edição 172 desde abril de 2000 O jornal de literatura do Brasil

Curitiba, agosto de 2014 | WWW.rascunho.com.br

Ser pai, como ser escritor, é um work in progress. Você nunca acaba de aprender e pensa o tempo todo que está errado e errando.” Juan Pablo Villalobos • 4/5

Inédito • Poemas > Patrick Holloway • 26 172 • agosto_ 2014 2

quase-diário : : affonso romano de sant’anna Há vinte anos

UEM SOMOS CONTATO ASSINATURA DO JORNAL IMPRESSO CARTAS 21.03.1994 dos bibliotecários, que certa vez, estranhamente, escreveu 24.04.1994

EDIÇÕES ANTERIORES COLUNISTAS DOMJantar CASMURRO naENSAIOS casa E RESENHAS de ENTREVISTASStella MarinhoPAIOL LITERÁRIO PRATELEIRA para RomaricNOTÍCIAS OTRO OJO Buel. Falo um violento artigo no JB sobre minha presença na direção Emanuel Brasil passou comigo diante do Chelsea Hotel, com Cravo Albin sobre a possibilidade de ele doar sua fabulo- da Biblioteca Nacional, alegando essencialmente que eu era em Nova York, onde ficavam artistas e onde Haroldo de Cam- sa coleção de discos à Fundação Biblioteca Nacional (FBN). um poeta que ele admirava, mas que não entendia nada de pos (literariamente) fez questão de se hospedar. O hotel hoje é Possibilidade de convertermos em fundação a sua casa, sugeri biblioteconomia. Isto foi chocante e surgia na hora em que uma espelunca. Quadros horríveis na parede, teto sujo. Fui até patrocínio. Ele ficou encantado com a ideia. Chegou Renato o corporativismo dos bibliotecários se levantava aqui e ali, a um quarto para ver: até cortina de plástico rasgado tinha no Archer, da Embratel; quem sabe ele patrocina esse projeto? evidentemente me constrangendo. banheiro. Saí correndo para onde estavam para o Olcott, perto Nesta semana veio me entrevistar Denis Moraes para O Edson na plateia, eu evitando olhá-lo. Alguém até me do Central Park, onde estive com Marina noutra ocasião. uma biografia de Henfil. Sempre fui amigo de Henfil, desde o disse que ele pedira um exemplar de Poesia sempre, eu ne- DM2 do Diário de Minas, que dirigi, onde de alguma manei- guei, pois achava que ele ia me esculhambar de novo dizendo 27.05.1994 ra ele começou. São tantas estórias, dele do Betinho, etc. Mas que a FBN publicava poesia e não coisas bibliográficas. Morte no trem. O trem vai partir entre Bruges e Frank- me surpreendi como me esqueci das coisas. Como o avião da volta coincidia com o término da con- furt. Atrasou 40 minutos. Morreu uma pessoa. Chega a am- Por falar em esquecimento, me lembrei agora da ceri- ferência, não pude conversar muito com as pessoas. Mas bulância. Desceram médicos, enfermeiras, etc. Tudo silen- mônia na FBN em homenagem a Graciliano. Estavam lá pa- percebi que o Edson queria se acercar de mim. Chego ao ae- cioso. Pessoas discutem e olham à distância. Contemplam rentes do romancista, amigos e o Nelson Pereira dos Santos. roporto, entro no avião, relaxo e pego por acaso um jornal da janela do trem, da plataforma. Localizo uma linda mulher Pedia eu que as pessoas contassem o que sabiam sobre o ve- do dia. E aí vem a coisa inacreditável. Um artigo do Edson que eu e Marina admiramos. O que é a beleza! O que terá ela lho Graça. Chegou a vez do Alberto Passos, a quem Gracilia- Nery da Fonseca se desculpando publicamente de ter me na cabeça? Como será que ama? É tão linda! Plácida. Tem um no dedicou Caetés. Chamei-o para falar, ele veio à frente de atacado injustamente. Eu nunca vi isto em nenhum lugar. A coque. Olhos azuis. Traços angelicais, perfeita de frente ou de todos e ficou em silêncio. O chamado silêncio constrangedor. pessoa ter essa coragem de se retratar em público, elogiando perfil. Ela também olha a cena da ambulância. Um indiano De repente, se explicou emocionado: “Desculpem-me. Não o trabalho que estava sendo feito à frente da FBN. Começa- olha. Um turco olha e fuma no vagão dos não fumantes. me lembro de nada”. va assim: “Quem leu meus protestos contra a nomeação de Depois retiram o corpo involucrado e na maca. Não têm Affonso Romano de Sant’Anna para a presidência da Biblio- pressa. Já está morto. Olham todos. No Brasil a cena seria 25.03.1994 teca Nacional e sua permanência nesse cargo talvez estranhe outra, barulho, movimento, emoção. A gente, todo mundo se Costa Rica. Festival de Poesia. Coisas/frases dos poetas o presente artigo. Pode até pensar que houve engano do jor- indagando: Quem é? Como foi? Que idade tinha? no festival de poesia: nal na atribuição da autoria. Puro engano. Como dizia Clau- O corpo desce do trem para a ambulância. Alguém des- Juan Gelman (argentino), citando um comunista rus- del, ‘reservo-me o direito de contradizer-me’”. E fazia uma ce com uma bolsa e um casaco. Dever ser da morta. so: “O futuro é incerto, mas o passado é improvável”. autocrítica. O trem vai partir. A morta partiu antes. Jorge Adoun (Equador) — me mostra a foto de um ca- Vou lhe escrever uma carta fraterna. sal abraçado, mas abraçados há oito mil anos. Foram encon- 16.07.1994 trados no Equador. Jorge escreveu um poema sobre a foto. 22.04.1994 Olimpio Mattos, pesquisador da BN, traz 34 poemas/ Fizeram também um balé com o tema. Eduardo Galeano es- Colômbia. A Móbil Oil (Michel Morgan) oferece um cópias de O momento feliz, de Drummond. Isto há três creveu algo. Posso fazer uma crônica/poema. jantar no Quatro Estaciones. A movimentação para os res- dias. É um poema sobre o tricampeonato em junho de 1970. taurantes foi feita num carro histórico, pois a Móbil Oil com- Detalhe: CDA colocou um passepartout em todas as cópias 29.03.1994 prou o carro que teria sido de Somoza, um veiculo brindado. dos poemas publicados no JB e colocou também dedicatórias Inacreditável o que aconteceu após a conferência na O ditador nicaraguense havia encomendado esse carro para para todos os jogadores e membros da seleção. Fundação Joaquim Nabuco/Recife, onde fui falar no semi- se proteger. Não teve jeito. Mataram-no quando ele foi ao Combino com a TV Globo: mandarei um fax para Car- nário sobre Tropicologia, a respeito de “Carnavalização e so- Paraguai, duas semanas antes de receber essa viatura. Muito los Alberto Parreira (que é um dos homenageados de CDA) ciedade brasileira”. estranho estar nesse carro. com cópia do poema e da dedicatória, convidando-o a rece- Presente um bom público. Noto que lá está Edson Nery Volto ao hotel e a TV anuncia que Richard Nixon mor- ber o original na BN. A ideia é que todos os jogadores façam da Fonseca, um dos mais respeitáveis intelectuais e decano reu de ataque cardíaco. o mesmo, venham.

nesta edição translato : : eduardo ferreira

o doente 06 André Viana E o texto lança boca do inferno UEM SOMOS CONTATO ASSINATURA DO JORNAL IMPRESSO CARTAS 10 Otto Lara Resende de si significados EDIÇÕES ANTERIORES COLUNISTAS DOM CASMURRO ENSAIOS E RESENHAS ENTREVISTAS PAIOL LITERÁRIO PRATELEIRA NOTÍCIAS OTRO OJO

madrugada suja 19 Miguel Sousa Tavares texto lança de si sentidos, vários, Milagres da pena, tradução. de tantas palavras. A palavra que não se es- tantos. Explosão. Caos feito dessa Nesse atrito, friccionar texto contra creveu, mas que esteve presente na ponta da confusa profusão de significados, circunstâncias — buscar no contexto o efeito pena. À beira de. Retomar não a real e ine- aguapés O à espera de seu próprio demiurgo. surpreendente. Roçar a pena no papel: dos quívoca intenção original do autor, mas a Jhumpa Lahiri Há que capturá-los, soltos no ar, presos no sulcos, palavras. Das raspas ainda quentes — sensação daquele gesto esquecido — o gesto 22 papel, livres na mente. Há que identificá-los, pastoso-plásticas, moldáveis — novas quime- que se desenhou na gênese do texto. classificá-los, aplicar-lhes pacientemente ras feitas ideias. Das faíscas, tradução. Encontrar, na tradução, a velha sensa- fina taxonomia. E ir além: aplicar-lhes arte — Mergulhar na aparente lisura do texto ção da surpresa, literatura. Saber, o tradutor, literatura, o requinte da palavra — mais que e sentir todo o seu áspero relevo: ravinas ca- maravilhar-se uma e outra vez com as repe- ofício. Trazê-los de volta ao rés da folha, fixá- vadas pelo escoar de tantos sentidos. Sentir a tições surradas — e transformá-las em nova -los, gravá-los em nova roupagem. textura ríspida dos sulcos rascados, feitos à literatura. Saber renovar um texto velho, ori- O texto também espraia sentidos. Cria- custa do rasgo da pena. Enxergar além do es- ginal. Encontrar encanto, tradução. ção via dispersão, como descargas que vão pelho plácido do texto, verdadeira tradução. O original não seria álbum de fotos, Cartas semear novas palavras. Fagulhas que já não Na tradução, desafiar de novo a verdade mas imagem em movimento, literatura. O : : [email protected] : : guardam vínculo sólido com o fogo que as ori- do original — como em cada leitura. Aceitar o corte, cirúrgico, deve passar despercebido, a ginou. Só o risco luminoso no ar, fugaz. Há que desafio que lançou lá atrás o autor. Elucidar montagem sólida e convincente, sem costu- reuni-los, os sentidos, ordená-los, colocá-los o enigma, inteiro ou parcialmente. Fixar nova ras aparentes, embora inevitáveis. Trabalho em forma que volte a fazer sentido. Enfeixar verdade, para que outra vez enfrente o mesmo do tradutor sobre o texto. Obra que, embo- UEM SOMOS CONTATO ASSINATURA DO JORNAL IMPRESSO CARTAS Reconhecimento ideias esparsas para, no firme atrito ideia con- desafio, num rito de eterno retorno: tradução. ra não lapidar, saiba lançar de si as mesmas

EDIÇÕES ANTERIORES COLUNISTAS DOM CASMURRO ENSAIOS E RESENHAS ENTREVISTAS PAIOL LITERÁRIO PRATELEIRA NOTÍCIAS OTRO OJO tra ideia, gerar chispa e texto novo, tradução. Gravar em novo texto aquele mesmo provocações do original. Cuidar do texto dos Acompanho os relatos de Nesse atrito, recuperar a fera trombada sabor da palavra, palavra que perdura em outros, para outros. William Lial no blog do nosso do fantástico com o real, fazer brotar de novo toda a sua extensão, na memória, num sentir Cerzir de maneira que não se saiba clube de leitura Icaraí. Adoro a literatura. Raspar do real a fina camada ve- que abarca o ser todo. Em novo texto, a pala- exatamente qual o original, qual a tradução: sua escrita e mais uma raz, o verniz que esconde a multiplicidade do vra que efetivamente perdura. Fazê-la render tradução perfeita. Objetivo utópico de toda vez me encantou. Minha olhar e a irresponsável indeterminação do além do que dela se podia esperar: tradução. escrita. Alcançar a perfeita transmutação da curiosidade crescia a cada sentido. Mergulhar nesse poço de enganos. Recuperar, na tradução, aquele gesto palavra bruta — matéria sobre matéria, tinta linha. Vou comentar com a Cajado fincado na terra que faz brotar a água. esquecido do autor, perdido nos meandros sobre papel — em nova ideia. turma do clube sobre esse novo livro do Amós Oz, tão bem analisado [sobre resenha de Entre amigos, de Amós Oz, publicada no Rascunho #171, escrita por William Lial]. rodapé : : rinaldo de fernandes Vera Lúcia Schubnell Freire • via e-mail Anotações sobre romances (12) Envie carta ou e-mail para esta seção com nome completo, endereço e telefone. Sem alterar o or que O apanhador no campo intensamente a interioridade do protagonista, viaja de volta para Nova York e, antes de se (re) conteúdo, o Rascunho se reserva o direito de UEM SOMOS CONTATO ASSINATURA DO JORNAL IMPRESSO CARTAS adaptar os textos. As correspondências devem de centeio (1951), do americano J. sua insatisfação ou mal-estar com os “cretinos” apresentar à família, resolve se hospedar num ser enviadas para: Al. Carlos de Carvalho, 655 D. Salinger, é um romance que atrai e “falsos” que o cercam? Talvez tudo isso. O velho hotel. São três dias de deambulações, be- EDIÇÕES ANTERIORES COLUNISTAS DOM CASMURRO ENSAIOS E RESENHAS ENTREVISTAS PAIOL LITERÁRIO PRATELEIRA NOTÍCIAS OTRO OJO conj. 1205 • CEP: 80430-180 • Curitiba - PR. tanto, tendo uma legião de leitores e fato é que Holden Caulfield é um personagem bedeiras e profunda solidão, que provoca no Os e-mails para: [email protected]. P admiradores mundo afora? A fluidez e o co- inesquecível, inquietador, fazendo do único personagem um quadro de depressão precedido loquialismo (que inclui o uso do palavrão) romance de Salinger um dos mais importantes de um esgotamento físico e mental. E são esses da narrativa, feita por um adolescente de 17 do século 20. O romance, para quem não sabe, três dias da vida de Holden que o leitor acom- anos? A rebeldia e o escárnio do adolescente? narra três dias na vida de Holden Caulfield, -fi panha, além de seus (irretocáveis) monólogos, A força da vigorosa desconstrução de valores lho de um advogado rico de Nova York. Três nos quais inúmeras recordações dos vários tipos e costumes, melhor dizendo, da ideologia ou dias próximos ao Natal, logo após Holden ter com quem conviveu ou topou (especialmente do convencionalismo da classe média ameri- sido expulso (ele é reincidente em expulsões durante a fase de seus 16 anos) são postos em Assinatura anual por apenas 84 reais cana no pós-Guerra? A acoplagem perfeita do escolares) do conceituado Internato Pencey, cena para serem questionados, desqualificados, [email protected] ponto de vista narrativo, que faz o leitor viver na Pennsylvania. Holden deixa o internato, demolidos pelo protagonista. 172 • agosto_ 2014 3

o jornal de MANUAL DE GARIMPO : : Alberto Mussa literatura do brasil fundado em 8 de abril de 2000

Rascunho é uma publicação mensal da Editora Letras & Livros Ltda. Coleção autores africanos Rua Filastro Nunes Pires, 175 • casa 2 CEP: 82010-300 • Curitiba - PR UEM SOMOS CONTATO ASSINATURA DO JORNAL IMPRESSO CARTAS 41 3527.2011 [email protected] m 1979, com A vida verdadeira de so ibo, uma das etnias mais populosas da Nigéria. Os instigante novela Kahitu — história de um para- www.rascunho.com.br Domingos Xavier, de Luandino Viei- livros de Achebe tratam da presença destrutiva do lítico que seduz a moça mais bonita do lugar, nar- EDIÇÕES ANTERIORES COLUNISTAS DOM CASMURROra, ENSAIOSa editora E RESENHAS ENTREVISTAS ÁticaPAIOL inaugurava LITERÁRIO PRATELEIRA NOTÍCIASum dosOTRO OJO colonizador nas sociedades tradicionais — ao mesmo rada de um ponto de vista tipicamente quimbundo Emais importantes projetos da história tempo em que as analisa sem nenhuma espécie de (etnia dominante na região de Luanda, que muito ROGÉRIO PEREIRA editorial brasileira. Falo da coleção Autores afri- idealização, diria mesmo sem nenhum pudor. influiu na cultura brasileira). editor canos, que teve 27 volumes e se encerrou, lastima- A experiência é fascinante: porque estão ali A tradição oral é a base de outra obra-prima: velmente, no início dos anos 90. toda a complexidade, toda a beleza e todas as con- Sundjata, de Djibril Tamsir Niane, por onde pe- SAMARONE DIAS Para quem compreende a literatura como um tradições do pensamento ibo, com suas intrinca- netramos na magnífica mitologia heroica dos man- editor-assistente método de viver muitas vidas no tempo de uma, é des- das redes hierárquicas, suas sociedades secretas, dingas, senhores do antigo império do Mali. Outro necessário explicar por que é tão importante transpor seus espíritos cobertos de ráfia, suas misteriosas autor que bebe em fontes do passado (no caso, a JOÃO LUCAS DUSI as barreiras impostas pela nossa etnocentricidade. cavernas sagradas, suas florestas malditas, seus herança literária árabe) é o tunisiano Chems Na- estagiário Embora não tenha sido pioneira (a Nova Fron- terríveis sacrifícios. dir, com os contos de O astrolábio do mar, co- teira, por exemplo, já havia publicado meia dúzia de Tema recorrente, o conflito de civilizações letânea que tem pelo menos três pérolas. COLUNISTAS romances africanos), o mérito da Ática foi ter criado reaparece em Aventura ambígua, de Cheikh As lutas da independência e a denúncia das Affonso Romano de Sant’Anna uma coleção relativamente duradoura, com identi- Hamidou Kane, novela muita densa e muita bela, instituições coloniais são outro tema importante. Alberto Mussa dade própria, devido a um belíssimo projeto gráfico. que narra o dilema de um jovem senegalês, educa- Muitos livros tratam disso, como o referido A vida Eduardo Ferreira Apesar de ser um número ainda muito pe- do na rígida tradição muçulmana, ao ter contato verdadeira de Domingos Xavier (história de Fernando Monteiro queno para a diversidade literária e cultural do com a cultura ocidental. um jovem que morre resistindo à tortura), Sagrada João Cezar de Castro Rocha continente, esses 27 títulos traçam um perfil bem Numa vertente irônica, essa mesma maté- esperança (reunião de poemas de Agostinho Neto) José Castello razoável da produção africana da segunda meta- ria está em dois bons livros: A ordem de paga- e Yaka, de Pepetela (que vem sendo publicado pela Luiz Bras de do século 20, escrita nas línguas coloniais. Boa mento, do também senegalês Sembène Ousmane, Leya), saga de uma família de colonos portugueses Raimundo Carrero parte desses livros é verdadeira obra-prima. que ridiculariza o espírito burocrático europeu; e vinculada à lenda de uma misteriosa máscara. Uma delas é , de Chi- , de Uanhenga Xitu, sobre a ob- Creio ser impossível encontrar a coleção Rinaldo de Fernandes O mundo se despedaça Mestre Tamoda nua Achebe (que teve recentemente nova edição pela sessão de um velho angolano em falar um portu- completa. E exemplares isolados cada dia são mais Rogério Pereira Companhia das Letras). Difícil descrever o impacto guês sofisticado. raros. Às vezes podem custar R$ 10,00; outras, desse romance, que desce às profundezas do univer- O mesmo volume de traz a chegam a R$ 60,00. ILUSTRAÇÃO Mestre Tamoda Bruno Schier Carolina Vigna-Marú Dê Almeida Fabiano Vianna Fábio Abreu vidraça : : joão lucas dusi Felipe Rodrigues Hallina Beltrão Leandro Valentin Clube da Fantástica Marco Jacobsen Copa do Mundo Em agosto, a Rocco lança o selo Osvalter Urbinati Leitura Fantástica. Voltado à literatura Rafa Camargo UEMde SOMOS CONTATO LiteraturaASSINATURA DO JORNAL IMPRESSO CARTAS Organizado pela Fundação fantástica — fantasia, ficção Rafael Cerveglieri Cultural, acontece em Curitiba científica e terror — e suas várias Ramon Muniz EDIÇÕES ANTERIORES COLUNISTASNa CopaDOM CASMURRO do MundoENSAIOS E RESENHAS deENTREVISTAS Futebol,PAIOL LITERÁRIO a AlemanhaPRATELEIRA NOTÍCIAS levouOTRO OJO (PR) o Clube da Leitura O vertentes, publicará tanto clássicos Rettamozo o título; já na Copa do Mundo de Literatura, bairro — nome inspirado na considerados cult quanto novos Ricardo Humberto representada por Austerlitz, de W. G. Sebald, obra homônima de Gonçalo M. sucessos e tendências. Cemitérios Robson Vilalba caiu na semifinal. A taça foi para o chileno Tavares. No primeiro encontro, de dragões, de Raphael Draccon, Tereza Yamashita Roberto Bolaño (foto), com o romance Noturno dia 6 de agosto, haverá leitura e O reino das vozes que não Theo Szczepanski do Chile, que atropelou Rostos na multidão, performática e a apresentação se calam, de Carolina Munhóz e Tiago Silva da mexicana Valeria Luiselli, por um largo do projeto. Os demais encontros Sophia Abrahão, marcam a placar de 17-9. Trata-se de uma competição — quinzenais — serão dedicados estreia do selo. FOTOGRAFIA virtual realizada pelo programa Three Percent, a discutir os romances A Matheus Dias da Universidade de Rochester, nos Estados desumanização, de Valter Hugo Unidos, onde foi escolhido um livro de cada Mãe, e Cem anos de solidão, Online PROJETO GRÁFICO país participante da Copa do Mundo de Futebol. Aqui, o Brasil de Gabriel García Márquez. As A partir de 13 de agosto, o e PROGRAMAÇÃO VISUAL também não se saiu muito bem: representado por Budapeste, de Chico reuniões acontecerão na Casa da crítico literário e colaborador Rogério Pereira / Alexandre de Mari Buarque, caiu logo na segunda rodada ao enfrentar o eventual campeão Leitura Dario Vellozo, na Praça do Rascunho Rodrigo Gurgel chileno. Também participaram da competição The pale king, romance Garibaldi, 7 — Largo da Ordem. ministra um curso online sobre colaboradores desta edição inacabado do norte-americano David Foster Wallace, Memórias de A mediação é de Murilo Coelho conto, abordando teoria e prática. Alexandre Marques Rodrigues minhas putas tristes, do colombiano Gabriel García Márquez e e Lucas Buchile. Inscrições e Sobre diferentes perspectivas, André Caramuru Aubert O mapa e o território, do francês Michel Houellebecq. outras informações pelo e-mail serão estudados os contistas Edgar Arthur Tertuliano coordenacaodeliteratura@fcc. Allan Poe, Anton Tchekvov, Ernest Carlos Augusto SIlva curitiba.pr.gov.br. Hemingway, Guimarães Rosa, Carlos Nejar Serrote novo Horácio Quiroga, W. W. Jacobs, Clayton de Souza Durante a 12ª edição da Festa Literária Internacional de Paraty, o Instituto Henry James, Hector Hugh Munro, Estevão Azevedo Moreira Salles lançou mais uma edição da revista Serrote. Na seção Perfil Machado de Assis, Franz Kafka e Flávio Ricardo Vassoler Ficção, com Breves conferências, a poeta canadense Anne Carson borra Flannery O’Connor. Ao final do Gisele Eberspächer os limites entre os gêneros literários combinando referências eruditas e do leitor curso, o aluno deverá enviar um Guilherme Pavarin anotações íntimas como as de um diário; com Ficções da vida e da morte, conto para ser analisado. Inscrições Haron Gamal o inglês James Wood define a literatura como um momento privilegiado brasileiro pelo site cedetonline.com.br. Kenneth Rexroth de compreender a vida do princípio ao fim; o ensaísta brasileiro Alexandre A rede social literária Orelha Martim Vasques da Cunha Eulalio (1932-1988) participa com o texto Os Beatles são um pouco de Livro fez um levantamento Paula Cajaty de tudo para todas as pessoas; entre outros. para traçar o perfil do leitor Construindo Patrick Holloway brasileiro. Ao cruzar dados de Roberta Ávila tráfego da rede social — que personagens Rodrigo Casarin Ponto do conto conta com 180 mil usuários De 4 a 7 de agosto, a Oficina de Rodrigo Gurgel A revista Ponto, da editora Sesi-SP, chega a sua 6ª edição. A partir — com a pesquisa do Instituto Escrita Criativa, em São Paulo Vilma Arêas desta, autores estreantes poderão enviar seus contos para publicação. Pró-Livro, chegou-se à conclusão (SP), promove curso intensivo William Lial O material — que deve conter entre 6 mil e 8 mil caracteres — deve de que as mulheres se dedicam sobre a criação de personagens ser enviado para o e-mail [email protected]. mais à leitura. Do total de 88,2 de ficção, com técnicas pontuais Mahana Pelosi Cassiavillani estreou a seção Ponto do Novo Conto, com milhões de leitores brasileiros, para a verossimilhança e o O que faz um farol e A vida sempre sem graça de Sandra. Já a seção elas representam uma parcela de efeito literário. A mediação é da Lei 8.313/91 (Lei Rouanet) Ponto do Conto foi ocupada pelo editor do Rascunho, Rogério Pereira, 57% e leem em média 4,2 livros jornalista, poeta e roteirista Julia Programa Nacional de com Mãos vazias, que em 2015 integrará coletânea de contos na França. por ano, enquanto os homens são Alquéres. Inscrições pelo site Apoio à Cultura (Pronac) O entrevistado da vez é o premiado escritor mineiro Luiz Vilela, que 43% e leem 3,2 livros. Quanto oficinadeescritacriativa.com.br. conta um pouco de sua vasta trajetória na literatura. E ainda no clima às preferências de gêneros de Copa, o jornalista Roberto Muylaert foi convidado a escrever literários, o mais procurado sobre as Copas de 1950 e de 2014, sugerindo as diferenças e por elas é o de aventura e Em Ourinhos semelhanças desses dois momentos de nossa história. mistério; eles preferem ficção O 6º Festival Literário A(o) científica e fantasia. gosto das Letras acontece entre os dias 12 e 16 de agosto, em Grandes perdas Ourinhos (SP). Exposições, fotos: divulgação Apoio Julho foi um mês fúnebre. Poesia Menor leituras, oficinas e um sarau com Em poucos dias, a literatura O selo Poesia Menor vem aí com músicas de seresta integram a brasileira perdeu quatro o objetivo de reunir versos do programação, que também vai de seus grandes nomes: o cotidiano, estreando com cinco oferecer um espetáculo teatral poeta, ensaísta e tradutor livros que pretendem oferecer com texto de Millôr Fernandes Ivan Junqueira, ocupante da relação íntima com o leitor ao — autor homenageado do evento cadeira 37 da ABL, morreu aos abordar as delícias e as dores —, que faz referência aos anos

patrocínio 79 anos, deixando uma obra da vida comum. A coleção conta de ditadura no Brasil. Entre os extensa e premiada em diversos com os títulos Espalhados autores locais, o homenageado gêneros — entre outros, levou pelo ar, O gosto da cabeça, da vez é o ourinhense Jefferson quatro vezes o Prêmio Jabuti; o Correspondência, Guizos Del Rios Vieira Neves. Também ocupante da cadeira 34 da ABL, João Ubaldo Ribeiro, autor do celebrado da carne e Toda mulher é participarão do evento o editor Viva o povo brasileiro, morreu aos 73 anos, em decorrência de uma puta, respectivamente das do Rascunho, Rogério Pereira, uma embolia pulmonar, deixando uma obra multipremiada nacional e poetas Caroline Ramos, Isadora Ignácio de Loyola Brandão, realização internacionalmente, tendo sido traduzido em mais de dez países; o escritor Krieger, Juliana Amato, Lisa Ronaldo Bressane, Ademir e educador Rubem Alves morreu aos 80 anos; e, mais recentemente, Testa e Patricia Chmielewski. Assunção e o quadrinista André Editora faleceu o ocupante da cadeira 32 da ABL, Ariano Suassuna (foto), aos 87 O lançamento acontece dia 7 Dahmer. A realização é da Letras & Livros anos. No âmbito internacional, a escritora sul-africana Nadine Gordimer, de agosto, na Casa das Rosas Associação de Amigos da Biblioteca grande nome na luta contra o apartheid e vencedora do Prêmio Nobel de (Av. Paulista, 37), em São Paulo Pública (AABiP) em parceria com a Literatura de 1991, morreu aos 90 anos. (SP), às 19h30. Prefeitura de Ourinhos. 172 • agosto_ 2014 4

: : entrevista : : Juan Pablo Villalobos Militância tragicômica

divulgação

: : João Lucas Dusi curitiba – PR

mpulsionado pela notícia de que seria pai, começou a escrever o primeiro romance. Numa época conturbada, Ina qual escrevia uma dissertação, preocupava-se em manter uma bolsa de estudos e em trabalhar, escrever um romance não parecia se encaixar nas urgências que o cercava. Chegou até mesmo a pensar em abandonar a ideia de ser escritor, quando, enfim, se deu conta de que as turbulências mundanas não interferem na execução de um projeto de romance certeiro. Foi o que aconteceu. Após seis meses de escrita e mais dois anos de correções, Juan Pablo Villalobos lançava Festa no covil, em 2010, pela espanhola Anagrama, primeiro livro do que viria a se tornar uma trilogia sobre o México. Se antes se dedicava às crônicas, contos e crítica literária, após o lançamento do primeiro romance logo engatou uma continuação — desta vez, porém, movido pela raiva. Se vivêssemos em um lugar normal — segundo livro da trilogia — veio como um experimento com os limites do real e do literário, repleto de palavrões e apoiado num sarcástico nonsense. Apesar de ter publicado seu terceiro romance, No estilo de Jalisco, em português e exclusivamente no Brasil, Villalobos nasceu em Guadalajara, no México, em 1973. É Doutor em Teoria Literária e Literatura Comparada pela Universidade Autônoma de Barcelona. No Brasil, instalou- se em Campinas (SP), onde fica até setembro, quando voltará a Barcelona. Sua trilogia sobre o México chegará ao fim comTe vendo un perro, que deve ser publicado em espanhol, no outono. Nesta entrevista concedida por e-mail, Villalobos fala de sua obra e do que aproxima e afasta México e Brasil.

• Inicialmente, Festa no covil faria par- te de uma coletânea de contos. O que o impulsionou a transformá-lo no seu pri- meiro romance? Até aquele momento, não me achava um ro- mancista. Acreditava ser contista, cronista, crí- tico. Já tinha tentado escrever um romance, de fato, mais de uma vez, e tinha fracassado. Es- sas experiências tinham me mostrado que para escrever um romance era necessário um fôlego que eu, aparentemente, não tinha. Eu parecia trabalhar bem nos espaços curtos, em textos que precisavam de uma atenção intensa duran- te poucos dias. Hoje penso que, aliás, tinha uma ansiedade por publicar que não ajudava o pro- cesso de escrita, especialmente de um romance. Um romance precisa de paciência infinita. Era como se quisesse publicar antes de escrever. Es- tamos falando de 2006, eu tinha 33 anos, estava prestes a abandonar a categoria de “escritor jo- vem” e só tinha publicado alguns contos e crôni- cas em revistas e jornais não muito prestigiosos. Para ser honesto, estava prestes a abandonar a ideia de ser escritor. Naquela época, estava es- crevendo uma dissertação de doutorado, tinha uma bolsa e um trabalho, ia ser pai... Não pa- recia o melhor momento para escrever um ro- mance, parecia um momento dominado pelas os detalhes de aquele conto sobre • Qual foi o principal obstácu- urgências, mas eis que acabei descobrindo que um menino que queria ter um hi- lo ao migrar do conto e crôni- as condições ideais para escrever um romance popótamo, aos poucos fui achando ca para o romance? não importam quando o projeto de romance que aquilo dava para ser um conto Aprender a acreditar. Para escrever certo cai em suas mãos. Isso acabou virando Para escrever um romance longo ou um romance breve, uma um romance você tem que acredi- tema de Festa no covil, onde se fala, sarcas- você tem que acreditar durante novela. Na época, estava muito in- tar durante um longo tempo (me- ticamente, que para escrever um livro você não um longo tempo (meses, anos) fluenciado pelos livrinhos do César ses, anos) em um monte de coisas. precisa se enfiar numa cabana no meio do nada, Aira e estava obcecado pela brevi- Tem que acreditar em que esse é como o Mazatzin, o professor particular de To- em um monte de coisas. Tem dade, que achava quase um valor o romance que você quer escre- chtli, fez. Minha técnica para escrever contos era “ literário. A forma que o texto to- ver. Em que o romance está indo que acreditar em que esse é o aguentar até ter todas as questões resolvidas, na mou na minha cabeça, “conto lon- bem. Em que o que você escreveu minha cabeça e em notas que escrevia em ca- romance que você quer escrever.” go ou romance muito breve”, e logo ontem, e antes de ontem, etc. está dernos, e só começar a escrita quando estivesse a estrutura com que o texto foi se legal. Tem que acreditar e seguir pronto para uma sessão intensa até chegar ao formando, em fragmentos breves, em frente. Esse desafio ainda con- final. A experiência tinha me ensinado que se me ajudou a dar esse passo defini- tinua e, de fato, escrevo várias ver- parasse de escrever, por causa de dúvidas ou tivo do conto para o romance, ou, sões de meus romances, principal- de ficar sem ideias, normalmente acabaria lar- melhor, de me achar contista para mente porque em algum momento gando o texto. Então, enquanto eu ia cogitando me achar romancista. paro de acreditar. Não sei explicar 172 • agosto_ 2014 5

por que, mas tem dias em que de repente não consigo acreditar que aquela versão do romance, na qual trabalhei, digamos, nos últimos Hoje penso que, aliás, tinha uma ansiedade por publicar dois meses, é o romance que quero escrever. Então, volto a começar. que não ajudava o processo de escrita, especialmente de um romance. Um romance precisa de paciência infinita. Era • Você declarou: “Fiz o livro para aceitar a paternidade” e como se quisesse publicar antes de escrever.” dedicou-o a seu filho, Mateo. “ Ser pai influenciou na cons- trução do personagem-narra- dor Tochtli? Escrevi o livro durante a gravidez de minha esposa. O impulso para escrever o livro foi, sim, a notícia do nascimento de meu primeiro em um lugar normal? narrador, tempo e estrutura. Ficou numa folha. Foi reconfor- filho, mas ser pai, como ser escri- Para ser honesto, leio só em dia- tante achar que no fim das contas tudo era tão simples. tor, é um work in progress. Você gonal a crítica sobre meus livros, nunca acaba de aprender e você porque acredito que isso pode vi- • A politicagem e seus podres estão bem presentes pensa o tempo todo que está er- rar uma influência perigosa sobre na trama do seu segundo romance, mas o tom é cô- rado e errando. Nem meu filho o processo de escrita. Seja porque mico. O tragicômico é a melhor forma de conscien- nem outros meninos da “realidade você fica inseguro e desconfiante tização? real” influenciaram a construção ou porque começa a abusar de suas Nisso, sou militante. Tem uma frase de Theodor Adorno do Tochtli. Para mim, a literatura “melhores virtudes”. Um amigo que se eu fosse candidato a alguma coisa usaria como slo- só pode ser autorreferencial. Ou escritor me deu um conselho óti- gan: “A arte avançada escreve a comédia do trágico”. seja, as influências foram outros mo quando eu acabara de publicar personagens e narradores infan- meu primeiro livro: não ligue para • “Não era para acontecerem coisas maravilhosas Festa no covil tis. Não pensei nisso enquanto as críticas, nem para as ruins nem e fantásticas o tempo todo?” é uma indagação de Juan Pablo Villalobos escrevia o romance, mas quando já para as boas. Eu mesmo fui (e ain- Orestes — adolescente narrador de Se vivêssemos Trad.: Andreia Moroni estava publicado e os jornalistas co- da sou, às vezes) crítico literário em um lugar normal — feita no ápice de aconteci- Companhia das Letras meçaram a perguntar sobre minhas e sou um defensor veemente da mentos surreais. O que pretendeu ao ironizar esse 88 págs. influências, acabei descobrindo que importância de uma boa crítica li- estigma de o México ser um país surrealista? Tochtli conhece poucas pessoas, havia três leituras que tinham sido terária, mas acredito que a crítica No momento da escrita de Se vivêssemos eu estava com treze ou catorze. Considerado decisivas para a escrita de serve para formar leitores mais do muita raiva, a raiva foi o sentimento que gerou a escrita des- Festa no precoce por quatro delas, coleciona covil. São três livros narrados por que para formar escritores. Quan- se romance. É por isso um romance profundamente político. chapéus e lê o dicionário todos personagens infantis: Cartucho, do Festa no covil foi publicado, Em relação à política mexicana, é um romance que tenta se os dias antes de se deitar. Numa da escritora mexicana Nelly Campo- eu estava curioso com a reação dos aproximar da maneira em que foi construída a identidade do mansão no meio do nada — que bello, Un mundo para Julius, do leitores ao uso do humor num tema país, uma identidade pensada para manipular a população. mais parece um Palácio — passa peruano Alfredo Bryce Echenique, e delicado, como é a violência, mas Nesse sentido, como o México é um país não só surrealista seus dias normalmente tendo aulas O apanhador no campo de cen- felizmente no México temos uma mas diretamente absurdo, é “normal” que coisas absurdas com seu tutor particular, Mazatzin, teio, de J. D. Salinger, que é na ver- bela tradição de literatura humo- aconteçam. Mas também há uma leitura literária que tem a e devaneando sobre as guilhotinas dade narrado por um adolescente. rística (com grandes mestres como ver com a construção do cânone literário mexicano e latino- francesas e os samurais japoneses. Filho de Yolcault, chefão do narco- Jorge Ibargüengoitia ou Juan -americano. Na verdade, é um experimen- Se vivêssemos tráfico noM éxico, aos poucos o me- • Já sugeriram vários gêneros Villoro). Já o caso de Se vivêsse- to com os limites do real e do literário. Basicamente pensei: nino vai desvendando a realidade literários para definir Festa mos é um pouco mais complicado, vamos escrever um disparate usando materiais históricos (de que o cerca. no covil. Havia alguma pre- ao ser um romance decididamente política e economia) e autobiográficos. De novo, adentrar a tensão estilística quando co- político e ao estar localizado na ci- realidade através da fantasia. meçou a escrevê-lo? dadezinha onde eu cresci. Lembro Eu sabia que estava escrevendo um que fui lançar o livro na Feira do • A trilogia sobre o México será abordada por perso- romance de iniciação, um Bildun- livro dessa cidade, e todo mun- nagens em três etapas diferentes da vida — infância, gsroman, mas muita da crítica fi- do, começando pelo mediador da adolescência e velhice —, sobre o mesmo tema e mes- cou falando da violência e colocou mesa, me falava: “Você não tem ma ótica humorística. Qual é o objetivo? o livro na gaveta da chamada “nar- vergonha de vir apresentar esse li- Não houve um planejamento nisso. De fato, só pensei que coliteratura”. Eu já falei muitas ve- vro aqui?”. Mas eles riam, batiam aquilo seria uma trilogia quando terminei o Se vivêsse- zes, e até escrevi sobre isso, que não tapinhas sarcásticas em minhas mos e já tinha na cabeça o projeto do terceiro romance. Aí concordo com a etiqueta “narcoli- costas. O mexicano devolve ironia fui consciente da estrutura da trilogia. teratura”, porque acho que é uma com ironia, sarcasmo com sarcas- estratégia de marketing que sim- mo. Somos um povo muito sacana. • Tochtli é, a princípio, uma criança comum: absorta plifica as que eu gosto de chamar no mundo da fantasia ao passo que desvenda o mun- de “literaturas da violência”. Mas • Em entrevista, você disse do que a cerca. Orestes é muito egoísta e não econo- o escritor não controla o que acon- que as realidades de México miza nos palavrões. O que esperar do personagem Se vivêssemos em um tece com seus livros depois de pu- e Brasil são muito parecidas, central que irá fechar a trilogia sobre o México? lugar normal blicados. E acho isso perfeitamente mas no Brasil há otimismo. O O livro já está pronto para ser publicado em espanhol, no ou- Juan Pablo Villalobos aceitável, porque exatamente isso que te levou a essa conclusão? tono. Chama-se Te vendo un perro. É um romance mais Trad.: Andreia Moroni quer dizer “publicar”, virar público. Isso foi há um tempo, hoje penso ambicioso que os anteriores, percorre 80 anos da história da Companhia das Letras diferente. As realidades de México e arte e da política no México. O narrador é um aposentado de 153 págs. • O tutor de Tochtli, Mazatzin, Brasil são muito diferentes e acho que 78 anos chamado Teodoro (minha homenagem a Adorno). No morro da Puta Que Pariu, o aquele otimismo, ou uma boa parte largou um negócio milionário adolescente Orestes divide uma e se isolou numa cabana no dele, sumiu. Minha conclusão atual • No estilo de Jalisco é seu primeiro romance escri- minúscula e mal-acabada casa meio do nada para escrever (que mudará com certeza no futuro, to em português e lançado primeiramente no Bra- — que mais parece uma caixa de um livro, mas a inspiração já que o pensamento não é uma pe- sil. Por que tomou essa decisão? sapatos — com um pai explosivo e não veio. Como você enxerga dra) é que o Brasil e o México são apa- Escrevi o romance por encomenda, como parte de uma uma mãe que recusava aceitar as esse tipo de sacrifício pela li- rentemente parecidos, ou seja, eles coleção que sairia em 2014, com motivo da Copa. Pensei dificuldades socioeconômicas da teratura? E possui algum mé- têm uma semelhança só superficial. primeiro em escrever o livro em espanhol e a editora de- família. Para completar, vários ir- todo para escrever? veria fazer a tradução para o português. Logo pensei em mãos batalham pela melhor quesa- dilla na hora das refeições. Quando Acho que o isolamento está sobre- • Seu romance de estreia levou escrever o romance em “portuñol”, com a ideia de que pu- os irmãos gêmeos — que não são valorizado. Pelo menos eu preciso desse ser lido por leitores de língua espanhola e portugue- seis meses para ser escrito e foi gêmeos, mas parecidos — somem, “estar no mundo” para conseguir corrigido por mais dois anos. sa. Finalmente, quando comecei a escrita, descobri que Orestes e seu irmão Aristóteles par- escrever um livro. Isolamento leva O segundo, Se vivêssemos em era mais difícil escrever em portuñol que em português, tem para uma busca que promete a infertilidade, a perda do contato um lugar normal, foi escrito assim que perdi o medo e fui em frente. Aliás, No esti- um desfecho inusitado. com a realidade, depressão... Iso- sete vezes durantes dois anos lo de Jalisco só será publicado no Brasil, não pretendo lamento, para mim, só leva a “bro- e meio. Ao fazer a revisão de oferecê-lo para tradução. char” na escrita. Não sei se é possí- seu próprio conteúdo, o quan- vel falar num método, a escrita de to pesa sua formação como • Qual a maior dificuldade (ou desafio) ao escrever cada um dos meus quatro romances Doutor em Teoria Literária? em português? (estou contando o novo, que será Você se permite alterar o texto Eu fui meio trapaceiro, já que o narrador é um mexicano publicado em espanhol durante o significativamente a partir do que mora há 30 anos no Brasil, e assim fiquei tranquilo de outono) foi muito diferente. Mas próprio olhar clínico? que ele falasse um português não necessariamente correto. tem, sim, algumas coisas simples: Tento não ativar esse olhar clínico Também por isso escolhi o tom oral do livro, que é, na ver- escrevo a mão, reescrevo muito, e até as últimas leituras do roman- dade, uma conversa de boteco. Mas a experiência de escre- fico me fazendo a pergunta mais ce já finalizado. Para escrever um ver em outra língua é muito rica: é o exílio mais radical para importante: este é um livro que eu romance é preciso soltar a mão, o o escritor, se exilar da própria língua. gostaria de ler? Tem dias que a res- escritor não pode ficar analisando posta é não, aí começo de novo. o próprio texto enquanto escreve. • Ruan — narrador de No estilo de Jalisco — conta Lógico que todo esse conhecimento, que “gringo a puta que o pariu” é a primeira coisa • Yolcault, chefão do narcotrá- e todas essas leituras, influenciam a que aprendeu a dizer quando chegou ao Brasil e, No estilo de Jalisco fico e pai de Tochtli, afirma que escrita. Do meu ponto de vista, hoje dentre outras definições, diz que a tequila - brasi Juan Pablo Villalobos “os cultos sabem muitas coi- não tem mais literatura inocente, leira é usada no México para desentupir ralo. Você Bateia e Realejo sas dos livros, mas não sabem ingênua. No estado em que se en- teve alguma dificuldade para se adaptar ao Brasil? 94 págs. nada da vida” e que “é preciso contra a história literária, a ideia Umas quantas... Acho que deixei um bom catálogo dessas ser realista”. Num país que so- de um autor genial sem formação dificuldades nos textos que escrevi para Granta e em mi- Num boteco lotado, no , o imigrante mexicano Ruan fre com a violência, corrupção, literária me resulta inconcebível. nhas colunas no blog da Companhia das Letras. Aliás, estou (brincadeira feita pelo autor devido A mais interessante literatura de indo embora do Brasil. A partir de setembro, estarei nova- injustiça e desigualdade mais a pronúncia do J no México) trope- vale o realismo ou o escape nossa época é escrita por autores mente morando em Barcelona. ça num guarda-chuva e suja a gra- oferecido pela fantasia? que conhecem profundamente a vata de um cliente, Rair (Jair). Para O que vale é entrar à realidade tradição literária e até, não sempre, • Sobre a fórmula de seus dois primeiros romances, se desculpar, convida-o a tomar através da fantasia. a teoria literária. Num momento de você disse que seria algo como 10% autobiográfico, uma cachaça — constantemente profunda crise da escrita de meu 10% histórico e 80% ficção. No estilo de Jalisco, ao lamentando a qualidade da tequila • Como foi a recepção crítica novo romance, quando me sentia ser contado por um imigrante mexicano no Brasil, brasileira. Inicia-se, assim, um (e dos leitores “comuns”) a totalmente perdido, até fiz um resu- segue as mesmas porcentagens? monólogo onde Ruan conta como tentou reproduzir a exímia atuação seus livros no México? Qual mo com todas as maneiras possíveis Sim. Na verdade, falei que a fórmula era 90% ficção, 10% da seleção brasileira na Copa de 70 de escrever um romance. Todas as autobiográfico e 10% histórico. Sei, a conta não fecha, mas a foi a reação ao olhar irônico em forma de teatro. e sarcástico de Se vivêssemos variantes que consegui pensar de literatura não tem nada a ver com certezas. 172 • agosto_ 2014 6

breves A grande Batalha

UEM SOMOS CONTATO ASSINATURA DO JORNAL IMPRESSO CARTAS

EDIÇÕES ANTERIORES COLUNISTASinteriorDOM CASMURRO ENSAIOS E RESENHAS ENTREVISTAS PAIOL LITERÁRIO PRATELEIRA NOTÍCIAS OTRO OJO enfermidade Emílio Meister é autocentrado, narcisista e repleto de máscaras. E escritor. O livro Baseado na oralidade, O DOENTE, de André Viana, no qual está trabalhando apresenta Luka, um jovem de discute as tragédias particulares que permeiam a vida 25 anos perturbadoramente virgem, mas arrastado por ondas de erotismo e por uma : : Haron Gamal já se encontram esgotadas. O romancista impulsão obsessiva pela vida rio de Janeiro – RJ nascido em Lübeck, ganhador do Nobel saudável. Já no plano real, o O beijo de em 1929, ainda moldava uma sociedade soberbo Meister é sequestrado Schiller m O doente, André Via- em que os seres humanos tinham como por um pivete, experiência Cezar Tridapalli na narra a maior parte da suporte existencial os conceitos clássicos que o levará ao rompimento Arte & Letra história baseando-se na da filosofia e da literatura, mas que desa- de todas as aparências de 274 págs. Eoralidade. Não que ele re- parecem ante a inclemente violência pro- sua vida e a remoção de suas corra ao conhecido artifício dos ve- vocada pela Primeira Guerra Mundial. máscaras. Levando à própria casa pelo infante lhos contadores de histórias, como sequestrador, tem a oportunidade de chamar faz Guimarães Rosa por intermédio Fim das utopias a polícia, mas não o faz; ao contrário, passa a de Riobaldo, em Grande sertão: O AUTOR Quanto ao livro de Viana, o pon- conviver com o garoto, rompendo mistificações André Viana veredas. A narrativa de Viana co- to alto é a discussão da doença gerada que o perturbavam e remodelando seu cotidiano. meça com a palavra “transcrição”, Nasceu no Rio de Janeiro pelo esgotamento de uma moderni- No absurdo dessas duas histórias, o escritor- numa página em branco; na se- (RJ), mas viveu a infância e dade tardia e o fim de suas utopias. À narrador se confronta com seus mitos e surge um guinte, seguem-se travessões que a adolescência em Aracaju medida que o autor introduz o cinema quebra-cabeça em que as peças não se encaixam se repetem por seis linhas, só então (SE). Formado em jornalismo no romance, percebe-se a necessidade de modo adequado, repleto de devaneios e aparece a primeira palavra do ro- pela Universidade Federal de de criação de novas mitologias que ge- concepções diversas. Romance vencedor do mance, a preposição “de”. Após a Sergipe, trabalhou nas revistas rariam sentidos outros à existência, so- Prêmio Minas Gerais de Literatura 2013. incomum abertura, o leitor depara- Playboy e Veja, no suplemento bretudo num momento de predomínio cultural da Gazeta Mercantil e -se com o seguinte trecho: da cultura de massa, cujo único sentido ••• na editora Trip. Hoje, além de tradutor, dirige uma pequena é o elogio ao consumo. Começou a gravar? Então editora especializada em O doente, no decorrer da voz antes eu gostaria de ler uma frase histórias de família. O doente narrativa, envolve outros personagens. pra você. Se um dia alguém escre- é seu primeiro romance. Além do protagonista, um alcoólatra in- Salto ver minha história, seria uma pos- veterado que também precisa fazer uso sível epígrafe. de ansiolíticos, há sua mãe, mulher pro- fundamente depressiva (principalmente transcendental Logo, trata-se de uma gra- após a morte do marido), e seu irmão, vação, e os travessões significam que na adolescência recebe o diagnóstico Abelino é um professor de aquele espaço de tempo durante o de esquizofrênico. história da arte aposentado. qual esperamos ouvir algum som Toda boa literatura é desagradável. Vive em um pequeno hotel após ligar o aparelho. A história, no No livro de Viana, isso acontece quan- localizado em um bairro entanto, ainda não começa. Lemos do a narrativa toca o tema da loucura e decadente da cidade de São (sempre como se estivéssemos ou- suas consequências na família do narra- Paulo (SP). Envelheceu vindo) apenas comentários desse dor. Mas Viana propõe uma espécie de de repente, quando se deu irônico protagonista. A narrativa, solução que ameniza as características conta de que poderia viajar quase durante todo o livro, segue pessimistas do romance. Tal perspecti- gratuitamente nos ônibus a estrutura de uma gravação sem va acontece quando sabemos, sempre municipais. Desenvolveu, então, Tango, com a consequente edição, com espaços O doente pela voz desse estranho narrador, sobre o hábito de pegar ônibus ao violino em branco repetindo-se ainda com André Viana Charles Fourier (1772-1837). acaso, sem saber para onde vai, Eduardo Alves da Costa mais travessões e algumas páginas Cosac Naify Tal menção estende-se por várias na esperança de que a viagem Tordesilhas em branco, ou com apenas duas ou 128 págs. páginas e é introduzida como por aca- lhe mostre algo inusitado. Com 352 págs. três palavras. No final, são trans- so, durante o diálogo entre o protago- isso, a banalidade do cotidiano critas duas cartas, que completam nista e seu interlocutor. As páginas são de um professor aposentado o sentido da história. reveladoras para quem não conhece o se transforma numa aventura frenética e O protagonista, cujo nome ja- pensamento e a obra deste autor fran- passageira, na qual cada contato humano mais sabemos, ao invés de buscar cês considerado por muitos um socia- e paisagem têm sua devida importância. TRECHO um psicanalista, como ele mesmo O doente lista utópico. Já que o assunto do livro Movido pela visão, audição e memórias sobre afirma (“No fundo, acho que não de Viana é sobre uma espécie de doen- o passado e o que acontece à sua volta, em faço análise não porque não acre- ça provocada pela civilização, Fourier, todo ônibus vive um universo possível, fugaz, dito, mas justamente porque tenho muito antes de Freud e Reich, propõe que se desfaz a cada término de viagem e medo do que posso encontrar.”), uma revolução sexual, mas cujo prin- ressurge na próxima, escapando do “isolamento procura alguém de sua profissão, Acho que uma série de cípio era a abolição da monogamia e a irremediável e definitivo”. A velhice, aqui, não um jornalista, e conta a ele sua vida. motivos me impediria experiência de um prazer praticamente encarna a doença ou a depressão, mas um Este interlocutor, que está ali por- total. André discute a falsa permissivi- distanciamento irônico em relação ao mundo, à que adora ouvir histórias, não se de escrever um livro. dade da sociedade contemporânea, e até sociedade — e sobretudo a si mesmo. expressa em momento algum. Tudo Primeiro por questão mesmo a falaciosa proposta de realiza- o que sabemos a seu respeito é atra- “de distanciamento, que ção do desejo colocada pela psicanálise. ••• vés dessa voz, que nem podemos Ainda citando Fourier, o protagonista seguramente não tenho. Na afirmar ser de um narrador, mas afirma: “Se não é geral, a liberdade é ilu- simplesmente a voz de uma grava- verdade, seria o contrário: sória”, ou “Não é de moderação que são ção. Assim, sempre na casa desse proximidade excessiva. feitas as grandes coisas”. Inclusive há Fantasmas excêntrico personagem, o jornalista uma referência a um livro de Leandro Depois porque, já começo escuta e grava tudo, a varar madru- Konder: Fourier, o socialismo do gadas, regadas a muito uísque. assim, não vale rir, muitas prazer. Mas o protagonista não defen- Dividido entre O inferno e Os Mas não se trata de uma nar- vezes sinto profunda pena de nenhum tipo de socialismo, refere-se outros, somos apresentados ao rativa vã, ou mesmo festiva. No iní- apenas à realização do desejo sexual e à pai que costumava trancar os de mim. S. chama isso cio, já se percebe o tom trágico. A formação de vários outros tipos de famí- filhos dentro de um cubículo voz da gravação diz: “Vamos lá. Se de síndrome de Cristo. lia, todos fora dos padrões vigentes. escuro, onde armazenava o um dia eu escrevesse minha histó- Ele diz que eu sou não A morte do pai, como tema da psi- estoque da taberna, repleto de ria, ela teria como ponto de partida canálise, também é aprofundada no li- grades de bebidas, sacos de a encarnação, mas a a morte do meu pai. No dia do meu vro. O personagem refere-se ao assunto açúcar, ratos e baratas. Quando aniversário de onze anos”. Também encanação de Jesus. diversas vezes e fala do peso que precisa a porta se abria novamente, não significa que a história desse carregar por herdar os problemas que estava lá a figura paterna O inferno são personagem será piegas ou mesmo passam a lhe afligir a partir do momento com a bainha da faca na mão. os outros não terá valor diante de tantas his- em que sua mãe já não dá conta de man- Mãe, avó, Jesus, Deus: todos José Valdemar de tórias tão ou mais trágicas que exis- ter o pequeno negócio da família nem de impotentes ante a cólera do pai, Oliveira tem por aí. Mas sim pela importân- O tema da doença também cuidar do filho doente. Na verdade, ao que penalizava qualquer coisa Imprensa Oficial cia dada à singularidade e ao fato é recorrente no livro de Thomas contrário do que esta morte significaria que lhe tirasse a paciência. Graciliano Ramos de que cada história de vida seja, Mann. Mas não porque se trata de em termos simbólicos (pois a morte do A narrativa se desenvolve na 194 págs. talvez, se não a mais importante, um romance ambientado numa pai proporcionaria o desenvolvimento e terceira pessoa e na mente pelo menos digna de ser contada. estação de cura de tuberculosos. independência do filho), aqui ela apare- perturbada do narrador traumatizado, Além de muitas referências à Quem se destaca no livro do es- ce só como dor e obstáculo ao prazer. que logo anuncia: “Vou enlouquecer. Não psicanálise, o narrador cita vários critor alemão é Hans Castorp, O romance acaba por discutir o vou aguentar. Que agonia”. Estigmas, livros de literatura, de filosofia, e chamado de filho enfermiço da adoecimento de toda a sociedade, que segregações, segredos, transgressões filmes famosos. Há também uma modernidade por Setembrini, um muitas vezes é mascarado pelos exces- clandestinas, alívios íntimos, sexualidades trilha sonora que acompanha o di- intelectual de moldes clássico que sos, sejam eles a partir do álcool, das implícitas e fracassos fadados permeiam álogo entre os dois personagens. sucumbe em consequência da mu- drogas e até mesmo dos medicamentos a trama. No ápice do desespero e após A principal referência literária é o dança de valores provocada pelo antidepressivos, considerados por mui- revisitar toda danação dos anos passados, romance A montanha mágica, alvorecer da modernidade. Vol- tos como solução à dor existencial. A o bilhete suicida. Antes, claro, um banho: de Thomas Mann (1875-1955), in- tando ao livro de André Viana, não negação da liberdade e a não realização não é admissível se tornar um defunto cluindo a epígrafe do livro de Via- mais estamos diante dessa mesma plena do amor, ainda segundo o narra- sujo de suor, fétido. O fim não é tão na: “O homem é essencialmente modernidade, mas num momento dor, seriam as causas de uma vida arrui- fácil, porém. Romance selecionado pelo um enfermo”, que aponta para o histórico em que todas as possibi- nada, condenada às amarras da doença e Programa de Incentivo à Cultura Literária tema principal do romance. lidades discutidas no livro de Mann do enlouquecimento. 2013, de Alagoas. 172 • agosto_ 2014 7 A vida em cinco atos

Ondas curtas empresta voz original a temas como o comum dos dias, os amores, o passado e a morte

: : William Lial ço partido”. O abraço partido é a o domingo vai engordando// [...] fortaleza – CE sombra do abraço inteiro, da pre- Há/ o domingo obeso vergando tua sença da mulher que se foi. espinha// [...] A noite vem como erta vez, o poeta Francisco No soneto Tiro ao alvo, som- esperança/ de que tudo acabará em Carvalho me disse, ao ver bras e imagens pairam sobre o po- breve/ para em breve recomeçar/ a meu primeiro livro, que, eta ou ao seu redor como num so- semana, o trabalho”. Csegundo alguém lhe con- nho, num delírio quase simbolista Por fim, na quinta e última tara, um livro bom deveria parar em e sensual, onde “Bandos de moças parte, Surdina, muitos poemas pé. O meu não parava, nem o estrei- nuas, em revoada,/ no ar dança- lembram a morte, que leva os ho- to e fino Ondas curtas, de Alcides Ondas curtas vam seráfica ironia”. mens em silêncio, e atos furtivos, O AUTOR Villaça, com suas 112 páginas. Con- Alcides Villaça Já em Arco para uma mu- discretos como em Lição onde, na Cosac Naify Alcides Villaça tudo, dada a variedade de temas e as lher, o poeta desenha o passar morte do pai, o filho busca escutá- 112 págs. abordagens contidas nele, ao térmi- do tempo num corpo de mulher, Nasceu em Atibaia (SP), em 1946. -lo com o ouvido na sua boca: “mas no da leitura, parece que lemos mui- quando ela não mais for banhada Cursou Letras na USP, onde é não ouvi mais que um sopro,/ um to mais. Podemos ver aí também a por olhares brilhantes. Nesse dia, professor de literatura brasileira insuspeito suspiro, resíduo/ do desde 1973. Publicou os livros noção de Obra aberta de que fala “a linha/ do teu corpo desatada,/ teu primeiro vagido,/ teu susto de de poemas O tempo e outros Umberto Eco no livro que leva o fora./ [...] Esse é noctívago, retoca desenhará no ar/ a saudade da tua recém-nascido”. remorsos (1975) e Viagem mesmo nome. São tantas as inter- olheiras./ [...] Esse é dramático, nudez”. E nesse passar do tempo, o de trem (1988), além do infantil O pai também está em Pro- pretações e ligações que podemos cospe a própria máscara./ Esse é que ela foi um dia, cheia de olhares, O invisível (2011). Pela Cosac messa de pai. Nele, novamente há o fazer na sua leitura que esta se ex- profundo, nunca vem à tona”. será apenas uma sombra na lem- Naify, publicou o ensaio “soprar no ouvido”, na promessa de pande além das resumidas páginas. Noutro poema, Dona crítica, brança do que é agora. Passos de Drummond (2006). retorno do pai que se foi e não voltou. Separado em cinco partes, uma palavra aos críticos literários. Na terceira parte, Playback, Até que o silêncio reinou quando “As os poemas possuem certa diferen- A própria simplicidade do poema já a reprodução de sons previamente roupas se despegaram/ do cabide, ça em cada uma delas; contudo, se mostra distante de possíveis exi- gravados ou imagens em movimen- TRECHO voaram fotos,/ canções viraram as- Ondas curtas nem sempre essa diferença é de gências eruditas da crítica. Diante to aprecem pairar nos versos, como sobio,/ enquanto um piano emude- fácil percepção. A metalinguagem, disso, ao poeta pouco importa o se o poeta rememorasse o passado ceu/ na sombra da tarde vazia”. a identificação e a sinestesia com que dizem os críticos, “diga que reprisado numa gravação antiga. Em Outra vezes outra, a morte o leitor, o mundo contemporâneo sirvo pastiche/ com molho de es- Em A costureira, o passado é é tratada ao lado do tempo. Até mes- e o comum dos dias, com sua na- cabeche/ e sorvo tudo em pistache/ revisitado no trabalho de costurar O assunto da poesia mo a morte envelhece, de tanto ter tureza, amores, passado e a morte numa poção de dervixe”. E inde- lembranças no já conhecido tecido passado o tempo em que ela ocorreu. é outra coisa estão todos no livro. E a tudo, con- pendentemente do que queira dizer da memória, do dito popular. Nele Até os que ficaram, como o poeta, seguiu o poeta dar um novo ar. a crítica, ele mesmo faz pouco caso o sonho é a memória em retalhos; Quanto mais idêntica a si mesma sentem-se mais velhos que a morta: Na primeira parte, Câmara dos seus versos: “eu mesmo faço ca- lembranças que vêm sorrateiras Mais familiarmente estranha. “quando, de tanto tempo, já é mais de eco, encontramos o eco nas aná- pacho/ dos versinhos que remexo”. como uma melodia antiga, onde “ moça/ a morta que o nosso espelho”, foras, nas reverberações dos temas Além disso, há ainda o fato de “A costureira com seus figurinos/ onde nos vemos e reconhecemos o ou cenas apresentadas e na meta- todos os versos terminarem em “x” volta páginas e páginas, num contí- tempo passado em nós; enquanto as linguagem. e “ch”, como em avexe, pastiche, nuo/ desfile de moldes agulhados”. “crianças antigas passam curvas”. Muitos desses versos tratam escabeche, pistache, dervixe e ou- No poema Retrato relâmpa- Enfim, os temas são vários do poema propriamente, da sua fei- tros. O que dá a sensação de haver go, se dá a lembrança da infância, Já em Notícias, quarta parte, nos poemas de Alcides Villaça. Mú- tura, da sua representatividade no um eco, como diz o título da parte, como se tudo ocorresse automati- os poemas assemelham-se a no- sicos e escritores são referenciados mundo e de suas diversas formas durante a leitura do poema. camente (a última estrofe, colocada tas de jornal, crônicas. Largo do em muitos poemas, como Bach e de ser, assim como de seus poetas, Na segunda parte, Suas som- entre parênteses soa como uma voz Arouche, por exemplo, uma crô- Milton Nascimento, Drummond caso do poema Esses poetas, onde bras, as sombras são a presença que por trás que fala em playback): (o nica sobre o passado, fala de uma e Bandeira. E mesmo abrangendo o autor nos descreve diversos tipos paira do outro sem ele estar. Em menino sentado no cachorro/ espe- antiga moradia do eu lírico: “olho temas já conhecidos como o amor, de poetas e suas características, Lampejo, por exemplo, a lembran- rou cinquenta anos/ para se olhar pro quinto andar: morei lá outro- a paixão, a morte, a solidão e a mú- elencados de anáfora em anáfora ça de uma mulher que o abraçou e pensativo/ sentado no cachorro). ra/ naquela sacada/ do edifício de sica, o poeta lhes concede novas como vemos nos versos seguintes: se foi, deixou seu rastro, a parte de Além dos exemplos acima, pastilhas/ vivia cheio de ideias”. imagens, dá-nos outra perspectiva “Esse tem mistério, solta e fecha./ um abraço, marcado em seu corpo: nessa terceira parte há muitas liga- Enquanto Os domingos descreve para o olhar, fazendo-nos enxergar Esse faz humor, diz que desdiz.// “levando o abraço consigo/ e me ções musicais em poemas como Pia- a transformação desse dia, passo a o que já havíamos visto antes com [...] Esse faz história, borda pra deixando abraçado/ naquele abra- no antigo, Rotornello e Segredos. passo. Diz ele: “É lentamente/ que um olhar diferente.

Hora de pecado e ironia

: : Roberta Ávila pode tanto ser uma alusão à ques- No entanto, dificilmente usamos fLORianópolis – SC tão do autoconhecimento como os mesmos pesos e medidas para uma referência ao quadro Os pensar sobre os animais. “Não há que seria a Hora de amantes, de Magritte, e também nada de errado em ser homem”, alimentar serpen- (por que não?) uma referência aos pensa um personagem em um dos tes? O título do livro de dois. Quando Colasanti insere o contos. Não há mesmo? Ou é claro O Marina Colasanti não é lobo nas Histórias da insônia traz que há? Há algo de errado agora apenas o título de um dos contos também à memória Chapeuzinho ou houve sempre? Em tempos de que o compõem, mas a revelação vermelho e estabelece um para- avião comercial abatido na Ucrâ- da metáfora que pode ter gerado Hora de alimentar lelo com , de Graciliano nia e novas investidas israelenses serpentes Insônia o livro: a hora de alimentar as ser- Marina Colasanti Ramos, deixando de lado a angús- A AUTORA na Faixa de Gaza, é complicado pentes, esse animal que é o sím- Global tia, abrindo caminho para o jogo Marina Colasanti tanto perguntar quanto responder bolo do pecado, da traição, que se 447 págs. e criando batalhas sangrentas em qualquer das anteriores. Pintora e gravadora por formação, alimenta apenas do que é vivo e, busca do sono perdido. Além dis- Não se engane o leitor com a já foi jornalista, publicitária e portanto, a hora em que ele se ali- so, e de um dos títulos citar La apresentadora de televisão. Com orelha do livro, que estabelece que menta é também a hora da morte. Fontaine, a quantidade de histó- mais de 50 títulos publicados, já em Zooilógico Colasanti tratava Esse é o espírito que guiou, apa- rias com animais antropomorfi- venceu seis prêmios Jabuti, entre da animalidade, em A morada do rentemente, a produção dos micro- não consegue dormir, a autora pri- zados, formigas, cigarras, lobos, e outros. Escreve poesia, crônica ser do corpo e da casa e em Con- contos e contos que integram essa meiro adicionou a figura do lobo, etc., traz à lembrança as fábulas, e conto e costuma ilustrar seus tos de amor rasgados do amor. coletânea que é, como diz a orelha depois explorou as possibilidades que nesse caso são amorais: a for- textos. Nascida em Asmara, Não é possível, e nem justo, divi- do livro, um grande diálogo de Co- que o trio de personagens pode- miga, por exemplo, sente saudade na Eritréia, ela morou na Itália, dir as temáticas dessa forma. Do veio para o Brasil em 1948. lasanti com seu universo cultural, ria produzir, todas elas, desde o do canto da cigarra. Também his- mesmo jeito, Hora de alimen- mas vai muito além disso. ataque do lobo aos carneiros até a tórias sobre homens que não saem tar serpentes tem vários temas O livro é uma coleção de pe- revolta dos carneiros que decidem jamais de seu barco e que são pes- centrais como a velhice, o desejo, quenas e grandes ironias da vida, ordenar ao homem que pule a cer- cadores trazem à mente A tercei- TRECHO a condição do ser humano, a tatu- Hora de alimentar expandidas, incrementadas e al- ca, passando pela decisão de fazer ra margem do rio, de Guimarães serpentes agem como forma de desenhar o teradas com o objetivo de gerar churrasco com o carneiro, são to- Rosa. Um diálogo com o abismo, corpo, o amor, a morte, a solidão, a sempre o inusitado. Os próprios das histórias de poucas linhas que que responde ao olhar, remete a O loucura e a violência. Em geral nos títulos, na maioria das vezes, se são muito mais amigas da insônia que vemos, o que nos olha, de calamos sobre muitas dessas ques- aplicam aos textos como um co- e do sonho do que do sono. Didi-Hüberman. E por aí vai. tões para evitar maiores constran- mentário sarcástico invertido, já Verdade que a intertextua- A velhice é um dos temas Concentrou o pensamento gimentos e pelo bem e progresso da que vem antes o sarcasmo do que lidade é marca forte na obra, vai mais interessantes do livro. Exis- em pequenas criaturas vivas, nação e da família brasileira, mas o motivo para que ele exista. Co- desde a mitologia grega, passan- te uma ironia muito brutal em re- Colasanti tem prazer em enfiar o rã, passarinho. Um gosto de lasanti trabalha com a desauto- do por Hércules, o Minotauro e conhecer, diante de uma mulher dedo na ferida e reconhecer as ver- matização do pensamento adicio- a Medusa, a Descartes, Matisse e idosa que caminha com um cão, sangue chegou-lhe à boca, e o dades que calamos é um sentimen- nando elementos inesperados às Caravaggio, isso se tratando ape- também idoso, e uma bengala, que, “mover-se do novelo sibilante, to doce-amargo que sempre vem histórias que todos já ouvimos. É o nas das referências explícitas. Mas dos três, apenas a bengala não está mais do fundo e faz virar a página e que apenas intuía, aquietou- caso, por exemplo, da série de con- outras referências se evidenciam próxima do fim. procurar pela próxima ferida onde tos, espalhados ao longo do livro, ao longo da leitura. Quando um Isso de ser humano também se. Sua segurança estava gar- meteremos o dedo juntos, porque, chamados Histórias da insônia, rapaz se apaixona por uma raposa, é algo que Colasanti explora muito antida por mais algum tempo. pelo menos durante esse momento e numerados de acordo com sua como não pensar em O pequeno bem. Um ser humano que não se de leitura, não há solidão, mas re- Dia chegaria, entretanto, em ordem de aparição. À tradicional príncipe, de Saint-Exupéry? Da incomoda em ser o que é, prova- flexão, companhia e cumplicidade, imagem do homem que conta car- mesma forma, as referências a um velmente não reflete muito sobre o que suas inquilinas haveriam as melhores coisas que a literatura neirinhos pulando a cerca porque homem de máscara ou de capuz assunto, já que motivos não faltam. de por ovos. pode nos oferecer. maria do carmo/ divulgação 172 • agosto_ 2014 8

INQUÉRITO : : José Roberto Torero • Qual foi o canto mais inusitado de onde tirou inspiração? Tive a ideia de fazer o Papis et Circenses movido pela dúvida olhando a capa de uma caderneta.

UEM SOMOS CONTATO ASSINATURA DO JORNAL IMPRESSO CARTAS • Quando a inspiração não vem... inda criança, José Roberto Torero já estava decidido: seria escritor e Há que ir atrás dela. EDIÇÕES ANTERIORES COLUNISTAS DOM CASMURROastronauta.ENSAIOS E RESENHAS ENTREVISTAS AcabouPAIOL LITERÁRIO somentePRATELEIRA NOTÍCIAS comOTRO OJOa primeira opção, a qual se dedicou com devoção. Nascido em Santos (SP), em 1963, formou-se em Letras • Qual escritor — vivo ou morto — gos- e Jornalismo pela Universidade de São Paulo e iniciou, sem concluir, taria de convidar para um café? cursosA de pós-graduação em Cinema e Roteiro. Autor de mais de trinta livros, Machado de Assis. ganhou notoriedade em 1995, ano em que faturou o Prêmio Jabuti nas categorias • O que é um bom leitor? Romance e Livro do Ano, com O Chalaça. Já em 2012, com o livro de contos Aquele que sujeito que entra numa livraria, Papis et Circenses, ficou com o primeiro Prêmio Paraná de Literatura.C omeçou abre um monte de livros, lê um pouco de sua carreira de cronista no Jornal da Tarde; posteriormente, escreveu textos sobre cada, e aí escolhe qual vai levar para casa. Ou futebol para a Placar e a Folha de S. Paulo, onde ficou por mais de uma década. seja, é um leitor que escolhe os livros por si No livro Os cabeças-de-bagre também merecem o paraíso, reuniu cerca mesmo, sem se deixar levar por modas. de trinta crônicas publicadas entre esses veículos. Ao lado de Marcus Aurelius • O que te dá medo? Pimenta, publicou vários livros para crianças, entre eles Os 33 porquinhos A morte, é claro. e Branca de Neve e as sete versões. Versátil, também possui uma longa carreira como roteirista e cineasta, sendo coautor, entre outros, do roteiro do • O que te faz feliz? filme Pequeno dicionário amoroso e diretor do premiado curta-metragem Amor!. Ver alguém comprando meu livro numa li- vraria. Pena que seja uma felicidade rara.

• Quando se deu conta de que queria • Quais são as circunstâncias ideais de • O que mais lhe incomoda no meio li- • Qual dúvida ou certeza guia seu tra- ser escritor? leitura? terário? balho? Lembro que lá pelos meus oito anos fizeram Filas. Podem ser de banco, no correio ou Escritores melhores em marketing do que na Só dúvidas. Que são: será que isto é bom? uma pesquisa na escola perguntando o que numa repartição pública. Ônibus e metrô escrita. Este é o jeito certo de contar esta história ou cada um queria ser quando crescesse. Res- também são ótimos. deveria fazer justamente o contrário? Alguém pondi “escritor e astronauta”. • Um autor em quem se deveria prestar vai ler essa joça? • O que considera um dia de trabalho mais atenção. • Quais são suas manias e obsessões li- produtivo? Laurence Sterne. Já se presta alguma atenção • Qual a sua maior preocupação ao es- terárias? O dia em que escrevo, ou reviso, dez mil to- nele, mas o número de teses e mesmo de lei- crever? Uma mania é ler o texto em voz alta para ver ques (com espaços). tores comuns poderia ser bem maior. Fazer algo que eu gostaria de ler se não fosse se há rimas indesejáveis, se há excessos de o autor, mas apenas um leitor daquele texto. “quês”, etc. • O que lhe dá mais prazer no processo • Um livro imprescindível e um descar- de escrita? tável. • A literatura tem alguma obrigação? • Que leitura é imprescindível no seu A reescrita. As últimas versões de um livro, A Bíblia, se lida como literatura. A Bíblia, Não. dia-a-dia? quando a gente corta muito, é que são diverti- se lida como manifestação divina. Bulas de remédio. Uma literatura vital. das. Você vê o texto se acertando, encontran- • Qual o limite da ficção? do o ritmo. Imagino que deve ser como o fim • Que defeito é capaz de destruir ou Nenhum. Essa é a graça. • Se pudesse recomendar um livro à de uma escultura, quando você faz os deta- comprometer um livro? presidente Dilma, qual seria? lhes que deixam a estátua realmente bela. Falta de tesoura e borracha para limar os ex- • Se um ET aparecesse na sua frente e Como fazer amigos e influenciar pes- cessos. pedisse “leve-me ao seu líder”, a quem soas, de Dale Carnegie. • Qual o maior inimigo de um escritor? você o levaria? Fico em dúvida entre a preguiça e a soberba. • Que assunto nunca entraria em sua Ao Matias, meu filho de um ano. Ele pensa • Quais são as circunstâncias ideais Mas as duas têm o mesmo resultado: o escri- literatura? que sou seu escravo. E eu tenho certeza. para escrever? tor, por preguiça ou por achar que é muito Nenhum. Começando às sete e meia da manhã, depois bom, não aperfeiçoa o seu texto, que assim • O que você espera da eternidade? de um pão na chapa e um pingado. não fica tão bom quanto poderia. O mesmo que ela espera de mim. Nada.

Uma crônica. QUARTA-FEIRA Uma ilustração. Fabrício Carpinejar Todo dia. Eduardo Nasi

DOMINGO QUINTA-FEIRA Mariana Ianelli Mário Araújo Alfredo Aquino Fábio Abreu

SEGUNDA-FEIRA SEXTA-FEIRA Rogério Pereira Humberto Werneck Theo Szczepanski Carolina Vigna

TERÇA-FEIRA SÁBADO José Castello Marcelo Moutinho Tiago Silva Hallina Beltrão

www.vidabreve.com.br Realização 172 • agosto_ 2014 10 O inferno de Otto Histórias de BOCA DO INFERNO apresentam traços poéticos e a crueza de imagens desalentadas

: : Vilma Arêas momento da iniciação em muitas dor, “imóvel como um bicho que in- São Paulo – SP culturas. Assim, é sob uma laje terrompe a respiração”, à semelhan- pouco acessível junto a um cemi- ça de Trindade sob a laje. Ela imagi- omo as pessoas, os livros tério abandonado, que Trindade, o na as conversas no velório, repensa também têm um destino: filho do padre, se esconde. Segun- a paixão, quer morrer. A mãe não dobram a esquina e caem do o vulgo, era a “escura e secreta acredita, porém “Doquinha queria Cno mundo, podendo fazer Boca do Inferno”, habitada por mesmo morrer”. Devemos mesmo sucesso ou desaparecer, morrer de aranhas e cobras. Nesse ventre de confiar nesse narrador dissimulado, velhice ou na flor da idade; e às vezes terra, como morto, Trindade está a que diz tantas coisas pela metade? retornando por motivos variados. salvo da zombaria dos outros, das Talvez possamos afirmar que Assim aconteceu com este livro de obrigações religiosas impostas pelo Boca do inferno conta a mesma Otto Lara Resende. O engraçado é Boca do inferno padre e das contínuas surras de O AUTOR história, à contraluz e com varia- que, sem querer, também entrei na Otto Lara Resende vara de marmelo. Ali ele repousa e Otto Lara Resende ções, como faziam os trovadores. Companhia das Letras dança. Pois a resenha que sobre ele talvez sonhe de olhos abertos com Podemos aproximá-lo, com as devi- 188 págs. Nasceu em São João del Rei escrevi há um ano e meio, por pro- o crime que irá cometer e talvez (MG), em 1922. Formou-se das diferenças, de outro volume de blemas editoriais não pôde ser pu- libertá-lo, enquanto “a lua cheia em Direito. Passou por várias contos com temática única, isto é, blicada. E quando encontrei a edição acendia no musgo da pedra oscila- profissões, de professor a Velórios, de Rodrigo M. F. de An- deste ano, 2014, enriquecida pelo ções de um lago [...]”. adido cultural em Bruxelas drade, livro de 1936. Por motivos di- excelente ensaio de Augusto Massi isso deixam de ser sublinhadas. As- Este conto, Filho de padre, e Lisboa. Como jornalista, ferentes os autores renegaram seus que lhe serve de posfácio, apurado sim, encontramos na armação dos que abre o livro, articula-se perfei- trabalhou em diversas contos, que podem ser considera- na análise do texto, completo em seu enredos, pobreza, abandono, situa- tamente com O moinho, o último, publicações. É autor do dos como pertencendo à mesma fa- levantamento crítico, resolvi publi- ção crítica familiar, ou indiferença e fechando os restantes em seu com- romance O braço direito, da mília nessa ficção que “quanto mais coletânea de crônicas Bom car o que escrevi, para encorpar a ci- oportunismo por parte dos adultos. passo. Estes também obedecem à distanciada, mais fiel à realidade”, dia para nascer, entre randa inventada a contra gosto pelo Tudo isso afia temperamentos e es- medida e ao controle dos temas, outros. Morreu no Rio de como escreveu Clara de A. Alvim a grande Otto. É o que aí vai. tabelece a crise. Mas a esse drama sempre violentos e sempre versan- Janeiro (RJ), em 1992. respeito de Velórios, na edição es- O sumiço de Boca do infer- não faltam traços poéticos, percebi- do sobre a razão do extravio das pecial do livro em 2012, pela Con- no, publicado pela primeira vez das na mão leve com que é descrita crianças e de suas várias perdas. fraria dos Bibliófilos do Brasil. em 1957, a que se deve? O leitor a natureza, ou no seu avesso, a crue- O tom do autor é baixo e alusivo, Quanto a Boca do inferno, distraído pode optar pela exigência za de imagens desalentadas. apostando na interpretação do nada mais contemporâneo, apesar do autor, que jamais terminava as “O padrinho era enorme, ti- leitor, que deve afiar o olhar em do tempo que decorreu. Mas, con- contínuas revisões de seus textos. nha costas caladas, hostis como pormenores, chaves do sentido. A forme sabemos — e não devemos Mas a verdade é outra: o escân- uma parede”, pensa o órfão agar- modulação quase imperceptível esquecer — as datas não regem a dalo que o livro causou em nosso rando-se na garupa de um homem, provoca momentos de afastamento contemporaneidade. A prova é que estreito meio literário, foi avassa- que em breve o espancará e trans- crítico, quando então nos lembra- o livro de Otto veio à tona nos dias TRECHO lador. “Fiquei traumatizado, pois formará em escravo (O moinho). mos que apesar dos crimes, essas Boca do inferno de hoje, novinho em folha, trazido desabou sobre mim uma saraivada Se esse quadro lúgubre da vida personagens são apenas crianças. pelos que se interessam de gra- de insultos e incompreensão”, pa- numa cidade interiorana pode ser É esse descompasso que funda a ça por literatura, neste mundo de lavras de Otto em entrevista a Edla tocado por leves tons dickensianos, tensão dos textos, atiçando o leitor mercados e lucros. Mas também van Steen (Viver e escrever, por outro lado imediatamente en- a entender o fundamento da tragé- — assim espero — deve interessar L&PM, 1982). E ainda: “Escreve- contramos nele nossos conterrâneos dia: social, familiar ou apenas deri- A pequena sala de móveis àqueles que se preocupam com ram em minha porta com tinta fe- históricos: filhos de criação explo- vada da idade, o que pode dar um rústicos sufocava de calor. nossas circunstâncias, levando-os cal”, afirmação a Leo Gilson Ribei- rados à exaustão, o filho do padre, colorido bem-humorado a certas a pensar duas vezes antes de acei- Da cozinha chegava a ro (referência de A. Massi, p. 147). objeto de chacota dos companhei- aflições. É o que acontece em Na- tarem a absurda redução da idade Mas o que terá de tão terrível ros, abuso sexual principalmente de morado morto, situado exatamente algazarra dos pássaros penal em nosso país. Mais uma vez, essas páginas, publicadas há mais meninas, iniciando-se dentro da fa- no centro do livro, como sua balan- “— o curió desdobrando crianças na berlinda. de meio século, além de seu título mília, que por sua vez instaura seus ça. Doquinha, de 11 anos, não cabe Acho que devemos ouvir as gorjeios longos, dolentes. funesto? mecanismos próprios de privilégio e no velho nome da avó Eudóxia, palavras da cronista Eneida, em A temática, sete histórias de exclusão, passaporte para condena- como também não cabe na paixão Padre Couto levantou- meio ao tumulto causado pela pu- crianças na primeira adolescência ções. No horizonte de tudo isso, a re- despertada por um colega de classe, se da cadeira de palha blicação do livro em 1957: “Mui- (de 11 e 14 anos), é complexa, seu ligião, incompreendida na maioria indiferente e mimado pela família to más as crianças personagens trançada, arrepanhou a tom, pungente, longe da imagem das vezes pelas crianças. Com um “chique”. Repentinamente o ga- de Otto Lara, mas muito pior que adocicada com que se costuma ves- pequeno sorriso divertido, o nar- roto morre, está “bem morto den- batina surrada que deixava elas são os adultos que as cercam” tir a infância, apesar das teoriza- rador comenta que elas se sentiam tro do caixão”. Ela tem raiva dele. ver embaixo as calças de (apud A. Massi, p. 145). ções. Otto mais de uma vez afirmou culpadas porque “o sol atrapalhava Se era burra por não ter sabido se Ou uma tira recente dos Mal- brim ordinário, e andou estar consciente da “tristeza miste- o arrependimento perfeito”. declarar, ele era mais burro ainda. vados, de André Dahmer, Palestra riosa da infância”, seus segredos, Os meninos tentam se prote- Além disso,“morto, burro, não valia até a janela; suspendeu a sobre os Novos Tempos: seus desesperos. Tais sentimentos ger, seja pelo silêncio, os famosos nada”. E se chovesse? “...deve ser vidraça de guilhotina e, por — Só os mais violentos sobre- não aparecem no livro como ineren- segredos infantis, seja obedecen- horrível um defunto molhado”. viverão. um momento, perdeu a tes a um ser humano imobilizado no do ao “atávico instinto do antro Através dessa lente deslocado- — Como podemos aprender a tempo, ou mecanicamente deriva- escuro”, que faz parte dos mitos ra, observamos Doquinha fechada vista pela horta que descia violência? dos de circunstâncias, que nem por de origem: lugar de renascimento, no quarto com sua fantasia e sua até o riacho. — Na base da porrada.

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NOSSA AMÉRICA, NOSSO TEMPO : : João Cezar de Castro Rocha A Lírica do Exílio e a UEMcu SOMOS CONTATO ltuASSINATURA DO JORNAL IMPRESSOraCARTAS brasileira (final) EDIÇÕES ANTERIORES COLUNISTAS DOM CASMURRO ENSAIOS E RESENHAS ENTREVISTAS PAIOL LITERÁRIO PRATELEIRA NOTÍCIAS OTRO OJO

Um resíduo-ruína da melhor maneira possível. O parágrafo de abertura da Dito de modo mais claro: o não ser isso nem Na coluna passada, mencionei o efeito principal primeira edição parece, portanto, a própria metonímia aquilo pode provocar uma retomada vigorosa do tema da “lírica do exílio” no plano da reflexão: a “epistemo- do título. O intérprete encontra os fundamentos da for- do exílio, em lugar de projetar no mais precisamente logia da distância”. Trata-se de movimento muito si- mação social, já que, desde seus primórdios, o processo o que o procedimento comparativo impossibilita. Esse milar à descrição do trabalho do antropólogo, propos- civilizatório brasileiro exemplificaria uma feliz e rara mais deve necessariamente apontar para o decisivo ta por Clifford Geertz, em seu constante deslocamento coincidência entre intenção e gesto. As raízes do Brasil menos, que nada tem a ver com sentimento de inferio- entre “being there” e “being here”; num vaivém entre o podem ser reveladas, inclusive vistas a olhos nus, fratu- ridade, mas que assume (e o paradoxo é deliberado) o “lá” e o “cá” que não deixa de recordar a experiência de ra exposta sem dor alguma, pois constituímos o único caráter incaracterístico da pátria construída com base pensamento definidora dos versos de Gonçalves Dias. esforço bem-sucedido de transculturação. em operações comparativas. Portanto, vale a reiteração: as formas poéticas da Na segunda passagem, porém, a modificação não Os mais interessantes intérpretes do Brasil, aque- lírica do exílio são exercícios antropológicos que aju- poderia ser maior, já que a experiência histórica bra- les cujos textos ainda hoje nos instigam, atualizam a dam a entender os paradoxos da cultura brasileira. sileira aparece condenada ao descompasso entre as estrutura do poema de Gonçalves Dias. É como se suas Epistemologia da distância, por isso mesmo, ideias e seu lugar. Destaque-se o fator decisivo: não se obras terminassem por contradizer o projeto que as esti- dominante no pensamento social. Sergio Buarque de trata de correção estilística, que vise aprimorar a ex- mulara, pois, se buscam a especificidade do brasileiro ou Holanda plasmou Raízes do Brasil durante sua per- pressão ou torná-la mais clara, tampouco do acrésci- a origem da sociedade, terminam afirmando seu traço manência na Alemanha. Gilberto Freyre logrou o es- mo de novos dados, que aprimorem o argumento, mas problemático enquanto formação autônoma. Exatamen- boço final de Casa-grande & senzala nos Estados da supressão completa de ideia-chave, simplesmente te como Mário de Andrade concebeu a personagem de Unidos, ministrando curso na Universidade Stanford, substituída pelo seu contrário. Os fatores da forma- sua rapsódia: sem nenhum caráter. Logo, para ser bem depois de viajar pelo Deep South, chocando-se com as ção social brasileira que surgiam caracterizados como brasileiro é necessário nunca encontrar o brasileiro. diferenças entre a experiência da escravidão nos dois o único esforço bem-sucedido de transplantação cul- Nos termos de Sérgio Buarque: desterrados na países — isto é, segundo seu ponto de vista. tural em larga escala, surgem como definitivamente própria terra e bem-sucedidos, já que, através de ope- Fenômeno idêntico determinou a rica tradição estrangeiros às condições tropicais. O trânsito do pró- rações tais como o modo comparativo aperfeiçoado por do ensaio hispano-americano, iniciada por Domingo prio ao alheio realiza-se sem mediações, como se entre Gonçalves Dias, o incaraterístico se torna estimulan- Faustino Sarmiento com a escrita de Facundo (1845); as duas passagens não residisse um paradoxo de difícil te, favorecendo uma constante auto-apresentação. e isso enquanto se encontrava exilado no Chile. No sé- entendimento. Contudo, apesar da notável mudança, Vilém Flusser, por exemplo, aceitou o desafio de culo seguinte, Octavio Paz descobriu a figura-chave do tanto nas primeiras edições quanto na definitiva segue pensar a condição do exílio como definidora de uma “pachuco” durante sua permanência em Los Angeles e, o célebre trecho (com pequenas modificações): identidade paradoxal. Ele definiu a condição humana através do “pachuco”, esboçou uma radiografa do dile- a partir da imigração. O filósofo é o exilado conscien- ma mexicano em El labirinto de la soledad (1950). Trazendo de países distantes nossas formas de te de seu perpétuo nomadismo — a filosofia se trans- convívio, nossas instituições, nossas ideias, e tim- forma literalmente num exercício peripatético, num (A próxima coluna, aliás, será dedicada à intui- brando em manter tudo isso em ambiente muitas ve- constante ir do “lá” para “aqui”, e vice-versa. Macu- ção de Octavio Paz sobre o dilema mexicano.) zes desfavorável e hostil, somos ainda hoje uns des- naímico, o brasileiro seria o habitante permanente da terrados em nossa terra. pátria-exílio, embora não necessariamente um filósofo Na experiência história brasileira, e na estei- em estado bruto. O próprio título do livro de Flusser, A ra das obsessões românticas, o modernismo já tinha Os brasileiros tiveram uma experiência única fenomenologia do brasileiro, apresenta sintetica- aprendido a tornar a distância, produtiva. porque bem-sucedida, mas, ao mesmo tempo, como mente seu conteúdo: é como se o brasileiro não supor- Mário de Andrade desenvolveu uma das mais resultado, vivem desenraizados em seu próprio país. tasse um investimento ontológico, mas somente uma agudas reflexões acerca do tópico. Ele identificou a Esse paradoxo não tem sido devidamente avaliado. inscrição fenomenológica. onipresença do motivo na formação da literatura bra- Vale dizer: como ser ao mesmo tempo bem-suce- Trata-se de abordagem muito estimulante, que, sileira, antecipando uma conhecida observação de dido e desterrado? em diversos aspectos, dialoga com teses consagradas Sérgio Buarque, que veremos adiante, sobretudo no por Sérgio Buarque. Contudo, Flusser não compreen- tocante à sobrevida de ideais românticos em movi- Exílio como experiência de pensamento deu a sutileza da Canção do exílio, lendo em versos mentos posteriores: “Nos poetas românticos o tema Devemos a José Guilherme Merquior o ensaio como os de Gonçalves Dias um “amor pelas palmeiras do exílio e do desejo de voltar é frequente. Com o ne- mais agudo sobre o assunto. Em O poema do lá, ele en- e pelos sabiás e pelas flores, e em geral pelo berço es- orromantismo dos nossos parnasianos, o tema das frentou o problema: como entender a ausência de adje- plêndido, [que] não passa de subliteratura”. 4 barcas, das velas que partem e ‘não voltam mais’ foi tivos no poema de Gonçalves Dias, estudado na coluna Pelo contrário, deve-se aprofundar o parado- substituindo a ave que voltava ou queria voltar aos do mês de junho? Ora, precisamente o poema que se xo. Isto é, Sérgio Buarque identificou um fenômeno ninhos antigos”. O tópos retorna no modernismo, tornou o símbolo da nacionalidade distingue-se pela importante, mas que não soube desenvolver, supri- parcialmente esvaziado da nostalgia da pátria, é bem inexistência de qualificativos da pátria. Aurélio Buarque mindo o parágrafo de abertura na edição definitiva de verdade, pois relacionado ao desejo de fuga do coti- de Holanda propôs uma resposta engenhosa: a ausência Raízes do Brasil. diano hostil: “No... neo-neo-romantismo dos contem- de qualificativos daria aos substantivos uma concretude Não terá chegado a hora de o pensamento social porâneos (...). Incapazes de achar a solução, surgiu inédita, como se o poema se tornasse, por assim dizer, brasileiro deixar-se tocar pela experiência de pensa- neles essa vontade amarga de dar de ombros”.1 Para um retrato em preto e branco da realidade descrita. mento subjacente à Canção do exílio? O próprio Flus- os modernistas, o sentimento de exílio seria solidário A hipótese é interessante, mas Merquior atinou ser, apesar da crítica implacável às palmeiras e aos sa- ao ennui baudelairiano, em lugar de preso à angústia com uma possibilidade ainda mais fecunda: biás, foi quem melhor sintetizou sua radicalidade. com as incertezas da nacionalidade nascente. De qual- Não seria essa a melhor explicação para o eterno quer modo, a permanência da ideia sinaliza a força da (...) o simples comparar já nos abre uma nova retorno aos versos de Gonçalves Dias? mentalidade romântica na consciência nacional. via de interpretação. (...) Não é tanto por evocar ele- A lírica do exílio, de fato, é o mais poderoso resí- mentos do país onde se nasceu que a canção se de- duo romântico presente na geração modernista. senvolve como expressão de uma saudade; é antes a Penso, claro está, na tirada do autor de Retrato saudade que, como se preexistisse a todo dado objeti- do Brasil: vo, oferece ao poeta a pura afetividade com que julga ambos os lugares, o de ‘aqui’ e o de ‘lá’. (...) Nenhum Oswald de Andrade, numa viagem a Paris, do juízo objetivo, e nenhuma realidade objetiva. 3 alto de um atelier da Place Clichy — umbigo do mun- do — descobriu, deslumbrado, a sua própria terra. A A terra natal não possui características que per- volta à pátria confirmou, no encantamento das des- mitam defini-la em si mesma, logo, como adjetivá-la? cobertas manuelinas, a revelação surpreendente de Trata-se da operação mental do poeta que compara que o Brasil existia. 2 os elementos comuns à pátria e aos demais lugares, julgando-os superiores sempre que pode encontrá-los Exílio como eixo “lá”, isto é, em sua terra, pois o poeta se encontra tem- As edições de Raízes do Brasil apresentam porariamente desterrado. Mas os elementos assinala- mudanças intrigantes. Na primeira edição, publicada dos necessariamente também existem “cá”, na terra em 1936, o livro principia com um otimismo que será alheia, ou a comparação seria impossível. Portanto, devidamente temperado nas versões posteriores: a ausência de adjetivação corresponde à falta de tra- ços característicos do “Brasil”, isto é, exclusivamente Todo estudo compreensivo da sociedade brasi- “dele”. Por isso, como vimos no primeiro texto desta leira há de destacar o fato verdadeiramente funda- série, o poema de Gonçalves Dias não emprega quali- mental de constituirmos o único esforço bem-sucedido ficativos a exemplo do pomposo O dia 7 de setembro, em larga escala, de transplantação da cultura euro- em Paris, de Gonçalves de Magalhães, com seus ver- peia para uma zona de clima tropical e subtropical. sos envergados à força de uma miríade de adjetivos Sobre território que, povoado com a mesma densi- — “belo céu”; “ares embruscados”; “mimoso colibri”; dade da Bélgica, chegaria a comportar um número “sabiá canoro”; “mar agitado”. de habitantes igual ao da população atual do globo, Contudo, apesar da brilhante análise, Merquior vivemos uma experiência sem símile. terminou reproduzindo a subjetividade que, segundo sua leitura, qualificaria aCanção do exílio. Para que o efeito de contraste fique ainda mais Leia-se a conclusão do ensaio: claro, reproduzo agora a abertura da edição de 1967, o texto definitivo de Raízes do Brasil; a edição, via de Profundamente brasileira é a saudade da terra regra, que o leitor tem em mãos: natal, na forma de um desprezo cego pela realidade Notas objetiva do país. (...) desgraçados de nós se perder- 1 Mário de Andrade. “A poesia em 1930”. Aspectos da A tentativa de implantação da cultura europeia mos a fé desse amor-vontade; desgraçados de nós, literatura brasileira. São Paulo: Livraria Martins Editora, 1943 em extenso território, dotado de condições naturais, se então justificássemos o amor da nossa terra pela [1931] p. 31 se não adversas, largamente estranhas à sua tradição sua grandeza palpável — porque teríamos perdido a 2 Paulo Prado. “Poesia Pau-Brasil”. Oswald de Andrade. Pau- milenar, é, nas origens da sociedade brasileira, o fato feição mais nobre do sentimento da terra natal, que é Brasil. São Paulo: Globo, 1990, p. 57 dominante e mais rico em consequências. essa reserva, esse poder de amá-la, sem outra justifi- 3 José Guilherme Merquior. “O poema do lá”. Razão do cativa que o próprio amor. (p. 67-8) poema. Ensaios de crítica e de estética. Rio de Janeiro: No primeiro caso, a experiência brasileira é sem Topbooks, 1996 [1965], p. 59. igual porque exitosa. E o sucesso parece necessariamen- Por que não radicalizar sua brilhante análise, 4 Vilém Flusser. A fenomenologia do brasileiro. Gustavo te sugerir que a aclimatação da cultura europeia ocorreu propondo a objetivação do dado subjetivo? Bernardo (org.). Rio de Janeiro: EdUERJ, 1998, p. 65. 172 • agosto_ 2014 12

O AUTOR : : Martim Vasques da Cunha Osman Lins São Paulo – SP Nasceu em Vitória de É preciso não vê-la nem possuí-la, Santo Antão (PE), em mas procurá-la nesse vale obscuro. 1924. Cursou seus estudos superiores em Jorge de Lima, Livro de sonetos. Recife (PE). Em 1955,

estreou na literatura com 1. o romance O visitante. O que mais surpreende na trajetória Foi professor titular de literária e pessoal de Osman Lins é a sua in- literatura brasileira na tegridade moral. Vivendo no surgimento da Faculdade de Filosofia, onda concretista e da suposta contracultura Ciências e Letras de Marília dos anos 1960 e 70, Lins foi um escritor que (SP), onde permaneceu até conseguiu, com uma disciplina e um esforço 1976. Escreveu romances, inigualáveis, realizar uma obra que supera ensaios e peças de teatro. A rainha dos cárceres qualquer linha dos contemporâneos. Seus três da Grécia foi sua última principais livros — Nove, novena (1966), obra de ficção. Morreu em Avalovara (1973) e A rainha dos cárce- São Paulo (SP), em 1978. res da Grécia (1976) — representam uma ascensão ímpar na literatura brasileira, mas também explicita os problemas que nos con- sumiriam até hoje: a questão da linguagem como raiz de uma realidade autônoma e se ela capta ou não as sinuosidades da alma humana sem corromper o mundo que nos cerca. Para ele, ser um escritor em um mundo onde a opressão às atividades do Espírito é constante torna-se uma forma de resistência que exige do sujeito, antes de tudo, uma firme determinação psíquica. Mas esta não é a con- dição de qualquer um que queira atravessar este mundo com alguma dignidade? Esta é a questão que Osman Lins se propõe a meditar no seu primeiro grande romance, O fiel e a osman lins por pedra (1961). Após ter lançado a novela O ramon muniz visitante (1955) e o livro de contos Os ges- tos (1957), ele finalmente descobriu o eixo te- mático de sua obra: a luta do indivíduo contra um meio que tenta aniquilá-lo a qualquer cus- to. O problema era qual seria a melhor forma para narrar este tema, desenvolvido na his- tória de Bernardo Vieira Cedro e sua mulher Teresa, que são obrigados a encarar a malícia de Nestor Benício, assassino de seu irmão Miguel devido a uma herança de terras. Lins escolhe a forma do romance tradicional, mas o que importa ali não é o conflito exterior e sim as dimensões metafísicas que a decisão de Bernardo implica, se aceitar o jogo de Nestor Benício ou então matá-lo em legítima defesa. O fiel e a pedra confirmaria o talento de Osman Lins, mas ninguém esperava o que viria logo a seguir. Nascido em 1924 em uma pequena cidade do interior de Pernambuco, Vitória de Santo Antão, ele sempre soube que sua vida neste mundo tinha uma gran- de responsabilidade, já que, como o próprio disse, “o fato de minha mãe ter morrido no parto significava, a meu ver, que esta mulher veio ao mundo somente para me dar à luz”. A vocação de escritor foi conquistada ao custo de um emprego como funcionário do Banco do Brasil, que quase o massacrou espiritual- O guerreiro mente, mas que também possibilitou certa estabilidade para os anos de aprendizagem. Dilemas acerca do Logo após o lançamento de O fiel e a pedra, Osman Lins decide viver de sua literatura; tempo permeiam a viaja pela primeira vez ao exterior e fica des- obra de Osman Lins lumbrado com as catedrais de Chartres e No- tre-Dame, na França; começa a se interessar silencioso pela obra de Mircea Eliade e C. G. Jung; suas afinidades com Dante Alighieri se acentuam e surge, em seu íntimo, a concepção de um romance que refletisse a ordem do cosmos e que inserisse o Brasil nesta mesma ordem, fadada ao fracasso, uma vez que o animal que te para eternizá-la e não torná-la perecível lugar nenhum? Seria a história de Abel com mesmo com as suas tentativas falhadas. persegue não é algo que se toca com facilida- aos olhos de outras pessoas. Joana Carolina Cecília nos tempos de um Recife que há so- Todavia, ele sabia que ainda não esta- de; ele devora a todos com muita calma, mas poderia ter sido mais uma; mas seu neto, mente na memória? Ou a história de Abel va pronto. Precisava dar o primeiro salto — e também dá a chance de fazermos o justo em através do poder da escrita, a transforma em com Anielise Roos, uma mulher européia que este foi Nove, novena. Uma das caracterís- nossas vidas; sua presença não é sentida, mas uma santa. A literatura é a prece do último contém cidades em seu corpo? Ou a história ticas mais admiráveis da obra de Osman Lins todos sabem que está lá. É desnecessário di- julgamento, a da finitude que aceita as regras de Abel com uma mulher misteriosa, que não é o fato de que cada livro seu não é um mero zer o que Osman Lins procura na sua litera- do Tempo, para depois subvertê-las. Neste possui nome e é designada por um símbolo exercício de malabarismo verbal, mas sim um tura — nada mais nada menos que o Tempo. sentido, Osman Lins supera a problemática alquímico — um círculo com um ponto no calculado aprendizado, em que o autor quer Por que tudo passa? O que fica, afinal filosófica de que o Tempo consome a tudo e centro e duas hastes apontando para cima — experimentar até que ponto ele pode chegar, de contas? Qual o sentido nesta vida em que a todos e supera também a perspectiva de ver e onde vivem dois seres dentro de seu corpo antes de dar o passo decisivo. tudo parece se desfazer em uma questão de nas palavras a única maneira de recriar o pas- composto de palavras encarnadas? Assim, as narrativas de Nove, novena segundos? Estas são as questões que Osman sado na forma de mito. E também pode ser a história da cria- apresentam um novo Osman Lins: se em O Lins traduz na grande novela que é Retábu- Quando Nove, novena foi lançado, ção do maior palíndromo já inventado, a frase fiel e a pedra temos um escritor que ainda lo de Santa Joana Carolina, a peça central estamos no ano de 1966 e os militares come- SATOR AREPO TENET OPERA ROTAS, que se prende a um esquema rigoroso e linear ao de Nove, novena. Inspirado em incidentes teram a besteira de fazer uma das ditaduras coordena os movimentos desses personagens contar sua história, em Nove, novena, va- ocorridos com sua avó Joana Carolina, Re- mais desastrosas já realizadas. A opressão numa simetria implacável, dentro dos limites de mos ter um romancista que não hesita em tábulo conta a saga de uma mulher que luta será institucionalizada, mas não é a opressão um quadrado (que representa o mundo) e que misturar o tempo da memória com o tempo contra um mundo que tenta corrompê-la, política que preocupa Osman Lins. Sua busca gira conforme o ritmo de uma espiral (o Tem- da realidade; brinca com as várias possibili- vive uma vida miserável no interior de Per- é pelo eterno e o questionamento que impor- po). Pode ser também a história de Julius He- dades de contar um mesmo final; caracteriza nambuco, tinha de tudo para ser um fracasso ta agora é como ele será revelado em um país ckethorn, que deseja construir um relógio que a personalidade de cada personagem com um completo, mas que termina a sua trajetória que sequer meditou sobre o seu começo den- reflita a ordem e, simultaneamente, a desordem desenho gráfico, retirado de símbolos alquí- sendo recebida por santos e anjos, por causa tro do cosmos, o seu próprio papel na exis- da existência; também é a história de como a micos; e que domina o uso de cada palavra, da retidão e da coragem ao salvar a vida de tência do Universo. Ele percebe que o Tempo Inominável (a mulher misteriosa de Abel, como verbo e adjetivo. um casal, a de um menino que seria vítima de está devorando cada momento, cada sopro de passaremos a chamá-la neste ensaio) nasceu e A literatura torna-se uma liturgia em que uma tocaia, e a de seus próprios filhos, obri- vida do brasileiro, por meio da cultura ou da morreu duas vezes, recebendo em seu corpo um o escritor precisa se manter são e completo gados a ver os sofrimentos da mãe em uma política. Sua alma vive a ansiedade entre um pássaro composto de pássaros, o Avalovara do para captar a eternidade que circunda o mun- viuvez fiel ao marido morto. Além que não se manifesta e um Começo que título; e é bem provável que seja a história do do real. Contudo, ele sabe que esta forma de A história é tocante, sem dúvida, e Os- não se sabe bem como e quando começou. Fi- próprio Osman Lins ao fazer uma nova literatu- vida se aproxima da loucura e, de fato, a única man Lins mostra como é possível relacionar nalmente, chegou a hora de expor estes seus ra num país em que qualquer espécie de novida- forma de realizá-la sem perder o prumo — o uma vida em segredo, guardada na brutali- dilemas — e eles estarão cifrados neste tapete de seria oprimida sem misericórdia. rigor, a ordem, a estrutura das coisas — é agir dade do Nordeste, com a vida do cosmos e de enigmas que é Avalovara. Sim, Avalovara é tudo isso. É um ro- como um caçador, em busca de algo no qual as da eternidade, ao combinar cada milagre de mance cosmológico que se baseia em regras palavras serão suas armas, suas iscas, mas que Joana Carolina com um signo do Zodíaco e 2. únicas e, como já dissemos, é estruturado a também se revelam como futuras armadilhas. jogando com as multiplicações de significado Mas, afinal de contas, do que se trata partir de um palíndromo: SATOR AREPO TE- Ora, se Osman Lins é um caçador, de- que a palavra tem como a semente de uma or- Avalovara? Fazer uma sinopse normal é NET OPERA ROTAS. Existem dois sentidos vemos saber o que está caçando pois, como dem no mundo. Retábulo mostra um escritor quase impossível: Seria a história de Abel, para esta frase: “O lavrador mantém cuidado- sabemos, não se pode caçar o nada. Temos de na recuperação de uma pessoa do passado, aprendiz de escritor, que busca uma Cidade samente a charrua nos sulcos” ou “O lavrador caçar alguma coisa. E sua caçada pode estar revestindo-a de uma figura mítica, justamen- misteriosa que, na verdade, não existe em sustém cuidadosamente o mundo em sua ór- 172 • agosto_ 2014 13

bita”. Ambos fazem alusões ao modo de como necessário que ele passe pela experiência dila- lidade. Contudo, ela não transforma para criar um programa de rádio, comprimindo o tempo o Criador organiza o mundo em que vivemos; cerante da perda e da morte da parte femini- outro mundo de fantasia pois Lins capta com e o espaço, numa fusão do Recife dos tempos na verdade, é uma sentença sobre a certeza de na, como o que acontece com Cecília quando exatidão o poder transfigurador da palavra. da invasão holandesa com o dos anos 70. uma ordem que, talvez, poucos percebam. O cai de um cabriolé numa praia e quebra o pes- Avalovara não é um livro sobre a realidade Paralelamente, o professor se questiona palíndromo pode ser lido de qualquer manei- coço, para procurar a integração de sua alma tal como é; é um romance sobre uma realida- sobre o que se passava dentro do íntimo de ra — e terá o mesmo sentido e a mesma or- na Europa, na companhia de Roos. de em permanente declínio e que precisa de Julia enquanto escrevia o romance; uma ob- dem. Distribuído num quadrado com vinte e Anielise Roos é a mulher que será a con- um novo Começo. Entramos aqui numa área servação de sua sobrinha — a de que o livro cinco pequenos quadrados emoldurando cada cretização carnal da Cidade que Abel busca — perigosa, o da especulação gnóstica. Quando possui muito de suas expressões e seus tiques letra da frase, Osman Lins — inspirado num mas ele não a encontrará nela. Roos se esqui- o artista cria um espelho de cosmogonia para — faz o professor imaginar se o manuscrito manuscrito sobre a sentença, encontrado pelo va o tempo todo, viaja para inúmeras cidades ser a substituição de um cosmo que, a seu ver, não seria uma última carta de amor ao solitá- personagem Abel na Biblioteca Verona em Ve- européias e Abel, amparado por uma bolsa de está em permanente desordem ou que aban- rio amante. A forma de um ensaio disfarçado neza — sobrepõe uma espiral, que nasce fora estudos, a segue até que consuma o seu amor. donou a verdadeira ordem, e se utiliza do de diário permite a Osman Lins que o leitor do quadrado e dirige-se para o centro da figu- Juntos vão à catedral de Chartres, onde Abel dom do Verbo para modificá-la não somente descubra que, afinal de contas, “as grandes ra, exatamente na letra N da palavra TENET. se depara com a visão do cordeiro que tam- em seu aspecto exterior, mas principalmente mudanças sempre se operam em silêncio”. Este plano parece mostrar os funda- bém estará com ele no quarto da Inominável em seu aspecto interior, imaginando como Ao analisar parte por parte do romance — mentos de Avalovara, mas é apenas o iní- em São Paulo. Ali, Abel conhece um cosmo poderia ser a existência se recomeçássemos — observando as relações com a quiromancia, cio. O quadrado é o mundo — e o romance em miniatura que mostra uma ordem divina então não estamos mais no terreno da mera a astrologia, a história do Brasil, músicas se deslocará de Ubatuba para São Paulo, do relacionada com a ordem humana. Roos afir- literatura e sim de algo que está em jogo há populares, referências autobiográficas e mí- Recife para Paris, de Paris para Amsterdam; ma que tem de ir embora porque é obrigada muito tempo: a integridade do ser. ticas, principalmente a lenda de uma mulher mas a espiral é o tempo, seja exterior como a cuidar do amante moribundo; Abel a vê ir Osman Lins usa a palavra como uma chamada Ana, que atravessava todas as pri- interior, e assim iremos da Roma Antiga para embora, sufocado por uma dolorosa solidão. arma para um novo conhecimento do cosmos. sões da Grécia para aprisionar a passagem do a Europa da Segunda Guerra Mundial, do Re- No Brasil, ao presenciar um dia de eclip- Mas como podemos ter um “novo conheci- Tempo —, o professor se transforma, aos pou- cife dos anos 50 para a cidade de São Paulo se solar, Abel conhece a Inominável. Ela é mento”, se o cosmos é uma realidade de fac- cos, em um personagem do livro que lê. Ele na década de 60. a carne no Verbo; sua vida é repleta de fatos to? Mesmo com as revelações judaicas e cris- se retrata como o Espantalho que Maria da Entretanto, temos de tomar cuidado na enigmáticos: seu nascimento e renascimento, tãs, a ordem cosmológica, como nos mostra França monta conforme o passar do tempo e nossa análise. Se ficarmos somente na rela- seu pai composto por próteses, seu avô jurista Eric Voegelin em A era ecumênica, nunca que simbolizaria o encontro da demente com ção entre o quadrado e a espiral com o palín- que desconhece as verdadeiras leis e, em espe- deixou de existir. Ela continua presente na alguma espécie de Eterno que se importa com dromo, cairemos no erro do estruturalismo. cial, seu relacionamento com Inácio Gabriel, consciência humana — e isso dá ensejo aos ela. Na identificação com o Espantalho, o pro- Osman Lins já nos mostrou as bases de seu moço puro e fraco que, ao ser diagnosticado fenômenos da Gnose e da Historiogenesis, es- fessor percebe que sua vida nunca teve muito romance; agora é hora de olharmos sobre o com tuberculose, espera com tranquilidade a peculações sobre o Começo da História, ten- sentido, exceto aos olhos da única mulher que que ele fala a todos nós, como seres humanos. morte, sem se esquecer de dar de presente à tando dominá-la por meio de mitos e sistemas amou, a misteriosa Julia, que se jogou embai- E o que temos é uma bela história de amor, amada um pássaro feito de vários pássaros que ideais, para depois determinar quando será o xo de um caminhão na Avenida Paulista. mesmo que tenha seus momentos estranhos se chama justamente Avalovara. O nome deste Além, geralmente em função do ser humano Osman Lins monta um quebra-cabeça e que possuem um significado próprio na lin- estranho pássaro (semelhante a uma iluminu- e nunca do mistério da divindade. O artista para resolver o seu próprio mistério. O roman- guagem simbólica do livro. ra medieval) é uma síncope de Avalokitesva- toma o lugar do profeta e do apóstolo. Quem ce de Julia Marquezim Enone é uma paródia Avalovara começa com dois amantes ra, divindade budista da compaixão infinita tem o domínio do Verbo terá a certeza de um de Avalovara, com sua linguagem transfigu- em um quarto, amando-se na penumbra de que, ao alcançar a consciência suprema, optou contato mais íntimo com o próprio Deus. rada e estrutura hermética; o ensaio em for- um final de tarde em São Paulo. São Abel e a por não entrar no nirvana, permanecendo no Dessa forma, a cosmologia de Osman mato de diário que o professor escreve com- Inominável. Será neste quarto que toda a his- umbral para poder socorrer os aflitos. O pre- Lins se revela como uma especulação gnós- para dados da realidade com os incidentes da tória de um mundo colidirá com a trajetória sente de Inácio Gabriel — que fica encravado tica em que a abertura da alma fica restrita ficção, privilegiando estes últimos em relação de cada um destes personagens, em busca de na alma da Inominável — se petrifica quando apenas aos domínios do cosmo e não a uma aos primeiros. Dessa maneira, uma anotação uma eternidade que foge no efêmero que os Olavo Hayano deflora a esposa e só recupera a ordem transcendente. Deus existe, sem dúvi- sobre a precariedade do sistema previdenciá- persegue. Abel e a Inominável se encontra- sua beleza ao encontrar-se com Abel. da, mas está um pouco distante; a eternidade rio existe apenas em função do romance e não ram em um dia de eclipse do sol e se torna- A Inominável é uma fantástica criação está lá, mas temos de nos contentar com o pá- porque faça parte de uma realidade maior. ram amantes logo depois; ela é casada com de Osman Lins para mostrar a totalidade da lido reflexo que é o cosmos. O novo Começo Pouco a pouco, o narrador substitui a sua vida Olavo Hayano, homem misterioso que possui personalidade. É a anima em estado puro, entre Abel e a Inominável no Paraíso só acon- pela ficção e o seu sentido só se dá quando se duas faces, como o deus Jano. A Inominável pois é quem guiará Abel na escuridão do tecerá se houver morte e sacrifício; não temos transforma no Espantalho que Julia vislum- é também um ser dúplice; nasceu e morreu mundo para que ele possa, finalmente, en- nenhum aceno de uma possível ressurreição. brou num momento de transfiguração silen- duas vezes: a primeira ao cair de um elevador contrar a Cidade que tanto procura. Abel per- Isto não significa que Osman Lins seja ciosa. Em Avalovara temos um novo Come- (teria sido uma tentativa de suicídio?) e a se- cebe que tanto Cecília como Roos eram ante- um gnóstico. Em hipótese nenhuma: Avalo- ço; em A rainha um novo Além — mas ambos gunda ao dar um tiro no peito logo após a pri- cipações da Inominável e que tudo convergia vara é o retrato da luta que acontecia den- são sistemas ideais, construídos pela literatura meira noite de núpcias com Olavo Hayano. para aquele momento em que os amantes ce- tro da alma deste homem, consciente de seus para transformar a realidade. Ela é composta de palavras e tudo o que toca lebravam um amor adúltero, mas paradoxal- deveres como ser humano e como artista, e o E tudo isso acontece por um motivo: o transforma-se em ser vivo; no quarto onde mente puro e capaz de transcender as prisões seu espírito foi o único que conseguiu captar, desaparecimento da memória. Ao observar faz amor com Abel, do tapete onde se deitam do Tempo. Contudo, a própria Inominável é através da transfiguração da realidade pela um detalhe do romance de Julia Enone que saltam leões e serpentes; melodias de Carmi- a prova de que o Tempo pode ser alterado. palavra, a enrascada metafísica que o Bra- havia ficado despercebido — o nome do gato na Burana, de Carl Orff, enchem a sala. Sua natureza é dúplice: seu rosto, olhos e sil entrara. Para ele, a literatura era a arma de Maria de França e seu singular destino —, o Na verdade, a história entre a Inominá- boca mostram outra mulher por trás do atual de uma caçada perigosa, que não era mais narrador descobre que a chave do enigma es- vel e Abel começa muito antes. Sem dúvida, o corpo. Como seu marido Olavo Hayano, sua atrás do Tempo, mas sim do tempo perdido. tava em suas mãos e ninguém notou. O gato personagem principal de Avalovara é Abel. alma bipartida assusta os amantes. Só Abel E onde erramos? Como foi possível o nosso chamado Memosia ou Mimosia remete à pa- A escolha do nome é singular e podemos adi- compreende aquilo. Assim, os dois se amam erro se prolongar por tanto tempo? Avalo- lavra grega mnemósine, o nome dado para um vinhar o seu destino: ele será o sacrificado. como se fosse a última noite de suas vidas, vara mostra como um escritor, ansioso para ser criado pelo deus Urano e que guardaria os As visões de um cordeiro que o persegue em prestes a entrarem na Cidade que Abel tan- encontrar a eternidade, se perde na tensão da tempos passados dos deuses antigos. Mnemó- sua temporada européia e que aparece, anos to deseja, Cidade que se revela como sendo condição humana e percebe que a literatura sine é claramente a Memória. O destino do depois, na mesma sala onde está com a Inomi- o Paraíso e que será alcançado com a morte. só terá sentido se usar a única coisa que nos gato é triste: abandonado pela dona, por causa nável, confirmam esta triste sina. Quem será o Avalovara é uma profunda meditação liga ao sagrado: a memória. de sua demência, perde-se nas ruas de Recife seu carrasco? E por que o sacrifício? Tudo tem de como a arte é um dos meios de impedir a e morre entalado em um buraco ao perseguir seu começo no Recife, quando Abel, olhando chegada da “indesejada” em nossas vidas. A 3. um rato. A sua morte é a morte da própria a água de uma cisterna perto de sua casa, vê verdadeira opressão do mundo não é apenas O tempo perdido caçado por Osman Lins memória de Maria da França — e talvez da de a imagem de uma Cidade. A epifania o marca no seu aspecto político; é também a morte de não é o mesmo de Proust. Para o francês, a Julia Enone que, ao saber disso, tira a própria profundamente e, durante muito tempo, ele cada espírito que se afoga na tensão entre o obra de arte pode recuperar o que já não existe vida; e da do narrador, agora fragmentado no procurará o lugar desta Cidade, assumindo efêmero e o eterno. Talvez a arte seja a úni- mais porque sabe que ela não passa de uma discurso incoerente do Espantalho. sua condição de peregrino, seja na terra natal ca forma que pode salvar o ser humano desta representação da realidade; já os personagens Mas a morte da memória é também a do Recife, na Europa ou em São Paulo. tensão — mas ela também pode levá-lo a uma do brasileiro acreditam que a literatura capta morte da passagem do Tempo e este depen- Três mulheres serão os símbolos máxi- ordem petrificada, se não aceitar a desordem a essência da realidade. Esta é a armadilha em de da primeira para que o ser humano tenha mos de cada etapa da busca: Cecília, Anielise inerente à nossa condição. Aqui entra uma que cai o ensaísta-narrador de A rainha dos conhecimento do sentido da sua vida e de que Roos e a Inominável. A primeira, apesar das das histórias do livro, a de Julius Heckethorn cárceres da Grécia, o último romance de ela terá um fim. A Memória nos faz relembrar observações de Regina Dalcastagnè em seu e seu relógio que reflete a ordem do cosmo. Lins. Sob a forma de um ensaio, um professor que morreremos; o sentido da vida ressur- ensaio A garganta das coisas, ao colocá-la Relojoeiro alemão, vivendo às vésperas do de Biologia com pretensões literárias tem em ge justamente desta consciência da finitude. após o episódio de Abel com Roos na tem- nazismo, Julius é um amante de Mozart e mãos o único romance escrito por sua aman- Quando a Memória desaparece, o Tempo porada européia, se passa, a meu ver, como Scriabin que pretende que sua obra máxima te, Julia Marquezim Enone, que também se também se esfarela — e o ser humano perde a a fase de inocência que Abel terá de enfren- seja a reprodução exata da tensão existente chama A rainha dos cárceres da Grécia, razão de sua existência. E só podemos perder tar no Recife. Cecília é vislumbrada com seis no mundo, como nas nossas almas. Seu re- e tenta fazer um estudo literário, por dois mo- a Memória se desejamos desesperadamente anos de antecedência, no mesmo instante em lógio é engenhoso: cada hora emite o som de tivos: o primeiro, para divulgar o livro, ainda recriar nosso Começo para ter nosso próprio que Abel vê a imagem da Cidade na cisterna; um trecho de uma sonata de Scriabin, mas inédito; e o segundo, para aplacar a saudade Além, jamais integrado ao mistério da divin- os dois se conheceram na casa das gêmeas não de forma linear. A distribuição é aleató- da mulher que lhe deu um pouco de conforto dade. A especulação gnóstica de Avalovara Hermelinda e Hermenilda, mulheres solitá- ria e os sons nunca reproduzem o trecho da e amor em uma vida dominada pela solidão. se reverte na trapaça da realidade transfigu- rias que esperam a morte para se libertarem sonata na sua totalidade porque Heckethorn A rainha dos cárceres da Grécia, o rada de A rainha. Quando a vida é vivida da vida. É uma época de transformações para fez questão de esconder o décimo-terceiro romance de Osman Lins e não o de Julia Eno- como um jogo lúdico, a única consequência Abel: sua mãe, a Gorda, prostituta aposen- fragmento — que surgirá no dia em que as ne, é sobretudo uma história de amor. Aliás, a possível é a insanidade total. tada, está entrevada; seu pai se suicida; seus conjunções astrológicas indicarem o apareci- presença da mulher é importante na obra do Será que não foi por acaso que, logo após irmãos e suas irmãs se espalham pelo mun- mento de um eclipse solar. pernambucano. Para ele, o relacionamento en- o lançamento do seu último romance, Osman do; e, finalmente, ele descobre a vocação de A obra de Heckethorn será a única pro- tre os sexos não é uma mera questão fisiológica Lins faleceu em meados de 1977? Será que ele escritor ao terminar seu primeiro conto. O va da genialidade do seu criador: ele é as- ou emocional; é uma união espiritual. As mu- também caiu na mesma armadilha que per- relacionamento com Cecília tem lances de pe- sassinado pelos nazistas, seus papéis serão lheres são musas, que inspiram ou atormentam cebeu como poucos? Ele não teria suportado rigo: os irmãos não gostam de Abel porque ele queimados e o relógio será vendido ao embai- os homens, geralmente artistas que tentam im- o fato de que sua obra era a denúncia de uma seria um homem casado (sua esposa teria se xador brasileiro na Suíça que, anos depois, pedir o ataque da finitude, enganando-a com a doença espiritual que se alastrava como um matado com um tiro no ouvido). Uma noite, venderá para um empresário de São Paulo, suposta eternidade da arte. Elas são como a Mi- vírus na sociedade brasileira? Um homem os irmãos batem em Abel e em Cecília; ao se que transferirá ao seu filho — justamente ra-Celi de Jorge de Lima, imagens da Virgem, com um caráter tão forte precisaria de outras limparem do sangue e da sujeira numa praia, Olavo Hayano, deixando abandonado o reló- da alma em sua totalidade, que ajudam o poeta forças para manter-se íntegro — ou então só a Abel descobre que Cecília é hermafrodita. gio no seu quarto, o mesmo quarto onde es- na sua caçada por um tempo que nunca existiu: morte o libertaria dos tormentos desta vida de Um dos motivos que me leva a discor- tão Abel e a Inominável; eles ficam surpresos “Há necessidade de tua vinda, Mira-Celi:/ Mi- guerreiro silencioso. O criador de Avalovara dar da afirmação de Dalcastagnè que Cecília ao escutarem a sonata de Scriabin por inteiro lhares de ventres virginais te esperam/ através teve a coragem de enfrentar os paradoxos do seria a segunda mulher na vida de Abel, após no exato momento em que a visão da Cidade de séculos e séculos de insônia!”. espírito — mas o preço a pagar foi alto demais. Anielise Roos, são dois detalhes do romance. surge diante deles, quando Hayano aparece A Mira-Celi de Abel, em Avalovara, é Contudo, alguém tinha de começar a caçada, O primeiro é que Osman Lins mistura os tem- com um revólver, pronto para matá-los. a Inominável; a do solitário professor de Bio- mesmo que ela estivesse fadada ao fracasso. pos dos acontecimentos para criar uma simul- A estrutura de Avalovara abarca um logia é Julia Marquezim Enone. A Inominável Ele sabia que o tempo perdido jamais seria taneidade e assim dar a impressão que não mundo de tensões, mas nada se compara à é o Verbo em carne; já Julia Enone escreve reencontrado, exceto se submetesse aos dita- vemos apenas um único Abel, mas três Abéis tensão da linguagem que Osman Lins elabo- um romance que conta a história de Maria de mes da realidade — e, se isso não aconteceu diferentes, ainda que seja o mesmo; o segun- rou para seguir os movimentos do espírito França, demente mental que realiza um calvá- durante a sua vida, foi porque permaneceu do é o fato de Cecília ser uma hermafrodita — de cada um dos personagens. E é aqui que rio para ter direito a uma aposentadoria por procurando-a naquele vale obscuro aonde ou seja, os aspectos feminino e masculino da chegamos ao xis da questão. Neste romance, invalidez no INPS, torna-se prostituta, e que todos nós iremos algum dia, na esperança de personalidade de Abel ainda estão fundidos, a linguagem não é um mero instrumento de conta em primeira pessoa sua aventura num finalmente vê-la tal como é ou então de a pos- já que a sua consciência não os discriminou. É descrição; ela é o Verbo que transforma a rea- estilo alucinado, barroco, como se estivesse em suirmos como sempre sonhamos. 172 • agosto_ 2014 14

A LITERATURA NA POLTRONA : : José Castello Jornalismo e literatura

UEM SOMOS CONTATO ASSINATURA DO JORNAL IMPRESSO CARTAS ornalismo: objetividade, lhe a perspectiva, sempre parcial, modo sutil, moldado pela realidade. gênero como a crônica — à maneira plexa e múltipla. Já o escritor nada

EDIÇÕES ANTERIORES COLUNISTAS DOM CASMURROfatos,ENSAIOS realidade. E RESENHAS ENTREVISTAS Literatura:PAIOL LITERÁRIO PRATELEIRAdesdeNOTÍCIAS OTROa OJOqual observa seu objeto. Não existe escritor “puro”: a tese da clássica de Rubem Braga, Fernando deve, em princípio, a ninguém, subjetividade, sonhos, ima- Por mais que lute para isso, um jor- arte pela arte não passa de um deva- Sabino, Paulo Mendes Campos, Sér- pois está entregue às oscilações de Jginação. Este é o esquema nalista nunca é “neutro”. Traz con- neio. Toda subjetividade está marca- gio Porto. A crônica é o coração des- seu mundo interior e de sua subje- que se costuma usar para distinguir sigo, sempre, os limites de sua for- da pelos limites de seu tempo. Toda se limite que separa, mas também tividade. Contudo, mesmo que não e separar o jornalismo da literatu- mação pessoal, de sua educação, de subjetividade traz, em si, as marcas une, jornalismo e literatura. Ela tem deseje isso, mesmo que não admita ra. Tratei deles em uma oficina que seu temperamento e de seu gosto. de uma experiência e de um destino. um pé na realidade, outro na ficção. isso, um escritor é sempre um pri- dei, em Fortaleza, no ano de 2012. Vê algumas coisas. Outras — ainda A fantasia mistura sonhos secretos Nunca sabemos ao certo se um fato sioneiro das circunstâncias. Agora reencontro minhas anota- que cheio de boas intenções — ele com restos da vida diurna. narrado por um cronista é real (se Jornalista e escritor são dois ções pessoais. A elas retorno. Em não consegue ver. O duplo sentido da palavra ele “aconteceu mesmo”), ou se é seres que se perfilam em lados opos- resumo: de um lado estaria a rea- O jornalista, como o detetive, “sujeito” ilustra isso muito bem. O fantasioso (se é “só uma invenção”). tos de um mesmo espelho. O jorna- lidade (jornalismo), de outro a fan- trabalha com o pensamento lógi- sujeito de uma oração é aquele que Na verdade, ele costuma ser uma lista estaria fora dele, enquanto o tasia (literatura). Nem jornalismo, co, mas a imaginação está sempre a “faz e acontece”, isto é, aquele que mistura das duas coisas. Na crônica, escritor habitaria seu interior. Mas nem literatura cabem, porém, nes- infernizá-lo. Nunca se livra de seus comanda a ação. Mas, ao mesmo nunca podemos dizer com seguran- só é possível pensar em um exterior sa camisa de força. O mundo não sonhos, de seus receios, de suas tempo, ele está submetido (está ça onde está a realidade, onde está se admitimos a existência de um é tão esquemático. Classificações repulsas. Nunca se afasta de suas sujeito) aos limites do mundo, está a invenção. A crônica é jornalismo interior. Em resumo: jornalista e rígidas, em vez de darem conta da ideias, de seus costumes, de seus preso às pressões da realidade, está ou literatura? Nunca sabemos res- escritor estão ligados para sempre. existência, a anulam e matam. preconceitos e suas superstições. “fora do comando”. Mesmo a mais ponder com segurança. E é dessa Ainda que não admitam isso, ainda Reino da objetividade, o jor- A ética do jornalismo o obriga a ser fantasiosa e imaginativa das ficções impossibilidade (deste “nunca”) que que reneguem esse vínculo, eles são nalismo está, contudo, infiltrado e imparcial, mas ele tem sempre uma traz as marcas de um real que a a crônica tira sua riqueza. irmãos de sangue. Pelo menos assim contaminado pela subjetividade. visão limitada (parcial) das coisas. A pressiona e molda. No mais fanta- Ninguém será um bom jorna- é no meu caso, pelo menos assim Mesmo o repórter mais ortodoxo, ética o obriga a ser objetivo, mas sua sioso dos relatos há sempre um res- lista se não souber imaginar, deva- vejo as coisas. que só se interessa pelos fatos e subjetividade está sempre a desviá-lo to decisivo de experiência e de vida. near, intuir, sentir. Ninguém será nada além deles, está, todo o tem- desse princípio e a interferir em seu Jornalismo e literatura habitam um bom escritor se não aceitar — e po, submetido aos limites de sua olhar. Em um movimento contrário, uma região limítrofe. Estão mais tirar partido — das pressões a que NOTA vida subjetiva e das limitações que o escritor, por mais que se embrenhe próximos, são mais parecidos, do a realidade está sempre a submeter O texto Jornalismo e literatura foi caracterizam o humano. A cada em seu mundo subjetivo — feito de que, em geral, ousam admitir. seu texto. O compromisso do jorna- publicado originalmente no blog A passo, ele faz escolhas, prefere uma emoções, sonhos, fantasias, impulsos Essa estreita proximidade apa- lismo é com a verdade: mas a ver- literatura na poltrona, do caderno coisa (um fato) a outra coisa; esco- — é sempre pressionado e, de certo rece, de modo muito claro, em um dade é instável, é relativa, é com- Prosa, do jornal .

Campo violento

divulgação : : Rodrigo Casarin — e Thomazi constrói uma intri- São Paulo – SP cada teia, às vezes confusa, como é mesmo a vida. Cabe ao leitor situar- este ano, em virtude da -se dentro da obra e procurar, por Copa do Mundo, uma meio dos relatos, dar corpo à sua turba de livros sobre fu- própria versão da macro-história Ntebol dominou as prate- proposta — impossível ler de fato leiras. Tive contato, li parte deles e Gado novo sendo um leitor pas- raros foram os que julguei realmen- sivo. Conforme o foco muda, o tex- te oportunos — o melhor de todos, to, o ritmo, o vocabulário, também Gado novo O drible, de Sérgio Rodrigues, é do Guille Thomazi mudam, e de maneira precisa, mos- ano passado. Das novidades, uma 7Letras trando que o jovem escritor — que boa obra é Entre quatro linhas, 68 págs. nasceu em 1986 — já em seu livro coletânea de contos organizada por de estreia apresenta bom domínio Luiz Ruffato, que traz nomes como das técnicas narrativas. Ronaldo Correia de Brito, Tatia- na Salem Levy, Carola Saavedra, Animais, humanos, André Sant’Anna, Rogério Pereira isso pouco importa. A qualidade humanos animais (editor deste Rascunho) e Cris- do trabalho não está condiciona- Outra característica da no- tovão Tezza, que alternam textos da a seu tamanho. Essa lógica, na vela de Thomazi que me chamou razoáveis com outros bons. Entre- ordem reversa, poderia colocar em a atenção é a batalha entre dife- tanto, no volume, um trabalho re- xeque, por exemplo, o bom Gado rentes animais pela sobrevivência. almente se destaca: Raimundo, o novo, de Guille Thomazi, uma no- Quando o homem se depara com dono da bola, de Eliane Brum. vela de 50 páginas — o livro tem 68, o bicho, a forma como se matam Em seu conto, Eliane usa o mas descontei as que não trazem bois, por exemplo, pode impres- futebol para ir além, mostrando a exatamente o trabalho literário do sionar algum urbanoide como eu, famigerada bravura e a coragem do autor. Será que alguém se queixou acostumado apenas com a carne sertanejo, mas também toda a sua com Thomazi que seu livro é muito já fria, pronta para ir à churras- fragilidade e inocência. Raimundo pequeno? Espero que não. queira. “Paraguay não tem dó nem é um homem bruto e matuto, que mão mole. Empurra a faca no peito nasceu e cresceu no meio da flo- Violência do campo do bicho, no espaço entre os ossos resta e conhece o futebol somente Gado novo traz outra histó- para que dê no coração” — escre- pelo que ouve no rádio — nunca as- ria de extrema violência que se passa ve e me lembra que cresci ouvindo sistiu a partida alguma, portanto, o no campo. Eu nasci em Campinas e O AUTOR o quanto é cruel quando se erra Guille Thomazi esporte acontece somente em seu cresci em São Paulo — digo que mi- essa facada no porco, que solta um imaginário, na ficção que cria com nha mãe foi me parir lá apenas para violência, trabalhar perto de casa, Nasceu em 1986 em Lages (SC). berro que causa condolência até as informações que os locutores que os outros pudessem fazer piadas num lugar onde as pessoas se res- Formado em Cinema, divide-se mesmo nos mais acostumados em tentam transmitir, emular aquilo relacionadas à cidade —, costumava peitam e blábláblá”). entre negócios familiares no sacrificar os futuros alimentos. Em que o interiorano jamais viu. passar alguns dias de férias em Lins, Entretanto, ao conversar com ramo madeireiro pecuarista e seguida, “cortar a carne viva é uma As coisas mudam quando no interior paulista, mas jamais esti- pessoas desses lugares e ao ler ou as- a literatura. Gado novo das funções com a qual ocasional- Valdir aparece em sua vida e, ao ve efetivamente no campo, em uma sistir aos relatos de como é realmente é seu livro de estreia. mente nos deparamos, e o fazemos mesmo tempo em que abre um daqueles longos vazios de fazendas a vida nessas enormes e pouco habi- com naturalidade”, registra uma ponto de contato entre Raimundo gigantescas, cujos vizinhos, às vezes, tadas fazendas, percebo que muitas TRECHO das mulheres da obra. e a vida urbana ou moderna, tam- estão separados por quilômetros de vezes esse ideal só existe mesmo na Gado novo Entretanto, é a violência en- bém traz consigo os males da civi- distância e cada endereço, de algu- imaginação. Se no conto de Eliane é tre dois bichos da mesma espécie lização. Utilizando o futebol — que ma forma, acaba sendo uma cidade o homem da cidade que leva a des- que merece maior destaque: a do passa efetivamente para o plano em si mesmo. Durante muito tem- graça para o isolado homem do cam- homem contra o homem, essa tão real, com traves e bola —, Valdir po, a imagem que tive desses lugares po, na novela de Thomazi o homem Almoço com a menina e bem conhecida por qualquer um, ganha a amizade do outrora des- é aquela do senso comum para um do campo, já influenciado pela vida seja a pessoa da cidade, do campo, confiado e fechado Raimundo e homem médio da cidade grande (ou da cidade, é o próprio responsável com o negro velho, que da praia, da floresta... “O homem consegue arquitetar a sua ruína. seja, formado seguindo uma longa pelas suas mazelas. depois de comer me ajudou meio fora de si podia decidir pas- O conto é de uma violência — não lista de clichês): são terras onde se A história começa com o nar- a lavar os pratos e saiu com sar fogo em mim era ali mesmo”, apenas física, mas moral, emocio- vive em contato direto com a natu- rador, sempre em primeira pessoa, pensa um dos personagens. E po- suas muletas para sentar nal e contra a natureza, inclusive reza, o que traz paz e tranquilida- procurando por um norte. “O dia “ deria mesmo, sempre pode. Pas- — extrema, é daqueles que marcam de. Lá, as pessoas plantam e criam nasceu torto. A menina nasceu sem perto do açude, esperar sar fogo, espancar, vilipendiar... e perturbam o leitor. O jogo acaba o que comem, precisam apoiar-se futuro. Descobri como se faz mal pela criação, imagino. Nin- Sempre é preciso que um animal sem gol, sem apito final, mas com e proteger-se mutuamente, o que ao mundo.” As frases são bastan- humano sobreviva a outro animal guém mais veio para comer. uma selvagem e destrutiva invasão gera uma boa relação social, que, te breves, como se o personagem, humano. A menina não conseguiu de campo, digamos. graças às distâncias, acaba não sen- cansado e confuso, buscasse fôle- Estão todos lá fora, longe resistir e sua morte foi terrível: Numa conversa, Eliane me do banalizada pela convivência di- go para continuar. A tragédia está no campo. Fazendo não marcas de arma branca, semides- disse que algumas pessoas se quei- ária. São pessoas corteses, sempre feita e ele gostaria de remediá-la, pida, roupa íntima arrancada, saia sei quê. Imagino, é claro. O xaram que o texto era muito grande preparadas para abrir as portas entretanto, há atitudes que são im- rasgada, mordidas no pescoço e para um conto. Quanta mediocri- de casa e receber visitantes, mes- possíveis de se contornar. pasto seco queimará infini- nos seios miúdos, falta de parte do dade! Primeiro porque Raimundo, mo que sejam desconhecidos. (O Com o passar dos capítulos, o tamente. O fogo não fenece lábio inferior, perfurações no ab- , com suas 31 pági- clichê também tem uma variação foco da narrativa vai mudando e o dômen, olhos abertos... o dono da bola por si. O gado precisa ser nas, se não é exatamente pequeno, para as cidades interioranas, segue ponto de vista alternando de perso- Quando o homem perde para também não é nenhum Guerra e a linha do “quero mudar pra lá por- nagem — passa pela avó da menina, orientado. Imagino que o homem. Raimundo perdeu o seu paz do gênero. Segundo, porque que a vida é mais tranquila, menos o padrasto, o peão, um forasteiro não vai demorar. lugar e Isabel jamais chegará. 172 • agosto_ 2014 15 Um romance, se

O AUTOR assim o leitor quiser Luiz Ruffato Nasceu em Cataguases (MG), em 1961. Formado em comunicação pela Universidade Federal de Juiz de Fora, publicou vários livros, Personagens desiludidos com a vida e expatriados unificam FLORES ARTIFICIAIS, de Luiz Ruffato entre os quais a pentalogia Inferno provisório e Eles eram muitos cavalos, que recebeu o prêmio APCA e o Machado de Assis, da : : Carlos Augusto Silva A apresentação inicial, coisa desse mais voz ao narrador, pode- Biblioteca Nacional. São Paulo – SP pouco usual para um livro de ficção, ria conferir ao texto menos reme- que pode sempre soar como um morações com aspecto de monólo- lores artificiais, de “senão” preventivo do autor com go que leva o texto a uma quebra de TRECHO Flores artificiais Luiz Ruffato, só é um forte tendência a levá-lo a uma re- verossimilhança — quem, em um romance, na concepção dundância não planejada, não tem bar, ficaria horas calado diante de tradicional da palavra, se efeito negativo no livro. Pelo contrá- um estranho ouvindo uma história, Fassim quiser o leitor que por ele se rio, justifica-se e recebe uma nota de forma ininterrupta, que não lhe aventurar. a mais de harmonia quando, nas é familiar, por mais que seja esse Li, certa vez, um ensaio do Trata-se de um conjunto de páginas finais, o autor volta a apa- ouvinte interessado em histórias, escritor italiano Luigi Pirandello histórias independentes que, em Flores artificiais recer, literalizando, em um capítulo digamos, exemplares? um olhar de superfície, tem como Luiz Ruffato que é bem nominado de Memorial Outro aspecto de unidade do em que ele afirma que a vida único elemento de ligação o fato Companhia das Letras descritivo, a vida de Dório Finetto. livro é que os personagens, de al- pode ser inverossímil, a arte de serem todas conduzidas por um 152 págs. As narrativas, por mais que guma forma, são expatriados, tal “não. Pois esta história, por ser mesmo narrador. Lembra um pou- sejam aparentemente parte de um como o narrador, e voltam ao pas- co a estrutura de Os inocentes, todo apenas pelo fato de serem con- sado para terem seus momentos real, soará talvez fantasiosa. de Hermann Broch, na qual his- tadas pela mesma voz, têm mais fa- catárticos. O interesse pelo outro é Para comprová-la sequer tórias independentes foram rees- tado de memórias que lhe foram tores de unidade, que acabam dan- o motor das narrativas, que torna o conseguiria avocar o testemunho truturadas de modo a se tornarem enviadas por um engenheiro, Dório do ao livro organicidade, harmonia íntimo matéria de interesse. Isso os parte de um todo. Distancia-se da Finetto, funcionário do Banco Mun- quanto à forma e ao conteúdo, mos- coloca também em um clima de en- do protagonista, que jaz numa perspectiva de Vidas secas, de dial, sujeito de vida errante, que não trando grande habilidade no manejo contro com a solidão, porque, sendo cova rasa no alto do Cemitério Graciliano Ramos, de “romance fixou raízes em nenhuma cidade ou com a linguagem por parte do autor. os personagens dotados de histórias Municipal de Juiz de Fora, interior desmontável”, dada a possibilidade país. Suas memórias, sem qualquer Todos os personagens apre- que se revelam somente quando en- de se poder ler, no caso do livro de cuidado de estilo, foram enviadas sentam desilusão quanto à vida, e contram alguém que se interesse de Minas Gerais. Nem mesmo Graciliano, cada um dos capítulos para Ruffato para que este delas estão, de certo modo, resignados por elas, e sendo esse ouvinte al- saberia localizar os personagens como narrativas independentes. se desfizesse ou as transformasse quanto ao rumo que o destino lhes guém sem raízes e declaradamente secundários, há muito Na obra de Ruffato, desde o em literatura. Dório, que enviou as deu. A presença do narrador diante sozinho, que, caso morresse, como encobertos pelo pó do tempo. seu início, com uma apresentação memórias para Ruffato, reconhece dessas personagens é tímida, res- ele mesmo diz, não seria chorado na qual o autor se pronuncia, que- que, para ser literatura, é necessá- saltando seu aparente aspecto de por ninguém, revela-nos uma dupla brando o que Henry James chama- rio mais que enredo: o autor não lhe escada para que a história das figu- enseada de solidão: quem ouve o faz ria de pacto ficcional — segundo o priva dessa lição. Sentencia: “as- ras com as quais se encontrou pos- porque é só, como quem conta o faz o leitor é muito bem conduzido por qual o leitor deveria tomar por ver- sunto demandando estilo”. sa aparecer, o que em alguns casos pelo mesmo motivo. um estilo que sabe de onde parte e dade absoluta o que lhe é contado e E disso nasce o “romance”, leva a um discurso demasiado lon- O texto de Ruffato é firme, para onde quer ir, e especialmente o autor deveria praticamente desa- que grosso modo poderia ser assim go por parte das narrações feitas com estilo escorreito e econômico, de que forma chegar lá. É um tra- parecer do imaginário daquele que resumido: oito narrativas escritas pelos personagens a esse interlo- sem resvalar para a aridez vocabu- balho de linguagem amadurecido lê —, vemos que o livro não seguirá por esse viajante, sempre a trabalho, cutor que, diante das cenas que lhe lar. Ruffato não desliza ao apre- e consciente dos instrumentos de o molde clássico de romance. nas quais apresenta pessoas que lhe são contadas, simplesmente desa- sentar personagens e ambientes de que faz uso para atingir o seu efei- Flores artificiais é o resul- rendem histórias para contar. parece. Um discurso indireto, que forma categórica e precisa, e assim to, e por isso merece ser lido.

Lirismo e narrativa

: : Clayton de Souza que “desistiu das estrelas”; no misó- -sucedido em seu conjunto. Mesmo que se argumente que o li- São Paulo – SP gino insano a atentar contra a vida Primeiramente, uma distin- vro é dividido em seções e que, por de sua analista; na garota que “acei- ção prática pode nortear o cami- isso, o tom forçosamente deva ser ão é pequeno o fascínio tava sua loucura” com uma ponta nho: lirismo e dramaticidade (no diverso, constata-se numa mesma que um gênero literário de lucidez... Em todos esses contos sentido de ênfase na ação narrati- seção essa variação. Mas claro que como o conto exerce observamos um senso apurado de va). No livro Gênio, os 100 au- isso é algo que tende a ser relativo, Naos olhos de um leitor análise do interior do ser humano, tores mais criativos da histó- uma vez que não há como men- cuja boa vontade em perscrutar e tema que prossegue com modula- ria da literatura, Harold Bloom surar a impressão que cada conto refletir sobre a expressão artística ções de teor social (seção Antípo- afirma com destreza que no conto venha a deixar no espírito de cada não esmoreça ante a sua problemá- das), das relações humanas com o “intensidade lírica pode substituir leitor. Isso ocorre amiúde em li- tica. O conto se presta a interminá- Margem de erro próprio corpo (Trans-ser), com o dramaticidade”. Isso quer dizer que vros de poesia, o que é revelador vel especulação, muito em função Rosane Nicolau corpo do outro (Leis do corpo), com um conto pode suster-se para além para o caso em questão. Ainda as- da extensão com que ele é concebi- Ibis Libris as reminiscências que se sintetizam de um fluxo narrativo de aconteci- sim, é inegável que a autora, pos- do, sem que com isso as marcas do 126 págs. materialmente em objetos, ou sen- mentos cuja concatenação leve ao suindo instrumentos que manu- gênero desvaneçam. sações (De memória), etc. desfecho satisfatório. Se isso ocorre seia bem, os negligencie em certas Sim, porque, a título de Há pinceladas com tonalida- no conto, parece ser via de regra no partes da obra. exemplo, o tchekhoviano Os muji- des machadianas, tchekhovianas miniconto, ao menos se o livro em Por fim, o livro nada contra a ques bem como o mítico A terceira e drummondianas na obra. O in- questão for Margem de erro. corrente. Se parece certo que o con- margem do rio rosiano atendem — Na obra temos uma gama va- divíduo que chega à missa de sé- Nele, até mesmo por conta da to não é o gênero mais apreciado cada qual a sua maneira — aos re- riada de temas sintetizada em rápi- timo dia preocupado em entreter- limitação, muitos textos sustêm-se pelo leitor moderno, o miniconto quisitos inerentes ao gênero. Mas dos recortes de uma prosa objetiva -se com os presentes, ignorando o pela epifania ou o insight, o que, a então haverá de forçosamente sus- quanta diferença subjaz a essa su- e diversificada, prestando-se tanto à morto (Missa de sétimo dia), ou a meu ver, exige do artista uma disposi- citar mais hesitações. Talvez o lei- perfície inicial! A extensão do con- variação sociocultural de seus per- namorada que cede aos insisten- ção mais rigorosa na escrita, a fim de tor esteja saturado de uma rotina to certamente é o dado mais ime- sonagens quanto à própria temáti- tes apelos sexuais do namorado que não haja desníveis no conjunto. composta de episódios descosidos, diato, mas ela é uma variante que ca dos contos. Como exemplo, num quando este lhe promete um anel É imprescindível cortar o supérfluo, de momentos fragmentados em incide em muitos outros fatores de conto como Solução final — um de brilhantes (Sutilezas do verbo para que o leitor vá, de lume a lume, suas relações sintéticas e utilitárias importância: a ênfase na introspec- conto rap insinua-se uma cadência dar), em tais contos, para ficar em numa espiral sempre crescente. com tantas pessoas com quem não ção do(s) personagem(s); o enfo- entre as orações, para o que também apenas dois exemplos, observa- Por vezes Rosane consegue compartilha, por vezes, qualquer que no social, ou no microcosmo colaboram as rimas dentro da prosa. -se um olhar mordaz, mas de tom fazê-lo, auxiliada por um tino mui- empatia. Ao invés disso, ele parece onde tais personagens transitam; a Como já dito, o livro é dividi- sereno, quase conformado com as to bom no uso das metáforas, como buscar algum sentido nesses esti- questão temporal, etc. do em oito seções de contos sintéti- mazelas do ser humano, além de em Mesmo assim: “A caçula supli- lhaços de vida, procurando um fio O que dizer então a respeito cos que mal excedem a extensão de uma ironia equilibrada que en- cou. A visão do inferno ou de prisão que delineie tantos dias irrelevan- do miniconto, subgênero que desa- uma página, perfazendo um total dossa a amoralidade da escritora, era efêmera. Queria permanecer tes, para um final catártico, recon- fia por um lado a dramaticidade e a de 50 minicontos. desprovida de qualquer intenção ali. Mesmo assim. Entre grades”. fortante. O sentido da vida, enfim. profunda introspecção dos persona- As seções consubstanciam a de prescrever antídotos para os Mas, em seguida e num outro No entanto, contraditoria- gens; e por outro desafia o próprio mundividência da autora, ao mes- males do homem. conto (Vida de um parágrafo só), mente, parece adequado que Mar- leitor em geral, inimigo empederni- mo tempo em que diversificam o o ritmo não se mantém: “Aos dez gem de erro seja lido por esse do da elipse narrativa, herança esté- volume. Não há um eixo: o indivi- Lirismo ou anos, era a única do grupo que co- leitor, justamente porque suas exí- tica de Tchekhov e Hemingway, os dualismo que se impõe a um con- dramaticidade? nhecia sintomas de doenças. Aos guas dimensões parecem conden- mestres do conto moderno? Estaria, texto ou lugar (a seção Fora de Mas voltando às questões le- dezoito, reconhecia no próprio cor- sar o suprassumo da experiência aliás, o miniconto inserido adequa- lugar) não apresenta uma relação vantadas no início dessa resenha: po alguns deles. Teve câncer aos que, muitas vezes, o leitor (ou mais damente numa categoria condizen- hierárquica maior que a insanida- Como apreender a natureza do mi- quarenta e sete. Foi enterrada em amplamente, o ser humano) al- te com suas particularidades? de sublime (ou digna de contem- niconto? Não é questão de peque- dois meses. Feliz”. cança, à custa de muito palmilhar São questões que vêm à mente plação) da seção Desrazão — essa no valor, pois através dela é que o No conto acima, reproduzido uma trilha entediante, cansativa. mal o leitor conclui a primeira das uma das mais belas do livro. analista pode entender se um livro integralmente, o insight é menos O livro, por implicação, também oito seções temáticas que dividem Na louca a balbuciar versos à composto por 50 textos dessa cate- luminoso que em outros tantos pode conduzir o leitor a uma trilha Margem de Erro, novo livro de noite, prestes a se lançar do vigési- goria — o que propicia grande mar- bons exemplares, fazendo com que mais retirada e espessa (nos dias contos da carioca Rosane Nicolau. mo sétimo andar — Ismália urbana gem para erros e faltas — foi bem- o livro seja irregular nesse sentido. atuais): a da poesia. 172 • agosto_ 2014 16 RUÍDO BRANCO : : Luiz Bras

ch internético que não cria conteúdo novo, mas forja espaços para neoconstruções nar- Pesquisa sobre a evolução rativas e poéticas, e para a retroalimentação UEM SOMOS CONTATO ASSINATURA DO JORNAL IMPRESSO deCARTAS gêneros entre pontes artísticas inauditas. Nascido num porto mítico próximo à me- literária no Brasil (finalEDIÇÕES ANTERIORES )COLUNISTAS DOM CASMURRO ENSAIOS E RESENHAS ENTREVISTAS PAIOL LITERÁRIOgalópole,PRATELEIRA aindaNOTÍCIAS OTRO adolescente OJO eu vibrava com escritores saídos pela Massao Ohno e pela Brasiliense: ainda assim, até os vinte e cinco izemos a destacados escritores, edi- tal, minha opinião lhe interessa), o que posso com outras artes, como as visuais, principal- anos, não me encorajei a bater em porta de tores, críticos, professores e jornalis- dizer é que, apesar da facilidade de publicação mente a fotografia, o vídeo e as imagens di- editora. Frequentava os bares, sebos e teatros tas culturais brasileiros a pergunta: propiciada pelas novas tecnologias, as edi- gitais. A literatura não está melhor ou pior. undergrounds do cais de Santos, da Teodoro F toras com maior visibilidade estão cada vez Está mudando e não estamos percebendo Sampaio, em Sampa, e da Barata Ribeiro, no • Tendo em vista a quantidade mais refratárias à publicação de poetas que isso, nem sabendo como lidar. Os parâmetros Rio. Que chances tinha um escritor ainda ca- de livros publicados e a qualidade da já não estejam devidamente reconhecidos (o que conhecemos de quantidade x qualidade baço de convívio literário, fora dos muros da prosa e da poesia brasileiras contem- que torna ainda mais árduo o caminho para os estão ultrapassados, porque, com as publica- USP, de esquerda, enquanto ruía o muro de porâneas, em sua opinião, a literatu- jovens versejadores). E, ainda assim, publica- ções online, é impossível medir quantidade e, Berlim, gay temeroso quando a aids surgia, ra brasileira está num momento bom, -se sempre mais prosa. Esta, por sua vez, tem com a presente relativização de tudo aquilo de encontrar uma porta naquele fim de dita- mediano ou ruim? que disputar espaço, em condições bastante que se conhece e se imagina, definir qualida- dura brasileira? Ver Plínio Marcos, meu con- desvantajosas, com a chamada literatura co- de, instância cada vez mais intrinsecamente terrâneo, pelo Copan, e João Antônio, pelo Joaci Pereira Furtado mercial, que justifica o negócio das editoras, subjetiva, me parece ser uma utopia. Copacabana, era o máximo de concretude, O título da pesquisa para a qual você inclusive a não ficção (como as biografias, que Sendo assim, dentro dos dois mil ca- sinal de que existiam escritores pelas ruas, pede meu depoimento já me parece discutí- para mim não passam de uma sobrevivência racteres com espaços que esta pesquisa me feito eu! Anotava sofregamente em cadernos vel, já que evolução é palavra carregada de bastante tardia do romance realista do século permite, e sem fugir ao desafio proposto, infindáveis, com um olho em Rilke e outro em juízo de valor, no sentido de progresso — en- 19 travestida de reportagem ou história). respondo que a literatura brasileira não está Wilson Martins, lendo tudo de Haroldo de tendido, em geral, do pior para o melhor (ou, Joaci Pereira Furtado é professor do Instituto de num momento nem bom, mediano ou ruim. Campos, sem descuidar dos livros de Affonso de qualquer modo, de movimento de um lu- Arte e Comunicação Social da Universidade Federal Ela está deixando de existir tal qual a co- Romano de Sant’Anna: além das ortodoxias gar para outro, que pressupõe o olhar teleoló- Fluminense. nhecemos e está caminhando, com as novas dicotômicas, um escritor precisava ter um ga- gico ou onisciente de quem enuncia essa evo- gerações, numa nova direção que ainda não lho na PUC ou na Folha. Eu me imaginava, lução: se a literatura evolui no Brasil, ela está Oscar D’Ambrosio estamos sabendo detectar. Hoje, escritores e já quase aos trinta anos, um poeta na gaveta. indo ou espera-se que vá para determinado Escrever sobre a literatura brasileira poetas cada vez mais escrevem para si mes- Eis que surge a facilidade do e-mail para este ponto que, acho, deveria ser explicitado). hoje é um desafio. O binômio quantidade x mos, gerando uma espécie de ilha que se fas- panicoso bipolar. Sou editado pela já anto- Feita essa observação, digo que julgar qualidade nunca esteve tão presente, e isso ta perigosamente cada vez mais da sociedade lógica 7Letras, surgem chats literários com o atual momento do conjunto da prosa e da gera algumas abordagens possíveis. A primei- como um todo. Isso é ruim. João Silvério Trevisan, blogs dos autores da poesia brasileiras contemporâneas com um ra: quantidade e qualidade são excepcionais. A Oscar D’Ambrosio é jornalista e crítico de arte. Geração 90 e da Zero Zero, megaportais feito simples bom, mediano ou ruim seria repro- segunda: temos quantidade e falta qualidade. o Cronópios e convites para intermináveis sa- duzir a classificação superficial que o jornalis- A terceira: a quantidade ainda é inexpressiva, Flávio Viegas Amoreira raus em transe. A Literatura não nos faz reféns mo de cultura pratica para orientar o gosto de mas temos qualidade. A quarta: tanto a quan- A literatura brasileira vive hoje um dos ditames monolíticos do mercado, encon- seu leitor médio, certamente carente de quem tidade quanto a qualidade deixam a desejar. momento gozosamente rico: inapreensível, tramos brechas deleuzianas, produzimos em julgue por ele o que vale a pena ser lido ou, Dentro dessas possibilidades, cabe uma literatura do estilhaço, quando, por razões ci- larga escala no universo digital paralelamente mais precisamente, comprado — já que, ago- breve reflexão. Creio que, pelas dimensões bernéticas e mutações urbanas, não existem à produção de livros artesanais pela Dulcinéia ra mais do que nunca, cultura é produto, su- continentais do país, ainda se produz pouco mais centros canônicos e nos libertamos de Catadora: a TranZmodernidade me salvou do jeito a julgamentos de quem vai às compras, e, portanto, desse pouco, é natural que sur- todas as peias: acadêmicas, de patotas de re- alcoolismo inédito... Só o que falta é política como o que me pede. ja um grupo que apresente um trabalho mais dação e tchurmas ungindo a produção dum pública para a leitura: o Brasil ainda não está Mesmo admitindo a possibilidade de re- qualificado. A grande questão ainda mepa- escritor. Que o arrivismo e o nepotismo per- à altura da profundez de sua escritura. Criar sumir a avaliação dessa produção artística a rece ser o fracasso nacional na formação de sistem, isso é da razão do mercado editorial, demanda interna, ultrapassar a antropofagia uma dessas palavras, seria necessário conhe- leitores. Além disso, numa civilização cada da companhia das índias autorais, não da levando ao mundo nossa imagética: vamos cer profundamente o que se tem escrito nos vez mais visual, a palavra perde espaço. E não insurgência que se desdobra como Literatu- criar o boom tupiniquim! A rua Augusta tem dois gêneros ao menos nos últimos dez anos vejo isso como ruim, mas como um novo ca- ra de Resistência, através da contaminação mais valores literários do que os convescotes — o que não é meu caso. minho que se abre para a literatura. virtuosa de pequenas editoras e da descen- livreiros de Paraty a Bloomsbury inteiros. Como ex-editor da Globo Livros e dos Os novos meios trazem novos desafios, tralização dos eixos de divulgação. Levando Flávio Viegas Amoreira é autor de Desaforismos selos Tordesilhas e Tordesilhinhas (se, como e um deles está nas interfaces da literatura em consideração esse renascimento highte- (Edições Caiçaras, 2014).

PRATELEIRA : : NACIONAL

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EDIÇÕES ANTERIORES COLUNISTAS DOM CASMURRO ENSAIOS E RESENHAS ENTREVISTAS PAIOL LITERÁRIO PRATELEIRA NOTÍCIAS OTRO OJO

Retrato do ser Qualquer maneira O uso do punhal Coisas do diabo contra Uns contos R. Saturnino Braga de amar Álvaro Alves de Faria Eromar Bomfim Ettore Bottini Record Marcus Veras Escrituras Ateliê Cosac Naify 272 págs. Ponteio 96 págs. 239 págs. 128 págs. 254 págs. Internado em um hospital após sofrer O poeta paulista Álvaro Alves de Matias de Aragão é um O autor logo avisa: nos dezoito um ataque, o protagonista-autor Como seu pai era militante do Faria navega entre o horror de comerciante milionário. Apesar contos que compõem o livro, escreve um livro refletindo sobre a PTB, Mauro cresceu em meio aos continuar vivo, arrastando pelas de poder tudo quanto ao mundo não há um grão de fantasia. vida que levou. Em suas memórias acontecimentos políticos da década ruas uma existência sem sentido, material, não consegue lidar com A inspiração? O desejo de — reais ou inventadas — surgem de 60. No início dos 70, teve sua e a afirmação da vida plena. a condição da finitude humana. permanecer na lembrança do neto amores, arrependimentos e acertos iniciação forçada no amor, nas Se por um lado, “devia ter-me Levando às últimas consequências quando o avô não estiver mais que, nas entrelinhas da sua história, drogas e, sem que percebesse, na matado aos 37 anos”, por outro a exploração e posse do homem presente. São histórias que falam pintam o quadro abstrato do Ser. política. Ao invés dos guerrilheiros pedala de encontro ao infinito, sobre outro homem, resolve do universo do turfe, reencenam Nessa viagem temporal, relembra heróicos das organizações armadas, em sua bicicleta voadora, herói cometer um assassinato. Crente fatos e personagens de uma o menino que colecionava selos e porém, seu envolvimento foi com de si mesmo. Nessa desarmonia de que tirar a vida do próximo é o infância no interior do Mato Grosso, o homem que fala com respeito e os jovens que não foram para a harmoniosa, um espaço às motivo de toda existência, levou relembram o impacto da morte do amor de seus antepassados e da luta armada, mas mesmo assim mulheres, entre o céu das putas e seu filho, Leopoldo, para presenciar pai, narram histórias de vaqueiros. sua família. “Eu inventei muita coisa, sofreram as represálias de viver o inferno das santas, reconhecendo o ato. A história é narrada pelo ex- Em suma, o retrato de um homem quase tudo, neste meu retrato.” naquela época conturbada. sua natureza ambígua. mordomo de Matias. pela lente de sua memória.

As miniaturas Metal Ofício da palavra As mil mortes de César Território da emoção Andréa del Fuego Ricardo Silvestrin Org.: José Eduardo Gonçalves Max Mallmann Moacyr Scliar Companhia das Letras Artes e ofício Autêntica Rocco Companhia das Letras 128 págs. 136 págs. 192 págs. 335 págs. 275 págs.

As pessoas se acumulam em um Livro de poemas composto de Os escritores movem a imaginação Publius Desiderius Dolens chegou Coletânea de crônicas publicadas vasto saguão, na fila de um elevador duas partes: A encosta recortada do leitor, criando universos à parte, clandestinamente à cidade portuária de entre 1995 e 2011, tendo a medicina do edifício Midoro Filho — um prédio do poema e Acervo pessoal. Um instigando a pensar e causando Óstia. Está imundo. Seus olhos envolvem como eixo central. São reflexões, que pode ou não existir. Conforme de seus temas recorrentes é a emoções. Mas o que os movem um misto de ódio, medo e loucura. memórias, informações e conselhos se espalham pelos corredores, solidão, vista como um caminho a escrever? A fim de responder Derrotado na guerra civil que arrebatou médicos agrupados em seis blocos: funcionários e visitantes ocupam as que se abre para a solidariedade e algumas perguntas que permeiam Roma das mãos de Salvius Otho e a Literatura e medicina, Histórias de salas secamente decoradas do oneiros. o convívio, fugindo da concepção a criação literária, nasce o projeto entregou a Aulus Vitellius, o anti-herói médicos, Memórias de um médico, Cada oneiro atende sempre a mesma lugar-comum de ser um refúgio Ofício da palavra. Entre contistas, em questão não é mais um legionário, Nosso corpo, Os males que nos pessoa, que não se conhecem e não solitário. Os versos não tratam romancistas, poetas e ensaístas centurião e tampouco tribuno, mas sim afligem e Comportamentos. Médico têm parentesco. Como o sistema não somente de desilusão e derrota, este livro reproduz onze autores que um desertor jurado de morte pelo novo e escritor, Scliar comenta os poderes é infalível, porém, certo dia um oneiro mas uma viagem pela soberania e palestraram durante o projeto. Entre imperador. Resta-lhe uma vida incógnita curativos das plantas, aborda a ética percebe que o rapaz diante de si é filho fluidez da totalidade da vida, alheia eles, Luiz Ruffato, Cristovão Tezza, e miserável como guarda-costas do médica, passeia pela melancolia e de uma de suas clientes. ao pequeno cotidiano de cada um. Daniel Galera, Milton Hatoum. templo da deusa Cibele. filosofia, sempre com humor. 172 • agosto_ 2014 17 rabisco literatura infantil e juvenil

PRATELEIRinha

Infância UEM SOMOS CONTATOamoralASSINATURA DO JORNAL IMPRESSO CARTAS

EDIÇÕES ANTERIORES COLUNISTAS DOM CASMURRO ENSAIOS E RESENHAS ENTREVISTAS PAIOL LITERÁRIO PRATELEIRA NOTÍCIAS OTRO OJO PRIMAVERA, de Oskar Luts, trata de crianças, mas não há final feliz nem moralismo

Neguinho brasileiro UEM SOMOS CONTATO ASSINATURA DO JORNAL IMPRESSO CARTAS : : Carolina Vigna Luis Pimentel São Paulo – SP Ilustrações: Victor Tavares Pallas Mini EDIÇÕES ANTERIORES COLUNISTAS DOM CASMURRO ENSAIOS E RESENHAS ENTREVISTAS PAIOL LITERÁRIO PRATELEIRA NOTÍCIAS OTRO OJO 32 págs. skar Luts (1887-1953) foi farmacêutico e um Neguinho mora no bairro Abolição, consagrado escritor es- Zona Norte do Rio de Janeiro (RJ). toniano. Primavera é Depois do futebol, bater perna é seu O esporte favorito. Conhece o Rio da o primeiro e mais famoso título do autor e foi publicado em 1912, en- Barra a Bangu, de São Cristóvão a quanto a Estônia ainda estava sob Santa Cruz, os morros, as encostas, domínio soviético. Por este motivo, as planícies e as colinas. Quando sua cidade natal já não é o bastante, o romance infantojuvenil traz di- comunica ao pai o desejo de conhecer versas referências ao idioma russo todo o Brasil e é atendido. Munido de e ao alfabeto cirílico como partes uma máquina fotográfica e um diário, do currículo obrigatório escolar. A parte para diversas viagens a fim de se independência da Estônia do Im- tornar o Neguinho brasileiro. pério Russo aconteceu pouco de- pois, com a Revolução de 1917. Primavera trata da rotina de um grupo de crianças que atendem a uma pequena escola dirigida por um sacristão e um único professor, como era típico em cidades peque- nas em qualquer lugar. Há uma si- milaridade com todos os livros do gênero “aventuras saudosistas de infância” (que eu acabei de cunhar), O dia em que troquei meu pai por dois incluindo os de Mark Twain, Jorge peixinhos dourados Amado, etc. Apesar de os meninos Neil Gaiman de Primavera ocasionalmente Trad.: Viviane Diniz dormirem na escola e não em um Ilustrações: Dave McKean trapiche e de tampouco serem assal- Rocco tantes ou ladrões, a forma natural 64 págs. de descrever atrocidades infantis e O garoto e sua irmãzinha brincavam o comportamento de grupo encon- no jardim quando chega Nathan tram ecos em Jorge Amado. Penso exibindo sua mais nova aquisição, mais especificamente em Capitães dois incríveis peixinhos dourados. de areia, é claro, mas infelizmente Extasiado, o protagonista sugere faltam à Estônia o savoir faire e o uma troca. Oferece um boneco charme da Bahia. Falta também a transformer, figurinhas de beisebol Luts a destreza de Amado. e todos os outros brinquedos que Por outro lado, pensando em possui, mas não é o bastante. A partir daí, a inusitada permuta que dá Mark Twain, existem duas persona- título ao livro é apenas o começo de gens centrais em que Primavera uma série de trocas que leva a um têm entre si uma tensão muito simi- desfecho surpreendente. lar à de Huckleberry Finn e Tom Sa- que foi a realidade de cidades wyer. Um esperto, malandro, men- pequenas da Europa Seten- tiroso e desordeiro, o Toots, e um trional no início do século outro, “bom menino”, o Arno. O rio passado. Apesar de ser um tí- Mississippi não fica na Estônia, mas tulo interessante para aqueles ainda assim, há a presença constan- que queiram se aprofundar te de um grande lago próximo e do na cultura estoniana, parece- ambiente rural. Curiosamente, há -me difícil que um jovem lei- também um cemitério e caminhos a tor hoje consiga se relacionar Primavera serem percorridos a pé por crianças com alguma das personagens O sonho secreto de Alice Oskar Luts Simone Paulino desacompanhadas. No cemitério ou com a maioria dos dramas Trad.: Paulo Chagas de Souza Ilustrações: Luyse Costa não acontece nenhum crime, mas narrados. Biruta DSOP é também uma cena de quebra de Não tenho como saber se 423 págs. 36 págs. inocência, em que o Arno entende os termos extemporâneos sape- que sua amada talvez não seja mais , , etc. são ou não cas traquinas Alice nasceu em 1936. Quando sua. Lible não é negro nem escravo, As aventuras de Tom Sa- um deslize da tradução. Meu criança, tinha tranças longas, era mas representa, assim como Jim, wyer foi publicado em 1876; As estoniano anda enferrujado. De muito boazinha, ajudava os pais a figura do adulto contraventor de aventuras de Huckleberry toda forma, o uso da palavra a cuidar dos irmãos mais novos e bom coração e de uma classe so- Finn em 1884; Primavera, em berro para revólver ou mesmo a trabalhava na roça. Para se divertir, cial mais baixa. Há também uma 1912. Em uma época bem anterior presença de um gramofone, além subia em árvores da fazenda para história significativa de uma balsa, à internet e que portanto as infor- do clima geral do livro, me fazem pegar frutas no pé e ficar admirando que não é utilizada pelos protago- mações levavam consideravelmen- apostar na inocência do tradutor. o milharal. Por ter que ajudar os pais nistas e acaba por tornar-se uma te mais tempo para rodar o planeta, Algumas referências, desde muito cedo, não pôde ir à escola e acabou crescendo sem saber fonte de tensão e um dos pontos parece-me pouco provável que se como a do instrumento kan- escrever o próprio nome, mas nem de discórdia entre as personagens. trate de uma questão de inspiração nel, podem suscitar um google, por isso deixou de sonhar. Agora, já Toots também busca um tesouro, o que não é ruim, longe disso. O AUTOR ou muito menos de plágio, mas as Oskar Luts como vovó, quais serão seus sonhos? não em uma caverna, mas escon- coincidências são gritantes. Acredi- Procurar por estonian kannel dido nas ruínas edificadas de sua to, entretanto, ser um desses casos no youtube, por exemplo, pode Nasceu em 1887, na Estônia. Escreveu por escola. Até mesmo as personagens de época, em que há certo incons- trazer resultados divertidos. 45 anos, 17 dos quais trabalhou também femininas são secundárias ou estão ciente coletivo, um conteúdo recor- As ilustrações de Sandra como farmacêutico em Tartu, Narva, e no papel materno (mãe, avó, tanto rente e comum a várias culturas. Jávera são deliciosas e empres- Tallinn, bem como na Rússia. Em 1922, faz). Assim como Becky Thatcher, As histórias se desenvolvem tam ao livro um pouco de leve- passou a escrever em tempo integral. Primavera é o primeiro e mais famoso Teele é considerada por todos como com contextos tão distantes de nós za. No miolo, ela usa aguadas título do autor e foi publicado em 1912, esperta, inteligente e com opiniões que causam incômodo. Brigas vio- e traço em preto e branco em enquanto a Estônia ainda estava sob próprias. Em Primavera, ao con- lentíssimas tratadas como simples excelentes escolhas temáticas. domínio soviético. Morreu em 1953. trário de em Huckleberry Finn questões infantis, crianças beben- As imagens têm um óbvio cui- ou Tom Sawyer, a menina passa do vodka e usando arma de fogo, dado em não contribuir com a Pequena coisa a maior parte do livro como preten- ou tiradas da escola para cuidar violência que, às vezes, encon- gigantesca TRECHO Beatrice Alemagna dente, não como vetor causador de do gado, além de um menino — o tramos no texto mas, ao mes- Primavera Trad.: Monica Stahel ação. Teele é a menina que espera. Arno, um dos principais — que não mo tempo, dialogam com ele, Martins Fontes Ela personifica a ideia masculina da sabe o que é metal. em um bem-vindo equilíbrio. 40 págs. mulher ideal, que vem de família O melhor de Primavera rica, ajuda em casa, estuda e aguar- — O que significa isso: de é a sua não-conclusão e falta Ela é invisível, mas gigantesca. da passivamente o pretendente. Re- metal? absoluta de moralismo. Não Pequeno como a grama... Sim, sim, Pode ser encontrada nos cheiros, produz, portanto, a ideia do univer- — Ah, de metal? Que idiota, há um final feliz açucarado ou pequeno como a grama, mas justa- nos olhares, em abraços. Uns a so masculino infantil como sendo a conclusão dos dramas vivi- perseguem por toda a vida. Às vezes, você não sabe mesmo o que signi- mente nas costas curvadas de tanto o único de real interesse, onde as fica de metal? (...) dos no decorrer de suas 423 tentam comprá-la com dinheiro. Pode causar medo e até lágrimas. Disforme, coisas acontecem de fato, onde há — Metal... é uma madeira páginas. É apenas um recorte trabalhar dessas pessoas pequenas pode se encontrar mesmo numa folha aventura. Um machismo e um an- preta. Uma madeira que não se de uma realidade. Não há uma como a grama é que as futuras ger- “ de árvore que cai, demonstrando drocentrismo perfeitamente com- consegue cortar com uma faca. moral da história. E isso é óti- ações são construídas. Os grandes sua sutileza. Muitas crianças, ao preensíveis na Estônia de 1912 ou mo. Infelizmente, entretanto, crescerem, descobrem que ela não carvalhos já tiveram também a nos Estados Unidos de 1876, nem Há, naturalmente, um in- Primavera é tão atual quanto está mais na caixa de brinquedos ou tanto no Brasil de 2014. teresse quase sociológico nesta um livro estoniano de 1912. altura da grama... no pacote de balas. O que será essa Pequena coisa gigantesca? 172 • agosto_ 2014 18 Bizantinismo

A hora veloz, de Adelino Magalhães, concentra erros e acertos de uma linguagem fracionária

: : Rodrigo Gurgel O AUTOR — Tudo tão célere nesta via- exclamações e dos adjetivos afe- São Paulo – SP Adelino Magalhães gem! tados — por que, desprezando a Oh! tempo virá, em que se nitidez, usar “atassalhada” e não Nasceu em Niterói (RJ), em 3 recepção da obra de Ade- “difamada” ou “caluniada”? —, a de setembro de 1887, e faleceu não verão mais, os homens. — Rá- lino Magalhães tem os- no mesmo local em 16 de julho pida, a extremo, será a trajetória. perfeita construção do ambiente cilado, desde a estreia do de 1969. Estudou Medicina, — Plange, plange teu descon- vulgar e a ironia salvam a cena: Aautor — em 1916, com formou-se em Direito, mas foi, forto, irmão meu, a conjeturares o Casos e impressões —, entre a durante 37 anos, professor de que virá. — Oh! os trabalhos que a pe- indiferença e o elogio veemente. História e Geografia. Deixou: Debuxar-se-ão sombras no quena dera, à Mamã Maroca Ca- “Literatura para iniciados” e “pre- Visões, Cenas e perfis (1918), cataclismo de tudo se ir. be-Tudo! Mamã a pusera a edu- cursor” são expressões encontradas Tumulto da vida (1920), Os car: em bom colégio: nada menos momentos (1931), Íris (1937), nos que integram o segundo gru- Os fragmentos nascem carre- do que o Sacré Cœur. Plenitude (1939), Quebra-luz po, como Andrade Muricy e Murilo gados de fugacidade. De fato, é cô- (1946), além de textos inéditos. Araújo, autores de posfácios críticos modo criar apenas certa atmosfera, Mamã tinha um medo infini- à edição das Obras completas, de pois a narração, a representação to de que a menina se viesse a sim- 1963. O primeiro compara Maga- escrita que transcende a realidade patizar com a “profissão”. lhães a Joyce, Lautréamont e Rabe- ou abarca uma série de pensamen- TRECHO Conseguidos os meios, jeito- lais; quanto ao segundo, afirma: A hora veloz tos, exige diferentes células interli- samente, pelo Pai (padrinho, ali- gadas de forma lógica, coesa. Mas ás, nessa circunstância), a gentil Adelino Magalhães permane- essa unidade geral, essa sucessão Filó entrou para o educandário ce ainda meio ignorado do grande de acontecimentos num enredo, é cristão aos sete anos: do educan- público e da pequena crítica... Da exatamente o que Adelino Maga- dário saiu aos dezesseis. Não hou- pequena; porque espíritos de alta Chispas na noite profunda... lhães nos recusa — por incapacida- ve remédio: teve de voltar à Escola estatura consagraram-lhe estudos Que será? de, preguiça ou opção estética, seus Superior de Marocagem. biógrafos talvez esclareçam. É pena que a história resvale, que o elevam às estrelas. Era justo Que será, se há gemidos na que pasmassem “os que têm olhos Murilo Araújo nos dá, contu- no final, para o dramalhão retórico: para ver” com o caso desse rebel- noite profunda? do, indícios da técnica do autor: de, que, há trinta anos, quando a “— Dos gemidos das mães Mal repassa o que escreve. Fulgiu um rasgo de mater- mentalidade do País era um açu- que virão, geme a terra — Não têm rasuras os seus textos. nidade no ventre sórdido! — A Ira de parado esperando outros céus, E daí nascem justamente as obs- irrefreável erguera a mão: a Mãe surgiu diversamente de todos e de geme! Maldição! curidades — duma expressão que adivinhou e se lançou à frente da tudo. Trazia em germe as tendên- Das mães, humilhadas, após é pura projeção de pensamentos. alvejada, com os dedos hirtos nas cias que iam depois vir: arte de haverem clamado “Vitória”, Fixam-se no papel, desgraciosos mãos alargadas, erguidas. instintos, flagrantes, surpresas, ou belos, jocosos ou tristes, com ineptamente, nos flancos dinamismos, relâmpagos cotidia- as palavras que primeiro susci- Mais que um texto com pre- nos, individuação brasileira, rei- desescrupulosamente tam. Escrevendo, ele olvida a pes- tensões literárias, assemelha-se a vindicações sociais. Era alguém, tropicais — soturnam soa com quem fala, para evocar certa estrofe do Hino Nacional. criando alguma coisa... Teria que somente a que fala ou a de quem gemidos – em civilização crescer o curso desse destino. fala. Monologa interiorizado. Paráfrase verbosa hegemônicas da terra, que O livro, no geral, é decepcio- Mas, no final do parágrafo virão. Implacável esconjuro! O próprio crítico reconhece nante. Excelsior não passa de um que antecede esta citação, Araújo que obedecer a tal método significa somatório de arrebatamentos, em consegue ser ainda mais reverente “perder a transparência”. Entre- sua maioria bombásticos e incom- e meloso: tanto, essa não é uma preocupação preensíveis: de Magalhães, pois ele está preso [...] Esse estilo lembra o ao simbolismo que Jean Moréas — Há no irrealizável, no ina- mato dos trópicos, onde os graves definiu no manifesto de 1886: preensível (excelsior!), no inatingí- troncos se enredam nos graciosos cienta”. Falta clareza a tal objetivo, vel, na ânsia de desejar — há no Lu- bambus em vaia irônica assovian- delineado na linguagem impressio- [...] Por vezes uma perso- minoso Impossível — um segredo! do ao vento. E se é confusa e estra- nista e muitas vezes enigmática que nagem única se move nos meios Supremo que é, segredo den- nha, é ainda mais surpreendente ele nos oferece. Ainda assim, alguns deformados por suas alucina- tre os segredos! essa paisagem moral toda nova. O trechos permitem ao leitor um en- ções, seu temperamento: nessa Excelsior! cenário da montanha compensa a tendimento difuso dessa pretensão. deformação aloja-se o único real. árdua escalada. Mas para vencê- Vejam-se, por exemplo, as ce- Os seres de gestos mecânicos, de Rebentarão um dia os mundos -la são poucos os que conhecem os nas que compõem “Instável!... Gló- silhuetas enubladas, se movem em notas de sinfonia! Sus! o magno caminhos... Eis porque tão intenso ria ao transitório! (impressões de em torno da personagem única: segredo então desvendar-se-á!... artista e tão forte inovador não viagem)”. O autor almeja descre- não são senão pretextos dele para saiu muito além dos círculos inte- ver o substrato, a natureza íntima sensações e conjecturas. [...] O ro- Pretende recriar a linguagem lectuais que lhe são próximos. dos diferentes tipos de viagem ou mance simbólico construirá sua do êxtase, mas é mero enfileira- das diversas reações que o viajante obra de deformação subjetiva, mento de palavras. A via mística, Ora, o discurso de que alguns experimenta. Incapaz de abando- alentado por este axioma: a arte entretanto, pode ser descrita; e escritores só podem ser compreen- nar a linearidade da prosa e ape- não saberia procurar no objetivo Teresa D’Ávila o fez com sucesso — didos por iniciados nada explica e gado ao desejo de captar apenas os senão um simples ponto de parti- de forma clara — em seus poemas serve, principalmente, para fazer a momentos-chave, Magalhães, fiel à da extremamente sucinto. e no Livro da vida. Adelino Ma- fama dos medíocres. Não digo que sua própria personalidade e a seu galhães, ao contrário, prefere o cir- seja o caso de Magalhães, mas sua propósito estético, cria segmentos Mais que um precursor das van- cunlóquio repleto de exclamações. obra, marcada desde o início com concisos e autônomos. guardas europeias, como alguns estu- É o que ocorre em Dies Irae: o sinal da dificuldade, acabou por Nascem, dessa forma, textos diosos insistem, ou especificamente o escritor transforma o hino li- cumprir o julgamento: serviu, nas extravagantes: de André Breton, como bradam os túrgico do século 13, um dos mais últimas décadas, a alguns estudos mais ardorosos, Adelino Magalhães belos poemas do latim medieval, reducionistas, prontos a exaltar — Esguias torres... casario era, portanto, homem do simbolis- numa paráfrase verbosa que dilui o qualquer experimento de vanguar- de incoerentes formas... diversas mo, tenha lido ou não Moréas. texto original e cria um estertor de da com um palavrório que se divide fisionomias... incidentes quantos... adjetivos, verdadeira lamúria. entre o não dizer ou o dizer obscuro. ora me aparece a passada visão Ironia Luciana Stegagno-Picchio, em através de um fastio morno. Contudo, nem sempre o es- sua História da literatura bra- Simbolismo Através da bruma de um fas- critor se deleita no hermetismo. sileira, de 1997, afirma, ao avaliar A hora veloz, publicado tio morno, a se alongiquar tudo: Em A ansiosa espera e O ventre da a obra do escritor, que “será mister em 1926, é bom exemplo da pro- cada segundo, a se alongiquar... Maroca Cabe-Tudo, os melhores deixar passar ainda alguns anos dução de Adelino Magalhães, pois textos do volume, encontramos um para que talvez, além da barreira concentra erros e acertos de uma Nestes parágrafos iniciais do Adelino Magalhães disposto ao es- dos pontos de exclamação e das re- linguagem fracionária, adjetivo capítulo, a imaginação, esforçando- forço de narrar. ticências, se descubra em Adelino caro ao próprio autor: “Tudo em -se, pode descobrir informações pre- Se descontarmos a adjeti- Magalhães um autêntico e singu- mim”, teria dito ele, segundo Muri- ciosas ou... nada. Frágil, o escritor se vação exagerada, a primeira nar- laríssimo escritor”. Decorridos 17 lo Araújo, “é fracionário: um turbi- coloca nas mãos do leitor e parece rativa consegue transmitir a an- anos, não há mais espaço para “tal- lhonamento de anímicas frações”. dizer: “Nem eu mesmo sei o que pre- gustiosa espera do idoso que se vez”; chegou o momento de avisar A epígrafe do livro explica tendo expressar”. Mas há exceções; divide entre desejar o retorno do aos interessados na literatura sim- não só o título, mas qual a preten- como estas linhas, compreensíveis: médium ludibriador ou aceitar a bolista: leiam Anábase, de Saint- são do escritor: Carro-restaurante, poltro- impossibilidade de contato com o -John Perse, lançado em 1924 — há nas, carro-dormitório, a corre- neto morto. Por meio da lingua- uma boa tradução, de Bruno Palma, Hora veloz, incontível, de rem; a correrem, funções da vida, gem reticente, o autor constrói a publicada pela Nova Fronteira —, tão arfante! hora veloz, em que no vórtice. certeza de que se deixar enganar mas evitem perder tempo com o bi- mal se vislumbra pensar: hora — Viveremos em eterna se- é uma forma de reencontro. São zantinismo de Magalhães. veloz, durante a qual se gozam a miconsciência. apenas alguns minutos num fim pleno as existências, pois se não as Em nervos lassos de quem de tarde, à janela — mas o curso consegue pormenorizar. viaja em trepidante sonambulis- da história familiar e do passado NOTA mo, viveremos um dia. próximo é recuperado de forma Desde a edição 122 do Rascunho Apreender o momento em dramática. (junho de 2010), o crítico Rodrigo seus aspectos fugidios, deseja Ma- São anotações de um diário; O relativo preciosismo não Gurgel escreve a respeito dos galhães — e não qualquer momento, promessa de uma crônica; instan- consegue destruir O ventre da Ma- principais prosadores da literatura mas aquele que, ao apresentar a “hu- tâneos, apenas. Ou rascunhos de roca Cabe-Tudo. Apesar do texto brasileira. Na próxima edição, Alcântara mana trajetória, para a Luz se impa- uma filosofia pessimista: atomizado, do exagero no uso de Machado e Laranja da China. 172 • agosto_ 2014 19

divulgação Novela das nove

Em MADRUGADA SUJA, Miguel Sousa Tavares esbarra em clichês típicos da dramaturgia televisiva

: : Guilherme Pavarin São Paulo – SP

ovela, para a maioria dos brasileiros e dos portugueses, não é, Ncomo convém chamar nas rodas literárias, um romance curto. Usamos quase sempre a pa- lavra para tratar de enredos que prezam por dramas familiares pas- Madrugada suja teurizados, longos suspenses, tabus Miguel Sousa Tavares amenos e redenções amorosas cujo Companhia das Letras mote, além de criar modismos e 352 págs. atrair anunciantes, é fazer o público se identificar com personagens e, tal qual uma torcida domiciliar de futebol, vibrar pela fortuna ou des- graça daqueles que lhe parecem. Ao TRECHO fim de alguns meses, trocam-se os Madrugada suja nomes. Os moldes permanecem. A popularidade desse gênero televisivo entre nós, lusófonos — angolanos e moçambicanos inclu- sos —, influencia ainda hoje o modo Se ao menos a televisão de consumir cultura e, não é exage- tivesse chegado a para o intervalo comercial. enlouquece, os comunistas que que nós brasileiros, por irmandade ro, de escrever nesses países. Pa- O mais curioso — ou irônico reclamam do salário, entre outras ou não, também estamos acostu- drões novelísticos de estrutura, de tempo a Medronhais — é que ao narrar a rotina de Me- figuras bem trabalhadas. Numa mados a ler e ouvir. O cenário é um conflito e de exposição da realidade da Serra, talvez ela dronhais da Serra, Tavares comen- das melhores passagens do livro, tabuleiro em que todos jogam sujo se espalharam por milhões de cabe- “ainda fosse viva hoje. ta por mais de uma vez o papel das quando um personagem larga a fa- para ganhar mais posses e poder. ças e, por tabela, pelos muitos ro- telenovelas como único entreteni- mília para integrar um movimento No meio dessa guerra de egos, Mas não: primeiro, foi a teiros de cinema e produções literá- mento no vilarejo. Quando chegam revolucionário, ele se envolve com surge um personagem destroçado, rias. Pare para pensar em quantos eletricidade que chegou os primeiros televisores ao local, es- uma alemã que vai a Portugal lu- com alma melancólica e caráter ina- livros ou filmes em nosso idioma à aldeia, trazida pela creve, homens e mulheres passam a tar também pela reforma agrária. balável: Filipe, o arquiteto. Sua vida apostaram na consagrada fórmula acompanhar as produções brasilei- Nenhum dos dois consegue se co- é sofrida. Quando menino, perdera Revolução, embora com de um protagonista que descobre ras e mudam suas rotinas. Acom- municar um com o outro por pa- a mãe, enfermeira. Pouco depois, ser filho de outro na vida adulta. atraso, e financiada já panham e conversam sobre nove- lavras, e a relação amorosa, de um aquele que acreditava ser seu pai, Quantos, tente contar, tinham no por dinheiros europeus. E las. Seria uma grande sacada se ano, acontece apenas por meio de um homem quieto e de muitas lei- elenco um paraplégico que volta a Tavares brincasse, transgredisse ou gestos e toques. As cenas e descri- turas, também o deixa para integrar pouco depois, em 1984, andar. Mentalize a quantidade de criticasse a influência excessiva das ções são sucintas e belas. “Como se um movimento revolucionário. Este tramas em que todos os persona- o primeiro aparelho de novelas sobre seu próprio texto; ou pode amar alguém com quem não nunca mais volta; morre no campo, gens parecem viver num microcos- televisão jamais visto em então, por outro lado, homenage- se pode falar?”, diz o personagem. num acidente. Filipe é criado pelos mos em que, não importam a dis- Medronhais foi instalado asse essas produções melodramá- A capacidade de enxergar e repre- avós paternos. Ao se formar, recebe tância e a improbabilidade, todos ticas audiovisuais com referências sentar o cenário político-social de da avó uma carta que sua mãe havia se encontram e nenhuma ponta fica no Café Central — o claras. A impressão, porém, é que Portugal por meio de passagens ri- deixado e tem a notícia de que o ver- solta. Dá para listar dúzias. único café e o único o autor escolheu apenas as formas cas de significado como essa é, sem dadeiro pai de Filipe era um médico Um que conta com todos os centro da povoação. mais fáceis. Faz-se literatura como dúvida, o ponto alto de Tavares. que havia passado por Medronhais. clichês citados acima é o romance quem escreve capítulos para a no- Não dá para negar que se trata de Mais tarde, o “Doutor” se tornaria Madrugada suja, do renomado vela das nove. Quase como um pi- um ótimo contador de histórias. uma figura importante em Portugal. escritor e jornalista português Mi- loto automático de enredo. A escrita do português flui de De boa aparência, bem relacionado e guel Sousa Tavares, de 62 anos. modo similar a sua fala. É simples e sem poupar esforços na escalada ao Narrada em primeira pessoa A formação política elegante, sem rodeios. As descrições poder, é escolhido para ser candida- pelos personagens principais — ex- O AUTOR do romance-novela são breves e prezam mais o mun- to a primeiro-ministro por um dos Miguel Sousa ceto por alguns capítulos escritos Tavares Miguel Sousa Tavares é figu- do interior, dos pensamentos e das maiores partidos do país. E vence. por um narrador onisciente —, a ra ilustre em Portugal. Formado sensações, do que as imagens e os Antes de assumir o cargo, no trama conta em detalhes a saga de Nasceu em 1952, no Porto. em direito e jornalista de ofício, gestos, o fora. O recurso de inter- entanto, Filipe, o filho que o médi- uma família formada no pequeno Trabalhou por dez anos como trilhou uma carreira sólida na im- calar longas narrativas com cartas co nunca soube ter, aparece em seu vilarejo de Medronhais da Serra, advogado em Lisboa, mas prensa lusitana com premiadas re- escritas por variados personagens gabinete e pede para que renuncie. em Portugal. O personagem cen- sua carreira mais notória é a portagens sobre sociedade, política da trama poderia ser um desastre na O que se vê, então, é um conflito jornalística. Teve reportagens tral é Filipe, um gajo de caráter e comportamento. Quando decidiu mão de um autor menos hábil. Cai psicanalítico que ganha contornos premiadas e hoje é, além de heroico que vai à cidade grande escritor, comentarista político se dedicar à literatura, passou tam- bem no romance. Vê-se pelas 350 políticos. Bom investigador, o per- estudar arquitetura e trabalhar em no canal SIC de televisão e bém a comentar em telejornais so- páginas uma narrativa coesa, sem sonagem central do livro consegue um escritório político, onde tentam no jornal Expresso. Seu livro bre assuntos variados, do futebol às experimentalismos ou inovações rastrear todas as falcatruas do pai lhe corromper. Para conseguir a mais famoso é o romance artes. De fala calma, o tom grave e formais, mas bem resolvida. A im- biológico. Não satisfeito, grava aprovação de projetos absurdos, as histórico Equador, de direto, costuma disparar críticas pressão que fica, porém, é a de que o conversas e depoimentos, e impri- autoridades se aproveitam de um 2003. É um dos autores contundentes para todos os lados. autor se sai melhor nos retratos his- me uma série de documentos que crime nunca solucionado de que mais lidos em Portugal. Nos últimos anos, defendeu o direi- tóricos, de décadas ou séculos atrás, comprovam as várias infrações de Filipe teria participado na adoles- to dos fumantes, opôs-se ao acordo do que nas construções de persona- seus aliados. Usa, a bem dizer, da cência, durante uma madrugada de ortográfico e, em nome da “liber- gens e situações contemporâneas. mesma arma que tentam incrimi- bebedeira, ao não prestar socorro dade das minorias”, posicionou-se As descrições, muitas vezes, são ba- ná-lo: a chantagem. A diferença é depois de um atropelamento. Caso contra o fim das touradas. É, dizem nais — “acendeu o charuto”, “mexeu que o motivador de Filipe não é di- Filipe não autorize o início das os lusitanos, do tipo ame ou odeie. o café”, etc. — e os personagens são nheiro, um reconhecimento senti- obras, será julgado e preso por um Na carreira literária, Tava- tão comuns que poderiam sair de mental por parte do pai ou ser visto crime de muitos anos atrás. res obteve bastante sucesso com o um catálogo pré-fabricado. Um ad- como um detetive ou investigador. A história é interessante, atu- Equador, de 2003, um romance vogado é o que se espera de um ad- Sua única razão para acabar com a al. O problema é como os fatos se histórico que se tornou best-seller vogado; o político é o político, e por vida dos corruptos, entre eles seu ligam. Os encadeamentos parecem em países europeus como Itália e aí vai. Não ultrapassa o estereótipo. pai, é uma consciência limpa. o tempo todo frágeis, exagerados Sérvia. Nos lançamentos seguintes A mensagem de Tavares é cla- e artificiais, como uma telenovela. procurou explorar o seu notável ta- A busca por um ra: um homem sem grandes ambi- Há pelo menos dois exemplos sig- lento em recontar histórias do passa- herói português ções, abandonado e forte, preso a nificativos. O primeiro é quando a do. Deu certo. Firmou-se como um Em seus artigos em jornais suas origens e que luta pela hones- vítima do crime, que se torna para- dos autores mais lidos de seu país. e comentários televisivos, Tavares tidade é o herói português. Em tem- plégica e depois volta andar, revela Em Madrugada suja o desmascarou alguns esquemas de pos de sujeira, sugere, é o que o país ser a juíza do caso. Assemelha-se autor usa sua experiência de re- corrupção de Portugal. No livro, precisa. Pode não ser uma grande a uma trama infantil cujo bandi- construir os fatos para ilustrar as cita, com licença da ficção, algumas obra literária, mas, caso a missão do, ao tirar a máscara, tem o rosto mudanças sociais no país nos úl- dessas práticas comuns de enrique- do autor tenha sido ser um bom e de um dos protagonistas. O outro: timos sessenta anos. No percurso, cimento ilícito no país: criação de breve retrato da formação da elite Filipe descobre ser filho biológico arma-se de personagens icônicos, empresas virtuais, acordos e facili- e dos movimentos revolucionários do primeiro-ministro de Portugal como o anarquista que é fascina- dades com gente do alto escalão de portugueses, a missão foi cumprida. por meio de uma carta deixada por do por aviões e pela globalização, Angola, suborno em troca de favores E, de quebra, fez-se um herói — de sua falecida mãe. Falta só a vinheta o doutor progressista e culto que ou vista grossa, entre outras tarefas novela, verdade seja dita. 172 • agosto_ 2014 20

ILUSTRAÇÃO: Dê Almeida

: : Flávio Ricardo Vassoler São Paulo – SP

iazza della Signoria, Florença, janei- ro de 2013. À minha direita, Davi, a sentinela de Michelangelo, resguarda O sentido como Pa Galleria degli Uffizi. (Chega o meu cappuccino.) À minha esquerda, una bella e triste ragazza. Será mesmo italiana? Por que estaria triste? A franja resvala a taça. Ela gira o vinho lentamente, o indicador e o polegar so- erguem o pescoço da taça com a fragilidade de quem teme partir um graveto. O olhar vidrado e ausente — eis o paradoxo da melancolia — é resgatado de sua deriva por um leve gemido: qual uma gangorra, a taça gira sobre o eixo do dedo trêmulo e o vinho tinge a toalha branca com o ímpeto da cavalaria. O incidente faz cicatriz Michaela — não seria Brigitte? — enrubescer. A narrativa está para a vida, assim como o aforismo está para a lápide Um batalhão de garçons solícitos se prontifica a ajudá-la, guardanapos e mais guardanapos, mas Melanie — ou talvez Penélope — atraca a testa breve junto à palma da mão e começa a chorar. Os garçons recuam, os soluços e gemi- sorriso de soslaio, a reiteração das supostas ca apenas ressentir. Você ainda lateja, deseja linha com a porta entreaberta. Encontro um dozinhos vão regendo a distância, até que um contingências como os escombros dispersos do mais, deseja além. Olhe ao redor, Laura: não se pedaço de uma possível carta. Resta, discer- grito agudo consegue transpor a fronteira bur- todo que se partiu. O escritor, arquiteto da vida trata de perguntar por que você está triste. Não. nível, a palavra perdão. Adiante, um túmulo- guesa da intimidade. Scarlett se debruça sobre danificada, recolhe os estilhaços da memória, A pergunta é: por que você não estaria triste? -cena. Uma ampla mesa de bronze ao redor a mesa — as mãos revolvem os cabelos — e entrevê as contiguidades daqueles que se dis- Imaginemos que Michaela, Brigitte, da qual se sentam os membros já falecidos da passa a chorar copiosamente. tanciam, desvela as fissuras sob o acalento. Melanie, Penélope, Scarlett, Hannah, Aglaia, família. Os pais, os avós e um dos filhos. A Olho ao redor: nua, a fragilidade atrai o — Margarita, olhemos ao redor. Ali, ao Sofia, Agnês, Natasha, Margarita, Fernanda, escultura de um domingo eterno. Almoço. A burburinho para si — soslaios de reprovação, fundo: que dizer daquele casal em silêncio? Os Susan, Mila e Laura sejam efetivamente sin- esposa serve o marido com vinho. A vó aca- comiserações de canto de boca. Por um breve cafés entrepostos sobre a mesa parecem cindir ceras consigo mesmas. Sendo assim, o que ricia o neto. O avô olha para a mão repleta momento, a indiferença e o alheamento pa- fronteiras entre os dois. Eles não conseguem elas poderiam contrapor à inundação paula- de nódoas. Há uma cadeira vazia. (Então al- recem suspensos. O incômodo faz com que o admitir, eles ainda não querem confessar, mas tina da melancolia? guém ainda vive.) Sobre a mesa, um livro de outro volte a existir, o mesmo incômodo que apenas dão sobrevida à relação que hoje se- O escritor dificilmente é alguém recon- Fernando Pessoa. Uma única sentença: procura nos ilhar em nossa solidão socialmen- quer agoniza. Cada um se volta para um lado ciliado com o real. Há vários tipos, é bem te compartilhada — eis o paradoxo da misan- — e não apenas para que os olhares não se en- verdade, mas a realidade ficcional se lhe insi- O mundo não é verdadeiro, mas é real. tropia burguesa. Ora, logo Hannah se dá conta contrem; eles buscam os vestígios do que já fo- nua como um enclave, um encouraçado, uma de que ninguém pode consolá-la — ela talvez ram, como se ela e ele pudessem se reconhecer barricada. A sensação de saciedade lhe é es- Dentre essa família, quem de fato pode- pressinta que a verdade também é cabisbaixa, onde já não mais estão. A torção do tempo, o tranha. Narrar implica movimento, jogar pe- ria entender Pessoa? mas somos impelidos a nos esgueirar para o consolo da memória que, ainda assim, deve dras contra a água estancada do charco e do A mãe que serve o vinho deve ter espíri- subsolo da vergonha para que ninguém saiba, calçar luvas para afagar. Agora veja aquele se- lago para que círculos concêntricos revolvam to prático. O mundo é uma tarefa, uma con- ou pior, para que ninguém nos veja doer. nhor ensimesmado que relegou o livro junto o que está atracado. Para o escritor, o relato secução. Dói, logo existo. à bengala — está vendo? (Fernanda meneia a singular pertence ao antiquário. Ele entrevê A embriaguez do pai lhe expande os Não, eu não posso aceitar que seja as- cabeça leve e verticalmente.) Na mesa ao lado, contiguidades entre a caixinha de música e o sentidos, é bem verdade, mas a fronteira com sim, vou até Aglaia e, com o tato do men- aquela senhora nem mesmo faz menção de to- assovio ritmado; um livro amarelado e o chei- o entorpecimento é muito tênue. sageiro, pouso a mão sobre seu ombro. Aos mar o chá. Eles não trocaram um único olhar ro da mobília; o pó e a invasão furtiva da luz; A vó e o neto olham um para o outro — poucos, o rosto desponta por entre os cabelos — já não se haviam cumprimentado quando a cortinas trêmulas e janelas trincadas; porta- felicidade de bronze. como uma presa trêmula a se certificar de que senhora se sentou próxima. O senhor Schwarz -retratos e altares. Para o escritor, o único Resta o avô a olhar os rastros do tempo o além da toca já não oferece tantos riscos. e a senhora Dunkel já não anseiam. Os apar- deita raízes, compartilha a sede, irradia os contra as costas de sua mão. Por que ele não Ela me mira com uma mescla de curiosidade tamentos os expelem, eles já não sentem dor galhos em direção à luz. A literatura, assim, participa da comunhão? Por que se põe à par- e exasperação — sou um intruso e um salva- — eles não sentem nada. Poderiam conversar compõe a rede de nossas mediações. Somos te? Ele me parece o único ali capaz de enten- dor, não necessariamente nessa ordem. Sofia um com o outro? Talvez já tenham ensaiado os nós, os feixes. Apenas aparentemente nos- der contra o próprio o corpo que a conjunção já mostra inquietação, ela quer me ouvir, Ag- um diálogo, mas o acordo tácito prevaleceu: sos corpos estão separados. adversativa de Pessoa comporta a dubiedade nês já escava o silêncio do que há para dizer. não há mais por quê. A narrativa desdobra o que o aforismo da encruzilhada. Puxo a cadeira — Natasha não diz nada, então As lágrimas de Susan já haviam seca- coagula. A narrativa está para a vida, assim O mundo não é verdadeiro: choro e posso me sentar. Súbito, Michaela, Brigitte, do; alguns fios de cabelo se entrelaçam ao como o aforismo está para a lápide. ranger de dentes, o desterro da transcendên- Melanie, Penélope, Scarlett, Hannah, Aglaia, rosto como os trajetos errantes das plantas Em São Paulo, entre as ruas Cardeal Ar- cia, o sentido como mero ressentimento. Mas Sofia, Agnês e Natasha esperam a minha voz que se apoderam de um muro. Ela me olha coverde e Luís Murat, há um cemitério. Cer- é real! “De pé, ó vítimas da fome! De pé, fa- — um consolo, uma pergunta, a sentença. como se eu fosse um beduíno ao longe; olhar ta vez, antes de uma reunião marcada para mélicos da terra!” A morte de Deus transfor- Que fazer? difuso — e à procura. as 15h, resolvi percorrer as alamedas. Eram ma-se em sucedâneo para a vida como von- O aforista vê diante de si a miríade do — Olhe ao redor, Mila: se a dor existe, 14h15. Jazigos são como livros. Flores, velas e tade e representação. “Estamos aqui, somos mundo — as frestas do real, as nuances de um você ainda lateja. Sofrer por algo não impli- lápides são narradores. Aqui está uma cape- reais, ainda somos!” 172 • agosto_ 2014 21

O mundo não é verdadeiro: choro e ranger de O aforista vê diante de si rar; tempo para calar, e tempo para falar; tempo para dentes, o desterro da transcendência, o sentido como amar, e tempo para odiar; tempo para a guerra, e tem- mero ressentimento. Mas é real... E ainda por cima a miríade do mundo — as po para a paz”. (Eclesiastes, 3, 1-8) é real, é perecível, é fugaz, é volúvel, é vão. “Estamos Para tudo há um tempo, para cada coisa há um aqui, somos reais, por ora...” frestas do real, as nuances momento sobre a terra: tempo para estrebuchar, e O avô participa do almoço, sim. E também parti- tempo para morrer; tempo para salgar o solo, e tempo cipa ao escapar. A morte não nos torna refugiados de de um sorriso de soslaio, para arrancar o que mal foi plantado; tempo para ma- nós mesmos? a reiteração das supostas tar, e tempo para não cicatrizar; tempo para demolir, O aforista sente a vida decantar em sua sensibi- e tempo para soterrar; tempo para chorar, e tempo lidade. Por meio de sua sensibilidade. Nada é fortuito. contingências como os para ranger os dentes; tempo para gemer, e tempo Sobrancelhas arqueadas, um suspiro de despei- para desmaiar; tempo para atirar pedras, e tempo to, o canto da boca levemente suspenso, uma coloca- escombros dispersos do para relegá-las; tempo para se amontoar, e tempo ção ao léu. A escavação de nossas experiências trans- para apartar-se; tempo para procurar, e tempo para forma a arqueologia em comunhão literária. todo que se partiu. perseguir; tempo para escoltar, e tempo para conde- Em São Petersburgo, na livraria Dom Knigui nar; tempo para rasgar, e tempo para suturar; tempo (Casa dos Livros) da Avenida Niévski — a mesma Ni- para calar, e tempo para ser calado; tempo para eletri- évski das desventuras do homem do subsolo dostoie- zar, e tempo para odiar; tempo para a guerra, e tempo vskiano —, me deparo com um livreto de aforismos para os escombros. de Samuel Clemens, também conhecido como Mark Para o bom e velho Platão, o tempo é a imagem Twain. Edição bilíngue. Nas páginas à esquerda, Mark movente da eternidade. Twainovitch; à direita, os originais. Uma ampulheta que gira sobre si mesma sempre Súbito, São Petersburgo me teletransporta ao que Newton faz os grãos de areia escoarem o tempo. Cemitério São Paulo: O escritor dificilmente é A eternidade, estática, se contraporia ao éter do tempo. Time is the best teacher; unfortunately, it kills alguém reconciliado com Etéreo. all its students. Ao pensarmos sobre o infinito, parece que o li- (O tempo é o melhor professor; infelizmente, ele o real. Há vários tipos, mite faz uma curva para que delimitemos a imagina- mata todos os alunos.) é bem verdade, mas a ção com cercas. O espaço do puro movimento como que requer a curvatura do horizonte. O tempo empilha e contrapõe experiências. realidade ficcional se lhe Ao pensarmos sobre a eternidade, parece que a Se o tempo do luto nos rasga, a distância do tem- segmentamos com a mensuração do tempo. O eter- po cicatriza. insinua como um enclave, no seria o sucessivamente sustado, o reencarnado. O Ainda que conheçamos o tempo, o tempo nos tempo do puro movimento como que requer a estaca reconhece? um encouraçado, uma das experiências. Tenho um altar na minha sala feito com a má- Quando espaço e tempo voltam a se reunir, a fi- quina de costura da minha vó — não nos abraçamos barricada. A sensação de nitude ganha (e vai perdendo) corpo. desde 1996. As cinzas do meu pai descansam ao lado saciedade lhe é estranha. Georg Wilhelm Friedrich, também conhecido do meu aniversário de 20 anos. Novembro de 2001. como Hegel, certa vez cavalgou a dialética do tempo: Há quatro pessoas na foto. Da esquerda para a direita: meu pai, minha irmã, eu e minha mãe. Abraço minha O finito é o infinito determinado. irmã e minha mãe. Meu pai abraça minha irmã, mas ele está mais distanciado de nós. Meu pai foi o pri- 76 anos seriam, então, uma passagem. meiro que a morte ceifou. Abraço minha irmã e minha Uma travessia. mãe. Minha mãe me abraça, mas ela está mais distan- Conseguiríamos nos lembrar de cada uma das ciada de nós. A morte já se lembrou da minha mãe. determinações do infinito? Morte à esquerda, morte à direita: há alguma lógica Vidas sucessivas, justapostas — contrapostas. para a marcha fúnebre? Meu pai à esquerda, minha Seríamos, assim, o mosaico da finitude? mãe à direita, minha irmã à esquerda e eu? Tempo como bricolagem, tempo como sentido. Tempo, a bricolagem do sentido. A quem devemos perguntar? Ao tempo? Literatura, o sentido da bricolagem. Mas e quanto ao ressentimento? Para onde vai o Pergunta: O que é o tempo? tempo de quem só faz ressentir? Resposta: Meu corpo. Como um novelo, o tempo do ressentimento se Pergunta: O que é o corpo? volta contra, sobre e sob si mesmo. Resposta: Meu tempo. O ressentido é um nômade que migra, tautologi- Agostinho de Hipona dizia saber o que é o tempo. camente, pela estepe de sua falta de perdão. Ele quer — Pois então, meu caro, diga-nos, o que é o tempo? coagular o tempo para re-viver o sentido que lhe esca- Assim falou Santo Agostinho: pou. O ressentido não apenas se lembra; o ressentido — Bom, bem, enquanto não me perguntam o que não se esquece. é o tempo, eu bem sei o que ele é. Mas, quando me O esquecimento está para o novo, assim como o pedem para defini-lo, eu já não sei dizer. tempo está para o perdão. Há alguns anos, em um bar na rua Cônego Eugê- Assim, sob a expressão fazia tempo que não nos nio Leite, em São Paulo, conversávamos dois amigos e víamos se esgueira o fazia o tempo com que não nos eu. Na verdade, André e Mateus conversavam. Eu pro- víssemos. Até que (nos) perdoamos. curava imaginar as decorrências daquela discussão. Mas por que o perdão implica a cicatriz? Assim falou o antropólogo André: Assim falou Oscar Fingal O’Flahertie Wills, tam- — É impossível dimensionar o novo sem traumas. bém conhecido como Oscar Wilde: Sempre que passamos por uma crise, a dor e a confusão “A vida brinca conosco como se fôssemos som- decorrem da falta de estrutura lógica e tradicionalmen- bras, como um marionetista. Nós lhe pedimos prazer. te configurada para lidarmos com uma situação inusi- Ela nos dá, mas a amargura e o desapontamento vêm tada que, na verdade, desafia a acomodação das nossas depois. Nós encontramos em nosso caminho uma percepções. Assim, o trauma é uma ruptura que, inclu- tristeza nobre que dará, é o que pensamos, a imensa sive, pode nos levar além. Ele não apenas redimensiona dignidade da tragédia a nossos dias, mas ela se dissi- nossas vivências como a leva a novas perspectivas. O pa, coisas menos nobres a substituem e um dia, ante novo, então, é a troca de pele da cobra, a borboleta que uma aurora cinza e cheia de ventania, eis que olhamos alça voo sobre a carcaça da lagarta. Viver significa clau- com uma surpresa endurecida, ou com um coração dicar, porque toda cura pressupõe cicatrizes. pesado e de pedra, a trança de cabelos salpicada de O físico Mateus cofia o cavanhaque inexistente da vertical para a horizontal, pode reeditar o fluxo do ouro que outrora havíamos adorado com tanto ardor e para então redarguir: tempo para si mesma. beijado com tanta paixão”. (Aforismos ou mensa- — Aceito que o novo precise de traumas e fra- André rumina o formigueiro de Mateus com três gens eternas. São Paulo: Landy, p. 65.) turas para vir à tona. Só não aceito que o novo esteja belos tragos. Súbito, ele sentencia: Para tudo há um tempo, para cada coisa há um inequivocamente relacionado ao velho. Que haja liga- — A questão é que a formiga não tem a coragem momento sobre a terra: tempo para estrebuchar, e tem- ções com o que é costumeiro, bom, isso não se discute. do escorpião. po para morrer; tempo para salgar o solo, e tempo para Mas e se o novo estiver ainda mais vinculado com o Mateus e eu: arrancar o que mal foi plantado; tempo para matar, e que é radicalmente novo? — Como assim, André? tempo para não cicatrizar; tempo para demolir, e tempo André e eu: — Imaginem um círculo de fogo em cujo centro para soterrar; tempo para chorar, e tempo para ranger — Como assim, Mateus? gira um escorpião que não vê qualquer escapatória. os dentes; tempo para gemer, e tempo para desmaiar; — Vocês estão vendo esta formiga aqui? Bom, Para a formiga, girar em círculo significa, a cada ins- tempo para atirar pedras, e tempo para relegá-las; tem- agora ela tá nadando na cerveja que vocês, hereges!, tante, driblar o círculo de fogo, ainda que o círculo de po para se amontoar, e tempo para apartar-se; tempo desperdiçaram sobre a mesa. Mas imaginem que esta fogo e a morte iminente se imponham sem mais. Para para procurar, e tempo para perseguir; tempo para formiguinha aqui, meus velhos, estivesse subindo a o escorpião, não há a ruptura do radicalmente novo. escoltar, e tempo para condenar; tempo para rasgar, e perna da nossa mesa. Pois bem: para ela, o real só pos- Para ele, há continuidade entre o instante anterior e tempo para suturar; tempo para calar, e tempo para ser sui um plano, o real existe para a formiga como suces- o seguinte, há continuidade no desespero. Para o es- calado; tempo para eletrizar, e tempo para odiar; tempo são contínua da realidade, como real que se constitui corpião, não há saída. É por isso que ele iça o ferrão e para a guerra, e tempo para os escombros. a cada passo, como real que se esfacela a cada passo inocula o veneno no próprio corpo. A resposta é que a Eis por que o tempo, o infinito determinado, im- — a formiga mal tem memória. Então, para a formiga, formiga não tem a coragem do escorpião. plica a cicatriz: a realidade é um contínuo quarto escuro para sempre André e Mateus moldaram o tempo com a fábula “Para tudo há um tempo, para cada coisa há no presente. Mas agora vem o trauma dos traumas: da formiga e do escorpião. um momento debaixo dos céus: tempo para nascer, a formiga não sabe que, depois da perna da mesa, há Mas a pergunta persiste, já que ainda respiramos: e tempo para morrer; tempo para plantar, e tempo o tampo da mesa. E mais: a formiga não sabe que os — O que é o tempo? para arrancar o que foi plantado; tempo para matar, e planos da perna e do tampo da mesa são perpendicu- “Para tudo há um tempo, para cada coisa há tempo para sarar; tempo para demolir, e tempo para lares entre si. Assim, para a formiga, além de o mun- um momento debaixo dos céus: tempo para nascer, construir; tempo para chorar, e tempo para rir; tempo do existir a cada passo, não há horizonte além da e e tempo para morrer; tempo para plantar, e tempo para gemer, e tempo para dançar; tempo para atirar em cruzamento com a reta. Para a formiga, o tampo para arrancar o que foi plantado; tempo para matar, e pedras, e tempo para ajuntá-las; tempo para dar abra- da mesa só vai existir como completa ruptura com a tempo para sarar; tempo para demolir, e tempo para ços, e tempo para apartar-se; tempo para procurar, e perna da mesa. O cigano já não é um cigano após as construir; tempo para chorar, e tempo para rir; tempo tempo para perder; tempo para guardar, e tempo para formigas, velhos, e toda a teoria do nomadismo deve para gemer, e tempo para dançar; tempo para atirar jogar fora; tempo para rasgar, e tempo para costu- ser reconsiderada à luz do formigueiro. (Mateus dá pedras, e tempo para ajuntá-las; tempo para dar abra- rar; tempo para calar, e tempo para falar; tempo para um trago antes de completar.) E o tempo, para as for- ços, e tempo para apartar-se; tempo para procurar, e amar, e tempo para odiar; tempo para a guerra, e tem- migas, é a continuidade descontínua. A formiga, de tempo para perder; tempo para guardar, e tempo para po para a paz”. (Eclesiastes, 3, 1-8) um instante para o outro, da esquerda para a direita, jogar fora; tempo para rasgar, e tempo para costu- Tempo, o sentido como cicatriz. 172 • agosto_ 2014 22 Do meio da Índia O exílio e o deslocamento são a força e o centro da literatura de JHUMPA LAHIRI

: : Gisele Eberspächer Subhash tem medo de ler o que re- Udayan, é apenas uma criança no curitiba – PR cebe e não se importa em respon- início do livro, fator que influencia der sempre. Ainda assim, mesmo a comportamento dos pais, mas m Tollygunge, distrito de sem saber, existem similaridades adquire ela mesma mais profun- Calcutá, dois lagos pró- entre eles. Ambos quebram costu- didade ao longo da obra. Ela se ximos um do outro se mes da sociedade indiana, Udayan depara com um conflito, tem seu Etornam um só na estação se casando sem consentimento ou momento de fuga e eventualmente das chuvas. Todo ano, se separam escolha dos pais com uma estu- precisa lidar com uma nova reali- e se juntam. É assim que Jhumpa dante de filosofia chamada Gauri e dade, algo que finalmente a ajuda Lahiri apresenta seu novo livro, Aguapés Subhash tendo um caso com uma A AUTORA a se libertar e prosseguir a vida. O Aguapés, para os leitores e é nesse Jhumpa Lahiri mulher mais velha nos EUA. Jhumpa Lahiri próprio Subhash consegue perce- cenário que moram os protagonis- Trad.: Denise Bottmann Nessa primeira parte do li- ber o resultado de suas escolhas e Nasceu em Londres, em tas da história: Subhash e Udayan. Biblioteca Azul vro, Jhumpa Lahiri constrói a passa a viver sua vida sem medo. 440 págs. 1967. Filha de pais indianos, O distrito é uma região po- base de seus personagens, suas morou nos EUA e agora Usando a história da família bre próxima a um grande clube relações e suas personalidades. na Itália. Ganhadora dos como pano de fundo, a autora con- de lazer inglês, com campos de E é a partir desse momento que prêmios Pulitzer e Frank segue abordar muitos temas em golfe e corridas de cavalo. Do luxo das pelo governo indiano e o grupo ela os confronta: Udayan morre O’Connor International sua obra. A história mostra como dos gramados sempre verde para começa a adotar técnicas de guer- e Subhash viaja para casa apenas Short Story, é convidada a política e a maneira com que a a lama e sujeira de um alagado rilha para alcançar seus objetivos. para encontrar sua família com- da Flip 2014. No Brasil, sociedade funciona afetam direta- são apenas algumas quadras e as Cada vez mais próximo da luta e da pletamente destruída. Os pais publicou ainda Intérprete mente as vidas individuais. primeiras páginas já mostram as causa, Udayan sofre uma mudança estão em um completo estado de de males e O xará. Ao mesmo tempo, o livro contradições que permanecerão ainda maior quando viaja e passa negação, ainda sem saber como mostra quanto de fato custa uma durante toda a narrativa. algum tempo no interior, vivendo continuarão a viver depois da per- mudança em um país, cuja popu- Os personagens principais com e como os camponeses, vol- da do filho. A cunhada, viúva com lação vê seus filhos morrerem en- são Subhash e Udayan, irmãos tando para casa magro e doente. 23 anos em uma casa que não sabe quanto lutam por melhores condi- com apenas 15 meses de diferença As péssimas condições de vida o a acolher como parte da família, ções. São marcas de uma repressão de idade. Tão próximos que a mãe surpreendem e deixam nele uma acaba de descobrir que está grávi- Narrativa que afeta indivíduos dos dois lados sentia que tivera apenas uma, marca para o resto da vida. da. A presença de Subhash parece Algo chama atenção na ma- da revolução. porém longa gestação. São inse- Até certo momento, Subhash mal ser notada e a morte do irmão neira com que a autora desenvolve Além disso, ela aborda o abis- paráveis enquanto crianças e a acompanha o irmão. Preocupa- ainda não foi explicada. o enredo. Apesar de acompanhar mo criado depois de um processo diferença entre as personalidades -se com ele quando notícias sobre Subhash toma uma decisão os personagens durante um longo de emigração. A transformação que mais os completa do que separa. revoltas e mortes de camponeses racional: para proteger o filho de período de tempo e em mais de ocorre nas pessoas que saem de seu Subhash é mais caseiro e respon- são dadas no rádio (que constru- seu irmão, casa com a cunhada e a uma geração, o livro não é exaus- país e nas gerações que nascem nes- sável, enquanto Udayan é mais íram junto), chega a ir a reuniões leva para os EUA, onde se tornam tivo. De certa forma, é como se ela se novo lugar parece tornar quase ousado e desafiador. e ler materiais sobre a revolução. uma família que nasceu da dor. conseguisse ver a vida dos perso- impossível um retorno ao lar, que, Os dois são muito inteligen- Mas seu senso de responsabilida- A obra acompanha esses per- nagens em uma linha do tempo e de repente, parece pouco familiar. tes e conseguem ir para boas uni- de parece ser maior e ele nunca se sonagens até a senilidade. Durante identificasse os momentos mais A imagem inicial do lago per- versidades apesar da origem hu- envolve de fato. Continua seus es- esse longo período de tempo, eles importantes, que foram chave na manece: os irmãos são dois, mas milde e é a partir desse momento tudos e recebe uma bolsa de estu- ficam cada vez mais complexos e os transformação e formação dessa muitas vezes se tornam um. É um que a vida dos dois começa a se dos para fazer seu doutorado nos reveses da vida parecem acrescen- pessoa. E são esses os momentos que concebe a filha, mas o outro que separar. Por influência de colegas, EUA. Muda-se e deixa parte da tar mais e mais camadas. Jhumpa apresentados para o leitor. Assim, a cria e se torna o pai. A sua metá- Udayan se junta ao movimento na- sua vida para trás. Lahiri desenvolve personagens um mesmo acontecimento pode fora é apenas o ponto de partida de xalista, que aconteceu na Índia du- A separação que começou na profundos e completos, com vários ser exposto do ponto de vista de uma obra com muitas dimensões, rante a década de 60 em busca de época da faculdade agora fica mui- sentimentos, desejos e medos. A diferentes personagens e a história desde o que acontece com seus per- melhores condições de vida. Sim- to mais intensa. Udayan escreve diferença entre sentimento e ra- fica mais complexa. sonagens até tudo que se aborda pático aos ideais de Che Guevara cartas com alguma frequência para cionalidade está presente em todos Essa construção permite tam- com eles. É uma obra sobre a socie- e ao governo de Mao-Tsé Tung, as o irmão, mas parece não contar eles e permeiam as escolhas toma- bém um amadurecimento dos per- dade da Índia, mas também sobre ações foram duramente reprimi- tudo que de fato acontece em casa. das ao longo de suas vidas. sonagens. Bela, filha de Gauri com pessoas, amores e escolhas.

Que viagem ficar aqui parado

: : Arthur Tertuliano 200 quilômetros — ela, sim. Tam- praticamente pudesse servir para Granta de melhores jovens escri- curitiba – PR bém não sou o filho do meio, aque- guardar sementes (umas semen- tores brasileiros. le sem os privilégios do primogê- tes equilibristas) nas cavidades Miguel Del Castillo, um dos s definições de “livros nito e os mimos do caçula, aquele que em mim vão até o começo da selecionados, é o responsável por para se ler em uma sen- cujo título parece indicar que não traqueia. E mãos grandes e mis- uma tradução que me fez questio- tada” foram atualizadas. terá oportunidade de encostar a teriosas. Se souber tocar violão, nar algumas vezes se o livro não AOk, talvez eu esteja me testa no vidro do carro e contem- melhor ainda. Se não se importar teria sido, afinal, escrito em por- antecipando. Ou tão somente este- plar a paisagem até chegar à praia que o pulôver esteja com bolinhas tuguês mesmo. Ponto para ele. ja em sintonia com o livro. Por via — ela, por sua vez, tem uma irmã e continuar usando ele apesar de Carol Bensimon, que (com Todos das dúvidas, melhor recomeçar. Um, dois e já mais velha, uma mais nova e um velho, muito, mas muito melhor. nós adorávamos caubóis) me * Inés Bortagaray irmão, cada qual com suas regalias. Se usar cotoveleiras nos cotove- fez querer ler mais romances que Sempre que chego a São Pau- Trad.: Miguel Del Castillo Mas o “falta quanto pra che- los, muito, mas muito, mas mui- se assemelhassem a road movies, lo — mais especificamente, à casa Cosac Naify gar?” é igualzinho, não importa to melhor. Se para me beijar ele encontrou em Bortagaray uma 96 págs. do amigo que sempre me hospe- quantos anos você tenha, se está segurar a minha cabeça com as séria concorrente — ao menos na- da —, a primeira coisa que faço é indo para o litoral ou para uma mãos naquele lugar onde termi- quele pedacinho do cérebro que bisbilhotar suas estantes. Verificar cidade famosa pela poluição, se nam a mandíbula, a bolinha da nos implora para que façamos um A AUTORA quais entraram na seleção minu- Inés Bortagaray pergunta para a mãe ou checa as orelha e o pescoço, que incrível. Se ranking. Perde apenas na conta- ciosa de favoritos, quem entrou na horas no celular. gostar de missionários, irmãos, gem de pontos: a leveza, a rapidez fila de espera, se a pilha de doações Nasceu em Salto, Uruguai, * da palavra esporádico, de vacas e a “simplicidade” da novela uru- para a seção de ficção científica da em 1975. Estreou na Não é só isso que lhe passa com olhar triste, cheiro de sânda- guaia me fizeram preferi-la ao belo biblioteca aumentou. literatura com Ahora pela cabeça. Ela nos dá um gosti- lo, números perfeitos, Caninos romance da brasileira. tendré que matarte Dessa vez, um pocket fininho, nho do que era os anos 80, além brancos, da palavra crepúsculo, Por fim, falemos de Vanessa (2001), livro de contos que de capa verde e laranja, se destaca de fazer digressões mil: a educação Barbara: o tema da viagem, o não integra a coleção Flexes dos montes Apalaches, dos con- no meio da poltrona preta: Um, Terpines, coordenada por religiosa, os diferentes tipos de re- fins, de vaga-lumes, feijoada, do lugar (nada estranho aos que es- dois e já, de Inés Bortagaray. Ele Mario Levrero. Suas histórias cepção à mesma piada, as amiza- outono, do vento do Sul, de arroz tão em trânsito) encontra eco em foi lido pela metade, marcado com figuram em diversas des, o que será daquele peixinho com espinafre e ovo frito, mechas seu excelente O livro amarelo uma das orelhas. O título não me antologias. Inés também que deixou para ser cuidado com a de cabelo ruivo, Tom Sawyer, ár- do terminal; já a dedicação à é desconhecido. Sei que, apesar é roteirista de cinema. amiga, o conflito entre argentinos vores idosas, cachorros dormin- construção de um romance cuja de ser um livro recente, seu preço e britânicos nas Malvinas, aqueles do, do som de pandeiro, eu caso. linguagem seja a de uma criança, é bem acessível. Também sei que pensamentos que mantêm as pes- com todas as suas peculiaridades, nele se misturam características soas a salvo (em especial, o pai, A fluência da linguagem, de- é algo perceptível durante a leitura que batalham por alguma visibi- sou com é ser um filho do meio?”. que dirige), a ditadura, as intrigas senhada com a maior verossimi- de O verão do Chibo. lidade no Brasil — é uma novela E, então, não diz mais nada. Ele e jogos de poder entre os irmãos, lhança como uma voz infantil, é * (admitamos: é inusitado) uruguaia sabe, eu sei, nós sabemos que eu as eventuais necessidades fisioló- um espetáculo à parte. O leitor está Se eu mudei de assunto nos (não me lembro de já ter lido algum também vou ler o livro. gicas — algo a ser esperado numa sentado no banco de trás daquele parágrafos anteriores é porque, autor desse país) de uma escritora * viagem longa —, os estragos que o carro apertado, com o ouvido gru- depois de ler Um, dois e já numa (um dia o mundo literário ficará Escrevo esta resenha em tempo faz, a sexualidade. dadinho na cabeça da menina, ou- sentada (e reler e treler), você tal- menos sexista, um dia) contempo- trânsito, mais uma vez Curitiba- vindo tudo que ela pensa. vez ainda esteja com vontade de rânea (às vezes, parece que a regra -São Paulo, meses depois da cena Eu quero um namorado de * ler algo parecido, ainda sem con- é: “autor bom é autor morto”). anterior. Em trânsito também está cabelo cacheado e que adore na- Ainda que o trecho citado seguir entender como um livro Não sei, no entanto, se é bom. a narradora do livro que prometi dar no mar e que tenha os lábios acima lembre mais alguns dos tão curtinho imitou uma longa Pergunto. Os olhos de meu amigo ler, li e adorei. rachados por causa do sol. Que- melhores de A máquina e Luna viagem de carro. brilham. Ele diz que a namorada Tenho uma janela só para ria que ele tivesse ombros ossu- Clara & Apolo Onze, ambos de Quem for de Bensimon ou indicou-lhe o livro, que ele tam- mim, não estou sujeito ao acordo dos e uma clavícula transparente, Adriana Falcão, o livro parece me Barbara após a Bortagaray, creio, bém tem três irmãs e que “já pen- familiar de troca de lugares a cada quase à vista como a minha, que pedir para mais uma vez falar da não ficará desapontado. 172 • agosto_ 2014 23

FORA DE SEQUÊNCIA : : Fernando Monteiro Victor Segalen: o lateral UEMda SOMOS CONTATO busASSINATURA DO JORNAL IMPRESSO cCARTAS a do outro EDIÇÕES ANTERIORES COLUNISTAS DOM CASMURRO ENSAIOS E RESENHAS ENTREVISTAS PAIOL LITERÁRIO PRATELEIRA NOTÍCIAS OTRO OJO

a edição passada, ex- cado das manhãs da linguagem). ainda, agora que somos orgulhosos rinheiro, viajante, poeta, antropólo- vada a leilão aos gritos — embora pliquei como foi útil Esse francês estranho nas- do vazio sobre todas as coisas). go, médico, arqueólogo, sinólogo... fossem quadros providos de todos (pelo menos para mim) ceu em Brest, em 1878, e o ano da Alguns imbecis que apenas os silêncios das cores que gritavam Ndefinir o conceito dos sua morte foi o posterior ao fim da O “lateral” da diferença ouviram falar dele (os verardos das para dentro da alma de um jovem “escritores laterais” — que hoje me hecatombe europeia da Primeira do “diferente” Franças mal digeridas etc.) poderão arrebatado de Brest para ir conhe- interessam muito mais do que os Guerra Mundial. Ele escreveu: “O sentimento perguntar: “É aquele escritor que cer o outro lado da vida na Ocea- “principais” pisando com as meias Por que voltou para a França? do ‘diferente’, portanto, não é nem amava a China?”... — e a platitude nia, no Extremo Oriente e noutros de seda do sucesso (?) no tapete Por que não permaneceu na uma adaptação nem a compreen- de perguntas-chavões assim terá países visitados pelos Lotis como se vermelho da literatura crepuscular China ou, então, não viajou para o são perfeita de um fora-de-si-mes- que ser respondida com um “não” fossem lugares de cartolinas pinta- que nos rodeia. paraíso de felicidade da sua juventu- mo que ligaríamos a nós; é antes, sonoro e mais a necessária explica- das sobre norões, fantasias bara- Não pretendo explicar tudo de — a Polinésia de Gauguin —, onde a percepção aguda e imediata de ção de que Segalen apenas situou tas, poesia gasta, prosa de quinta... de novo, é claro, mas sim defron- havia encontrado, em Taiti, logo ao uma incompreensibilidade eterna. a sua obra-prima (René Leys ou Mas o livro que ele queria re- tar o primeiro esquivo lateral que chegar, os pertences & haveres de Partamos desta confissão de impe- A cidade proibida) no “país dos almente escrever, Segalen nunca trago para exibir sob um pouco Paul levados a leilão como se fossem netrabilidade. Não nos gabemos de mandarins” ou outro ecianismo- sequer o iniciou, pegando da caneta de luz, incomodando o seu olhar o lixo de um “pária das ilhas”?... assimilar os costumes, as raças, as -acaciano qualquer que possa vir à ganha do embaixador belga que ele de míope de saúde tão frágil que Foi Segalen quem arrematou, nações, os outros; pelo contrário, cabeça dos alencares da ocasião. sempre vencia no jogo. A obra se ele viria a morrer, de repente, aos por uns poucos francos berrados regozijemo-nos por nunca o poder- Não, nem isso. O romance (é chamaria Essai sur l’exotisme, 41 anos, vítima de um misterioso com sordidez, o belo quadro Villa- mos fazer, guardando para nós a um romance?) se passa na cabeça porém não trataria de nada “exóti- “esgotamento” que o levara para a ge Breton sous la neige, por muito perdurabilidade do prazer de sen- de alguém que, na China, pensa so- co” no sentido bafiento da palavra floresta de Huelgoat (o centro mí- tempo considerado o “último qua- tir o Outro, o diferente”. bre o que seria, realmente, a China já poluída; seria, sabe?, um livro tico do Ciclo do Rei Arthur). Num dro pintado por PG”. Não foi. Mas Porque Victor Segalen havia antípoda em que os sentidos “não ainda mais estranho do que o Leys, manhã luminosa, Segalen se deitou isso é outra história. sido dominado por uma inquietude são felizes” (ele está evocando as e trataria, na verdade, de algo que debaixo de uma árvore e deu o seu Voltemos ao lateral Segalen, maior, muito cedo. ilhas — distantes — de luz), mas pode ser definido como... último suspiro no mundo em que morto num jardim, com pensamen- Nascido num meio pequeno- que lhe podia dar a confirmação de [o contador de palavras do havia buscado o Diferente, o Outro, tos fechados na cabeça que pende -burguês devoto e asfixiante, logo uma atitude estética da qual tivera PC acaba de me avisar que já pas- o “Exótico” (se esta palavra ainda para um lado (que ninguém enxer- busca sair do lugar (e de si mesmo) a primeira intuição ao se deparar sei das setecentas palavras estipu- pudesse brilhar com o seu signifi- gava naquela época, e não enxerga, para viver alternadamente como ma- com a pintura de Paul Gauguin le- ladas para a coluna]

Na barca de Gonçalo

divulgação : : Paula Cajaty -se: o que sobraria para os doutos rio de Janeiro – RJ acadêmicos letrados senão esmiu- çar, comparar frases (conto à luz do primeira vista, o leitor de- ensaio; interpretação acerca do es- savisado poderia pensar crito no próprio ensaio) e interpretar que se trata de um livro de as interpretações do próprio autor? Àficção que possui, como Chegaríamos, então, a uma interpre- tema central, a discussão sobre o tação ainda mais distante do comum emprego, o desemprego, o papel dos de uma interpretação ordinária, uma dois numa sociedade cada vez mais vez que leríamos o dito sobre o dito informal, informatizada, calcada na acerca do escrito? (o que vocês, lei- Matteo perdeu dispensabilidade do componente o emprego tores, estariam fazendo exatamen- humano e em sistemas alternativos Gonçalo M. Tavares te agora). E se vocês, leitores desse de outsourcing, terceirizados, frilas, Foz meu texto, comentassem em meio empreendedores, empresários in- 160 págs. a algumas cervejas. Reparem que a dividuais, ou com alguma carga de coisa fica mais intrincada a cada pla- ojeriza ao sistema fordista-massifi- no de distância, um disse-me-disse, cado-emburrecedor que rui a cada um telefone-sem-fio literário. máquina computadorizada cuspida TRECHO Quarto: finalmente, ao dis- O AUTOR em algum ponto do mundo entre a Matteo perdeu que observa a rotunda quadrada secar seus textos, retirando-lhe o o emprego Gonçalo M. Tavares Califórnia e Hong Kong (cuidando- na história de Aaronson. glamour, o mistério, exibindo suas -se de andar pelo lado do Atlântico, Acontece que, depois da pri- Nasceu em Luanda (Angola), origens, seus vestígios, suas entra- pelo lado de cima, claro, porque meira parte do livro e do desenrolar em agosto de 1970. É nhas, no bojo do mesmo suporte ainda não conseguiram produzir de suas 25 histórias, Gonçalo inicia poeta, romancista, ensaísta em que posto o texto, não se estaria e dramaturgo. Estreou na computadores a partir da extensa a escrita de um ensaio, em posfácio: perdendo um pouco da beleza e da Kessler viveu aí alguns literatura em 2001. Recebeu massa de água salgada do Pacífico, Notas sobre sua própria obra. Sim, sedução do que se acabou de ofertar anos tranquilos, mas os prêmios Portugal Telecom, no Havaí, ou nas terras rústicas do um posfácio prodigioso, genial, ab- 2007; José Saramago, 2005; LER/ à leitura? Assim, como se uma mu- continente africano). a certa altura algo se solutamente inédito em livros de Millennium BCP, 2004; Melhor lher carregasse consigo para um bar Nada disso. complicou rapidamente. contos e, ainda mais, em contos sur- livro estrangeiro publicado à meia luz, entre decotes e transpa- Gonçalo Tavares realizou — reais como os narrados em . em França, 2010; entre outros. rências, um daqueles protótipos de Vários dos habitantes da Matteo “ Tem obras traduzidas em queixos ao chão — aquilo que pos- Aí é que veio meu problema, resina do aparelho sexual feminino sivelmente todo contista deseja aldeia começaram a ficar ou nosso, ainda assim um proble- mais de 30 idiomas, no total visto em corte longitudinal, exibin- de 220 traduções distribuídas realizar: um livro de contos meio loucos, doidos varridos. Pelo ma de quatro facetas (o quadrado do-o ao mesmo tempo em que joga por quarenta e cinco países. romance, em que cada conto dá um da rotunda de Aaronson — o ar- seu charme, cabelos de um lado isolamento ou por qualquer Seu romance Jerusalém foi gancho para o conto seguinte, a par- quiteto que faz com que os carros, para o outro? Qual homem ousaria? outro motivo — a água?, a incluído na edição europeia tir dos personagens. Uma espécie de imaginando a redondeza perfeita de 1001 livros para ler No caminho dessa “cartogra- Babel (e aqui me refiro ao filme do comida? — o certo é que, em da rotunda, acidentem-se em suas antes de morrer. fia da desordem humana”, a leitora Brad Pitt, também se debruçando poucos anos, dos duzentos inusitadas arestas?) e esse problema que caminha desavisada, após “ler sobre a desordem como tema glo- reside sobretudo na antiga discus- levantando a cabeça” as 25 histórias bal) onde, na perspectiva geral, po- habitantes da aldeia só são da “mosca azul” e, num segundo tecidas com a genialidade do escri- deríamos unir o mundo todo através duas dezenas pareciam estágio, em reflexões literário-inter- tor, ganhou grátis (e não é só...) um de acontecimentos entre humanos minimamente normais. pretativas um pouco mais descon- seminário de literatura, psicologia, ou, como no sonho zuckerberguia- certantes. Vamos a elas. filosofia, lógica e retórica avançada, no, através do seu feixe de contatos Primeiro: será que esse en- de modo que foi possível sentir um próximos e relacionamentos diretos. saio é realmente um ensaio ou se- quase-pavor ao folhear as páginas Encadeados e em ordem al- gens, há arquitetos que criam ro- ria mais uma ficção em forma de sua interpretação sobre si mesmo, do tal ensaio, enquanto observava a fabética, temos 25 homens: Aaron- tundas quadradas (por que, insa- ensaio? O que o autor diz acerca ver mais do que o existente, criando vivissecção do protagonista do voo son, Ashley, Baumann, Boiman, namente lembro-me das obras do dos contos é realmente aquilo que o uma aura ainda maior sobre a sua que acabara de admirar. Camer, Cohen, Diamond, Einhorn, Rio de Janeiro?), limpadores de inspirou em cada conto, ou aí tam- própria criação? E, pior, caso posto Mas há quem goste, se há! Glasser, Goldberg, Goldstein, Got- lixo, homens com tiques inimagi- bém ele ficcionalizou? Não, nunca o texto para fora do livro, seria pos- Especialmente todos aqueles que tlieb, Greenberg Greenfield (nota- náveis, homens biônicos que in- saberemos. Ainda que Gonçalo jure sível ou razoável a criação de um curtem “conteúdos especiais” e mos uma prevalência/preferência sistem em testar a providência fa- de joelhos com a mão na Bíblia (e ensaio-explicativo de si mesmo? “extras” no DVD de seu filme pre- de Gs?), Helsel, Holzberg, Hornick, zendo sexo, um prostituto com as já me divirto quase vendo a cena). Terceiro: atravessando as dileto, aquela multidão que busca Horowitz, Indictor, Kashine, Kess- costas tatuadas em braille, um co- Pois todo escritor de ficção, e aqui duas primeiras questões, e supon- as entrevistas com o autor, com ler, Klein, Koen, Levy e Matteo, que lecionador de baratas, homens fu- eu peço vênia ao Pessoa por au- do que seja (i) absolutamente ver- o autor do livro que virou filme, o vão se dando as mãos em situações gindo de uma epidemia de loucura mentar a turma a que devemos des- dadeiro e (ii) integralmente isento making of, as cenas cortadas, os absolutamente insólitas e total- — um dos contos mais sensacionais confiança, é deveras um fingidor. o ensaio crítico sobre a própria debates com o diretor, etc., etc. mente surpreendentes, terminando do livro —, e assim por diante. Segundo: será possível que a obra, uma vez instaurada no autor Isso, de querer ver um filme, todo o suspense em Matteo, na letra Até que, na última história, interpretação de si mesmo seja isen- essa condição de “intérprete autên- um livro e depois mastigá-lo na me- M (de morte, ou o “M” do próprio Matteo é apresentado e também ta? Seria essa interpretação um lon- tico”, vez que só ele é o único que mória, deixá-lo lentamente descer nome do autor?), numa espécie de apresentado o drama de sua vida, ga-manus, continuidade, manual possui esse direito inerente sobre para seu estômago e de lá para seu sala de aula literária, onde cada um terminando-se o conto com a virtu- ou derivação da própria obra? Esse sua obra, pondo-se acima de qual- sangue, suas células, até que ele já é chamado pela ordem, esta apenas al e futura continuidade circular da texto serviria para policiar o leitor e quer outro intérprete, que apenas faça parte de você, isso só aconte- disfarçando o domínio do caos que história, uma vez que é introduzido mostrar-lhe o que pensar a partir do suporá — arriscando — e tecerá ila- ce com desavisados, gente poeta e rege a vida de cada um dos perso- Nedermeyer, letra N (“n” de não- escrito, assim como profetizado por ções sobre a obra que não lhe per- meio avoada. Isso é só com quem nagens e, em espelhamento, de nós -sei-quantos, ou de fórmulas ma- João Ubaldo em sua última crônica tence, o que, por exemplo, tenderia anda na rua observando o vento, mesmos, os leitores desavisados. temáticas em que o “n” sempre é o (O correto uso do papel higiênico)? a acontecer comigo mesma, caso sem olhar para os lados antes de Entre os diversos persona- número a ser buscado), o mesmo Não teria o autor a tentação de, na me aventurasse a tanto, pergunta- atravessar o sinal. 172 • agosto_ 2014 24 PRATELEIRA : : internACIONAL

UEM SOMOS CONTATO ASSINATURA DO JORNAL IMPRESSO CARTAS

EDIÇÕES ANTERIORES COLUNISTAS DOM CASMURRO ENSAIOS E RESENHAS ENTREVISTAS PAIOL LITERÁRIO PRATELEIRA NOTÍCIAS OTRO OJO

Os corruptores Três novelas femininas Quatro novelas e um conto As leis da fronteira A máquina do bem e do mal Jorge Zepeda Patterson Stefan Zweig Org. e Trad.: Tomaz Tadeu Javier Cercas Rodolfo Walsh Trad.: Sandra Martha Dolinsky Trad.: Adriana Lisboa e Raquel Abi-Sâmara Autêntica Trad.: Josely Vianna Batista Trad.: Sérgio Molina e Rubia Prates 342 págs. Zahar 256 págs. Biblioteca Azul Goldoni 176 págs. 432 págs. Editora 34 O assassinato da famosa atriz Em um capítulo do livro Mil platôs, 240 págs. mexicana Pamela Dosantos esconde A alma feminina foi um mistério ao escrito em parceria com Félix Guattari, o Ignacio Cañas é um adolescente de uma teia de mistérios e relações com escritor judeu Stefan Zweig. Suas novelas filósofo francês Gilles Deleuze explora a classe média. Num fliperama do seu Vinte e cinco contos do escritor argentino o poder. Mal sabia o jornalista Tomás se destacam pela intensidade dos diferença conceitual dos gêneros conto bairro, conhece dois delinquentes de Rodolfo Walsh. Organizado por Sérgio Arizmendi que sua despretensiosa enredos, o desespero diante de situações e novela. Para ilustrar essa diferença, sua idade, Zarco e Tere, que vivem no Molina, o livro traz desde As três noites de matéria o levaria ao olho do furacão. extremas e o amor é visto como tormento. eles utilizam, para a novela, dos lado pobre da cidade. Esse encontro Isaías Bloom — primeiro relato do autor Sem intenção, acabou despertando o Em Medo, os abismos do amor; Carta de exemplos de Na gaiola (Henry James), mudará a vida de Cañas pra sempre. — até A mulher proibida, da época em interesse de toda imprensa mexicana uma desconhecida traz uma improvável O colapso (Scott Fitzgerald), História Trinta anos depois, um escritor busca que deu um passo definitivo à militância ao escrever coisas que poucos trama de romantismo às avessas, em que do abismo e da luneta (Pierrette material para um livro sobre a vida de política. É dividido entre Primeiros contos, observam. Nasce, assim, um thriller o amor é quase uma maldição; e em 24 Fleutiaux) e A cortina carmesim Zarco que, nessas décadas, tornou- Os casos e Contos finais. Em sua escrita, com muito suspense e intrigas, horas na vida de uma mulher, uma (Barbey d’Aurevilly); para o conto, Um se um mito da delinquência juvenil. Walsh dialoga com as duas grandes envolvendo o perigoso jogo político celebração da desordem ao explorar os jeitinho (Guy de Maupassant). E são Desigualdade social, assaltos e drogas tradições literárias argentinas, a europeísta dos poderosos. impulsos femininos. estes os textos aqui reunidos. são temas fundamentais da trama. e a popular, levando-as a seus limites.

Histórias da Um corpo na neve Adam e Evelyn Os amores difíceis Mudança outra margem A. D. Miller Ingo Schulze Italo Calvino Fernando Cabrera Nagai Kafu Trad.: Maria José Silveira Trad.: Sergio Tellaroli Trad.: Nilson Moulin Trad.: Fábio Aristimunho Vargas Trad.: Andrei Cunha Record Cosac Naify Companhia de Bolso Grua Estação Liberdade 256 págs. 377 págs. 239 págs. 144 págs. 128 págs. O advogado inglês Nicholas Platt vive em Agosto de 1989, numa pequena cidade da Livro de contos dividido em duas partes: Na linha da antiga tradição dos Tóquio, 1930: ao ritmo das estações Moscou durante a euforia econômica Alemanha Oriental: o designer de roupas Os amores difíceis e A vida difícil. cancioneiros medievais, quando música do ano e do ir e vir dos mosquitos no no governo de Putin, ocasionada pelo Adam vive com a namorada Evelyn numa Ao todo, 15 contos. Entre outros, um e poesia historicamente se reencontram, bairro de Tamanoi, zona de prostituição boom da entrada de capital estrangeiro casa antiga, que também é o ateliê em soldado tímido tenta seduzir uma viúva o livro de poemas compila as cantigas na margem leste do rio Sumida, o na Rússia. Seu trabalho é facilitar que trabalha e recebe clientes. Certo dia, durante uma viagem de trem; uma do espanhol Fernando Cabrera. Na escritor Tadasu Oe vive uma história empréstimos entre bancos e investidores, Evelyn descobre que ele se relaciona algo respeitável senhora vive o drama de “peneplanície do Uruguai”, encenam- de amor mal resolvida com Oyuki, derrubando impedimentos legais. Quando além do profissional com as mulheres perder a parte de baixo de seu biquíni se amores, angústias e reminiscências ao passo que trabalha num romance conhece o homem de negócios Cossaco, para quem costura. A sonhada viagem no mar quando a praia está cheia; um entrelaçando elementos tipicamente sobre um professor aposentado que vê de perto a realidade de um país à Hungria vai por água abaixo e eles leitor oscila entre a realidade da ficção e uruguaios. Por esses versos se entreveem abandona a família à própria sorte. A decadente, onde a criminalidade é uma seguem caminhos distintos rumo ao país a fantasia da realidade; um bandido e o marcos da paisagem montevideana, narrativa mescla ficção, diário, poesia, opção bem viável. Num metrô, ao ajudar vizinho. Quando o muro de Berlim está sargento que o procura resolvem passar numa visita às ruas Llupes, a Estação crônicas e memórias. Macha, parece vislumbrar a esperança. para cair, a trama ganha nova proporção. a noite na cama da mesma prostituta. Central e outros. Edição bilíngue.

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ILUSTRAÇÃO: Rafa Camargo

WHO EU SOU? AY Quem sou eu? A mix of father’s readings With the beating of a Houlihan Heart. Tears taught to fall When tears need to Fall. A symbol that words Are powerful.

Who am I? Uma boca vazia, uma Língua sem uma língua. Uma criança chorando com sons Cheios de vogais. Momentos e momentos de Inalando e exalando.

Quem sou eu? Ungrown hands playing with Building blocks, the A’s and B’s And C’s. A toddler with my sister’s Guidance to draw within the lines. All picture no sound.

Who am I? Mãos grandes e uma aliança, Brincando com verbos e adjetivos, Provando os sons nos meus dentes; Cuspindo fracassos e erros.

Quem sou eu? Stuck in between being And unbeing; entre um Pensamento e uma opinião, Entre pensando e falando. Stuck Like a cat Up A tree.

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Conversations with myself

Se tu pudesse... Stop. Não vale a Pena. Deixa a terra T R IC K H O LL W Ser; permite os Vermes apenas Descansar.

Mas, se tu tivesse… Não, agora não, Não com o sol •••

PA Brilhando, não Com sua cara no A change is gonna’ come Meu travesseiro. I am not what I was. Se tu nunca encontrasse... Eu não era o que eu sou. Mais tarde! Vamos falar My hands have tanned Sobre isso mais tarde. Minha And my words have Mente está pesada e meu Sharpened. I have come Coração está no lugar do meu To love, even adore Estômago. And I can’t Borboletas. And if they Breathe. Were not so tacky I would Tattoo them upon my eyes. Imagina se tu... My temper shortened, Chega! Enough is My ingenuidade flattened. Enough. Aconteceu, Grana comes in faster Como todos os dias Than it goes out. Primeira Caem, ele caiu e minhas Vez na minha vida. Mãos estavam amarradas Eu não penso mais E eu vi com olhos de Sobre aquele cachorrão Lagrimas. Que sempre me seguia. I think He lost his way. Ou eu achei Agora, se eu pudesse Meu caminho. Either way Adormecer... Eu não sou o que eu era.

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Meu Papa

My father, meu papa, o Cristo da minha vida Está esquecendo as coisas. Simple things. E está falando as mesmas Histórias muitas vezes. Over and over like Swimming laps in a pool.

E eu estou aqui, longe o Patrick Holloway Suficiente para ser Nasceu em Cork (Irlanda), em 1988. Vive em (RS), Esquecido. E eu acordo onde é doutorando em Escrita Criativa pela PUC-RS. Seus Durante a noite com contos e poemas já foram publicados por várias revistas e Lembranças dele jornais literários de língua inglesa como Overland Literary Esquecendo Journal, Poetry Ireland Review, New Voices Press, New Writing De mim. Scotland. Seu conto Ma’s big day recebeu o segundo lugar no concurso do RTÉ/Penguin Books, e seu conto Counting stairs foi Talvez deveria finalista no Manchester Fiction Prize. No próximo semestre, seus Ser assim. After all, poemas serão publicados na antologia We will be shelter, God only had one pela editora Write Bloody Publishing. Son. 172 • agosto_ 2014 27 Matusalém de Flores

Carlos Nejar gatos. E ao que ninguém atentava, salvo o dono, era a sua capacidade ILUSTRAÇÃO: Tiago Silva de sorrir pelos olhos que raiavam e pela boca arquejante e a cauda que abanava. Precavia-se dos ga- tos, de contagioso mau humor. E, diferente dos felinos, o cão se pren- dia ao dono, enquanto aqueles se que é ruim morre so- prendiam a casa e aos seus objetos. zinho. O bem dura e Quando um gato passava ou subia levita. Que os vivos se na árvore, miando com escárnio, O levantem e durmam os enfatizando deter uma posição su- mortos, sem molestar os vivos. Ine- perior, Crisóstomo não se impor- xistindo acrescentamento na roda tava, certo de que cada um tem o da fortuna, no campo, não distante mundo que escolhe. Só existe o que dali, os bois ruminam sossegados. não ignoramos e o que nos ignora! E Matusalém tenta pegar a lou- cura, escondida atrás da infância. Matusalém, às vezes, junto Não, não havia loucura que chegas- ao seu cachorro, deixava emergir se para agasalhar certa penúria que o grito que procede dos arcanos e lhe vinha ao peito. Na lenta justiça, se transformava, pelo instinto, no Matusalém sofria de não ter asas animal, e o cão, nele. E a partir des- e não poderem elas crescer, salvo sa rendição vinha a entrega mútua. pelos olhos. O raio vai aonde tem Matusalém, portanto, ditosamen- mais luz. Foi quando Matusalém te se animalizava, e Crisóstomo arrumou um companheiro que va- ia, aos poucos, se humanizando. gava pela rua, rafeiro abandonado, Ou tudo voltava à ordem natural e tomou posse do negro cão. O ani- das coisas, ou à relação, ainda que mal tinha dentuça e uma marca de fraterna, entre o senhor da grei e nascença no lombo. Estava largado o servo. E Crisóstomo não se apli- sobre a rima de estrumes. cava em transgredir ou tirar parti- — Vais te chamar Crisóstomo do desse afeto. A bondade do cão — disse. Entendeste? Crisóstomo. se diferenciava daquela de alguns E Matusalém, apontando humanos, que se devia manter à com o dedo, repetiu, imperioso: distância para ser bela e tolerável. Crisóstomo! E o cão, animado, Se Crisóstomo possuía voca- saltou e lhe lambeu os sapatos. E ção filosófica, não compete desa- apertou o animal contra o peito, bonar o que visivelmente lhe trans- com voz embargada: cendia o natural engenho canino, — És meu amigo! E tens alma com a dúvida existencial socando boa! entre os maxilares o tutano carnal Viu que a claridade latia, latia da origem e do término das coisas, no cão. sem conseguir reprimir o arfante ladrar para as eclesiásticas ou ex- Se o coração tem orelhas, celsas redondezas da lua. E se nele segundo o padre Antônio Vieira, havia sintomas a indicar que como leitura absorvente de nosso herói, cachorro, místico em estado civili- também o coração tem pés e olhos. zável, tenha pressentido o vulto de E Matusalém falou, de orelhas na Deus — o que é privilégio de raros voz e no corpo inteiro: animais — ou farejado sua luz a su- — Serás meu escudeiro! bir nas narinas, era como se tivesse O cão, com o virar do focinho provado o inefável surto, pela bea- e do rabo, num ganido, deu a mais titude com que fitava o dono, num convincente resposta: halo de latir sublime. Consta — o — O senhor é meu amo, e serei que não ficou provado — que Cri- leal, e proverá o que eu necessitar. sóstomo sabia falar francês com so- E, para o saber dos leitores, taque da Sorbonne, mas isso é um nunca deixou de prover, pessoal- enigma só decifrável entre cachorro mente, comida e água para ele. E e seu amo, considerando também a como só o que está no texto está no inviolável discrição. E o que o agu- mundo, não havia nada a discutir. díssimo animal não inventava com Carecia? Entretanto, Matusalém os olhos inventava no ganido. Tal se quis afixar limites ao cão, o que não alumiante raio gotejasse na contra- é estranhável, embora ambos palmi- ção do focinho. Mas o que a luz ten- lhassem a mesma palavra. E disse: de a exibir presa a si mesma? — Ao me ajudares, conterás Na cidade imóvel como um teus ímpetos! burro, de ancas largas e imutável, Pondo diante do assessor, Crisóstomo na praça brincava com esse Sancho de velozes patas, um avançar com violência sem para- homem. E Matusalém, diante das Depois do pontapé, Crisósto- crianças que pulavam corda ou fa- preceito a ser obedecido. lelo. Não sem esperar a ordem do façanhas de Crisóstomo, lembrou- mo cogitou ser o metódico e volú- ziam roda, e ele as rodeava sob as Crisóstomo ergueu-se sobre a amo, por ser mais pacificador do -se, subitamente, da advertência de vel golpear com os pés semelhante árvores e latia para o relógio grande parte traseira do corpo, espichando que sanguinário. A única falha era Nietzsche: “Receio que os animais ao coice dos cavalos. Cada coice, que rodava, e Matusalém o ladeava o nariz, como se impelido por lépi- a de um temperamento intuitivo considerem o homem como um ser uma nova etapa no amor cívico de longe, entendendo sua infantil das molas. Após, afagou no repu- capaz de simpatizar ou não, abran- da sua espécie, mas que perdeu da de um pelo outro. Cada ocasião, o alegria (talvez ele também se en- xo da língua o pé direito do dono, gendo os verdadeiros sintomas no maneira mais perigosa a sã razão pontapé que faltava. Cada pontapé, ternecesse de infância!). Depois, de que reagiu acariciando a ondeante homem, tanto os benévolos quanto animal”. Devendo acreditar mais a cilada do equilíbrio das espécies. olhos reluzindo, com fofa dureza, cabeça do animal. E esse, de sa- os maléficos. Discernia, sim, opon- na civilização dos cães do que na E para outros donos, não o seu, era contemplava os sabiás e as pombas, tisfação, trocava as orelhas. Tudo do defesas num ladrar prevenido. outra, humana, capaz de soterrar a insofismável leveza do ser. Cada melancólico, reflexivo. Ou, no bos- neles se entendia, numa vista só, Quando o dono se debruçava no sua própria civilização. povo se mede pela qualidade dos que, quando o crepúsculo era uma num enleio, quase suspiro. A ami- sofá da sala, a acarinhar sua ore- Mas as civilizações se enco- pontapés ou dos afagos nos ani- clareira enfiada entre os arcaicos zade entre os dois prevaleceu de lha, o animal se comovia e lambia lhem — mais ainda no bueiro do mais. Mas Crisóstomo era um cão troncos, o cão farejava girassóis e relance. Como um relâmpago que a mão de Matusalém. Se o dono destino — e Crisóstomo na calçada que só admitia para si o que era ad- sombras, ganindo. Crisóstomo era vem de um lado a outro. É que os estivesse com passageiro mau hu- avistava, perto, o entardecer com missível aos demais. Detestava os um homem que sabia ser cão. olhos do cão não precisam de len- mor, o cão gania com modulação as borboletas que brotavam das ár- privilégios e queria poder dormir tes para ver nos escuros da alma. esquisita. E, se viesse à rua, cap- vores, diante da casa de seu dono. feliz com sua consciência. E os de Matusalém eram compla- tava o cheiro de bolor jacente nas Tal se o poente quisesse caçá-las no E o cão não desanimava no centes com os animais e ásperos sarjetas, o cheiro acre das grades voejar tão célere, sem caçar o que que os humanos chamam de prin- com os humanos. Isso pela clareira de ferro nos muros e o cheiro va- move a história dos homens. E não cípios. Quando o cachorro Nero, da fidelidade, maior naqueles do poroso dos porões. Nada lhe esca- reparou na presença de Sesínio, da mesma quadra, magro, vetusto, que nestes. Diria até que os dois pava, sabendo até de antemão o catador de lixo, que, abrutalhado, quase murcho, metido a metafísi- Carlos Nejar se amaram de olhos comprazidos. retorno de seu dono para a casa, se de ombros e braços rijos, cabeça co, falou-lhe num longo latido que É poeta, ficcionista, tradutor E ficaram inseparáveis. Coinci- não o acompanhasse. E, suspicaz, pequena, desferiu um pontapé no todos estavam sujeitos à regressão e crítico literário, membro da dindo, tal se estivessem no mes- Crisóstomo reparou a existência de lombo do cão, que virou, girando, e que o bem ou mal feitos em exis- Academia Brasileira de Letras e da mo sonho. Cuidando Matusalém vários dessemelhantes. Uns com rolando, desequilibrado no solo, tência anterior repercutiam nesta, Academia Brasileira de Filosofia. mais da fome de Crisóstomo do coleira, outros vagantes ao léu, sus- pondo à mostra a língua úmida e Crisóstomo riu e achou tal ideia de- Nascido em Porto Alegre (RS), em que de sua própria. Porque um cão tentando-se com restos. Não havia escura e as aterradas pupilas. Cri- satinada. E replicou: 1939, é considerado um dos mais pode chegar a ser homem e o ho- igualdade entre os cães, nem entre sóstomo não aceitou a agressão, — Não somos reacionários da importantes poetas da sua geração. mem nem sempre terá a grandeza as fidelidades que possuíam graus. não aceitaria nunca, e se atirou com lembrança! A vida é cada vez! Nejar, também chamado de “o do cão, que nasceu pequeno para O momento paradisíaco era quan- os caninos na perna do mulato, que Tem-se de reconhecer a pers- poeta do pampa brasileiro”. Lançou morrer grande. Tão grande ao ser do, aos pés de Matusalém, roncava sentou, sangrando, deixando saltar picácia de Crisóstomo até nas ciên- seu primeiro livro, Sélesis, em em aventura, extremo, capaz de em abrangente sono. Se fosse des- borboletas da pele. E mais faria o cias humanas, certa intuição canina 1960. Como tradutor, verteu para o morrer de amor. E, se alguém to- perto num susto, os músculos se cão, ganindo, pronto a novo assalto, e buliçosa de antecipação. Dentre português obras de autores como mava qualquer gesto dúbio ou da- contraíam sob o zumbir das mos- se não escapulisse dali o malandro, os animais, além do corvo, pronto o chileno Pablo Neruda. O romance noso para com Matusalém, ainda cas. O tapete era o exílio do cão e correndo atrás dele as borboletas. a bicar as presas ou detectar car- Matusalém de Flores será lançado que sem culpa, Crisóstomo podia talvez o vindouro tapete do cão no Negro besouro era a noite. caças, Crisóstomo se precavia dos em breve pela Boitempo. 172 • agosto_ 2014 28 Tempo de espalhar pedras

Estevão Azevedo ILUSTRAÇÃO: Theo Szczepanski

sono do homem do garimpo é repleto de explosões, de baques metálicos de ferro contra rocha, O do chocalho das peneiras preen- chidas de areia e cascalho. Sonha mais com o árduo trabalho que precede a pedra que com a pedra dos sonhos, o garimpeiro em seu catre. Com a pedra da riqueza, sonha muito mais acordado — o corpo em seu descanso e a mente em seu torpor são mais afeitos à realidade que o garimpeiro em pleno enten- dimento, durante a vigília. As mulheres tam- bém não estão em seu devaneio, na vigília as tem de todos os tipos se houver fartura, enamora-se da que mais lhe aprouver, e ela retribui, seja casada — quando faca e revólver costumam advir das frases galantes —, soltei- ra ou mulher-dama. Tampouco sonha com outra vida, pois pena em concebê-la, cerceado pela imponência dos chapadões e do universo por eles delimitado. Se não os ultrapassa, se é por eles comprimido em vales e gerais, esse universo expande-se cada vez mais para den- tro, rumo às entranhas da terra onde homem nenhum, por mais valente que seja, se aventu- ra, perigo de apagar-se o lampião e ganhar, o homem, caixão mais amplo e mais escuro que o do mais rico dos ricos. Ou rumo às cavernas que o homem mesmo constrói à base de pól- vora e dos braços, de ferramentas e obsessões, em busca do que a terra esconde mas quer lhe mostrar, como costumam fazer as mulheres. Gomes despertou assustado por causa dos estrondos. Na penumbra percebeu que os olhos de Vitória, como os de um gato pre- to injetados da bile do mau agouro, refletiam um fiapo da luz da lua que entrava pela ja- nela, aberta para afastar o calor terrível que parecia brotar do barro seco do chão. Entre os sons da noite, um impacto frequente, vin- do dos arredores, atrapalhava o sono. Gomes permaneceu calado, esforçando-se para dis- tinguir o que ao sonho era devido, sentindo ainda o peso da bateia que carregara poucos instantes atrás, na grupiara em que sua ima- ginação adormecida o obrigara a trabalhar enquanto dormia e que fazia com que ainda se sentisse cansado. Vitória não dizia palavra nem se mexia, quem sabe morrera e o espíri- algum sonho, aquele ribombar, atenuado — quando o fazia, era hálito quente janela de Ximena, só as to aguardava apenas que Gomes lhe empur- pelo torpor etílico, talvez soasse como um expirado pela bocarra do mundo — era divisava se fosse o caso rasse as pálpebras para subir — ou descer, batuque aprazível como o dos tambores dos um álibi: a destrambelhada nem abrira a de advertir a filha da apro- se o que aterrorizava a velha se confirmasse. pretos, que, se Ximena estivesse desaver- janela antes de deitar-se. Instintivamente, ximação do pai; as imprecações de Gomes Gomes inquietou-se. Ainda dormia e por isso gonhada, faziam-na rodopiar segurando a esticou o braço em direção a filha. Moveu contra o coronel, Rodrigo ou outros garim- temia os assuntos que o divino só discutia saia, e quem sabe a cantilena irreal a emba- depressa a mão para o alto e para baixo, peiros, dessas nem se dava conta. com o caído e vice-versa? Um ruído que ele lasse na rede. Gomes, cujos pensamentos abanando-a. Se o movimento desajeitado e Gomes fechou a cortina e caminhou conhecia bem, de picareta perfurando pedra, costumavam ser mais difíceis de conciliar sem ritmo expulsava de perto de si algum novamente para o quarto que construí- fez-se ouvir, vindo de distância indefinível. com o sono do que os ruídos que percor- ar, mesmo cálido, o colo da filha nem se- ra para a filha. Entrou e fechou a porta de Gomes convenceu-se: despertara. Ainda dei- riam as vielas naquela noite, não suportou quer reparou. Vindas do pescoço, de trás madeira, não queria que seus passos atra- tado, olhou fixamente para a mulher e viu seu o leito e levantou-se. Vitória permanecera das orelhas, da penugem lisa e tão diferen- palhassem o sono da esposa agora que ela rosto pender por sobre o pescoço, em sua di- imóvel e ele acreditou que dormisse. Acen- te do cabelo que cobria sua nuca, gotas des- finalmente dormia. Se botasse a mão no reção, como a dizer-lhe “sim, também ouço”, deu uma vela sobre o oratório, na sala. lizaram devagar em direção à alça caída do baderneiro que trabalhava à noite para e retornar à imobilidade anterior. Com o ombro encostado ao batente, pela vestido, que a moça não tivera condições dormir de dia... Sentou-se numa banqueta Numa casa vizinha, mãe e bebê desper- porta aberta Gomes observou a filha mol- de trocar pela camisola antes de desmaiar próxima a um dos ganchos ao qual a rede taram. O bebê chorava, nem era mais o ruído, dada ao arco da rede, o calor bruxuleando embriagada. O velho sentiu sede. Parecia de Ximena se prendia. De onde estava, não era a fome, visitante que nunca deixa de hon- na pele suada das pernas esticadas para o poeira seca na boca. Gomes recolheu o bra- via o rosto da filha, via apenas seu corpo es- rar seus compromissos, mas a mãe, irritada alto. Gomes afastou o olhar para a sala. A ço, úmido também pelo ritmo que manti- tendendo-se em direção oposta à sua, e ela com o barulho, e culpando-o pela dor que sala de poucos móveis. O piso com algumas vera inutilmente, e saiu em busca de algo parecia comprida, muito maior do que se sentiria novamente no mamilo rachado ago- ranhuras na camada fina de terra que re- para beber. Mirou as garrafas sobre a mesa estivesse em pé, quando mal se comparava ra que o sono do filho fora interrompido por cobria os grandes lajedos sobre os quais a e escolheu a inadequada: mais que ter sede, em altura às mulheres da noite, não porque aquele ressoar ensurdecedor e que parecia vir vila prosperara. O oratório desprovido de desvairava, tinha pensamentos de homens fossem essas maiores ou mais bem forma- de algum recanto olímpico onde um ferreiro imagens. A mesa pequena que ele mesmo que detestava. Bebeu. Se não lograra fazer das, mas porque equilibravam-se sobre manco forjasse uma peixeira, a mãe externa- construíra. Sobre a mesa, um prato de me- descer a poeira seca da boca, descera junto grandes saltos e tamancas. Separou uma va sua raiva gritando com o filho, dizendo- tal, sujo, um par de agulhas de Vitória, um com as goladas para dentro de si o ar aba- mecha dos cabelos da filha com os dedos, -lhe criatura terrível, para que o tivera, me- lampião apagado, duas garrafas. Ao redor, fado de fora, e agora era Gomes que calci- abaixou-se até seu rosto ficar bem próxi- lhor tivesse feito o chá de pó torrado da raiz três cadeiras, uma delas com o encosto nava as paredes, os parcos móveis, a filha mo aos fios que segurava e cheirou-os. Um de fedegoso — Vitória a alertara tantas vezes quebrado, preso apenas a uma das hastes. que dormia a uma curva dos olhos. Desa- forte odor de suor e fumo. Algum resquício da beberagem — e expurgasse o desgraçado. Amanhã dou um jeito, repetiu a promessa nuviou-se. Ele era, como a vegetação seca de contato com homens? Matava Rodrigo, Quando o pequeno, porém, encontrou o seio de todas as noites. Um tapete puído próxi- de todo agosto, afeito às chamas. A garrafa matava. Tentou afastar da imaginação as machucado, uma ternura irresistível invadiu- mo à soleira de entrada. Tudo desinteres- logo se esvaziou. cenas, mas elas não paravam de formar-se, -a, no mesmo instante esqueceu-se do muito sante demais. Incapaz de fixar-se nesses Um novo estrondo, como os que o cada vez mais visíveis, cada vez mais ousa- que praguejara e, enquanto o bebê, alheio a objetos tão gastos pelo olhar, voltou-se despertara naquela noite, interrompeu das, mais dolorosas. Noite, território dos tudo o que se passava, a sugava, a mãe dirigiu novamente para o quarto da filha, invadi- seus devaneios. Afastou a cortina, espe- sonhos. Dormindo, tinha-os disparatados, os xingamentos que gestara e os que ainda es- do por um filete da luz da vela que seguia rou os olhos acostumaram-se à penumbra sem sentido e, um alívio, rápidos e fáceis de tavam em gestação, modo de não desperdiçá- pelo chão e que, para tentar alcançar a pa- e confirmou: Vitória permanecia imóvel. esquecer após os olhos se abrirem. Sonhar -los, ao infeliz que tanta algazarra fazia no rede oposta à porta, se erguia e se arrastava Curvou-se, aproximou o ouvido do leito e acordado daquela maneira é que era insu- meio da madrugada. por sobre seu ventre, rabiscando-o em um notou o ronco baixo da mulher que, expe- portável — pensava em outra coisa, con- Dormindo em seu quarto, Ximena nem movimento mínimo quando a brisa morna riente na educação dos sentidos, decidira centrava-se ou buscava esvaziar-se olhando notara o incomum da noite. Não porque seus fazia oscilar a chama. não incomodar-se com mais nada naquela um ponto na parede iluminado pela luz fra- ouvidos estivessem desabituados aos sons Gomes deu um passo para dentro do noite. Os olhos, os ouvidos e a pele só viam, ca da vela. Rodrigo e Ximena eram vistos dos instrumentos dos garimpeiros e por isso quarto. O ombro doía-lhe, era isso, carecia ouviam e sentiam o que a ela aprouvesse. entrando e saindo dos matos, conversando não fossem por eles estimulados. Estavam mudar de posição, e não tinha sono para Fingia a dor das pancadas de Gomes, se na praça. O povo comentava. Vitória calava, habituados, mas não era essa a razão. Prosse- voltar à cama. O calor ali dentro parecia fosse necessário para a intenção do marido; a desgraçada. Não zelava pela filha. guia adormecida porque bebera demais. Em incomodá-lo mais. A brisa que mal soprava as sombras furtivas no quintal, próximas a Mais um estrondo interrompeu seu 172 • agosto_ 2014 29

sofrimento. A filha moveu-se na rede, em fosse início da noite. As sempre-vivas presas busca de nova posição. A alça do vestido des- aos cabelos para as mais maduras, úteis por- ceu mais um pouco, e um seio escorregou que lhes emprestavam seu frescor. Mais que para fora do tecido largo, deixando em desta- tudo, o modo de querer agradar, de ser só que na penumbra, qual mancha num tecido, sim por poucas horas ou muitas moedas. O Seios o mamilo rosado. Gomes desviou o olhar. En- estratagema era eficaz, e Gomes sentia seus saiou vesti-la novamente. Durante esse en- efeitos. Tocou-se. O bem estar que lhe ofere- saio, buscando a melhor maneira de executar ceu o calor da mão dentro das calças tornou- Alexandre Marques Rodrigues o movimento, teve de fixar a mirada na nudez -se incompatível com a atenção necessária da filha. Aproximou-se. Tocou com uma das para sustentar as fantasias que o levavam mãos o braço em busca da alça caída, e sentiu para fora daquele quarto detestável, e por na ponta dos dedos a pele suada, que pare- isso aos poucos as mulheres da noite come- cia febril. Arrepiou-se. Lembrou de Vitória e çaram a se fragmentar, transformando-se em éssica tinha os seios duros, quando ela tentou rezar, mas o alívio que se aproximou corpos impossíveis, cujas partes nublavam- tirou a blusa eu os toquei. Eram como quando começou a murmurar para si as pre- -se, configurando seres monstruosos. Assim duas frutas verdes, firmes, talvez man- ces cobria com um pano esgarçado a culpa, que desapareceram as quimeras, as retinas Jgas, daquelas que a gente apalpa no mer- como se a esposa o ameaçasse com os casti- de Gomes voltaram à silhueta de Ximena, cado, não leva embora porque ainda precisam gos infernais e a justiça divina. Levantou-se. um pouco ridícula em sua posição de boneca amadurar. Verdes ou não, os seios dela — eu os Passou por debaixo do gancho da rede, foi até quase fraturada, porém ao alcance do toque, toquei, depois os experimentei com a boca. a janela e não a abriu. Encostou-se, voltado e ele não se sentia mais capaz de conter-se. Uma hora antes eu não ousaria imaginar o para o centro do quarto. A visão do corpo so- Era como o infeliz que foge por um caminho gosto. Nem o quarto no décimo segundo andar, bre a rede oferecia-se agora a partir de novos desconhecido e, após correr o mais depres- todo iluminado, as janelas abertas, a cama es- ângulos, o que despertava novos pensamen- sa que pode por longo tempo impelido pelo perando como um copo de água quando se tem tos. O quanto havia ali da vontade de, com medo, se dá conta, com a língua a saltar, de sede. Uma hora antes, quando ela disse Filho da seu próprio amor, mantê-la longe do alcance que alguma curva imperceptível o conduzira puta, mostrou o maior dedo da mão, e eu disse dos homens que a levariam a perdição certa? outra vez ao ponto de partida, onde seus cap- Não devia perder tempo com esse tipo de ho- Estava confuso. Não sabia se era o certo. Não tores lamentavam tê-lo perdido, e o esforço mem: eu não ousaria imaginar. era — sabia? Não. Mas sabia que era homem, feito na fuga fracassada arruinara as energias Não imaginei. No entanto, aconteceu. Sim: disso ninguém mangava, ai se..., e só sabia de que dispunha para pontapés e socos. Com- os seios dela estavam ali, tensos, tocavam os afirmá-lo na violência ou na intimidade. Fu- postas de material etéreo, as figuras lascivas meus quando nos beijávamos. (Devagar, Jéssi- gisse do desejo, maricava? Não sabia. Mas ca- a que Gomes recorrera ofereciam-lhe deleites ca tinha tirado minha camisa, aberto botão por paz. Quantas vezes num instante como aquele, que ele nunca tivera coragem de pedir a suas botão, como se contasse pais-nossos em um ro- atormentado pelo que o corpo lhe designava, correspondentes de carne e osso, mas que sário; tirou meu soutien com a destreza que ne- voltara rapidamente ao catre e, com violência, exigiam mais concentração do que ele era nhum homem havia tido.) Nossas bocas, juntas, forma de combater tormenta com tormenta, capaz de ter, no estado em que se encontra- uniam os seios, misturavam, e eles se beijavam submetera Vitória, que dormia? Levantava va. Quando seu corpo se abstivera de ener- também, os bicos úmidos de suor ou saliva. sua camisola e, antes que ela com muxoxos gia exterior que o alimentasse e começara a Ela disse Você tem razão, e eu, embriagada ameaçasse protestar, tapava sua boca com a alimentar-se da sensação que o próprio es- pela metade, apenas repeti o que já tinha dito, palma da mão — e era para o seu bem, por- tímulo produzia — moto-contínuo do desejo achando que acrescentava algo novo, falei Não de- que a impedia de, apenas recusando-o, impeli- — os súcubos se dissiparam e por detrás das via perder tempo com esse tipo de homem. Ela riu. -lo a um destino abjeto do qual ainda lutava nuvens que o impediam de cegar-se surgiu Jéssica riu, eu ri, nós duas rimos e ela pegou por escapar. Penetrava Vitória num furor que novamente o sol pálido, mas hipnotizador, minha mão, me levou embora. Passamos a porta calada ela cria demoníaco, movimentava-se o que era a possibilidade da ultrajante nudez MULHERES, do lado esquerdo, no fundo do bar. mais depressa que podia, arfava, pois também da filha. Gomes se deteve, mas agora sentia Foi no banheiro que ela me olhou estra- para ele aquela relação era um sacrifício a que as entranhas a queimá-lo. Esforçou-se para nho, que meu coração deu um pulo dentro do se submetia na única intenção de expulsar de resgatar de volta os demônios que, em vez de peito até a barriga, que ela me agarrou meio sem dentro de si, por algumas horas, a doença in- salvá-lo, distraindo-o, haviam-no atiçado e jeito, depois passeou a mão pela minha bunda. E cubada que um dia o transformaria no ser vil abandonado próximo ao estado de absoluta foi lá ainda, no banheiro, que eu filosofei que um que temia vir a tornar-se. irreversibilidade que precede a violência ou o relacionamento heterossexual não inclui namo- O ruído ao longe aumentou e Gomes gozo. Aproximou-se da rede onde a filha, em rar no toalete; não com tanta facilidade. voltou a si. Reconhecia seus tons: alguém ga- seu alheamento etílico, ressonava, e segurou Quando saímos do banheiro, Jéssica per- rimpava na vila. O insólito dessa conclusão as pontas soltas da barra de seu vestido. Pelo guntou sem rodeios, propôs, Quer ir até meu conseguiu ocupá-lo, e seu corpo, ainda encos- tempo em que permaneceu imóvel, a textura apartamento, sem ponto de interrogação, sim- tado à janela, distendeu-se. Não durou mui- áspera, gordurosa e um pouco úmida do teci- ples assim: Quer ir até meu apartamento. to, no entanto, a distração. Visse um veio de do que as pontas dos indicadores e dos pole- No elevador, que nos erguia moroso, fizemos ouro a brilhar magicamente em meio às ra- gares prendiam provocou-lhe frêmitos, como o ritual que falhara no toalete do bar; nós duas, de nhuras das paredes, tampouco a ele se ateria se aqueles pedaços de fazenda absorvessem frente para o espelho, ajeitávamos os cabelos, a naquele instante, apesar da fome e da priva- as qualidades do conteúdo envolvido. Preso roupa, corrigíamos a pintura dos lábios, as linhas ção dos últimos tempos, já que nada lograria ao tempo — imperceptível no relógio, inesgotá- dos olhos. O elevador parou, nós saímos. afastá-lo das sensações mais intensas que um vel na mente — que antecede o crime, Gomes Depois que Jéssica tirou minha camisa e homem poderia experimentar se não estives- surpreendeu-se com o movimento brusco de meu soutien, ela tirou minha saia. A calcinha já se com a faca apontada para o ventre de um Ximena, que sonolenta e bêbada ergueu a ca- tinha descido pelas pernas assim que aportamos desafeto ou com uma lâmina bailando diante beça na tentativa ainda instintiva de encontrar na cama; apenas os sapatos vestiam meu corpo. de seu próprio, às vezes desviando-se num re- na realidade os seres que a atormentavam no Então eu cansei. cuo, noutras sentindo a ponta a queimar-lhe sonho ruim. Antes que a filha despertasse por Na verdade, não: eu não cansei, apenas a pele. Uma faísca lhe percorria o corpo em completo, Gomes afastou-se, mas não saiu dali. quis. O corpo dela, igual ao meu, os seios duros ondas, de baixo para cima: tal uma canela- Ximena esfregou o rosto com o dorso das mãos, que eu descobria como se me olhasse no espe- -de-ema que se incendeia depressa ao menor o movimento rearranjou tronco e cintura na lho, os cabelos compridos que eu segurava, pu- contato com a fagulha, encadeavam-se no ju- rede e deixou entrever uma parte interdita das xava como tantas vezes os homens tinham puxa- ízo até então confuso do velho, após o primei- coxas. As mãos de Gomes crisparam-se, e as do os meus, me domando — é claro que Jéssica ro calafrio provocado pela imagem obscena unhas afundaram-se nas palmas. Ximena boce- não me cansava. Mas eu transbordava; e ainda que acabava sempre por se oferecer, razões jou longamente e disse “pai?”. Como o vagalhão precisava de mais. que legitimassem num contorcionismo obtu- que sucede as tempestades na cabeceira do rio Precisava e pedi. A cama foi o precário si- so o gesto que ele até aquele momento fora e que leva troncos, pedras, homens e animais, o lêncio antes da tempestade, que se quebra como forte o suficiente para abortar — ou temente desejo inelutável arrastaria o corpo do homem um vaso que cai no chão. Eu implorei. Jéssica a Deus, como no mais das vezes pensava, na à deflagração da enorme energia acumulada, e não olhou meus olhos: ela se deitou em meus lá- intenção de obter, sem que Vitória imaginas- por isso quando a voz da filha, mole, rouca e in- bios, se criou em meus seios, correu por minhas se, seu perdão. Os lábios entreabertos da fi- fantil por conta do sono interrompido atingiu- coxas. Quero seu pau dentro de mim. lha, com alguma saliva empoçada nos cantos, -lhe os ouvidos, Gomes num movimento ines- Eu disse Quero seu pau dentro de mim; ensaiaram palavras incompreensíveis, vindas perado com o punho fechado atingiu-a entre pedi, implorei. Jéssica foi o corpo sobre meu cor- de algum sonho. Gomes deteve a respiração, o queixo e a boca, fazendo voar do lábio ferido po, atou meus braços pelos pulsos, com a corda assustado com o que lhe pareceu um gemi- pelos dentes um filete de sangue que manchou dos dedos, me crucificou sobre o lençol branco. do. Provocação? O mecanismo desesperado a rede e o piso. Ao chegar ao quarto, após ouvir E, com suas pernas, ela afastou mais as minhas, da busca por uma justificativa externa para o choro da filha misturado ao retinir do ferro já afastadas, e rudemente entrou em mim. a vontade que o lacerava agia. Convinha não contra a rocha que incomodava o vilarejo, Vi- As janelas estavam abertas. As luzes berra- lutar contra algo que lhe parecia irrefreável, tória nem reparou na falta do marido, que se vam, todas acesas. Doze andares abaixo, a cida- contra o que já sentia que o derrotava, e quem afastava da casa em passos pesados. de era uma enorme mitocôndria, em um escam- sabe esforçar-se para construir de ar e sonho bo quase mudo de glicose e energia; o mundo era naquele quarto outro alvo para sua volúpia. uma célula que eu não entenderia: nunca teria Imaginou-se cruzando a soleira da casa das imaginado o pau de Jéssica me preenchendo e putas, em que tantas vezes estivera e onde abrindo daquele jeito. era capaz, por pouco tempo, com brutalidade Ela entrava e saía de dentro de mim, me controlada e algumas moedas, de afastar do provocava. Eu pedia que fosse mais fundo, mais pensamento Vitória e Ximena, que o impor- forte, mais rápido. tunavam pelo que lhe despertavam de opos- O orgasmo que eu quis foi ela quem teve, Alexandre Marques to: uma, asco, a outra, calores. Nos cantos da cedo demais. Um rio de porra esguichou sobre Rodrigues sala de alguns abajures e pouca luz que via em mim e depois desaguou na cama, escorreu junto sua imaginação, Gomes então inseria as mu- Estevão Azevedo com seu sono. Jéssica dormiu satisfeita, o corpo Nasceu em 1979, em lheres com quem costumava deitar-se, mas Nasceu em Natal (RN) e vive em São Paulo abandonado na indigência típica dos mortos. Santos (SP), onde vive. É com algumas melhorias — elas, como eram, (SP). Formado em jornalismo e letras, é editor Eu vi seu peito encher e murchar, sua res- formado em Psicologia, em transparências, rugas e cicatrizes, não lhe e escritor. Publicou seus primeiros livros de piração cada vez mais pausada; apaguei as luzes, pela Universidade Católica serviam naquele instante, pois lutavam con- contos, O terceiro dia (2004) e O som da nada não fechei as cortinas. de Santos. Mantém desde tra adversária real e que, se um dia também acontecendo (2005), pelo coletivo Edições Eu vi os seios, firmes, seu corpo na hori- 2010 o blog Ler até acabaria por ganhar cicatrizes e rugas, na K. Seu primeiro romance, Nunca o nome do zontal, não se desmancharem com a gravidade. Escrever, no qual registra penumbra daquele quarto tinha só encantos. menino (Terceiro Nome, 2008), foi finalista do Continuaram armados, desafiadores, prontos impressões sobre livros Imaginou as pernas daquelas. Equilibravam- Prêmio São Paulo de Literatura em 2009. Tem como dois soldados da guarda suíça, ou inglesa. (www.amarquesrodrigues. -se sobre sapatos de salto e, por falta de jeito, contos publicados em revistas e na antologia Eu vi, juntei minha roupa, espalhada pelo com). O conto Seios isto lhes davam curvaturas irreais de pom- de escritores brasileiros Popcorn unterm chão. pertence à coletânea ba e aumentava-lhes as bundas e os peitos. Zuckerhut – Junge brasilianische Literatur, Quando suas pálpebras piscaram, fechadas, Parafilias, vencedora do Perfumes adocicados, diluídos em generosas publicada na Alemanha pela Verlag Klaus quando Jéssica começou a sonhar, eu fui embora. Prêmio Sesc de Literatura doses de álcool para multiplicar os frascos ou Wagenbach. Tempo de espalhar pedras será Não quis ficar. Para que eu perguntaria, na ma- 2014 e a ser lançada em o odor do talco que se pegava às línguas, se publicado em breve pela Cosac Naify. nhã seguinte, com o que ela tinha sonhado. breve pela Record. 172 • AGOSTO_ 2014 30 KENNETH REXROTH

Tradução e seleção: THE SILVER SWAN, II (EPITÁFIO) NOITE EM JANEIRO

André Caramuru Aubert As the full moon rises Tarde, depois de caminhar por horas na praia, The swan sings Uma tempestade chega, com vento, chuva e relâmpagos In the sleep m poeta intenso e de múltiplas e On the lake of the mind Na minha frente, na escrivaninha paradoxais facetas. Assim pode- Estão máquina de escrever e papel, ria ser descrito, em poucas pala- O CISNE PRATEADO, II (EPITÁFIO) E meu belo e denteado Uvras, o norte-americano Kenneth Cristal, maior que um crânio, Rexroth (1905-1982). Católico, comunista, Ao nascer da lua cheia E além, a janela negra, anarquista, pacifista e budista; pintor, en- O cisne canta Emoldurando o úmido e aglomerado saísta, colunista, professor, dramaturgo; Dentro do sono Pontilhado da cidade casamenteiro e mulherengo; conhecedor No lago da mente Na noite, no vale profundo de jazz e de literatura clássica gre- E se espalhando pelas montanhas ao longe ga, chinesa e japonesa; tradutor, agitador ••• Sob a chuva, e além, pequenos riachos relampejantes cultural e, finalmente, padrinho generoso de Escorrem céu abaixo, novos poetas. Mas, enquanto poeta, Rexroth NIGHT BELOW ZERO E todo o ar que atravessa nem sempre tem recebido o reconhecimento Regado com a fecundidade que merece. Vejamos, por exemplo, sua re- 3 AM, the night is absolutely still; Do tempo e de promessas lação com os Beats: Rexroth já era um poeta Snow squeals beneath my skis, plumes on the turns. Da Terra e de sua rotina consagrado quando fez o papel de anfitrião I stop at the canyon’s edge, stand looking out Anual e diária na emblemática noite de 7 de outubro de Over the Great Valley, over the millions — Nos anos e nos dias 1955, que é tida como a do nascimento ofi- In bed, drunk, loving, tending mills, furnaces, Imóvel; e uma vez mais minhas horas cial do Movimento, na qual Allen Ginsberg Alone, wakeful, as the world rolls in chaos. Se movem, através do inverno recitou o poema Howl. Mas, na memória co- The quarter moon rises in the black heavens — Escalando em direção ao sol. letiva, Ginsberg acabou visto como o grande Over the sharp constellations of the cities poeta que chegava, e Rexroth como o mestre The cold lies, crystalline and silent, ••• de cerimônias que também era poeta. Nada Locked between the mountains. mais injusto, até mesmo pelo tamanho da ONLY YEARS influência que ele exerceu sobre os Beats. NOITE ABAIXO DE ZERO Tudo colocado na balança, o que Ken- I come back to the cottage in neth Rexroth nos legou é, sem dúvida, uma 3 da manhã, a noite absolutamente parada; Santa Monica canyon where das mais intensas e transcendentes experi- A neve escorre sob meus esquis, espirra em arco quando faço curvas. Andrée and I were poor and ências que um poeta poderia proporcionar. Eu paro na extremidade do cânion e fico olhando Happy together. Sometimes we Ele foi um dos grandes de seu tempo em lín- Para o Grande Vale, para os milhões — Were hungry and stole vegetables gua inglesa, e deve figurar, sem favor algum, Na cama, bêbados, amando, indo para as fábricas, para as fornalhas, From the neighbor’s gardens. na mesma galeria em que estão William Car- Sozinhos, despertos, enquanto o mundo vai girando no caos. Sometimes we went out and gathered los Williams, W. H. Auden e T. S. Eliot. A lua em quarto crescente sobe pelo negro céu — Cigarette butts by flashlight. Rexroth gostava de mulheres (das pró- Por sobre as brilhantes constelações das cidades But we went swimming every day, prias, claro, mas não apenas), da natureza O frio repousa, cristalino e quieto, All year round. We had a dog (especialmente das montanhas), de filosofia Trancado entre as montanhas. Called Proclus, a vast yellow e da literatura clássica chinesa e japonesa Mongrel, and a white cat named (das quais foi um incansável tradutor), e ••• Cyprian. We had our first os poemas dele dos quais mais gosto refle- Joint art show, and they began tem esses interesses. Dentro da temática THE ADVANTAGES OF LEARNING To publish my poems in Paris. erótica e asiática, destacaria os poemas da We worked under the low umbrella persona inventada por ele, a jovem japone- I am a man with no ambitions Of the acacia in the dooryard. sa Marichiko, tão convincente que fez com And few friends, wholly incapable Now I get out of the car que mais de um crítico japonês acreditasse Of making a living, growing no And stand before the house in the dusk. que ela existia mesmo e tentasse localizá- Younger, fugitive from some just doom. The acacia blossoms powder the walk -la. Quanto à técnica, Rexroth, um filho do Lonely, ill-clothed, what does it matter? With little pills of gold wool. modernismo, foi um constante e eclético At midnight I make myself a jug The odor is drowsy and thick experimentador que usou métricas e ritmos Of hot white wine and cardamon seeds. In the early evening. com extrema liberdade. Por vezes suas ima- In a torn grey robe and old beret, The tree has grown twice as high gens soam obscuras, mas, especialmente I sit in the cold writing poems, As the roof. Inside, an old man nas composições da maturidade, a clareza Drawing nudes on the crooked margins, And woman sit in the lamplight. sobressai. Kenneth Rexroth permanece iné- Copulating with sixteen year old I go back and drive away dito no Brasil, exceto por uma ou outra tra- Nymphomaniacs of my imagination. To Malibu Beach and sit dução em blogs e sites de poesia. With a grey-haired childhood friend and Aqui nesta pequena coletânea há um AS VANTAGENS DE APRENDER Watch the full moon rise over the pouco de tudo, incluindo obras da juven- Long rollers wrinkling the dark bay. tude, da maturidade e uma amostra dos Eu sou um homem sem ambições poemas de Marichiko. E começamos por E poucos amigos, totalmente incapaz ALGUNS ANOS seu bem asiático epitáfio (ele usou o se- De ganhar para viver, ficando gundo poema de The Silver Swan, conjunto Mais velho, fugitivo de alguma maldição. Eu volto ao chalé no de trabalhos escritos em Kyoto entre 1974 Sozinho, malvestido, o que isso importa? Cânion de Santa Mônica onde e 1978). Rexroth está enterrado no sul da À meia-noite eu preparo para mim uma caneca Andrée e eu éramos pobres e Califórnia, num platô sobre o Pacífico. As De vinho branco quente com sementes de cardamomo. Felizes juntos. Às vezes nós outras sepulturas ali estão todas voltadas Vestido com um robe cinzento rasgado e uma velha boina, Tínhamos fome e roubávamos verduras para a terra; a dele, para o mar, para o oes- Eu me sento no frio e escrevo poemas, Dos jardins vizinhos, te, para a China e o Japão. Desenhando nus nas margens deformadas, Às vezes nós saíamos e procurávamos Copulando com imaginárias garotas Bitucas de cigarro com a lanterna. Ninfomaníacas de dezesseis anos. Mas nós íamos nadar todos os dias, O ano inteiro. Nós tínhamos um cão ••• Chamado Proclus, um grande e amarelo Mestiço, e um gato branco chamado JANUARY NIGHT Cyprian. Nós fizemos nossa primeira Mostra de arte juntos, e eles começaram Late, after walking for hours on the beach, A publicar meus poemas em Paris. A storm rises, with wind, rain and lightning Nós trabalhávamos sob o baixo guarda-chuva Formado pela acácia no jardim da frente. In front of me on my desk Agora eu saio do carro Is typewriter and paper, E paro defronte a casa no lusco-fusco. And my beautiful jagged A florada da acácia polvilha o caminho Crystal, larger than a skull, Com pequenas pílulas de lã dourada. And beyond, the black window, O aroma é denso e pesado Framing the wet and swarming No início da noite. Pointillism of the city A árvore está com o dobro da altura In the night, the valley Do teto. Dentro, um velho And spread on the distant hills E uma mulher estão sentados sob a luz do lampião. Under the rain, and beyond, Eu entro no carro e vou embora Thin rivulets of lightning Para a praia de Malibu e me sento Trickling down the sky, Com um amigo de infância que tem os cabelos grisalhos e And all the intervening Acompanho a lua cheia nascendo por sobre Air wet with the fecundity As longas e enrugadas ondas da baía escura. Of time and the promises Of the earth and its routine Annual and diurnal Yearly and daily changeless Motion; and once more my hours Turn in the through of winter And climb towards the sun. leia mais poemas no www.rascunho.com.br

UEM SOMOS CONTATO ASSINATURA DO JORNAL IMPRESSO CARTAS

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UEM SOMOS CONTATO ASSINATURA DO JORNAL IMPRESSO CARTAS

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sujeito oculto : : rogério pereira Três picolés para Deus

UEM SOMOS CONTATO ASSINATURA DO JORNAL IMPRESSO CARTAS

EDIÇÕES ANTERIORES COLUNISTAS DOM CASMURRO ENSAIOS E RESENHAS ENTREVISTAS PAIOL LITERÁRIO PRATELEIRA NOTÍCIAS OTRO OJO ILUSTRAÇÃO: Hallina Beltrão

mãe sempre nos quis ao forma de oração. São meia dúzia de na quentura entre as pernas. Roubei para o alto em busca de alguma sal- lado de Deus. Ao pai, era fotografias da Primeira Comunhão. uvas e morangos para comer. Tinha vação. Na parede, um Cristo imóvel indiferente — no bar do Tínhamos não mais que dez anos de fome. Seria pecado saciar a fome na a sangrar mãos e pés. Nos outros AGábito, copo tremulando idade. Certamente entre as imagens fartura alheia? Cobicei (e como) a bancos, meus colegas de martírio entre os dedos sujos de terra. Nada já amareladas esteja a única fotogra- bola de couro do menino rico que nos sacolejavam os lábios com timidez. de rezas, orações silenciosas, peni- fia com toda a nossa família reunida. ignorava. Mas como me saíam tortos Éramos um bando de meninos as- tências. O estrondo seco das bolas de Deus, às vezes, faz milagres. O pai e os chutes no frasco vazio de álcool. sustados. Baixei a cabeça e balbuciei bilhar na mesa empenada lhe basta- a mãe a ladear a prole de três filhos. Uma bola em forma cilíndrica. Era meus mais terríveis pecados: matei va para a sobrevivência. À mãe, eram Esta família já não existe: minha branco como uma bola, mas desajei- passarinhos, padre; ofendi a mãe indispensáveis o afago divino, a pre- irmã morreu há treze anos; a mãe, há tado como minha infância. Teria de em pensamento; tive preguiça de ir sença silenciosa do desconhecido. O poucos meses. Meu irmão está por sentar no banco de madeira escura à escola; fingi dores de cabeça para arado invisível pronto para fecundar aí. O pai, feito um fantasma, rara- da igreja São Judas Tadeu e abrir a não vir ao catecismo; xinguei meu ir- o terreiro onde brincávamos alheios mente cruza o portão da minha casa. boca para escancarar as falhas que mão com todas as minhas palavras. às suas aspirações divinas. Naquele tempo, nossa família ca- me afastavam do Paraíso. “Contem Pecados inconfessáveis, releguei ao Pequenos, mirrados, fomos to- bia em 150 centímetros quadrados de tudo ao padre.” Sim, mãe, contare- esquecimento. Ninguém precisava dos os três filhos à igreja. Ficava em papel. Hoje, basta uma fotografia 3x4. mos tudo. Esvaziaremos nossos em- saber que eu era um devasso no calor frente à escola de madeira. A igreja Às vésperas da missa, o pavor. bornais pestilentos. do beliche e um ladrão de frutas aos também era de madeira. Uma fagulha Estávamos prontos para a Primeira Sentei-me na borda do banco. dez anos de idade. e nossa salvação arderia em chamas. Comunhão. Antes da cerimônia que Diante de mim, um homem. O pa- Ao final da lista de atrocidades Alfabetizados, iríamos à catequese. nos levaria ao encontro de Deus, pre- vor aumentou muito quando meu contra Deus, o padre olhou-me com Embrenhar-se pela caligrafia de Deus cisávamos purificar a alma, arrancar corpo de criança aterrissou na terra ternura. Sorriu os dentes amarelos. em busca da salvação eterna. No iní- a craca do corpo pecador. No sába- desconhecida. Benzi-me com lenti- Afagou novamente meus cabelos. E cio, todos os sábados à tarde. Depois, do, os padres nos esperariam para a dão. O sinal da cruz a rasgar o meu deu-me a pena de algumas orações. com a proximidade da Primeira Co- confissão. Nunca gostei de conversar peito. Tentava agarrar-me aos pon- Coisa simples. Fez o sinal da cruz so- munhão, também aos domingos após com estranhos. E naquela tarde dos teiros do relógio, arrastá-los em di- bre o meu corpo. E disse “Vai, meu a missa. A barriga roncava de fome meus dez anos, teria de confessar os reção contrária. Queria ser Deus e filho. Fique com Deus”. O hálito do às bordas do horário do almoço — o segredos mais terríveis, derramar congelar o tempo, voltar para o lugar padre barbudo impregnou-me para melhor da semana, quando tínhamos sobre a batina minhas faltas, meus de onde nunca deveria ter saído. Le- sempre. Nunca mais me abandonou. direito a frango assado e refrigeran- deslizes, minhas desgraças. “Contem vantei a cabeça e encontrei um velho Sim, a eternidade existe. Ajoelhei- te. A mãe esperava ansiosa a chegada tudo ao padre”, disse-nos uma mãe de barbas longuíssimas. Hoje, tenho -me e rezei quase todas as orações do domingo para encontrar-se com feliz com seus pequenos homens certeza de que era um personagem impostas na confissão. Deus na confissão, na comunhão, no quase santos. Tudo o quê, meu Deus? do Senhor dos Anéis. Viera de outro “Contaram tudo ao padre?”. ato de contrição — rimas pobres de Sim, eu pecara. Pecara muito mundo para purificar-me. Um filtro Sim, mãe, contamos tudo. Naquele uma vida miserável. Nós, pela garrafa naquela breve estada sobre a terra, na cozinha a tornar a água menos almoço, além de frango e refrigeran- de coca-cola, o gás a estourar no céu desde que fora arrancado do útero da imunda. Colocou a mão em minha te, teríamos direito a três picolés. da boca, o arroto inevitável. mãe pelas mãos de uma parteira cha- cabeça, afagou meus cabelos e, en- A placidez da foto dissimula mada Elza. Mas tinha dúvidas dos tão, abriu a boca. Nunca mais es- o meu terror. Eu e o irmão frente a meus delitos diante do Criador. Seria queci o hálito quente, o cheiro ruim, NOTA frente. Os rostos próximos, respira- pecado o toque delicado no sexo di- de algo amanhecido, esquecido em Crônica publicada originalmente no ção hesitante. As mãos unidas em minuto? Era tão bom sentir os dedos algum lugar. Gaguejei com os olhos Vida Breve (www.vidabreve.com.br)