A Parte Do Diabo Na Ficção De Gilberto Braga
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A parte do diabo na ficção de Gilberto Braga: um estudo de mídia e moralidades pós-modernas Cláudio Cardoso de Paiva∗ Universidade Federal da Paraíba Índice Resumo 1 Introdução ............. 1 Num contexto intermidiático em que a tele- 2 A faculdade de julgar e as artes visão fabrica o acontecimento, influindo nas tecnológicas ............ 2 interações entre os atores sociais e o espaço 3 Vilões atraentes, heróis enfadonhos 3 público, notamos que prevalece uma mora- 4 Ambigüidades na telenovela e pa- lidade narcísica e excludente, sem os víncu- radoxos na vida real ........ 3 los de sociabilidade básica para o princípio 5 Figuras da sedução e figuras do comunitário. Desde a telenovela Vale Tudo poder ............... 4 (1988/89) e O Dono do Mundo (1991/92) 6 A videoliteratura do século XX .. 4 até Celebridade (2004), Gilberto Braga nos 7 Clichês e arquétipos: regressão e oferece algumas imagens, que nos permitem afirmação do sentido ....... 4 perceber as desordens na formação do cará- 8 A ironia da comunicação drama- ter narcisista na sociedade de consumo. O túrgica ............... 5 trabalho de Braga se presta a um exame dos 9 Bondade e maldade na televisão estilos de ética e comportamento num qua- dos pobres ............. 5 dro social em que as relaçõeshumanas são 10 Privilégios e limitações dos auto- definidas pelo desejo de fama, dinheiro, po- res de ficção ............ 6 der e prestígio social. Apreciando a ficção te- 11 O acontecimento real e a memória levisiva como produto de comunicação e ex- da telenovela ........... 6 pressão de uma arte tecnológica, exploramos 12 Uma antropológica do cotidiano . 7 aqui as dimensões da sua forma e sentido, a 13 Vilões simpáticos e heróis moralistas 8 partir das contribuições de alguns autores de 14 Personas malvadas, personas sexuais 8 olho nas interfaces da ética e processos mi- 15 Estratégia de choque e astúcia dos diáticos. malfeitores ............. 9 16 A guisa de conclusão ....... 10 1 Introdução 17 Referências Bibliográficas .... 10 No longo itinerário na história da cultura o ∗ [email protected] tema das paixões humanas tem sido a ma- 2 Cláudio Cardoso de Paiva téria prima dos grandes pensadores, drama- crítica de Tom Wolfe ou Gore Vidal, onde os turgos e escritores. O problema do mal, signos de decadência se instalam no corpo como potencia desestabilizadora, por exem- das tramas narrativas, como uma representa- plo, tem ocupado autores da estatura de Sha- ção perplexa das destemperanças humanas. kespeare, Dante, Dostoiévsky, Nietzsche e Os vilões criados por Braga, como Odete Goethe. Cada um deles, para sustentar a Roithman (Beatriz Segall, em Vale Tudo), sua argumentação teve de confrontar forças Felipe Barreto (Antonio Fagundes, em O poderosas, tratando da morte, da culpa, de Dono do Mundo) ou Laura (Claudia Abreu, Deus ou do diabo. A sua permanência na em Celebridade) personificam os sentimen- memória da humanidade se deve ao fato de tos de egoísmo, ódio, cobiça e vingança, a ter elaborado imagens profundas do ser hu- parte má dos afetos humanos. Da mesma mano em suas dimensões mais complexas e forma, encontramos encarnações do espírito paradoxais. E uma das virtudes dos grandes de honestidade, justiça, solidariedade, como narradores reside na perícia de levar os lei- Rachel (Regina Duarte, em Vale Tudo), tores a formarem uma consciência ética nor- Beija Flor (Angelo Antonio, em O Dono do teando as suas questões morais, a conduta e Mundo) ou o bombeiro Vladimir (Farias em o estilo de existência, estabelecendo parâme- Celebridade), encarnando as figuras do bem tros de orientação no mundo a partir de prin- e os princípios de honra e dignidade. cípios éticos norteados pelo senso de digni- dade, justiça e solidariedade. Mas para isso, 2 A faculdade de julgar e as necessita de ações e pensamentos afirmativos diante das figuras do mal. artes tecnológicas A teledramaturgia de Gilberto Braga, A estética de massa das telenovelas, como desde o sucesso de Dancing Days (1978) até uma expressão similar da grande arte narra- a narrativa de Celebridade (2004), à primeira tiva, tem o poder de ativar a percepção para vista aparece como uma disposição para pin- os diferentes níveis de consciência crítica. A tar um retrato social do Brasil, tingindo em ética das imagens, no concerto dos audiovi- cores fortes e glamourosas o estilo de vida suais, pode estimular ou inibir estilos de con- dos milionários e com ironia o alpinismo so- duta. O filósofo brasileiro Brissac Peixoto cial dos pobres. Mas ao mesmo tempo ali (1996), tratando do assunto, mostra a potên- se instalam representações surpreendentes e cia do imaginário vigilante do cinema, orien- os pobres, de cordeiros podem se transfor- tando estilos de gosto e formas de conduta, mar em lobos, propiciando reviravoltas sur- configurações ético-estéticas no cenário ur- preendentes e sinalizando uma outra “moral banizado das grandes cidades. A abstração da história”. de Peixoto nos incita a repensar a relação en- A imaginação narrativa de Gilberto Braga, tre a arte dos novelistas e os procedimentos de maneira semelhante à imaginação literá- éticos na dita pós-modernidade, em que se ria de Balzac, propõe representações realis- desenham vários estilos de moralidade, abar- tas das paixões humanas, como o amor, a ira, cando uma diversidade de valores nem sem- a compaixão, o desprezo, a miséria e a feli- pre em harmonia. cidade. Mas também é similar à imaginação www.bocc.ubi.pt Um estudo de mídia e moralidades pós-modernas 3 Cumpre decifrar em que medida o nove- 3 Vilões atraentes, heróis lista moraliza o espaço da ficção, prescre- enfadonhos vendo modelos de conduta e de comporta- mento; convém entender como o autor dis- Num ambiente cultural cujas instituições se ponibiliza os valores éticos em sua narrativa, apresentam fragilizadas e desprovidas de demarcando um espaço de liberdade para o fundamentos éticos, os atores sociais adotam telespectador no exercício da faculdade de atitudes justiceiras e ações punitivas, logo julgar. impera o sentimento de vingança. Esta an- Convém fazer uso de uma “imaginação vi- gulação do real minado pelas paixões mais gilante” examinando como se fazem as in- indômitas dos seres humanos aparece em vá- corporações do bem e do mal pelos persona- rios matizes na ficção de Braga. A televisão gens de ficção: convém lembrar, os “olimpi- tem sido usada principalmente para a diver- anos”, como os designa Edgar Morin, são re- são e o entretenimento, mas distraidamente, ceptáculos das nossas mais complexas emo- o telespectador pode se orientar eticamente e ções. esteticamente. Degustando as imagens, sons É tentador refletir como atuam simbolica- e textos que se oferecem ao seu campo de mente no campo das nossas escolhas e op- percepção; experimenta a sensação de se ver ções, mas convém apreciar também como nas imagens do bom, do belo e do justo, mas escapamos de sua área de contágio, como também a estranheza de se ver refletido nas mantemos uma relação de crítica e diálogo imagens e discursos sórdidos, mesquinhos, para com as suas “representações” e “simu- miseráveis. O estranhamento gerado pelas lacros”. Em todo o caso, as imagens tecnoló- imagens televisivas cria sempre uma expec- gicas desfrutam do prestígio de nos informar tativa; leva os televidentes a formarem ima- sobre as alteridades que nos rodeiam; têm o gens diferentes de si e do mundo à sua volta. estranho dom de epifanizar as figuras do mal. A licença mitopoética da telenovela ao invés Numa cultura em que o ethos narcisista se de apenas gerar alienação, pode instigar a ex- mostra dominante, o mal parece estar sempre periência de expansão de uma “imaginação fora de nós: o narcisismo social não deixa criativa e vigilante”, nos termos empregados os indivíduos perceberem as suas pequenas pelo filósofo-poeta Gaston Bachelard. malvadezas e mesquinharias. Logo, é opor- tuno que a parte frágil e malvada dos seres 4 Ambigüidades na telenovela e humanos seja dramatizada na televisão. O paradoxos na vida real valor ético-estético da arte de Braga consiste em exibir o lado sublime e o lado monstru- Na telenovela Vale Tudo (1988) encontramos oso dos indivíduos, gerando assim reações as narrativas do cotidiano infestado pelos al- imprevistas a partir das identificações mais pinistas sociais, em que reina a obsessão pelo improváveis. poder e a avidez pelas riquezas materiais como signos de felicidade. Por vezes, surge como a representação naturalizada de uma sociedade excludente, cujos princípios éticos e morais parecem se legitimar por meio de www.bocc.ubi.pt 4 Cláudio Cardoso de Paiva uma espécie de “darwinismo social”. Uma dos folhetins literários do século XIX. Isto experiência em que, como no mundo sel- se evidencia pela descrição dos hábitos, cos- vagem, vence sempre o mais forte, anunci- tumes e comportamento dos indivíduos, em ando os signos da barbárie e da decadên- busca de um lugar de destaque na pirâmide cia. Outras vezes, mostra-se como uma nar- social, mas também pelo cuidado na cons- rativa apolínea (contida, conformista e bem trução dos tipos psicológicos, na caracteriza- comportada), mas permanentemente assal- ção dos personagens, nas formas da moral e tada pelo espírito dionisíaco (intempestivo, da conduta. Vale Tudo, O Dono do Mundo mutante, desestabilizador). e Celebridade são narrativas que se cons- troem mirando as mitologias do consumo, a 5 Figuras da sedução e figuras ética do individualismo e o culto da persona- lidade. Há instantes em que o autor desva- do poder loriza os referenciais éticos e estéticos dessa O Dono do Mundo (1990) mostra as tiranias ambiência social, há outros, porém, que os da intimidade burguesa, a competição e as intensifica, reificando valores regressivos. formas de exercício do poder pelo ângulo da Logo, é importante notar, os signos que es- dominação sexual. E mostra também o modo truturam as narrativas de Braga são investi- como se desencadeiam os vários tipos de ati- dos em valores apologéticos no que respeita tudes simbólicas do telespectador, desde o à visão de felicidade oferecida pelo estilo de perdão, o esquecimento e a indiferença até vida dos ricos, que por sua vez incorpora os a indignação e a vingança.