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Deus é brasileiro! statements about “who God is” and how such statements are related to traditional Mas que brasileiro? masculine gender constructions. Finally, the article discusses how issues of masculinity André Sidnei Musskopf* and religion have been approached in recent studies and points to the need for other ways RESUMO of imagining God that are related to the peo- Este artigo investiga o modo como Deus é re- ple’s experience. presentado em músicas populares brasileiras. Keywords: Masculinity – Images of God – Dá uma introdução geral sobre a cultura bra- Religion – Popular culture – Brazilian popular sileira mostrando como a religião é parte das music. construções identitárias de brasileiros e brasi- leiras e como ela é marcada pela multipli- ¡Dios es brasileño! ¿ cidade, pelo sincretismo e pela hibridação. Analisa, então, duas músicas populares que Pero qué brasileño? fazem afirmações explícitas sobre “quem Deus é” e como estas afirmações estão rela- RESUMEN cionadas com construções de gênero mascu- Este artículo investiga cómo Dios es repre- linas tradicionais. Finalmente, o artigo discute sentado en las músicas populares brasileñas; como questões de masculinidade e religião presenta una introducción general a la cultura têm sido abordadas em estudos recentes e brasileña, mostrando cómo la religión forma aponta para a necessidade de outras formas parte de las construcciones identitarias de de imaginar Deus que estejam relacionadas brasileños y brasileñas y como ella está mar- com a experiência das pessoas. cada por la multiplicidad, el sincretismo y la Palavras-chave: Masculinidade – Imagens de hibridación; analiza, así, dos músicas popula- Deus – Religião – Cultura popular – Música res en las que aparecen afirmaciones explíci- popular brasileira. tas acerca de “quién es Dios” y cómo estas afirmaciones están relacionadas con construc- God is Brazilian! But what ciones de género masculinas tradicionales. Finalmente, el artículo discute cómo los temas kind of Brazilian? de la masculinidad y religión han sido aborda- dos en estudios recientes y apunta hacia la ABSTRACT necesidad de otras formas de imaginar a Dios This article investigates how God is repre- que estén relacionadas con la experiencia de sented in the Brazilian pop music. It gives a las personas. general introduction on the Brazilian culture Palabras clave: Masculinidad – Imágenes de showing how religion is part of the Dios – Religión – Cultura popular – Música identitarian constructions of Brazilian man popular brasileña. and women and how it is marked by multi- plicity, syncretism, and hybridization. It then Introdução 1 – Deus é brasileiro! analyses two popular songs that make explicit Deus é brasileiro! Além de ser parte da sabedo- ria popular no Brasil, este fato também foi atestado * Doutor em Teologia pela Escola Superior de Teologia, pelo papa João Paulo II durante sua visita ao Bra- São Leopoldo/RS. Bolsista CNPq. Autor de “Uma brecha no armário: Propostas para uma Teologia Gay” (CEBI, sil, em 1997, quando acrescentou: “Se Deus é 2005) e “Talar Rosa: Homossexuais e o Ministério na brasileiro, o papa é carioca” (JOVEN PAN, n/d). E Igreja” (Oikos, 2005). [email protected]. se a palavra do papa, juntamente com a de milhões 27

de brasileiros e brasileiras, não for suficiente, há ções que impeliram os navegadores portugueses para o uma longa lista de personalidades de várias partes mar e animaram o trabalho dos colonizadores que inven- do mundo que testemunham a este respeito, entre taram o Brasil. Ao contrário do que se possa imaginar, as quais se pode mencionar Bono Vox que, durante esses componentes não ficaram restritos na história, seu último mega concerto no Brasil, disse para mas estão constantemente forjando a cultura brasileira, mais de 73 mil pessoas: “U2 é irlandês. Deus é mostrando como a religião significa o imaginário como brasileiro” (NEVES, 2006). Algumas pessoas têm, um todo. (SCHULTZ, 2005, p. 25-26). inclusive, encontrado provas científicas. De acordo com o matemático Jeffrey Weeks, da NASA: “nos- É por isso que Jorge Ben Jor pode cantar so universo parece um infinito conjunto de “Moro num país tropical, abençoado por Deus, e dodecaedros, como partes de uma bola de futebol bonito por natureza” (País tropical). Mas se esta com uma superfície de doze pentágonos idênticos” natureza é “paradisíaca”, e Deus seu criador e (MUIR, 2003). Se o universo é uma bola de fute- proprietário (e o rei seu administrador), esta ima- bol, Deus definitivamente é brasileiro. gem foi muito cedo oposta à imagem do “inferno Esta identificação entre um ser divino e uma nacio- na terra”, por meio da não menos paradigmática nalidade concreta e localizada, ao invés de representar afirmação de que “não há pecado abaixo do Equa- um nacionalismo xenofóbico, é expressão da religio- dor”, esta cantada por Chico Buarque de Holanda1. sidade popular, talvez uma afirmação do que a Teo- Esta afirmação supostamente se refere à licencio- logia da Libertação tem chamado de “opção preferen- sidade e promiscuidade do povo que habita esse cial de Deus pelas pessoas pobres”. Uma afirmação paraíso e conduz à compreensão brilhantemente de fé de um povo no meio da luta pela sobrevivência articulada por Adilson Schultz de que, no Brasil, que encontra uma forma de relacionar a experiência embora “Deus está presente – o diabo está no do sagrado com o que parece tornar a vida menos meio” (SCHULTZ, 2005)2. dura: estes momentos extraordinários que irrompem Apesar das disputas entre sociólogos/as sobre na luta ordinária – futebol e carnaval. É verdade que questões de autenticidade e inautenticidade com a sua origem e seu principal uso estão relacionados relação à cultura brasileira (SOUZA, 2000), este com a Copa do Mundo de Futebol e os cinco títulos artigo segue o consenso básico segundo o qual a mundiais, neste caso, outra prova do fato de que identidade brasileira (ou as identidades brasileiras) “Deus é – sim – brasileiro” e usa chuteiras, ao lado é formada por uma complexa mistura, cheia de de uma “nação de chuteiras” (VERMELHO, 2006). sincretismos (culturais e religiosos) e hibridizações Mas é também uma expressão, ou uma que não podem ser reduzidas a um conceito único consequência, de uma longa história de colonização e simples, mas que constituem uma “terra de con- religiosa e da constituição de um “mito de origem” trastes” (BASTIDE, 1979; ver também inscrito na identidade brasileira. Esse mito, consti- CANEVACCI, 1996). Religião, então, é outro in- tuído na perspectiva de um poder político-teológi- grediente, um ingrediente forte, nesta configuração co, compreende “três operações divinas que, no estranha – talvez queer3. Ela é uma forma cultural mito fundador, respondem pelo Brasil: a obra de Deus, isto é, a Natureza, a palavra de Deus, isto é, 1 A expressão “não existe pecado abaixo do Equador” é de a História, e a vontade de Deus, isto é, o Estado” Gaspar Von Barleus, um viajante que visitou o Brasil no século XVII (veja PARKER, 2005; VAINFAS, 1989). (CHAUÍ, 2004, p. 58). Isto se traduz em “o Brasil 2 O autor discute as múltiplas influências que formaram é o paraíso”, “o Brasil é a terra prometida” e “os o “imaginário religioso brasileiro” e como este imaginá- colonizadores e conquistadores agem sob a vontade rio apresenta Deus e o diabo, ou o bem e o mal, de maneira misturada. de Deus” (SCHULTZ, 2005, p. 26-40). Assim, de 3 “Queer” refere-se aqui ao termo inglês que dá nome a acordo com Adilson Schultz: uma corrente teórica – Teoria Queer – que, a partir do ponto de vista dos estudos sobre sexualidade, questiona Este mito fundante do Brasil tem componentes eminen- toda forma de binarismo e dualismo que define identida- des fixas e essenciais (veja TURNER, 2000; SULLIVAN, temente religiosos. A religião esteve na base das motiva- 2003; LOURO, 2004). 28 GÊNERO E RELIGIÃO NAS ARTES

que está para além do domínio de qualquer institui- Deus é” a partir de características regionais bem ção eclesiástica, ressignificada no cotidiano das específicas. O Brasil é marcado por fortes dife- pessoas, sendo que uma das formas de sua renças regionais. Seria difícil desenvolver uma materialização é a expressão “Deus é brasileiro”. discussão aprofundada sobre estes regionalismos Além disso, pretende-se analisar como este “Deus num artigo tão breve (sem contar todas as dispu- brasileiro” é “imaginado” e como estas imagens tas sobre a ideia de uma identidade regional e as influenciam e são influenciadas pelos discursos disputas internas sobre o que representa melhor sobre masculinidade. Esta questão será desenvol- algo como uma identidade brasileira). Neste senti- vida a partir do estudo de duas músicas populares do, o principal objetivo é visualizar algumas ima- que apresentam discursos sobre quem Deus é. gens masculinas criadas por intermédio de discur- sos musicais que não são apenas um reflexo das Introdução 2 – A onipresença compreensões gerais sobre os papéis de homens e de Deus na música popular mulheres, mas também informam e legitimam es- brasileira e questões de gênero ses discursos na vida pública, dando a eles uma conotação religiosa/sagrada. Deus é onipresente na música popular brasileira. Deus está presente em cada gênero musical, das O deus-gaúcho músicas mais clássicas a toda variedade de ritmos e estilos contemporâneos. Invocado para cantar as A música Querência amada aparece na lista das belezas do País, a tristeza de estar em uma terra cinco músicas que “melhor traduzem a alma gaú- estranha, as crueldades e instabilidades da vida cha” (RIO GRANDE, n/d). O deputado Giovani diária, a saudade de uma pessoa amada, a esperan- Cherini recentemente submeteu um projeto para ça por um futuro melhor, a revolta diante de dife- estabelecer esta música como “um hino popular e rentes formas de opressão… O fato é que Deus é música símbolo do estado do ” parte do cantar e do dançar, do cotidiano, mistu- (MAIA, 2006). Embora o projeto tenha sido rejei- rado na luta pela sobrevivência e nas celebrações tado pela Assembleia Legislativa do Estado, ela é extraordinárias4. Desta forma, seria impossível uma expressão da cultura gaúcha e um importante apresentar uma única imagem que pudesse repre- artefato cultural para analisar questões de gênero sentar “a” imagem de Deus na música (ou cultu- na sua relação com a religião. ra) popular brasileira. O que se pretende fazer é, por meio da análise de duas músicas particulares, Deus é gaúcho refletir sobre como Deus é descrito nelas, e a re- De espora e mango lação entre estas descrições e os discursos sobre Foi maragato ou foi chimango. masculinidade. Isto também implica, como propõe Carlos Calvani, assumir a música popular brasileira Brevemente: “gaúcha” é qualquer pessoa nascida como “expressão artística genuína, manifestação no estado do Rio Grande do Sul5. Mais do que cultural que traz à luz determinada visão de mun- uma identidade geográfica, porém, gaúcha é a do” (CALVANI, 1998, p. 109). identidade mítica de um passado de lutas e glórias A seleção das músicas está baseada no fato de que pretende unir um povo em busca da uma que elas fazem uma afirmação direta sobre “quem identidade comum criada mais pela literatura e pela

4 Aqui também deve ser considerado o que afirma Isabel 5 Pessoas argentinas e uruguaias de regiões próximas ao Travancas (n/d: 2-3): “[A música popular brasileira] é um Rio Grande do Sul, especificamente de comunidades locus privilegiado de expressão de valores, ideologias e envolvidas na criação de gado, também são chamadas de sentimentos nacionais. […] o Brasil é um país musical e “gaúchos”, mas este artigo enfoca somente os gaúchos sua música tem uma função importante na construção da brasileiros, que se tornou um termo usado para se referir identidade da nação”. a qualquer habitante desse estado brasileiro. 29

ideologia do que por elementos factuais (veja, por A religiosidade certamente é uma característica exemplo, GUTFRIEND, 1992). Esta “imagem- forte dessa construção identitária. Mas o principal identidade” é bem representada pelo autor desta interesse aqui está em perceber as referências fei- música6 e na atualidade cultivada pelos Centros de tas a Deus e como ele é retratado. Deus é men- Tradição Gaúcha (CTG). cionado três vezes na música: 1) na esperança por Embora tenha sido gravada por Teixeirinha ape- saúde para ver por “muitos anos/ o céu azul do nas em 1975, esta música bem expressa a busca Rio Grande”; 2) como aquele que “me fez assim” por uma identidade no contexto de forte nacionalis- – com um coração pequeno (e embora “o Rio mo que se iniciou na década de 1920 no Brasil e Grande é bem maior/ mas cabe dentro de mim”); também como uma resposta ao desenraizamento 3) quando Deus se torna a imagem de um gaúcho advindo de um processo de industrialização e urba- – ou o gaúcho se torna a imagem de Deus? nização acelerado, do qual os CTGs são uma ex- Este deus-gaúcho apresenta alguns outros ele- pressão (DACANAL, 1992). Neste sentido, a letra mentos identificáveis com a identidade do homem- da música é uma afirmação desta identidade: “Quem gaúcho: ele usa espora e segura um mango (chico- quiser saber quem sou/ Olhe para o céu azul/ E te), e é identificado com dois partidos políticos grita junto comigo/ Viva o Rio Grande do Sul”. O rivais nas revoluções de 1893 e 1923 (“foi restante da música apresenta várias características maragato ou foi chimango”). Ele domina seu cavalo que definem esta identidade. Duas referências explí- (natureza e cultura) e, independentemente do par- citas sobre o pertencimento ao Brasil (“Disposto a tido político com o qual se identifique, atua na are- tudo pelo Brasil” e “mais uma estrela brilhante na na política. E a identificação está completa. Na bandeira do Brasil”)7, resolvem as tendências sepa- verdade, todo o discurso sobre a identidade do gaúcho começa com a afirmação de que para saber ratistas muito presentes na história do estado. A quem ele é basta “olhar para o céu azul” e isso o identidade deste “personagem” também inclui ele- conduz à afirmação de que “Deus é gaúcho”, uma mentos de vestimenta (lenço), origem (Província de imagem que engloba todas as características dessa São Pedro), religiosidade (padroeiro da querência), identidade, até mesmo unindo elementos contradi- história (por meio de referências a alguns heróis tórios, e dando a ela uma justificação sagrada. Olhar estaduais – Flores da Cunha, Borges de Medeiros e para Deus (no céu azul) é olhar para o gaúcho. Getúlio Vargas), e suas conexões com o território Não há dúvida sobre o fato de este Deus ser (parreirais, planície e serra). Carinho e bondade um homem – e um homem muito específico. O também são elogiados na música como atributos – gaúcho é o macho. Virilidade, poder e força são mais uma identidade coletiva do que individual: “do seus atributos. Embora seja preservado nos CTGs, povo vem o carinho/ bondade nunca é demais”. A este macho não apenas se transformou numa figu- única referência a uma personagem feminina aparece ra folclórica tendo em vista os novos modelos de como “beleza da minha terra”. masculinidade, mas também por causa da condi- ção social à qual a maioria dos homens gaúchos 6 “Vitor Matheus Teixeira foi o artista mais popular da foi empurrada pela urbanização e implantação do história da música gaúcha. Gravou 65 discos e teve 766 agro-negócio. As grandes vitórias pertencem a um canções próprias registradas em vinil. Seu sucesso am- passado marcado em nomes de ruas e praças. O pliou-se para o resto do País e o exterior. Teixeirinha presente é de luta pela sobrevivência. A masculini- nasceu em 1926 em , então distrito de Taquara, e morreu em 1985, em . Sua infância trágica dade gaudéria ainda assim é, muitas vezes, a últi- inspirou-o, como na música Coração de luto. Destacou- ma característica de uma identidade diminuída se também no cinema, protagonizando mais de uma de- pela realidade, tão louvada no Deus-gaúcho como zena de filmes” (ZERO HORA, n/d). a esperança de um herói que é capaz de restaurar 7 Assim, a afirmação de que “Deus é gaúcho” não contra- o passado de glórias. Nesta imagem, as mulheres diz a afirmação feita acima de que “Deus é brasileiro”. pertencem ou são identificadas com a natureza8. Nas palavras do papa: “Se Deus é brasileiro, o papa é carioca. Em Porto Alegre, as pessoas dizem, o papa é 8 Mulheres gaúchas são chamadas de “prendas”, que tam- gaúcho. Na Bahia também”. bém significa “presente” ou “habilidade”. 30 GÊNERO E RELIGIÃO NAS ARTES

Qualquer elemento novo que pudesse ser acrescen- pelo capitalismo com suas injustas relações trabalhistas. tado ou transformado nesta imagem é visto como Ele prefere sobreviver de pequenos biscates, sempre em uma ameaça e suprimido com violência9. E as função da festa e dos aspectos lúdicos da vida. Em geral, consequências em termos das relações de gênero em todas as músicas ou alusões à malandragem, subjaz são auto-evidentes. uma grande carga de simpatia e defesa desse estilo de vida. (CALVANI, 1998, p. 123). O deus-malandro No contexto do movimento modernista, em Chico Buarque de Holanda é certamente um busca de uma autêntica identidade brasileira que artista emblemático da música popular brasileira. valorizasse elementos marginalizados da cultura, o Seu trabalho é visto como uma síntese das mu- malandro tornou-se um arquétipo para o que sig- danças que tiveram lugar no Brasil nos últimos 40 nifica ser brasileiro (DAMATTA, 1984, p. 95-105; anos. Suas músicas têm sido analisadas sob dife- 1997 p. 251-301). Este personagem é sempre rentes perspectivas, em diferentes áreas de estudo contrastado com (ou oposto a) o mito do homem (TRAVANCAS, n/d, p. 3). O que interessa aqui é trabalhador, representando duas matrizes diferentes um personagem específico que aparece em diferen- na construção da identidade onde cada homem tem tes fases do trabalho do artista, e como ele se algo de ambos. Estes dois personagens estão pre- relaciona com a imagem de Deus apresentada na sentes nas músicas de Chico Buarque, expressando música Partido Alto. esta dialética. De acordo com Isabel Travancas,

Deus é um cara gozador A música de Chico Buarque expressa este jogo dialético Adora brincadeira, presente na própria sociedade brasileira que oscila entre Pois para me jogar no mundo estes dois modelos que ora aparecem como idéias [sic], Tinha o mundo inteiro. ora como indesejáveis, mas que não são excludentes […]. Mas achou muito engraçado Entretanto, eles mais do que se transformarem em mitos, Me botar cabreiro devem ser vistos como metáforas que ajudam a compre- Na barriga da miséria. ender a sociedade brasileira em suas múltiplas perspec- Nasci brasileiro, tivas. (TRAVANCAS, n/d, p. 12) Eu sou do Rio de Janeiro. O malandro aparece em várias músicas de Assim como “gaúcho” marca a identidade das Chico Buarque e uma análise de algumas dessas pessoas do Rio Grande do Sul, o malandro repre- músicas revela as mudanças na compreensão e senta a identidade das pessoas (homens) da cidade percepção deste personagem na sociedade brasilei- do Rio de Janeiro – ou pelo menos de alguns ho- ra (TRAVANCAS, n/d, p. 8-12)10. Na música “Par- mens. Ele é o protagonista de uma infinidade de tido alto”, o malandro reflete sobre seus infortúnios músicas e lendas que constituem outra forma de na vida e como Deus é responsável pelas coisas figura mítica que, de acordo com Carlos Calvani: pelas quais ele passou e pelo que acontece com ele diariamente. No início da música ele tem uma encontrou terreno fértil no Rio de Janeiro a partir dos interlocutora (ou pelo menos uma ouvinte): “Diz anos 20. Fundamentalmente, o malandro não é mau; que deu, diz que dá, diz que Deus dará/ Não vou apenas recusa-se a entrar no sistema de trabalho regido duvidar ó nega/ E se Deus não dá/ Como é que vai ficar, ó nega/ Diz que Deus diz que dá/ E se 9 Veja, por exemplo, as cruzadas contra os desvios das Deus negar, ó nega/ Eu vou me indignar e chega/ tradições no Movimento Tradicionalista Gaúcho coman- dadas pelo seu patrão (GUAPOS, 2006), e o episódio 10 A autora analisa as músicas: “Malandro quando morre” que envolveu o “capitão gay” durante a celebração do (1965), “Partido alto” (1972), “Vai trabalhar vagabundo” aniversário da Revolução Farroupilha em 2002 (1975), “Homenagem ao malandro” (1977) e “A volta do (MANSUR, 2002). malandro” (1985). 31

Deus dará, Deus dará”. “Nega” é a ouvinte silen- Deus, aquele que é responsável por tudo que ciosa, aquela que pode ter a resposta caso Deus acontece ao malandro (do lugar onde ele nasceu negue e não dê, evocada no refrão entre as estro- até suas características físicas), também é aquele fes da música. As estrofes falam sobre certezas que provê os meios para “navegar” pela realidade que emergem da experiência diária, apesar das e encontrar formas de subvertê-la. A malandragem dúvidas sobre como Deus vai agir, apontando para também pode ser vista na forma como Deus age, uma realidade não muito diferente no futuro. sintetizada na afirmação sobre Deus que é: “um Na primeira estrofe, Deus é responsável pela cara gozador, adora brincadeira”. Deus pode dar – condição de pobreza que está relacionada com o Deus pode não dar. Além disso, Deus é aquele lugar onde o malandro nasceu: “na barriga da misé- com quem ele pode argumentar, de quem o ma- ria eu nasci brasileiro”11. Na segunda estrofe, Jesus landro exige explicações e reparação. Assim, outra Cristo também é invocado como responsável pela vez, Deus se torna a imagem do malandro – ou o situação do malandro, de quem ele espera reparação malandro a imagem de Deus? e uma explicação por ter colocado no mundo esta No meio de uma realidade cheia de incertezas, “coisica”; mas viajar o mundo e usar o seu talento Deus se torna uma expressão dessas incertezas. musical é visto como uma saída para a situação em Este homem acredita em Deus como acredita em si que se encontra. Na terceira estrofe são apresenta- mesmo – tudo pode dar certo – como geralmente das as características físicas do malando: fraco, dá – mas pode não dar. E então, como é que vai desdentado, feio, pele e osso – sem recheio. Ainda ser, ó nega? O deus-malandro evoca certa assim, “se alguém desafia e bota a mãe no meio”, “irresponsabilidade divertida” que está baseada na ele vai pra briga e sai ileso. Por isso, ninguém deve liberdade masculina em lidar com as situações da mexer com a mãe do malandro, pois ela é uma fi- vida, na família assim como no espaço social. Não gura sagrada e aquela a quem ele é mais ligado12. é um divertimento cruel, mas a leitura da realidade Na quarta estrofe são narradas as formas por meio na qual se vê a “graça” presente no mundo como a das quais ele consegue viver e sobreviver: possibilidade de perceber a presença de Deus. Na relação entre o malandro-homem com Deus, a Deus me deu mão de veludo para fazer carícia mulher aparece com um papel específico. Na ma- Deus me deu muitas saudades e muita preguiça landragem que permite a sobrevivência em meio às Deus me deu pernas compridas e muita malícia dificuldades, a mulher é normalmente aquela que Pra correr atrás da bola e fugir da polícia. garante alguma segurança e estabilidade, porque se “Deus não dá” é dela que se espera a resposta para as dúvidas e problemas. A virtuosidade deste deus- homem-brasileiro é compreendida na sua cumplici- 11 O termo “brasileiro” foi censurado pela ditadura e subs- dade com um mundo masculino cheio de obstáculos tituído por “batuqueiro” (referência a religiões afro-bra- e experiências de sobrevivência. sileiras). Neste sentido, para o regime militar, ser pobre É interessante que Teixeirinha (estudado acima) podia ser uma conseqüuência de nascer em um contexto gravou uma música chamada “Malandro legal”, na marcado por essas práticas religiosas, mas não por cau- qual descreve suas aventuras com todas as carac- sa da pobreza crônica resultante de séculos de explora- ção colonialista. terísticas comuns a um malandro. Em sua músi- 12 Há várias razões para este “culto à mãe”, tão comum no ca, no entanto, ele é acordado pela esposa que diz: Brasil e na América Latina, uma das quais é o fato de, “você é o Teixeirinha, um homem direito, o gran- especialmente em comunidades empobrecidas, a mãe/ de cantor regionalista. Você se bateu a noite toda, mulher ser a figura mais estável na família dado o grande sonhou tolices”13. Este poderia representar um número de “mães solteiras”. Mas também é possível desejo inconsciente do gaúcho de se tornar o especular, embora esteja fora dos objetivos deste artigo, a conexão entre a “mãe do malandro” e a “mãe de Deus”, Maria, que (coincidentemente?) também é um 13 Na música, esta parte é cantada por sua esposa Mary nome muito comum para mulheres. Terezinha. 32 GÊNERO E RELIGIÃO NAS ARTES

malandro, não tão preocupado com a moral e o ros, tem discutido este assunto em publicações re- trabalho, ou somente o fato de que os dois, na centes (MURARO; BOFF, 2002; BOFF, 2004). Em verdade, não são tão diferentes no final das contas. sua reflexão, o modelo masculino de desenvolvi- Freud explica. mento e estruturação social conduziu ao caos ambiental no qual se vive atualmente. Por meio de Conclusão 1 – Estudos sobre uma cosmologia materialista e mecanicista, linear e masculinidade (e religião) determinista, dualista e reducionista, atomista e frag- mentada, ele defende, o modelo social androcêntrico Estudos acadêmicos sobre masculinidade são e antropocêntrico traduziu-se em colonialismo, im- um tanto recentes no Brasil (embora este seja um perialismo e monoculturismo. A solução, para Leo- campo em expansão). Como em vários outros nardo Boff, reside na religação dos princípios mas- contextos, o recente interesse em estudar a cons- culino e feminino, seguindo a divisão junguiana de trução social dos papéis de gênero masculinos é animus e anima, que no contexto patriarcal descrito uma consequência dos movimentos feminista e acima foram dualisticamente separados (BOFF, homossexual, que exigiram que os homens come- 2004, p. 77). Este tipo de reflexão parece seguir o çassem a pensar a si mesmos, incluindo a longa padrão das teorias de “leve repaginação”, propondo história que homens gays têm em fazer este exer- uma reorganização dos atributos masculinos e fe- cício, ainda que seus estudos geralmente não sejam mininos biológica ou psicologicamente pré-determina- contados como parte desta área de estudos. Exis- dos. Diferentemente do que Sócrates Nolasco defen- tem alguns estudos e publicações importantes e de, afirmando que a transformação nesta área “passa inovadores que apareceram nos últimos anos (por também pela construção de um projeto no qual estarão exemplo: NOLASCO, 1993b, 2006; OLIVEIRA, sendo repensados o próprio modelo de funcionamento 2004). Mas os meios de comunicação têm tido político e social em que estão inseridos homens e mais sucesso em popularizar a pergunta pelo novo mulheres” (NOLASCO, 1993a, p. 79). homem, geralmente propondo uma leve repagi- Na construção deste projeto a religião tem um nação que tem como objetivo fazer o velho parecer papel significativo. Numa sociedade e cultura tão renovado com base em intenções consumistas. marcadas por uma matriz religiosa como é o Bra- Como consequência, há uma vasta gama de publi- sil, onde a religiosidade é tão parte do cotidiano, cações populares, artigos em revistas, reportagens ainda há um longo caminho por trilhar. A religião em programas de televisão, discutindo a crise do certamente é um elemento importante de um macho e as novas formas de ser homem (veja discurso hegemônico sobre o que significa ser MUSSKOPF, 2005, p. 80-93). homem, sancionado na cultura popular por discur- No campo da teologia e da religião esta discussão sos tais como os analisados nas músicas acima. é ainda mais recente e escassa. As duas principais revistas bíblicas (ESTUDOS BÍBLICOS, 2005; Conclusão 2 – Deus é Brasileiro! RIBLA, 2007) e a revista feminista sobre religião Mas que brasileiro? Mandrágora (MANDRÁGORA, 2006) dedicaram um número a este assunto. O I Congresso Latino- Nas duas músicas analisadas fica muito claro Americano de Gênero e Religião (2004) incluiu que Deus é um homem, e no discurso musical “masculinidade” como um dos eixos temáticos (veja assume as características dos homens em questão. MUSSKOPF; STRÖHER, 2005)14. Leonardo Boff, Eles certamente não representam tudo que pode ser um dos maiores e mais influentes teólogos brasilei- dito sobre Deus na cultura popular brasileira, mas se colocam como representativas de um discurso sobre masculinidade e sua relação com o divino. 14 Este assunto também foi incluído numa publicação ante- No filme Deus é brasileiro (DIEGUES, 2002), rior (STRÖHER; DEIFELT; MUSSKOPF, 2004) organi- zada pelo Núcleo de Pesquisa de Gênero (NPG/EST), Deus decide tirar férias e vem para o Brasil em grupo que organizou o I Congresso. busca de um santo para assumir suas tarefas du- 33

rante o período em que estiver nas merecidas fé- religião, permanece o desafio de reimaginar Deus rias. Apesar de seu rosto bronzeado, suas roupas a partir das nossas próprias experiências como (calça social, camisa, sapatos, suspensórios e um pessoas com gênero e sexualidade, articulando a guarda-chuva preto) e sua seriedade e aparente graça em nossas vidas como homens e mulheres constante mau-humor, contrasta grandemente com na transformação das imagens usadas para falar de aquele que o segue/conduz ao longo de sua cami- Deus. Afinal, Deus é brasileiro! Mas que brasileiro? nhada. Taoca, seu fiel seguidor, o único que co- nhece a verdadeira identidade de Deus, diz para as Referências bibliográficas pessoas que este homem de aparência estranha é um “professor de biologia” de “São Paulo”, des- BASTIDE, Roger. Brasil, terra de contrastes. São Paulo: crição que aparentemente se encaixa neste sóbrio DIFEL, 1979. e introspectivo (imagem de) Deus. Ao longo da BÍBLIA e masculinidade. Coordenação de Maria Soave Buscemi. Petrópolis: Vozes, 2005. (Estudos biblicos; v. narrativa, Taoca tenta por diversas vezes subverter 86); Revista de Interpretação Bíblica Latino-Americana a ideia fixa desse Deus, algumas vezes levando (RIBLA), Petrópolis: Vozes, 2007. vantagem de estar na sua presença, e dizendo para BOFF, Leonardo. A voz do arco-íris. Rio de Janeiro: ele “relaxar” um pouco. Madá (forma abreviada de Sextante, 2004. Madalena) que termina se juntando a esta romaria CALVANI, Carlos E. B. Teologia e MPB: um estudo a por não ter outra opção diante da necessidade de partir da Teologia da Cultura de Paul Tillich. São Bernardo do Campo: Umesp, 1998. fugir da casa de um pai opressor e uma mãe fale- CANEVACCI, Massimo. Sincretismos: uma exploração das cida, a certa altura chega à conclusão de que este hibridações culturais. São Paulo: Studio Nobel/ Instituto Ita- homem nunca amou ninguém e é muito solitário. liano de Cultura/ Instituto Cultural ÍItalo-Americano, 1996. No final do filme, vê-se a imagem de um Deus um CARDOSO, Nancy; EGGERT, Edla; MUSSKOPF, André tanto mais brincalhão, enganando seu agora amigo S. A graça do mundo transforma deus. Porto Alegre: Uni- Taoca e nadando alegremente no rio. Um Deus que versitária Metodista, 2006. CHAUÍ, Marilena. Brasil – Mito fundador e sociedade au- foi transformado pela “graça” que ele experimentou toritária. 5. imp. São Paulo: Perseu Abramo, 2004. caminhando às margens e com os pobres pelo DACANAL, J. H. Origem e função dos CTGs. In: Nordeste do Brasil. GONZAGA, Sergius (org.). Nós, os gaúchos. Porto Alegre: Em janeiro de 2006 o Conselho Mundial de Igre- Universidade/UFRGS, 1992, p. 81-90. jas realizou sua IX Assembleia em Porto Alegre. O DAMATTA, Roberto. O que faz o brasil, Brasil?. Rio de tema dessa Assembleia foi “Deus, em tua graça, Janeiro: Rocco, 1984. _____. Carnavais, malandros e heróis; para uma sociolo- transforma o mundo”. Um grupo de teólogos e gia do dilema brasileiro. 6. ed. Rio de Janeiro: Rocco, 1997. teólogas latino-americanos/as reuniu-se em torno de GUTFRIEND, I. A historiografia sul-riograndense e o mito um projeto chamado “A graça do mundo transforma do gaúcho brasileiro. In: GONZAGA, Sergius (org.). Nós, deus”, no intuito de contribuir para a discussão os gaúchos. Porto Alegre: Universidade/UFRGS, 1992, p. proposta pelo CMI afirmando o direito (e a neces- 148-152. sidade) de “recusar as vírgulas, aproximar deus do LOURO, Guacira. Um corpo estranho; ensaios sobre sexu- alidade e teoria queer. Belo Horizonte: Autêntica, 2004. mundo e afirmar a graça a partir dos movimentos MANDRÁGORA/Núcleo de Estudos Teológicos da Mu- de transformação e recriação” (CARDOSO; lher na América Latina, ano XII, n. 12, São Bernardo do EGGERT; MUSSKOPF, 2006, p. 7). O processo Campo, UMESP-Curso de Pós-graduação em Ciências da de descolonização de Deus (e da religião) pressupõe Religião, 2006. revisitar as imagens de Deus que legitimam, santi- MURARO, Rose Marie; BOFF, Leonardo. Feminino e ficam e normatizam um mundo de relações machu- masculino; uma nova consciência para o encontro das dife- renças. 4. ed. Rio de Janeiro: Sextante, 2002. cadas. Incorporar a graça dos vários movimentos MUSSKOPF, André S. Identidade masculina e corporeidade envolvidos na luta por outro mundo possível ainda - uma abordagem queer. In: _____.; STRÖHER, Marga J. é um desafio para a teologia e a religião. (orgs.) Corporeidade, etnia e masculinidade – Reflexões do Para aqueles e aquelas ocupados/as em repensar I Congresso Latino-Americano de Gênero e Religião. São as relações de gênero e sexualidade no campo da Leopoldo: Sinodal, 2005, p. 89-107. 34 GÊNERO E RELIGIÃO NAS ARTES

_____.; _____. (orgs.) Corporeidade, etnia e masculinidade cdnoticia=287> – ‘O patrão das tradições gaúchas Manoeli- – Reflexões do I Congresso Latino-Americano de Gênero e to Savaris lidera cruzadas em nome dos costumes’>. Acesso Religião. São Leopoldo: Sinodal, 2005. em: 05 abr. 2008. NOLASCO, Sócrates A. Masculinidade: reflexões contem- JOVEM PAN. A vida do Papa João Paulo II marcada pela porâneas. In: Revista Cultura Vozes, n. 5, 1993a, p. 71-80. fé. n/d. Disponível em: . Acesso em: Rocco, 1993b. 05 abr. 2008. _____. O primeiro sexo e outras mentiras sobre o segun- MAIA, F. Legislativo deverá votar dia 1o inclusão da do. Rio de Janeiro: BestSeller, 2006. Expointer no patrimônio histórico. 2006. Disponível em: OLIVEIRA, P. P. A construção social da masculinidade. . PARKER, Richard G. Corpos, prazeres e paixões: a cultura Acesso em: 05 abr. 2008. sexual no Brasil contemporâneo. São Paulo: BestSeller, 1991. MANSUR, A. Baixaria no desfile. 2002. Disponível em: SCHULTZ, Adilson. Deus está presente – o diabo está no . Acesso em: 05 abr. 2008. SOUZA, Jessé. A modernização seletiva: uma MUIR, H. Tantalising evidence hints Universe is finite. reinterpretação do dilema brasileiro. Brasília: UnB, 2000. 2003 Disponível em: . Acesso em: 05 abr. 2008. New York: New York University Press, 2003. NEVES, F. U2 clama pelo hexa e leva 70 mil ao delírio no STRÖHER, Marga J.; DEIFELT, Wanda; MUSSKOPF, Morumbi. 2006 Disponível em: . Acesso em: 05 corporeidade. São Leopoldo: Sinodal/CEBI, 2004. abr. 2008. TRAVANCAS, Isabel. De Pedro Pedreiro ao Barão da RIO GRANDE. As cinco músicas que melhor traduzem a Ralé: o trabalhador e o malandro na música de Chico alma gaúcha. n/d. Disponível em: . www.unicamp.br/siarq/sbh/artigo_isabel_travancas.pdf>. Acesso em: 05 abr. 2008. TURNER, William B. A genealogy of queer theory. VERMELHO. Pátria de chuteiras. 2006. Disponível em: Philadelphia: Temple University Press, 2000. Acesso VAINFAS, Ronaldo. Trópico dos pecados: moral, sexuali- em: 05 abr. 2008. dade e inquisição no Brasil Colonial. Rio de Janeiro: ZERO HORA. Os 20 gaúchos do século. n/d (disponível Campus, 1989. em: Acesso em: 05 abr. 2008). Artigos da Internet GUAPOS. O patrão das tradições gaúchas Manoelito Filme Savaris lidera cruzadas em nome dos costumes. 2006. Dis- DIEGUES, Cacá. Deus é brasileiro. Columbia/Tristar, ponível em: