UNIVERSIDADE FEDERAL DE CAMPINA GRANDE

CENTRO DE HUMANIDADES

UNIDADE ACADÊMICA DE LETRAS

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LINGUAGEM E ENSINO

DA LITERATURA PARA O CINEMA: TRADUÇÃO INTERSEMIÓTICA E CONSTRUÇÃO NARRATIVA DE DON QUIJOTE DE LA MANCHA () PARA DONKEY XOTE (JOSÉ POZO)

Amanda da Silva Prata

Campina Grande, PB

2017

Amanda da Silva Prata

DA LITERATURA PARA O CINEMA: TRADUÇÃO INTERSEMIÓTICA E CONSTRUÇÃO NARRATIVA DE DON QUIJOTE DE LA MANCHA (MIGUEL DE CERVANTES) PARA DONKEY XOTE (JOSÉ POZO)

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Linguagem e Ensino, da Universidade Federal de Campina Grande.

Orientadora: Dra. Sinara de Oliveira Branco (UFCG).

2017

FICHA CATALOGRÁFICA ELABORADA PELA BIBLIOTECA CENTRAL DA UFCG

P912d Prata, Amanda da Silva. Da literatura para o cinema: tradução intersemiótica e construção narrativa de Don Quijote de La Mancha (Miguel de Cervantes) para Donkey Xote (José Pozo) / Amanda da Silva Prata. – Campina Grande, 2017. 137 f. : il. color.

Dissertação (Mestrado em Linguagem e Ensino) – Universidade Federal de Campina Grande, Centro de Humanidades, 2017. "Orientação: Profa. Dra. Sinara de Oliveira Branco”. Referências.

1. 1. Literatura Comparada. 2. Tradução Intersemiótica. 3. Adaptação – Literatura e Cinema. 4. Instâncias Narrativas. I. Branco, Sinara de Oliveira. II. Título.

CDU 82.091(043)

AGRADECIMENTOS

A Deus, por Sua presença constante em cada dia, pela vida, pela saúde e por ajudar- me a seguir em frente, mesmo nos momentos mais difíceis.

Aos meus avós, Josefa, Ernesto e Aristides (in memoriam), por torcerem sempre por mim, e a vovó Duca, pela acolhida sempre tão calorosa.

Aos meus pais, Ademir e Socorro, que ao presentear-me com um quadro negro, na infância, despertaram em mim o encanto pela docência.

Aos meus irmãos, Alan e Ayanne, por não esconderem o orgulho que sentem a cada conquista minha.

A minha sobrinha Ariela, por trazer um colorido novo aos meus dias.

Ao meu namorado, Tony, por mostrar-me que não importa o ritmo da caminhada, desde que se siga sempre em frente.

A Maeli, por sua amizade e apoio.

A Marcelo Medeiros, pelo incentivo, pelas leituras, pelos livros emprestados, e por ouvir-me em todos os momentos.

A Wanderlan Alves e Márcia Nascimento, pelo incentivo desde os primeiros momentos do mestrado e pelas leituras reflexivas.

À professora orientadora, Sinara Branco, por despertar meu interesse pelos Estudos da Tradução e da Adaptação, e pela paciência e disponibilidade para orientar-me ao longo desta pesquisa. Desde que participei de um grupo de trabalho seu, durante o

SELIMEL de 2011, desejei que algum dia fosse minha orientadora; o destino fez a sua parte. Obrigada por tornar os obstáculos menores! Quando crescer, quero ser tão competente quanto você!

Aos examinadores, Prof.ª. Márcia Tavares e Prof. Júlio César, pela disponibilidade para participar da banca e pelas inestimáveis contribuições oferecidas à pesquisa.

Aos professores do POSLE UFCG, Marco Antônio, Washington e Edmilson, pelas contribuições oferecidas à pesquisa, e, especialmente, à professora Josilene Pinheiro, por sua dedicação e preocupação constantes.

Aos colegas do mestrado, por todos os momentos compartilhados.

¡MUCHAS GRACIAS!

Pensamentos valem e vivem pela observação exata ou nova, pela reflexão aguda ou profunda; não menos querem a originalidade, a simplicidade e a graça do dizer.

Machado de Assis

RESUMO

Este estudo busca comparar a narrativa da adaptação fílmica Donkey Xote (POZO, 2007) à narrativa do segundo volume da obra original, Don Quijote de la Mancha (CERVANTES, 2004), através da observação das principais instâncias narrativas analisadas em ambas as obras, considerando a tradução intersemiótica na adaptação do texto literário para o cinema. O aporte teórico que respalda o estudo se baseia em estudos da tradução, através de autores como Oustinoff (2011), Eco (2007) Jakobson (2000), Peirce (2005) e Plaza (2010), dentre outros; também se apresentam reflexões acerca do processo de adaptação de texto literário para o meio cinematográfico, através, principalmente, das discussões de Hutcheon (2011) e Stam (2006; 2013); por fim, são discutidas questões referentes à construção narrativa, na literatura e no cinema, e ao narrador, por meio dos estudos de Genette [s.d.], Gaudreault e Jost (2009), e Reuter (2011), entre outros. Metodologicamente, esta investigação se insere no campo dos estudos descritivos, pois se busca observar o processo de transposição de uma obra literária para o cinema, com o objetivo de descrever as transformações realizadas na narrativa da obra original, que passa por um processo de tradução intersemiótica para dar origem ao filme. O produto do ato tradutório será analisado e interpretado, por isso, este é um estudo descritivo orientado ao produto, uma vez que não se observa o processo de tradução e sim o seu resultado. Este é, ainda, um estudo qualitativo, de cunho interpretativo (WILLIAMS e CHESTERMAN, 2002), pois busca descrever e comparar os dados obtidos, bem como interpretá-los. O corpus é composto por 25 (vinte e cinco) excertos da obra literária, Don Quijote de la Mancha (CERVANTES, 2004), e 62 (sessenta e duas) cenas da adaptação cinematográfica, Donkey Xote (POZO, 2007). Os resultados apontam que a adaptação não exclui a narrativa original, mas a atualiza e contribui para replicá-la, conferindo-lhe um outro aspecto, e, mesmo sendo uma recriação da narrativa literária, a animação não é uma obra inferior ou secundária, pois, como se observou, ela apresenta originalidade e, portanto, não é uma simples imitação, mas uma produção autônoma.

Palavras-chave: Adaptação. Tradução Intersemiótica. Literatura. Cinema. Instâncias Narrativas.

RESUMEN

Este estudio busca analizar la narrativa de la adaptación fílmica Donkey Xote (POZO, 2007), comparada a la narrativa del segundo volumen de la obra original, Don Quijote de la Mancha (CERVANTES, 2004), mediante la observación de las instancias narrativas analizadas en ambas obras, teniendo en cuenta la traducción intersemiótica en la adaptación del texto literario para el cine. El marco teórico que apoya el estudio se basa en los estudios de traducción, a través de autores como Oustinoff (2011), Eco (2007) Jakobson (2000), Peirce (2005) y Plaza (2010), entre otros; también se presentan reflexiones sobre el proceso de adaptación de texto literario para el medio cinematográfico, sobre todo a través de las discusiones de Hutcheon (2011) y Stam (2006; 2013); Por último, se discuten cuestiones referentes a la construcción narrativa, en la literatura y en el cine, y al narrador, a través de estudios de Genette [s. d.], Gaudreault y Jost (2009), y Reuter (2011), entre otros. Metodológicamente, este estudio se inserta en el campo de los estudios descriptivos, ya que trata de observar el proceso de ejecución de una obra literaria al cine, con el fin de describir los cambios realizados en la obra original, que pasa por un proceso de traducción intersemiótica para dar origen a la película. El producto del acto de traducción será analizado e interpretado, por lo que este estudio es descriptivo, orientado al producto, ya que no se observa el proceso de traducción, pero su resultado. Este es también un estudio cualitativo, de cuño interpretativo (WILLIAMS e CHESTERMAN, 2002), ya que trata de describir y comparar los datos e interpretarlos. El corpus consiste en veinticinco (25) extractos de la obra literaria, Don Quijote de la Mancha (CERVANTES, 2004) y sesenta y dos (62) escenas de la adaptación cinematográfica Donkey Xote (POZO, 2007). Los resultados señalan que la adaptación no excluye la narrativa original, sino la actualiza y contribuye para replicarla, confiriéndole un otro aspecto, y, aunque sea una adaptación de la narrativa literaria, la animación no es una obra inferior o secundaria, pues, como se ha observado, ella presenta su originalidad y, por lo tanto, no es una simple imitación, sino una producción autónoma.

Palabras clave: Adaptación. Traducción Intersemiótica. Literatura. Cine. Instancias Narrativas.

LISTA DE ILUSTRAÇÕES

Figura 1- Exemplo de Ícone ...... 24 Figura 2- Exemplo de Índice ...... 25 Figura 3- Exemplo de Símbolo ...... 26 Figura 4- Diálogo entre e Rucio ...... 37 Figura 5- Camadas da narratividade cinematográfica, diagrama baseado em Gaudreault, 1988 (citado por GAUDREAULT e JOST, 2009) ...... 54 Figura 6- Diagrama - Estudos da Tradução, baseado no Mapa de Holmes, 1988 (citado por CHESTERMAN, 2014) ...... 58 Figura 7- Leão em "O Rei Leão" (1994) e em "Donkey Xote" (2007) ...... 66 Figura 8- Burro em "" (2001) e em "Donkey Xote" (2007) ...... 67 Figura 9- Galinhas em "A Fuga das Galinhas” (2000) e em "Donkey Xote" (2007) ..... 67 Figura 10- Tela inicial do Bandicam ...... 69 Figura 11- Dom Quixote e os livros de cavalaria ...... 80 Figura 12- Rucio ...... 81 Figura 13- Início da narrativa em Donkey Xote (2007) ...... 81

Figura 14- Presença de Rucio na adaptação fílmica ...... 82 Figura 15- Sonho de Dom Quixote ...... 84 Figura 16- Diagrama: Instâncias Narrativas ...... 86 Figura 17- Relação explícita entre a adaptação e a obra original ...... 87 Figura 18- Dom Quixote ...... 90 Figura 19- Dulcineia de Toboso ...... 95 Figura 20- Beijo de Rucio ...... 95 Figura 21- Sancho Pança ...... 97 Figura 22- Bacharel Sansão Carrasco ...... 99 Figura 23- O bacharel, Dom Quixote e Sancho ...... 101 Figura 24- Sansão Carrasco e Avellaneda ...... 101 Figura 25- Dom Quixote e Sancho Pança no castelo dos duques ...... 103 Figura 26- Chegada de Altisidora ao castelo dos duques ...... 105 Figura 27- Saída do castelo ...... 105 Figura 28- La Mancha ou Barcelona? ...... 106 Figura 29- Duelo entre Dom Quixote e Dulcineia ...... 109 Figura 30- O final feliz de Dom Quixote e Dulcineia de Toboso ...... 109

Figura 31- Cena final de "Donkey Xote" ...... 110 Figura 32- Saída do povoado em que vivia Dom Quixote ...... 113 Figura 33- Percurso até El Toboso ...... 114 Figura 34- Saída do monte ...... 116 Figura 35- Chegada a El Toboso ...... 117 Figura 36- Saída de El Toboso ...... 119 Figura 37- Noite na alameda ...... 120 Figura 38- Encontro com a duquesa ...... 122 Figura 39- Ida ao castelo ...... 124 Figura 40- Sancho e a Ilha de Barataria ...... 125 Figura 41- Chegada a Barcelona ...... 127

SUMÁRIO

PRIMEIRAS CONSIDERAÇÕES 14 CAPÍTULO 1: A LITERATURA PARA O CINEMA: TRADUÇÃO, ADAPTAÇÃO E CONSTRUÇÃO NARRATIVA 18 1.1 ESTUDOS DA TRADUÇÃO 19 1.1.1 Tradução Intersemiótica 21 1.2 ADAPTAÇÃO 27 1.2.1 O conceito de dialogismo e as noções de intertextualidade e transtextualidade e suas contribuições para a análise de adaptações 30 1.2.2 Do texto verbal para a tela: literatura adaptada para o cinema 35 1.3 A CONSTRUÇÃO NARRATIVA E O NARRADOR 45 CAPÍTULO 2: SISTEMATIZAÇÃO DOS CAMINHOS PERCORRIDOS PARA A ANÀLISE DO CORPUS 57 2.1 CLASSIFICAÇÃO DA PESQUISA 57 2.2 O CORPUS DA PESQUISA 59 2.2.1 Don Quijote de la Mancha (2004) 60 2.2.2 Donkey Xote (2007) 63 2.3 O BANDICAM 68 2.4 PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS 69 2.5 CATEGORIAS DE ANÁLISE 70 CAPÍTULO 3: TRADUÇÃO INTERSEMIÓTICA, ADAPTAÇÃO E CONSTRUÇÃO NARRATIVA: DON QUIJOTE DE LA MANCHA (CERVANTES, 2004) E DONKEY XOTE (POZO, 2007) 71 3.1 AS INSTÂNCIAS NARRATIVAS EM DON QUIJOTE DE LA MANCHA (2004) E EM DONKEY XOTE (2007) 72 3.1.1 Don Quijote de la Mancha: narrador heterodiegético e perspectiva passando pelo narrador 72 3.1.2 Donkey Xote: narrador homodiegético e perpectiva passando pelo narrador 79 3.1.3 Don Quijote de la Mancha X Donkey Xote: Instâncias Narrativas 85 3.2 A RECONSTRUÇÃO DA NARRATIVA, EM DONKEY XOTE (2007), ATRAVÉS DO PONTO DE VISTA DE RUCIO 87 3.2.1 A personagem Dom Quixote 89 3.2.2 A personagem Dulcineia de Toboso 91 3.2.3 A personagem Sancho Pança 96

3.2.4 O bacharel Sansão Carrasco e Avellaneda 98 3.2.5 Os duques e Altisidora 102 3.2.6 Ida a Barcelona, duelo final e conclusão da narrativa 106 3.3 AS REPRESENTAÇÕES DE TEMPO E ESPAÇO NA OBRA LITERÁRIA, DON QUIJOTE DE LA MANCHA, E NA OBRA CINEMATOGRÁFICA, DONKEY XOTE. 111 3.3.1 Viagem a El Toboso 112 3.3.2 Percurso de El Toboso até o castelo dos duques 118 3.3.3 Sancho e a Ilha de Baratária 124 3.3.4 Chegada a Barcelona 127 3.4 AS IMPLICAÇÕES DESCRITAS NAS CATEGORIAS ANTERIORES ENVOLVENDO A CONSTRUÇÃO NARRATIVA DE OBRA LITERÁRIA PARA O CINEMA 129 CONSIDERAÇÕES FINAIS 133 REFERÊNCIAS 135

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PRIMEIRAS CONSIDERAÇÕES

Durante a graduação no Curso de Letras, habilitação em Língua Espanhola, tive maior contato com a obra Don Quijote de la Mancha, de Miguel de Cervantes, através de uma edição publicada em 20041. Essa primeira leitura foi decisiva, no sentido de que despertou meu interesse pela observação e estudo sobre a obra, o que resultou no meu trabalho de conclusão de curso da graduação, apresentando uma análise comparativa entre Don Quijote de la Mancha, de Miguel de Cervantes, e

Quincas Borba, de Machado de Assis.

Recentemente, vi o filme Donkey Xote (2007), do diretor José Pozo, uma adaptação de Don Quijote de la Mancha, e surgiu o interesse pela observação dos aspectos em comum, bem como dos aspectos divergentes, entre a obra literária e a adaptação fílmica. Esta é uma oportunidade de acompanhar como a obra de

Cervantes vem se atualizando com o passar do tempo em especial em outros meios semióticos, como o cinema, por exemplo, a partir de adaptações. A adaptação que escolhemos para comparar com a obra de Cervantes foi produzida em computação gráfica, na Espanha, no ano de 2007, e recebeu uma indicação ao Goya2 de melhor filme de animação.

O motivo para a escolha do filme Donkey Xote diz respeito ao fato de que, ao pesquisar sobre a adaptação cinematográfica, não encontrei – exceto por algumas sinopses e breves apreciações em sites3 que apresentam comentários relativos a

1 Edição comemorativa do IV Centenário de Don Quijote de la Mancha.

2 Disponível em: . Acesso em: 05 out. 2015. O Prêmio Goya é um busto, de bronze, do pintor Francisco de Goya. Este prêmio é outorgado, anualmente, aos melhores trabalhos e profissionais do cinema espanhol. 3http://www.cineclick.com.br/donkey-xote http://cinemacomrapadura.com.br/criticas/84240/donkey-xote-2007-84240/ http://g1.globo.com/Noticias/Cinema/0,,MUL1171025-7086,00- ANIMACAO+RECONTA+DOM+QUIXOTE+PELOS+OLHOS+DE+UM+BURRO.html http://www.adorocinema.com/filmes/filme-136449/ 15 obras cinematográficas – pesquisa que o colocasse em foco, comparando-o à obra

Don Quijote de La Mancha, que lhe serviu como inspiração, destacando a construção da narrativa em ambas as obras. Logo, esta análise comparativa entre as duas obras poderá apontar novas ideias de cunho teórico, contribuindo para os Estudos da

Tradução e da Adaptação.

Ao observar como é construída a obra Don Quijote de la Mancha, percebe-se que o narrador busca constantemente envolver o leitor e prendê-lo à narrativa, dialogando com ele e, por vezes, adiando o momento de expor alguma informação, o que provoca a curiosidade em relação ao que está por vir. Além disso, é um narrador brincalhão e cheio de ironia, que faz confusão e não sabe se suas fontes são verdadeiras.

No filme, quem ganha destaque como subnarrador verbal 4 é Rucio, o burro de

Sancho Pança, que quer ser um cavalo de porte. Rucio intervém na narrativa inicial, quando ocorre a apresentação da história de Dom Quixote, afirmando que está na hora de o mundo saber a verdade sobre o cavaleiro andante, demonstrando que ele tem condições de apresentar a história, pois estava lá quando tudo aconteceu. O burro afirma que tudo ocorreu há um tempo, depois que voltaram de sua primeira aventura:

Dom Quixote, Sancho Pança (seu fiel escudeiro), Rocinante (cavalo de Dom Quixote) e o próprio Rucio.

A adaptação se baseia na terceira saída de Dom Quixote e Sancho Pança, que ocorre no segundo volume do livro. As duas primeiras saídas da dupla ocorrem no primeiro volume da obra Don Quijote de la Mancha.

Considerando o destaque dado ao ponto de vista do burro Rucio, no filme, o que se propõe é uma análise das duas obras, comparativamente, a partir de seus narradores. Segundo Pedro (2009), a posição do narrador é classificada como foco narrativo, ponto de vista, visão, perspectiva, entre outras denominações. Porém, no

4 Instância responsável pela (sub)narrativa oral. 16 que se refere aos estudos literários, é mais utilizado o termo “foco narrativo”. Nos estudos sobre cinema, por sua vez, se estabeleceu o termo “ponto de vista”. Desse modo, serão utilizados nesta pesquisa os termos mais usuais: foco narrativo

(literatura) e ponto de vista (cinema).

Realizar uma análise entre a obra literária Don Quijote de la Mancha e o filme

Donkey Xote, visando observar como a narrativa original é traduzida para o cinema, implica observar como o foco narrativo é (re) construído no processo de adaptação da literatura para o cinema e que ponto de vista é apresentado ao espectador através da visão do burro, que se torna narrador do filme.

Levando em consideração o fato de que “quem narra, narra o que viu, o que viveu, o que testemunhou, mas também o que imaginou, o que sonhou, o que desejou” (CHIAPPINI, 1991, p. 6), é importante destacar o papel do narrador como aquele que conduz a observação do leitor ou espectador intencionalmente. Logo, o burro, como subnarrador verbal, conduz o espectador de acordo com a visão que apresenta sobre os fatos narrados, o que, provavelmente, ocasionará mudanças no modo como a obra Don Quijote de la Mancha é (re) construída durante o processo de adaptação para o cinema.

Tendo em vista as transformações que ocorrem na passagem da obra do texto para a tela, decorrentes da posição do narrador na obra original e na obra adaptada, o objetivo geral desta pesquisa é analisar a narrativa da adaptação fílmica Donkey Xote

(POZO, 2007), comparada à narrativa do segundo volume da obra original Don Quijote de la Mancha (CERVANTES, 2004), através da observação das instâncias narrativas analisadas em ambas as obras, considerando a tradução intersemiótica na adaptação da obra literária para o cinema.

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Os objetivos específicos são:

i) Comparar a construção narrativa na obra original e na obra adaptada

para descrever como a terceira saída de Dom Quixote, apresentada no

volume II da obra Don Quijote de la Mancha, é recontada no cinema,

através de uma instância narrativa diferente;

ii) Analisar o processo de tradução intersemiótica e as adaptações

realizadas na transposição da literatura para o cinema;

iii) Discutir as implicações das construções narrativas na adaptação fílmica

Donkey Xote, do diretor José Pozo, em relação à obra original Don

Quijote de la Mancha, de Cervantes, volume II.

Esta dissertação está estruturada do seguinte modo: o primeiro capítulo apresenta o aporte teórico que respalda a pesquisa, nele se discutem questões referentes à Tradução, mais detalhadamente à Tradução Intersemiótica, bem como se apresentam reflexões acerca do processo de adaptação que ocorre durante a passagem de uma obra do meio literário para o meio cinematográfico e, por fim, são discutidas questões referentes à construção narrativa e ao narrador. O segundo capítulo apresenta o percurso metodológico, nele se descreve a classificação da pesquisa desenvolvida; o corpus analisado; o software utilizado para a coleta de dados

(Bandicam); os procedimentos metodológicos e as categorias de análise. O terceiro capítulo relaciona a teoria discutida com os dados coletados, com a finalidade de alcançar os objetivos propostos. Por fim, considerando os resultados obtidos, são apresentadas as considerações finais. 18

CAPÍTULO 1: A LITERATURA PARA O CINEMA: TRADUÇÃO, ADAPTAÇÃO E CONSTRUÇÃO NARRATIVA

Este capítulo apresenta o aporte teórico que respalda a pesquisa. Ele se subdivide em três seções. São discutidas questões referentes aos Estudos da

Tradução, na primeira seção. Descrevem-se as categorias de tradução (JAKOBSON,

2000) e há uma subseção que trata especificamente da Tradução Intersemiótica, uma vez que esta pesquisa analisa a transposição de obra literária para o cinema, processo que ocorre através dessa categoria de tradução.

Na segunda seção, são apresentadas reflexões acerca do processo de adaptação que ocorre durante a passagem de uma obra do meio literário para o meio cinematográfico. Apresenta-se uma subseção que descreve o conceito de dialogismo e as noções de intertextualidade e transtextualidade e suas contribuições para que se possa entender a adaptação como obra autônoma, ainda que mantenha relação com uma obra anterior. Há também uma segunda subseção que trata das mudanças empreendidas no texto verbal transposto para o cinema, em que são apresentados exemplos retirados do corpus de pesquisa.

A terceira seção apresenta discussões referentes à construção narrativa e ao narrador. Observa-se que tanto a literatura quanto o cinema são meios dotados de capacidade narrativa, embora o cinema disponha de recursos audiovisuais enquanto a literatura conta com a linguagem verbal para a construção de suas narrativas. O narrador também é considerado nesta seção, uma vez que, tanto no meio literário quanto no meio cinematográfico, leitores e espectadores conhecem a história através da percepção de quem a narra.

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1.1 ESTUDOS DA TRADUÇÃO

A respeito da tradução, Oustinoff (2011) apresenta uma pergunta que o autor julga impossível de responder sem considerar a dimensão histórica: “o que é traduzir?”

(OUSTINOFF, 2011, p. 8). Na tentativa de encontrar respostas a este questionamento, o autor distingue períodos da história, levando em consideração a visão existente sobre o ato de traduzir em cada período. De acordo com Oustinoff (2011), em um primeiro período, que remonta à tradução de textos gregos por romanos ou de textos bíblicos para o latim e, em seguida, para as línguas vernaculares, e que vai até o

Renascimento, a busca era pela fidelidade ao original. Sobre esta preservação da essência do original, Eco (2007) alerta a respeito do fato de que “uma tradução não deve dizer mais que o original, ou seja, deve respeitar as reticências do texto fonte”

(ECO, 2007, p. 386), não cabendo à tradução trazer mais informações do que as apresentadas na obra fonte.

Segundo Oustinoff (2011), nos séculos XVII e XVIII foi possível observar um novo movimento no que diz respeito à história da tradução, partindo do princípio de que uma tradução só seria ‘bela’ se fosse infiel, “os tradutores passaram a dar as costas à letra do original como bem lhes aprouvesse” (OUSTINOFF, 2011, p.8). De acordo com o autor, na atualidade, tais transformações não são mais aceitas, pois seriam consideradas como adaptações.

Como aponta o autor, de fato não há como refletir a respeito da tradução sem levar em consideração sua dimensão histórica, uma vez que cada período histórico apresenta características próprias, que influenciam as mais diversas áreas de estudo.

A noção de “infidelidade” na tradução, neste contexto, passa a ser relativa e está relacionada a cada época, como afirma Oustinoff (2011) “[...] as fronteiras entre imitação, tradução e adaptação variam conforme as épocas. A ‘infidelidade’ é, então, uma noção absolutamente relativa” (OUSTINOFF, 2011, p. 39). 20

É importante destacar que, quando se discute sobre tradução, a primeira impressão que geralmente se tem é a de que se trata de uma operação em que se substituem palavras de uma língua por palavras de outra língua. A este respeito,

Meschonnic (2010) afirma que “traduzir não se limita a ser o instrumento de comunicação e de informação de uma língua a outra [...]” (MESCHONNIC, 2010, p.

22), ou seja, a tradução de uma língua a outra é apenas uma forma de tradução, também se traduz dentro de uma mesma língua, e de um sistema de signos verbais para um sistema de signos não verbais, e vice-versa. Logo, o ato de traduzir não se limita à passagem de uma língua a outra, sendo esta apenas uma forma de tradução possível. Jakobson (2000) distingue três categorias de tradução: intralingual, interlingual e intersemiótica. A primeira categoria trata de uma interpretação de signos verbais por meio de outros signos verbais, na mesma língua; a segunda diz respeito à interpretação de signos verbais por meio de outros signos verbais em outra língua; a terceira categoria de tradução consiste em uma interpretação de signos verbais por meio de signos não verbais e vice-versa.

A Tradução Intralingual, que ocorre dentro de uma mesma língua, se dá, por exemplo, quando explicamos o significado de uma palavra através de um sinônimo, logo, a criança que pergunta para a mãe o que significa determinada palavra espera que a resposta venha através de um termo mais conhecido, para que possa compreendê-la. Essa seria, para Jakobson (2000), uma forma de tradução. A

Tradução Intralingual também ocorre quando parafraseamos algo, uma vez que a paráfrase apresenta o texto de um novo modo.

A Tradução Interlingual ocorre entre línguas distintas, sendo chamada de

“tradução propriamente dita”. Quando passamos palavras, orações, textos de uma língua a outra estamos realizando uma Tradução Interlingual.

A terceira categoria de tradução apresentada por Jakobson é a da Tradução

Intersemiótica, que ocorre por meio da passagem de signos linguísticos para um sistema de signos não linguísticos, ou vice-versa. Considerando especificamente a 21 definição da Tradução Intersemiótica, Oustinoff (2011) ressalta que “essa definição soará abstrata”, pois as passagens de um sistema de signos a outro “parecerão bem distanciadas daquilo que geralmente se entende por tradução” (OUSTINOFF, 2011, p.

114). O autor não descarta o fato de que existem transposições possíveis no campo da arte, tais como as que permitem transformar um romance em filme, por exemplo, mas, o que se observa, neste caso, é muito mais adaptação que tradução.

Assim como Oustinoff (2011), Eco (2007) denomina como transmutações ou adaptações as obras adaptadas e acrescenta que não se trata de ceticismo o fato de não as chamar de tradução, mas de prudência terminológica ou uma forma de estabelecer distinções.

A seguir, são apresentadas algumas considerações acerca da Tradução

Intersemiótica.

1.1.1 Tradução Intersemiótica

A Tradução Intersemiótica estabelece uma relação explícita com a Semiótica, uma vez que também leva em consideração sistemas de signos verbais e não verbais, possibilitando que se possa interpretar signos verbais por meio de signos não verbais e vice-versa.

A Semiótica é a ciência que estuda os signos. Peirce, considerado o Pai da

Semiótica, pensou nessa ciência como um estudo da linguagem enquanto lógica.

Segundo Peirce (2005):

Um signo, ou Representâmen, é um Primeiro que se coloca numa relação triádica genuína tal como um Segundo, denominado seu Objeto, que é capaz de determinar um Terceiro, denominado seu Interpretante, que assume a mesma relação triádica com seu Objeto na qual ele próprio está em relação com o mesmo Objeto. (PEIRCE, 2005, p. 63)

Estabelece-se uma relação triádica porque o Signo, que é a representação de algum Objeto, mantém uma relação direta com esse Objeto, e o interpretante, que é o 22 que vem à mente do intérprete no momento em que tem contato com o Signo ou

Representâmen, permite, ou não, associar o Signo ao Objeto que ele representa.

Ou seja, uma foto ou uma pintura de alguém seria um Signo, ou

Representâmen, que estabelece uma relação direta com a pessoa fotografada ou pintada. A pessoa, nesse caso, seria o Objeto. Alguém que vê a foto ou a pintura irá ter alguma impressão sobre essa representação, que vai depender do fato de conhecer ou não o indivíduo representado. Essa impressão seria o interpretante, que é diferente de intérprete.

De acordo com o autor, os signos podem ser divididos em três categorias, que são: Ícone, Índice e Símbolo.

O Ícone mantém uma relação de primeiridade com o Objeto por ele retratado, ou seja, há uma relação direta entre a representação e o (a) representado. Um exemplo de ícone seria a foto de alguém.

O Índice não apresenta uma associação imediata com o Objeto que representa, portanto, verifica-se, entre o Índice e o Objeto uma relação de secundidade. Estabelece-se, então, um vínculo de contiguidade, que poderá apelar para o conhecimento prévio do indivíduo que entra em contato com determinado

Índice. O céu nublado seria um exemplo de Índice, que indica que poderá chover em breve, desde que o indivíduo que observa a cena tenha passado por uma experiência anterior que o tenha feito identificar esse fato; caso não, haverá a possibilidade de não identificar a relação entre o céu nublado e a proximidade da chuva.

O Símbolo estabelece um vínculo de terceiridade com o Objeto que representa e é instituído por meio de uma convenção. De acordo com Peirce (2005), as palavras, livros e outros signos convencionais são considerados Símbolos.

A Semiótica pode “ensinar a ler o mundo verbal em ligação com o mundo icônico ou não-verbal” (PIGNATARI, 2004, p. 20). Ou seja, a Semiótica, ao considerar todas as linguagens como produtoras de significado, e não apenas a linguagem verbal, mostra que é possível ler o mundo não somente através de signos verbais, 23 mas também através de signos não verbais e da união entre ambos os sistemas de signos. Portanto, é possível ler um filme, ler um quadro, uma dança, isto é, ler o não- verbal estabelecendo relações entre um código e outro (verbal e não-verbal).

Segundo Eco (2007), ocorre Tradução Intersemiótica quando se traduz entre sistemas semióticos diferentes. É o caso, por exemplo, da tradução de um romance para o cinema, de um filme para uma peça de teatro, de uma poesia para uma pintura, entre outros. Dentro da categoria Tradução Intersemiótica, Plaza (2010) distingue três tipos de tradução: Icônica, Indicial e Simbólica. De acordo com Pignatari (2004), esta classificação é inspirada na classificação de signos apresentada por Peirce em: Ícone,

Índice e Símbolo.

A Tradução Icônica, segundo Plaza (2010), “se pauta pelo princípio de similaridade de estrutura. Temos, assim, analogia entre os Objetos Imediatos, equivalências entre o igual e o parecido, que demonstram a vida cambiante da transformação sígnica” (PLAZA, 2010, p, 89-90). Este tipo de tradução produz significados similarmente, sob a forma de aparências e qualidades.

Para ilustrar este tipo de Tradução Intersemiótica, é apresentado abaixo um exemplo retirado do corpus da pesquisa.

No filme Donkey Xote (2007), o burro Rucio adquire status de protagonista e ganha visibilidade na história. O burro, que só existe através de descrições verbais na obra literária, Don Quijote de la Mancha (2004), é mostrado no filme através da imagem que o representa. A figura do burro Rucio é, portanto, um ícone, pois representa o burro através de traços de semelhança ou analogia, de modo que não se pode dizer que a imagem representa Rocinante, o cavalo de Dom Quixote, por exemplo, uma vez que não apresenta a aparência de um cavalo.

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Figura 1- Exemplo de Ícone

Fonte: DONKEY XOTE. Diretor: José Pozo. Filmax. Espanha. 2007. DVD (85 minutos aprox.), colorido.

A Tradução Indicial, segundo Plaza (2010), “se pauta pelo contato entre original e tradução. Suas estruturas são transitivas, há continuidade entre original e tradução. O Objeto Imediato do original é apropriado e trasladado para um outro meio.” (PLAZA, 2010, p. 91). O autor destaca que a mudança de um meio para outro modifica a qualidade do Objeto Imediato.

A seguir, observa-se a imagem de duas placas, a primeira, em formato de seta, indica que La Mancha está muito longe, a segunda, indica que Barcelona está a 124 milhas. Ambas as placas têm alguma ligação com seu objeto direto, a distância entre sua localização e os lugares indicados, porém, esta ligação não é de semelhança e sim de contiguidade. As placas apresentadas representam, portanto, exemplos de

índice:

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Figura 2- Exemplo de Índice

Fonte: DONKEY XOTE. Diretor: José Pozo. Filmax. Espanha. 2007. DVD (85 minutos aprox.), colorido.

A Tradução Simbólica “opera pela contiguidade instituída, o que é feito através de metáforas, símbolos ou outros signos de caráter convencional. Ao tornar dominante a referência simbólica, eludem-se os caracteres do Objeto Imediato, essência do original.” (PLAZA, 2010, p. 93).

A seguir, na imagem, observa-se um brasão com um leão, que faz parte do brasão de armas da Espanha. O leão representa o Reino de Leão e é um símbolo característico do território espanhol, um “signo que se refere ao Objeto em virtude de uma convenção, lei ou associação geral de ideias”. (PIGNATARI, 2004, p. 53).

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Figura 3- Exemplo de Símbolo

Fonte: DONKEY XOTE. Diretor: José Pozo. Filmax. Espanha. 2007. DVD (85 minutos aprox.), colorido.

Comparando os três tipos de tradução, Plaza (2010) salienta que as qualidades da Tradução Icônica possibilitarão que se possa recordar a obra original, uma vez que este tipo de tradução transcria o original, podendo ser chamada de transcriação, e produz significado através da aparência entre a tradução e a obra fonte.

No caso da Tradução Indicial, que se dá por transposição e é determinada pelo signo que a antecede, Plaza (2010) destaca que a relação entre a tradução e seu signo antecedente será de contiguidade.

Sobre a Tradução Simbólica, também chamada de transcodificação, Plaza

(2010) afirma que estabelecerá uma relação com seu objeto através de uma convenção. Esta tradução, de acordo com o autor, determina as leis que estão relacionadas ao processo de transcodificação, em que um signo dá surgimento a outro, ou seja, quando se traduz algo para um outro código.

Definidas as categorias de tradução apresentadas por Jakobson (2000) e as categorias de Tradução Intersemiótica apresentadas por Plaza (2010), se passará a refletir acerca da noção de adaptação.

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1.2 ADAPTAÇÃO

Para Hutcheon (2011), “a adaptação pode ser descrita do seguinte modo: i) uma transposição declarada de uma ou mais obras reconhecíveis; ii) um ato criativo e interpretativo de apropriação/recuperação; iii) um engajamento intertextual extensivo com a obra adaptada” (HUTCHEON, 2011, p. 30).

De acordo com a autora, a adaptação é uma derivação, mas não é derivativa; representa uma segunda obra, porém não deve ser vista como secundária. Segundo

Hutcheon, “ela é sua própria coisa palimpséstica” (HUTCHEON, 2011, p, 30). Levando em consideração que o termo palimpséstica se refere a palimpsesto, é possível inferir que, sendo o palimpsesto um pergaminho ou papiro que tinha seu texto raspado para dar lugar a um novo texto; de forma análoga, a adaptação é uma nova obra que se inscreve a partir de outra. Mesmo que o palimpsesto seja raspado, podem restar nele vestígios do texto anterior, assim, na obra adaptada também é possível que se percebam vestígios de sua obra fonte. Em algumas adaptações, a relação com a obra original é mais explícita que em outras, mas, mesmo nos casos em que esta relação é mais implícita, é possível que sejam percebidas semelhanças entre a adaptação e sua obra fonte, entretanto, para que isto aconteça é necessário que se conheça a obra original.

De acordo com Hutcheon (2011), as adaptações são consideradas recodificações, pois podem envolver mídias diferentes. Quando um romance se torna filme, por exemplo, há uma recodificação, uma vez que é feita a transposição intersemiótica de um sistema de signos para outro, neste caso, da literatura para o cinema. Ao transformar texto em imagens, por exemplo, ocorre tradução em um sentido específico “como transmutação ou transcodificação, ou seja, como necessariamente uma recodificação num novo conjunto de convenções e signos”

(HUTCHEON, 2011, p. 40). 28

Sobre os casos em que há mudança de matéria, como ocorre na passagem de um romance para o cinema, por exemplo, Eco (2007) deixa claro que a interpretação fica a cargo do adaptador, que elegerá a melhor forma de exprimir aquilo que interpretou a partir da obra fonte. A esse respeito, Eco (2007) observa que “com a mudança de matéria, não se corre apenas o risco de dizer mais do que diz o original, mas também o de dizer menos” (ECO, 2007, p. 389). Ainda que seja baseada em outra obra, a adaptação surge como nova criação, trazendo características próprias do gênero em que se produz, e de seu(s) criador(es), ou seja, é natural que a obra adaptada apresente aspectos divergentes da obra original.

Com relação a obras literárias transformadas em filmes, há casos em que diretores criam adaptações tão divergentes da obra original que podem ser consideradas novas obras, criações próprias de seus diretores. A esse respeito,

Hutcheon (2011) afirma que “o adaptador é um intérprete antes de tornar-se um criador”. A autora aponta que a adaptação de uma obra está sujeita às necessidades de gênero e mídia, bem como “ao temperamento e talento do adaptador”

(HUTCHEON, 2011, p. 123). Logo, uma adaptação não tem a obrigação de apresentar todas as características da obra que lhe serviu de inspiração, pois passa sempre pela interpretação e processo de recriação e, consequentemente, carrega as características e o estilo próprio de seu adaptador. Corroborando esse pensamento, mas acrescentando uma observação relacionada a obras consideradas clássicas, Rey

(1989) destaca que a adaptação não precisa conter tudo o que está no original, mas exige muito planejamento, principalmente quando se trata de adaptação de obra conhecida e, por esse motivo, passível de confrontos.

Vale salientar que o fato de conhecer a obra original, como já apresentado anteriormente, é o que faz com que se possa experienciar a adaptação como adaptação, pois, de acordo com Hutcheon (2011), o desconhecimento da obra original não propiciará que haja uma oscilação, por parte do receptor, entre os aspectos já conhecidos do original e os aspectos da adaptação. Entretanto, é possível passar pelo 29 processo de oscilação quando primeiro se conhece a adaptação e depois o original, mesmo que de outro modo.

Nesta investigação, a adaptação cinematográfica que se pretende analisar parte de uma obra mundialmente conhecida, e, por isso, desde o seu lançamento, em

2007, se apresenta suscetível a críticas.

O fato de a obra original representar um cânone literário, como é o caso de

Don Quijote de la Mancha, uma vez que, mais de quatrocentos anos após a publicação de sua primeira parte, ainda é vista como contemporânea, pois trata de temas cotidianos, que podem ser vivenciados em diferentes épocas e lugares, como o sonho, o amor idealizado, a necessidade de justiça, a amizade, a loucura, entre outros; faz com que as adaptações recriadas a partir dela sejam observadas de modo criterioso e até preconceituoso, como se a adaptação tivesse a obrigação de preservar os detalhes do original.

É importante destacar que o fato de se basear em obra mundialmente conhecida não necessariamente torna a adaptação uma obra inferior, para a qual se deve olhar de modo depreciativo. A visão que se pretende adotar, nesta investigação, durante a observação e consequente comparação entre as duas obras, está de acordo com o que apresenta Hutcheon no prefácio de seu livro Uma teoria da adaptação

(2011) em que, considerando obra original e obra adaptada, afirma que “[...] As diversas versões existem lateralmente, e não de modo vertical” (HUTCHEON, 2011, p.14). Em outras palavras: não há uma relação de superioridade ou de inferioridade entre original e adaptação, ambas as obras devem ser vistas lado a lado, de modo que uma não deve estar sobre ou sob a outra.

Os conceitos de Dialogismo (Bakhtin), Intertextualidade (Kristeva) e

Transtextualidade (Genette) contribuem para que se possa analisar e compreender o processo de adaptação de obras, possibilitando que a adaptação seja enxergada como criação autônoma, ainda que mantenha certa relação com sua obra fonte. Estes conceitos serão discutidos, a partir de agora, e se refletirá sobre as ideias 30 representadas por cada um deles, e como estas ideias contribuem para que se tenha uma visão menos valorativa em relação às adaptações.

1.2.1 O conceito de dialogismo e as noções de intertextualidade e transtextualidade e suas contribuições para a análise de adaptações

Segundo Bakhtin (1997), “[...] o enunciado é um elo na cadeia da comunicação verbal e não pode ser separado dos elos anteriores que o determinam, por fora e por dentro, e provocam nele reações-respostas imediatas e uma ressonância dialógica”

(BAKHTIN, 1997, p.320). Ou seja, todo enunciado representa uma resposta a enunciado(s) anterior(es), de modo que há uma relação entre esses enunciados que não permite que possamos separá-los.

Para Stam (2013), todo texto apresenta algum tipo de relação com outros textos. De acordo com o autor, “todo e qualquer texto constitui uma interseção de superfícies textuais” (STAM, 2013, p.225). Ou seja, os textos são citações, sejam elas conscientes ou inconscientes, variações, adaptações, inversões ou combinações de outros textos.

O autor destaca que, consciente ou inconscientemente, estamos sempre reformulando, repetindo ou respondendo a algo já produzido anteriormente. Bakhtin

(1997) salienta o fato de que:

[...] O locutor não é um Adão, e por isso o objeto de seu discurso se torna, inevitavelmente, o ponto onde se encontram as opiniões de interlocutores imediatos (numa conversa ou numa discussão acerca de qualquer acontecimento da vida cotidiana) ou então as visões do mundo, as tendências, as teorias, etc. (BAKHTIN, 1997, p. 319)

Com base no pensamento de Bakhtin, acerca das relações dialógicas, Oliveira

(2007) conclui que “[...] Na concepção bakhtiniana, apenas o Adão mítico poderia evitar a relação dialógica, relações de sentido entre os enunciados, pois ele seria o 31 primeiro homem solitário a lançar ao mundo uma ‘voz’ sem elo” (OLIVEIRA, 2007, p.72).

Segundo Stam (2013), “o dialogismo opera no interior de qualquer produção cultural, seja ela culta ou inculta, verbal ou não verbal, intelectualizada ou popular”

(STAM, 2013, p. 230). De acordo com o autor, o artista cinematográfico pode amplificar as mensagens emitidas por diferentes meios como o literário, o visual, o musical, o publicitário, entre outros.

Donkey Xote, a adaptação cinematográfica que será analisada, partindo de uma obra anterior, Don Quijote de la Mancha, estabelece uma relação dialógica com esta obra. Porém, mesmo que seja baseada em obra já existente, Donkey Xote passa pela interpretação e pela reformulação de quem a produz, o que faz com que possa apresentar aspectos distintos de seu original. Mesmo assim, a relação dialógica continua a existir, pois ainda que apresente suas características próprias, a obra adaptada será sempre resultado de uma resposta a uma produção anterior. A esse respeito, Bakhtin (1997) destaca que:

O enunciado nunca é simples reflexo ou expressão de algo que lhe preexistisse, fora dele, dado e pronto. O enunciado sempre cria algo que, antes dele, nunca existira, algo novo e irreproduzível, algo que está sempre relacionado com um valor (a verdade, o bem, a beleza, etc.). Entretanto, qualquer coisa criada se cria sempre a partir de uma coisa que é dada (a língua, o fenômeno observado na realidade, o sentimento vivido, o próprio sujeito falante, o que é já concluído em sua visão do mundo, etc.) [...] (BAKHTIN, 1997, p. 348)

Logo, a obra adaptada não deve ser vista como simples reflexo da obra original, tampouco é possível cobrar da primeira fidelidade em relação à segunda, uma vez que o enunciado, segundo Bakhtin (1997), sempre pode criar algo que antes dele não existia, de modo que a obra adaptada é capaz de apresentar características novas, aspectos não existentes na obra original.

De acordo com Stam (2013), durante a década de oitenta do século passado, ocorreu a ascensão das teorias de intertextualidade. A noção de intertextualidade 32 ganhou importância graças à decadência do texto como objeto de estudo. A observação e análise do texto isoladamente cederam espaço para uma perspectiva intertextual, que passou a considerar as relações que todo texto mantém com outros textos. Segundo o autor, “[...] O termo ‘intertextualidade’ foi introduzido por Kristeva na década de 1960 como tradução para ‘dialogismo’, termo cunhado por Bakhtin nos anos 1930, o que ocasionou uma certa perda dos contornos humanos e filosóficos do termo original” (STAM, 2013, p. 225).

Para Kristeva (1968), um texto pode conter enunciados advindos de outros textos, estes enunciados, segundo a autora, podem cruzar-se e neutralizar-se, constituindo o que ela chama de intertextualidade, que consiste em uma relação que se estabelece entre diferentes textos.

De acordo com Oliveira (2007):

Essa visão da intertextualidade transporta para o universo dos estudos literários novos questionamentos que irão colocar em choque a visão tradicional de que a obra literária seria absolutamente original, encerrada em si mesma. Levando em consideração as relações intertextuais, essa originalidade absoluta não será possível, pois todo texto é atravessado pela intertextualidade, é um mosaico de outros textos já advindos. Desta forma, estes questionamentos proporcionarão novos rumos às pesquisas literárias. (OLIVEIRA, 2007, p. 75)

A autora observa as contribuições que a noção de intertextualidade representa para as pesquisas literárias ao propiciar que se possa observar a obra literária não como original, mas como resultado de discursos anteriores que a constituem.

Como já mencionado, a noção de intertextualidade surge a partir do conceito bakhtiniano de dialogismo, que sugere que todo enunciado estabelece uma relação com outros enunciados. Assim, todo discurso é uma variação de outro(s) discurso(s), uma citação consciente ou inconsciente de outros enunciados. 33

Para Stam (2013), o dialogismo intertextual, em um sentido mais amplo, considera um conjunto aberto, que pode ser visto como infinito, dos vários discursos aos quais um texto ou uma obra se refere.

Tratando da obra de arte, e mais especificamente do cinema, Stam (2013) afirma que:

O intertexto da obra de arte inclui não apenas outras obras de arte de estatuto igual ou comparável, mas todas as “séries” no interior das quais o texto individual se localiza. De maneira mais direta: qualquer texto que tenha dormido com outro texto, dormiu também, necessariamente, com todos os outros textos com os quais este tenha dormido. (STAM, 2013, p. 226)

O autor faz menção às relações intertextuais que ocorrem não somente entre obras de categorias iguais ou comparáveis, mas também entre obras que pertencem a meios diferentes. Para Stam (2013), uma obra que estabelece relações com outra não se limita só a esta, mas a todas as outras obras ou discursos que a constituem. Deste modo, a adaptação cinematográfica que nos propomos a analisar estabelece relações não só com a obra em que se baseia, mas com todos os outros discursos que compõem esta obra fonte. Portanto, as relações intertextuais dão origem a infinitas possibilidades de significados e leituras.

Tendo como ponto de partida o conceito de dialogismo, de Bakhtin, e a noção de intertextualidade, de Kristeva, Genette (2010), em sua obra Palimpsestos, propõe o termo “transtextualidade” para referir-se àquilo que coloca o texto em relação explícita ou implícita com outros textos (STAM, 2013).

Genette (2010) define cinco tipos de relações transtextuais, sendo a primeira delas a “intertextualidade”. Para Stam (2013), Genette (2010) define intertextualidade de forma mais estrita em relação à Kristeva, considerando-a “como a ‘copresença efetiva de dois textos’ na forma de citação, plágio ou alusão” (STAM, 2013, p. 231).

Genette (2010) se limita essencialmente a exemplos literários para ilustrar a presença de citação, plágio ou alusão, o único filme citado pelo autor é Sonhos de um sedutor. 34

Entretanto, Stam (2013) aponta que é fácil perceber estes mesmos exemplos em produções cinematográficas.

O segundo tipo de transtextualidade definido por Genette (2010) é a

“paratextualidade”, que diz respeito à relação entre o texto e seu paratexto, exemplos deste tipo de relação podem ser encontrados em dedicatórias, capas, prefácios, ilustrações etc. Considerando a transtextualidade no contexto cinematográfico, Stam

(2013) cita como exemplos os pôsteres, camisetas, comerciais de TV e até o marketing de produtos que os filmes originam, como brinquedos, por exemplo.

O terceiro tipo de transtextualidade é a “metatextualidade”, que diz respeito à relação crítica existente entre um texto e outro, explícita ou não. Ou seja, pode ser um comentário ou uma reflexão que um texto faz sobre outro, citando-o ou não.

O quarto tipo é a “arquitextualidade, que, segundo Stam (2013) “refere-se às taxonomias genéricas sugeridas ou recusadas pelos títulos ou subtítulos de um texto e

[...] tem a ver com o desejo ou relutância de um texto em caracterizar-se direta ou indiretamente em seu título como um poema, ensaio, romance ou filme” (STAM, 2013, p.233). Portanto, possível perceber este tipo de relação intertextual quando o título ou o subtítulo do texto expõe o seu gênero, por exemplo: “Poemas de Amor”.

O quinto tipo de transtextualidade, apresentado por Genette (2010), é a

“hipertextualidade”, muito sugestivo para a análise fílmica, segundo Stam (2013), já que se refere à relação existente entre um texto denominado por Genette de

“hipertexto” e um texto anterior, chamado de “hipotexto”, “que o primeiro transforma, modifica, elabora ou estende” (STAM, 2013, p. 233).

Para Stam (2013), o termo “hipertextualidade” se aplica com frequência ao campo dos estudos cinematográficos, uma vez que considera a relação estabelecida entre um romance, por exemplo, e um filme que surge a partir deste romance, sendo o primeiro considerado hipotexto, e o segundo hipertexto, que deriva de uma produção já existente transformando-a de algum modo. 35

Sobre as adaptações fílmicas produzidas a partir de romances, segundo Stam

(2013):

As discussões mais recentes sobre as adaptações cinematográficas de romances passaram de um discurso moralista sobre fidelidade ou traição para um discurso menos valorativo sobre intertextualidade. As adaptações localizam-se, por definição, em meio ao contínuo turbilhão de transformação intertextual, de textos gerando outros textos em um processo infinito de reciclagem, transformação e transmutação, sem um claro ponto de origem. (STAM, 2013, p. 234)

Logo, a noção de que um texto ou discurso é sempre uma resposta a outro(s) texto(s) ou discurso(s) preexistente(s) trouxe muitos ressignificações para as análises fílmicas e para a teoria do cinema, de modo que a ideia de que a adaptação teria obrigação de ser fiel à obra original cedeu lugar a um discurso menos carregado de juízos de valor a respeito da fidelidade da obra adaptada em relação à obra fonte.

A seguir, discute-se a respeito do processo de adaptação do texto verbal para o meio cinematográfico, considerando as obras analisadas na pesquisa.

1.2.2 Do texto verbal para a tela: literatura adaptada para o cinema

O impacto dos recursos imagéticos na cultura contemporânea é, de acordo com Pellegrini (2003), muito significativo. Segundo a autora, o apelo visual hoje em dia, através do cinema, dos quadrinhos, da televisão, entre outros, é notável e faz com que nos detenhamos cada vez mais nas imagens, deixando o texto escrito em um plano secundário.

Para Pellegrini (2003), as narrativas visuais do cinema e da telenovela, por exemplo, disputam o gosto do público competindo com os textos literários. As narrativas visuais são mais populares que as narrativas literárias no sentido de que são mais acessíveis, pois não excluem o público não leitor, uma vez que os não 36 alfabetizados podem ter acesso a filmes e telenovelas, mas não têm livre acesso ao texto escrito, que requer o domínio da leitura do código escrito.

No contexto demonstrativo, que é diferente do contexto verbal, “percebe-se pela vestimenta, caracterização e comportamento das personagens, pelo lugar onde estão, por seus gestos e expressões faciais” (PELLEGRINI, 2013, p. 15). Todos os detalhes que se podem visualizar, além de ouvir, guiam o espectador em sua apreciação da narrativa visual.

Os códigos que compõem as narrativas visuais são diferentes dos que compõem as narrativas verbais, de modo que a interação entre espectador e filme, por exemplo, é diferente da interação entre leitor e livro. Nos exemplos que seguem, retirados do corpus de pesquisa, é possível observar a diferença entre os códigos visual e verbal:

Y así lo hizo Sancho, y le dio la misma libertad que al rucio, cuya amistad de él y de Rocinante fue tan única y tan trabada, que hay fama, por tradición de padres a hijos, que el autor de esta verdadera historia hizo particulares capítulos de ella; mas que, por guardar la decencia y decoro que a tan heroica historia se debe, no los puso en ella, puesto que algunas veces se descuida de este su prosupuesto, y escribe que así como las dos bestias se juntaban, acudían a rascarse el uno al otro, y que, después de cansados y satisfechos, cruzaba Rocinante el pescuezo sobre el cuello del rucio (que le sobraba de la otra parte más de media vara) y, mirando los dos atentamente al suelo, se solían estar de aquella manera tres días; a lo menos, todo el tiempo que les dejaban, o no les compelía la hambre a buscar sustento. Digo que dicen que dejó el autor escrito que los había comparado en la amistad a la que tuvieron Niso y Euríalo, y Pílades y Orestes; y si esto es así, se podía echar de ver, para universal admiración, cuán firme debió ser la amistad de estos dos pacíficos animales, y para confusión de los hombres, que tan mal saben guardarse amistad los unos a los otros5. (CERVANTES, 2004, p. 632- 633)

5 E assim fez Sancho, e deu a mesma liberdade a Rucio, cuja amizade com Rocinante foi tão única e tão firme, que há fama, por tradição de pais a filhos, que o autor desta verdadeira história fez capítulos particulares sobre ela; mas que, por guardar a decência e o decoro que a tão heroica história se deve, não os colocou nela, ainda que algumas vezes se descuide deste seu propósito, e escreva que assim que os dois animais se juntavam, começavam a arranhar- se um ao outro, e que, depois de cansados e satisfeitos, Rocinante colocava o pescoço por cima do pescoço de Rucio (que sobrava da outra parte mais de meia vara) e, os dois observando atentamente o solo, costumavam estar daquela maneira três dias; pelo menos, todo o tempo que os deixavam, ou a fome não os compelia a buscar sustento. Digo que dizem que o autor deixou escrito que havia comparado sua amizade à que tiveram Niso e Euríalo, e Pílades e Orestes; e assim, se deveria mostrar, para universal admiração, o quão firme foi a amizade dos pacíficos animais, para a confusão dos homens, que mal sabem guardar amizade uns aos outros. (Tradução da pesquisadora) 37

Figura 4- Diálogo entre Rocinante e Rucio

Fonte: DONKEY XOTE. Diretor: José Pozo. Filmax. Espanha. 2007. DVD (85 minutos aprox.), colorido.

A amizade entre os animais Rocinante e Rucio, descrita com tantos detalhes no excerto retirado da obra Don Quijote de la Mancha (2004), é mostrada em algumas imagens do filme, como a que se apresenta acima. Esta imagem ilustra um momento de diálogo entre os animais, que conversam sobre temas diversos no filme. O espectador do filme Donkey Xote (2007) sabe que Rocinante e Rucio mantém uma relação de amizade, mesmo que em alguns momentos os dois discutam, pois os desentendimentos também fazem parte das relações amigáveis. A descrição detalhada apresentada na obra literária é transposta para o cinema em forma de imagens e diálogos, mas isso não impede que o espectador compreenda a mensagem. Na narrativa visual, os gestos, as expressões faciais e os sons podem dispensar legendas ou comentários, pois, integrados no contexto do filme, são capazes de transmitir muitas informações ao espectador. 38

Quanto ao estilo, observa-se que no texto literário, que é um clássico da literatura universal; como indica o narrador, o autor da obra fez capítulos particulares sobre a amizade dos animais, mas não os incluiu nela para preservar a decência que se deve a uma história tão heroica. Ao comparar a relação entre os bichos à relação que tiveram Niso e Euríalo6, bem como Pílades e Orestes7, o autor expõe uma possível relação homoafetiva entre os animais, que só pode ser percebida no texto em alguns momentos de descuido, de acordo com o narrador. Ou seja, não se admite discutir ou relatar a amizade entre Rocinante e Rucio com detalhes. Entretanto, na adaptação, não se verificam indícios de uma relação homoafetiva entre os dois, e o animal considerado menos nobre, o burro, ganha visibilidade e se torna narrador.

Segundo Hutcheon (2011), quando se trata de adaptação para o cinema, muito se discute em termos de perdas, como se a obra adaptada estivesse sempre sujeita a perder algo. A este respeito, Stam (2006) destaca que:

A linguagem convencional da crítica sobre as adaptações tem sido, com frequência, profundamente moralista, rica em termos que sugerem que o cinema, de alguma forma, fez um desserviço à literatura. Termos como “infidelidade”, “traição”, “deformação”, “violação”, “abastardamento”, “vulgarização”, e “profanação” proliferam no discurso sobre adaptações, cada palavra carregando sua carga específica de ignomínia. “Infidelidade” carrega insinuações de pudor vitoriano; “traição” evoca perfídia ética; “abastardamento” conota ilegitimidade; “deformação” sugere aversão estética e monstruosidade; “violação” lembra violência sexual; “vulgarização” insinua degradação de classe; e “profanação” implica sacrilégio religioso e blasfêmia. (STAM, 2006, p. 19-20)

Esse discurso negativo, que se volta para as perdas, desconsidera que a passagem de uma obra, seja literária ou não, para o cinema também pode representar adições para a adaptação. Para Stam (2006), frequentemente, o discurso preconceituoso sobre a adaptação reforça a posição de superioridade da literatura em

6 Personagens da Eneida, de Virgílio, que mantinham uma relação homoafetiva.

7 Personagens da Mitologia Grega, primos, que mantinham uma relação homoafetiva. 39 relação ao cinema. Ele também argumenta que esse preconceito deriva de pressuposições já firmadas e muitas vezes inconscientes a respeito das relações entre as duas manifestações artísticas (cinema e literatura).

Stam (2006) apresenta termos que resumem os preconceitos existentes em relação às adaptações. O primeiro deles diz respeito à “antiguidade”; ou seja, para o autor, há o pressuposto de que as artes mais antigas são superiores às mais modernas. Isso ilustra um preconceito recorrente a respeito das adaptações. O segundo termo apresentado pelo autor é o “pensamento dicotômico”, ou o pensamento de que os ganhos no cinema representam perdas para a literatura. O terceiro termo, a “iconofobia”, diz respeito ao preconceito existente em relação às artes visuais, para Stam (2006), as raízes desse preconceito “[...] remontam não só às proibições judaicoislâmico-protestantes dos ícones, mas também à depreciação platônica e neo-platônica do mundo das aparências dos fenômenos” (STAM, 2006, p.

21).

A “logofilia” é o quarto temo apresentado pelo autor e diz respeito à valorização da palavra escrita. O quinto termo é a “anti-corporalidade” ou “[...] um desgosto pela

‘incorporação’ imprópria do texto fílmico, com seus personagens de carne e osso, interpretados e encarnados, e seus lugares reais e objetos de cenografia palpáveis”

(STAM, 2006, p. 21). O último termo apresentado pelo autor é a “carga de parasitismo”, a qual faz com que as adaptações sejam vistas como produções menores que o romance, pelo fato de que são consideradas cópias do primeiro, e menores que o filme, porque não são vistas como filmes “puros”.

A respeito destes preconceitos, Stam (2006) aponta que:

Os desenvolvimentos teóricos do estruturalismo e do pós- estruturalismo, entretanto, subvertem muitos desses preconceitos e, deste modo, causam impacto indireto em nossa conversa sobre adaptação. A semiótica estruturalista das décadas de 1960 e 1970 tratava todas as práticas de significação como sistemas compartilhados de sinais que produzem “textos” dignos do mesmo escrutínio cuidadoso dos textos literários, abolindo, desta forma, a hierarquia entre o 40

romance e o filme. A teoria da intertextualidade de Kristeva (enraizada e traduzindo literalmente o “dialogismo” de Bakhtin) e a teoria da “intertextualidade” de Genette, similarmente, enfatizam a interminável permutação de textualidades, ao invés da “fidelidade” de um texto posterior a um modelo anterior, e desta forma também causam impacto em nosso pensamento sobre adaptação. (STAM, 2006, p. 21)

Desse modo, como já apresentado, as ideias desenvolvidas por Kristeva e

Genette, baseadas no conceito de dialogismo”, de Bakhtin, que resultaram nas noções de intertextualidade e de transtextualidade, representam importantes contribuições para desmistificar preconceitos profundamente enraizados a respeito das adaptações.

De acordo com Stam (2006), outras tendências teóricas também contribuíram para rebaixar, mesmo que indiretamente, o texto literário, retirando seu status de autoridade e possibilitando que a adaptação fosse vista de modo menos preconceituoso. Stam (2006) cita os estudos culturais como uma destas tendências, que objetivam muito mais estabelecer relações horizontais entre diferentes mídias do que estabelecer hierarquias entre elas, de modo vertical. De acordo com o autor:

Sob uma perspectiva cultural, a adaptação faz parte de um espectro de produções culturais niveladas e, de forma inédita, igualitárias. Dentro de um mundo extenso e inclusivo de imagens e simulações, a adaptação se torna apenas um outro texto, fazendo parte de um amplo contínuo discursivo. (STAM, 2006, p. 24)

Logo, a perspectiva cultural contribui para que se possa compreender a adaptação não como obra menor, mas simplesmente como obra diferente daquela que lhe serviu como inspiração.

Stam (2006) também destaca que a narratologia considera a narrativa de modo geral, não privilegiando somente a narrativa literária. Segundo o autor, a narratologia compreende que os seres humanos mantêm uma importante relação com as histórias, e esta relação não se dá somente no nível escrito, mas também em outros níveis.

Desse modo, a narrativa pode ser representada de formas variadas, nos quadrinhos, nas notícias, no cinema etc. Para o autor, ao considerar a narrativa que existe nas 41 mais diversas formas e não se voltar apenas para a narrativa literária, a narratologia contribui para que seja possível ver a adaptação cinematográfica, por exemplo, também como um meio narrativo, o que a coloca em posição de igualdade em relação

à narrativa literária. O autor ainda aponta que:

A teoria da recepção também reafirma, indiretamente, o respeito pela adaptação enquanto forma. Para a teoria da recepção, um texto é um evento cujas indeterminações são completadas e se tornam verdadeiras quando lido (ou assistido). Ao invés de ser mero “retrato” de uma realidade pré- existente, tanto o romance como o filme são expressões comunicativas, situadas socialmente e moldadas historicamente. Como o pós-estruturalismo, a teoria da recepção também enfraquece a noção de um núcleo semiótico, um núcleo de significado, atribuído às novelas, cujas adaptações presumidamente devem “capturar” ou “trair”, desta forma abrindo espaço para a idéia de que a adaptação complementa as lacunas de um texto literário. O texto polifônico, dialógico, heteroglóssico e plural do romance, para usar a linguagem de Bakhtin, se torna suscetível às múltiplas e legítimas interpretações, incluindo a forma de adaptações como leituras ou interpretações. (STAM, 2006, p. 24-25)

Há, segundo Hutcheon (2011), três modos de engajamento relacionados às adaptações: i) do modo contar para o modo mostrar (do meio impresso para o meio performativo); ii) do modo mostrar para o modo mostrar (de um meio performativo para um segundo meio performativo); e iii) o terceiro modo diz respeito à interação, quando o público entra em cena diretamente; as obras podem ser adaptadas tanto do modo contar quanto do modo mostrar, dando origem a jogos de videogames ou mídias digitais.

Para Hutcheon (2011), quando se pensa na passagem de um meio impresso para um meio performativo (do modo contar para o modo mostrar), as pessoas pensam na adaptação de romances. De acordo com a autora, os romances apresentam muitas informações que podem ser transpostas para a ação ou atuação, seja no palco ou na tela, porém algumas destas informações também podem ser descartadas. Sobre tal aspecto, o romancista e crítico literário David Lodge (1993) aponta que: 42

Na passagem do contar para o mostrar, a adaptação performativa deve dramatizar a descrição e a narração; além disso, os pensamentos representados devem ser transcodificados para fala, ações, sons e imagens visuais. Conflitos e diferenças ideológicas entre os personagens devem tornar-se visíveis e audíveis. (LODGE, 1993, p. 196-200, citado por HUTCHEON, 2011, p. 69).

Quando as informações contidas na literatura se tornam visíveis, pode-se ver tudo aquilo que antes só se podia imaginar. Hutcheon (2011) comenta que “passamos da imaginação para o domínio da percepção direta, com sua mistura tanto de detalhe quanto de foco mais amplo” (HUTCHEON, 2011, p. 48). Segundo a autora, através do modo performativo, percebe-se que não é só por meio da linguagem escrita que se pode expressar significados, mas também através da música e de representações visuais e gestuais.

Quando uma obra é transposta da literatura para o cinema, por exemplo, o processo de tradução intersemiótica, que, neste caso, transformará signos verbais em signos não verbais, traduzirá palavras por outros recursos, como imagens e sons.

Assim, na transposição do texto para a tela, são utilizados procedimentos que possibilitam que se possa passar de um meio a outro, experienciando a obra de maneiras diferentes, pois o cinema mostra aquilo que, através da literatura, só é possível imaginar.

A montagem é um exemplo de recurso usado no cinema que permite que o espectador presencie uma passagem dinâmica do tempo, transite por diferentes espaços e observe o desenvolvimento das ações, tudo isso em um tempo relativamente curto. A obra literária, por sua vez, utiliza-se das descrições, em alguns casos longas, para provocar no leitor a sensação de que o tempo está passando e as ações estão se desenvolvendo em diferentes espaços. Ambos os modos (contar e mostrar) apresentam recursos distintos para envolver o leitor/ espectador. 43

Hutcheon (2011) salienta que cada modo apresenta sua especificidade ou essência, cada um contando com meios diferentes de expressão. Assim, dependendo de quais sejam os objetivos, um modo pode ser mais viável que outro, isto não quer dizer que um seja melhor que o outro.

As histórias adaptadas do modo mostrar para o modo mostrar são transpostas de uma mídia performativa para outra mídia performativa. Este tipo de adaptação ocorre quando um filme se transforma em um musical no teatro, ou vice-versa, ou quando uma paródia televisiva é transposta para o cinema, por exemplo.

O terceiro modo de engajamento relacionado às adaptações diz respeito à interação. Este modo ocorre quando alguma obra é adaptada do modo contar ou do modo mostrar para o modo interagir. Estas adaptações dão origem a jogos ou mídias digitais. O modo interagir, como a denominação indica, permite que o público entre em cena e possa interagir com as adaptações. Segundo Hutcheon (2011):

Interagir com uma história é também diferente de lê-la ou vê-la, e não apenas por permitir um tipo de imersão mais imediata. Tal como numa peça teatral ou num filme, na realidade virtual ou num jogo de videogame, a linguagem não tem de evocar um mundo sozinha; esse mundo está presente perante nossos olhos e ouvidos. Mas no modo mostrar nós não entramos fisicamente no mundo para agir dentro dele. (HUTCHEON, 2011, p. 51, grifo da autora)

Logo, o engajamento do público no modo interagir diferencia-se em relação aos modos contar e mostrar, uma vez que, ao interagir com alguma história, o indivíduo passa por um processo de imersão, podendo ter a sensação de que age “dentro” dessa história. Verifica-se, então, um engajamento muito mais intenso no modo interagir do que nos outros modos (contar e mostrar).

A respeito da interatividade, Hutcheon (2011) comenta que ela “[...] também promove diferentes técnicas formais: o sentido de coerência é espacial e criado pelo jogador dentro de um ambiente de jogo que, além de imaginado ou percebido, é também acionado ativamente.” (TONG; TAN, 2002, p. 107, citados por HUTCHEON,

2011, p. 83-84). 44

De acordo com a autora, “as adaptações mais comumente consideradas são as que passam do modo contar para o modo mostrar, geralmente do meio impresso para o performativo” (HUTCHEON, 2011, p. 67). A adaptação que se tem como foco nesta investigação foi transposta do modo contar para o modo mostrar.

Na mudança de um modo para outro, do contar para o mostrar, é possível observar uma série de modificações: a narração passa a ser dramatizada, bem como a descrição, propiciando que se possa ver e ouvir os personagens, e não só imaginá- los.

Hutcheon (2011) contraargumenta o que afirmou a crítica de cinema Pauline

Kael, ao apontar que os filmes são bons para representar ações, mas não servem para representar reflexões. A autora argumenta que, além de ações exteriores, o cinema também é capaz de apresentar ações interiores, comumente representadas pela introspecção dos personagens. Uma alternativa para a expressão das reflexões dos personagens no cinema pode ser o voice-over8. Além disso, “a música pode suplementar ou substituir o que se perde quando a introspecção e a reflexão ficcional são transpostas para uma mídia performativa” (HUTCHEON, 2011, p. 115).

Embora haja diferenças entre obra literária e obra cinematográfica, é possível encontrar também semelhanças entre ambas. Silva (2012) destaca que:

O cinema e a literatura abrem espaço para comparação ao utilizarem-se de técnicas comuns ao narrarem, como o narrador que mostra somente aquilo que deseja, escolhendo como serão apresentadas as personagens, as ações, o espaço e o tempo, apesar de cada um narrar em seu meio específico. (SILVA, 2012, p. 199)

8 Narração feita por um narrador invisível ou por um personagem, que não é visto falando na tela, cujos pensamentos são revelados através da voz. (Adaptado de: http://www.thefreedictionary.com/voice-over)

45

O narrador, embora possa ser representado de maneiras distintas no meio literário e no meio cinematográfico, tem, tanto na literatura quanto no cinema, o controle sobre fatos e personagens.

A seguir, são apresentadas discussões a respeito da construção narrativa e do narrador.

1.3 A CONSTRUÇÃO NARRATIVA E O NARRADOR

Para Metz (2014), é possível reconhecer uma narrativa através de cinco critérios, a saber: i) toda narrativa tem início e fim, ou seja, apresenta uma sequência fechada que em algum momento chegará ao final; ii) a narrativa apresenta duas temporalidades, isto é, há a temporalidade do fato narrado e a temporalidade do ato de narração; iii) toda narrativa representa um discurso, pois possibilita uma interação entre uma sequência de enunciados e um sujeito receptor; iv) uma narrativa pode representar a realidade, mas não deve ser confundida com essa realidade, pois relatar um fato implica situá-lo no passado, fora do presente; v) uma narrativa representa um conjunto de acontecimentos.

Genette [s.d.] distingue três noções para o termo “narrativa”. A primeira delas e, segundo o autor, a mais difundida, é a da narrativa como enunciado narrativo, isto é,

“o discurso oral ou escrito que assume a relação de um acontecimento ou de uma série de acontecimentos” (GENETTE, [s.d.], p. 23). No segundo sentido, narrativa

“designa a sucessão de acontecimentos, reais ou fictícios, que constituem o objeto desse discurso, e as suas diversas relações de encadeamento, de oposição, de repetição, etc.” (GENETTE, [s.d], p. 24). De acordo com o autor, apesar de o segundo sentido ser menos difundido, é corrente entre analistas e teóricos da narrativa. Em um terceiro sentido, mais antigo, narrativa designa o ato de narrar em si mesmo. 46

O autor denomina como narrativa propriamente dita o discurso ou enunciado narrativo e passa a denominar de história o conteúdo narrativo, ou seja, o objeto do discurso narrativo. O ato de narrar, por sua vez, passa a ser chamado de narração.

Concordando com a definição de Genette, de narrativa como discurso, Lefebve (1980) considera como narrativa “todo o discurso que nos dá a evocar um mundo concebido como real, material e espiritual, situado num espaço determinado, num tempo determinado [...]” (LEFEBVE, 1980, p. 170, citado por ARMANGE, 2004, p. 29).

Para entender como se dá a (re) construção do discurso narrativo em Donkey

Xote, comparado ao discurso narrativo presente em Don Quijote de la Mancha, será necessário considerar, além do discurso narrativo, o ato da narração em si, através da observação da perspectiva que apresentam os narradores de ambas as obras, e a

(re)construção da história, que é o conteúdo do discurso narrativo, apresentado, em muitas ocasiões, por um narrador. Cabe destacar que “o narrador é considerado como o agente integrado no texto, que é responsável pela narração dos acontecimentos do mundo ficcional, sendo, por este motivo, distinto do autor empírico e mesmo das personagens desse mundo ficcional, pela amplitude narrativa”. (CARDOSO, 2003, p.

57).

Vale salientar que, de acordo com Cardoso (2003), Genette distingue três tipos de narrador, que são: autodiegético, homodiegético e heterodiegético. O narrador autodiegético narra as experiências vividas por ele mesmo, como personagem central da história; o narrador homodiegético conta aquilo que viveu como personagem secundária ou como testemunha da história, e colhe as informações de sua experiência vivida para construir sua narração; o narrador heterodiegético não é personagem daquilo que conta, nem foi, o que ele narra lhe é estranho, uma vez que esse narrador não faz, nem fez, parte da história narrada.

Tanto na literatura como no cinema, o leitor ou espectador conhece a história através de quem a narra, assim, dependendo da aproximação ou distanciamento do narrador em relação aos fatos que narra, ou seja, dependendo do conhecimento ou 47 desconhecimento do narrador no que diz respeito às personagens, lugares e acontecimentos que apresenta. Quem lê um livro ou assiste a um filme poderá ter seu universo de observação limitado ou expandido, dependendo da perspectiva apresentada. Entretanto, vale destacar que nem sempre há um narrador explícito no cinema, sendo verificadas algumas técnicas na narrativa fílmica que guiam o espectador de acordo com algum ponto de vista. Alguns exemplos dessas técnicas são o uso de voice-over, a música, e o posicionamento intencional da câmera para algum foco específico. Entre a literatura e o cinema há distinções no modo como as histórias são construídas, uma vez que cada meio conta com recursos específicos para organizar suas narrativas.

Gaudreault e Jost (2009) afirmam que não há narrativa sem uma instância narradora, porém, os autores estabelecem distinções entre o modo como as narrativas se desenvolvem nos romances e nos filmes, e salientam que o filme pode “mostrar ações sem dizê-las” (GAUDREAULT e JOST, 2009, p. 57, grifo dos autores). No modo mostrar, a instância narrativa não é tão nítida quanto no modo contar. De acordo com os autores, no filme, os acontecimentos parecem contar-se sozinhos, porém, não é isto o que de fato acontece, uma vez que, sem que houvesse alguma forma de mediação, não poderíamos notar o desenvolvimento da narrativa fílmica, por este motivo, para Gaudreault e Jost (2009), a impressão de que o filme se conta por si próprio é enganosa, porém não se pode negar que o cinema conta com recursos capazes de atenuar ou mesmo apagar a instância narrativa que o apresenta, de modo que pode parecer que os acontecimentos se contam sozinhos.

A respeito do narrador, segundo Reuter (2011), este apresenta duas funções básicas que são a função narrativa, uma vez que o narrador conta algo, e a função de direção, também chamada de função de controle, que diz respeito ao modo como o narrador organiza a narrativa, alternando os momentos de narração, falas dos personagens e descrições. O autor, no entanto, destaca que, dependendo de qual seja o modo utilizado, contar ou mostrar, o narrador poderá intervir, ou não, de forma mais 48 direta na narrativa. Ou seja, o modo escolhido influencia a perspectiva do narrador, de maneira que no modo mostrar as perspectivas adotadas dão a impressão de que os fatos se desenvolvem de modo neutro ou de que o espectador observa diretamente a história, como se pudesse vivenciá-la. Em relação às perspectivas adotadas no modo contar, geralmente a história é apresentada por um narrador ou por uma personagem, e é através da perspectiva do narrador ou da personagem que o leitor conhece a história.

Reuter (2011) cita outras sete funções complementares que podem ser assumidas pelo narrador. A primeira é a função comunicativa, que ocorre quando o narrador se dirige ao narratário interagindo com ele. Para o autor, “a função comunicativa, na medida em que está na origem de toda intervenção do narrador, acompanha, ainda que de maneira superficial, todas as outras funções” (REUTER,

2011, p. 65). O autor apresenta em seguida a função metanarrativa, a qual permite que o narrador comente o texto, destacando sua organização interna; a função testemunhal está relacionada às declarações apresentadas pelo narrador ao longo da história, que expressam a proximidade ou o grau de certeza que ele tem sobre a história; a função modalizante, segundo Reuter (2011), se centra na emoção e revela os sentimentos que a história provoca no narrador; a função avaliativa se relaciona aos valores, expressa os julgamentos do narrador em relação às personagens e à história; a função explicativa diz respeito às explicações que o narrador dá ao narratário, para que seja possível compreender a história. Segundo Reuter (2011), esta função foi amplamente desenvolvida no século XIX, pelos romancistas, e pode aparecer em notas de rodapé. A última função apresentada pelo autor é a função generalizante ou ideológica, que pode assumir a forma de máximas, propondo juízos sobre a sociedade.

A respeito das vozes narrativas, Reuter (2011) destaca que é possível distinguir duas maneiras de narrar, ou duas atitudes narrativas. Deste modo, o narrador pode estar ausente da narrativa, sendo assim não vivencia os fatos narrados, 49 este é considerado um narrador heterodiegético. Um outro modo narrativo pode ser observado quando o narrador vivencia aquilo que narra, como personagem da história, este tipo de narrador se classifica como homodiegético. Reuter (2011) relaciona as vozes ao fato do contar e apresenta as perspectivas (pontos de vista, focalizações, visões) relacionando-as ao fato do perceber. Segundo o autor, não há necessariamente uma relação mecânica entre o contar e o perceber, quem conta pode não ser necessariamente quem percebe (REUTER, 2011).

A questão das perspectivas é importante no que diz respeito à análise das narrativas, como afirma Reuter (2011), porque é através da perspectiva, também chamada de prisma, foco, consciência, visão ou ponto de vista, que o leitor, ou o espectador, apreende a história. A perspectiva pode determinar se receberemos mais ou menos informações sobre a narrativa. Vale ressaltar que Reuter (2011) salienta que

é importante identificar o termo “perspectiva” com exatidão, pois, embora seja mais frequente que a perspectiva seja recebida pela visão, é possível também que passe pela percepção de outros sentidos, como o olfato, o paladar e o tato.

Poillon e Todorov, segundo Reuter (2011), distinguem três tipos de perspectiva que são: a visão de trás, que passa pelo narrador (onisciente), este narrador sabe mais sobre a história que seus personagens, este caso ocorre mais frequentemente no romance clássico; a visão com pode passar por um personagem ou por vários, neste caso a focalização é interna, pois se percebe a história através de alguma personagem que a vivencia; a visão de fora é aquela em que o leitor “tem a impressão de uma narrativa ‘objetiva’, de um discurso filtrado por alguma consciência; a visão, os pensamentos e os sentimentos das personagens lhe são desconhecidos [...]”

(REUTER, 2011, p. 74). Friedman (1967), citado por Chiappini (1991), classifica este tipo de visão como câmera. Esta categoria é mais comum em romances americanos, principalmente romances policiais, e no Nouveau Roman francês.

A visão de fora é a perspectiva que mais se assemelha às técnicas narrativas utilizadas no cinema, porém, a denominação apresentada por Friedman (1967) de 50 câmera parece imprópria, de acordo com Chiappini (1991), pois, embora haja uma tendência em ver a câmera como neutra, ela não o é de fato, e a autora argumenta que “no cinema não há um registro sem controle, mas, pelo contrário, existe alguém por trás dela (da câmera) que seleciona e combina, pela montagem, as imagens a mostrar” (CHIAPPINI, 1991, p. 62). A autora destaca que no cinema também pode ser apresentado, através da câmera, um ponto de vista onisciente, que domina tudo, ou um ponto de vista centrado em alguma personagem da história; portanto, segundo ela,

é possível que se tenha o objetivo de passar a impressão de uma neutralidade que, em realidade, não existe, pois o cinema também apresenta marcas de subjetividade, assim como a literatura.

As relações entre as duas vozes e as três perspectivas possíveis dão origem, de acordo com Reuter (2011), a cinco combinações ou instâncias narrativas. A primeira destas combinações é a do narrador heterodiegético e perpectiva passando pelo narrador. Este domina todo o saber sobre a história, tem acesso a todos os espaços e tem domínio sobre o tempo, sua visão não é limitada, por isso é considerado um narrador onisciente.

A segunda combinação é a do narrador heterodiegético e perpectiva passando pela personagem. Aqui, a visão do narrador é restrita a uma personagem. Seus conhecimentos são limitados.O narrador não sabe tudo o que ocorre em diferentes espaços da história nem conhece o passado de todas as personagens, além de não ter segurança para antecipar o futuro. Essa instância passa a impressão, ao leitor, de que ele está muito próximo da personagem pela qual a perspectiva passa. Essa personagem nem sempre é humana, a perspectiva também pode passar por um animal.

O narrador heterodiegético e perspectiva neutra seria a terceira combinação, que é mais rara em relação às demais. A impressão que se tem é a de que os fatos são apresentados de forma neutra, como se ocorressem diante dos olhos do leitor, sem que tivessem passado pelo filtro de nenhuma consciência. Este narrador é capaz 51 de fornecer poucas informações ao leitor, pois, aparentemente, sabe menos que todas as outras personagens.

A quarta combinação diz respeito ao narrador homodiegético e perspectiva passando pelo narrador. Esta é uma combinação comum nas autobiografias, nos relatos em que o narrador conta de forma retrospectiva fatos sobre sua vida ou nas confissões. O universo de conhecimentos dessa instância narrativa é amplo em relação à sua própria vida, mas restrito em relação às outras personagens, embora possa apresentar informações sobre pessoas com as quais conviveu anteriormente.

A última combinação é a do narrador homodiegético e perspectiva passando pela personagem. A diferença entre esta combinação e a anterior é que nesta o narrador conta os fatos no momento presente e não de forma retrospectiva. Essa instância aproxima o leitor da personagem pela qual a perspectiva passa, fazendo com que conheça seus pensamentos naquele momento, porém, as reflexões relacionadas ao passado e as antecipações sobre o futuro são potencialmente restritas.

Segundo Reuter (2011), diferentes instâncias podem aparecer alternadas ou combinadas em um mesmo texto, dificultando, em alguns casos, que se possa distingui-las. Para o autor, as instâncias são interessantes porque podem liberar ou esconder informações, produzindo diferentes efeitos no leitor.

As combinações apresentadas são comumente percebidas no meio literário, mas o meio cinematográfico conta com diversas matérias de expressão que são capazes de provocar uma espécie de apagamento das instâncias narrativas, por isso se tem a impressão de que elas são mais facilmente identificadas na literatura.

O cinema se diferencia da literatura pela variedade de recursos de que dispõe para a construção de suas narrativas, como afirmam Gaudreault e Jost (2009)

A multiplicidade de matérias de expressão provoca – ou permite uma variedade de “situações narrativas”, além disso, sem igual na literatura escrita. É por isso, então, que a narrativa cinematográfica é bem particularmente apta a empilhar, uns 52

sobre os outros, uma variedade de discursos, uma variedade de planos de enunciação e, finalmente, uma variedade de pontos de vista que podem, eventualmente, se entrechocar. (GAUDREAULT e JOST, 2009, p. 73)

No que diz respeito à narrativa cinematográfica, muito se deve a Albert Laffay, um autor que dedicou muitos artigos à questão da narrativa, considerando também a narrativa no cinema, e que a define contrastando-a com o mundo. Esta referência a um mundo diz respeito ao mundo real, diferente do mundo ficcional. Para este autor, citado por Gaudreult e Jost (2009), diferentemente do mundo, que não apresenta começo nem fim, a narrativa é rigorosamente ordenada, além disso, toda narrativa apresenta uma trama lógica, ou um discurso, sendo organizada por um “mostrador de imagens”. O autor afirma que o cinema apresenta a possibilidade de contar, ao mesmo tempo em que representa, diferentemente do mundo, que somente é.

Comparar a narrativa fílmica à narrativa literária escrita implica reconhecer que, no cinema, a imagem pode mostrar sem dizer, mas na literatura escrita encontramos muitas descrições linguísticas que deixam a cargo de nossa imaginação as imagens daquilo que se descreve, deste modo, o cinema é capaz de mostrar aquilo que a literatura diz ou conta. A narrativa literária apresenta enunciados ordenados de forma linear, enquanto o cinema pode apresentar várias ações de forma simultânea, isto se deve ao fato de que a literatura escrita conta com um recurso de expressão que é a língua, e o cinema conta com diversos recursos como imagens, sons, falas, música e menções escritas.

Sobre as representações de tempo e espaço em ambos os meios, na literatura, quanto ao tempo, é possível perceber sua passagem através das menções feitas pelo narrador sobre datas, horas, estações ou quantidade de tempo transcorrido, por exemplo, e, em alguns casos, através das ações das personagens, que chegam ao leitor por meio da linguagem verbal; no filme, para perceber a passagem do tempo o espectador conta com imagens, diálogos entre personagens ou com a voz do 53 narrador, que pode fazer observações em relação a algum período de tempo que passou. O meio cinematográfico, além da linguagem verbal, utiliza como recurso também a linguagem não verbal.

Quanto ao espaço, o meio cinematográfico possibilita que se mude de espaço repentinamente, elimina as distâncias passando rapidamente do norte ao sul, do leste ao oeste. Essa capacidade de apresentar os mais diversos lugares de forma contigua

é possível através da bidimensionalidade, uma nova categoria para representar o mundo que se fez possível graças aos recursos da montagem (PELLEGRINI, 2003).

O espaço é representado, na narrativa verbal, através das descrições, embora na narrativa literária contemporânea sejam mais curtas as descrições detalhadas.

No cinema, o espaço pode ser representado através de técnicas como a visão panorâmica, a luz, o travelling9, a mudança de planos, entre outras (PELLEGRINI,

2013).

Embora apresente uma linguagem diferente da linguagem escrita, o cinema também é capaz de contar. Metz (2014) considera o cinema como uma linguagem dotada de narratividade, uma vez que os filmes podem apresentar-nos histórias, assim como os livros, mesmo que de modo distinto.

Na literatura escrita, costuma ser explícita a presença do narrador, exceto em algumas narrativas contemporâneas, em que o leitor observa uma sequência de acontecimentos, por vezes enumerados de forma caótica e fragmentada, dando a impressão de que as ações são observadas através de uma câmera (PELLEGRINI,

2013). No cinema, as estratégias utilizadas na narrativa fílmica podem atenuar ou apagar a imagem do narrador, por isso, Gaudreault e Jost (2009) buscam responder à pergunta “quem narra o filme?” Os autores propõem um modelo em que o narrador principal, chamado de meganarrador ou grande imagista, seria a instância que

9 Em cinema, deslocamento da câmera pelo espaço de gravação. Adaptado de: http://www.roteirodecinema.com.br/manuais/vocabulario.htm. Acesso: 20 mar. 2016. 54 manipula os diferentes recursos de expressão fílmica e as organiza, levando ao espectador informações narrativas. Identificam-se duas camadas justapostas de narratividade que são a mostração e a narração. A primeira diz respeito à articulação de fotogramas, que são quadros fotográficos consecutivos, os quais são considerados unidades primárias que objetivam construir a ilusão de movimento contínuo e dão origem às unidades secundárias, chamadas de planos. A articulação de planos, ou a montagem, diz respeito à segunda camada de narratividade cinematográfica: a narração.

As duas camadas, mostração e narração, pressupõem a existência, de acordo com Gaudreault e Jost (2009), de duas instâncias narrativas que são o mostrador e o narrador. Segundo os autores, a voz dessas duas instâncias seria regrada pelo meganarrador ou grande imagista, considerado a instância fundamental da narrativa fílmica. O diagrama a seguir ilustra as camadas da narratividade cinematográfica:

Figura 5- Camadas da narratividade cinematográfica, diagrama baseado em Gaudreault, 1988 (citado por GAUDREAULT e JOST, 2009)

Fonte: Elaborado pela pesquisadora. 55

O meganarrador fílmico é visto como uma instância que manipula as matérias de expressão que o cinema engloba e as organiza, transmitindo informações ao espectador. Esse meganarrador conta com subinstâncias que se responsabilizam pela apresentação da narrativa cinematográfica. A figura acima exemplifica a existência de instâncias diferentes que, agrupadas, dão origem à meganarrativa. A primeira camada narrativa está relacionada à mostração. Esta camada diz respeito à articulação entre fotogramas, ou cada uma das imagens que compõem um filme. Essa articulação de fotogramas possibilita que o espectador possa observar o filme de forma contínua, sem intervalos entre uma imagem e outra. Nesta primeira camada narrativa, verifica-se uma justaposição de imagens que ocorre em uma perspectiva unipontual, porém esta camada dá origem a uma segunda narrativa, ou micronarrativa, que ocorre em uma perspectiva pluripontual, uma vez que é composta não por fotogramas, mas por planos, que surgem a partir da articulação entre fotogramas e representam unidades secundárias.

A articulação entre planos caracteriza o que, em cinema, se convencionou chamar de montagem, e os planos são apresentados não por uma instância que mostra, como é o caso dos fotogramas, mas por uma instância que narra, ou seja, por um narrador fílmico. O articulador destas duas instâncias, que as organiza para apresentá-las ao espectador, é o meganarrador fílmico, que é responsável pela meganarrativa (GAUDREAULT e JOST, 2009).

Para Gaudreault e Jost (2009), a polifonia apresentada pelo cinema possibilita que algumas regras, tão marcantes na literatura, não ocorram com tanta frequência no cinema. Na literatura, por exemplo, é comum que a voz de um subnarrador encubra a voz do meganarrador, ou narrador fundamental ou principal. No cinema, esta não é uma regra, de modo que o meganarrador também pode acobertar a voz de um subnarrador, que pode ser uma personagem da história. 56

A seguir, são apresentados os procedimentos metodológicos para a realização da pesquisa.

57

CAPÍTULO 2: SISTEMATIZAÇÃO DOS CAMINHOS PERCORRIDOS PARA A ANÀLISE DO CORPUS

O objetivo deste capítulo é apresentar os caminhos percorridos ao longo da realização desta pesquisa. A seguir, apresentam-se:

i) A classificação da pesquisa desenvolvida;

ii) O corpus analisado;

iii) O Bandicam, software que permite a captura de imagens e vídeos,

utilizado para a coleta de dados;

iv) Os procedimentos metodológicos;

v) As categorias selecionadas para a análise do corpus.

2.1 CLASSIFICAÇÃO DA PESQUISA

Esta investigação está inserida no campo das pesquisas dos Estudos da

Tradução. A seguir, apresenta-se um diagrama, baseado no Mapa de Holmes (1988), que contribuirá para que seja possível ilustrar em que campo dos Estudos da

Tradução esta pesquisa se enquadra:

58

Figura 6- Diagrama - Estudos da Tradução, baseado no Mapa de Holmes, 1988 (citado por CHESTERMAN, 2014)10

Fonte: Elaborado pela pesquisadora

No diagrama, os Estudos da Tradução se subdividem em pesquisas puras e aplicadas. As pesquisas puras buscam apresentar contribuições para um conhecimento já existente, na tentativa de compreender o porquê de algum fenômeno e atualizar estudos já realizados. As pesquisas aplicadas tendem a apresentar algum tipo de aplicabilidade à prática e se voltam para questões mais específicas, na busca

10 CHESTERMAN, Andrew. O nome e a natureza dos Estudos do Tradutor. Belas Infiéis, v. 3, n. 2, p. 33-42, 2014. Tradução: Patrícia Rodrigues Costa e Rodrigo D’Avila Braga Silva. 59 por resoluções concretas para algum tipo de problema. Esta pesquisa se insere no campo dos estudos puros.

Considerando o diagrama baseado no Mapa de Holmes, de 1988, as pesquisas puras se subdividem em teóricas e descritivas. Com base em Holmes

(1988), citado por Chesterman (2014), esta investigação se insere no campo dos estudos descritivos, pois se busca observar o processo de transposição de uma obra literária para o cinema, com o objetivo de descrever as transformações realizadas na obra original, que passa por um processo de tradução intersemiótica para dar origem a um filme. O produto do ato tradutório será analisado e interpretado, tornando esta pesquisa descritiva orientada ao produto, uma vez que não se observa o processo de tradução e sim o seu resultado.

Esta é uma pesquisa qualitativa de cunho interpretativo. De acordo com

Williams e Chesterman (2002), a pesquisa qualitativa busca descrever a qualidade de algo, fornecendo conclusões sobre o que é possível acontecer em casos específicos.

A análise do corpus tem caráter interpretativista, uma vez que se busca descrever e comparar os dados obtidos, bem como interpretá-los. Moreira e Calefe

(2008) entendem a linguagem como um sistema sobre o qual os indivíduos têm opiniões distintas, de modo que o pesquisador interpretativista pode expor suas conjecturas, suscitando novas interpretações para seu objeto de estudo.

A seguir, se apresenta uma breve descrição sobre as obras Don Quijote de la

Mancha (CERVANTES, 2004) e Donkey Xote (POZO, 2007).

2.2 O CORPUS DA PESQUISA

O corpus desta pesquisa é composto por textos e imagens. Da obra Don Quijote de la Mancha (CERVANTES, 2004) foram extraídos 25 (vinte e cinco) excertos, e do 60 filme Donkey Xote foram selecionadas 62 (sessenta e duas) imagens, que constituem, juntamente com os trechos extraídos do livro, o corpus da pesquisa. A seguir, apresentam-se as obras Don Quijote de la Mancha (CERVANTES, 2004) e Donkey

Xote (POZO, 2007).

2.2.1 Don Quijote de la Mancha (2004)

A obra Don Quijote de la Mancha se divide em duas partes. A primeira foi publicada em 1605, e a segunda em 1615. Segundo González (2013), a obra é considerada o primeiro romance moderno e é o segundo livro mais editado do mundo, atrás somente da Bíblia Sagrada. Don Quijote de la Mancha é considerada a obra de maior destaque da literatura espanhola e uma das mais importantes da literatura universal

A narrativa inicia em La Mancha, região situada na província autônoma de

Castilla- La Mancha, no centro da Espanha, onde vivia Dom Quixote, o personagem principal; um senhor de meia idade, solteiro e sem filhos que, de tanto ler romances de cavalaria, cria um universo imaginário em que ele é um cavaleiro andante e conta com seu fiel escudeiro, Sancho Pança, seu vizinho.

Sancho Pança, que é lavrador, deixa sua família e passa a seguir Dom Quixote, iludido com a perspectiva de ganhar uma ilha, prometida pelo cavaleiro andante.

Como todo cavaleiro andante, Dom Quixote também tem uma musa inspiradora,

Dulcineia de Toboso. A dama, porém, é mais uma criação de sua mente. Dulcineia é criada a partir de uma mulher chamada Aldonza Lorenzo, que existe na obra e é uma pobre camponesa.

Desde o início da obra, Dom Quixote fantasia a partir da leitura, e vê coisas que não existem. Sua perturbação é tanta que o cavaleiro confunde prostitutas com 61 princesas, permite que ladrões fujam por acreditar que são vítimas de injustiça, tenta lutar com leões, busca salvar a santa de uma procissão, por acreditar que a imagem é, na verdade, uma donzela que está sendo vítima de um sequestro, entre outras confusões. Na maioria das vezes que cisma em participar de alguma destas aventuras, Dom Quixote sai machucado e exausto e recebe o apoio de seu fiel escudeiro. Mesmo derrotado, Dom Quixote jamais se dá por vencido; se sente machucado, mas, ao mesmo tempo, satisfeito pela coragem de ir à luta e fazer justiça, sempre em nome de sua amada dama, Dulcineia de Toboso.

Ao fim do primeiro volume da obra, composto por 52 (cinquenta e dois) capítulos, o narrador passa a ideia de que acontecerá uma terceira saída de Dom

Quixote (as duas primeiras saídas se dão no primeiro volume) e desafia quem quer que se atreva a continuar sua história. Mas, como Cervantes já se encontrava em idade avançada, e se passou muito tempo desde a publicação da primeira parte do livro, um homem denominado Alonso Fernández de Avellaneda resolve escrever a segunda parte da história e a publica no ano de 1614.

Cervantes não deixa que isso passe despercebido e, no prólogo do segundo volume de Don Quijote de la Mancha, o escritor ataca Alonso Fernández de

Avellaneda, que se oculta usando este pseudônimo. Cervantes o critica por não revelar seu verdadeiro nome e sua pátria, e o insulta afirmando que ele não sabe a continuação da história de Dom Quixote. É interessante observar que, no segundo volume do livro, composto por 74 (setenta e quatro) capítulos, a própria personagem,

Dom Quixote, tem notícia da publicação de um livro que conta seus feitos heroicos, e, para reforçar ainda mais os insultos de Cervantes ao tal Alonso Fernández de

Avellaneda, Dom Quixote também lança suas críticas contra o falso autor, como se pode ver no seguinte excerto da obra:

62

– Ahora – dijo don Quijote – que no ha sido sabio el autor de mi historia, sino algún ignorante hablador, que a tiento y sin algún discurso se puso a escribirla, salga lo que saliere, como hacía Orbaneja, el pintor de Úbeda, al cual preguntándole qué pintaba respondió: “Lo que saliere”11 (CERVANTES, 2004, p. 571)

Em outro trecho se encontra o seguinte fragmento: “[...] los historiadores que de mentiras se valen habían de ser quemados como los que hacen moneda falsa

[…]12(CERVANTES, 2004, p.572). Como se pode perceber por estas citações, é quase palpável a indignação de Dom Quixote em relação a esta falsa história, criada sobre suas aventuras de cavaleiro andante. O narrador de Dom Quixote interpela sempre o leitor, buscando envolvê-lo com a história, e costuma infiltrar aspectos reais dentro da ficção, como acontece no prólogo do livro, quando se esclarece o fato de que o primeiro volume é escrito em uma prisão (de fato Cervantes estava preso), já no segundo volume do livro, o leitor entende que há uma versão falsa da obra circulando na ficção, fato que também ocorreu na realidade, com a versão de Alonso Fernández de Avellaneda.

A terceira saída resulta na viagem mais longa de Dom Quixote. Um dos temas mais importantes do segundo volume da obra é o encantamento de Dulcineia e, ao fim deste volume, Dom Quixote morre.

Segundo Oliveira e Araújo (2011), a obra foi concluída em um período em que a Espanha passava por problemas econômicos e, para refugiar-se da triste realidade, a população passou a ler muitos romances de cavalaria, um gênero literário característico da Idade Média e que teve seu apogeu entre o final do século XV e o início do século XVII, em países como Espanha, Portugal, França, Itália e Inglaterra.

11 Agora digo – disse Dom Quixote – que não foi sábio o autor de minha história, mas sim algum falador ignorante, que a pulso e sem algum discurso se pôs a escrevê-la, saia o que sair, como fazia Orbaneja, o pintor de Úbeda, ao qual perguntando-lhe o que pintava respondeu: “O que sair” [...] (Tradução da pesquisadora) 12 [...] Os historiadores que de mentiras se valem deveriam ser queimados como os que falsificam dinheiro [...] (Tradução da pesquisadora) 63

Os heróis dos romances de cavalaria despertavam o imaginário popular, pois eram corajosos, fortes e podiam transpor qualquer obstáculo, servindo de modelo para muitos leitores. Cervantes, de acordo com Oliveira e Araújo (2011), é atraído pela possibilidade de identificar seu herói, Dom Quixote, como um cavaleiro andante, assim como os heróis dos romances de cavalaria; porém, Cervantes destaca o quanto é caricata a obsessão que algumas pessoas têm por viver em um mundo ideal, que só existe nos romances, seu grande diferencial é satirizar os romances de cavalaria, apresentando não um herói ideal, mas um herói real, que é fraco, está em idade avançada e tomado pela loucura.

As personagens principais, Dom Quixote e Sancho Pança, não são constantes, elas mudam, vivem bons e maus momentos, são exaltadas e rebaixadas. Dom

Quixote adquire características de Sancho, e o contrário também acontece. O cavaleiro não é sempre louco, assim como o escudeiro não é sempre simplório. Estas imprevisibilidades da obra lhe conferem um caráter de realidade, pois na vida também há fases boas e ruins.

O fato de apresentar suas personagens em constante estado de evolução, conferindo um caráter realístico aos seus feitos, fez com que Cervantes se diferenciasse de outros autores, que continuavam apostando nos tradicionais romances de cavalaria, e gravou seu nome para sempre na história da humanidade, como o precursor do romance moderno, através da obra Don Quijote de la Mancha.

2.2.2 Donkey Xote (2007)

Donkey Xote (2007) é um filme espanhol baseado na obra de Cervantes, Don

Quijote de la Mancha. O filme é produzido em computação gráfica, por Filmax, e dirigido por José Pozo. 64

A computação gráfica é um ramo da computação que gera imagens, que podem representar informações e dados ou recriar a vida real. Uma animação pode ser resultado de computação gráfica ou de fotografias de desenhos. Nos dois processos, unem-se vários fotogramas para dar origem ao filme, em que o público visualiza uma média de dezesseis imagens por segundo, o que gera, no espectador, a impressão de movimento constante.

Segundo Fossatti (2009), o cinema de animação surgiu a partir do teatro de sombras chinesas e passou por inovações ao longo do tempo. Antes, produzido manualmente, passou a contar com as contribuições oferecidas pela tecnologia e incorporou novos formatos. Atualmente, o espectador pode ter acesso a filmes, de animação ou não, em várias dimensões, o que provoca inúmeros efeitos, como a ilusão de profundidade, o movimento das poltronas, vento, jatos de água, fumaça, cheiros, entre outros.

O cinema de animação, que em suas origens tinha como foco as crianças, passou a atingir também o público jovem e adulto. Na atualidade, a principal referência quando se trata de animação segue sendo Walt Disney, mesmo tendo falecido na década de 1960, suas técnicas continuam inspirando novos animadores em suas criações (FOSSATTI, 2009). Walt Disney contribuiu para a fundação da companhia popularmente conhecida como Disney, importante produtora de animações. Porém, vale ressaltar que os estúdios e Dreamworks adquiriram visibilidade com o tempo e, atualmente, competem com a Disney no quesito produção de filmes de animação.

A animação Donkey Xote (2007) reconta a história do cavaleiro andante pelo ponto de vista de Rucio, o burro de Sancho Pança, que quer ser um cavalo de porte.

Rucio ganha visibilidade no filme e assume o papel de protagonista, afirmando que conhece a verdadeira história de Dom Quixote, pois vivenciou tudo ao lado de Sancho

Pança, Dom Quixote e Rocinante, seu cavalo. 65

Rucio está cansado da vida pacata que tem em La Mancha e, quando o

Cavaleiro da Meia Lua desafia Dom Quixote para um duelo, o burro enxerga a oportunidade que precisava para aventurar-se, mas para isso precisa convencer

Rocinante, o cavalo de Dom Quixote, a abandonar a vida tranquila e segui-lo, o que, com perseverança, logo consegue.

Como adaptação de obra mundialmente conhecida, Donkey Xote recebeu uma série de críticas; o ponto de vista apresentado por Rucio modifica a narrativa original, o que faz com que os que esperam assistir a um filme muito semelhante à obra Don

Quijote de la Mancha se sintam decepcionados.

Para Oliveira (2009), o filme não é empolgante e o roteiro não desenvolve diálogos divertidos, além disso, segundo o autor, não há originalidade, uma vez que o filme apresenta personagens semelhantes a outros encontrados em Shrek, A Fuga das Galinhas e O Rei Leão.

Sabadin (2009) avalia positivamente a qualidade técnica da animação que, segundo ele, apresenta boa movimentação e personagens carismáticos, além de cenários inspirados em Francisco de Goya, famoso pintor espanhol. Porém, de acordo com o autor, se a técnica é boa, o roteiro deixa a desejar, tornando a trama sonolenta, uma vez que nada de inusitado acontece.

Entretanto, observa-se que o filme apresenta um roteiro inusitado. Se comparado à obra original, o final é imprevisível, já que em Don Quijote de la Mancha

Dulcineia não existe e Dom Quixote morre no último capítulo; em contrapartida, no filme, Dulcineia e Dom Quixote têm um final feliz, ao lado do burro, personagem que reconta a história do cavaleiro andante.

O fato de o espectador acompanhar a narrativa através do ponto de vista do burro também simboliza um diferencial para a animação, que coloca um animal socialmente depreciado como narrador e personagem central. Além disso, cada 66 fotograma foi cuidadosamente produzido, dando origem a uma animação que apresenta belas e inspiradoras imagens.

Há também a apresentação dos personagens semelhantes a outros vistos em

Shrek (2001), A Fuga das Galinhas (2000) e O Rei Leão (1994), que não tira a originalidade da animação, pois, como afirma Bakhtin (1997), algo que se cria a partir de outra coisa nunca é simples reflexo do seu original, mas apresenta alguma característica nova, que antes de sua produção não existia.

As figuras abaixo ilustram estas personagens consideradas, por Oliveira

(2009), semelhantes:

Figura 7- Leão em "O Rei Leão" (1994) e em "Donkey Xote" (2007)

FONTE: Montagem produzida pela pesquisadora.13

13 FIGURA 1: O Rei Leão. Disponível em: Acesso: 13 abr. 2017.

FIGURA 2: DONKEY XOTE. Diretor: José Pozo. Filmax. Espanha. 2007. DVD (85 minutos aprox.), colorido. 67

Figura 8- Burro em "Shrek" (2001) e em "Donkey Xote" (2007)

FONTE: Montagem produzida pela pesquisadora.14

Figura 9- Galinhas em "A Fuga das Galinhas” (2000) e em "Donkey Xote" (2007)

FONTE: Montagem produzida pela pesquisadora15.

14 FIGURA 1: 11 Melhores Personagens Secundários do Cinema Animado. Disponível em: Acesso: 13 abr. 2017.

FIGURA 2: DONKEY XOTE. Diretor: José Pozo. Filmax. Espanha. 2007. DVD (85 minutos aprox.), colorido.

15 FIGURA 1: A Fuga das Galinhas. Disponível em:< http://teufilme.tv/fuga-das-galinhas/> Acesso: 13 abr. 2017.

FIGURA 2: DONKEY XOTE. Diretor: José Pozo. Filmax. Espanha. 2007. DVD (85 minutos aprox.), colorido. 68

Observa-se, tanto em relação aos leões, quanto aos burros e às galinhas, que as personagens não são tão semelhantes; e, aos espectadores que assistiram a todas as animações citadas, é possível associar cada personagem à sua respectiva animação, sem dificuldades.

A seguir, será apresentado o Bandicam, instrumento utilizado para a coleta de dados.

2.3 O BANDICAM

O Bandicam16 é um software que permite a captura de imagens e vídeos e apresenta uma versão paga e outra gratuita, podendo ser testado sem custos, embora, nesta versão, limite o tempo de gravação dos vídeos em dez minutos.

Abaixo, apresenta-se uma imagem da tela inicial do Bandicam. Tutoriais17 para download e utilização do software podem ser encontrados na internet.

16 O programa está disponível para download em: . 17 Um tutorial para download e utilização do software pode ser encontrado em: < https://www.youtube.com/watch?v=lpmpQdFtGeU>

69

Figura 10- Tela inicial do Bandicam

Fonte: Imagem capturada pela pesquisadora, através da Ferramenta de Captura do Windows 7 Professional.

A seguir, são descritos os procedimentos metodológicos adotados ao longo da pesquisa.

2.4 PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS

Para atingir os objetivos propostos, foram adotados os seguintes

procedimentos:

i) Leitura e seleção dos excertos da obra Don Quijote de la Mancha.

ii) Captura de cenas do filme Donkey Xote, através do software

Bandicam.

iii) Emparelhamento dos excertos do livro e das cenas do filme para

comparação, considerando as categorias de análise. 70

iv) Análise da narrativa da adaptação fílmica Donkey Xote (POZO,

2007), comparada à narrativa do segundo volume da obra original

Don Quijote de la Mancha (CERVANTES, 2004), através da

observação das instâncias narrativas analisadas em ambas as

obras, considerando a tradução intersemiótica na adaptação da obra

literária para o cinema.

2.5 CATEGORIAS DE ANÁLISE

Para a análise do corpus, foram consideradas as seguintes categorias:

i) As instâncias narrativas em Don Quijote de la Mancha (2004) e em

Donkey Xote (2007);

ii) A reconstrução da narrativa, em Donkey Xote, através do ponto de vista

de Rucio;

iii) As representações de tempo e espaço na obra literária, Don Quijote de

la Mancha, e na obra cinematográfica, Donkey Xote.

No próximo capítulo, serão discutidas as categorias mencionadas e as implicações descritas nelas, envolvendo a construção narrativa de obra literária para o cinema, considerando o corpus analisado.

71

CAPÍTULO 3: TRADUÇÃO INTERSEMIÓTICA, ADAPTAÇÃO E CONSTRUÇÃO NARRATIVA: DON QUIJOTE DE LA MANCHA (CERVANTES, 2004) E DONKEY XOTE (POZO, 2007)

Com a finalidade de alcançar os objetivos propostos, este capítulo apresenta a análise dos dados coletados. O capítulo está dividido em seções, de acordo com as categorias de análise. A primeira seção apresentada tem como título “As instâncias narrativas em Don Quijote de la Mancha (2004) e em Donkey Xote (2007)”; nesta seção são analisadas as instâncias narrativas na obra literária, Don Quijote de la

Mancha, e na obra cinematográfica Donkey Xote, com o objetivo de descrever como essas instâncias, que estão presentes tanto na literatura quanto no cinema, podem ser percebidas em ambos os meios. Para tanto, são analisados alguns excertos da obra literária, bem como algumas cenas da adaptação fílmica. A segunda seção, intitulada

“A reconstrução da narrativa, em Donkey Xote, através do ponto de vista de Rucio”, busca apresentar como Rucio, burro de Sancho Pança, narrador e protagonista do filme, reconstrói a narrativa fílmica e apresenta sua própria visão dos fatos ocorridos durante a terceira saída de Dom Quixote, modificando a versão original da história do cavaleiro andante, criado por Cervantes. Na terceira seção, “As representações de tempo e espaço na obra literária, Don Quijote de la Mancha, e na obra cinematográfica, Donkey Xote”, é observado como as categorias “tempo” e “espaço” são representadas no meio literário e no meio cinematográfico, através da tradução intersemiótica. Em seguida, são discutidas as implicações descritas nas categorias anteriores envolvendo a construção narrativa de obra literária para o cinema.

72

3.1 AS INSTÂNCIAS NARRATIVAS EM DON QUIJOTE DE LA MANCHA (2004) E EM

DONKEY XOTE (2007)

As instâncias narrativas articulam as relações entre duas formas básicas de narrador, homodiegético e heterodiegético18 (REUTER, 2011), e três perspectivas possíveis (visão com, visão de trás e visão de fora). As relações entre as duas formas básicas, ou vozes, do narrador e as três perspectivas apresentadas originam cinco combinações de instâncias narrativas possíveis, conforme descrevemos no primeiro capítulo desta dissertação.

A seguir, são analisadas as duas instâncias narrativas identificadas na obra literária, Don Quijote de La Mancha (2004), e na adaptação cinematográfica, Donkey

Xote (2007).

3.1.1 Don Quijote de la Mancha: narrador heterodiegético e perspectiva passando pelo narrador

O narrador é a instância capaz de intermediar a interação entre a narrativa e o leitor ou espectador. Essa instância tem a função de apresentar as personagens da história e situá-las no tempo e no espaço.

No excerto apresentado abaixo, o narrador descreve uma visita que o padre e o barbeiro fazem à casa de Dom Quixote, após quase um mês sem vê-lo, para falar com sua sobrinha e sua ama, com o objetivo de dar-lhes algumas instruções para que cuidassem bem de Dom Quixote:

18 Genette [s.d.] distingue três tipos de narrador (autodiegético, homodiegético e heterodiegético), porém tanto o narrador autodiegético (que narra a história da qual participa como protagonista) quanto o narrador homodiegético (que narra a história da qual participa como personagem) conta fatos que vivenciou. Em termos de atitude narrativa, que diz respeito às relações entre o narrador e a história narrada, ambos são presentes na história como personagens, por isso, em relação à voz, são classificados como homodiegéticos. 73

Cuenta Cide Hamete Benengeli, en la segunda parte de esta historia y tercera salida de don Quijote que el cura y el barbero se estuvieron casi un mes sin verle, por no renovarle y traerle a la memoria las cosas pasadas, pero no por esto dejaron de visitar a su sobrina y a su ama, encargándolas tuviesen cuenta con regalarle, dándole a comer cosas confortativas y apropiadas para el corazón y el celebro, de donde procedía, según buen discurso, toda su mala ventura.19 (CERVANTES, 2004, p. 549, grifo da pesquisadora)

O leitor percebe a história através da perspectiva apresentada pelo narrador, que pode ser mais ou menos detalhista em sua narração, dependendo da distância entre ele e a narrativa. Um narrador que apresenta os fatos em primeira pessoa do singular está mais próximo da narrativa do que um narrador que apresenta os fatos em terceira pessoa, o que indica que não vivencia a história. É o caso do narrador que se apresenta no excerto observado, que já inicia a narrativa com um verbo em terceira pessoa “cuenta”, em português: “conta”.

Considerando a classificação apresentada por Genette [s.d.], o narrador seria heterodiegético, ou seja, é um narrador que não participa da história como personagem, apenas relata fatos ocorridos a terceiros. Por isso, sua distância em relação à narrativa é maior, uma vez que como narrador heterodiegético não vivencia os fatos.

Cabe esclarecer quem seria Cide Hamete Benengeli, citado no excerto como se fosse autor, já que a obra é de autoria de Miguel de Cervantes. Ele é uma espécie de segundo autor ou autor interno à obra e fictício. Cervantes introduz Cide Hamete

Benengeli20 na narrativa como um historiador árabe, que escreve o original e

19 Conta Cid Hamete Benengeli na segunda parte desta história e terceira saída de Dom Quixote que o padre e o barbeiro estiveram quase um mês sem vê-lo, para não lhe renovarem e trazerem à memória as coisas passadas, mas nem por isso deixaram de visitar sua sobrinha e sua ama, encarregando-as de trata-lo com cuidado, dando-lhe para comer coisas confortativas e apropriadas para o coração e o cérebro, de onde procedia, segundo a lógica, toda sua desventura. (Tradução da pesquisadora) 20 Cide Hamete Benengeli aparece na obra a partir do nono capítulo do primeiro volume, os oito primeiros capítulos são creditados a um autor anônimo. 74 posteriormente é traduzido, assim, a versão que lemos seria o resultado da tradução do texto original, escrito em árabe.

Ao criar um autor fictício para sua obra, Cervantes confere um tom de realidade à ficção, pois dá a impressão, ao leitor, de que a origem da narrativa, apresentada na obra, é verídica. Além disso, essa é uma forma de parodiar os romances de cavalaria, que comumente adotavam a estratégia de afirmar que eram o resultado de uma tradução e que o original havia sido encontrado misteriosamente.

Cide Hamete Benengeli, como autor interno à obra, é detentor do conhecimento acerca da história. Ele é capaz de oferecer uma visão total da narrativa.

Há também um tradutor anônimo, que apresenta a tradução da obra para o castelhano, o excerto seguinte faz parte do início do quinto capítulo do segundo volume da obra, nele se pode perceber a presença deste tradutor:

Llegando a escribir el traductor de esta historia este quinto capítulo, dice que le tiene por apócrifo, porque en él habla con otro estilo del que se podía prometer de su corto ingenio y dice cosas tan sutiles, que no tiene por posible que él las supiese, pero que no quiso dejar de traducirlo, por cumplir con lo que a su oficio debía; y así, prosiguió diciendo: Llegó Sancho a su casa tan regocijado y alegre, que su mujer conoció su alegría a tiro de ballesta; tanto, que la obligó a preguntarle: –¿Qué traés, Sancho amigo, que tan alegre venís?21 (CERVANTES, 2004, p. 581, grifo da pesquisadora)

Porém, é através de um narrador heterodiegético que o leitor da obra conhece a história. Esse narrador relata o resultado da tradução feita a partir dos escritos de

21 Chegando a escrever o tradutor desta história este quinto capítulo, diz que o tem por apócrifo, porque nele fala Sancho Panza com um estilo diferente do que se poderia esperar de seu curto engenho e diz coisas tão sutis, que não acha possível que ele as soubesse, mas que não quis deixar de traduzi-lo, para cumprir o seu ofício; e, assim, prosseguiu dizendo: Chegou Sancho a sua casa tão regozijado e alegre, que sua mulher reconheceu sua alegria de longe; tanto, que se sentiu na obrigação de perguntar: - O que trazes, Sancho amigo, que vens tão alegre? (Tradução da pesquisadora) 75

Cide Hamete Benengeli ao leitor, não vivencia a história, mas detém todo o conhecimento sobre os fatos narrados.

Em Don Quijote de la Mancha (2004), tem-se como perspectiva uma “visão de trás”, simbolizada por Todorov, de acordo com Genette [s. d.], pela fórmula “Narrador>

Personagem”, o que significa que o narrador detém mais informações que qualquer personagem da história. Embora o narrador da obra não participe da narrativa e se mantenha distanciado dos fatos que narra, ele apresenta uma visão macro e ilimitada.

Em termos de instância narrativa, é possível identificar na obra Don Quijote de la Mancha (2004) a presença de um narrador heterodiegético, com perspectiva passando pelo narrador. Ou seja, há um narrador que domina todos os dados da história, como se pode ver nos excertos abaixo:

Pensativo además quedó don Quijote, esperando al bachiller Carrasco, de quien esperaba oír las nuevas de sí mismo puestas en libro, como había dicho Sancho; y no se podía persuadir a que tal historia hubiese, pues aún no estaba enjuta en la cuchilla de su espada la sangre de los enemigos que había muerto, y ya querían que anduviesen en estampa sus altas caballerías. Con todo eso, imaginó que algún sabio, o ya amigo o enemigo, por arte de encantamiento las habrá dado a la estampa: si amigo, para engrandecerlas y levantarlas sobre las más señaladas de caballero andante; si enemigo, para aniquilarlas y ponerlas debajo de las más viles que de algún vil escudero se hubiesen escrito, puesto –decía entre sí– que nunca hazañas de escuderos se escribieron; y cuando fuese verdad que la tal historia hubiese, siendo de caballero andante, por fuerza había de ser grandílocua, alta, insigne, magnífica y verdadera. Con esto se consoló algún tanto, pero desconsolole pensar que su autor era moro, según aquel nombre de Cide; y de los moros no se podía esperar verdad alguna, porque todos son embelecadores, falsarios y quimeristas. Temíase no hubiese tratado sus amores con alguna indecencia, que redundase en menoscabo y perjuicio de la honestidad de su señora ; deseaba que hubiese declarado su fidelidad y el decoro que siempre la había guardado, menospreciando reinas, emperatrices y doncellas de todas calidades, teniendo a raya los ímpetus de los naturales movimientos; y así, envuelto y revuelto en estas y otras muchas imaginaciones, le hallaron Sancho y Carrasco, a quien don Quijote recibió con mucha cortesía.22 (CERVANTES, 2004, p. 566, grifo da pesquisadora)

22 Muito pensativo estava Dom Quixote, esperando o bacharel Carrasco, de quem esperava ouvir as novidades sobre si mesmo que estavam no livro, como havia dito Sancho, e não se podia persuadir que tal história houvesse, pois ainda não estava seco na lâmina de sua espada o sangue dos inimigos que havia matado, e já queriam que estivessem impressas suas aventuras. Com tudo isto, imaginou que algum sábio, ou amigo ou inimigo,, por arte de encantamento as haveria dado à estampa: se amigo, para engrandece-las e levantá-las sobre 76

Os excertos fazem parte do início do capítulo III, do segundo volume da obra. A esta altura, Dom Quixote tem informações de que foi feito um livro sobre sua história, de modo que muitos já conhecem seus feitos como cavaleiro andante. No excerto, o narrador expõe sentimentos e pensamentos do cavaleiro andante que só um narrador onisciente, que domina todo o conhecimento sobre a história, poderia revelar.

O narrador sabe mais do que todas as outras personagens, ele tem conhecimento sobre seus pensamentos, sentimentos e comportamentos. Por vezes, ele se confunde com o próprio Miguel de Cervantes, como no prólogo da obra, quando o narrador, utilizando a primeira pessoa do singular, interpela o leitor chamando-o de desocupado e afirma que não é o pai de Dom Quixote, mas seu padrasto (já que, na ficção, o autor da obra seria Cide Hamete Benegeli), e que a concepção do livro se deu em uma prisão, vale ressaltar que, de fato, Miguel de Cervantes esteve preso de

1592 a 1597.

Nos excertos apresentados, o narrador revela ao leitor o estado pensativo em que Dom Quixote se encontra, enquanto espera o bacharel Carrasco para ouvir notícias sobre o livro que conta suas histórias. A personagem imagina quem poderia ter escrito sobre suas façanhas, pondera as consequências, em pensamento, caso o autor seja seu amigo, mas também imagina a possibilidade de a obra ser de autoria de

as mais destacadas de cavaleiro andante; se inimigo, para aniquilá-las e coloca-las abaixo das mais vis que de algum vil escudeiro tivessem escrito, posto – dizia entre si – que nunca escreveram façanhas de escudeiros; e quando fosse verdade que tal história existisse, sendo de cavaleiro andante, por força deveria ser grandíloqua, alta, insigne, magnífica e verdadeira. Com isto se consolou um pouco, mas se desconsolou ao pensar que seu autor era mouro, de acordo com aquele nome de Cide, e dos mouros não se podia esperar verdade nenhuma, porque todos são impostores, falsários e mentirosos. Temia que tivesse tratado seus amores com alguma indecência que redundasse em prejuízo ou dano da honestidade de sua senhora Dulcineia de Toboso; desejava que houvesse declarado sua fidelidade e o decoro que sempre a havia guardado, menosprezando rainhas, imperatrizes e donzelas de toda qualidade, dominando os impulsos do desejo; e assim, envolto e revolto nesses e em outros pensamentos, o encontraram Sancho e Carrasco, a quem Dom Quixote recebeu com muita cortesia. (Tradução da pesquisadora)

77 algum inimigo e teme. Teme também ao pensar na origem do autor que, sendo mouro, podia tratar-se de um mentiroso, sem compromisso algum com a realidade. E, por fim, preocupa a Dom Quixote que esse autor tenha tratado de forma indecente seu amor por Dulcineia de Toboso, por quem o cavaleiro andante tem apreço genuíno e a quem oferta fidelidade sem limites.

Entretanto, não são somente os pensamentos de Dom Quixote, como personagem principal da história, que o narrador conhece, mas ele também é capaz de identificar os pensamentos das outras personagens, por este motivo, dentre outros,

é considerado onisciente. No excerto seguinte, o narrador revela um pensamento que provoca inquietação na criada de Dom Quixote:

Apenas vio el ama que Sancho Panza se encerraba con su señor, cuando dio la cuenta de sus tratos; y imaginando que de aquella consulta había de salir la resolución de su tercera salida, y tomando su manto, toda llena de congoja y pesadumbre se fue a buscar al bachiller Sansón Carrasco, pareciéndole que por ser bien hablado y amigo fresco de su señor le podría persuadir a que dejase tan desvariado propósito23. (CERVANTES, 2004, p. 594, grifo da pesquisadora)

Além de conhecer intimamente todas as personagens, esta instância também pode estar em diferentes lugares da história e saber o que se passa em todos eles. No início do sexto capítulo do segundo volume da obra, este narrador conta que, enquanto Sancho e sua esposa, Teresa, conversavam, a ama e a sobrinha de Dom

Quixote estavam deduzindo que ele estava planejando sair pela terceira vez. Essa façanha indica que este narrador sabe de tudo o que se passa em diferentes espaços da história, pois, enquanto Sancho e Teresa discutem em sua casa, a ama e a

23 Apenas viu a ama que Sancho Pança se trancou com seu senhor, e se deu conta do que deviam estar tratando; e imaginou que de daquele encontro poderia sair a resolução para sua terceira saída, pegando seu manto, cheia de desgosto e tristeza, foi procurar o bacharel Sansón Carrasco, parecia-lhe que por ser bem falante o novo amigo de seu senhor poderia persuadi-lo para que esquecesse tão desvairado propósito. (Tradução da pesquisadora) 78 sobrinha de Dom Quixote estão na casa dele, mas, ainda assim, o leitor tem informações do que está ocorrendo em dois ambientes diferentes ao mesmo tempo, como se pode ver no seguinte excerto:

En tanto que Sancho Panza y su mujer Teresa Cascajo pasaron la impertinente referida plática, no estaban ociosas la sobrina y el ama de don Quijote, que por mil señales iban coligiendo que su tío y señor quería desgarrarse la vez tercera y volver al ejercicio de su para ellas malandante caballería: procuraban por todas las vías posibles apartarle de tan mal pensamiento, pero todo era predicar en desierto y majar en hierro frío24. (CERVANTES, 2004, p. 588)

Outra característica do narrador heterodiegético com perspectiva passando por ele próprio é o fato de que essa instância tem controle sobre o tempo, de modo que pode conhecer acontecimentos do passado, do presente e até do futuro. A perspectiva desse narrador não se limita, por isso ele pode controlar a história, escondendo ou revelando informações, dependendo de qual seja sua intenção em relação ao leitor.

Se quer provocar surpresa ou ansiedade, o narrador pode adiar o momento de apresentar alguma informação para o leitor, mesmo que domine todo o conhecimento sobre a história. Isso implica dizer que, ainda que saiba de todos os fatos, nem sempre a instância narrativa irá revelá-los. O excerto seguinte pode ilustrar isso: “Y con esto se fue el ama, y el bachiller fue luego a buscar al cura, a comunicar con él lo que se dirá a su tiempo”25. (CERVANTES, 2004, p. 595, grifo da pesquisadora)

O narrador retarda o momento de revelar o que ocorre durante a conversa entre o bacharel e o padre para prender a atenção do leitor, para quem a conversa

24 Enquanto Sancho Pança e sua mulher Teresa Cascajo dialogavam de maneira imprópria, a sobrinha e a ama de Dom Quixote não estavam paradas, e considerando mil sinais deduziam que seu tio e senhor queria escapar pela terceira vez e voltar ao exercício de sua, para elas, mal andante cavalaria: procuravam por todas as vias possíveis apartá-lo de tão mal pensamento, mas tudo era como pregar no deserto e golpear ferro frio. (Tradução da pesquisadora) 25 E com isto se foi a ama, e o bacharel foi logo procurar o padre, para conversar com ele o que se dirá a seu tempo. (Tradução da pesquisadora) 79 representa uma incógnita a ser desvendada. Mas, para conseguir desvendá-la, será preciso continuar lendo.

A instância narrativa representada pelo burro Rucio, no filme Donkey Xote, será analisada a seguir.

3.1.2 Donkey Xote: narrador homodiegético e perpectiva passando pelo narrador

Rucio, o burro de Sancho Pança, se apresenta como um subnarrador verbal em Donkey Xote (2007). Considerando as instâncias narrativas apresentadas por

Reuter (2011), Rucio, se classifica como um narrador homodiegético com perspectiva passando por ele próprio.

Segundo Reuter (2011), essa combinação é comum nas confissões, autobiografias ou relatos em que o narrador conta, de forma retrospectiva, fatos sobre sua vida. Rucio, apesar de se propor a contar a história de Dom Quixote, assume, no filme, a posição de protagonista e conta o que viveu ao lado de Dom Quixote, Sancho

Pança e Rocinante, durante a terceira saída do cavaleiro andante.

No início da narrativa fílmica, o espectador observa Dom Quixote cercado por livros de cavalaria e ouve a voz de um narrador, que conta como a obsessão pela leitura de tais livros fez com que Dom Quixote acreditasse que ele próprio era um cavaleiro andante e saísse em busca de aventuras. A figura abaixo ilustra esse momento inicial do filme: 80

Figura 11- Dom Quixote e os livros de cavalaria

FONTE: DONKEY XOTE. Diretor: José Pozo. Filmax. Espanha. 2007. DVD (85 minutos aprox.), colorido.

Rucio aparece em seguida e interrompe a voz desse primeiro narrador, que, assim como o burro, se classifica no filme como um subnarrador verbal. Eles são classificados como subnarradores verbais porque são responsáveis pela

(sub)narrativa oral. Na maior parte do filme, o espectador percebe a história através do meganarrador fílmico, que é responsável pela narrativa audiovisual. É o meganarrador fílmico, essa instância maior que organiza a narrativa fílmica de modo geral, que permite que o cinema possa “mostrar ações sem dizê-las” (GAUDREAULT e JOST,

2009, p. 57).

A voz do primeiro subnarrador do filme narra a história de Dom Quixote conhecida através da obra de Miguel de Cervantes. Porém, Rucio afirma que ninguém se interessa pela história descrita no livro, pois ele estava lá quando tudo aconteceu e presenciou os fatos, de modo que, através dele, o mundo pode conhecer a verdade sobre a terceira saída de Dom Quixote. Aparece, então, uma luz sobre o burro, que lhe confere foco e simboliza seu protagonismo na obra. A figura abaixo representa este momento: 81

Figura 12- Rucio

FONTE: DONKEY XOTE. Diretor: José Pozo. Filmax. Espanha. 2007. DVD (85 minutos aprox.), colorido.

A narrativa do filme, construída a partir da visão de Rucio, inicia com o burro saindo dessa espécie de estúdio, em que uma luz recai sobre ele, e entrando de fato na história, conforme figura abaixo:

Figura 13- Início da narrativa em Donkey Xote (2007)

FONTE: DONKEY XOTE. Diretor: José Pozo. Filmax. Espanha. 2007. DVD (85 minutos aprox.), colorido.

Como personagem da história que conta, o burro não se distancia da narrativa, uma vez que conta aquilo que viveu e, ao afirmar que estava lá quando tudo aconteceu, busca convencer o espectador de que sua versão é a verdadeira. Nas 82 cenas apresentadas abaixo, é possível perceber sua presença na narrativa desde o início até o final:

Figura 14- Presença de Rucio na adaptação fílmica

Fonte: DONKEY XOTE. Diretor: José Pozo. Filmax. Espanha. 2007. DVD (85 minutos aprox.), colorido.

De acordo com a classificação apresentada por Genette [s.d.], Rucio é um narrador autodiegético, pois é protagonista da história que narra e, como protagonista, ele tem sonhos ambiciosos, é valente e tem disposição para desbravar o mundo. Não se contentando com sua pacata vida em La Mancha, deseja viajar pela terceira vez com Dom Quixote, Sancho e Rocinante.

Assim como Dom Quixote divaga, ao achar que é um cavaleiro andante e que

Dulcineia é uma bela dama, Rucio acredita que algum dia será um cavalo de porte e ganhará um beijo de Dulcineia.

O burro não é um narrador estranho à história que narra, mas uma personagem dela, por isso, no que diz respeito à voz, sua atitude narrativa é homodiegética. Quanto às perspectivas possíveis, discutidas no primeiro capítulo, o espectador acompanha a história através de Rucio, portanto, se observa em Donkey

Xote, em termos de perspectiva, uma “visão com”. Essa perspectiva faz com que o espectador observe os fatos juntamente com Rucio, a partir do seu ponto de vista.

Nesse caso, o narrador é também personagem e se representa através da fórmula apresentada por Todorov, “Narrador=Personagem”, de acordo com Genette 83

[s.d.]. Uma vez que o espectador acompanha a terceira saída de Dom Quixote juntamente com Rucio, sua perspectiva poderia ser considerada restrita, pois ele só conhece aquilo que vivencia, sua visão é micro e limitada. Entretanto, vale ressaltar que esta é uma classificação que tem como base a narrativa escrita e, como discutido anteriormente, a narrativa cinematográfica conta com uma diversidade de matérias de expressão que a diferencia da narrativa escrita, para a qual a linguagem verbal é a matéria de expressão por excelência.

No filme, Rucio é apenas um subnarrador verbal e, como apresentado no primeiro capítulo, a narrativa fílmica é resultado da articulação entre fotogramas e da articulação entre planos, que originam a meganarrativa ou o filme (GAUDREAULT e

JOST, 2009). A meganarrativa é organizada por uma instância superior, que é o meganarrador.

O burro afirma que contará a verdadeira história de Dom Quixote, pois estava lá, e em seguida o espectador já pode vê-lo participando da sequência fílmica. Porém, sua voz raramente aparece como narrador, o espectador percebe a história através do ponto de vista de Rucio, mas não ouve sua fala com frequência ao longo do filme. Este

é um recurso do cinema que, pela quantidade de matérias de expressão que utiliza em suas produções, amplia a possibilidade de situações narrativas; de modo que, no filme, a visão do espectador, mesmo que acompanhe determinada personagem, não precisa ser tão restrita quanto na narrativa escrita, quando o leitor acompanha uma narrativa em que o narrador é também personagem.

Gaudreault e Jost (2009) destacam que a narrativa cinematográfica, pela diversidade de recursos que apresenta, é capaz de empilhar diversos discursos, planos de enunciação e pontos de vista. De acordo com os autores, a diversidade de recursos que o cinema apresenta possibilita que diversos pontos de vista entrem em choque em um mesmo filme, de modo que não só o narrador segundo pode encobrir a voz do meganarrador, como costuma acontecer na narrativa escritural; no cinema, o 84 contrário é frequente e o meganarrador também pode encobrir a voz do narrador segundo, ou subnarrador.

A visão do espectador, ao longo do filme Donkey Xote, nem sempre é restrita, pois, no cinema, diferentes pontos de vista podem aparecer em um mesmo filme.

Graças a essa diversidade de recursos narrativos que o cinema apresenta, o espectador tem acesso a um sonho de Dom Quixote, como mostram as imagens extraídas do filme, mesmo que o ponto de vista predominante na adaptação fílmica seja o do burro Rucio:

Figura 15- Sonho de Dom Quixote

FONTE: DONKEY XOTE. Diretor: José Pozo. Filmax. Espanha. 2007. DVD (85 minutos aprox.), colorido.

O sonho de Dom Quixote se torna acessível ao espectador não através da voz do subnarrador verbal, Rucio, mas através do meganarrador, ou grande imagista, que se apodera das micronarrativas e constrói a meganarrativa fílmica. 85

Ao dispor de uma quantidade de matérias de expressão maior que a narrativa escritural, uma vez que conta com falas, imagens, músicas, ruídos e legendas, a narrativa fílmica apresenta suas instâncias narrativas de modo menos nítido que a narrativa escrita, é por isso que o espectador, por vezes, tem a impressão de que os acontecimentos de um filme se contam por si só, sem que alguma instância mediadora os apresente. Porém, esta é uma impressão enganosa.

A seguir, são contrastadas as características das instâncias narrativas analisadas de ambas as obras.

3.1.3 Don Quijote de la Mancha X Donkey Xote: Instâncias Narrativas

Considerando as instâncias narrativas observadas, é possível observar que, enquanto em Don Quijote de la Mancha (2004) se apresenta um narrador que compila o resultado da tradução feita a partir dos escritos do autor fictício da obra, Cide

Hamete Benengeli, e repassa as informações sobre a história, que não vivencia, ao leitor; em Donkey Xote (2007), há um subnarrador verbal, Rucio, que conta ao espectador uma história vivenciada por ele.

As duas instâncias são destacadas nesta pesquisa porque sua focalização e ponto de vista são importantes para que leitores e espectadores percebam as narrativas. Em Don Quijote de la Mancha (2004), há um autor interno à obra e também um tradutor anônimo que traduz os escritos deste autor para o castelhano. Porém, não

é através de algum deles, diretamente, que o leitor tem acesso à história de Dom

Quixote, mas através do narrador que compila e repassa ao leitor todas as informações; é o foco narrativo deste narrador que guia o leitor pela história. Em

Donkey Xote (2007), desde o início do filme, o espectador visualiza a história da terceira viagem de Dom Quixote através da versão apresentada por Rucio e, embora as diversas matérias de expressão do cinema possam articular-se e sobrepor à voz do 86

burro ao longo da maior parte do filme, e o cinema conte com recursos capazes de

fazer com que vários pontos de vista possam entrechocar-se em uma mesma película,

em Donkey Xote (2007), o ponto de vista de Rucio é evidenciado em relação ao ponto

de vista de outras personagens.

Para sintetizar o que foi observado a respeito das principais características de

ambas as instâncias narrativas observadas, a seguir, é apresentado um diagrama que

as resume: Figura 16- Diagrama: Instâncias Narrativas

INSTÂNCIAS NARRATIVAS ANALISADAS EM AMBAS AS OBRAS:

Don Quijote de la Mancha (2004): Donkey Xote (2007):

Narrador compilador Rucio, subnarrador verbal

Quanto à voz: Quanto à voz: Heterodiegético Homodiegético

Quanto à perspectiva: Quanto à perspectiva:

Visão de trás Visão com

Instância: Narrador Instância: Narrador heterodiegético e perspectiva homodiegético e perspectiva passando pelo narrador passando pelo narrador

FONTE: Elaborado pela pesquisadora

Em Donkey Xote (2007), o ponto de vista apresentado por Rucio provoca

transformações na narrativa, de modo que a história da terceira viagem de Dom

Quixote contada no filme difere da história original, presente na obra literária. 87

A próxima categoria de pesquisa objetiva discutir como a narrativa da obra literária foi reconstruída, através do ponto de vista de Rucio, e deu origem à narrativa da adaptação fílmica.

3.2 A RECONSTRUÇÃO DA NARRATIVA, EM DONKEY XOTE (2007), ATRAVÉS DO

PONTO DE VISTA DE RUCIO

A adaptação analisada nesta pesquisa se caracteriza como adaptação desde o seu início, quando o espectador visualiza a imagem de um moinho de vento, que gira, enquanto aparece na tela a informação “Basada en la novela de Miguel de Cervantes

‘El Ingenioso Hidaldo Don Quijote de La Mancha26’”, conforme figura abaixo:

Figura 17- Relação explícita entre a adaptação e a obra original

FONTE: DONKEY XOTE. Diretor: José Pozo. Filmax. Espanha. 2007. DVD (85 minutos aprox.), colorido.

A relação dialógica entre a adaptação cinematográfica Donkey Xote (2007) e a obra literária Don Quijote de la Mancha (2004) é, portanto, explícita. De acordo com

Bakhtin (1997), todas as coisas criadas se originam a partir de outras, porém, o que se cria não é simples reflexo daquilo que lhe deu origem, as novas criações sempre

26 Baseada na novela de Miguel de Cervantes “O Engenhoso Fidalgo Dom Quixote de La Mancha” (Tradução da pesquisadora) 88 apresentam algo inédito, que antes delas não existiam. Logo, o filme Donkey Xote

(2007) não é simples reflexo da obra Don Quijote de la Mancha (2004), mas apresenta informações novas e difere da obra literária em muitos aspectos.

Apesar de a crítica ser, com frequência, moralista em relação às adaptações, usando termos como infidelidade, traição e deformação para definir o desserviço que o cinema faz à literatura ao adaptar obras literárias para o meio cinematográfico, para

Johnson (2003), o insistente desejo dos espectadores de que a obra adaptada para o cinema seja fiel à obra original é fruto das expectativas geradas através da leitura do original e representam um falso problema, uma vez que desconsideram as diferenças existentes entre o meio literário e o cinematográfico, pois, enquanto o primeiro dispõe da linguagem verbal para a construção de suas histórias, o segundo conta com imagens, sons não verbais, linguagem verbal oral, música e linguagem verbal escrita.

O leitor que já teve contato com a obra Don Quijote de la Mancha certamente não definirá como “fiel” a esta obra a adaptação cinematográfica Donkey Xote.

Entretanto, mesmo sendo “infiel” ao seu original, a adaptação não deve ser considerada como obra inferior ou subordinada, pois apresenta seu ineditismo em algum aspecto e deve ser vista como obra autônoma.

Em Donkey Xote (2007) são apresentados diversos aspectos que não estão presentes na obra original, e o contrário também acontece. Alguns componentes que estão presentes na obra literária não aparecem na adaptação fílmica, como algumas personagens. No filme, por exemplo, não aparecem a ama e a sobrinha de Dom

Quixote, entretanto, na obra literária, a presença de ambas se nota em diversos momentos, como mostram os excertos abaixo:

Y en esto oyeron que la ama y la sobrina, que ya habían dejado la conversación, daban grandes voces en el patio, y acudieron todos al ruido27. (CERVANTES, 2004, p. 560, grifo da pesquisadora)

27 E nisto ouviram que a ama e a sobrinha, que já haviam deixado a conversa, davam grandes brados no pátio, e acudiram todos ao ruído. (Tradução da pesquisadora) 89

Cuenta la historia que las voces que oyeron don Quijote, el cura y el barbero eran de la sobrina y ama, que las daban diciendo a Sancho Panza, que pugnaba por entrar a ver a don Quijote, y ellas le defendían la puerta28. (CERVANTES, 2004, p. 561, grifo da pesquisadora)

Rogó don Quijote que le dejasen solo, porque quería dormir un poco. Hiciéronlo así y durmió de un tirón, como dicen, más de seis horas: tanto, que pensaron el ama y la sobrina que se había de quedar en el sueño. Despertó al cabo del tiempo dicho y, dando una gran voz, dijo: ¡Bendito sea el poderoso Dios, que tanto bien me ha hecho!29 (CERVANTES, 2004, p. 1.099-1.100, grifo da pesquisadora)

Outras personagens importantes, que não aparecem no filme, são o padre e o barbeiro, porém, na obra literária eles estão presentes em diversos momentos, tanto que o título do primeiro capítulo do segundo volume da obra é “De lo que el cura y el barbero pasaron con don Quijote cerca de su enfermedad30”.

A seguir, observa-se como a narrativa fílmica se reconstrói, através do ponto de vista de Rucio, e se contrastam as características das personagens Dom Quixote,

Dulcineia, Sancho Pança, o bacharel Sansão Carrasco, Avellaneda, os duques e

Altisidora, apresentadas na obra cinematográfica e na obra literária.

3.2.1 A personagem Dom Quixote

Através do ponto de vista de Rucio, que é seguido pelo espectador ao longo da narrativa fílmica, Dom Quixote se apresenta de forma diferente da que é descrito na obra literária, onde se conta que ele era um fidalgo de uns cinquenta anos. Para a

28 Conta a história que as vozes que ouviram Dom Quixote, o padre e o barbeiro eram da sobrinha e da ama, que falavam com Sancho Pança, que pelejava para entrar e ver Dom Quixote, enquanto elas defendiam a porta. (Tradução da pesquisadora)

29 Dom Quixote pediu que o deixassem só, porque queria dormir um pouco. Fizeram isso e ele dormiu sem parar, como dizem, mais de seis horas: tanto, que pensaram a ama e a sobrinha que não despertaria do sono. Despertou após o tempo dito e, dando um grito, disse:

¡Bendito seja o poderoso Deus, que tanto bem me fez! (Tradução da pesquisadora)

30 Do que o padre e o barbeiro passaram com Dom Quixote durante sua enfermidade. (Tradução da pesquisadora). 90

época, Dom Quixote era considerado um ancião, pois a expectativa de vida, na sociedade em que vivia, era de apenas 30 (trinta) anos. Ele também é descrito como um homem de temperamento forte, difícil de intimidar-se, muito magro e melancólico, como mostra o excerto: “Frisaba la edad de nuestro hidalgo con los cincuenta años.

Era de complexión recia, seco de carnes, enjuto de rostro […] “31(CERVANTES, 2004, p. 2832).

No filme, o Dom Quixote visto pelo espectador se apresenta magro e difícil de ser intimidado, como na obra literária, porém, não é um senhor de meia idade de caráter melancólico, conforme figura abaixo:

Figura 18- Dom Quixote

FONTE: DONKEY XOTE. Diretor: José Pozo. Filmax. Espanha. 2007. DVD (85 minutos aprox.), colorido.

Através da observação da imagem acima, é possível perceber que o Dom

Quixote que chega ao espectador por meio do ponto de vista de Rucio não se

31 A idade do nosso fidalgo se aproximava dos cinquenta anos. Tinha um forte temperamento, era muito magro e melancólico. (Tradução da pesquisadora)

32 Excerto retirado do primeiro volume da obra, que não é o foco da pesquisa, mas, como no segundo volume dom Quixote já é conhecido do leitor, foi necessário considerar a descrição da personagem, que se apresenta no início da obra. 91 assemelha, fisicamente, ao Dom Quixote descrito na obra literária. A personagem vista na adaptação é jovem e não apresenta feições melancólicas. A partir da imagem destacada é possível perceber que, transposta para as telas, a personagem ganhou ares de galã de cinema, com um cavanhaque, que lhe confere um visual sedutor, e grandes olhos azuis, que resultam em um olhar marcante, típico de um galã hollywoodiano, ou de algum príncipe de um conto de fadas.

Na transposição da obra do texto verbal para a tela, a descrição, constituída por palavras, dá lugar à imagem. Uma vez que a adaptação da obra literária para o cinema envolve meios diferentes, é preciso que se recodifique a narrativa, ou seja, ocorre uma tradução por meio de transposições intersemióticas, que permitem que se traslade a obra adaptada de um sistema de signos a outro, por isso, a personagem

Dom Quixote, vista no filme, não é apenas descrita, como ocorre na obra original; na adaptação esta personagem é mostrada, pois, como afirmam Gaudreult e Jost (2009), o cinema pode mostrar sem necessariamente precisar dizer. Em relação às características da personagem Dom Quixote, visualizada no filme, que diferem das características apresentadas no livro, elas só comprovam o fato de que a adaptação apresenta sua autonomia e particularidades próprias, e não tem a obrigação de ser fiel ao seu original.

A seguir, são observadas as características da personagem Dulcineia de

Toboso, em ambas as obras.

3.2.2 A personagem Dulcineia de Toboso

Dulcineia de Toboso é uma dama inexistente até mesmo no campo da ficção e só existe na imaginação de Dom Quixote. Com efeito, todos os cavaleiros das novelas de cavalaria contavam com uma dama idealizada, sendo assim, Dom Quixote também precisaria de uma musa, por isso idealiza Dulcineia e vive intensamente este amor impossível. 92

Dulcineia é criada a partir de uma mulher chamada Aldonza Lorenzo, uma camponesa. Dom Quixote se apaixona por esta mulher sem que ela saiba e distorce a realidade, criando, a partir de dela, Dulcineia de Toboso, que, em sua imaginação, é uma nobre dama, educada e linda, como uma princesa.

No capítulo dez do segundo volume da obra, Sancho se aproveita da loucura de Dom Quixote para iludi-lo, dizendo que uma aldeã que encontram pelo caminho é

Dulcineia, como mostram os excertos abaixo:

- De esse modo- replicó don Quijote -, buenas nuevas traes. - Tan buenas – respondió Sancho -, que no tiene más que hacer vuestra merced sino picar a Rocinante y salir a lo raso a ver a la señora Dulcinea del Toboso, que con otras dos doncellas suyas viene a ver a vuesa merced33. (CERVANTES, 2004, p. 618)

[…] Tendio don Quijote los ojos por todo el camino del Toboso, y como no vio sino a las tres labradoras, turbose todo y preguntó a Sancho si las había dejado fuera de la ciudad34. (CERVANTES, 2004, p. 618-619)

A esta sazón ya se había puesto don Quijote de hinojos junto a Sancho y miraba con ojos desencajados y vista turbada a la que Sancho llamaba reina y señora; y como no descubría en ella sino una moza aldeana, y no de muy buen rostro, porque era carirredonda y chata, estaba suspenso y admirado, sin osar desplegar los labios […].35 (CERVANTES, 2004, p. 619)

-Sancho, ¿qué te parece cuán mal quisto soy de encantadores? Y mira hasta dónde se extiende su malicia y la ojeriza que me tienen, pues me han querido privar del contento que pudiera darme ver en su ser a mi señora36. (CERVANTES, 2004, p. 619)

33 – Desse modo – replicou Dom Quixote –, boas novas trazes. – Tão boas – respondeu Sancho –, que vossa mercê não tem mais o que fazer, a não ser sair com Rocinante pelo campo para ver a senhora Dulcineia de Toboso, que, com outras duas donzelas, vem para ver vossa mercê. (Tradução da pesquisadora) 34 Estendeu Dom Quixote os olhos por todo o caminho de Toboso, e como só viu três lavradoras, ficou todo confuso e perguntou a Sancho se as havia deixado fora da cidade. (Tradução da pesquisadora) 35 A esta altura, Dom Quixote já estava ao redor de Sancho e observava de olhos arregalados e vista confusa a que Sancho chamava rainha e senhora, e só conseguia ver uma moça aldeã, que não apresentava boas feições, porque tinha o rosto redondo e chato, estava suspenso e admirado, sem ousar abrir a boca. (Tradução da pesquisadora) 36– Sancho, o que você acha do quanto os encantadores me odeiam? E veja até onde vai a sua malícia e aversão em relação a mim, pois quiseram privar-me da alegria que seria ver minha senhora. (Tradução da pesquisadora) 93

Dom Quixote, não enxergando nada além de uma aldeã, acredita que foi vítima de encantadores, que teriam encantado sua dama, impedindo que ele pudesse vê-la.

Durante a hospedagem no castelo dos duques, fato que será comentado mais adiante, Dom Quixote é enganado por um mordomo que se passa por Merlín, um feiticeiro que afirma que Sancho deve receber três mil e trezentos açoites, para que

Dulcineia seja desencantada, como mostra o seguinte excerto:

—Yo soy Merlín, aquel que las historias dicen que tuve por mi padre al diablo —mentira autorizada de los tiempos—, príncipe de la mágica y monarca y archivo de la ciencia zoroástrica8, émulo a las edades y a los siglos que solapar pretenden las hazañas de los andantes bravos caballeros9, a quien yo tuve y tengo gran cariño. Y puesto que es de los encantadores, de los magos o mágicos contino dura la condición, áspera y fuerte, la mía es tierna, blanda y amorosa, y amiga de hacer bien a todas gentes. En las cavernas lóbregas de Dite, donde estaba mi alma entretenida en formar ciertos rombos y carácteres, llegó la voz doliente de la bella y sin par Dulcinea del Toboso. Supe su encantamento y su desgracia, y su trasformación de gentil dama en rústica aldeana; condolime, y encerrando mi espíritu en el hueco desta espantosa y fiera notomía, después de haber revuelto cien mil libros desta mi ciencia endemoniada y torpe, vengo a dar el remedio que conviene a tamaño dolor, a mal tamaño. ¡Oh tú, gloria y honor de cuantos visten las túnicas de acero y de diamante, luz y farol, sendero, norte y guía de aquellos que, dejando el torpe sueño y las ociosas plumas, se acomodan a usar el ejercicio intolerable de las sangrientas y pesadas armas! A ti digo, ¡oh varón como se debe por jamás alabado!, a ti, valiente juntamente y discreto don Quijote, de la Mancha esplendor, de España estrella, que para recobrar su estado primo la sin par Dulcinea del Toboso es menester que Sancho tu escudero se dé tres mil azotes y trecientos en ambas sus valientes posaderas, al aire descubiertas, y de modo, 94

que le escuezan, le amarguen y le enfaden. Y en esto se resuelven todos cuantos de su desgracia han sido los autores, y a esto es mi venida, mis señores. (CERVANTES, 2004, p. 823-824) 37

Sancho, convencido, por Dom Quixote, a açoitar-se por uma quantia em dinheiro, inicia seu castigo no capítulo setenta e um do segundo volume da obra.

Porém, depois de seis ou oito açoites em suas costas, passou a bater nas árvores, suspirando para que Dom Quixote acreditasse que batia em si mesmo. Pois, para o amo, o desencantamento de Dulcineia era muito importante, não por acaso este é um tema de destaque na segunda parte de Don Quijote de la Mancha.

Na obra literária, Dulcineia só existe nos devaneios de Dom Quixote, porém, no filme, ela aparece, conforme figura abaixo:

37 - Eu sou Merlín, aquele que as histórias/ Dizem que tive por meu pai ao diabo/- mentira autorizada dos tempos -, /príncipe da mágica e monarca/ e arquivo da ciência zoroástrica,/ inimigo às idades e aos séculos/ que aniquilar pretendem as façanhas/ dos andantes bravos cavaleiros,/ por quem tive e tenho grande carinho./ E posto que é dos encantadores,/ Dos magos ou mágicos sempre/ Dura a condição, áspera e forte,/ A minha é terna, branda e amorosa,/ E amiga de fazer bem a todas gentes./ Nas cavernas escuras de Dite,/ Onde estava minha alma entretida/ em formar certas figuras e símbolos mágicos,/ chegou a voz triste da bela/ e sem par Dulcineia de Toboso./ Soube de seu encantamento e de sua desgraça,/ e transformação de gentil dama/ em rústica aldeã; me compadeci,/ e fechando meu espírito no espaço deste espantoso e feroz esqueleto, / depois de ter revirado cem mil livros / desta minha ciência endemoniada e desajeitada,/ venho dar o remédio que convém/ à tamanha dor, a tamanho mal./ Oh tu, glória e honra de quantos vestem/ as armaduras,/ luz e farol, caminho, norte e guia/ daqueles que, deixando o sonho bobo/ e as ociosas penas, se acomodam/ a usar o exercício intolerável/ das sangrentas e pesadas armas!/ A ti digo, oh homem como se deve/ para sempre louvado! A ti, valente/ juntamente e discreto Dom Quixote,/ da Mancha esplendor, de Espanha estrela,/ que para recobrar seu estado primeiro/ a sem par Dulcineia de Toboso/ é necessário que Sancho, teu escudeiro/ se dê três mil açoites e trezentos/ em ambas suas valentes costas,/ ao ar descobertas, e de modo,/ que lhe firam, lhe amarguem e lhe incomodem,/ E esta decisão tomam todos quantos/ de sua desgraça foram os autores,/ e para isto é minha vinda, meus senhores. (Tradução da pesquisadora)

95

Figura 19- Dulcineia de Toboso

FONTE: DONKEY XOTE. Diretor: José Pozo. Filmax. Espanha. 2007. DVD (85 minutos aprox.), colorido.

Na adaptação, antes de aparecer, Dulcineia está presente não só no imaginário de Dom Quixote, mas também no de Rucio, que sonha em se tornar um cavalo de porte e ganhar um beijo seu, de fato ele ganha um beijo da dama, como mostra a figura seguinte:

Figura 20- Beijo de Rucio

FONTE: DONKEY XOTE. Diretor: José Pozo. Filmax. Espanha. 2007. DVD (85 minutos aprox.), colorido.

Esta, a propósito, é uma imagem simbólica, pois ocorre nos últimos minutos da película quando, após beijar Dom Quixote, Dulcineia beija o burro, o que reafirma o 96 protagonismo de Rucio na obra cinematográfica, uma vez que o beijo final entre as personagens principais marca o encerramento de diversos filmes.

Outra personagem de destaque, tanto na obra literária quanto na adaptação, é

Sancho Pança. A seguir, se observa como esta personagem é apresentada na obra literária e na adaptação.

3.2.3 A personagem Sancho Pança

A visão que se tem de Sancho, em ambas as obras, é semelhante. O que indica que o ponto de vista do burro, no cinema, não alterou as características desta personagem.

Dom Quixote e Sancho Pança representam mundos opostos. Enquanto o amo

é apaixonado pelos livros, o escudeiro é analfabeto. Dom Quixote muitas vezes se priva de comer por acreditar que um cavaleiro deve aprender a conviver com certas privações, pois nunca sabe por que situações pode passar; Sancho, ao contrário, come de tudo e quanto pode, com o pensamento de que não sabe quando poderá comer novamente. Um é magro e cheio de modos, o outro é gordo e grosseiro; enquanto um imagina demais, o outro é bem realista.

Um é o contrário do outro, mas o que seria de Dom Quixote se não fosse

Sancho Pança? É Sancho quem carrega os mantimentos e remédios, é ele quem cozinha, quem trata dos ferimentos do amo, é ele o portador de recados, e por que não dizer que está em Sancho o equilíbrio de Dom Quixote? Cria-se entre eles uma relação de amizade, mas vale ressaltar que há também outros interesses da parte de ambos, já que Sancho passa a seguir Dom Quixote com o objetivo de melhorar de vida e, em contrapartida, Dom Quixote tira proveito da situação, tratando a Sancho como um subordinado. 97

Sancho é mencionado na obra literária, pela primeira vez, no capítulo VII da primeira parte, como mostra o excerto38:

[...] solicitó don Quijote a un labrador vecino suyo, hombre de bien – si es que este título se puede dar al que es pobre –, pero de muy poca sal en la mollera. En resolución, tanto le dijo, tanto le persuadió y prometió, que el pobre villano se determinó de salirse con él y servirle de escudero. Decíale entre otras cosas don Quijote que se dispusiese a ir con él de buena gana, porque tal vez le podía suceder aventura que ganase, en quítame allá esas pajas, alguna ínsula, y le dejase a él por gobernador de ella. Con estas promesas y otras tales, Sancho Panza, que así se llamaba el labrador, dejó su mujer e hijos y asentó por escudero de su vecino39. (CERVANTES, 2004, p. 72)

A imagem abaixo ilustra a personagem Sancho Pança, na adaptação:

Figura 21- Sancho Pança

FONTE: DONKEY XOTE. Diretor: José Pozo. Filmax. Espanha. 2007. DVD (85 minutos aprox.), colorido.

38 Excerto retirado do primeiro volume da obra, que não é o foco da pesquisa, mas, como no segundo volume Sancho Pança já é conhecido do leitor, foi necessário considerar esta primeira menção feita à personagem, que se apresenta no início da obra.

39 Neste tempo, Dom Quixote mandou chamar a um lavrador vizinho seu, homem de bem – se é que este título pode ser dado a um pobre –, mas de pouca inteligência. Em resolução, tanto lhe disse, tanto lhe persuadiu e prometeu, que o pobre rústico decidiu sair com ele, como seu escudeiro. Entre outras coisas, Dom Quixote dizia-lhe que se dispusesse a ir com ele de boa vontade, porque a qualquer momento poderia suceder uma aventura, e em um piscar de olhos ganharia uma ilha e o deixaria como governador dela. Com estas e outras promessas, Sancho Pança, como se chamava o lavrador, deixou sua mulher e filhos e resolveu sair como escudeiro de seu vizinho. (Tradução da pesquisadora) 98

Observa-se que as características atribuídas a Sancho Pança, na obra literária, permanecem na adaptação. Sancho é visto pelo espectador como um homem simples, do campo, que, apesar de apresentar atitudes duvidosas, como quando mente40 para

Dom Quixote sobre Dulcineia, por exemplo, apresenta boa índole na maior parte de ambas as obras.

Outra personagem que se destaca no original e na adaptação é o bacharel

Sansão Carrasco. Vejamos como esta personagem é adaptada para o cinema e como

é apresentada, através do ponto de vista de Rucio. Além disso, na próxima seção se observa como Avellaneda, autor do Quixote apócrifo, aparece na adaptação.

3.2.4 O bacharel Sansão Carrasco e Avellaneda

Na obra literária, o bacharel é descrito da seguinte forma:

Era el bachiller, aunque se llamaba Sansón, no muy grande de cuerpo, aunque muy gran socarrón; de color macilenta, pero de muy buen entendimiento; tendría hasta veinte y cuatro años, carirredondo, de nariz chata y de boca grande, señales todas de ser de condición maliciosa y amigo de donaires y de burlas41 […]. (CERVANTES, 2004, p. 567)

Observa-se que o bacharel é descrito como um homem jovem, não muito alto e de feições que denotam malícia. A imagem abaixo ilustra como o bacharel é visto na adaptação:

40 Sancho induz Dom Quixote a acreditar que ele (Sancho) já viu Dulcineia. 41 Era o bacharel, ainda que se chamava Sansão, não muito grande de corpo, ainda que muito astuto; de cor pálida, mas de bom entendimento; tinha uns vinte e quatro anos, cara redonda, de nariz chato e de boca grande, todas as indicações de que era malicioso e dado a gracejos e trapaças. (Tradução da pesquisadora) 99

Figura 22- Bacharel Sansão Carrasco

FONTE: DONKEY XOTE. Diretor: José Pozo. Filmax. Espanha. 2007. DVD (85 minutos aprox.), colorido.

O bacharel que aparece na película não parece ser tão jovem quanto o descrito no livro. Transposto para o cinema, Sansão Carrasco ganhou características de vilão.

Na imagem acima, percebe-se a vestimenta escura, o olhar astuto e a postura presunçosa, indicações típicas de personagens maquiavélicas.

Na obra literária, o bacharel é o responsável por persuadir Dom Quixote a viajar pela terceira vez. A postura do bacharel é o resultado de um plano entre ele, o padre e o barbeiro, os três conspiram para que Dom Quixote saia novamente em busca de aventura, pois julgam impossível conseguir detê-lo em sua casa. O plano consiste em convencer Dom Quixote a sair, enquanto o bacharel o segue, buscando travar com ele uma batalha. Uma vez que o bacharel vença a batalha, deve enviar

Dom Quixote de volta para o seu povoado, na esperança de que, estando um tempo em casa, recobre sua lucidez, como apresenta o seguinte excerto:

100

[...] Dice, pues, la historia que cuando el bachiller Sansón Carrasco aconsejó a don Quijote que volviese a proseguir sus dejadas caballerías, fue por haber entrado primero en bureo con el cura y el barbero sobre qué medio se podría tomar para reducir a don Quijote a que se estuviese en su casa quieto y sosegado, sin que le alborotasen sus mal buscadas aventuras; de cuyo consejo salió, por voto común de todos y parecer particular de Carrasco, que dejasen salir a don Quijote, pues el detenerle parecía imposible, y que Sansón le saliese al camino como caballero andante, y trabase batalla con él, pues no faltaría sobre qué, y le venciese, teniéndolo por cosa fácil, y que fuese pacto y concierto que el vencido quedase a merced del vencedor; y así vencido don Quijote, le había de mandar el bachiller caballero se volviese a su pueblo y casa, y no saliese de ella en dos años, o hasta tanto que por él le fuese mandado otra cosa; lo cual era claro que don Quijote vencido cumpliría indubitablemente, por no contravenir y faltar a las leyes de la caballería, y podría ser que en el tiempo de su reclusión se le olvidasen sus vanidades, o se diese lugar de buscar a su locura algún conveniente remedio42. (CERVANTES, 2004, p. 657)

Na obra literária, também é o bacharel que convence Dom Quixote e Sancho

Pança a viajarem pela terceira vez, porém, na adaptação, a confabulação ocorre entre o bacharel e Avellaneda, que planejam humilhar Dom Quixote.

Na adaptação, o bacharel ajuda Dom Quixote a convencer Sancho a viajar, afirmando que foi publicado um livro sobre o cavaleiro e seu fiel escudeiro e que as histórias vividas por eles se tornaram conhecidas por muitas pessoas.

A imagem abaixo ilustra o momento de reunião entre o bacharel, Dom Quixote e Sancho, quando o vilão instiga os dois a viajarem:

42 Diz, pois, a história que quando o bacharel Sansão Carrasco aconselhou Dom Quixote a voltar a ser um cavaleiro andante, foi por haver confabulado antes com o padre e o barbeiro sobre como poderiam convencer Dom Quixote a ficar em sua casa quieto e sossegado, sem que suas aventuras o deixassem agitado, de cujo conselho saiu, por voto comum de todos e parecer particular de Carrasco, que deixassem-no sair, pois detê-lo parecia impossível, e que Sansão também saísse como cavaleiro andante e travasse batalha com ele, pois não faltaria oportunidade, e o vencesse, o que seria fácil, e que fosse acordado que o vencido ficaria à mercê do vencedor, e assim vencido Dom Quixote, o bacharel o mandaria voltar a sua casa e permanecer nela por dois anos ou mais, claro era que Dom Quixote vencido cumpriria indubitavelmente o acordo, por não contrariar as leis da cavalaria, e podia ser que durante sua reclusão ele esquecesse de suas vaidades ou buscasse algum remédio conveniente para sua loucura. (Tradução da pesquisadora) 101

Figura 23- O bacharel, Dom Quixote e Sancho

FONTE: DONKEY XOTE. Diretor: José Pozo. Filmax. Espanha. 2007. DVD (85 minutos aprox.), colorido.

A malícia do bacharel, que já se destaca na obra literária, aparece potencializada na adaptação, onde Sansão Carrasco é visto como um dos vilões da narrativa, juntamente com Avellaneda, com quem aparece, disfarçado, na imagem abaixo:

Figura 24- Sansão Carrasco e Avellaneda

FONTE: DONKEY XOTE. Diretor: José Pozo. Filmax. Espanha. 2007. DVD (85 minutos aprox.), colorido. 102

Na adaptação, Avellaneda e o bacharel são responsáveis pela hospedagem de

Dom Quixote e Sancho Pança no castelo dos duques, fato que será comentado a seguir.

3.2.5 Os duques e Altisidora

Na segunda parte da obra literária, no capítulo trinta, uma duquesa convida

Sancho Pança e Dom Quixote a irem até sua propriedade. Os duques, assim como seus subordinados, induzem o cavaleiro e seu escudeiro a acreditarem que sua fama já se espalhou e se mostram muito honrados em recebê-los. A hospedagem, porém, faz parte do plano do Bacharel Sansão Carrasco, e a intenção dos duques, e de seus empregados, é zombar de seus visitantes. Dom Quixote e seu fiel escudeiro, sem saber, proporcionam muitos risos naquele lugar.

Na adaptação, a hospedagem dos dois no castelo é resultado das armações entre o bacharel Sansão Carrasco e Avellaneda. A intenção dos duques, no entanto, é preservada na obra adaptada, eles planejam iludir e zombar de seus hóspedes, embora tenham adquirido um caráter mais vilanesco em Donkey Xote. Os duques chegam a propor o governo de uma ilha a Sancho, fato que também ocorre na obra literária, porém, tudo não passava de uma armação dos duques para enganar Sancho

Pança e zombar dele, que, por fim, renuncia ao poder da ilha; além disso, enganam

Dom Quixote iludindo-o com a perspectiva de que encontrarão sua amada Dulcineia de Toboso.

No castelo, os duques tratam a Dom Quixote como um verdadeiro cavaleiro andante, enchendo-o de regalias, assim como o seu escudeiro Sancho Pança, porém, tudo o que acontece no castelo é ilusório.

No excerto abaixo, extraído da obra literária, o duque convida Dom Quixote a sentar-se na cabeceira da mesa, que é o lugar reservado a comensais importantes: 103

Convidó el duque a don Quijote con la cabecera de la mesa, y aunque él lo rehusó, las importunaciones del duque fueron tantas, que la hubo de tomar. El eclesiástico se sentó frontero, y el duque y la duquesa, a los dos lados. A todo estaba presente Sancho, embobado y atónito de ver la honra que a su señor aquellos príncipes le hacían43 […] (CERVANTES, 2004, 788)

A imagem abaixo, extraída da obra adaptada, ilustra um dos momentos em que

Dom Quixote e Sancho estão à mesa com os duques; a configuração da cena, entretanto, não é a mesma descrita na obra literária. Na adaptação, através do ponto de vista de Rucio, vê-se aos duques na cabeceira da mesa:

Figura 25- Dom Quixote e Sancho Pança no castelo dos duques

FONTE: DONKEY XOTE. Diretor: José Pozo. Filmax. Espanha. 2007. DVD (85 minutos aprox.), colorido.

Na obra literária, Dom Quixote e Sancho Pança conhecem, no castelo dos duques, a Altisidora, uma donzela da duquesa que finge estar apaixonada por Dom

43 O duque convidou Dom Quixote a sentar-se na cabeceira da mesa, e ainda que tenha recusado, os pedidos do duque foram tantos, que teve que aceitar. O eclesiástico se sentou fronteiro, e o duque e a duquesa dos lados. Sancho estava presente, boquiaberto e atônito por ver o tratamento honrado que aqueles príncipes davam a seu senhor [...] (Tradução da pesquisadora)

104

Quixote e, com os duques, simula sua própria morte, para que Dom Quixote acredite que morreu por sua culpa, porque ele não correspondia a sua paixão.

Como uma forma de zombar dos visitantes, mais uma vez, os duques armam uma espécie de cerimônia para que Sancho Pança seja castigado, pois esta seria a condição para que Altisidora ressuscitasse, como aponta o excerto abaixo:

[...] Radamanto dijo: - ¡Ea, ministros de esta casa, altos y bajos, grandes y chicos, acudid unos tras otros y sellad el rostro de Sancho con veinte y cuatro mamonas, y con doce pellizcos y seis alfilerazos brazos y lomos, que en esta ceremonia consiste la salud de Altisidora44! (CERVANTES, 2004, p.1.072)

Na adaptação, Altisidora está envolvida no plano dos duques para enganar

Dom Quixote, e se passa por Dulcineia de Toboso. Sancho Pança, o único que supostamente viu Dulcineia, por influência da duquesa, afirma que Altisidora é, de fato,

Dulcineia.

Altisidora chega ao castelo e Dom Quixote supõe, graças aos duques, que a dama é Dulcineia e que a sequestraram. O cavaleiro andante duela com dois homens para salvar sua amada, mas ela não lhe dá atenção. As imagens abaixo ilustram o momento da chegada de Altisidora ao castelo:

44 Radamanto disse: - Ei, ministros desta casa, altos e baixos, velhos e jovens, apressem-se uns após os outros para selar o rosto de Sancho com vinte e quatro bofetadas, e com doze beliscões e seis alfinetadas os braços e as costas, que esta cerimônia é para a saúde de Altisidora. (Tradução da pesquisadora) 105

Figura 26- Chegada de Altisidora ao castelo dos duques

FONTE: DONKEY XOTE. Diretor: José Pozo. Filmax. Espanha. 2007. DVD (85 minutos aprox.), colorido.

Os duques conseguem convencer Dom Quixote a casar-se com Altisidora, porém, Sancho impede que o casamento aconteça ao contar que ela não é Dulcineia, deixando o cavaleiro andante muito decepcionado.

Em seguida, Dom Quixote e seu escudeiro deixam o castelo e, durante sua saída, o expectador observa a fachada do lugar caindo, como se pode ver nas imagens abaixo:

Figura 27- Saída do castelo

FONTE: DONKEY XOTE. Diretor: José Pozo. Filmax. Espanha. 2007. DVD (85 minutos aprox.), colorido.

A fachada cai, indicando que tudo o que havia naquele castelo era falso. Todas as ações eram previamente planejadas com a intenção de zombar dos dois visitantes.

Esta intenção pode ser observada tanto na obra literária quanto na adaptação, porém, enquanto na primeira o leitor percebe que a finalidade dos duques é ludibriar seus hóspedes para rir deles, na segunda, percebe-se não só a zombaria, mas também a 106 maldade explícita em cada ação planejada pelos duques, que são cúmplices do bacharel e de Avellaneda.

A seguir, é observado o percurso realizado durante a ida à Barcelona, o duelo final e como se conclui a narrativa, em ambas as obras.

3.2.6 Ida a Barcelona, duelo final e conclusão da narrativa

Na adaptação, após deixarem o castelo, Sancho, Dom Quixote e os animais se deparam com placas que indicam La Mancha e Barcelona. Dom Quixote se mostra lúcido, diz que tudo teve um fim e que passou a vida inteira sendo um covarde, fugindo da realidade e conclui que não se pode viver de ilusões, indicando que voltará a La

Mancha. Sancho argumenta que não conhece um homem mais valente que Dom

Quixote e que, pelo menos, Dulcineia foi uma bela ilusão.

Enquanto cavaleiro e escudeiro ficam em silêncio, a decisão sobre o destino fica a cargo dos animais, que conduzem seus donos a Barcelona, para que Dom

Quixote duele com o Cavaleiro da Meia Lua. As imagens a seguir ilustram as cenas descritas:

Figura 28- La Mancha ou Barcelona?

FONTE: DONKEY XOTE. Diretor: José Pozo. Filmax. Espanha. 2007. DVD (85 minutos aprox.), colorido.

107

Na obra literária, o cavaleiro andante está decidido a ir a Zaragoza, para participar das Justas del Arnés45, porém, decide ir a Barcelona, acompanhado de

Sancho e dos animais, com o objetivo de mostrar-se como o verdadeiro Dom Quixote, desfazendo a imagem que o Quixote apócrifo fez circular por toda Espanha. Dom

Quixote decide que precisa mostrar seu valor como cavaleiro e, como em Barcelona também havia justas organizadas pela Confraria de São Jorge, poderia participar dos torneios daquele lugar.

Na obra literária, Dom Quixote é desafiado pelo bacharel Sansão Carrasco, que se passa pelo Cavaleiro da Branca Lua e, ao vencer o duelo, exige que ele volte a

La Mancha e permaneça lá por um ano. O desafio ocorre no capítulo sessenta e quatro do segundo volume da obra, quando o bacharel aborda Dom Quixote, como apresenta o excerto a seguir:

[...] Vengo a contender contigo y a probar la fuerza de tus brazos, en razón de hacerte conocer y confesar que mi dama, sea quien fuere, es sin comparación más hermosa que tu Dulcinea del Toboso: la cual verdad si tú la confiesas de llano en llano, excusarás tu muerte y el trabajo que yo he de tomar en dártela; y si tú peleares y yo te venciere, no quiero otra satisfacción sino que, dejando las armas y absteniéndose de buscar aventuras, te recojas y retires a tu lugar por tiempo de un año, donde has de vivir sin echar mano a la espada, en paz tranquila y en provechoso sosiego 46 […] (CERVANTES, 2004, p. 1.045)

O plano do bacharel é fazer com que Dom Quixote tranquilize-se em casa e não mais busque sair à procura de aventuras. Vencido no duelo, Dom Quixote,

45 Torneios em memória a São Jorge, realizados em Zaragoza.

46 Venho contender contigo e provar a força dos teus braços, para te fazer conhecer e confessar que minha dama, seja quem for, é sem comparação mais formosa do que a tua Dulcineia de Toboso: e, se confessares esta verdade abertamente, evitarás tua morte e o trabalho que eu hei de ter em dá-la a ti, e se lutarmos e eu te vencer, não quero outra satisfação senão que, deixando as armas e abstendo-te de buscar aventuras, te recolhas e te retires ao teu lugar pelo tempo de um ano, onde viverás, sem pôr a mão na espada, em paz tranquila e em proveitoso sossego. (Tradução da pesquisadora) 108 honradamente, retorna à La Mancha, para cumprir o acordo. Ali, antes de morrer, recobra sua lucidez, como se pode observar no excerto:

- Dadme albricias, buenos señores, de que ya yo no soy don Quijote de la Mancha, sino , a quien mis costumbres me dieron renombre de “bueno”. Ya soy enemigo de y de toda la infinita caterva de su linaje; ya me son odiosas todas las historias profanas de la andante caballería; ya conozco mi necedad y el peligro en que me pusieron haberlas leído; ya, por misericordia de Dios escarmentando en cabeza propia, las abomino47. (CERVANTES, 2004, p. 1.100- 1.101)

Na adaptação, Dom Quixote participa de um torneio, onde há vários homens se passando por Quixotes, em que só o vencedor poderá lutar contra o Cavaleiro da Meia

Lua e conquistar a recompensa, que será Dulcineia de Toboso. Na busca por um cavalo para montar, já que Rocinante não mostra disposição, o cavaleiro andante decide nomear a Rucio como cavalo e o escolhe para lutar ao seu lado.

O bacharel Sansão Carrasco e Avellaneda contratam um cavaleiro para o duelo, para evitar que Dom Quixote chegue à final e duele com o Cavaleiro da Meia

Lua, porém, graças a um leão, que assusta aos demais cavaleiros, e a uma armadura enfeitiçada, o cavaleiro andante consegue chegar à final.

Antes de iniciar a batalha, Dom Quixote desmascara Sansão Carrasco, que, disfarçado, tenta impedi-lo de lutar. O bacharel externa toda a sua inveja pelo cavaleiro e seu escudeiro e afirma que, apesar de todos os seus esforços, não conseguiu ter a fama que eles têm.

Ao fim da batalha, Dom Quixote, vencido, renuncia a Dulcineia, e se surpreende ao descobrir que lutou com a própria dama, que afirma que organizou o duelo para ter certeza de que Dom Quixote de fato existia e não era só um produto de

47 - Dai-me felicitações, bons senhores, já não sou Dom Quixote de La Mancha, mas sim Alonso Quixano, a quem os costumes deram bom renome. Já sou inimigo de Amadís de Gaula e de toda a infinita corja de sua linhagem; já me são odiosas todas as histórias profanas da andante cavalaria; já conheço meu desatino e o perigo em que me coloquei por havê-las lido; já, por misericórdia de Deus, censurando-me, as abomino. (Tradução da pesquisadora) 109 sua imaginação. Dulcineia o declara vencedor da batalha e os dois terminam juntos. A sequência descrita de cenas pode ser ilustrada pelas imagens a seguir:

Figura 29- Duelo entre Dom Quixote e Dulcineia

FONTE: DONKEY XOTE. Diretor: José Pozo. Filmax. Espanha. 2007. DVD (85 minutos aprox.), colorido.

Os momentos finais da película evocam cenas presentes em animações de contos de fadas, como Cinderela (1950), A Bela Adormecida (1959) e A Bela e a Fera

(1991), por exemplo; em que príncipes e princesas se beijam no final, como se pode visualizar através das seguintes imagens:

Figura 30- O final feliz de Dom Quixote e Dulcineia de Toboso

FONTE: DONKEY XOTE. Diretor: José Pozo. Filmax. Espanha. 2007. DVD (85 minutos aprox.), colorido.

Na cena final, Rucio afirma que esta é a verdadeira história de Dom Quixote.

Sancho voltou para casa, para sua mulher. Rocinante voltou para o estábulo, para 110 cuidar de suas galinhas, e Dom Quixote viveu feliz com Dulcineia. Rucio diz que também ficou com eles e que, apesar de não receber nenhum , pelo menos, eles o compreendiam.

A cena final da película é esta:

Figura 31- Cena final de "Donkey Xote"

FONTE: DONKEY XOTE. Diretor: José Pozo. Filmax. Espanha. 2007. DVD (85 minutos aprox.), colorido.

Percebe-se que o final da narrativa é diferente na obra original e na adaptação.

No filme, o cavaleiro andante não duela com o bacharel Carrasco, em Barcelona, mas com Dulcineia; além disso, na adaptação, ele não volta para La Mancha, nem morre, mas tem um final digno de contos de fadas ao lado de sua dama, que na película não existe apenas em sua imaginação. E tudo isto chega ao espectador através do ponto de vista do burro Rucio, que afirma que esta é a verdadeira história de Dom Quixote.

As diferenças observadas em ambas as narrativas corroboram as visões de

Hutcheon (2011) e STAM (2013) a respeito da autonomia que apresentam as adaptações, uma vez que não devem ser vistas como simples reproduções de seus originais, mas como novas criações, que trazem características próprias. De modo que 111 a animação Donkey Xote não é uma simples imitação de Don Quijote de la Mancha, mas uma recriação da obra literária em que se baseia.

A seguir, observa-se como o tempo e o espaço são percebidos na obra literária e como são transpostos para a obra cinematográfica, através do processo de tradução intersemiótica.

3.3 AS REPRESENTAÇÕES DE TEMPO E ESPAÇO NA OBRA LITERÁRIA, DON

QUIJOTE DE LA MANCHA, E NA OBRA CINEMATOGRÁFICA, DONKEY XOTE.

A transposição de uma obra da literatura para o cinema provoca mudanças na percepção de tempo e de espaço. Toda narrativa se constitui de representação de ações. Essa representação se dá, na linguagem verbal, por meio da organização de fatos que são elaborados de forma linguística a partir da percepção do narrador, ou através da apresentação das ações das personagens. É o discurso que possibilita a progressão desses fatos, através da sucessão de enunciados apresentados em uma sequência (PELLEGRINI, 2003). Na narrativa cinematográfica, as ações se desenvolvem através de outros recursos, como imagens e sons, e, consequentemente, o espectador percebe a passagem do tempo e a mudança de espaço através, não só da linguagem verbal, mas também da audiovisual.

Considerando o corpus analisado, foram selecionados oito excertos e vinte e quatro cenas para compará-los, com o objetivo de analisar de que forma o tempo e o espaço são representados em Don Quijote de la Mancha e como são adaptados para a construção da narrativa cinematográfica, em Donkey Xote, através da tradução intersemiótica. Para a análise, foram selecionados momentos específicos de ambas as narrativas, como a saída do lugar em que vivia Dom Quixote com destino a El Toboso; 112 o percurso até o castelo dos duques; a viagem de Sancho em busca da Ilha de

Baratária; e a ida a Barcelona.

3.3.1 Viagem a El Toboso

Na narrativa literária, a primeira menção do narrador à saída em direção a El

Toboso é esta:

«¡Bendito sea el poderoso Alá! -dice Hamete Benengeli al comienzo de este octavo capítulo-. ¡Bendito sea Alá!» repite tres veces, y dice que da estas bendiciones por ver que tiene ya en campaña a don Quijote y a Sancho, y que los lectores de su agradable historia pueden hacer cuenta que desde este punto comienzan las hazañas y donaires de don Quijote y de su escudero; persuádeles que se les olviden las pasadas caballerías del Ingenioso Hidalgo, y pongan los ojos en las que están por venir, que desde ahora en el camino del Toboso comienzan 48[…] (CERVANTES, 2004, p. 601)

Através do excerto apresentado, o leitor tem acesso a informações a respeito de tempo e espaço. De acordo com o narrador, o cavaleiro e seu escudeiro estão, neste momento, a caminho de El Toboso, o que implica na observação de que os viajantes estão deixando o povoado em que vivem. O leitor tem a indicação de um tempo presente através dos verbos utilizados pelo narrador: olviden (esqueçam), pongan (ponham) e comienzan (começam). Outra indicação de tempo é a expressão desde ahora (desde agora), que explicita um tempo presente, imediato. Na narrativa literária, a linguagem verbal é fundamental para que o leitor se situe quanto ao tempo, ao espaço e às ações desenvolvidas pelas personagens. A tradução intersemiótica

48 “Bendito seja o poderoso Alá! – Diz Hamete Benengeli no começo deste oitavo capítulo – Bendito seja Alá!” Repete três vezes, e diz que profere estas bênçãos por ver que Dom Quixote e Sancho estão em perfeitas condições, e que os leitores de sua agradável história podem ter em conta que desde este ponto começam as façanhas e donaires de Dom Quixote e de seu escudeiro; lhes persuade para que esqueçam as aventuras passadas do Engenhoso Fidalgo, e observem as que estão por vir, que já estão a caminho de El Toboso [...] (Tradução da pesquisadora)

113 permite que o espectador da narrativa fílmica possa se situar em relação aos aspectos citados por meio da linguagem audiovisual. As imagens abaixo ilustram como a cena descrita acima foi transposta para o cinema:

Figura 32- Saída do povoado em que vivia Dom Quixote

Fonte: DONKEY XOTE. Diretor: José Pozo. Filmax. Espanha. 2007. DVD (85 minutos aprox.), colorido. 114

Através desta sequência de imagens é possível visualizar que os viajantes estão se afastando do povoado, localizado em algum lugar de La Mancha, em que vivia Dom Quixote. A primeira cena mostra que Dom Quixote, Sancho Pança e os animais ainda estão no povoado, a segunda e a terceira imagens ilustram um distanciamento entre eles e o lugar. A mudança de espaço é observada através dos cortes, ou da passagem de um plano a outro.

Conforme os aventureiros se afastam, o espectador percebe não só mudança de espaço, mas também a passagem do tempo. As imagens abaixo ilustram essa transição:

Figura 33- Percurso até El Toboso

Fonte: DONKEY XOTE. Diretor: José Pozo. Filmax. Espanha. 2007. DVD (85 minutos aprox.), colorido.

A primeira cena indica a saída do povoado, a vegetação seca é um índice da escassez de chuvas naquela região da Espanha, que se assemelha ao Nordeste brasileiro, no que diz respeito ao clima. Ainda sobre a primeira cena, o céu está claro, indicando um dia ensolarado.

Na segunda cena observa-se um espaço diferente, sendo visualizados um rio e uma vegetação distinta daquela vista na primeira imagem. As cores mais escuras presentes no céu são um índice de que entardeceu e a noite está próxima.

Quanto à terceira cena, nela se observam formações rochosas, não visualizadas anteriormente, o que indica que os viajantes já se encontram em outro 115 espaço, além disso, o dia está chuvoso e mais escuro, índice de que a noite está ainda mais próxima.

Seguindo o percurso, os viajantes caminham em direção a El Toboso. O excerto abaixo apresenta a descrição da chegada:

Media noche era por filo, poco más o menos, cuando don Quijote y Sancho dejaron el monte y entraron en el Toboso. Estaba el pueblo en un sosegado silencio, porque todos sus vecinos dormían y reposaban a pierna tendida, como suele decirse. Era la noche entreclara, puesto que quisiera Sancho que fuera del todo escura, por hallar en su escuridad disculpa de su sandez. No se oía en todo el lugar sino ladridos de perros, que atronabais los oídos de don Quijote y turbaban el corazón de Sancho49. (CERVANTES, 2004, p. 609, grifo da pesquisadora)

No excerto retirado do livro, o narrador deixa claro que era noite quando Dom

Quixote, Sancho Pança e os animais deixaram o monte e entraram em El Toboso. A expressão media noche era por filo significa que era meia noite em ponto, exatamente; em seguida, o narrador apresenta a expressão poco más o menos, que contradiz a primeira informação de que a hora era exata, informando que era quase, mais ou menos meia noite, ou por volta da meia noite. Essa contradição representa uma brincadeira do narrador, que inicia o capítulo IX (capítulo de onde foi retirado o excerto apresentado) do segundo volume de Don Quijote de la Mancha com um verso do

Romance do Conde Claros de Montalván, de autor desconhecido: Media noche era por filo.

Convém destacar que, sendo meia noite em ponto ou não, de uma coisa o leitor tem certeza: ainda estava escuro, o que indica que era noite ou madrugada. Em seguida, o narrador explicita que “era la noche entreclara”, significando que havia uma

49 Era meia noite, mais ou menos, quando Dom Quixote y Sancho deixaram o monte e entraram em Toboso. O povoado estava em um sossegado silêncio, porque todos os vizinhos dormiam e repousavam de pernas estendidas, como se costuma dizer. A noite não era muito clara, mas Sancho queria que fosse muito escura, para encontrar na escuridão uma desculpa para sua estupidez. Em todo o lugar só se ouviam latidos de cachorros, que ensurdeciam os ouvidos de Don Quijote e turvavam o coração de Sancho. (Tradução da pesquisadora)

116 lua estreita no céu, que poderia ser a crescente, no seu início, ou a minguante, no seu final, pois estas luas têm pouca luz e permitem que as estrelas brilhem (ALARCÓN,

2014), fazendo com que a noite apresente uma certa claridade. Verifica-se, neste fragmento, uma indicação do tempo, uma vez que, ao saber que estava escuro, o leitor já exclui a possibilidade de que seja dia.

Para observar como esta “noite clara” é representada no filme Donkey Xote

(2007), foram selecionadas as seguintes imagens, que dizem respeito a esses momentos de saída do monte e chegada a El Toboso:

Figura 34- Saída do monte

Fonte: DONKEY XOTE. Diretor: José Pozo. Filmax. Espanha. 2007. DVD (85 minutos aprox.), colorido. 117

Figura 35- Chegada a El Toboso

Fonte: DONKEY XOTE. Diretor: José Pozo. Filmax. Espanha. 2007. DVD (85 minutos aprox.), colorido.

Através da narrativa fílmica, é possível perceber que o tempo se passa desde que Dom Quixote, Sancho Pança e os animais saem do monte em direção a El

Toboso. A primeira imagem é mais escura, com lua e estrelas, o que nos faz supor que é noite ou início da madrugada enquanto os quatro viajantes caminham com destino ao povoado em que vive Dulcineia. A segunda imagem já mostra a chegada ao lugar, enquanto os recém-chegados observam a placa onde se lê “Bienvenido a El

Toboso”, e se apresenta a quantidade de habitantes do lugar. Ao comparar a primeira e a segunda imagem, é possível perceber que o dia já está amanhecendo na segunda, mas ainda não há Sol, o que indica que era muito cedo, pois a Lua, aparentemente minguante, ainda está no céu, embora não haja mais estrelas. O desaparecimento das estrelas é consequência do clarear do novo dia e representa um indício de que o tempo passou entre uma imagem e outra.

O excerto e as cenas também apresentam indicações da mudança de espaço.

Na obra literária, o leitor tem a informação de que os aventureiros deixaram o monte e entraram em El Toboso. O deslocamento de um espaço a outro também pode ser percebido nas cenas extraídas do filme, ainda que através de recursos distintos. 118

Desse modo, mesmo que contenham códigos diferentes, tanto a narrativa visual quanto a narrativa verbal apresentam enunciados em sequências, que permitem que leitores e espectadores possam compreender em que momento e em que espaço se deu a enunciação, se durante o dia ou durante a noite, no inverno ou no verão, em janeiro ou em dezembro, no campo ou na cidade, no norte ou no sul. A diferença está no fato de que, enquanto a literatura utiliza palavras para orientar o leitor em relação ao tempo e ao espaço da narrativa, o filme utiliza imagens e, por vezes, também sons

(PELLEGRINI, 2003).

3.3.2 Percurso de El Toboso até o castelo dos duques

Após deixar El Toboso, Dom Quixote tinha o objetivo de ir a Zaragoza, como se observa no seguinte excerto:

Finalmente, después de otras muchas razones que entre los dos pasaron, volvieron a subir en sus bestias y siguieron el camino de Zaragoza, adonde pensaban llegar a tiempo que pudiesen hallarse en unas solemnes fiestas que en aquella insigne ciudad cada año suelen hacerse50. (CERVANTES, 2004, p. 623)

Considerando o fragmento selecionado, não está claro em que período do dia os viajantes decidiram montar em seus animais e seguir rumo à Zaragoza. Esta é uma escolha que não precisa necessariamente ser feita na obra literária, porém, na transposição da narrativa para o cinema, é preciso decidir em que período esta partida acontece.

Na literatura, a apresentação do tempo e do espaço está vinculada à linguagem verbal. Não há, na narrativa literária, a continuidade vivenciada em tempos

50 Finalmente, depois de muitas conversas, subiram em seus animais e seguiram rumo à Zaragoza, onde pensavam chegar a tempo de participar de umas festas solenes, que costumam realizar-se todo ano naquela notável cidade. (Tradução da pesquisadora) 119 e espaços reais; por isso, o leitor pode se deparar, em alguns momentos do texto, com vazios que precisa preencher, este processo ocorre, por vezes, inconscientemente, mas, ao dar continuidade à leitura, as lacunas podem ou não ser eliminadas, isso vai depender da intenção do autor. Na narrativa literária, exceto nos casos em que se observam expressões temporais como “anteriormente, agora, mais tarde”, o tempo se apresenta através das ações que se desenvolvem, e se atualiza a medida em que o leitor prossegue a leitura (NUNES, 1995); fato que também pode ser verificado com relação ao espaço.

Na narrativa fílmica, no que diz respeito ao espaço ou ao tempo, não há lacunas a serem preenchidas, o espectador visualiza a ação enquanto ela se desenvolve, portanto, não restam dúvidas sobre em que momento ou em que espaço tudo acontece. Por isso, ao analisar a saída de Dom Quixote de El Toboso, anteriormente, foi possível observar que, no texto literário, havia um vazio quanto ao tempo em que ocorreu esta ação, porém, no filme, este vazio não existe, e o espectador visualiza que a saída ocorre durante o dia, como ilustra a imagem abaixo:

Figura 36- Saída de El Toboso

Fonte: DONKEY XOTE. Diretor: José Pozo. Filmax. Espanha. 2007. DVD (85 minutos aprox.), colorido. 120

Enquanto caminham em direção à Zaragoza, os viajantes param em uma alameda, de acordo com o seguinte excerto:

Con esto se metieron en la alameda, y don Quijote se acomodó al pie de un olmo y Sancho al de una haya, que estos tales árboles y otros sus semejantes siempre tienen pies, y no manos. Sancho pasó la noche penosamente, porque el varapalo se hacía más sentir con el sereno; don Quijote la pasó en sus continuas memorias. Pero, con todo eso dieron los ojos al sueño 51[…] (CERVANTES, 2004, p.771, grifo da pesquisadora)

O excerto apresenta indicações de tempo (noche/noite) e de espaço (alameda).

Além disso, se descrevem árvores presentes no local, cujos pés serviram de “camas” para Dom Quixote e Sancho Pança. Na transposição desta cena para o cinema, se observam as seguintes imagens:

Figura 37- Noite na alameda

Fonte: DONKEY XOTE. Diretor: José Pozo. Filmax. Espanha. 2007. DVD (85 minutos aprox.), colorido.

Observa-se, através das cenas, que a noite na alameda, descrita na obra literária, foi transcodificada para a adaptação, onde o espectador vê um céu escuro,

índice de que anoiteceu. Quanto ao espaço em que as ações acontecem, nota-se a

51 Com isto se meteram na alameda, e Dom Quixote se acomodou ao pé de um olmo e Sancho ao pé de uma faia, que estas árvores e outras semelhantes sempre têm pés, e não mãos. Sancho passou a noite penosamente, porque os golpes se faziam sentir mais com o sereno; Dom Quixote passou-a em suas contínuas memórias. Mas, com tudo isso, entregaram-se ao sono. (Tradução da pesquisadora) 121 presença de árvores em que Dom Quixote e Sancho Pança se acomodaram, que são descritas na obra literária como um olmo e uma faia. Na primeira e na terceira cena, é possível observar que a personagem Dom Quixote aparece deitada aos pés de uma

árvore, representada, na animação, através de um ícone que apresenta semelhança com o seu referente e faz com que o espectador possa identificá-lo como um olmo, desde que conheça esse tipo de árvore. Caso contrário, o espectador poderá associar o ícone que aparece na adaptação cinematográfica a outro tipo de árvore, que lhe seja conhecida e que apresente características semelhantes a um olmo. O modo como cada um capta os detalhes da cena está relacionado às suas representações mentais, ao conjunto de conhecimentos e experiências que acumula, o que é muito subjetivo.

Os sinais que as sequências fílmicas apresentam guiam o espectador na busca de sentidos a respeito da construção fílmica como um todo, e estes sentidos se constroem a partir de representações mentais do espectador (BRANCO, 2016). Deste modo, ao observar uma sequência fílmica, cada indivíduo evocará um conjunto de representações que lhe é particular, por este motivo a recepção de determinada cena, ou mesmo do filme como um todo, pode se dar de maneiras muito subjetivas.

Entretanto, considerando as cenas extraídas do filme, associando ou não os

ícones apresentados a olmos e faias, o espectador percebe que há árvores e um lugar abundantemente arborizado se considera uma alameda. Logo, o espaço descrito na narrativa literária como uma alameda é adaptado para a narrativa fílmica através de

ícones que representam árvores.

Após deixar a alameda, os viajantes seguem com o objetivo de ir a Zaragoza, mas, ao longo do caminho, encontram uma distinta senhora, como apresenta o excerto abaixo:

Sucedió, pues, que otro día, al poner del sol y al salir de una selva, tendió don Quijote la vista por un verde prado, y en lo último de él vio gente y, llegándose cerca, conoció que eran cazadores de altanería. Llegose más, y entre ellos vio una gallarda señora sobre un palafrén o hacanea blanquísima, adornada de guarniciones verdes y con un sillón de plata. Venía la señora asimismo vestida de verde, tan bizarra y 122

ricamente, que la misma bizarría venía transformada en ella. En la mano izquierda traía un azor, señal que dio a entender a don Quijote ser aquélla alguna gran señora, que debía serlo de todos aquellos cazadores52 […] (CERVANTES, 2004, p. 779)

De acordo com o excerto, nesta cena que se passa ao pôr-do-sol, Dom Quixote está saindo de uma floresta, quando se depara com um verde prado e avista uma elegante senhora, montada em um cavalo, e alguns caçadores. Na adaptação cinematográfica, o espectador visualiza as seguintes imagens:

Figura 38- Encontro com a duquesa

Fonte: DONKEY XOTE. Diretor: José Pozo. Filmax. Espanha. 2007. DVD (85 minutos aprox.), colorido.

De acordo com as cenas, na adaptação, a ação não parece ocorrer durante o pôr-do-sol, pois o dia ainda está bem claro, mas o espaço descrito como um verde

52 Sucedeu, pois, que outro dia, ao pôr do Sol e ao sair de uma floresta, estendeu Dom Quixote a vista por um verde prado, e, ao final dele, viu gente e, chegando perto, identificou que eram caçadores de altanaria. Chegou mais perto, e entre eles viu uma elegante senhora sobre um cavalo de porte elegante, branquíssimo, adornado com enfeites verdes e com uma sela de prata. Vinha a senhora vestida de verde, tão extravagante, que parecia a extravagância em pessoa. Na mão esquerda trazia uma ave de rapina, sinal que deu a entender, a Dom Quixote, que aquela era uma grande senhora, que devia ser a senhora de todos aqueles caçadores [...] (Tradução da pesquisadora) 123 prado é representado no filme, através de imagens que apresentam um campo coberto por plantas gramíneas. Outros detalhes que se diferenciam da descrição vista na obra literária são o fato de que, na obra cinematográfica, não há caçadores, a mulher não segura uma ave de rapina e está sendo, aparentemente, atacada por um leão, entretanto, tudo não passa de uma farsa, o leão é seu animal de estimação e ela finge estar em perigo para atrair Dom Quixote.

Observa-se que o tempo em que a ação ocorre, bem como alguns detalhes da narrativa original, são modificados na animação, o que não representa necessariamente um problema, pois, embora mantenha uma relação intertextual com outra obra, a adaptação apresenta sua autonomia e poderá trazer, em sua estrutura, características novas, não observadas na obra original.

Dando sequência à narrativa, após o encontro no verde prado, na obra literária, os viajantes são convidados por um duque, esposo da elegante senhora, para irem ao seu castelo, como apresenta o excerto a seguir:

[...] Digo que venga el señor Caballero de los leones a un castillo mío que está aquí cerca, donde se le hará el acogimiento que a tan alta persona se debe justamente, y el que yo y la duquesa solemos hacer a todos los caballeros andantes que a él llegan53. (CERVANTES, 2004, p. 783)

A partir deste convite, o leitor acompanha os aventureiros rumo a um novo espaço, o castelo. Não há, no excerto, indicação a respeito do tempo em que a ação ocorre, porém, como anteriormente se menciona que o sol estava se pondo, é possível supor que, na obra literária, a ida ao castelo ocorre no fim da tarde.

Na animação, através da mudança de planos, o espectador observa o deslocamento do cavaleiro andante, de seu escudeiro e da duquesa, que, na

53 Digo que venha o senhor Cavaleiro dos leões a um castelo meu que está aqui perto, onde será oferecida a acolhida que a tão importante pessoa se deve, e que eu e a duquesa costumamos oferecer a todos os cavaleiros andantes que a ele chegam. (Tradução da pesquisadora) 124 adaptação, os conduz até o castelo, enquanto o dia ainda está claro. As imagens a seguir ilustram essa viagem:

Figura 39- Ida ao castelo

Fonte: DONKEY XOTE. Diretor: José Pozo. Filmax. Espanha. 2007. DVD (85 minutos aprox.), colorido.

O castelo é um importante espaço na narrativa, em que se desenvolvem diversas ações e onde Dom Quixote e Sancho Pança são vítimas de burlas. É do castelo que Sancho é conduzido até a sua ilha, prometida pelos duques, como se observa a seguir.

3.3.3 Sancho e a Ilha de Baratária

Na obra literária, o escudeiro afirma ter passado alguns dias como governador da ilha, como mostra o excerto abaixo: 125

- Ocho días o diez ha, hermano murmurador, que entré a gobernar la ínsula que me dieron, en los cuales no me vi harto de pan siquiera un hora; en ellos me han perseguido médicos y enemigos me han brumado los güesos, ni he tenido lugar de hacer cohechos ni de cobrar derechos; y siendo esto así, como lo es, no merecía yo, a mi parecer, salir de esta manera. Pero el hombre pone y Dios dispone 54[…] (CERVANTES, 2004, p. 972-973)

Na animação, o espectador observa a ida de Sancho rumo à Ilha Baratária, porém, o escudeiro não passa dias governando a ilha, ele se dá conta, no meio do caminho, que estão andando em círculo, percebe que está sendo enganado e retorna ao castelo, onde está Dom Quixote. As imagens a seguir ilustram estas ações:

Figura 40- Sancho e a Ilha de Barataria

Fonte: DONKEY XOTE. Diretor: José Pozo. Filmax. Espanha. 2007. DVD (85 minutos aprox.), colorido.

As duas primeiras cenas confirmam que Sancho estava certo ao supor que estava andando em círculos. Como se pode ver, a paisagem é a mesma, tanto na primeira quanto na segunda imagem, mas o espectador percebe que o tempo passou porque o dia escureceu. A terceira cena mostra Sancho retornando atônito para o castelo.

As técnicas cinematográficas permitem que o tempo, elemento invisível, seja preenchido com o espaço, elemento visível, e, deste modo, o espectador tem acesso a

54 Há oito ou dez dias, irmão murmurador, comecei a governar a ínsula que me deram, nos quais não me vi farto de pão uma hora sequer; nesse tempo me perseguiram médicos e inimigos que me moeram os ossos, não tive lugar de fazer subornos nem de cobrar direitos; e sendo isto assim como é, não merecia eu, a meu ver, sair desta maneira. Mas o homem põe e Deus dispõe [...] (Tradução da pesquisadora) 126 um conjunto de imagens em movimento que fundem as categorias tempo e espaço, tornando-as inseparáveis. Essas categorias passam, então, a caminhar juntas; as distâncias são eliminadas, o que torna possível ver diferentes espaços de modo contíguo, graças à bidimensionalidade, que tornou possíveis novas formas de representar o mundo, através da montagem (PELLEGRINI, 2003).

Por meio da montagem de planos, o espectador do filme Donkey Xote acompanha Sancho, que vai até a Ilha de Baratária, e, no momento seguinte, observa

Dom Quixote, que se encontra no castelo dos duques. Na obra literária, o narrador suspende a narração algumas vezes, enquanto traz informações sobre como transcorre o governo de Sancho na Ilha de Baratária, retornando alguns parágrafos ou páginas depois, para apresentar o que ocorre no castelo dos duques, onde está Dom

Quixote. Os diferentes recursos utilizados na animação fazem com que as distâncias sejam eliminadas e as ações fluam com mais rapidez do que se observa na obra literária.

Dando continuidade à história, Dom Quixote e Sancho decidem ir embora do castelo, porém, os motivos da partida são distintos nas duas narrativas analisadas. Na obra literária, o cavaleiro andante sente falta da liberdade, chega à conclusão de que já passou muito tempo ocioso no castelo e pede permissão aos duques para partir. Na obra adaptada, Dom Quixote e Sancho vão embora após descobrirem que foram enganados pelos duques. Sancho não recebeu nenhuma ilha para governar e Dom

Quixote estava prestes a casar-se com Altisidora, achando que ela era Dulcineia, até que Sancho retorna e lhe conta que nunca viu Dulcineia e que a donzela não existe, impedindo que o cavaleiro andante se case com Altisidora.

Na narrativa literária, os viajantes saem do castelo com o objetivo de ir a

Zaragoza, mas decidem mudar o rumo da viagem para Barcelona, pois o Quixote apócrifo trazia a informação de que Dom Quixote havia estado em Zaragoza, sendo 127 assim, o cavaleiro andante queria desacreditar o autor que ousou escrever sobre sua terceira saída, por isso, decidiu não passar por aquele lugar e ir direto para Barcelona.

Na narrativa fílmica, Dom Quixote se encontra desiludido por descobrir que

Sancho mentiu sobre Dulcineia e quer voltar para o seu povoado, em alguma região de La Mancha, porém Sancho o convence de ir a Barcelona, onde encerra a narrativa, como se observa a seguir.

3.3.4 Chegada a Barcelona

A chegada a Barcelona é descrita da seguinte forma, na obra literária:

Tendieron don Quijote y Sancho la vista por todas partes: vieron el mar, hasta entonces de ellos no visto; parecioles espaciosísimo y largo, harto más que las lagunas de Ruidera que en la Mancha habían visto55 […] (CERVANTES, 2004, p. 1.019)

Na adaptação, o espectador vê a chegada a Barcelona através desta imagem:

Figura 41- Chegada a Barcelona

FONTE: DONKEY XOTE. Diretor: José Pozo. Filmax. Espanha. 2007. DVD (85 minutos aprox.), colorido.

55 Estenderam Dom Quixote e Sancho a vista por todas as partes: viram o mar, até então não visto por eles; lhes pareceu espaçosíssimo e imenso, muito maior que as lagoas de Ruidera, que tinham visto em La Mancha. (Tradução da pesquisadora) 128

A descrição deste momento de chegada à Barcelona, na obra literária, traz ao leitor não apenas a imagem do mar, mas desperta o mágico entusiasmo do mar sendo visto pela primeira vez, evocando sensações experienciadas por quem lê, que, de alguma forma, relembra o impacto do primeiro contato com algo tão grandioso.

O texto literário pode apresentar descrições tão detalhadas que geram a impressão de que o leitor vivencia a ação junto com as personagens. Isso pode acontecer pelo uso da hipotipose, por exemplo, que consiste na descrição minuciosa de algum fato, despertando diversas impressões no leitor. Este recurso tem a capacidade de aproximar-se aos recursos utilizados no cinema, que proporcionam que o espectador experiencie os fatos ao lado das personagens. Porém, enquanto a literatura constrói suas cenas através de palavras, o cinema as constrói através de imagens.

Por meio da tradução intersemiótica, o espectador tem acesso a uma nova narrativa, que não se constitui apenas por linguagem verbal, mas é codificada através de ícones, índices e símbolos. Além disso, o modo de engajamento passa do contar para o mostrar, a descrição e a narração passam a ser dramatizadas e os pensamentos se transcodificam através de sons e imagens (HUTCHEON, 2011). Por conseguinte, a transposição de uma narrativa literária para o meio cinematográfico acarreta mudanças no modo como as categorias tempo e espaço são representadas, uma vez que os recursos do cinema permitem fundi-las em um único fotograma, possibilitando que o espectador visualize-as, através de imagens.

129

3.4 AS IMPLICAÇÕES DESCRITAS NAS CATEGORIAS ANTERIORES

ENVOLVENDO A CONSTRUÇÃO NARRATIVA DE OBRA LITERÁRIA PARA O

CINEMA

A adaptação de obras canônicas, como é o caso de Don Quijote de la Mancha, costuma suscitar críticas acerca do nível de fidelidade da obra adaptada em relação à original. Isto ocorre porque os leitores de obras literárias geralmente criam inúmeras expectativas em relação às adaptações feitas a partir delas. O leitor que conhece a narrativa original tende a compará-la à narrativa adaptada, buscando encontrar as semelhanças e diferenças entre uma e outra, e, quando as divergências observadas são muitas, a obra adaptada pode ser vista como inferior ao seu original.

A situação se torna mais crítica quando uma obra tão conhecida como Don

Quijote de la Mancha é transformada em uma animação, que não é protagonizada pelo famoso cavaleiro andante, Dom Quixote, mas pelo burro Rucio, que pertence a

Sancho Pança.

Conferir o protagonismo da obra a um animal e, acrescente-se, a um animal culturalmente considerado inferior, pois os burros têm fama de bobos e são associados a características medíocres, como a estupidez e a ignorância, é, no mínimo, uma atitude ousada, pois, além de protagonizar a adaptação fílmica Donkey

Xote, o burro cria uma nova versão da história do cavaleiro andante e apresenta esta versão aos espectadores como uma verdade incontestável; afinal, como afirma o próprio Rucio, ele esteve lá, e, consequentemente, vivenciou tudo o que conta, de modo que, em tese, não há o que questionar sobre a veracidade dos fatos narrados.

Como subnarrador verbal, além de protagonista da narrativa, Rucio se destaca e ofusca, na adaptação, o cavaleiro andante que se tornou conhecido em todo o mundo. Então, Donkey Xote se tornou alvo de apreciações negativas por ser diferente 130 da obra em que se baseia. Entretanto, graças aos estudos contemporâneos sobre a teoria da adaptação, as visões depreciativas acerca das adaptações podem dar lugar a um olhar sem preconceitos. Não há razão para que a obra adaptada seja vista como subordinada à original. Ainda que seja uma segunda obra, a adaptação não deve ser considerada secundária (HUTCHEON, 2011).

Neste sentido, ainda que se tenha, em Donkey Xote, um subnarrador verbal que modifica a história de Dom Quixote como bem entende, a obra original continua intacta. As pessoas ainda podem revisitá-la, sem que ela tenha sofrido qualquer mudança. Ao contrário do que alguns críticos acadêmicos, jornalistas ou espectadores comuns possam argumentar em relação ao desserviço que o cinema faz à literatura, ao adaptar suas obras; o filme não deve ser considerado um parasita, que suga a literatura, destruindo-a. Quando adaptada, uma obra não deixa de existir para dar origem a outra(s), mas se reconstrói de modo distinto, se multiplica, e as diversas versões criadas a partir de um mesmo original podem coexistir juntamente com ele.

O cinema, através de suas diversas matérias de expressão, pode permitir que diferentes públicos tenham acesso às suas produções, diferentemente da literatura, que, ao construir suas narrativas através da linguagem verbal, exclui o público não alfabetizado. Além disso, o filme costuma ser mais acessível que o livro em termos financeiros, o que faz com que as produções cinematográficas possam alcançar um público maior que os textos literários. Neste sentido, longe de destruir a literatura, o cinema pode torná-la mais conhecida, através das adaptações.

Entretanto, assistir a uma adaptação não implica em ter acesso a todas as características da obra original, pois a obra adaptada não é mero reflexo daquela que lhe serviu como base, ela traz algo novo, algo que antes dela não existia, portanto, não se deve, necessariamente, esperar fidelidade total à versão original. 131

É necessário observar a adaptação como o produto de uma transformação que, tendo passado por um processo de interpretação, transposição e atualização, sofre modificações em sua estrutura original, dando origem a uma nova criação, autônoma. Portanto, é preciso afastar-se das visões preconceituosas, que comumente se associam às adaptações, e adotar um discurso menos valorativo e moralista acerca de obras adaptadas (STAM, 2013).

Em Donkey Xote, o fato de Rucio modificar a narrativa cervantina, alterando fatos importantes, como quando personifica a dama mais famosa da literatura hispânica, Dulcineia de Toboso, e dá à história um final feliz, com Dom Quixote vivo, ao lado de sua musa inspiradora, não diminui a qualidade da adaptação, mas reforça a sua condição de obra autônoma, que não tem a obrigação de reproduzir totalmente a obra original; pois, uma vez que é produzida em outra época, para um público diferente e através de um meio diferente (cinematográfico), a adaptação não pode ser julgada como se fosse uma reprodução, porque, na realidade, ela é uma recriação e, como tal, tem liberdade para apresentar inovações.

Sendo uma obra adaptada para um outro meio, de linguagem audiovisual, foi possível perceber, em Donkey Xote, modificações no modo como se representam as categorias tempo e espaço no cinema; uma vez que o espectador não mais se guia por menções do narrador acerca do tempo e do espaço em que as ações ocorrem, ou por pistas deixadas pelas ações das personagens; no filme, ele pode acompanhar, em tempo real, a passagem do tempo e a mudança de espaço.

Na animação, através do processo de tradução intersemiótica, o espectador visualiza diferentes tempos e espaços traduzidos em ícones e índices, além disso, essas duas categorias (tempo e espaço), no meio cinematográfico, podem ser visualizadas juntas, em um mesmo fotograma, pois a imagem em movimento, recurso do meio cinematográfico, revelou a sua inseparabilidade, congregando-as em uma mesma cena (PELLEGRINI, 2013). Logo, a passagem do modo de engajamento 132 contar para o mostrar faz com que a obra adaptada seja recebida de uma forma diferente, uma vez que o espectador não é guiado apenas pela linguagem verbal, como o leitor, mas dispõe também de imagens em movimento, além de outros recursos, como sons, que contribuem para a construção de sentidos no que diz respeito à narrativa.

Donkey Xote é o resultado de um processo criativo, que reconstrói a narrativa de Don Quijote de la Mancha de modo paródico ao dar visibilidade ao burro, em detrimento do verdadeiro cavaleiro andante. Ao acompanhar a narrativa através do ponto de vista de Rucio, o espectador tem acesso a uma versão da história que, embora apresente características da narrativa original, traz aspectos totalmente novos.

Por isso, é pertinente a analogia que se faz entre a adaptação e o palimpsesto, uma vez que, como pergaminho que tem seu texto raspado para dar lugar a um novo texto, o palimpsesto não deixa de preservar vestígios anteriores, resquícios do que foi em outra época, ao mesmo tempo em que permite que, por cima desses vestígios, outros textos sejam criados, vindo a lume. Ao considerar a narrativa reconstruída em Donkey

Xote, observa-se que, ainda que apresente suas particularidades, preserva marcas da narrativa original. Por isso, para Hutcheon (2011), trabalhar com adaptações implica em considerá-las como produções intrinsecamente palimpsestuosas, constantemente assombradas pelas obras originais.

Por fim, vale ressaltar que o ponto de vista apresentado por Rucio, em Donkey

Xote, não causa prejuízo à obra original, Don Quijote de la Mancha, mas representa uma recriação dela, dentre tantas outras que existem. A animação não atua como parasita da obra literária, corrompendo-a, mas contribui para dar ainda mais visibilidade à narrativa original, uma vez que pode despertar o interesse pela leitura do texto literário.

133

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Levando em consideração as modificações empreendidas, na narrativa de Don

Quijote de la Mancha, pelo ponto de vista do burro Rucio, o objetivo principal deste estudo foi comparar as narrativas da obra original e da adaptação, observando as instâncias narrativas de maior destaque, em ambas as obras, e considerando o processo de tradução intersemiótica, que tornou possível a transposição da narrativa literária para o meio cinematográfico.

O caminho percorrido ao longo deste estudo contribuiu para reforçar a ideia de que a adaptação pode representar uma nova vida para a obra original, uma vez que a recria, transformando-a para que se adeque a novos tempos e lugares, bem como a públicos diversificados de modo que, enquanto continuar sendo adaptada, uma obra não cairá no esquecimento.

A cada vez que uma história é recontada, novas formas de interação e interpretação acontecem, possibilitando que surjam versões modernas de histórias clássicas. Porém, o que foi apontado aqui é que estas novas versões não excluem sua fonte original, mas a atualizam, permitindo que ela ainda possa ser reconhecida, mesmo depois de adaptada. Neste sentido, Donkey Xote contribui para replicar a obra literária Don Quijote de la Mancha, conferindo-lhe um novo aspecto, e, mesmo sendo uma recriação da narrativa literária, a animação não é uma obra inferior ou secundária, pois, como se observou, ela apresenta originalidade e, portanto, não é uma simples imitação da obra original, mas uma produção autônoma.

Esta pesquisa contribui para os Estudos da Tradução, da Adaptação, e da

Narrativa, uma vez que apresenta uma análise apoiada nestes três pilares, que é pioneira no sentido de que contrasta a narrativa de Don Quijote de la Mancha com a narrativa reconstruída em Donkey Xote, e, como já comentado, exceto pela existência de pequenas apreciações em sites específicos que discutem sobre filmes, não foi 134 encontrada outra pesquisa acadêmica que se debruçasse sobre estas duas produções, comparando ambas as narrativas.

Esta investigação é importante no sentido de que suscita reflexões acerca do processo através do qual a obra Don Quijote de la Mancha é adaptada para um outro meio, o cinematográfico, passando por traduções intersemióticas, que transformam linguagem verbal em linguagem audiovisual, e dando origem a uma nova construção narrativa, que se torna possível graças aos recursos do cinema e que modifica a forma como a obra é experienciada.

Por ser uma adaptação que estabelece relação com a literatura hispânica, o filme Donkey Xote pode representar uma opção de material didático para a aula de

Espanhol como Língua Estrangeira (ELE). Educacionalmente, a animação tem sua importância, pois torna acessível às crianças e jovens uma versão da terceira saída de

Dom Quixote e pode estimulá-los a, posteriormente, ler o livro em que o filme se baseia. Neste sentido, as considerações feitas sobre a adaptação comparada à obra original, ao longo desta pesquisa, podem servir como apoio para professores ou futuros professores de ELE, no sentido de que poderão ter contato com uma leitura analítica sobre o modo como a narrativa fílmica se reconstrói e em que pontos estabelece relações com a narrativa literária, o que pode ajudar-lhes no planejamento de atividades que envolvam esta adaptação.

Considerando o contexto de ensino superior, estimular os aprendizes para que observem como acontece o processo de tradução intersemiótica na adaptação de Don

Quijote de la Mancha para o cinema, comparando o texto fonte e a animação Donkey

Xote, pode ser uma atividade relevante para as aulas de Tradução, uma vez que incentivará o aprendiz de Tradução a refletir sobre a transposição de um texto verbal para o meio cinematográfico. Além disso, propor este tipo de reflexão possibilitará não só que o futuro professor esmiúce o processo de produção da adaptação, mas também que reflita sobre a forma como esta obra é recebida. 135

REFERÊNCIAS

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