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UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESTADO DO DEPARTAMENTO DE HISTÓRIA PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA MESTRADO EM HISTÓRIA

Morte, escravidão e hierarquias na de Irajá: um estudo sobre os funerais e sepultamentos dos escravos (1730-1808)

Michele Helena Peixoto da Silva

Rio de Janeiro 2017

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Michele Helena Peixoto da Silva

Morte, escravidão e hierarquias na freguesia de Irajá: um estudo sobre os funerais e sepultamentos dos escravos (1730-1808)

Dissertação submetida ao corpo docente do Programa de Pós-graduação em História da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro – UNIRIO, como parte dos requisitos necessários à obtenção do grau de Mestre em História Social, sob orientação da Prof. Dra. Claudia Rodrigues.

Rio de Janeiro 2017

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS E SOCIAIS – CCH PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA – PPGH

Morte, escravidão e hierarquias na freguesia de Irajá: um estudo sobre os funerais e sepultamentos dos escravos (1730-1808)

Aprovado por:

______Prof.ª Dr.ª Sheila Siqueira de Castro Faria (Universidade Federal Fluminense-UFF)

______Prof. Dr. Márcio de Souza Soares (Universidade Federal Fluminense – UFF/Campos dos Goitacazes)

______Prof. Dr. Roberto Guedes Ferreira (Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro-UFRRJ)

______Prof.ª Dr.ª Claudia Rodrigues – Orientadora (Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro-UNIRIO)

Rio de Janeiro 2017

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AGRADECIMENTOS

A Deus, toda honra e toda glória. A Ele primeiramente agradeço por ter me ajudado ao longo de toda essa trajetória, que não começou há dois anos, mas muito antes disso. Agradeço por ter me dado forças nos momentos de fraqueza, angustia e desespero, por ter colocado em meu caminho pessoas maravilhosas a quem começo a agradecer neste momento. Agradeço a minha querida, amada e paciente orientadora Claudia Rodrigues, por toda dedicação e compreensão, pelas palavras de encorajamento, incentivo e principalmente por ter acreditado em mim. Muito, muito, muito obrigado! Aos meus pais Pedro e Eunice, por todo amor, carinho e dedicação. Amo vocês! As minhas irmãs Rosangela, Simone, Cristiane, Alexsandra e meu irmão Leandro, a minha cunhada Beatriz, meus sobrinhos Carol, Lucas, Jasmine, Agatha, Erick, Esdras, Nicolas e Sayuri. Em situações diferentes vocês me ajudaram a solucionar problemas que de uma forma ou de outra estavam relacionados à produção desta pesquisa. Agradeço pelas orações, pelas horas de risadas e de longas conversas. Aos meus colegas do grupo Imagens da morte: Iury Matias, por ter me ajudado na transcrição de alguns documentos na Cúria do Rio de Janeiro. Sem sua ajuda boa parte da pesquisa não teria sentido. A Aryanne Faustino, por ser minha companheira nas constantes crises de desesperos. A Barbara Benevides, Conceição Franco e Claudio Honorato, Milra Bravo, Vitor Cabral, Monique Vidal e Anne Elise. A amizade e o companheirismo foram importantíssimos. Que Deus os abençoe grandemente! As minhas amigas do Pólo Duque de Caxias, Regina Ribeiro, Sayonara e Beatriz, quantas trocas de experiências, nossas conversas nos intervalos entre uma aula e outra foram de grande ajuda. Muito obrigado pela amizade! Aos amigos do mestrado da Unirio. Flavio, Amanda Pascoal, Josena, Juliana, Amanda Cavalcante. Nossos encontros na casa do Flavio além de me proporcionarem momentos de alegria e total relaxamento me ajudaram a perceber que não era somente eu que estava quase enlouquecendo com os prazos, participação de eventos e tudo mais que envolvia a elaboração da pesquisa.

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Agradeço ao Programa de Pós-graduação da UNIRIO por me acolher, ao pessoal da Coordenação e secretaria do PPGH, principalmente ao professor Pedro Caldas e à secretária Priscila Luvizotto, pela dedicação em sempre estar tirando as dúvidas de nós alunos com relação à elaboração de relatórios, prazos e toda a burocracia que envolve os cursos acadêmicos. Agradeço também à Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES), por me conceder a bolsa de estudos. Aos professores Sheila de Castro Faria, Anderson de Oliveira e Roberto Guedes, por aceitarem participar da minha banca de qualificação. Obrigado pelos comentários feitos sobre este trabalho, eles foram muito importantes para elaboração e conclusão desta pesquisa. Aos funcionários do Arquivo Nacional, pela atenção e ajuda na procura dos documentos que precisava. A todos os amigos e parentes que no momento não estou lembrando, MUITO OBRIGADO!!

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RESUMO

Esta dissertação tem como objetivo analisar a existência de uma hierarquia entre os escravos a partir dos ritos fúnebres e locais de sepultamentos disponibilizados a eles na freguesia de Nossa Senhora da Apresentação de Irajá, no século XVIII e início do XIX. O estudo analisa os principais engenhos, a sociedade e a economia de Irajá, com a intenção de reconhecer quem eram os escravos da freguesia de Nossa Senhora da Apresentação, seus senhores e o ambiente em que esses cativos viviam, e a partir disso identificar a causa mortis e os ritos fúnebres dispensados a eles. Para isso, usamos os Assentos paroquiais de óbitos da mesma região, a fim de compreender quais os cuidados dispensados aos escravos no momento derradeiro. A análise dessa documentação nos permiti perceber que nas freguesias rurais também havia uma hierarquia entre os cativos por ocasião da morte. A ideia é mostrar que, assim como os livres, os escravos também procuravam uma forma de obter uma boa morte, buscando maneiras diversificadas com a finalidade de garantir uma boa passagem para o mundo dos mortos e como consequência demonstrar a posição social que possuíam em vida.

Palavras-chave: Nossa Senhora da Apresentação de Irajá, escravidão, hierarquias, morte escrava e sepultamentos.

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ABSTRACT

This dissertation aims to analyze the existence of a hierarchy among the slaves from funeral rites and burial sites made available to them in the parish of Our Lady of the Presentation of Irajá in the eighteenth and early nineteenth centuries. The study analyzes the main engenhos, the society and the economy of Irajá, with the intention of recognizing who were the slaves of the parish, their masters and the environment in which these captives lived, and from this to identify the cause mortis and the funeral rites dispensed to them. To do this, we used the Parish Death Seats of the same region in order to understand the care given to the slaves at the last moment. The analysis of this documentation allowed us to see that in the rural parishes there was also a hierarchy among the captives at the time of death. The idea is to show that, just like the free ones, the slaves also sought a way to obtain a good death, seeking diversified ways in order to guarantee a good passage to the world of the dead and as a consequence to demonstrate the social position that they had in life.

Keywords: Nossa Senhora da Apresentação de Irajá, slavery, hierarchies, slave death and burials.

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LISTA DE ILUSTRAÇÕES

Imagem 1 – Igreja matriz de Nossa Senhora da Apresentação de Irajá, p. 39

Imagem 2 – São Miguel Arcanjo, pertencente à matriz de Nª Sra. Da Apresentação de Irajá, p. 40

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LISTA DE MAPAS

Mapa 1 – Recôncavo da Guanabara e os caminhos terrestres, p. 25

Mapa 2 – Rios do Recôncavo da Guanabara, p. 29

Mapa 3 – Aldeia de “Eiraiá” na margem esquerda do Recôncavo da Guanabara, p. 31

Mapa 4 – Aldeias da margem esquerda da Guanabara, cujo território faria parte da futura freguesia de Irajá, p. 33

Mapa 5 – Aldeias da margem esquerda da Guanabara, cujo território faria parte da futura freguesia de Irajá, p. 34

Mapa 6 – Irajá: um entreposto no meio do Caminho Novo para as Minas, p. 64

Mapa 7 – Detalhe do mapa 6, enfocando melhor a área de Irajá, p. 66

Mapa 8 – Engenhos identificados a partir da Carta Topográfica do Rio de Janeiro, p. 72

Mapa 9 – Mapa dos portos no Rio de Janeiro colonial, p. 90

Mapa 10 – Localização da Rua Direita: primeiro local de compra e venda de escravos da cidade do Rio de Janeiro, p. 101

Mapa 11 – Localização do Valongo: segundo local de comercialização de escravos da cidade do Rio de Janeiro, p. 101

Mapa 12 – Nações e etnias africanas no Rio de Janeiro, p. 109

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LISTA DE TABELAS

Tabela 1 – Produção anual de alimentos nas freguesias do Rio, em ordem decrescente de maiores produtores no geral, p. 78

Tabela 2 – Engenhos, engenhocas e de escravos nas diferentes freguesias, em ordem decrescente de maiores quantidades de escravos, p. 80

Tabela 3 – Número de escravos de algumas freguesias do Recôncavo da Guanabara, p. 80

Tabela 4 – Procedência dos escravos de Irajá (1730 a 1808), p. 106

Tabela 5 – Etnias/procedências dos escravos falecidos em Irajá entre 1730-1750, p. 107

Tabela 6 – Estado matrimonial dos cativos de Irajá, p. 113

Tabela 7 – Legitimidade dos filhos de escravos, em Irajá, segundo os registros de óbito, p. 118

Tabela 8 – Causa mortis dos escravos de Irajá, segundo a procedência, p. 123

Tabela 9 – Causa mortis dos escravos de Irajá, segundo a idade, p. 124

Tabela 10 – Sintomas considerados causadores da morte dos escravos de Irajá, segundo os registros de óbitos (por procedência), p. 126

Tabela 11 – Sintomas considerados causadores da morte dos escravos de Irajá, segundo os registros de óbito (por idade), p. 126

Tabela 12 – Referência aos sacramentos ministrados aos escravos, antes da morte, p. 133

Tabela 13 – Mortalha dos escravos de Irajá, p. 136

Tabela 14 – escravos que foram sepultados em covas da irmandade, p. 143

Tabela 15 – Locais de sepultamento em Irajá, p. 147

Tabela 16 – Nome dos senhores que tiveram escravos sepultados em Irajá, p. 158

Tabela 17 – Escravos sepultados em covas privilegiadas, p. 163

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LISTA DE QUADROS

Quadro 1 - Nome dos senhores de engenho relacionados no decreto de fundação da freguesia de Irajá em 1647, p. 36

Quadro 2 - Oratórios existentes em Irajá em 1687, p. 47

Quadro 3 - Oratórios existentes em Irajá em 1794, p. 52

Quadro 4 - Capelas e seus respectivos proprietários em Irajá em 1794, p. 58

Quadro 5 - Relação comparativa dos proprietários/engenhos, em Irajá, entre 1778 e 1794, p. 69

Quadro 6 - Tabela com o número de engenhos, escravos e a produção anual de açúcar e aguardente, em Irajá, em 1778, p. 75

Quadro 7 - Número de habitantes em algumas freguesias do Recôncavo da Guanabara (1687-1795), p. 92

Quadro 8 - Casais de cativos pertencentes a senhores diferentes dentro da escravaria de Irajá, p. 115

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LISTA DE GRÁFICOS

Gráfico 1 - Engenhos de açúcar em funcionamento na Capitania do Rio de Janeiro nos séculos XVI e XVII, por décadas, p. 67

Gráfico 2 - Causas das mortes em Irajá, segundo registros de óbitos, p. 121

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ABREVIATURAS

ACMRJ – Arquivo da Cúria Metropolitana do Rio de Janeiro

AHU – Arquivo Ultramarino

AN – Arquivo Nacional do Rio de Janeiro

IHGB – Instituto Histórico Geográfico Brasileiro

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO, p. 15

CAPÍTULO 1. A freguesia de Irajá e suas características de paróquia rural, p.23 1.1. Irajá: um ponto estratégico nos caminhos do Recôncavo da Guanabara, p. 23 1.2. Das origens indígenas à consolidação de Irajá como uma freguesia, p. 31 1.3. Uma matriz cercada por oratórios e capelas particulares, p. 45

CAPÍTULO 2. Uma freguesia inserida na economia escravista colonial, p. 62 2.1. A produção econômica em Irajá, p. 62 2.2. Rios e portos em Irajá, p. 88 2.3. A sociedade que fez a economia em Irajá, p. 93

CAPÍTULO 3. A morte e o morrer hierarquizado em Irajá, p. 99 3.1. Os escravos de Irajá, p. 104 3.2. Mortalidade escrava em Irajá, p.119 3.3. O momento derradeiro em Irajá, p. 129 3.3.1. Os rituais fúnebres entre os escravos de Irajá, p. 130 3.3.2. Os locais de sepultamento em Irajá, p. 138 3.4. Hierarquia entre os escravos através dos locais de sepultamentos, p. 153 3.5. Estudos de caso sobre a morte escrava em alguns engenhos de Irajá, p. 164 3.5.1. O Engenho de Sacopema de Luiz Pereira de Lemos e seus descendentes, p. 164 3.5.2. O Engenho de Nazareth de Bento de Oliveira Braga e seus descendentes, p. 170 3.5.3. O Engenho do Portela: a viúva de Manoel de Menezes, Thereza Machado e seus herdeiros, p. 173

CONCLUSÃO, p. 177

FONTES, p. 180

BLIOGRAFIA, p. 184

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INTRODUÇÃO

Esta pesquisa tem como objetivo identificar a existência de uma hierarquia entre os escravos através dos locais de sepultamento e dos ritos fúnebres disponibilizados para os mesmos em uma freguesia rural do Rio de Janeiro, a freguesia de Nossa Senhora da Apresentação de Irajá, entre os anos de 1730 a 1808. A escolha por este recorte cronológico veio primeiramente pelo desejo de tratar sobre a questão da morte entre os escravos no século XVIII, pois o século XIX já tinha sido bastante explorado. Não que não haja mais nada para se trabalhar neste período, mas percebo que existe uma necessidade de estudos mais voltados para um período mais recuado. Além desse motivo, ao procurar os registros de óbitos para Irajá, os únicos encontrados foram três livros que abrangem o período citado acima. A ideia de se estudar a morte veio a partir da leitura da primeira parte do livro Lugares dos mortos na cidade dos vivos, da professora Claudia Rodrigues, e da aula ministrada pela mesma no curso de especialização em História do Rio de Janeiro da UFF, em 2010. Desta aula resultou o trabalho de conclusão de curso, no qual abordei o processo de secularização dos cemitérios no Rio de Janeiro, São Paulo e Salvador no século XIX, orientado pela própria professora Claudia Rodrigues. Mas a ideia de partir para os estudos sobre a escravidão e dos ritos fúnebres entre os cativos, veio através dos encontros com o grupo de estudos Imagens da morte, na Unirio, coordenado pela referida professora. A leitura e as discussões me fizeram abraçar o tema e esquecer as análises somente sobre os cemitérios em si, me fazendo buscar mais sobre os outros locais de sepultamento utilizados durante o período colonial e a posição social das pessoas que eram enterradas neles. A escolha da região de Irajá veio por meio do contato com seus registros de óbitos. Antes deste, a intenção era estudar Itaguaí, que é a cidade onde moro, mas segundo as informações que obtive na própria Cúria de Itaguaí, não havia documentação para antes do século XIX. Deste modo pesquisando o site dos mórmons (www.familysearch.org) em busca de uma área para estudar, me deparei com uma rica documentação para a freguesia de Irajá. Sua riqueza não estava somente na conservação do material, que é de excelente qualidade, mas também pelas informações nele contidas.

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Os óbitos dos escravos da região revelavam de forma bastante clara dados sobre a localização das sepulturas, cortejo fúnebre, causa mortis e outras informações referentes ao morto. Por ser um tipo de documentação com referências tão ricas, levantou meu interesse sobre a região o que resultou na elaboração do projeto que se desdobrou nesta pesquisa. Para a elaboração deste trabalho foi utilizada uma vasta bibliografia voltada para os estudos sobre escravidão e morte entre os cativos. Foram também usadas outras fontes primarias, tais como: como a Visita Pastoral de Monsenhor Pizarro e Araújo, de 1794; o Relatório do Marques do Lavradio, de 1778; as Memórias históricas da Cidade São Sebastião do Rio de Janeiro de 1779 a 1789; inventários post-mortem de alguns senhores de engenhos de Irajá; As Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia de 1707; breves apostólicos; registros de compras e vendas de terras da região e os registros de óbitos dos escravos da freguesia de Nossa Senhora da Apresentação de Irajá. A combinação deste material me ajudou a identificar tanto o ambiente em que os escravos estavam inseridos como as formas de bem morrer mais procurados por esses cativos e/ou as pessoas a ele ligadas. Trabalhos como do geógrafo Mauricio Abreu foram de total contribuição para o reconhecimento da região de Irajá, pois me ajudou a percorrer a própria freguesia e a descobrir a localização das grandes propriedades e de suas produções; contribuindo também para a identificação da própria elite local e suas constantes vendas de propriedades. O que me ajudou entender se havia alguma mudança nas formas de tratamento dos escravos quando ocorria a modificação da liderança dos engenhos1. Durante o período colonial, a morte era tratada pelas pessoas como algo natural, um momento da vida pelo qual todos um dia iriam passar. Por ter consciência dela, a sociedade tinha o cuidado de se preparar, a própria Igreja católica alertava os fiéis para se prepararem para o momento derradeiro. Para isso, tinham o cuidado de redigir seu testamento como forma de garantir que os rituais de passagem para o mundo dos mortos fossem da forma que desejavam. No momento da morte, os familiares deveriam estar reunidos junto ao moribundo, pois se acreditava que morrer sozinho não era bom, pois era necessário consolo e o máximo de orações em intenção da alma do que partia. A família e os amigos mais próximos eram responsáveis por fazer com que

1 ABREU, Mauricio de Almeida. Geografia Histórica do Rio de Janeiro (1502 a 1700). Volume 1. Rio de Janeiro: Andrea Jakobsson Estúdio e Prefeitura do Município do Rio de Janeiro, 2010 e o banco de dados de Mauricio Abreu sobre a Estrutura Fundiária da cidade do Rio de Janeiro. www.mauricioabreu.com.br. Acessado em 12/02/2017.

17 tudo aquilo que foi pedido em testamento fosse cumprido, principalmente as missas, pois eram elas que ajudavam a diminuir o tempo de permanência das almas no Purgatório. No Rio de Janeiro dos séculos XVIII e XIX, com uma sociedade onde o catolicismo era a religião do Estado, era esperado que todos procurassem a forma de sepultamento cristão. Desta forma, era comum o desejo entre os cristãos de serem inumados dentro das igrejas e o mais próximo ao altar, pois além da crença da proteção dos santos e da garantia das orações dos fiéis que ali iam rezar, o local da sepultura no interior dos templos cristãos poderia também indicar o status social daquele defunto durante a vida. Os africanos que vieram para o Brasil nos navios negreiros também tinham suas preocupações com a morte. Acreditavam que as pessoas deveriam falecer somente na velhice, depois de terem muitos filhos e uma grande descendência, passar por essas etapas na vida ajudava a garantir uma boa passagem para o além. Pois, para povos como os bantos, se a morte ocorresse de forma diferente da citada anteriormente, poderia ser um acontecimento brutal, contrário à natureza2, principalmente se fosse sem ritual e sepultado fora de um local sagrado, pois isto poderia ocasionar no retorno da alma do morto para perturbar a própria família. Assim, para chegar ao entendimento sobre a morte e morrer católico e africano, os estudos de João José Reis, Claudia Rodrigues e Mary Karasch foram imprescindíveis. A brasilianista Mary Karasch, abordou a vida dos escravos no Rio de Janeiro durante os anos de 1808 a 1850. A mesma separou dois capítulos de sua pesquisa para analisar sobre as moléstias que assolavam os cativos, seus funerais, crenças religiosas e o suicídio. Segundo ela, muitas das causas de mortalidade entre os escravos estavam ligadas aos maus tratos, à dieta inadequada e a falta de roupas e moradias apropriadas; o que ocasionava a proliferação de doenças. Mas não eram somente as doenças que poderiam matar, o suicídio era também procurado pelos próprios cativos. A tentativa de uma fuga definitiva da escravidão ou a enorme saudade da terra natal levou alguns cativos a tirarem a própria vida e assim, ocasionando um sepultamento sem direito a uma cova em local sagrado e sem cerimônia3.

2 ALTUNA, Raul Ruiz de Asús. A cultura tradicional banto. Luanda: Secretariado Arquidiocesano de Pastoral, 1985, p. 59 Apud SILVA, Júlio César Medeiros da. À flor da terra: cemitério dos pretos novos no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Garamond: IPHAN, 2007. 3 KARASCH, Mary C. A vida dos escravos no Rio de Janeiro (1808-1850). São Paulo: Companhia das letras, 1987[2000].

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Ao estudar a epidemia de febre amarela de 1849-50 e a criação dos cemitérios públicos extramuros na cidade do Rio de Janeiro nos anos seguintes como marco do processo de transformação dos costumes fúnebres, Claudia Rodrigues analisou as atitudes e procedimentos da população escrava diante da morte na Freguesia do Santíssimo Sacramento, ao longo do século XIX. Segundo ela, à medida que as gerações cativas iriam mudando, a cultura cristã iria se afirmando sobre a africana. Mesmo após conseguirem a alforria, muitos africanos continuaram mantendo elementos das representações africanas sobre a morte, ao passo que os crioulos apresentavam costumes mais próximos dos do universo social dos livres4. A obra de João José Reis sobre a revolta da Cemiterada em 1835 e os costumes fúnebres na Salvador do século XIX, foi outra que muito contribui para esta pesquisa. O historiador em sua análise destacou a presença constante das irmandades dentro da população da época e a função dessas associações entre os negros. Segundo ele, as associações religiosas ofereciam apoio nos momentos de dificuldades, ajuda para obter a alforria e oportunidade de ter um ritual fúnebre considerado decente. Além disso, teriam sido elas os principais veículos do catolicismo popular e de formação de uma família de irmãos5. Esses três trabalhos foram essenciais para o entendimento do quanto às sociedades fundamentadas na fé católica e as africanas se preocupavam com a morte. O ritual fúnebre seria visto como uma necessidade, sem ele o mundo dos vivos e dos mortos não ficaria em plena harmonia. Por isso que os escravos africanos e crioulos da América portuguesa buscavam um sepultamento considerado digno. Sendo assim, um dos únicos caminhos encontrados por esses cativos era a associação a uma irmandade, capazes de garantir o ritual fúnebre e o sepultamento em local sagrado. Mas, apesar das informações encontradas no trabalho de João José Reis, percebi que ainda havia uma necessidade de se entender melhor sobre a ação das confrarias dos homens de cor sobre o morrer entre os cativos. Para isso, recorri às pesquisas de Célia Borges e Marisa Soares. As duas trabalham com irmandades de negros em capitanias distintas, Minas Gerais e Rio de Janeiro. Célia Borges em seu estudo sobre a irmandade de Nossa Senhora do Rosário na capitania de Minas Gerais, entre os séculos XVIII e XIX, apontou como as irmandades

4 RODRIGUES, Claudia. Lugares dos mortos na cidade dos vivos: tradições e transformações fúnebres no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro, 1997. 5 REIS, João José. A morte é uma festa: ritos fúnebres e revolta popular no Brasil do século XIX. São Paulo: Cia das Letras, 1991.

19 agiam ao receberem a notícia do falecimento de um irmão. O tocar do sino, a ordem dos irmãos no cortejo fúnebre são alguns dos elementos descritos pela pesquisadora. Porém, ela também destaca que havia uma hierarquia entre os membros das irmandades evidenciada nos locais de sepultura. Borges aponta que membros responsáveis pelos cargos mais importantes dentro das confrarias eram sepultados nos lugares mais privilegiados dentro da igreja. Além disso, ela também destaca que o número de sufrágios oferecidos para esses membros era diferente dos demais, sendo bem maior o número de missas disponibilizados para eles. Ela explica que ao ingressarem nas irmandades, os africanos acabavam por assumir os rituais fúnebres católicos, os tornando significativos a partir de suas matrizes culturais de origem. Desta forma, eles adaptaram suas crenças a nova situação que estavam vivendo na América portuguesa6. Ao pesquisar sobre a formação da Irmandade de Santo Elesbão e Santa Efigênia por escravos provenientes da Costa da Mina, no Rio de Janeiro do século XVIII, Mariza Soares aponta que a busca dos escravos pelas irmandades se deu devidamente por causa da morte, alegando que a justificativa para a criação das irmandades de negros estaria associada ao fato de os escravos serem abandonados por seus senhores depois de estarem velhos e doentes. Ao falecerem, esses cativos tinham seus corpos sendo jogados em praias ou terrenos ermos. Portanto, para fugir de uma morte sem ritual, escravos e ex escravos tornavam-se membros de alguma irmandade7. Depois de entender a questão dos rituais fúnebres, o significado de morte de africanos e católicos, chegou o momento em que foi necessário saber quem era Irajá e sua sociedade. Para isso, foi necessário entender como uma freguesia se estabelecia. Nossa Senhora da Apresentação de Irajá teve sua origem em 1613 e estava localizada no Recôncavo da Guanabara, situando-se na rota do Caminho Novo, como o primeiro arraial partindo da cidade do Rio de Janeiro, seguindo pela margem esquerda da Baía da Guanabara. Foi devido aos apelos da população da localidade, que Irajá foi elevada à categoria de freguesia colada, em 1647, expressando o crescimento da importância da região. Vários foram os benefícios que a população adquiriu com essa mudança. Para entender que benefícios seriam esses recorri ao trabalho de Sergio Chahon. Sua pesquisa foi responsável por responder aos questionamentos relacionados à criação não só da freguesia, mas também da importância do estabelecimento de capelas e oratórios

6 BORGES, Célia Maia. Escravos e libertos nas Irmandades do Rosário: devoção e solidariedade em Minas Gerais: séculos XVIII e XIX. Juiz de Fora: Editora da UFJF, 2005. 7 SOARES, Mariza de Carvalho. Devotos da cor. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000.

20 particulares. O autor aponta que para que uma determinada capela fosse elevada aos status de freguesia era necessário que a Igreja confirmasse que na região onde estava localizada a ermida, havia número suficiente de fregueses católicos capazes de pagar o dízimo. Os oratórios e as capelas particulares, construídos nos engenhos, seriam identificados pelo pesquisador como um lugar de liturgia familiar, mas ao mesmo tempo, estariam associados a uma das muitas formas de demonstrar o status social de seu proprietário8. Para o reconhecimento da sociedade da freguesia de Nossa Senhora da Apresentação busquei os trabalhos de João Fragoso. O autor ao identificar a formação da sociedade colonial do Rio de Janeiro, apontou que sua formação tinha como base o engenho e nele a família. Esta última seria a responsável pela formação de uma hierarquia social. As pessoas que viviam dentro das áreas de produção de açúcar mantinham com seus senhores uma relação de clientelagem, seriam formações de alianças com pessoas do mesmo grupo social e também das camadas inferiores, incluindo os escravos. Essas relações seriam, segundo o autor, responsáveis por garantir a elevação do status social dos indivíduos envolvidos. Portanto, de acordo com Fragoso, foi devido a este relacionamento mais próximo com os senhores que ocorreu a formação de uma elite nas senzalas, isto é, a formação de uma hierarquia social entre os próprios escravos9. As fontes primárias ajudaram a construir a imagem do que seria a freguesia de Nossa Senhora da Apresentação de Irajá e quem seriam seus escravos no século XVIII. Isso foi possível devido ao acesso aos registros paroquiais de óbitos dos escravos da região. Para trabalhar com esta fonte utilizei a base do banco de dados elaborado pela professora Claudia Rodrigues, criado a partir do programa ACESS, alimentando-o com a transcrição dos dados dos livros de registros de óbitos de escravos de Irajá, por mim coletados. Este recurso nos ajudou a simplificar as informações e a chegarmos a conclusões que esperamos contribuir para os estudos sobre a escravidão no século XVIII no Rio de Janeiro, a partir de um novo enfoque. As visitas pastorais de Monsenhor Pizarro e Araújo, o relatório do Marques do Lavradio de 1778, as Memórias Públicas do Rio de Janeiro para o vice-rei Luiz de

8 CHAHON, Sergio. Os convidados para a ceia do Senhor: As missas e a vivência leiga do Catolicismo na cidade do Rio de Janeiro e arredores (1750-1820). São Paulo: Editora da Universidade São Paulo, 2008. 9 FRAGOSO, João. A nobreza da república: notas sobre a formação da primeira elite senhorial do Rio de Janeiro (séculos XVI e XVII). Revista Topoi, nº 1. Jan.- dez. 2000;

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Vasconcelos (1779 a 1789), os breves apostólicos e os inventários foram documentos que contribuíram para o reconhecimento não só da região de Irajá, a matriz, as capelas, o cemitério, mas também seus engenhos, sua base de produção econômica e principalmente a sua sociedade que possuía propriedades na freguesia não somente por questões econômicas, mas também pelo status que elas ofereciam. Agora resta-nos apresentar um pouco de cada um dos capítulos criados para concretização desta pesquisa, onde foram analisados sobre cada um dos questionamentos que foram levantados para o desenvolvimento desta pesquisa. O primeiro capítulo, “A freguesia de Irajá e suas características de paróquia rural”, tem como objetivo conhecer a criação da freguesia no aspecto religioso, através da instalação da matriz, oratórios, irmandades e capelas. Para tanto, destacamos as origens indígenas da região e seu desbravamento pelos colonos portugueses devido à concessão de sesmarias e pela descoberta do ouro. Para a elaboração deste início da pesquisa foram usados como fonte às visitas pastorais de Monsenhor Pizarro e Araújo e os breves apostólicos de cinco proprietários de Irajá, que se encontra na Cúria Metropolitana do Rio de Janeiro. O segundo capítulo, “Uma freguesia inserida na economia colonial”, trata de como a freguesia se tornou uma das mais importantes do Rio de Janeiro. Nesta parte da pesquisa são apresentadas as produções agrícolas, os rios, seus engenhos e a sociedade de Irajá. Para o construirmos, foram usados como fontes o relatório de 1778 do Marques do Lavradio, as Memórias Públicas da cidade do Rio de Janeiro para uso do vice-rei Luis de Vasconcelos 1779 a 1789 e as visitas pastorais de Monsenhor Pizarro e Araújo, de 1794. No terceiro capítulo, “Morte e hierarquia entre os cativos de Irajá”, a intenção é tratar da existência de uma hierarquia entre os cativos de Irajá identificadas através dos locais de sepultamento e dos ritos fúnebres dispensados a eles. Para isso, busco identificar o principal motivo de tantas mortes entre os escravos da região, depois os ritos fúnebres mais comuns dispensados para esses cativos e os cuidados oferecidos pelos senhores aos seus escravos no momento derradeiro, que poderia nos levar ao entendimento de uma hierarquia. A documentação que serviu como base para a criação deste capitulo foram os três livros de registros paroquiais de óbitos dos escravos (1730- 1881, 1781-1794 e 1794-1808). Por fim, convido o leitor a adentrar à freguesia de Nossa Senhora da Apresentação de Irajá e conhecer um pouco sobre a morte escrava no século XVIII

22 enquanto uma temática ainda nova no âmbito de uma história social da morte, no Rio de Janeiro colonial.

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CAPÍTULO 1

A freguesia de Irajá e suas características de paróquia rural

1.1. Irajá: um ponto estratégico nos caminhos do Recôncavo da Guanabara

A história da ocupação e povoamento de Irajá está profundamente associada ao processo de conquista lusitana da Guanabara, após a expulsão dos franceses e dos seus aliados tupinambás. Com o auxílio dos jesuítas e dos índios temiminós liderados por Araribóia, os portugueses – que foram denominados por João Fragoso de “conquistadores” – entraram em guerra com objetivo de garantir a ocupação definitiva da região e trazer a paz nas proximidades10. As famílias desses conquistadores, que chegaram à capitania entre 1565 e 1600, formariam a elite senhorial carioca. Segundo Maria Regina Celestino de Almeida, nas primeiras décadas da colonização, a baia da Guanabara ficou abandonada pelos portugueses devido aos índios Tamoios estabelecidos na região, aliados dos franceses, que impediam a presença lusitana e também ameaçavam invadir as capitanias de São Vicente e Espírito Santo11. O que fez com que no ano de 1567, após já estabelecidos no Rio de Janeiro, esses “conquistadores” juntamente com seus aliados, entrassem em guerra e expulsassem por definitivo os franceses da Baia de Guanabara e, assim, tomando posse da cidade. Mas, para além dessa elite, estavam também as famílias povoadoras, formadas por portugueses pobres, artesãos, carpinteiros e pequenos e médios produtores agrícolas. Por último eram os escravos, no início formado por indígenas, e depois os africanos. Fundada em 1565 por Estácio de Sá, a cidade do Rio de Janeiro tinha ainda uma posição secundária dentro da economia colonial diante de Pernambuco e Bahia até meados do século XVII. Segundo João Fragoso, a origem da economia do Rio de Janeiro e da sua elite senhorial ocorreria entre 1566 e 1620. Durante esse período, a

10 ALMEIDA, Maria Regina Celestino de. De índios do Gato aos Temiminó de Araribóia: metamorfoses culturais e étnicas em tempos de guerra. Revista Estudos de História. Franca, v. 08, nº1, 2001. p. 148. 11 CELESTINO, Maria Regina. De índios do Gato aos Temiminó, p. 148.

24 região ainda não podia ser caracterizada como uma área açucareira ou baseada na escravidão de africanos.12A partir de então, com o desenvolvimento da cultura canavieira, de suas demandas, da estrutura social que ela implantou e dos ritmos que imprimiu, a capitania se integrou definitivamente ao mundo colonial português13. Apesar de historiadores como Eulália Lobo e Alice Canabrava14 terem apontado que a economia carioca estaria ligada terminantemente ao porto, através do comércio de escravos com Angola e a sua venda para a região do Rio da Prata, no Sul, de onde se trocava por ouro, os estudos de João Fragoso apontam que a manutenção da economia e seu sucesso estariam ligados ao apresamento indígena, o tráfico negreiro, ao abastecimento interno e aos cargos de governança. Esses seriam os motivos que levaram uma pequena parcela da população, a elite senhorial, a acumular fortuna suficiente para investimento na implantação de engenhos. Através das guerras justas e do resgate, os colonos capturavam os índios e desta forma utilizavam-nos como mão-de-obra na implantação das lavouras fluminenses. Com relação ao tráfico transatlântico, desde 1650, o Rio de Janeiro já apresentava uma expressiva comercialização de escravos com a África e com a dificuldade de acesso a mão-de-obra indígena, o tráfico negreiro se tornou o principal abastecedor de cativos africanos para o Brasil. A produção destinada ao consumo interno proporcionou a acumulação de capitais que, segundo João Fragoso, teria sido tão importante quanto os excedentes enviados para Portugal15. Com a descoberta do ouro, no final do século XVII e início do XVIII, nas regiões de Minas Gerais, Goiás e Mato Grosso, o Rio de Janeiro passou a ser considerada a principal praça comercial da América Lusa. A extração aurífera trouxe mudanças significativas para a capitania. O porto do Rio se tornou o principal escoadouro tanto de ouro e de diamantes como também responsável pela distribuição de alimentos destinados ao mercado interno, em especial, o das áreas mineradoras16. Outra mudança significativa foi a transferência da capital de Salvador para o Rio de Janeiro,

12 Para o autor, ainda em 1712, existiam apenas 12 engenhos de açúcar no recôncavo da Guanabara. FRAGOSO, João. A nobreza da república, p. 48 13 ABREU, Mauricio de Almeida. Geografia Histórica, p. 77. 14 LOBO, Eulália M, L. História do Rio de Janeiro. Do capital comercial ao capital industrial e financeiro. Vol. I. Rio, IBMEC, 1978; CANABRAVA, Alice P. O comércio português no Rio da Prata (1580-1640). Belo Horizonte: Ed. Itatiaia. São Paulo: EDUSP. 1984. Apud. FRAGOSO, João; BICALHO, M. Fernanda Baptista; GOUVÊA, M. Fátima. O Antigo Regime nos trópicos: a dinâmica imperial portuguesa (séculos XVI-XVIII). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001, p. 38. 15 FRAGOSO, João Luís R. Homens de grossa aventura: acumulação e hierarquia na praça mercantil do Rio de Janeiro (1790-1830). Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 1992. 16 FRAGOSO, João; FLORENTINO, Manolo; FARIA, Sheila de Castro. A economia colonial brasileira: (séculos XVI-XIX). São Paulo: Atual, 1998 p. 73.

25 em 1763. A notícia da descoberta do ouro fez com que milhares de pessoas, estrangeiros, portugueses, homens, mulheres, moços ou velhos, ricos ou pobres, todo o tipo de gente seguisse em direção às minas17. O primeiro caminho usado para o transporte do ouro de Minas para o porto do Rio foi o mesmo utilizado pelos sertanistas na captura de índios denominado Caminho Geral dos Sertões e posteriormente chamado de Caminho Velho que passou a ser usando de forma regular a partir de 169618. No entanto, as dificuldades com relação a este caminho, como a falta de segurança e o tempo de viagem, 74 dias, tornou necessária a busca por outro trajeto que não tivesse os mesmos problemas. Assim, em 1698, Garcia Rodrigues Pais dá início a abertura do então chamado Caminho Novo. Veja no mapa abaixo os caminhos tracejados.

Mapa 1 – Recôncavo da Guanabara e os caminhos terrestres

FONTE: Mapa retirado de ABREU, Mauricio de. Geografia Histórica do Rio de Janeiro. V. 1, p. 353.

17 ANTONIL, Andre João. Cultura e opulência do Brasil: por suas drogas e minas. Rio de Janeiro, 1837. 18 VENÂNCIO, Renato Pinto. O caminho novo: a longa duração. Revista Varia História, Belo Horizonte, nº 21, jul. 1999, p. 181-189 Apud RESENDE, Edna Maria. Os senhores do Caminho Novo: notas sobre a ocupação da Borda do Campo no século XVIII. Revista Mal-Estar e Sociedade. Ano II, nº 2. Barbacena, jun. 2009, p. 121-143.

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Segundo a historiografia tradicional, os responsáveis pelo acesso a este novo caminho teriam sido os colonizadores paulistas, portugueses e autoridades locais, porém Renato Pinto Venâncio nos aponta que na verdade o caminho já existia há muito tempo e era constantemente usado pelos índios. Somente após ter vencido a resistência indígena na região é que os colonizadores passaram a usá-lo19. Segundo Andre João Antonil, as terras das minas eram áridas e inférteis. Aqueles que seguiram para lá sofreram com a falta de mantimentos. A região era rica em metais preciosos, mas pobre em alimentos. A grande demande de pessoas juntamente com a escassez de alimentos colaborou na ampliação das áreas de ocupação do território fluminense. A fim de solucionar o problema do abastecimento da região mineradora, a coroa portuguesa deu ordens expressas aos habitantes para que alimentos fossem cultivados nas proximidades com as minas e inclusive ao longo do trecho dos caminhos que iam para a região20. Desta forma, foram surgindo estalagens e locais de pouso para receber os viajantes que iam em direção a áreas auríferas e a partir destas, povoados foram se constituindo. Lavouras voltadas para a produção de alimentos foram se desenvolvendo, eram unidades familiares contendo poucos escravos, entre 1 a 5 cativos. A partir disso, os acessos às áreas auríferas passaram a ser identificados como importantes rotas comerciais da capitania do Rio de Janeiro, pois muito do que era produzido nessas áreas não ia somente para as minas, mas também passou a ser levado para abastecimento da cidade e até para outras capitanias. Segundo Francisco Carlos Teixeira da Silva, os povoados que se formaram na banda d’além e d’aquém da Baia da Guanabara, tornaram-se um imenso celeiro da colônia, abastecendo cidades como Salvador, Recife e as colônias de Sacramento e Angola, além das naus portuguesas21. Segundo a carta do então governador do Rio de Janeiro, Antônio Brito de Menezes, para a Coroa em 1718: “A cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro opulenta mais que todas as do Brasil, por razão do seu largo comércio, e serem os seus gêneros os mais preciosos”22. A carta escrita uma década depois pelo sucessor de

19 VENÂNCIO, Renato Pinto. O caminho novo, p. 121-143. 20 LENHARO, A. As tropas da moderação: o abastecimento da corte na formação política do Brasil (1808-1842). Rio de Janeiro: Biblioteca Carioca, 1979. 21 SILVA, Francisco Carlos Teixeira da. A morfologia da escassez: crise de subsistência e política econômica no Brasil Colônia (Salvador-Rio de Janeiro, 1680-1790). Tese de doutorado, UFF, Niterói, 1990 Apud PEDROZA, Manoela. A roça, a farinha e a venda: produção de alimentos, mercado interno e pequenos produtores no Brasil colonial. In: FRAGOSO, J., GOUVÊIA, M. F. O Brasil Colonial v.2 – 1º ed. – Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2014, p. 404. 22 ARQUIVO NACIONAL (Doravante, AN). Correspondência dos Governadores do Rio de Janeiro (1718-1725), cód. 80, vol. 1, p. 40 Apud SAMPAIO, Antônio Carlos Jucá de. Os homens de negócio cariocas da primeira metade do setecentos: origem, aliança e acumulação na construção do espaço

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Antônio Brito de Menezes, Luis Vahia Monteiro, demonstra como a capitania do Rio era extremamente importante para o comercio ultramarino. “Esta terra é hoje um império, donde carrega todo o tráfico da América, e descarrega todo o peso, e aviamento dos governos das Minas Gerais e São Paulo”23. A localização estratégica da capitania que contribuiu na ligação entre as áreas de mineração e o ultramar tornou a cidade uma encruzilhada do império, segundo Antônio Carlos Jucá Sampaio, conectando rotas comerciais entre a África, Ásia e Europa24. Isso fez com que o Rio de Janeiro passasse por mudanças tanto estruturais quanto econômicas. Ocorreu um aumento nos contratos de arrematação da dizima da alfândega25. Houve um aumento da população que, em 1710, era de aproximadamente 12.000 paroquianos e, em 1749, passou para 29.14726. Cresceu a procura por imóveis na cidade e seus valores também subiram principalmente das chácaras localizadas próximas a área urbana, a valorização neste tipo de imóvel estava ligada aos produtos cultivados nela, alimentos, isso também contribuiu para ampliação do mercado de abastecimento interno27. O fortalecimento do capital comercial colaborou entre outras coisas para o aumento da oferta de crédito, mas também para o aumento no número de empréstimos, causando um maior endividamento da sociedade fluminense. Mas, segundo Antônio Carlos Jucá, apesar da grande procura de bens ligados a cidade, as negociações relacionadas às áreas rurais não deixaram de ter importância. Elas se mantiveram em alta, com um lucro quase que proporcional aos da cidade28. Desta forma, a cana de açúcar, a exportação de metais preciosos, o apresamento indígena, o comércio de abastecimento interno e posteriormente o tráfico negreiro, foram

atlântico. Actas do Congresso Internacional Espaço Atlântico de Antigo Regime: poderes e sociedade. Instituto de Investigação Científica Tropical (IICT) e Centro de História de Além-mar (CHAM), da Universidade Nova Lisboa, 2005. 23 AN. Publicações Históricas, vol. 15, p. 145 Apud SAMPAIO, Antônio Carlos Jucá de. Os homens de negócio cariocas, 24 SAMPAIO, Antonio Carlos Jucá de. Na Encruzilhada do império: hierarquias sociais e conjunturas econômicas no Rio de Janeiro (1650-1750). Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2003. 25 Valor de 10% cobrado sobre cada mercadoria que entrava no Rio de Janeiro através do porto. A dízima incidia sobre os bens vindos nas frotas anuais, a duração dos contratos dependia da chegada efetiva de tais frotas. Esse imposto não era cobrado diretamente pela Coroa, mas por particulares que o arrematavam pelo prazo de três anos. Esses particulares, em troca da cobrança do tributo, pagavam à Coroa um valor fixo, no contrato de arrematação Apud SAMPAIO, Antônio Carlos Jucá de. Os homens de negócio cariocas, 26 SILVA, Francisco Carlos Teixeira da. A morfologia da escassez:crises de subsistência e política no Brasil colônia (Salvador e Rio de Janeiro; 1680-1790). Tese de doutorado pelo curso de Pós-graduação da Universidade Federal Fluminense (UFF), 1990. 27 SAMPAIO, Antônio Carlos Jucá de. Na curva do tempo: a economia fluminense na primeira metade do século XVIII. Revista Mnemosine. Volume 01, nº 1, jan/jun. 2010, p. 141. 28 SAMPAIO, Antônio Carlos Jucá de. Na curva do tempo, p. 141.

28 fundamentais para o processo de povoamento/ocupação do interior da capitania do Rio de Janeiro, em especial do Recôncavo da Guanabara. A ocupação desta última se deu ainda no século XVI, após a fundação da cidade. O objetivo da Coroa Portuguesa, ao conceder tais terras, foi expulsar os franceses e estabelecer a conquista29. A fixação de um lugar para a formação de povoados era determinada pela existência de córregos, bons ares, de um porto30. Por meio dessas diretrizes é que foram se formando os primeiros arraiais no interior da baía. Com a descoberta do ouro, o Recôncavo definitivamente se inseriu nas rotas comerciais ligando o Rio de Janeiro à Minas Gerais, e seus arraiais às áreas de mineração, devido a sua localização geográfica, cercado de rios como Magé, Iguassú, Pilar, Inhomirim, Suruí, Sarapuí, Macacu, Meriti e Irajá, que facilitavam a circulação de pessoas e de mercadorias. Às margens de alguns destes rios como o de Irajá, foram construídos portos, que, segundo Fania Fridman, eram de intenso movimento. Vejamos esta multiplicidade de rios e portos no Mapa 2.

29 ATLAS FUNDIÁRIO DO RIO DE JANEIRO/SEAF. Rio de Janeiro: 1991, p. 9-13 Apud RODRIGUES, Ana Paula Souza. Elite local nas freguesias do Rio de Janeiro: Freguesia de Piedade do Iguassú e Santo Antônio de Jacutinga (1750-1833). Revista Caminhos da História. v. 7, Edição Especial. Vassouras, 2011. 30 FRIDMAN, Fania. Donos do Rio em nome do rei: uma história fundiária da cidade do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed.: Garamond, 1999. p. 16.

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Mapa 2: Rios do Recôncavo da Guanabara

FONTE: Adaptado de BRAGA, Vitor Cabral. Lugares para “bem morrer” no Recôncavo da Guanabara/RJ: irmandades, ritos e tensões na geografia da morte (1720 a 1800). (Dissertação de mestrado pelo programa de pós-graduação pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro – UNIRIO, RJ, 2015 e de BERNARDES, Lysia e SOARES, Maria Therezinha de Segadas. Rio de Janeiro: cidade e região. Rio de Janeiro: Secretaria Municipal de Cultura; Divisão de Editoração, 1995, p. 24.

LEGENDA: Retângulo Vermelho = Rio Irajá; Retângulo Azul = Rio Inhaúma

A montagem de engenhos e fazendas, a construção de capelas, criação de paróquias e freguesias, conjugado à exploração econômica e ao poder eclesiástico,31 foram etapas determinantes para a fixação de povoados no interior da Guanabara. A forma de divisão da cidade em freguesias demonstrava a relação existente entre Igreja/Estado. Isso acontecia devido ao padroado régio, que representava uma combinação de direitos, privilégios e deveres concedidos pelo papado à Coroa portuguesa para patrocinar as missões católicas e as instituições eclesiásticas no além- mar. Em troca de recolher o dízimo eclesiástico, a Coroa se obrigava a sustentar a propagação do catolicismo nas áreas de conquista e prover condições para o culto,

31 BEZERRA, Nielson Rosa. Mosaico da escravidão: identidades africanas e conexões atlânticas do Recôncavo da Guanabara (1780-1840). (Tese de Doutorado pelo programa de pós-graduação pela Universidade Federal Fluminense – UFF), 2010, p. 38.

30 podendo propor a criação de dioceses e paróquias, erigir ou permitir a construção de Igrejas, apresentar bispos e demais cargos eclesiásticos e recolher o dízimo32. As primeiras freguesias urbanas a serem criadas no Rio de Janeiro foram as de São Sebastião (Sé), em 1569 e a de Nossa Senhora da Candelária, em 1639. Depois disso, no período entre 1634 a 1697, foram criadas mais 16 freguesias33. A justificativa dada pelo bispado do Rio de Janeiro para a criação de tantas freguesias seria devido à dificuldade de prestar os sacramentos aos fiéis por causa da distância ou a quantidade elevada de povoados34. Dentre essas 16 novas freguesias, estava a de Nossa Senhora da Apresentação de Irajá, que foi a primeira do Recôncavo da Guanabara a ser elevada a tal categoria. Nos mapas acima pudemos ver a sua localização privilegiada em relação à entrada da Guanabara e ao centro da cidade-corte. Era a primeira das freguesias mais distante da Sé e da Candelária, a qual estava anexada e, ao mesmo tempo, mais próxima das águas da Guanabara. Como veremos adiante, era o local no qual estava instalada a aldeia de Eiraiá. O que sugere por si só o ponto estratégico da área que era próxima aos rios e com condições para instalação de um povoado. Para os portugueses e demais conquistadores que ali se instalariam, a proximidade de um dos rios que desaguavam na Guanabara facilitaria a instalação de um porto para locomoção e escoamento a produção de uma área “rural” que, ao contrário das freguesias do fundo da baía da Guanabara, não distava muito das freguesias centrais, como podemos ver nos mapas. O que faria com que a região se destacasse como área produtora de alimentos e na qual residia uma quantidade considerável de sacerdotes, como veremos mais adiante. Por enquanto, vejamos como se deu o processo de ocupação portuguesa e católica da região que se transformaria na futura freguesia de Irajá.

32 BOXER, Charles. A Igreja e a expansão Ibérica. Lisboa: Edição 70, 1989, p. 98-101; TORRES LONDOÑO, Fernando. Paróquia e comunidade na representação do sagrado na colônia. In ______. (org). Paroquia e comunidade no Brasil: perspectiva histórica. São Paulo: Paulus, 1997, p. 55 Apud RODRIGUES, Claudia e FRANCO, Maria da Conceição Vilela. Notas sobre apresença e atuação da Igreja Católica na antiga Macaé. In.: AMANTINO, M.; ENGEMANN, C.; FREIRE, J. e RODRIGUES, C. Povoamento, catolicismo e escravidão na antiga Macaé (séculos XVII ao XIX). Rio de Janeiro, p. 66. 33 Que foram as de N. Sra. da Conceição, orago da vila de Angra dos Reis; N. Sra. da Apresentação, orago de Irajá; São João Batista, orago de Meriti; São Gonçalo, orago de São Gonçalo; Santo Antônio de Sá, orago de vila em Macacu; São Nicolau, orago de Suruí; N. Sra. do Loreto, orago de Jacarepaguá; Santo Antônio, orago de Jacutinga; N. Sra. dos Remédios, orago de Vila de Paraty; N. Sra. do Desterro, orago de Campo Grande; São João Batista, orago de Itaboraí; N. Sra. do Pilar, orago de Iguaçu; N. Sra. da Piedade, orago de Inhomirim; N. Sra. da Piedade, orago de Vila de Magé e São João Batista, orago de Icaraí. Apud. FRIDMAN, Fania. Freguesias fluminenses ao final do setecentos. Revista Ieb nº 48, março de 2009, p.97. 34 ABREU, Mauricio de Almeida. Geografia Histórica do Rio de Janeiro, p. 349.

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1.2. Das origens indígenas à consolidação de Irajá como uma freguesia

Os estudos sobre a região de Irajá antes da presença portuguesa ainda são poucos e as fontes são escassas. Mas o que sabemos é que nas margens do rio denominado também de Irajá se encontrava a aldeia indígena de Eiraiá. Seguindo a margem esquerda da baia da Guanabara e passando pela foz do conjunto de rios e ribeirinhos que formam hoje o Rio Faria Timbó, antigo Inhaúma (recordemos que, apesar da existência deste rio, ainda não havia a freguesia de Inhaúma neste momento, sendo a região pertencente à “Irajá”)35, era possível chegar aos manguezais onde se encontrava a aldeia de Eiraiá. Esta era uma tribo pertencente ao grupo dos índios tupinambás, podendo ser considerada uma das mais importantes da região por ter sido citada em documentação francesa desde 155036.

Mapa 3. Aldeia de “Eiraiá”, na margem esquerda do Recôncavo da Guanabara

FONTE: SILVA, Rafael de Freitas da. O Rio antes do Rio, Rio de Janeiro: Babilonia Cultura Editorial. 2015. p. 127. Para uma melhor compreensão dos leitores, o autor preferiu usar os nomes atuais dos bairros que se formaram nas proximidades dos locais onde no periodo colonial estavam as aldeias indigenas. A parte pontilhada no mapa corresponde as áreas que foram posteriormente aterradas.

35 Segundo Pizarro, a origem da freguesia de Inhaúma não constava nos documentos lançados nos livros da dita freguesia, apenas havia memórias que o seu uso e estabelecimento como capela curada principiara no ano de 1716 e somente em 1743 a região tornou-se freguesia, se separando de Irajá. PIZARRO E ARAÚJO, José de Souza. O Rio de Janeiro nas visitas pastorais de Monsenhor Pizarro: inventário da arte sacra fluminense. Rio de Janeiro: INEPAC, 2008, p. 29 36 SILVA, Rafael Freitas da. O Rio antes do Rio. Rio de Janeiro: Babilônia Cultura Editorial, 2015, p. 126.

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Em tupi o nome “Eira” significava tanto mel quanto abelha e “iá”, cheia, abundância. Segundo o estudo de Rafael da Silva, a aldeia era sinônimo de fartura de pesca, caça e também de uma grande quantidade de colmeias de abelha-preta37. Assim, alusivamente à associação de determinadas características das abelhas estava ligada à de alguns dos atributos da tribo moradora na aldeia de Eiraiá, a força e a unidade eram algumas delas. Com o contato com os portugueses após a conquista da Guanabara e a interiorização do Recôncavo, o nome da tribo se aportuguesou, passando a ser Irajá. Segundo Silva, havia um mito sobre o nome da região que diz que os índios que trabalhavam em um dos primeiros engenhos implantados ao verem o melaço da cana disseram que aquele lugar era cheio de mel, ou seja, Eiraiá, que no ouvido dos feitores transformou-se, Irajá e acabou se tornando também o nome de um engenho38. No entanto, o autor tem outra versão para a origem do nome da aldeia, que está relacionado a um animal muito comum naquelas matas e pertencente à família dos preás, o “irara”, cujo hábito alimentar era consumir mel. Daí a associação do animal à aldeia. Ele era uma espécie que demonstrava força, pois era capaz de enfrentar as abelhas para conseguir colher o mel que estava dentro das colmeias. As terras onde estava localizada Eiraiá ficavam entre as aldeias de Pirakãiopã e Itanã, sendo a primeira as terras da Tapera de Inhaúma e a segunda as que formariam as futuras terras de Meriti.

37 SILVA, Rafael Freitas da. O Rio antes do Rio, p. 127. 38 SILVA, Rafael Freitas da. Op. Cit., p. 128.

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Mapa 4. Aldeias da margem esquerda da Guanabara, cujo território faria parte da futura freguesia de Irajá.

FONTE: SILVA, Rafael de Freitas da. O Rio antes do Rio, Rio de Janeiro: Babilonia Cultura Editorial. 2015. p. 114 Desta forma, a Eiraiá se estendia em terras do que hoje são os atuais bairros de , Brás de Pina, Vista Alegre, e também Irajá39, como se verifica no mapa acima. Mas o nome da região acabou se fixando devido ao rio Irajá, ligado a localidade onde foram estabelecidos os primeiros engenhos da futura freguesia. Após a conquista da Guanabara e tendo já alienado boa parte das terras que beiravam a baía, deu-se início ao processo da Coroa portuguesa de interiorização da ocupação do Recôncavo. Segundo Mauricio de Abreu, o povoamento se deu em quatro direções principais tendo em primeiro lugar a penetração para além da Tapera de Inhaúma e do Rio de Obiriandiba, atualmente conhecido com rio Faria40. As doações de terra foram sendo demarcadas através das trilhas indígenas, que posteriormente se tornariam a Estrada Real de Santa Cruz ou a Estrada Velha da , e foram se estendendo até a antiga aldeia Tamoia de Sapopemba, prolongando-se até o maciço de Gericinó41.

39 Para as informações referentes à aldeia de Eiraiá, ver SILVA, Rafael Freitas da. Op. Cit. 40 ABREU, Mauricio de Almeida. Geografia Histórica do Rio de Janeiro, p. 218-220. 41 ABREU, Mauricio de Almeida. Geografia Histórica do Rio de Janeiro, p, 218-220.

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Mapa 5. Aldeias da margem esquerda da Guanabara, cujo território faria parte da futura freguesia de Irajá.

FONTE: SILVA, Rafael de Freitas da. O Rio antes do Rio, Rio de Janeiro: Babilonia Cultura Editorial. 2015. p. 141

Assim, é possível perceber que a ocupação do interior da baia se deu primeiro do lado da banda d’aquém; ou seja, na margem esquerda de quem entra na Guanabara. Uma das primeiras doações de sesmaria em terras localizadas no Recôncavo estava a região de Irajá, pois já no século XVI estava estabelecido um engenho em terras doadas por Sebastião de Sá a Antônio de França. Além disso, temos também a extensão da região que ocupava na época uma área que ia desde a sesmaria jesuítica de Iguaçu e o rio Meriti, abarcando também o litoral ocidental da Baia de Guanabara até a baia de Sepetiba42, englobando assim, as atuais regiões de Jacarepaguá, , Campo Grande e Inhaúma que posteriormente foram sendo desmembradas.

Tem de extensão esta freguesia 3legoas pouco mais ou menos consideradas tanto no seo comprimento como em largura: porque para a parte de S. vai a finalizar com a freguesia de S. Thiago de Inhaúma com 1 ½ legoa: com outra tanta distancia divide-se pelo SW. Com a de N. Sra do Loreto de Jacarepaguá, pela estrada geral: pelo rumo do WSW termina com duas legoas pouco mais, com a de N.

42 ABREU, Mauricio de Almeida. Geografia Histórica do Rio de Janeiro, volume 01, p. 359

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Sra. do Desterro do Campo Grande: pelo W. vai terminar em pouco mais de 1 ½ legoa com a de S. João de Merití, pela ponte do Rio xamado Miriti, junto ao mar, ou agoas salgadas43.

Entre as freguesias criadas no período entre 1634 a 1697, estava a de Nossa Senhora da Apresentação de Irajá. Em 1613, foi elevada à categoria de capela curada, pertencente até 1647 à freguesia da Candelária. Segundo Fernando Torres-Londoño, uma capela curada consistia em um estabelecimento separado e independente de qualquer paróquia, garantindo o provimento espiritual da população44. Desta forma, era instituído um cura, que visitaria a região regularmente. A manutenção das visitas era feita através das benesses de “pé de altar”, nome dado à taxa paga pelos fiéis ao padre para realização de batismos, casamentos e enterros. Para se tornar uma freguesia colada, passando o seu vigário a receber as côngruas da Coroa, era necessário que a região onde estava localizada a dita capela fosse reconhecida pelas autoridades coloniais como possuindo certo desenvolvimento econômico, que possibilitasse o investimento da Coroa na manutenção da paróquia, através do padroado régio. Com o aumento do número de engenhos e da população, foi elevada à freguesia colada. Esta transformação se deveu ao clamor dos moradores por causa das dificuldades causadas pela distância entre Irajá e a matriz da Candelária e também o difícil acesso por terra à região, principalmente em dias de chuva, quando os caminhos em direção a Irajá ficavam intransitáveis, impedindo os sacerdotes de socorrerem a tempo os moradores com os últimos sacramentos no momento derradeiro. Neste sentido, a capela foi elevada à categoria de freguesia pelo Reverendo Prelado da Capitania do Rio de Janeiro, o Doutor Antônio de Marins Loureiro, em 30 de dezembro de 1644. Sendo sua criação confirmada por Sua Majestade o rei D. João IV, em alvará de 10 de fevereiro de 1647, que elevou a igreja à categoria de paróquia e determinou o valor de 200$000 (duzentos mil réis) ao pároco de Irajá, assim como aos de outras freguesias45. Através deste alvará, os moradores de Irajá deixavam de estar submetidos aos vigários da freguesia da Candelária e passavam a ser fregueses da freguesia de Nossa Senhora da Apresentação. No ato de nomeação de Gaspar da Costa como pároco colado estavam presentes alguns senhores da região, que segundo o alvará, foram escolhidos pela Coroa Portuguesa. Eram eles:

43 PIZARRO E ARAÚJO, José de Souza. O Rio de Janeiro nas visitas pastorais, p. 59. 44 TORRES-LONDOÑO, Fernando. Paróquia e comunidade, 45 PIZARRO E ARAÚJO, José de Souza. O Rio de Janeiro nas visitas pastorais, p. 59.

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QUADRO 1. Senhores de engenho relacionados no decreto de fundação da freguesia de Irajá em 1647

POR ORDEM DE ASSINATURA 1 Diogo de Sá da Rocha 2 Bartolomeu Machado 3 Luís do Souto 4 Baltazar de Abreu 5 Gonçalo Pontes 6 João Pimenta de Carvalho 7 Francisco Vaz 8 Francisco Frazão 9 Manoel de Paredes (da Costa) 10 Antônio da Silveira (Vilalobos) 11 Feliciano Coelho (Cão) 12 Baltazar Amorim (Calheiros) 13 Antônio Aguiar 14 Vicente da Costa 15 Jorge de Souza Coutinho 16 D. José Antônio Barbosa 17 Manoel do Vale 18 Antônio Pedroso 19 Pedro de Souza Pereira 20 Dona Maria Correia 21 Antônio Sampaio 22 Martim de Souza (da Veiga) 23 Manoel Borges (Pacheco) 24 Pantaleão Duarte (Velho)

FONTE: ARQUIVO NACIONAL. Códice 60, volume 2: Provisão e Alvará de Sua Majestade em que manda aos moradores de Irajá ajudem e obedeça a vigária de Nossa Senhora da Apresentação. p. 57.

A escolha dessas pessoas para a participação de um momento tão importante para a localidade demonstra a quantidade de engenhos já existentes, sendo 25 no total. Na tabela apresentada há 24 nomes, mas no documento, o nome de Gonçalo Pontes aparece duas vezes. Segundo Mauricio de Abreu, os engenhos serviram como base para o arrolamento dos nomes e assim as pessoas que possuíam mais de um engenho assinavam a quantidade de vezes de acordo com o número de moendas que possuíam46. Não se sabe especificamente a quem pertenciam às terras onde fora erguida a capela que futuramente seria transformada em igreja matriz. Esta dúvida foi registrada

46 ABREU, Mauricio de. Geografia Histórica do Rio de Janeiro (1502-1700), p. 352.

37 por Monsenhor Pizarro, eclesiástico que tinha entre algumas de suas funções, visitar as paróquias existentes nas capitanias e verificar as condições em que se encontravam as igrejas, capelas e oratórios das freguesias e averiguar se cada uma delas estava seguindo as regras estabelecidas pelas Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia47. Assim, Pizarro percorreu as freguesias existentes no Recôncavo da Guanabara, entre 1794 e 1795, por ordem das autoridades eclesiásticas. Ao visitar a igreja matriz de Irajá, constatou que a construção da capela teve como responsável o padre Gaspar da Costa, que acabaria sendo seu primeiro pároco, por provisão do alvará no qual a Coroa Portuguesa mandava que os moradores da freguesia o obedecessem.

E ao vigário nomeado nela por seu pároco ao qual obedeçam e aos mais que por seu falecimento nela se nomear [...] e da maneira que os mais fregueses reconheçam a seus párocos de sua Igreja por assim convir aos serviços de Deus meu e bem das Almas dos moradores.48

A partir deste momento, Nossa Senhora da Apresentação de Irajá se tornaria uma das mais antigas freguesias do Recôncavo da Guanabara. A elevação à categoria de freguesia significava que a Coroa portuguesa reconhecia a importância que a região tinha para a economia local, que passaria assim a ser mantida em caráter vitalício pela Coroa Portuguesa e consequentemente receberia os dízimos dos fregueses devido ao direito dado pelo “padroado régio”. A elevação a condição de paróquia colada também garantiria aos párocos e fregueses o direito à administração dos sacramentos e à produção dos registros paroquiais de matrimônio, batismo e óbitos na própria igreja, que era a forma de oficializar na própria localidade o nascimento, o casamento e a morte das pessoas que ali habitavam, já que não existia ainda o registro civil. De acordo Pizarro, a igreja de Nossa Senhora da Apresentação de Irajá foi construída pela própria população e sua localização estava de acordo com as regras estabelecidas pelas Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia e estava localizado na chapada de um morrete de pequena elevação49. As Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia fazem uma descrição de como deveria ser o tipo ideal de local onde se poderia construir uma igreja.

47 As Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia era um conjunto de legislações eclesiásticas católica na América Portuguesa, sendo escrita em 1707, mas sendo somente adotada em 1720. 48 ARQUIVO NACIONAL. Provisão do Alvará de Sua Majestade que manda aos moradores de Irajá ajudem a vigaria de N. Sra. da Apresentação. Códice 60, volume 2, p. 58. 49 PIZARRO E ARAÚJO, José de Souza. O Rio de Janeiro nas visitas pastorais, p. 59.

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as igrejas se devem fundar e edificar em lugares decentes e acomodados, pelo que mandamos que, havendo-se de edificar de novo alguma igreja paroquial em nosso arcebispado, se edifique em sítio alto, livre da umidade e desviado, quando for possível, de lugares imundos e sórdidos, e de casas particulares e de outras paredes, em distância que possam andar as procissões ao redor delas, e que se faça em tal proporção que não somente seja capaz dos fregueses todos, mas ainda de mais gente de fora, quando concorrer às festas, e se edifique em lugar povoado onde estiver o maior número de fregueses.50

O que podemos perceber é que a matriz de Irajá estava localizada em um espaço que seguia as instruções das Constituições Primeiras, pois Pizarro diz em seu relatório que o lugar não deixava de ser aprazível pela sua situação51. Esta observação do visitador pode ter sido por causa de a igreja não estar localizada em um lugar realmente alto ou devido até mesmo pelo tipo de solo da região, pois segundo Keith Barbosa, Irajá estava localizada em uma região pantanosa e cheia de áreas alagadiças52. Entretanto, o que devemos entender é que ela realmente estava de acordo com os requisitos instituídos nas Constituições, pois teve consentimento das autoridades ordinárias para sua construção e permanência.

50 VIDE, Sebastião Monteiro da. Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia: estudos introdutórios e edição. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2010. TITULO XVII nº 687. 51 PIZARRO E ARAÚJO, José de Souza. O Rio de Janeiro nas visitas pastorais, p. 59. 52 BARBOSA, Keith Valéria de Oliveira. Doenças e cativeiro: um estudo sobre mortalidade e sociabilidade escravas no Rio de Janeiro, 1809 a 1831. (Dissertação de Mestrado pelo curso de pós- graduação da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro – UFRRJ), 2010, p 54.

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IMAGEM 1. Igreja matriz de Nossa Senhora da Apresentação de Irajá

FONTE: ARAÚJO, José de Souza Azevedo Pizarro e. O Rio de Janeiro nas visitas pastorais de Monsenhor Pizarro: inventário da arte sacra fluminense. Rio de Janeiro: INEPAC (volume 1), 2008, p. 59

No ano da visita feita por Monsenhor Pizarro à região, em 1794, o religioso registrou em que condições a igreja se encontrava. Ele apontou que a mesma teria passado por uma reforma custeada pelos próprios fregueses, entre eles estava o capitão João Pereira de Lemos, o capitão Bento Luiz de Oliveira Braga, o capitão Francisco Soares de Melo, o então falecido Eugenio de Paiva Ferreira e de seus lavradores, contribuíram com suas esmolas avultadas para a renovação do templo53.

Foi esta Igreja renovada em todo o seo material, principalmente no seu madeiramento para todo o Corpo, e Capela Mór, fazendo-se-lhe também boa Sacristia, consistório, e Tribunas, que não tinham antes(...) ainda se conservam sem reboques as mesmas paredes no seu exterior de todo o corpo da Igreja. O comprimento dela desde a porta principal até o Arco hé de 105 palmos, e a largura de 40 ditos do Arco te Capela Mór tem 63 palmos de comprimento, e 27 ditos de largura54.

No seu interior encontrava-se a pia batismal em pedra mármore cercada por grades e um altar com sete andares, no maior está o sacrário e a imagem da padroeira. No primeiro andar dos altares estava a imagem de São Miguel, no segundo a de São Jerônimo e também de Nossa Senhora das Dores, no terceiro estava a imagem de Nossa Senhora da Lapa e de Santa Ana55. Na epístola, estava no primeiro altar a imagem de Nossa Senhora do Rosário, no segundo a de São Miguel da Lapa e no terceiro os de

53 PIZARRO E ARAÚJO, José de Souza. O Rio de Janeiro nas visitas pastorais, p. 60. 54 PIZARRO E ARAÚJO, José de Souza. O Rio de Janeiro nas visitas pastorais, p. 60. 55 PIZARRO E ARAÚJO, José de Souza. O Rio de Janeiro nas visitas pastorais, p. 60

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Santa Escolástica56 e Nossa Senhora da Lapa57. Segundo o visitador, estavam todos ornados, mas havia a necessidade de reformas.

IMAGEM 2. São Miguel Arcanjo (Matriz de Nossa Senhora da Apresentação de Irajá)

FONTE: ARAÚJO, José de Souza Azevedo Pizarro e. O Rio de Janeiro nas visitas pastorais de Monsenhor Pizarro: inventário da arte sacra fluminense. Rio de Janeiro: INEPAC (volume 1), 2008, p. 62

Na paróquia estavam estabelecidas sete irmandades. 1) A primeira delas era a do Santíssimo Sacramento que, segundo o Pizarro, estava totalmente esquecida de suas obrigações, cumprindo somente as atividades relacionadas à Semana Santa; 2) a Nossa Senhora da Apresentação que, de acordo com eclesiástico, estava amortecida, mas por intervenção do mesmo, alguns irmãos tentavam revive-la; 3) a de São Miguel estava quase extinta; 4) a de Nossa Senhora do Rosário, cuja situação deixou Pizarro em dúvida, não se sabia se estava quase extinta, como a de São Miguel ou somente

56 A imagem de Santa Escolástica foi colocada no altar da matriz de Irajá por disposição testamentária de dona Prudencia de Castilho. A mesma pedia que a imagem fosse colocada ao lado da de S. Jeronimo e que em todos os meses do ano fosse realizada in perpetuum uma missa em honra da dita santa e pela alma da própria Prudência de Castilho, e para isso deixou duzentos mil reis. PIZARRO E ARAÚJO, José de Souza. Memórias históricas do Rio de Janeiro e das províncias anexas do reino do Estado do Brasil – TOMO III, Imprensa Régia, 1820, p. 08 – Disponível no site: www2.senado.leg.br 57 PIZARRO E ARAÚJO, José de Souza. O Rio de Janeiro nas visitas pastorais, p. 60

41 esquecida de seus afazeres; 5) a de São Benedito que estava anexa a do Rosário; 6) a de Nossa Senhora da Lapa, totalmente decadente e também anexa a do Rosário; 7) por último a de Nossa Senhora do Amparo que, segundo Pizarro, estava completamente morta58. Voltadas para devoção aos santos, as irmandades tinham a função de oferecer aos seus membros socorro nos momentos de doença, invalidez e morte59. Este papel de auxiliadora nas dificuldades era uma das normas estabelecidas no estatuto da própria irmandade, que era seu regimento e onde estavam contidas as regras de funcionamento da associação. Além disso, tinham como dever participar das festividades de comemoração ao dia do santo e realização dos sepultamentos60. Para os membros, a obrigação era apresentar bom comportamento, devoção católica, participação das cerimônias civis e religiosas da irmandade e pagamento anual da tacha de associação que garantia a participação na confraria e a manutenção da própria irmandade61. Averiguando a situação das irmandades de Irajá, Pizarro afirmou que essas associações estavam em decadência e que este problema estava ligado ao descaso dos responsáveis pela paróquia. Em seu relatório apontou que isso ocorreu principalmente depois que o Juiz de Fora Baltazar da Silva Lisboa passou a tomar-lhes conta62. O visitador aponta que essas irmandades já seriam regidas “por pessoas de muita pouca ou nenhuma consciência”; o que causaria, por isso, “alguns estragos”, e que essas mesmas pessoas ainda teriam desviado os seus reditos. Esta observação não foi só feita por Pizarro, mas também por visitadores anteriores, que estiveram presentes na freguesia de Irajá antes do próprio Pizarro63. Todavia, mesmo assim, segundo Pizarro, elas teriam procurado subsistir e satisfazer da melhor forma possível os seus deveres; mas quando se viram obrigadas a prestar contas ao Juízo Secular. Não se vendo em condições de pagarem por exorbitantes e excessivas despesas, teriam decaído. Por isso, segundo ele, não se preocupariam mais em cuidar de procurar seus livros que deixaram ficar nas

58 PIZARRO E ARAÚJO, José de Souza. O Rio de Janeiro nas visitas pastorais, p. 60. 59 BORGES, Célia Maia. Escravos nas Irmandades do Rosário: devoção e solidariedade em Minas Gerais: séculos XVIII e XIX. Juiz de Fora: Editora da UFJF, 2005, p.53. 60 Reis, João José. A morte é uma festa: ritos fúnebres e revolta popular no Brasil do século XIX. São Paulo: Companhia da Letras. 1991, p. 50. 61 Reis, João José. A morte é uma festa: ritos fúnebres e revolta popular no Brasil do século XIX. São Paulo: Companhia da Letras. 1991, p. 50. 62 PIZARRO E ARAÚJO, José de Souza. O Rio de Janeiro nas visitas pastorais, p. 61 63 PIZARRO E ARAÚJO, José de Souza. O Rio de Janeiro nas visitas pastorais, p. 61

42 mãos do ministro e também não puderam mais fazer cobrança dos anuais64. A decadência apontada por Pizarro para as irmandades de Irajá também foi identificada por ele em outras freguesias localizadas no Recôncavo da Guanabara. Segundo o visitador, elas entraram em declínio quando o clero secular passou a administrar as associações religiosas, quando o Estado, junto à Mesa de Consciência e Ordens, passou a ser administrador da vida religiosa dentro dos domínios portugueses65. Esse processo se relacionou ao período pombalino, quando a Mesa de Consciência e Ordens passou por reformulações que afetaram a administração das irmandades. Dentre essas reformulações, estava a obrigatoriedade de confirmação dos compromissos por aquele tribunal e, portanto, a autorização dos compromissos se daria somente através de licença régia66. Para elaboração desta pesquisa, foram utilizados os compromissos das Irmandades de Nossa Senhora do Amparo e de São Miguel e Almas da freguesia de Irajá. Neles, é possível verificar a influência do Estado sobre a confirmação dos compromissos:

Senhor dizem o juiz e mais irmãos da irmandade de São Miguel e Almas da freguesia de N. Sra. da Apresentação de Irajá do Bispado do Rio de Janeiro que a mesma irmandade foi erigida com licença do [ordinário] e pelo mesmo confirmado o seu compromisso por ignorância dos irmãos que então deviam e deviam recorrer a Sua Majestade implorando aos ditos graças por ser a dita igreja plena jure da ordem do quanto cuja jurisdição reconhecendo agora os suplicantes e [anulidades] das ditas licenças que se obtiveram oferecem na real presença de Sua Majestade o mesmo compromisso e [...] Majestade seja servido confirmar lhe o mesmo compromisso e revalidar a licença que incompetentes obtiveram para a ereção da dita irmandade e receberam. Despacho do Tribunal da Mesa de Consciência e Ordem. Passe [provisões] na forma do [instrumento][mesa] dezenove de setembro de 1766. Com única rubrica dos ministros do dito tribunal67.

64 PIZARRO E ARAÚJO, José de Souza. O Rio de Janeiro nas visitas pastorais, 65 PIZARRO E ARAÚJO, José de Souza. O Rio de Janeiro nas visitas pastorais Apud BRAGA, Vitor Cabral. Lugares para “bem morrer” no Recôncavo da Guanabara/RJ: Irmandades, ritos e tensões na geografia da morte (1720-1800). Dissertação de Mestrado – Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro – UNIRIO, 2015, p 181. 66 OLIVEIRA, Anderson José Machado de. As irmandades religiosas na Época Pombalina: algumas considerações. In: FALCON, Francisco; RODRIGUES, Claudia. (Org.). A "Época Pombalina" no Mundo Luso-Brasileiro. 1ed. Rio de Janeiro: FGV, 2015, p. 351 67 ARQUIVO NACIONAL DA TORRE DO TOMBO (Doravante ANTT). Compromisso da Irmandade de São Miguel e Almas da Freguesia de Nossa Senhora da Apresentação de Irajá. (Cópia cedida gentilmente pela professora Claudia Rodrigues).

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Podemos perceber através da provisão acima a postura do Estado em submeter as irmandades ao poder régio. Segundo Anderson de Oliveira, um dos problemas das irmandades era sua excessiva independência, eram capazes de gerir seus próprios bens e formar relações no interior do grupo e deste com os demais e assim formando um protótipo de uma família espiritual68. No entanto, a atitude intervencionista não era para menos, essas associações eram responsáveis por receber parte das heranças de muito de seus associados. O que levou ao Estado intervir nas atividades econômicas das mesmas alegando que a intenção na verdade era de fazer com que as mesmas apresentassem alguma utilidade pública69. Essas intervenções acabaram por causar vários conflitos entre visitadores, Estado e irmandades70. Ao analisar esses conflitos nas freguesias iguaçuanas, Vitor Cabral Braga apontou um fato ocorrido na paróquia de Nossa Senhora da Piedade, no ano de 1787, quando o provedor das capelas, o Doutor Baltazar da Silva Lisboa (o mesmo que Pizarro acusou de ser o causador da decadência das irmandades de Irajá), esteve com representantes das irmandades do Santíssimo Sacramento, São Miguel e Almas e Rosário e encontrou situações que o desagradaram. Alguns visitadores eclesiásticos fiscalizaram os livros de receitas e despesas dessas irmandades, coletando informações sobre gastos com festas e sepultamentos e cobraram emolumentos na ordem de 1$280 réis das confrarias do Rosário e São Miguel e Almas. Segundo o Doutor Silva Lisboa, essa situação ofendia as jurisdições estabelecidas pelo próprio rei, uma vez que a função de fiscalizar os livros das confrarias seria dos provedores das capelas e não dos visitadores eclesiásticos. Desta forma, para resolver a situação determinou que o visitador devolvesse a quantia para irmandade, além de proibir a irmandade do Rosário de apresentar seus livros a visitadores eclesiásticos71.Talvez esse também tenha sido o motivo de Pizarro não ter conseguido ter acesso aos livros das confrarias de Irajá, seus representantes podem ter usado o argumento de não estarem mais em poder de seus livros para se livrarem de um problema maior. Braga apontou que, ao visitar as três freguesias iguaçuanas, Pizarro destacou de forma enfática a decadência das irmandades encontradas lá devido a intervenção do clero secular. No entanto, ao analisar os registros de óbitos da população livre e escravas das três paróquias o pesquisador constatou que 21% dos 27,7% dos

68 OLIVEIRA, Anderson José Machado de. As irmandades religiosas na Época Pombalina, p. 357-365. 69 OLIVEIRA, Anderson José Machado de. As irmandades religiosas na Época Pombalina, p. 356 70 BRAGA, Vitor Cabral. Lugares para “bem morrer” no Recôncavo da Guanabara/RJ, p. 182. 71 BRAGA, Vitor Cabral. Lugares para “bem morrer” no Recôncavo da Guanabara/RJ, p. 250-251.

44 sepultamentos ocorridos na freguesia de Jacutinga foram feitos pelas irmandades ou promovidos por elas72. Esses dados, segundo Braga, entram em conflito com as informações apresentados por Pizarro, demonstrando que, embora o visitador considerasse as associações religiosas encontradas em Jacutinga em declínio, elas, no entanto, cumpriam com sua função principal que era participar do agenciamento do sepultamento de seus membros73. Com relação a Irajá, é curiosa a situação apontada por Pizarro, pois ele diz que a causa da decadência foi a intervenção do poder secular na administração das irmandades, mas diz que os administradores anteriores já causavam prejuízos às mesmas. Outra questão estranha apontada por Pizarro é com relação às autoridades que erigiram tais associações, já que, segundo ele, devido a situação decadente das mesmas preferiu ignorar. Mas é possível responder a essa indagação para alguns casos, como o da irmandade do Santíssimo Sacramento que, segundo consta na provisão de 21 de junho de 1647, foi ereta pelo Reverendo Vigário Gaspar da Costa, autorizada pelo prelado administrador Antonio de Mariz Loureiro74. Pizarro nos conta que a matriz de Irajá não possuía bens patrimoniais nem recebia nenhum tipo de contribuição por parte da Coroa Portuguesa, além daquilo que lhe era devido e pago pela Real Fazenda. Para o pároco: 200$ reis, ao coadjutor: 25$ reis e 23$920 reis para guisamento75. A paróquia também era responsável pela realização de 12 missas perpétuas, ditas no altar de Santa Escolástica por obrigação de um legado estabelecido por Prudência de Castilho, no valor de 200$ reis. Este dinheiro, segundo Pizarro, foi recolhido aos cofres eclesiásticos quando o vigário João Barcelos Machado registrou a obrigação do cumprimento desse legado, antes da própria morte, em escritura pública. Com esse dinheiro, seriam construídas casas para moradia dos futuros sacerdotes que fossem destinados a trabalhar na paróquia de Irajá. Pizarro

72 BRAGA, Vitor Cabral. Lugares para “bem morrer” no Recôncavo da Guanabara/RJ, p. 200 73 BRAGA, Vitor Cabral. Lugares para “bem morrer” no Recôncavo da Guanabara/RJ, p. 200 e 230. 74 PIZARRO E ARAÚJO, José de Souza Azevedo. O Rio de Janeiro nas visitas pastorais de Monsenhor Pizarro: inventário da arte sacra fluminense. Rio de Janeiro: INEPAC, 2008, p.67. 75 PIZARRO E ARAÚJO, José de Souza Azevedo. O Rio de Janeiro nas visitas pastorais de Monsenhor Pizarro: inventário da arte sacra fluminense. Rio de Janeiro: INEPAC, 2008, p.61. GUISAMENTO: ou ordinária, pequena contribuição destinada à sustentação das atividades do templo. Apud. RODRIGUES, Claudia e FRANCO, Maria da Conceição Vilela. Notas sobre a presença e atuação da Igreja Católica na antiga Macaé – In,: AMANTINO, M.; ENGEMANN, C.; FREIRE, J. E RODRIGUES, C. Povoamento, catolicismo e escravidão na antiga Macaé (séculos XVII ao XIX). Rio de Janeiro: APICURI, 2011, p. 68

45 comenta que os religiosos desta freguesia eram privilegiados, pois em outras regiões do Recôncavo sofreriam pela falta de moradia76. Ao apresentar a série de párocos que serviram na paróquia de Irajá, Pizarro destaca que o 10º da lista, o reverendo Manuel da Costa Mata, então vigário na época da visita, fora apontado pelos fregueses como responsável por muitos danos pelos quais a igreja estaria passando. Pizarro foi informado de que muitos cadáveres foram enterrados sem primeiro serem encomendados por negligência do próprio pároco77. Esse descuido apontado pelos paroquianos pode ser confirmado nos registros de óbitos dos escravos e livres de Irajá. Alguns assentos apresentam trocas de nome, de datação e até frases repetidas, demonstrando certo descuido na hora de redigir os documentos. Não por acaso, foi justamente depois de 1794 que os registros de óbitos passaram a apresentar mais informações sobre os mortos, tanto entre escravos quanto entre os livres, e os erros de redação desaparecem. Isso pode ter sido um reflexo da própria visita de Pizarro que o recomendou toda prudência necessária, pois além do problema com as encomendações dos defuntos ainda, segundo os fregueses, o mesmo vigário estava facilitando em extremo as licenças para se fazerem as desobrigas fora da matriz, com a intenção de se livrar de um maior trabalho no tempo da Quaresma.

1.3. Uma matriz cercada por oratórios e capelas particulares

A visita de Pizarro também nos oferece informações sobre a distribuição de oratórios e capelas nas propriedades da elite local, demonstrando como se dava a relação entre a manifestação da religiosidade e a busca por demonstração do status social em uma freguesia rural, como veremos mais adiante. Tradicional expressão da devoção do povo católico78, os oratórios eram espaços de oração particular, que deveriam permitir a comunicação direta com Deus e os santos79 dando aos seus donos a liberdade de fazerem suas orações no tempo e na hora que quisessem. Esses altares particulares seriam confinados no interior da casa nas habitações urbanas e alojados

76 PIZARRO E ARAÚJO, José de Souza. O Rio de Janeiro nas visitas pastorais, p. 61-62. 77 PIZARRO E ARAÚJO, José de Souza. O Rio de Janeiro nas visitas pastorais, p. 65. 78 CHAHON, Sergio. Os convidados para a ceia do Senhor, p. 41 79 BRAGA, Vitor Cabral. Lugares para “bem morrer” no Recôncavo da Guanabara/RJ: Irmandades, ritos e tensões na geografia da morte (1720-1800). Dissertação de Mestrado – Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro – UNIRIO, 2015, p. 71

46 junto às varandas das casas-grandes de fazendas e engenhos80. Paramentados com todos os objetos litúrgicos obrigatórios e necessários para realização das orações e possíveis missas, estes espaços deveriam estar localizados em um cômodo separado da casa, longe das áreas de tarefas profanas correspondentes ao restante da residência81. Como muitos serviam de locais de celebração de missas, a presença de um sacerdote não seria dispensável, segundo Sergio Chahon, pois muitos serviam de locais de celebração de missas. Mas isso se tivesse uma autorização especial para tal. No entanto, o objetivo de ter um altar doméstico não era somente o direito de ter privacidade para realização das orações, sendo também uma forma de demonstração de status social. Por isso, o proprietário deveria possuir recursos suficientes para investir na instalação e manutenção do oratório, sendo a posse de um altar doméstico privilégio para poucos.82 Para se ter um oratório na residência era necessária autorização especial. As provisões episcopais seria um dos documentos que davam licença para ereção de altar particular. Liberado pelo bispo, este documento oferecia ao solicitante do altar uma licença com duração de no mínimo três meses e no máximo três anos. Passado este período, o proprietário deveria recorrer a uma nova provisão83. Os Breves apostólicos seria uma outra forma de obter a autorização para a fundação de um altar doméstico. Segundo Live França, eram documentos emitidos pela Cúria Romana ou elaborados por meio de um núncio apostólico. Para Chahon, seriam um instrumento vantajoso e principalmente o mais desejável pelos requerentes de oratórios, pois além de darem tempo de licença para uso (com duração que poderia ser de uma década ou até mais), eles também eram documentos especialmente raros; o que os tornava privilégio para poucos84. Em 1687, um visitador – cujo nome não identificamos –, fez um relatório85 dos oratórios e capelas existentes no Recôncavo. Por meio dele, podemos identificar os oratórios e respectivos padroeiros que os criaram em Irajá no ano de 1687:

80 CHAHON, Sergio. Op. Cit., p. 41 81 CHAHON, Sergio. Op. Cit., p 69 82 CHAHON, Sergio. Op. Cit., p 43 83 CHAHON, Sergio. Op. Cit., p. 47-50 84 CHAHON, Sergio. Op. Cit., p. 56 85 Arquivo da Cúria Metropolitana do Rio de Janeiro. Notícias do Bispado do Rio de Janeiro, série de Visitas Pastorais, VP38, 1687.

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QUADRO 2. Oratórios existentes em Irajá em 1687

SANTO DE INVOCAÇÃO PADROEIRO

1 Nossa Senhora do Amparo Francisco Vaz Garcêz 2 Nossa Senhora da Conceição, Capitão Francisco de Sampaio 3 Nossa Senhora do Manoel Barboza Lima 4 Nossa Senhora do Rosário e São Capitão Tomé de Souza Antunes Tomé 5 Nossa Senhora de Nazaré Diogo de Montarryo por ausência de João de Andrade Rego

FONTE: Arquivo da Cúria Metropolitana do Rio de Janeiro. Notícias do Bispado do Rio de Janeiro, série de Visitas Pastorais, VP38, 1687

Através desta lista de oratórios da visita pastoral de 1687, é possível perceber que alguns dos senhores padroeiros eram de honrosa posição social, considerando que seus nomes constavam também no já mencionado alvará de confirmação da elevação de Irajá à freguesia colada e também de nomeação do vigário Gaspar da Costa. Além desta lista, pude identificar outra lista de oratórios concedidos para a região, em meados do século XVIII. Para realização desta pesquisa foram consultados cinco Breves Apostólicos, localizados no Arquivo da Cúria Metropolitana do Rio de Janeiro.86 Três eram de pedido de autorização para construção de oratório particular: 1) o de Joaquim de Almeida, senhor do Engenho do Campinho; 2) o do Reverendo Padre Antônio de Oliveira Maciel; e 3) o do Doutor Ignácio Fernandes Meirelles. O do Padre Manoel Marques Neves também era para se ter um altar particular; só que o local não era em sua própria casa, mas na de uma irmandade e, por último, o de Brás de Pina, cujo pedido era de um breve de indulgência da capela existente em sua residência. Situação que se difere um pouco, pelo fato de que uma capela era uma estrutura maior do que a de um oratório. O que condiz com a posição deste último como grande proprietário na região, como veremos mais adiante. Seguindo a ordem cronológica, o primeiro pedido é o de Joaquim de Almeida de 1731, dono do Engenho do Campinho, que afirmou ser “homem nobre” e que “sempre se tratou a lei da nobreza”. Considerado por suas testemunhas como pessoa honrada, filho legítimo de Manoel da Guarda e Maria Luís, o pai teria servido a cargos

86 Agradeço a Iury Matias Soares (UNIRIO) por ter me auxiliado com a identificação e transcrição destes documentos.

48 honrados da república. Pedia a licença para erguer um altar particular por ser seu engenho afastado demais da cidade. A autorização foi dada com duração de 12 anos.87 O segundo é o do Doutor Ignácio Fernandes Meirelles, de 1734, senhor do Engenho de Nazareth. De acordo com suas testemunhas, era pessoa nobre e também filho de pais nobres, doutor pela Faculdade de Coimbra. Em seu oratório estavam as imagens de São Vicente, do menino Jesus, de São Fernão, São Sebastião e N. Sra. da Conceição. Teve aprovação com duração de 10 anos88. O terceiro breve é o do Reverendo padre Manoel Marques Neves, de 1747, sacerdote do habito de São Pedro que pediu licença para implantar oratório na casa da irmandade de N. Sra. da Conceição. De acordo com a visita pastoral feita pelo Reverendo vigário Francisco de Araújo Macedo ao local onde estava edificado o oratório, o visitador observou que o mesmo possuía somente uma tribuna, impedindo as pessoas de assistir as missas por não ter espaço suficiente89. Baseado nas Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia, Sergio Chahon afirmou que os fiéis deveriam se acomodar e ficar todos com os rostos voltados para o altar-mor, que era o principal do edifício90. A autorização foi dada por um período de 10 anos, mas com a obrigação de que fosse construída uma tribuna somente para as mulheres e enfermos.91 O quarto pedido é o do Reverendo padre Antônio de Oliveira Maciel, de 1750, que solicitava licença para a realização de missas, pois já as fazia sem autorização. Queria ser absolvido da pena de excomunhão e, para tal, pedia a licença para que pudesse realizar missas dentro da legalidade eclesiástica. Dos cinco breves analisados nesta pesquisa, este foi o único que continha a observação de que mesmo tendo missas diárias em seu oratório, seus familiares não estariam isentos de assistir missas na matriz92. É provável que a família do mesmo estivesse deixando de frequentar as missas na matriz por ter um oratório e um padre para celebrar suas próprias missas na própria residência. O quinto era o do senhor Brás de Pina, homem de negócio e senhor de engenho, que pediu um breve de indulgência para a capela de N. Sra. da Conceição, localizada na fazenda que tinha em Irajá. Um breve de indulgência era a concessão pela Santa Sé do perdão das penas temporais de todas as pessoas que fossem visitar uma

87 ACMRJ. Breve apostólico de solicitação de oratórios privados e altares privilegiados, 019, fl.1-8. 88 ACMRJ. Breve apostólico de solicitação de oratórios privados e altares privilegiados, 033, fl. 1-8. 89 ACMRJ. Breve apostólico de solicitação de oratórios privados e altares privilegiados, 096, fl.1-10. 90 CHAHON, Sergio. Op. Cit., p. 30. 91 ACMRJ. Breve apostólico de solicitação de oratórios privados e altares privilegiados, 096, fl.1-10. 92 ACMRJ. Breve apostólico de solicitação de oratórios privados e altares privilegiados, BA109. Fl. 1-10

49 capela que tivesse indulgência plenária ou que participassem das festas litúrgicas associadas à capela que contasse com este tipo de indulgência. O benefício seria alcançar a graça de ter seus pecados perdoados; isto é, remissão total das penas temporais a todos os fiéis que alí rogassem a Deus pela paz e concórdia entre os principais cristãos, extirpação das heresias e exaltação da Santa Madre Igreja93. Mas para o recebimento de tal graça, os visitantes também deveriam se confessar e comungar na mesma igreja que deveria disponibilizar um sacerdote habilitado para tal obrigação94. As missas pelos mortos que fossem rezadas nessas capelas dariam aos defuntos o privilégio de ter seus pecados redimidos95. De acordo com Anne Elise Reis da Paixão, os sufrágios seriam a única forma de os mortos receberem indulgência plenária. Segundo ela, os sufrágios com essa intenção dariam à alma salvação instantânea96. No documento aqui analisado, foi concedida a indulgência plenária e remissão de todos os pecados dos fiéis de ambos os sexos que fossem realmente confessados, comungados e que visitassem a capela de N. Sra. da Conceição. Assim como a indulgência a todos aqueles que visitassem anualmente a capela ou altar da Imaculada Conceição nos dias de sua festa. A capela, segundo o breve, não seria sujeita aos sacerdotes regulares, mas 97 ao próprio Bispado do Rio de Janeiro . Analisando as observações feitas nos Breves apostólicos dos senhores de Irajá vemos que haviam certas justificativas e explicações que, segundo Sergio Chahon, eram necessárias e deveriam ser seguidas. A exigência de três testemunhas para confirmar que tipo de pessoa seria o requerente e a visita de um eclesiástico no local do oratório para saber em que condições estaria o altar. Estes eram alguns dos procedimentos que envolvia o processo de solicitação de um altar doméstico. Por isso que a posse de certo cabedal seria indispensável, mas não era o suficiente para concessão de tal graça98, havia outras prerrogativas que possuíam um peso tão importante quanto as condições financeiras. Nos cinco breves usados nesta pesquisa, encontrei alegações do tipo: ser homem nobre ou viver a lei ou na forma da nobreza, que foram bastante enfatizadas tanto pelos requerentes quanto pelas testemunhas.

93 ACMRJ. Breve apostólico de solicitação de oratórios privados e altares privilegiados, 097, fl.1-8. 94 CHAHON, Sergio. Op. Cit., p. 254-255 95 PAIXÃO, Anne Elise Reis. A crença no Purgatório e as indulgências no Rio de Janeiro setecentista. Revista de História Temporalidades. Edição 22, V. 8, N. 3, (set./dez. 2016), p. 50. 96 PAIXÃO, Anne Eilise Reis, op. Cit. p. 50 97 ACMRJ. Breve apostólico de solicitação de oratórios privados e altares privilegiados, 097, fl.1-8. 98 CHAHON, Sergio. Op. Cit., p. 61

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De acordo com Stuart Schwartz, ser nobre seria não estar vinculado a nenhuma heterodoxia religiosa (isto é, a nenhuma religião que não fosse a católica) e nem ser descendente de “raças infectadas” ou ter ascendência a qualquer uma delas (o que significava ser ou ter alguma ligação consanguínea com judeus, mouros ou mulatos)99. Ser nobre também significava não praticar nenhuma atividade mecânica, isto é, não executar nenhuma forma de serviço braçal, não possuir lojas, ser artesão ou trabalhar em qualquer tipo de trabalho mecânico. Os nobres deveriam viver de aluguéis, de cargos públicos, se dedicarem as armas e a política. Deveriam procurar manter o padrão de vida da aristocracia, o que significava abrigar um grande número de agregados, parentes e criados, e ter domínio, poder e autoridade sobre os mesmos100. Outra explicação bastante esclarecedora sobre o que seria ser nobre ou viver na lei da nobreza é a de Nuno Gonçalves Monteiro. De acordo com ele, durante o século XVII, diante de um alargamento dos estratos terciários urbanos, a categoria de nobre sofreu uma ampliação que acabou fazendo incluir neste grupo uma multiplicidade de ofícios e funções, diversas das tradicionais. Nesse sentido, para atribuir um estatuto diferenciado aos titulares destas novas funções sociais, a doutrina jurídica criou, ao lado dos estados tradicionais, um estado intermediário ou “estado privilegiado” equidistante entre antiga nobreza e o povo mecânico abarcando assim, aqueles que embora de nascimento humilde, conquistaram um grau de enobrecimento devido a ações valorosas que obraram ou a cargos honrados que ocuparam101. Desta forma, pessoas com cargos ligados a governança, ocupações em cargos camarários, postos de oficialidade das ordenanças seriam considerados nobres. Este é o caso dos pais de Joaquim de Almeida, senhor do engenho do Campinho, em cujo Breve se dizia que seus pais seriam pessoas limpas, e que o pai, Manoel da Guarda, teria exercido cargos honrados da República. Fica claro que o casal não seria nobre, mas pelo fato de Joaquim de Almeida ser proprietário de um engenho e se tratar na lei da nobreza, isto é, não ser pessoa mecânica e viver assim há mais de trinta anos, lhe foi concedida a graça de um oratório particular102

99 SCHWARTZ, Stuart B. Segredos internos: engenhos e escravos na sociedade colonial, 1550-1835. São Paulo: Companhia das Letras, 1988, p. 231 100 SCHWARTZ, Stuart B. Segredos internos: engenhos e escravos na sociedade colonial, 1550-1835. São Paulo: Companhia das Letras, 1988, p. 212 101 MONTEIRO, Nuno Gonçalo. Elites locais e mobilidade social em Portugal nos finais do Antigo Regime. Revista Análise Social. Vol. XXXII (141), 1997 (2*), p. 342 102 ACMRJ. Breve apostólico de solicitação de oratórios privados e altares privilegiados, BA019 fl.1-8.

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Outro elemento de constante observação por parte da Igreja e tratado de forma bastante enfática nos cinco breves analisados é a ornamentação dos oratórios, este era um dos requisitos que ficavam de responsabilidade do requerente. Seria o próprio interessado, quem arcaria com todas as despesas referentes ao preparo, instalação e manutenção do acervo litúrgico do oratório, acervo este extremamente importante para celebrações de missas. Peças sagradas como a pedra D’Ara, o crucifixo, as imagens de Cristo, de Nossa Senhora e outros santos eram elementos necessários e faziam parte dos objetos citados pelas Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia103. Segundo Live França, havia uma preocupação com o estado desses oratórios, pois deveriam ser bem ornados, de forma que honrassem a imagem de Cristo e da Virgem Maria. Nos cinco breves analisados nesta pesquisa todos estavam de acordo com que as Constituições Primeiras estabeleciam: estavam limpos e em bom estado de conservação. Isso reforça que esses oratórios pertenciam a pessoas que tinham posição social significativa dentro da sociedade local, já que era preciso ter condições de manter os objetos e alfaias dos oratórios e capelas. Avançando para outro conjunto documental, relativo às visitações ou relatos eclesiásticos sobre Irajá, temos as informações prestadas por Monsenhor Pizarro e Araújo, em 1794, quando percorreu o Recôncavo da Guanabara para averiguação da situação das matrizes, capelas e oratórios localizados nas freguesias do interior do Rio de Janeiro. Esta documentação nos mostra que, dos oratórios citados, nos breves apostólicos trabalhados antes, pelo menos dois ainda se encontravam conservados em 1794: o do Engenho de Nazareth, do Doutor Ignácio Fernandes Meireilles, e do engenho do Campinho, do senhor Joaquim de Almeida. Os demais não foram possíveis de identificar por não citarem o nome da propriedade. Assim, ao averiguar as condições dos oratórios existentes em Irajá, Pizarro identificou na época de sua visita, 14 altares domésticos:

103 Para os altares e celebração do santo sacrifício da missa: cruzes, frontais, toalhas, cortinas, pedra de ara, sacras, panos para as mãos, estantes ou almofadas, cálices, alvas, amictos, cordões, manipulos, estolas, planetas, corporais com guardas e bolsas, patenas, palas, sanguinhos, panos ou véus dos mesmos cálices, missais, galhetas, caixas de hóstias e campainhas. VIDE, Sebastião Monteiro da. Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia (1707). Feitas e ordenadas pelo ilustríssimo e reverendíssimo sr. D. Sebastião Monteiro da Vide. Coimbra, Real Colégio das Artes da Companhia de Jesus, 1720. TITULO IV art. 707

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QUADRO 3. Oratórios existentes em Irajá em 1794 PROPRIETÁRIO OBSERVAÇÃO 1 Inácio Correa (Reverendo) Obtido em 12/06/1778 para Dona Joana de Sá Rangel, sua mãe 2 Vicente da Roza de Oliveira (Reverendo) - 3 Francisco Pereira Xavier (Reverendo) - 4 Francisco Barnabé (Reverendo) - 5 D. Ana Maria de Jesus (Viúva de Antônio de Engenho do Portela Menezes) 6 João Ferreira Coito Fazenda Campinho 7 Antônio de Souza Engenho dos Macacos 8 Bento Luiz de Oliveira Braga (capitão) Engenho de Nazareth 9 Modesto Rangel da Silva (cirurgião e licenciado) - 10 Luiz Manoel de Oliveira Porto de Meriti 11 Herdeiros do Reverendo João de Araújo Macedo Porto de Irajá 12 Capitão José de Frias Engenho que foi de Antônio de Martins Brito 13 Bartolomeu Cordovil de Siqueira - 14 Inácia Maria Ilha de Saravatá vizinha ao porto velho

FONTE: PIZARRO E ARAÚJO, José de Souza. O Rio de Janeiro nas visitas pastorais de Monsenhor Pizarro: inventário da arte sacra fluminense. Rio de Janeiro: INEPAC, 2008, p. 63-6.

A lista com os nomes dos proprietários dos oratórios encontrados por Pizarro pode nos levar a um questionamento sobre a relação entre religião e status social na freguesia de Nossa Senhora da Apresentação de Irajá. O que se explica pela existência de um número significativo de religiosos responsáveis por oratórios na região, uma vez que cinco dos 14 indicados por Pizarro tinham como administradores sacerdotes. 1) do Reverendo Inácio Correa; 2) do Reverendo Vicente da Roza; 3) do Reverendo Francisco Pereira Xavier; 4) do Reverendo Francisco Barnabé e o 5) dos herdeiros do Reverendo João de Araújo Macedo. Comparada com as demais freguesias visitadas por Pizarro no Recôncavo da Guanabara, é possível perceber que não havia outras paróquias que tivessem a mesma quantidade ou quantidade superior ao número de religiosos responsáveis por oratórios do que em Irajá. Isso pode nos mostrar o status social de muitas das famílias que residiam na freguesia. De acordo com Anderson de Oliveira, no contexto de uma sociedade de Antigo Regime, a função paroquial seria dotada de prestígios104. Ter um

104 OLIVEIRA, Anderson José Machado. Trajetória de clérigos de cor na América Portuguesa: catolicismo, hierarquias e mobilidade social. Revista Andes. Salta, vol. 25 nº 1 – jun. 2014.

53 sacerdote na família, segundo Maria Elena Barral, era algo que possibilitava a abertura de portas, para negociações econômicas105. Por isso, muitas famílias procuravam preparar seus filhos para a carreira eclesiástica. Ao trabalhar com áreas rurais de Bueno Aires do período colonial, Barral aponta que a função paroquial era muito ambicionada por parentelas como desdobramentos de suas ambições de dominação territorial e política. Jean Baptiste Debret em suas viagens pelo Brasil apontou que a posse de um oratório regularmente servido por um capelão constituía então “um luxo muito honroso para um proprietário de chácara no Brasil”106. Por isso, penso que os religiosos donos de oratórios em Irajá, ao obterem licença para terem um altar particular em suas residências poderiam estar tendo a liberdade de promover sua carreira eclesiástica através da responsabilidade de estar à frente da celebração de missas diante desses oratórios. Consolação espiritual das almas e a distância também foram outras justificativas que encontrei nos breves apostólicos. Dois senhores mencionados no quadro acima usaram esses argumentos: o proprietário do engenho de Nazareth, pediu autorização para poder celebrar missas no altar de sua fazenda para seus familiares, escravos e hospedes. O do Campinho citou o problema da distância para pedir licença para implantação de um oratório. A distância foi um dos motivos que contribui para que muitas capelas localizadas no Recôncavo da Guanabara se tornassem freguesias para socorro dos paroquianos. Por essa mesma razão, o uso de oratórios privados como locais de práticas litúrgicas privadas se expandiram; isto é, deixaram de suprir as necessidades espirituais somente da família do proprietário e de seus agregados, passando acolher os vizinhos mais próximos. De acordo com Sergio Chahon, esses altares domésticos foram a alternativa mais viável que a Igreja encontrou no início da expansão territorial do Rio de Janeiro para conseguir trazer consolo espiritual para a população residente nas áreas mais distantes. Como vimos no quadro número 3, Irajá possuía na época da visita de Pizarro 14 oratórios separados da matriz por uma distância entre ¼ de léguas até duas léguas. No breve apostólico do senhor Joaquim de Almeida, dono do engenho do Campinho, a sentença final dizia que a propriedade estava a seis léguas de distância da cidade (área urbana do Rio de Janeiro) e que por isso autorizava o uso de um altar particular. Porém, a mesma propriedade se distanciava da matriz de Irajá em uma légua e meia.

105 BARRAL, Maria Elena. De sonatas por La pampa: religión y sociedad en El Bueno Aires rural tardo colonial. Prometeo Libros: Bueno Aires, 2007, p. 23 106 DEBRET, Jean Baptiste. Viagem pitoresca e histórica ao Brasil, 1940, vol. 3, p. 260.

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A diferença da distância da propriedade deste senhor até a cidade e até a matriz de Nossa Senhora da Apresentação me levaram a dois questionamentos: a) por que a Sé liberou licença para ereção de um altar naquela propriedade se a matriz paroquial estava próxima do engenho? b) quanto valeria uma légua? Convertendo para a forma atual de medição de distâncias, uma légua corresponderia atualmente a 4,8 quilômetros, que também corresponderia a 50 minutos de caminhada a pé. Sendo seis léguas, seria um trajeto de 29 quilômetros, com praticamente seis horas de viagem a pé107. Para alargar nossa compreensão sobre o problema da distância naquela época, século XVIII, temos que levar também em consideração as condições das estradas. Segundo o viajante alemão Freidrich Von Weech, que esteve no Brasil durante a primeira metade do século XIX com o intuito de tentar a sorte nas Américas, as condições das estradas públicas do Rio de Janeiro estariam em “estado deplorável”, o descuido seria tão grande que em períodos de chuva os pobres animais de carga eram vistos afundados em lama108. Levando-se em conta que as pessoas daquela época transitavam a pé, de mula ou de carroça, é possível dizer que tanto uma quanto seis léguas era realmente distante, considerando as condições das estradas, mas também não deixando de esquecer as condições climáticas (calor, chuva) e a própria geografia da região, pois segundo Keith Valéria Barboza, Irajá seria uma área pantanosa, portanto uma região bastante abafada e que em tempos de chuva ficava bastante alagada109. O breve apostólico de 1801, do capitão Bento Antonio Moreira, senhor de um engenho na freguesia do também ajudou a elucidar minhas dúvidas, pois segundo este documento, a sua propriedade ficava a uma légua de distância da cidade110. Portanto, essas explicações deixam claro que nem os moradores do engenho do Campinho e nem das propriedades que possuíam distancias iguais ou maiores do que as apresentadas nesta região teriam condições de estarem constantemente na matriz para assistir as missas e que, por esses motivos, buscaram o direito de solicitar um altar particular. Ao analisar essa mesma questão para as outras freguesias do Recôncavo da Guanabara pude constatar que essa situação não se restringia somente a Irajá, mas

107 Calculo realizado pelo site www.conversor-de-medidas.com, visitado no dia 28/05/2017 108 WEECH, J. Friedrich Von. A agricultura e o comércio no sistema colonial. São Paulo: Martins Fontes, 1992, p. 01e 50. 109 BARBOSA, Keith Valéria. Op. Cit., p. 54 110 ACMRJ - Breve Apostólico do capitão Bento Antonio Moreira, Rio de Janeiro,1801. Caixa nº1.2.

55 também às demais paróquias. São poucas aquelas em que a distância ultrapassava duas léguas, como as localizadas na área da serra, a exemplo da freguesia de Inhomirim, com distâncias entre 5 a 13 léguas. Para as demais freguesias, encontramos em algumas um ou dois oratórios com distancias de 3 ou 4 léguas da igreja matriz. Portanto, as dificuldades das estradas e os outros problemas citados anteriormente e que contribuíam para que as viagens se tornassem mais distantes e cansativas, podem ter pesado no julgamento para a liberação de oratório aos que faziam este tipo de solicitação em áreas rurais. Mas não podemos esquecer que por trás dessas justificativas também estaria a busca pelo status social. A maioria dos oratórios identificados por Pizarro em Irajá se encontrava em condições aceitáveis. Foram citados como estando muito bem cuidados, com exceção dos de Luiz Manoel de Oliveira e dos herdeiros do Reverendo João de Araújo Macedo, que necessitavam de reformas urgentes. Outra observação importante feita pelo visitador foi de que todos os oratórios tinham uso por faculdade do bispo do Rio de Janeiro, isto significa que sua autorização não veio pelo breve apostólico, mas por meio de provisão episcopal, que como já foi dito, tinha um tempo de validade bem curto. Contudo, a autorização para ereção do oratório do Reverendo Inácio Correia foi por Breve Apostólico do Excelentíssimo Núncio Bernardino Muti. O quer dizer que este altar poderia ter seu tempo de uso por quase uma década ou até ter licença permanente. Se compararmos as duas listagens, a da visita pastoral (não identificada) de 1687 e a de Pizarro, de 1794, é possível perceber o aumento do número de famílias abastadas na região. Em 1687, existiam cinco oratórios em Irajá, enquanto na primeira metade do século XVIII encontramos através dos breves apostólicos mais quatro e uma capela, sendo que, dos quatro referentes aos breves, somente dois estavam na lista do Pizarro, de1794. Isto pode ser considerado um reflexo da demanda da capitania em produzir mercadorias para abastecimento da cidade, resultando em lucro considerável para essas famílias. Segundo Manoela Pedroza, alguns recém-casados de famílias pertencentes à nobreza da terra, acabavam se instalando em Irajá por considerá-la uma freguesia mais nobre111. Se compararmos o número de oratórios existentes em Irajá (14) com o de outra

111 PEDROZA, Manoela da Silva. Capitães de bibocas: casamento e compadrios construindo redes sociais originais nos sertões cariocas (Capela de Sacopema, freguesia de Irajá, Rio de Janeiro, Brasil, século XVIII). Revista Topoi, v. 09, nº 17, jul-dez, p. 67-92. De acordo com Pedroza, eram nas freguesias de Irajá, Marapicu e Jacarepaguá estavam a verdadeira elite da região, por isso que essas três paróquias seriam consideradas pela historiadora como nobres.

56 freguesia também considerada muito importante do Recôncavo da Guanabara, com a de Jacarepaguá (que eram 5)112, é possível que a ideia lançada por Pedroza faça sentido. Pois como já foi dito, para se obter um oratório ou capela era necessário viver a moda de nobreza. Portanto, podemos considerar que em Irajá estavam estabelecidas pelo menos 22 famílias honradas. Além de apresentar os oratórios existentes em Irajá e também as condições em que se encontravam, Pizarro enumerou as capelas localizadas nos engenhos da freguesia. Fruto de iniciativa particular, as capelas eram igualmente construídas e conservadas à custa dos donos de engenhos e fazendas. Segundo Live de França, os donos dessas ermidas deveriam dispensar os mesmos cuidados como os que eram tidos com a igreja matriz113. Apesar de serem construídas e mantidas por seus proprietários, elas deveriam estar submetidas à legislação eclesiástica, tendo em vista que para se erigir uma capela era necessário a obtenção de uma provisão episcopal, assim como ocorria quando algum senhor queria implantar um oratório na própria residência. Ao conseguir a autorização, o proprietário não teria mais a necessidade de renovação periódica da mesma, bastava que fosse responsável por zelar pela “decência e ornato” do edifício religioso e do altar e seus pertences em especial114. Após a liberação para construção, a capela receberia a visita de um ordinário para verificação do estado em que se encontrava. Segundo as Constituições Primeiras, o edifício deveria ser construído da seguinte forma:

em lugares decentes em que comodamente se possa celebrar; como convém muito que se deifiquem com tal consideração que, erigindo-se para ser casas de oração e devoção, [...] ordenamos e mandamos que, querendo algumas pessoas em nosso arcebispado fundar capela de novo, nos deem primeiro conta por petição, e achando Nós, por vistoria e informação que mandaremos fazer, que o lugar é decente e que se obrigam a fazê-la de pedra cal e não somente de madeira ou de barro, assinando-lhe dote competente ao menos de seis mil reis cada ano para sua fábrica, reparação e ornamentos, lhe concederemos licença.115

112 PIZARRO E ARAÚJO, José de Souza. O Rio de Janeiro nas visitas pastorais, p. 247-248. 113 CARVALHO, Live França. Catolicismo no Recôncavo da Guanabara. Revista 7 mares, nº 2, Dossiê – abril de 2013, p. 34-51. 114 Idem, p. 92. 115 VIDE, Sebastião Monteiro da. Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia (1707). Feitas e ordenadas pelo ilustríssimo e reverendíssimo sr. D. Sebastião Monteiro da Vide. Coimbra, Real Colégio das Artes da Companhia de Jesus, 1720. LIVRO IV -TITULO XIX - art. 692.

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A visita de um sacerdote seria a forma de a igreja constatar as condições gerais do edifício e também de fazer o inventariado dos bens móveis, imagens e altar pertencentes à capela. Outras exigências que o requerente deveria cumprir era ser proprietário de um engenho ou fazenda116 e dispor de um dote ou patrimônio que seria disposto por meio de uma escritura de doação feita pelo próprio solicitante. Além disso, nesta doação também estava incluído a obrigação de reservar de uma porção de terras situadas ao redor ou nas vizinhanças da respectiva ermida117. Por último, havia uma doação anual feita pelo proprietário no valor de pelo menos seis mil reis, para a manutenção dos bens móveis. Ou seja, uma despesa bem maior do que para a manutenção de um oratório. No entanto, caso não houvesse o dote, entretanto, a capela ficaria reduzida a uso como oratório. Esse foi o caso da capela do Afonsos, visitada por Pizarro em Irajá, em 1794, que foi reduzida à oratório por não ter patrimônio118. Estes dados demonstram que não seria possível para qualquer um conseguir colocar uma capela em funcionamento com autorização da Igreja sem ter a sua disposição certo poder financeiro. Consequentemente, também dispensava ao seu proprietário um grande prestígio dentro daquela população onde estava localizada a capela. Para melhor conhecermos as famílias responsáveis pelas capelas de Irajá fiz o quadro abaixo a partir da visita de Pizarro.

116 CHAHON, Sergio. Op. Cit., p. 94. 117 CHAHON, Sergio. Op. Cit., p. 92. 118 PIZARRO E ARAÚJO, José de Souza. O Rio de Janeiro nas visitas pastorais, p. 63

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QUADRO 4. Capelas e seus respectivos proprietários em Irajá em 1794

CAPELA FUNDADOR / PROPRIETÁRIO / ADMINISTRADOR Capela de Nossa Senhora da Administrada pelo capitão Francisco Soares de Apresentação Melo e reedificada pelo seu antecessor o capitão mor Frutuozo Pereira. Capela Nossa Senhora da Conceição Fundada por Brás de Pina Capela Nossa Senhora da Penha Administrada pela Irmandade residente na própria capela Capela Nossa Senhora da Ajuda Do senhor Jose Pereira Dias e depois foi do capitão mor Jose dos santos Capela do Engenho Novo Do doutor Francisco Xavier de Lima e de sua mulher a viúva de F. Gago Capela de São João Batista, no Engenho Administrada por Dona Ana Maria de Jesus de Sacopema esposa do capitão João Pereira de Lemos Capela da Fazenda dos Afonsos Administrador não informado Capela de Inhomucú Pertencia a Antônio Rodrigues de Paiva

FONTE: PIZARRO E ARAÚJO, José de Souza Azevedo. O Rio de Janeiro nas visitas pastorais de Monsenhor Pizarro: inventário da arte sacra fluminense. Rio de Janeiro: INEPAC (v.1), 2008, p. 62 e 63.

Ao visitar cada uma das capelas citadas no quadro acima, Pizarro fez observações que agora apresento. Mas para um melhor conhecimento sobre elas acrescentarei algumas informações encontradas em outras fontes que trazem informações sobre algumas dessas ermidas. Segundo o visitador, a capela de Nª Sra. da Apresentação não havia informação de quem e quando fora fundada, estava reduzida a oratório, pois quando houve a mudança de proprietários a documentação referente a ermida desapareceu119. Nem o dono na época da visita, o capitão Francisco Soares de Melo, e nem seu antecessor, o capitão mor Frutuozo Pereira, fizeram o patrimônio da capela. Sua distância da matriz era de 1 ½ légua120. A capela de Nª Sra. da Conceição, fundada por Brás de Pina, estava localizada no engenho de Manoel de Campos, na época de sua fundação a propriedade pertencia ao negociante Brás de Pina e anos depois foi leiloada, mas esse assunto falarei no próximo capitulo. Tinha a capela uma distância de ½ légua da matriz121.

119 PIZARRO E ARAÚJO, José de Souza Azevedo. Memórias históricas do Rio de Janeiro e das províncias anexas do reino do Estado do Brasil – TOMO III, Imprensa Régia, 1820, p. 11 – Disponível no site: www2.senado.leg.br 120 PIZARRO E ARAÚJO, José de Souza. O Rio de Janeiro nas visitas pastorais, p. 62. 121 ACMRJ – Breves Apostólicos de solicitação de Indulgência para a Capela de Nª Sra. da Conceição, 097fl.1-8.

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A de Nª Sra. da Penha estava em uma distância de mais ou menos ¼ de légua das terras de Brás de Pina122. Segundo o memorialista Noronha Santos, essa ermida foi construída em terras pertencentes ao capitão Baltazar de Abreu Cardoso e media 20 palmos123 de circunferência com seu arco à frente124, isto significa que a capela media 4,5 metros125. Não se sabe se foi o próprio capitão quem a erigiu, mas segundo Pizarro, a irmandade que administra a capela prestava as suas contas em Juízo Secular. Foi encontrada pelo visitador muito bem cuidada e estava bem servida de tudo o que era necessário para sua manutenção126. A capela de Nª Sra. da Ajuda, localizada na chamada fazenda Grande, foi fundada por Jorge de Souza (o velho), depois passada para o capitão Christovão Lopes127. Em 1794 ela estava sendo administrada pelo capitão mor José dos Santos128. Por não ter constituído patrimônio, era usada como oratório por faculdade do bispo. Segundo Pizarro, ela estava muito bem aparamentada129. A capela do Engenho Novo tinha como orago Nossa Senhora da Piedade, tendo sido levantada por Manoel Jordão130. Estava a duas léguas da matriz e teve como um de seus donos a família Gago. Segundo João Fragoso, esta família fazia parte da nobreza da terra. No ano da visita do Pizarro, o engenho já havia sido passado para as mãos do Doutor Francisco de Lima, pois o mesmo se casou com a viúva de F. Gago. Por não ter patrimônio, estava reduzida a oratório131. A capela de São João Batista era pertencente ao Engenho de Sacopema e estava distante a 1 ½ da matriz de Nossa Senhora da Apresentação. Era administrada por Dona Anna Maria de Jesus, esposa do capitão João pereira de Lemos. Após a sua morte, seu filho, João Pereira de Lemos e Faria ficou responsável pela administração da

122 PIZARRO E ARAÚJO, José de Souza. O Rio de Janeiro nas visitas pastorais, p. 62. 123 O valor de 20 palmos corresponde a 4,50 metros. 124 NORONHA, Santos. As freguesias do Rio Antigo, vistas por Noronha Santos. Rio de Janeiro: Cruzeiro, 1965, p. 81 125 Calculo realizado pelo site www.conversor-de-medidas.com, visitado no dia 28/05/2017 126 PIZARRO E ARAÚJO, José de Souza. O Rio de Janeiro nas visitas pastorais, p. 62. 127 PIZARRO E ARAÚJO, José de Souza Azevedo. Memórias históricas do Rio de Janeiro e das províncias anexas do reino do Estado do Brasil – TOMO III, Imprensa Régia, 1820, p. 11 – Disponível no site: www2.senado.leg.br 128 PIZARRO E ARAÚJO, José de Souza. O Rio de Janeiro nas visitas pastorais, p. 62. 129 PIZARRO E ARAÚJO, José de Souza. O Rio de Janeiro nas visitas pastorais, p. 62. 130 PIZARRO E ARAÚJO, José de Souza Azevedo. Memórias históricas do Rio de Janeiro e das províncias anexas do reino do Estado do Brasil – TOMO III, Imprensa Régia, 1820, p. 11 – Disponível no site: www2.senado.leg.br 131 PIZARRO E ARAÚJO, José de Souza. O Rio de Janeiro nas visitas pastorais, p. 63.

60 referida capela132. A ermida teria sofrido uma reforma 20 anos antes da visita de Pizarro. Tinha autorização para realizar casamentos, batismo e sepultamento133. De acordo com o inventário de Dona Anna Maria de Jesus, ela ficava ao lado, porém separada, da casa de vivenda com paredes próprias de adobes e de pedra e cal, com uma torre unida ao corpo da capela, com sua cimalha e cúpula rebocada até a altura das sineiras.134 A capela dos Afonsos ficava a uma distância de duas léguas em direção à matriz. Não possuía patrimônio e, por isso, também foi reduzida a oratório. De acordo com Pizarro, a capela estava decadente. Ele também apontou que a mesma costumava realizar sepultamentos sem autorização do pároco. Por esse motivo o visitador a interditou. Mas com a renovação de seu mobiliário, teve autorização do bispo para a realização de missas somente135. A oitava e última listada por Pizarro estava localizada em um lugar chamado Inhomucú, tendo por invocação Nossa Senhora da Conceição. Possuía a distância de duas léguas em relação à matriz e foi erigida por Manoel da Tavora136. Na época da visita de Pizarro, estava em posse de Antônio Rodrigues de Paiva. A mesma “por não constava de seu patrimônio há quatro anos não estava em exercício”. Provavelmente, o proprietário não estaria disponibilizando o pagamento anual referente a manutenção dos bens da capela, pois de acordo com o visitador, estava precisando de reformas. Por isso, foi reduzida a oratório137. As observações feitas por Pizarro sobre a Freguesia de Nossa Senhora da Apresentação de Irajá contribuíram de forma bastante significativa para entendermos como a devoção a um orago e a preocupação como o pasto espiritual ajudaram na elevação do status social de muitos senhores. Entre as freguesias localizadas do lado da banda d’aquém da Baia de Guanabara, Irajá seria a que possuía mais oratórios, o que demonstra que juntando com os donos de capelas, havia 22 famílias de prestígio na região. Mas para, além disso, esses ambientes de oração foram responsáveis pela

132 ANRJ – Inventário de Anna Maria de Jesus: Inventariante João Pereira de Lemos e Faria. Ano: 1795 – Notação 10, caixa 3636. 133 PIZARRO E ARAÚJO, José de Souza. O Rio de Janeiro nas visitas pastorais, p. 63. 134 ANRJ – Inventário de Anna Maria de Jesus: Inventariante João Pereira de Lemos e Faria. Ano: 1795 – notação 10, caixa 3636 135 PIZARRO E ARAÚJO, José de Souza. O Rio de Janeiro nas visitas pastorais, p. 63. 136 PIZARRO E ARAÚJO, José de Souza Azevedo. Memórias históricas do Rio de Janeiro e das províncias anexas do reino do Estado do Brasil – TOMO III, Imprensa Régia, 1820, p. 11 – Disponível no site: www2.senado.leg.br 137 PIZARRO E ARAÚJO, José de Souza. O Rio de Janeiro nas visitas pastorais, p. 63.

61 criação de formas de sociabilidade, aproximando escravos, senhores e agregados, que se reuniam para rezar138 e assim aproximando pessoas de hierarquias diferentes. A distância, motivo responsável pela ereção desse número significativo de oratórios veio esclarecer as dificuldades de locomoção que vivia a população da freguesia. Todavia, ela não foi um empecilho para que a freguesia se desenvolvesse, sua proximidade com a cidade e a fama de paróquia nobre, provavelmente pode ter sido responsável pela vinda de tantos párocos para região. Mas não só por isso. Também por algumas facilidades. Um exemplo disso foi o fato de que, em relação às demais freguesias visitadas por Pizarro, somente Irajá tinha uma casa separada para seus sacerdotes, isso poderia ser considerado um prestígio no meio eclesiástico e que também enobrecia a região. Outra questão envolvendo os sacerdotes é que esse grande número de locais de oração particular ajudou muitos padres a estarem à frente de um local de práticas eucarísticas. Todavia, este número significativo de altares não pode nos enganar, pois algumas das capelas visitadas estavam passando por situações de precariedade, devido em alguns casos, ao descuido de seus proprietários; o que acabava a fazendo com que fossem rebaixadas à condição de oratório. Segundo Sergio Chahon, para aqueles que pretendiam ver celebradas missas em suas capelas, era necessário contar com os meios necessários para fazer frente a toda uma série de providências, dentre as quais estava a de ter a influência necessária junto à cúpula da hierarquia eclesiástica139. Portanto, acredito que a obtenção de oratórios e de capelas em Irajá e, provavelmente, nas demais freguesias do Recôncavo da Guanabara e mesmo no interior da região, não tenha sido exclusivamente devido ao socorro das almas dos moradores distantes, mas também para reafirmar o status social das famílias diante dos demais membros da sociedade local. Ao longo deste processo, pudemos verificar que para que tudo isso ocorresse foi necessária a existência de proprietários de engenho ativos, a exemplo dos que foram mencionados na lista elaborada por ocasião da transformação da capela curada em freguesia colada. No próximo capítulo, analisarei os aspectos socioeconômicos da freguesia, que concentraria algumas das maiores propriedades escravas da região guanabariana, muitas das quais eram donas das capelas e dos oratórios mencionados acima, e de que forma se estruturava a produção agrícola escravista na região.

138 CHAHON, Sergio. Op. Cit., p. 41 139 CHAHON, Sergio. Op. Cit., p. 61

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CAPÍTULO 2

Uma freguesia inserida na economia escravista colonial

2.1. A produção econômica em Irajá

Localizada no meio do novo caminho de acesso às minas, a freguesia de Nossa Senhora da Apresentação de Irajá ficava especificamente entre as duas principais estradas da Capitania do Rio: a Estrada Geral que estava ligada a também importante Estrada de Santa Cruz. As duas foram responsáveis pelo acesso ao novo caminho que ligava o Rio de Janeiro a Minas Gerais, que ficou conhecido como Caminho Novo. A partir daí, como já foi dito anteriormente, por ordem da Coroa Portuguesa, as terras próximas a nova passagem deveriam ser habitadas, efetuando-se a criação de lavouras voltadas para a produção de alimentos para abastecimento das áreas auríferas.

Pelo caminho Novo, caminho Novo para as Minas, ou caminho de Minas – ...ia-se de São Cristovão ao rico território das alterosas montanhas, passando por Inhaúma, Irajá, Meriti, Iguaçu Velho, Pati do Alferes, Paraibuna, Matias Barbosa e Barbacena. E dali a ligação era feita com o arraial do Rio das Mortes, Cataguases, Congonhas do Campo e Vila Rica do Ouro Preto. Esse caminho foi construído como conseqüência do desenvolvimento da exploração aurífera no território mineiro. Era meio de facilitar o transporte de ouro para o porto de seu embarque: o Rio de Janeiro140.

Como já vimos, na época em que o Caminho Novo passou a ser usado, em 1698, Irajá já era uma freguesia colada; ou seja, era uma região reconhecida pela Coroa portuguesa como relativamente importante para a economia do Rio de Janeiro. A freguesia já era composta, em 1687, por 200 fogos e 1.800 almas141. Mas, independente de esses dados populacionais estarem corretos ou não, a questão é que a descoberta do ouro na região das

140 LOS RIOS, Adolfo Morales de. O Rio de Janeiro Imperial. 2ª edição. Editora Topbook, 2000. Apud Barbosa, Keith Valéria, 2010, p. 42. 141 ARQUIVO DA CÚRIA METROPOLITANA DO RIO DE JANEIRO: Série de Visita Pastoral, VP38 – Titulo: Notícias do Bispado do Rio de Janeiro. 1686.

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Minas Gerais fez com que pessoas de diferentes costumes e culturas que optassem pelo caminho terrestre (pois havia o caminho pelos rios, que ia da Baia de Guanabara até o Porto do Pilar) acabariam sendo obrigadas a passar pela região. Afinal, Irajá era uma das primeiras quatro freguesias – as outras três eram Jacutinga, Iguaçu e Pilar142 – que ficavam na rota das minas e representava local de pouso dos viajantes. Aspectos que contribuíram para o aumento da população da freguesia. Para melhor identificarmos esta posição, apresento o mapa abaixo que mostra a cidade do Rio de Janeiro e seus arredores, como também os limites da Capitania do Rio de Janeiro para com a região das Minas e São Paulo, trazendo nas suas legendas as localidades de freguesias, caminhos/estradas e portos. Trata-se da Carta Topográfica da Capitania do Rio de Janeiro, de 1767.143 Por questão de espaço e para melhor visualização, enquadro apenas a margem esquerda da Guanabara para ampliarmos o foco sobre a área em torno da região de Irajá, quase em frente à atual Ilha do Governador. No primeiro mapa (mapa 3), temos a imagem maior de toda a região aqui estudada. A matriz de Nossa Senhora da Apresentação de Irajá está com a legenda “H” (sobre a qual há uma CRUZ VERMELHA para melhor visualização). Cada um dos três caminhos ou estradas citadas no mapa original aparecem igualmente com legendas em letras minúsculas: com a legenda “a” (cuja ponta inicial está marcada com um CÍRCULO VERDE) a estrada do Rio de Janeiro à Minas; com a legenda “b” (com sua ponta inicial marcada com um CÍRCULO VERMELHO) a estrada do Porto do Pilar e com a legenda “d”, (que tem a ponta inicial marcada com um CÍRCULO MARROM) a estrada do porto de Estrela. Na rota do caminho da legenda “a”, para as Minas, está localizada a freguesia de Irajá, justamente sobre o tracejado vermelho do caminho que corta os rios Meriti e Irajá.

142 DEMÉTRIO, Denise Vieira. Famílias escravas no Recôncavo da Guanabara: séculos XVII e XVIII. (Dissertação de mestrado pelo programa de pós-graduação pela Universidade Federal Fluminense – UFF), Niterói, 2008; BRAGA, Vitor Cabral. Lugares para “bem morrer” no Recôncavo da Guanabara/RJ: Irmandades, ritos e tensões na geografia da morte (1720-1800). Dissertação de Mestrado pelo programa de pós-graduação pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro – UNIRIO), Rio de Janeiro, 2015. 143 BIBLIOTECA NACIONAL, Biblioteca Digital: Carta Topográfica da Capitania do Rio de Janeiro, feita por ordem do Conde da Cunha, Capitão General e Vice-Rei do Estado do Brasil, por Manuel Vieyra Leão, Sargento-mor e Governador da Fortaleza do Castelo de São Sebastião da Cidade do Rio de Janeiro em o ano de 1767 [Cópia tirada no Instituto Histórico do Rio de Janeiro, em 28 de Janeiro de 1911]. Disponível em: . Acesso em: 25/04/2017.

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MAPA 6: Irajá: um entreposto no meio do Caminho Novo para as Minas

FONTE: BIBLIOTECA NACIONAL/BIBLIOTECA DIGITAL: Cartas Topográficas da Capitania do Rio de Janeiro. Cartografia do Rio de Janeiro – Manoel Vieira Leão, em 1767. Disponível em: http://objdigital.bn.br/objdigital2/acervo_digital/div_cartografia/cart268950/cart268950.jpg Acessado em: 25/04/2017

Ainda neste primeiro mapa é possível localizar a área relativa ao que seria parte da freguesia de Nossa Apresentação do Irajá. Tomando como base as indicações do monsenhor Pizarro e Araújo, a freguesia tinha em torno de três léguas de largura pouco mais ou menos e fazia fronteira com a freguesia de S. Tiago de Inhaúma (marcada no mapa com

65 um TRIÂNGULO VERMELHO), cerca de uma légua para Sul; com a freguesia de Nossa Senhora do Loreto de Jacarepaguá, aproximadamente uma légua e meia para o Sudoeste, seguindo o caminho da Estrada Geral (infelizmente, essa carta topográfica não apresenta esta parte relativa à freguesia de Jacarepaguá com seus engenhos e os rios ali presente, que corresponderia à parte de baixo do mapa, que está em branco, apesar de haver mais região que poderia ter sido ali incluída e, pelo contrário, não significa que fosse um lugar ermo... Apenas não foi enfocado pelo autor da Carta Topográfica); com a freguesia de Nossa Senhora do Desterro de Campo Grande, pelo Oeste-Sudoeste, em cerca de duas léguas (marcada com um TRIÂNGULO VERDE); e, por fim, a Oeste, fazia fronteira a cerca de uma légua e meia com a freguesia de São João de Meriti (marcada com um TRIÂNGULO LARANJA), pela ponte do rio chamado Meriti, junto ao mar (como eram consideradas as águas da Baia da Guanabara).144 Ao destacarmos um recorte mais ampliado do mapa anterior para enfocar com maior visibilidade a área de Irajá (mapa 4), podemos verificar a curta extensão do Rio Irajá (a ESTRELA VERMELHA sinaliza a foz do rio Irajá, na direção da Baía da Guanabara), em relação ao rio Meriti, que era muito maior em extensão. Mais ainda, podemos verificar que a igreja matriz de Irajá (envolvida por uma cruz vermelha) estava localizada relativamente distante do rio de Irajá. Ou seja, Era possível entrar de embarcação pelo rio de Irajá, mas para se dirigir à paróquia era necessário ainda percorrer um caminho terrestre.145

144 PIZARRO E ARAÚJO. Memórias Históricas do Rio de Janeiro. Vol. 3. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1945 145 BIBLIOTECA NACIONAL, Biblioteca Digital: Carta Topográfica da Capitania do Rio de Janeiro, feita por ordem do Conde da Cunha, Capitão General e Vice-Rei do Estado do Brasil, por Manuel Vieyra Leão, Sargento-mor e Governador da Fortaleza do Castelo de São Sebastião da Cidade do Rio de Janeiro em o ano de 1767 [Cópia tirada no Instituto Histórico do Rio de Janeiro, em 28 de Janeiro de 1911]. Disponível em: . Acessado em 30/03/2017.

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MAPA 7: Detalhe do mapa 6, enfocando melhor a área de Irajá

FONTE: BIBLIOTECA NACIONAL/BIBLIOTECA DIGITAL: Cartas Topográficas da Capitania do Rio de Janeiro. Cartografia do Rio de Janeiro – Manoel Vieira Leão, em 1767. Disponível em: http://objdigital.bn.br/objdigital2/acervo_digital/div_cartografia/cart268950/cart268950.jpg Acessado em 25/04/2017.

Situada numa posição que seria estratégica no estabelecimento do Caminho Novo e dada a proximidade, mesmo com relativa distância dos rios Irajá, Meriti e seus afluentes –o que permitia maior distribuição de terras na forma dos diferentes engenhos que ocupavam aquele espaço entre os rios (como podemos verificar no mapa 7 acima) –, a freguesia de Irajá apresentaria uma significativa produção agrária, a partir da qual já na primeira metade do século de XVII se destacava a do açúcar. Nas primeiras décadas do século XVII, o número de engenhos na capitania do Rio de Janeiro cresceu devido ao momento de prosperidade dos negócios açucareiros. Dos 136 engenhos que foram estabelecidos na região, 39 estavam localizados em Irajá; ou seja, 28,7% das propriedades146. O gráfico 1 (abaixo), elaborado por Maurício Abreu nos ajuda a entender esse destaque de Irajá dentro da economia açucareira durante a segunda metade do século XVII. O que nos permite a compreender a transformação da capela curada em freguesia colada.

146 ABREU, Mauricio de Almeida. Geografia histórica do Rio de Janeiro (1502-1700), vol. 02, p. 97.

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GRÁFICO 1: Engenhos de açúcar em funcionamento na Capitania do Rio de Janeiro nos séculos XVI e XVII, por décadas.

FONTE: ABREU, Mauricio de Almeida. Geografia histórica do Rio de Janeiro (1502-1700), vol. 02. Rio de Janeiro: Andrea Jakobsson Estúdio e Prefeitura do Município do Rio de Janeiro, 2010, p. 96.

Apresentando o crescimento do número de engenhos por regiões produtoras, o gráfico 1 mostra que no início do seiscentos já começam a surgir os primeiros engenhos do Recôncavo da Guanabara. Durante os trinta primeiros anos, Irajá foi crescendo lentamente juntamente com as regiões de Campo Grande, arredores da cidade, Jacarepaguá e Banda d’além (no outro lado da Baía da Guanabara). Mas foi na década de 1630 que a freguesia começou a despontar frente às demais com o aumento de números de engenhos, embora esse tenha sido um período considerado de crise do comércio açucareiro147. Percebe-se que entre

147 Entre os anos de 1650 a 1750 a produção açucareira da colônia passou por período de crise no mercado internacional devido à concorrência do açúcar das Antilhas, causando a queda nos preços do açúcar que era produzido na América Portuguesa. No entanto, Antonio Carlos Jucá diz que a sociedade colonial não era comandada pelas leis do mercado econômico, o engenho não era um bem voltado para questões econômicas, mas sim sociais, ele dava prestígio e poder. Sendo assim, o açúcar não era o responsável pela manutenção da população da colonial. SAMPAIO, Antonio Carlos Jucá. Fluxos e refluxos mercantis: centros, periferias e

68 as décadas de 1640 a 1650 a região sofreu com uma pequena queda em seus números junto com os arredores da cidade, mas nas demais freguesias a quantidade de moendas cresce. A partir da década de 1650 em diante, o número de engenhos em Irajá voltou a crescer, permanecendo assim até a década de 1690. A Banda d’Além – na qual se situavam as freguesias de Nª Sra. da Piedade de Magé, Nª Sra. da Ajuda de Guapimirim, Santíssima Trindade, Nª Sra. do Desterro de Itambí, São Barnabé dos Índios, São João Batista de Itaboraí, São Gonçalo, São Lourenço, São João Batista de Icaraí e Santo Antonio de Sá -, juntamente com a freguesia de Nª Sra. da Apresentação, se tornaram naquele período as duas regiões produtoras de açúcar com o maior número de engenhos do Rio de Janeiro: Irajá como já foi dito anteriormente com 39 e a Banda d’além com 32. É importante mencionar que São Gonçalo era a freguesia que mais se destacava entre as da Banda d’além148. As demais mantiveram uma quantidade de 11 a 14 engenhos. Já a área dos arredores da cidade foi a região que teve seu número realmente reduzido para somente 5. Segundo Mauricio Abreu, isso ocorreu devido ao progresso do povoamento e melhoria das comunicações por terra nas áreas interioranas149. Em relação à produção econômica escravista de Irajá no século XVIII, verifica-se que alguns engenhos criados ainda no século XVII permaneceram produzindo na centúria seguinte, enquanto outros entraram em decadência, sendo alguns vendidos. De modo que essa opulência na criação de engenhos de açúcar foi diminuindo, talvez devido às circunstâncias econômicas relacionadas à produção açucareira ou até ao interesse de alguns proprietários em investir em outras freguesias, como no caso de Pedro Gago da Câmara, que vendeu em 1684 um engenho em Irajá e ergueu outro onde chamavam de Mato do Taipu150. Como já foi dito anteriormente, algumas propriedades continuaram produzindo e tendo seu destaque açucareiro, mas parte seria vendida para outros senhores. Recorrendo a alguns documentos (como a visita de Monsenhor Pizarro às freguesias do Recôncavo, feita em 1794151 e o relatório do mestre de campo Fernando Dias Paes Leme para o Marquês do

diversidade regional. In: FRAGOSO, J., GOUVÊIA, M. F. O Brasil Colonial v. 3 – 1º ed. – Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2014, p. 208. 148 Banda d’além designava o lado oposto à cidade do Rio de Janeiro, onde estavam localizadas as freguesias de Icaraí, São Gonçalo, Nossa Senhora do Amparo de Maricá, São João Batista de Itaboraí e Nossa Senhora do Desterro de Itambí. Para mais informações sobre o termo buscar o trabalho de: ROCHA, Ubiratan. História local: uma leitura metodológica da história da Banda d’além do século XVII. Disponível no site: ojs.fe.unicamp.br/index.php/FEH/article/download/5315/4248. Acessado em 07/12/2017. 149 ABREU, Mauricio de Almeida. Geografia histórica do Rio de Janeiro, vol. 2, 2010, p. 97. 150 ABREU, Mauricio de Almeida. Geografia histórica do Rio de Janeiro, vol. 2, 2010, p. 133. 151 PIZARRO E ARAÚJO, José de Souza. O Rio de Janeiro nas visitas pastorais, p. 66-67.

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Lavradio de 1778152), foi possível identificar algumas dessas propriedades. A vantagem da utilização desses dados é tornar possível a identificação de alterações na composição das propriedades em Nossa Senhora da Apresentação de Irajá, considerando os 16 anos de diferença entre uma informação e outra. Para melhor realizarmos esta comparação, apresentamos as duas listas no mesmo quadro a fim de identificarmos as mudanças que ocorrem no intervalo de tempo entre os dois relatórios que nos ajudaram a identificar as propriedades. Os engenhos com seus respectivos proprietários, mencionados na relação do Marquês de Lavradio em 1778, estão nas duas primeiras colunas da esquerda e os de Pizarro, listados em 1794, nas colunas da direita. Vejamos o quadro abaixo:

QUADRO 5: Relação comparativa dos proprietários/engenhos em Irajá, entre 1778 e 1794

CITADOS NO RELATÓRIO CITADOS NA VISITA DE LAVRADIO DE PIZARRO Nº (1778) (1794)

PROPRIETÁRIOS ENGENHOS PROPRIETÁRIOS ENGENHOS

1. Antônio Correia Pereira - - -

2. Thereza Maria (Viúva de Engenho do Portela Tereza Machado e filhos Engenho do Portela Antônio de Menezes) (viúva de Antônio de Menezes) 3. Capitão Bento Luiz de Engenho de Nazareth Capitão Bento Luiz de Engenho de Nazareth Oliveira Oliveira Braga 4. Luiz Manoel de Oliveira Engenho do Porto Luiz Manoel de Oliveira Engenho do Porto Meriti Meriti 5. Dona Anna Maria de Jesus Engenho Sacopema Capitão João Pereira de Engenho Sacopema (viúva do capitão João Pereira Lemos Faria (filho de D. de Lemos) Anna Maria de Jesus)

6. Dona Maria Tereza (viúva do Engenho Dona Maria Tereza, Engenho Botafogo Doutor Ignácio de Souza). (viúva de Inácio de Souza) Traz arrendado o sargento mor da cavalaria José Correia de Castro 7. Capitão Antônio de Oliveira Engenho dos Afonsos Pertencente a vários Engenho dos Afonsos Durão herdeiros, mas na época de posse de José de Mesquita 8. Doutor – Promotor Francisco - Bartolomeu Cordovil de -

152 Relação do Marquês do Lavradio. Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. Relatório Lavradio, TOMO: LXXVI, 1913, p. 318-319.

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Cordovil de Siqueira Siqueira 9. Antônio Rodrigues de Paiva Engenho Inhamucú Antônio Rodrigues de Inhamucú Paiva 10. Miguel Antunes (reverendo Engenho do Campinho - - padre - religiosos carmelita) 11. - - Foi de F. Gago, e estava Engenho Novo na posse de Francisco Xavier de Lima, por estar casado com a viúva do antigo dono 12. - - Capitão Francisco Soares Caminho para a Penha de Melo (havia sido do Capitão Mor, Frutuoso Pereira) 13. - - Mestre de Campo Inácio Engenho da Manoel de Lemos Conceição Mascaranhas Castelo branco 14. - - Dos herdeiros de Antônio No Caminho para o Martins Brito (juiz que foi Porto da Alfândega desta cidade), que está arrendado ao capitão Jose de Frias de Vasconcelos 15. - - Tenente João Ferreira No Campinho Couto (que foi de José (fábrica de aguardente) Rodrigues d’ Aragão) 16. - - Antônio de Souza e seus No Macaco irmãos (que foi de Manoel de Souza) FONTE: Relação do Marquês do Lavradio. Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. Relatório Lavradio, TOMO: LXXVI, 1913. p. 318-320 e ARAUJO, Jose de Souza Pizarro, op, cit, p. 66-67. Os engenhos marcados de amarelo são os que pudemos localizar no mapa

Comparando a lista de engenhos apresentada pelo mestre de Campo Paes Leme com a que monsenhor Pizarro e Araújo mencionaria dezesseis anos depois, podemos verificar algumas alterações na distribuição das propriedades. Na relação apresentada por Pizarro, são mencionadas doze “fábricas de açúcar” (engenhos) e duas “fábricas de aguardente” (engenhocas), totalizando 14 propriedades. Ou seja, uma propriedade a mais do que o identificado na lista de 1778. O crescimento também se deu no número de fogos da freguesia. Na relação de 1778, 242 fogos, e, na lista de 1794, foram mencionados 274.

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Para melhor visualização e análise dos dados, cotejarei suas informações com as apresentadas pelo Banco de dados de Maurício de Abreu153. Além disso, marquei o quadro acima com cores indicadoras de tendências semelhantes em relação aos engenhos mencionados em ambos os relatos. Por fim, anexei abaixo uma cópia do Mapa 7 acima, com a marcação dos engenhos que são ali identificados (num recorte da Carta Topográfica da Capitania do Rio de Janeiro, feita em 1776, especificando a região da freguesia de Nossa Senhora da Apresentação do Irajá). Para os que não aparecem com seus nomes na Carta Topográfica, busquei identifica-los a partir das informações obtidas no conjunto de documentos aqui citado. Por exemplo, em VERMELHO, estão os engenhos que já haviam sido identificados na Carta e, em MARROM, destaquei o que acredito ser Engenho de Sacopema, que não aparece nominado na carta topográfica (apesar de estar sobre a região denominada Sacopemba), mas que, seguindo as indicações de Monsenhor Pizarro e Araújo, seria o que ele menciona estar mais próximo da matriz, em 1 légua e meia a Sul-sudoeste da paróquia154. Em VERDE, marquei o que teria sido o Engenho de Brás de Pinna; em AZUL o Engenho do Provedor; em LARANJA o Engenho do Vigário Geral e em ROXO o Engenho de Fructuoso. Foi possível, inclusive, localizar engenhos que não estavam contidos na Carta topográfica, os quais inseri manualmente em azul, envolto em um quadrado amarelo.

153 As informações referentes às compras e vendas de terras na freguesia de Irajá encontram-se no banco de dados de Mauricio Abreu sobre a Estrutura Fundiária da cidade do Rio de Janeiro. www.mauricioabreu.com.br. Acessado em 12/02/2017 154 PIZARRO E ARAÚJO, José de Souza. O Rio de Janeiro nas visitas pastorais, p. 66

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MAPA 8. Engenhos identificados a partir da Carta Topográfica do Rio de Janeiro

Fazenda Botafog

FONTE: BIBLIOTECA NACIONAL/BIBLIOTECA DIGITAL: Disponível em: htt://objdigital.bn.br/objdigital2/acervo digital/div cartografia/cart268950/jpg Acessado em: 25/04/2017

LEGENDA: MARROM = Engenho de Sapopemba VERDE = Engenho de Brás de Pinna AZUL = Engenho do Provedor LARANJA = Engenho do Vigário Geral ROXO = Engenho de Frutuozo Pereira

Passemos, portanto a analisar a Tabela anterior, considerando a visualização do mapa acima. Uma primeira observação a fazer é que todas as propriedades marcadas em verde na Tabela (Portela, Nazareth, Porto de Meriti, Botafogo e Inhamucú) são engenhos que mantiveram tanto os proprietários como os nomes das propriedades no intervalo de 16 anos entre a elaboração dos relatos citados. O de Nazareth, ficava situado nas terras que pertenciam, em 1655, a João de Andrade Rego, mas já em 1731 se encontrava em posse do testamenteiro do padre Luis de Lemos Pereira; tendo sido vendido no mesmo ano para o doutor Inácio Fernandes de Meireles. Em 1751, o mesmo engenho foi vendido por sua viúva

73 para Bento de Oliveira Braga, pai de Bento Luis de Oliveira Braga155. Já o engenho do Porto de Meriti, segundo Abreu, pertencia a Inácio de Souza Pereira, em 1745, mas pelo que vemos no Quadro 5 ele já estava em posse de Luis Manoel de Oliveira. O de Inhomucú, teve suas terras repassada a Antonio Rodrigues de Paiva, que aparece nas duas listas acima como proprietário. A transferência foi realizada por Jose de Maia Brito. No entanto, em 1771, o mesmo engenho se encontrava penhorado a Nicolau de Siqueira Lapa156. Ao que tudo indica, os engenhos que aparecem marcados em laranja, no Quadro 5, são os que permaneceram em posse das famílias de seus respectivos proprietários. O de Sacopema, que pertencia primeiramente ao padre Luiz de Lemos Pereira e depois repassado a seu testamenteiro e provável filho, João Pereira de Lemos, foi transmitido para Dona Ana Maria de Jesus (viúva do mesmo João Pereira de Lemos) e, posteriormente, para seu filho João Pereira de Lemos Faria, após o falecimento da mãe. O Engenho dos Afonsos pertencia ao cristão-novo Luis Afonso de Oliveira e foi vendido para Bento de Oliveira Braga, em 1756. Este, por sua vez, passou a administração do engenho para seu genro, Antônio de Oliveira Durão157, em 1770 e, após a morte deste foi transferido para seus herdeiros. O Engenho de Francisco Cordovil de Siqueira foi por este adquirido em 1742, após a morte de seu pai (Bartolomeu de Siqueira Cordovil158). Francisco pertencia a uma importante família do Rio de Janeiro, detentora de cargos, tendo sido provedor, vedor-geral e contador da capitania do Rio de Janeiro. Após sua morte, foi transmitida para seu filho, Francisco Cordovil de Siqueira e Melo, que representou a terceira geração da família a administrar a propriedade.

155 As informações referentes às compras e vendas de terras na freguesia de Irajá encontram-se no banco de dados de Mauricio Abreu sobre a Estrutura Fundiária da cidade do Rio de Janeiro. www.mauricioabreu.com.br. Acessado em 12/02/2017 156 Idem 157 Idem 158 Bartolomeu de Siqueira Cordovil foi um dos primeiros provedores da fazenda Real, pertencente a uma família ligada há muitos anos à administração pública em Portugal. Chegou ao Brasil ainda no século XVII, servindo ao exército em Pernambuco, assumindo vários postos e depois como oficial maior da secretaria do governo por mais três anos, tendo retornado a Lisboa. Em 1704, voltou ao Brasil para assumir o cargo de secretário do governo da capitania do Rio de Janeiro devido aos serviços realizados em Pernambuco e também por fazer parte da nobreza. Após o termino do mandato, não voltou para Lisboa, casando-se com Margarida Pimenta de Melo (viúva do capitão José Pinheiro de Azevedo), pertencente à tradicional família fluminense. Tiveram dois filhos: Francisco Cordovil de Siqueira e Melo e Luiza Inácia Xavier. Em 1716, foi nomeado Provedor da Fazenda Real, mas com o peso da idade e os vários problemas de saúde não pode mais exercer tal função com presteza, pedindo ao rei que o substituísse por seu filho. Ficou no cargo até sua morte, em 1738, mas somente em 1742 o mesmo foi transferido para seu filho Francisco Cordovil de Siqueira e Melo, que se tornou provedor, vedor-geral e contador da capitania do Rio de Janeiro. Foi nas terras deste engenho que se formou o bairro de Cordovil já no século XX. Cf. CAVALCANTE, Nireu. Histórias e conflitos no Rio de Janeiro: da carta de Caminha ao contrabando de camisinha (1500-1807), 1ª edição – Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2013, p. 79-89.

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Marcados com a cor azul estão os engenhos que já existiam, mas não foram citados no relatório de 1778: o Engenho Novo, o do caminho para a Penha, o da Conceição e o do caminho para o porto. O que se encontrava no caminho para o porto – ao que parece, porto do rio de Irajá – era o que pertencia ao Juiz da Alfândega, Antonio Martins de Brito. Com sua morte, suas filhas (dona Ana Joaquina Tereza de Almeida e dona Escolástica Joaquina Tereza de Almeida) o arrendam ao tenente coronel José de Frias Vasconcelos, em 1798159. O engenho do caminho da Penha era o que pertencia ao capitão-mor Frutuozo Pereira e, com sua morte, passou a ser administrado por seu filho, o alferes Francisco Soares de Melo160. O engenho da Conceição pertencia a Brás de Pina e foi arrematado em Praça da Conservatória dos Moedeiros, em 1785, passando a pertencer ao Bispo D. José Joaquim Justiniano Mascarenhas Castelo Branco e, em 1794, doado para seu sobrinho, o governador da Fortaleza da Lage da barra o capitão Manoel de Lemos Mascarenhas161. O Engenho Novo também é outro que já havia mudado de dono, passando a ser de Francisco Xavier de Lima, que estava casado com a viúva do antigo proprietário, F. Gago. Segundo João Fragoso162, os Gago pertenciam a uma família da nobreza da terra, ligada à organização militar da capitania. Este grupo de engenhos demonstra que já no final do século XVIII, Irajá ainda estava produzindo muito e gerando bons rendimentos aos seus proprietários, fazendo com que famílias abastadas continuassem a se instalar na região. Os engenhos cujos nomes estão marcados em lilás parecem ter existido apenas até cerca de 1778, uma vez que não apareceram na lista de Pizarro de 1794: o de Antônio Correia Pereira e o do Reverendo padre Miguel Antunes (denominado Engenho do Campinho). Esses engenhos podem ter sido incorporados a outras propriedades, recebendo nomes diferentes, sendo também provável que tais proprietários tenham vendido seus engenhos e investido em terras de outras freguesias mais distantes ou menos desenvolvidas ou até em outros negócios. Segundo Mauricio Abreu, era comum a venda de engenhos durante o período colonial, como no caso de Pedro Gago da Câmara, que em 1684 vendeu um engenho em Irajá e ergueu outro onde chamavam de Mato do Taipu163. O Provedor da fazenda Bartolomeu

159 As informações referentes às compras e vendas de terras na freguesia de Irajá encontram-se no banco de dados de Mauricio Abreu sobre a Estrutura Fundiária da cidade do Rio de Janeiro. www.mauricioabreu.com.br 160 Idem 161 Idem 162 FRAGOSO, João. Nobreza principal da terra nas repúblicas de Antigo Regime nos trópicos de base escravista e açucareira: Rio de Janeiro, século XVII a meados do século XVIII. In: FRAGOSO, J., GOUVÊIA, M. F. O Brasil Colonial. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2014, v. 3, p. 208. 163 ABREU, Mauricio de Almeida. Geografia histórica do Rio de Janeiro, vol. 2, 2010, p.133

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Cordovil de Siqueira vendeu um engenho de invocação a Nossa Senhora do Rosário e Santo Antônio a Antonio Pinheiro Maciel, em 1711, com 500 braças de testada e 1.400 de sertão, casa de vivenda, casa de purgar e encaixar, casa de aguardente e refino, senzalas, um forno de fazer farinha com todos os seus cobres e ferramentas, uma capela em que se dizia missa e todas as mais benfeitorias, com 37 escravos de serviço do próprio engenho e 65 bois de roda e carro. Este mesmo engenho tinha sido anos antes de Antonio José Pinheiro Macedo e fora vendido pela viúva do mesmo a Bartolomeu de Siqueira164. No entanto, o provedor continuou mantendo um engenho em Irajá. Avançando mais a nossa análise, passarei a identificar o papel de algumas destas propriedades na produção agrária de Irajá. Para isso, me deterei nos dados apresentados pelo mestre de campo Paes Leme, em 1778, que apresentam informações sobre a produção de açúcar e aguardente e a quantidade de escravos existente em cada um dos doze engenhos apontados por ele (ver Quadro 6).

QUADRO 6. Tabela com o número de engenhos, escravos e a produção anual de açúcar e aguardente, em Irajá, em 1778

Caixas Pipas de Nº Proprietários Engenho de Escravos aguard.te açúcar Dona Anna Maria de Jesus (viúva Engenho 1. 35 37 80 do capitão João Pereira de Lemos) Sacopema Engenho do 2. Luiz Manoel de Oliveira 38 30 68 Porto de Meriti Engenho de 3. Capitão Bento Luiz de Oliveira 40 22 55 Nazareth Doutor – Promotor Francisco 4. - 18 13 50 Cordovil de Siqueira 5. Antônio Correia Pereira - 60 06 40 D. Maria Tereza viúva do Dr. Ignácio de Souza (traz arrendado o Engenho 6. 22 14 40 sarg.mor da cavalaria José Correia Botafogo de Castro) Miguel Antunes (reverendo padre - Engenho do 7. 11 08 40 religioso carmelita) Campinho Engenho 8. Antônio Rodrigues de Paiva 14 08 36 Inhomucú Thereza Maria (Viúva de Antônio Engenho do 9. 50 30 35 de Menezes) Portela 10. Capitão Antônio de Oliveira Durão Engenho dos 18 10 34

164 ABREU, Mauricio de Almeida. Geografia histórica do Rio de Janeiro, vol. 2, 2010, p.133

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Afonsos Braz de Pina - 11. - - -

Juiz da Alfândega Antônio Martins 12. Brito - - - -

FONTE: Relação do Marquês do Lavradio. Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. Relatório Lavradio, 1778, TOMO: LXXVI, 1913, p. 318-320. OBS: A identificação do nome de alguns engenhos foi complementada com as informações da visita pastoral de Monsenhor Pizarro, de 1794.

Das treze propriedades listadas pelo Mestre de Campo, os engenhos de Brás de Pina e o do Juiz da Alfândega, Antônio Martins Brito, não informaram sua produção. O primeiro alegou que faltava lenha, bois e escravos e por isso não estava moendo. Já o segundo, se negou a prestar informações a Fernando Dias Pais Leme e declarou que daria conta de sua produção somente ao Marquês do Lavradio165. Com relação a Brás de Pina, o mesmo era um negociante que já na primeira metade do setecentos possuía um engenho próximo a capela de Nª Sra. da Penha, que seria arrematado em um leilão sete anos depois. O negociante até tentou resgatá-lo no mesmo leilão, mas acabou perdendo para o Bispo D. José Joaquim Justiniano Mascarenhas Castelo Branco, como já foi dito anteriormente. O Quadro 6 apresenta a produção de açúcar e de aguardente e a quantidade de escravos de dez engenhos. No entanto, o período analisado nesta pesquisa foi um momento de transição, de mudança na própria economia que João Fragoso denominou de “economia tardia”, época em que a produção de açucareira começa a crescer no norte fluminense, entrando em decadência no Recôncavo da Guanabara166. Porém, a documentação usada para elaboração do quadro acima nos mostra que mesmo em declínio ainda havia engenhos em Irajá produzindo açúcar e possuindo uma grande escravaria. De acordo com Antonio Carlos Jucá de Sampaio, o engenho não seria só um bem econômico, mas um fator de prestígio e poder político, sinônimo de acesso a escravos167. Isso nos explica o porquê de tantas moendas ainda continuarem a fabricar açúcar e aguardente, mesmo que em pequenas quantidades, como no engenho do Campinho, que produziu no ano da elaboração do relatório onze caixas de açúcar e oito pipas de aguardente.

165 Relação do Marquês do Lavradio. Revista do IHGB. Relatório Lavradio, TOMO: LXXVI, 1913. p. 320. 166 FRAGOSO, João A noção de economia colonial tardia no Rio de Janeiro e as conexões econômicas do Império português: 1790-1820. In: FRAGOSO, J., BICHALHO, M. F. B., GOUVÊA, M. F., Antigo regime nos trópicos. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010, p. 332 e 333. 167 SAMPAIO, Antonio Carlos Jucá. Fluxos e refluxos mercantis: centros, periferias e diversidade regional. In: FRAGOSO, J., GOUVÊIA, M. F. O Brasil Colonial v. 2 – 1º ed. – Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2014, p. 387

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Outras fontes também mostram que mesmo com essa transferência de localidade da produção açucareira continuava a haver pessoas interessadas em ser proprietárias de engenho no Recôncavo, como no caso do juiz da Alfândega, Antonio Marins de Brito, que solicitou a Sua Majestade autorização para comprar o engenho que pertencia a seu falecido tio, o cônego e tesoureiro-mor da catedral do Rio de Janeiro, Luis da Silva Borges de Oliveira. A propriedade ficava localizada no Porto de Irajá. Antonio Marins era testamenteiro do tio e deveria vender alguns bens pertencentes ao testador, para pagamento das dívidas e legados do defunto. A intenção do juiz da Alfândega era comprar o dito engenho por um preço mais baixo do que valia, por isso recorreu a Coroa Portuguesa para obter a licença desejada para realização da compra168. Por esse motivo, acredito que a continuidade da existência de um número considerável de moendas em Irajá não esteja ligada a lucratividade, mas ao próprio status social. Outro fator que nos mostra que a intenção de manter o engenho em funcionamento para garantir os benefícios acarretados por ele é a quantidade de escravos existentes nessas propriedades. Segundo Antonio Carlos Jucá, possuir um engenho possibilitava um maior acesso a mão de obra escrava e o que vemos é que as propriedades acima citadas possuíam grandes escravarias. Isso nos mostra também que estes senhores não só viviam de moer cana, mas também de outras atividades, pois com uma quantidade de cativos tão significativa como as do engenho de Sacopema, com 80 escravos, ou do Porto de Meriti com 68, nos leva a acreditar que havia outras atividades que garantiam a manutenção desses senhores. Um exemplo disso é o que nos mostra o inventário de Dona Ana Maria de Jesus, senhora do Engenho de Sacopema, cuja propriedade possuía em suas terras uma fábrica de anil169. Para tentar entender um pouco como se estruturava a produção de alimentos na região aqui estudada, apresento a tabela abaixo que permite identificar o papel de cada produto plantado em Irajá. A fim de termos uma ideia do significado da sua produção, procuraremos comparar com a de outras freguesias:

168 AHU-RIO DE JANEIRO: caixa 85, doc. 98 Requerimento do Juiz e ouvidor da Alfandega do Rio de Janeiro, Antonio de Marins Brito solicitação ao rei D. José autorização para a arrematação do engenho do porto de Irajá. Caixa 85, doc. 98 169 ARQUIVO NACIONAL DO RIO DE JANEIRO (ANRJ) – Inventário post-mortem de Ana Maria de Jesus, caixa 3636, nº 10, 1795.

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TABELA 1. Produção anual de alimentos nas freguesias do Rio, em ordem decrescente de maiores produtores no geral

PRODUTOS E A SUA QUANTIDADE EM ALQUEIRES

FREGUESIA TOTAL DA PRODUÇÃO Farinha Milho Feijão Arroz Jacutinga 25.000 1.000 1.000 10.000 37.000 Trindade 25.000 1.700 2.200 3.500 32.400 Inhomirim 4.320 24.150 1.900 800 31.170 Iguaçu 10.000 400 400 10.000 20.800 Pilar 16.260 56 177 3.470 19.963 Sto. Ant. de Sá 10.000 500 400 3.500 14.400

Guapimirim 9.000 200 200 2.500 11.900 Maricá 4.501 2.054 2.461 1.100 10.116 Jacarepaguá 2.888 1.579 1.430 281 6.178 Magé 5.200 250 120 570 6.140

Irajá 3.500 850 800 850 6.000 Suruy 3.000 200 60 2.390 5.650 C. Grande 2.500 700 2.040 400 5.640 Inhaúma 2.986 482 587 200 4.255 Meriti 1.000 240 2.300 650 4.190 Eng. Velho 2.000 500 600 300 3.400 Marapicu 150 300 800 1.500 2.750 Itambí 1.500 80 100 500 2.180 Caray - - - - - S. Gonçalo - - - - - Guaratiba - - - - -

TOTAL 141.717 37.405 19.575 43.761 242.446

FONTE: Relatório do Marques do Lavradio Revista IHGB, Tomo LXXVI, 1ª Parte, 1913.

A Tabela 1 é um claro reflexo das transformações econômicas pelas quais o Rio de Janeiro passou durante o século XVIII. Ela nos mostra uma das consequências deixadas pela descoberta do ouro: o aumento da população, que acarretou também o aumento do cultivo de alimentos, fazendo com que a produção alimentícia adquirisse grande importância para a economia local170. Tanto que, quando a produção aurífera começou a diminuir, o

170 RODRIGUES, Ana Paula. Famílias, casas e engenhos: a preservação do patrimônio no Rio de Janeiro (Piedade do Iguaçu e Jacutinga, século XVII-XVIII). Dissertação de mestrado do curso de pós-graduação da UFRRJ – (Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro), 2013, p. 54

79 cultivo de gêneros alimentícios se expandiu171. De acordo com a Tabela 1 vemos que um dos produtos que teve mais investimento foi a farinha. Sua produção seria tão importante que seu cultivo foi incentivado pela Coroa portuguesa através da implantação da lei da mandioca, de 1703, que obrigava todos os senhores de engenho e lavradores de cana a plantar 500 covas de mandioca por escravo172. No entanto, a lei não teve a mesma repercussão no Rio de Janeiro como em outras capitanias da América portuguesa. Tanto que quando a lei foi imposta, o governador do Rio de Janeiro na época, Álvaro da Silveira e Albuquerque, afirmou:

(...) é certo que as mandiocas de que se sustentam, e as que lhes bastam, é muitas vezes sobram, todas se plantam no recôncavo desta mesma cidade e pelos rios acima: Aguaçu, Inhomirim, Morabaí, Magé, Sernambetiba, Guapiaçu, Suruí e Macacu, em que se costumam comumente lavrar mandiocas, de cujas terras são possuidores vários donos, e nelas não há engenhos que prejudiquem as suas plantas e delas trazem a esta cidade farinha em tanta quantidade e abundância que sustenta o povo largamente e de fácil provimento as frotas sem demora, nem detrimento, por serem dilatadas as terras desses rios acima citados173

Alimento básico dos diferentes grupos sociais existentes na América portuguesa, a farinha de mandioca também era usada como moeda de troca no comercio de cativos em Angola174. A Tabela 1 mostra que as freguesias de Jacutinga e Trindade seriam as duas regiões com maior produção de farinha do Recôncavo, produzindo 25.000 alqueires por ano; seguidas por Pilar, com 16.260 alqueires por ano; e Caray, com 13.000 alqueires por ano. Comparada com as demais freguesias listadas acima, Irajá estava em décimo segundo lugar, com uma produção total de 6.000 alqueires por ano, enquanto que em Jacutinga foram produzidos 37.000 alqueires de alimentos por ano. De acordo com Antonio Carlos Jucá, na Bahia havia freguesias especializadas na produção alimentícia175, no caso do Rio de Janeiro vemos que regiões com essa especialidade eram as freguesias iguaçuanas. Isso nos mostra

171 SAMPAIO, Antonio Carlos Jucá. A curva do tempo: as transformações na economia e na sociedade do Estado do Brasil no século XVIII, In: FRAGOSO, J., GOUVÊIA, M. F. O Brasil Colonial v. 3 – 1º ed. – Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2014, p. 319 172 SILVA, Francisco Carlos Teixeira da. A morfologia da escassez: crises de subsistência e política econômica no Brasil Colônia (Salvador e Rio de Janeiro, 1680-1790). Niterói: UFF, 1990. Apud. SAMPAIO, Antonio Carlos Jucá. Fluxo e refluxos mercantis: centros, periferias e diversidade regional, In: FRAGOSO, J., GOUVÊIA, M. F. O Brasil Colonial v. 2 – 1º ed. – Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2014, p. 391 173 AHU-CA, doc. 2672-2673. Consulta do Conselho Ultramarino acerca dos inconvenientes da lei da mandioca, segundo o governador Álvaro da Silveira e Albuquerque (1703). 174 RODRIGUES, Ana Paula. Famílias, casas e engenhos: a preservação do patrimônio no Rio de Janeiro (Piedade do Iguaçu e Jacutinga, século XVII-XVIII). Dissertação de mestrado do curso de pós-graduação da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ), 2013, p. 67. 175 SAMPAIO, Antonio Carlos Jucá. Fluxo e refluxos mercantis: centros, periferias e diversidade regional, 2014, p. 391

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que Irajá também contribuía com o mercado de produção de alimentos, porém este não seria o seu foco principal. Outra observação relevante é a falta de informações sobre as produções de arroz, feijão, milho e farinha das freguesias de Guaratiba, São Gonçalo e Icaraí. Os relatórios feitos pelos mestres de campo dessas regiões não apresentaram o quantitativo produzido desses gêneros individualmente, tendo sido somado com o de outras freguesias. Em relação à freguesia de Guaratiba, o relatório indicava suas produções juntamente com os da freguesia de Itaguaí e quanto à freguesia de São Gonçalo, os dados aparecem juntos com os de Itaipu e São João de Icaraí. Tornando impossível saber a quantidade específica de produção anual desses produtos dentro dessas freguesias176. Em uma época em que o ouro já não estava mais contribuindo para a economia do Rio de Janeiro, vemos que a contribuição de Irajá através do cultivo de alimentos foi bem significativa. No entanto, comparada com outras freguesias, sua produção se demonstrava ser inferior, principalmente com relação à fabricação da farinha de mandioca, cuja produção estava bem abaixo não só das freguesias iguaçuanas, mas também da de Santo Antonio de Sá, Guapimirim e Magé. Todavia, falta-nos verificar a produção de açúcar e sabermos o quanto essas regiões se dedicavam a fabricação desse produto tão importante para a economia da América portuguesa. A Tabela 2 nos dá esse panorama.

Tabela 2. Engenhos, engenhocas e de escravos nas diferentes freguesias, em ordem decrescente de maiores quantidades de escravos

Engenhos de Engenhocas de Pipas de Escravos Caixas de açúcar FREGUESIAS Açúcar aguardente aguardente Nº % Nº % Nº % Nº % Nº % S. Gonçalo 20 17,0% 3 20,0% 910 19,0% 334 26,6% 499 22,0% Irajá 13 11,0% 2 13,0% 478 10,0% 178 14,2% 306 13,6% C. Grande 10 9,0% - - 448 9,4% 74 5,9% 172 8,0% Marapicu 4 3,0% - - 369 8,0% 76 6,0% 152 7,0% Meriti 9 8,0% 2 13,0% 307 6,5% 47 4,0% 107 5,0% Itambí 6 5,0% - - 290 6,1% 12 1,0% 131 6,0% Jacarepaguá 8 7,0% - - 285 6,0% 87 7,0% 116 5,1% Jacutinga 7 6,0% - - 266 5,6% 77 6,1% 163 7,2% Guaratiba 6 5,0% 1 7,0% 260 5,5% 67 5,3% 95 4,2% Sto. Ant. de Sá 8 7,0% - - 220 5,0% 59 5,0% 87 3,8% Inhaúma 4 3,0% - - 186 4,0% 55 4,3% 90 4,0%

176 De acordo com o Relatório do Marques do Lavradio a freguesia% de Guaratiba junto% com a de Itaguaí produziam anualmente: 5.440 de farinha, 850 de feijão, 190 de milho e 3.800 de arroz. Nas freguesias de São Gonçalo, Itaipu e Caray produzem 13.800 de farinha, 2.800 de feijão, 2.161 de milho e 1.150 de arroz.

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Maricá 5 4,0% - - 120 2,5% 57 4,5% 96 4,2% Magé 2 2,0% - - 117 2,4% 18 1,4% 30 1,3% Guapimirim 3 3,0% 1 7,0% 107 2,2% 7 0,5% 52 2,3% Caray 3 3,0% - - 81 1,7% 23 2,0% 54,0 2,4% Iguaçu - - 2 13,0% 80 1,6% 18 1,4% - - Pilar 1 1,0% 3 20,0% 74 1,5% 17 1,3% 40,0 1,8% Inhomirim 3 3,0% - - 72 1,5% 28 2,2% 20,0 0,9% Trindade 1 1,0% 1 7,0% 48 1,0% 15 1,1% 26,0 1,0% Suruy 1 1,0% - - 25 0,5% 2 0,1% 5,0 0,2% Eng. Velho 1 1,0% ------

TOTAL 115 100% 15 100% 4.719 100% 1.252 100% 2.241 100%

FONTE: Relatório do Marques do Lavradio Revista IHGB, Tomo LXXVI, 1ª Parte, 1913.

Os dados desta tabela 2 podem ser vistos como um reflexo das transformações pelas quais o Rio de Janeiro estava passando economicamente. No período em que o relatório do Marques do Lavradio foi elaborado, 1778, a produção açucareira do Recôncavo já sofria com a mudança de localização do foco desta produção. As lavouras de cana do norte fluminense já se destacavam, com um número relativamente grande de engenhos naquela região, mas não é nosso objetivo realizar uma comparação entre o norte fluminense e recôncavo guanabarino. O que importa é identificar que este processo levou as freguesias localizadas no próprio Recôncavo a entrarem em uma relativa decadência, de modo que apenas algumas regiões conseguiram manter sua produção e enfrentar a grande concorrência. É isso que nos mostra a tabela acima. Mesmo tendo seu número de engenhos diminuído – pois, como dissemos anteriormente, a região no final do século XVII possuía 39 engenhos no total e um século depois esse montante estava reduzido a 13 engenhos –, Irajá continuou produzindo em quantidade considerável açúcar, só perdendo para São Gonçalo. A aguardente também foi outro produto que teve seu destaque em Irajá diante das demais freguesias do Recôncavo. Além de ser bebida comum entre a população mais pobre da colônia, também era usada como moeda de troca no tráfico negreiro. Subproduto do açúcar, apresentava grande vantagem frente a outros produtos devido ao baixo custo de fabricação177. Segundo Luis Felipe de Alencastro, sua produção garantia um aumento de 25%

177 FERREIRA, Roquinaldo. Dinâmica do comércio intracolonial: geribitas, panos asiáticos e guerra n o tráfico angolano de escravos (século XVIII). In: FRAGOSO, João; BICALHO, M. Fernanda Baptista; GOUVÊA, M. Fátima. O Antigo Regime nos trópicos: a dinâmica imperial portuguesa (séculos XVI-XVIII). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010, p. 346

82 nos lucros brutos dos engenhos e podia atenuar as perdas no caso de eventuais crises econômicas178. É provável que este tenha sido o motivo pela continuidade do investimento na produção de cachaça em todas as freguesias do Recôncavo. Segundo Roquinaldo Ferreira, durante o século XVII, o Rio de Janeiro era responsável por apenas 12,5% das exportações de geribita para Angola, enquanto a Bahia produzia 61% e Pernambuco 26%. Mas, segundo o autor, durante o século XVIII o Rio de Janeiro se tornou o mais importante fornecedor da bebida para aquela região africana devido ao aumento do controle dos traficantes da praça mercantil carioca sobre o tráfico negreiro em Angola179. Ainda segundo Ferreira, em 1792, com sete litros de geribita era possível adquirir um escravo considerado de excelente qualidade na feira de Kassanje180. Portanto, por meio dessas informações sobre a produção de açúcar e aguardente em Irajá, mesmo diante de uma crise de mudança de foco das lavouras açucareiras do Rio de Janeiro, a região continuou cooperando de forma significativa para a manutenção da economia colonial. Por último, analisemos a escravaria. Antes de começar, é importante lembrar que esta quantidade de cativos apresentada na tabela acima não representava o número total de escravos existentes em cada uma das freguesias indicadas, mas sim a quantidade de escravos pertencentes a cada um dos engenhos citados no relatório do qual foram tiradas as informações. De todas as freguesias indicadas na Tabela 2, com exceção de São Gonçalo, somente Campo Grande se aproximava do quantitativo de Irajá, com 448 escravos. Sabemos que ser dono de muitas terras e de muitos escravos elevava o status social do indivíduo. Por isso, é possível que esse número expressivo de escravos, bem acima das demais freguesias, seja um reflexo da preocupação que os senhores de engenho tinham em manter sua posição social e como alguns senhores de Irajá possuíam também propriedades em Campo Grande. O cuidado que eles tinham em manter sua posição na freguesia de Nossa Senhora da Apresentação deve ter refletido na freguesia de Nossa Senhora do Desterro. Na tabela anterior vimos o quantitativo total do número de escravos existentes nos principais engenhos das freguesias do Recôncavo, mas sabemos que havia lavradores, comerciantes, pessoas com diferentes funções nessas regiões que utilizavam a mão de obra escrava. Por isso, considero necessário conhecermos o quantitativo de escravos que cada uma

178 ALENCASTRO, Luis Felipe de. O trato dos viventes: Formação do Brasil no Atlântico Sul. São Paulo: Companhia da Letras, 2000, p. 40. Apud. FERREIRA, Roquinaldo. Dinâmica do comércio intracolonial: geribitas, panos asiáticos e guerra n o tráfico angolano de escravos (século XVIII) - In: FRAGOSO, João; BICALHO, M. Fernanda Baptista; GOUVÊA, M. Fátima. O Antigo Regime nos trópicos: a dinâmica imperial portuguesa (séculos XVI-XVIII). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010, p. 346. 179 FERREIRA, Roquinaldo. Op Cit., p. 349 e 350. 180 FERREIRA, Roquinaldo. Op Cit., p. 350.

83 das freguesias citadas na Tabela 2 possuía. Para isso, usei como fonte as Memórias Públicas da Cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro e elaborei o Tabela 3.

Tabela 3 - Número de escravos de algumas freguesias do Recôncavo da Guanabara

ESCRAVOS FREGUESIAS HOMENS MULHERES TOTAL

1ª São Gonçalo 2.289 59,0% 1.587 41,0% 3.876 2ª Irajá 1.231 54,9% 1.009 45,0% 2.240 3ª C. Grande 1.154 51,5% 1.011 47,0% 2.165 4ª Jacutinga 1.762 82,4% 376 17,5% 2.138 5ª Pilar 1.099 58,8% 769 41,1% 1.868 6ª Jacarepaguá 1.497 81,4% 342 18,5% 1.839 7ª Guaratiba 969 56,1% 758 43,8% 1.727 8ª Iguaçu 676 55,4% 543 44,5% 1.219 9ª Inhaúma 681 64,2% 379 35,7% 1.060 10ª Meriti 588 60,1% 390 39,8% 978 11ª Marapicu 496 53,9% 423 46,0% 919 12ª Eng. Velho - - - - -

FONTE: Memórias públicas e econômicas da cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro para uso do vice-rei Luiz de Vasconcellos. Por observação curiosa dos anos de 1779 até 1789. In: RIHGB. Tomo XLVII, 1ª parte, 1884, p.27

Ao observarmos o Tabela 3, vemos que não foram incluídos os escravos referentes à freguesia do Engenho Velho. De acordo com o relatório do Marques do Lavradio, essa freguesia, era muito pequena, só possuía um engenho, que não indicava a quantidade de cativos existentes na propriedade181. Já as freguesias de Jacarepaguá, Campo Grande, Pilar do Iguaçu e Jacutinga, ao contrário da de Engenho Velho, indicam uma quantidade grande de escravos, que era bem próxima da de Irajá. Algo que pode ser justificado pela produção de gêneros alimentícios nestas freguesias. Outra observação bastante relevante é sobre a proporção de escravos do sexo feminino na freguesia de Irajá e também nas de Piedade Iguaçu e Campo Grande. De acordo com a listagem, havia em Irajá 2.240 cativos, sendo que 1.009 (45,0%) seriam mulheres e 1.231 (54,9%), de homens, isso mostra que na freguesia de Nª Sra. da Apresentação não havia um significativo desequilíbrio sexual entre os escravos. Segundo Manolo Florentino, de cada dez escravos nos campos fluminenses, seis ou sete eram do sexo masculino182. Mas o que justificaria a grande de

181 Relatório do Marques do Lavradio Revista IHGB, Tomo LXXVI, 1ª Parte, 1913, p. 316 182 FLORENTINO, Manolo. Em costas negras: uma história do tráfico de escravos entre a África e o Rio de Janeiro (séculos XVIII e XIX). São Paulo: Editora UNESP, 2014, p. 55.

84 quantidade de mulheres escravas dentro de Irajá? É possível que isto esteja ligado a antiguidade de algumas escravarias encontradas em alguns engenhos da região, como os de Sacopema e Nazareth, as duas propriedades possuíam uma proporção de escravos do sexo feminino muito próxima dos de cativos do sexo masculino183. Mas, para além disso, o Tabela 3 nos mostrou que Irajá também era responsável pelo maior quantitativo de escravos entre as freguesias citadas no quadro acima, ficando atrás somente de São Gonçalo, assim como na produção de açúcar. Depois de tomarmos conhecimento do grande quantitativo de escravos em Irajá. Considero interessante apresentar a forma de produção de alguns dos gêneros cultivados na região. A importância dessa informação nos ajudará na identificação das causas da maioria das mortes dos cativos desta região, algo que será visto no próximo capitulo.

- Produção do açúcar

Segundo Stuart Schwartz, historiador que trabalhou com a região açucareira da Bahia no período entre 1550 a 1835, o processo de fabricação do açúcar era bastante complexo. Os engenhos costumavam funcionar num período que variava entre 18 a 20 horas por dia. O trabalho começava a partir das 4 horas da manhã e só parava às 10 horas da manhã do dia seguinte. A cana deveria ser cortada durante o dia, seu plantio era feito manualmente e os trabalhos de cultivo eram feitos em turnos. De acordo com o autor, os engenhos baianos funcionavam num período que ia de 270 a 300 dias por ano e, apesar das interrupções com os feriados religiosos, consertos e em momentos de escassez de cana ou madeira, esse número poderia ser reduzido em cerca de um terço. Para Schwartz, o processo de preparação do açúcar poderia ser considerado uma obra de arte por ser o resultado de uma série de procedimentos integrados: cultivo, colheita, moagem, cozimento, depuração e embalagem184. Todas essas etapas poderiam levar alguns cativos à exaustão, mas o momento da colheita poderia causar vários problemas de saúde, devido à queima da cana185.

183 ANRJ. Inventário de Bento Luís de Oliveira Braga, Caixa: 3873, nº 102 e Inventário post-mortem de Ana Maria de Jesus, caixa 3636, nº 10, 1795. 184 Todas as informações referentes ao processo de preparação do açúcar ver SCHWARTZ, Stuart. O Nordeste açucareiro no Brasil colonial. In: FRAGOSO, J., GOUVÊIA, M. F. O Brasil Colonial. v. 2 – 1º ed. – Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2014, p. 353-357 185 MAIA, Paulo; SANTIAGO, Thais, CAMPOS, Leonor e SILVA, Roberto Luis. Doenças que afeta cortadores de cana de açúcar. Revista Cipa, 2010.

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- Produção da aguardente

O processo de produção da aguardente acontecia depois de o açúcar pronto. O melaço, junto coma água de argila que escorria através do orifício que havia na parte inferior das formas e depositado em um vaso acoplado a mesma, era retirado e fervido depois de 7 ou 8 dias de descanso do açúcar. Após esta etapa, ele era colocado em cochos de madeira para fermentar. Não sabemos qual era realmente o tempo estabelecido naquela época para tal processo, mas de acordo com a forma artesanal de produção da cachaça atualmente, o período é de 24 horas. Depois de fermentado o liquido era despejado no alambique para ser destilado e depois de pronto colocado nas pipas186. De acordo com o Quadro 6, os engenhos que mais produziam aguardente eram os de Sacopema, com 37 pipas, o de Meriti e o do Portela, ambos com 30 pipas.

- Cultivo da mandioca

Originária do continente americano e cultivada pelos índios, a mandioca é um arbusto cuja raiz com casca pardacenta e massa branca é importante reserva de amido187. Para seu cultivo não era necessário ter terras férteis, adubação e chuvas regulares. Para se plantar eram feitas valas, onde deveria ser enterrada a “rama”, um pequeno pedaço do galho da planta. Segundo Silva Lisboa, cada escravo era responsável pelo cultivo de cem covas de mandioca por dia188. Depois de colhidas, as raízes eram quebradas e colocadas em cesto e levadas para a casa de farinha.

E para se fazer a farinha destas raízes se lavam primeiro muito bem, e depois, desfeitas a mão, se espremem no tapeti, cuja água não faz mal; depois de bem espremidas desmacam esta massa sobre uma urupema, que é como joeira, por onde se côa o melhor, e ficam os caroços em cima e o pó que se coou lançam-no em um alguidar que está sobre o fogo, aonde se enxuga e coze de maneira que fica dito, e fica como cuscuz, a qual em

186 Todas as informações referentes ao processo de preparação do açúcar ver SCHWARTZ, Stuart. Segredos Internos: engenhos e escravos na sociedade colonial, 1550-1835. São Paulo: Companhia da Letras, 1988, p. 109-112; Cachaça; conflitos e impasses no Brasil colônia (1640-1700). Revista do Grupo de Pesquisa “A escrita no Brasil colonial e suas relações. Acta, Assis, v. 01, 2001. 187 PEDROZA, Manoela. A roça, a farinha e a venda: produção de alimentos, mercado interno e pequenos produtores no Brasil colonial. In: FRAGOSO, J., GOUVÊIA, M. F. O Brasil Colonial v. 2 – 1º ed. – Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2014, p. 404. 188 LISBOA, José da Silva. Cartas ao doutor Domingos Vandelli. Bahia 18 de outobre de 1789, ABNRJ, nº XXXII, 1910.

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quente e em fria é muito boa e assim no sabor como em ser sadia e de boa digestão189

Segundo Manoela Pedroza, o processo de produção da farinha de mandioca não mudou muito com o passar dos anos. Ela aponta que ainda no século XX, as pessoas continuavam utilizando o mesmo processo de fabricação. Assim, a pesquisadora aponta como ela é feita atualmente. Ela é descascada manualmente e lavada por um grupo de 10 a 15 mulheres, depois essas mulheres levam a raiz para roda de ralar, para movimentar o caititu, cilindro de madeira onde passa a mandioca, usado por uma correia de couro para fazer a roda funcionar. Geralmente, são as mulheres as encarregadas de colocar a mandioca no caititu e de regular a pressão da raiz, enquanto dois homens, executando movimentos ritmados, dão o impulso ao rolo. Esse processo é muito perigoso, só podendo ser realizado por homens e mulheres bem fortes. Posteriormente, a mandioca se transforma em uma massa que é embalada em palhas e prensada em caixotes com furos ou em rede feita de cerdas de buriti, para o sumo venenoso escorrer. Depois de prensada, ela vira torrões que são desmanchados e peneirados. A parte grossa é deixada para secar ao sol e depois dada aos animais, a parte fina é lavada e, após seu cozimento, torrada em forno a lenha. A torrefação é feita também por mulheres que mexem a massa com grandes rodos de madeira190. Servida como alimento básico na nutrição dos escravos, a mandioca aos poucos foi tomando lugar na mesa das famílias de diferentes segmentos sociais da América portuguesa. Porém, a produção de lavouras voltadas para plantação de mandioca não só serviu para abastecimento da colônia, mas também como moeda de troca na compra de escravos africanos. Muitos navios que atracavam no porto do Rio de Janeiro vinham buscá-la para usá-la na troca por negros em Angola191. De acordo com relatório do Marquês do Lavradio, apresentado na Tabela 1, Irajá produzia anualmente 3.500 alqueires de farinha de

189 SOUZA, Gabriel Soares de. Tratado descritivo do Brasil em 1587. Primeira edição de 1851, organizada e revisada por Adolfo de Varnhagen. Apud. PEDROZA, Manoela. A roça, a farinha e a venda: produção de alimentos, mercado interno e pequenos produtores no Brasil colonial. In: FRAGOSO, J., GOUVÊIA, M. F. O Brasil Colonial v. 2 – 1º ed. – Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2014, p. 388. 190 Todas as informações referentes ao processo de fabricação da farinha de mandioca ver PEDROZA, Manoela. A roça, a farinha e a venda: produção de alimentos, mercado interno e pequenos produtores no Brasil colonial. In: FRAGOSO, J., GOUVÊIA, M. F. O Brasil Colonial v. 2 – 1º ed. – Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2014, p. 389-390. 191 FRANÇA, Jean Marcel C. (org.) Visões do Rio de Janeiro colonial: antologia de textos, 1531-1800. Rio de Janeiro: UFRJ/José Olimpio, 1999, p. 40. Apud. SAMPAIO, Antônio Carlos Jucá de. Fluxos e refluxos mercantis: centros, periferias e diversidade regional. In: FRAGOSO, J., GOUVÊIA, M. F. O Brasil Colonial v. 2 – 1º ed. – Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2014, p. 394.

87 mandioca, ficando atrás somente das freguesias de Jacutinga, Pilar do Iguaçu e Piedade Iguaçu.

- Cultivo do arroz

Por volta da segunda metade do século XVIII, o Rio de Janeiro começou a passar por algumas mudanças econômicas. A Coroa Portuguesa, representada pela figura do Marquês de Pombal, decretou que a Colônia deveria diversificar sua pauta de exportação, introduzindo novos produtos para serem cultivados na capitania fluminense. Aderido pelo Vice-Rei do Brasil, o Marquês do Lavradio, o governo passou a incentivar a produção de artigos agrícolas que não eram muito comuns nas lavouras fluminenses, entre eles o arroz. Introduzido no Brasil pelos portugueses, não era uma planta de difícil cultivo. Ele deveria ser plantado em lugares alagadiços ou em solo que tivesse a possibilidade de ser irrigado constantemente. O grão demora de 4 a 8 meses para amadurar; no entanto, sua colheita deve ocorrer um pouco antes de seu amadurecimento total. Após ser colhido, o grão é levado para secagem, que é feita em um terreiro e remexido o tempo todo até secar, depois de seco o arroz é ensacado e armazenado. Durante o período colonial, existiam engenhos de pilar arroz, provavelmente construídos a partir do incentivo da produção do grão192. Entretanto, havia alguns produtores que não chegavam a fazer tal trabalho. No século XVIII, foi construída no Rio de Janeiro a primeira fábrica de pilar arroz da América. Os grãos produzidos pelos pequenos lavradores eram vendidos à fábrica, que garantia a compra do produto para ser enviado para Lisboa. O valor pago por cada saca de arroz pequeno era de $640 reis e o do grande $900. Este tipo de negócio garantia o lucro do lavrador e incentivava a produção do grão193. Na Tabela 1, podemos verificar que Irajá produzia anualmente 850 alqueires de arroz por ano. Fazendo uma comparação com as outras freguesias indicadas no mesmo quadro, vemos que Irajá ainda conseguia ficar entre as cinco maiores produtoras de arroz da banda d’aquém do Recôncavo da Guanabara. Como vimos, a produção de alguns gêneros, como o arroz e a cana, apesar de seu cultivo simples, poderia causar alguns problemas de saúde nos escravos. Se não fossem plantadas em áreas alagadiças, as lavouras de arroz deveriam ser irrigadas constantemente,

192 SANTOS, Corsino Medeiros dos. Cultura, indústria e comercio de arroz no Brasil meridional. Lavoura arrozeira. Porto Alegre: Instituto Rio Grandense de arroz, nº 315, p. 7 e 8. 193 As informações referentes a produção de arroz ver: ZEQUINI, Anicleide. O quintal da fábrica: a industrialização pioneira do interior paulista. São Paulo: Annablume, 2004, VALENTIN, Agnaldo. Uma civilização do arroz: agricultura, comércio e subsistência no Vale do Ribeira (1800-1880). Tese de doutorado pelo programa de pós-graduação da (Universidade de São Paulo – USP), São Paulo, 2006.

88 fazendo com que os escravos ficassem por um prolongado tempo dentro d’água, fosse em dias de sol ou de chuva, frio ou calor. A queima da cana para colheita os obrigava a trabalhar envolvidos em grande quantidade de fumaça. Essas atividades prejudicavam em muitas vezes a saúde dos cativos, causando-lhes vários tipos de enfermidades, mas sobre essa questão falaremos no próximo capitulo.

2.2. Rios e portos de Irajá

Para o escoamento das mercadorias produzidas em Irajá o meio mais rápido era através dos rios, pois o caminho por terra ficava mais demorado por ser feito por mulas. Não podemos esquecer que Irajá ficava localizada em uma área pantanosa e, como observou Keith Valéria Barbosa, nos períodos de chuva as estradas da freguesia ficavam intransitáveis, causando prejuízo aos produtores devido ao atraso na entrega dos produtos194. Por isso, esses produtos eram transportados através dos rios que banhavam a freguesia. Eram eles, os rios Meriti, Irajá e Pavuna. De acordo com Fania Fridman, os portos expressavam a alma da cidade. Era do porto do Rio que saíam os produtos que seguiam para abastecimento da própria cidade e o de outras capitanias. Através das lanchas, canoas e faluas, as freguesias localizadas no Recôncavo da Guanabara enviavam seus produtos para o porto da cidade, formando assim a hinterlândia carioca, definida pelas localidades às margens dos trinta e três rios que desaguavam na baía. Segundo ela, a navegação foi o principal meio de deslocamento de produção das freguesias do Recôncavo, alcançadas através de pequenos portos. Este é o caso dos portos existentes em Irajá195. O relatório do Marques do Lavradio indica que na Freguesia de Nossa Senhora da Apresentação estavam localizados os portos: do Juiz da Alfândega, da Fazenda do Dr. Provedor da Fazenda Real, de Merity e o de Irajá, pertencente também ao Doutor da Fazenda Real. Dos quatro portos, somente o de Meriti e o de Irajá suportavam embarcações; os outros dois permitiam a entrada somente de canoas e lanchas, não executando o trabalho de

194 BARBOSA, Keith Valéria de Oliveira. Doenças e cativeiro: um estudo sobre mortalidade e sociabilidade escrava no Rio de Janeiro (1809-1831). Dissertação de mestrado do programa de pós-graduação da Universidade Rural do Rio de Janeiro-UFRRJ, 2010, p. 51. 195 FRIDMAN, Fania. Donos do Rio em nome do rei: uma história fundiária da cidade do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed.; Garamond, 1999, p. 87.

89 embarcação de produtos196. Segundo José Cezar Magalhães, os portos poderiam oferecer múltiplas funções: distribuir produtos, receber produtor adquiridos para o consumo na freguesia e possibilitar o trânsito de pessoas197. Tomando como base o papel de Irajá na economia fluminense, podemos dizer que os portos ali existentes tinham a função principal de distribuição, pois era por eles que se enviavam os produtos alimentícios, o açúcar e a aguardente produzidos pelos engenhos da região e também de algumas freguesias próxima. Segundo Fridman, as produções de tijolo, telhas e madeiras, açúcar e anil fabricados nos Engenhos de , Vargem Grande e , localizados na freguesia de Jacarepaguá, eram levadas por terra até o porto em Irajá e de lá seguia para Baia de Guanabara198. Outro caso dos engenhos localizados em Jacarepaguá é o do general Salvador Correa de Sá, que também precisava levar seus produtos por terra até o porto em Irajá para serem transportados até a cidade do Rio de Janeiro. A presença de mercadorias pertencentes aos engenhos da freguesia de Jacarepaguá pode ter se dado pela proximidade do Porto Irajá com a Baia de Guanabara ou por ser a freguesia de Jacarepaguá banhada somente por um rio, chamado Rio Grande, que não era navegável e desaguava na Grande Lagoa199. Mas mesmo assim, uma parte de Jacarepaguá era banhada pelo mar e lá tinha um porto, o de Sernambetiba200. Talvez, também seja por causa da própria estrutura do Porto de Irajá, algo que veremos mais adiante. Através dos Mapas 2 e 6 foi possível perceber a proximidade entre Irajá e a Baia de Guanabara. O que contribuía de forma significativa para o escoamento mais rápido das mercadorias que chegavam aos portos da freguesia, já que o rio que também se chamava Irajá desaguava na baía da Guanabara. Era através dele que as produções dos engenhos e lavouras da freguesia de Nossa Senhora da Apresentação eram levadas até a cidade. Além disso, suas águas faziam ligação com outros rios como o Meriti, facilitando o acesso a outras freguesias e portos. Segundo Raphael Freitas da Silva, foi devido ao aumento do número de engenhos que fez surgir um entreposto que ficou conhecido como Paço de Irajá, que já no final do século XVI, tinha se confirmado como principal desembarcadouro de produção açucareira da região atualmente conhecida como zona oeste. Nele estava estabelecido um armazém com altos e baixos que ia até a beira do rio, no qual eram depositadas as caixas de açúcar que

196 Relatório de Marquês do Lavradio. Revista do IHGB Tomo LXXVI, 1ª Parte, 1913, p. 320 197 MAGALHÃES, José Cezar de. O porto, fator de expansão da cidade, in: Curso de Geografia da Guanabara, Rio de Janeiro, Fundação IBGE/Instituto de Geografia e Estatística, 1968. Apud. FRIDMAN, Fania. Donos do Rio em nome do Rei: uma história fundiária da cidade do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed.: Garamond, 1999, p. 84. 198 FRIDMAN, Fania. Donos do Rio em nome do Rei, p. 94. 199 PIZARRO E ARAÚJO, José de Souza. O Rio de Janeiro nas visitas pastorais, p. 48. 200 FRIDMAN, Fania. Donos do Rio em nome do Rei, p. 94.

90 seriam depois embarcadas nas lanchas. Possuía também uma carreta onde embarcavam as caixas, umas casas de vivenda adjacentes e um lugar de cobrança de impostos201. Segundo informações apresentadas por documentação da época, o Mosteiro de São Bento, que era proprietário do engenho da Vargem Grande, pagava $80 reis ao “Paço de Irajá” por cada caixa de açúcar que era armazenada e embarcada ali202. Segundo Mauricio Abreu, isso poderia mostrar que a movimentação de carros de boi transportando as mesmas deveria ser constante durante o período de safra, pois essas caixas eram enviadas ao porto logo assim que ficavam prontas para o transporte203. O uso de mão de obra escrava nesse processo também deveria ser constante, tanto para o transporte desses produtos feitos pelos cativos de outros engenhos, como por aqueles que trabalhavam no próprio porto, fazendo o carregamento e transporte dos produtos.

MAPA 9: Mapa dos portos no Rio de Janeiro colonial

FONTE: FRIDMAN, Fania. Donos do Rio em nome do Rei: uma história fundiária da cidade do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro. Jorge Zahar Ed.: Garamond, 1999, p.86

201 SILVA, Rafael de Freitas da. O Rio antes do Rio, Rio de Janeiro: Babilonia Cultura Editorial. 2015. p. 130 202 Cf. AMSBRJ. Códice 1.366, ff. 4, 13v; BN, 4ON, Mss.12, 3, 14, f. 241.Apud. ABREU, Mauricio de Almeida. Geografia histórica do Rio de Janeiro (1502-1700). Rio de Janeiro: Andrea Jakobsson Estúdio e Prefeitura do Município do Rio de Janeiro, vol. 2, 2010, p. 135. 203 ABREU, Mauricio de Almeida. Geografia histórica do Rio de Janeiro, vol. 2, 2010, p.135.

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O mapa 9 nos mostra por meio das numerações de 1 a 10 os principais portos situados na cidade do Rio de Janeiro. Segundo Sérgio Lamarão, foi no século XVIII que esses portos passaram a ser regularmente visitados por navios vindos do Reino devido à descoberta do ouro. Ainda segundo o autor, a mineração estimulou a expansão física e demográfica da cidade do Rio de Janeiro204. Esse impacto também foi sentido nos portos localizados no Recôncavo da Guanabara, e neles estavam incluídos os de Irajá. Ainda observando os portos localizados na cidade do Rio de Janeiro, vemos que antes de chegar a entrada para Irajá, por via fluvial, era preciso passar em frente ao porto de Maria Angu, este estava localizado em Inhaúma, além dele também havia o porto de Inhaúma, ambos pertenciam a Irajá até Inhaúma tornar-se freguesia em 1743205. De acordo com o relatório de Marques do Lavradio, estes dois portos (Maria Angu e Inhaúma), estavam localizados na beira da praia, mas o de Maria Angu estava localizado em uma praia que era banhada diretamente pelas águas da Baia de Guanabara, era um porto que recebia grandes embarcações, canoas e barcos206. Já no caso de Irajá, os portos ocupavam a beira dos rios localizados no interior da freguesia. Além disso, não recebiam grandes embarcações, somente canoas e barcos. No entanto, independente do tipo de embarcação que poderia receber, os portos de Irajá conseguiram prestar seus serviços transportando não somente a produção da própria região, mas também da de outras freguesias. Se compararmos o Mapa 9 com o de número 6, indicado anteriormente, inclusive em seus detalhes, poderemos perceber quanto as vias fluviais que cortavam a freguesia foram importantes para a ligação entre Irajá e a cidade-corte e entre Irajá e outras freguesias da Banda d’aquém do Recôncavo da Guanabara. Através delas, o abastecimento interno se fez. Isso só foi possível pelo número de engenhos que estavam localizadas próximo aos portos encontrados em torno dos rios que banhavam a região. Após conhecermos um pouco sobre os portos localizados na beira dos rios que cortavam Irajá, passamos agora a identificar a população que contribuiu para o desenvolvimento e manutenção da freguesia de Irajá.

204 LAMARÃO, Sérgio Tadeu de Niemeyer. Dos trapiches ao Porto: um estudo sobre a área portuária do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Secretaria Municipal das Culturas, departamento Geral de Documentação e Informação Cultural, Divisão de Editoração, 2006, p. 25 e26. 205 LIMA, Raquel Gomes de. Negócios da terra no rural carioca oitocentista (Freguesia de Inhaúma, Rio de Janeiro, 1830-1864). XXVII Simpósio Nacional de História – ANPUH, 2013. 206 Relatório do Marques do Lavradio Revista IHGB, Tomo LXXVI, 1ª Parte, 1913, p. 318

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2.3. A sociedade que fez a economia de Irajá

Segundo a visita pastoral de 1687, a população da Freguesia de Nossa Senhora da Apresentação de Irajá contava com mais ou menos 1.800 habitantes, distribuídos entre 200 fogos207. Através da tabela abaixo, podemos averiguar o desenvolvimento populacional de Irajá comparando com outras freguesias. Não pretendemos indicar todas as existentes no Recôncavo da Guanabara, mas incluí as pertencentes à banda d’aquém e a de São Gonçalo, localizada na banda d’além, organizando os dados em ordem decrescente.

QUADRO 7: Número de habitantes em algumas freguesias do Recôncavo da Guanabara (1687-1795)

-

TOTAL DE POPULAÇÃO EM

FREGUESIA a) b) c) EM 1687 1779-89 1794-95 COLADA DADA DADA EM ENCOMEN Pilar do Iguaçu 1612 1696 - 3.895 3.026 Jacutinga 1612 1755 - 3.540 2.937 Irajá 1613 1646 1.800 3.496 2.854 São Gonçalo 1629 1646 1.500 6.378 6.100 Jacarepaguá 1660 1664 400 3.869 1.596 C. Grande 1673 1755 313 3.629 2.363 Guaratiba 1676 1755 - 2.961 2.851 Inhaúma 1684 1743 550 1.846 1.374 Piedade de Iguaçu 1699 1755 - 2.182 2.085

FONTE: a) ACMRJ, Série de Visita Pastoral, VP38. Notícias do Bispado do Rio de Janeiro de 1687; b) Memórias públicas e econômicas da cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro para uso do vice-rei Luiz de Vasconcellos. Por observação curiosa dos anos de 1779 até 1789. In: RIHGB. Tomo XLVII, 1ªparte, 1884, p.27; c) ARAÚJO, José de Souza Azevedo Pizarro e. O Rio de Janeiro nas visitas pastorais de Monsenhor Pizarro: inventário da arte sacra fluminense. Rio de Janeiro: INEPAC (volume 1-2), 2008.

No quadro acima – organizado em ordem decrescente de criação da freguesia encomendada – vemos que, em 1687, entre as freguesias do Recôncavo da Guanabara mencionadas na visita pastoral, Irajá era a que possuía a maior população, com 1.800 almas; seguida por São Gonçalo, com 1.500 habitantes. Percebe-se que na coluna relativa a 1687, algumas freguesias nem foram citadas. Cheguei a imaginar que pudesse ter relação com a

207 ARQUIVO DA CURIA METROPOLITANA DO RIO DE JANEIRO (ACMRJ): Série de visitas pastorais, VP38. Notícias do Bispado do Rio de Janeiro de 1687.

93 data de colação da freguesia, mas os dados não conferem, uma vez que há dados para Inhaúma, que foi erigida em freguesia colada no século XVIII, mas não há para outras, como Jacutinga, que também já era freguesia colada neste período. Poderíamos pensar que o marco pudesse ter sido o da instituição da capela curada, mas, nesse caso, duas das três freguesias sem dados populacionais – Nossa Senhora da Piedade de Iguaçu e Santo Antônio de Jacutinga –, que não aparecem na visita pastoral de 1687, já eram antigas paróquias coladas à época desta visita. Ou seja, não dá para saber os motivos para a ausência destes dados. Mas é certo que algumas delas já haviam sido criadas208. Seguindo adiante na análise, identificamos que, em 1779, a população de Irajá cresceu, indo para 3.496 habitantes. No entanto, já não seria mais uma das mais populosas, perdendo para São Gonçalo, que teria se afirmado como a mais habitada tanto no segundo como no terceiro períodos. Da mesma forma que São Gonçalo, outras freguesias apresentaram maior aumento populacional que Irajá, tais como: Pilar, com 3.895; Jacarepaguá, com 3.869; Campo Grande, com 3.629; e Jacutinga, com 3.540. Este aumento populacional está provavelmente ligado primeiramente com a descoberta do ouro e à produção de alimentos, pois Irajá em 1687, era a freguesia que tinha mais habitantes e ao mesmo tempo, de acordo com o gráfico de Mauricio de Abreu, apresentado no início deste capítulo, também possuía o maior número de engenhos. No entanto, vemos que 15 anos depois, a população das mesmas freguesias teria diminuído. Irajá passou a ter 2.854 habitantes, mas acredito que isso não pode ser entendido como reflexo de má produção ou decadência local, pois como vimos no Quadro 5, a freguesia estava com novos engenhos implantados nesta época e, além disso, constava no relatório do Marquês do Lavradio que a região não possuía terras devolutas. Ela estaria toda ocupada e nem um engenho teria diminuído de tamanho209. Além disso, se olharmos o quadro poderemos verificar que todas as freguesias teriam assistido a uma diminuição populacional. Deste modo, ou os dados das visitas pastorais de Pizarro em 1794 não refletiriam a quantidade populacional daquelas paróquias da mesma forma que os presentes no Relatório do Marquês do Lavradio ou efetivamente, toda a região do Recôncavo da Guanabara aqui citada passou por uma diminuição populacional. Situação que pode até ter ocorrido em função não só da crise da

208 Os dados de Mauricio de Abreu são diferentes. Segundo ele, Pilar do Iguaçu foi elevada a freguesia em 1613, Meriti em 1645, Jacutinga em 1657 e Guaratiba em 1676. ABREU, Mauricio de Almeida. Geografia histórica do Rio de Janeiro (1502-1700). Rio de Janeiro: Andrea Jakobsson Estúdio e Prefeitura do Município do Rio de Janeiro, vol. 1, 2010, p. 351. 209 Relação do Marquês do Lavradio. Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. Relatório Lavradio, TOMO: LXXVI, 1913, p. 290-340.

94 mineração como também da emergência da produção açucareira em Campos dos Goytacazes, como já foi aqui mencionado. Segundo Manoela Pedroza, a dinâmica social em Irajá já estava estruturada em torno da família tradicional: as dos senhores de engenho já estabelecidos, que podemos identificar como a nobreza da terra concentrada em seus empreendimentos açucareiros210. Além dessa elite, temos também as famílias dos pequenos e médios lavradores, oficiais mecânicos, comerciantes, brancos pobres, negros alforriados e muitos escravos. Aliás, a maioria da população era cativa. Segundo a relação feita para o Vice-rei Luiz de Vasconcelos em 1779, havia na freguesia 2.240 escravos; o que provavelmente deve ter continuado, mesmo com a diminuição do número da população em 1794. O Quadro 4 mostra que, em 1794, houve uma queda no número de habitantes na freguesia de Irajá e, como já foi dito anteriormente, essa mesma diminuição também pode ter afetado a quantidade de cativos na região. No momento, não sabemos o que motivou essa queda, mas estou buscando explicações para entender a razão dessa diminuição. A abertura do caminho novo também proporcionou a formação de um núcleo de cristãos-novos na freguesia de Irajá, muitos deles mercadores que conseguiram ascender para posição de senhor de engenho. Há quem diga que exerceram as duas funções ao mesmo tempo, de senhor de engenho e mercador. Essas famílias costumavam se casar com outros cristãos-novos e procuravam sempre se estabelecer suas moendas próximas umas das outras; o que garantiria maior sociabilidade com outras famílias marranas211. É o caso das famílias Paredes, de José Pacheco de Azevedo, Antonio Afonso de Oliveira e seu irmão Luis Afonso de Oliveira e Duarte Ramires do Vale, este último tornou-se dono do engenho de Santo Antonio e São José em 1686. Era filho de Manoel do Vale, cujo nome está incluído na listagem dos senhores de engenho que presenciaram a elevação da capela de Nª Sra. da Apresentação em freguesia. As propriedades desses homens estavam todas próximas umas das outras, como mostra o Mapa 8 o engenho dos Afonsos ficava próximo ao do Campinho, local onde estava localizado também um dos engenhos de Agostinho Paredes. Segundo o Banco de Dados de Maurício de Abreu, o auto de medição das terras elaborado pelo capitão Tomé Correa de Alvarenga, menciona que entre o engenho de Nazaré e o Engenho da Cruz ficavam as terras pertencentes a Agostinho Paredes (cristão-novo que

210 PEDROZA, Manoela da Silva. Capitães de bibocas: casamento e compadrios construindo redes sociais originais nos sertões cariocas (Capela de Sacopema, freguesia de Irajá, Rio de Janeiro, Brasil, século XVIII). Revista Topoi, v. 09, nº 17, jul-dez, p. 67-92. 211 ABREU, Mauricio de Almeida. Geografia histórica do Rio de Janeiro, vol. 2, 2010, p. 122

95 teve seus bens confiscados pelo Santo oficio em 1712)212. Num momento posterior, essas terras aparecem como pertencentes a José Correia Ximenes, também cristão-novo. Suas terras ficavam no caminho da Estrada Real, que passava por trás de um campo, chamado de Campo de Irajá, localizado por trás da matriz de Nª Sra. da Apresentação. Essas terras pertenciam até o início do século XVIII a alguns cristãos-novos como Antonio de Barros e o de dona Maria Coutinha. Ao que parece, parte daqueles cristãos-novos foi denunciada à Inquisição e, após sua prisão, condenação e punição, que também incluía o confisco dos bens, tiveram suas propriedades arrematadas em leilão. Alguns destes dados apresentados por Maurício de Abreu e outros fornecidos por Anderson Oliveira213 sugerem a existência de uma comunidade de cristãos-novos por detrás da matriz de Nossa Senhora da Apresentação em Irajá, entre fins do século XVII e início do XVIII. Terras essas que teriam sido adquiridas por sacerdotes que viviam na região ou para lá se deslocaram, através de leilões promovidos pelo Santo Ofício. Exemplo disso é que, segundo escritura datada de 21/02/1716, as terras pertencentes a José Correia Ximenes foram compradas pelo reverendo vigário de Irajá João de Barcelos Machado e, com seu falecimento, foram leiloadas pelo Juízo Eclesiástico e arrematadas pelo reverendo vigário Francisco de Araújo Macedo e depois vendidas a seu pai, Antonio de Araújo Macedo e a segunda fora arrendada por um certo tempo pelo vigário João de Barcelos e alguns anos depois elas aparecem como sendo de propriedade do capitão Inácio Rangel de Abreu e sendo vendidas para o alferes Jorge de Macedo Castro, em 1718. No ano de 1745, essa mesma propriedade foi vendida para o mestre de campo João Aires de Aguirre.214 Os primeiros anos de descoberta do ouro também ocasionaram a chegada de várias pessoas vindas do Reino e de outras freguesias a Irajá. Muitos eram homens sem nenhuma patente e terras. Vinham tentar a vida nas regiões auríferas. Muitos acabaram casando com moças pobres pertencentes a famílias de lavradores. Este é o caso das filhas de Manoel Nunes de Souza, português e lavrador do Engenho de Sacopema. As cinco filhas desse lavrador se casaram com estrangeiros na capela de São João Batista em Sacopema215.

212 Todas as documentações usadas neste parágrafo encontram-se no banco de dados de Mauricio Abreu sobre a Estrutura Fundiária da cidade do Rio de Janeiro. www.mauricioabreu.com.br 213 OLIVEIRA, Anderson José Machado de. Os Processos de Habilitação Sacerdotal dos Homens de Cor: perspectivas metodológicas para uma História Social do catolicismo na América Portuguesa. In: João Fragoso; Roberto Guedes; Antonio Carlos Jucá de Sampaio (Org.). Arquivos Paroquiais e História Social na América Lusa: métodos e técnicas de pesquisa na reinvenção de um corpus documental. Rio de Janeiro: Mauad X, 2014, p. 329-362. 214 Todas as documentações usadas neste parágrafo encontram-se no banco de dados de Mauricio Abreu sobre a Estrutura Fundiária da cidade do Rio de Janeiro. www.mauricioabreu.com.br 215 PEDROZA, Manoela da Silva. Engenhocas e moral, p. 36-38.

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Segundo Manoela Pedroza, esses casamentos realizados nas capelas localizadas nos engenhos seriam uma forma de constituir relações de clientelagem. De acordo com ela, apadrinhar esses casais era uma forma de os senhores ampliarem suas redes de clientes e com isso seu status social. Já para os noivos, o interesse estaria em se relacionar com pessoas de prestígio e, através disso, conseguir certos benefícios216. Mas, para além dessas famílias formadas por pessoas vindas de fora de Irajá, seja de Portugal ou de outras freguesias, haviam também os escravos e alguns forros que viviam nos engenhos de Irajá. Esses também formaram suas famílias e tiveram como padrinhos seus senhores ou os proprietários de outros engenhos, que através do apadrinhamento conseguiram angariar certos benefícios diante dos demais escravos da região. Segundo Sheila de Castro Faria, a permissão da união entre cativos do mesmo engenho geraria a formação de uma organização de trabalho e consequentemente estabilidade dentro da fazenda. Portanto, os grandes proprietários não só permitiriam a união entre os escravos da fazenda como também incentivavam o matrimônio legalizado217. Este é o caso de Efigênia Angola, cativa africana que se casou com o cabra João Batista, carpinteiro e dono de uma plantação de cana no Engenho de Sacopema. Este foi o único casamento entre escravos realizado na capela de São João Batista, localizada no próprio engenho onde residiam os dois cativos218. No próximo capítulo voltarei a este caso. Desta forma, vemos que tanto entre os livres quanto entre os escravos, havia aqueles que buscavam uma ascensão social através da manutenção do relacionamento com pessoas ligadas à elite senhorial. Diante das informações até aqui apresentadas sobre como seria a sociedade da freguesia de Irajá, formada por brancos livres e pobres, negros alforriados, além de pessoas ligadas à nobreza da terra, considero importante nos perguntar sobre o perfil econômico dessa população. Desta forma, para responder a essa questão usei como fontes os registros de óbitos das pessoas livres que viveram e faleceram em Irajá, entre os anos de 1730 a 1787. Tratam-se de dois livros com um total de 677 registros, dentre os quais somente 99 (14,6%) moradores fizeram testamento. O testamento era uma forma de o fiel católico acertar suas contas com Deus e com a sociedade. Era determinação eclesiástica usá-lo como forma de preparo para morte, um meio de ajuda para obtenção da salvação da alma219. Era nele que o

216 PEDROZA, Manoela da Silva. Engenhocas e moral, p. 36-38. 217 FARIA, Sheila de Castro. A colônia em movimento: fortuna e família no cotidiano colonial. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1998, p. 333. 218 FRAGOSO, João. Efigênia Angola, Francisca Muniz forra parda, seus parceiros e senhores: freguesias rurais do Rio de Janeiro, século XVIII. Uma contribuição metodológica para a história colonial. Revista Topoi, v. 11, nº 21, jul-dez. 2010, p. 74-106. 219 RODRIGUES, Claudia. Nas fronteiras do além, p. 39

97 indivíduo, além da demonstração de fé, também expressava a sua riqueza e seu status social, através das vestes mortuárias, do local de sepultamento, do cortejo fúnebre, das esmolas ofertadas aos pobres, a parentes e as irmandades, a qual estava associado. Por serem obrigados a cumprirem com todas essas obrigações relacionadas no testamento é que considero esta fonte como uma importante aliada para a identificação do perfil da população de Irajá, pois a maior parte dos que testavam era formada por aqueles que tinham o que deixar; ou seja, quem tinha bens materiais para apresentar e dividir entre seus familiares ou usá-los como esmola para a igreja. Do total de 677 óbitos transcritos, 532 (78,5%) não haviam feito testamento e as justificativas dadas no assentamento paroquial para isso eram: “por ser pobre”, “por não ter de que” ou simplesmente diziam “não fez testamento”. Dos 99 testamentos encontrados, algumas senhoras tinham título de “dona” e, entre os homens, as patentes de capitão, alferes, padres, tenentes e vigário. No entanto, o que chamou atenção na pesquisa com os óbitos de livres foi que não encontrei nenhum dos senhores de engenho citados no relatório do Marques do Lavradio de 1778 e nem da visita de Monsenhor Pizarro de 1794. Provavelmente preferiram ser enterrados em igrejas ou conventos da cidade220. Ao trabalhar com a freguesia de Jacarepaguá entre os séculos XVI a XVIII, Vitor Luiz Alvares Oliveira utilizou um total de 735 óbitos para identificar o perfil econômico da região e concluiu que a freguesia de Nª Sra. do Loreto era uma região periférica com uma sociedade desigual, por apresentar uma diferença muito grande na divisão das riquezas entre os fregueses livres. Acredito que esse argumento pode ser usado também para Irajá, pois se tratava de uma região com número considerável de pessoas livres que foram declaradas no óbito “pobres ou muito pobres”. Essas observações sobre o quantitativo de pessoas pobres e ao mesmo tempo a presença de pessoas ilustres região me fazem cogitar que a região apresentaria também uma elite que não era só local, mas compunha a nobreza da terra da cidade do Rio de Janeiro221. Através das informações dadas sobre o desenvolvimento socioeconômico da Freguesia de Irajá, foi possível entender como ela se tornou uma das mais prósperas do

220 A análise foi feita a partir dos registros de óbitos dos livres de Irajá, não tive acesso aos testamentos a nenhum dos testamentos dos senhores de engenho citados nos relatórios do Marques do Lavradio e a visita de Monsenhor Pizarro. 221 Sobre a nobreza principal da terra ver os trabalhos de João Fragoso: Nobreza principal da terra nas repúblicas de Antigo Regime nos trópicos de base escravista e açucareira: Rio de Janeiro, século XVII a meados do século XVIII. In: FRAGOSO, J., GOUVÊIA, M. F. O Brasil Colonial v. 3 – 1º ed. – Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2014 - Fidalgos e parentes de pretos: notas sobre a nobreza principal da terra do Rio de Janeiro (1600-1750). Conquistadores e negociantes: História das elites no Antigo Regime nos trópicos. América portuguesa, séculos XVI a XVIII. In: FRAGOSO, J., ALMEIDA, C. M. C., SAMPAIO, A. C. J. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007.

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Recôncavo da Guanabara e como foi importante para o abastecimento e prosperidade da capitania do Rio de Janeiro. Suas lavouras de arroz, feijão, milho e mandioca contribuíram para manutenção da população da cidade e também de outras capitanias. Seus rios colaboraram com o escoamento das produções das freguesias vizinhas. Sua proximidade com a baia de Guanabara e por ser uma das primeiras freguesias no percurso para as Minas, através do Caminho Novo, incentivou a vinda de homens com bens suficientes para a implantação de engenhos, ampliando a produção de açúcar na região no final do século XVII e, consequentemente, o aumento do número de escravos vindos de diversas partes da África. A presença de pessoas ilustres como “o descobridor das minas”, Garcia Rodrigues Paes, o responsável pela abertura do caminho novo e capitão mor da entrada e descobrimento das minas de esmeralda, cargo mais importante na época222, ajudaram na formação de uma ideia de que possuir um engenho em Irajá era importante, pois a elite fluminense tinha ali investido muito de seus bens. A forma de produção do açúcar, aguardente, farinha de mandioca e arroz também nos indica o modo pelo qual foi feito uso da mão de obra escrava na freguesia. Mesmo tendo um modo de cultivo aparentemente simples, a produção desses bens exigia muito do trabalho e atenção do cativo; o que poderia ocasionar possíveis acidentes ou até a morte. Diante disso, quais deveriam ser os cuidados dispensados aos escravos dos engenhos de Irajá? Qual era a relação entre essa produção, a morte e o morrer dos escravos naquela freguesia? Está são algumas das questões que serão trabalhadas no próximo capitulo.

222 DEMETRIO, Denise Vieira. Senhores e governadores: Arthur de Sá e Menezes e Martin Correia Vasques – c. 1697 – c. 1702. Tese de doutorado pelo programa de pós-graduação pela (Universidade Federal Fluminense – UFF). 103 a 130.

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Capitulo 3

Os escravos são as mãos e os pés do senhor do engenho, porque sem eles no Brasil não é possível fazer, conservar e aumentar fazenda, nem ter engenho corrente. E do modo, com que se há com eles, depende tê-los bons, ou maus para o serviço.

No capítulo IX de seu livro, o padre Andre João Antonil usa do argumento acima para explicar a necessidade e a importância da mão de obra escrava para manutenção dos engenhos. Era deles a obrigação de fazer com que as plantações se desenvolvessem e que houvesse uma produção que levasse a conservação da propriedade. Todavia, a forma como eram tratados acabava levando à inserção constante de novos cativos nas propriedades existentes em toda a América portuguesa. Doenças, acidentes de trabalho e maus tratos eram alguns dos motivos responsáveis pelo alto índice de mortalidade entre os escravos223. Desde o século XVI, o tráfico de almas entre África e Brasil seria o responsável pela entrada constante de escravos na colônia e a fácil substituição da mão-de-obra. Não se sabe o número exato de escravos que desembarcaram no porto do Rio de Janeiro, porém, de acordo com o trabalho de Manolo Florentino, o intervalo de 1796 a 1808 aportaram 278 navios negreiros no Rio, numa média de 21 embarcações por ano224. Segundo o pesquisador, foi a partir de 1730 que houve um aumento de 50% no volume de importações de escravos através do porto do Rio de Janeiro, em relação às décadas de 1710 e 1720, alcançando a marca anual de 16.600 africanos. Todavia, muitos desses cativos já chegavam à cidade com a saúde totalmente debilitada devido aos maus tratos, as condições de higiene nos navios, a superlotação das embarcações, a precariedade da alimentação e a falta de água. Com um

223 Sobre esta questão ver KARASH, Mary C., A vida dos escravos no Rio de Janeiro ((1808-1850). São Paulo: Companhia das letras, 1987[2000]; BARBOZA, Keith Valéria de Oliveira. Doenças e cativeiro: um estudo sobre a mortalidade e sociabilidades escrava no Rio de Janeiro, 1809-1831. Dissertação de mestrado pelo curso de pós-graduação da Universidade Rural do Rio de Janeiro, 2010; EUGENIO, Alisson. Lágrimas de sangue: a saúde dos escravos no Brasil da época de Palmares à abolição. 1º edição. São Paulo: Alameda, 2016. 224 FLORENTINO, Manolo. Em costas negras: uma história do tráfico negreiro de escravos entre a África e o Rio de Janeiro (século XVIII e XIX). São Paulo: editora Unesp, 2014, p. 45.

100 ambiente completamente favorável à proliferação de doenças, o resultado era de um desembarque de pessoas enfraquecidas, enfermas, quase mortas ou já mortas225. As viagens nos negreiros costumavam demorar cerca de um mês e meio226, muitas vezes os traficantes percorriam vários portos africanos para conseguirem encher o porão dos navios com escravos227. Segundo Alisson Eugênio, enquanto a viagem durava, as “mercadorias vivas” ficavam amontoadas nos porões, onde a ventilação era mínima, tornando o ar insalubre; com quase nenhum espaço para mobilidade; com água e alimentos muitas vezes de má qualidade. Eram vestidos com as mesmas vestimentas usadas quando foram entregues às caravanas dos comboieiros na primeira parte do tráfico228 e com elas chegavam aos portos brasileiros. Desta forma, doenças como disenteria, malária, febre amarela, escorbuto e varíola, tinham nesses ambientes um prato cheiro para proliferação. De acordo com Manolo Florentino, os negreiros funcionariam como uma via de duplo sentido, levando e trazendo da África enfermidades típicas da América e Europa229. Antes da criação do Mercado do Valongo, na cidade do Rio de Janeiro, em 1769, a comercialização dos escravos acontecia na Rua Direita, como podemos verificar nos mapas 10 e 11.

225 Sobre as condições de saúde dos escravos que desembarcavam dos navios negreiros no Rio de Janeiro ver PEREIRA, Júlio César Medeiros da Silva, A flor da terra: o cemitério dos pretos novos no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Garamond: IPHAN, 2007 e EUGENIO, Alisson. Lágrimas de sangue: a saúde dos escravos no Brasil da época de Palmares á abolição. 1º edição. São Paulo: Alameda, 2016. 226 De acordo com Manolo Florentino, uma viagem entre as áreas do Congo-Angola até o Rio de Janeiro poderia durar entre 33 a 40 dias. FLORENTINO, Manolo. Tráfico, cativeiro e liberdade: Rio de Janeiro, séculos XVII-XIX. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005, p. 154. 227 RODRIGUES, Jaime. Arquitetura naval: imagens, textos e possibilidades de descrições dos navios negreiros. In. FLORENTINO, Manolo. Tráfico, cativeiro e liberdade – Rio de Janeiro, séculos XVII- XIX. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005, p.110 228 EUGENIO, Alisson. Lágrimas de sangue, p. 145 e 146. 229 EUGENIO, Alisson. Lágrimas de sangue, p. 153

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MAPA 10. Localização da Rua Direita: primeiro local de compra e venda de escravos da cidade do Rio de Janeiro.

FONTE: Mapa da cidade do Rio de Janeiro em 1760. Imagem disponível no site: HTTP:// literaturaeriodejaneiro.blogspot.com.br. Acesso no dia 07/11/2017.

MAPA 11. Localização do Valongo: segundo local de comercialização de escravos da cidade do Rio de Janeiro.

FONTE: Mapa da cidade do Rio de Janeiro em 1760. Imagem disponível no site: HTTP:// literaturaeriodejaneiro.blogspot.com.br. Acesso no dia 07/11/2017.

Atualmente denominada Primeiro de Março, a antiga rua Direita ficava localizada em uma região de grande movimentação, onde estavam abrigados

102 importantes setores da administração pública: a Mesa de Bem comum (depois Junta do comércio), o Palácio dos Governadores, os armazéns e a moradia dos revendedores dos escravos novos. Além disso, ela também ficava próxima ao cais da Alfândega, local onde os escravos desembarcavam na cidade230. Era nos armazéns localizados na Rua Direita que os escravos doentes eram comprados por pequenos comerciantes que tratavam da saúde desses cativos para depois revendê-los. Com a transferência do mercado para o Valongo, em 1769, por ordem do Marques do Lavradio, os cativos doentes não deveriam ir direto para os barracões de venda sem antes passar por uma inspeção médica:

Cada navio que chegava ao porto do Rio carregado de escravos deveria primeiro ser vistoriado pelo médico da Saúde; caso se constatasse haver doentes, estes deveriam ser enviados para a quarentena em uma das ilhas da baía de Guanabara; após a sua liberação, deviam desembarcar na Alfândega, a fim de serem registrados, pagarem as taxas etc..231

A quarentena seria um período de oito dias onde os escravos doentes recebiam alguns cuidados, por vezes recebiam uma muda de roupa e tinham as chagas tratadas232. Com o término do período de observação e já aparentemente melhores, os cativos eram levados para o Valongo para serem vendidos. No entanto, mesmo com esse cuidado, alguns escravos acabavam sendo vendidos portando algum tipo de doença. Este é o caso da varíola, conhecida na época como “bexiga”, que tinha um período de incubação do vírus de 7 a 17 dias. Após isso, ela se apresentava com mais clareza: febre baixa, erupções avermelhadas pelo corpo que depois se transformavam em bolhas, causando dores e uma coceira intensa; o contato de qualquer parte do corpo contaminada com os olhos causava cegueira233. Após serem vendidos, alguns cativos eram obrigados a enfrentar uma longa jornada para o interior do Rio de Janeiro em direção ao destino final e esse longo

230 HONORATO, Claudio de Paula. Valongo: o mercado de escravos do Rio de Janeiro, 1758 a 1831. Dissertação de Mestrado pelo curso de pós-graduação pela Universidade Federal Fluminense (UFF), 2008, p. 67 231 CAVALCANTE, Nireu Oliveira. O comercio de escravos novos no Rio setencentista. In. FLORENTINO, Manolo. Tráfico, cativeiro e liberdade – Rio de Janeiro, séculos XVII-XIX. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005, p.45 232 PEREIRA, Júlio César Medeiros da Silva. A flor da terra: o cemitério dos pretos novos no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Garamond: IPHAN, 2007, p. 75. 233 PEREIRA, Júlio César Medeiros da Silva, 2007. p. 103.

103 percurso também poderia ceifar a vida de muitos. De acordo com Pedro Carvalho de Mello, um traficante brasileiro poderia perder parte considerável de sua escravaria devido ao longo percurso que se fazia para as áreas interioranas234. Os caminhos que levavam à Irajá também poderiam ceifar muitas vidas escravas. Segundo Keith Valéria Barboza, as condições das estradas que levavam até a freguesia de Nossa Senhora da Apresentação e seguiam em direção às minas eram bastante precárias, praticamente intransitáveis nos períodos de chuva; o que dificultava a comercialização de mercadorias, provocando o prolongamento das viagens e aumentando o risco do aparecimento de doenças endêmicas235. De acordo com Friedrich Von Weech, um viajante alemão que esteve no Rio de Janeiro no século XIX,

Essa falta de caminhos transitáveis, o estado completamente deplorável das estradas públicas, cujo descuido é tão grande, que em períodos de chuva os pobres animais de carga que levam para a capital gêneros de primeira necessidade, são vistos afundando em lama apenas a mil passos desta (...)236

Apesar das dificuldades encontradas nos caminhos que ligavam as áreas urbanas ao Recôncavo e suas várias freguesias, o trânsito nas principais estradas deveria ser bastante intenso no século XVIII, assim como deveria ser intensa a circulação de doenças infecto contagiosas e de escravos falecendo devido à dura caminhada237. Este é o caso dos escravos do capitão João Francisco Junqueira, de Minas Gerais, que teve dois escravos enterrados no cemitério da Capela de Sacopema, pois tinham falecido na região de Irajá no meio da viagem para as minas. Os cativos faziam parte de uma compra feita pelo capitão na cidade e seriam vendidos nas minas238. Isso demonstra que se não morresse por doença, o desgaste físico poderia acabar sendo o responsável por mortes no trajeto para o destino final dos cativos.

234 MELLO, Pedro Carvalho de. Estimativa da longevidade de escravos no Brasil na segunda metade do século XIX. Estudos Econômicos, v.13, n.1, 1983. Apud. FLORENTINO, Manolo. Em costas negra: uma história do tráfico negreiro de escravos entre a África e o Rio de Janeiro (século XVIII e XIX). São Paulo: editora Unesp, 2014, p. 157. 235 BARBOZA, Keith Valéria de Oliveira. Doenças e cativeiro: um estudo sobre a mortalidade e sociabilidades escrava no Rio de Janeiro, 1809-1831. Dissertação de mestrado pelo curso de pós- graduação da Universidade Rural do Rio de Janeiro, 2010, p. 41 236 VON WEECH, Friedrich. Agricultura e comércio do Brasil no sistema colonial. São Paulo: Martins Fontes, 1992, p. 50 237 EUGENIO, Alisson. Lágrimas de sangue, p. 151 238 ACMRJ/www.familysearch.org. Registro de óbitos de escravos da Freguesia de Nª Sra. da Apresentação de Irajá – Livro 1794-1809, imagem 266.

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Como já dissemos no capítulo anterior, na época aqui estudada, a distância referida entre Irajá e a cidade do Rio era de seis léguas, onde uma légua durante o período colonial era o equivalente atualmente a 6.600m, o que corresponde a aproximadamente 40km239. Os escravos que foram comprados por moradores da freguesia tiveram que percorrer esta longa distância, às vezes até mais, dependendo da localização da residência de seu futuro senhor. No entanto, quem eram esses homens, mulheres ou crianças que foram forçados a passar o resto de suas vidas em terras brasileiras. Esse questionamento nos leva a tentar identificar a escravaria existente nos mais diversos engenhos localizados na freguesia de Nossa Senhora da Apresentação.

3.1. Os escravos de Irajá

Para elaboração desta pesquisa usou-se os Registros Paroquiais de óbitos de escravos da Freguesia de Nossa Senhora da Apresentação de Irajá, pertencentes ao acervo da Cúria Metropolitana do Rio de Janeiro e digitalizados no site dos mórmons, “Familysearch”240. Este tipo de documentação tem ajudado nos últimos anos a muitos pesquisadores brasileiros da História Social a desvendarem questões até então obscuras sobre a sociedade colonial da América portuguesa. Responsável por registrar, de acordo com a Igreja Católica, os momentos vitais da vida do fiel cristão – batismo, casamento e morte –, os registros paroquiais nos possibilitam entender o cotidiano das diferentes categorias sociais existentes na colônia: brancos, pretos, mestiços, livres ou escravos, pobres ou ricos. Portanto, este tipo de documentação possibilita a interpretação das atitudes ligadas ao catolicismo de praticamente todos os setores da sociedade. Por ser um registro individual, além de indicar nominalmente cada indivíduo, também expõe determinadas peculiaridades pessoais em cada um desses eventos vitais, identificando família, crenças religiosas, status social. Com essas informações, os pesquisadores têm conseguido compreender questões sobre exposição de crianças, relações familiares entre os escravos, doenças, epidemias, natalidade e mortalidade. Além dos dados sobre mortandade entre os escravos, esta fonte também possibilita identificar a escravaria

239 Costa, Iraci del Nero da. Pesos e medidas no período colonial brasileiro: denominções e relações. Núcleo de Estudos em História Demográfica (NEHD); Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade; Universidade de São Paulo (USP). Boletim de História Demográfica, 04/1994. 240 Disponível em: https://www.familysearch.org. Acessado em 01/2015.

105 pertencente a alguns dos engenhos existentes na freguesia de Irajá que foram analisados no capítulo anterior. Por ser um tipo de documento redigido exclusivamente pelo vigário da paróquia ou seu coadjutor, estes eram responsáveis por anotar as informações apresentadas pelos familiares ou conhecidos do falecido. Ao que parece, devia ser do próprio pároco a decisão do que realmente seria necessário escrever. Apesar da Igreja oferecer modelos específicos de redação dos registros paroquiais – como se verifica na legislação eclesiástica da época expressa nas Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia, extensiva a toda a América portuguesa a partir de 1720 –, a falta de zelo de alguns sacerdotes, era um dos grandes problemas declarados pelos visitadores enviados pela hierarquia católica para fiscalizar o funcionamento das paróquias e o estado da respectiva igreja matriz, das capelas particulares dos engenhos, prestar informações sobre as irmandades existentes nas freguesias, etc. Este costuma ser o caso dos assentos de óbitos dos escravos. Pesquisadores que trabalham com este tipo de documentação para diferentes freguesias no período escravista apontam o quanto são restritas as informações sobre o morto cativo241. Mas, para a freguesia de Irajá este não foi um problema, pois a documentação encontrada para esta região estava praticamente em perfeitas condições e possuía uma riqueza de informações; o que proporcionou a oportunidade de conhecer detalhes importantes sobre o momento derradeiro de sua escravaria; e é com o auxílio desta documentação que iniciamos a análise sobre a morte e o morrer dos cativos de Irajá. Um dos primeiros aspectos que é considerável de destacar é quanto à procedência dos escravos que faleceram em Nossa Senhora da Apresentação do Irajá. Para esta pesquisa foram coletados 4.080 assentos relativos a três livros de óbitos que englobam os anos de 1730 a 1781, 1781 a 1794 e 1794 a 1808. Deste total, 2.607

241 Iamara Viana ao pesquisar sobre a existência de uma relação de hierarquia entre livres e cativos na região de Vassouras entre 1840 a 1880, apontou o problema da restrição de informações alegando que os registros dos livres estavam de acordo com que estava estabelecido por lei eclesiástica. Ver dissertação: Morte Escrava e Relações de Poder em Vassouras (1840-1880): hierarquias raciais, sociais e simbolismo, 2008. Thiago Reis em um trabalho também para região de Vassoura no século XIX, 1865-1888, diz que os livros de óbitos seguiam um sistema cronológico de datação de assentos, mas esta regra não era seguida para os registros dos escravos, pois o mesmo apontou que nas fontes analisadas por ele encontrou óbitos redigidos 10 ou até 50 anos depois do falecimento do cativo. Assim, Thiago Reis em sua pesquisa acaba por concorda com Iamara Viana, o registro dos livres seguia a legislação eclesiástica e a dos escravos não. Ver dissertação: Morte e escravidão: padrões de morte da população escrava de Vassouras (1865-1888), 2009. O estudo de Natalia Gonçalves, que pesquisou a freguesia de São Francisco Xavier de Itaguaí, entre 1828 a 1850, aponta como responsável por essas restrições os próprios párocos. Ela considerou que os padres eram responsáveis pela escrita dos documentos e assim constituindo verdadeiros filtros de informações. Ver trabalho A “Arte de Bem Morrer” entre os escravos: um estudo de caso (Itaguaí 1828-1850), 2010.

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(63,8%) apresentavam a procedência dos escravos e 1.473 (36,1%) não davam nenhuma informação sobre de quais regiões provinham os cativos cujas mortes foram ali registradas. A tabela 3 nos apresenta as etnias dos africanos que viveram em Irajá e tiveram sua morte registrada no livro paroquial. No entanto, por termos encontrado as mais diversificadas etnias na região optamos por somente incluir aquelas que foram citadas mais de dez vezes. O critério de organização desta tabela é o de ordem decrescente das procedências mais citadas. Em amarelo, destaco a origem dos que nasceram na própria América portuguesa.

TABELA 4. Procedência dos escravos de Irajá (1730 a 1808)

ETNIAS Nº %

Crioulo 988 38,0% Angola 449 17,2% Guiné 317 12,1% Benguela 278 10,6% Congo 97 3,7% Ganguela 76 2,9% Robolo (Rebolo) 71 2,7% Mina 67 2,6% Cabra 42 1,6% Mahumbe 32 1,2% Casange 25 1,0% Monjolo 19 0,7% Cabunda 18 0,7% Cambinda 12 0,4% Luanda 13 0,5% Songo 12 0,4% Cabo Verde 10 0,3% Quisamã 08 0,3% Camundongo 04 0,1% Outras procedências 69 2,6% TOTAL 2.607 100% Fonte: Livros de registros de óbitos dos escravos da Freguesia de Nª Sra. da Apresentação de Irajá (1730-1778,1778-1794, 1794-1809)

Como se pode perceber na última célula da tabela, colocamos “outras procedências”242 para indicar as etnias africanas que foram pouco encontradas nos três

242 Aruana, Bacia, Bambomboila, massangano, molumbo, mondongo, baca, bamca, bambambuila, fonja, mofunga, mangangana, mambonboiola, mazia, Moçambique, mondobé, Mouro da África, quilengua, tarambondo, Zuissaman, ambundo, ambaci, manicongo.

107 livros de óbitos pesquisados. Pela análise dos dados podemos verificar que a maioria dos escravos que faleceram em Irajá eram procedentes da África Central, totalizando 34,4%: 449 (17,2%) angolanos; 278 (10,6%) benguelas; 97 (3,7%) Congo; 76 (2,9%) Ganguelas; etc. Mas também havia os nascidos na própria colônia, 988 (38,0%) cativos crioulos e 42 (1,6%) identificados como cabras e mulatos. Estes últimos índices demonstram que a quantidade dos nascidos na colônia era bastante inferior, comparada com a quantidade dos africanos. Outra etnia que encontrada de forma recorrente nesses registros foi o Gentio de Guiné num total de 317 (12,1%), cuja presença foi mais predominante entre 1730 a 1750, período que apresentou um índice de 241 (41,5%) registros, conforme podemos verificar na tabela 5:

Tabela 5 - Etnias/procedências dos escravos falecidos em Irajá entre 1730-1750

ANO TOTAL GUINÉ ETNIAS OUTRAS OUTRAS SEM REF. SEM CRIOULO GENTIO DA DA GENTIO 1730-1735 95 39,0% 19 38,0% - - 52 18,0% 166 29,0% 1736-1740 111 46,0% 13 26,0% 3 75,0% 39 14,0% 166 29,0% 1741-1745 33 14,0% 7 14,0% - - 89 31,0% 129 22,0% 1746-1750 2 1,0% 11 22,0% 1 25,0% 105 37,0% 119 20,0%

TOTAL 241 100% 50 100% 04 100% 285 100% 580 100,0%

Fonte: Livros de registros de óbitos dos escravos da Freguesia de Nª Sra. da Apresentação de Irajá (1730-1778,1778-1794, 1794-1809)

De acordo com James Sweet, no início do século XVII, o termo “Gentio da Guiné” seria usado para designar qualquer escravo africano, independente do porto de procedência243. Segundo Mariza Soares, os cronistas do século XIV, a partir dos relatos dos navegadores, descreveram a extensão da Guiné começando do Senegal e indo até a Etiópia. Com a chegada dos portugueses em terras congolesas e angolanas, a Guiné aumentaria seu território, abrangendo a atual Costa Ocidental da África, incluindo assim a Costa da Mina, Cabo Verde e também parte do Centro-Ocidental, que incluem Angola, o Congo e Benguela.244 Durante o século XVI, a palavra Guiné adquire novo

243 SWEET, James H. Recriar África: cultura, parentesco e religião no mundo Afro-Português (1441- 1770). Lisboa: Edição 70. 2007, p. 36 244 SOARES, Mariza de Carvalho. Devotos da cor. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000, p. 42-48.

108 sentido, passando o termo a ser usado para designar a região de onde os comerciantes traficavam escravos para o Brasil, trazendo, assim, uma generalização para identificação dos cativos africanos245. De acordo com James Sweet, foi somente por volta de 1600 que começou a surgir na documentação da época a referência sobre os angolanos246. Para tentarmos entender melhor as explicações dadas sobre a extensão da região do que os navegantes identificavam como sendo Guiné, o mapa 12 foi elaborado.

245 SOARES, Mariza de Carvalho. Devotos da cor. Rio de Janeiro: civilização Brasileira, 2000, p. 50 246 SWEET, James H. Recriar África: cultura, parentesco e religião no mundo Afro-Português (1441- 1770). Lisboa: Edição 70. 2007, p. 36

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MAPA 12. Nações e etnias africanas no Rio de Janeiro

ALTA GUINÉ

GUINÉ

Cabo-Verde

BAIXA GUINÉ

MINA

ÁFRICA CENTRAL

ANGOLA

Cassange ÁFRICA ORIENTAL MOÇAMBIQUE Manicongo

Songo

Benguela

Ganguela

Cabinda (Quibinda)

Mabanga

Malemba

Congo

FONTE: SWEET, James H. Recriar África, p. 37; KARASH, Mary C., A vida dos escravos no Rio de Janeiro, p. 45-66.

Mariza Soares também afirma que até a primeira metade do século XVIII a maioria dos escravos africanos que aportaram no Rio de Janeiro eram provenientes da

110 região da Guiné e que até o final dessa primeira fase do setecentos, esse contingente de cativos começou a diminuir, dando lugar aos angolas247. O que podemos verificar é que, para Irajá isso não foi diferente, pois a análise apresentada acima, na Tabela 5, mostra que já na década de 1740 o número de gentios da Guiné diminuiu muito, de 111 (46%) cativos falecidos entre os anos de 1736 a 1740, passou para 33 (14%) entre os anos de 1741 a 1745; e depois de 1750 a quantidade de óbitos de escravos da Guiné reduziu mais ainda, sendo somente encontrados dois registros; e assim começando a aparecer óbitos de cativos de outras etnias. A Tabela 5 também nos mostra que poucos crioulos faleceram na região, 50 (8,6%). É possível que parte dos registros que não possuem referência seja de crioulos. Porém, é importante nos atermos que dentre esses escravos crioulos estavam também os cativos pardos que, segundo argumentação de João Fragoso248, se constituíam numa minoria entre os cativos, formando uma espécie de “elite das senzalas”. Mas também temos que lembrar que, dos 580 registros colhidos dentro do período discutido neste momento, 285 (49%) não informam cor ou nação do cativo falecido, o que nos impede de sabermos se houve ou não mais escravos pardos ou crioulos que viveram em Irajá, sem contar as etnias africanas. Portanto, o que podemos tirar de conclusão sobre esta questão é que assim como na cidade do Rio de Janeiro e em outras freguesias do Recôncavo da Guanabara, o número de cativos africanos seria bem maior do que os de crioulos. Apesar de vermos que os primeiros vinte anos de escritura dos assentamentos dos óbitos de escravos – pelos párocos e seus coadjutores – de Irajá, e foram utilizados nesta pesquisa, apresentarem o uso de mão de obra cativa proveniente da região generalizada como sendo “da Guiné”, como vimos nos anos posteriores a esse período outras nações foram citadas nos documentos. Esta diversidade de etnias acarretou a construção de determinadas características relacionadas às visões da época sobre as “nações”. Muitos viajantes que estiveram no Brasil no século XIX e os próprios senhores de escravos fizeram várias observações sobre as “qualidades” e os “defeitos” dos cativos do Rio de Janeiro. De acordo com Mary Karash, os escravos provenientes da região do Congo eram vistos no Rio de Janeiro como os melhores

247 SOARES, Mariza de Carvalho. Mina, Angola e Guiné: nomes d’África no Rio de Janeiro setecentista. Revista Tempo, vol. 03 – nº 06, Dez. 1998. 248 FRAGOSO, João Luis. Efigência Angola, Francisca Muniz forra parda, seus parceiros e senhores: freguesias rurais do Rio de Janeiro, século XVIII. Uma contribuição metodológica para a história colonial. Revista Topoi, v. 11, nº21, jul-dez. 2010.

111 cativos devido a sua habilidade com a agricultura, as artes e ofícios e no trabalho doméstico; as mulheres tinham a reputação de serem trabalhadeiras. Possuíam também a fama de serem orgulhosos e preservadores de suas tradições249. Os angolas eram tidos como “excelentes” escravos, devido a sua condição física e também por serem habilidosos nos trabalhos de mecânico especializado. Os minas eram conhecidos como orgulhosos, indômitos e corajosos, mas ao mesmo tempo eram considerados incapazes de se unirem aos outros escravos, bem como sua “hostilidade mortal em relação às outras raças”. Os Monjolos eram reconhecidos por suas escarificações faciais, tinham a fama de astutos e corajosos, inclinados a revoltas e a resistência, amantes da liberdade, orgulhosos e teimosos, mas eram bons escravos se fossem bem tratados250. Porém, é importante lembrar que a nação/procedência de identificação dos escravos africanos nem sempre correspondia àquela a qual eles originalmente pertenciam. Sabemos que alguns desses nomes eram referentes ao porto de embarque dos escravos. Mary Karash afirma que identificar a verdadeira etnia dos escravos é tarefa difícil devido a sua grande diversidade251. Desta forma, escravos identificados como angolas ou minas nem sempre eram realmente provenientes de Angola ou da Costa da Mina, mas de regiões interioranas da África com etnias completamente diferentes. Após conhecermos a procedência desses escravos, partimos para as relações mantidas entre eles no cativeiro. De acordo com Robert Slenes, os africanos que vieram para o Brasil lutaram para organizar suas vidas na medida do possível. Desta forma, a comunidade escrava seria uma das maneiras usadas por eles para conseguirem resistir às agruras da escravidão. Segundo Carlos Engemann, a capacidade de se organizar e se posicionar de forma coletiva seria o definidor desta comunidade; porém a família seria o elemento mais importante dentre as estratégias usadas pelos cativos252. Essa relação de unidade formada a partir da família, também estava baseada nas próprias tradições religiosas, pois estas também representavam a possibilidade da posse de uma casa individual permitindo, assim, a transmissão de crenças e tradições. John Thornton também afirma que muitos proprietários procuravam obter escravos da mesma nação e incentivavam o casamento de indivíduos da mesma procedência, situação que serviu de base para que muitos elementos da cultura africana fossem compartilhados,

249 KARASH, Mary C., A vida dos escravos no Rio de Janeiro, p.55 250 Essas características apontadas por Karash partem de observações feitas por viajantes e pelos próprios senhores de escravo. Karash, p. 54-64. 251 KARASH, Mary. A vida dos escravos no Rio de Janeiro, p. 42. 252 ENGEMANN, Carlos. De laços e de nós. Rio de Janeiro: editora Apicuri, 2007, p. 152

112 perdurassem e se desenvolvessem nas Américas, sendo transmitidos para as gerações futuras253. Hebe de Matos aponta que este ambiente comunitário seria responsável pela preservação de grande parte da herança cultural africana254. No entanto, Mattos fala que essa relação comunitária somente aconteceria através do tempo, e, assim sendo mais comum em meio às escravarias mais antigas255. Jones Freire, afirma que as experiências dos cativos africanos e seu legado cultural influenciaram fortemente as comunidades escravas. Segundo ele, os traços de herança africana, constantemente renovados pelo tráfico, se fizeram sentir cotidianamente entre os escravos, porém isso só foi possível devido ao casamento e outras atitudes tomadas pelos cativos em busca de um espaço de autonomia256. Desta forma, se um dos alicerces da comunidade cativa seria a família formada a partir de seu legado cultural africano, vemos que em Irajá ela estava presente nos seus engenhos, que apresentam núcleos familiares formados em sua maioria por cativos provenientes da África, pois como vimos, o número de escravos africanos era muito maior que de crioulos e que a procedência era em sua maioria da África central. Do total de óbitos colhidos para o período analisado, 697 (17%) eram registros de escravos que morreram sendo casados e viúvos. Mesmo que não tenha sido um índice muito grande, indica que esta situação não estava ausente na região. Um exemplo disso é o casal de escravos Efigênia Angola e o cabra José Batista, cativos do Engenho de Sacopema e analisados por João Fragoso. Ele era carpinteiro e tinha plantação de cana no engenho de seu senhor, portanto integrante da elite da senzala de Sacopema. Efigenia ao casar-se com José foi acolhida pela família do marido e passou a fazer parte da elite escrava daquele engenho257. Para identificar o número de cativos casados e solteiros que faleceram em Irajá foi elaborada a tabela 6.

253 THORNTON, John. A África e os africanos na formação do mundo atlântico (1400-1800). Rio de Janeiro: Elsevier, 2004, p. 263-269 254 MATTOS, Hebe. Das cores do silêncio: os significados da liberdade no Sudeste escravista (Brasil, século XIX). Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2013, p. 153 255 MATTOS, Hebe. Das cores do silêncio, op. cit. p. 143 256 FREIRE, Jones. Família, parentesco espiritual e estabilidade familiar entre cativos pertencentes a grandes posses de Minas Gerais – século XIX. Revista Afro-Ásia, 2012, p. 09 e 10. 257 FRAGOSO, João Luis. Efigência Angola, Francisca Muniz forra parda, seus parceiros e senhores: freguesias rurais do Rio de Janeiro, século XVIII. Uma contribuição metodológica para a história colonial. Revista Topoi, v. 11, nº21, jul-dez., 2010, p. 77

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Tabela 6. Estado matrimonial dos cativos de Irajá ESTADO HOMENS MULHERES TOTAL MATRIMONIAL Casados 327 26,6% 224 28,5% 551 27,4% Solteiros 830 67,8% 482 61,5% 1.312 65,3% Viúvos 68 5,6% 78 10,0% 146 7,2% TOTAL 1.225 100% 784 100% 2.009 100%

FONTE: Livros de registros de óbitos dos escravos da freguesia de Irajá: 1730-1781/1777- 1794/1794-1809.

A maior parte da escravaria de Irajá era formada por homens e mulheres solteiros 1.312 (65,3%). No entanto, os homens eram maioria 830 (67,8%), enquanto as mulheres eram 482 (61,5%). Apesar de não terem constituído a maioria, o percentual de 27,4% de casados representou quase um terço do total. O que não é desprezível e demonstra que havia um índice de casamento escravo na paróquia de Irajá, que deve ser considerado, embora fosse de um grupo reduzido. Tal redução sugere a existência de um grupo seleto entre os escravos da região que poderá reunir os cativos em relação aos quais poderemos observar certa diferenciação entre os demais. Estar casado era importante, pois este tipo de relação garantia certos privilégios não só materiais, mas também sociais. O matrimonio poderia gerar um estado social que diferenciava a experiência do cativeiro. Hebe de Matos abordou o caso da família de um casal de escravos, Francisco e Generosa, em uma fazenda de café em Paraíba do Sul, no ano de 1867, cuja matriarca fora assassinada por Antonio, um escravo recém-chegado, que tinha a intenção de casar-se com uma das filhas do casal, mas que teve seu pedido recusado pelos pais da moça. A partir deste caso, Mattos destacou o quanto o matrimônio era importante dentro da comunidade escrava. Segundo ela, o casamento seria uma ponte essencial entre o mundo coletivo das senzalas para o familiar, que era distinto, separado. Isto, segundo a pesquisadora, contribuía para a criação de experiências distintas de cativeiro, o que significa que o casamento aproximava o cativo do universo da liberdade. Neste sentido, a pesquisadora destacou a importância que a mulher cativa ocupava dentro do ambiente da escravidão e na inserção da comunidade escrava.

A tentativa da passagem Antonio do mundo coletivo e masculino das senzalas para a familiar (...) ilustra que o tempo, aliado à recorrência

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do tráfico, criava experiências distintas de cativeiro, mesmo nas grandes fazendas. A mulher cativa era a ponte entre essas experiências. (...) Em seu casamento com Generosa, Francisco conquistara, como no mundo da liberdade, o capital social básico para se diferenciar da experiência mais comum do cativeiro. A capacidade de Antonio de reunir pequenos pecúlios nada significava se não conseguisse também uma mulher258.

Robert Slenes também apontou que a experiência de casados e solteiros eram bastante diferentes e aponta que a união matrimonial tinha como privilégio a garantia do controle sobre o espaço de moradia; o que significava obter um lugar onde junto com o cônjuge e os filhos seria possível a “recriação” de rituais de convivência familiar na hora de deitar e levantar259. Mas para, além disso, havia também os benefícios de ordem psicológica e emocional como o próprio consolo de uma “mão amiga” na luta para enfrentar as privações e punições comuns ao universo escravo260. Outro trabalho que corrobora essa argumentação é o de Manolo Florentino e José Roberto Góes, para quem a formação de famílias no cativeiro, em especial nos grandes plantéis do Rio de Janeiro entre 1790 e 1850, poderia garantir ao senhor maior estabilização e pacificação da escravaria, frente às tensões internas entre os cativos, principalmente diante da incorporação dos recém-chegados do tráfico261. De acordo com Sheila de Castro, o casamento escravo seria bastante comum durante os séculos XVII e XVIII, em Campos dos Goytacazes. Os maiores impedimentos seriam provenientes de alguns dos próprios senhores que proibiam a união legalizada de cativos de donos diferentes262. Este dado pode ser confirmado pelos poucos casos – quatro casais - que, encontrei para Irajá que pertenciam a senhores diferentes.

258 MATTOS, Hebe. Das cores do silêncio. Op. Cit, p. 145 259 SLENES, Robert. Na senzala uma flor: esperanças e recordações na formação da família escrava, Brasil Sudeste, século XIX. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999, p. 180 260 SLENES, Robert. Na senzala uma flor. Op. Cit, p. 149 261 FLORENTINO, Manolo e GÓES, Jose Roberto. A paz das senzalas: famílias escravas e tráfico atlântico. Rio de Janeiro, c. 1790-c.1850. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1997. 262 FARIA, Sheila de Castro. A colônia em movimento: fortuna e família no cotidiano colonial. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1998, p.314

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Quadro 8. Casais de cativos pertencentes a senhores diferentes dentro da escravaria de Irajá

Antonio Maria

Francisco João Pereira Pereira Viana de Lemos Cipriano Esperança

Antonio Correia Francisco da Silva Pereira Ignácia Genazio

José Valente Sarg. Mor Francisco Sanches de Castilho Tortuzo Pascoa

João Velho Joseph Barreto Furtado FONTE: Livros de registros de óbitos dos escravos da freguesia de Irajá: 1730-1781.

De acordo com Stuart Schwartz, havia uma política não escrita, mas amplamente praticada pelos senhores de escravos que restringia o universo social do cativo, confinando-o quando possível ao perímetro do engenho, fazenda de cana ou unidade escravista, limitando desta forma as oportunidades de formação de famílias entre os cativos263. Esta política, segundo o historiador, era amplamente praticada especialmente em pequenas propriedades264. A atitude de proibir o casamento entre cativos de donos diferentes seria uma dessas regras. Segundo o autor, esse tipo de união poderia dar origem a sérios problemas, tais como: direito de propriedade sobre o cativo, separação forçada do casal, residências diferentes265. Ao analisar a questão das relações conjugais na região de São João Del Rei, entre os séculos XVIII e XIX, Silva Maria Jardim Brügger também atentou para mesma questão do impedimento imposto pelos proprietários sobre o casamento entre cativos de senhores diferentes, alegando que tal prática não seria comum somente para a região das minas, mas também para outras

263 SCHWARTZ, Stuart. Segredos Internos: engenhos e escravos na sociedade colonial, 1550-1835. São Paulo: Editora Companhia das letras, 1998, p. 313 264 SCHWARTZ, Stuart. Segredos Internos. Op. Cit. p. 313 265 SCHWARTZ, Stuart. Segredos Internos. Op, cit. p. 313

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áreas da colônia266. No entanto, as Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia autorizava o casamento entre escravos e proibia a venda daqueles que fossem casados diante da Igreja.

Conforme o direito divino e humano, os escravos e escravas podem casar com outras pessoas cativas, ou livres, e seus senhores lhes não podem impedir o matrimônio, nem o uso dele em tempo e lugar conveniente, nem por esse respeito os podem tratar pior, nem vender para outros lugares remotos, para onde o outro, por ser cativo ou por ter outro justo impedimento, o não possa seguir, e fazendo o contrário pecam mortalmente, e tomam sobre suas consciências as culpas de seus escravos, que por este temor se deixam muitas vezes estar e permanecer em estado de condenação. Pelo que lhe mandamos e encarregamos muito que não ponham impedimentos a seus escravos para se casarem, nem com ameaças e mau tratamento lhes encontrem o uso do matrimônio em tempo e lugar conveniente, nem depois de casados os vendam para partes remotas de fora, para onde suas mulheres, por serem escravas ou terem outro impedimento legítimo, os não possam seguir. E declaramos que, posto que casem, ficam escravos como de antes eram, e obrigados a todo o serviço de seu senhor267

As Constituições Primeiras declarava que os escravos poderiam se casar com outros cativos e também com pessoas livres, mas como bem observou Maria do Carmo Pires, a legislação eclesiástica não esclarecia alguns pontos importantes, como por exemplo, a união entre escravos de diferentes senhores268. Portanto, vemos que os proprietários de escravos que viessem a proibir o casamento de cativos de senhores diferentes poderiam estar ou não infringindo as determinações eclesiásticas; pois, como vimos à lei não era totalmente clara sobre esta questão, o que deixava margem para que os próprios senhores estabelecessem suas regras. É muito possível que a escravaria de Irajá já conhecesse as regras de proibição de matrimônio entre escravos de senhores diferentes, por isso não tenhamos encontrado entre os registros de óbito mais casais de cativos pertencentes a senhores diferentes. Muito embora seja importante frisar que os registros de casamento da região sejam os mais adequados para se confirmar essa hipótese, já que seria possível que

266 BRÜGGER, Silva Maria Jardim. Legitimidade e comportamentos conjugais (São João Del Rei séculos XVIII e primeira metade do XIX). Anais de Resumos e CDRoom. XII Encontro Nacional de Estudos Populacionais, Belo. Horizonte: ABEP, 2000. Disponível em: www.abep.org.br, acessado em 08/11/2017. 267 Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia. TÍTULO LXXI, nº 303. 268 PIRES, Maria do Carmo. Juízes e infratores: o tribunal eclesiástico do Bispado de Mariana 1748-1800. São Paulo: Annablume, Belo Horizonte: PPGH/UFMG; FAPEMIG (Coleção Olhares)

117 escravos de senhores diferentes fossem casados, mas nenhum ou os dois cônjuges tenham morrido no intervalo coberto pelos dois livros analisados, referentes aos anos entre 1781 a 1808. Mas, mesmo sendo poucos, é importante considerar que ocorreram casos em que os senhores não puderam impedir. Podemos supor que estes escravos fossem de senhores diferentes, mas moradores do mesmo engenho, um sendo escravo de um lavrador e outro escravo do proprietário do engenho, mas infelizmente não podemos confirmar esta informação, pois a documentação não nos permite. Como no caso do casal Antonio e Maria, o marido era escravo de Francisco Pereira Viana e a mulher pertencia ao senhor do engenho Sacopema, o capitão João Pereira de Lemos. De Ignácia e Gervazio, a mulher escrava de José Valente e o marido propriedade do sargento mor Francisco Sanches de Castilho e por último o de Tortuzo e Pascoa, ele escravo do capitão João Velho Barreto e ela cativa de Joseph Furtado. Dos quatro casais, pelo menos três deles tinham um dos cônjuges pertencente a um senhor de engenho enquanto que o proprietário do outro cativo não apresentava nenhuma referência sobre sua situação social. Além disso, ao verificar se estes senhores (sem referência sobre seu status social) teriam enterrado outros cativos, identifiquei que sepultaram poucos escravos ao longo dos anos que foram citados nos óbitos trabalhados nesta pesquisa. Uma quantidade que variou de dois a oito cativos, diferente dos dois senhores de engenhos, João Pereira de Lemos e João Velho Barreto, que sepultaram mais de vinte escravos. Outra questão sobre esses casais que chamou muita atenção foi quanto ao local onde o cônjuge falecido foi sepultado. Dos quatro, somente um foi inumado no adro, os outros três foram enterrados dentro da igreja, sendo que um deles pertencia à Irmandade do Rosário. Sabemos que os locais de sepultamento poderiam dizer muito sobre o status social de um indivíduo e que o interior das igrejas era somente para aqueles que poderiam pagar. Por esse motivo é que podemos também acreditar que esses escravos poderiam ter tido prestígio para com o senhor e isso pode ter ocasionado na permissão de se casar com um cativo pertencente a outro senhor. A reprodução interna da escravaria nos leva a outra questão sobre os cativos de Irajá. De acordo com os óbitos da região, 705 crianças faleceram em Irajá pelos mais diversos motivos. Termos como “inocente”, “anjo” e “párvulo” eram alguns dos usados

118 pelos párocos para identificar crianças com idade até sete anos269. Estas eram filhos de relações licitas e ilícitas, e isto se tornava uma marca na vida da criança. A Tabela 7 nos mostra o número de filhos naturais e legítimos em Irajá.

Tabela 7. Legitimidade dos filhos de escravos, em Irajá, segundo os registros de óbito

MENINAS MENINOS TOTAL LEGITIMIDADE Legítimos 94 32,0% 149 36,4% 243 35,0% Naturais 155 52,0% 200 49,0% 355 50,0% Sem Referência 47 16,0% 60 14,6% 107 15,0%

TOTAL 296 100,0% 409 100,0% 705 100% FONTE: Livros de registros de óbitos dos escravos da freguesia de Irajá: 1730-1781/1777- 1794/1794-1809.

Podemos ver que, dentre os inocentes que faleceram em Irajá e tiveram referência sobre a legitimidade, 355 (50,0%) eram filhos naturais; ou seja, frutos de relações consideradas ilícitas pela instituição eclesiástica católica; enquanto que 243 (35%) nasceram de um relacionamento legalizado pela Igreja. Entre os filhos naturais, a maioria era de meninos, num total de 200 (56,3%), enquanto 155 (43,7%) eram meninas. Com os legítimos, a maioria também era de meninos 149 (61,3%) e as meninas totalizaram 94 (38,7%). Uma das justificativas para o grande número de filhos naturais falecidos está ligada ao fato de muitos desses inocentes serem filhos de mães solteiras e, como vimos na tabela anterior, os solteiros eram a maioria da população escrava. Mas mesmo sendo suas respectivas mães solteiras, essas crianças não eram menosprezadas; pelo contrário, eram acolhidas pela comunidade escrava, principalmente se os pais falecessem. De acordo com Roberto Góes e Manolo Florentino:

o menino crioulo sobrevivente não ficava só. A consolá-lo, existia uma rede de relações sociais escravas, em especial as do tipo parental. Muito possivelmente ele teria irmãos, um outro tio, primos, além de, por vezes, avós, que poderiam viver dentro e fora de seu plantel... Um padrinho (e muito frequentemente, uma madrinha), que

269 ARIÈS, Phillippe. História Social da criança e da família. Rio de Janeiro: Editora Guanabara, 1978; BERNARDES, Elisabeth Lannes. Imagens da criança entre a colônia e o império. ANPUH – XXIII Simpósio Nacional de História – Londrina, 2005, p. 02 e 03.

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com certeza, os pais já lhe haviam providenciado logo no nascimento270

Os cuidados e a proteção disponibilizados às crianças cativas órfãs, nesse ambiente onde estavam estabelecidas numa rede de relações do tipo parental, como destacaram Florentino e Góes, não poderiam ser somente demonstradas por meio do acolhimento à criança e da disponibilização dos mesmos cuidados que a mãe ou o pai lhe poderiam oferecer, mas ele também poderia ser manifestado até mesmo na morte do inocente. Ou seja, os ritos fúnebres adotados poderiam demonstrar o quanto aquela criança teria sido importante para o grupo social no qual estava inserida. Como no caso da inocente Luciana de seis anos271, cujo óbito não constava o nome dos pais; o que nos leva a acreditar que poderiam já ser falecidos ou já tivessem sido vendidos. Mas o que chama atenção neste assento é que a menina foi sepultada em uma cova da irmandade do Santíssimo Sacramento, uma associação religiosa de pessoas livres ligadas à elite. O que isto poderia significar? Essa criança poderia ou não, ser filha bastarda de um senhor; algo que, infelizmente, não temos como responder. No entanto, podemos verificar que, com sua morte, ainda recebeu o cuidado de ser sepultada em um lugar privilegiado que garantia que sua alma pudesse ser sempre lembrada nas orações dos fiéis frequentadores da matriz de Irajá. Assim, vemos que a escravaria que residiu e faleceu nos engenhos e pequenas lavouras de Irajá foi formada primeiramente pela mão de obra escrava proveniente das regiões da África Ocidental, Alta e Baixa Guiné e posteriormente passando para os africanos da África Central, conforme as demais freguesias do Rio de Janeiro. Era uma escravaria na qual cerca de um terço dos cativos tinham preocupação com a união matrimonial dentro dos moldes católicos e que esta preocupação levou a formação de uma comunidade escrava baseada em relações de solidariedade que fora responsável pelo acolhimento de muitas mães solteiras e crianças órfãs cativas.

270 FLORENTINO, Manolo e Góes, José Roberto. Morfologia da infância escrava: Rio de Janeiro, séculos XVIII e XIX. In. FLORENTINO, Manolo. Tráfico, cativeiro e liberdade (Rio de Janeiro, séculos XVII-XIX). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005, p. 214-215. 271 WWW.Familysearch.org – Registro de óbitos dos escravos da Freguesia de Nª Sª da Apresentação de Irajá, Livro de 1794-1809, Imagem179

120

3.2. Mortalidade escrava em Irajá

Com o reconhecimento da escravaria existente em Irajá voltamos para a questão da mortalidade. Como já foi dito, muitos escravos desembarcavam dos navios muito debilitados e acabavam recebendo tratamento precário para dar a possibilidade aos negociantes de os venderem o mais rápido possível. Porém, muitas vezes alguns escravos acabavam apresentando boa aparência, dando a entender que haviam recuperado a saúde, mas na verdade poderiam estar portando o vírus de alguma doença infecto contagiosa. Keith Valéria Barboza aponta que ao discutirmos sobre as questões da mortalidade escrava devemos considerar outros desdobramentos sobre a migração forçada dos escravos para América portuguesa. Ela entende que o impacto migratório forçado trouxe importantes consequências conjunturais e demográficas, mas é necessário dar relevo, aos aspectos ambientais, às condições sanitárias, aos regimes de trabalho, às dietas alimentares, aos vestuários, entre outros, para explicar as dinâmicas de morbidade e mortalidade numa sociedade escravista272. Algumas dessas questões levantadas por Barboza se relacionarão à mortalidade dos escravos de Irajá e que serão abordados neste momento. Do total de 4.080 óbitos de nossa amostragem, somente 711 (17,4%) apresentavam a causa do falecimento. Antes de prosseguir, é importante mencionar que no século XVIII não era comum a referência a causa mortis nem para os brancos e/ou livres. Sheila de Castro Faria também já havia sinalizado para este mesmo fenômeno, identificando o início das referências das causa-mortis nos registros paroquiais de óbito para a área rural de Campos dos Goytacazes apenas a partir da década de 1840273. Algo que, também de acordo com Claudia Rodrigues, só ocorreu nos registros paroquiais da cidade-Corte do Rio de Janeiro por volta das décadas de 1830 e 1840, quando o discurso médico sobre doença se faz presente na sociedade e também nos registros paroquiais. Até esse momento, o que aparece nos assentamentos de Irajá são referências a assassinatos, acidentes e mais sintomas do que propriamente doenças – como, por

272 BARBOZA, Keith Valéria. Doenças e escravidão: novas dimensões de experiência negra no Brasil na primeira metade dos oitocentos, 2009, p. 05 273 FARIA, Sheila Siqueira de Castro. Família e morte entre escravos. XI Encontro Nacional de Estudos Populacionais da Associação Brasileira de Estudos Populacionais [ABEP]. Caxambu, MG. Belo Horizonte: ABEP; 1998, p. 127. Disponível em : http://www.abep.org.br/publicacoes/index.php/anais/article/view/887/852 Acesso em 10/05/2017.

121 exemplo: “morrer de tosse” e/ou por vomitar sangue e não de tuberculose – com os termos do discurso médico científico que conheceremos a partir do XIX. Retomando nossa análise nos perguntamos o que causaria tantas mortes entre os escravos de Irajá? Mesmo que sua pesquisa se refira ao século XIX, acredito que é possível considerar alguns dos argumentos de Mary Karash, para quem o descaso dos senhores, o tipo de moradia, a alimentação e os parcos cuidados médicos seriam os principais motivos de tantos falecimentos. E, assim como ela, também afirmaram vários outros pesquisadores que estudaram a questão da mortalidade escrava no oitocentos274. Infelizmente, não localizei pesquisas sobre causa mortis e mortalidade escrava no século XVIII e o que faremos aqui será um exercício a partir da análise dos registros que possuímos. Em Irajá, encontramos diferentes motivos que levaram muitos escravos à sepultura, mas foram as doenças a principal responsável por tantas mortes. O gráfico 2 nos dá uma visão mais clara sobre isso.

Gráfico 2. Causas das mortes em Irajá, segundo registros de óbitos

21% Doenças

56% Sintomas 23% Outros motivos

FONTE: Livros de registros de óbitos dos escravos da freguesia de Irajá: 1730-1781/1777- 1794/1794-1809.

274 Entre eles estão: Iamara da Silva Viana, Morte escrava e relações de poder em Vassouras (1840- 1880): hierarquias raciais, sociais e simbolismo. Dissertação defendida no programa de pós- graduação em História pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro, 2008; Thiago de Souza Reis, Morte e escravidão: padrões de morte da população escrava de Vassouras, 1865-1888. Dissertação defendida no programa de pós-graduação em História pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro, 2009 Keith Valéria de Oliveira Barbosa. Doenças e cativeiro: um estudo sobre a mortalidade e sociabilidade escrava no Rio de Janeiro, 1809-1831. Dissertação defendida no programa de pós- graduação em História pela Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro. 2010. Alisson Eugênio. A saúde dos escravos no Brasil da época de Palmares à Abolição.

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O gráfico acima nos mostra que 397 (56%); ou seja, mais da metade das mortes cujas causas foram apresentadas se deu em consequência de algum tipo de doença. Já em 167 (23%) registros, os motivos para a morte foram apresentados como: queimadura, queda do cavalo, encontrado morto, etc. Enquanto 147 (21%) estavam relacionadas a algum tipo de sintoma, tais como: diarreia, dor de cabeça, etc. Certamente, esses dados sobre sintomas indicavam reações de alguma doença. Do total de 4.080 óbitos de nossa amostragem, somente 711 (17,4%) apresentavam a causa do falecimento. A Tabela 8 nos leva a perceber que a maioria das enfermidades que assolavam os escravos de Irajá eram doenças infecto contagiosas, causadas por vírus, bactéria ou parasitas. As causas da proliferação das enfermidades eram as mais variadas. O ambiente onde estavam inseridos, o tipo de trabalho que executavam e as condições de vida que levavam poderiam ser alguns dos causadores dos muitos problemas de saúde que acometiam os escravos275. Keith Barboza ao trabalhar com as freguesias de Irajá e Candelária no período de 1809 a 1831 também considerou o ambiente em que os escravos viviam como o principal responsável pela propagação de doenças. Essa realmente pode ter sido a causa da grande quantidade de escravos morrendo por doenças no século XVIII. Digo isso, pois Barboza tem seu estudo voltado para o século XIX e é possível que muita coisa não tenha se modificado, mas para além dessa hipótese, não podemos nos esquecer que muitos cativos eram comprados muitas vezes já portando algum tipo de enfermidade, como no caso da varíola, citado anteriormente. No entanto, acredito que para a região de Irajá a questão do ambiente onde viviam e trabalhavam os escravos poderia ser considerado como a causa de tantas mortes faz sentido, pois a região estava localizada em uma área alagadiça e pantanosa, onde a presença de mosquitos era constante. Além disso, muitos escravos trabalhavam nos portos fluviais da região transportando os produtos produzidos na freguesia para a cidade, assim, um ambiente totalmente propicio a infestação de doenças. A identificação da causa mortis dos escravos começou a aparecer nos óbitos dos escravos de Irajá somente a partir de 1794, mas apesar de ser um período de apenas quatorze anos – pois como já dissemos, o recorte temporário desta pesquisa vai até 1808 –, foi possível termos uma noção do principal causador das mortes dos escravos da região. De acordo com os médicos que estiveram no Brasil durante o período da

275 EUGENIO, Alisson. Lágrimas de sangue: a saúde dos escravos no Brasil da época de Palmares á abolição. 1º edição. São Paulo: Alameda, 2016

123 escravidão, algumas das doenças que assolaram os cativos estavam terminantemente relacionadas ao ambiente em que o escravo trabalhava. O cirurgião Luís Gomes Ferreira, português que viveu em Minas Gerais durante o período de auge da mineração, conta que a grande oferta de escravos a preços razoáveis fez com que vigorasse entre os senhores a mentalidade de não se preocupar com a saúde dos cativos276. É devido ao que considerava ser um descaso que o cirurgião escreveu “Erário mineral”, obra feita com o objetivo de remediar a falta de médicos na colônia. Nela, além das receitas prescritas para cura de algumas doenças, também comentou sobre os sintomas mais comuns de algumas das enfermidades contraídas pelos cativos das áreas de mineração. Entre as que foram citadas por ele estavam também as que infectaram os escravos de Irajá e que apresentamos abaixo. As tabelas 8, 9, 10 e 11 têm mais detalhadamente as doenças e sintomas mais citados como motivo do falecimento dos cativos.

Tabela 8. Causa mortis dos escravos de Irajá, segundo a procedência PROCEDÊNCIA DOENÇA TOTAL Africanos Crioulos Bexiga 18 11,0% 40 17,5% 58 14,6% Catarral 24 14,0% 33 14,0% 57 14,3% Opilação 36 21,0% 13 6,0% 49 12,3% Tisica 20 12,0% 20 9,0% 40 10,0% Defluxo 2 1,0% 36 16,0% 38 9,5% Febre maligna 14 8,0% 11 5,0% 25 6,3% Apostema 13 8,0% 9 4,0% 22 5,5% Comer terra 11 6,5% 7 3,0% 18 4,5% Disenteria 11 6,5% 7 3,0% 18 4,5% Boubas - - 16 7,0% 16 4,0% Sarnas 2 1,0% 13 6,0% 15 3,7% Pleuris 10 6,0% 5 2,0% 15 3,7% Sarampo - - 15 6,5% 15 3,7% Hidropisia 8 5,0% 3 1,0% 11 2,8%

TOTAL 169 100,0% 228 100,0% 397 100,0%

FONTE: Livros de registros de óbitos dos escravos da freguesia de Irajá: 1730-1781/1777- 1794/1794-1809.

276 FERREIRA, Luís Gomes, Erário mineral. 2 ed. Belo Horizonte, Fundação João Pinheiro e Rio de Janeiro, Fundação Oswaldo Cruz, 2002. Apud. EUGENIO, Alison. A saúde dos escravos no Brasil da época de Palmares à Abolição, p. 88,92 e 94.

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Tabela 9. Causa mortis dos escravos de Irajá, segundo a idade IDADE DOENÇA TOTAL Crianças Adultos Bexiga 17 12,4% 41 16,0% 58 14,6% Catarral 24 17,5% 33 13,0% 57 14,3% Opilação 1 0,7% 48 18,3% 49 12,3% Tisica 4 3,0% 37 14,0% 41 10,3% Defluxo 36 26,2% 2 0,7% 38 9,6% Febre maligna 5 3,6% 20 8,0% 25 6,3% Apostema 3 2,2% 19 7,0% 22 5,5% Comer terra 2 1,0% 16 6,0% 18 4,5% Disenteria 5 3,6% 13 5,0% 18 4,5% Boubas 16 12,0% - - 16 4,0% Sarnas 11 8,0% 4 1,0% 15 3,7% Pleuris - - 15 6,0% 15 3,7% Sarampo 12 9,0% 3 1,0% 15 3,7% Hidropisia 1 0,7% 10 4,0% 11 2,8% TOTAL 137 100,0% 261 100,0% 397 100,0%

FONTE: Livros de registros de óbitos dos escravos da freguesia de Irajá: 1730-1781/1777- 1794/1794-1809.

A primeira doença que destacamos é a opilação, enfermidade que tirou a vida de 49 (12,3%) escravos da freguesia de Nª Sra. da Apresentação. Conhecida também como amarelão era causada por um verme parasita que poderia penetrar o corpo através dos pés e também pela ingestão de alimentos e água contaminados. Seus sintomas mais comuns eram dores na barriga, diarreia, tosse, perda de sangue e lesões no local onde o verme penetrou277. As condições de trabalho dos escravos adultos africanos podem explicar porque foram os que mais morreram desta doença. A segunda delas é a tísica, esta aparece com diferentes formas de menção: “moléstia do peito”, “tizica pulmonar”, “tizica escrofuloza”, “tizica mesentérica” e “tízica abdominal”, sendo todas elas variações da tuberculose, que ceifou a vida de 40 (10%) dos escravos da freguesia. Era uma doença que não só atacava os pulmões, mas também o intestino, a laringe e o estomago. Nos óbitos que analisei não encontrei nenhum que informava o tipo de tísica de que o escravo falecera. Desta forma, poderia ter sido qualquer uma das suas manifestações278. A disenteria, responsável por tirar a vida de apenas 18 (4,5%)

277 Disponível no site: www.tuasaude.com. Acessado em 05/08/2017. 278 FERREIRA, Luís Gomes, Erário mineral. 2 ed. Belo Horizonte, Fundação João Pinheiro e Rio de Janeiro, Fundação Oswaldo Cruz, 2002. Apud. EUGENIO, Alison. A saúde dos escravos no Brasil da época de Palmares à Abolição. Ver também KARASH, Mary, p. 210

125 dos escravos de Irajá não poderia ser descartada desta lista devido aos seus sintomas estarem muito ligados a algumas causas de morte citadas nos assentos de óbitos, como: diarreia, febres, dores de barriga e sangramentos. Doença muito comum na África era causada pela ingestão de alimentos ou água contaminados por dejetos humanos279. A bouba era doença classificada na época como uma enfermidade sexualmente transmissível. Causava lesões pelo corpo originando assim uma grande coceira nos locais lesionados, causava dores nos ossos, em seu estágio mais avançado poderia causar destruição de partes do corpo280. Esta doença atingiu 16 (4%) dos escravos, mas afetando somente crianças. A defluxão estava associada à inflamação e ao corrimento da mucosa nasal, tendo matado 38 (9%) dos escravos de Irajá; porém, poderia estar associada com outra enfermidade citada na tabela 5 como o catarral, que ceifou 57 (14%) dos cativos. As duas poderiam estar ligadas também à tuberculose, ou seja, doenças do aparelho respiratório. Já a disenteria e a opilação eram enfermidades que acometiam o aparelho digestivo. Portanto, doenças com sintomas muito parecidos e que poderiam ser facilmente confundidas, ocasionando diagnósticos equivocados. No que diz respeito aos sintomas (ver tabelas 10 e 11), verificou-se que eram muito comuns a algumas das doenças comentadas anteriormente. Ao classificarmos as dores englobamos, aquelas que não foram claramente definidas como as dores de cabeça e de barriga. A primeira era muito comum sentir quando o indivíduo estava sofrendo de tísica pulmonar281. A segunda poderia estar relacionada à opilação, disenteria e por comerem terra. Esta última costumava se relacionar com fome e desnutrição, mas também com depressão, podendo estar ligada também aos problemas de lombrigas282. A febre era comum a todas as enfermidades citadas na tabela 6. Portanto, sintomas que estavam presentes em várias das doenças que conduziam à morte de muitos cativos, mas que provavelmente estavam arrolados a alguma enfermidade e que, como foi dito anteriormente, poderiam levar a um diagnóstico errado.

279 Ver KARASH, Mary, A vida dos escravos no Rio de Janeiro (1808-1850). São Paulo: Companhia das letras, 2000 p. 213 e o site: www.tuasaude.com – acessado em 05/08/2017. 280 Site: www.tuasaude.com – acessado em 05/08/2017. 281 FERREIRA, Luís Gomes, Erário mineral. 2 ed. Belo Horizonte, Fundação João Pinheiro e Rio de Janeiro, Fundação Oswaldo Cruz, 2002. Apud. EUGENIO, Alison. A saúde dos escravos no Brasil da época de Palmares à Abolição. Ver também KARASH, Mary, p. 210 282 KARASH, Mary, A vida dos escravos no Rio de Janeiro, p. 236-242.

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Tabela 10. Sintomas considerados causadores da morte dos escravos de Irajá, segundo os registros de óbito (por procedência)

PROCEDÊNCIA SINTOMAS TOTAL Africanos Crioulos

Dores 35 53,0% 23 30,0% 58 Espasmos - - 13 17,0% 13 Convulsões 1 1,0% 10 13,0% 11 Lombrigas - - 9 12,0% 9 Câmaras de sangue 9 14,0% 7 9,0% 16 Febres 8 12,0% 5 7,0% 18 Diarreia 4 6,0% 5 7,0% 9 Chagas 9 14,0% 4 5,0% 13

TOTAL 66 100,0% 76 100,0% 147

FONTE: Livros de registros de óbitos dos escravos da freguesia de Irajá: 1730-1781/1777- 1794/1794-1809.

Tabela 11. Sintomas considerados causadores da morte dos escravos de Irajá, segundo os registros de óbito (por idade) IDADE SINTOMAS Crianças Adultos TOTAL

Dores 13 22,0% 45 51,0% 58 Espasmos 13 22,0% - - 13 Convulsões 10 17,0% 1 1,0% 11 Lombrigas 9 15,1% - - 9 Diarreia 5 8,4% 4 4,5% 9 Câmaras de sangue 4 7,0% 12 14,0% 16 Febres 3 5,0% 15 17,0% 18 Chagas 2 4,0% 11 12,5% 13

TOTAL 59 100,0% 88 100,0% 147

FONTE: Livros de registros de óbitos dos escravos da freguesia de Irajá: 1730-1781/1777- 1794/1794-1809.

Os dados das Tabelas 8 também nos mostram que determinadas enfermidades acometeram mais crianças do que adultos ou vice-versa. Havia doenças

127 que eram comuns mais às crianças do que aos adultos, como a boubas, que como apresenta a Tabela 9 tirou a vida de 16 (12%) crianças de Irajá. Os espasmos e as convulsões também acometiam mais as crianças e estariam muito ligados ao “mal de sete dias”. Dentre as 13 (22%) crianças que faleceram com espasmos, todas tinham entre dois a sete dias de nascidas. De acordo com os registros de óbitos, as convulsões levaram 10 (17%) inocentes à morte, sendo todos crioulos e 1 (1%) adulto africano de idade de mais ou menos 60 anos. A Pleuris e a doença decorrente de comer terra foram algumas das enfermidades que acometeram mais os adultos que as crianças. A primeira estava muito ligada ao ambiente de trabalho ao qual muitos escravos estavam vinculados. De acordo com o cirurgião Luis Gomes Ferreira, as atividades que obrigavam os escravos a estarem em contato constante com poeira e com as águas frias dos rios tornavam os cativos mais expostos às pontadas pleuríticas283. Esta moléstia acometeu 10 (6%) dos cativos africanos e 5 (2%) de crioulos de Irajá cujos assentamentos apresentaram causa mortis. Comer terra foi outra enfermidade detectada que, segundo Mary Karash, era identificada pelos senhores de escravos como uma tentativa de suicídio; mas de acordo com a pesquisadora estaria ligada a problemas de desnutrição grave284. Debret considerou que certas nações, como os Monjolos, que eram “apaixonados por liberdade”, comiam terra para morrer. Em Irajá foram os escravos africanos que mais tiveram como motivo da morte esta doença, tendo aparecido em 11 (6,5%) casos, enquanto entre os crioulos foi identificada em 7 (3%). Isso nos deixa com uma grande dúvida: seria somente a desnutrição ou a saudade da época de liberdade na região africana de origem que contribuiria para essa atitude de comer terra? Diante da possibilidade de diagnóstico incorretos285, entramos em outro problema: a escassez de médicos. Segundo Marcio Soares, os poucos físicos existentes na vastidão do território colonial geralmente fixavam residência nas áreas mais populosas, vilas e sede das capitais. Portanto, era difícil encontrá-los em vilarejos do interior286. Esta dificuldade fazia com que muitos dos moradores de freguesias rurais – e não exclusivamente nelas – recorressem a curandeiros, barbeiros e mezinheiros, devido ao fato de que naquela época as pessoas acreditavam que a doença era algo

283 FERREIRA, Luís Gomes, Erário mineral. 2 ed. Belo Horizonte, Fundação João Pinheiro e Rio de Janeiro, Fundação Oswaldo Cruz, 2002. Apud. EUGENIO, Alison. Lagrimas de sangue: A saúde dos escravos no Brasil da época de Palmares à Abolição, p. 96 284 KARASH, Mary, A vida dos escravos no Rio de Janeiro, p. 416-417 285 EUGENIO, Alison. Lagrimas de sangue: A saúde dos escravos no Brasil da época de Palmares à Abolição. São Paulo: Alameda, 2016, p. 97 286 SOARES, Marcio de Souza. Médicose mezinheiros na Corte Imperial: uma herança colonial. Revista História, ciências, saúde. vol. VIII92): 407-38, Jul.-ago. 2001, p. 408.

128 sobrenatural. Para a população católica colonial, a enfermidade era algo ligado ao pecado, obra do demônio. Por isso, os sacramentos eram compreendidos como um caminho de cura para a alma pecadora, pois para a Igreja, eram símbolos do sagrado que fortaleceriam a alma para resistir aos ataques demoníacos287. Já para os africanos a doença era entendida como símbolo de fracasso e sinal de que a proteção espiritual da alma já não seria eficaz288. Ainda de acordo com a compreensão africana sobre as enfermidades, havia a crença de que a doença poderia ser causada por espíritos dos antepassados com a intenção de castigar aqueles que não cumpriam com suas obrigações, podendo também ser resultado da ação de feitiçaria e de espíritos malévolos, no complexo de “ventura” “desventura”. Estes espíritos roubariam a alma do corpo enquanto o indivíduo dormia e quanto mais tempo a alma ficasse fora do corpo maior seria o risco de adoecer ou de morrer289. Assim, para ficarem livres das enfermidades, os escravos recorriam aos curandeiros que, após descobrirem a enfermidade que estaria acometendo a pessoa, indicava uma serie de ervas e raízes para serem preparadas e consumidas pelo doente. De acordo com James Sweet, ainda no final do século XVII, muitos senhores recorriam aos curandeiros para sanar os males de seus escravos290. Da mesma forma, Marcio Soares atribuía aos próprios escravos o cuidado de seus enfermos, seguindo as tradições de seus antepassados, com a evocação do auxílio de forças espirituais. Para eles, o poder de cura era atributo daqueles que tinham o dom de se comunicar com os ancestrais291. Nesse sentido, não poderia ser qualquer um que deveria atendê-los. O que podemos compreender diante desses dados é que poderia até ser um descaso por parte dos senhores não cuidarem da saúde de seus escravos, mas vemos também que a procura por médicos na colônia não era tão comum, mesmo entre os livres, pois se a doença era considerada como uma resposta dos pecados cometidos pelo individuo, a atitude recorrentemente adotada era a busca por àqueles que tinham um conhecimento maior sobre o mundo espiritual; neste caso, os padres e os próprios curandeiros. De acordo com Marcio Soares, a preocupação com a falta de médicos na colônia não seria algo ligado às camadas populares. Ele aponta que durante sua pesquisa não encontrou nenhum documento em que houvesse evidencias sobre isso, sendo, pelo

287 SOARES, Marcio de Souza, Médicose mezinheiros na Corte Imperial. 2001, p. 411 288 SWEET, James H. Recriar África: cultura, parentesco e religião no mundo Afro-Português (1441- 1770). Lisboa: Edição 70. 2007p. 129 289 SWEET, James H. Recriar África. Op. Cit. p. 129 290 SWEET, James H. Recriar África. Op. Cit. p. 173 291 SOARES, Marcio de Souza. Médicose mezinheiros na Corte Imperial. Op. Cit. p. 418

129 contrário, preocupação dos viajantes292. Além disso, mesmo a própria elite senhorial tendo acesso aos profissionais da medicina ainda recorria às mezinhas populares para tratamento de suas moléstias293. Portanto, a presença ou não de um médico de formação para tratamento de enfermidade poderia não fazer diferença, pois a mesma não seria algo que estivesse ligado ao corpo, mas a alma e, por isso, uma pessoa especializada nas manifestações do mundo espiritual seria mais adequada para levar a cura aos enfermos. Retomando a análise sobre a mortalidade dos escravos de Irajá, compreendemos que o ambiente apresentado pela região seria o responsável pela grande proliferação de doenças e pela causa da maioria das mortes dos escravos, pois estas estavam na sua maioria ligadas ao aparelho digestivo. O que demostra que o ambiente proporcionado pela região rodeada por pântanos contribuía para o grande número de mortes na freguesia. Mas em relação a sua cura, ela poderia estar muito mais ligada à fé do que ao uso de medicamentos que não estavam relacionados à natureza. Isso mostra que a crença na ação divina ou no sobrenatural sobre a vida do homem não se restringia somente a determinados momentos, mas constantemente caminhava de acordo com as tradições relacionadas à sua fé, e que eram necessárias para se ter uma boa vida e uma boa saúde. Já com relação aos escravos, vemos que por mais que esses homens e mulheres se esforçassem a sobreviver às agruras da escravidão, a mesma os levava a acreditar que poderiam ser pessoas desafortunadas, pois além de terem se tornado escravos em terras estranhas, adoeciam e, muitas vezes próximos da morte, poderiam interpretar aquela situação como um fracasso. Por esse motivo e por perceberem que a vida que levavam não estaria sendo aquela que as tradições africanas indicavam, pelo menos na sua morte poderia sê-lo. Talvez por esse motivo, muitos cativos poderiam apropriar-se das mais diversas estratégias para conseguir obter uma morte da maneira que consideravam ser mais adequada aos seus padrões culturais, mesmo que fosse segundo os rituais fúnebres católicos.

292 SOARES, Marcio de Souza. Médicose mezinheiros na Corte Imperial: uma herança colonial. Revista História, ciências, saúde. vol. VIII92): 407-38, Jul.-ago. 2001, p. 424 293 SOARES, Marcio de Souza, op. Cit. p. 424

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3.3. O momento derradeiro em Irajá

A hora da morte é o momento da separação e das últimas homenagens ao morto. É o momento em que alma do defunto faz sua passagem e inicia uma nova vida, agora, no mundo dos mortos. Porém, esse momento de integração ao mundo dos mortos somente pode se concretizar por meio das cerimônias fúnebres. Estas contribuem para que o morto consiga chegar a sua nova morada. Assim, envolto de dramatizações, a morte é marcada por rituais que se diferenciam de cultura para cultura. Para muitas sociedades, a realização de rituais funerários adequados é fundamental para a segurança de mortos e vivos294. Isso acontece, porque nelas a morte não é vista como um mero fenômeno natural de destruição do corpo ou algo que ocorra instantaneamente, de forma involuntária, mas sim, é um processo de transição que marca a passagem de um estágio da existência para outro295. O que demanda a necessidade da participação dos vivos nas cerimônias fúnebres, cuidando para munir os mortos de todos os objetos, materiais (roupas, alimentos, armas, utensílios) mágico religiosos (amuletos, signos e senhas), que garantam a marcha ou travessia e depois o acolhimento favorável no além-túmulo296. A importância dos rituais fúnebres se explica devido à própria crença de que alma do morto poderia voltar para se vingar, caso os ritos de separação não fossem cumpridos, desejando reincorporar no mundo dos vivos, e assim não podendo, ficam como forasteiros. Segundo Arnold Van Gennep, acredita-se que esses sejam os mortos mais perigosos, pois ficam a vagar assim criando um desejo intenso de se vingar de seus familiares297. Com já sabemos, em Irajá havia escravos de várias etnias, portanto crenças diversificadas sobre a morte, o além-túmulo e consequentemente as formas de ritualizar o momento derradeiro. No entanto, na colônia, o momento da morte deveria ser oficialmente vivido de acordo com que a Igreja Católica permitia, e os escravos de Irajá não deixaram de fazer uso de muitos dos elementos dos ritos fúnebres católicos para garantir uma boa passagem para o além-túmulo.

294 REIS, João José. A morte é uma festa, p. 89 295 REIS, João José. A morte é uma festa, p. 89 296 GENEPP, Arnold Van. Os ritos de passagem. Petrópolis: Editora Vozes, 2011, p. 133 297 GENEPP, Arnold Van. Os ritos de passagem, p. 138

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3.3.1. Os rituais fúnebres entre os escravos de Irajá

Um dos elementos do ritual fúnebre que podemos considerar como sendo de aspecto hierárquico é a administração dos últimos sacramentos. Segundo Claudia Rodrigues, eram sinais que simbolizavam o sagrado para o cristão e pertenciam ao universo da comunicação entre Deus (emissor) e o fiel (receptor), considerados eficazes da graça que o emissor comunicava ao receptor para sua salvação298. Para os católicos, os últimos momentos de vida seriam cruciais. De acordo com as doutrinas eclesiásticas, era neste momento que ocorreria uma disputa entre anjos e demônios pela alma do moribundo. Nesta hora, o doente recebia a visita do pároco ou algum sacerdote que o representasse para administração dos últimos sacramentos. Este tinha função de interlocutor entre o moribundo e Deus299. Os sacramentos da penitência, comunhão ou eucaristia e extrema-unção auxiliavam na hora da morte para que o enfermo pudesse resistir às ações do inimigo (no caso, as forças demoníacas que combateriam com as forças celestiais pelo domínio da alma do moribundo, sendo os sacramentos uma forma de munir este para que sua alma resistisse300). A Penitência era o momento em que o doente se confessava e pedia perdão dos pecados cometidos301. Porém, para que ocorresse a confissão era necessário certo tempo para que o penitente se entregasse às práticas de mortificação, pois este era considerado pela doutrina católica como um momento de reconciliação com Deus e absolvição dos pecados302. A Eucaristia objetivava permitir que o fiel entrasse em comunhão com o corpo de Cristo ressuscitado, garantindo assim a sua própria ressurreição. Considerada um mantimento para a alma, ela acrescentava vida espiritual e conforto. Porém, assim como os demais sacramentos, deveria ser ministrada com o enfermo ainda em plena consciência, pois implicava na sua entrega a Cristo, aceitando a morte e professando sua fé. Por isso, era necessário que a pessoa estivesse em plena

298 RODRIGUES, Claudia. Lugares dos mortos na cidade dos vivos: tradições e transformações fúnebres no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Secretaria Municipal de cultura, departamento Geral de documentação e informação cultural, divisão de editoração, 1997, p. 176. 299 RODRIGUES, Claudia. Lugares dos mortos na cidade dos vivos, 1997, p. 177 300Para maiores detalhes desse processo, ver RODRIGUES, Claudia. Nas fronteiras do além: a secularização da morte no Rio de Janeiro (séculos XVIII e XIX). Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2005, capitulo 1. 301 RODRIGUES, Claudia. Lugares dos mortos na cidade dos vivos, 1997, p. 177 302 RODRIGUES, Claudia. Lugares dos mortos na cidade dos vivos, 1997, p. 177

132 posse de sua lucidez303. A extrema-unção era a unção com óleo da salvação que eliminava todos os sinais e presença maligna304. Era um sacramento especifico para o momento da morte. No entanto, ele não poderia ser administrado a inocentes, aos atingidos por morte violenta por execução, aos que entravam em batalha, aos excomungados impenitentes e que estivessem em pecado público e aos dementes305. Mas a sua recusa resultava na negação de uma sepultura em solo sagrado. A administração dos últimos sacramentos para os escravos possuía uma recomendação especial das Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia, legislação eclesiástica difundida na América a partir de 1720. Segundo as orientações das Constituições Primeiras, o senhor ou o padre deveria prepará-los para a morte fazendo-os memorizar frases que expunham a própria fé em Deus306.

O teu coração crê tudo o que Deus disse? R. [Resposta] Sim. O teu coração ama só a Deus? R. Sim307

Na visão da legislação eclesiástica, ao declararem sua fidelidade a Deus, os cativos demonstrariam seu desligamento às crenças antigas, garantindo-lhes a administração dos demais sacramentos. Em Irajá, os motivos por terem recebido somente parte dos sacramentos ou nenhum deles foram claramente justificados. O cuidado com este “santo remédio”, que ajudava o moribundo no momento derradeiro dando força e coragem para enfrentar as forças demoníacas308, foi procurado pelos parentes e amigos dos cativos que estavam em perigo de morte na região, a exemplo do caso de Francisco Congo, escravo de Francisco Joaquim de Mendes do Couto.

Aos dez dias do mês de julho do ano de mil oitocentos e quatro faleceu da vida presente de pleuris FRANCISCO casado de nação Congo idade de cinquenta e sete anos pouco mais ou menos sem sacramentos por não ter lugar a recebe-los, pois o encontrei a

303 SICARD, Damien. A morte do cristão. In: MARTIMORT, Aimé Georges (org) A Igreja em oração: introdução a liturgia dos sacramentos. Petrópolis: Vozes, 1981, p. 200. Apud. RODRIGUES, Claudia. Lugares dos mortos na cidade dos vivos, 1997, p. 178 304 RODRIGUES, Claudia. Lugares dos mortos na cidade dos vivos, 1997, p. 177 305 Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia. Livro XLVII, nº 191,193,194,195 e 197 306 REIS, João José. A morte é uma festa, 1991, p. 106. 307 Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia. Título XXXII, nº 479 308 RODRIGUES, Claudia. Nas fronteiras do além: a secularização da morte no Rio de Janeiro (século XVIII e XIX). Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2005

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caminho [...] administrar um [portador] me disse já havia ispirado escravo de Francisco Joaquim de Mendes do Couto, foi por mim encomendado jaz sepultado no cemitério desta igreja, para constar fiz este assento em que me assinei309.

Assim como Francisco, muitos cativos passaram pela mesma situação, o que explica o fato de muitos terem recebido somente parte dos sacramentos. A tabela 12 nos mostra como foi esta situação.

Tabela 12. Referência aos sacramentos ministrados aos escravos, antes da morte. Sem SACRAMENTOS Africanos Crioulos TOTAL Referencia Todos 342 22,0% 202 17,4% 414 30,5% 958 23,4% Penitencia 231 14,7% 57 5,0% 168 12,3% 456 11,0% Extrema-unção 17 1,0% 4 0,3% 14 1,0% 35 0,8% Penitencia / extrema- 170 11,0% 44 3,8% 102 7,5% 316 8,0% unção Penitencia/eucaristia 24 1,0% 14 1,2% 22 2,0% 60 1,4% Confissão 46 3,0% 10 1,0% 29 2,0% 85 2,0% Batismo 5 0,3% 51 4,4% 4 0,2% 60 1,4% Sem sacramentos 689 44,0% 120 10,3% 365 27,0% 1.174 29,0% Sem referência 43 3,0% 655 56,6% 238 17,5% 936 23,0%

TOTAL 1.567 100,0% 1.157 100% 1.356 100% 4.080 100%

FONTE: Livros de registros de óbitos dos escravos da freguesia de Irajá: 1730-1781/1777-1794/1794-1809.

As informações da tabela 12 mostra que um número significativo de escravos não recebeu sacramento, 1.174 (29%), mas apresentavam algum tipo de justificativa. Os motivos eram os mais diversos: “por não dar tempo”, “por não chamarem”, “por não ser deles capaz”, “ por morrer de repente”, são algumas das justificativas apresentadas para o não recebimento dos últimos sacramentos. No entanto, algumas dessas explicações nos levam a ter entendimentos diferentes sobre o porquê do não recebimento do sacramento. “Por não chamarem”, sugere que o moribundo não apresentou nenhum tipo de interesse em receber a ajuda de um padre para “bem morrer”. Ao mesmo tempo, também nos permite compreender que as pessoas ou o senhor não apresentaram nenhum interesse em chamar o sacerdote. Iamara Viana – que estudou a morte entre os escravos de uma área rural grande produtora de café no século

309 Livros de registros de óbitos dos escravos da freguesia de Irajá: (1794-1808).

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XIX (Vassouras) – acredita que o não acesso aos últimos sacramentos estaria ligado à intima relação que alguns escravos ainda mantinham com as crenças africanas. Segundo ela, este costume não ficava restrito aos africanos, mas a seus descendentes também310. É considerável que realmente alguns escravos tenham se recusado a receber os últimos sacramentos, mas no caso de Irajá, é possível que não tenha sido totalmente por isso motivo, pois sabemos que a sua recusa poderia impossibilitar o acesso a uma cova na igreja matriz, e de acordo com os registros de óbitos analisados, muitos dos mortos que tiveram a anotação de que não receberam sacramento “por não mandarem chamar”, foram sepultados dentro da igreja. Portanto, as causas para o não recebimento dos sacramentos poderiam ser as mais variadas possíveis, tais como: demora em se acionar o sacerdote, distância do local onde estava o moribundo, não ter quem pudesse ir chamar o padre ou até mesmo descaso. O acesso a todos os sacramentos num percentual de 958 (23,4%) indica o quanto parentes, companheiros de trabalho, proprietários e a própria população cativa de Irajá estava atenta ao momento derradeiro, sugerindo assim, a existência de uma preocupação com a vida após a morte dos cativos. Tanto senhores quanto os próprios escravos demonstraram preocupação ao buscarem a ajuda de um pároco para dar os últimos sacramentos. Dos 958 escravos que receberam todos os sacramentos, 342 (22%) eram africanos. Isso mostra que diferentemente da situação analisada por Iamara Viana, nem todos os cativos nativos da África se negaram a receber os santos sacramentos, pelo contrário, aceitaram e ajudaram a seus irmãos de infortúnio a darem os primeiros passos em direção a uma boa morte. Já os crioulos e pardos ficaram em segundo lugar 202 (17,4%), porém não devemos nos esquecer de que os africanos eram maioria no número de escravos. Portanto, esta diferença não é nada mais do que o reflexo do ambiente escravo, onde o nível de natalidade era baixo. Sabemos através da visita pastoral de Monsenhor Pizarro que havia em Irajá alguns padres proprietários de engenhos e outros que prestavam serviços em algumas das capelas existentes na região. O Reverendo Francisco Dantas de Vasconcelos era o capelão da capela de Nossa Senhora da Conceição, localizada no engenho de Inacio Manoel de Lemos Mascarenhas Castelbranco e o Reverendo Faustino, no da capela de

310 VIANA, Iamara da Silva. Morte Escrava e Relações de Poder em Vassouras (1840-1880): hierarquias raciais, sociais e simbolismos. Dissertação de mestrado pelo curso de pós-graduação da UFRJ, 2008, p. 73

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Nossa Senhora da Penha, propriedade da Irmandade Nossa Senhora Penha de França311. A quantidade significativa de clérigos residindo na região pode ter sido um importante fator responsável pelo acesso de tantos escravos aos últimos sacramentos, pois mesmo que o pároco da matriz estivesse longe, esses padres poderiam dar início aos trabalhos de ajudar o cativo moribundo de determinado engenho a bem morrer. A veste fúnebre era mais um dos elementos que ajudava no “bem morrer”. Acreditava-se que seu uso ajudava na passagem para o além. De acordo com João José Reis, a mortalha seria a preferência da maioria da população da colônia. Havia mortalhas de santos, de cores e os militares vestiam suas vestes oficiais enquanto os religiosos usavam vestes sacerdotais. Segundo Reis, o uso da mortalha de santo representava um apelo para que os santos ajudassem os que assim estivessem vestidos. Já para Claudia Rodrigues, poderiam servir de identificação e passaporte para o pós- morte. Dentre as cores dos tecidos que amortalhavam os cadáveres cativo, a mais presente era o branco. No sistema de crenças católicas, esta cor simbolizava a esperança na vida eterna, representava a ressurreição em Cristo e também expressava uma identificação com o santo sudário312. Entre alguns grupos étnicos bantos, o branco era a cor dos defuntos, mas ao mesmo tempo significava renascimento em outra vida, agora, junto dos ancestrais313. Porém, a mortalha desta cor também representava menor poder aquisitivo, como afirma João Reis, mas de acordo com Claudia Rodrigues, o branco poderia também ser usado em tecidos caros da época, como o cetim, o tafetá e o veludo, e adotado por alguns dos escravos que apresentassem condições para tal314. Para identificação dos tipos de mortalhas usadas pelos escravos de Irajá montamos a tabela 13.

311 O Reverendo Francisco Xavier, Reverendo Inácio Correa da Silva, Reverendo Vicente da Roza de Oliveira e Reverendo Francisco Barnabé. Todos possuíam um sítio ou engenho em Irajá. PIZARRO E ARAÚJO, José de Souza Azevedo. O Rio de Janeiro nas visitas pastorais de Monsenhor Pizarro: inventário da arte sacra fluminense. Rio de Janeiro: INEPAC (Volume 1), 2008, p. 66 312 RODRIGUES, Claudia. Lugares de morte na cidade dos vivos, p. 201 313 RODRIGUES, Claudia. Lugares de norte na cidade dos vivos,1997. p. 203 314 RODRIGUES, Claudia. Lugares de norte na cidade dos vivos,1997, p. 206

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Tabela 13. Mortalha dos escravos de Irajá

MORTALHA Africanos Crioulos Pardo Ilegível TOTAL

Branca 2 9,0% 12 39,0% 3 50,0% 1 4,0% 18 20,0% Pano - - 5 16,0% - - 1 4,0% 6 6,0% Lençol 17 73,0% 10 32,0% 1 16,0% 3 10,0% 35 38,0% Colorida - - 1 3.0% - - - - 1 1,0% São Francisco 2 9,0% 1 3.0% - - - - 3 3,0% N.S. do Rosário ------1 4,0% 1 1,0% São Domingos - - - - 1 16,0% - - 1 1,0% Ilegível 2 9,0% 2 7.0% 1 16,0% 22 78,0% 27 30,0%

TOTAL 23 100% 31 100% 06 100% 28 100% 92 100%

FONTE: Livros de registros de óbitos dos escravos da freguesia de Irajá: 1730-1781/1777- 1794/1794-1809.

Poucos foram os registros de óbitos dos escravos de Irajá que fizeram referência ao uso da mortalha. Como a tabela nos indica somente 92 registros apresentavam esta informação. Destes, 18 (20%) defuntos usaram a mortalha branca e foram enterrados em covas da irmandade do Rosário e em covas da fábrica; 35 (38%) foram amortalhados em lençol; 6 (6%) em pano (dentre esses seis, um teve o corpo sepultado pelo “amor de Deus” no cemitério da matriz, em 1794). Uma inocente usou habito azul e foi enterrada na cova do Santíssimo Sacramento. De acordo com Claudia Rodrigues, a mortalha colorida seria mais usada pelas crianças devido ao fato de elas serem declaradas inocentes por parte da Igreja e, portanto, já serem consideradas em estado de graça315. Três cativos usaram o habito de São Francisco, muito comum entre os livres pertencentes à elite colonial. No final do século XVIII em São Paulo e inicio do século XIX, no Rio de Janeiro, as vestes mortuárias deste santo custava 6.000 reis316. De acordo com Vitor Cabral Braga, o habito de São Francisco foi um dos tipos de vestes fúnebres mais procuradas entre os moradores livres de Jacutinga e Piedade Iguaçu317. O

315 RODRIGUES, Claudia. Lugares dos mortos na cidade dos vivos, 1997, p. 196 316 PAGOTO, Amanda Aparecida. Do âmbito sagrado da igreja ao cemitério público: transformações fúnebres em São Paulo (1850-1860). São Paulo: Arquivo do Estado, Imprensa Oficial do estado de São Paulo, 2004, p. 43 - BRAVO, Milra Nascimento. Hierarquias na morte: uma análise dos ritos fúnebres católicos no Rio de Janeiro (1720-1808). Dissertação (Mestrado) - Programa de Pós- graduação em História da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro, 2014, p. 125 317 BRAGA. Vitor Cabral. Lugares para “bem morrer” no Recôncavo da Guanabara/RJ: irmandades, ritos e tensões na geografia da morte (c. 1720-1800). Dissertação de mestrado pelo Programa de Pós- graduação da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro, 2015, p. 141.

137 uso de mortalha de santo tinha como objetivo garantir a intercessão dos santos junto a Deus318. A procura pela mortalha do habito de São Francisco vinha desde a Idade Média, devido ao valor salvífico que o santo tinha dentro da escatologia cristã. Acreditava-se que o cordão usado neste hábito tinha o poder de afastar o Inimigo e servia aos anjos para puxar as almas que estavam no Purgatório319. Dos três escravos que usaram este tipo de mortalha, um teve um funeral pomposo, se levarmos em conta sua condição social, foi o cativo Joaquim crioulo solteiro de 21 anos escravo do alferes José Soares da Silva. Morto em 1801, recebeu todos os sacramentos, seu corpo foi acompanhado pela cruz e sacristão da fábrica e foi sepultado em uma cova da fábrica localizada ao lado do evangelho, na quinta sepultura da sexta carreira do lado de dentro da igreja matriz. O valor da cruz e encomendação era de 320 reis, a sepultura da porta travessa até as grades custava 4.000 reis320. As informações contidas no óbito deste escravo chama atenção, ao mesmo tempo que nos leva a uma indagação: quem pagou por este funeral? É possível que Joaquim poderia ser um escravo muito próximo de seu senhor, talvez um filho bastardo, e que tenha sido o próprio senhor que tenha arcado com as despesas do funeral do escravo. O segundo caso foi do pardo Fidelis, sepultado em 1807, que foi amortalhado em hábito de Nossa Senhora do Rosário (possivelmente, por ser irmão) e o último caso, o de Antonio morto em 1785, amortalhada em hábito de São Domingos. O uso da mortalha branca também foi muito comum entre os defuntos da cidade do Rio de Janeiro e Salvador. De acordo com Claudia Rodrigues, 54,1% dos defuntos que foram sepultados na freguesia do Santíssimo Sacramento, no século XIX, tiveram a cor branca para suas vestes fúnebres321. João Reis aponta que a escolha da mortalha branca entre os escravos africanos foi de 91% na cidade de Salvador, enquanto que entre os nascidos no Brasil, entre libertos e escravos, a adesão foi de 54%322. Para Irajá, a escolha da mortalha branca foi de 34% dos mortos. Mas se juntarmos a quantidade daqueles que tiveram seus corpos envoltos em um lençol, cuja cor provavelmente deveria ser branca, com aqueles que indicavam claramente sua cor, teremos 64%.

318 RODRIGUES, Claudia. Lugares dos mortos na cidade dos vivos, 1997, p. 196 319 A. H. de Oliveira Marques, A sociedade medieval portuguesa. Lisboa, 1974, p. 211. Apud. João José Reis. A morte é uma festa, p. 117 320 PIZARRO E ARAÚJO, José de Souza. O Rio de Janeiro nas visitas pastorais, p. 72 321 RODRIGUES, Claudia. Lugares dos mortos na cidade dos vivos,1997. p. 199 322 REIS, João José. A morte é uma festa, 1991, p. 126

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Como já vimos, a mortalha branca era a mais barata, no entanto, a uso dela não pode ser considerado exclusivamente por motivações financeiras. De acordo com Victor Turner, entre os “Ndembu” o branco representaria tudo aquilo que era bom e virtuoso, saúde, imunidade aos infortúnios, o encontro com os espíritos, estar livre, estar sem lágrimas, estar reunido com os antepassados, vida etc323. Nesse sentido, não podemos considerar que o uso da cor branca nas mortalhas tenha sido somente por questões financeiras, mas também pela crença que esta cor tinha sobre a cultura africana. O tecido usado para se fazer a mortalha branca também era o mais barato e, o uso do lençol, como vimos, era muito comum. Para alguns grupos étnicos provenientes da região centro africana, o tecido e a forma de envolver o corpo do morto tinham toda uma simbologia que contribuiria para a passagem da alma para o mundo dos ancestrais. Entre os congoleses, ser enterrado com tecidos europeus seria como passar para o além, desnudo, correndo o perigo de não ser reconhecido e nem integrado a comunidade de ancestrais324. A forma de envelopar o corpo do defunto ajudava na identificação do morto e o recebimento digno dele entre os ancestrais325. Desta forma, vemos que apesar da adesão aos ritos fúnebres católicos, alguns elementos da cultura africana se faziam presentes também entre os cativos da freguesia de Nossa Senhora da Apresentação. Entre alguns defuntos, o uso do tecido branco pode até ter sido por motivos financeiros, como o escravo que foi sepultado “pelo amor de Deus” (que indicava que a paróquia não cobrou pelos serviços fúnebres oferecidos), mas para outros, como os irmãos da Irmandade do Rosário, isto pode realmente ter um sentido mais voltado para as crenças africanas.

3.3.2 - Os locais de sepultamento em Irajá

Sabemos que todo ritual possui um conjunto de símbolos, mas existe aquele que é dominante sobre os demais. De acordo com o antropólogo Vitor Turner, o símbolo dominante não possui somente a função de cumprimento dos fins de um ritual, mas tem valores individuais que o determinam como extremamente importante para a

323 TURNER, Victor. Floresta de símbolos: aspectos do ritual Ndembu: Niterói-RJ. Editora: EDUFF, 2005, p. 93, 107 e 108. 324 DEL PRIORE, Mary. Passagens, rituais e práticas fúnebres entre ancestrais africanos: outra lógica sobre a finitude. Revista Rede-A: volume 1, nº1, jan.-jun., 2011, p. 130 325 DEL PRIORE, Mary. Passagens, rituais e práticas fúnebres entre ancestrais africanos, 2011, p. 130

139 celebração de uma determinada cerimônia. Entre as mais diversas culturas, o momento derradeiro é envolto dos mais diversos símbolos que têm como objetivo contribuir para uma boa passagem da alma para o mundo dos mortos. Entre católicos e africanos isso não era diferente. Para Milra Bravo, o momento culminante do ritual fúnebre católico era o sepultamento. Segundo ela, a sepultura seria o aspecto de maior visibilidade entre as hierarquias sociais na sociedade escravista do Rio de Janeiro326. Portanto, temos que considerar que todas as atitudes tomadas pelo moribundo e seus familiares para que alma fizesse uma boa passagem não teriam a menor validade se o corpo não fosse sepultado em local especial e sagrado, onde pudesse ficar protegido de possíveis profanações. Desta forma, concordo com Milra Bravo ao considerar que o sepultamento seria o momento mais importante dos ritos fúnebres. Ele era o símbolo dominante, pois determinava a separação (segundo a teoria dos ritos de passagem de Arnold Van Gennep) e o fim de um momento da vida de um indivíduo e daria início à outra. Entre os africanos, o melhor local para sepultamento seria os espaços sagrados protegidos de eventuais ataques de feiticeiros, pois acreditavam que o corpo do morto poderia oferecer poderes mágicos. Entre os católicos, os locais apropriados para sepultamento eram dentro da igreja e no adro, que é o entorno da igreja. Como na colônia a religião oficial era a católica, a população buscava a forma de sepultamento determinada pela Igreja, nesse sentido tanto as pessoas livres quanto os escravos tinham como opção de sepultura o interior do templo e o seu entorno. O interior das igrejas era considerado pelos católicos como o local de sepultamento mais importante. As covas dentro dos templos seriam as mais desejadas, porque estavam próximas dos santos. Segundo Adalgisa Campos, as campas localizadas mais próximas ao sacrifício eucarístico eram mais nobilitadas, reservadas e protegidas da vida mundana327. Esta importância se dava pela crença de que a proximidade com os santos geraria uma intimidade e isso poderia favorecer a alma no Julgamento final328. Além disso, as Constituições Primeiras destacavam essa importância ao dizer que as pessoas que iam rezar nas igrejas, acabavam lembrando e rezando também pelas almas dos defuntos sepultados ali.

326 BRAVO, Milra Nascimento. Hierarquias na morte: uma análise dos ritos fúnebres católicos no Rio de Janeiro (1720-1808). Dissertação de mestrado pelo Programa de Pós-graduação da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO), 2014, p. 14. 327 CAMPOS, Adalgisa Arantes. Locais de sepultamento e escatologia através de registros de óbito da época barroca: a freguesia de Nossa Senhora do Pilar de Ouro Preto. Revista Varia História, nº 31, jan. 2004, p. 177 328 REIS, João José. A morte é uma festa Op. Cit, p. 178

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É costume pio, antigo e louvável na Igreja Católica enterrarem-se os corpos dos fiéis cristãos defuntos nas igrejas e cemitérios delas; porque, como são lugares a que todos os fiéis concorrem para ouvir e assistir às missas e ofícios divinos e orações tendo à vista as sepulturas, especialmente dos seus, para que mais cedo sejam livres das penas do purgatório, e se não esquecerão da morte, antes lhes será aos vivos mui proveitoso ter memória dela nas sepulturas. Portanto, ordenemos e mandamos que todos os fiéis que neste nosso arcebispado falecerem sejam enterrados nas igrejas ou cemitérios, e não em lugares não-sagrados, ainda que eles assim o mandem, porque esta sua disposição, como torpe e menos rigorosa, se não deve cumprir329.

Os que estavam enterrados no adro não teriam esse mesmo privilégio. De acordo com João Reis, o adro seria um dos locais de sepultamento mais desprestigiados330, por estar fora dos locais de oração. Era o lugar onde geralmente sepultavam os escravos e pessoas pobres. Na freguesia de Irajá tivemos vários escravos que foram enterrados tanto dentro da matriz de Nossa Senhora da Apresentação quanto em seu entorno. Quando um cativo falecia, o responsável pelo enterro era o próprio senhor, e para não ter muitos gastos este procurava em geral enterrá-lo nas covas do adro. As sepulturas fora da igreja eram gratuitas, porém o cerimonial de encomendação e missas eram pagos. Em Irajá o valor cobrado pelo pároco para a encomendação da alma de um escravo era de $320 reis mais o valor de duas missas de esmola costumada331. Para evitar esse tipo de gasto, havia senhores que acabavam sepultando os corpos de seus cativos no meio do mato ou pior ainda, os largavam na beira das praias ou no meio da mata. O temor de uma morte sem ritual e sem sepultamento fez com que alguns escravos se associassem a uma irmandade, na busca de evitar este triste fim, para que fosse possível arcar com os custos dos serviços fúnebres. As irmandades garantiam a segurança de um funeral digno, mas, para, além disso, o ingresso em uma associação religiosa acabava por contribuir também para a elevação do status social do indivíduo,

329 Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia. Livro LIII nº843. 330 Reis, João José. A morte é uma festa Op. Cit, p. 175 331 PIZARRO E ARAÚJO, José de Souza. O Rio de Janeiro nas visitas pastorais, p. 72

141 pois além de oferecerem a mortalha, acompanhamento e missas, seus associados tinham o direito de serem enterrados dentro das igrejas332. No capítulo 1 vimos que na freguesia de Irajá existiam dentro da matriz de Nossa Senhora da Apresentação sete irmandades, dentre as quais duas eram de homens de cor: São Benedito e Nossa Senhora do Rosário. De acordo com Mariza Soares, a justificativa para a criação das irmandades de pretos estava ligada ao problema do abandono dos escravos por parte dos senhores que quando os viam doentes e velhos os largavam a própria sorte333. Provavelmente fosse esse o motivo para que em cada uma das irmandades citadas houvesse a prioridade dos cuidados relacionados à morte de seus irmãos. Ao verificar o estatuto da Irmandade do Rosário do Rio de Janeiro, de 1759, e de Nossa Senhora do Amparo de Irajá, de 1766, a questão dos cuidados com a morte estava sempre em pauta.

Falecendo algum Irmão da Irmandade, ou sua mulher e filhos legitimos antes de tomarem Estado, e estando debaixo de seu patrio poder se lhe dará sepultura; e acompanhará a Irmandade sendo naturaiz, só se lhe dará a sepultura, sendo filho de Irmão; e havendo outra alguá pessoa que queira será companhado da Irmandade não sendo Irmão, dará a esmola em que se ajustar com o Irmão Procurador, atendendo ao tempo e pocebilidade da pessoa(...)334

He esta irmandade obrigada a mandar dizer pella alma de qualquer Irmão que tiver servido de Juiz ou Juíza , tanto de Nossa Senhora como de Sam Benedito 24 missas, e morrendo no tempo em que actualmente estiverem servindo, como depoiz, serão sepultados na Capela Mór junto aos presbíteros, e os que tiverem servido de Escrivão, Thesoureiro e Procurador e Juizas do Ramalhete, dezesseis missas, e serão sepultados na Capela Mór mais abaixo dos Juizes; e os que forem de Meza terão doze missas e o serão abaixo do Arco Cruzeiro e os Reys e Raynhas terão 26 Missas e o serão logo na boca do Arco Cruzeiro, e os que não tiverem ocupado cargo algum se lhe dirão dez missas por sua alma, e serão sepultados no corpo da Igreja; Também gozam de huã missa que se diz aos sabados de todo o anno com sua ladaynha a Nossa Senhora, e outra todos domingos a Sam Benedito pelos RR Capelães no mesmo altar de Nossa Senhora do Rozário, e outras que se dizem dia de Nossa Senhora da Conceipção, da Pureificação, da Anunciação, Sam Domingos, da Assumpção da Senhora, da Natividade e de Nossa Senhora do Rozário, e as três de dia de Natal, e a estas devem acestir os irmãos com suas opas brancas vestidas, e tochas acesas nas mãos e recomendamos muito ao Irmão Juiz acistencia destas Missas principalmente os que forem da

332 SOARES, Mariza de Carvalho. Devotos da cor: identidade étnica, religiosidade e escravidão no Rio de Janeiro, século XVIII. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000, p. 144 333 SOARES, Mariza de Carvalho. Devotos da cor, p. 144 334 AHU/CU. Códice 1950 - Compromisso da Irmandade de Nossa Senhora do Rosário e São Benedito dos homens pretos do Rio de Janeiro

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Meza, e gozão do beneficio de huã indulgencia [...] na hora da morte, e das mais concedidas a esta Irmandade335.

Será obrigada esta irmandade a mandar dizer todos os sábados do ano uma capela de missas por todos os irmãos assim vivos como defuntos com seus responsos no fim das missas desta capela de Irajá o Reverendo padre vigário assistira todas as vezes que a irmandade for fora a acompanhar os irmãos defuntos que falecerem(...)336

Sendo Deus servido levar algum irmão primeiro terá cuidado o procurador dar recado ao juiz e mais [...] a todos os irmãos que puder juntos todos nesta igreja sairão com cruz alfadas e suas opas em procissão a buscar o corpo que estarem padre conveniente como melhor parecer. Levará o juiz a vara o escrivão o guião para acompanharem a cruz e o procurador [...] para governar a irmandade e será obrigado a irmandade o fará um esquife em que se enterrem bem mais de [...] e mandar ao fazer um guião para acompanharem os seus enterros e procissões cada irmandade será obrigada a mandar dizer sete missas pela alma do irmão que falecer a qual esmola de entregar ao capelão que decorada a capela e o mesmo se fará a melhores dos irmãos e a seus for famílias só teremos a obrigação de enterrá-lo com a mesma pompa e estes [...] for não gozará dos sufrágios da missa que só se concede aos irmãos e seus melhores337.

Haverá nesta irmandade quatro sepulturas para sepultarem os corpos dos irmãos da dita irmandade assim mais os milhares e foi dos irmãos as quais sepulturas com e farão da grade e junto da sua capela correndo conjunto da parede para o corpo da igreja pois assim nos foi concedido pelo reverendo padre vigário João Alvarez Maciel o qual esta servindo de presente e neste templo em que se instituiu esta irmandade338.

Sabemos que as irmandades eram associações religiosas que tinham como obrigação promover o culto católico e proteger seus membros, dando assistência aos enfermos, velhos e irmãos pobres339 e que seus associados deveriam observar as regras da instituição e seguir as normas prescritas para seus membros340. Um dos capítulos do estatuto da Irmandade do Rosário nos mostra que elas tinham o dever de cuidar não

335 AHU/CU. Códice 1950 - Compromisso da Irmandade de Nossa Senhora do Rosário e São Benedito dos homens pretos do Rio de Janeiro 336 AHU- Compromisso da Irmandade de Nossa Senhora do Amparo da Freguesia de Nossa Senhora da Apresentação de Irajá. 337 AHU- Compromisso da Irmandade de Nossa Senhora do Amparo da Freguesia de Nossa Senhora da Apresentação de Irajá. 338 AHU- Compromisso da Irmandade de Nossa Senhora do Amparo da Freguesia de Nossa Senhora da Apresentação de Irajá. 339 LANGE, Francisco Curt. História da Música nas Irmandades de Vila Rica. Belo Horizonte: Publicação do Arquivo Público Mineiro, 1979, p. 17. Apud, BORGES, Célia Maia. Escravos e Libertos nas Irmandades do Rosário: Devoção e solidariedade em Minas Gerais – séculos XVIII e XIX. Juiz de Fora: Editora UFJF, 2005, p. 53. 340 BORGES, Célia Maia. Escravos e Libertos nas Irmandades do Rosário: Devoção e solidariedade em Minas Gerais – séculos XVIII e XIX. Juiz de Fora: Editora UFJF, 2005, p. 53.

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somente do corpo e da alma de seus associados, mas também das famílias de seus irmãos (filhos legítimos e esposas). Também garantiam o sepultamento em local privilegiado, dentro da igreja, disponibilizavam o cortejo fúnebre e asseguravam a realização de missas pelas almas de seus membros. Os membros responsáveis por cargos importantes dentro da confraria tinham como privilégio serem sepultado próximos ao altar, dependendo do cargo exercido. No compromisso do Rosário e São Benedito, vemos que qualquer pessoa que fosse no momento da morte ou que já tivesse sido juiz ou juíza da irmandade tinha direito de ser sepultado na capela mor, enquanto que os demais membros com cargos importantes, como tesoureiro e escrivão, também tinham o mesmo privilégio, só que em sepulturas posteriores às dos juízes, e assim seguia-se a distribuição das covas, criando neste sentido uma hierarquia entre os membros da irmandade. Mas isto é algo que iremos explorar mais adiante, por enquanto o que importa destacar neste momento é que estas associações religiosas foram responsáveis pelo acesso de muitos cativos a uma cova dentro da matriz de Irajá. A Tabela 14 nos mostra quantos escravos de Irajá tiveram a oportunidade de serem sepultados em uma cova das irmandades citadas e das outras existentes na região.

TABELA 14 - Escravos que foram sepultados em covas da irmandade IRMANDADE PARDOS/ EM AFRICANOS CRIOULOS TOTAL CABRA BRANCO Nª Sra. do Rosário 36 98,0% 49 92,0% 3 30,0% 68 81,0% 156 84,7% Nª Sra. da Lapa 1 2,0% 1 2,0% - - 9 11,0% 11 6,0% Nª Sra. do Amparo - - - - 3 30,0% 2 2,0% 5 2,7% Santíssimo Sacramento - - 1 2,0% 3 30,0% - - 4 2,2% Nª Sra. da Apresentação - - 1 2,0% - - 1 1,0% 2 1,1% São Miguel - - - - 1 10,0% - - 1 0,5% Não diz a irmandade - - 1 2,0% - - 4 5% 5 2,71%

TOTAL 37 100% 53 100% 10 100% 84 100% 184 100%

FONTE: Livros de registros de óbitos dos escravos da freguesia de Irajá: 1730-1781/1777-1794/1794- 1809.

Dos 4.080 registros colhidos, 4.022 apresentavam o local de sepultura. Destes, 184 (4,50%) eram de escravos que foram sepultados em covas de uma das sete irmandades existentes em Irajá. Um número bem pequeno se compararmos ao dos livres da mesma região. No entanto, temos que considerar que esses homens e mulheres eram

144 escravos e que o acesso a essas associações era somente para aqueles que poderiam pagar sua anuidade. Portanto, um privilégio para poucos. Podemos perceber pela Tabela 14 que quatro escravos tiveram seus corpos sepultados em cova das duas irmandades de brancos da região. Uma na de São Miguel e Almas e outras quatro na do Santíssimo Sacramento. Nossa senhora do Amparo sepultou cinco (2,77%) do total de sepultamentos ligados a irmandades, enquanto a de Nossa Senhora da Lapa enterrou onze (6%). Mas foi a irmandade de Nossa Senhora do Rosário que mais sepultou escravos na região, reunindo 156 (84,7%) do total dos enterros feitos pelas confrarias existentes em Irajá. Recebendo não só cativos crioulos e africanos, mas também pardos, mesmo que em pequena quantidade. Apesar de todos os cuidados dispensados aos irmãos, o ambiente de uma irmandade era totalmente hierarquizado. Como vimos nos estatutos, os irmãos da mesa, de acordo com o cargo que executavam, tinham o direito de serem sepultados nos lugares mais importantes dentro da igreja e também recebiam número de missas diferentes. No entanto, Célia Borges, aponta que se a irmandade não possuísse templo próprio os membros da mesa não poderiam ser sepultados próximos ao altar341. Desta forma, a igreja que a estava acolhendo deveria disponibilizar no templo algum lugar que fosse considerado importante pela população. Como vimos nos estatutos, para a irmandade de Nossa Senhora do Amparo, suas covas estavam distribuídas próximas de seu próprio altar, que era lateral, e suas sepulturas seguiam-se junto à parede da matriz de Irajá, do mesmo lado que ficava o seu respectivo altar. Para os irmãos da irmandade do Rosário do Rio de Janeiro, o local reservado para sepultamento dos juízes era ao lado do Presbitério, local extremamente importante para o culto ecumênico, mas esta irmandade possuía sua própria igreja, enquanto os irmãos do Rosário de Irajá não. O que significa que o local de sepultamento dos juízes desta irmandade e das demais existentes na região não era no altar principal. Portanto, outros lugares tão importantes quanto este foram separados para estas confrarias, assim como foi para Irmandade do Amparo. É possível que as covas privilegiadas do Rosário de Irajá estivessem localizadas próximas do Evangelho e da Epistola. Estes dois lugares ficavam extremamente próximos ao altar central da matriz de Irajá. Na verdade, os dois eram

341 BORGES, Célia Maia, Escravos e libertos nas Irmandades do Rosário, p. 81

145 altares laterais separados, um para a leitura dos Evangelhos342, e o outro, das Epistolas343. Cheguei a esta conclusão devido aos registros de óbitos de cinco escravos. O de Gracia, inocente, filha de Antonio Angola e Gracia Angola, sepultada do lado da Epistola. Já o inocente Inocêncio, filho de Felipe de Oliveira e de Maria Ignácia Casange, foi enterrado na segunda cova do lado também da epistola. O crioulo Mathias solteiro de setenta anos foi sepultado na quarta cova do lado do Evangelho contando a partir do arco cruzeiro. Os outros dois são os filhos do crioulo Roque e de Joana Benguela, Felix e Lauriana, os dois também inocentes, ambos foram sepultados do lado do Evangelho: a menina na primeira sepultura e o menino na quarta. É possível que Roque e Joana ou os pais da inocente Gracia tenham sido responsáveis por algum cargo importante dentro da irmandade do Rosário e que, por isso, tenham tido o privilégio de sepultarem seus filhos próximos aos locais de liturgia da igreja. Portanto, essas informações nos leva a cogitar que as covas do Rosário ficariam entre as portas laterais e o arco cruzeiro e as destinadas aos juízes e reis seriam depois das grades, uma do lado da Epistola e outra do lado do Evangelho. Para uma irmandade receber o direito a um determinado número de sepulturas dentro das igrejas era necessária autorização do bispo. De acordo com Adalgisa Campos, esta licença também poderia ser passada pelo visitador episcopal344. Ao adquirir a autorização, a confraria deveria colaborar com as receitas da administração paroquial para poder ficar isenta da anuidade referente às covas obtidas345. Segundo o estatuto das irmandades de Nossa Senhora do Amparo e São Miguel Arcanjo (os dois únicos documentos encontrados referentes às irmandades de Irajá), cada uma delas tinha direito a quatro covas dentro da matriz. É provável que as demais confrarias estabelecidas na paróquia de Irajá, não tenham recebido esta mesma quantidade de sepulturas. Este é o caso da Confraria do Rosário. De acordo com a tabela 14, a maior parte dos sepultados em covas da irmandade, eram de membros do Rosário.

342 Os Evangelhos são os quatro primeiros livros do Novo Testamento da Bíblia Sagrada: Matheus, Marcos, Lucas e João. 343 As Epistolas são as cartas escritas pelo apostolo Paulo a Timóteo, Tito, Filemon, aos cristãos judeus e as igrejas de Roma, Corinto, Galácia, Éfeso, Colossos e Tessalônica. Todas são referentes aos livros de Romanos, I Coríntios, II Coríntios, Gálatas, Efésios, Filipenses, Colossenses, I Tessalonicenses, II Tessalonicenses, I Timóteo, II Timóteo, Tito, Filemon, Hebreus, Tiago, I Pedro, II Pedro, I João, II João, III João, Judas e Apocalipse. Contidos no Novo Testamento da Bíblia Sagrada. 344 CAMPOS, Adalgisa Arantes. Locais de sepultamento e escatologia através de registros de óbitos da época barroca: a freguesia de Nossa Senhora do Pilar de Ouro Preto. Revista Varia História nº 31. Jan. 2004. p, 171 345 CAMPOS, Adalgisa Arantes. Locais de sepultamento e escatologia através de registros de óbitos da época barroca, 2004. p, 171

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O que nos leva a cogitar que o número de sepulturas recebidas por ela tenha sido um pouco maior do que as das irmandades do Amparo e de São Miguel. Ao analisar o número de enterros feitos pelas irmandades de Irajá, ocorridos no período compreendido dentro desta análise, no ano de 1754 o Rosário foi responsável pelo sepultamento de oito escravos346 e quatro pretos livres347, dando um total de doze enterros em um ano. Enquanto que para as irmandades do Amparo e São Miguel não passou de dois por ano. Essa informação só leva a cogitar que, apesar de ser uma irmandade de homens de cor, o Rosário teve uma presença marcante em Irajá, com relação aos cuidados com a morte de seus irmãos. Além das covas das irmandades, as igrejas também possuíam suas próprias sepulturas. Administradas pela fábrica e localizadas no interior dos templos, elas eram destinadas àqueles que tinham condições de pagar o valor correspondente, e quanto mais próximo do altar fosse a sepultura mais alto seria o valor cobrado, da mesma forma que quanto mais distante menor seria o preço pago por ela. Em Irajá, segundo os relatos de Monsenhor Pizarro, as sepulturas no interior da matriz tinham valores muito diferentes: as que se encontravam da porta principal até as travessas custavam 1$000 reis, as no Foraõ[sic.] 2$000 reis, das portas travessas até as grades 4$000 reis e das grades até o arco 8$000 reis348. Nos óbitos de Irajá encontramos vários escravos sendo sepultado dentro da matriz, o que pode representar o cuidado e a preocupação que esses cativos ou alguns senhores e parentes/companheiros tinham com o local da sepultura. Isto porque não devemos descartar a ideia de que quem pagaria pela cova de fábrica poderia ser tanto o próprio cativo ou escravos do seu círculo de relações quanto o proprietário do escravo. Mas isso é algo que será explorado mais adiante. A existência de locais diferentes de sepultamentos em Irajá nos leva a cogitar quais seriam as sepulturas mais procuradas pela população da região para sepultamento de seus escravos. Sabemos que 184 deles foram enterrados em covas da irmandade, mas e os demais? A Tabela 15 nos dá o panorama dessa situação.

346 Livro de óbitos dos escravos de Irajá 1730 a 1781 347 Livro de óbitos de pessoas livres de Irajá 1731 A 1781 348 PIZARRO E ARAÚJO, José de Souza. O Rio de Janeiro nas visitas pastorais, p. 72

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TABELA 15. Locais de sepultamento em Irajá LOCAL DE Crioulo Africano Reinol Sem TOTAL SEPULTURA referência Cova da fábrica 162 14,0% 59 4,0% - - 119 9,0% 339 8,3% Cova da irmandade 63 5,4% 37 2,3% - - 84 6,3% 184 4,5% Capela do engenho 05 0,4% 14 0,9% - - 11 0,8% 30 0,7% Adro 606 51,8% 647 41,0% 01 100% 758 57,0% 2012 49,0% Cemitério 322 27,5% 807 51,0% - - 326 24,0% 1455 36,0% Ilegível 10 0,8% 12 0,7% - - 38 3,0% 60 1,5%

TOTAL 1168 100% 1576 100% 01 100% 1335 100% 4080 100%

FONTE: Livros de registros de óbitos dos escravos da freguesia de Irajá: 1730-1781/1777- 1794/1794-1809.

Apesar do número considerável de óbitos sem indicação da procedência do escravo, 1.335 (32,7%), foi possível identificar que parte significativa era de africanos. O que não seria uma novidade, devido ao grande contingente de cativos que chegavam constantemente no Rio de Janeiro e provavelmente comprados em quantidade considerável pelos senhores de Irajá. A tabela nos mostra que a maioria dos escravos da região foi enterrada no cemitério e no adro, o que também não seria uma novidade. Dos 1.455 cativos que foram sepultados no cemitério, 807 (55,4%), eram africanos, enquanto que 322 (22,8%) eram crioulos. Já com relação ao Adro, apesar de o número de africanos ainda ter sido maior 647 (32,1%), os de crioulos chegou perto 606 (30,1%). No entanto, temos que esclarecer que boa parte desses crioulos não eram adultos, mas em sua maioria inocentes; questão que exploraremos mais adiante. Quanto ao sepultamento dentro da igreja, a diferença se faz grande. Dos 339 defuntos que foram enterrados em covas da fábrica, somente 59 (17,4%) foram de cativos africanos; enquanto 162 (47,8%) escravos nascidos na colônia tiveram o privilégio de ser enterrado em uma sepultura da fábrica. Porém, não podemos esquecer que boa parte desses crioulos não eram adultos, mas inocentes. As covas da irmandade também apresentaram um número pequeno de acesso de africanos a esse tipo de sepultura, 37 (20,1%), enquanto os crioulos foram 63 (34,2%). Mas mesmo com um número reduzido de acesso as sepulturas dentro da matriz podemos perceber o quanto os cativos africanos de Irajá se preocupavam com a morte sem ritual e tentavam buscá-la da melhor maneira possível, mesmo que não estivesse totalmente dentro dos padrões do ritual africano de bem morrer.

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De acordo com Claudia Rodrigues, os cativos africanos ao aderirem às práticas fúnebres católicas, não estariam fazendo isso somente porque aquela era a permitida pelo Estado, mas porque de alguma forma acreditavam nelas349, porque via nelas alguma semelhança, o excesso ritualístico e simbólico350 seria alguns dos elementos similares que poderiam levar a essa adesão por parte dos africanos. Isso fica ainda mais claro quando verificamos quem realmente eram os crioulos que foram sepultados em covas de irmandade. A metade deles eram inocentes, filhos em sua maioria de africanos. Isso mostra que os cativos de Irajá que se filiaram a uma irmandade não estavam preocupados somente com a própria alma, mas com a de sua família também, assim como fizeram os negros pertencentes às irmandades localizadas nas áreas urbanas. A tabela também mostrou que apesar de serem em número um pouco menor dentro da comunidade escrava de Irajá, os crioulos foram os que mais tiveram acesso às covas em lugares privilegiados, comparativamente aos africanos. Entre aqueles que foram sepultados em cova da fábrica, a metade era de inocentes e, neste caso, os pais em sua maioria eram crioulos. Isso talvez seja pelo fato de terem sido criados desde cedo em um ambiente católico. De acordo com Claudia Rodrigues, à medida que gerações caminhavam, a cultura cristã ocidental afirmava-se sobre a memória africana351. Portanto, por já estarem inseridos nas tradições católicas, a busca por uma sepultura eclesiástica para si e seus entes queridos seria praticamente algo comum. Diferente dos africanos, que primeiramente tinha que aprender a cultura, aceita-la, de certa forma, ou melhor dizendo, encontrar semelhanças com suas tradições, para depois tentar encontrar formas de conseguir ter acesso aos benefícios para “bem morrer”. O que muitas vezes não dava tempo, e por isso um número reduzido de cativos africanos sendo sepultados dentro da igreja. Para finalizar esta parte sobre sepulturas em locais privilegiados, temos o sepultamento no interior das capelas de engenhos; estas apresentavam uma situação totalmente diferente. Dos 30 cativos que foram sepultados nas ermidas localizadas nos engenhos de Irajá, 14 eram africanos enquanto cinco eram crioulos. Uma situação completamente inversa que nos leva a alguns questionamentos. Se levarmos em consideração que as capelas estavam localizadas nas terras pertencentes a um

349 RODRIGUES, Claudia, Lugares de morte na cidade dos vivos, 1997, p. 156 350 RODRIGUES, Claudia, Lugares de morte na cidade dos vivos, 1997, p. 167 351 RODRIGUES, Claudia, Lugares de morte na cidade dos vivos, 1997, p. 207

149 determinado senhor e que estas teriam sido construídas devido a uma devoção particular, muitas vezes relacionada a algum evento dramático ocorrido na vida do proprietário ou até de seus antepassados que levaram ao culto a um determinado santo, isso nos leva a entender que esse ambiente de oração tinha toda uma relação pessoal, intima, muito restrita ao âmbito familiar dos senhores. Para a realização de um sepultamento no interior de uma ermida, o responsável por ela deveria ter primeiramente a permissão do vigário da matriz. A capela de São João Batista, localizada no Engenho de Sacopema, pertencente ao capitão João Pereira de Lemos (e, depois, à sua viúva, D. Ana Maria de Jesus), era uma das poucas que tinham essa permissão. Alguns escravos deste senhor tiveram a oportunidade de serem sepultados dentro dela; estes eram em sua maioria africanos, sendo duas mulheres e quatro homens solteiros; enquanto duas mulheres casadas e uma criança de oito anos eram os crioulos. Todos receberam os últimos sacramentos e foram encomendados pelo sacerdote que atuava naquela capela. Apesar de ser terminantemente proibido o enterro em capelas sem autorização da Igreja, alguns senhores acabavam realizando sepultamentos irregularmente. Este é o caso do dono da capela localizada no Engenho dos Afonsos. Encontrei seis registros indicando a ermida deste engenho como local de sepultamento. Os óbitos não diziam muita coisa sobre os defuntos: a maioria eram homens, com a indicação de procedência de somente dois (gentio da Guiné), sendo que um deles era solteiro; dois registros informavam que os cativos tinham sido encomendados pelo pároco da matriz; três indicavam que o sepultamento foi autorizado pelo vigário da matriz de Irajá; somente um óbito indicava que o defunto recebeu apenas o sacramento da penitência e os demais registros diziam: “não recebeu sacramento por não chamarem”. Como vimos nesta pesquisa, o adro foi o local onde a maior parte dos cativos de Irajá foram enterrados, certamente por ser um local de sepultamento gratuito. Porém, ele fazia parte do espaço designado como pertencente à igreja, estava junto ao templo, mas mesmo tão próximo era considerado como um local desprivilegiado, devido à distância que estava dos santos. As covas existentes no adro eram administradas pela fábrica, deste modo a Igreja não cobrava pelo espaço onde estava a cova, mas se cobrava um valor pelos demais serviços ligados ao sepultamento. Milra Bravo aponta que na cidade do Rio de Janeiro no século XVIII o local onde seriam enterrados aqueles que não tinham condições de pagarem pelos custos

150 de um sepultamento dentro da igreja ou no adro tinham como destino o cemitério352. Segundo ela, este era o local onde eram sepultados os “desprivilegiados”353. Adalgisa Campos considerou para as Minas setecentistas que os cemitérios eram literalmente acoplados aos monumentos religiosos e eram raramente cercados ou murados354. De acordo com o dicionário Moraes e Silva, cemitério era o nome designado ao terreno descoberto a céu aberto, em que se enterravam os defuntos355. Segundo João José Reis, este seria mais desprestigiado ainda, pois além de pobres e escravos também recebia os indigentes e os criminosos356. Esta má fama estaria associada a um pensamento comum na Europa de que sepulturas abertas a céu aberto estavam relacionadas ao desleixo, ao abandono dos funerais, ou ainda seria o local daqueles que não seriam recordados pela memória dos vivos357. De acordo com Mara Regina do Nascimento, a cova distante do templo religioso possuía um aspecto completamente negativo, pois era vergonhoso enterrar pessoas como animais358. Em Irajá havia dois cemitérios, o da matriz de Nossa Senhora da Apresentação e o da capela de São João Batista em Sacopema. De acordo com as fontes, o cemitério da matriz estava localizado em torno da própria igreja. No entanto, ao verificar alguns óbitos foi possível perceber que às vezes o pároco tinha dificuldade na hora de redigir o óbito e identificar onde realmente o cativo foi sepultado. Em um dos assentos dos escravos é possível verificar essa dificuldade de localização.

Aos vinte e cinco dias do mês de outubro de mil setecentos e noventa e dois faleceu da vida presente de idade de cinqüenta dias o inocente GERALDO filho legítimo de Domingos Benguela e Izabel crioula escravo do capitão João de Farias foi por mim encomendado jaz

352 BRAVO, Milra Nascimento. Hierarquias na morte: uma análise dos ritos fúnebres católicos no Rio de Janeiro (1720-1808). Dissertação de mestrado – Programa de Pós-graduação em História da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro, 2014, p. 160 353 BRAVO, Milra Nascimento. Hierarquias na morte, 2014, p. 160 354 CAMPOS, Adalgisa Arantes. Locais de sepultamentos e escatologia através de registros de óbitos da época barroca: A freguesia de Nossa Senhora do Pilar de Ouro Preto. Revista Varia História, nº31, janeiro de 2004, p. 108 355 Cf. SILVA. Antonio de Moraes. Grande Dicionário da Língua Portuguesa. Confluências, 945, p. 1081. 356 REIS, João José. A morte é uma festa: ritos fúnebres e revolta popular no Brasil do século XIX. São Paulo: Companhia das letras, 1991, p. 193 357 AIRÈS, Phelippe. História da morte no Ocidente, p.380 .Apud. NASCIMENTO, Mara Regina. Irmandades leigas em Porto Alegre: práticas funerárias e experiência urbana século XVIII-XIX. Tese de doutorado pelo curso de Pós-graduação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, 2006, p. 229 358 NASCIMENTO, Mara Regina. Irmandades leigas em Porto Alegre: práticas funerárias e experiência urbana século XVIII-XIX. Tese de doutorado pelo curso de Pós-graduação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, 2006, p. 229

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sepultado no cemitério ou adro junto à porta principal e para de tudo constar fiz este assento em que me assinei359.

Diferente de muitas freguesias, aonde pela documentação alguns historiadores chegaram à conclusão de que o termo adro foi substituído por cemitério devido ao desaparecimento da palavra nos documentos360; na freguesia de Nossa Senhora da Apresentação a mesma situação não ocorreu. Durante todo o período abordado nesta pesquisa, no momento em que o termo cemitério começa a aparecer nos documentos o adro ainda continuava sendo usado, é como se tivesse sido criado um novo local de sepultamento. Pelo que foi possível perceber por meio das fontes é que o cemitério da matriz provavelmente ocupava uma das laterais e os fundos da igreja. Nenhum documento foi encontrado com a informação de quando ocorreu à inauguração do cemitério da matriz, a única referência que temos é o óbito de Ventura, escravo de dona Josefa Maria de Abreu, enterrado no “cemitério da matriz”, em 1740361. Depois desta data, este local de sepultamento não aparece mais nos assentos, somente retornando em 1781, quarenta e um anos depois. Deste ano em diante ele passa a ser o local mencionado como tendo sito o do enterro dos escravos de Irajá. Assim como o cemitério da matriz, o mesmo aconteceu com o da capela de São João Batista, no engenho de Sacopema. Ele foi citado pela primeira vez em 1738, no assento de Manoel, escravo casado e pertencente a Joaquim de Siqueira Lapa362. Depois só vai reaparecer em 1782 com o sepultamento de Antonio, escravo solteiro de Dona Ana Maria de Jesus363. Deste momento em diante, ele passou a ser o local de sepultamento constante dos escravos moradores do próprio engenho e vizinhanças. É importante esclarecer que ali foram sepultados vários cativos, mas é possível que também tenha sepultado pessoas livres também. Os dois cemitérios provavelmente deveriam apresentar uma boa aparência, para os padrões da época, pois, caso contrário, certamente Monsenhor Pizarro teria comentado durante a visita que fez em 1794, assim como fez com o cemitério

359 Livro de registro de óbitos dos escravos de Irajá 1777-1794. 360 Sobre esta questão procurar: NASCIMENTO, Mara Regina. Irmandades leigas em Porto Alegre: práticas funerárias e experiência urbana século XVIII-XIX. Tese de doutorado pelo curso de Pós- graduação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, 2006 e BRAGA, Vitor Cabral. Lugares para “bem morrer”no Recôncavo da Guanabara/RJ: irmandades, ritos e tensões na geografia da morte (c. 1720-1800). Dissertação de mestrado pelo curso de Pós-graduação da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro, 2015. 361 Registros de óbitos dos escravos da freguesia de Irajá, livro 1730-1781 362 Registros de óbitos dos escravos da freguesia de Irajá, livro 1730-1781 363 Registros de óbitos dos escravos da freguesia de Irajá, livro 1781-1794

152 localizado nas terras do guarda-mor Fernando Dias, da freguesia de Santa Família, atualmente região de Paulo de Frontin. Ao visitar a única capela existente nesta freguesia, Pizarro foi informado que lá havia um cemitério para sepultamento dos escravos da própria fazenda e da vizinhança também. O visitador conta que o descaso era tanto com relação ao estado do cemitério que foi necessário que ele desse uma advertência para que houvesse uma solução364. Depois de identificarmos os locais de sepultamentos dos escravos de Irajá ficou nítido que havia um grupo seleto de cativos que se destacavam dos demais escravos da região e que por esse motivo conseguiram ser sepultados dentro da matriz de Irajá e nas capelas dos engenhos da mesma freguesia. Assim chegamos ao seguinte questionamento: como esses escravos conseguiram obter este privilégio? Não só isso, também nos questionamos como os cativos de Irajá conseguiam pagar por essas covas? Quem assegurava este tipo de sepultamento? De acordo com Roberto Guedes, os escravos que trabalhavam distante de seus senhores tinham mais espaço de independência. Portanto, escravos que trabalhavam em atividades madeireiras, transporte marítimo, que tinham mais facilidade de deslocamento tinham maior autonomia365. É provável que por ser uma região em que parte de sua produção fosse levada tanto para cidade do Rio de Janeiro quanto para outras capitanias tornasse possível que os escravos envolvidos nas atividades ligadas a esses transportes possam ter sido beneficiados com algum recurso financeiro que os levassem a adquirir o acesso a uma sepultura em local privilegiado. Outra forma de adquirir algum rendimento seria através do acesso a um pedaço de terra para cultivar; o que poderia beneficiar o escravo ao retirar dela algum lucro por meio da venda daquilo que cultivava. Mas com relação à morte do cativo, seria ele mesmo o responsável pelo pagamento da sepultura? Sabemos que alguns escravos tinham uma relação muito mais próxima com o senhor do que outros cativos, principalmente os de pequenas escravarias e os escravos domésticos. Esse tipo de relacionamento poderia nos levar ao seguinte questionamento: essa aproximação poderia ser tão grande chegando ao ponto de no momento da morte do cativo levar o senhor a tomar a decisão de disponibilizar uma cova em local privilegiado como forma de agradecimento pelos bons serviços prestados? Essa é uma das questões que será discutida a seguir, pois é possível que

364 ARAUJO, Monsenhor Pizarro. O Rio de Janeiro nas visitas pastorais de Monsenhor Pizarro, p. 11 365 GUEDES, Roberto Ferreira. Autonomia escrava e (des)governo senhorial na cidade do Rio de Janeiro da primeira metade do século XIX. In: Florentino, Manolo. Escravos, tráfico e cativeiro: Rio de Janeiro, (séculos XVIII-XIX). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005, p. 234.

153 alguns escravos tivessem tido o funeral pago pelo próprio senhor como forma de agradecimento pela lealdade dispensada em vida. Sendo assim, a morte não impediria o proprietário de favorecer seu escravo, pelo contrário ela poderia tanto beneficiar o cativo quanto o senhor.

3.4. Hierarquia entre os escravos através dos locais de sepultamentos

De acordo com João Fragoso, nas senzalas dos engenhos do Rio de Janeiro haviam grupos de escravos que se destacavam dos demais cativos devido a proximidade com seus senhores, criando assim um ambiente de estratificação social em meio a própria escravaria. Isso se daria devido às relações de patronagem-clientela estabelecidas entre a nobreza da terra com os escravos, índios, forros etc., através das alianças formadas muitas vezes pelo apadrinhamento. Este tipo de relação fortalecia o domínio dessa elite sobre o restante da população e contribuía para aproximação das camadas sociais mais inferiores, como a dos escravos, com a elite, criando assim, formas de tratamentos distintas que trariam uma diferenciação entre os cativos de uma mesma propriedade ou de propriedades diferentes366. Segundo Manolo Florentino e Roberto Góis, o escravo era definido como uma mercadoria, objeto das mais variadas transações mercantis: venda, compra, empréstimo, doação, transmissão por herança, penhor, sequestro, embargo, depósito, arremate e adjudicação367. A relação estabelecida com o senhor era baseada na obrigação de o escravo trabalhar, ser leal e obediente, enquanto da parte do senhor era de proteger o cativo, fornecendo-lhe alimentação e orientação para vida social368. Na América lusa, a escravidão não era regulada por códigos produzidos pelo Estado, as relações entre senhores e cativos eram do âmbito da casa, cabendo à família regulá-

366 FRAGOSO, João. Elite das senzalas e nobreza da terra numa sociedade rural do Antigo Regime nos trópicos: Campo Grande (Rio de Janeiro), 1704-1741 ___ In: FRAGOSO, J. e MACHADO, C. O Brasil Colonial, vol. 3. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2014. 367 FLORENTINO, M. e GÓES, J.R. A Paz nas senzalas: famílias escravas e tráfico atlântico, Rio de Janeiro, c. 1790 – c. 1850. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1990. 368 FRAGOSO, João. Elite das senzalas e nobreza da terra numa sociedade rural do Antigo Regime nos trópicos, 2014.

154 las369. Segundo Marcio Soares, essa relação era carregada de sutilezas, mas nem por isso deixaria de ser bastante desiquilibrada, sendo a favor daqueles que mandavam370. Não era raro que muitos senhores ao terem sua autoridade reconhecida, acabassem por distribuir incentivos e prêmios a determinados cativos371. Desta forma, uma boa relação baseada na obediência e na lealdade por parte do escravo poderia gerar determinados benefícios, que variavam entre o direito a um quarto ou casa separado da senzala, um partido de terra ou até a tão sonhada liberdade adquirida através das cartas de alforria. Benefícios como o casamento e o acesso a um espaço de moradia separado permitiam ao escravo a possibilidade de recriação do ritual de convivência familiar e transmissão de tradições e crenças religiosas372. O acesso ao próprio pedaço de terra possibilitava a criação de animais e o cultivo de uma roça especializada em alimentos que contribuíam na aproximação com os ancestrais, ou seja, alimento para o corpo e para alma também373. Essas benfeitorias poderiam segundo, Robert Slenes, gerar um controle sobre a economia doméstica através da cultura374. As benfeitorias não somente garantiriam uma pequena melhora no viver dentro do ambiente escravo, elas também colaborariam para a formação de uma hierarquia entre os cativos. Assim como em vida certos benefícios garantiriam a elevação do status social do escravo dentro da comunidade cativa, a morte também poderia expor a posição social que o cativo possuiria em vida. Como já vimos neste trabalho, a sepultura dentro das capelas e das igrejas poderia representar o privilégio que uma pessoa tinha diante da sociedade em que ela estava inserida, mas não somente o local da cova dava esse destaque social, o funeral também contribuía para esta representação. Em geral, na sociedade escravista brasileira, o cortejo fúnebre com a presença de irmandades, do pároco ou do sacristão e de outras pessoas eram alguns dos elementos que colaboravam para demonstração do status social do morto. No entanto, todos esses aparatos eram pagos e nem todos tinham condições de pagar. Mas analisando os óbitos dos escravos de Irajá encontrei assentos que indicavam o cortejo

369 FRAGOSO, João. Elite das senzalas e nobreza da terra numa sociedade rural do Antigo Regime nos trópicos, 2014. 370 SOARES, Marcio de Souza. A promessa de alforria e os alicerces da escravidão na América Portuguesa. ___ In: GUEDES, Roberto (organizador). Rio de Janeiro: Mauad X, 2011. 371 SOARES, Marcio de Souza. A promessa de alforria e os alicerces da escravidão na América Portuguesa, 2011. 372 SLENES, Robert W. Na senzala uma flor: esperanças e recordações da família escrava, Brasil Sudeste, século XIX. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999, p. 180-197. 373 SLENES, Robert W. Na senzala uma flor, 1999, p. 180-197. 374 SLENES, Robert W. Na senzala uma flor, 1999, p. 180-197.

155 fúnebre de alguns cativos. Neles, o morto teve o acompanhamento do sacristão e da cruz da fábrica.

Aos vinte e dois dias do mês de setembro do ano de mil oito centos e oito faleceu da vida presente sem sacramentos por ser demente e morrer apressadamente de idade de cinquenta anos mais ou menos BOAVENTURA PRETO DE NAÇÃO GANGUELLA casado com Agueda crioula e ambos escravos do Engenho Novo do qual é senhorio o Doutor Francisco Xavier de Lima foi por mim encomendado com assistência da cruz da Fabrica e sacristão da paróquia e jás sepultado na quinta sepultura da segunda carreira pertencente a Fabrica veio amortalhado em branco o que para de tudo constar fiz este assento que assinei375.

Registros como do escravo Boaventura foram poucos, somente 25 cativos de 24 senhores diferentes, foram contemplados com este benefício, sendo que cinco eram de escravos ligados a irmandades. O que parece ser pouco, considerando que o cortejo aos irmãos era um dos benefícios que as irmandades costumavam oferecer. Mas, mesmo nestes casos, devemos considerar que poderiam ser cativos que teriam um relacionamento mais próximo com seus senhores. Ignácia e Francisca eram escravas solteiras, a primeira era crioula e a segunda parda, ambas eram cativas de Thereza Maria de Jesus, moradora em terras do engenho do Portela. Custódio era cabra, viúvo, escravo de Dona Ana Maria do Amaral Gurgel. Josefa Quaresma, era viúva do crioulo Salvador e escrava de Miguel Domingues. Deste senhor, a única referência que temos é que ele morava em Irajá, provavelmente era uma pessoa de poucas posses. Por último Juliana Cabunda, esta era casada com Melchior Monjolo e escrava dos herdeiros de Frutuozo Pereira, senhor de um engenho próximo ao de Brás de Pina. Estar associado a uma irmandade era algo para poucos. É provável que esses escravos tenham sido responsáveis por algum cargo importante dentro da irmandade do Rosário, pois seus óbitos foram os únicos que possuíam a referência de que houve o acompanhamento da cruz e do sacristão. Ainda analisando os vinte cinco assentos, também pude perceber que somente quatro escravos pertenciam a grandes proprietários, eram eles: o doutor Francisco Xavier de Lima, dono de Boaventura e senhor do Engenho Novo; o capitão Bento de Oliveira Braga, dono do pardo Teodózio e senhor do engenho de Nazaré;

375 Registro de óbitos dos escravos da Freguesia de Nª Sª da Apresentação de Irajá - Livro de 1794 a 1809, Imagem 335)

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Dona Ignacia Maria da Conceição, dona de Jacinto Angola e senhora do engenho dos Afonsos. Os demais pertenciam a pessoas que residiam dentro dos grandes engenhos de Irajá. Nenhum dos vinte quatro senhores sepultou mais de um escravo com tanta pompa. O que nos confirma que estes cativos eram homens e mulheres importantes no meio escravo e que também eram poucos os cativos conseguiram ter uma relação mais próxima com os senhores de grandes engenhos. Como esses escravos conseguiram obter este tipo de funeral? Durante a elaboração desta pesquisa não encontrei nenhum documento que informasse o responsável pelo pagamento das despesas referentes aos sepultamentos em covas da fábrica, mas alguns óbitos levaram a cogitar que deveria ser os próprios senhores que arcavam com essas despesas. Entre os assentos que induzem a acreditar nessa possibilidade foram os da escrava de Francisco de Melo que foi sepultada em cova do Santíssimo Sacramento, em 1806; do escravo Domingos que por não ser irmão de nenhuma irmandade pagou a fábrica da igreja para poder ser enterrado, em 1771; o da inocente Joana, escrava do capitão Luis Manoel de Oliveira que foi sepultada em cova da fábrica, em 1792, mas foi paga por outra pessoa376. Esses óbitos só nos levam a constatação de que em determinados casos quem pagava as contas do funeral eram os senhores. Eram eles que pagavam os dos cativos que eram enterrados no adro e no cemitério, e isso pode ser confirmado pelo assento do escravo Felipe que fora abandonado pelo seu senhor, o cirurgião mor Luis Jose de Almeida e Melo. O mesmo tinha por volta de setenta anos e vivia de pedir esmolas, faleceu na casa do tenente João Barboza da Silva. Foi enterrado no cemitério, em 1808, e teve seu corpo encomendado pelo reverendo José Joaquim Pereira Leal, tudo pago por meio de esmolas377. Pela riqueza de informações contidas nos óbitos dos escravos de Irajá, foi possível identificar, ao mesmo tempo, o cuidado e o descaso que muitos senhores e até própria população tinha com a morte dos cativos. Um exemplo disso foi o próprio caso do escravo Felipe, citado anteriormente. Esse tipo de descaso com o morrer dos escravos era algo que a própria Igreja repudiava. As Constituições Primeiras possuíam um parágrafo tratando desta questão.

E porque é alheio da razão e piedade cristã que os senhores que se serviram de seus escravos em vida se esqueçam deles em sua morte,

376 Registros de óbitos dos escravos da freguesia de Irajá, livro 1794-1809, p. 118 377 Registros de óbitos dos escravos da freguesia de Irajá, livro 1794-1809, imagem 325

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lhes encomendamos muito que pelas almas de seus escravos defuntos [...]378.

E porque na visita que temos feito de todo nosso arcebispado achamos (com muito grande mágoa de nosso coração) que algumas pessoas, esquecidas não só da alheia, mas da própria humanidade, mandam enterrar seus escravos no campo e mato como ser foram brutos animais, sobre o que, desejando Nós prover e atalhar esta impiedade, mandamos, sob pena de excomunhão maior ipso facto incurrenda e de cinqüenta cruzados pagos do aljube, aplicados para o acusador e sufrágios do escravo defunto, que nenhuma pessoa, de qualquer estado, condição e qualidade que seja, enterre ou mande enterrar fora do sagrado defunto algum sendo cristão batizado, ao qual, conforme a direito, se deve dar sepultura eclesiástica, não se verificando nele algum impedimento [...] pelo qual se lhe deva negar. E mandamos aos párocos e nossos visitadores que com particular cuidado inquiram do sobredito379.

A Igreja se preocupava com a morte dos escravos e estava ciente de que alguns senhores não estavam atentos aos cuidados com a salvação da alma dos cativos. Por isso, apresentava punição para aqueles que não cumprissem com a obrigação de sepultar seus escravos falecidos. Porém o que podemos verificar é que para Irajá a morte era vista com bastante cautela pela população da região, pois foram pouquíssimos os casos como o do escravo Felipe. Pela documentação, foi possível verificar que até mesmo escravos foragidos tinham o seu nome registrado no livro de óbitos.

Aos vinte do mês de outubro de mil setecentos e quarenta e nove anos faleceu da vida presente [FELICIANO?] preto escravo de Andre da [Silva?] sem sacramentos por andar fugido no mato e achado morto no campo está sepultado no adro desta paroquial igreja de Nª Sª da Apresentação de Irajá de que fiz este assento380.

Aos vinte e três do mês de abril do ano de mil setecentos e noventa e um foi achada morta no largo desta freguesia uma preta morta foi por mim encomendada e depois do sacristão da [ventana] desta freguesia lhe fazer corpo de delito foi sepultada no cemitério desta igreja [...] por não saber de quem seja a escrava e para constar fiz este assento em que me assinei381.

Esse último registro nos mostra que nem os indigentes eram desprezados. O corpo da defunta antes de ser sepultado foi examinado e depois enterrado no cemitério. O que nos mostra que os cuidados com a morte dos cativos não ficavam restritos

378 Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia, Titulo LI nº 838. 379 Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia, Titulo LIII nº 844. 380 Registro de óbitos dos escravos de Irajá (1730-1781), p. 159 381 Registro de óbitos dos escravos de Irajá (1777-1794 – imagem 108)

158 somente àqueles que tinham dono, já que os sepultamentos daqueles sem a menor identificação também pareciam ser comuns na região. Muitos óbitos não declararam se houve ou não funeral, mas apresentavam a localização exata da sepultura ou diziam a quem pertencia a cova. Assim foi o caso dos escravos Izabel, Marcela e Francisco. Os três foram mencionados nos assentos que tinham “sepultura própria dentro da matriz”. Além destes, dois inocentes filhos de duas escravas de Gabriel Antunes Suzano, faleceram, em 1791 e foram sepultados na cova que pertencia ao próprio senhor382. As duas crianças possivelmente seriam filhos dele, afilhados, etc, pois, segundo os dois óbitos, a sepultura pertencia ao próprio Gabriel Suzano. A atitude deste senhor indica que havia em meio a sua escravaria aqueles cativos por quem ele certamente tinha maior apreço, pois além dos cinco já citados, o mesmo senhor enterrou mais nove, todos sepultados no adro e no cemitério da matriz. Esta informação reforça o meu argumento de que quem pagava pelos sepultamentos dos escravos nos lugares privilegiados eram os próprios senhores. Sabemos que na região havia alguns engenhos que no final do século XVIII, ainda estavam em pleno funcionamento. Identificamos os proprietários de alguns desses engenhos e pela quantidade de escravos sepultados de cada um deles criamos a Tabela 16. Nela está indicado o nome de somente dez. A escolha foi feita a partir da quantidade de escravos registrados nos assentos de óbitos pertencentes a esses senhores, independentemente da localização.

Tabela 16. Nome dos senhores que tiveram escravos sepultados em Irajá

SENHORES TOTAL Dentro da Dentro matriz Adro do Capela engenho Cemitério Sem referência Bento Luis de Oliveira Braga 30 60 - 75 3 168 João Pereira de Lemos 13 4 10 108 - 135 Bartolomeu Cordovil de Siqueira e Melo - 26 - 41 1 68 Luis Manoel de Oliveira 7 21 - 46 1 75 Brás de Pina 2 54 - - - 56 Frutuozo Pereira 13 22 - 16 1 52 Francisco Ignacio Xavier do Canto - 5 - 38 - 47

382 Registro de óbitos dos escravos de Irajá (1794-1809)

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Francisco Xavier de Lima 3 13 - 14 - 30 Thereza Machado 9 4 - 14 - 27 Francisco Soares de Melo 7 5 - 12 - 24

TOTAL 84 233 10 349 6 682

FONTE: Livros de registros de óbitos dos escravos da freguesia de Irajá: 1730-1781/1777- 1794/1794-1809.

Devemos atentar para o fato de que alguns engenhos apresentaram mudanças quanto ao seu respectivo senhor, ao longo dos anos, passando de pai para filho, como no caso dos engenhos de Nazaré (de Bento de Oliveira Braga), Sacopema (de João Pereira de Lemos), o do caminho para Penha (de Frutuozo Pereira) e o do Provedor da Fazenda (de Bartolomeu Cordovil de Siqueira). O que rapidamente podemos constatar é que assim como os demais proprietários de escravos de Irajá, a maior parte dos cativos desses dez senhores foi sepultada no adro ou no cemitério. A família Cordovil (Engenho do Provedor da Fazenda) foi uma que simplesmente não teve nenhum escravo sepultado na igreja e nenhum nem sequer ligado a alguma irmandade. Em situação parecida esteve Francisco Ignacio Xavier do Canto, que sepultou 47 escravos, em sua maioria no cemitério e nenhum na igreja, provavelmente pela situação que se encontrava a maior parte de seus cativos adultos. Todos eram boçais, o que nos leva a entender que não tiveram tempo de conhecer as tradições católicas e nem de criar vínculos com seu senhor ou com os demais escravos, a ponto de ingressar em uma irmandade e, assim, ser sepultado em uma de suas covas. Poderia ser, também, o caso de terem adoecido logo após a chegada, conforme analisamos no início deste capítulo. Provavelmente por isso, foram todos sepultados no cemitério. Caso parecido também é o de Brás de Pina. Durante o período em que esteve à frente de seu engenho, sepultou todos os escravos no adro, com exceção de dois, que foram sepultados dentro da matriz, sendo que um deles era pardo. É provável que Brás de Pina tenha tido uma relação mais próxima com este escravo. Cogito a ideia de que o rapaz poderia ser até seu filho ou afilhado, mas isso é algo que infelizmente não temos como confirmar. Com relação aos cativos de Bento de Oliveira Braga e João Pereira de Lemos, vemos que o primeiro sepultou 168 cativos. Destes, 30 (18%) foram inumados dentro da igreja. Já o segundo, sepultou 136 no total, mas dentro da matriz só foram 12 (9%). Além do grande número de sepultamentos em lugar privilegiado dos 30 escravos pertencentes a Bento de Oliveira, 20 foram enterrados em covas da irmandade.

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Certamente, não foram pagas por este senhor. Já dentre os de João Pereira de Lemos, somente oito cadáveres estavam ligados à irmandade do Rosário, os outros quatro foram enterrados em sepulturas da fábrica. Mas, desses dez senhores, somente a família Pereira de Lemos teve 10 escravos sepultamentos na ermida de sua própria propriedade. A capela de São João Batista, de Sacopema, tinha uma grande representação dentro de Irajá, pois, de acordo com a documentação, ela tornou-se filial da matriz de Nossa Senhora da Apresentação no final do século XVIII. Nela, segundo Manoela Pedroza, foram realizados os casamentos de pessoas que se tornaram importantes senhores de engenho em outras freguesias como o casal Manoel Antunes Suzano e Luiza Nunes de Souza, responsáveis pela implantação dos primeiros engenhos de açúcar na freguesia de Campo Grande e da formação da elite local da mesma região383. Nesse sentido, São João Batista, não seria uma simples capela de engenho, mas a representação da própria matriz em uma paragem distante. Portanto, esses nove escravos além de terem seus corpos sepultados nas terras onde estavam seus entes queridos, estavam enterrados em solo que tinha a mesma representatividade da matriz. Com uma análise mais aprofundada sobre a escolha dos locais de sepultura, foi possível perceber que alguns senhores foram criando certos critérios para o enterro de seus cativos ao longo dos anos. Bento de Oliveira Braga, que foi responsável pelo engenho de Nazaré, a partir do final dos anos de 1790, passou a sepultar os inocentes somente no adro e os demais no cemitério da matriz. Entre os anos de 1804 a 1808, dos 19 inocentes sepultados pertencentes a ele, somente 6 tiveram seus corpos enterrados dentro da igreja, sendo que esses seis foram em cova do Rosário. Bento Luis, pai de Bento de Oliveira, durante o tempo que esteve à frente do engenho de Nazaré também já faziam a mesma distinção, depois que ocorreu a possível divisão entre adro e cemitério, este senhor também passou a enterrar seus escravos inocente no adro e o restante no cemitério. Dos 32 inocentes falecidos pertencentes a ele somente um foi enterrado no cemitério e outro em cova da fábrica, os demais foram todos enterrados no adro da matriz. Esta mesma atitude foi tomada por Bartolomeu Cordovil de Siqueira e Melo (Engenho do Provedor da Fazenda), já que após a implantação do cemitério da matriz o mesmo passou a sepultar todos os escravos menores de sete anos no adro paroquial. O capitão Francisco Ignacio do Canto, também foi outro que sepultou os inocentes no

383 PEDROZA, Manoela da Silva. Capitães de bibocas: casamento e compadrios construindo redes sociais originais nos sertões cariocas (Capela de Sacopema, freguesia de Irajá, Rio de Janeiro, Brasil, século XVIII). Revista Topoi, v. 09, nº 17, jul-dez, p. 67-92

161 adro. No entanto, entre os registros de seus escravos foi encontrada uma exceção, um escravo adulto, identificado como muito velho que também foi enterrado no adro. Essa escolha tanto pode ter partido da família do defunto, dos companheiros de cativeiro ou mesmo do próprio senhor. Ainda não temos certeza, mas esta situação me faz acreditar que alguns desses senhores poderiam pensar que os escravos não tinham direito de ser sepultados dentro da igreja por serem cativos e pertencerem à camada considerada mais inferior da sociedade. Além de, segundo destacou Manolo Florentino, serem vistos como uma mercadoria. Mas como a Igreja alegava que precisavam ser catequizados, para pagar pelos seus pecados384, dar-lhes um sepultamento em local afastado dos santos lhes garantiria um tempo muito maior de purgação dos pecados. Por isso, o cemitério seria o lugar mais apropriado para enterrar uma mercadoria considerada pela igreja merecedora de um sepultamento eclesiástico. Já os inocentes, estariam em outro patamar: não teriam cometido pecado, segundo a escatologia católica, a não ser aquele do nascimento. Portanto o adro pode ter sido visto pelos proprietários ou pelo pároco como mais que suficiente para eles. Apesar do adro ser considerado pela sociedade colonial um local de sepultamento desprivilegiado, não podemos esquecer que ele estava acoplado à igreja e, portanto, era sagrado. Em Irajá, a maioria das pessoas que foram enterradas neste local eram escravas e, analisando os registros de óbitos dos livres de Irajá, verifiquei que de um total de 677 assentos (referentes ao período de 1730-1787), somente 42 defuntos foram enterrados no adro, sendo que a maioria era de ex-cativos ou livres pobres385. Mas apesar da desvalorização do lugar, a esperança de ser lembrado nas orações dos fiéis ainda assim poderia existir. Durante a pesquisa, foi possível encontrar óbitos que mencionavam claramente que o local da sepultura no adro era junto à porta principal. Pelo fato das pessoas estarem constantemente passando por ela, e por estar tão próxima do local de oração isso poderia gerar um pequeno prestígio diante daqueles que foram enterrados mais afastados; o que poderia ocasionar em uma certa disputa pelo melhor lugar junto à porta principal do templo. Ao analisarem o óbito de uma mulher forra que fora enterrada junto à porta principal da matriz de Santo Antônio de Jacutinga – nos fundos do Recôncavo da Guanabara –, Claudia Rodrigues e Vitor Cabral consideraram que mesmo um local

384 MATTOS, Hebe de Castro. Escravidão moderna nos quadros do Império português: o Antigo Regime em pespectiva atlântica. In: FRAGOSO, João Luis; BICALHO, Fernanda e GOUVÊA, Maria de Fátima. O Antigo Regime nos trópicos. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010 385 Livro de Registro de óbitos de pessoas livres da freguesia de Irajá (1730-1781/1781-1787).

162 desprivilegiado como no adro ou cemitério havia uma hierarquização das posições das sepulturas386. Ser enterrado junto à porta principal poderia representar uma diferenciação em relação aos demais que estavam ali enterrados. Não se estava dentro da matriz, mas há alguns passos de seu interior, diferentemente daqueles que foram inumados distante da entrada da igreja387. Nesse sentido, a proximidade com os fiéis que rezavam poderia também gerar esperança para os familiares e amigos que ali enterravam seu ente querido. Este pode ter sido o pensamento da crioula Aguida, escrava da falecida Dona Anna Correa. A cativa teve sua filha Marta enterrada no adro junto à porta principal da matriz de Irajá, em 28/12/1790. Assim como ela, é provável que outros livres pobres, forros e escravos mais bem situados na hierarquia do cativeiro também tenham tido o mesmo pensamento, pois além da filha da crioula Aguida, outros três escravos também foram enterrados junto à porta principal. Dois eram inocentes e o terceiro o assento não diz idade e nem a procedência, somente fala que era um cativo do vigário Francisco de Araújo Macedo. O que já indica que não era escravo de qualquer proprietário, mas de um que sabia muito bem a lógica simbólica e escatológica da divisão espacial das sepulturas388. Outro aspecto relevante sobre o adro é que com o passar dos anos e com o surgimento do termo cemitério na documentação ocorreu uma mudança bastante radical quanto à localização das covas dos inocentes: eles começaram a ser somente enterrados no adro. De modo que pouquíssimas crianças com menos de sete anos tiveram em seus óbitos a informação de que foram sepultadas no cemitério. Isso nos leva a crer que em Irajá foram sendo criados aos poucos espaços distintos de sepultamento em torno da matriz de Nossa Senhora da Apresentação: um para escravos inocentes e outro para os cativos adultos. De acordo com os óbitos que indicavam o cemitério como local de sepultamento, também parecia haver espaços considerados um pouco melhores, principalmente os localizados perto de uma das entradas da igreja. Entre os assentos, que haviam alguns que indicavam que o cativo foi enterrado junto à porta principal. Dos sete sepultados neste local, todos eram inocentes, sendo quatro filhos legítimos, dois

386 RODRIGUES, Claudia; CABRAL, Vitor. Sepulturas e hierarquias sociais numa paróquia rural do Rio de Janeiro: Santo Antônio de Jacutinga entre o século XVIII e o início do XIX. Revista Brasileira de História das Religiões. ANPUH, Ano X, nº 29, Set./Dez. de 2017, p 70 387 RODRIGUES, Claudia; BRAGA, Vitor Cabral. Sepulturas e hierarquias sociais numa paróquia rural do Rio de Janeiro, p. 62 388 RODRIGUES, Claudia; BRAGA, Vitor Cabral. Sepulturas e hierarquias sociais numa paróquia rural do Rio de Janeiro, p 62

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naturais e um era Silvestre. Seu registro de óbito não indicava quem foram seus pais, mas menciona que ele não foi enterrado junto à porta principal da matriz, mas “um pouco longe dela”. Essas informações só nos levam ainda mais a acreditar que esses cativos – ou os senhores de alguns escravos com posição privilegiada naquela freguesia – estavam preocupados com o status social e que, mesmo estando no cemitério, a cova não poderia estar longe dos locais de oração, de privilégio. Dos sete que foram sepultados em covas próximas à porta principal, somente um era cativo de um dos dez senhores citados na Tabela 16. Era o escravo pertencente a Eugenio de Paiva, um dos herdeiros de Frutuozo Pereira. Os demais não apresentavam nenhuma referência sobre o proprietário. Neste momento, após identificarmos o número de escravos sepultados de cada um dos dez senhores de engenhos citados na Tabela 16, partimos para uma análise mais aprofundada de divisão de condição social. Para isso, elaboramos a Tabela 17 com objetivo de identificarmos a procedência desses cativos, se eram africanos ou crioulos.

TABELA 17. Escravos sepultados em covas privilegiadas (matriz e capela)

SENHORES AFRICANOS CRIOULOS PARDOS SEM REFERÊNCIA TOTAL João Pereira de Lemos 6 22,2% 3 6,8% - - 14 48,3% 23 21,0% Bartolomeu Cordovil ------Bento Luis de Oliveira 2 7,4% 28 63,6% 5 50,0% 6 20,6% 41 37,2% Braga Brás de Pina - - - 1 10,0% 1 3,4% 2 1,8% Thereza Machado 6 22,2% 5 11,3% 1 10,0% 1 3,4% 13 11,8% Francisco Ignacio Xavier ------Francisco Soares de Melo 8 29,6% 3 6,8% 2 20,0% 5 17,2% 18 16,3% e Frutuozo Pereira Francisco Xavier Lima 3 11,8% ------3 2,7% Luis Manoel de Oliveira 2 7,4% 5 11,3% 1 10,0% 2 6,8% 10 9,1%

TOTAL 27 100% 44 100% 10 100% 29 100% 110 100%

*óbitos que não apresentavam a procedência/cor. FONTE: Livros de registros de óbitos dos escravos da freguesia de Irajá: 1730-1781/1777- 1794/1794-1809.

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Antes de começarmos a explorar a tabela acima é importante esclarecer que como o capitão João Pereira de Lemos foi o único senhor deste grupo que tinha escravos sepultados na capela de seu próprio engenho, juntei o número de cativos que foram enterrados na capela (10), com os que foram enterrados na matriz (13). Assim (04) africanos, (02) crioulos e (04) sem identificação de procedência foram enterrados dentro da capela, enquanto que (02) africanos, (01) crioulo e (10) sem identificação foram sepultados na matriz de Irajá. Agora explorando a tabela, vemos que 27 (24,5%) dos escravos pertencentes a esses importantes senhores de engenho que foram enterrados em local privilegiados eram de procedência africana, enquanto que 44 (40%) eram crioulos, 10 (9%) eram pardos e 29 (26,3%) não tiveram a procedência identificada. Desses, os que tiveram mais cativos enterrados em covas privilegiadas foram: Bento Luiz de Oliveira, senhor do Engenho de Nazareth com 44 sepultados; seguido por João Pereira de Lemos, proprietário da capela do engenho de Sacopema, com 23 e Frutuozo Pereira e seus herdeiros com 18. O capitão Bento de Oliveira Braga foi o que mais sepultou cativos crioulos e pardos, (28) crioulos e (05) pardos. Diante de uma sociedade hierarquizada, onde africanos, crioulos e pardos se distinguiam devido a sua condição social e cor, a morte também poderia refletir essa hierarquia existente em vida. Os escravos de Francisco Ignácio do Canto eram boçais, não entendiam ainda a cultura local, estavam perdidos com relação à fé católica, por isso, havia maior probabilidade de serem sepultados no cemitério. Esta situação só nos faz entender que os cativos desse senhor poderiam ser considerados pelos escravos de outros senhores como inferiores, pois além de não conhecerem o idioma, desconheciam os ritos fúnebres da religião oficial na América portuguesa.

3.5. Estudos de caso sobre a morte escrava em alguns engenhos de Irajá.

3.5.1. O engenho de Sabopema de Luiz Pereira de Lemos e seus descendentes

Fundado no século XVII, a história do engenho de Sacopema se faz a partir do casamento das filhas do capitão Gaspar Pereira de Carvalho, Isabel Pereira de Carvalho e Andressa de Oliveira. Membros de uma família senhorial quinhentista

165 acredita-se que as duas jovens foram morar na região de Irajá ao contraíram matrimônio, sendo o marido de Isabel de Carvalho o responsável pela criação do engenho. Este casal posteriormente teve um filho, o padre Luiz Pereira de Lemos que, em 1691, já aparece nas documentações como proprietário de Sacopema389. Com sua morte, seu testamenteiro João Pereira de Lemos assumiu suas propriedades. De acordo com o assento matrimonial do mesmo, constava que seus pais eram desconhecidos390. Segundo João Fragoso e Manoela Pedroza, João Pereira de Lemos seria filho do padre Luiz Pereira de Lemos, isto porque manteve o mesmo sobrenome do sacerdote, tornou- se capitão e herdou o grande engenho pertencente ao padre Luiz391. Reconhecido como parente pela família do capitão-mor Manoel Pereira Ramos, membro de uma das famílias mais nobres da colônia e “sobrinho” do padre Luiz Pereira de Lemos392. João Pereira de Lemos fora casado primeiro com sua prima em primeiro grau Maria do Bonsucesso393 e, com a morte dela, casou-se pela segunda vez com a sobrinha da falecida, Dona Ana Maria de Jesus, com quem teve quatro filhos: Francisco Pereira de Lemos, José Joaquim Pereira de Lemos, Dona Maria Tereza de Jesus e João Pereira de Lemos e Faria. Este último, sendo primogênito, com a morte dos pais tornou-se proprietário de todos os bens deixados pelo casal. Em meados de 1706, Sacopema já era um dos maiores engenhos de Irajá e grande produtor açucareiro. Possuía 2.312 braças de testada, 15 partidos de cana divididos entre pessoas livres e 11 entre os pretos do próprio engenho, 130 escravos, casa de vivenda, senzalas, uma moenda, cavalos e várias cabeças de boi394. A ela também pertencia a capela de São João Batista, que ao final do século XVIII se transformaria em filial da matriz de Nª Sra. da Apresentação e na qual seria erguido o segundo cemitério de Irajá, conforme mensionado anteriormente.

389 PEDROZA, Manoela da Silva. Capitães de bibocas: casamento e compadrios construindo redes sociais originais nos sertões cariocas (Capela de Sacopema, freguesia de Irajá, Rio de Janeiro, Brasil, século XVIII). Revista Topoi, v. 09, nº 17, jul-dez, p. 67-92. 390 SILVEIRA, Alessandra da Silva. Sacopema e Nazareth: estudos sobre a formação da família escrava em engenhos do Rio de Janeiro do século XVIII. Dissertação de Mestrado pela Universidade de Campinas (UNICAMP). Campinas, SP. 1997. Apud. Livro de registros matrimoniais de livres da Freguesia de N. Sra. da Apresentação de Irajá nº14 - (1734-1794). 391 PEDROZA, Manoela da Silva. Capitães de bibocas, p. 67-92. 392 Cf. Rheingantz 1965. (tomo II, p. 395). Sobre o processo em que os herdeiros do capitão reconhecem João Pereira Lemos como seu parente, ver BN. Seção de Obras Raras, Ms. 5,3, 13-15. Apud. PEDROZA, Manoela da Silva. Engenhocas e moral, p. 50 393 ACMRJ: Livro de registro de óbitos de pessoas livres da freguesia de Nª Sra. da Apresentação de Irajá(1731-1778) 394 AN – Inventário post-mortem de Ana Maria de Jesus. Caixa 3636, nº 10, 1795

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Além do engenho de Sacopema, a família também era proprietária do engenho de Nazaré, que como vimos no capitulo dois desta pesquisa, foi vendido em 1731, com bois, vacas, escravos e casa de vivenda395. Era dona do engenho das Capoeiras localizado na freguesia de Campo Grande, que tinha 3.690 braças de testada, 112 escravos, casa de fazer farinha, anil, vários partidos de cana e uma capela. Tinham também casas alugadas na cidade, um sítio (não tenho certeza se era no Engenho da Cruz ou da Fazenda Santa Cruz) e no Viegas. Segundo trabalho de Alessandra da Silva Silveira, que pesquisou as duas propriedades dos Pereira de Lemos com o objetivo de analisar a formação de famílias escravas nos dois engenhos, em meio à escravaria de Sacopema havia mais homens (60,9%) do que mulheres (39,1%). A predominância era de africanos 58 (54,2%), havendo 49 (45,8%) crioulos. Isso mostra que havia um certo equilíbrio entre a procedência dos escravos. Tal equilíbrio entre crioulos e africanos pode ser considerado um pouco incomum para época, pois segundo a pesquisa de Mary Karash, na cidade do Rio de Janeiro, entre os anos de 1808 a 1850, era mais barato para um senhor comprar um menino africano de doze anos do que alimentar e cuidar de uma escrava e seus filhos até que um deles atingisse a mesma idade. Além disso, segundo ela, doenças como malária, sífilis, anemia e desnutrição tornavam difícil para as escravas conceber ou levar uma gravidez até o fim396. A maioria das mortes entre crioulos ocorria entre os menores de 10 anos de idade, e entre crianças de ambos os sexos397. Mas apesar do equilíbrio existente entre crioulos e africanos, a quantidade de escravos do sexo masculino ainda era maior que a do sexo feminino, nesse caso sendo igual ao dos outros senhores de engenho. O engenho possuía, portanto, uma quantidade considerável de escravos crioulos e pardos adultos. O que indica o quanto esta escravaria era antiga. Dos 130 cativos, 49 eram pardos e crioulos e entre eles alguns possuíam sobrenome e uma profissão, a exemplo de: barbeiros, carpinteiros, ferreiros sapateiro, alfaiate, padeiro. Quanto aos cativos africanos, sua função era o trabalho na roça e eram eles que foram majoritariamente identificados como sofrendo de algum tipo de moléstia ou possuindo

395 As informações referentes as compras e vendas de terras por João Pereira de Lemos encontram-se no banco de dados de Mauricio Abreu sobre a Estrutura Fundiária da cidade do Rio de Janeiro. www.mauricioabreu.com.br 396 KARASH, Mary. A vida dos escravos no Rio de Janeiro, 166. 397 KARASH, Mary. A vida dos escravos no Rio de Janeiro, p. 158

167 alguma parte do corpo defeituosa, como perna quebrada ou mão amputada398. Na propriedade também habitavam 22 famílias escravas, sendo que 16 eram casadas na igreja. Segundo Alessandra Silveira, a presença de tantos casais que contraíram matrimônio dentro das regras estabelecidas pela Igreja, foi resultado de um processo que ocorreu com o tempo. A mesma opinião tem Hebe de Matos:

as relações familiares e comunitárias entre os cativos dos grandes plantéis, (...) forjaram um dos eixos de sociabilidade básicos sobre o qual se construíram as expectativas dos cativos em relação a liberdade (...).399

Por ser uma grande propriedade estabelecida há um século, as regras criadas, através das relações entre senhores e escravos e dentro da própria escravaria ao longo do tempo tornava muito mais fácil a formação de famílias cativas e por assim dizer uma comunidade. O tempo também foi o responsável por garantir uma relação mais próxima com os senhores e assim dando a determinados escravos o acesso a certos direitos. De acordo com o inventário de dona Ana Maria de Jesus, alguns escravos eram responsáveis por determinados partidos de terra para cultivo próprio e é neste grupo que encontramos o cabra João Batista, escravo analisado por João Fragoso400 em um de seus estudos. Este cativo tinha sua própria roça onde, segundo o inventário de Dona Anna Maria de Jesus, também plantava cana. Ao analisar os registros de óbitos dos escravos do engenho de Sacopema, foi possível identificar que entre a administração de João Pereira de Lemos, que teve início a partir da década de 1730, passando pela de Dona Anna Maria de Jesus e terminando com o de seu filho João Pereira de Lemos e Faria, encontramos 135 óbitos de escravos. Sendo 112 (82,9%) dos cativos enterrados entre o adro e o cemitério da capela de Sacopema, 13 (9,6%) dentro da matriz de Irajá e 10 (7,4%) dentro da capela de Sacopema. Isto significa que a maioria desses cativos mesmo após a morte permaneceram próximos a seus entes queridos, mesmo não sendo em local privilegiado. Durante a administração de João Pereira, foram sepultados no interior da matriz de Irajá 04 escravos: Pedro em 12/11/1740, Manoel em 01/02/1757, Maria em

398 AN – Inventário pos-mortem de Ana Maria de Jeus, caixa 3636, nº 10, 1795 399 CASTRO, Hebe Maria de Matos. Das cores do silêncio, p. 118. 400 FRAGOSO, João. Efigênia Angola, Francisca Muniz forra parda, seus parceiros e senhores: freguesias rurais do Rio de Janeiro, século XVIII. Uma contribuição metodológica para a história colonial. Revista Topoi, v. 11, n 21, jul.-dez. 2010.

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06/06/1760 e Feliciano em 30/09/1762. Todos receberam os últimos sacramentos e foram enterrados em covas da fábrica. Havia também os escravos ligados à irmandade do Rosário. Encontramos o registro de sete cativos, isto significa que pelo menos alguns dos escravos do engenho apresentavam certa mobilidade, pois sabemos que os membros dessas associações eram algumas vezes obrigados a participar de determinados eventos e para além disso, deviam pagar a anuidade, o que demandava ter condições financeiras. Ao observar o óbito desses sete cativos não havia nenhuma identificação sobre o local da sepultura. No entanto, devemos atentar que se esses escravos realmente tinham uma certa liberdade de ir e vir, então podemos cogitar que eles deveriam ter um determinado prestígio sobre os demais cativos. O que nos leva acreditar que no período de mando de João Pereira de Lemos eles possivelmente poderiam fazer parte da elite da senzala de Sacopema. Durante a administração de Dona Anna Maria de Jesus, entre os anos de 1774 e 1795, a mesma sepultou 34 cativos, dentre os quais 21,2% foram sepultados em cemitério (sendo 9,09% no da matriz e 66,6% no da capela do engenho). Nenhum dos cativos de Dona Anna Maria foi enterrado dentro da matriz. Os cativos que tiveram um melhor local de sepultura foram enterrados na capela de São João Batista: José, Izabel Benguela e o Francisco, filho de oito anos de João e Maria, ambos Angola. Esses três escravos deviam ter uma relação realmente muito próxima à dona Anna Maria, para conseguirem ter a permissão que seus corpos fossem sepultados em um local relativamente particular. Portanto, independente da forma como tenham ocorrido os tramites para liberação dos três enterros, isso tudo aconteceu de acordo com a vontade da viúva. Assim, por ser um lugar de devoção particular da família, acredito que isso só tenha ocorrido devido à relação de muita dedicação e afeto que haveria entre esses cativos e a senhora de Sacopema. O período de administração de João Pereira de Lemos e Faria, entre 1778 e 1808401, iniciou marcado com a identificação definitiva de um cemitério ligado à capela de São João Batista. Nos anos de administração de seus pais, os escravos que não eram sepultados dentro da capela, eram enterrados a sua volta, mas foi durante o senhorio de João Pereira de Lemos e Faria que o termo adro da capela desaparece da documentação e surge cemitério da capela de Sacopema, pelo que as fontes nos apresentam o termo

401 O período de administração de João Pereira de Lemos e Faria não durou especificamente até 1808, este ano foi definido por ser o ano que fecha o recorte cronológico desta pesquisa. João Pereira depois desse ano continuou sendo senhor do engenho de Sacopema.

169 cemitério substituiu adro na documentação, assim como em outras freguesias402. É neste período também que a mesma capela ganhou o status de filial da matriz de Irajá. A ermida de São João Batista desde o início do século XVIII, já tinha uma representatividade muito grande entre a população local. Como já dissemos nesta pesquisa foram realizados vários casamentos e batizados tanto de escravos quanto de pessoas livres nesta capela403 Entre o número de cativo que Lemos e Faria enterrou e a quantidade que seu pai e sua mãe enterraram, foi durante seu mando sobre Sacopema a época em que mais ocorreram enterros, 76 no total, desses 2,63% ocorreram no cemitério da matriz; 1,31% dentro da matriz em cova da Irmandade do Rosário; 5,26% no adro também da matriz; 6,57% dentro da capela de São João Batista e 84,2% no cemitério de Sacopema. Podemos ver que, apesar de haver um cemitério localizado no próprio engenho ainda ocorreram enterros no cemitério da matriz, no entanto, os sepultamentos em covas privilegiadas se resumiram à capela do engenho. Não sabemos se foi uma vontade do próprio senhor João Pereira de Lemos, dos defuntos ou de ambos. Mas dos cinco que foram enterrados em São João Batista, quatro eram solteiros: Juliana, falecida em 1779; Gracia Angola e José do Gentio da Guiné (sepultados em 1780), e Antonio 1781, enquanto que Thereza e Josefa ambas Angola e casadas, a primeira falecida em 1781 a segunda em 1807. O que chama atenção ao saber da procedência desses escravos e cruzando as informações dos óbitos com a lista de escravos encontrada no inventário de Dona Anna Maria de Jesus, vemos que os escravos africanos e crioulos eram os que trabalhavam na roça, enquanto os que tinham um ofício eram pardos e cabras. Portanto, como esses cativos africanos conseguiram obter o privilégio de serem sepultados em lugar privilegiado? Diante dessa questão, não temos como descartar a ideia de havia entre esses cinco escravos e o seu senhor um laço de afetividade, que garantiu a eles uma boa morte. Com o reconhecimento de como os senhores de Sacopema encararam a questão dos sepultamentos de seus escravos, chegamos à conclusão de que no período em que João Pereira de Lemos administrou o engenho, a capela talvez ainda não tivesse autorização de receber sepultamento, por isso nenhum escravo nesta época tenha sido

402 Vitor Cabral e Mara Nascimento estudaram freguesias diferentes durante o período colonial, o primeiro analisou a Freguesia de Santo Antonio Jacutinga no Rio de Janeiro e a segunda analisou a Vila de Porto Alegre, os dois ao analisar as mudanças do uso dos termos determinados para indicar o local de sepultamento a céu aberto, identificaram que o adro com passar dos anos tornou-se cemitério, devido ao desuso de um termo para outro. 403 Para saber mais sobre casamentos na capela de São João Batista em Sacopema ver os trabalhos de Manoela Pedroza.

170 sepultado lá. Mas a grande questão não seria essa e sim o fato de que, com João Pereira de Lemos, sete cativos eram associados à Irmandade do Rosário, mas durante a administração de sua mulher não encontramos nenhum escravo pertencente a ela que tenha sido enterrado em cova de irmandade. Somente quando seu filho assumiu o engenho, marcando a terceira geração de administração do engenho pela família, encontramos uma escrava sendo sepultada em cova do Rosário: era Thereza angolana, casada com Garcia, falecida em 1780404. É possível que isso tenha acontecido devido a forma de tratamento ou do tipo de relação que esses escravos possuíam com a viúva Ana Maria e seu filho João Pereira de Lemos e Faria que seria muito diferente do que tinham com o capitão João Pereira de Lemos. Com isso, podemos perceber que alguns desses cativos tiveram direito a um partido de terra ou direito ao matrimônio405, mas disponibilizar uma boa morte para seus cativos parece não ter sido de grande preocupação para esta família, pois foram pouquíssimos os sepultamentos dos cativos desse engenho em lugares privilegiados.

3.5.2. O Engenho de Nazareth de Bento de Oliveira Braga e sua descendência

Pertencente a Bento de Oliveira Braga e a sua esposa, Dona Francisca Luiza Bernarda Ribeiro, o Engenho de Nazareth foi comprado pelo mesmo na década de 1750 das mãos do doutor Inácio Fernandes de Meirelles. Era casado com Dona Francisca, com quem teve quatro filhos: Bento Luis, Luiza Bernarda Ribeiro, Jacinta Lourença e Francisco Caetano de Oliveira Braga. Com a morte de Bento de Oliveira Braga, seu filho mais velho, Bento Luís de Oliveira Braga, tomou posse do engenho. Casado a primeira vez com Dona Francisca Casemira Xavier de Veras, com que teve sete filhos: Bento de Oliveira, Dona Mariana, Francisco, Felix, Joaquim (falecido406), Dona Maria e Dona Luiza. Com a morte de Francisca Casimira, Bento Luís de Oliveira Braga casou- se com Dona Francisca Mariana Oliveira Coutinho, com quem teve mais cinco filhos: Maria Luiza, Francisca de Paula, Rita Augusta, Joana Benedita e Bento Luiz. As terras que abrangiam o engenho de Nazareth ultrapassavam os limites da freguesia de Irajá, contendo 1.150 braças de terras. Ao assumir a administração da

404 Registro de óbitos dos escravos de Irajá (1730-1781) 405 FRAGOSO, João Luis. Efigênia Angola, Francisca Muniz forra parda, seus parceiros e senhores: freguesias rurais do Rio de Janeiro, século XVIII. Uma contribuição metodológica para a história colonial. Revista Topoi, v. 11, nº21, jul-dez., 2010 406 Joaquim faleceu em 1814, segundo o óbito ele tinha 24 anos e estava demente.

171 propriedade, Bento Luís de Oliveira Braga fez prosperar os bens que possuía seu pai, aumentando o número de engenhos, sítios, olarias e fazendas que possuíam em outras freguesias e também elevando o oratório que havia no engenho à categoria de capela de Nossa Senhora de Nazareth. Além da capela, o engenho ainda possuía um hospital para escravos. Ele também era dono do engenho da Posse e da fazenda Caioaba, localizados na freguesia de Santo Antônio Jacutinga; e de sítios e fazendas produtoras em Vassouras, “Das Palmas”, na freguesia de Sacra Família do Tinguá e a “Da Cruz” às margens do Rio Paraíba do Sul e uma morada de casas na rua Direita, na cidade407. O Engenho de Nazareth, em 1797, possuía 125 escravos, com uma proporção entre homens e mulheres cativos bastante equilibrada. Havia mais mulheres 65 (52%) do que homens 60 (48%). Em meio a esta escravaria, estavam formadas cerca de 20 famílias, o que nos leva a concluir que neste engenho também estava estabelecida uma comunidade escrava. Segundo os registros de óbitos dos escravos de Irajá, a família Oliveira Braga sepultou 168 cativos, entre os anos de 1758 a 1808. No adro da matriz foram enterrados 60 (35,5%), no cemitério da matriz 75 (41,4%), dentro da igreja em cova da fábrica 30 (7,69%) e os que foram enterrados em covas do Rosário 20 (11,8%). O primeiro dono do engenho de Nazareth pertencente a esta família, Bento de Oliveira Braga, sepultou somente 04 (0,02%) cativos, todos inumados dentro da matriz, sendo três em covas do Rosário (eram eles: Ana, casada com João, falecida em 1758 e Margarida e Damião, falecidos em 1762). O quarto escravo era Prudêncio, inocente que foi enterrado, em 1767, em cova da fábrica. Já seu filho, Bento Luis, sepultou 85 escravos entre os anos de 1770 a 1799. Destes, 31 (36%) foram inumados no adro, 41(48%) no cemitério, 7 (8%) dentro da matriz em cova da fábrica e 5 (6%) em covas da Irmandade do Rosário. Dos que foram enterrados em covas da fábrica, todos eram pardos e crioulos, dois eram solteiros, três casados, um inocente e um não tinha indicado o estado matrimonial, mas pela idade sabemos que era um adulto. Entre os casados, estava Manoel Velho, um pardo, natural da capitania de Pernambuco, casado com Anna Maria, parda forra, nascida no Rio de Janeiro. Ele recebeu todos os sacramentos, foi encomendado e enterrado em uma cova perto da porta principal. Ao que tudo indica, entre os sete defuntos que foram sepultados em covas da fábrica, pelo menos Manoel Velho foi o que conseguiu uma sepultura dentro da igreja,

407 ANRJ. Inventário de Francisca Casemira Xavier de Veras, caixa 428, nº 3354.

172 provavelmente devido a sua esposa ser forra. Ela poderia trabalhar e ter o seu próprio lucro e, assim, ter condições dela mesmo pagar as despesas do funeral do marido. Sobre outros quatro enterros, não temos muitos indícios para dizer se foi ou não o senhor Bento Luís que arcou com as despesas. Mas, se levarmos em conta o mesmo argumento usado anteriormente sobre a possível liberdade de deslocamento dentro da freguesia dos escravos de Sacopema no período de mando de João Pereira de Lemos, é provável que o mesmo possa ter acontecido com a escravaria dessas duas primeiras gerações da família Oliveira Braga. Um indicio sobre esta suposição são os cinco cativos enterrados em covas da Irmandade do Rosário. Mas, se esses escravos buscaram se associar a uma irmandade ou juntaram o suficiente para pagarem o enterro em uma cova da fábrica, é porque temiam uma morte sem rituais e percebiam que se não fizessem alguma coisa para evitá-la esse provavelmente seria seu fim. O período de administração de Bento de Oliveira Braga, filho de Bento Luís, se confunde um pouco com o de seu pai. O que se percebe pelos óbitos é que em algumas vezes, já no final da década de 1790, aparece o nome de um ou outro, apesar de serem nomes muito parecidos, o que nos fez conseguir identificar foi a patente de cada um: o pai era capitão e o filho no início era tenente. Bento de Oliveira Braga sepultou 73 escravos. Dentre esses, 37% foram enterrados no adro, 41% no cemitério da matriz, 17,8% em cova do Rosário e 4,1% em cova da fábrica. Vemos que o índice de enterros no adro ficou muito próximo da quantidade de sepultamentos no cemitério. Algo que já vimos que foi devido ao grande número de inocentes que foram enterrados nesse local. Dentro dos oito anos analisados para este senhor, somente três escravos foram enterrados em cova da fábrica: a parda Petrolina, casada como pardo Teodozio, que recebeu todos os sacramentos e foi sepultada em uma na segunda cova da primeira carreira; os outros dois foram a parda Marcelina, que morreu “sem ser esperado”, no ano de 1801, e foi enterrada em uma cova junto ao batistério; e o último foi o mulato Ezequiel, um jovem de mais ou menos vinte anos que foi enterrado em 1803, em uma cova da fábrica localizada na terceira carreira. Mas, enquanto o número de sepultamentos em covas da fábrica diminuiu, os escravos falecidos que eram vinculados à Irmandade do Rosário aumentaram para treze, no total. Alguns desses defuntos eram filhos provavelmente de pessoas ligadas a cargos importantes dentro desta irmandade, como é o caso que já falamos neste capitulo, dos filhos de Roque crioulo e Joanna Guanguela, as duas crianças foram enterradas em 1804, em locais privilegiados dentro da matriz de Irajá. O que comprova que Roque tenha feito parte da mesa administrativa

173 do Rosário foi seu próprio sepultamento, em 1809. Ele foi enterrado em cova da irmandade, recebeu um cortejo fúnebre acompanhado da irmandade, do sacristão e da cruz da fábrica. Esses três escravos deviam ter uma relação muito diferente da que os demais cativos do engenho tinham com seu senhor: eram pardos, provavelmente nasceram no engenho e talvez tenham ajudado a criar os próprios filhos desses senhores. A escrava Marcelina, por exemplo, falecida em 1801, era já uma mulher de certa idade; no óbito a informação é de que ela tinha 82 anos e, embora saibamos que esses números são imprecisos e que talvez a mesma tivesse bem menos idade, o fato é que devia ser uma escrava bastante antiga naquele engenho e ter apresentado os quesitos necessários para aquisição de privilégios que possivelmente pode ter elevado o status dela diante de outros cativos, que se expressaram por ocasião de seu funeral. Portanto, o que podemos perceber durante a administração do engenho de Nazareth por essas três gerações da família Oliveira Braga é que eles tinham um cuidado com a saúde de seus escravos, devido ao próprio hospital existente no engenho. Na documentação diz, como vimos, que aconteciam algumas cirurgias ali, o que pode nos levar a crer que o engenho recebia a visita de algum tipo de cirurgião para atendimento dos escravos. Outra questão importante é sobre o número de escravos deste engenho sepultados em covas da Irmandade do Rosário, indicando que se destacavam naquela comunidade escrava e provavelmente seriam a elite das senzalas de Nazareth. Tanto esses como os que foram sepultados em covas da fábrica, por todos serem pardos e crioulos e terem sido criados, certamente desde muito tempo neste engenho conseguiram criar um vínculo maior com seus senhores na comparação com os demais cativos.

3.5.3. O Engenho do Portela: a viúva de Manoel de Menezes, Thereza Machado e seus herdeiros

O Engenho do Portela pertencia a Miguel Gonçalves Portela e sua mulher Dona Inês da Silva. Como curadora do marido, ela vendeu o mesmo engenho para o coronel João Aires de Aguirre, em 1731, com moenda, terras, casa de vivenda, igreja com seus paramentos e mais 20 escravos. Em 1733, o mesmo João Aires, faz um contrato amigável com Manoel da Costa Soares pelo qual dividiu as terras. Com a morte do coronel o engenho foi vendido e dividido entre seu irmão José Vicente de Aguirre

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(homem pardo e forro), Bento Frias de Aguirre e Manoel de Menezes Custódio Muniz408. Casada pela primeira vez com José Vicente de Aguirre, Tereza machado de Jesus se tornou senhora do engenho do Portela e com a morte do marido, se casaria pela segunda vez, agora com Antonio de Menezes, com quem teve dois filhos: Tereza Machado da Conceição Jda. Eleutério Machado Jda409. Com a morte do segundo marido, em 1793, a viúva ficou responsável pela manutenção do engenho. A propriedade estava localizada ao sul da freguesia em direção da matriz. O inventario de Antonio de Menezes nos mostra os bens que o senhor possuía na época de seu falecimento. No engenho havia uma casa de colunas de pedra e cal, com varanda, onde estava localizado o oratório; uma casa de engenho de 120 palmos de frente e 227 palmos de fundo; uma moenda (d’água); casa do administrador, casa de caldeira, de purgar, mel e a aguardente; 130 cabeças de boi e alguns cavalos; 13 partidos de cana divididos entre os lavradores e havia 58 escravos. Entre os anos de 1757 a 1808, foram sepultados 85 escravos do engenho. Destes, 65,8% se localizaram no adro; 20% no cemitério; 8,23% em covas do Rosário e 5,9% em covas da fábrica. O primeiro administrador ligado à Thereza Machado foi José Vicente. Sobre ele não temos muitas informações, somente aquelas que já falamos anteriormente, mas no período em que ficou à frente do engenho, de 1757 a 1777, o mesmo e a esposa, tiveram 51 escravos falecidos. Destes, 94,1% foram sepultados no adro; 3,92% inumados dentro da matriz e 1,96% dentro da matriz em covas do Rosário. Não houve nenhum enterro no cemitério porque nesta época ainda não havia ocorrido a possível divisão que acredito que tenha havido entre adro e cemitério. Vemos que a maioria dos escravos foi enterrada no adro e somente três deles tiveram o sepultamento em um espaço mais privilegiado que o adro. Rosa, casada com Paschoal que foi enterrada em cova do Rosário; Izabel Benguela solteira e Francisco pardo, ambos enterrados dentro da igreja, provavelmente em cova da fábrica. Com a morte do primeiro marido e o casamento com o segundo, o senhor Antonio de Menezes, o engenho passou a ter uma nova administração. Neste período, foram enterrados 18 cativos, 38,8% no adro, 44,4% no cemitério, 16,6% dentro da igreja. Não houve nenhum cadáver ligado a alguma irmandade pertencente ao engenho que tivesse falecido entre o período de 1778 a 1793. Mas com a morte de Antonio de

408 As informações referentes as compras e vendas de terras referentes ao Engenho do Portela encontram- se no banco de dados de Mauricio Abreu sobre a Estrutura Fundiária da cidade do Rio de Janeiro. www.mauricioabreu.com.br 409 ANRJ- Inventário de Antonio de Menezes.

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Menezes, Thereza Machado passou a administrar o engenho sozinha. Nesta época faleceram na propriedade 16 escravos, 1 (6%) foi enterrado no adro, 9 (56%) no cemitério e 6 (37%) em covas da irmandade do Rosário. Não houve nenhum escravo sepultado em covas da fábrica. Diante de todas as informações sobre os locais onde foram enterrados os cativos do engenho do Portela, vemos que poucos parecem ter tido uma proximidade maior com seus proprietários. Entre a administração de José Vicente Aguirre, passando por Antonio de Menezes e terminando com Dona Thereza Machado somente quatro escravos foram sepultados em cova da fábrica. Os óbitos não dão muitas informações para chegarmos a uma explicação plausível. Agora, com relação aos escravos ligados as irmandades, vemos que eles não eram muitos, mas no período em que Thereza Machado passou a administrar sozinha o engenho, o número de cativos pertencentes a este engenho sepultados em covas de Nossa Senhora do Rosário cresceu. Provavelmente, devem ter desfrutado neste período de uma maior liberdade para se deslocar e por isso tiveram a possibilidade de conseguir se associar a uma Irmandade, e assim garantir um sepultamento privilegiado.

* * *

Depois de conhecermos um pouco a questão do morrer entre os cativos dessas três propriedades, percebe-se que os cuidados com a morte dos escravos poderiam variar de acordo com o senhor. Em Sacopema, vimos que os sepultamentos em lugares privilegiados ocorriam dentro da igreja matriz, mas com a mudança de senhor os enterros passaram a ocorrer na capela de São João Batista e os demais no cemitério existente no próprio engenho, sugerindo que esta família poderia estar criando um ambiente fechado e restrito, autorizado somente para aqueles mais chegados. Os engenhos de Nazareth e do Portela ficavam próximos ao de Sacopema, mas nenhum dos proprietários desses dois engenhos sepultou algum cativo seu no cemitério da capela de São João Batista. Desta forma, se a ideia era criar um ambiente só para os mais próximos, o interior das capelas seria somente para aqueles que tinham status social mais elevado dentro daquele universo. Já em Nazareth, ficou perceptível que alguns escravos desfrutavam de maior liberdade de deslocamento, devido aos vários cativos ligados à irmandade do Rosário. Já os que foram enterrados nas covas da fábrica deviam ser escravos mais antigos ou os

176 filhos deles, pois todos eram pardos e crioulos. Com relação aos escravos do engenho do Portela, percebemos que não tinham liberdade de realizar outras atividades fora do engenho, durante a administração dos dois maridos de Thereza Machado, pois encontrei poucos escravos sendo enterrados em sepulturas de irmandade. Já durante a administração de Dona Thereza a situação deve ter mudado, pois como vimos, vários foram os cativos pertencentes a ela sepultados em covas da irmandade. Portanto, quanto mais liberdade de se deslocar em diferentes espaços, como entre o engenho e a matriz, mais esses cativos tiveram uma posição mais destacada em relação aos demais; o que podemos ver através dos sepultamentos de alguns escravos que citamos nesta pesquisa. No entanto, isto tudo acontecia por meio da concessão do senhor, nada acontecia sem a permissão dele. Deste modo, a formação de uma hierarquia entre os escravos deveria passar primeiramente pelo crivo do senhor e, assim, a aceitação de disponibilizar certos destaques era segundo a vontade dele e, sabendo disso, os escravos de Irajá encontraram as mais diversas formas possíveis para terem a realização de um bom sepultamento.

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CONCLUSÃO

Formada por uma sociedade constituída por uma elite açucareira, pequenos e médios lavradores, comerciantes e um grande contingente de escravos, a região de Irajá ganhou status de freguesia a partir dos clamores dessa população. A morte foi seu principal incentivador e beneficiador. O caminho novo garantiu o crescimento da região e a posição de freguesia nobre, tudo isso devido a presença de pessoas ilustres ligadas e responsáveis pelos engenhos naquelas terras. O estabelecimento de famílias ligadas à nobreza da terra do Rio de Janeiro em Irajá promoveu a região e permitiu que o titulo de nobre permanecesse mesmo depois do deslocamento da produção açucareira para o norte fluminense. Nem a queda da produção açucareira na região fez com que grandes comerciantes deixassem de comprar engenhos em Irajá e se apropriarem do titulo de senhor de engenho. Nossa Senhora da Apresentação era uma das freguesias mais antigas do Recôncavo da Guanabara. Sua matriz, segundo Pizarro, fora construída pelo padre Gaspar da Costa, em 1613. Após a elevação da região à categoria de freguesia colada, tornou-se seu primeiro pároco. No entanto, a manutenção do templo ficou a cargo da própria elite local. Em 1794, durante a visita de Monsenhor Pizarro e Araújo, o eclesiástico relatou que a igreja teria passado por uma reforma às custas dos próprios fiéis. As relações de reciprocidade entre desiguais foram responsáveis pela organização de uma elite das senzalas, formada por famílias cujos casais ou filhos de escravos tinham como padrinhos seus próprios senhores ou parentes desses mesmos senhores. Mas, nesta pesquisa pude perceber que esta relação de reciprocidade poderia ser identifica não só por meio do apadrinhamento, mas também através da morte. Assim como era identificado como privilégio ter o próprio pedaço de terra ou a tão sonhada liberdade através da carta de alforria, uma boa morte também poderia ser entendida como um privilégio, um benefício pelos bons serviços prestados. Encontramos, ao longo desta pesquisa, escravos que foram sepultados em covas de irmandades de

178 brancos, enterrados na sepultura de pertencia ao próprio senhor no interior da igreja matriz, nas capelas particulares dos engenhos ou que tiveram um cortejo fúnebre acompanhado de sacristão, cruz e foi inumado em uma campa dentro da igreja, com documentação descrevendo a localização exata da cova. O sepultamento de alguns escravos pela Irmandade do Rosário demonstrou a existência de uma possível liberdade de deslocamento dos escravos para diferentes espaços, da propriedade de seu senhor, para matriz ou até para outros engenhos. No entanto, esta permissão para andar livre dentro da região de moradia acontecia devido a uma relação de confiança e que poderia ser adquirida somente com o tempo a partir das demonstrações de dedicação e fidelidade por parte do escravo. Mas, para além disso, o importante é salientar que essa “liberdade” permitiu que alguns escravos pudessem associar-se ao Rosário e assim garantir o acesso a uma cova em local privilegiado para si e para a própria família. A localização da sepultura foi vista com bastante cautela, tanto pela Igreja quanto pela população de Irajá. Só foi possível percebermos essa preocupação ao nos depararmos com o termo cemitério. Diferente do que é visto em trabalhos para outras freguesias, o termo adro foi usado concomitante ao termo cemitério. O que nos levou a entender que tanto a população quanto o próprio pároco permitiram que houvesse uma distinção entre os dois termos. A documentação levou-nos a entender que eram espaços distintos. Suponho que um deveria estar do lado direito o outro do esquerdo, mas isso é apenas uma suposição. No entanto, o importante é destacar que esta distinção foi algo que tanto a população quanto o pároco de Irajá permitiram que acontecesse. O que terminou por criar um novo espaço de distinção fora da matriz, onde as pessoas começaram a criar novos lugares privilegiados fora do templo. Ser sepultado junto à porta principal pode ter se tornado um local importante para ser enterrado, uma vez que este seria o local mais próximo do altar principal e diferente das demais sepulturas que estavam do lado de fora da igreja. A hierarquia entre os escravos também se expressou nos rituais fúnebres entre os cativos de diferentes propriedades. Em algumas engenhos nenhum escravo foi sepultado dentro da igreja ou em cova da irmandade. Por outro lado, nos deparamos com proprietários que tiveram escravos enterrados dentro da capela pertencente ao próprio senhor, como no caso do capitão João Pereira de Lemos e sua família, que tiveram alguns escravos enterrados dentro da ermida de Sacopema. O que permitiu que seus cativos, mesmo depois da morte, continuassem próximos a seus entes queridos.

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Portanto, podemos concluir que a morte deu continuidade a uma hierarquia que já existia em vida entre os escravos de Irajá. Os ritos fúnebres e a localização das sepulturas nos mostrou isso. O interior da matriz, o interior das capelas dos engenhos, o adro ou o cemitério junto à porta principal da igreja, foram os locais que demonstraram a distinção existente no espaço destinado à sepultura entre os escravos desta região. O cortejo fúnebre, os últimos sacramentos e o pertencimento a uma irmandade foram outros elementos que contribuíram para elucidar o problema. Os escravos puderam demonstrar que sua situação jurídica os colocava em pé de igualdade, todos viviam dentro de um regime escravista, possuíam um dono e eram obrigados a exercer as tarefas estabelecidas por seu senhor, mas dentro do ambiente da senzala havia diferenciações, alguns poucos cativos formavam uma elite que possuía privilégios e recebia benefícios devido à boa relação que possuíam com seu senhor. O que lhes garantiu uma morte com rituais e sepultura em local privilegiado. Distinguindo-os assim da grande maioria dos cativos da freguesia.

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FONTES

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Assentos paroquiais

Livro de óbitos dos escravos da freguesia de Nª Sra. da Apresentação de Irajá (1730- 1781) Livro de óbitos dos escravos da freguesia de Nª Sra. da Apresentação de Irajá (1777-1794) Livro de óbitos dos escravos da freguesia de Nª Sra. da Apresentação de Irajá (1794-1809) Livro de óbitos de pessoas livres da freguesia de Nª Sra. da Apresentação de Irajá (1731- 1778) Livro de óbitos de pessoas livres da freguesia de Nª Sra. da Apresentação de Irajá (1779- 1787)

2) Arquivo da Cúria Metropolitana do Rio de Janeiro

Série Breves apostólicos

Oratório privado, 1733. Engenho do Campinho, Freguesia de Irajá, Joaquim de Almeida Soares. Solicitação para celebração de missas no oratório de sua casa. BA 019.

Oratório privado, 1734. Doutor Ignácio Fernandes de Meirelles, Freguesia de Irajá. Solicitação para celebração de missas no oratório de sua casa. BA 33

Oratório privado, 1747. Padre Manoel Marques Esteves, Freguesia de Irajá. Solicitação para ter oratório particular na casa de uma irmandade. BA 096

Oratório privado, 1750. Padre Antonio de Oliveira Maciel. Solicitação para ter oratório particular em casa, BA 109

Indulgência, 1747. Engenho de Nª Sra. da Conceição, Freguesia de Irajá, Brás de Pina. Solicitação de breve de indulgência para capela de Nossa Senhora da Conceição. BA 097

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Oratório privado, 1801, Capitão Bento Antonio Moreira, Freguesia do Engenho Novo. Solicitação para ter oratório particular em sua casa. Caixa 1-2.

Série de visitas pastorais

Notícias do Bispado do Rio de Janeiro de 1687- VP38

2) WWW.Familysearch.org

Registros de óbitos dos escravos da Freguesia de Nª Sª da Apresentação de Irajá:

Livro (1730-1781)

Livro (1777-1794)

Livro (1794-1809)

4) Arquivo Nacional da Torre do Tombo, em Portugal.

Chancelarias Antigas da Ordem de Cristo

Compromisso da Irmandade de Nossa Senhora do Amparo da Freguesia de Nossa Senhora da Apresentação de Irajá, Bispado do Rio de Janeiro. Prov. De conf. De compromisso. De 19 de setembro de 1766 (cópia cedida gentilmente pela professora Claudia Rodrigues)

Compromisso da Irmandade de São Miguel e Almas da Freguesia de Nossa Senhora da Apresentação de Irajá, Bispado do Rio de Janeiro. Prov. De conf. De compromisso. De 19 de setembro de 1766 (cópia cedida gentilmente pela professora Claudia Rodrigues)

5) Arquivo Ultramarino

Consulta do Conselho Ultramarino acerca dos inconvenientes da lei da mandioca, segundo o governador Álvaro da Silveira e Albuquerque (1703), doc. 2673-2673.

Requerimento do Juiz e ouvidor da Alfândega do Rio de Janeiro, Antonio de Marins Brito. Solicitação ao rei D. José autorização para arrematação do engenho do porto de Irajá. Caixa 85, doc. 98.

Compromisso da Irmandade de Nossa Senhora do Rosário e São Benedito dos homens pretos do Rio de Janeiro, códice 1950

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6) Arquivo Nacional do Rio de Janeiro.

Inventário de Anna Maria de Jesus: Inventariante João Pereira de Lemos e Faria. Ano: 1795 – Notação 10, caixa 3636.

Inventário de Antonio de Menezes: Inventariante Thereza Machado. Ano: 1793 – Notação 474, procuração: 9064.

Inventário de Bento Luís de Oliveira Braga, Caixa: 3873, nº 102

Inventário de Francisca Casemira Xavier de Veras, caixa 428, nº 3354.

Correspondência dos Governadores do Rio de Janeiro (1718-1725), cód. 80, vol. 1, p. 40

Provisão do Alvará de Sua Majestade que manda aos moradores de Irajá ajudem a vigaria de N. Sra. da Apresentação. Códice 60, volume 2, p. 58.

Publicações Históricas, vol. 15, p. 145.

7) Biblioteca Nacional

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