Redes de conflito: Nobreza da terra fluminense, reprodução em tempos de mudanças. (1692-1740)

Jerônimo Aguiar Duarte da Cruz *

O desenvolvimento da família “Freire Alemão” se insere numa teia de dinâmicas no interior de uma sociedade de Antigo Regime. Julgamos que concentrando nossas atenções no desenvolvimento desta família, tendo em vista suas relações no interior da república e do Império, podemos esmiuçar, mais do que a trajetória da família, também os cenários mais gerais daquela sociedade, sejam eles elementos que compõe a monarquia lusa, as relações no interior dos munícipios do Império ou as formas de reprodução social dos principais da terra. Mais do que isto, a trajetória das duas gerações dos Freire Alemão (1692-1740), Manoel Freire Alemão e João Freire Alemão, coincide com um momento de grandes mudanças na realidade da capitania fluminense. Por isso, podemos daí, compreender como estas transformações se relacionam com a realidade de uma família dos principais da terra.

Trajetória de Manoel Freire Alemão

Ao se casar com Isabel de Barcelos, em fins do século XVII, Manoel Freire Alemão insere-se nos quadros dos principais da terra do . Os principais da terra identificam-se enquanto famílias quinhentistas associadas à conquista da terra, aos primeiros povoadores da capitania, que no decorrer do século XVII, se consolidariam como a nobreza da terra, assumindo os postos-chave da governança do município, principalmente, através da Câmara municipal - vale lembrar que o poder das câmaras municipais é entendido a partir da prerrogativa de autogoverno dos municípios no interior da monarquia corporativa e pluricontinental portuguesa.

Como já dito o Capitão Manoel Freire Alemão se insere nesta nobreza através de casamento com uma descendente de quinhentistas. No entanto, pouco se sabe sobre suas origens, apenas o fato de que é português. O que sabemos é que as informações ficam mais frequentes a partir de seu casamento, na década de 1690, e nos mostram um sujeito extremamente mergulhado nas dinâmicas locais do topo daquela sociedade.

* Graduando em História pela UFRJ – Universidade Federal do Rio de Janeiro.

Aparece numa série de transações: como fiador de dívidas e contratos ou arrendando terras, inclusive um engenho do Visconde de Asseca em começos do século XVIII nas proximidades de Jacarepaguá. É possível identificá-lo ainda, desde fins do XVII contraindo alguns empréstimos junto ao Juizado de órfãos, que segundo Abreu era uma instituição cujo empréstimo era relativamente restrito. E, finalmente, começa a comprar terras nas áreas de Gericinó e Guandu, na freguesia de Campo Grande, na primeira década do XVIII, onde funcionará o Engenho Guandu a partir da década de 1720. Manoel Freire Alemão é um sujeito que tem acesso ao topo daquela sociedade, reproduzindo a lógica daquela nobreza da terra e sendo reconhecido como um deles.

Em 1697 é listado entre os “homens bons e cidadãos desta praça” que assinam uma petição ao rei, solicitando revogação de ordem real sobre o preço do açúcar e reclamando sobre a falta e excessivo preço dos escravos vindos de Angola e por liberdade para que os navios do porto do Rio pudessem fazer este comércio sem interferência do governo de Angola. Ou seja, nesta petição, Manoel Freire Alemão aparece como homem bom e cidadão do Rio de Janeiro participando do governo da cidade, negociando com o poder central.

No entanto, as mudanças trazidas pelo século XVIII, provocariam novas tensões no interior daquela sociedade. João Fragoso destacou conflitos entre esta nobreza da terra e o grupo de negociantes que começam a tomar conta da cena mercantil fluminense. Na década de 1730, alguns integrantes da nobreza principal da terra denunciam a ação usurária dos negociantes contra os engenhos de açúcar e se reafirmam enquanto aqueles que devem governar a república, destacando, assim, a manutenção da câmara em suas mãos contra as ameaças do novo grupo. De fato, algumas escrituras de inícios do século XVIII mostram Manoel Freire adquirindo empréstimo de 1:300$000 junto à José de Souza Barros, um rico homem de negócio, no ano de 1712, indicando claramente a dependência econômica de um dos principais da terra para com homens de negócio no mercado de crédito.

A dependência econômica da nobreza da terra para com homens de negócio na primeira metade do século XVIII e os conflitos entre os dois grupos, já analisados por Fragoso,

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ganham realces quando diminuímos a escala sob as relações tecidas pelo Capitão Manoel Freire Alemão.

Manoel Freire Alemão já havia realizado empréstimos junto José de Souza Barros, homem de negócios, em 1712. Em 1715 faz um novo empréstimo com outro homem de negócio, Antônio Rodrigues Barros, no valor de 2:050$000. A proximidade deste representante da nobreza da terra com os homens de negócio da praça fluminense fica, portanto, bastante clara. O que não impede – e talvez justifique - que, em 1735, os integrantes da nobreza da terra denunciem a ameaça que os negociantes infligiam sobre a capitania, excluindo-os de qualquer prerrogativa de governo na câmara.

Este conflito entre os dois grupos se manifesta também na trajetória de vida de Manoel Freire Alemão. Em 1733 Manoel Freire envia um requerimento ao rei. Nele o capitão solicita “provisão para que o ouvidor-geral, Fernando Leite Lobo, tire devassa das vexações, roubos e contínuos erros praticados pelo escrivão dos órfãos, Manoel da Costa Soares, junto dos moradores, órfãos e seus tutores”. Este Manoel da Costa Soares, escrivão do Juízo de Órfãos, aparece em uma escritura como homem de negócio e exerce também função numa das principais fontes de empréstimo de Manoel Freire Alemão, o Juízo de Órfãos. Em 1726 Manoel da Costa Soares e sua sogra moveram ação contra Manoel Freire Alemão e outros dois sujeitos cobrando a execução de dívidas não quitadas. Talvez Manoel Freire Alemão não fosse mesmo um bom pagador, já que fora preso por volta de 1729, por não quitar dívida, na qual era fiador do contrato de aguardente arrematado por João Ribeiro da Costa, junto a Fazenda Real. E só consegue convencer que cumpriria o pagamento desta dívida quando afirma que a pagaria com 300 arrobas de açúcar branco por ano. Curiosamente, logo depois deste incidente, o Senado da Câmara lhe empresta a quantia de 4:300$000.

A trajetória de Manoel Freire Alemão mostra que os ditos conflitos entre nobreza da terra e homens de negócio se manifestam num momento de certa fragilidade econômica de representantes da nobreza da terra para cumprir suas obrigações. No entanto, isto em nenhum momento impede que seu filho, João Freire Alemão, herde o mesmo status de cidadão e chegue à vereança da cidade, ocupando cargos no topo da sociedade colonial fluminense. Por

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outro lado, a câmara municipal parece colaborar na resolução de seus problemas, emprestando-o uma boa quantia.

Desta forma, mesmo que sem grandes possibilidades econômicas, Manoel Freire Alemão parece se utilizar da sua proeminência social e política para enfraquecer Manoel da Costa Soares. Neste momento, o lugar ocupado nas hierarquias locais não passa imediatamente pelo aspecto da riqueza econômica.

Rio de Janeiro: maior praça mercantil do atlântico-sul

No primeiro quartel do século XVIII, enquanto efetua uma série de transações econômicas na cidade do Rio de Janeiro, Manoel Freire Alemão converte parte das suas posses em terras e em um engenho na freguesia rural de Campo Grande. O capitão retoma a tradição senhorial da família de sua mulher, e, assim como grande parte da nobreza da terra do século XVII, torna-se senhor de engenho. No entanto, durante a primeira metade do século XVIII a cidade do Rio de Janeiro torna-se uma intensa praça mercantil.

Alguns trabalhos recentes situam estas mudanças no perfil da cidade do Rio de Janeiro na primeira metade do século XVIII. Ressaltando a acumulação de capital num estrato de negociantes, a formação de uma franja de fazendas produtoras de gêneros alimentícios ao redor da cidade, a valorização dos imóveis urbanos em relação aos rurais e a crescente importância comercial da urbe na dinâmica imperial através do abastecimento das minas, das transações com Angola e com áreas da América espanhola.

Sampaio identifica que,

“Pela primeira vez nos cem anos observados [1650-1750] e, podemos dizer sem medo de errar, em toda a história fluminense, o valor das transações de imóveis situados na urbe carioca ultrapassou as que envolviam o sistema agrário que a circundava”. (SAMPAIO, 2003, p.88)

Este processo ocorria pari passu a valorização dos negócios urbanos frente ao total dos

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negócios rurais. Sampaio chama a atenção para uma espécie de urbanização da cidade , apoiado nas transformações ocorridas na urbe , como o sistema de crédito que ganha novos contornos impulsionado pelo fortalecimento contínuo do capital mercantil. De forma simplista poderíamos dizer que o caráter mercantil da cidade ganhava força e a importância proporcional dos bens agrários começava a cair.

Ou seja, Manoel Freire Alemão reproduzia uma lógica senhorial de grupo ao tornar-se senhor de engenho justamente no momento em que a cidade se transformava numa urbe mercantil. Poderíamos, grosseiramente, dizer que agia como se na contramão do fluxo. Por isto, talvez seja necessário entender mais de perto o universo do açúcar neste momento.

Engenhos de açúcar no Rio de Janeiro, séculos XVII-XVIII

Segundo Abreu, os engenhos de açúcar crescem em quantidade no Rio de Janeiro, passando de 35 engenhos na década de 1620 a, aproximadamente, 136 unidades em começos do século XVIII. Segundo aquele autor, este momento consolida o açúcar como principal produto da capitania.

Em meados do século XVII, mais da metade destes engenhos tinha como seus proprietários, sujeitos advindos das famílias quinhentistas, como já destacado por Fragoso. O que indicava, dentre outras coisas, o prestígio e as dificuldades em acumular riqueza suficiente para se tornar senhor de engenho. No entanto, a importância da produção de açúcar nos engenhos do recôncavo da Guanabara era muito pequena, se tivermos em vista outras áreas açucareiras da América Portuguesa, como a Bahia, local de grande produtividade no século XVII. Segundo Abreu, Rio de Janeiro e Bahia divergiam bastante quanto às escalas de produção e ao próprio tamanho dos engenhos. Se Schwartz aponta que um engenho baiano produzia, em média, 50 arrobas de açúcar por dia, Abreu afirma que os engenhos do Rio de Janeiro produziam, em média, 25 arrobas. Nota-se que a produção de açúcar fluminense cresce, alcançando níveis substanciais especialmente na segunda metade do século XVII, mas

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que não rivaliza em robusteza com a realidade da Bahia açucareira. Portanto, a fortuna destas famílias deve ser relativizada se tivermos em conta apenas a produção açucareira.

Freguesia de Campo Grande em começos do século XVIII

A freguesia onde Manoel Freire Alemão se instala na primeira metade do século XVIII ficava a mais de 50 km da cidade. Periférica no que diz respeito à produção de açúcar, tendo em vista as principais áreas produtoras da capitania: Irajá e São Gonçalo. Em 1700 Irajá conta com 39 engenhos ativos e a região de São Gonçalo e redondezas com 32. Já Campo Grande, englobando as áreas de , contava com apenas 11 engenhos de açúcar. Tudo indica que a região pouco contribuísse para a produção geral de açúcar.

Como já dissemos, o Capitão Manoel Freire adquire terras em Campo Grande a partir de 1706. E de 1712 em diante podemos notar sua presença através dos batismos de seus escravos. O Capitão Manoel Freire Alemão batiza 15 novos escravos entre 1713-1736. Sendo 14 nascidos na terra e apenas 1 gentio, de Cabo Verde. A partir de fins da década de 1720 notamos claramente seu filho, João Freire Alemão, aparecer como proprietário de escravos nos registros de batismo, exatamente quando os registros de seu pai ficam mais escassos. Enquanto seu pai, Manoel Freire batiza 3 de seus escravos na década de 1730, João Freire Alemão batiza seus 32 novos escravos entre 1728-1740, sendo a década de 1730 o período de maior efervescência, somando 24 novos escravos. Com esses dados temos indícios de que João Freire Alemão assume a frente dos negócios da família em seu momento de expansão.

Divergindo da trajetória de seu pai, com João Freire notamos maior incidência no batizado de escravos adultos vindos diretamente da Costa da Mina, somam 13, há ainda 1 de Cabo Verde. Este ponto chamou especial atenção, por isso, na tabela 2 procura-se mostrar a evolução geral do batismo de escravos gentios na freguesia nos primeiros trinta anos do século XVIII. É possível constatar que na década de 1730, Campo Grande apresenta uma alta substancial no batismo destes escravos adultos.

Partimos da ideia de que os batismos de escravos adultos indicam que são escravos recém-adquiridos. A elevação das taxas de batismo destes escravos pode indicar,

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consequentemente, o aumento da compra de novos escravos na região. Obviamente, são números relativamente baixos, o que nos leva a ter cautela no tato com registros de batismos pura e simplesmente. E, mais do que isso, nos leva a questionar a relevância, no âmbito comercial, da produção de açúcar da freguesia. No entanto, de uma forma ou de outra, a freguesia passava por um momento onde se podia ou se tinha a necessidade de aumentar a posse de escravos. Por isto, o aumento considerável no número de batismos de escravos gentios na década de 1730, pode indicar um estreitamento na ligação da freguesia com o comércio de escravos da cidade do Rio de Janeiro, além do fato de que a demanda de escravos na região tenha aumentado. E isto é mais visível no caso de João Freire, que aparece como principal possível comprador. João Freire Alemão de Sisneiros é o único nome que concentra mais de 4 batismos de escravos adultos gentios (só na década de 1730 batiza 10). A maior parte dos proprietários da freguesia batiza apenas um escravo. No total de batismos dos escravos adultos e gentios, João Freire representa 41,6% do total para a década de 1730. Tudo indica que o aumento no número de escravos na paróquia de Campo Grande seja reflexo das dinâmicas comerciais da cidade. Se no ano de 1705 desembarcaram no sudeste do Brasil 3310 escravos, em 1730, este número passa para 8290 cativos, um crescimento de mais de 200%. Estes dados podem indicar a maior necessidade de escravos para as Minas, mas, de um modo ou outro, demonstram uma maior presença de escravos na região, aumentando a possibilidade de uso dos mesmos.

Tabela 2. Relação entre o batismo de escravos gentios e as décadas na freguesia Década Quantidade % 1705 4 7,4 1710 14 26 1720 12 22,2 1730 24 44,4 Total 54 100 Livro de Registro dos Batismos escravos da Freguesia de Campo Grande, Rio de Janeiro - 1705-1741.

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Com estas apreciações notamos que os Freire Alemão se estabelecem no plano da freguesia aparentemente aumentando sua produção e reproduzindo uma lógica senhorial, vendo o filho que segue com o nome da família se estabelecer enquanto senhor de engenho e vereador da câmara. E mesmo que esta produção tivesse pouquíssimo impacto sobre a dinâmica econômica mais geral da cidade neste momento - dominada cada vez mais por vultosos negócios mercantis, como já vimos -, a família forma potentados rurais com capacidade de mando no centro da República. Um paradoxo que marcaria os próximos anos daquela sociedade e colaboraria para o definhamento desta elite.

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