A parte do diabo na ficção de : um estudo de mídia e moralidades pós-modernas

Cláudio Cardoso de Paiva∗ Universidade Federal da Paraíba

Índice Resumo 1 Introdução ...... 1 Num contexto intermidiático em que a tele- 2 A faculdade de julgar e as artes visão fabrica o acontecimento, influindo nas tecnológicas ...... 2 interações entre os atores sociais e o espaço 3 Vilões atraentes, heróis enfadonhos 3 público, notamos que prevalece uma mora- 4 Ambigüidades na e pa- lidade narcísica e excludente, sem os víncu- radoxos na vida real ...... 3 los de sociabilidade básica para o princípio 5 Figuras da sedução e figuras do comunitário. Desde a telenovela Vale Tudo poder ...... 4 (1988/89) e (1991/92) 6 A videoliteratura do século XX .. 4 até (2004), Gilberto Braga nos 7 Clichês e arquétipos: regressão e oferece algumas imagens, que nos permitem afirmação do sentido ...... 4 perceber as desordens na formação do cará- 8 A ironia da comunicação drama- ter narcisista na sociedade de consumo. O túrgica ...... 5 trabalho de Braga se presta a um exame dos 9 Bondade e maldade na televisão estilos de ética e comportamento num qua- dos pobres ...... 5 dro social em que as relaçõeshumanas são 10 Privilégios e limitações dos auto- definidas pelo desejo de fama, dinheiro, po- res de ficção ...... 6 der e prestígio social. Apreciando a ficção te- 11 O acontecimento real e a memória levisiva como produto de comunicação e ex- da telenovela ...... 6 pressão de uma arte tecnológica, exploramos 12 Uma antropológica do cotidiano . 7 aqui as dimensões da sua forma e sentido, a 13 Vilões simpáticos e heróis moralistas 8 partir das contribuições de alguns autores de 14 Personas malvadas, personas sexuais 8 olho nas interfaces da ética e processos mi- 15 Estratégia de choque e astúcia dos diáticos. malfeitores ...... 9 16 A guisa de conclusão ...... 10 1 Introdução 17 Referências Bibliográficas .... 10 No longo itinerário na história da cultura o ∗ [email protected] tema das paixões humanas tem sido a ma- 2 Cláudio Cardoso de Paiva téria prima dos grandes pensadores, drama- crítica de Tom Wolfe ou Gore Vidal, onde os turgos e escritores. O problema do mal, signos de decadência se instalam no corpo como potencia desestabilizadora, por exem- das tramas narrativas, como uma representa- plo, tem ocupado autores da estatura de Sha- ção perplexa das destemperanças humanas. kespeare, Dante, Dostoiévsky, Nietzsche e Os vilões criados por Braga, como Odete Goethe. Cada um deles, para sustentar a Roithman (Beatriz Segall, em Vale Tudo), sua argumentação teve de confrontar forças Felipe Barreto (Antonio Fagundes, em O poderosas, tratando da morte, da culpa, de Dono do Mundo) ou Laura (Claudia Abreu, Deus ou do diabo. A sua permanência na em Celebridade) personificam os sentimen- memória da humanidade se deve ao fato de tos de egoísmo, ódio, cobiça e vingança, a ter elaborado imagens profundas do ser hu- parte má dos afetos humanos. Da mesma mano em suas dimensões mais complexas e forma, encontramos encarnações do espírito paradoxais. E uma das virtudes dos grandes de honestidade, justiça, solidariedade, como narradores reside na perícia de levar os lei- Rachel (, em Vale Tudo), tores a formarem uma consciência ética nor- Beija Flor (Angelo Antonio, em O Dono do teando as suas questões morais, a conduta e Mundo) ou o bombeiro Vladimir (Farias em o estilo de existência, estabelecendo parâme- Celebridade), encarnando as figuras do bem tros de orientação no mundo a partir de prin- e os princípios de honra e dignidade. cípios éticos norteados pelo senso de digni- dade, justiça e solidariedade. Mas para isso, 2 A faculdade de julgar e as necessita de ações e pensamentos afirmativos diante das figuras do mal. artes tecnológicas A teledramaturgia de Gilberto Braga, A estética de massa das , como desde o sucesso de Dancing Days (1978) até uma expressão similar da grande arte narra- a narrativa de Celebridade (2004), à primeira tiva, tem o poder de ativar a percepção para vista aparece como uma disposição para pin- os diferentes níveis de consciência crítica. A tar um retrato social do Brasil, tingindo em ética das imagens, no concerto dos audiovi- cores fortes e glamourosas o estilo de vida suais, pode estimular ou inibir estilos de con- dos milionários e com ironia o alpinismo so- duta. O filósofo brasileiro Brissac Peixoto cial dos pobres. Mas ao mesmo tempo ali (1996), tratando do assunto, mostra a potên- se instalam representações surpreendentes e cia do imaginário vigilante do cinema, orien- os pobres, de cordeiros podem se transfor- tando estilos de gosto e formas de conduta, mar em lobos, propiciando reviravoltas sur- configurações ético-estéticas no cenário ur- preendentes e sinalizando uma outra “moral banizado das grandes cidades. A abstração da história”. de Peixoto nos incita a repensar a relação en- A imaginação narrativa de Gilberto Braga, tre a arte dos novelistas e os procedimentos de maneira semelhante à imaginação literá- éticos na dita pós-modernidade, em que se ria de Balzac, propõe representações realis- desenham vários estilos de moralidade, abar- tas das paixões humanas, como o amor, a ira, cando uma diversidade de valores nem sem- a compaixão, o desprezo, a miséria e a feli- pre em harmonia. cidade. Mas também é similar à imaginação

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Cumpre decifrar em que medida o nove- 3 Vilões atraentes, heróis lista moraliza o espaço da ficção, prescre- enfadonhos vendo modelos de conduta e de comporta- mento; convém entender como o autor dis- Num ambiente cultural cujas instituições se ponibiliza os valores éticos em sua narrativa, apresentam fragilizadas e desprovidas de demarcando um espaço de liberdade para o fundamentos éticos, os atores sociais adotam telespectador no exercício da faculdade de atitudes justiceiras e ações punitivas, logo julgar. impera o sentimento de vingança. Esta an- Convém fazer uso de uma “imaginação vi- gulação do real minado pelas paixões mais gilante” examinando como se fazem as in- indômitas dos seres humanos aparece em vá- corporações do bem e do mal pelos persona- rios matizes na ficção de Braga. A televisão gens de ficção: convém lembrar, os “olimpi- tem sido usada principalmente para a diver- anos”, como os designa Edgar Morin, são re- são e o entretenimento, mas distraidamente, ceptáculos das nossas mais complexas emo- o telespectador pode se orientar eticamente e ções. esteticamente. Degustando as imagens, sons É tentador refletir como atuam simbolica- e textos que se oferecem ao seu campo de mente no campo das nossas escolhas e op- percepção; experimenta a sensação de se ver ções, mas convém apreciar também como nas imagens do bom, do belo e do justo, mas escapamos de sua área de contágio, como também a estranheza de se ver refletido nas mantemos uma relação de crítica e diálogo imagens e discursos sórdidos, mesquinhos, para com as suas “representações” e “simu- miseráveis. O estranhamento gerado pelas lacros”. Em todo o caso, as imagens tecnoló- imagens televisivas cria sempre uma expec- gicas desfrutam do prestígio de nos informar tativa; leva os televidentes a formarem ima- sobre as alteridades que nos rodeiam; têm o gens diferentes de si e do mundo à sua volta. estranho dom de epifanizar as figuras do mal. A licença mitopoética da telenovela ao invés Numa cultura em que o ethos narcisista se de apenas gerar alienação, pode instigar a ex- mostra dominante, o mal parece estar sempre periência de expansão de uma “imaginação fora de nós: o narcisismo social não deixa criativa e vigilante”, nos termos empregados os indivíduos perceberem as suas pequenas pelo filósofo-poeta Gaston Bachelard. malvadezas e mesquinharias. Logo, é opor- tuno que a parte frágil e malvada dos seres 4 Ambigüidades na telenovela e humanos seja dramatizada na televisão. O paradoxos na vida real valor ético-estético da arte de Braga consiste em exibir o lado sublime e o lado monstru- Na telenovela Vale Tudo (1988) encontramos oso dos indivíduos, gerando assim reações as narrativas do cotidiano infestado pelos al- imprevistas a partir das identificações mais pinistas sociais, em que reina a obsessão pelo improváveis. poder e a avidez pelas riquezas materiais como signos de . Por vezes, surge como a representação naturalizada de uma sociedade excludente, cujos princípios éticos e morais parecem se legitimar por meio de www.bocc.ubi.pt 4 Cláudio Cardoso de Paiva uma espécie de “darwinismo social”. Uma dos folhetins literários do século XIX. Isto experiência em que, como no mundo sel- se evidencia pela descrição dos hábitos, cos- vagem, vence sempre o mais forte, anunci- tumes e comportamento dos indivíduos, em ando os signos da barbárie e da decadên- busca de um lugar de destaque na pirâmide cia. Outras vezes, mostra-se como uma nar- social, mas também pelo cuidado na cons- rativa apolínea (contida, conformista e bem trução dos tipos psicológicos, na caracteriza- comportada), mas permanentemente assal- ção dos personagens, nas formas da moral e tada pelo espírito dionisíaco (intempestivo, da conduta. Vale Tudo, O Dono do Mundo mutante, desestabilizador). e Celebridade são narrativas que se cons- troem mirando as mitologias do consumo, a 5 Figuras da sedução e figuras ética do individualismo e o culto da persona- lidade. Há instantes em que o autor desva- do poder loriza os referenciais éticos e estéticos dessa O Dono do Mundo (1990) mostra as tiranias ambiência social, há outros, porém, que os da intimidade burguesa, a competição e as intensifica, reificando valores regressivos. formas de exercício do poder pelo ângulo da Logo, é importante notar, os signos que es- dominação sexual. E mostra também o modo truturam as narrativas de Braga são investi- como se desencadeiam os vários tipos de ati- dos em valores apologéticos no que respeita tudes simbólicas do telespectador, desde o à visão de felicidade oferecida pelo estilo de perdão, o esquecimento e a indiferença até vida dos ricos, que por sua vez incorpora os a indignação e a vingança. desejos que norteiam o imaginário coletivo. O individualismo, o narcisismo e arro- Mas percebemos que as versões do sonho de gância das elites se mostram aqui hipertro- felicidade ou o seu reverso variam nas di- fiados, retratando uma sociedade burguesa, versas culturas híbridas do planeta. Ou seja, cuja ética se despedaça no abismo profundo platéias diferentes vão assistir a Vale Tudo, entre as classes sociais. A ficção mostra o O Dono do Mundo e Celebridade diferente- mal-estar social irradiado numa cultura re- mente. gida por princípios éticos altamente exclu- dentes. E seguindo este fio, coloca em cena 7 Clichês e arquétipos: regressão os atores sociais, enquanto rivais, que bus- e afirmação do sentido cam aprimorar a sua lógica do controle e da dominação para impor a sua verdade narcí- Gilberto Braga como a maioria dos novelis- sica sobre . tas mostra as imagens simuladas de um país sonhando com os cartões postais do Rio, S. 6 A videoliteratura do século XX Paulo, Paris e Nova Iorque e que se difundem junto às diversas culturas locais, como um O suposto “retrato” da sociedade brasileira, tipo de padronização do imaginário e estilo desde a segunda metade do século XX, exi- de vida. Mas mostra também o seu reverso, bido no vídeo para um público de milhões as saídas e oportunidades, nas brechas do sis- de pessoas, tem uma significação próxima tema; os personagens da ficção asseguram

www.bocc.ubi.pt Um estudo de mídia e moralidades pós-modernas 5 momentos preciosos de investimento afetivo cional de Braga amplia e intensifica a ideo- para o público diante da TV. O caráter de logia individualista e excludente. Todavia, o interculturalidade das telenovelas, exibidas autor tem a seu favor o fato de representar o internacionalmente e, portanto destinadas a lado obscuro do social, sem querer consertá- um público com referências ético-estéticas lo. Então as novelas de Braga - em meio diversificadas, instiga a apreensão de novas às contradições do esquema midiático – têm percepções cognitivas; eis então uma de suas essa qualidade de exibir as vísceras da soci- dimensões afirmativas. edade, mostrando a vontade de poder a ser- Observamos que é possível reconhecer viço dos objetivos mais reles e mesquinhos. um perfil da sociedade brasileira do século É interessante observar como isso ocorre in- XX, através da ficção das telenovelas, assim diferentemente de classe, gênero, etnia, etc. como foi possível reconhecer o estilo da so- Mas também é instigante perceber o modo ciedade do século XIX, na leitura dos roman- como representa o extremismo dos persona- ces daquela época. gens desviantes, e suas obsessões narcísicas Guardadas as devidas proporções, como em função do poder, sexo, e dinheiro. as obras realistas de sina- lizaram representações éticas e estéticas no 9 Bondade e maldade na cotidiano do século XIX, encontramos hoje, nas telenovelas, uma descrição hiperrealista televisão dos pobres do cotidiano, cujos simulacros indicam os A audiência assiste fascinada a projeção do novos estilos de ética e sociabilidade, e as mundo dos ricos e deseja participar do estilo formas de sua dissolução. Tudo isso, é irri- de vida simulado pela ficção. Mas Braga os gado pela imaginação criativa do cinema que faz perceber quando os valores capitais pro- fertiliza em grande parte a obra de Gilberto jetados na narrativa são regressivos. Na te- Braga. lenovela O Dono do Mundo criou as opor- tunidades para a desforra e a subversão dos 8 A ironia da comunicação valores por parte dos pobres e surpreendeu- dramatúrgica se com as reações católicas e conservadoras. Na ficção da TV, é interessante notar que As telenovelas de Gilberto Braga trazem quando os pobres se tornam malditos, pertur- consigo uma certa ambigüidade, pois ali se bando a realidade simbólica dos dominado- conjugam a sátira dos costumes e a apolo- res, a audiência se vinga ignorando a ficção; gia das convenções. Exibe uma projeção do as classes populares preferem se ver no ví- mundo dos abastados em suas estratégias de deo narcisicamente e representadas de forma dominação, sem hesitar em destruir os seme- justa, preferem ser recompensadas pela re- lhantes para atingir os objetivos. Mas as ima- presentação de um moralismo pautado pela gens em série fazem também a denúncia da honestidade. Contudo o seu retrato precisa irresponsabilidade das classes hegemônicas, ser apimentado: o público não gosta de se por meio do riso e da ironia, e por outro lado, ver refletido de maneira monótona, passiva através de uma razão cínica, o universo fic- e conformada; a malícia e a malandragem, www.bocc.ubi.pt 6 Cláudio Cardoso de Paiva como um componente ético da vida cultural diações feitas pelos telespectadores durante brasileira, exigem também a sua participa- a recepção da ficção televisiva seriada. ção, caso contrário, o público ignora total- O mundo dos heróis, vilões e celebrida- mente o canto da “sereia eletrônica”. A este des de Gilberto Braga se irradia fortemente respeito encontramos um artigo do psicana- sobre o social, mas o novelista não detém lista Ab’Sáber (FSP: 2003), intitulado “o dia o controle da sua obra. O processo da te- que o Brasil esqueceu”, num relato sobre a lenovela é permanentemente montado, des- resistência em massa à ética das imagens de montado e remontado em seus diversos mo- O Dono do Mundo. Sáber percebe uma ati- mentos de produção, circulação e consumo. tude reativa da parte dos televidentes recu- É surpreendente como o público escapa do sando apreciar a representação das formas do campo de influência das tramas ficcionais e mal-estar social no espelho televisivo de Gil- contempla a telenovela, como farsa inteli- berto Braga. gente e ironia da comunicação, servindo-se dela como objeto de seu deleite e apreciação 10 Privilégios e limitações dos crítica. Mas essa operação se faz à base de permutas, acordos simbólicos e negociações. autores de ficção Durante o processo de criação da telenovela, Enfatizamos o trabalho do autor da ficção te- desde a elaboração do texto, passando pela levisiva seriada; mas fica difícil se falar em direção e interpretação dos atores até a re- “telenovela de autor” como se fala em “ci- cepção do produto final, a obra sofre tantas nema de autor”, devido à natureza de obra intervenções e modificações que se torna di- aberta da ficção televisiva. O discurso do au- fícil avaliar a competência comunicativa no tor sofre modificações sistemáticas em seu trabalho do autor. Entretanto, o as teleno- longo trajeto, desde o computador do no- velas de Braga reservam sempre uma parte velista até a sua recepção na sala de jantar de surpresa ao telespectador criando modos dos telespectadores. Uma referência básica inéditos de arrebatamento e catarse junto às para uma leitura e interpretação da teleno- massas. vela é o discurso do novelista, mas isto pre- cisa ser contextualizado pela observação do 11 O acontecimento real e a ambiente social em que a telenovela é reali- memória da telenovela zada e da maneira como essa arte é assimi- lada pelos telespectadores. A vontade do au- Relembramos a singularidade da ficção bra- tor de estabelecer um quadro de valores fun- sileira, no que concerne à maneira como se cionando como uma espécie de mímese do aproxima dos debates nacionais travados no social, no Brasil, pode ser desvirtuada inde- espaço público do país. À época da “aber- pendentemente das suas intenções. Nessa di- tura política” (1979/80), a telenovela Dan- reção, o trabalho Vivendo com a telenovela cing Days (1978/79) focalizou o retorno dos (Lopes, Borelli; Resende: 2002) traz ele- exilados políticos e os temas tabus, refor- mentos valiosos para se compreender as me- çando simbolicamente o coro da abertura. No fim dos anos 80, discutia-se no Brasil a

www.bocc.ubi.pt Um estudo de mídia e moralidades pós-modernas 7 consolidação das instituições civis, a luta das Vale Tudo (1988/89), Gilberto Braga retoma- minorias éticas e sexuais, a conquista da ci- ria, em 1992, o seu projeto de descrever a dadania e o problema de corrupção dos exe- ética no Brasil, através da ficção de O Dono cutivos e homens políticos. A concentração do Mundo (1991/92). O Brasil respirava, na de riquezas, o desequilíbrio socioeconômico, época, uma atmosfera que parecia de reno- as condições de vida nas grandes cidades e o vação. Fernando Collor de Melo iniciava problema da ética no Brasil serviram de te- uma gestão política importante, pois era o mas para a telenovela Vale Tudo, exibida em primeiro Presidente da República eleito pelo 1987/88. sufrágio universal, após uma campanha elei- Nos primeiros anos do século XXI, paira toral conduzida sob a falácia da moralização no ar um clima de esperança e expecta- dos negócios públicos. Entretanto, pouco a tiva diante de uma nova gestão governamen- pouco, a imprensa começava a noticiar que tal, “representando” as camadas populares. atos de corrupção se multiplicavam no país. Ao mesmo tempo, o Brasil experimenta um No Brasil dos anos 90, a concorrência da clima de quase guerra civil e violência ur- mídia estimulou uma espécie de “transparên- bana generalizada; impera a anomia e o de- cia da comunicação”. As instituições civis sequilíbrio social, assim como o despedaça- pareciam ter-se tornado mais fortes, as leis mento dos agenciamentos éticos. Num jogo respeitadas. Pela primeira vez os políticos social em que as regras não são transparen- profissionais, os homens de negócios, as eli- tes, reinam as vontades individuais, estimu- tes brasileiras seriam culpabilizados e puni- ladas pelo complexo midiático-publicitário, dos pelos seus crimes. Algo parecia ter mu- que estabelece a projeção e a visibilidade na dado no domínio da ética no Brasil dos anos mídia como um critério de distinção e cre- 90 e o egoísmo parecia ceder lugar ao al- dibilidade pública. No auge da euforia em truísmo. Mas o caminho para a incorporação torno dos ícones criados pela indústria cul- dos valores éticos mostra-se uma empresa di- tural, a temática da fama se inscreve na tele- fícil: um exemplo disso é o culto de atitudes, novela Celebridade, como derrisão dos indi- como a chamada “Lei de Gerson”. víduos que apostam todas as fichas no sonho Gerson, uma estrela do futebol, desde a de se tornar famosos. Braga revisita o tema vitória do Brasil na Copa do Mundo de da vontade de sucesso e a inveja como motor 1970, por ocasião de uma publicidade so- para a exacerbação do ódio e do sentimento bre cigarros, fizera uma declaração infeliz: de vingança. “Faça como eu, leve vantagem você tam- bém”! Deste modo, o jogador se tornaria, 12 Uma antropológica do o símbolo da falta de ética e solidariedade no Brasil, e além do mais, criaria no ima- cotidiano ginário coletivo um signo muito impopular, Treze anos após a febre musical dos em- designado pela “lei do Gerson”. balos de sábado à noite na telenovela Dan- A telenovela Vale Tudo, realizada por Gil- cing Days (1978/79) e quatro anos após o berto Braga tenta discutir a ética do brasi- retrato excêntrico do Brasil, na telenovela leiro, propondo a questão seguinte: “Vale à pena ser honesto no país das desigualdades?” www.bocc.ubi.pt 8 Cláudio Cardoso de Paiva

A telenovela O Dono do Mundo através da Ramos), na telenovela Torre de Babel (Síl- estética da ficção, colocou em prática, a seu vio de Abreu, 1998/99), arquiteta a explosão modo, a chamada “Lei de Gerson”. de um shopping center, motivado pela vin- A ficção de Vale Tudo se construiu mi- gança. Igualmente, em O Dono do Mundo é xando imagens acústicas e visuais, e a sono- a vingança que leva a heroína Márcia (Malu ridade do cotidiano nacional explodiu na mú- Mader) a destruir o vilão Felipe (Antonio Fa- sica “Brasil” (com letra de Cazuza, na voz de gundes). Será a vingança igualmente o que Gal Costa), expondo o mar de lama da vida vai levar Laura (Cláudia Abreu), em Cele- política e social: Braga assim infiltrou um bridade, a tentar destruir a sua “rival” Maria dos mais poderosos ícones da carnavalização Clara (). no coração da indústria cultural. Observamos que os humilhados e desgra- Vale Tudo é uma narrativa que se move çados pela ação do destino ou pela maldade pelo espírito da ironia e do deboche; atra- dos poderosos absorvem o espírito individu- vés de uma licença poética facultada ao seu alista, adquirem uma consciência ressentida caráter de ficcionalidade que desvela o sen- do mundo e a partir de um plano pessoal par- tido das tramas sociais, familiares e políticas, tem para destruir os seus algozes. Num texto em suas modulações mais decadentes. Não é afinado, “O Brasil pela telenovela” (1998), de se estranhar que tenha chocado a sensi- o filósofo Renato Janine Ribeiro, critica o bilidade dos imigrantes latinos nos Estados expediente da vingança como leitmotiv das Unidos. narrativas ficcionais. Mostra, analisando o texto de , como o social inteiro 13 Vilões simpáticos e heróis é irradiado por este tipo de sentimento que contribui para a destruição da Ética e para a moralistas derrapagem no terreno das solidariedades. É importante observar em O Dono do Mundo, o sentimento de vingança que move 14 Personas malvadas, personas a personagem de Márcia (interpretada pela sexuais atriz Malu Mader); isto é, uma repetição dos dramas de ficção popular, desde os folhetins Genericamente, os vilões criados por Braga literários. Afinal é o desejo de vingança que são investidos numa aura em que se mistu- dirige o Conde de Monte Cristo (no livro ram glamour, arrogância e perversidade; a homônimo de Alexandre Dumas, 1844), as- personagem da megera Odete Roithman (Be- sim como é a vontade de vingança que move atriz Segall), em Vale Tudo interpretou uma a personagem de Aurélia, no romance Se- empresária rica, movida pelo animus do- nhora (José de Alencar, 1875). Do mesmo minante, de temperamento agressivo e com modo, o ímpeto de se vingar daqueles que vontade ilimitada de poder e dominação. o enganaram, anima o personagem de Fla- Odete Roithman permanece no imaginário mel (Edson Celulari), na ficção televisiva de popular tanto pelo seu estilo sofisticado e Fera Ferida (, 1993/94). De pela elegância quanto pela maneira como en- forma similar, o personagem de José (Tony carna o lado cruel e desumano das elites.

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Mas, a sua figura se fez marcar principal- ços psicológicos” que retratam os contornos mente pelo aspecto andrógeno, da fêmea se- éticos dos indivíduos do mundo real. xualizada, que não hesita em destruir aque- Gilberto Braga surpreenderia ainda o pú- les que se interpõem no seu caminho. Odete blico, nas cenas finais da telenovela Vale Roithman era odiosa e interessante, assim Tudo. O novelista, de modo irônico, propõe como Maria de Fátima (Glória Pires) era di- uma questão provocante, nos levando a pen- abólica e atraente e no sentido oposto, a per- sar: “será que o crime compensa?” sonagem de Rachel (Regina Duarte), correta, No campo das identidades, talvez Braga metódica e honesta, aparecia como monó- seja mais avançado, invertendo as normas tona e cansativa. éticas e sociais transcendendo os valores Em O Dono do Mundo (1991/92), assis- conformistas e repressivos: os malandros timos a reprodução de uma ética estética, (César e Maria de Fátima) se reúnem com em que retornam à cena os vilões simpáti- um príncipe, no estrangeiro, formando um cos contra os heróis enfadonhos e moralis- triângulo amoroso inédito nas telenovelas da tas. Felipe é apresentado como sexy e sedu- Rede Globo. tor (não por acaso, o seu personagem é inter- E num outro registro, numa espécie de pretado pelo galã Antonio Fagundes). mundo alegórico que celebra o triunfo do Relembramos em tempo, que ainda em O Tartufo, o personagem Marco Aurélio (Re- Dono do Mundo, a cafetina Olga (Fernanda ginaldo Farias), em fuga do Brasil num heli- Montenegro) possui charme e encantamento, cóptero, carregando consigo o dinheiro rou- é maquiavélica, mas irradia uma aura de se- bado, vira-se para a câmara e apresenta um dução. Enquanto isso, o personagem de “punho cerrado” para o público. Em vez dos Beija Flor (Ângelo Antonio), incorpora um finais felizes e das carícias que massageiam personagem honesto, mas piegas, numa si- o ego dos telespectadores, a telenovela nos tuação desconfortável e sem brilho no con- permitiria uma leitura crítica. Percebemos texto - elaborado por Braga - dos “malandros que o autor apelou então para uma experi- e heróis”, como caracteriza Roberto da Matta ência de choque ao segmento passivo e con- (1983). formista da sociedade. Mas essa é apenas uma maneira possível de se ler as ficções de 15 Estratégia de choque e Braga, plenas de ambigüidades. A telenovela O Dono do Mundo, pri- astúcia dos malfeitores mando pelo esmero estético e tecnológico, O personagem de Rachel, a mãe honesta e apresenta, na vinheta da abertura, uma mon- laboriosa da telenovela Vale Tudo apareceu tagem do filme O Grande Ditador (Chaplin, no vídeo como uma figura entediante. Por 1940), em que o personagem de Carlitos, outro lado, a arquivilã Odete Roithman, as- satiriza Hitler driblando um balão como se sim como a pérfida Maria de Fátima e o ma- controlasse o mundo. Esta figuração atua landro César (Ricelli) ficaram na memória da como um tipo de “imagem-epígrafe” enun- telenovela como personagens curiosos; estes ciando a ética-estética que rege o estilo da dados são interessantes pois revelam os “tra- ficção de Gilberto Braga: a fascinação pelo www.bocc.ubi.pt 10 Cláudio Cardoso de Paiva poder, que ambiguamente, outra vez, aparece 16 A guisa de conclusão representada pela figura de um tirano. Num balanço da ficção de Braga nos per- A difusão desta telenovela teve que en- guntamos como a estética da televisão po- frentar a resistência do público, devido ao deria contemplar uma ética da sociedade fato do personagem Márcia (Malu Mader), brasileira. Cumpre definir um olhar mais ter cedido aos avanços do vilão Felipe (An- abrangente sobre as formas de subjetividade, tonio Fagundes) durante a sua (quase) noite com todas as idiossincrasias e complexida- de núpcias com o ingênuo Tadeu. A emis- des, constituintes da dimensão ética na soci- sora não se dera conta de que a virgindade edade brasileira, que não se reduz à vaidade era ainda um tabu para faixas importantes da das elites egoístas, às trapaças dos alpinistas opinião pública, mesmo nos anos 90. sociais nem a uma representação dos pobres Em contrapartida, o público gostou das de maneira enfadonha. cenas em que a atriz Fernanda Montene- gro, no papel da cafetina elegante, exerce o seu ofício, reunindo moças jovens e boni- 17 Referências Bibliográficas tas com velhos ricos e carentes. Contudo, AB’SÁBER, A.M. “O dia que o Brasil este mesmo público desprezará a sede de esqueceu”. In: Folha de S. Paulo, vingança de Márcia, contra Felipe, enquanto 05.10.2003. os personagens moralistas como Guilherme, apelidado de Beija Flor (encarnado pelo ator BADIOU, A. Ética: Ensaios sobre a cons- Ângelo Antonio) se tornariam bizarros e in- ciência do mal. Rio: Relume Dumará, diferentes na apreciação do público. 1995. É surpreendente o falso desmascaramento de Felipe, que mostra o seu verdadeiro rosto, BARROS FILHO, Clóvis. Ética na Comuni- no último capítulo, persistindo em suas apos- cação da Informação ao Receptor. SP: tas excêntricas e perversas cumprindo a sur- Moderna, 1995. presa no final da trama. Isto remete ao perso- BUCCI, E. Ética e Jornalismo. SP: Loyola. nagem de um filme proibido pela censura mi- litar, nos anos 70, Laranja Mecânica (Stan- COELHO, M. C. A experiência da fama: In- ley Kubric, 1973), que não se deixa controlar dividualismo e comunicação de massa. pelos dispositivos do sistema e pisca o olho FGV. para a platéia na última cena, como quem reafirma a sua natureza selvagem. Gilberto COSTA, A; SIMÕES, I.F; KEHL, M.R. Um Braga, de modo semelhante, não se deixa in- país no ar, História da TV Brasileira em timidar pelo moralismo dos telespectadores 3 canais. SP: Brasiliense/FUNARTE, e preserva o protagonista maldito de O Dono 1986. do Mundo, que se mantém perverso, egoísta DOSTOIÉVSKY, F. Crime e Castigo. Mar- e jogador. tin Claret, 2004; ECO, U. O superhomem de massa. S.Paulo: Perspectiva, 1991.

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