golpes a distância do horizonte (“... chaque battement / Dont le coup prisonnier recule / L’horizon délicatement”), mas esconde, em suas dobras, um paraíso fugidio (“Sens-tu le paradis farouche ... Au fond de l’unanime pli”). Manobra de “imagens dialéticas” que articulam o próximo e o distante, a coisa e a idéia, e evocatoriamente agregam em torno de si muitas formas, precárias e fugidias, leves desenhos sugeridos no ar, como os arabescos de uma bailarina.

Mallarmé se interessava pela arte da dança. Escreveu estudos sobre balé e muitos de seus poemas parecem seguir mesmo uma organização coreográfica, encontrando na dança um paradigma de composição, um princípio formal e um modelo de constituição

205 “Ó sonhadora, por quem plano / num puro gozo sem timão, / Sabe, por um sutil engano, / Guardar minha asa em tua mão. // Uma aragem de entardecer / Te vem a cada movimento / Preso que faz retroceder / O horizonte suavemente. // Vertigem! Eis que se agita / O espaço como um grande beijo / que por nascer para ninguém / não soma ou some o seu desejo. // Sente esse paraíso fugidio / Como um sorriso que soçobra / Do fim da boca escoar um pouco / No fundo da unânime dobra! // O cetro das areias rosas / Quietas nas tardes de ouro é este / Branco vôo fechado que pousas / Contra o fogo de um bracelete.” Idem, p. 50-1. (Tradução de Augusto de Campos, modificada) 210 de sentido. A essência deste mecanismo fica clara na famosa definição negativa que o poeta faz da dançarina:

A saber que a dançarina não é uma mulher que dança , por estes motivos justapostos: ela não é uma mulher , mas uma metáfora resumindo um dos aspectos elementares de nossa forma, adaga, taça, flor, etc.; e ela não dança , sugerindo, pelo prodígio de contrações ou de impulsos, com uma escritura corporal, algo que necessitaria de parágrafos em prosa dialogada ou descritiva para exprimir na redação: poema liberado de todo aparelho de escriba. 206

Poema que se escreve em passos de dança, a coreografia desta dançarina a se perder em suas metamorfoses pode nos dizer algo sobre o trabalho da palavra no poema, também ela forma a se fazer signo em movimento e transformação, e índice de ausência.

A querer alcançar a essência das coisas, sua noção pura, a palavra poética de Mallarmé se faz, como a dançarina, lugar de manifestação simultânea de uma proliferação de imagens essenciais e de uma negatividade, de um vazio de substância. Isto o que ela quer alcançar, ou, ao menos, o máximo que pode alcançar: uma idealidade que, como já vimos em

Baudelaire e Rimbaud, a poesia só pode conhecer como “transcendência vazia”, desprovida de conteúdo. Votadas a ela, as palavras se empenham em imagens cujos sentidos estão sempre a apontar para outros sentidos, num processo de transmutação de uma coisa na outra no qual se perdem os contornos e a definição de cada uma delas para se fazer sentir apenas o seu transmutar. Nesta ação de miséria e grandeza, perda de realidade e proliferação de sugestões, a forma de intermédio da palavra investida em imagem resta fixa e nítida somente como forma gráfica sobre a página. Este resto de materialidade é signo de sua busca e de seu fracasso, mínimo traço que, aurático , evoca a

206 « À savoir que la danseuse n’est pas une femme qui danse, pour ces motifs juxtaposés qu’elle n’est pas une femme, mais une métaphore résumant un des aspects élémentaires de notre forme, glaive, coupe, fleur, etc., et qu’elle ne danse pas, suggérant, par le prodige de raccourcis ou d’élans, avec une écriture corporelle, ce qu’il faudrait des paragraphes en prose dialoguée autant que descriptive, pour exprimer, dans la rédaction : poème dégagé de tout appareil de scribe. » Stéphane Mallarmé. « Ballets », in : ---. Igitur, Divagations, Un coup de dés , 2003, p. 201. (Tradução nossa) 211 idéia distante e, vestígio , rememora a destruição do objeto original que se perde em seu empenho de transformação. Esta a dupla condição do signo mallarmeano e das imagens – críticas – que sustenta: aura e vestígio. Este o duplo regime que define a escritura deste poeta, como explica Hugo Friedrich.

A poesia fala por palavras e, portanto, por restos de representações, porém de tal forma que as transforma em sinais para a essência do negativo. Na palavra que expressa algo de objetivamente ausente, está presente o negativo. Porém, de modo incompleto, pois nem mesmo esta palavra chega à ‘rosa’ libertadora, ao absoluto converter em linguagem do Nada, da idealidade pura. Só aquilo que não consegue transformar- se em linguagem absoluta converte-se em palavra. (...) Aquilo que fracassa ante a aspiração ontológica triunfa como poesia. 207

Esta aspiração e este fracasso se cristalizam nos poemas de Mallarmé, que se fazem, assim, para lembrar uma definição elaborada pelo próprio poeta, “Rien, cette

écume, vierge vers” – o verso como um quase nada, rastro de espuma deixado por sereias que desaparecem no oceano – “Telle loin se noie une troupe / De sirènes mainte à l’envers”. Isto diz o poeta em seu “Salut” (“Brinde”), saudação e sacrifício poético cujos versos “A ne désigner que la coupe”, são taça que se ergue a um desconhecido que se sabe inconquistável mas se busca, “A n’importe qui valut / Le blanc souci de notre toile”.

Utopia poética firmada na fórmula do “Brinde”, a famosa tríade “Solitude, récif, étoile”, que encerra todo o compromisso da poesia de mallarmaica, obra que confina com o vazio, com o silêncio, com o exílio; e que conhece a necessidade do recife, do naufrágio, para se desejar a estrela, a idealidade. 208 Como Cortázar conhece a necessidade do desastre para redescobrir os astros como objetos de desejo.

207 Hugo Friedrich. Opus cit, p. 108. 208 Eis o “Brinde” completo, em sua ordem direta e traduzido por Augusto de Campos: “Nada, esta espuma, virgem verso / A não designar mais que a copa; / Ao longe se afoga uma tropa / De sereias vária ao inverso. // Navegamos, ó meus fraternos / Amigos, eu já sobre a popa / Vós a proa em pompa que topa / A onda de raios e de invernos; // Uma embriaguez me faz arauto, / Sem medo ao jogo do mar alto, Para erguer, de pé, este brinde // Solitude, recife, estrela / A não importa o que há no fim de / Um branco afã de nossa vela.” Stéphane Mallarmé. Mallarmé , 1974, p. 32-3. 212

Toda a poesia de Mallarmé é oferta a essa Idéia, que se procura descobrir nas coisas mesmas, depuradas na palavra poética – memória de sereias que cantam o mistério e sobra miserável de espuma; estrela e recife; traço evocatório e vestígio ruinoso.

Esplendorosa dançarina descarnada que não pode, porém, se libertar por completo do seu corpo, de seu peso, de sua substância para se tornar puro movimento. Como a definiria o nosso João Cabral de Melo Neto, que tanto deve a Mallarmé, a poesia é “bailarina feita / de borracha e pássaro. / Da diária e lenta / borracha que mastigo. / Do inseto ou pássaro / que não sei caçar.” Imagem desiludida que se reconhece imagem; forma de intermédio, que ensaia desgarrar-se de si mesma para ousar ser outras, muitas outras coisas, mas só pode fazê-lo reconhecendo-se suporte, lugar concreto destes cruzamentos do diverso; impulso utópico rumo a uma idealidade que escapa e matéria de trabalho que prossegue nesta busca do impossível.

No curso desta elaboração poética, também Mallarmé soube, como Baudelaire e

Rimbaud, reconhecer as virtudes da interação entre poesia e prosa, testemunhando

(experimentando e dando testemunho da experiência) não só o valor estético e as potencialidades expressivas do verso livre e do poema em prosa – sua capacidade de apreender e dar forma à experiência moderna, como queria Baudelaire; sua afinidade com o fragmento e o enigma, seu dom de captar vislumbres de uma realidade misteriosa e

“fixar vertigens”, como almejava Rimbaud – mas, sobretudo, atentando para a dimensão política implicada na origem e no desenvolvimento destas formas – manifestação de uma quebra do verso, de uma “crise do verso”, 209 que Mallarmé faz corresponder a uma crise do mundo.

209 “Crise de vers” é o título de um ensaio famoso de Mallarmé sobre as novas formas poéticas. 213

“On a touché au vers” anuncia o poeta no que constitui, segundo Shoshana

Felman, o relato traumático de um acidente 210 , de um atentado – ato mesmo de violência

– que vai minar a unidade e a estabilidade da forma poética tradicional e instaurar nela um estado de crise que se insere no contexto de um fenômeno mais vasto: a turbulência que, no fim de século vivido por Mallarmé, se alastra pela sociedade, pela ética, pela filosofia, pela arte: crise social, crise de valores, crise das idéias, crise da representação.

Inserida neste contexto, a “crise do verso” representa não só uma inovação estética como

– e aí o aspecto não apenas renovador mas revolucionário mesmo da transformação formal que irá gerar o verso livre e o poema em prosa – o reconhecimento de uma necessária vinculação entre poesia e realidade. Como explica Shoshana Felman: “o que o verso livre acidentalmente pontua não é somente a poesia anterior, agora modificada por ele, mas a relação, anteriormente não vista e mal entendida, que o acidente revela entre cultura e linguagem, entre poesia e política.” 211

O eixo de sentido desta relação sempre latente que a quebra do verso vem explicitar é justamente o fenômeno sobre o qual vimos refletindo ao longo deste capítulo: a dessacralização imputada pela experiência e pelo imaginário da modernidade às mais diversas estruturas que a constituem, sejam instituições, valores éticos e morais ou formas da arte. Retomando a reflexão de Shoshana Felman:

A ruptura do verso torna-se ela mesma um sintoma e um emblema da ruptura, na história, de fundamentos políticos e culturais e da libertação ou da liberação do verso – por meio de sua descanonização – implicando um processo mais vasto de dessacralização, de liberação, em curso na consciência social e na cultura como um todo. 212

210 Shoshana Felman. “Poesia e testemunho: Stéphane Mallarmé ou um acidente do verso”, in: Catástrofe e representação , 2000, p. 31. 211 Idem, p. 33. 212 Idem, p. 32. 214

Como já nos mostrava Baudelaire com suas alegorias poéticas em prosa, a quebra do verso – ruptura de sua forma canônica consagrada – conta a queda de sua aura e reflete sobre esta perda que se reverte em ganho – de experiência e de saber crítico. Para

Mallarmé, “toda prosa tem o peso de um verso quebrado”. Poema em prosa e verso livre seriam, assim, expressões formais de uma consciência de crise: obra de perda e lugar de uma necessária transformação, ponto em que se cruzam o nostálgico e o utópico; forma de intermédio como as “imagens dialéticas”, também elas formas fraturadas, que tão afinadamente se incorporam em sua estrutura.

Tomada a partir desta perspectiva, a quebra do verso se faz instrumento de uma revolução, de uma “utopia de linguagem”, que está na raiz do projeto jamais levado a termo do Livre de Mallarmé, mas já se ensaia no seu “Un coup de dés”: escritura de uma aposta crucial com o acaso, em que os próprios signos se arriscam como vicários referentes e as palavras encenam naufrágio e constelação. Um novo espaço se abre aí: a própria extensão das páginas que, na duração do poema, serão fictícios mar e céu, alegórico cenário do drama cósmico do homem diante de seu destino. Experiência limite a que o poeta faz corresponder uma forma limite – aberta e cíclica, auto-reflexiva, tensa em sua estrutura –, única capaz de traduzi-la.

A esta forma inovadora Eugen Gromrich chamou “poema-constelação”, tendo em mente a disposição esparsa dos versos pela página, em oposição à sua sucessão linear no poema tradicional. Aproveitando propriedades do poema em prosa – como a fluidez e a flexibilidade rítmica – e do verso livre – com sua mobilidade e sua potência fragmentária

–, expandindo-as e intensificando-as, Mallarmé criou um poema realmente revolucionário, cujas unidades de composição já não são os versos, mas a página dupla, 215 que os põe em relação. Relação não unívoca, já que o poema permite certa flexibilidade de ordenação, constituindo-se como obra aberta, campo de possibilidades, rede de relações virtualmente inesgotáveis que se estende mesmo além do literário estabelecendo passagens intersemióticas.

A exploração de recursos visuais tais como a distribuição da mancha gráfica, os espaçamentos e uma variação dos tipos de impressão promove, no corpo do texto, um encontro de poesia e artes visuais, a partir do qual se tornará possível também um intercâmbio com a música. Poema-sinfonia, “Um lance de dados” assume forma e propriedades de uma partitura em que se sobrepõem e convergem, retomando-se, linhas melódicas diversas – definidas pelo uso dos tipos gráficos diferentes – à maneira de uma fuga, ouvida entre as pausas impostas pelos “brancos” da página.

Coreografia de palavras ao som de um ritmo por elas mesmas dado, o poema se cria como um balé de signos, estrutura dinâmica impressa numa mancha gráfica que sugere e desmancha formas, respostas possíveis de dados lançados – constelação ou naufrágio, imagens que surgem como miragens, entrevistas ou imaginadas no campo de hipótese, ou de quimera, produzido por um lance ao acaso. Jogo de aleatórias e múltiplas possibilidades, todas virtualmente concretizáveis – e vislumbradas mesmo, ao menos na vertigem daquele que se arrisca e aposta – que Mallarmé traduz em composição poética.

Melhor do que qualquer outra forma, o “poema-constelação”, em sua fragmentária precariedade provisória, parece capaz de representar esta incerta realidade que num instante se propõe e logo se desfaz. Na abertura tensa de sua estrutura, ele abriga um feixe de formas, imagens e sentidos, articulando-os e fazendo-os conviver, não querendo ser, como disse Walter Benjamin sobre constelações e estrelas, “nem seu conceito nem 216 sua lei” 213 , mas uma ordem que comporta, que supõe mesmo, o acaso, a desordem. A partir deste paradigma se constrói “Um lance de dados”, poema que, segundo Haroldo de

Campos, não postula “a abolição do acaso, mas a sua incorporação, como termo ativo, ao processo criativo” 214 . Mais do que metáfora, o jogo de azar, como um tanto equivocadamente se diz em português, se faz, então, método.

Ressoa aqui, ao pé do ouvido, aquela emblemática fórmula do “Brinde”:

“Solitude, recife, estrela”, eixo da obra de um poeta que, empenhado no projeto utópico de um livro que acolhesse o universo, sabe que o recife é tão necessário quanto a estrela, que é indispensável a ela como o naufrágio à constelação, o fracasso à utopia, o desastre ao desejo. Inferência dialética a que faz jus a forma cíclica de “Um lance de dados” e o estatuto das imagens que povoam o poema. Construtos de palavras, elas se reconhecem imagens na meticulosa disposição que lhes confere Mallarmé, fazendo uso do que têm de justamente mais material: sua forma gráfica – para fazê-las evocar outra coisa: estrelas, das quais, no entanto, são e mostram ser apenas traço; literalmente: traço gráfico. Por meio deste artifício, que mais tarde seria inspiração de toda a poesia concreta, o poeta vai ludibriar aquela que julgava ser a maior deficiência das línguas. Segundo Blanchot,

Depois de ter lamentado que as palavras não fossem “materialmente a verdade” (...), Mallarmé encontra nesta deficiência das línguas aquilo que justifica a poesia; (...) Qual é esta deficiência? As línguas não têm a realidade que elas exprimem, permanecendo estrangeiras à realidade das coisas. 215

Alheias a esta realidade – efeito do desastre, as palavras poderiam apenas evocá-la

à distância. Em “Um lance de dados”, porém, estão um passo a frente, justificando a

213 Walter Benjamin. Origem do drama barroco alemão , 1984, p. 56. 214 Haroldo de Campos. Mallarmé , 1974, p. 190. 215 « Après avoir regretté que les mots ne soient pas ‘matériellement la vérité’ (...), Mallarmé trouve dans ce défaut des langues ce que justifie la poésie; (...) Quel est ce défaut ? Les langues n’ont pas la réalité qu’elles expriment, étant étrangères à la realité des choses. » Maurice Blanchot. L’espace littéraire , 2005, p. 40. (Tradução nossa) 217 poesia : já não evocam simplesmente; encarnam, encenam, tornam visíveis, sem obliterar- lhes a natureza de índices, traços – a vela de uma nau, o espocar de uma constelação.

Desenho feito do grafismo de vocábulos que ainda não retêm a realidade, mas a refletem numa espécie de espelho mágico que não somente a reproduz, mas a recria; superfície que são as próprias páginas em que se imprime o poema, espaço fantástico que se pode metamorfosear ao sabor das metáforas e se tornar a mesa de jogo sobre a qual se lançam dados, o mar revolto em que naufraga um navio, um céu à noite. Fictícios e provisórios cenários, fragilmente sugeridos no contraste dos tipos negros com o fundo branco da página, imagem em negativo de um céu estrelado, ato de um poeta que assume o risco necessário do naufrágio e compactua com o acaso em busca de uma constelação.

“Escritura do desastre” (na expressão de Blanchot), o poema de Mallarmé se faz entre o silêncio e a voz, o vazio e o traço, a forma e sua dissolução – menos representação do que experiência do drama da separação – para sugerir, por fim, uma frágil e provisória constelação com palavras desenhada: obra do desejo humano, que deixa de buscar estrelas nas alturas para escrevê-las, ao rés-da-página, no corpo de um poema, ordem pelo homem instaurada.

Recordando a primeira impressão que lhe deixou “Um lance de dados”, escreve

Paul Valéry: “O conjunto me fascinava como se um asterismo novo se propusera no céu; como se enfim tivesse aparecido uma constelação que significasse alguma coisa.” 216

Ensaio de decifração do alfabeto sideral , o poema faz de sua própria forma – lugar daquela dessacralizadora mas utópica quebra do verso – molde de constelação capaz de se apropriar de sua imagem e traduzi-la em sentido. Na composição se consuma, assim, a

216 “L’ensemble me fascinait comme si un astérisme nouveau dans le ciel se fût proposé; comme si une constellation eût paru qui eût enfin signifié quelque chose.” Paul Valéry, Varieté I, 1998, p. 195. 218 operação de uma mímese invertida: ser relegado à contingência, ao acaso, ao determinismo misterioso dos astros, o poeta se faz aí autor de seu destino, criador de uma constelação que, decaída embora, é obra de sua vontade insubmissa, que busca “elevar enfim uma página à potência do céu estrelado”, como conclui Valéry. 217

Algo semelhante ensaiava Jai Singh por meio da empresa arquitetônica de seus observatórios – tentativa de estabelecer uma relação entre o humano e o cósmico, como acredita Andreas Volwasen 218 –, criando em pedra e mármore um cosmos terreno, compreensível, que estivesse ao acesso do homem e pudesse lhe conceder acesso aos mistérios do universo. Empreitada reconhecida por Cortázar como heróica – na linha do heroísmo baudelairiano, que verte fraqueza em virtude – e rememorada em Prosa del observatorio , livro que é em si mesmo esboço de um cosmos ordenado pelo homem, feito de palavras e imagens como o universo projetado em “Um lance de dados”.

Em uma tela de 1967, intitulada La Page Blanche ( A Página em Branco ),

Magritte presta uma homenagem a Mallarmé criando uma imagem visual de sua utopia poética e cósmica.

217 “élever enfin une page à la puissance du ciel étoilé” Idem, p. 199. 218 Andreas Volwasen. Cosmic architecture in India . The astronomical monuments of Maharaja Jai Singh II, 2001, p. 8. 219

Folhas caídas, que, no campo das associações surrealistas tão caras a Magritte, remetem a folhas de papel, parecem dispostas cuidadosamente ao acaso no céu da pintura, como num chão de outono. Formam uma estranha e vicária constelação de gigantescas proporções que encobre ou ofusca as “verdadeiras” estrelas (inexistentes ou reduzidas a pontinhos brancos quase invisíveis contra o azul do fundo da tela), mas não a lua cheia – que é, porém, vazia: espaço em branco – no centro do céu. Neste vazio que significa – forma a sustentar uma perda –, repousa, já aponta o título mallarmeano, o sentido da composição de Magritte, tão afeito, ele próprio, a imagens reflexivas que fossem lugar de pensamento: imagens dialéticas, críticas de si mesmas. (Pensemos, por exemplo, em La trahison des images (Ceci n’est pas une pipe) – A traição das imagens

(Isto não é um cachimbo) – a denunciar seu engano, sua traição , incorporando em sua forma a confissão de seu estatuto de imagem.) É vazio de lua o círculo branco que evoca o astro, são vazias de estrelas as folhas pintadas no lugar das constelações: imagens que, como aquelas de “Um lance de dados”, evocam coisas que não chegam a ser, formas a meio caminho que se reconhecem intermediárias e utópicas, e se, fazem, por isso, autênticas e auráticas, signos de trabalho honesto e humano.

Estrelas decaídas sobre as páginas de um poema ou folhas erguidas ao firmamento numa tela de pintura que nos dão a ver a imagem de céus reinventados, feitos à mão humana. Outros, novos céus: não o pálio sagrado das religiões, não o cenário das explosões de gases que a ciência estuda, nem aquele que paira todas as noites sobre a terra, nem aquele que, segundo os astrólogos, nos determina os caminhos: estes,

Mallarmé o sabia, estão vazios. O que resta a buscar – a criar – é um céu como utopia 220 humana e impossível. Obra de um poeta que, na verdade inalienável de sua arte, registra não um cenário conquistado, mas ação em curso, ato poético a se fazer, em perda, busca, fracasso, impulso sempre reanimado. Menos o céu que seu desejo.

Um tanto o que Cortázar parece ter querido cunhar em Prosa del observatorio , num pronunciamento político como o de Mallarmé, e que se cumpre por meio de um trabalho exercido sobre a forma – das coisas, das imagens que as evocam e as perdem, do texto que as acolhe – proclamando uma necessidade de transformação do olhar, do discurso, do entendimento sobre o mundo. Do mundo em si mesmo, cuja utópica reordenação se projeta nas páginas de um livro.

2.2. O escritor fotógrafo e um sultão que gostava de observar estrelas

É de um trabalho de imagem que se trata, e de uma imagem que se quer aurática por excelência, tornando ao mítico e encenando o percurso de sua dessacralização, recordando-se matéria de rito e se deixando profanar para se fazer objeto histórico, signo crítico e utópico. Esta trajetória de desastre e desejo está gravada na máquina do mundo – imagem de uma nova ordem cósmica – que Cortázar cria em Prosa del observatorio , convocando para sua obra o espaço e a temporalidade dos mitos; fundando aí, no território mágico de rituais eróticos e sacrificiais, em decisivas rupturas e encontros fulgurantes, um imaginário novo; não, porém, para criar novos ídolos na figura de estrelas e enguias, entronizar Jai Singh como uma divindade moderna ou declarar seus observatórios astronômicos lugar de culto; é como imagens poéticas de uma utopia 221 histórica que estas figuras que povoam Prosa del observatorio devem ser tomadas. E o que Cortázar faz em seu livro a partir e por meio delas é elaboração estética de um projeto de transformação histórica que busca seu arcabouço e sua força tanto no mito como em sua dessacralização, e expressão artística de um ideal político que se estende a uma dimensão cósmica. Nesta articulação de uma idéia e de uma forma que se faz também interface entre o ético e o estético, elabora-se uma poética.

Uma poética do olhar e uma poética da imagem, que Cortázar desenvolve em

Prosa del observatorio nos exercícios de experimentação visual das fotografias que compõem o livro e na construção de seu texto – poema em prosa que, fazendo jus à natureza híbrida e heterodoxa do gênero, aproxima-se do ensaio filosófico, pensando as possibilidades e as potencialidades da percepção, sem deixar, no entanto, de ser o poema que pode “pôr em prática” – pôr em imagem – as relações inusitadas e os novos sentidos surgidos destas experiências do olhar, cujo viés revolucionário o texto – já agora confinando com o manifesto – não deixará de ressaltar. Assim, entre a reflexão teórica e a realização artística, traduzindo para um código de recursos formais, efeitos visuais e estratégias discursivas sua filosofia estética e sua proposta ideológica, Cortázar constrói um poema-ensaio-manifesto cuja escritura é já vivência possível de sua utópica proposta de um mundo concebido poeticamente como imagem.

Este impulso utópico não implica, porém, um afastamento do mundo presente. A imagem não é, para Cortázar, sucedâneo ideal da realidade imediata, mas construto reflexivo que promove uma outra percepção desta realidade, posta sob outra perspectiva:

é “imagem crítica”, que produz aquela articulação tensa de espaços e temporalidades a que Benjamin se referiu como um “relâmpago para formar uma constelação (...) a 222 dialética em suspensão” 219 – expressão que era, para o teórico alemão, uma definição do conceito mesmo de imagem.

Esta “dialética em suspensão”, figura do pensamento benjaminiano, toma corpo em Prosa del observatorio , ganhando forma e visibilidade nas fotografias de Cortázar, não apenas ilustrações, mas concretizações visuais (não mera representação iconográfica, mas encenação de um ato) daquela fórmula que julgávamos cristalizar numa gestualidade alegórica o trabalho da “imagem crítica”: “Quando alguém aponta a lua, o bobo olha o dedo”. Opção que é também a de alguém que, em visita a um observatório, esquece o céu e fotografa os instrumentos astronômicos, e escolhe estas imagens como signos de seu pensamento utópico.

Não são estrelas ou enguias que ilustram as páginas de Prosa del observatorio , mas as máquinas de observação e medição de Jai Singh, os instrumentos que, simultaneamente – dialeticamente – o aproximavam e o afastavam do céu estrelado que desejava alcançar. Como o dedo que aponta a lua, estes aparelhos incorporam a dupla distância que caracteriza a experiência aurática em seu sentido moderno secular, definida por Didi-Huberman como “um espaçamento tramado do olhante e do olhado, do olhante pelo olhado” 220 . Neste espaçamento se ergue o observatório, e é para ele que se olha, encarnação que é de

uma aura que dança esculpida no mármore: gesto de ar e gesto de pedra. Por que dança ela no vento, ela mesma feita de sopro? Para dar forma àquilo que se move e àquilo que desvanece. Por que está ela esculpida no mármore? Para dar forma àquilo que se petrifica e àquilo que permanece. Por que vão estas coisas juntas numa mesma imagem?

219 Walter Benjamin apud Georges Didi-Huberman. O que vemos, o que nos olha , 1998, p. 182. A citação completa se encontra na página 148. 220 Georges Didi-Huberman. O que vemos, o que nos olha , 1998, p. 147. 223

Para que seja sonhada e desperta a um só tempo, para que seja velada a memória de um morto. 221

O valor destes observatórios é o da ruína benjaminiana: o valor de um saber, de uma beleza que dura, da encenação de uma perda – o observatório destituído de função, transformado em monumento de cultura, passeio turístico, tema para fotos. Mas que ainda conserva, como antigo intermediário entre o sultão astrônomo e o céu que cobiçava

– ponte entre o olhante e o olhado, suporte material por meio do qual se estabelecia a trama, a relação entre eles – os vestígios do impulso mimético de um e de outro: do céu que, segundo a crença astrológica (que ainda tinha grande importância na astronomia antiga de Jai Singh), ditava os rumos da vida na terra; e do mimetismo invertido com que o sultão queria, capturando em suas máquinas de mármore a ordenação e os movimentos dos astros, deles se apropriar. Desejo que se conserva reconhecidamente utópico, que se preserva busca, consciência que estas fotografias dão a ver. As estrelas ali estão como ausência, figuradas nestas formas abertas de observatórios que se erguem ao céu mas permanecem no solo humano das limitações, materialidade a operar uma perda. Limiar da abertura, alegoria da busca, expressões do desastre e do desejo, elas são “qualquer coisa de intermédio”.

Neste sentido, as fotografias de Prosa del observatorio são dotadas de valor conceitual. São ilustrações de uma idéia, de uma teoria, e valem como um ato de criação, como um pronunciamento artístico. Como “imagens dialéticas” e encarnações do conceito de “imagem dialética”, inserem na obra mesma de Cortázar seu princípio

221 « Une aura qui danse, sculptée dans le marbre: geste d’air et geste de pierre. Pourquoi danse-t-elle dans le vent, elle-même faite de souffle? Pour donner forme à ce qui se meut et à ce qui s’évanouit. Pourquoi est-elle sculptée dans le marbre? Pour donner forme à ce qui se pétrifie et à ce qui demeure. Pourquoi ces choses vont-elles ensemble dans la même image? Pour que soit rêvée et réveillée tout à la fois, pour que soit veillée la mémoire d’un mort. »Idem. Gestes d’air et de pierre. Corps, parole, souffle, image, 2005, p. 66. 224 poético, e servem como paradigma a todos os elementos que constituem o “sistema de imagens” que é Prosa del observatorio , como a qualificou seu autor 222 , bem como a este sistema como um todo.

De fato, poderíamos compreender este livro-observatório como uma espécie de instrumento óptico duplicado e auto-reflexivo que, vendo o mundo, pensa o modo como se o vê; que o transfigura em imagens, mas não para substituir por elas a realidade, e, sim, para refletir sobre as relações que nelas se gravam e que por meio delas se exprimem. Portanto, um texto que visa ao real e à sua transformação, mas não se esquece de si mesmo enquanto trama de signos – texto bobo, que aponta a lua e olha o dedo.

Antes de mais nada será preciso pensar, porém, o estatuto do bobo – personagem que o senso comum rejeita como incapaz, idiota, derrotado, e que pode, no entanto, ser resgatado como agente subversivo, mesmo revolucionário num certo sentido. Na releitura moderna, dialética, de nosso ditado de dedo e lua, ser bobo torna-se um ato de rebeldia, um pronunciamento, poderíamos dizer, político: uma recusa à alienação, à evasão da realidade presente, à fuga para um outro mundo; em suma, uma atitude crítica de valor positivo. Vontade de realidade aliada a uma vontade de transformação da realidade.

Parceria entre Marx e Hölderlin – o filósofo materialista que, escreve Cortázar, o poeta romântico deveria ler. Consciência infeliz 223 – melancolia – e libertária – gozo – da brecha aberta no mundo por este dedo que rasga o céu, da possibilidade de intervenção instituída por essa abertura, do poder que ela outorga ao sujeito e ao real por ele

222 Julio Cortázar apud Ernesto González Bermejo. Conversas com Cortázar , 2002, p. 19. Na declaração, Cortázar se refere não só a Prosa del observatorio – embora seja este o único texto ali nomeado – mas a “capítulos [de seus romances] que têm um movimento de poema, embora não possam ser vistos como poesia ortodoxa”. 223 A expressão é de Hegel. 225 concebido. Poder subversivo de alteração de formas, de releitura de sentidos, de reordenação de estruturas.

Potência de “imagem dialética”, cuja poética desiludida o próprio texto que compõe Prosa del observatorio – poema em prosa que, como vimos é forma auto- reflexiva que comporta sua própria crítica – explora em mais uma virada auto-reflexiva da obra de Cortázar, expressando num ritmo anadiômeno (para usar uma expressão cara a

Didi-Huberman), em que oscilam a aspiração algo subversiva à utopia e a consciência de sua impossibilidade (que se reverte em atenção à realidade imediata), o trabalho em curso no livro.

Desde luego inevitable metáfora, anguila o estrella, desde luego perchas de la imagen, desde luego ficción, ergo tranquilidad en bibliotecas y butacas; como quieras, no hay otra manera aquí de ser un sultán de Jaipur, un bando de anguilas, un hombre que levanta la cara hacia lo abierto en la noche pelirroja. Ah, pero no ceder al reclamo de esa inteligencia habituada a otros envites: entrarle a palabras, a saco de vómito de estrellas o de anguilas; que lo dicho sea, la lenta curva de las máquinas de mármol o la cinta negra hirviente nocturna al asalto de los estuarios, que eso que fluye o converge o busca sea lo que es y no lo que se dice: perra aristotélica, que el binarismo que te afila los colmillos sepa de alguna manera su innecesidad cuando otra esclusa empieza a abrirse en mármol y en peces ( PO , p.13)

É de fato uma dialética da imagem que aí se enuncia, no cancelamento da lógica aristotélica, na recusa do princípio de exclusão fundador de toda separação binária e na proposta – num ato de concessão e desafio – de criação de um discurso poético que quer superar suas fronteiras literárias e se fazer intervenção sobre o real, o que só será possível, porém, indiretamente, por intermédio do trabalho da imagem, cujo drama se manifesta neste fragmento: tensão entre utopia e consciência crítica, evocação e resistência, transformação e permanência; a dialética que se instaura entre o dedo e a lua e a dúvida do olhar; aquela mesma que está no centro – como um buraco negro está no centro de uma estrela, para ficar com a metáfora astronômica – de todas aquelas que 226 chamamos “imagens críticas”. Sobre elas, escreve Didi-Huberman: “em muitas imagens fortes, se encontram uma graça superlativa e um luto imenso, um gesto e uma suspensão do gesto, um desejo e uma renúncia, um quase consolo e uma perda inconsolável”224 , como um dedo que aponta a lua para revelar a distância que o impede de alcançá-la.

A construção desta cisão está na base do trabalho poético de Prosa del observatorio , inscrevendo-se e pensando-se no poema em prosa que compõe a obra e manifestando-se visualmente como experiência nas fotografias que o acompanham.

Obras de aniquilação e desejo, exercícios de decomposição, deformação, transformação, estas visões singulares dos observatórios de Jaipur e Delhi engendram aquela

“modalidade inelutável do visível” reconhecida por Didi-Huberman e que já vimos encenada por Cortázar em “Anillo de Moebius”, na visão do corpo de Janet, violada e morta por Robert num ato em que se fundiam erotismo e suplício para gerar uma imagem perturbadora, sustentada por uma perda, arquitetura de um vazio – efetivamente aberto no cadáver por obra de violência – que nos olha, que nos concerne e revela também em nós uma cisão. Experiência de choque que se faz sentir como ameaça de uma agressão, de uma violação, na virtualidade de um contato iminente que permanece em suspenso, porém, no exercício de um olhar que é prenúncio de um tocar – e de um ser tocado – que se adia indefinidamente. Isto nos explica Didi-Huberman, caracterizando a imagem como um limiar:

Olhar seria compreender que a imagem é estruturada como um diante- dentro : inacessível e impondo sua distância, por próxima que seja – pois é a distância de um contato suspenso, de uma impossível relação de carne a carne. Isso quer dizer exatamente – e de uma maneira que não é apenas alegórica – que a imagem é estruturada como um limiar. Um quadro de porta aberta, por exemplo. Uma trama singular de

224 « dans beaucoup d’images fortes, se rencontrent une grâce superlative et un deuil immense, un geste et uns suspens du geste, un désir et un renoncement, une presque consolation et une perte inconsolable » Georges Didi-Huberman. Gestes d’air et de pierre . Corps, parole, souffle, image, 2005, p. 65. 227

espaço aberto e fechado ao mesmo tempo. Uma brecha num muro, ou uma rasgadura, mas trabalhada, construída, como se fosse preciso um arquiteto ou um escultor para dar forma a nossas feridas mais íntimas. Para dar, à cisão do que nos olha no que vemos, uma espécie de geometria fundamental. 225

É de fato uma “trama singular de espaço aberto e fechado” o que se revela ao observador das fotografias de Prosa del observatorio . Ao longo das páginas do livro, vai- se delineando diante dele como que uma cartografia de brechas, fissuras, passagens; mapa de um mundo que, à semelhança daquele universo poético que vimos ser construído

– pela via da destruição – na obra de Rimbaud, vai tendo rompidos seus limites e se abrindo – pelo olhar e para o olhar – em limiar, revelando também ao sujeito que o vê – que o observa , num exercício de contemplação que se faz aprendizagem – seus limites e seus limiares. Formas do desastre e do desejo são estas imagens que se abrem diante daquele que as olha e abrem aquele que as olha revelando suas cisões, suas “feridas mais

íntimas”, como num ato sacrificial ou erótico, para logo se revelarem, porém, corpos efetivamente intocáveis, expiações inofertáveis, tentações impossíveis, vazios irrevogáveis. “Limiar interminável”, absoluto, que não se pode transpor, que se revela cruelmente como passagem e obstáculo para aquele que diante dele espera sem poder penetrá-lo, a imagem se apresenta ao olhar como a porta da Lei ao homem do campo na alegoria de Kafka, lembrada por Didi-Huberman: interminável limiar que suspende o ser .

Assim se constroem as fotografias de Prosa del observatorio : imagens que, se podem ser consideradas ilustrações , são ilustrações de seu próprio trabalho, de sua gestualidade de imagem. Gestualidade dialética de abertura e transgressão, convite e impedimento. Apreendidos pelo olhar maquínico desastrado e desejante da câmera de

Cortázar – capaz de revelar aquele “inconsciente ótico” benjaminiano, descobrindo uma

225 Georges Didi-Huberman. O que vemos, o que nos olha , 1998, p. 243. 228 fantasmagoria das formas, acentuando seus recortes, suas linhas de força, seus pormenores que se ocultariam ao olhar comum –, os observatórios de Jai Singh se abrem em portais que anunciam o desconhecido, vãos inescrutáveis, fendas misteriosas, abismos sem fundo: brechas que incitam a uma impossível penetração, constituindo uma autêntica arquitetura de cisões que dá forma visível e tátil ao que Didi-Huberman chamou, pensando ainda em Kafka, “geometria de nossas cisões”.

A expressão parece muito adequada não só à iconografia que Cortázar cria nas fotografias de Prosa del observatorio como a um outro conjunto de imagens, descrito pelo autor no conto “Graffiti”, que talvez nos faça compreender melhor a relação que se pode estabelecer entre uma imagem e aquele que a concebe ou a contempla, ou, dito de outro modo, a potência de comunicação das imagens – de certas imagens: como, de que, a quem elas “falam”, segundo princípios que escapam a critérios iconográficos tais como representação, tema ou conteúdo, e que poder, que alcance e que virtude tem esta comunicação.

O conto foi escrito originalmente para o catálogo de uma exposição de Antoni

Tàpies realizada em Barcelona em 1978. Suas personagens são jovens vivendo num contexto de ditadura e sofrendo com a decorrente censura a toda forma de expressão, duramente punida. Apesar do perigo, um casal – o protagonista e a narradora do conto, escrito em segunda pessoa, construindo-se como um diálogo imaginado que é também um ensaio de perscrutamento psicológico do outro na forma de discurso indireto livre, que acabará por se revelar meio de auto-conhecimento e confissão do eu (complexo jogo discursivo cruzado que parece refletir as dificuldades de comunicação em contextos de censura e as estratégias de que têm que se valer suas vítimas para contorná-las) – arrisca- 229 se à prisão, à tortura e à morte desenhando graffiti nas paredes da cidade. As composições são o mais das vezes abstratas: linhas, figuras geométricas, jogos de formas e cores aproveitando as texturas diferentes, as rachaduras, os pregos em muros e portões; por vezes perfis de pássaros, esboços de uma paisagem, figuras enlaçadas – nenhuma representação mimética da realidade presente, mas o que parece ser, num ato mais ousado, uma resposta a ela, uma interferência de fato sobre seu cenário: em meio à cidade sitiada, a criação subversiva de um espaço de liberdade, de expressão, de movimento, de reunião nos traçados dos graffiti . Protesto possível que a polícia se apressa em apagar das paredes, menos por alcançar toda a extensão de seu sentido do que por considerá-los uma provocação gratuita. Para aqueles que de fato os compreendem, no entanto, eles se tornam um meio de contato: respondendo aos desenhos um do outro, os personagens, que jamais se haviam encontrado, comunicam sua dor e seu afeto – “ A mi también me duele .” 226 , fora preciso escrever apenas uma vez – e encenam uma relação amorosa e trágica nos muros da cidade: “dibujaste un triángulo blanco rodeado de manchas como hojas de roble” 227 .

Mucho después (era horrible temblar así, era horrible pensar que eso pasaba por culpa de tu dibujo en un paredón gris) te mezclaste con otras gentes y alcanzaste a ver un esbozo en azul, los trazos de ese naranja que era como su nombre o su boca, ella ahí en ese dibujo truncado que los policiales habían borroneado antes de llevársela; quedaba lo bastante para compreender que había querido responder a tu triángulo con otra figura, un círculo o acaso una espiral, una forma llena y hermosa, algo como un sí o un siempre o un ahora. 228

Dias depois, sem notícias e sem novos desenhos, de volta a portão que já antes havia servido de tela, “llenaste las maderas con un grito verde, una roja llamarada de

226 Julio Cortázar. Graffiti. In: ---. Cuentos completos , v. 2, 1996, p. 397. 227 Idem, p. 398. 228 Idem, p. 399. 230 reconocimiento y de amor, envolviste tu dibujo con un óvalo que era también tu boca y la suya y la esperanza” 229 . A resposta viria mais tarde:

Desde lejos descubriste el otro dibujo, sólo vos podrías haberlo distinguido tan pequeño en lo alto y a la izquierda del tuyo. Te acercaste con algo que era sed y horror al mismo tiempo, viste el óvalo naranja y las manchas violeta de donde parecía saltar una cara tumefacta, un ojo colgando, una boca aplastada a puñetazos. Ya sé, ya sé, ¿pero qué otra cosa hubiera podido dibujarte? ¿Qué mensaje hubiera tenido sentido ahora? De alguna manera tenía que decirte adiós y a la vez pedirte que siguieras. Algo tenía que dejarte antes de volverme a mi refugio donde ya no había ningún espejo, solamente un hueco para esconderme hasta el fin en la más completa oscuridad, recordando tantas cosas y a veces, así como había imaginado tu vida, imaginando que hacías otros dibujos, que salías por la noche para hacer otros dibujos. 230

Imagem de uma dor e de uma perda, mensagem de adeus, mas também signo de memória e continuidade, este desenho feito na madeira de um portão (signo duplo, como nos apontava a citação de Didi-Huberman: limiar, espaço tramado de abertura e fechamento) é uma espécie de inscrição fúnebre, epitáfio gravado numa cripta.

“Aprovechando la textura de las maderas carcomidas y las cabezas de los clavos”, é inscrição daquela kafkiana “geometria de nossas cisões”, forma trabalhada de “nossas feridas mais íntimas”. Imagem sintomal no seu caráter dialético, como nos explica uma vez mais Didi-Huberman: “tal seria portanto a imagem, nessa economia: guardiã de um túmulo (guardiã do recalque) e de sua abertura mesma (autorizando o retorno luminoso do recalcado)” 231 . Signo do luto e do desejo.

Daí a potência crítica e transformadora destas imagens, que, arriscando-se no limite de seu fim, abrindo-se em limiar no esforço extremo de suas formas que renunciam

à identidade com referentes precisos e revelam seu vazio – a cisão que farão abrir-se também em seus espectadores –, alcançam a abstração no ápice da concretude – dialética

229 Idem, p. 399. 230 Idem, p. 400. 231 Georges Didi-Huberman. O que vemos, o que nos olha , 1998, pp. 248-9. 231 formal que corresponde a sua potencialidade igualmente dialética de projetar o utópico ao pensar criticamente o presente imediato.

Assim são as pinturas de Antoni Tàpies, que Cortázar comparou aos graffiti nos muros das cidades – paralelo que definia com a expressão “muro-pintura e pintura-muro”

– e inspirado nas quais escreveu o conto que lemos. Como as personagens de Cortázar,

Tàpies criou uma parcela significativa de sua obra num contexto ditatorial: o franquismo espanhol, e fez dela uma expressão estética e política de liberdade, tematizando a dor, a violência, a opressão, o sofrimento humano, a deterioração das coisas, a espiritualidade e sua problemática por meio de uma arte que investe na matéria e em suas potencialidades expressivas. Usa o suporte como uma parede ou um muro, criando texturas, manchas, gotejamentos, fissuras e graffiti como elementos pictóricos, ao lado de traços livres, figuras abstratas e formas geométricas, como vemos nestas reproduções de “Gran Oval”

(1955) e “Blanco con manchas rojas” (1954).

A gestualidade das fotografias de Prosa del observatorio não parece distante da que se pronuncia nestas telas de Tápies, como se o olhar maquínico da câmera de 232

Cortázar pudesse recuperar para aquelas imagens um gesto do artista, que é aqui autêntico emprego do corpo, do olho e da mão do pintor, interação com os materiais e com o suporte, questionamento e transformação da realidade na invenção de uma visualidade problemática. Algo semelhante ou correspondente parece obter Cortázar com sua visão singular dos observatórios de Jai Singh, explorando a materialidade de suas formas, seus traçados, seus grafismos, suas texturas até o limite da abstração, construindo a partir deles uma paisagem geométrica e onírica como um sonho da razão;

um mundo de brechas que é a um só tempo um campo de feridas expostas em cortes, musgo e rachaduras;

233 e a promessa da utopia a se anunciar num limiar.

É percurso por este território recém descoberto o que se imprime nas formas abstratas delineadas nas fotografias de Cortázar, a lembrar certa fantasia cartográfica de

Klee, que lê um quadro como quem passeia por seus traçados e habita seu utópico mundo, nele experimentando dores e alegrias, revivendo memórias e projetando esperanças:

Seguindo o traçado de um plano topográfico, façamos uma pequena viagem à terra do melhor conhecimento. Transpondo o ponto morto, encontra-se o primeiro ato de movimento (linha). Depois de pouco tempo, uma parada para tomar fôlego (linha interrompida ou, no caso de uma parada que se repete, linha dividida). uma olhada para trás, percebendo o quanto já percorremos (movimento contrário). No espírito, avaliar o caminho para lá e para cá (feixe de linhas). um rio tenta impedir o nosso avanço e usamos um bote (movimento ondulado). Mais acima no rio haveria uma ponte (série de arcos). // Do outro lado encontramos alguém que tem o mesmo propósito, que pretende ir para o lugar onde se pode encontrar o maior conhecimento. a princípio unidos pela alegria do encontro (convergência), gradativamente vão surgindo diferenças (orientação independente de duas linhas). Certa agitação das duas partes (expressão, dinâmica e psiquê da linha). Atravessamos um campo não cultivado (plano cruzado por linhas), depois uma floresta densa. Ele se perde, procura o caminho e descreve então o clássico movimento do cachorro correndo. // Também já não estou totalmente sereno: na região de um novo rio há neblina (elemento espacial). Logo volta a ficar claro em torno. // Carregadores de cestos voltam para casa com sua carroça (a roda). Entre eles, uma criança com cabelos cacheados (movimento em espiral). Mais tarde a atmosfera fica carregada e escura (elemento espacial). Um raio no horizonte (linha em 234

ziguezague). Sobre nós, ainda restam estrelas (reunião de pontos). // Logo chegamos ao nosso primeiro pouso. Antes de adormecermos, algumas coisas ressurgirão como lembranças, já que uma pequena viagem como essa é carregada de muitas impressões. // As mais diversas linhas. Manchas. Pontinhos. Planos pontilhados, riscados. Movimento travado, dividido. Movimento contrário. Entrelaçamento, teia. Traçados de muros, traçados de escamas. Unissonância. Polifonia. Linha que se perde, linha que se intensifica (dinâmica). // A alegre simetria da primeira parte do caminho, depois os entraves, o nervosismo! O temor contido, o alívio do ar cheio de esperanças sendo aspirado. Antes da tempestade, o ataque dos moscardos! A fúria, a matança. // As coisas boas como guias, mesmo na escuridão da floresta densa e durante o crepúsculo. O raio recordava aquela febre que ia aumentando. Uma criança doente... no passado. 232

Este percurso do traçado da imagem como conquista de um novo território é encenado por Cortázar num pequeno texto escrito para acompanhar uma série de pinturas de Pierre Alechinsky. Intitulado “País llamado Alechinsky”, o texto é narrado pelo ponto de vista de formigas, que passeiam pelos quadros do artista belga, conhecendo-os não pela perspectiva de um mero espectador, do apreciador de arte, mas como alguém que pudesse visitá-los, percorrer seus caminhos e descobrir seus segredos, habitá-los como na fantasia de Klee. Para as formiguinhas, este “País Alechinsky” é um território utópico descoberto e feito lar:

los hombres poseen catálogos de eses territorios, pero el nuestro es un atlas de páginas dispersas que al mismo tiempo describen y son nuestro mundo elegido; y de eso hablamos aquí, de portulanos vertiginosos y de brújulas de tinta, de citas con el color en las encrucijadas de la línea, de encuentros pavorosos y alegríssimos, de juegos infinitos. (...) Entrar en nuestras ciudadelas nocturnas dejó de ser la visita en grupo que un guía comenta y estropea; ahora eran nuestras, ahora vivíamos en ellas, nos amábamos en sus aposentos y bebíamos el hidromel de la luna en las terrazas habitadas por una muchedumbre tan afanosa y espasmódica como nosotras, figurillas y monstruos y animales enredados en la misma ocupación de territorio y que nos aceptaban sin recelo como si fuéramos hormigas pintadas, el dibujo moviente de la tinta en liberdad. 233

232 Paul Klee. Confissão criadora, in: ---. Sobre a arte moderna e outros ensaios , 2001, pp. 43-5. 233 Julio Cortázar. País llamado Alechinsky. In: ---, Territorios , 1998, p. 12. 235

Experiência semelhante à das formigas Cortázar repetirá, desta vez num plano autobiográfico, em Buenos Aires Buenos Aires , livro de fotografias da cidade no cotidiano de suas ruas e moradores feitas por Alicia D’Amico e Sara Facio, e acompanhadas por um texto do escritor, que parece experimentar um reencontro espiritual com a cidade de sua juventude ao ver suas fotografias e, como ele próprio escreve, passear por elas: “la extrañeza y la ternura ahora que vuelve a andar en estas imagens que pasan por sus dedos” 234 .

Este modo íntimo de conhecer uma imagem, verdadeiramente penetrando-a e tornando-se parte dela (as formiguinhas sabem que Alechinsky as vê sobre suas telas, pondo-se a rir “porque alguna carrera irreflexiva está alterando el ritmo del dibujo o introduce el escándalo en una constelación de signos”) é também um modo de transformá-las, de transformar-se a si mesmo e de transformar o mundo em que vivemos, ou ao menos a maneira como o vemos. É de fato um novo território que se abre nas imagens que nos convidam a penetrá-las, num contato que para nós, que só as podemos observar penduradas nas paredes ou impressas nas páginas de um catálogo, estará sempre em suspenso, como promessa de deslizante utopia, de esquiva redenção.

Neste sentido, Prosa del observatorio , máquina do mundo em forma de livro, é um atlas ilustrado da utopia, registro de uma cartografia de caleidoscópio, que aos fragmentos, com linhas e formas e volumes das ruínas dos instrumentos astronômicos de

Jai Singh, vai desenhando a imagem de um mundo que é produto de um olhar renovado sobre as coisas. Olhar que percebe e celebra cisões, vazios, brechas a desvendar um mais além que a nós mesmos cinde, revelando nossas próprias feridas, vazios que com as

234 Julio Cortázar. Buenos Aires Buenos Aires , 1968, p. 23. 236 imagens compartilhamos e que elas nos revelam. Vazios que as abrem para alterações de si mesmas e para relações com outras imagens, base de uma virtual transformação do real.

Esta a proposta do livro de Cortázar: jogo alterador e reordenador do real que joga com suas formas, num ritmo aurático que (relembrando Bataille lido por Didi-Huberman) nos dá uma “visão do mais distante” que “nos perde e nos transfigura”, enviando-nos ao utópico, mas ao mesmo tempo “nos faz tocar com o dedo nossa própria relação contemporânea com as formas” 235 , reenviando-nos à realidade presente que nos circunda, pondo em contato e em dialética tensão estes dois contextos, estes dois mundos que na imagem estão em suspensão, pois isso mesmo será a imagem neste sentido: lugar de uma reordenação utópica do real por meio de um jogo com suas formas. Esta a noção de utopia para Cortázar, já o sabemos: não fuga, mas permanência e trabalho sobre a realidade, transfigurada em imagem.

Projeto que, como já vimos, estava exposto em Rayuela , na morelliana idéia de um livro caleidoscópico, composto por fragmentos de mundo aparentemente desarticulados cuja acumulação pudesse vir a se cristalizar, diante do leitor, na imagem de uma realidade total. 236 Deste ideal Prosa del observatorio parece ser uma tentativa de concretização: ensaio sobre um novo modo de ver que se arrisca em novas e múltiplas perspectivas, a obra apresenta a seus leitores um cosmos efetivamente caleidoscópico – mosaico cambiável a se transformar conforme se propõem diferentes relações entre os fragmentos que o constituem – que põe em questão os princípios, os valores e os parâmetros que tradicionalmente definem o real.

235 A citação integral e sua referência encontram-se na página 138. 236 Julio Cortázar. Rayuela , 1996, p. 387. 237

Funda-se assim em Prosa del observatorio um mundo novo como território utópico, virtualmente construído a partir de fragmentos reordenados do mundo conhecido, para cuja compreensão não parece haver melhor paralelo do que a estética cubista, cujo trabalho segue na mesma direção. Segundo Suzanne Bernard, “os cubistas não visam a uma ignorância, mas a uma reorganização da realidade”237 . Com efeito, a arte cubista é operação do olhar sobre as formas – decompostas, alteradas, transformadas em jogos de perspectiva, dissociadas de seu meio próprio e postas em relações inusitadas a partir destas deformações que são autênticas operações do informe batailliano, cuja potencialidade subversiva confere aos seres e objetos dela investidos “o poder de atravessar os reinos, os gêneros e toda sorte de ‘ordem’ que pressupõe uma designação de identidade” 238 , como explica Didi-Huberman.

Como observamos no primeiro capítulo desta Tese, esta virtualidade de

“passagem” conferida às formas pelo informe é um fenômeno crucial para vários textos ficcionais de Cortázar, dentre os quais caberia ressaltar como exemplos especialmente emblemáticos “Axolotl” e “No se culpe a nadie”. É porém em Prosa del observatorio , obra híbrida em que se conjugam o plástico e o poético numa operação de imagem por excelência, que este trabalho do informe engendrado pelo olhar e pela escritura de

Cortázar adquire contornos mais próximos ao Cubismo.

A princípio, é nas fotografias que compõem o livro que esta relação se faz notar.

Há em muitas delas um jogo de perspectivas, uma construção de planos e uma organização gráfica que lembram quadros cubistas, efeito obtido não necessária ou

237 « Les cubistes visent non à une ignorance, mais à une réorganization de la réalité. » Suzanne Bernard. Le poème en prose de Baudelaire jusqu’à nos jours , 1994, p. 626. (Tradução nossa) 238 « Si les formes ont le pouvoir de l’informe (...), c’est qu’elles ont le pouvoir de traverser les règnes, les genres et toutes les sortes d’‘ordres’ supposant une assignation d’identité. » Georges Didi-Huberman. La ressemblance informe ou le gai savoir visuel selon Georges Bataille, 2003, p. 199. 238 exclusivamente pelo esforço fotográfico de Cortázar (ou pelos retoques, cortes e montagens feitos sobre as fotos posteriormente, em laboratório), sendo certamente já facilitado pela própria arquitetura dos observatórios de Jai Singh, a que em 1935

Penelope Chetwode se referira como “o paraíso de um Cubista Precoce” 239 . As fotografias de Prosa del observatorio parecem corroborar esta percepção, criando um panorama cubista como cenário para a máquina do mundo poética de Cortázar, cuja construção segue esta mesma linha estética, como já veremos.

Para além do jogo de perspectivas, nota-se nesta imagem aquele que Klee considerava o traço essencial do pensamento cubista da forma: uma “redução de todas as proporções, levando a projeções de formas primitivas como o triângulo, o quadrado e o círculo” 240 .

Este retorno ao geométrico, recordação dos contornos mínimos das formas, de seus elementos básicos (algo que, como vimos, Mallarmé ensaiava em seus poemas, decompondo objetos e paisagens para dá-los a ver com um olhar novo e lançá-los a um

239 A expressão está no título de um artigo publicado pela autora em The Architectural Review : “Delhi Observatory, the paradise of an Early Cubist”, como comenta Barry Perlus em “Architecture in the service of science. The astronomical observatories of Jai Singh II”, in: www. jantarmantar.org. Consultado em 24/05/2006. 240 Paul Klee. “A exposição da Moderne Bund na Kunsthaus de Zurique”, in: ---. Sobre a arte moderna e outros ensaios , 2001, p. 72. 239 turbilhão de transformações 241 ) é a um só tempo vontade de desconstrução e impulso construtivista. Fragmentando os instrumentos astronômicos de Jai Singh, ressaltando suas partes a ponto de já não ser possível deduzir o que seria o todo;

enfocando-os desde perspectivas estranhas, tomando ângulos a partir dos quais aparecem sobrepostas partes de aparelhos distintos para criar planos inconcebíveis;

241 Cf. p. 203. 240 tornando muitas vezes impossível identificá-los como objetos, determinar sua função, ou mesmo reconhecê-los como construção humana, Cortázar desconstrói os observatórios de

Jaipur e Delhi. Por outro lado, no entanto, constrói a partir de seus fragmentos um cenário

único, viável apenas como imagem: um mundo virtual efetivamente novo que é, contudo

(e nós o sabemos, se ainda acreditamos naquele barthesiano noema da fotografia: “isso foi” 242 ) criado por meio de uma reorganização das formas do mundo real operada pelo olhar. (Trata-se, é claro, de um olhar maquínico, que, como Benjamin já bem percebera, dispõe de uma série de recursos suplementares, sendo capaz de revelar o “inconsciente

ótico”, campo inacessível ao olhar comum que nem por isso se deverá, porém, considerar irreal.)

Na paisagem das fotografias de Prosa del observatorio estão postas em contato, portanto, a realidade como a conhecemos e sua transformação, o presente e a utopia.

Imagens auráticas, elas atuam como aquele relâmpago benjaminiano gerador de uma constelação; “relámpagos de mármol de las máquinas de Jai Singh” ( PO , p.11), articulam em tensão temporalidades e espacialidades diversas; são uma manifestação visual da “dialética em suspensão”.

Esta reordenação do real por meio de sua transfiguração em imagem é também o movimento do texto que compõe Prosa del observatorio , poema em prosa em que se percebe a transposição para a escritura de uma série de princípios estéticos cubistas, a começar pelo processo dialético de desconstrução e reconstrução que vínhamos observando nas fotografias do volume. No trabalho poético de Cortázar, porém, esta operação será levada ainda mais adiante, derivando em outros fenômenos também caros ao Cubismo, tais como a representação de objetos em processo de mutabilidade e

242 Roland Barthes. A câmara clara, 2004, p. 42. 241 transformação, a dissociação e o reagrupamento de elementos, a síntese de aspectos sucessivos do real ou a aproximação de ações distantes e desconexas, e, a partir deste jogo de correspondências levado ao extremo, antiga operação mágica que se faz trabalho estético, a diluição de fronteiras rígidas entre reinos, gêneros, estados, campos de significação – efeito do trabalho do informe por excelência.

Assim como as fotografias de Cortázar se esforçavam por ressaltar elementos mínimos das construções de Jai Singh para, a partir daí, liberar os instrumentos de sua identidade e de sua função, tornando-os formas livres nas quais pudesse atuar o informe, também seu trabalho poético parece se iniciar, um tanto na esteira de Mallarmé, por uma busca de signos simples, palavras-chave, imagens essenciais em torno das quais se desenvolve o texto, num sistema de analogia, por meio de uma multiplicidade de associações que vão criando uma trama e delimitando um campo poético.

Assim se cria Prosa del observatorio , num procedimento de construção cuja melhor descrição será mesmo aquela metáfora que o próprio Cortázar (na pele de

Morelli) nos expõe em Rayuela : a transposição do real para um caleidoscópio que, como um observatório, desse a ver uma imago mundis como figura na qual estivessem ordenados – mas não subsumidos – o caótico, o acidental, o aleatório e o vário do mundo, que na experiência direta da realidade escapam a nossa percepção e a nossa compreensão.

Então, como quem começa a montar um caleidoscópio, Cortázar recolhe fragmentos do mundo e de sua experiência: de uma viagem à Índia traz estrelas, observatórios, sultão do século XVIII; numa reportagem de jornal pesca enguias e ictiólogos.

Serão estas as imagens fundamentais – e fundadoras – do texto e da máquina/imagem do mundo que nele se constrói. Como tais, enguias e estrelas 242 demonstrarão ser mais do que meras figuras a compor aleatoriamente seu cenário, incorporando também o sentido do trabalho de sua composição e sendo deste trabalho uma espécie de metáfora visual, atuando, assim, como eixos de uma estratégia meta- reflexiva muito semelhante àquela que já analisamos em relação às fotografias dos observatórios de Jai Singh, que expressavam visualmente a gestualidade da “imagem dialética”.

Ilustrando também uma certa teoria do trabalho da imagem como este se cumpre não apenas neste livro, mas, queremos crer, na obra de Cortázar como um todo, as enguias de Prosa del observatorio representam, por sua estrutura corpórea e por seu curso de desenvolvimento, um traço essencial da imagem poética. Peixe “fusiforme”, como dirá Cortázar, apenas uma linha, estrutura elementar, a enguia é paradigma da forma que pode se transmutar em qualquer outra, como se fora uma manifestação natural do “informe” – potencialidade que parece mesmo confirmar-se ao longo de seu ciclo de vida, caracterizado por uma série de metamorfoses que se completam na fase da enguia prateada, quando os peixes parecem a Cortázar “espejos fusiformes que se replican y desdoblan en una lenta danza” ( PO , p.31): metáfora que bem poderia ser a descrição de uma imagem – falso espelho que reduplica e desdobra o real, pondo-o em movimento, numa dança que é também representação concreta e visual do infinito e da continuidade, recordando a figura do anel de Moebius tão presente em Prosa del observatorio , repetindo sua dinâmica de lados paralelos que se revelam o mesmo – dobrando-se e desdobrando-se , num jogo infinito como o dos reflexos cruzados de espelhos opostos.

Jogo que é também o da imagem em seu estatuto aurático, com sua gestualidade dialética entre o infinito e a reflexão. 243

Esta tensão de uma forma que comporta o infinito em si mesma ou o representa em seus limites inscrevendo-o no finito – potencialidade de imagem – se faz notar também no signo do céu estrelado, em que se encontra, possivelmente, sua expressão mais clássica. Investindo nesta relação recorrente, para a qual acredita haver uma motivação conceitual, Jean-Luc Nancy postula uma “essência celeste” da imagem, de que deriva a concepção da imagem como um céu que vem-se manifestar na terra e adquire um estatuto terreno (reflexão que, como se verá, segue um percurso semelhante àquele sugerido por Benjamin e desenvolvido por Didi-Huberman com relação à “imagem dialética” que temos visto até aqui).

A imagem vem do céu: ela não baixa daí, ela procede daí, ela é de essência celeste e ela contém o céu em si. Toda imagem tem seu céu (...). A imagem é assim seu próprio céu, ou o céu desprendido para si mesmo, vindo com toda sua força ocupar o horizonte mas também arrebatá-lo, erguê-lo ou abri-lo, conduzi-lo à potência infinita. A imagem que o contém extravasa e se derrama nele, como as ressonâncias de um acorde, como o halo de uma pintura. Não há para tanto necessidade de um lugar ou uso consagrado, nem de uma aura mágica conferida à imagem. (Poder-se-ia dizer também: a imagem que é seu próprio céu é o céu sobre a terra e como terra – ou a instauração do céu na terra (ou seja, novamente, um mundo), e é por isso que a imagem é necessariamente não-religiosa, pois ela não religa a terra ao céu, mas extrai este daquela. (...)) 243

A imagem se revela, assim, por definição , ato de desastre e desejo, céu que se desprende para si mesmo e irrompe na terra, criando um novo mundo: cosmogonia que vimos encenar-se em Prosa del observatorio , na astronomia erótica e revolucionária de

Jai Singh, base mítica da máquina do mundo que se funda no livro de Cortázar, e que

243 « L’image vient du ciel: elle n’en descend pas, elle en procède, elle est d’essence céleste et elle contient le ciel en elle. Toute image a son ciel (...). L’image est ainsi son propre ciel, ou le ciel détaché pour lui- même, venant avec toute sa force remplir l’horizon mais aussi l’enlever, le soulever ou le trouer, le porter à la puissance infinie. L’image qui le contient déborde et se répand en lui, comme les résonances d’un accord, comme le halo d’une peinture. il n’y a pour cela besoin d’aucun lieu ni emploi consacré, ni d’aucune aura magique conférée à l’image. (On pourrait dire aussi: l’image qui est son propre ciel est le ciel sur la terre et comme terre – ou l’ouverture du ciel dans la terre (c’est-à-dire, à nouveau, un monde), et c’est pourquoi l’image est nécessairement non religieuse, car elle ne relie pas la terre au ciel mais elle tire celui-ci de celle-là. (...)) »Jean-Luc Nancy. Au fond des images , 2003, p. 20. (Tradução nossa) 244 agora podemos definitivamente reconhecer como um mito de origem da imagem e como uma alegoria de seu trabalho não-religioso, mas utópico.

Este surgimento da imagem como fundação de um novo cosmos que é conseqüência do desastre poderia ser considerado um momento autêntico de origem, no sentido benjaminiano do termo: “algo que emerge do vir-a-ser e da extinção” e “se localiza no fluxo do vir-a-ser como um torvelinho” 244 . Assim irrompe a imagem, nova ordem cósmica que instaura a desordem na estrutura vigente, como elemento crítico e transformador – “relâmpago para formar uma constelação”: signo de atração, associação e aglutinamento que estará ligado ao conceito do aurático no imaginário benjaminiano.

Como lembra Didi-Huberman, numa passagem já citada em nosso primeiro capítulo que convirá retomar, uma das definições benjaminianas da aura de um objeto é “o conjunto das imagens que (...) tendem a se agrupar em torno dele” 245 . Desenvolvendo o apontamento de Benjamin, o teórico francês deduz que

Aurático, em conseqüência, seria o objeto cuja aparição desdobra, para além de sua própria visibilidade, o que devemos denominar suas imagens, suas imagens em constelações ou em nuvens, que se impõem a nós como outras tantas figuras associadas, que surgem, se aproximam e se afastam para poetizar, trabalhar, abrir tanto seu aspecto quanto sua significação, para fazer delas uma obra do inconsciente. 246

A constelação seria, portanto, uma espécie de figura arquetípica da imagem aurática, referência visual de seu modelo estrutural de organização, de sua potencialidade de conexão e associação de elementos numa ordem aberta, não-coercitiva e não- hierarquizada.

244 Walter Benjamin. Origem do drama barroco alemão , 1984, p. 67. A passagem completa encontra-se citada na página 148. 245 Walter Benjamin apud Georges Didi-Huberman. O que vemos, o que nos olha , 1998, p. 149. 246 Georges Didi-Huberman, Idem, p. 149. 245

Imagens meta-reflexivas, inseridas no contexto de um livro que é observatório a se observar (filosofia crítica da “imagem dialética” ilustrada nas fotografias que compõem o volume), enguias e estrelas enunciam, imageticamente , uma poética da imagem, que será o eixo condutor de Prosa del observatorio : “sistema de imagens” que se articula segundo o que poderíamos considerar um “princípio-enguia” de mutabilidade e transformação, e um “princípio-estrela” de associação. Cria-se assim uma representação essencialmente poética do mundo (neste livro em que a mímesis se quer exercício de reflexão crítica e intervenção sobre a matéria do real que é seu objeto) que toma a direção analógica tão prezada por Cortázar como sua orientação fundamental, conforme já demonstra o signo do anel de Moebius sob o qual se inscreve Prosa del observatorio :

tan simplemente anillo de Moebius y de anguilas y de máquinas de mármol, esto que fluye ya en una palabra desatinada, desarrimada, que busca por sí misma, que también se pone en marcha desde sargazos de tiempo y semánticas aleatorias, la migración de un verbo: discurso, decurso, las anguilas atlánticas y las palabras anguilas, los relámpagos de mármol de las máquinas de Jai Singh, el que mira los astros y las anguilas, el anillo de Moebius circulando en sí mismo, en el océano, en Jaipur, cumpliéndose otra vez sin otras veces, siendo como lo es el mármol, como lo es la anguila. (PO , pp.11)

À palavra caberá instaurar este campo poético que, como vimos, não é o utópico em si mesmo, mas seu projeto, sua construção, sua busca – “posta em marcha” por uma escritura que, como a recordar aquela ascendência mágica da linguagem – a que “a clarividência confiou as suas antigas forças, no correr da história”, como nos apontava

Benjamin 247 –, desafia a instrumentalidade de que se reveste a palavra em seu emprego comum para fazer dela matéria-prima de imagem, meio de metamorfoses e correspondências poéticas. Todo o texto de Cortázar é um esforço para superar este estatuto instrumental imposto ao verbo pelo uso cotidiano e por um certo discurso

247 A citação completa e sua referência encontram-se na página 141. 246 científico limitado e redutor 248 , que, prezando a clareza e a univocidade, castrariam a potencialidade de alteridade e de transformação que a linguagem teria sobre si mesma e sobre uma realidade que ela poderia não apenas traduzir, mas criar.

Tanto em seu uso comum como no discurso científico, a linguagem não tem valor em si mesma, não pensa a si mesma, é mero veículo para transmissão de um conteúdo que lhe é alheio. Como enuncia Barthes em “Da ciência à literatura”,

Para a ciência, a linguagem não passa de um instrumento, que se quer tornar tão transparente, tão neutro quanto possível, submetido à matéria que científica (...) que, ao que se diz, existe fora dela e a precede: há por um lado e primeiro os conteúdos da mensagem científica, que são tudo; por outro lado e, depois, a forma verbal encarregada de exprimir esses conteúdos, que não é nada. 249

Para Cortázar, a questão vai ainda além: a ciência tradicional não apenas neutraliza a linguagem como ainda se utiliza dela para domesticar a realidade, para controlar, nomeando-o, o que nela existe de inexplicável, fantástico ou desafiador, como se denuncia em diversos momentos de Prosa del observatorio :

Bella es la ciencia, dulces las palabras que siguen el decurso de las angulas y nos explican su saga, bellas y dulces e hipnóticas como las terrazas plateadas de Jaipur donde un astrónomo manejó en su día un vocabulário igualmente bello y dulce para conjurar lo inominable y verterlo en pergaminos tranquilizadores, herencia para la especie, lección de escuela, barbitúrico de insomnios esenciales ( PO , p.27)

También la señorita Callamand y el profesor Fontaine ahincan las teorías de nombres y de fases, embalsaman las anguilas en una nomenclatura, una genética, un proceso neuro-endocrino, del amarillo al plateado, de los estanques a los estuarios, y las estrellas huyen de los ojos de Jai Singh como las anguilas de las palabras de la ciencia ( PO , pp.39-41)

Invertendo a dinâmica desta imagem – o movimento das enguias escorregadias que escapam ao discurso da ciência que as quer embalsamar –, Cortázar vai investir suas

248 É importante frisar que nos referimos aqui à ciência tradicional, de influência positivista, baseada em princípios de certeza e objetividade, diferença e hierarquia. 249 Roland Barthes. “Da ciência à literatura”, in:---. O rumor da língua , 2004, pp. 4-5. 247 palavras com o poder de mobilidade, com a vontade de busca e transformação das enguias, criando “palavras enguias”, verbo em migração, no esforço de uma causa que por meio dele mesmo começa a se realizar, como discurso que vai agenciando os mais diversos elementos numa cadeia de metamorfoses e conexões que se estende ao infinito do anel de Moebius, como aquelas postuladas pelos primeiros românticos alemães:

las anguilas atlánticas y las palabras anguilas, los relámpagos de mármol de las máquinas de Jai Singh, el que mira los astros y las anguilas, el anillo de Moebius circulando en sí mismo, en el océano, en Jaipur, cumpliéndose otra vez sin otras veces, siendo como lo es el mármol, como lo es la anguila. (PO , pp.11)

Assim construído, guiado por um impulso que lembra o mallarmaico desejo de

“deixar a iniciativa às palavras” 250 , o texto de Cortázar se revela prática de uma escritura barthesiana, pondo em cena uma linguagem performática, que não mais serve à mera divulgação de conceitos ou à comunicação imediata, mas representa gestualidades formuladas verbalmente como imagens, num ensaio de dramatização verbal da realidade.

Transformação do estatuto da linguagem que parece especialmente bem descrita num comentário de Didi-Huberman sobre a Psicanálise de Pierre Fédida:

a palavra saía de seu puro estado ‘enunciativo’ para se tornar algo como um gesto que mobiliza todo o corpo, um gesto de ar criador de significados e significantes, mas também de fluxo, de intensidades, de suspense, de atmosferas, de eventos impalpáveis e no entanto bem encarnados. 251

Fazer-se gesto, incorporar ritmo, pôr-se em movimento é utopia anunciada da linguagem em Prosa del observatorio ; trabalho poético de palavras que, mobilizadas em imagem, não querem apenas dizer estrelas, enguias e observatórios, mas ser estes

250 « laisser l’initiative aux mots » Stéphane Mallarmé apud Suzanne Bernard. Le poème en prose de Baudelaire jusqu’à nos jours , 1994, p. 630. 251 « la parole sortait de son pure état ‘énonciatif’ pour devenir quelque chose comme un geste engageant tout le corps, un geste d’air créateur de signifiés et de signifiants, mais aussi de flux, d’itensités, de suspens, d’atmosphères, d’évenements impalpables et cependant bien incarnés. » Georges Didi-Huberman. Gestes d’air et de pierre . Corps, parole, souffle, image, 2005, p. 21. (Tradução nossa) 248 mesmos astros e peixes e máquinas que dizem, e fazer-se ponte entre eles, unindo-os, vários e dessemelhantes, mas associando-se uns aos outros numa só imagem total, segundo o paradigma de uma constelação.

Modelo de uma ordem perfeita do mundo, de um idealizado concerto universal, cujo sentido o Jai Singh feito personagem de Cortázar teria tentado decifrar estudando os astros, movido por um desejo cósmico que Cortázar aproxima à ambição poética de

Baudelaire, o poeta das correspondências: “Todo se responde, pensaron con un siglo de intervalo Jai Singh y Baudelaire, desde el mirador de la más alta torre del observatorio el sultán debió buscar el sistema, la red cifrada que le diera las claves del contacto” ( PO , p.19). Semelhante busca parece ser o que impulsiona Cortázar a compor sua Prosa del observatorio , tentativa um tanto romântica de compreensão de uma lógica do mundo que se perdeu com a separação do sagrado (que não se distingue, a bem da verdade, de sua instituição), e que a poesia almeja reescrever usando um novo código, redescobrindo as

“claves del contacto” e fazendo destas inscrições do analógico princípios de um sistema de imagens, que irá, no entanto, cifrá-las novamente.

Sob a orientação das correspondências vai-se criando o campo de imagens de

Prosa del observatorio : constelação desastrada que se faz imagem; mosaico de caleidoscópio feito de estrelas, enguias, ictiólogos, instrumentos astronômicos, sultão indiano. Elementos de base aos quais outros vão-se associando aos poucos. Da vivência literária e filosófica do escritor, vêm Baudelaire, Novalis, Hölderlin, Thomas Mann,

Lukács, Nietzsche, Marx; de seu “museu imaginário” vem Remédios Varo; e chegam outros fragmentos mais esparsos: palavras descobertas na enciclopédia, memórias pessoais, memórias históricas, mitos, as ruas e outros lugares de muitas cidades. O 249 mosaico vai tomando forma em aproximações e correspondências, múltiplas relações que a todo momento alteram sua ordem, como fundo de um caleidoscópio a girar que encontra sua tradução discursiva na forma já em si mesma significativa do poema em prosa – gênero apto, desde suas origens baudelairianas, a comportar a experiência fragmentária, múltipla e cambiante de uma realidade em constante transformação.

É um cenário cubista, como os que se formam nos papier collés de Picasso e

Braque, que vai-se elaborando discursivamente no poema em prosa de Cortázar, em imagens fragmentárias que se reconhecem como tais, e que se abrem umas às outras, estabelecendo inusitadas relações, a partir das quais vão-se combinando, entremeando-se e interpenetrando-se diferentes formas e planos da realidade e sua representação, criando- se um campo em que se dissolvem as rígidas distinções entre o concreto e o abstrato, a realidade e a linguagem, as palavras e as coisas, a ciência e a arte, o elevado e o baixo, o céu e o mar, o fluido e o sólido, as temporalidades e os espaços mais diversos:

las anguilas, por ejemplo, la región de los sargazos, las anguilas y también las máquinas de mármol, la noche de Jai Singh bebiendo un flujo de estrellas, los observatorios bajo la luna de Jaipur y de Delhi, la negra cinta de las migraciones, las anguilas en plena calle o en la platea de un teatro, dándose para el que las sigue desde las máquinas de mármol, ese que ya no mira el reloj en la noche de París; ( PO , p.9)

Um exercício de montagem vai sendo simultaneamente descrito e criado neste trecho do texto de Cortázar, em que temos de início fragmentos de mundo desassociados de seus contextos próprios que pouco a pouco vão sendo associados a outros fragmentos também lançados neste campo de imagens que a partir destas imagens mesmas começa a se instituir. Assim, as enguias encontram instrumentos astronômicos e estrelas (“princípio estrela” de associação), e logo estão na rua ou no teatro (“princípio enguia” de transposição), porque presentes na imaginação de um autor que de Paris cria este mosaico textual, relacionando-as também aos observatórios de Jai Singh, que logo já não 250 contemplará apenas estrelas, mas astros e peixes. Vai-se construindo assim um cenário cósmico, em que logo tudo estará ligado – o oceano das enguias, o céu estrelado e o marinheiro que o observa; a dimensão mítica e o cotidiano humano, as imagens e o real:

los cuerpos ligados en la ya serpiente multiforme que alguna noche cuya hora nadie puede saber ascenderá leviatán, surgirá kraken inofensivo y pavoroso para iniciar la migración a ras de océano mientras la otra galaxia desnuda su bisutería para el marino de guardia que a través del gollete de una botella de ron o de cerveza entrevé su indiferente monotonía y maldice a cada trado un destino de singladuras, un salario de hambre, una mujer que estará haciendo el amor con algún otro en los puertos de la vida. ( PO , p.15)

De início, este cenário cósmico se constrói por meio de elos lógicos, dando atenção à coerência da seqüência de imagens, como se percebe neste fragmento.

Conforme vai-se desenvolvendo o texto, porém, estes elos vão sendo suprimidos, substituídos por superposições e transposições de planos, por procedimentos de montagem que se afastam cada vez mais da linearidade tradicional, criando-se um fluxo verbal que vai costurando e entremeando imagens; tecendo-se uma trama de associações em que fronteiras se dissolvem e os mais inusitados cruzamentos se fazem possíveis.

Esta dinâmica discursiva irá exigir, como na poesia de Rimbaud – nova expressão de uma realidade poeticamente concebida a exigir uma forma capaz de comportá-la –, a elaboração de uma estrutura textual particular. No caso de Prosa del observatorio , um poema em prosa extraordinariamente longo, 252 construído como um fluxo textual contínuo em que se vão acoplando imagens, temas, discursos distintos: artifício formal que, por um lado, cria uma sensação de continuidade entre estes vários elementos, sem, no entanto, elidir sua diferença e a distância que os separa fora do texto; enfatizando, na

252 Em sua tentativa de definir o poema em prosa como forma, Suzanne Bernard aponta a brevidade como uma de suas características fundamentais. (Suzanne Bernard. Le poème en prose de Baudelaire jusqu’à nos jours , 1994, p. 15) Ainda que não admitamos este critério como regra absoluta, cumpre observar que em sua imensa maioria poemas em prosa são composições breves, muito menos extensas do que Prosa del observatorio . 251 verdade, esta diferença e esta distância no momento mesmo em que as põe em questão, e ressaltando, assim, o trabalho de fragmentação, deslocamento e reordenação operado pela poética de Cortázar, cuja realização discursiva tem em Prosa del observatorio diversos exemplos.

Trata-se, em alguns casos, de uma superposição de planos produzida por uma transposição de expressões, conforme ocorre em construções como “así la galaxia negra corre en la noche como la otra dorada allá arriba en la noche corre inmóvilmente” ( PO , p. 15 – grifo nosso), autêntico anel de Moebius discursivo envolvendo enguias e estrelas como fazia às formiguinhas de Escher; ou na caracterização do mar de sargaços como

“una constellación ondulante de sargazos” ( PO , pp.31-3 – grifo nosso). Num processo um pouco diferente, ocorre por vezes a superposição não de dois planos distintos, mas de dois aspectos de visão num mesmo plano, como na descrição da subida das enguias para os rios europeus como uma cópula erótica:

llega el día en que las angulas se han adentrado en lo más hondo de su cópula hidrográfica, espermatozoides planetarios ya en el huevo de las altas lagunas, de los estanques donde sueñan y se reposan los ríos, y los tortuosos falos de la noche vital se acalman, se acaman, las columnas negras pierden su flexible erección de avance y búsqueda, los individuos nacen a sí mismos (PO, pp.27-9 – grifos nossos) ou nesta descrição do espaço marinho em que se misturam o factual e o figurativo: “las larvas diminutas y aceitadas, ‘Anguilla anguilla’, perforan lentamente el muro verde, un calidoscópio gigantesco las combina entre cristales y medusas y bruscas sombras de escualos o cetáceos” ( PO , p.17).

Outro procedimento diz respeito à articulação de campos ou níveis diversos de discurso, ainda no que concerne à abordagem de um mesmo cenário ou de um mesmo evento. Podem-se mesclar, assim, uma paisagem real e uma paisagem imaginária, ou, no 252 caso deste trecho de Prosa del observatorio, uma paisagem real (localizada com dados científicos) e uma paisagem literária:

Johannes Schmidt, danés, supo que en las terrazas de un Elsinor moviente, entre los 22 y los 30 grados de latitud norte y entre los 48 y los 65 grados de longitud oeste , el recurrente súcubo del mar de los sargazos era más que el fantasma de un rey envenenado y que allí, inseminadas al término de un ciclo de lentas mutaciones, las anguillas que tantos años vivieron al borde de los filos del agua vuelven a sumergirse en la tiniebla de cuatrocientos metros de profundidad, ocultas por medio kilómetro de lenta espesura silenciosa ponen sus huevos y se disuelven en una muerte por millones de millones ( PO, pp.15-7 – grifo nosso)

Suzanne Bernard considera esta estratégia de superposição poética especialmente importante em seu estudo sobre o poema em prosa, pois a partir dela seria possível perceber um dado estrutural relevante deste gênero: uma certa polifonia , como explica a pesquisadora: o que é importante notar é a importância estrutural do procedimento: o poema não é escrito linearmente, mas, por assim dizer, “polifonicamente”: há nele uma dimensão a mais. 253 Haveria, portanto, uma espécie de polifonia intrínseca ao poema em prosa, talvez correspondente – ou derivada – de sua condição híbrida de prosa e poesia, e revelada numa dinâmica de vai-e-vem do real à imagem e da imagem ao real que

Suzanne Bernard aí percebe – movimento anadiômeno que, como já vimos, se insinua na

“imagem dialética” e, logo veremos, na estrutura de Prosa del observatorio como um todo, num ir da realidade à utopia e da utopia à realidade.

Para além desta questão de uma polifonia formal intrínseca, porém, o fragmento do texto de Cortázar citado acima parece apresentar uma polifonia de fato, como articulação de duas vozes distintas e, até certo ponto, reconhecíveis: a do ictiólogo dinamarquês Johannes Schmidt (como personagem de Cortázar, imagem de seu texto, é

253 « ce qu’il faut noter, c’est l’importance structurale du procédé: le poème est écrit non pas linéairement, mais pour ainsi dire ‘poliphoniquement’: il y a une dimension de plus » Suzanne Bernard. Opus cit, p. 642. (Tradução nossa) 253 preciso lembrar) e a do autor implícito, que insere no texto a referência literária do

Hamlet de Shakespeare, certamente lembrado por associação com a nacionalidade do pesquisador. Há, portanto, efetivamente dois discursos se articulando no fragmento textual, fenômeno que se poderá notar em outros pontos da obra, que convoca para si – e enreda em seu discurso – muitas vozes: ictiólogos, pensadores, poetas e, muito significativamente, a coletividade anônima dos dizeres populares:

“Marzo è pazzo”, dice el proverbio italiano; “en abril, aguas mil”, agrega la sentencia española. De locura y de aguas mil está hecho el asalto a los ríos y a los torrentes, en marzo y en abril millones de angulas ritmadas por el doble instinto de la oscuridad y la lejanía aguardan la noche para encauzar el píton de agua dulce ( PO , p.23)

Esta tendência polifônica e esta abertura do poema em prosa a uma variedade de discursos muito distintos levou alguns dos estudiosos da forma a considerá-la dotada de uma heteroglossia e de uma dialógica inerentes (na esteira dos estudos de Bakhtin), descrevendo “o gênero como o locus de convergência ou conflito de vários discursos, que por outro lado refletem uma variedade de realidades extra-discursivas, incluindo uma série de intenções sociais, políticas e ideológicas específicas” 254 . Não parece de modo algum fora de propósito atribuir este juízo a Prosa del observatorio , obra híbrida que lida com o científico, o poético, o mítico, o cotidiano, o político, e não esconde seu valor de intenção, sua proposta extra-literária de intervenção – política mesmo – sobre o real, sem, no entanto, abdicar de seu estatuto de obra estética.

A obra de Cortázar faz uma incitação à revolução, cujos princípios e mesmo objetivos estão calcados, porém, no trabalho complexo e refletido de sua forma, no princípio dialético de suas imagens, na estrutura híbrida de seu texto – poema em prosa

254 “the genre as the locus of convergence or conflict of various discourses, which in turn reflect a variety of extradiscoursive realities, including a number of specific social, political and ideological agendas.” Michael Delville. The american prose poem , 1998, p. 8. 254 que, desafiando as noções rígidas de forma e de gênero, põe em questão, também, a relação da poesia com o mundo exterior ao texto. Discussão já promovida por Mallarmé, consciente da correspondência entre a crise do verso e a crise do mundo, e certamente atualizada por Cortázar na experiência de texto e imagem de Prosa del observatorio , em que as formas – ambas dialéticas: utópicas e auto-reflexivas – do poema em prosa e da

“imagem crítica” se articulam num projeto poético de reordenação do real, dando forma a um universo concertado que se volta em crítica a um presente de desconcerto – gesto fundamental de uma poesia que postula um mais além que passa por uma conquista do imediato: o dedo, a lua, o bobo. 255

3. A GESTA DA IMAGEM

Na origem de toda máquina há um gesto. Toda máquina, da alavanca mais rudimentar ao computador de última geração, é aperfeiçoamento e transformação de uma gestualidade que se desvencilha de seu até então indispensável suporte humano e se faz mecanismo – mais ou menos independente, mais ou menos automático, conforme o caso.

Quanto mais desenvolvida a máquina, quanto mais complexo, articulado, veloz e eficiente seu mecanismo, mais obliterado tende a ser seu gesto fundamental, superado por operações que o substituem, o superam e o excluem. Potencializa-se, assim, seu efeito – sua intervenção, seu alcance, sua eficácia. Arrisca-se perder, porém, seu valor – seu componente ético –, sacrificado neste desligamento do humano que caracteriza os processos mecânicos. E, no entanto, apenas pela recordação do gesto fundamental que as máquinas encenam parece possível redescobrir e compreender sua motivação essencial: o princípio que não só rege seu funcionamento como lhe confere um sentido para além do pragmático.

A maquinaria desastrada e desejante montada por Cortázar em Prosa del observatorio – mecanismo crítico de si mesmo, cujo trabalho se faz reflexão sobre este trabalho mesmo – é capaz de recuperar-se como gestualidade. Invertendo o processo de evolução das máquinas técnicas nas quais o gesto se faz operação, esta engrenagem de escritura e imagem se recorda gesto, manifestação humana, investida de sentido, de propósito, expressão de responsabilidade ética e vontade política.

Isto não significa negar o mecanismo, mas dialetizá-lo. Voltá-lo contra si mesmo num exercício de pensamento sobre si próprio e sobre a realidade na qual interfere, como 256 sugeriam Deleuze e Guattari ao defender a utilização pela arte da propriedade de defeito, de enguiço das “máquinas desejantes”, capazes de pôr em curto-circuito a produção social 255 , rompendo seu ciclo de reprodução serial de idéias, conceitos, princípios, normas, costumes e papéis sociais, e transformando-a, delirando-a. Algo que Cortázar efetivamente realiza em Prosa del observatorio – e metaforicamente em toda a sua obra literária, ele próprio no-lo diz – ao fazer arte como quem usa uma câmera para criar fotografias fora de foco, ao contemplar o mundo com um olhar transformador e ao registrá-lo em imagens que não visam a representá-lo com precisão mimética, a repeti-lo, mas a abrir suas formas, alterar a visão que temos delas e as relações que entre elas – e entre elas e nós – se estabelecem. Este o sentido da observação que em Prosa del observatorio se empreende: trabalho de reflexão e alteração que nada tem de passividade, que se quer ativo e consciente, que se quer ação efetiva sobre o real por intermédio do artístico.

Às imagens construídas com base nesta proposta transgressora e revolucionária, autêntica poética do olhar em que ao componente estético próprio do território da arte se soma um não menos fundamental componente ético, incorporam-se elementos de violência, de destruição, implicados em toda ação transformadora, como podemos perceber concretamente, por exemplo, na decomposição das estrutruras dos Jantar

Mantares de Jai Singh em traços elementares – linhas, planos, texturas, contrastes de luz e sombra – nas fotografias de Cortázar, que corrompem sua referencialidade, sua identidade, e as abrem ao informe, a associações subversivas e possivelmente cruéis

(lembremo-nos daquela “crueldade nas semelhanças” de que nos falava Didi-Huberman),

255 Gilles Deleuze e Félix Guattari. L’Anti-Oedipe , 1972, p. 39. A questão já foi apresentada no primeiro capítulo desta tese. 257 como no caso do Samrat Yantra de Jaipur: instrumento astronômico a que se agregam – por meio de operações de deformação de suas formas – uma memória sacrificial, uma conotação erótica. Figurações do que no plano de elaboração das imagens é trabalho: de violenta abertura e transgressora conexão – princípios essenciais do suplício sacrifícial e do erotismo (“ background mítico” da imagem cortazariana), bem como da imagem como forma. Paralelo que reflexão teórica alguma poderá esclarecer melhor do que uma seqüência de Rayuela e dois contos fantásticos de Cortázar que giram em torno da fotografia.

Os contos a que nos referimos, já o leitor o suspeitará, são “Apocalipsis de

Solentiname” e “Las babas del diablo”. Aí se realiza o mais concretamente possível – de um modo que apenas a realidade da ficção permite – aquele trabalho que Cortázar apontou como o princípio de toda a sua elaboração literária: um desfocar da realidade, uma subversão da ação do bom fotógrafo e do próprio mecanismo da câmera fotográfica, do qual se esperaria um registro fiel da realidade. Deliberadamente comprometendo o bom êxito desta operação, Cortázar descumpre as regras do manual, segundo o qual

“quando você vê duas imagens no visor da sua câmara, você as superpõe para que fiquem em foco e aí bate a foto” 256 . Mau fotógrafo – perverso fotógrafo – ele separa as imagens e, no intervalo que faz surgir entre elas – neste espaço trabalhado, aurático, portanto – faz surgir uma imagem que já não é reprodução do real, mas brecha, limiar a partir do qual pode-se instaurar uma reflexão crítica sobre ele. A fotografia se recorda, assim, gesto, interferência humana – ainda que maquínica – sobre o mundo, com conseqüências que veremos a partir da análise dos contos.

256 Julio Cortázar apud Ernesto González Bermejo. Conversas com Cortázar , 2002, p. 38. A citação integral se encontra na página 50. 258

Em “Apolipsis de Solentiname”, a expressão “crueldade nas semelhanças” tem uma ilustração perturbadora. Em visita à Nicarágua recém libertada de uma longa e violenta ditadura militar, o protagonista do conto, que se constrói a partir de uma série de elementos autobiográficos de Cortázar, fotografa em filme cromo um conjunto de quadros de estilo naïf pintados por camponeses de Solentiname. As imagens o encantam por sua beleza ingênua, como a resgatar

la visión primera del mundo, la mirada limpia del que describe su entorno como un canto de alabanza: vaquitas enanas en prados de amapola, la choza de azúcar de donde va saliendo la gente como hormigas, el caballo de ojos verdes contra un fondo de cañaverales, el bautismo en una iglesia que non cree en la perspectiva y se trepa o se cae sobre sí misma, el lago con botecitos como zapatos y en último plano un pez enorme que ríe con labios de color turquesa. 257

Uma vez revelados os slides, porém, a graciosidade destas formas que nos apresentam uma espécie de realidade de brinquedo, um cenário de fantasia infantil ingênua e alegre, será substituída pelo horror de cenas agressivas de execuções, corpos estendidos no chão, cadáveres desmembrados, pessoas apavoradas em fuga – imagens reais de um tempo de violência do qual a Nicarágua acabava de emergir.

Episódios que o protagonista do conto jamais testemunhara, que não poderia ter fotografado nunca, e que, no entanto, se apresentam em sua projeção, impondo-se ao seu olhar, assumindo o lugar das figuras naïves. Ou, melhor dizendo, revelando-se a partir delas, trabalho do informe operado por imagens que se deformam, que se alteram para dar a ver sua estrutura dialética, lugar de uma “semelhança dessemelhante”.

Transformação que se dá a partir de uma cisão – dupla distância que separa o virtual e o real, e constitui toda imagem: neste caso, o irredutível intervalo entre o slide e o quadro de que é reprodução fotográfica; intervalo que define o cromo como um vazio de quadro,

257 Julio Cortázar. Cuentos completos , v. 2, 1996, p. 156. 259 forma cuja criação implica uma perda. Cisão constituinte a partir da qual poderá emergir aquela realidade de violência que os quadrinhos naïfs, com seu esforço de preenchimento tão pródigo de cores e formas, baniam, mas para a qual os slides – imagens daquelas imagens, dedos a apontá-las ao longe – abrem espaço.

Esta realidade nos slides revelada – termo que aqui só pode ser tomado em seu sentido técnico fotográfico graças ao recurso fantástico do conto de Cortázar – tem a estrutura, o sentido e o valor de um sintoma: emergência de um elemento recalcado que vem desorganizar uma estrutura apaziguada, desmentindo-a, desmascarando-a em seu esforço de sublimação. Operação a partir da qual se estabelece – ou vem à tona – uma relação entre formas que pode nos fazer entender exemplarmente o que queria dizer Didi-

Huberman ao falar daquela “crueldade nas semelhanças”: é de fato cruel descobrir no cerne da inocência a consciência do mal, descobrir nos quadrinhos coloridos dos camponeses de Solentiname a imagem da violência que sofreram.

Descoberta que, porém, só se propõe ao protagonista do conto, e não à sua mulher, que vê projetarem-se na tela os temas naïfs pintados pelos nicaragüenses que seu marido de fato fotografara, e não as cenas terríveis que a ele se revelam. Neste contraste, os slides demonstram seu regime duplo de imagem cindida e sua construção como obra aberta – numa radicalização fantástica, evidentemente, do conceito de Umberto Eco –, cuja conformação e cujo sentido não são unívocos, mas potencialmente múltiplos e complementares, contraditórios entre si mas legítimos todos como leituras possíveis de uma forma dada em abertura.

Como “Apocalipsis de Solentiname”, “Las babas del diablo” é também a história de uma fotografia e seu poder de transformação – sobre si mesma e sobre quem a 260 observa. É efeito desta imagem e de seus desdobramentos a crise instaurada já no início do texto, na forma de questionamentos quanto à direção que deveria tomar o relato, quanto a quem (ou o que) deveria contar o que se passou, quanto à possibilidade ou à necessidade mesma de contá-lo, quanto ao estatuto de verdade disto que será, por fim, contado, embora não se saiba de que modo ou segundo que perspectiva: se pela do emissor (neste momento não podemos ainda considerá-lo um narrador propriamente dito) que de início se dirige ao leitor expondo a série de incertezas apontadas acima, e que de fato se reconhece mais como personagem dos eventos ocorridos e redator da história do que como seu condutor; se pela de uma máquina – fotográfica, pois se trata, enfim, da história de uma foto; se pela do ocorrido mesmo, sem intermediários.

Na persistência do impasse – primeiro atestado de fratura deste texto que, diria

Davi Arrigucci, se volta escorpionicamente sobre si mesmo, ameaçando-se com o veneno de sua própria crítica –, resta ao só então assumido narrador continuar o que começara e contar, já que talvez tenha uma isenção maior, pois está vivo e morto, condição ambivalente que será apenas o primeiro índice de fragmentação deste sujeito problemático, que se apresenta como “Roberto Michel, franco-chileno, traductor y fotógrafo aficionado a sus horas”.258 As formas variáveis de auto-referência usadas pelo narrador ao longo do conto (primeiras pessoas do singular e do plural, e terceira pessoa do singular) demonstram que ele tem consciência desta duplicidade, desta cisão de sua identidade, figurada no nome composto, na dupla nacionalidade, nas duas ocupações citadas que são, em si mesmas, ambas trabalhos de duplicação – lembremo-nos de que tanto o ofício do tradutor como o do fotógrafo é verter formas em outras formas, produzir duplos: um texto em outro, uma realidade em uma imagem (operação engendradora de

258 Idem, v. 1, p. 215. 261 reflexão crítica, como já apontava Jorge de Sena 259 ) – elementos relacionados entre si por uma semelhança dessemelhante , paradigma nuclear do sentido deste conto, como veremos.

A narrativa começa de fato com o relato de um passeio do narrador-personagem

(tratando-se apenas por Michel, já que saíra com sua câmera, estando, pois, no papel de fotógrafo) até a Île Saint-Louis. A imagem de um casal conversando numa praça atrai sua atenção: uma mulher loura e um rapaz bem mais novo; um jogo de sedução a que, curioso, Michel se permite assistir. Divertindo-se, imagina o possível desenrolar da cena, talvez uma saída envergonhada do menino, constrangido, talvez algumas carícias e a ida para o apartamento dela, talvez apenas a satisfação perversa de uma mulher que exercita seu desejo para não realizá-lo. Entretido com os dois, só depois de algum tempo percebe que há mais alguém na praça: um homem que parece ler o jornal ou cochilar dentro de um carro, ou fingir tal indiferença movido pela mesma curiosidade do fotógrafo em observar a cena.

Curiosidade da qual ele mesmo desconfia, não compreendendo bem seu interesse por algo aparentemente tão banal, situação que fora capaz de decifrar à distância, mas que, no entanto, ainda assim estranha: “Curioso que la escena (la nada, casi: dos que están ahí, desigualmente jóvenes) tuviera como un aura inquietante. Pensé que eso lo ponía yo, y que mi foto, si la sacaba, restituiría las cosas a su tonta verdad.” 260 Este suposto poder tranqüilizador da fotografia em relação à experiência real, no qual tantos

259 Cf. p. 181. 260 Idem, p. 218. 262 crêem, 261 seria, porém, logo desmentido. A foto tirada por Michel teria, sim, um efeito de verdade, mas não por neutralizar o elemento perturbador da cena, mas, ao contrário, por fazer dele o ponto de partida de um trabalho do informe que, veremos, promoverá uma decisiva alteração da imagem, lugar de uma atuação performática da relação de

“semelhança dessemelhante” que mantém com a realidade.

Fotografada a cena e revelada a foto, Michel a amplia e prende-a à parede em frente a sua mesa de trabalho, a todo momento levantando os olhos da tradução que bate

à máquina para exercitar a “operación comparativa y melancólica del recuerdo frente a la perdida realidad; recuerdo petrificado, como toda foto, donde nada faltaba, ni siquiera y sobre todo lo nada, verdadera fijadora de la escena.”.262 Desta operação de montagem – pensamento do fragmento e do interstício – que constitui o cotejamento da fotografia e da realidade rememorada (ambas imagens) salta mais uma vez este “nada” – esta ausência que se percebe – que desmente a forma e o sentido da cena cristalizados na foto e promove uma abertura da imagem, a partir da qual ela se transformará. Efetivamente , pois no conto fantástico de Cortázar a fotografia perderá sua característica fixidez de tempo e espaço para tornar-se novamente, senão a realidade, um fragmento vivo desta a se desenrolar diante da câmera de Michel. Mais uma vez, como em “Apocalipsis de

Solentiname”, radicalização fantástica da experiência da obra aberta de Eco, aqui

261 Susan Sontag atribui a isso a necessidade um tanto compulsiva que têm alguns turistas de tirar fotos: “Um modo de atestar a experiência, tirar fotos é também uma forma de recusá-la – ao limitar a experiência a uma busca do fotogênico, ao converter a experiência em uma imagem, um suvenir. Viajar se torna uma estratégia de acumular fotos. A própria atividade de tirar fotos é tranqüilizante e mitiga sentimentos gerais de desorientação que podem ser exacerbados pela viagem. Os turistas, em sua maioria, sentem-se compelidos a pôr a câmera entre si mesmos e tudo de notável que encontram. Inseguros sobre suas reações, tiram uma foto. Isso dá forma à experiência: pare, tire uma foto e vá em frente.” Susan Sontag. Sobre fotografia , 2004, p. 20. 262 Julio Cortázar. Cuentos completos , v. 1, 1996, p. 221. 263 representada no caso de uma fotografia que se transforma – como imagem e como significação – diante do olhar ativo de seu observador.

No quadrado brilhante de papel fotográfico preso à parede, as folhas das árvores se movem, os personagens atuam: a mulher sussurra ao ouvido do menino e o acaricia; ele assume uma expressão receosa; o homem que estava no automóvel e que Michel pensara ter deixado de fora do enquadramento surge “reflejándose en los ojos del chico y

(cómo dudarlo ahora) en las palabras de la mujer, en las manos de la mujer, en la presencia vicaria de la mujer” 263 A cena se altera, em sua forma e em seu sentido: o assédio de uma mulher sobre um rapaz mais novo se transforma em algo mais perverso: a farsa de uma sedução encomendada pelo homem que espera disfarçadamente no carro.

A imagem revela sua crueldade: a da verdade mesma que explicita; a de sua

“semelhança dessemelhante”, crueldade própria do trabalho do informe que opera na imagem para revelar a verdade do mal ali contido que até então se eludira; a de seu estatuto de fotografia, imagem congelada de espaço e tempo: crueldade plácida exercida por uma imagem que revela uma verdade tão-somente como perda; que expõe, mas não restitui, a realidade das coisas. No caso da fotografia tirada por Michel, crueldade jocosa diante da impotência deste fotógrafo que já não pode interferir em sua fotografia.

Y yo no podía hacer nada, esta vez no podía hacer absolutamente nada. Mi fuerza había sido una fotografía, esa, ahí, donde se vengaban de mí mostrándome sin disimulo lo que iba a suceder. La foto había sido tomada, el tiempo había corrido; estábamos tan lejos unos de otros, la corrupción seguramente consumada, las lágrimas vertidas, y el resto conjetura y tristeza. De pronto el orden se invertía, ellos estaban vivos, moviéndose, decidían y eran decididos, iban a su futuro; y yo desde este lado, prisionero de otro tiempo, de una habitación en un quinto piso, de no saber quiénes eran esa mujer y ese hombre y ese niño, de ser nada más que la lente de mi cámara, algo rígido, incapaz de intervención. Me

263 Idem, p. 223. 264

tiraban a la cara la burla más horrible, la de decidir frente a mi impotencia. 264

Cortázar, no entanto, permite a seu personagem um certo grau de intervenção

(limitado como aquele que se oferece ao intérprete ou ao fruidor de toda obra aberta: dentro dos parâmetros pré-estabelecidos por sua unidade como obra): Michel se descobre capaz de interferir na situação fotografada de acordo com o papel que sempre tivera ali: o de olho mecânico que registra. Consciente de seu poder, como a ajustar o foco da objetiva ele se aproxima da cena (ou, na verdade, aproxima-a de si) e, mais uma vez, como fizera ao fotografá-la, altera-a: os personagens percebem sua presença, o menino escapa. O fotógrafo, porém, acaba morto pelo homem da fotografia, que atira contra ele, testemunha que seria preciso eliminar.

A alteração da cena fotografada e o assassinato do fotógrafo por seu modelo de dentro da fotografia , possíveis por conta da ação do fantástico, podem servir de ilustração concreta não apenas à noção de uma crueldade da imagem como também à idéia de uma violência da imagem – fatal, mesmo, no caso do personagem de “Las babas del diablo”. Decerto que fora das páginas dos contos fantásticos esta violência da imagem não se impõe tão concretamente, matando quem a testemunha, mas a força de metáfora do desfecho do conto de Cortázar é inegável: olhar uma imagem é testemunhar um crime e imagens podem ferir. Comprova-se aí o que já vínhamos sugerindo: de fato, toda imagem dialética, enquanto forma (e independentemente, portanto, do tema nela figurado), contém em si um ato de violência; é, em sua constituição mesma, um ato de violência: de cisão, de fratura, de perda, de abertura, de deformação, de diferença –

índices do desastre, da separação de uma realidade que apenas como vestígio,

264 Idem, p. 223. 265 semelhança dessemelhante , a imagem pode restituir; mas índices também do desejo, força aurática de evocação do traço, força liberadora da abertura e da diferença, impulso de alteração, de transformação que atua em toda forma lançando-a além de si mesma.

Violência do desastre e do desejo que atua em toda imagem – ao menos em toda imagem autêntica, dialética, crítica – lançando-a num contínuo movimento de busca, de associação, de transformação de sentido. Violência que não resta, pois, auto-contida, que justamente desafia a auto-contenção das formas e das imagens em que o informe age, repercutindo por meio delas para além delas, cindindo outras formas, provocando outras aberturas, fazendo proliferar a crise e a crítica que instaura, exercendo-se positivamente como impulso à reflexão. Violência portanto virtual e virtuosa, que se transmite de certas imagens a seus observadores, de certos textos a seus leitores. 265

Em “Del cuento breve y sus alrededores”, um de seus mais conhecidos ensaios,

Cortázar relaciona o ato da escrita de certos contos a uma prática de exorcismo, por meio da qual o escritor se liberaria de uma espécie de possessão, arrancando de si alguma criatura obsedante, algum “bicho” (a escolha do termo é do próprio autor) que estivesse a assombrá-lo para dar-lhe existência independente no conto. Este processo não implicaria, porém, uma neutralização desse elemento perturbador, que permaneceria ativo no texto, pronto a transmitir-se ao leitor. Ele apenas estaria, ali, cristalizado em formas capazes de dar-lhe uma relativa estabilidade, mas que preservariam, sem em nada atenuá-la, sua

265 Potencialidade que, convém lembrar, Cortázar explora em também em “Graffiti”, que comentamos no capítulo anterior, criando imagens que, num jogo muito semelhante ao dos cromos de “Apocalipsis de Solentiname”, constituem uma representação anti-mimética da violência, e uma sua elaboração dialética, abordagem crítica que permite lidar com o fenômeno de maneira reflexiva, sem confrontá-lo na crueza paralizante do ato, mas, por outro lado, sem pôr a perder seu valor benéfico de choque, seja por excessivo distanciamento filosófico ou demasiado trabalho de apaziguamento estético. Êxito que revela, ainda a partir destes contos, um possível alcance político da imagem, fazendo de slides de quadros de estilo naïf e de graffiti abstratos meios de denúncia da censura e da violência ditatoriais. 266 virtualidade de ruptura e desordem, de estranheza e deslocamento. “De un cuento así se sale como de un acto de amor, agotado y fuera del mundo circundante, al que se vuelve poco a poco con una mirada de sorpresa, de lento reconocimiento, muchas veces de alivio y tantas otras de resignación”266 , escreve Cortázar. A analogia com o ato de amor não é aleatória: a leitura de um conto desse tipo proporcionaria, de fato, não apenas um efeito, mas uma experiência, mesmo, semelhantes aos do erótico: experiência também de violência, que produz efeitos de abertura, transporte e desbordamento momentâneos, anteriores ao inevitável e necessário retorno a um estado de normalidade.

Esta potencialidade de abertura do conto breve se deveria, porém, não apenas à presença aí do elemento perturbador, mas também à composição da forma que o envolve.

Como explica Cortázar num outro ensaio fundamental, “Algunos aspectos del cuento”, os melhores contos, os que seriam mais propensos a tirar o leitor de seu estado normal de consciência e conduzi-lo a uma nova percepção e a uma nova compreensão do real, são aqueles que se constróem segundo um rígido regime de concentração, proposta que pode parecer paradoxal para uma forma que resultará aberta e instrumento de abertura, mas que define o princípio de um mecanismo lógico segundo o qual se constrói uma estrutura extremamente bem delimitada e tensa cuja inevitável abertura se dá diante do leitor com a violência de uma explosão.

É mais uma vez à fotografia que Cortázar recorrerá para esclarecer, por meio de uma analogia, este processo de construção do conto breve, semelhante à operação do fotógrafo sobre a realidade:

una fotografía lograda presupone una ceñida limitación previa, impuesta en parte por el reducido campo que abarca la cámara y por la forma en

266 Julio Cortázar. “Del cuento breve y sus alrededores”, in: ---. Último round , 2001, p. 68. 267

que el fotógrafo utiliza estéticamente esa limitación. No sé si ustedes han oído hablar de su arte a un fotógrafo profesional; a mí siempre me ha sorprendido el que se exprese tal como podría hacerlo un cuentista en muchos aspectos. Fotógrafos de la calidad de un Cartier-Bresson o de un Brassaï definen su arte como un aparente paradoja: la de recortar un fragmento de la realidad, fijándole determinados límites, pero de manera tal que ese recorte actúe como una explosión que abre de par en par una realidad mucho más amplia, como una visión dinámica que trasciende espiritualmente el campo abarcado por la cámara. (...) en una fotografía o un cuento de gran calidad (...) el fotógrafo o el cuentista se ven precisados a escoger y limitar una imagen o un acaecimiento que sean significativos , que no solamente valgan por sí mismos sino que sean capaces de actuar en el espectador o en el lector como una especie de apertura , de fermento que proyecta la inteligencia y la sensibilidad hacia algo que va mucho más allá de la anécdota visual o literaria contenidas en la foto o en el cuento. 267

Este trabalho de abertura ocorre em “Apocalipsis de Solentiname” e “Las babas del diablo” em dois níveis: como efeito do conto sobre seus leitores e como mise-en- abyme deste efeito, operado pelas fotografias sobre os personagens que as produziram e que as contemplam, delineando-se uma estrutura de espelhamento que torna os relatos ainda mais perturbadores: também eles formas que, como as fotografias, são uma ameaça. Perigosos na tensão extrema de sua estrutura prestes a se abrir e constituídos por formas – imagens ou seres – em cujo bojo se acomodam os demônios desterrados do escritor; formas dialéticas, onde algo que aqui seria precisamente denominado sintoma opera um trabalho do informe, estes contos violentos ferem e deixam marcas: “los cuentos de esta especie se incorporan como cicatrices indelebles a todo lector que los merezca”, 268 sentencia Cortázar. O mesmo poderia ser dito de certas fotografias.

Segundo Benjamin 269 , o que ocorre nas imagens maquínicas, produzidas pela ação sobre a realidade de determinadas aparelhagens convocadas pela arte (e portanto subvertidas em seu funcionamento, como já nos previnem Deleuze e Guattari), é uma

267 Julio Cortázar. “Algunos aspectos del cuento”, in: ---. Obra crítica , v. 2, 1994, pp. 371-2. 268 Julio Cortázar. “Del cuento breve y sus alrededores”, in: ---. Último round , 2001, p. 78. 269 O desenvolvimento da questão que discutimos aqui está no ensaio “A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica”, in: Walter Benjamin. Magia e técnica, arte e política , 1994, pp. 165-96. 268 recuperação transgressora do gesto artístico – originalmente alienado pelo mecanismo – como choque. Para explicar este fenômeno, o teórico alemão retoma o que denomina uma qualidade tátil da recepção dos objetos artísticos (em oposição a uma percepção apenas

óptica dos mesmos), que teria sido mobilizada, embora ainda precariamente, pela vanguarda dadaísta, sendo mais tarde efetivamente consolidada pelo cinema.

Criando em suas obras uma função de escândalo, os dadaístas teriam querido fazer delas objetos capazes de

suscitar a indignação pública. De espetáculo atraente para o olhar e sedutor para o ouvido, a obra convertia-se num tiro. Atingia, pela agressão, o espectador. (...) O dadaísmo colocou de novo em circulação a fórmula básica da percepção onírica, que descreve ao mesmo tempo o lado tátil da percepção artística: tudo o que é percebido e tem caráter sensível é algo que nos atinge. 270

Este aspecto tátil do objeto artístico que se anuncia como um ato de violência – um choque, um atentado – se faz sentir também em Prosa del observatorio , embora não com o mesmo grau de agressividade ou com o caráter explícito a que pretendem obras dadaístas. Não obstante, a interação com o tátil parece confirmar-se como um recurso estético fundamental ao projeto do livro de Cortázar. Num primeiro momento, são as fotografias que o compõem que apontam nesta direção, exibindo um trabalho de composição voltado à materialidade dos objetos, valorizando, como observamos no capítulo anterior, as texturas, os grafismos, os volumes e as formas das construções de Jai

Singh, que adquirem, com esta ênfase sobre a sua concretude, uma aura, um alcance espiritual – cumprindo assim o arco daquela dualidade dialética própria de certas imagens. Ilustrações de uma “geometria de nossas cisões”, produtos de um olhar que, imbuído de desejo, aniquila, transforma e transgride, estas imagens revelam não mais o

270 Walter Benjamin. Opus cit., pp. 191-2. 269 ideal arquitetônico preciso e delirante do astrônomo Jai Singh; desvelam uma paisagem que remete de fato ao território do inconsciente, do onírico, no qual, como sugeria

Benjamin, “tudo o que é percebido e tem caráter sensível é algo que nos atinge”, ou seja: faz-se sentir como experiência vivida, concreta, como vivência.

No livro de Cortázar, esta experiência será ainda intensificada por um efeito cinético incutido na obra por meio de recursos de montagem (perceptíveis tanto na seqüência fotográfica como na seqüência textual que compõem o livro e na articulação de uma e outra), que lhe conferem um aspecto cinematográfico, aproximando-a deste campo artístico que, nos dizia Benjamin, teria de fato consolidado a recepção tátil do produto artístico e a experiência de choque daí recorrente como proposta estética.

No cinema, o valor de choque se firmaria como percepção efetivamente sensorial, baseada “na mudança de lugares e ângulos, que golpeiam intermitentemente o espectador” 271 . Este trabalho de montagem que leva a uma recepção do objeto artístico como choque executa-se no cinema de modo privilegiado, pois o produtor tem aí, para além do controle do enquadramento, do ângulo, da perspectiva e da seqüência das imagens que põe em cena, também o poder de decisão sobre o tempo que cada uma delas permanecerá na tela. O cineasta torna-se, assim, capaz de interferir mesmo no processo mental do espectador, na sua associação de idéias, “interrompida imediatamente com a mudança da imagem” 272 .

Cortázar ensaia um uso literário destes recursos de construção cinematográfica em

Prosa del observatorio , para o qual o trabalho de montagem é fundamental, como

271 Idem, p. 192. 272 Idem, p. 192. 270 podemos observar em diferentes aspectos da obra. 273 Em primeiro lugar, é graças a uma inteligente e espirituosa (no sentido do witz romântico) operação de cortes e associações que se confere unidade e sentido a este livro caleidoscópico, constituído por uma diversidade de materiais e de conteúdos heterogêneos, que se ligam uns aos outros pondo em contato e tornando interpenetráveis espaços, tempos, reinos distintos. Este sentido se obtém (como já observamos no capítulo anterior ao analisar o cubismo literário do poema em prosa de Cortázar) por meio da construção deste texto, que, um tanto como a edição de um filme faz com seu espectador, dirige a cadeia de associações mentais do leitor, impondo-lhe também um certo ritmo, ditado pela cadência de uma prosa cuidadosamente trabalhada.

Abordando um outro papel da montagem no livro, cabe tornar a suas fotos e pensá-las como conjunto: a seqüência de imagens exibe uma variedade de lugares, enquadramentos, ângulos e perspectivas a golpear o observador, que, se não está diante de uma projeção cinematográfica sobre cujo ritmo não tem nenhum controle, também não está folheando um álbum comum de fotografias, com toda a liberdade para se deter sobre alguma que lhe chame mais a atenção ou passar mais depressa por outra menos interessante; este observador é um leitor diante de um texto contínuo, que o convoca a passar pelas fotografias que o entremeiam e retomar a leitura. Vistas sob esta condição, as fotografias de Cortázar adquirem um certo movimento; vê-las torna-se de fato menos um ato de contemplação do que um percurso – mas percurso acidentado, cheio de abismos e saltos, quedas e elevações, sustos e indecisões, interrupções e retomadas. Estas

273 Prosa del observatorio não é exemplo isolado do uso da montagem como recurso poético por Cortázar. A operação é fundamental não apenas como recurso formal ou estilístico, mas para a construção mesma do sentido em diversos textos do autor: contos como “Todos los fuegos el fuego”, “La isla a mediodía”, “Lejana”, “Axolotl”, “Anillo de Moebius” entre muitos outros e romances como 62, Modelo para armar , El libro de Manuel e Rayuela , do qual analisaremos uma seqüência ainda neste capítulo. 271 fotografias reproduzem visualmente o que faz por meio de outros recursos o poema em prosa que com elas se articula: por meio de quebras, ângulos inusitados, mudanças radicais de perspectiva, criam no leitor uma impressão sensorial mesmo de deslocamento, desautomatizam seu olhar e induzem-no à reflexão pelo choque. Efeito que, segundo Max

Jacob – que no prefácio a seu Cornets à Dès a ele se refere como “teoria da situação”

(são situadas obras que recriam a realidade, transplantando o leitor e criando um efeito de choque) –, constitui um elemento essencial da própria poética do poema em prosa. Como explica Suzanne Bernard:

o transporte do leitor para um universo diferente, o ‘deslocamento’ (...) vão, talvez mais que qualquer outra coisa, caracterizar o poema em prosa moderno (...), a ponto de tornar quase impossível fazer a distinção entre o conto, por exemplo, e o poema: um conto de Michaux, uma novela de Kafka poderão ter o mesmo potencial poético que um poema em verso ou em prosa. 274

Por tudo que temos discutido até aqui, fica claro, acreditamos, que o mesmo pode ser dito dos contos de Cortázar, cujo trabalho poético mantém estreitas relações com aquele realizado em sua Prosa del observatorio , tanto no que diz respeito a seu texto – poema em prosa em que se expressa, de fato, um trabalho de transformação do real e deslocamento do leitor – quanto em relação a suas fotografias, sendo todas estas formas experimentadas pelo autor – conto, poema em prosa, fotografia (e, logo veremos, romance) – movidas por uma mesma intenção crítica e reflexiva que se quer o mais radical possível, exercendo-se como violenta ruptura e alteração do real.

274 « La transplantation du lecteur dans un univers différent, le ‘dépaysement’ (...) vont peut-être plus que tout autre chose caractériser le poème en prose moderne (...) au point qu’en fin de compte la distinction entre le récit, par exemple, et le poème, sera presque impossible à faire: un récit de Michaux, une nouvelle de Kafka pourront détenir le même potentiel poétique qu’un poème en vers ou en prose. »Suzanne Bernard. Opus cit, p. 636. 272

Há virtude na violência de escrever contos e poemas ou tirar fotografias com poder de ferir, na crueldade das formas que estes textos e estas imagens mobilizam: o atentado que virtualmente fazem ao leitor ou observador mina sua estabilidade, sua acomodação, tira-o do automatismo que lhe é imposto pelo hábito; a violência e a crueldade destes contos e destas fotografias – porque são neles o trabalho formal e esteticamente elaborado de uma dialética, porque não estão ali presentes superficialmente como tema voyeurístico de sadismo ou como banalização – põem em questão a violência e a crueldade exercidas efetivamente no mundo real, revela-as como inaceitáveis, intoleráveis. Encenam dialeticamente o mal e, sem permitir uma completa catarse, uma completa purificação do horror, que permanecerá como cicatriz indelével, combatem-no.

Lembrando o cinema de Eisenstein, cujo sentido era calcado essencialmente numa operação de montagem como choque, criando jogos de imagem terríveis e perturbadores,

Didi-Huberman comenta um fragmento das memórias do cineasta em que este explicita a diferença que separa a dita crueldade das imagens daquela que é efetivamente exercida.

Assim o teórico francês relembra as considerações do cineasta russo:

Tudo o que ele faz no cinema é bem mais inocente que a crueldade de que as crianças são capazes na realidade. A crueldade das imagens , para Eisenstein, é não apenas catártica, mas ainda inversamente proporcional, em sua gênese mesma como em sua significação profunda, à crueldade efetiva de que são capazes nossos semelhantes. Assim, é porque teria sido efetivamente incapaz de fazer mal a uma mosca que o pequeno Sergeï Mikhaïlovitch, crescido, afirma ter descoberto formalmente os procedimentos adequados para perturbar seus semelhantes por meio de suas imagens. 275

275 «Tout ce qu’il fait au cinéma (...) est bien plus innocent encore que la cruauté dont les enfants (…) sont capables dans la réalité. La cruauté des images , pour Eisenstein, est non seulement cathartique, mais encore inversement proportionelle, dans sa genèse même comme dans sa signification profonde, à la cruauté effective dont sont capables nos semblables. Bref, c’est parce qu’il aurait été effectivement incapable de faire du mal à une mouche que le petit Sergeï Mikhaïlovitch, devenu grand, prétend avoir trouvé formellement les procédés adéquats pour bouleverser se semblables par ses images. » Georges Didi- Huberman. La ressemblance informe ou le gai savoir visuel selon Georges Bataille, 2003, p. 329-30. (Tradução nossa) 273

A crueldade das imagens – que, já o sabemos, é sobretudo uma crueldade de relações, de associações – teria, portanto, motivação, sentido e fim contrários aos da violência cometida na realidade. Incorporada não apenas como tema, mas sobretudo como trabalho, à forma dialética das imagens, a crueldade nelas encenada seria dotada de potencialidade crítica e combativa, contribuindo, por sua natureza perturbadora, para a desalienação e para a rejeição à crueldade e à violência efetivas.

Há em Rayuela uma seqüência que põe em prática, por meio de uma estratégia de montagem que tem notáveis afinidades com o trabalho cinematográfico, este uso ativo da crueldade da imagem como contraponto combativo à crueldade efetiva. Trata-se do conjunto composto pelos capítulos 14 – 114 – 117 – 15 – 120 – 16, a serem lidos nesta ordem se o leitor optar por seguir o Tabuleiro de Direção sugerido por Cortázar no início do livro. Construído como obra aberta, o romance propicia múltiplas formas de leitura, mas sobretudo duas, conforme explica Cortázar como a dar instruções para seu livro- jogo: pode-se fazer uma leitura tradicional, iniciada no primeiro capítulo e seguindo a ordem normal dos demais até o 56, onde se encerra a trama. Ou pode-se seguir o

Tabuleiro, segundo o qual se inserem, entre os capítulos 1-56, uma série de outros fragmentos de diversos tipos – trechos ficcionais, relatos de faits-divers , recortes de jornal, reflexões meta-romanescas – referidos como “capítulos prescindibles”. De fato, a ausência destes capítulos não compromete a compreensão do enredo do romance, mas a sua leitura lhe acrescenta dados, relativiza e transforma seu sentido por meio do mecanismo meta-reflexivo que engendra e, sobretudo, propicia ao leitor uma experiência ativa de leitura, uma participação na formação do romance, como veremos mais adiante e a partir da leitura da seqüência dos seis capítulos apontados acima. 274

Ela se torna interessante para o tema que vimos explorando sobretudo porque convoca uma reflexão que se detém não só sobre a relação estabelecida entre imagem, violência e crueldade, mas também sobre o próprio sentido do violento e do cruel, sobre o estatuto e o valor destas categorias. Reflexão que se faz na esteira de Bataille, de fato trazido à cena por meio de um artifício de referência velada,276 piscadela de olho ao leitor que, reconhecendo a citação, tem nela um guia para sua leitura.

Cortázar constrói um dos personagens de seu romance, o chinês Wong, como uma espécie de mascaramento do pensador francês. O primeiro indício deste processo astucioso vem no capítulo 115, a ser lido – segundo a sugestão do Tabuleiro de Direção – imediatamente antes do capítulo 14. Wong é ali apresentado como um “maestro en collages dialécticos” 277 , título que se concederia com toda justiça a Bataille, ele próprio um mestre da montagem (como Benjamin e Eisenstein), que fez do jogo dialético de conceitos e imagens o esteio de sua obra. E a relação se estreita: graças a este talento dialético, Wong seria capaz de interpretar uma passagem de Morelli que enuncia: “La música pierde melodía, la pintura pierde anécdota, la novela pierde descripción.” 278 .

Comentando a nota livremente, o chinês escreve: “La novela que nos interesa no es la que va colocando los personajes en la situación, sino la que instala la situación en los personajes. Con lo cual éstos dejan de ser personajes para volverse personas.” 279 Este texto parece ter, porém, uma íntima relação de sentido com um fragmento de Bataille utilizado por Morelli como epígrafe de outra de suas notas: «Il souffrait d’avoir introduit des figures décharnées, qui se déplaçaient dans un monde dément, qui jamais ne

276 Neste caso em particular, pois em outros momentos de Rayuela o pensador francês é citado explicitamente. 277 Julio Cortázar. Rayuela , 1996, p. 395. 278 Idem, p. 395. 279 Idem, p. 395. 275 pourraient convaincre.» 280 – passagem que o leitor de Rayuela (se atento como o queria

Cortázar) se lembrará de ter lido no capítulo 116. Estas pistas sutis são fundamentais. No entanto, é de fato no capítulo 14, a partir do qual a figura de Bataille é crucial, que a referência a ele se faz mais explícita.

Neste capítulo, passado durante uma reunião do Clube da Serpente (grupo de amigos estrangeiros morando em Paris que se reúne para discutir temas diversos – filosóficos, estéticos, cotidianos e, sobretudo, a obra de Morelli), o protagonista Horacio

Oliveira pergunta a Wong a respeito de um livro que este pretenderia escrever sobre a tortura. Wong retruca que seu tema não é a tortura em si, que na China “se tenía um concepto distinto del arte” 281 e, por insistência de Oliveira, mostra-lhe uma seqüência de fotos supostamente tiradas em Pequim por volta de 1920:

El poste debía medir unos dos metros, pero había ocho postes, solamente que era el mismo poste repetido ocho veces em cuatro series de dos fotos cada uma, que se miraban de izquierda a derecha y de arriba abajo, el poste era exactamente el mismo a pesar de ligeiras diferencias de enfoque, lo único que iba cambiando era el condenado sujeto al poste, las caras de los asistentes (había una mujer a la izquierda) y la posición del verdugo, siempre un poco a la izquierda por gentileza hacia el fotógrafo, algún etnólogo norteamericano o danés con buen pulso pero una Kodak del año veinte, instantáneas bastante malas, de manera que aparte de la segunda foto, cuando la suerte de los cuchillos había decidido oreja derecha y el resto del cuerpo desnudo se veía perfectamente nítido, las otras fotos , entre la sangre que iba cubiendo el cuerpo y la mala calidad de la palícula o del revelado, eran bastante decepcionantes sobre todo a partir de la cuarta, en que el condenado no era más que una masa negruzca de la que sobresalía la boca abierta y un brazo muy branco, las tres últimas fotos eran prácticamente idénticas salvo la actitud del verdugo, en la sexta foto agachado junto a la bolsa de los cuchillos, sacando la suerte (pero debía trampear, porque si empezaban por los cortes más profundos…), y mirando mejor se alcanzaba a ver que el torturado estaba vivo un pie se desviaba hacia fuera a pesar de la presión de las sogas, y la cabeza estaba echada hacia atrás, la boca siempre abierta, en el suelo la gentileza china debía haber amontonado abundante aserrín porque el

280 “Ele se ressentia de ter introduzido figuras descarnadas, que se deslocavam num mundo demente, que jamais poderiam convencer.” Georges Bataille apud Julio Cortázar. Rayuela , 1996, p. 396. (citado em francês no texto; tradução nossa) 281 Julio Cortázar. Idem, p. 54. 276

charco no aumentaba, hacía un óvalo casi perfecto en torno al poste. “La séptima es la crítica”, la voz de Wong venía desde muy atrás del vodka y el humo, había que mirar con atención porque la sangre chorreaba desde los dos medallones de las tetillas profundamente cercenadas (entre la segunda y tercera foto), pero se veía que en la séptima había salido un cuchillo decisivo porque la forma de los muslos ligeramiente abiertos parecía cambiar, y acercándose bastante la foto a la cara se veía que el cambio no era en los muslos sino entre las ingles, en lugar de mancha borrosa de la primera foto había como un agujero chorreado, una especie de sexo de niña violada donde saltaba la sangre en hilos que resbalaban por los muslos. Y si Wong desdeñaba la octava foto debía tener razón porque el condenado ya no podía estar vivo, nadie deja caer en esa forma la cabeza de costado. 282

A descrição das imagens (em discurso indireto livre a partir da perspectiva de

Oliveira) e o comentário de Wong citado mais acima – que revela um interesse estético- filosófico e não propria ou exclusivamente histórico e antropológico nas fotos – nos remete à temática da obra de Bataille, e, mais especificamente, a uma conhecida passagem de Les larmes d’Eros [As lágrimas de Eros] 283 , em que são apresentadas fotos do chamado Suplício dos Cem Pedaços, entre as quais estas duas:

Elas são acompanhadas por um comentário no qual Bataille ressalta o caráter angustiante e obsedante das imagens, que, segundo escreve, o fazem pensar em Sade, que delas tiraria partido como passagens para a volúpia e o êxtase. Seria outra, porém, a experiência fundamental proposta por tais imagens. Vivenciada por Bataille como o

282 Idem, p. 55. 283 Georges Bataille. Les larmes d’Éros , 1981, p. 231. 277

êxtase de uma inversão, o saber dela extraído se tornaria para ele “a conclusão inevitável de uma história do erotismo” 284 : a revelação de uma contigüidade entre o êxtase religioso e o erotismo, e de uma paradoxal identidade do êxtase divino e do horror extremo, encarnados ambos na imagem do corpo supliciado, lugar do sacrifício e do erótico.

Esta relação é estabelecida também no texto de Cortázar, que, embora não faça menção direta a Bataille, 285 evoca-o, como já víamos, na figura de Wong, o escritor que pretende fazer um livro a partir de fotos de tortura e que elege como fundamental justamente aquela imagem que nos dá de modo mais enfático a relação entre corpo supliciado e corpo erotizado. Antes de chegar a essa foto crucial, porém, vejamos o sentido da seqüência de imagens de Cortázar. Ela nos dá a ver, em processo, o trabalho do informe operado, mais uma vez, como em “No se culpe a nadie” e de modo ainda mais próximo de “Anillo de Moebius”, sobre a figura humana. Descreve-nos as etapas de um ritual de violência que procede a uma abertura e a uma fragmentação do corpo, deformado quase ao ponto do irreconhecível – “una masa negruzca de la que sobresalía la boca abierta y un brazo muy branco”. Imagem que dá a ver aos espectadores da cena, ao fotógrafo, aos observadores das fotos e aos leitores de Cortázar o processo de instituição da dessemelhança no corpo da semelhança. Violência imposta ao homem pelo homem, pelo semelhante ao semelhante, pela semelhança à sua própria forma: obra de transgressão que se aproxima, na leitura por associação que Oliveira faz da sétima foto de

Wong, de uma violação de caráter sexual. Nesta fotografia, o corpo masculino, mutilado, emasculado, dilacerado pela ação da violência fálica da faca do carrasco, assume o

284 « l’inévitable conclusion d’une histoire de l’érotisme » Idem, p. 233. (Tradução nossa) 285 Há, sim, nesta cena, uma referência explícita a Octave Mirbeau, autor de um romance intitulado Le Jardin des Supplices , que Oliveira teria lido e de onde viria seu conhecimento sobre o sentido do suplício na China. 278 aspecto 286 – visual mesmo – do corpo feminino violado. No lugar onde estava o pênis vê- se agora um buraco de onde o sangue escorre como do sexo de uma menina deflorada.

Nesta imagem de violência que se faz signo de transgressão, cruzam-se, assim, mais uma vez como em “Anillo de Moebius”, os sentidos do suplício e do erotismo. Ela encena a dissolução das formas constituídas que está, segundo Bataille, no cerne destas ações, 287 expressões de uma abertura do ser operada pela violência – do carrasco ou do parceiro sexual –, que rompe a forma fechada e descontínua e abre-a à continuidade. Definitiva, no caso desta imagem de clímax que precede imediatamente a morte, figurada na foto seguinte.

Oferecida aos assistentes da cena, esta passagem à continuidade operada pelo erotismo e pelo suplício e confirmada na morte assume ainda o sentido do sacrifício, da imolação ofertada que promove, na assistência, um sentimento de efêmera continuidade.

A imagem que o cristaliza propõe, assim, uma abertura para o sagrado. Esta passagem não se cumpre, porém, na imagem construída por Cortázar, que é, em sua construção ambígua, a um só tempo possibilidade de ligação com o sagrado por meio do sacrifício e recusa desta ligação por meio da profanação. Voltemos à imagem que nos é apresentada na sétima foto por meio da leitura que dela faz Oliveira: trata-se da forma alterada de um homem supliciado que assume o aspecto de uma mulher violada, que não é mais do que uma imagem dessemelhante do corpo masculino supliciado e erotizado. Imagem ambígua, porém, que reúne em si os signos da virgem e da mãe, incompatíveis a não ser na esfera religiosa do Catolicismo. Estaríamos, pois, no território do divino, do sagrado.

286 O aspecto define, para Bataille, a potencialidade da forma de se pôr em movimento, de se transformar. Cf. Georges Didi-Huberman. La ressemblance informe ou le gai savoir visuel selon Georges Bataille, 2003, p. 176. 287 Georges Bataille. O Erotismo , 1987, p. 18. 279

Os índices que para aí apontam, porém, não nos são dados à semelhança de sua manifestação religiosa na figura de Nossa Senhora, mas apenas como dessemelhança, como profanação do símbolo elevado. São traços, vestígios, sinais de separação e perda: a virgem acaba de ser deflorada e o líquido que brota de seu peito de vicária mãe não é leite, mas sangue. O puro é corrompido pelo impuro; a figura humana que se abre à dessemelhança no que parece ser a busca de uma semelhança de outra ordem recai na dessemelhança irreversível; o sagrado é profanado. Resta a violência do informe preservada na imagem cruel do suplício de um homem que não ascende a mártir, mas permanece espectro de corpo mutilado em fotografias de má qualidade.

Por estranho que possa parecer a princípio, talvez nenhum outro fragmento da obra de Cortázar dialogue tão de perto com Prosa del observatório como este de Rayuela que acabamos de analisar. Como ocorre na Prosa , é uma poética da imagem como concebida por Cortázar que aí se enuncia, definindo-a como produto e encenação de ritos dessacralizados – trabalhos virtuais – de suplício sacrificial e erotismo, desastre e desejo, violentas aberturas e transgressoras conexões, destruição das formas constituídas e seu resgate como significação. Operações que se recuperam como gestualidade no corpo da imagem, apta a exercer, então, funções de choque e impulso à reflexão, que a alçarão, segundo Benjamin, da esfera do ritual consagratório – nela profanado – à ordem do político. 288 Transição que se cumpre em Prosa del observatorio como pronunciamento revolucionário do humano diante da tirania cósmica, exprimindo-se uma vez mais em termos de uma violação suplicial e erótica profanatória, porque subversora de um mito:

288 Walter Benjamin. “A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica”, in: Magia e técnica, arte e política , 1994, p. 171-2. 280

si el hombre es Acteón acosado por los perros del pasado y los simétricos perros del futuro, pelele deshecho a mordiscones que lucha contra la doble jauría, lacerado y chorreando vida, solo contra un diluvio de colmillos, Acteón sobrevivirá y volverá a la casa hasta el día que encuentre a Diana y la posea bajo las frondas, le arrebate una virgindad que ya ningún clamor defiende, Diana la historia del hombre relegado y derrogado, Diana la historia enemiga con sus perros de tradición y mandamiento, con su espejo de ideas recibidas que proyecta en el futuro los mismos colmillos y las mismas babas, y que el cazador trizará como triza su doncelez despótica para alzarse desnudo y libre y asomarse a lo abierto, al lugar del hombre a la hora de su verdadera revolución de dentro afuera y de fuera adentro. ( PO , p.67)

Segundo a lenda, Diana, deusa muito vaidosa e orgulhosa de sua virgindade, foi certo dia surpreendida ao banhar-se nua num lago pelo caçador Acteon, que se apaixonou por ela e ficou a espreitá-la. Ao descobri-lo refletido em seu espelho, porém, a deusa o castigou transformando-o em cervo e atiçando contra ele seus próprios cães, que o mataram e devoraram.

Relendo o mito para fazer dele uma alegoria utópica, na qual o desejo erótico assume uma dimensão política revolucionária, Cortázar associa Acteon ao homem (à humanidade em geral) e Diana – cujo nome designava, segundo Georges Dumézil, o espaço celeste 289 – à história: uma história na qual os homens não teriam qualquer poder de decisão, sendo conduzidos por uma força despótica como o céu dos astrólogos, que se revela, no entanto, manifestação de poderes em nada transcendentais, e sim inteiramente terrenos, exercidos na esfera da sociedade humana: a tradição e seu poder reprodutor de hábitos, normas e restrições. Esta força cerceadora, limitadora do homem o que Cortázar desafiará nesta imagem alegórica de um erotismo que confirma sua virtualidade subversiva – mesmo socialmente subversiva – já apontada por Bataille, que afirma que “o que está em jogo no erotismo é sempre uma dissolução das formas constituídas. Digo: a

289 Segundo Georges Dumézil, citado por Octavio Paz em Marcel Duchamp . O castelo da pureza, 2004, p. 95. 281 dissolução dessas formas de vida social, regular, que fundam a ordem descontínua das individualidades definidas que nós somos” 290 .

Movido por esse impulso erótico revolucionário, o Acteon relido por Cortázar, liberto da tradição e reinvestido de vida, escapará da cilada de Diana e voltará a atacá-la, quebrando o espelho que frustra a realização de seu desejo – denunciando sua presença e impedindo sua ação, garantindo a perpetuação do poder estabelecido a refletir-se nele ad eternum – e se vingando da violência do ataque dos cães que estraçalharam seu corpo, desintegrado como será o da própria deusa violada, penetrada pelo amante, numa imagem que uma vez mais demonstra a afinidade que Bataille observou entre sacrifício e ato sexual, ambos ações de abertura dos corpos pela violência.

Oliveira é perturbado pela percepção desta transgressora associação, que, nas fotografias do suplício chinês, não assume o sentido algo heróico que toma na releitura do mito de Acteon e Diana por Cortázar, permanecendo como impressão de uma crueldade insublimada. Em torno dela parece dar-se uma súbita e insuportável coagulação da realidade, na cristalização fragmentária de um “grotesco collage” 291 em que se combinam as imagens do suplício, a voz de Wong explicando que coisas assim já não acontecem na China e, da vitrola, a música de Big Bill Broonzy que canta, como um corifeu grego a cumprir seu movimento de crítica e irônica parábase: “See, see, rider, / see what you have done”.

Cumpre-se, assim, a primeira etapa de um processo de inversão dialética de sentido e repercussão da imagem a partir de um efeito de choque (que se faz mesmo

290 Georges Bataille. O Erotismo , 1987, p. 18. 291 Julio Cortázar. Rayuela , 1996, p. 56. 282 sensorial) que é bastante semelhante àquele que se dá com as cenas cruéis dos filmes de

Eisenstein: a crueldade extrema, mas trabalhada, das imagens do suplício chinês, buriladas pelo discurso de Cortázar que as transforma em imagem e pelo trabalho de montagem que já começa na própria cena mostrada neste capítulo, se converte em reflexão, em crítica da crueldade – da própria noção de crueldade, movimento que se ampliará nos demais capítulos da seqüência.

Aos elementos da colagem percebida por Oliveira se somarão ainda outros, não para o personagem, mas para o leitor de Cortázar que seguir o Tabuleiro de Direção

(versão do diretor deste filme deixado em roteiro), indo aos capítulos 114 e 117. O primeiro traz o que parece ser um fragmento de uma notícia de jornal a respeito de uma execução penal em câmara de gás na Califórnia, ocorrida na década de 1950, momento presente para as personagens do romance. A morte do condenado é descrita em etapas, como a do supliciado chinês o fora pela leitura da seqüência fotográfica; como no caso do suplício, há aqui um carcereiro e testemunhas que assistem a tudo; e um registro bastante

“visual” da ocorrência. Nesta narrativa, porém, a violência e o horror da morte são bastante neutralizados, tanto pelo tom jornalístico do discurso – muito objetivo –, como pelo próprio procedimento da execução moderna, caracterizada pela assepsia, pela solidão, pela anulação da dor e pela supressão do espetáculo. Na morte em câmara de gás, ao contrário do que ocorria no suplício, que punha em evidência a carnalidade e fazia do contato entre verdugo e vítima uma relação íntima como a contraparte de um ato erótico, procede-se a uma dessubstanciação do corpo do condenado, sobre o qual efetivamente não se toca, garantindo-se uma completa separação entre o moriturum – deixado sozinho 283 na câmara no momento da morte – executor e testemunhas, que assistem à cena de trás de uma janela de vidro.

No jogo de semelhanças e dessemelhanças que a operação da montagem impõe aos fragmentos que reúne, porém, esta calculada elusão da violência revela sua hipocrisia e sua crueldade, e o sentido de barbárie que cercava a descrição das fotos do suplício se transmite à forjada civilidade da execução penal, desmentindo-a. Num processo complementar de contaminação de sentido por contigüidade e contraste, a idéia de distanciamento espacial, temporal e cultural que de alguma forma tornava as fotos chinesas da década de 1920 mais toleráveis (sendo mesmo reforçada na tentativa de consolo que Wong dirige a Oliveira no final do capítulo 14) é contestada pela atualidade da execução penal americana, fruto da civilização de que fazem parte Oliveira, Cortázar e a maioria de seus leitores.

O capítulo 117 é a transcrição de um fragmento do discurso de apelação de um advogado de defesa que tenta impedir a condenação de duas crianças à morte.

Recorrendo à jurisprudência, ele recorda os casos de uma menina de treze anos queimada por ter executado a professora e o de um menino de dez anos enforcado por ter matado um companheiro. O trecho citado por Cortázar termina com uma tirada irônica do advogado sobre o motivo das condenações: “¿Por qué? // Porque sabía la diferencia que hay entre lo que está bien y lo que está mal. Lo había aprendido em la escuela dominical.” 292 É sobretudo na ambigüidade que parece repousar o sentido deste fragmento, que parece colocar o leitor diante de uma situação absurda e de um dilema indecidível. Sua colocação na série iniciada pelos capítulos 14 e 114, que feriam com a exposição da violência e da crueldade das execuções, parece conduzir o leitor a tomar o

292 Idem, p. 339. 284 partido dos réus, não apenas os que estão sendo defendidos pelo advogado, mas, sobretudo, os já executados, a menina queimada e o menino enforcado. No entanto, a ambivalência se mantém, pois permanece o sentimento de repulsa e absurdo diante da violência e da crueldade de crianças que matam uma professora e um colega. Resta, por fim, concordar com o advogado, não pelo partido que toma, mas pela atitude cética com que questiona a possibilidade de um discernimento entre o bem e o mal baseado na doutrina religiosa dicotômica (e certamente apresentada de forma bastante simplificada e esquemática na escola dominical). De fato, a situação que nos é apresentada, em seu absurdo, parece pôr em questão toda possibilidade de um limite objetivo e preciso entre o bem e o mal. Estamos no terreno da dialética batailliana, que não oferece, nem mesmo, a solução da síntese, e relativiza os valores que parecem mais certos, instaurando a desordem.

Seguindo as instruções de Cortázar, tornamos ao capítulo 15, voltando à cena da reunião do Clube da Serpente. As fotos de Wong lembram a Oliveira um outro episódio: o convite que recebera de um conhecido para ver, por mil francos, a gravação em filme de um enforcamento. Embora recusada, a proposta o fizera imaginar-se, por um momento, no papel da vítima, que não só seria enforcada como saberia “que una cámara iba a registrar cada instante de sus muecas y sus retorcimientos para deleite de dilettantes del futuro” 293 . A crueldade implicada no ato de produzir tais imagens, de exibi-las por dinheiro, de fazer delas um espetáculo de prazer – operação oposta a esta outra, dialética, que vemos em curso nesta seqüência de capítulos de Rayuela, que se pode ver nos filmes de Eisenstein – leva Oliveira, mais uma vez num processo de repercussão do sentido como inversão crítica, à recusa da indiferença e à reflexão.

293 Idem, p. 57. 285

No que de início parece ser um contraponto ao tema da violência e da crueldade, o foco da cena se abre, ainda no mesmo capítulo, para a interação de dois outros personagens: a Maga, uma uruguaia com quem Oliveira tem um relacionamento amoroso, e Gregorovius, um apátrida (segundo sua ficha de filiação ao Clube da

Serpente) que, o protagonista tem certeza, está apaixonado por ela. Num diálogo que parece patético a um Oliveira enciumado, Gregorovius pergunta à Maga (para ele, Lucía) sobre sua vida no Uruguai. A conversa logo se desvia, porém, para mais um episódio de violência e, neste caso, violência propriamente sexual, o que nos remeterá novamente ao sentido das fotos do suplício chinês interpretadas por Oliveira. Trata-se de um caso de estupro sofrido pela Maga, violentada por um negro que vivia no mesmo cortiço onde ela morava com o pai. Desde o início da narrativa do episódio, estabelece-se novamente a relação de contigüidade entre suplício e erotismo. Enquanto apanha do pai, que lhe bate com um cinturão, a menina vê o negro, que os espia pela porta entreaberta e se masturba; naquela noite, entra no quarto dela, arranca suas roupas e a violenta. O relato da Maga, bastante detalhado, se interrompe, porém – para o leitor de Rayuela , mas não para os personagens em cena –, logo depois que ela é agarrada pelo negro. Deve-se saltar, então, para o capítulo 120, que, depois se saberá, substitui a narrativa do estupro propriamente dito, elipsada do leitor que, ao retornar ao capítulo 16, lê apenas a conclusão da história, já a saída do negro do quarto da menina.

O trabalho de montagem não visa a um efeito de suavização da violência, como se poderia pensar e como de fato parece funcionar a construção da seqüência para o leitor que opta por não ler o capítulo 120, prescindible , passando diretamente do 15 ao 16 – diante dele simplesmente se oculta um episódio mais violento. Para o leitor que cumpre o 286 percurso sugerido no Tabuleiro de Direção, porém, o projeto se revela outro: trata-se de, mais uma vez, propor uma reflexão dialética sobre o sentido da violência e da crueldade.

Estes princípios se fazem presentes, também, no relato colocado no lugar do trecho central da narrativa da Maga, num procedimento de deslocamento discursivo por associação segundo o qual o sentido se constrói por um jogo de atração e contraste que se dá no interstício, na passagem de um fragmento a outro. (Passagem que é, para o leitor de

Rayuela , momento ativo, em que se saltam páginas, em que se procura o capítulo a que se deve dirigir, em que o trabalho de corte e colagem por meio do qual procede a montagem se torna consciente para ele e aberto a sua participação.) O capítulo 120 descreve um ato bastante comum de sadismo infantil: a crueldade com animais.

O pequeno Ireneo se diverte, durante as horas de sesta de sua família, num ato conscientemente transgressor, em tirar delicadamente bichos-de-cesto de seus casulos, ação primeira de abertura e dissolução da forma constituída – o que se revela como corpo desnudado do animal é uma forma ainda em processo de formação que se reverterá, a partir da intervenção do menino, em processo de deformação – e colocá-los próximos a um formigueiro. O prazer consiste em observar o ataque das formigas ao corpo do verme, de preferência mais largo que o buraco de entrada do formigueiro, fazendo com que os insetos, no esforço de empurrar para o fundo o corpo da vítima, cravem nele suas pinças, num trabalho doloroso de decomposição da forma que se encerra com sua devoração.

A relação que se estabelece entre esta cena e aquela outra, apenas evocada, da defloração da Maga, é uma relação de imagem; a cena do verme atacado pelas formigas diante dos olhos deliciados do menino, a violação da forma constituída aí praticada, a devoração que encerra o processo constituem uma imagem dialética que restitui ao leitor, 287 como ausência, o episódio elidido da violação. Entre este fato e a imagem que dele nos é dada, insinua-se não uma identidade, mas uma contigüidade, relação aberta, de caráter fragmentário, baseada numa articulação de semelhanças e dessemelhanças que se estabelece por elementos indiciais: o verme atacado e a menina que apanha do pai; a atitude sádica do menino e do negro que observam estas cenas; o desnudamento do animal retirado de seu casulo e da menina que tem suas roupas arrancadas pelo negro, abertura que precede à violação da forma; a violação propriamente dita, do verme em cujo corpo as formigas cravam suas pinças e da personagem penetrada à força pelo estuprador; a atitude indefesa de uma e outra vítima diante de seu devoramento.

Elementos que, em sua relação de transgressora semelhança (relação bastante cruel, como aquela que vimos traçar-se em “Apocalipsis de Solentiname”), que põe lado a lado a menina deflorada e o verme comido por formigas, constituem aos fragmentos uma unidade de sentido que completa, depois de idas vindas, o ciclo iniciado pelo capítulo 15: a correspondência entre o horror do suplício e o gozo erótico, obras de violência, operações de abertura e deformação da forma, cruéis trabalhos do informe encenados em imagens que são, elas mesmas, constituídas por um processo semelhante – formas abertas, cindidas, postas em contato com outras formas em transgressoras e cruéis correspondências que se converterão, porém, em reflexões críticas sobre a crueldade.

Esta reversão se cumpre em Rayuela graças à estrutura dialética segundo a qual se configuram as imagens que compõem o romance, cada um dos seus capítulos e o livro como um todo, cuja ordenação parece descrever um movimento em espiral. Sua lógica pode ser percebida na montagem dos capítulos que acabamos de comentar. Um mesmo fio de sentido os vai ligando em meio às idas e vindas – físicas mesmo – que o leitor 288 cumpre ao percorrê-los, até que, por fim, o fato ficcional que conclui a seqüência (a defloração da Maga, que só temos por ausência e substituição) retoma, como invocação, a imagem que dava início a ela – esta, sim, textualizada, mas não factual: a da criança violada “vista” por Oliveira, graças a um processo de associação analógica, na foto do supliciado chinês. Deste modo, o defloramento encontra sua imagem, não exata, mas deslocada; diversa, mas correspondente, assim como na espiral – forma perfeita do círculo que se abre e se põe em movimento – parece que se volta sempre a um mesmo ponto que, no entanto, já não é o mesmo.

No Caderno de Bitácora , plano de Rayuela , Cortázar esboça mais de uma vez as formas da espiral e do círculo, postas em oposição, este remetendo a “orden cerrado / centro / concentración”; aquela a “orden abierto / difusión / excentración, descentración”. 294 No corpo do romance propriamente dito, esta tentativa de dar forma visual à estrutura do livro aparece ironicamente referida numa observação sobre Morelli:

“Le gustaría dibujar ciertas ideas, pero es inacapaz de hacerlo. Los diseños que aparecen al margen de sus notas son pésimos. Repetición obsesiva de uma espiral temblorosa” 295 .

Forma em trabalho de abertura, em constante diferenciação de si mesma, dialeticamente repetindo e alterando seu traçado, pondo-se em movimento, a espiral parece configurar-se com um modelo de construção estrutural e semântica para Rayuela , escritura em busca de uma passagem, imagem que nos é dada com extraordinária concretude na descrição de um dos finais possíveis para o livro inacabado de Morelli:

La página contiene una sola frase: “En el fondo sabía que no se puede ir más allá porque no lo hay.” La frase se repite a lo largo de toda la página, dando la impresión de un muro, de un impedimiento. No hay puntos ni comas ni márgenes. De hecho un muro de palabras ilustrando el sentido de la frase, el choque contra una barrera detrás de la cual no

294 Idem, p. 478. 295 Idem, p. 303. 289

hay nada. Pero hacia abajo y a la derecha, en una de las frases falta la palabra lo . Un ojo sensible descubre el hueco entre los ladrillos, la luz que pasa. 296

No jogo dessa página em que forma e fundo se articulam para a geração do sentido, lê-se o empreendimento desta busca que, como revela o conteúdo da frase que se repete de fracasso em fracasso, se dá no saber de sua impossibilidade mesma, exercício de uma forma a descrever um círculo vicioso que, no entanto, acaba por se abrir em espiral, encontrando um vão que se cria por um sacrifício da escritura, da linguagem em sua materialidade gráfica mesmo, que tem de abrir em si própria o vazio, a passagem.

Vazio que é, em Rayuela, espaço essencial, lugar de um trabalho de transformação, de reflexão da forma. Cisão que constitui a potencialidade essencial da forma dialética do romance como exercício de liberdade: arco do salto entre um e outro quadrado da amarelinha, jogo que, segundo Davi Arrigucci,

serve de princípio de construção do texto, do ponto de vista sintagmático, uma vez que este se constrói pela montagem de fragmentos, pela combinação de blocos que se justapõem, obrigando- nos a uma leitura aos saltos, exatamente como no jogo em questãso, transpondo-se a espacialidade da amarelinha para a concepção da estrutura literária. 297

É notável a heterogeneidade destes blocos que compõem a Rayuela de Cortázar: passagens da trama ficcional propriamente dita, comentários meta-ficcionais, recortes de jornal, citações literárias, faits-divers que se organizam numa estrutura que preserva seu caráter fragmentário, tornando-os suscetíveis a uma multiplicidade de relações recíprocas, fazendo da obra em que se inserem um campo de possibilidades de estruturação e sentido. Obra aberta, no sentido dado ao termo por Umberto Eco, que se quer inacabada, que se põe à espera da intervenção do leitor que virá ordená-la e dar-lhe sentido, numa operação que não será jamais definitiva, que resultará apenas numa

296 Idem, p. 303. 297 Davi Arrigucci, Jr. O escorpião encalacrado , 1973, p. 70. 290 provisória e instável conformação de uma estrutura capaz de comportar – de engendrar mesmo – muitas outras estruturas. Forma aberta à sua própria deformação, segundo o pensamento de Bataille: estrutura constituída de cisões que impedem toda estabilização, que desencadeiam um contínuo movimento de formação e deformação, desagregação e decomposição operado pela forma sobre si mesma, que permanece, assim, indeterminada, indefinida; trabalho de violência e transgressão do informe que atua na obra romanesca de um escritor que em outro lugar caracterizou o romance como “poliédrico, amorfo”, “la cosa impura, el monstruo de muchas patas y muchos ojos” 298 , formas que parecem bem próximas àquelas que Bataille pensou como emblemas do informe: a aranha, o verme, o escarro. 299

Formas desprezíveis, incômodas, repulsivas; formas subversivas que já nenhuma noção definida, nenhum sistema autárquico pode comportar, e cuja existência põe em questão estas noções e estes sistemas. Formas da decomposição a que Cortázar busca chegar, porém, por meio de um elaborado trabalho de composição, como enuncia uma das morellianas de Rayuela :

Una prosa puede corromperse como un bife de lomo. Asisto hace años a los signos de podredumbre en mi escritura. (…) Después de todo podrirse significa terminar con la impureza de los compuestos y devolver sus derechos al sodio, al magnesio, al carbono químicamente puros. (…) Creo oscuramente que los elementos a que apunto son un término de la composición. Se invierte el punto de vista de la química escolar. Cuando la composición ha llegado a su extremo límite, se abre el territorio de lo elemental. Fijarlos y, si posible, serlos. 300

Este avanço na decomposição, na busca do elementar, do traço mínimo cuja recuperação implica uma obra de destruição, cumpre-se sistematicamente em Rayuela , na manutenção do caráter fragmentário dos blocos que compõem o texto; na recusa em

298 Julio Cortázar. “Situación de la novela”, in: ---. Obra crítica , v. 2, 1994, p. 224/228. 299 Georges Bataille. Documents , 1968, p. 178. 300 Julio Cortázar. Rayuela , 1996, p. 353. 291 preestabelecer ligações unívocas entre eles, impedindo sua ordenação numa estrutura totalizante e homogeneizadora; na natureza das múltiplas e transgressoras relações a que se abrem. Relações que põem em questão a forma do romance, o estatuto da ficção, o sentido da própria literatura, atacada por si mesma numa violência necessária e reversa contra a ordem fechada do romance, produto de uma ordem fechada de mundo que se quer alterar, num movimento de lógica semelhante àquele segundo o qual a crueldade dialética da imagem combate a crueldade efetiva da realidade, trabalho de inversão que nos é proposto por uma expressão metafórica de Cortázar: “Así, usar la novela como se usa un revólver para defender la paz, cambiando su signo.” 301

Cortázar assume aí aquele pacto dialético – e diabólico – que Benjamin esperava ver firmar-se na expressão artística moderna do século XX: compromisso arriscado de acordo com o qual esta arte deveria usar os princípios e sobretudo os mecanismos do seu tempo – que supostamente estariam contra ela – para criar objetos dotados de uma função de choque – como toda a vivência da época – que se fizesse, no entanto, por trabalhada esteticamente, meio de reflexão desta vivência. Objetos que fossem capazes de tocar, de atingir seus receptores do modo mais concreto, mais sensorial possível: como experiência tátil; e de modo violento: como um atentado. Objetos que pudessem atuar, portanto, de fato como armas – para defender a paz, porém. O sentido enunciado em Rayuela em termos da forma romanesca (ou anti-romanesca) reedita-se em Prosa del observatorio , onde o trabalho da imagem é associado à ação de metralhadoras, paralelo traçado com base nos instrumentos astronômicos de Jai Singh: “sus artificios de piedra y bronce fueron las ametralladoras de la verdadera ciencia, la gran respuesta de una imagen total frente a la tiranía de planetas y conjunciones y ascendentes” ( PO , p.75).

301 Idem, pp. 325-6. 292

Revela-se, assim, gestualidade – e gestualidade convertida em choque – o mecanismo de uma escritura que se constrói inteiramente a partir de jogos com as formas, cristalizados – sem perder seu dinamismo – em imagens produzidas como fotografias fora de foco à maneira de Cortázar, que desintegram e decompõem o real, que o violentam num ato erótico de posse e político de revolução, para nele revelar brechas, fissuras, sugerindo, no intervalo deste limiar aberto com violência, novas e transgressoras relações entre objetos, seres e sentidos. Exercício de um olhar que se investe de uma potência maquínica – mas não alienadora –, fazendo-se caleidoscópico e transformador, para criar imagens nas quais se tece aquele novo paradigma dialético sugerido por

Bataille e assim formulado por Didi-Huberman:

Haveria dois modelos da dialética das formas. Haveria a dialética do bom aluno e do policial – razoável, trivial porque aplicado, desejoso de controle – que se enuncia, como se deve: tese – antítese – síntese . E haveria a dialética do imprestável, da canalha que diverte em destruir, (...) do pintor cubista, do herético ou do cineasta moderno. Esta dialética, a um só tempo inquieta e divertida, engendrada pelo gai savoir mas também por uma consciência dilacerada – por um certo senso da crueldade das coisas –, esta dialética se enuncia de ora em diante: tese – antítese – sintoma .302

Deixando de se concluir na síntese para não se concluir no sintoma, que não ultrapassa, não neutraliza e nem concilia as oposições, mas as cristaliza em relações transgressoras e instáveis, esta dialética de marginais, de perversos, de heréticos, de certos artistas cujo trabalho com as formas faz com que possam se integrar com toda justiça nestas categorias dialetiza a própria dialética, propondo uma dialética sem síntese , numa espécie de transgressão da transgressão que conduz ao choque.

302 « Il y aurait donc deux modèles de la dialectique des formes. Il y aurait la dialectique du bon élève ou du policier –, bien-pensant, trivial parce que appliqué , tout à son désir de contrôle –, qui sénnonce comme il se doit : thèse – antithèse – synthèse . Et puis il y aurait la dialectique du chenapan, de la canaille qui joue à briser, (...) du peintre cubiste, de l’hérétique ou du cinéaste moderne. Cette dialectique, à la fois inquiète et enjouée, portée par le gai savoir et tout autant par une conscience déchirée – bref, par un certain sens de la cruauté des choses –, cette dialectique s’ennonce désormais : thèse – antithèse – symptôme . » Georges Didi-Huberman. La ressemblance informe ou le gai savoir visuel selon Georges Bataille, 2003, p. 296. 293

É esta a fórmula dialética praticada por Cortázar, cujos personagens “cronópicos”

– para além dos bichinhos verdes das Historias de cronopios y de famas há muitos outros, como Oliveira (Rayuela), Roberto Michel (“Las babas del diablo”), Johnny Carter (“El perseguidor”) – poderiam muito bem estar listados como membros daquela espécie de canalha dialética elencada na citação de Didi-Huberman, possuindo todos os dotes necessários para associar-se a ela: uma consciência divertida, lúdica mesmo, mas em crise – dilacerada e crítica; um desprezo pelo trabalho e pelo pragmatismo e um gosto pela destruição; um senso apurado, embora terno, da crueldade das coisas, a começar pela crueldade de si mesmos.

Definidos por esta subjetividade já em si dialética, estes personagens e seu autor se fazem produtores de formas cindidas e críticas de si mesmas: estruturadas, mas sempre prestes a se abrir e revelar a dinâmica das relações de oposição em que se fundam, oferecendo-se como passagem para outros territórios, desconhecidos, da realidade.

Mesmo Oliveira, que nada produz em termos concretos, pensador angustiado que rejeita a praxis, desconstrói, para reconstruir numa dialética sem síntese à moda de Bataille, a imagem do supliciado chinês, em que se cruzam os sentidos do suplício e do erotismo, do horror, do sagrado e da profanação. Roberto Michel, espécie de duplo de si mesmo, sujeito cindido, cria uma fotografia que, imagem já constituída, se abre novamente diante do olhar do fotógrafo, revelando seu valor de sintoma e desmentindo-se a si mesma, recusando-se a ser síntese ordenadora e tranqüilizadora do real e pondo-se novamente em movimento, perfeita encenação de uma dialética que não se encerra em sintoma. Johnny

Carter, um saxofonista apresentado como louco e drogado por seu biógrafo, mas por fim legitimado como sábio perseguidor de uma realidade mais autêntica, faz da música um 294 meio de franqueamento do real, cuja rigidez parece ceder na duração dos seus improvisos de jazz ou na operação peculiar do seu pensamento (ou anti-pensamento) que não prossegue pela via do lógico, mas do imagético, como a própria personagem explica: “yo no pienso nunca; estoy como parado en una esquina viendo pasar lo que pienso, pero no pienso lo que veo” 303 .

Exercícios de deslocamento, prática subversiva que, por meio destes e de outros tantos personagens, de suas ações e suas obras, por meio das formas que põe em cena em seus textos e da forma que dá a seus textos, o próprio Cortázar exercita, dando a ver uma concepção a um só tempo lúdica e crítica, alegre e desconsolada, amorosa e cruel, destrutiva e regeneradora do real, e operando uma dialética subversiva, transgressora de si mesma, que se encarna em formas abertas que engendram outras aberturas, outras formas da abertura, como o jazz de Johnny Carter, a fotografia de Roberto Michel ou a do supliciado chinês, as imagens verbais e visuais de Prosa del observatorio .

Máquina operada por um fotógrafo perverso, que não pretende representar ou reproduzir, mas transformar o mundo com seu olhar, a literatura cortazariana produz imagens como agressões, gestos revolucionários: “el arremeter contra lo objectivamente enemigo o abyecto, el manotazo delirante para echar abajo una ciudad podrida” ( PO , pp.61-3). Trabalho de uma maquinaria desastrada e desejante, que funciona enguiçando- se, pondo-se a si mesma e à realidade que manipula em curto-circuito, em desordem.

Mecanismo delirante guiados pelo qual as formas se abrem ao informe, as imagens revelam seu vazio, o romance se escreve como “anti-romance”, fragmentando sua integralidade, abrangendo em si sua própria crítica, criando-se forma em crise, em desagregação. Trabalho de agonia que visa, no entanto, à geração de algo novo: que

303 Julio Cortázar. “El Perseguidor”, in: ---, Cuentos completos , v. 1, 1996, p. 232. 295 fragmenta para reordenar, que destrói para reconstruir, que violenta para redimir. Projeto de toda a literatura cortazariana que nela tem início manifestando-se como operação realizada sobre e pelas formas textualizadas (objetos, corpos, imagens) e textuais (contos esféricos que se abrem em súbita explosão, romance escrito como anti-romance, livros fragmentários como Prosa del observatorio ), mas que se expande para além da esfera do literário assumindo um sentido filosófico, ético e mesmo político, como proposta de transformação do real. Circuito de que Prosa del observatorio é o traçado completo: obra estética, elaboração teórica, formulação utópica, manifesto político revolucionário.

Aspectos que se vão urdindo uns aos outros por meio de um trabalho que é sobretudo formal, e que armará, no jogo de suas imagens, de seus fluxos e intervalos, uma trama gestual.

Em suas reflexões sobre a imagem, Didi-Huberman lembra uma declaração esclarecedora de Sartre: “todo o mal se originou de se ter vindo à imagem com a idéia de síntese. (...) A imagem é um ato e não uma coisa” 304 . Cristaliza-se nesta afirmação do filósofo francês uma idéia que vimos explorando desde o início desta tese com relação às imagens poéticas cunhadas por Cortázar e, em paralelo, por outros poetas ou artistas plásticos: uma concepção da imagem não como representação estática, cristalização iconográfica, quadro enrigecido, mas como trabalho: modo de interferência humana sobre as formas do mundo, lugar de uma abertura destas formas que se dispõem ao contato, à relação, num jogo de constante movimento, num contínuo fazer e refazer, escapando a toda síntese – qualidade própria das coisas, dos conceitos, mas não das imagens, formas

304 « Tout le mal est né de ce qu’on est venu à l’image avec l’idée de synthèse. (...) L’image est un acte et non une chose. » Jean Paul Sartre apud Georges Didi-Huberman. Images malgré tout , 2003, p. 63. 296 cindidas e dialéticas onde há um trabalho sempre em curso. Trabalho que, temos visto, é gestual.

Num esforço de definição do gesto, Giorgio Agamben o caracterizou em contraste tanto com o fazer como com o agir , a partir de seu estatuto particular em relação aos meios e aos fins: “se o fazer é um meio em vista de um fim e o agir um fim sem meios, o gesto rompe a falsa alternativa entre fins e meios que paralisa a moral, e apresenta meios que se subtraem como tal ao reino dos meios, sem por isso se tornarem fins” 305 .

Isentando-se, assim, à categoria pragmática de meio dirigido a um fim, bem como à de finalidade em si, o gesto se exerceria como mediação. Postura que será, como vimos ao longo de nosso segundo capítulo, a marca por excelência da “imagem crítica”, que se faz medium de contatos e relações, assumindo, nesta função, um papel que já Benjamin definira – e Agamben virá confirmar – como político.

Segundo Benjamin, cuja investigação sobre a gestualidade está fundamentada no teatro épico de Brecht, o gesto seria, por um lado, uma “matriz dialética” fundamental e, por outro, um recurso essencial para demonstrar “a significação e a aplicabilidade social da dialética. Ela põe à prova as condições sociais, a partir do homem” 306 . É incorporando gestualidade, portanto, que a imagem se fará dialética, e extrapolará a esfera do estético, fazendo-se meio de pensamento, reflexão crítica e intervenção efetiva sobre o real.

Justamente o que Cortázar parece pretender com a invenção de uma nova máquina do mundo – que é também uma máquina de imagens – em Prosa del observatorio :

Imagen de imágenes, salto que deje atrás una ciencia y una política a nivel de caspa, de bandera, de lenguaje, de sexo encadenado; desde lo abierto acabaremos con la prisión del hombre y la injusticia y el enajenamiento y la colonización y los dividendos y Reuter y lo que

305 Giorgio Agamben. “Notas sobre o gesto”, in: Interactividades . Artes Tecnologias Saberes, 1997, p. 20. 306 Walter Benjamin. “Que é o teatro épico? Um estudo sobre Brecht”, in: ---. Magia e técnica, arte e política , 1994, p. 88. 297

sigue; no es delirio lo que aquí llamo anguila o estrella, nada más material y dialéctico y tangible que la pura imagen que no se ata a la víspera, que busca más allá para entender mejor, para batirse contra la materia rampante de lo cerrado, de naciones contra naciones y bloques contra bloques. ( PO , pp.71-3)

Proposta revolucionária e política no sentido mais amplo do termo, que se poria em prática por meio da imagem, forma tangível, investida de uma gestualidade transformadora e de uma virtualidade heróica que fazem do seu trabalho matéria épica.

É de fato uma seqüência de gestos heróicos gravados em imagens eloqüentes o que temos em Prosa del observatorio , no exercício dramático de uma escritura que acompanha a saga das enguias:

la serpiente va a lanzarse hasta nosotros, va a venir con billones de ojos dientes lomos colas bocas, inconcebible por demasiado, absurda por cómo, por por qué ( PO , p.19)

las que bajan están desmineralizadas y amorfas, se dejan pescary sólo tienen fuerzas para luchar contra una muerte que no han evitado, que las tortura delicadamente durante horas como si se vengara de las otras, de las que siguen río abajo en multitudes incontables, buscando los corales y el sal del regreso (PO , p.37)

otra vez la serpiente atlántica, inmensa cinta plateada con bocas de agudos dientes y ojos vigilantes, deslizándose en lo hondo, no ya movida pasivamente por una corriente, hija de una voluntad para que no se conocen palabras de este lado del delirio, retornando al útero inicial, a los sargazos donde las hembras inseminadas buscarán otra vez la profundidad para desovar, para incorporarse a la tiniebla y morir en lo más hondo del vientre de leyendas y pavores. ( PO , p.41) descreve a aventura astronômica de Jai Singh:

medir, computar, entender, ser parte, entrar, morir menos pobre, oponerse pecho a pecho a esa incomprensibilidad tachonada, arrancarle un jirón de la clave, hundirle en el peor de los casos la flecha de la hipótesis, la anticipación del eclipse, reunir en un puño mental las riendas de esa multitud de caballos centelleantes y hostiles. ( PO , p.39)

contra lo petrificado de una matemática ancestral, contra los husos de la altura destilando sus hebras para una inteligencia cómplice, telaraña de telarañas, un sultán herido de diferencia yergue su voluntad enamorada, desafia un cielo que una vez más propone las cartas transmisibles ( PO , p.43)

vano y olvidable déspota, Jai Singh asciende los peldañaos de mármol y hace frente al huracán de los astros; algo más fuerte que sus lanceros y más sutil que sus eunucos lo urge en lo hondo de la noche a interrogar 298

el cielo como quien sume la cara en un hormiguero de metódica rabia (PO , p.53) e dá testemunho do drama de um homem que teria em si um desejo do aberto, mas que não o persegue, ou o persegue e é punido por isso em metafóricas inquisições – num sacrifício semelhante ao das enguias que morrem nas redes de pesca para que outras possam completar seu ciclo – para que apenas alguns possam vislumbrar a utopia de

Cortázar, um território que só como imagem é possível representar:

En cada árbol de sangre circulan sigilosas las claves de la alianza con lo abierto, pero el hombre da y toma la sangre, bebe y vierte la sangre entre gritos de presente y recidivas de pasado, y pocos sentirán pasar por sus pulsos la llamada de la noche pelirroja; los pocos que se asomen a ella perecerán en tanta picota, con sus pieles se hacerán lámparas y de sus lenguas se arrancarán confesiones; uno que otro podrá dar testimonio de anguilas y de estrellas, de encuentros fuera de la ley de la ciudad, de arrimo a las encrucijadas donde nacen las siendas tiempo arriba. ( PO , pp.65-7)

Em todas estas descrições – como ademais em toda imagem de Cortázar, já o observamos – nota-se uma tendência à fisicalidade, que no contexto da discussão do presente capítulo já poderíamos definir com maior precisão como uma tendência à gestualidade. Com efeito, é como gestos emblemáticos que se caracterizam o ciclo de migração das enguias e seus percalços, os esforços de conhecimento astronômico de Jai

Singh e a própria empreitada utópica do homem rumo a um cosmos reordenado, sentido nuclear da grande alegoria que é Prosa del observatorio . Aventuras de peixes, sultão e homens, que se equiparam, assim, na luta – heróica – por uma conquista do mundo que passará pelo desastre e pelo desejo, que exigirá sacrifícios e se descobrirá erotismo cósmico: trabalhos encenados pela maquinaria do livro de Cortázar, que é, como agora podemos perceber com clareza, todo gestualidade – em suspenso, em curso, de uma busca. 299

Para além deste conteúdo heróico que as imagens de Prosa del observatorio representam, parece manifestar-se na obra, porém, ainda um heroísmo de outra espécie: um heroísmo da forma. Qualidade não de feitos gloriosos e perigos que a escritura de

Cortázar narra, mas de uma escritura que se empenhará, ela própria, em riscos e aventuras: “palabra desatinada, desarrimada, que busca por sí misma, que también se pone en marcha desde sargazos de tiempo y de semánticas aleatorias, la migración de un verbo” ( PO , p.11); virtude não de gestos heróicos que se fazem imagem, mas de imagens que se fazem gesto heróico: “imagen que no se ata a la víspera, que busca más allá para entender mejor, para batirse contra la materia rampante de lo cerrado, de naciones contra naciones y bloques contra bloques”( PO , pp.71-3). Sentido heróico da estrutura do livro de Cortázar – híbrida, a arriscar-se no informe; de sua opção textual pelo poema em prosa, forma já em si carregada de valor político que, como dizia Mallarmé, “tem o peso de um verso quebrado”; da estrutura de suas imagens – dialéticas, críticas de si mesmas, do vazio a que dão forma, da perda que sustentam, das associações transgressoras a que servem de media. Gestualidade heróica de uma obra que visa, com suas imagens corpóreas, com sua ênfase sobre as formas, seus movimentos e transformações, àquela recepção tátil de que Benjamin nos fala – própria de obras artísticas que fazem um uso dialético da interferência de maquinismos sobre a realidade, criando-se como meios para uma experiência de choque – e à repercussão política que desta condição advém.

300

(À GUISA DE ) C ONCLUSÃO

Dos puzzles se espera solução; dos caleidoscópios, o fascínio das possibilidades e das variações infinitas. Assim que não serão conclusões – no sentido mais acadêmico do termo – o que enunciaremos aqui: um livro como Prosa del observatorio não o permitiria, e isso será preciso respeitar. Sem proclamar explicações definitivas e lógicas implacáveis sobre o livro de Cortázar, caberá a nós neste ponto apenas retomar de modo sintético e concentrado o que ao fim de nossa análise julgamos ser fundamental à compreensão da Prosa de observatorio como texto poético e ao reconhecimento de seu lugar não apenas no conjunto da obra de seu autor como no horizonte da arte moderna.

Esta retomada final, sempre prevista, parece-nos especialmente justificada no caso desta tese, que, acreditamos, tem como seu maior trunfo e seu pior algoz uma estratégia de construção e organização baseada na comparação e no diálogo entre diferentes obras, em muitas pontes e passagens. Neste emaranhado de referências, podem ter ficado perdidos ou muito esparsamente mencionados tópicos importantes e deixadas em suspenso conexões fundamentais. Conviria, então, sumarizar aqui, em ordem direta e sem cortazarianos saltos, nossas observações sobre a Prosa del observatorio , ensaiando uma leitura o mais concisa possível desse livro caleidoscópico, que se desdobra na multiplicidade de suas imagens e se constrói como um campo de relações.

É uma maquinaria do olhar que se arma nesta alegoria de um observatório desastrado, exercício de um “otro modo de mirar” que busca romper com toda ordenação cerceadora e põe em curto-circuito os mecanismos de poder que gerem a realidade do costume, fazendo funcionar o mundo segundo novas regras; engrenagem do desejo que 301 estabelece novas relações e novos paradigmas de relação entre os seres e as coisas, deslocados de seu espaço próprio e transportados para um universo de imagem, regido pela analogia, que se revela tradução estética de um princípio utópico de continuidade geral. Uma nova máquina do mundo – de um cortazariano mundo – assim se compõe, no trabalho plástico, de manipulação de formas, praticado por texto e fotografias que fragmentam a inteireza opressora do real, deslocam seus elementos e os reordenam em novas paisagens, criando um cenário mítico que terá, no entanto, como vimos, aspirações inegavelmente históricas, encenando virtualmente em sacrifícios e cópulas cósmicas os princípios fundadores de um universo estético, que se fará, por sua vez, medium de efetiva ação humana sobre o real: meio de conhecimento, de reflexão e de transformação.

Esta a vocação de uma obra que explora ao máximo as potencialidades interventivas do artístico, põe em relevo a contraparte ética do estético e exerce sua potencialidade de penetração política.

Prosa del observatorio compõe-se de materiais diversos. Páginas de texto, fotografias, páginas vazias, constituindo um livro híbrido cuja estrutura se constrói no intercalar destes heterogêneos elementos e cujo sentido se configura no jogo de montagem que engendram, trabalho de diálogo, de vai-e-vem, de interrupção e retomada, de interstício e ponte, de análise e síntese, de choque e reflexão que apela a instrumentos e a mecanismos cognitivos diversos, e se realiza mediante operações mentais variadas de leitura de texto e imagem, decifração pragmaticamente determinada ou afetivamente sugerida de códigos diversos, reconhecimento intelectual ou rememorativo de referências, reflexão sobre formas que se voltam sobre si mesmas em seu discurso auto- 302 remissivo ou em sua visualidade problemática, racionalmente indeterminável ou indiscernível.

Livro estruturado como forma aberta, perpetrada de cisões que tomam corpo nas suas páginas vazias, concretos intervalos materialmente abertos numa obra fragmentária, texto em que escrita e fotografias se entrelaçam de acordo com uma lógica que se mostra algo aleatória, abdicando de princípios rígidos de conexão, de correspondências pré- determinadas entre texto e imagem, produzindo-se uma trama que parece mal cerzida ou esgarçada, feita com pontos irregulares ou largos demais que deixam buracos, vãos, fissuras na forma. Trabalho de cuidadoso desleixo de um Cortázar que, na esteira daquele ideal de Morelli que comentávamos em nosso primeiro capítulo, entrega a seu leitor um livro de fragmentos apenas mais ou menos arrumados numa frágil ordem, mosaico mesmo de um caleidoscópio: provisório, instável, dinâmico, prestes a transformar-se sob a ação da mão que vira páginas como a girar um tubo de brinquedo com cristais no fundo.

Não temos, em Prosa del observatorio – como tínhamos em Rayuela – um texto de instrução em que Cortázar explique que estamos diante de um livro que se pode ler de diferentes formas, constituindo-se como muitos livros. Também não temos aí um

Tabuleiro de Direção que explicitamente nos oriente a dar ao texto uma ordenação diversa daquela que a seqüência das páginas e a numeração dos capítulos impõe, ao menos nas obras tradicionais. E, no entanto, este potencial múltiplo e metamórfico que

Rayuela executa tão decisiva e tão subversivamente parece fazer-se presente, como uma espécie de latência, também no livro que ora abrimos. Decerto, a operação de sua leitura não implica saltos entre capítulos ou possibilidades variadas de ordenação do texto, que 303 constitui uma unidade contínua e seqüencial, mas induz a outros saltos e sugere outros meios de alteração estrutural.

Esta proposta de abertura e movimento da obra nela se manifesta por meio de diversos recursos que atuam no texto, nas fotos e no livro de Cortázar como objeto mesmo – forma concreta, física – conferindo aos elementos que o compõem um caráter fragmentário que convida permanentemente a um trabalho sempre renovável de reordenação. No que respeita ao texto, sua estrutura, apesar de seqüencial, não é linear, constituindo-se de múltiplas linhas discursivas – três principais (a narrativa do ciclo das enguias, o comentário sobre a empresa astronômica de Jai Singh, o apelo revolucionário à transformação da realidade) e outras secundárias (a carta endereçada à Senhora Bauchot, as diversas citações e comentários meta-reflexivos incorporados ao texto, por exemplo), que se entrelaçam umas às outras mas conservam seu estatuto de diversidade, compondo um discurso conscientemente cindido, polifônico e que se pode articular de variadas maneiras, estabelecendo-se diferentes relações entre as vozes que o constituem. As fotografias, por sua vez, são apresentadas isoladamente, como estruturas autônomas, sem qualquer título, legenda ou identificação que as situe, emblemáticas irrupções visuais nem sempre definíveis como formas reconhecíveis, que parecem resultar, em muitos casos, de processos de corte, ampliação de detalhe ou montagem aplicados a outras fotografias presentes no livro, estabelecendo-se portanto entre elas uma relação factual de fragmentação e reordenação visual, que resulta, para o leitor, em exercícios lúdicos de quebra-cabeça ou de caça e decifração de formas, semelhantes àqueles usados para desenvolver a inteligência espacial das crianças. É, porém, na operação de montagem de 304 texto e imagem que se torna mais produtiva a potência fragmentária dos elementos de composição de Prosa del observatório .

O texto escrito, embora constitua uma unidade, é fraturado, constantemente interrompido por páginas vazias e fotografias que parecem deslocadas em meio a espaços vazios e a um texto com o qual estabelecem, sim, uma relação, que não será, porém, imediatamente apreensível, pautada na obviedade da mera ilustração ou determinada necessariamente por um critério de contato ou proximidade. De fato, as fotografias de

Prosa del observatório não se relacionam obrigatoriamente com o trecho de texto que as precede ou que a elas se segue na composição do livro, podendo (como na dinâmica da leitura aos saltos sugerida em Rayuela ) remeter a outras passagens, mesmo distantes, estabelecendo com elas relações que não se baseiam, jamais, num efeito de reprodução exata de sentido, de reduplicação pela foto do que o texto já diz. O diálogo estabelecido entre texto e imagem no livro de Cortázar não serve a um mecanismo semântico de ratificação de sentido, mas a uma estratégia formal de construção reflexiva de sentido, que passa pelo choque e por um convite – um tanto lúdico – à compreensão.

A partir desta constatação, podemos compreender que não é apenas na superfície legível e visual das páginas de Prosa del observatório que se sustenta a interação entre seu texto e suas imagens, mas, sobretudo talvez, em outro plano de operação do texto: não na apresentação como produtos prontos de seu texto e de suas fotografias –, mas na gênese mesma destas formas, escritura do texto e elaboração da imagem, processos de geração que se prolongam nas estruturas constituídas de um e outra como trabalho de formas dialéticas: gestualidade reflexiva, violência de abertura e transformação. 305

Operações que a dinâmica intersemiótica de Prosa del observatorio dispara, ao pôr em contato formas heterogêneas entre as quais se propõem diversas relações possíveis, fazendo do livro um campo de possibilidades de articulação que a leitura – potencialmente pluralizada – concretizará em movimentos que seguem diversas direções complementares, apreendendo uma variedade de relações entre os fragmentos dados em textos e fotografias, num exercício de compreensão que emprega diferentes faculdades cognitivas e imaginativas de decifração e associação – um pensamento aos saltos – e se converte, segundo a poética da obra aberta, em manobra ativa de produção de sentido a partir de uma manipulação da forma.

Neste trabalho engendrado pelo texto em que o leitor se faz personagem ativo e consciente, as páginas vazias de Prosa del observatorio desempenham um papel fundamental. São brechas concretas abertas no livro, brechas que, como vimos, o texto busca, fundando nelas, em seu estatuto de abertura e passagem, o seu projeto e a sua poética. De certo modo, atuariam, então, à semelhança daquele vazio surgido na última página do planejado livro de Morelli de que falávamos em nosso último capítulo, na qual, depois de múltiplas repetições da frase “En el fondo sabía que no se puede ir más allá porque no lo hay”, como que formando um muro a impedir a passagem, em uma delas faltava o lo , abrindo-se, nesta ausência do termo que a referia, o possível acesso a uma realidade mais além da página. Também a Prosa del observatorio é obra aberta neste sentido de querer projetar-se além do limite de suas páginas, transgredindo o espaço próprio do texto para ingressar no mundo. No entanto, estas páginas vazias têm ainda uma função crucial na determinação da operação de leitura do livro. Isto porque elas não são apenas o lugar de uma ausência, o espaço de uma cisão, mas instrumentos de quebra, 306 de fratura da obra – intervalos no texto que o interrompem e o fragmentam, provocando um efeito de suspensão frustrada da leitura, breve ruptura em que o leitor se desapega momentaneamente do que lê. Este afastamento, que não configura um abandono da obra, mas apenas um distanciamento do leitor que se dá ainda na esfera compreendida por ela,

Barthes associou ao gesto de levantar os olhos, ação que, segundo ele, define o momento do autêntico ato de leitura, que deveria ser pensado como uma intervenção reflexiva e recriadora do leitor sobre o texto. Toda obra de qualidade engendra esse gesto, necessária interrupção em que o leitor de fato apreende o que lê, ultrapassando um estágio mecânico de decifração objetiva da linguagem para pensar o texto, para interagir com ele, para reescrevê-lo num trabalho de co-autoria. Cortázar, porém, que fazia desta parceria com o leitor um princípio essencial de sua literatura, assegura a realização desta operação, assimilando à própria estrutura de seu livro o gesto de interrupção, o espaço vazio e o tempo de intervalo necessários ao exercício ativo da leitura. O distanciamento que se provocava em Rayuela por meio dos saltos entre capítulos e pelas quebras de enredo daí derivadas, muitas vezes dissipando-se a tensão da trama por meio da inserção de um elemento fora de contexto ou mesmo cômico (sendo o caso mais emblemático deste procedimento a interrupção da cena da morte de Rocamadour, o filho pequeno da Maga, por uma reportagem de The Observer sobre os riscos do fecho-éclair) se cumpre em

Prosa del observatorio pela inserção das páginas em branco – e mesmo das fotografias, em certo sentido, por desviarem o rumo da operação cognitiva em curso na leitura do texto escrito para outra direção.

Assim as fotografias dos instrumentos astronômicos de Jai Singh, desastrados e transformados numa arquitetura de cisões e passagens pelo olhar maquínico da câmera de 307

Cortázar; encarnando como experiência visual e tátil – como gesto – a operação fundamental de toda a sua obra: revelando-se brechas na sucessão , signos de uma utopia formulada como heróica busca que se concretiza numa forma. Assim também as imagens que tomam forma na engrenagem da escritura de Prosa del observatorio : cristalizações de encontros fulgurantes que dialeticamente constituem e desafiam o fluxo desta escritura, fazendo jus ao estatuto de imagem firmado por Pierre Fédida:

Dir-se-ia então que aquilo que se chama imagem é, um instante , o efeito produzido pela linguagem em seu brusco ensurdecimento. Reconhecer isso seria reconhecer que, tanto na crítica estética como na psicanálise, a imagem é parada sobre a linguagem, o instante de abismo da palavra. 307

É um trabalho de violência que aí mais uma vez se atribui à imagem como forma, dotada de uma potência de interrupção e silêncio, de uma força desintegradora do discurso. Violência que, num outro contexto de representação – o drama épico de Brecht, em que novamente encontraremos um paralelo produtivo de comparação para a obra de

Cortázar –, Benjamin associará ao gesto e observará reverter-se uma vez mais em virtude reflexiva e medium dialético: “Quando o fluxo real da vida é represado, imobilizando-se, essa interrupção é vivida como se fosse um refluxo: o assombro é esse refluxo. O objeto mais autêntico desse assombro é a dialética em estado de repouso”308 . Esta “dialética em estado de repouso” (outra versão daquela “dialética em suspensão” que apontava para o próprio conceito de “imagem crítica”309 ) cuja manifestação Benjamin localiza nos gestos do drama brechtiano não parece em nada estranha àquela dialética sem síntese formulada

307 « On dirait alors que ce qu’on appelle image est, un instant , l’effet produit par le langage dans son brusque assourdissement. Savoir cela, serait savoir que, dans la critique esthétique comme dans la psycanalyse, l’image est arrêt sur le langage, l’instant d’abîme du mot. » Pierre Fédida apud Georges Didi- Huberman. Gestes d’air et de pierre . Corps, parole, souffle, image, 2005. A citação de Fédida é a epígrafe do livro de Didi-Huberman. 308 Walter Benjamin. “O que é teatro épico? Um estudo sobre Brecht”, in: ---. Magia e técnica, arte e política , 1994, pp. 89-90. 309 Cf. p. 148. 308 por Bataille e Didi-Huberman também como um paradigma próprio da imagem. De fato, os dois conceitos parecem esforços para definir o mesmo mecanismo de uma dialética que não se resolve, que não chega a uma solução; e que assim, como tensão viva, acomoda-se provisoriamente num gesto ou numa imagem – um tanto como os demônios de Cortázar na forma fechada de seus contos – à espera de uma leitura , de uma compreensão que possa recolocar em jogo os opostos que ela faz convergirem e conviverem, e revelar sua virtualidade de reflexão – sobre si mesma e sobre a realidade cujo fluxo ela interrompe e cristaliza em gesto emblemático ou imagem fulgurante.

Assim se constrói Prosa del observatorio , montagem dramática de gestos heróicos e escritura poética de imagens que não o são menos; máquina cuja operação se redescobre gestualidade, assumindo, portanto, responsabilidade ética sobre os objetos que manipula: elementos de uma realidade que ela proporá transformar em movimentos de quebra, deslocamento e reordenação – projeto utópico que se reconhece ainda busca em exercício; que tem consciência mesmo de que o será sempre, no contexto desta alegórica maquinaria desastrada e desejante que não visa a gerar uma imagem finalmente terminada de um mundo perfeito enfim conquistado; que quer apenas postular a necessidade – política – de sua permanente transformação pelo homem.

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