UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE BELAS-ARTES FACULDADE DE ARQUITETURA

Projetos Editoriais que testam os limites da Publicação

Bárbara Forte Fernandes Gonçalves Teixeira

Dissertação Mestrado em Práticas Tipográficas e Editoriais Contemporâneas

Dissertação orientada pela Professora Doutora Sofia Leal Rodrigues

2019

I DECLARAÇÃO DE AUTORIA

Eu, Bárbara Forte Fernandes Gonçalves Teixeira, declaro que a presente dissertação de mestrado intitulada “Projetos Editoriais que testam os limites da Edição”, é o resultado da minha investigação pessoal e independente. O conteúdo é original e todas as fontes consultadas estão devidamente mencionadas na bibliografia ou outras listagens de fontes documentais, tal como todas as citações diretas ou indiretas têm devida indicação ao longo do trabalho segundo as normas académicas.

O Candidato

Lisboa, 22 de Outubro de 2019

II RESUMO

O livro enquanto veículo de expressão artística tem vindo a ser explorado desde a génese das práticas editoriais. O design, a música, o teatro, a literatura, o cinema, entre outras formas de manifestação criativa, são ingredientes do bolo que constituí a book art e a publicação independente, cuja expressividade é diretamente influenciada pela mistura rica de áreas e técnicas participantes. É necessário conhecer particularidades do trabalho percursor neste âmbito, para que se assimile e compreenda o papel disruptivo do artist’s book. As formas comunicação gráfica primevas (são exemplo as pinturas rupestres), despoletaram espontaneamente, cumprindo as necessidades do ser humano pré-histórico. Com o avançar dos anos, e à medida que a linguagem se desenvolvia cada vez mais complexa, os suportes de inscrição de matéria foram também aperfeiçoados. As culturas chinesa e egípcia possibilitaram a descoberta e refinamento do papel, ao aplicarem as fibras de bambu e papiro, respetivamente, num processo de fabricação de “folhas”. A “folha”, que é um plano finito, junta-se a outra, e outra, até que aquele que dela se auxilia, decida pôr fim àquilo que compilou. Da necessidade de compilação surge então, mais tarde, o códice. Uma estrutura de armazenamento de páginas cuja forma, absolutamente engenhosa, permanece resiliente nos dias de hoje, após dois mil anos da sua invenção. Ao efetuar-se uma viagem histórica, verifica-se que tem existido uma densa experimentação das potencialidades formais do códice. Tendo como ponto de partida a idade média e percorrendo um caminho até à atualidade, conclui-se que as possibilidades de inovação são inesgotáveis, tanto a nível gráfico, como conceptual. Como tal, prevê-se que expedição da publicação de autor e da book art continuará em marcha progressiva, já que as possibilidades de exploração se parecem multiplicar com o passar do tempo. O futuro da cultura impressa poderá passar pelo conhecimento dos meios tecnológicos disponíveis e em progresso, aliados a uma experimentação inovadora e consciente dos suportes táteis.

Palavras-Chave: Design; Arte; Autopublicação; Book art; Livro.

III ABSTRACT

The book, as a means of artistic expression, has been explored since the beginning of editorial practices. Design, music, theatre, literature, cinema, among other forms of creative expression, are parts of a whole that constitute book art and independent publishing, whose expressivity is directly influenced by the rich mixture of participating areas and techniques. It is necessary to know the particular details of leading work in this area, so that the disruptive role of the artist´s book may be assimilated and understood. The primary forms of graphic communication, such as cave paintings, appeared spontaneously, fulfilling the needs of the prehistoric human being. Over the years, and as the language developed and became more complex, the mediums of inscription were also perfected. The Chinese and Egyptian cultures made the discovery and refinement of paper possible, as they were the first to apply bamboo and papyrus fibers, respectively, in a “leaf” manufacturing process. The "leaf," which is a finite plan is added on to another leaf and yet another until the user decides to finish its compilation. From the need for compilation emerges the codex, an ingenious page storage structure, which two thousand years later remains resilient. When travelling in time, it is possible to verify the potential of the codex as an object of art and expression, which has suffered constant experimentation over the years. Having as a starting point the Middle Ages, and throughout history, it can be concluded that the possibilities for innovation are inexhaustible, both graphically and conceptually. As such, it is estimated that the expedition of book art and author's publication will continue to progress, as the possibilities for exploration seem to multiply over time. The future of the printed culture may be tied to the knowledge of the current available technological means, allied to an innovative and conscious experimentation of tactile supports.

Keywords: Design; Art; Self-publishing; Book art; Book.

IV Agradecimentos

Durante o percurso desafiador que tem sido escrever esta dissertação, devo agradecer a algumas pessoas que se mantiveram a meu lado, apoiando-me e guiando-me.

Agradeço aos meus pais pela preocupação e incentivo incondicionais, por terem sido sempre o meu maior pilar e estrutura inabalável. À minha irmã por ser a minha confidente favorita em horas de aperto, e pelos serões de trabalho passados no escritório, acompanhadas de chá. Agradeço à minha família, tios e primos, pelo espírito de equipa e confiança que sentimos uns pelos outros. A nossa união é um elo raro. Ao Beco, por ser o meu companheiro de todos os momentos, pelos debates e por tantas vezes me ouvir recitar partes desta dissertação, quando busquei opinião. À Maria, que partilhou esta etapa comigo, me ajudou, e me fazer crer que as coisas são simples e solucionáveis. Agradeço à Rita por fazer parte da minha vida, e pela sorte de poder contar com a ajuda da melhor tradutora que conheço. Ao Pedro Petiz, pelo companheirismo e amizade, mas acima de tudo por me fazer crescer e inspirar durante esta jornada que foi o mestrado, mostrando-me que autopublicação é um caminho maravilhoso e libertador. À minha orientadora, pela constante disponibilidade e por me escutar atentamente quando expressei, muitas vezes de forma confusa, as ideias abstratas que me foram surgindo ao longo deste exercício.

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Para os meus avós, Domingos, Teresa, Carlos e Maria. Que tão contentes devem ficar por me ver “mestre”.

Dedico em especial à minha tia Alívio. A tua energia deu-me força para concluir etapa, e nenhuma memória é tão luminosa como a tua.

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Lista de abreviaturas

a.C. - antes de Cristo d.C. - depois de Cristo n.d. - data desconhecida p. - página pp. - intervalo de páginas S. – São

IX Índice

Introdução 17 1. Breve história do Livro 20 2. A Arte e o Design na época da sua Reprodutibilidade Técnica 26 2.1 Surgimento da Imprensa...... 27

2.2 Primeiros mecanismos de Reprodutibilidade Técnica...... 29

2.3 Walter Benjamin e a Reprodutibilidade da Obra Artística...... 33

2.4 Adorno e Horkheimer: A Indústria Cultral...... 38

3. Book, book art, artist's book, bookwork, book magazine e livre d'artiste 42 3.1 Introdução aos conceitos...... 43

3.2 O território do livro de artista...... 47

4. Reflexão histórica da Publicação de Autor 58 4.1 Os antecedentes do livro de artista e publicação de autor...... 59 4.1.1Conceito e filosofia do livro...... 59 4.1.2 Movimentos dos anos 20...... 64 4.2 O livro de artista e a publicação de autor - História selecionada...... 82 4.2.1 Retrospetiva...... 82 4.2.2 , Concetualismo, Minimalismo e Performance...... 85 4.2.3 ...... 101 4.3 O século XX, considerações finais...... 111

5. Algumas questões sobre a book art 114 5.1 Quem? O quê? Qual? Como? Para quem?...... 115

6. Meios de disseminação e Coleções 122 6.1 Bibliotecas, galerias, livrarias e museus...... 123

6.2 Colecionar livros de artista e publicações de autor...... 130

7. Designer como Autor 134 Conclusão 144 Bibliografia 146

X Índice de Imagens

Figura 1. Tabuleta de argila em escrita cuneiforme de origem Suméria, pertencente a 2500 a.C., aproximadamente...... 2 Figura 2. Secção do “Livro dos Mortos” no capítulo de Nani, pertencente a 1050 a.C., aproximadamente...... 2 Figura 3. Folha de impressão em bloco chinês, pertencente à Dinastia Sung (960-1279 d.C.) ...... 2 Figura 4. Inscrição de caracteres chineses em em osso, pertencente a 1300 a.C., apro- ximadamente (Dinastia Shang)...... 2 Figura 5. Manuscrito medieval iluminado (tinta, pigmentos e ouro em pergaminho), do Evangelho de S. de S. Mateus, pertencente ao ano de 700 d.C...... 2 Figura 6. Ilustração reprodutiva da prensa móvel de Gutenberg...... 2 Figura 7. Frame retirado de “L’Arrivée d’un Train à La Ciotat” (1895) dos irmãos Lumière...... 2 Figura 8. Fotografia “Rue de la Montagne-Sainte-Geneviève (1924), de Eugène Atget. 2 Figura 9. Capa de “Definitions by Clive Phillpot”: Art Documentation (1982), na qual o autor descrimina o significado dos termos: book,art book, artist’s book, book art, bookwork e book object...... 2 Figura 10. Diagrama “Fruit Salad” (1982) de Clive Phillpot ...... 2 Figura 11. “Parallelèment” (1900) de Pierre Bonnard...... 2 Figura 12. (1914) de Vassily Kamensky...... 2 Figura 13. Páginas de “Hypnerotomachia Poliphili” (1499) de Aldus Manutius ...... 2 Figura 14. Páginas de“Champfleury” (1529) de Geoffroy Tory ...... 2 Figura 15. Página de “Songs of Innocence and of Experience” (1789) de William Blake ...... 2 Figura 16. Página de “The Works of Geoffrey Chaucer” (1896-8) de William Morris. .. 2 Figura 17. Página de “Die träumenden knaben” (1907-08) de Oskar Kokoschka ...... 2 Figura 18. Página de“Mirskontsa” (1912) de Natalia Goncharova...... 2 Figura 19. "La Prose du Transsibérien et la petite Jehanne de France” (1913) de Sonia Delaunay ...... 2 Figura 20. Les mots en Liberté futuristes” (1919) de Marinetti ...... 2

XI Figura 21. Capa de “” (1914) de Marinetti...... 2 Figura 22. Capa de “K4 o Quadrado Azul” (1917) de Almada Negreiros ...... 2 Figura 23. Páginas de “Ledentu as Beacon” (1894-1975) de Ilia Zdanevich...... 2 Figura 24. Capa de “Die Kathedrale” (1920) de Kurt Schwitters ...... 2 Figura 25. “Universal Alphabet” (1925) de Herbert Bayer ...... 2 Figura 26. Página de “The Hundred Headed Woman” (1929) de Max Ernst ...... 2 Figura 27. Páginas de “Painting, Photography, Film” (1925) de Moholy-Nagy...... 79 Figura 28. Páginas de “The World is Beautiful” (1920) de Renger-Patzsch ...... 2 Figura 29. “Daily Mirror Book” (1961) de ...... 2 Figura 30. Páginas de “Twenty Six Gasoline Stations” (1963) de Ed Ruscha ...... 2 Figura 31. Capa de “Twenty Six Gasoline Stations” (1963) de Ed Ruscha ...... 2 Figura 32. Primeira página de“Various Small Fires” (1964) de Ed Ruscha ...... 2 Figura 33. Capa de “Various Small Fires” (1964) de Ed Ruscha...... 2 Figura 34. Capa de"Bok 3a” (1961) de Dieter Roth ...... 2 Figura 35. Páginas de "Bok 3a” (1961) de Dieter Roth ...... 2 Figura 36. Capa e páginas de “Statements” (1968) de Lawrence Weiner ...... 2 Figura 37. Página de “The Xerox Book ” (1968) de Lawrence Weiner Robert Morris, Robert Barry, Sol LeWitt e Carl Andre ...... 2 Figura 38. Capa de “The Xerox Book ” (1968) de Lawrence Weiner Robert Morris, Robert Barry, Sol LeWitt e Carl Andre ...... 2 Figura 39. Capa de “Green as well Blue as well as Red ” (1973) de Lawrence Weiner. . 2 Figura 40. Páginas de “Sculpture by Richard Long made for Martin and Mia Visser Bergeijk” (1969) de Richard Long ...... 2 Figura 41. Capa de “Robin Redbreast’s Territory Sculpture” (1973) de LawrenceWeiner...... 2 Figura 42. Páginas de “Robin Redbreast’s Territory Sculpture” (1973) de Lawrence Weiner...... 2 Figura 43. Página de “Throwing Three Balls...” (1973) de John Baldessari...... 2 Figura 44. Páginas de “Metafisikal Translations” (1962) de Paolozzi ...... 99 Figura 45. Páginas de “Abba-zaba” (1970) de Paolozzi ...... 2 Figura 46. Páginas de “Index (Book)” (1967) de Andy Warhol ...... 2 Figura 47. Páginas de “Aspen no. 3” (1966) de Andy Warhol e David Dalton ...... 2

XII Figura 48. Capa de “An Anhology” (1963) de Coletivo Fluxus ...... 2 Figura 49. Capa de “” (1964) de Maciunas ...... 2 Figura 50. “1 (a, b) 18” (1980) de Davi Het Hompson ...... 2 Figura 51. Páginas de “The Emissions Book” (1992) de Katherine Meynell ...... 2 Figura 52. Capa e contracapa de “The Emissions Book” (1992) de Katherine Meynell . 2 Figura 53.“Post-partum Document” (1983) de Mary Keller ...... 2 Figura 54. Páginas de “Chinese Whispers” (1976) de Helen Douglas e Telfer Stokes ... 2 Figura 55. Capa e contracapa de “Chinese Whispers” (1976) de Helen Douglas e Telfer Stokes...... 2 Figura 56. Páginas de “Loophole” (1975) de HelenDouglas e Telfer Stokes ...... 2 Figura 57. “Avessos Encadeados/Ombre” (1970) de Lourdes de Castro ...... 2 Figura 58. Os vários fascículos da revista Aspen (1965-1971) na “Whitechapel Gallery” (Londres) em 2016...... 2 Figura 59.“Futura 1” (1965) editado por Hansjörg Mayer ...... 2 Figura 60. Futura 24” (1968) editado por Hansjörg Mayer ...... 2

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Há mais de meia hora Que estou sentado à secretária Com o único intuito De olhar para ela. (Estes versos estão fora do meu ritmo. Eu também estou fora do meu ritmo.) Tinteiro grande à frente. Canetas com aparos novos à frente. Mais para cá papel muito limpo. Ao lado esquerdo um volume da "Enciclopédia Britânica". Ao lado direito — Ah, ao lado direito A faca de papel com que ontem Não tive paciência para abrir completamente O livro que me interessava e não lerei.

Quem pudesse sintonizar tudo isto!

Álvaro de Campos, Poesia

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16 Introdução

A presente dissertação tem como objetivo esclarecer os conceitos de livro de artista e publicação de autor, ou independente através de uma reflexão temporal iniciada nas primeiras formas de expressão gráfica e textual. Visa-se, também, analisar o impacto e maturação destas formas de expressão individual e coletiva, em termos culturais, políticos e sociais nos diferentes movimentos em que se inseriram, focando particularmente a atividade decorrida durante o século XX. O conceito de livro de artista assume múltiplas definições, sendo especialmente difícil detalhar tudo o que o constituí. Alguns pareceres referem simplesmente que artists’ books são livros produzidos por um artista, outros, estendem-se em redações mais detalhadas. Stephen Bury, historiador de arte, defende que os livros de artista são objetos sobre os quais o artista detém um elevado grau de controlo ao nível da forma ou do aspeto final, funcionando o livro como uma obra de arte em si mesmo. Mas o que define afinal o “artista”? Terá de ser alguém necessariamente ligado ao campo das artes visuais, como um pintor ou escultor? Por se entender que o produtor do livro, enquanto objeto artístico, encontra nos seus antecedentes e impulsionadores, criativos atuantes em diferentes áreas, tais como a música, a performance, o design, o teatro, o cinema, a escrita, entre outras, é exposto neste estudo, o modelo de Clive Phillpot. O ensaísta e crítico de arte propõe a designação book art, ao invés da generalizada de artist’s book, para qualificar as publicações que exploram a forma do livro, de um ponto de vista conceptual e visual, utilizando a tipografia, a ilustração, a fotografia, entre outros componentes gráficos, materializadores da imaginação. A iniciativa de produção independente e artística no universo do livro é tão antiga como a sua própria génese. Recordam-se os monges copistas, minuciosos ilustradores e calígrafos, que decoravam, com minúcia, os antigos manuscritos, colorindo-os com pigmentos e folha de ouro. Contudo, a partir do século XV, com a difusão da impressão, o livro passa a ser seriado, perdendo o cariz raro e valioso que até então o caracterizava. A mudança que ocorre no papel do artista, produtor de um exemplar, juntamente com a crescente proliferação dos meios de reprodutibilidade técnica, culminou num estágio de

17 massificação artística fervilhante no século XX, problematizada por ensaístas como Theodor Adorno, Max Horkheimer e Walter Benjamin. Enquanto Benjamin cogitava sobre a ruptura da autenticidade artística, quando transformada num objeto massificado, artistas dos finais do século XIX e do século XX, inseridos em movimentos como o arts and crafts, a secessão vienense, o futurismo, o dadaísmo, o construtivismo russo e o surrealismo, aproveitaram os avanços tecnológicos no campo da reprodução – litografia e fotogravura – para abolirem as oficinas tipográficas, intermediárias entre o leitor e o escritor. Assim, a mensagem seria voltada para a expressão individual, mais autêntica e direta, apesar de se instalar num núcleo menos abrangente comparativamente ao livro impresso. Em meados dos anos cinquenta, emergiu o conceito de book as art (livro como arte), no qual a forma do livro converte-se em temática central de exploração artística. Artistas plásticos, designers, músicos, escritores, entre outros criativos, contribuíram vivamente para modelação desta ideia, já iniciada pelos seus antecedentes, as primeiras vanguardas. O design construiu um alicerce estruturante para a conceptualização da ideia de livro de artista, pela sua proximidade primária ao códice. A prática de fundamentos concernentes à organização da página e harmonização tipográfica e imagética, pelos movimentos do início de 1900, despoletou uma atividade diversificada, experimental e consciente em movimentos posteriores, como a pop art, o conceptualismo, o minimalismo e a performance. O livro é então um médium, uma arena de expressão rítmica, que navega ao sabor dos acontecimentos culturais, políticos e sociais da época em que se insere. A book art calcorreou os terrenos mais insinuantes de efervescência cultural do século XX até à atualidade, passando por grupos como o Fluxus, pela publicação underground e por temáticas como a estética feminina. O facto do livro de artista se identificar como uma forma de arte híbrida, faz com que se insira tanto em bibliotecas e livrarias, como em museus e galerias. A sua forma de exposição, conservação e catalogação altera, também, consoante o habitat em que se insere. Outras formas de book as art e de publicação independente surgem em formatos de revista, banda desenhada, antologia, álbum, manifesto, poesia visual, documentário, diário gráfico, livro ilustrado e outros tipos de trabalhos gráficos explanados ao longo deste estudo.

18 O conceito de designer como autor e a definição de autoria são esclarecidos segundo o ponto de vista de vários ensaístas e designers, nomeadamente Michael Rock. O designer gráfico redigiu uma crónica em 1996, inserida na edição primaveril da revista “Eye Magazine”, onde referencia os três parâmetros caracterizadores de um autor segundo a “Auteur Theory”, teoria desenvolvida pelos críticos franceses do jornal “Cahiers du cinema”, estabelecendo uma ponte com o design. Este conceito, articulado no final dos anos quarenta, detalhou as circunstâncias que definiriam um diretor de cinema enquanto força criativa, um autor. Em Projetos editoriais que testam os limites da edição” pretende-se apresentar uma visão intérmina de criatividade no campo da publicação de autor e da book art, alheada da profissão ou do ofício dos seus executores. A inspiração parte da visão holística de Mallarmé (entre outros referentes), concernente à idealização de um livro enquanto um espaço representativo da total experiência do mundo, transcendente às suas próprias limitações. O trabalho de investigação foi desenvolvido a partir de uma pesquisa digital e manual de documentos e livros que abordam a questão do livro como um objeto de expressão artística. Alguns exemplares mencionados ao longo da presente dissertação foram consultados e analisados durante visitas à coleção de livros de artista da Biblioteca de Arte Gulbenkian.

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Breve história do livro

20 Para falar de “Projetos editoriais que desafiam as fronteiras da edição”, tema que me propus abordar, é essencial fazer uma reflexão temporal sobre os desenvolvimentos do livro enquanto objeto de design e obra de arte. Antes da existência do livro como hoje formalmente o reconhecemos, o ser humano expressava-se através da escrita e do desenho noutro tipo de suportes. Os primeiros homens, pré-históricos, auxiliavam-se do desenho como uma forma de comunicação, e não um veículo de expressão artística. Luís Manuel de Araújo (2001) professor e historiador, atesta esta afirmação ao proferir, “Os primeiros grafismos efetuados premeditadamente e de forma algo contínua pelo homem remontam aos tempos pré- históricos” (p.43). As pinturas rupestres que pigmentam as cavernas onde habitaram os pré-históricos, transportam quem hoje as vê para um período onde as temáticas principais estariam relacionadas com a caça, os rituais e cultos, e a fertilidade; pois seriam estes o foco da comunicação humana da época. Hoje atribui-se a essas pinturas ou esculturas um caráter artístico que não seria considerado pelos pré-históricos. As primeiras formas de escrita surgiram através de um processo de simbologia pictórica. Acredita-se que a linguagem se tenha desenvolvido auxiliada de ideogramas, onde um desenho corresponderia a uma ideia, e que desse mesmo se pudessem desenvolver outras palavras.

A escrita cuneiforme, criada pelos Sumérios na antiga Mesopotâmia, é a mais antiga de que se tem conhecimento, e crê-se que tenha sido inventada pela necessidade que havia de organizar a administração da sociedade (cobranças de impostos, registo de cabeças de gado, contagem de cerais, entre outros). Samuel Kramer, historiador americano, afirma que o crescimento económico centralizado levou os oficiais de palácios e templos a contabilizarem a quantidade de grão, ovelhas e gado que circulavam nos seus postos de venda e quintas. Writing was invented in order to record business activities in the early Near East. With the growth of centralized economies, the officials of palaces and temples needed to be able to keep track of the amounts of grain and numbers of

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Figura 1. Tabuleta de argila em escrita cuneiforme de Figura 2. Secção do “Livro dos Mortos” no origem Suméria, pertencente a 2500 a.C., capítulo de Nani, pertencente a 1050 a.C., aproximadamente. aproximadamente.

sheep and cattle. Wich were entering or leaving their stores and farms (Samuel Kramer, 2010, p.7).

Mais tarde a civilização egípcia começou a usar os hieróglifos, também pictóricos, durante três mil e quinhentos anos. Os egípcios usaram a sua antiga escrita como elemento decorativo, adornaram os túmulos dos faraós para que estes pudessem ler as homenagens que lhes foram prestadas, e contaram histórias prodigiosas. As paredes dos túmulos, o barro cozido, as câmaras funerárias, juntamente com a pedra e a madeira, foram os suportes iniciais dos quais se fizeram usar os egípcios, que mais tarde desenvolveram o papiro, proveniente da planta do mesmo nome. O papiro é considerado um percursor do papel e apresenta uma grande resistência e durabilidade, o que permitiu que muitos documentos chegassem à atualidade em ótimo estado de conservação. Esta afirmação é confirmada através da seguinte citação: “Muito do que conhecemos da História do Egito nos foi transmitido pelos rolos de papiro encontrados, em grande parte, nos túmulos dos nobres e faraós” (João Paulo da Rocha, 2011, p.20). Conseguem-se descodificar muitos dos registos deixados pelos antigos egípcios, por dedução pictórica, como afirma Amaranth Borsuk: “Hieroglyphics are sure to be familiar to many readers as a system in which drawings of figures and objects are combined to represent things (pictogram), ideas (ideogram), sounds (phonogram) (Borsuk, 2018, p. 12). A descoberta da “Pedra de Roseta”, em 1799 perto da cidade de Rashid (Roseta), pelas tropas napoleónicas foi determinante no processo de descodificação de muitos dos

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Figura 3. Folha de impressão em bloco chinês, Figura 4. Inscrição de caracteres pertencente à Dinastia Sung (960-1279 d.C.) chineses em em osso, pertencente a 1300 a.C., aproximadamente (Dinastia Shang). registos deixados pelos antigos egípcios. A pedra contém hieróglifos, escrita demótica e grego, legado que permitiu a sua tradução. Esta tradução foi levada a cabo pelo egiptólogo Jean-François Champollion em 1822, que acabou por concluir que os signos hieroglíficos se dividem em alfabéticos, silábicos e determinativos (signos que determinam a leitura de outros signos). No decorrer dos anos, os hieróglifos sofreram uma mutação. Para simplificar e facilitar o processo da escrita, os caracteres tornaram-se mais abstratos, permitindo à mão ter mais destreza no traço, sendo mais rápida. O mesmo se passou com a generalidade das línguas, como é o caso do árabe e do mandarim. Estas escritas também respondiam a uma preocupação gráfica das culturas. A caligrafia islâmica é considerada arte decorativa, sendo os árabes os primeiros, muito antes da contemporânea tipografia ocidental, a tornarem mais versáteis os seus tipos. Em prol da estética, estes podem ser mais ou menos esticados, prolongados ou contraídos, grossos ou estreitos; não há uma regra de leitura específica, o mais importante é servir o “belo”. Na Ásia Oriental, os mais antigos registos de caracteres chineses datam aproximadamente de mil e quinhentos a mil anos antes de Cristo, escritos em fragmentos de marfim e osso. Os chineses desenvolveram um suporte através das fibras de bambu, tal como aconteceu com os egípcios e o papiro. “A much handier and cheaper medium for keeping records than shells, bones, jade, bronze, or stone was bamboo or wood” (Endymion Wilkinson, 2000, p.444). A citação transcrita proferida pelo diplomata e historiador oriental Endymion Wilkinson, afirma que o bambu seria um suporte muito mais acessível e maleável comparativamente a conchas, ossos, jade e bronze, previamente utilizados

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Figura 3. Manuscrito medieval iluminado (tinta, pigmentos e ouro em pergaminho), do Evangelho de S. de S. Mateus, pertencente ao ano de 700 d.C. pelos chineses. À papa de folhas de bambu, misturava-se cré ou farinha de arroz para se obter alguma brancura. O resultado final seria uma folha de papel, ainda que grosseira. Também foram pioneiros na operação de formação de folhas, através do emprego de um molde retangular, cujo o fundo era constituído por uma fina rede de seda que filtrava a água. Esta arte, que os chineses dominaram por um longo período de tempo, só foi conhecida muito mais tarde no Ocidente. Os caracteres hoje utilizados pelos chineses têm muitas semelhanças com o mandarim tradicional, já que há conceitos transcendentes aos milhares de anos de desenvolvimento cultural que sofreram. Há uma série de palavras base, que se mantêm inalteráveis, e a partir dessas originaram-se outras, que resultam da relação dos significados das anteriores. Toma-se como exemplo a palavra mãe (妈). O caractere é formado por um signo inicial que se refere ao género feminino, ou à mulher (女) e junta- se a outro que se refere a cavalo (马). A relação entre os significados mulher e cavalo, para formar o conceito de mãe, em a ver com o facto de uma mãe ser sempre uma mulher, e ter de trabalhar mais do que um cavalo, e com a força deste, para cuidar dos seus filhos. Na verdade, este ideograma de significados é um processo comum no desenvolvimento da linguagem escrita e verbal de um ponto de vista global. No caso dos chineses, como ainda mantêm vivas muitas destas relações de significados que foram instituídas desde a formação da sua língua, pode ter-se a certeza do teor da mensagem que é transmitida. Mesmo que a lógica do seu pensamento possa não fazer sentido para culturas diferentes, há certeza daquilo que se pretendeu transmitir; o mesmo não é assegurado no caso dos egípcios, onde há muito por descodificar.

Conhecem-se apenas fragmentos destas civilizações milenares, contudo são suficientes para se entender nos dias de hoje como foi o seu desenvolvimento. O papiro,

24 inventado pelos egípcios, e sobretudo o pergaminho (proveniente da palavra Pérgamo, cidade da Ásia Menor onde se crê que tenha surgido) por serem extremamente resistentes à passagem do tempo, contribuíram para que os historiadores fossem juntando peças do puzzle que é a história do mundo, e concretamente a história que se quer focar, a da edição.

O pergaminho 1, constituído a partir de excertos de couro bovino, ou de outros animais; e o “volumen” (rolo de papiro) por terem um elevado custo na idade média, sobretudo entre os séculos VII e XII, foram lavados ou arranhados com pedra pomes, para que pudessem ser reutilizados, dando origem ao palimpsesto, um pergaminho reutilizado. Com o recurso a estas técnicas de raspagem, perdeu-se imensa documentação histórica, desde normas antigas em desuso, até obras de pensadores gregos pré-cristãos. No entanto, foi possível restaurar alguns destes textos com recurso a tecnologias contemporâneas. No decorrer dos anos o “volumen” foi substituído pelo “códex”, uma convenção inventada pelos gregos, com o fim de codificar leis, e desenvolvida pelos romanos; trata- se da estrutura de armazenamento de informação escrita que ainda hoje utilizamos. Este caracteriza-se por ser um volume de páginas manuscritas (finas ou espessas) sobrepostas umas às outras, geralmente de igual tamanho, vincadas e alinhadas em dois cantos, formando uma borda. Essa borda é normalmente cozida e encadernada com um papel mais espeço, ou com placas rígidas. A descrição é absolutamente familiar, já que atualmente se convive com este formato nas mais diversas variantes, e que convencionalmente é apelidado de livro. O “volumen” e o “códex”, fabricados tanto em papiro como em pergaminho, tornaram-se predominantes no Ocidente devido à ascensão do cristianismo. Contudo, o formato códex alcançou a preferência dos primeiros cristãos: “Early Christians, the essayist and book historian Alberto Manguel suggests, embraced the codex as a means of clandestinely transporting texts banned by the Romans.” (Borsuk, 2018, p.47). O "volumen" e o "códex" coexistiram durante séculos no Império Romano. Conclui-se que o envolvimento do artesão no processo de fabricação do livro é tão antigo como o próprio. Nos primeiros manuscritos verifica-se um trabalho minucioso de ornamentação da página. As carpet pages, páginas sobretudo geométricas, podem incluir frisos e formas

1 Provém da palavra latina pergamum, de Pérgamo, a cidade atualmente no território da Turquia onde se iniciou o fabrico do pergaminho no século IV a.C.

25 repetidas de animais, entre outras figuras naturais. Eram a abertura de capítulo de cada um dos quatro Evangelhos nos códices religiosos. As primeiras letras de abertura de texto, adornadas e iluminadas com folha de ouro, testemunham a exuberância e exaltação sentida pelos monges copistas sobre os textos que copiavam.

Muitos dos manuscritos celebram o poder ou a cultura de uma localidade em particular, mosteiro ou patrono, bem como a riqueza da comunidade que é representada. Há uns mais elaborados que outros, que refletem a perícia do monge copista monge, encarregue de escrever o texto, deixando os espaços em branco para os iluminadores preencherem. A difusão da impressão no final do século XV mudou o panorama em questão, pois surgiram novas tecnologias e artes gráficas que permitem produção de réplicas.

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A Arte e o Design na época da sua Reprodutibilidade Técnica

27 2.1 Surgimento da imprensa

Até meados do século XV a maior parte dos livros medievais era executada no Scriptorium. O Scriptorium era composto por vários monges copistas, que escreviam os textos, e iluministas encarregues de os ilustrarem. Neste espaço liderava o scrittori, um monge que assumia o papel de editor e diretor artístico. Os monges copistas, movidos pela devoção religiosa, usaram o papel, o pergaminho e o vellum2 como médium da sua arte. Na sua época, a alfabetização não era destinada a todas as classes sociais, e apenas uma pequena minoria sabia ler e escrever. Assim, os copistas pronunciavam as palavras para que fossem difundidas e se pudesse conhecer o que foi escrito. Hoje, a leitura é geralmente feita em silêncio. As palavras ecoam exclusivamente na cabeça do leitor, a menos que este as queira partilhar ou esteja a aprender a ler. Cessa-se a ânsia de conhecer o que está escrito, com a facilidade que se tem em alcançar um livro e lê-lo. A democratização deste objeto e o fácil acesso à leitura através da educação só foram possíveis por uma conjugação de condicionantes tecnológicas, que levaram ao surgimento da imprensa. A invenção da imprensa foi impulsionada pelo refinamento das técnicas de produção de papel na China, em meados de 105 d.C. Em alternativa às pesadas e grosseiras pastas de bambu e ao dispendioso papel de seda, os chineses desenvolveram um papel constituído por tecidos velhos. Os árabes tomaram conhecimento dos procedimentos desta técnica através de prisioneiros chineses, no século VII, que seriam introduzidos na Europa posteriormente, no século XII. Por isso, muito antes da invenção da imprensa de Gutenberg, através da prensa e dos caracteres móveis, verifica-se que o maior país da Ásia Oriental já trabalhava com processos semelhantes, nomeadamente, a impressão xilográfica e os caracteres móveis de argila, conciliados com inovações ao nível das tintas. A utilização continuada destas técnicas despoletou o florescimento e a propagação do termo “imprensa”.

2 Tipo de pergaminho liso, fino e acetinado.

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Figura 4. Ilustração reprodutiva da prensa móvel de Gutenberg.

Na Europa Ocidental, desde o início do século XV, procurou-se encontrar uma alternativa barata ao refinado manuscrito. O papel de farrapo tornou-se cada vez mais económico, generalizando-se, par a par, com o crescimento da alfabetização. No entanto, existiam necessidades que precisavam de ser colmatadas, já que o comércio prosperava, e o governo e as leis tornavam-se cada vez mais complexas, exigindo registo. Em suma, uma série de burocracias políticas, comerciais, religiosas e culturais estimularam a melhoria e criação de meios tecnológicos que pudessem resolver os problemas da sociedade em questão. Johannes Gutenberg, (1400-1468) ourives da cidade alemã de Mongúcia, viu uma oportunidade de negócio no desenvolvimento da imprensa mecanizada. Através da adaptação de mecanismos utilizados nas indústrias têxtil, vinícola e de produção de papel, criou a prensa móvel. Porém, a derradeira inovação de Gutenberg foi ter inventado um método para a modelagem de tipos móveis, através da fundição de blocos metálicos (cobre, o aço e chumbo). Alguns tipos poderiam também ser esculpidos em madeira, embora não apresentassem tanta durabilidade. A técnica de impressão já havia sido desenvolvida na China, sob a forma de impressão tabular (ou xilografia), adequada a alfabetos constituídos por ideogramas que eram impressos numa página a partir de um bloco de madeira talhado. O processo de impressão desenvolvido por Gutenberg adaptava-se especialmente à economia de letras do alfabeto latino, o que permitia isolar os caracteres um a um e compor o texto com mais versatilidade e menos recursos. Gutenberg necessitou, também, de fazer uma pesquisa alargada dos tipos de pigmentos e tintas mais adequados à sua invenção. Este tipo de processo de impressão exigia uma tinta de secagem rápida e que não transferisse.

29 O seu primeiro livro impresso, o mais significante e consagrado, foi a bíblia (de 42 linhas), com uma tiragem de trezentos exemplares. A obra demorou sensivelmente cinco anos a ser produzida (1450-1455). O advento de Gutenberg, apesar de ter tido uma importância incontestável no milénio, sendo que permitiu a divulgação do conhecimento em grande escala a partir do desenvolvimento da imprensa, não foi muito frutuoso para o próprio. Gutenberg acabou por ver a sua oficina penhorada e as suas técnicas tornadas públicas, e replicadas por outros. Por fim, apesar das resistências iniciais, os membros do clero reconheceram valor na impressão, tornando-a um veículo de propaganda religiosa. Contudo, como a atividade dos impressores é muito mais difícil de controlar do que a dos monges copistas, tornou- se impossível travar a afluência de textos impressos dos mais variados conteúdos. Este panorama, onde a imprensa assume o papel de difusora de informação diversificada, levou-a ao patamar em que se encontra atualmente.

2.2 Primeiros mecanismos de reprodutibilidade técnica

Tal como Walter Benjamin referiu (2012), “A obra de arte sempre foi, por princípio, reprodutível. O que os homens fizeram pôde sempre ser imitado por homens” (p.13). A xilogravura, sendo uma prova desta afirmação, foi a primeira forma de arte gráfica reprodutível, chegada à Europa no final na idade média, antes ainda dos carateres e da prensa móvel de Gutenberg revolucionarem o conceito de imprensa. Esta antiga técnica, de origem chinesa, consiste em talhar um desenho num bloco de madeira, pintando o relevo final resultante. Posteriormente, é utilizado um tipo de prensa para exercer pressão, relevando-se a imagem no suporte em papel, ou num outro. Ao limpar o bloco de madeira talhado e voltando a pintá-lo, poderão fazer-se inúmeras repetições do mesmo desenho. À xilogravura juntam-se, mais tarde, a gravura em água-forte e, no início do século XIX, a litografia. A água-forte é uma modalidade de gravura desenvolvida por volta de 1515, executada através de uma matriz de metal, que poderá ser em ferro, zinco, cobre, alumínio

30 ou latão. A matriz é o suporte metálico onde é gravado o desenho ou uma impressão fotográfica, e surgiu pouco tempo depois da xilogravura, adotando o mesmo princípio. A litografia é uma técnica de impressão que se baseia na repulsão entre a água e substâncias gordurosas, como por exemplo o lápis. Neste caso a matriz é em pedra calcária, de grão muito fino, apelidada pedra litográfica. Após o desenho ser gravado, a pedra é tratada com substâncias químicas e água. Ao invés do que acontece com outras técnicas de reprodução ou gravura, o desenho é obtido a partir do acúmulo de gordura, ao invés de fendas na matriz. Estas técnicas de reprodução permitiram que vários trabalhos pudessem ser produzidos em massa, e não apenas em algumas tiragens. Mas foi por meio da litografia, que, citando Walter Benjamin (2012), (...)“a arte gráfica se tornou capaz de acompanhar ilustrativamente o quotidiano”(p.15), começando a acompanhar a imprensa. Em termos gráficos, a ilustração teve um papel preponderante até ao aparecimento da fotografia, no início do século XIX. Esta permite representar o mundo tal como o vemos, como se alguém o tivesse congelado durante uns segundos no tempo e o convertido numa memória impressa eterna. Há sempre um olho por trás de uma lente ou de um outro mecanismo fotográfico, e essa entidade, que é o fotógrafo, apreende o momento sob a sua perspetiva. Um local, uma pessoa, um objeto, podem ser documentados das mais criativas e diversas formas! Acima de tudo, a fotografia é rápida, (...)“o olho apreende mais rápido que a mão desenha”(...) (Walter Benjamin, 2012, p.15), o que tornou possível reproduzir uma imagem num processo muito mais sistematizado. A litografia está intrinsecamente conectada ao jornal ilustrado, é através dela que são incluídas ilustrações em edições impressas. A fotografia liga-se, também, ao filme sonoro, pois existe uma ação implícita num momento fotográfico, e um filme compõe-se por um conjunto de imagens em animação. Não existe sonoridade, ou ação numa fotografia; a fotografia corresponde a um único momento. Porém, pode-se imaginá-la com base na nossa memória sensorial. Ao visualizar uma representação fotográfica de um pomar verdejante, onde não se avistam edifícios, consegue-se facilmente imaginar o piar dos pássaros, ou o som do vento que faz oscilar as folhas das árvores, sem nunca se ter visitado aquele espaço.

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Figura 5. Frame retirado de “L’Arrivée d’un Train à La Ciotat” (1895) dos irmãos Lumière.

O filme mudo tem a sua primeira exibição em 1895, no salão Le Grand Café em Paris. Este marco histórico foi alcançado pelos irmãos Lumière3, com a exibição da sua curta metragem (de apenas 50 segundos) intitulada “L’Arrivée d’un Train à La Ciotat”. Esta descreve a chegada de um comboio proveniente de Marselha, que aparece ao fundo, parando no lado esquerdo do ecrã, numa perspetiva diagonal. Os espetadores foram apanhados de surpresa, por não estarem habituados às ilusões causadas por uma experiência cinematográfica. Invadidos pelo pânico de serem atropelados pelo comboio, afastaram-se do ecrã e tentaram “escapar” como podiam. Mais obras surgiram da autoria dos irmãos franceses, e de outros aventureiros da sétima arte, como é caso de Georges Méliès 4 , pioneiro nos efeitos especiais e que começou a exibir filmes em 1896. A reprodução técnica do som foi conseguida nos anos vinte quando foi introduzido pela “Warner Brothers” o sistema de som Vitaphone (gravação de som sobre um disco). Até à data, tinham sido feitas experiências neste campo, mas debatiam-se com dificuldades em solucionar problemas de sincronização e amplificação respeitantes ao som, e fita cinematográfica. Em torno de 1900, a reprodução técnica alcançou um padrão a partir do qual começou não só a transformar a tonalidade das obras de arte tradicionais em seu objeto, e submeter o efeito destas a profundas transformações, como também conquistou para si um lugar próprio entre os procedimentos artísticos. Para o

3 Auguste e Louis Lumière, nascidos em França, são considerados os inventores da sétima arte. 4 O francês Georges Méliès é considerado o inventor do cinema de ficção, sendo que tirou proveito das suas capacidades de ilusionista para introduzir técnicas cinematográficas como exposições múltiplas, câmara rápida, e dissoluções imagéticas a fim de criar enredos de cariz utópico.

32 estudo desse padrão, nada é mais elucidativo que o modo como suas duas diferentes manifestações – reprodução da obra de arte e arte cinematográfica – retroagem sobre a arte em sua forma tradicional. (Walter Benjamin, 2012, p.17) Nesta citação de Walter Benjamin pode-se verificar uma divagação de pensamento do autor face ao estatuto de obra de arte, e como este pode ser atribuído ao cinema. Benjamin reflete, também, sobre o efeito que esta “nova arte” tem no campo da criatividade e como pode modificar convenções já estabelecidas no universo artístico. Da mesma forma que contemplar um quadro ou uma escultura é uma experiência passiva, tendo em conta que o observador não tem interatividade direta com o objeto, também o cinema é uma arte contemplativa, dependente de tecnologia. O observador, neste caso, contempla uma série de imagens em movimento, resultantes numa única experiência que pode ser interpretada de maneira diferente por cada individuo. Isto não invalida que o mesmo não se possa expor de formas diferentes a essa imagem projetada ou objeto: (...)film and video, for example, are heavily dependent upon technology, the actual experience that they offer the spectators is a total one, which is as much out a control of the spectators as is their exposure to a picture on a wall (Clive Phillpot, 2013, p.64). Pode concluir-se que, até ao inicio do século XX, foram superadas várias barreiras que limitavam a difusão cultural. As reproduções técnicas ao nível da escrita, da ilustração, da fotografia, do filme e do som foram determinantes para que a cultura e a alfabetização proliferassem. Muitos dos trabalhos elaborados por artistas, nos primeiros ensaios destas tecnologias, são hoje referenciados e transcendem qualquer fenda geracional associada à passagem dos anos. Porém, a massificação de informação que deu início à “Indústria Cultural” começou a levantar questões referentes à autenticidade da obra artística. Walter Benjamin foi um dos pensadores do século XX a esmiuçar este tema.

33 2.3 Walter Benjamin, e a autenticidade da Obra Artística

Na segunda metade dos anos trinta, enquanto as novas descobertas tecnológicas fervilhavam, fascinando a população, alguns pensadores debatiam-se com a ideia que por vezes o progresso pode trazer algum retrocesso. Walter Benjamin, ensaísta, crítico literário, tradutor, sociólogo e filósofo alemão, divulga através do seu ensaio escrito em 1936, “A obra de arte na época da sua reprodutibilidade técnica”, o seu parecer em relação a este assunto. Walter (2012) adianta que “Mesmo à mais perfeita reprodução falta um elemento: o aqui e agora da obra de arte – sua existência única no local onde se encontra” (p.17). Com as expressões “aqui” e “agora”, o autor refere-se às mudanças que a obra sofreu ao longo dos anos (no que concerne, por exemplo, às suas características físicas), e de que forma é que essa obra foi transportada até à atualidade. Em relação às características de deterioração ou conservação que o objeto em questão apresenta, o autor frisa que ao se realizarem testes químicos e físicos, podem ser tomadas conclusões. No que diz respeito à sua tradição histórica, deve-se perseguir o seu passado, a partir do local onde se encontra o original. “O aqui e agora do original constitui o conceito de sua autenticidade e sobre o fundamento desta encontra-se a representação de uma tradição que conduziu esse objeto até aos dias de hoje como sendo o mesmo e idêntico objeto” (Walter Benjamin, 2012, p.19). Walter Benjamin acredita também, que quando o autor não é o responsável pela reprodução da obra original, esta é tida como falsificação, pois é feita de modo mais autónomo que a original: (...)”o autêntico mantém a sua completa autoridade em relação à reprodução manual, que em geral é selada por ele como falsificação”(...) (Walter Benjamin, 2012, p.19). Podem existir outras circunstâncias em que a obra do autor seja intocada e corresponda de forma extremamente idêntica à original, como é o caso da fotografia. Uma imagem do Colosseu, antigo anfiteatro romano, pode viajar quilómetros, até às mãos de alguém, que nunca tenha pisado Roma. Porém, a representação desse espaço através da fotografia, nunca fará esse alguém conhecer sensorialmente, ou ter percepção desse lugar, que lhe é trazido através de uma imagem. Apesar das circunstâncias não adulterarem a constituição da obra, esta perde o seu “aqui” e “agora”.

34 Walter Benjamin (2012) refere que “A autenticidade de uma coisa é a quintessência de tudo aquilo que nela é transmissível desde a origem, de sua duração material até seu testemunho histórico” (p.21). Toma-se como exemplo o caso da antiga estátua de Vénus. O contexto de tradição onde está inserida sofre alterações consoante a cultura. Os gregos fizeram dela um objeto de culto, enquanto os clérigos medievais viram nela um ídolo profano. A história altera conforme a perceção dos homens. E apesar das abordagens simbológicas serem distintas em culturas e épocas diferentes, estas constituem o testemunho histórico da obra mantendo a sua unicidade, ou seja: a sua aura. Aura é o termo encontrado por Walter Benjamin para explicar a ocorrência única que caracteriza a esfera da autenticidade na obra de arte. A aura, segundo o autor, é invisível ou inexistente na reprodução técnica, sendo a massificação responsável pelo abalo da tradição, e herança cultural. E o que é propriamente a aura? (...)“Um estranho tecido fino de espaço e tempo: aparição única de uma distância, por mais próxima que esteja” (Walter Benjamin, 2012, p.27). O autor elabora esta definição, comparando-a a uma tarde de verão onde um corpo que repousa sobre a relva deitado, segue os contornos de uma cordilheira que se estende ao longe, ou a sombra projetada de um ramo, sobre aquele que descansa. “Isso significa respirar a aura dessas montanhas, desse ramo” (Walter Benjamin, 2012, p.29). Através da definição de “aura”, Walter Benjamin consegue expor de que forma é que a reprodutibilidade técnica pode condicionar socialmente a decadência da autenticidade. O autor elabora que o crescimento das massas advém da vontade do ser humano de trazer para mais próximo de si o que é palpável. Existe uma ânsia de possuir um determinado objeto, como se a proximidade fosse um apelo irresistível. Este ganha forma através da réplica. Já foi dito anteriormente que a unicidade da obra de arte é idêntica à sua inserção no contexto de tradição, que por sua vez está sempre sujeito a ser mutável (exemplo da antiga estátua da Vénus). As obras de arte primevas 5 surgiram com base num ritual, que começou por ser mágico, e posteriormente religioso. Aqui reside o cariz “aurático” da obra, que existe de forma única apoiada no seu passado histórico, e fundamentada no ritual.

5 Obras de arte relativas aos tempos primitivos.

35 Na perspetiva do autor, desde as primeiras manifestações artísticas, são distinguidos dois polos na obra de arte: o seu valor de culto (ligada ao ritual) e o seu valor de exposição. Os homens paleolíticos desenhavam figuras de animais nas paredes das cavernas, buscando uma forma de comunicação, e um instrumento que os permitisse servir a magia. Somente de modo casual, é que as suas representações seriam mostradas a outros homens, o mais importante era que fossem vistas pelos espíritos. “O valor de culto enquanto tal como que obriga a manter a obra de arte oculta” (Walter Benjamin, 2012, p.37). O mesmo se verifica nos hieróglifos pintados nos túmulos dos faraós, ou certas estátuas dos deuses, que eram somente acessíveis aos sacerdotes. As obras de arte primevas, vinculadas ao seu valor de ritual, só anos mais tarde foram reconhecidas como arte. Assim sendo, é indispensável ter em conta que por meio da reprodutibilidade técnica, a arte foi emancipada do seu valor de culto: (...)”a reprodutibilidade técnica da obra de arte emancipa esta, pela primeira vez na história universal, da sua existência parasitária no ritual” (Walter Benjamin, 2012, p.35) . Walter Benjamin assinala um ponto de viragem na vertente expositiva da obra de arte, com a fotografia. Se até então a obra teria um valor de culto, a fotografia vem soltar estas amarras. No início do século XIX, uma das questões de debate estava relacionada com a categorização da fotografia enquanto um instrumento de documentação, ou veículo de expressão artística. Com a reprodução técnica, revolve-se a história universal, e assiste- se a uma mudança na função artística. Ao destacar a arte do seu valor de culto abre-se a possibilidade para a pintura e a fotografia terem a mesma legitimidade no universo artístico. Considerando que a fotografia levantava várias questões à estética tradicional, isto acabou por desencadear uma disputa impulsionada pelas opiniões mais conservadoras. Atget6, fotógrafo francês pouco conhecido em vida, fotografou Paris (por volta de 1900), de uma perspetiva enigmática. Os seus cenários remetem o observador para um

6 Atget foi uma das personalidades mais importantes da história da fotografia, conhecido por captar através da sua lente as ruas vazias de Paris e objetos caricatos. Os seus cenários ausentes de presença humana suscitam a imaginação do observador.

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Figura 6. Fotografia “Rue de la Montagne-Sainte-Geneviève (1924), de Eugène Atget.

local de crime, onde as ruas estão despojadas de homens. A estas fotos “Não lhes é mais adequada uma contemplação livre. Inquietam o observador; ele sente que para chegar até elas precisa procurar um caminho determinado” (Walter Benjamin, 2012, p.47). O fotógrafo prova que a observação de uma fotografia pode causar sensações semelhantes à observação de uma pintura, estando os elementos diferenciadores relacionados com a técnica e o suporte. Como seria previsível, são questionadas também as intenções do cinema. O registo do filme, e sobretudo o filme sonoro, oferece uma visão completamente inovadora de arte. Este dá vida às fantasias mais alucinantes, prende o espectador num enredo imaginado, e convence-o (nem que seja por alguns segundos) que o que está a ver é real. O filme tem a capacidade de manipular, afastando o observador das técnicas e dos procedimentos necessários para criar uma história. Tomando como exemplo o operador de câmara, escondido do espectador, Walter Benjamin relaciona-o com um pintor. “O pintor observa, no seu trabalho, uma distância natural para com aquilo que é dado, o operador de câmara, ao contrário, penetra profundamente no tecido da realidade ” (Walter Benjamin, 2012, p.89). No cinema, o operador de câmara trabalha a fundo numa realidade que é fragmentada e posteriormente montada de forma a que no fim, o resultado final, seja uma junção entre as partes. No caso da pintura, todo o processo está exposto na tela, ainda que algumas pinceladas possam ser escondidas por camadas sobrepostas. Porém, o artista não mergulha materialmente na tela, como acontece com o operador de câmara. Este cria todo o desenrolar da ação, oculto da perceção do público.

37 Walter Benjamin compara a tela sobre a qual um filme se desenrola, com a tela sobre a qual se encontra uma pintura. No caso do filme a imagem vai-se alterando, na pintura a imagem é estática. Ao visualizar uma tela de pintura cria-se espaço para a divagação e formulação de ideias individuais. A mesma ação torna-se praticamente impossível ao apreender um registo cinematográfico, pois as imagens mudam a uma velocidade estonteante. Por este princípio, é legítimo dizer que o cinema tem a capacidade de criar uma certa psicose de grupo quando, por exemplo, há uma ação que despoleta uma gargalhada geral numa sala. Consoante o teor do filme, o espírito do público pode mudar, permitindo ao observador experienciar todo o tipo de sensações: (...) o efeito de choque do cinema, que, como todo o efeito de choque, requer ser captado por meio de uma presença de espírito intensificada. O cinema é a forma de arte que corresponde ao acentuado perigo de vida no qual vivem os homens de hoje (Walter Benjamin, 2012, p.108). Nesta frase, o autor faz alusão ao poder de manipulação presente num filme. Benjamin refere que a obra cinematográfica é detentora do efeito de choque e surpresa, responsáveis por captar o observador. Pode concluir-se, que Walter Benjamin formula o seu parecer, apresentando uma visão histórica daquilo que foi o desenvolvimento da reprodução mecânica, utilizando como principais referentes o cinema e a fotografia, contrapostos à pintura e escultura tradicionais. A sua opinião é sustentada pelo recurso à definição de “aura” artística, lamentando a rutura que nela acontece, quando é sujeita a réplica. Tal como o autor abordado, também Theodor Adorno e Max Horkheimer foram destacados pensadores, sociólogos e filósofos da Escola de Frankfurt7 que herdaram o percurso ideológico e metodológico de Karl Marx. As suas teses cruzaram-se, culminando num estudo das dinâmicas da indústria cultural, com foco nas consequências da massificação a nível social e económico.

7 Nascida nos anos vinte, a Escola de Frankfurt reúne o mais relevante círculo de intelectuais, filósofos e cientistas sociais, de mentalidade marxista.

38 2.4 Adorno e Horkheimer: A indústria cultural

Theodor Adorno e Max Horkheimer, pertencentes à escola de Frankfurt, viveram a mesma época histórica de Walter Benjamin, caraterizada por uma abundante disseminação de informação e pelo surgimento de uma era tecnológica, onde o comércio começa a fortalecer-se e o capitalismo a instalar-se. O cinema enleva a sociedade numa dança de sensações, e fá-la questionar porque é que se frequentam museus. Também a propaganda e publicidade adulteram as necessidades dos indivíduos, fazendo-os querer algo que não precisam. Ultrapassando de longe o teatro de ilusões, o filme não deixa mais à fantasia e ao pensamento dos espectadores nenhuma dimensão na qual estes possam, sem perder o fio, passear e divagar no quadro da obra fílmica permanecendo, no entanto, livres do controle de seus dados exatos, e é assim precisamente que o filme adestra o espectador entregue a ele para se identificar imediatamente com a realidade. Atualmente, a atrofia da imaginação e da espontaneidade do consumidor cultural não precisa ser reduzida a mecanismos psicológicos. Os próprios produtos (...) paralisam essa capacidade em virtude de sua própria constituição objetiva (Adorno & Horkheimer, 1997, p.119). Na citação transcrita, verifica-se que tanto Benjamin, como Adorno e Horkheimer viram o cinema como um meio de castração intelectual e imaginativa. Convictos de que o filme pode interceder negativamente nas escolhas das pessoas, tornando-as instrumentos de consumo cultural. Analisando este panorama onde o ser humano carece de opinião própria, e se deixa embriagar na novidade e no facilitismo que os novos media lhe trazem de bandeja, Adorno e Horkheimer defendem que o desenvolvimento da comunicação de massa, teve um impacto determinante sobre a ideologia e cultura da sociedade moderna. Para os autores a racionalidade só pode ser cultivada numa atmosfera de pensamento crítico e livre, desprendido da influência da Indústria cultural: “A Indústria Cultural impede a formação de indivíduos autónomos, independentes, capazes de julgar e de decidir conscientemente” (Theodor Adorno, 1990, p.67). Indústria Cultural, do alemão kulturindustrie, foi o termo desenvolvido pelos dois teóricos que engloba meios de comunicação como o cinema, a rádio, a televisão, os

39 jornais e as revistas. Estes media geram um sistema poderoso de movimentação de capital e incentivam a comercialização da cultura. Por serem extremamente acessíveis às massas, acabam por forjar uma ideia ilusória de felicidade e conhecimento, através da manipulação e controle social. Em suma, o termo “Indústria Cultural” é aplicado quando se refere à mercantilização dos círculos culturais desencadeados pelo surgimento das indústrias de entretenimento na Europa e Estados Unidos, impulsionadas e consolidadas no século XIX.

Devido às transformações ocorridas em Inglaterra e nos Estados Unidos durante o período de 1760-1869, que culminaram na Revolução Industrial, intitula-se de “sociedade industrial” o corpo social vigente. A noção de “indústria” refere-se a empresas fabris, produtivas e não ao ponto de vista de uma habilidade, ou instituição social que premeia o artesanato. Os autores Adorno e Horkheimer dão por si numa era, onde a sociedade não é conduzida por um objeto político ou ideológico, mas sim pela técnica. Esta passa a integrar a nova estrutura do pensamento, que tem como princípio fundamental a acumulação de audiência. Este tipo de conduta faz sentido, tendo em conta que as massas são o principal alvo da indústria cultural, pois são estas que movem a economia. Já se escrutinou de que forma é que o cinema e a televisão vieram a revelar-se engenhos de persuasão social e económica ao semearem ilusões nos espectadores, mas por sua vez, a rádio, serve como uma voz de comando aberta de longo alcance, que disponibiliza o discurso (tido como verdadeiro) às massas. Será legítimo asseverar, que a publicidade serve em pleno o propósito da indústria cultural. Esta ganha um novo fôlego e aperfeiçoamento da técnica quando ocorre uma explosão demográfica. a Revolução Industrial, que proporcionou uma subida na produção, e, consequentemente, o crescimento da quantidade de produtos a circularem no mercado, os meios publicitários também se tornam mais fortes. A publicidade almeja mais que estimular a compra: procura seduzir o consumidor, conferindo-lhe um status que só pode ser alcançado, se este comprar o produto publicitado. Consegue também ziguezaguear em meios como a televisão, a rádio; revistas, jornais; panfletos; cartazes, entre outros, tornando-se quase omnipresente. Porém, na sociedade de consumo, a competitividade é tanta, que só a potência comunicativa conseguida através da linguagem tornará um produto um êxito de vendas.

40 O design aparece, então, aliado a uma “estratégia de venda”, tentando servir graficamente o intuito publicitário. Conjuntamente existe o caso da pintura e da escultura. Desde o início da civilização ocidental que se fala em arte erudita8 e arte popular9. Esta última, espelha a função de entretenimento que a indústria cultural tem na atualidade. Mesmo as obras de arte únicas, que não são sujeitas à replicação e negam o carácter comercial da sociedade, acabam por ser mercadorias, subordinadas à vontade do seu patrono. A indústria cultural revela a regressão do esclarecimento ideológico, ao subverter o propósito do artista. A banalização e sexualização do nu nos meios de comunicação, desvaloriza a expressão estética e faz com que a representação crua do corpo humano seja vista como um apelo sensual, absolutamente sexualizado. Segundo Adorno (1970), “a situação da arte é hoje aporética” (1970, p.266), pois desvincula-se do seu esteio inicial, no qual era reverenciada a cultura, a religião e a moralidade. A arte, nas palavras de Adorno, é um “protesto constitutivo contra a pretensão da totalidade do discurso (...)” (1970, p.117). Na opinião do autor, a arte é desde o início uma ramificação natural do Homem, um elemento descritivo, seja da realidade exterior, ou interior, com o poder de protestar através da sua expressão. A ligação da indústria a esta manifestação de ordem estética, a partir de artistas que demonstram as emoções, ideias e têm como objetivo estimular a consciência do espectador, torna o ser humano num instrumento robotizado pelas ideias do sistema social. Adorno expõe em detalhe a sua crítica à arte moderna no seu livro “Aesthetic Theory” (1970), obra que traça os principais acontecimentos da história da arte, desde o seu estágio de semiautónoma, até à modernidade capitalista, tendo em vista as condicionantes sociopolíticas. O autor privilegia o conteúdo, a contemplação e a autoconsciência na arte, bem como a liberdade que lhe está implícita. Adorno estuda, igualmente, o seu cariz social, e a dialética entre a posição da obra de arte e o espaço que esta ocupa no que concerne à tua tradição social.

8 A arte erudita relaciona-se com as obras conseguidas através de códigos de valor universais. O autor é detentor de formação, consciência artística e domínio de técnicas. A inovação concetual também está associada a este tipo de arte 9 A arte popular diz respeito às obras produzidas num contexto cultural com tradição de artesanato, e vivência de um quotidiano no qual se sentem influências de cultos e tradições. Estas obras apresentam valor estético e artístico, apesar de o artista que as concebe não ter tal formação.

41 Acontecimentos desta dimensão (como são exemplos as descobertas tecnológicas), possibilitaram que a indústria chegasse ao estágio onde se encontra atualmente, no qual quase não se pensa sobre como se percorreu este caminho. Apesar do pensamento um tanto pessimista dos autores abordados, a reprodutibilidade técnica possibilitou que a cultura se difundisse globalmente. O livro viajou pelo mundo, as línguas entrecruzaram-se, e a experimentação de novas tecnologias, resultou no desenvolvimento de trabalhos artísticos muitíssimo ricos em termos de forma e conteúdo. Quase numa tentativa de corroborar a tese de Walter Benjamin respeitante à ausência de aura artística quando são utilizados mecanismos de reprodutibilidade técnica, os artistas do século XX auxiliaram-se da litografia e gravura, para eliminarem o intermediário (que neste caso seriam a tipografia e os tipógrafos) criando uma relação estreita e direta entre o artista e o leitor. Os experimentos dadaístas, futuristas, surrealistas, e cubistas, bem como os trabalhos ainda anteriores (século XIX) de poesia concreta e visual, abriram caminho para que mais tarde o objeto editorial fosse pensado para além das fronteiras do seu suporte, e se pudesse fazer arte utilizando o códex como medium. Para contar esta história, é primordial esclarecer os conceitos de book, book art, artists’book, book work, e book magazine.

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3

Book, book art, artist’s book, bookwork, book magazine, e livre d’artiste

43 3.1 Introdução aos conceitos

Tendo em conta o que já foi referido sobre a história do livro enquanto veículo de transmissão de ideias, e o poder deste no que diz respeito à mutabilidade e ambivalência interdisciplinar do seu formato, não é inusitado que se tenha verificado uma afluência de experimentos artísticos que procuraram o livro como medium. O livro é um objeto enraizado desde muito cedo na vida dos indivíduos, o que permite que, muitas vezes, haja uma ausência de consciência da sua presença e das suas potencialidades. Desde os livros infantis, que fomentam a aprendizagem das cores, formas, texturas e, por vezes, até dos cheiros, através dos elementos gráficos e tridimensionais que os integram (e convidam ao toque); até às bandas desenhadas, manuais escolares e de instruções, revistas, jornais, livros de palavras cruzadas, uma diversidade sem fim de categorias direcionadas para o gosto e faixa etária de cada um. A respeito dos livros é pertinente abordar neste estudo certas denominações que foram surgindo ao longo dos anos (na segunda metade do século XX) como artist’s book e book art, sendo a terminologia mais generalizada artist’s book, em português, traduzida por livro de artista. Este, segundo Clive Phillpot (2013): trata-se de um livro onde o artista assume o papel de autor, seja no sentido literário, ou na valorização do livro como um objeto artístico: “Artists’ books has come to be used most widely to denote the whole phenomenon of books in wich the artist assumed the role of author, either in the traditional literary sense or in the sense that the artist is the author of the book as a work of art” (p.47).

O termo book art, foi elaborado com o intuito de destacar os livros cuja forma é uma parte integrante do trabalho, como o exemplo de certos livros de artista que pelas suas propriedades gráficas e formais podem pertencer ao campo da obra de arte: (...)”the therm ‘book art’ has been advanced as denoting those ‘books in wich the book form is intrinsic to the work, and therefore focuses upon those artists’ books wich might be considered artworks” (Clive Phillpot, 2012, p.48). Não é fácil encontrar uma definição que explane na sua total amplitude as complexidades do livro de artista; é menos complicado, talvez, referir o que ele não é. Vários autores tentaram sintetizar uma definição fiel, consoante a sua interpretação

44 histórica e sensibilidade. Stephen Burry10 (2015), por exemplo, ao referir que os livros de artista são livros-objeto, cuja aparência final é resultado da intervenção de um artista acaba por considerar o livro uma obra de arte em si mesmo. O autor refere também que estes livros não são reproduções de um trabalho artístico, nem versam sobre um determinado artista, com texto e ilustrações sobre a sua obra. Segundo Stephen Burry: Artists’books are books or book-like objects, over the final appearance of wich an artist has had a high degree of control; where the book is intended as a work of art itself. They are not books of reproductions of an artist’s work, about an artist, or with just a text or illustration by an artist (p.15). Verifica-se que não existe nenhuma menção, em nenhum dos conceitos de livro de artista analisados, que desconsidere a tradição manual ou artesanal da execução do objeto que é o livro, ou a edição única e limitada. Por outro lado, também é inexistente a recusa ao título de livro de artista a algum objeto que seja produzido com recurso a tecnologias e reproduzido em série (o que vem refutar a tese da autenticidade da aura artística de Walter Benjamin). O aspeto determinante no reconhecimento do artist’s book reside na atenção que é prestada à obra na totalidade que é o livro, tanto a nível da forma como de conteúdo. Ulises Carrión (1975) : “In order to read the old art, knowing the alphabet is enough... In order to read the new art one must apprehend the book as a structure, indentifying its elements and understanding their function” (pp.40-41). Apesar de não estar implícito em nenhuma das definições de livro de artista qualquer restrição técnica alusiva à forma de produção do livro, quando se pensa em livros de artista, tradicionalmente, tende-se a imaginar objetos únicos, que exibem qualidades de pintura ou escultura, pois estas geralmente enaltecem a fisicalidade do livro. Os livros que abarcam estas qualidades, normalmente colecionam uma série de pinturas ou colagens, aglomeradas num volume sólido, construído para uma só substância ou para uma variedade delas. Já os livros múltiplos estão mais perto de uma tradição fotográfica, de design, e impressão. Muitas vezes o artista não tem um objeto maquete elaborado antes do resultado final, o que permite que este intervenha no trabalho, e tome decisões de composição durante o processo de impressão.

10 Stephen Bury é um historiador de arte e bibliotecário inglês.

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Figura 7. Capa de “Definitions by Clive Phillpot”: Art Documentation (1982), na qual o autor descrimina o significado dos termos: book,art book, artist’s book, book art, bookwork e book object.

Sejam os livros únicos ou múltiplos, a sua distinção não se traduz no seu aspeto, mas sim na filosofia de quem os concebe. Alguns livros únicos mantêm-se na esfera das artes gráficas (craftworks), enquanto outros almejam usufruir do precioso statuts da pintura e escultura. Os livros únicos rejeitam a revolução da imprensa de Guttenberg e renunciam o poder da proliferação; os livros múltiplos têm vontade de criar um cosmos acessível na arte através da reprodução técnica. As obras de arte inclinam-se para valores económicos bastante superiores aos dos livros, já estes, por serem contentores acessíveis, viajam para qualquer lado do mundo (cabendo, muitas vezes, num bolso), e valem individualmente como um só, apesar de poder haver mais exemplares. Não há “um” original, cada qual tem o seu valor, e poderá ser reimpresso gerando uma nova configuração de obra de arte, onde a cópia se assume como tal. Clive Phillpot 11 propôs-se a discriminar os conceitos que considera familiares à presença do livro na função artística. O autor começa pelo mais trivial book, trata-se de uma coleção de folhas brancas e/ou pictóricas, reunidas em duas extremidades (ao longo do comprimento), de forma a criar uma série única e uniforme de folhas. De seguida, artbook, intitula-se o livro que

11 Consultar Fig.9.

46 tem a arte ou um artista como assunto. Este pode assumir a forma de um catálogo, uma biografia, um livro de história da arte, entre outros. O termo que tem vindo a ser discutido com mais ênfase, artist’s book, ou em português livro de artista, é sumarizado como um livro cujo autor é o artista. Outro conceito a nomear é book art, este referencia obras de arte que assumem a forma do livro, ou que se baseiam nesta. É exemplo a pintura a óleo de Arcimboldo, “The Librarian” (1566), onde o artista cria um retrato, recorrendo exclusivamente à forma convencional do livro, multiplicando-o. Também Kurt Schwitters inclui nas suas telas elementos conseguidos a partir da desconstrução do objeto: páginas rasgadas, fragmentos de cartão que poderiam ter sido capas de livro, entre outros objetos determinados pelo artista. Intitula-se de bookwork, uma obra de arte ou literária que empregue a forma do livro. Esta classificação pode muitas vezes dissolver-se no campo do livro de artista. É exemplo

“Talking to myself” de Adrien Piper, onde a artista, sendo a autora, fala da sua educação artística, desde a pintura figurativa e escultura conceptual até à body art e performance. “Think/Leap/Re-think/Fall” (1976) é do mesmo modo um exemplo significativo, no qual o artista e autor Vito Acconci clarifica o seu trabalho “Hole in the middle of the world” (1976), e explica a evolução do desenvolvimento do projeto artístico para lograr o seu propósito. Por fim, book object é tido como um objeto artístico concernente à forma livro. Muitas vezes este género de objetos estão relacionados com a escultura, pois apesar de se assemelharem fisicamente a livros, não são folheáveis, ou não possuem certas qualidades presentes nos mesmos. Um exemplo a grande escala são as séries de livros concebidos pelo escultor Anselm Kiefer, que os constrói a partir de materiais fabris, granitos, mármore, metais e chumbo. É importante mencionar que os conceitos apresentados se interligam múltiplas vezes, podendo um livro partilhar aspetos de várias classificações. Ao elaborar este pequeno inventário de significados, Clive Phillpot teve o intuito de preparar o estudioso da publicação de autor para a possibilidade de se deparar com vários termos. Postas estas considerações, é importante ressalvar que “livro de artista” não é uma definição rígida. Estes livros deambulam num universo de várias ideias, disciplinas conteúdos, tentando “beber a água mais fresca” de cada área.

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Figura 8. Diagrama “Fruit Salad” (1982) de Clive Phillpot

Nota: A diferenciação entre os conceitos representados (cujo estudo foi iniciado em meados nos anos setenta) é resumida por Clive Phillpot através da realização de alguns diagramas, sendo este um exemplo. Observa-se uma distinção feita pelo autor entre os conceitos bookworks e book objects, e livros “múltiplos” e livros únicos, com base no seu processo de distribuição. O termo bookwork também é referenciado.

3.2. O território do livro de artista

Livro de artista ou artist’s book é assumido por muitas entidades como a forma de arte por excelência do século XX. Estes livros estão presentes em todas as correntes artísticas fundamentais, bem como movimentos literários, e o que os torna ainda mais singulares é o facto de não existirem na sua forma atual (salvo raras exceções) até ao século XX. O marco preciso da existência do livro de artista terá sido 1945, quando surgiram artistas, teóricos, críticos, inovadores, e visionários, que se propuseram a pensar e a concretizar este tema. Os artists’ books reuniram o avant-garde, a arte experimental e vários grupos independentes, cujas contribuições definiram a forma de atividade artística do século em questão, e desenvolveram-se numa ramificação à parte da arte mainstream, mantendo-se,

48 no entanto, a uma distância tangível. Pensa-se que se terão popularizado devido à flexibilidade e variação da sua forma. Também se distinguem da pintura e da escultura, pela interatividade que lhes é inerente. Ao invés do que acontece nas artes clássicas, onde é proposta uma observação do objeto artístico que não permite interação física com o mesmo, o livro, por sua vez, convida ao toque e manuseamento. A intenção do artista pode ser subvertida pelo observador/leitor/participante do livro, quando este decide, por exemplo, passar páginas à frente, ou folheá-lo ao contrário. Para além de ser um medium mais democrático. Pode então asseverar-se que um livro de artista é um trabalho original, ao invés de uma reprodução de um outro pré-existente, que considera os aspetos formais, juntamente com as temáticas estéticas que o constituem. No entanto, esta definição pode levantar algumas dúvidas, por cair em considerações vagas ou demasiado detalhadas.

A autora e artista Johanna Drucker (2004) coloca algumas questões com o fim de desmitificar a tipologia dos artists’ books. Estas são: O que é que é um trabalho original? Pode ser uma edição? Um múltiplo? Quem é que o faz? É o artista que tem a ideia? Ou só se ele fizer o trabalho que envolve toda a produção (impressão, pintura, encadernação, fotografia…) é que é um livro de artista? E se todas estas práticas forem combinadas por outra pessoa? O que é que constitui um livro de artista? Quais são os materiais comuns? (p.2) A autora responde que é possível encontrar-se uma panóplia de áreas onde o livro de artista opera como uma espécie de fenómeno multitasking12. Das quais, fine art printing13 , publicação independente, tradição artesanal, arte conceptual, pintura, design, arte política e ativista, performance, e entre outras expressões variantes, poesia concreta, música experimental, arte digital, tradição do livro ilustrado, e livre d’artiste. O livre d’artiste começou por ser uma empresa de publicação iniciada pelos vendedores de arte parisienses Ambroise Vollard, cujas primeiras produções apareceram na segunda metade de 1890, e Daniel-Henry Kahnweiller, que inicia a sua publicação uma década depois. Consistiam em edições de luxo, caraterizadas por conterem elementos de destaque como coloração manual, pintura virtuosa, encadernação minuciosa, uso de grandes

12 Termo em inglês que se refere à realização de várias tarefas ao mesmo tempo. 13 Termo em inglês que se refere a pinturas ou imagens digitais impressas com recurso a tintas de alta qualidade e papéis de gama fina, sem ácidos.

49 formatos e materiais raros, e textos e imagens que aludissem ao caráter sofisticado do mercado de elite. Estes livros precederam os artists’ books, e incentivaram uma moda entre outros editores e comerciantes, que reconheceram neste formato, uma oportunidade de vender edições luxuosas de artistas em ascensão mundial, tanto no campo das artes plásticas, como da poesia. Vollard estaria associado a Georges Roualt e Kahnweiller a Apollinaire, Picasso, entre outros cubistas. Outros dos artistas que começaram a laborar o livre d’artiste no início do século XX, são conhecidos por encherem exposições: Pierre Bonnard, Henri Matisse, Joan Miro, e Max Ernst. O livre d’artiste aproveitou a expansão do mercado das artes plásticas, que começou a crescer no século XIX, juntamente com o avolumar de alguns mercados incentivados pelo crescimento da indústria cultural, para ganhar a atenção de uma classe média alta com apetite por bons investimentos. O mercado destes livros desenvolveu-se como uma ramificação do mercado das artes plásticas (pintura, desenho e escultura). Os editores focaram-se no aspeto mercantil dos livres d’artiste, não demonstrando especial interesse em arquitetar uma obra original, enquanto os artistas agarraram a oportunidade de produzir um trabalho que os arredasse da sua zona de conforto. Um dos meios inovadores com o qual trabalharam foi a impressão. Apesar destes livros serem trabalhos muitíssimo bem executados, não são livros de artista, pois detêm-se na fronteira da atmosfera conceptual na qual atuam: (…)”it’s rare to find a livre d’artiste wich interrogates the conceptual or material form of a book as part of its intention, thematic interests, or production activities” (Johanna Drucker, 2004, p.3).” A partir da citação transcrita, conclui-se que para ser atingida a condição de livro de artista é necessária uma formulação crítica que interrogue conceptualmente e materialmente a forma do livro, e que este seja pensado como um meio. Os livros de artista detêm autoconsciência da estrutura e significado do livro enquanto objeto. Em termos de layout, notam-se configurações contrastantes entre o artist’s book e o livre d’artiste. O último inclina-se para uma produção excessiva, onde se denota uma distinção padronizada entre imagens e texto (geralmente em facing pages14), que resulta numa comunhão pobre destes elementos. No que respeita ao design – texto, tipo de

14 Termo em inglês que se refere a páginas opostas.

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Figura 9. “Parallelèment” (1900) de Pierre Bonnard. letra, imagem e encadernação – são estabelecidas operações independentes, guiadas pelo editor que tem o papel de validar a sua compatibilidade. Outros aspetos estão relacionados com o peso do formato do livro e materiais: folhas muito grossas, ou caractéres gigantescos. Pode-se alegar que estes trabalhos estão próximos da natureza do livro ilustrado, pela disposição de conteúdos que apresentam na página. Regra geral, os trabalhos seriam moldados consoante a visão dos editores (como é o caso de Kahnweiller), e o artista e escritor contratados de forma independente. O efeito de magnetismo destes exemplares residia em compor novas interpretações visuais de textos clássicos, nomeadamente de autores como Ovídio, Shakespeare, Dante e Esopo, favoritos nesta categoria. Contudo, é pertinente ressalvar, que os primeiros exemplos de livres d’artiste são mais aventureiros no que respeita à organização de conteúdos, como sucede, por em exemplo, em Parallelèment (1900) de Ambroise Vollard, com imagens de Pierre Bonnard. As imagens litográficas de Bonnard, difundem-se no texto impresso, unindo os elementos visuais e verbais da página com a plenitude de uma ondulação calma. Esta técnica de formatação começou no século anterior, com os impressores românticos e gravadores, dos quais se destaca Thomas Bewick, referenciado por amalgamar elementos textuais e imagéticos no seu trabalho. Também Iliazd, artista avant-garde russo, é detentor de um trabalho bastante aproximado do campo conceptual do livro de artista, apesar dos seus experimentos terem sido executados sem essa consciência e intencionalidade. O artista tornou-se editor após 1945. A investigação que exerceu em torno da forma do livro, aliada a uma visão original, afastaram-no das edições luxuosas, preocupadas unicamente com materiais e produção.

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Figura 12. Tango With Cows (1914) de Vassily Kamensky. Figura 10. Tango With Cows (1914) de Vassily Kamensky.

Porém, nem todos os trabalhos que partilham características do livre d’artiste podem ser considerados como tal. Outros bastante semelhantes, de custos reduzidos, obedecem aos mesmos padrões de justaposição de imagens e texto. O termo “fine printing” é tendencialmente associado ao letterpress, e a edições limitadas, mas pode também referir- se a qualquer outro meio de impressão. Geralmente estes livros são impressos com especial atenção à técnica, mas pecam em termos de inovação, por carecerem de uma vertente mais exploratória do livro como conceito artístico. Já os livros de artista propendem a ser associados a técnicas de offset ou xerox, contudo também se verificam exemplos de produção dos mesmos com recurso a letterpress, encadernação manual e métodos de gravura. A obra “Tango with Cows” (Moscovo, 1914) do futurista Vassily Kamensky é um exemplo da exploração imaginativa do letterpress. Neste trabalho explora-se a dimensão tátil da tipografia com tipos móveis que, como já foi referido anteriormente, tende a ser agregada à fine printing. Todavia, um livro de artista pode apresentar boas qualidades de impressão, sem perder a sua identidade, tal como a dita “má impressão” pode ser aceite e bem sucedida no contexto do livro de artista. É primordial reter que nem os métodos, nem a qualidade de execução determinam a identidade do artist’s book: The tactile, dimensional physicality of letterpress tends to be associated with fine printing, and fine printing with a conservative tradition, but an artist’s book can certainly be well printed without loosing its identity, just as bad printing is often acceptable and successful in the context of artists’ books (Johanna Drucker, 2004, p.6). Depois de se perceberem as qualidades e o significado de livro de artista, consegue- se captar a lógica que levou à junção dos termos livro e artista.

52 O motivo desta denominação, teve a ver com o facto dos artists’ books resultarem do trabalho de uma única entidade, neste caso, o artista. No entanto, nem todos os artistas estão envolvidos inteiramente no processo de fabricação do livro. Os fotógrafos, os encadernadores, os editores, os designers, os escritores, entre outros possíveis órgãos intervenientes, podem contribuir em colaboração com um artista, ou serem eles próprios, os artistas, os executores do livro. Nesse caso, por que razão se mantém a designação de livro de artista e não de “livro de fotógrafo” ou de “livro de designer”? Clive Phillpot propõe-se a aclarar esta dúvida, referindo que a resposta pode estar relacionada com o facto de as artes visuais se inclinarem muitas vezes para a categorização do seu meio, como acontece com a videoart, a , a body art15, entre outros exemplos. O autor aduz também que poderá ter havido a necessidade de abandonar o território que excluía a tradição da arte do livro, ou não lhe prestava a devida atenção. Numa primeira instância, supunha-se que os envolvidos no processo de produção do artist’s book seriam os pintores e os escultores, e desconsiderou-se que a maior parte das coleções e/ou exibições destes trabalhos, incluíam obras musicais, de poesia, coreografia e design: I think there were two reasons for the arrival and acceptance of the term ‘artists’ books’. There was definite need to stake out the territory that excluded the moribund ‘art-of-the-book’ tradition, as well as the art-book industry. Secondly there was the implicit suggestion that artists’ books were just a sideline for artists whose principal activity was, say, painting or sculpture. But the specificity of the term was undermined by the fact that most collections or exhibitions of artists’ books almost routinely included works by musicians, poets and designers, even choreographers and philosophers (Clive Phillpot, 2013, p.84). Foi feita anteriormente a distinção entre artists’ books e bookworks, ou artists’ bookworks. Pode-se considerer book art uma subdivisão da categoria de livro de artista, sendo que os trabalhos que se aproximam desta classificação (book art) são tidos como livros que têm a forma como uma parte intrínseca da sua composição. Ulisses Carrión (1980) aprimorou esta definição ao proferir: “Bookworks are books in wich the book form, a coherent sequence of pages, determines conditions of reading that are intrinsic to

15 Termo utilizado para descrever manifestações artísticas que utilizam o corpo como suporte.

53 work” (p.8). Deve ser mencionado que o autor declara que o conceito de bookworks abrange livros que não são produzidos por artistas plásticos. Sendo possível falar de book artists, como se fala de video artists, performance artists e mail artists. Contemplada esta argumentação, pode concluir-se que os designers, poetas, músicos, coreógrafos, ou qualquer outro grupo, ou indivíduo que se proponha a explorar as questões sobre as quais se debruça o livro de artista pode ser considerado o “artista” nesta definição. Já que Clive Phillpot e Ulisses Carrión consideram que book art e bookwork se integram na esfera do artist’s book. No entanto, estão excluídos desta consideração os artesãos, encadernadores, ou outras personalidades responsáveis pela materialização de uma ideia de outrem, pois não intervêm criativamente no processo. O debate prevalecente na busca de uma definição de livro de artista estará relacionado com a sua ideia de múltiplo. A noção do livro como um meio acessível de informação é apenas uma parte da sua natureza enquanto múltiplo democrático, apesar dos paradoxos de produção envolvidos nesta ideia (sendo que há ainda bastantes mentalidades que rejeitam a reprodução técnica como um meio de produção artística). É, todavia, inegável a capacidade que os livros têm de circular livremente, como mensageiros independentes de qualquer restrição institucional específica. Têm uma duração relativamente longa (dependendo do cuidado do seu proprietário); são objetos flutuantes, desprendidos e portadores de um caráter quase mágico. Transcendem a vida individual e transportam informação remota até aos dias de hoje. O cunho do livro como um instrumento de independência e ativismo foi engrandecido através do legado deixado pelos futuristas russos, o grupo Fluxus, e os centros de artes e impressão sem fins lucrativos, como “The press at the woman’s building” em Los Angels, e a “Lower East Side Print Shop” em Nova Iorque. Segundo Johanna Drucker, o livro de artista incentiva o debate sobre o papel da arte no século XX: That artists’ books can facilitate a change of conscious is clear, as with any other symbolic form be it poetry, visual arts, or music; wether such work can result in a change of political structure and and policy opens the door to another set of debates about the role and function of art in the 20th century (…) (Joahanna

54 Drucker, 2004, p.8). Poderá ser complicado encontrar um movimento artístico no século XX que não tenha pelo menos vestígios de livros de artista na sua composição. Esta definição molda- se de forma a incluir outros tipos de publicações como revistas, jornais, arte efémera e publicações independentes. Por exemplo, Apollinaire e Pierre Albert-Birot conceberam livros de carácter cubista, e dentro do núcleo dos futuristas russos e italianos destacaram- se muitos praticantes experimentais da forma do livro (Velimir Khlebnikov, Natalia Goncharova, Francesco Depero, Filippo Marinetti). Pode traçar-se um trilho histórico de criação de livros de artista que inclui o expressionismo, o surrealismo na Europa de Este e Leste, o dadaísmo em toda a Europa e nos Estados unidos e, ainda, os movimentos do pós-guerra, como o letrismo, o fluxus, a pop art, o conceptualismo, o minimalismo, o movimento artístico feminino, e o pós- modernismo. É notório o recurso ao formato livro noutras atividades, como na música experimental (, Henri Chopin) e na arte performativa (, Robert Morris, Vito Acconci), sendo também possível nomear vários artistas que o trabalharam sistematicamente (Mario Merz, Ed Ruscha, Sol LeWitt, entre outros). A sensibilidade de Sol LeWitt, , ou Hanne Darboven é indissolúvel do caráter mainstream das suas obras, no entanto, a consciência que denotam da forma do livro, não é, todavia, acidental. Os artistas enunciados interrogaram-se sobre a configuração do objeto, e reconheceram o seu potencial. Os seus experimentos com o códex resultaram numa forma de expressão artística, que desconsidera o livro como um mero objeto de reprodução e permitiu criar um tipo de arte além das fronteiras da pintura e da escultura. realçou que o livro enquanto fenómeno é capaz de combinar todas as formas de arte e ofícios numa vertente totalmente nova, por se tratar de um meio altamente maleável e versátil na sua expressão: A book, in its purest form, is a phenomenon of space and time and dimensionality that is unique unto itself. Every time we turn the page, the previous page passes into our past and we are confronted by a new world. (...)But the book that is clear upon what horizons it can offer up for our experience (whatever nonsense its author may have intended it to be), that book is well upon its way to matching its

55 horizons with ours and is, thus, on the track of potential greatness (Dick Higgings, 1982, c.11). Porém, tal como um artist’s book pode ser concebido por alguém que não seja tido como artista plástico, considera-se que nem todos os livros realizados por artistas, entram na categoria de artist’s books: “Not every book made by an artist is an artist’s book (…)” (Johanna Drucker, 2004, p.9). Esta afirmação vem contestar o antigo adágio de Duchamp (1968): “art is what an artist says it is”(p.132). É notória a capacidade de venda dos livros de artista tanto no final do século XX, como nas primeiras décadas, por serem encarados como uma estratégia acessível e atraente aos olhos das galerias. Contudo, um simples compêndio de imagens, um portefólio de impressões, uma coleção acidental ou apropriada de imagens afastam-se do terreno de cultivo dos artists’ books. As variantes, ou aspetos diferenciadores que formam a definição em questão podem, porém, cair numa certa ambiguidade. O observador ou leitor instruído tem um papel determinante na medida em que examina criticamente o desempenho das funções estéticas, operações culturais, conceções formais e espaços metafísicos presentes na obra. A estrutura também é uma componente fundamental do livro, apesar de ser insuficiente na determinação de alguma substância. No caso deste ser artesanal é requerida especial atenção aos materiais, às interações entre os elementos e à sua relação com o conteúdo. O livro pode contornar todas as convenções clássicas e constituir uma produção sólida que se aparte do âmago conservador que é inerente ao livre d’artiste. A convicção e a alma são os degraus do sucesso que fazem do artist’s book uma obra bem-sucedida. Para concluir, tal como Johanna Drucker assinalou, a maioria das tentativas de definir livro de artista cai em conceitos muito específicos (“pode ser uma edição limitada”) ou demasiado vagos (“um livro produzido por um artista”). O importante a apreender sobre os artists’ books é que estes são capazes de tomar formas imprevisíveis, ou convencionais, desenvolvendo-se em qualquer área, seja pintura, escultura, design, música ou literatura, podendo ser efémeros ou duradouros. Não há um sistema rígido de validação ao qual se tenham de submeter, e para se percorrer os meandros que os envolvem é necessário perceber do que se distanciam. Os artists’ books atuam num espetro diversificado de atividades artísticas, no entanto não se

56 duplicam ou estendem em nenhum outro âmbito. Transportam as suas próprias tradições, apesar de também sofrerem alguns constrangimentos concernentes ao seu formato. Pedem descrição, investigação e atenção crítica, antes da sua especificidade emergir. Como afirma Johanna Drucker: “Artists’books are a unique genre, ultimately a genre wich is as much about itself, its own forms and traditions, as any other artform or activity “(Johanna Drucker, 2004, p.14) É proposto, de seguida, um esclarecimento histórico que permita um entendimento cristalino deste tipo de publicações.

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Reflexão histórica da Publicação de Autor - O Livro como expressão verbal e visual.

58 4.1 Os Antecedentes do livro de artista e publicação de autor

4.1.1 Conceito e filosofia do livro

Livro de artista é um conceito que chega à sua maturação na segunda metade da década de quarenta, do século XX. As obras anteriores, apesar de exibirem qualidades gráficas desafiadoras das convenções tradicionais, não se inserem na categoria de artitsts’ books. Porém, contribuíram para que, passo a passo, se delineasse uma trajetória que dilatou o espaço conceptual do livro enquanto objeto artístico. Os antecessores do livro de artista tinham, com certeza, noção das potencialidades do códex. Diferentes tipógrafos, editores, artistas plásticos, designers, comercializaram as publicações que conceberam. É exemplo Aldus Manutius 16 com a sua obra

Hypnerotomachia Poliphili (1499), ousada na mescla e configuração dos elementos textuais e ilustrativos da página. Também Geoffroy Tory 17 em Champfleury (1529) manifesta o seu apresso pelo correto uso da gramática, ao buscar uma harmonização do alfabeto. O autor auxilia-se de uma grelha quadrangular para descrever a forma dos tipos, e relacionar as suas proporções com as medidas humanas. O livro espelha a sua devoção pela língua francesa. Firmin Didot18, exibe na sua obra Virgílio (1798), excelência da manufatura dos caracteres e da tinta concebidos pelo próprio. Estes trabalhos almejaram solucionar problemas técnicos de design, questões respeitantes à interligação de imagens e texto, e revolucionar técnicas de impressão, papel e encadernação. O conteúdo também era tratado e explorado com extrema consciência no formato do livro. Outros exemplos, onde se confirmam precedentes filosóficos e conceptuais da identidade do livro de artista, são os ingleses William Blake (poeta, tipógrafo e pintor) e William Morris (designer têxtil, poeta, romancista e ativista). Nos campos da literatura e da

16 Aldus Manutius foi um importante humanista, tipógrafo, humanista, e editor renascentista sediado em Veneza. 17 Nascido em Burges, Geoffroy Tory foi um gravador e humanista renascentista, cuja influência continua notória na publicação francesa. 18 Firmin Didot, proveniente de uma família de tipógrafos franceses, foi gravador e tipógrafo, conhecido por implementar o sistema de “pontos tipográficos” como unidade de medida da letra. O “ponto Didot” é hoje utilizado em toda a Europa.

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Figura 13. Páginas de “Hypnerotomachia Poliphili” (1499) de Figura 11. Páginas de“Champfleury” (1529) de Geoffroy Tory. Aldus Manutius.

poesia, respetivamente, Gustave Flaubert e Stéphane Mallarmé, levantaram questões filosóficas, poéticas e culturais que proporcionaram a compreensão do livro como conceito, e a sua maturação num ideal de expressão artística. Ambos os autores demonstraram possuir uma visão desenvolta e distinta do livro enquanto forma e agente espiritual de transformação social. William Blake acreditava que a imaginação poderia ser uma força libertadora. Nos trabalhos da sua autoria literária, desde “Songs of Innocence and of Experience” (1789) e “And did those feet in ancient time” (1804) o autor auxilia-se de personagens míticas para exteriorizar as suas paixões e convicções, corroborando a sua crença no poder da imaginação. Segundo Johanna Drucker: “He believed in independent imagination and expression, and he developed a means to produce this vision using his own labor with assistance from his wife Catherine” (Johanna Drucker, 2004, p.26). Os livros produzidos por William Morris, quase um século depois (1834-1896), embora denotem similaridades com os do seu conterrâneo, no que concerne à intensidade estética, e apreensão do livro como um volume único, não partilham as mesmas convicções cósmicas e espontaneidade. As motivações de Morris eram compelidas por um espírito diferente das de Blake, embora ambos se distanciassem da tirania, opressão e injustiça, de uma perspetiva social. O autor em questão fundou a sua própria tipografia, a Kelmscott Press, em Londres, na qual trabalhou com intuito de produzir exemplares aprimorados de design, com atenção à seleção dos papéis, tintas, e articulação dos elementos gráficos e tipográficos. A grande conquista de Morris no domínio do livro foi a realização da obra “The Works of Geoffrey Chaucer” (Kelmscott, Hammersmith, 1896-8), com páginas densas,

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Figura 15. Página de “Songs of Innocence Figura 12. Página de “The Works of Geoffrey and of Experience” (1789) de William Blake Chaucer” (1896-8) de William Morris. mas leves, que demonstra, simultaneamente, complexidade e coerência, e faz jus à expressividade e sensibilidade medieval de Chaucer. Os dotes do autor, enquanto designer gráfico e tipógrafo, aliados aos desenhos harmoniosos de Edward Burne-Jones19, que incorporam este trabalho, dançam um tango muitíssimo cúmplice. Apesar das preocupações visuais de William Morris se refletirem no seu notável desempenho como designer, o papel que ocupa na história do livro de artista advém da excentricidade presente na sua obra. O autor alcança-a ao recuperar textos medievais, que mimetiza na redação dos seus próprios poemas. A sua visão vincula-se a uma certa preocupação e consciência social, expressas sob a forma de livro. Morris ambicionou criar um espaço democrático e acessível para o livro, produzido segundo as normas da sua sensibilidade, no entanto acaba por reproduzir os seus trabalhos a uma escala massiva: “Morris expressed his desire for a cheaper and more accessible book, to be produced in accord with his sensibility, but he realized his works at a monumental scale of production” (Johanna Drucker, 2004, p.30). Por volta do mesmo período, em França, atravessava-se uma “crise espiritual”. O poeta francês do século XIX, Stéphane Mallarmé, começa a idealizar o livro como um projeto metafísico, focado na medula do conhecimento terreno. Mallarmé escreve dois ensaios intitulados “L’action Restreinte” e “Quant au livre”, caracterizados pelo tom metafórico e a expressividade poética encorpada, consequência do profundo entendimento histórico do autor.

19 Edward Coley Burne foi um artista e designer britânico inserido no movimento Pré-Rafaelita.

61 Os ensaios mencionados contêm pensamentos arrebatadores no que toca à conceptualização do conceito de livro. Em “L’action Restreinte” o autor disserta sobre o seu dilema da ação (no sentido de performance) e da escrita. Para Mallarmé o problema da ação, ou de agir, desencadeava uma dúvida de confirmação existencial – como é que alguém pode saber se existe, se não advém nenhuma evidência resultante do efeito da ação? O autor ressalta que a escrita pode, no entanto, conferir alguma prova palpável de ação, assentindo a possibilidade de uma existência. Ainda assim, considerando o raciocínio anterior, Mallarmé não considera que a literatura, ou especificamente a poesia, seja suficiente, e qualifica a escrita como uma forma parca de ação: “ainsi que d'un cigare, par jeux circonvolutoires, dont le vague, à tout le moins, se traçât sur le jour électrique et cru?” (Mallarmé, 1984: 371). Na citação transcrita, o autor metaforiza a escrita, atribuindo-lhe o caráter do fumo turvo de um charuto “em convulsão”, cuja forma não é reconhecida. Flutua, apenas, numa ondulação turva, onde o olhar só é capaz de traçar um contorno à luz de um inebriante dia de sol. Este ensaio poético tornou-se a rampa de lançamento para a ideia de livro, “Le Livre”, que conceptualizou. A presença da caixa alta, na primeira letra de “Livre” (Livro), serve para distinguir a sua definição do mero objeto do quotidiano, contentor de páginas. A virtude deste livro residia na sua auto capacidade de subsistência, desconectada de um autor. Este livro existia como um texto totalmente sozinho, concebido de forma autónoma: The Book, where the satisfied spirit dwells, in case of misunderstanding, is obligated, by some struggle, to shake off the bulk of the moment. Not personalized, the volume, from which one is separated as the author, does not demand that any reader approach it. You should know that as such, without any human accessories, it happens all alone; made, being. The hidden meaning stirs, and lays out a choir of pages. (Stéphane Mallarmé, 1982, p.110) Com esta observação, Mallarmé recalca o caráter individual do “Livro” desprendido da muleta humana, que o poderia contaminar com sentimentos como o medo e dilemas existenciais pouco oportunos à formulação livre do pensamento e à concretização de máximas artísticas.

62 A ideia do “The Book” tornou-se o remo da jangada de Mallarmé, do qual se apoiou como fundamento da sua poesia. O conceito originou a base de uma caracterização imaginativa que idealizava um espaço de representação onde constasse a total experiência do mundo, transcendente às suas limitações. As barreiras de uma experiência ou percepção individual não evidenciariam pertinência. Já as limitações do mundo, no que concerne às suas características singulares primárias – uma condição existencial profunda e espontânea – representavam a máxima conceptual sobre a qual Mallarmé desejava trabalhar, estendendo os parâmetros conceptuais do “Le Livre”. O autor exterioriza a sua crença nesta formulação ideológica, afirmando que toda a existência terrena deve estar contida num livro: “All earthly existence must ultimately be contained in a book” (Stephan Mallarmé, p.80). Mallarmé reitera que a ascendência à concretização de tal trabalho só pode ser conseguida se nele estiverem contidas qualidades harmoniosas, isoladas e reunidas num grupo imaculado na expectativa de uma ocasião milagrosa: “A hymn, all harmony and joy; an immaculate grouping of universal relationships come together for some miraculous and glittering occasion.” (Stephan Mallarmé, p.80). “The Book”, poderia ser “tudo”, uma resposta à compreensão do mundo, capaz de conectar o mero mortal e a divindade através da leitura, absorção e sintonia. A esperança, numa ascensão divina, seria o principal estímulo de progresso do autor. Com o fim de detalhar as possíveis características de uma obra desta tipologia, Mallarmé coloca algumas interrogações sobre formatos que considera mal resolvidos. É o caso do jornal impresso, que aos olhos do autor não apresenta distinção no uso da tipografia ou eficiência na distribuição dos elementos na página. O poeta desvaloriza o jornal e designa-o de “mar aberto”, no qual a literatura navega à vontade, sem rumo, ausente de forma, estrutura ou visão. Em contraste, o livro é tido como um veículo de armazenamento capacitado, dada a sua forma e virtude de estabilizar alguns sistemas de relações. A autora Johanna Drucker (2004) disserta sobre as cogitações do autor e compara a sua visão do processo de organização textual ao cargo de um maestro responsável por uma orquestra sinfónica. Drucker afirma que o design, neste caso, é sobretudo um ato de auto-consciência: “This could not happen without attention, a self-conscious act by which the text becomes

63 integral with its placement, movement, symphonic orchestration through the space of the book” (p.36). Mallarmé elevou o livro a um instrumento de capacidade filosófica, altamente mutável e ambivalente na sua forma, capaz de expandir a alma, incorporando novas configurações e arranjos visuais. As convicções do autor concernentes à transformação do layout da página, posta ao serviço da poesia imaginativa, atingiram o seu auge após a publicação do poema “Un coup de dés jamais n’abolira le hasard” (1896). A quimera da extensão metafísica do “Le Livre” não se concretizou, apesar da composição estrutural dos seus poemas ter sido apurada de forma a que a complexidade, mobilidade e abstração se aproximassem do seu grande adágio. Contudo, a possibilidade de um livro “conter toda a experiência da Terra”, acabou por ser travada pelos seus próprios parâmetros conceptuais, o que não invalida (e se poderá reconhecer), que, de algum modo, Mallarmé “desafiou as fronteiras da edição”. Tendo em vista os exemplos descritos até então, conclui-se que o livro, através das qualidades vernaculares que o constituem, serviu de inspiração para a produção de manifestações poéticas e literárias de várias ordens. Estas procuraram reenquadrar um novo sistema livre de organização textual, considerando a ótica metafórica do códex, em associação com os seus significados culturais, históricos e tradição espiritual.

4.1.2 Movimentos dos anos 20

Nas primeiras décadas do século XX, a formulação do livro como um objeto artístico teve como principais impulsores fações políticas, designers e artistas intervenientes na atividade do poster, entre outros movimentos gráficos. O avolumar exponencial da publicação de jornais e revistas, no decorrer do século XIX, fez com que artistas, designers, escritores, poetas, entre outros criativos, procurassem um instrumento de experimentação que servisse os seus propósitos.

64 As vanguardas russas20 foram pioneiras na exploração do objeto editorial. O seu elevado grau de visibilidade adveio da natureza heterogénea dos seus participantes. Estes, tanto podiam ser poetas, artistas plásticos, ou designers, exercendo diversas atividades; caracterizavam-se por serem isentos de pudor ao cruzarem caminho com as mais variadas formas de atividade artística - o teatro experimental, a dança, a música, entre outras. A inter-relação bem-sucedida das dinâmicas que exploraram, torna-os um modelo à escala global. Nota-se atenção e consciência patente no manuseamento dos materiais, perceção do formato do livro, layout da página e qualidade da imagem tanto num aspeto comunicativo, como temático, nos trabalhos desenvolvidos pelas vanguardas russas. O poeta anteriormente referido, Mallarmé, foi um eixo intelectual de formulação do pensamento das vanguardas do século XX, ligado à estética simbolista, e a conceções espirituais e conceptuais da forma do livro. Também o movimento Arts and Crafts21, que teve como apoiantes William Morris, Charles Rennie Mackintosh e William Matthews, tipificado pelos seus murais florais, bordas adornadas e temáticas remetentes à natureza, teve influência em alguns movimentos (por exemplo a Secessão Vienense22). Contudo, de um modo geral, a sua estética era tida como retrógrada aos olhos dos artistas de vanguarda. A Secessão Vienense estabeleceu, por volta de 1890, uma ponte para a modernidade. O campo de atividade deste grupo incidiu em áreas como a pintura (aliada à arquitetura), têxteis, mobiliário e ainda design gráfico, com alguns exemplos meritórios. O poster, os periódicos e a arte efémera foram o pulmão deste movimento. Toma-se, como referência da estética vienense, a revista Ver Sacrum (primavera sagrada em latim). O recurso expressivo a técnicas litográficas para a elaboração de ilustrações, marcam o estilo inconfundível da Secessão: figuras femininas de ar inocente e sonhador, inebriadas em danças delicadas, e motivos primaveris que aludem ao

20 Termo que se refere à série de movimentos artísticos e culturais ocorridos na Rússia, entre as décadas de 1890 e 1930 (sobretudo durante a primeira fase da Revolução Russa). 21 Em português “Artes e Ofícios”, foi um movimento estético Fundado por William Morris e John Ruskin, iniciado na segunda metade do século XIX em Inglaterra. O nome sugere a valorização do trabalho manual, em oposição à produção massificada e industrializada que se verificava na época. 22 Também intitulada “Secessão de Viena”, foi um movimento que germinou no final do século XIX. Com o intuito de renovar as formas artísticas, teve entre os seus integrantes Gustav Klimt, assim como artistas ancorados em Viena, Praga, Budapeste, entre outras cidades.

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Figura 17. Página de “Die träumenden knaben” (1907-08) de Oskar Kokoschka

movimento Arts and Crafts. A primeira edição, publicada em 1898, inclui textos de Hermann Bahr, Alfred Roller e Max Burckhard. As capacidades técnicas compreendias nas obras vienenses (tipografia, gravura, ilustração, encadernação) demonstram, indubitavelmente, a meticulosidade e o rigor de conceção dos seus apoiantes, todavia não exacerbam especial espontaneidade e criatividade, comparativamente aos demais projetos editoriais produzidos no século XX. A autora Johanna Drucker refere que o livro enquanto objeto artístico não encontrou muitos entusiastas entre os designers vienenses, e destaca Oskar Kokoschka, particularizando a sua obra “Die träumenden knaben”, como um exemplo isolado, aproximado do universo sensível do livro de artista: “But the book as an artistic form did not find many enthusiasts among the Viennese designers and Kokoschka’s remains a special case” (Johanna Drucker, 2004, p.46). Em contraste, o movimento futurista russo23 (que se ramificou à parte do movimento italiano, seu contemporâneo, na primeira década do século XX) focou-se em imergir o livro num ambiente artístico, transportando o seu folclore – poesia, literatura, motivos e formas gráficas – para uma arena fresca de criatividade, com uma linguagem pautada por novas formas simbólicas e imagéticas, enquadradas de acordo com a sua sensibilidade. Os futuristas russos estavam cientes das práticas do cubismo francês 24, o que os fez

23 O futurismo russo foi um movimento literário e artístico que teve como seu impulsionador Felippo Marinetti. Este poeta italiano enaltece os princípios estéticos desta corrente, através da publicação de “Manifesto Futurista” na revista francesa “Le Figaro” em 1909. 24 O cubismo foi um movimento de vanguarda despoletado no início do século XX, em Paris. Teve como referências as obras de Pablo Picasso e Georgres Braque e aborda a temática dos elementos naturais construídos a partir de formas geométricas.

66 agilizar a construção de uma estética paralela, composta pela herança das suas características culturais. Este trabalho estendeu-se até à Revolução Russa (1917), que marcou a decadência do futurismo, e o afloramento das estéticas produtivistas e construtivistas, mais direcionadas para o design, do que propriamente para as artes plásticas e literatura. Os aspetos que incitaram a marcha conceptual do livro, em meados de 1912, são semelhantes aos propósitos dos praticantes do livro de artista nas décadas de sessenta e setenta. Almejava-se o desenvolvimento de meios democráticos nos quais o artista ou escritor tivesse total controlo da extensão da sua obra. Posto isto, conclui-se que a vanguarda russa começou a edificar a ideia de artist’s book, que só é estabelecida e denominada como conceito anos mais tarde. Apesar de hoje se reconhecerem semelhanças entre estas obras de início do século XX, e outras posteriores (noutro estágio de maturação), os exemplares associados ao futurismo russo tinham como principal intuito servir a estética, o uso aprimorado da linguagem, e a boa aplicação do design, de modo a garantir uma leitura/observação eficaz e harmoniosa do conteúdo. As obras desenvolvidas pelos futuristas rompem com a tradição convencional do livro, e atribuem-lhe um novo carácter: um objeto de expressão artística, ao invés de um mero exemplar reprodutível. A maior parte destes trabalhos foram panfletos, de dimensões modestas e papéis baratos com pouca tiragem. A sua composição frágil, sentenciou-os a um espaço temporal limitado. Conjetura-se que tenham sido concebidos para circularem por uma audiência pouco preocupada com o seu carácter perecível, como um grupo de amigos, por exemplo. Alguns títulos proeminentes, dos primeiros anos de futurismo, são: Worldbackwards (1912), A Game in hell (1912), Half-Alive (1913), e A Slap in the Face of Public Taste (1913). Worldbackwards é um trabalho colaborativo, impresso em litografia. O texto de Velimir Khlebnikov apresenta um caráter manuscrito e expressivo, contraposto com os esboços lineares da artista Natalia Goncharova, figura particularmente importante no movimento neoprimitivista. Khlebnikov, um devaneador vagabundo, foi um dos poetas emergentes desconhecidos com o qual a artista Goncharova e o seu marido, Mikhail Larionov, trabalharam. O lírico/trovador de Mirskontsa (tradução original, da obra em

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Figura 18. Página de“Mirskontsa” (1912) de Natalia Goncharova. pauta), que se dedicou ao estudo da língua enquanto matéria, padrão e ritmo, guardava os poemas que escrevia no desalinho do bolso do seu casaco velho e roído. O resultado final desta sinergia, entre a artista e o poeta, resultou numa obra atrevida e radical, de aspeto cru e execução rápida. Natalia e Mikhail, artistas proeminentes da época, garantiram aos projetos que realizaram bastante visibilidade. Os restantes livros indicados são autoedições, auxiliadas por técnicas litográficas, potato print25, stencil26 e hectografia. Também a letterpress encontra uma expressão inovadora, com o emprego da tipografia em diferentes tamanhos e estilos compositivos. Possivelmente, uma das transformações sociais mais impactantes no panorama cultural e literário do início do século XX foi a transformação da Rússia em União Soviética. Tendo em conta as repercussões diretas que os aspetos políticos, religiosos e educacionais, entre outros, têm no universo intelectual e artístico das culturas, seria espectável que este acontecimento desse origem a uma série de debates estéticos, no seguimento da revolução, que tiveram efeitos a longo prazo no horizonte da tipografia, fotografia, e sobretudo na publicação gráfica (design). O livro começa a ser pensado profundamente, como uma forma direta e imediata de expressão, e valorizado pela sua potencialidade formal. A idealização de um volume bem conseguido, onde se aglomerassem ilustrações e texto cuidadosamente impresso, foi desconsiderada. Esta mudança de mentalidade, resultado da transformação social sofrida

25 Termo em inglês que se refere à utilização da planta batata como carimbo.

68 na Rússia, é explanada por Johanna Drucker (2004): The transformation of Russian society into the Soviet Union completely reconfigured the place of art and literature in the culture of the 1920s. The work which grew out of aesthetic debates following the Revolution had long-term effects on 20th-century typographic, photographic, and publication design (p.49). Fruto das argumentações culturais referidas, o panfleto, já experimentado em séculos anteriores, volta a ser utilizado. Parte-se, assim, para um novo campo de produção, onde muitos dos artistas que não manifestavam aptidões de impressão, passam a contratar editores e impressores comerciais. Esta facilidade, aliada ao aumento crescente de técnicos de, fez com que os livros múltiplos circulassem livremente e pudessem ser vendidos a preços muito baixos. Alguns nomes, em destaque, relacionados com o movimento futurista são: Goncharova, Larionov, Kruchenykh e Khlebnikov. Também os irmãos Burliuk conceberam livros no mesmo período, bem como: Elena Guro, Kazimir Malevich, Olga Rozanova e , entre outros. Realça-se um exemplar de produção que não parece pertencer à época em que se insere, dada a notoriedade do seu formato e consciência gráfica. Trata-se de “La Prose du Transsibérien et la petite Jehanne de France” (1913), fruto de uma famosa colaboração entre Sonia Delaunay-Terk e Blaise Cendrars. Este livro, concebido com recurso a letterpress, apresenta textos impressos em várias cores e motivos decorativos em aguarela, no inconfundível estilo de Sonia Delaunay. Apesar dos exemplos apresentados serem dotados de uma expressividade tipográfica valorosa, é importante referir que nem todos os trabalhos direcionados para a exploração dos tipos, nas primeiras décadas do século XX, apareceram sob a forma de códex. O maior fluxo de matéria tipográfica, impressa nesta fase, assumia a forma de panfletos, cartazes, ou páginas de jornal difundidas por artistas futuristas e dadaístas. Apenas uma pequena percentagem de artistas visionou o potencial tipográfico enquanto ingrediente gráfico transformador da página. Entre essa minoria de artistas, sobressai Apollinaire, ativista cultural francês, com a sua obra Calligrammes (1918). Os poemas contidos neste volume são modelados de modo a que as palavras possam compor imagens. A disposição gráfica e concetual desta coleção lírica serviu de inspiração aos poetas concretos que viriam a aparecer mais

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Figura 19. "La Prose du Transsibérien et la petite Jehanne de France” (1913) de Sonia Delaunay tarde. Johanna Drucker (2004) assevera que este género de trabalho não participa no debate que coloca o livro na esfera da expressão artística, desconsiderando o aspeto natural e determinante da sua forma: “(…) such work does not lend itself to a discussion of the book as artistic expression since the book as a form is not a considered aspect of the work” (p.52). No contexto avant-garde, Filippo Tommaso Marinetti, líder do movimento futurista em Itália, seria responsável por implementar e incentivar a experimentação tipográfica. O artista consolidou-se numa estética completamente transformadora, fazendo uso da pintura e da tipografia. Em 1909, publica o seu primeiro manifesto futurista no jornal “Le Figaro”, num texto ainda sem os vestígios da revolução tipográfica futurista. Todavia, em trabalhos posteriores, como ““Les mots en Liberté futuristes” (1919), observa-se o abandono da gramática tradicional, da sintaxe, da pontuação e do formato, a favor de uma utilização da tipografia com vista à exploração do potencial gráfico e pictórico das palavras. “Zang Tumb Tumb” (1914) é um trabalho que importa assinalar, por se tratar de uma obra inovadora em termos gráficos e reveladora do programa tipográfico futurista. Incorpora sinais matemáticos a substituir a usual pontuação, e o texto é dividido em blocos e colunas, de modo a gerar uma métrica de organização da página, de acordo com os preceitos da tipografia futurista. Sabe-se que Marinetti orientava os seus trabalhos junto de tipógrafos, e é apontado como um artista especialmente imaginativo, qualidade que lhe conferiu um lugar de destaque entre os poetas futuristas e dadaístas.

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FiguraFig.20 20“Les. Les mots mots en enLiberté Liberté futuristes” futuristes” (1919) (1919) de deMarinetti Marinetti Figura 21. Capa de “Zang Tumb Tumb” (1914) de Marinetti

Como já foi referido anteriormente, no período temporal em foco, os periódicos (juntamente com os posters e flyers) tornam-se veículos cruciais de publicitação e disseminação de novas tendências estilísticas. Alguns autores assumem as rédeas da autopublicação e encarregam-se de promover as suas experiências, e divulgar teorias. São exemplos: Tristan Tzara, com “Dada” (1916), poderoso a nível gráfico, e Francis Picabia, com “391”, destacado pelo seu formato invulgar. Muitos destes jornais e revistas tiveram aparições breves. Findavam após serem publicados um ou dois números. Estas publicações apresentavam características dramáticas e arrojadas ao incorporarem técnicas que pertenciam ao universo da publicidade gráfica, conciliando-as num espaço totalmente novo. Os periódicos mencionados foram um estímulo para a progressão de outros trabalhos aplicados de design, no que respeita ao seu vocabulário visual. Piet Zwart, e Theo Van Doesburg fazem parte do grupo de artistas e designers que se dedicaram a tatear tais matérias. No panorama português, aparece em 1915 (ano de grande turbulência política em Portugal), o primeiro fascículo da revista “Orpheu”. Deste projeto resultaram um total de duas publicações, sendo o terceiro número cancelado por falta de orçamento. “Orpheu” foi uma revista trimestral de literatura, produzida pelos escritores Fernando Pessoa e Mário de Sá Carneiro. Pautou-se pelo seu vanguardismo, que inspirou movimentos literários subsequentes. A relevância desta publicação despertou o movimento modernista português que teve

71 como principais fomentadores os poetas anteriormente referidos, juntamente com Almada-Negreiros e Santa-Rita pintor, que contou com quatro trabalhos publicados no segundo volume da revista. Esta causou escândalo, sobretudo a segunda edição, “Orpheu 2” (1915). Os poemas, “Ode Triunfal”, de Álvaro de Campos, (heterónimo de Fernando Pessoa) e “16” de Mário Sá Carneiro, geraram um burburinho por parte do público e jornais, alheados da dimensão concetual e expressiva dos poetas, que acabaram por ser ridicularizados e tomados como loucos. Em “Ode Triunfal” (1914), o poeta recorre a onomatopeias e joga com a sonoridade das palavras de forma a compor uma orquestra desgovernada de maquinaria, numa crítica à Revolução Industrial.

(...) Eia! e os rails e as casas de máquinas e a Europa! Eia e hurrah por mim-tudo e tudo, máquinas a trabalhar, eia!

Galgar com tudo por cima de tudo! Hup-lá!

Hup-lá, hup-lá, hup-lá-hô, hup-lá! Hé-la! He-hô! H-o-o-o-o! Z-z-z-z-z-z-z-z-z-z-z-z!

Ah não ser eu toda a gente e toda a parte! (Álvaro de Campos, 1944, p.144)

Sá-Carneiro, em “16” (1914) recorre a grafismos, tais como as reticências, para compor uma sátira algo grotesca, concernente à “fragmentação do eu” 27 , temática indubitavelmente modernista.

27 A “fragmentação do eu” é um termo associado à obra de Fernando Pessoa, que aborda o seu desdobramento em várias personalidades, distintas da sua, nas quais se desconhece enquanto identidade singular, porque se torna plural.

72 (…) ......

As mesas do Café endoideceram feitas ar... Caiu-me agora um braço... Olha, lá vai êle a valsar Vestido de casaca, nos salões do Vice-Rei...

(Subo por mim acima como por uma escada de corda, E a minha Ansia é um trapézio escangalhado...). (Mário de Sá-Carneiro, 2001, p.67)

Uma das obras modernistas mais substanciais até à atualidade, da autoria de Almada Negreiros, outro autor da “Geração d’Orpheu”28, é o “K4 o Quadrado azul” (1917), um opúsculo de tom satírico. Este retrata uma relação entre duas personagens apoiada em conceitos modernistas. São presentes no folheto, formas geométricas retangulares em tons de azul cobalto, e o título “K4” a vermelho. A obra contem, também, recursos a tipografia manual e letterpress. A colagem dos elementos figurativos miscigenados com o texto, alude ao caráter onírico presente na história e às sobreposições dos vários planos que compõem uma imagem cinematográfica impressionista dos objetos e do “eu”. Nesta obra, onde as palavras se entrelaçam nas imagens numa espécie de dança, Almada é um protagonista de si mesmo: Considerado “texto de laboratório”, a arte se questiona sobre o seu próprio ser e sobre a sua forma de estar perante o homem, a sociedade e a política. Palavras e imagens estabelecem uma quase simbiose, apresentando figuras tradutoras de textos, textos que as ilustram, palavras que se contaminam com a plasticidade das figuras e passam a reproduzir o seu silêncio (Guiomar Josefina Biondo, 2012, p.2). Dentro do domínio da inovação tipográfica, e voltando ao russo, “Ledentu as Beacon” (1894-1975), um trabalho de Ilia Zdanevich, salienta qualidades gráficas,

28 A Geração d’Orpheu foi o grupo impulsionador do modernismo em Portugal nos campos da arte e literatura. A origem do nome provém da inserção deste grupo na revista literária “Orpheu”.

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Figura 22. Capa de “K4 o Quadrado FiguraFig.23 23 “Ledentu. Páginas as de Beacon” “Ledentu (1894 as Beacon”-1975) de (1894 Ilia Zdanevich-1975) de Ilia Zdanevich Azul” (1917) de Almada Negreiros

compositivas, teóricas, e sobretudo tipográficas, que comprovam a capacidade do autor de manipular os elementos visuais e textuais de forma independente. “Ledentu” seria o quinto volume de uma série de textos dramáticos composta pelo artista. Estes textos mapeavam um processo autobiográfico, no qual o autor se colocava, no início, na pele de uma pequena pulga “little flea”. A partir desse estágio, permitiu-se passar por uma metamorfose que fez dele um homem adulto, envolto em crises sentimentais, problemas de identidade e questionamento artístico. Cada um destes trabalhos teve especial atenção à estruturação dos fundamentos tipográficos. Ledentu distinguia-se por conter letras de grande escala manufaturadas e ornamentadas pelo artista, que recorreu a várias estratégias de diversificação estilística, com fim de testar as convenções tipográficas. Zdanevich criou uma obra, muitíssimo equilibrada em termos de produção linguística e nobreza dos tipos. Johanna Drucker cita, no seu livro “The Visible Word” (1994), a crítica de Viktor Chklovsky29 (1923) ao trabalho em foco: The typographic side of Zdanevich’s work is one of the most curious successes in contemporary art. Zdanevich uses typographic composition not merely as a means of noting the words, but as an artistic material. Every writer knows that writing provokes specific and particular responses. (…) The visual side of the page provides new sensations, and coming into contact with different meanings gives birth to new forms (p.181).

29 Viktor Borisovich Shklovsky foi um escritor, cenógrafo e crítico literário soviético, que redigiu vários importantes ensaios cinematográficos.

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Figura 24. Capa de “Die Kathedrale” (1920) de Kurt Schwitters

O crítico literário, escritor e cenógrafo soviético, Chklovsky, descreve o trabalho de Zdanevich, individualizando-o como um exemplo curioso, no qual o autor atribui uma compleição artística à composição tipográfica. O crítico realça ainda que o entendimento visual da página é capaz de gerar novas sensações e criar formas insólitas. “Ledentu”, destaca-se pela reformulação conceptual, bem sucedida, da ideia de livro como um medium de expressão artística e inovação tipográfica no movimento avant- garde. Kurt Schwitters, artista plástico alemão, na obra “Die Kathedrale” (1920), desconstrói o seu processo criativo em tela (sobreposição de materiais, colagem, desenho e pintura), ao produzir um livro. O projeto evidência características fortes de colagem Dada, e denota sensibilidade ao explorar manualmente as dimensões e formas das letras. Nos últimos anos de 1910 e inícios de 1920, a colagem foi uma técnica patente nos livros, não só no círculo russo e soviético, como também no alemão. Centram-se em Berlim, figuras como Rodchenko, Gustav Klutsis, Alexei Gan, entre outros praticantes dadaístas. A assembleia alemã teve um papel fulcral ao inserir a tipografia avant-garde no domínio do design gráfico. Esta nidação só foi possível, por ter surgido no currículo alemão, a escola da Bauhaus30 durante 1920, e inícios de 1930.

30 Staatliches Bauhaus, geralmente intitulada Escola de Arte Bauhaus, foi fundada em 1919 pelo arquiteto alemão Walter Gropius em 1919, tendo vigorado durante catorze anos. Foi uma das pioneiras do modernismo e defendeu uma filosofia moderna de design, arquitetura, tipografia, entre outras áreas artísticas, focada no conceito de funcionalismo.

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Figura 25. “Universal Alphabet” (1925) de Herbert Bayer Fig.25 “Universal Alphabet” (1925) de Herbert Bayer

O estilo tipográfico Bauhaus reconhece-se pela clareza das formas geométricas, cores vibrantes, e tipos bold31 em caixa alta ou baixa, não serifados. Os layouts deste modernismo, ao nível da arquitetura e do design, revelam novas disposições, transcendentes à convencional organização horizontal ou vertical. Na página, joga-se com o equilíbrio assimétrico, em disposições tipográficas angulares e em linhas de força compositiva. Herbert Bayer, considerado o pai da tipografia na Bauhaus, concebe em 1925 um alfabeto que apelida de “Universal Alphabet” 32 . Em prol da boa legibilidade dos conteúdos, o tipógrafo apresentou um novo princípio tipográfico que procurou simplificar as letras à sua forma mais minimal, ausente de qualquer tipo de adornos. Também Jan Tschichold, amante da caligrafia, dos tipos não serifados, e papéis industriais, contribuiu para a ascensão do estudo e inovação tipográfica através os seus ensaios influentes da “New Typography”33. Outro movimento artístico, que se baseou em práticas e conceitos anteriores para criar o seu próprio tom, foi o Surrealismo, nascido em Paris na segunda década do século vinte, mascarado de sonho lúcido. Num estágio inicial, este movimento nada tinha de comercial. Assumiu-se como um agente da vida quotidiana comprometido com a distorção do caráter vulgar do dia a dia, atribuindo-lhe características imaginadas, alusivas à utopia, ao inconsciente e ao erotismo. Johanna Drucker (2004) inspira esta definição ao proferir: “The Surrealist commitment to infusing the character of the unconscious, dream life, and eroticism was

31 Termo em inglês que se refere a tipografia encorpada, a “negrito”. 32 Em português, “Alfabeto Universal”. 33 Em português, “Nova Tipografia”.

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Figura 26. Página de “The Hundred Headed Woman” (1929) de Max Ernst

not likely to find ready acceptance among the French bourgeoisie” (p.58). O livro surrealista prende o espectador ao mostrar sequências de imagens sonhadas, e enleva-o na sua naturalidade. Renée Riese Hubert, estudiosa na matéria surrealista, marca alguns pontos fundamentais que distinguem as suas convenções do movimento destacado, dos seus precedentes. Hubert alude à relação tipicamente distante entre texto e imagem, características do livro ilustrado do século XIX. Este processo contrasta com a mescla dos componentes da página presente na estética surrealista. Aqui, ao invés de uma mímica dos elementos, o texto completa a imagem, numa tentativa de extensão. Os princípios estéticos do surrealismo estariam assentes no fator surpresa e no incitamento da sensação de desorientação, e apesar da eficiência da sua mensagem, e criatividade compositiva, aproximam-se da tradição do livro ilustrado, ou livre d’artiste. Contudo, é possível detalhar exceções. Max Ernst abrilhantou a tradição surrealista, com as suas colagens perturbadoras, produzidas entre 1920 e 1930. Ao folhear as páginas das compilações de ilustrações que concebeu, o leitor/expectador embate com cenários macabros, com mulheres torturadas, belas mártires vítimas de opressores humanos, animais, ou mecânicos, destinadas a uma sina aberrante. As ilustrações funcionam como símbolos, ou códigos de um sonho disforme; estes espelham a visão sombria do ser humano, e a amplitude da sua psicose. “The Hundred Headed Woman” (1929) e “Une Semaine de Bonté” (1934) marcam

77 o apogeu da técnica de Ernst. O último retrata uma sequência de dias com a ocorrência de azares sucessivos. As páginas enchem-se de performances onde impera a tensão dos acontecimentos e o recurso a elementos visuais fragmentados (apesar das imagens serem explícitas suspendem a ação num fôlego). O livro, como um objeto finito, parece uma sucessão de testes aos limites das vítimas, encurraladas no seu formato. A experimentação gráfica e concetual aprimorada pelo autor estampa a essência do surrealismo, sob a forma de livro, com mestria. Nesta fase de contextualização história, é possível reconhecer os trabalhos dadaístas, surrealistas e futuristas, como antecedentes e impulsionadores do conceito de livro de artista. O design, a poesia e as artes plásticas não foram os únicos meios utilizados para estudar e experimentar a forma do livro. Os livros de fotografia ocuparam um espaço relevante no campo da publicação de autor, tendo sido a maioria deles reproduzida em grande escala. O seu contexto, temáticas, e técnica, surgem inevitavelmente associados a uma tradição fotográfica iniciada no século XIX. As fotografias de viagem, retratos familiares, paisagens urbanas ou naturais, são exemplos de documentação fotográfica registada. É no século XX que o livro fotográfico cultiva a sua área de experimentação artística e procura lugar no mercado de publicações. As vanguardas soviéticas e alemãs iniciaram-se na descoberta de técnicas de montagem, exploração do cartaz, jornais, revistas, entre outros suportes imagéticos. O trabalho de Alexander Rodchenko, artista plástico, também foi particularmente influente no panorama russo, por mérito das suas inovações estilísticas. Outro autor que se destaca é László Moholy-Nagy, designer, fotógrafo e pintor húngaro, conhecido por lecionar na escola alemã Bauhaus. Moholy-Nagy torna-se uma referência do neorealismo alemão dos anos vinte, ao conceber os primeiros livros fotográficos direcionados para a esfera da publicação, atribuindo-lhes um caráter artístico ao invés de um mero objeto de coleção. Em “Painting, Photography, Film” (1925), o oitavo exemplar da série de livros “Bauhausbücher”34, Moholy-Nagy recorre a uma linguagem mista de fotografia, texto e design gráfico, com o intuito de criar uma narrativa diversificada.

34 Bauhausbücher, em português “Livros da Bauhaus”, foi uma série de 14 livros publicados entre 1925 e 1930. Nestes exemplares foram discutidas as ideias da Bauhaus em áreas como design, arte e arquitetura.

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Fig. 27 “Painting, Photography, Film” (1925) de Moholy-Nagy

In this book I seek to identify the ambiguities of present-day optical creation. The means afforded by photography play an important part therein, although it is one that most people today fail to recognize: extending the limits of the depiction of nature and the use of light as a creative agent: chiaroscuro in place of pigment. (Moholy-Nagy, 1969, p.7) A citação anterior frisa a posição do autor face ao caráter naturalmente criativo da fotografia. O artista acreditava que não existiam barreiras entre a arquitetura, a pintura, o design, a fotografia e a tecnologia, e fruía de uma visão global, que incluía todas estas áreas num único campo de atividade. O seu percurso de efervescência cultural inspira o trabalho de August Sander e Albert Renger-Patzsch, figuras de destaque do movimento alemão de nova objetividade35. A autora Johanna Drucker distingue “The World is Beautiful” (1920), da autoria de Renger-Patzsch, pela virtude da aplicação dos ensinamentos de Moholy-Nagy. Enaltece a sua sequência, que é tida como o elemento estrutural do livro, determinador da sua legibilidade, ordem e estrutura: “(…) a clear distinction between the incidental collection of work into an album and the attentive structuring of photographs so their sequencing becomes an aspect of their meaning” (Johanna Drucker, 2004, p.62-63). A sequência é capaz de estabelecer significados para a estruturação fotográfica, ao diferenciar-se de uma acidental coleção de imagens contidas num álbum. Estes trabalhos fotográficos de cunho conceptual, atravessaram gerações e

35 A Nova Objetividade (Neue Sachlichkeit) foi um movimento artístico iniciado nos anos vinte, voltado para a ordem e para o realismo, cujo objetivo se prendeu em reagir ao expressionismo. Este movimento acaba por findar com a queda da República de Weimer e tomada de posse do partido nazista.

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Figura 28. Páginas de “The World is Beautiful” (1920) de Renger-Patzsch

influenciaram movimentos estéticos de forma continuada. Foram publicados e distribuídos em maior escala comparativamente aos livros de artista ou livre d’artiste, dada a sua procura comercial e técnica de produção (fáceis de reproduzir). Os livros de fotografia poderão ser associados a um percurso mais comercial, o que permitiu alimentar culturalmente as massas e divulgar o livro de um ponto de vista artístico. Já o processo de produção fotográfica de Moholy-Nagy consistia num trabalho árduo e dispendioso. O artista auxiliava-se de objetos tridimensionais, opacos, transparentes, sólidos, lisos, texturados ou lineares e colocava-os sobre um papel fotossensível. A luz, ao incidir nos objetos, criava inúmeros efeitos, contrastes e variações de meios tons (cinzentos). Moholy-Nagy designou este processo por “concretização do fenómeno da luz”, que assume o nome técnico de “fotograma”. Verificou-se, com o passar dos anos, o crescimento do livro de fotografia no contexto artístico e a aglutinação do mesmo na esfera do artist’s book. O aperfeiçoamento das técnicas empregues e os debates conceptuais suscitados, possibilitaram aos sucessores dos movimentos avant-garde, uma categorização do termo livro de artista. Um dos exemplos mais significativos será Ed Ruscha, artista americano, pioneiro e empreendedor da jornada temática do livro de artista. A sua obra, profundamente fotográfica, “Twentysix Gasoline Stations” (1963), estabelece um padrão para as suas publicações seguintes, onde persistem elementos arquitetónicos e outros objetos do quotidiano. Fotografados segundo a sensibilidade do artista, estes artefatos emanam influências surrealistas, neo-dadaístas36 e minimalistas, em simultâneo.

36 O neodadísmo, ou neoada, foi uma corrente que germinou na década de cinquenta nos Estados Unidos. Esta corrente retoma práticas dadaístas e marca a transição do expressionismo abstrato para o terreno da

80 Pode-se concluir esta reflexão focada nos antecedentes do livro de artista e prelúdio da publicação de autor, constatando que todos os trabalhos e movimentos discutidos, até então, procuraram o livro como um suporte de transmissão de ideias e expressão artística. Muitas destas publicações navegaram ao sabor das revoluções tecnológicas e replicaram- se em grande escala. A proliferação dos meios de reprodutibilidade proporcionou a obtenção destes exemplares, numa proporção global, a custos reduzidos. O caráter intercambiário, experimental e inovador destas edições, distingue-as do seu contemporâneo livre d’artiste. Acima de tudo, os livros desenvolvidos durante os movimentos avant-garde são disruptivos e responsáveis por quebrarem barreiras e convenções formais precedentes. A autora Johanna Drucker acaba por considerá-los artists’ books (opondo-se à ideologia de Clive Phillpot), destacando o seu contributo gráfico, verbal, visual e fotográfico na edificação conceptual do livro. Porém assume que o factor que lhes confere o título de “antecedentes”, é a quase desmemória da sua existência comparativamente ao impacto dos exemplares concebidos em meados dos anos sessenta. That they were artists’ books seems irrefutable, that they formed the background for much later work is somewhat questionable, since they were part of a history with was temporarily forgotten at the time artists’ books emerged in the 1960s. But they have an important place in that history, and that they can serve as inspiration for both scholarly and creative work in the future should be abundantly clear. (Johanna Drucker, 2004, p.64). Fecha-se, assim, a cortina dos movimentos avant-garde, e as primeiras conquistas no território do livro, entre outros formatos impressos, para se estudarem os anos dourados destas publicações. Na segunda metade do século vinte, o livro de artista ganha maturidade, e percorre direções inesperadas.

pop art e minimalismo. Entre os seus praticantes destacam-se artistas como Robert Rauschenberg e Jasper Johns.

81 4.2 O Livro de artista e a publicação de autor – História selecionada 4.2.1 Retrospetiva

Tomando como ponto de partidas as primeiras formas de publicação autoral, e os antecedentes do livro de artista (analisados no capítulo anterior), consegue-se antever o crescimento exponencial do livro enquanto formato de intervenção artística. Fala-se sobretudo do livro, por se tratar do médium mais explorado, no entanto, não serão desconsideradas deste estudo outras fações relacionadas com a publicação impressa (cartazes, periódicos, bandas desenhadas, manifestos, entre outros). O livro de artista, em traços gerais, descreve-se como uma área de interseção das variadas disciplinas da arte contemporânea, design, arquitetura e tecnologia. Pode incluir elementos de pintura, escultura, música, cinema, fotografia, poesia ou documentação. Assume a condição de edição limitada, ou publicação em massa, de preço reduzido ou elevado, que não toma partidos e deambula de uma forma livre entre as áreas descritas. Os trabalhos anteriormente explanados, como é o caso de Virgílio (1798) de Firmin Didot, Champfleury (1529) de Geoffry Tory e Hypnerotomachia (1499) de Aldus Manutius, comprovam que a publicação de autor foi desde cedo comercializada. É importante relembrar que estes exemplares procuraram solucionar questões ligadas a problemas técnicos de design, como harmonizar as relações estéticas entre os elementos textuais e imagéticos, aprimorar técnicas de impressão, e matérias concernentes à aplicação de papéis e encadernação. Além destas preocupações, o conteúdo e a temática do livro também eram tidos em vista, com extrema consciência, para o trabalho formal do livro. Existiu um cuidado com a leitura e a observação eficiente, no entanto estes exemplos de produção em destaque não participaram na marcha conceptual do livro, na qual o aspeto filosófico e abstrato do mesmo representa a sua essência. Nomearam-se alguns trabalhos avant-garde, que partilham semelhanças gráficas e físicas com aqueles que se encaixam na categoria de artist’s book, porém foram poucos os autores focados no universo conceptual das publicações que produziram. William Blake, William Morris, Stéphane Mallarmé tornam-se exemplos de referência ao encararem o livro como uma força espiritual, com capacidade para intervir socialmente nas culturas.

82 O conceito e significado do livro ganham forma com a chegada da arte performativa e conceptual, sentidas, fortemente, nas décadas de sessenta e setenta. A aceitação das tecnologias auxiliares da reprodutibilidade estava normalizada nos contextos artísticos, apesar de se ter notado um abrandamento de produção. Os defensores dos princípios de Walter Benjamin preocupavam-se com a autenticidade da obra de arte, enquanto outros circundantes do universo artístico, como comerciantes ou galeristas, manifestavam interesses financeiros em vender obras únicas, à partida mais caras que as reproduções. Sob outra perspectiva, os apoiantes da democratização da obra de arte sentiram necessidade de romper o circuito comercial artístico, ao conceberam e divulgarem postais, vídeos, filmes e livros (muitos deles com o intuito de chegarem aos media), entre outras publicações. Com a arte performativa e os happenings37, o livro passa a ser um transmissor de documentação. Os livros podiam combinar dança, música, cinema, poesia e vídeo, e caracterizavam-se por serem um acontecimento (“happening”) à partida finito, executado com ou sem público, num anfiteatro, rua ou galeria. O livro converte-se num formato aprazível que preserva uma memória destes instantes únicos, ao invés da disposição de imagens ao longo de uma galeria, por exemplo. No entanto, poder-se-ão colocar questões quanto à sua natureza artística. Será que estes livros são uma obra de arte, ou apenas um “memento”38 comerciável? O livro como um médium democrático é entusiasmante na medida em que dissemina a obra de arte, e consecutivamente o acesso à cultura. As pinturas ou esculturas, apesar de se poderem movimentar entre exposições ao redor do mundo, não fruem desta mais- valia. O autor Clive Phillpot (2013), especialista em artists’ books, dá o seu parecer sobre o assunto no livro “Booktrek”: There is a certain satisfaction in the idea that because the artist’s work is not unique it becomes more accessible. (...) However, play with the word democratic suggests not only accessibility, but wider communication, and this does not yet seem to be happening (p.38).

37 Happening é um termo em inglês que se refere a um tipo de expressão artística com raíz nas artes cénicas. Este “acontecimento” (tradução em português) ocorre sempre de forma diferente e sugere espontaneidade, característica que o torna único e irrepetível. 38 Palavra de origem latina que se refere a um objeto evocativo de memória e recordação.

83 Na citação transcrita, o ensaísta clarifica o significado da palavra “democrático”, atribuindo-lhe o valor de uma comunicação ampla, um sentido que, atualmente, parece estar apagado. A ideia de comunicação artística inerente à arte múltipla está relacionada com o facto de se considerar que a obra de arte tem a capacidade de abranger uma plateia maior. Clive Phillpot reconhece, porém, que a massificação pode contribuir para a dilatação da “fábrica de arte”. Ainda que exista uma produção imensa de livros com cariz artístico, a democratização da obra de arte foi um dos motivos que levou, pelo menos num estágio inicial, à adesão dos artistas ao formato livro. Assim, gera-se a hipótese de o público global intervir num debate, através da apreensão destes textos, imagens ou diagramas de um artista. A conversa circunscrita a um círculo limitado, não produz tanta riqueza, não elabora tantas questões e acaba por fechar-se numa redoma que impossibilita a renovação da criatividade. Um exemplo significativo de estudo do livro enquanto veículo de expressão artística, “Artists Books” (1973), de Dianne Perry Vanderlip, publicado pela Moore College of Art (em Filadélfia), corresponde a um catálogo de uma exposição decorrida na escola de artes americana. Numa entrevista conduzida por Julie Ault, a Lucy Lippard 39, em 2006, é referido que o termo artit’s book surge pela primeira vez nesta exposição. Na publicação resultante constam, a título de crónicas, “Slices of Silence: Parcels of Time: the Book as a Portable Sculpture”, de Lynn Lester Hershman40, seguidas de “Some thoughts on Book as Art” do poeta, curador e crítico, John Perreault. Para além destas contribuições arrojadas, constam treze ilustrações de algumas edições particularmente interessantes, e uma lista que compreendia quase duzentos e cinquenta livros e revistas. A participação de John Perreault destaca-se por traduzir o ponto de vista do autor em relação ao livro como arte: Books as art are not books about art or books of reproductions of art or books of visual material illustrating literary texts, but are books that make art statements in

39 Lucy Lippard é uma historiadora, curador e ativista americana, conhecida pelos seus estudos sobre arte conceptual (“Six Years: The Dematerialization of the Art Object dom 1966 to 1972) e ativismo feminino na arte. 40 Lynn Hershman Leeson é uma artista e realizadora americana, cujo trabalho se foca na arte e sociologia, e nas várias conexões existentes entre e o ser humano e os meios tecnológicos.

84 their own right, within the context of art rather than of literature (Clive Phillpot, 2013, p.32). Perreault assevera que o livro como arte (“book as art”), desvia-se do campo dos livros de ilustrações, das edições de reprodução artística, ou dos textos literários. O livro faz afirmações dentro do contexto artístico, sem se debruçar na literatura. O crítico vê o livro de artista como uma estrutura, que vestiu um manto de invisibilidade ao longo da história, e aparece descoberto a determinado momento, revelando potencialidades outrora ignoradas. O livro poderá equiparar-se a um filme, apesar do seu movimento ser diferente. Tem a capacidade de abordar infindáveis temáticas e propósitos, e aparece num tempo particular de sobreposição disciplinar, que já havia sido iniciada em anos anteriores. Esta situação heterogénea, iniciada na segunda metade do século XX, tem vindo a arrastar-se até à contemporaneidade de forma crescente, distanciada das convenções tradicionais de “book as art”. O livro como um objeto visual tem o poder de existir em si mesmo.

4.2.2 Pop art, Conceptualismo, Minimalismo e Performance

Em meados de 1950, book as art 41 inicia um processo de avanço criativa. Ilustradores, designers, tipógrafos e artistas abordam a estrutura do livro, misturando técnicas mistas de texto, imagem e ilustração, traçando a continuidade da linha iniciada pelos movimentos avant-garde. Contudo, a interação destes elementos com um texto e tema pré-existente não é conseguida de forma equilibrada. A passagem do tempo interferiu no valor artesanal das publicações artísticas. Dissipou-se a preocupação com a arte do livro, e assistiu-se a uma explosão de trabalhos fotográficos e ilustrativos. O design surgiu corpulento, e com ele uma série de publicações comerciais baratas de conteúdo colorido e ilustrado. Estas rapidamente substituíram as edições limitadas. No final de 1950 e inícios de 1960, a pop art germina na esfera artística. A cultura “pop” é caracterizada por se interessar por uma cultura popular e pela exploração de vários suportes através dos quais se propaga. São exemplos: jornais, bandas

41 Em português, traduz-se na expressão “livro como arte”.

85 desenhadas, meios televisivos, filmes, entre outros. O livro e a revista captam o interesse de artistas como Andy Warhol, Claes Oldenburg e Eduardo Paolozzi, figuras de relevo dentro do movimento. Foram, porém, necessários alguns anos para se reconhecerem trabalhos substanciais dentro do âmbito da pop art. Os exemplares desenvolvidos tornam-se mais relevantes e discutidos no final dos anos sessenta, com a entrada do conceptualismo e do minimalismo. Este período foi particularmente importante e encorajador na disseminação e fabricação de livros e revistas. Uma das entidades mais significantes na estruturação ideológica e experimental do livro de artista foi Dieter Roth. O artista suíço começa a produzir livros por volta de 1954, mas só em 1961 publica a sua primeira grande edição “Bok 3a”. A curiosidade e conhecimento na área do design, despertou Roth a inquirir a estrutura do livro, sobretudo de um prisma físico (encadernação, paginação, sequência). O ato de virar a página deixa de ser acidental, passando a representar uma ação física, pensada e escultórica. Pode afirmar-se que o seu trabalho mescla aspetos de design gráfico e poesia concreta, tendo sido influenciado por outras experimentações. É exemplo o designer italiano Bruno Munari, que já vinha a trabalhar a constituição do livro desde 1940. Dieter Roth publicou uma quantidade variada de livros durante quase duas décadas, sendo possível, através da observação do seu percurso, identificar diferentes métodos evolutivos nas vertentes do seu trabalho. “Bok 3a” assinala o ponto de transição. Este exemplar está compreendido num volume de livros de acumulação (“Bok 3a”, “Bok 3b”, “Bok 3c”, “Bok 3d”), aparados e encadernados uniformemente pelo artista, que exploram materiais encontrados diversificados. A obra em causa é única e concebida a partir de um jornal islandês. Ainda em 1961, Dieter Roth compila uma série de livros miniatura, dos quais se evidencia “Daily Mirror Book” (1961), projetado a partir das páginas do jornal londrino “Daily Mirror”. Torna-se impraticável proceder à leitura destas obras de forma tradicional, pois são resultado de uma aglomeração de fragmentos imagéticos, artigos e

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Figura 13. “Daily Mirror Book” (1961) de Dieter Roth

anúncios, reenquadrados num outro contexto, por Roth. No campo textual, as palavras foram desvinculadas dos seus significados e transformadas em ruído visual. “246 Little Clouds” (1976), uma publicação meritória no âmbito verbal e visual do livro, apareceu mais tarde bastante cimentada nos princípios conceptualistas do designer em foco. Esta obra contem duzentas e quarenta e seis frases, parágrafos e ilustrações elaboradas por Dieter Roth, tendo sido publicada primeiramente pela editora em 1968, numa versão um tanto obscura. Em 1976 a sua reconstrução gráfica é de ressalvar, sobretudo pelo hiper-realismo inerente às imagens, facilmente confundidas com desenhos originais. Consegue percepcionar-se a importância desta individualidade nos âmbitos do livro de artista e da publicação de autor. As suas múltiplas publicações desafiaram o formato do códex, destacando-o como estrela norte na criação de uma temática estrutural. Johanna Drucker (2004) tece considerações pertinentes sobre o trabalho de Dieter Roth: “There would be no way to translate a Dieter Roth book into another medium” (p.75). Ao constatar que não haveria forma possível de transpor o trabalho de Roth para outro suporte, a autora afirma que a obra do designer é indissociável da forma do livro, na medida em que explora as suas características formais como temática principal: Roth made it clear that these were really meant to be books, not sculptures or multiple art pieces. This last aspect of his work is significant, since it allows structural work to integrate with the edition process in the hybrid form of the artist’s book” (Johanna Drucker, 2004, p.75).

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Figura 30. Capa de “Twenty Six Gasoline Figura 31. Páginas de “Twenty Six Gasoline Stations” (1963) de Ed Ruscha Stations” (1963) de Ed Ruscha

Em observações finais, Johanna Drucker alude ao carácter escultórico que as publicações de Dieter Roth aparentam, embora o autor não as entenda dessa forma. Ainda assim, é interessante verificar o caráter híbrido presente nos trabalhos apontados. Edward Ruscha, artista americano (vulgarmente conhecido como Ed Ruscha), tal como o autor previamente abordado, foi um dos pioneiros, e figura de referência no âmbito da publicação autoral, começando a produzir edições limitadas em inícios dos anos sessenta. Ruscha apoiou-se principalmente na câmara fotográfica para produzir os seus livros inspirados em tramas orgânicas e arquitetónicas, de cunho cinematográfico. Uma das características disruptivas, presentes no seu trabalho, é a ausência de numeração e assinatura. O artista pretendeu romper o aspeto convencional do livro, na ótica do seu cariz intocável e precioso, aproximando-o do leitor/observador. Com aptidões distintas do seu contemporâneo Roth, Ruscha cria um paradigma para o florescimento do conceito de “artit’s book”. Dissipa a aura da obra artística, ao replicar os seus trabalhos, ganhando assim visibilidade nas galerias e livrarias. O seu primeiro livro, “Twenty Six Gasoline Stations” (1963), ditou um padrão para as suas obras seguintes. Através da observação da capa deste exemplar, distingue-se um trabalho de design bastante equilibrado e, em nenhum grau ostentativo. A escolha bem sucedida da tipografia, em tom de laranja, remete o observador para um cenário texano, ou até para uma espécie de deserto “pop”. Será difícil descrever a sensação causada pelas letras, contudo, estas descrevem precisamente o enredo do livro (vinte e seis postos de gasolina).

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Figura 14. Capa de “Various Small Figura 15. Primeira página de“Various Small Fires” (1964) de Ed Ruscha Fires” (1964) de Ed Ruscha

Em “Various Small Fires” (1964) e “Nine Swimming Pools” existe a mesma coerência na relação título-conteúdo. Os títulos constam nas capas minimalistas, tal como acontece em “Twenty Six Gasoline Sations” porém, quando se procede à abertura dos livros, encontra-se em acréscimo “Various Small Fires and Milk” e “Nine Swimming Pools and a Broken Glass”. Todas as páginas contêm “pequenos fogos” e “piscinas” à excessão das últimas que incluem respetivamente um copo de leite, e um copo partido. As obras de Ruscha abraçam o conceito de “múltiplo”, sendo portáveis e cruas. Clive Phillpot (2013), redige uma caracterização franca e sucinta: “Ruscha’s books embody primarily visual content, multiplicity, cheapness, ubiquitousness, portability, non-preciousness – even expendability – features inherent (...)”(p.97). Pretende-se concluir a análise às práticas editoriais de Roth e Ruscha, estabelecendo uma ponte entre os seus percursos. Apesar de revelarem carreiras dissemelhantes, ambos estiveram envolvidos nas artes gráficas, nomeadamente, explorando técnicas de impressão e tipografia. Também experimentaram componentes orgânicas durante o processo de edição, como a utilização de chocolate e queijo, no caso de Roth, e tarte de cereja e caviar, no de Ruscha. Roth reimprimiu copiosamente os seus livros. É exemplo desse processo o “Collected Works”, uma série de vinte exemplares, com diferentes tipos de impressão e materiais. Neste volume insere-se “Bok 3a”, anteriormente assinalado, entre outras obras diversificadas na sua construção, algumas impressas como se tratassem de páginas de jornais, e outras com folhas coloridas e transparentes. Há também exemplares puramente

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Figura 34. Capa de"Bok 3a” (1961) de Dieter Figura 35. Páginas de "Bok 3a” (1961) de Dieter Roth Roth

tipográficos, outros fotográficos, alguns de cariz caligráfico, outros com recurso a mecanismos de impressão. O computo final resultou numa obra robusta e coerente. Ruscha utiliza quase exclusivamente a fotografia. Os seus livros transparecem alguma ambiguidade, ou um sentimento nostálgico, contudo são despertos e sagazes. Os artistas investigados produziram um denso volume de trabalho, o que lhes conferiu bastante visibilidade. A questão da reprodutibilidade, inerente aos exemplares aludidos, esclarece sobre a natureza da book art, de acordo com Clive Phillpot. É importante relembrar que este termo refere-se às obras de arte engendradas a partir do formato livro. Dentro da categoria de book art, podem verificar-se trabalhos em dois ramos distintos, os “book objects”, que mimetizam o códex dando origem a uma espécie de escultura, e os “book works”, contentores de informação que se “comportam” como livros (a sequência de páginas é, por exemplo, uma das características do códex). Uma asserção curiosa sobre estes livros, concebidos por artistas, está relacionada com o facto de estes terem sido produzidos sem qualquer pretensão de se estabelecerem no âmbito da obra de arte. A grande maioria deles circunscreveu-se ao horizonte da documentação, entre outras formas literárias, como afirma Phillpot: “I should add that many books authored and/or designed by artists were never intended to be artworks, for example theoretical texts, pure documentation, or other common literary forms” (Clive Phillpot, 2013, p.90). Clive Phillpot atesta que o conjunto de ingredientes constituintes da book art podem ser book works e book objects, únicos ou múltiplos.

90 Foram os artistas conceptuais que sentiram necessidade de expressar as suas considerações sobre arte, auxiliando-se da forma do livro (desta prática resultaram book works). A pop art, em finais dos anos sessenta, também contribuiu produtivamente para esta vaga, na qual o artista imerge no universo literário. O período histórico em análise caracterizou-se por manifestações socioculturais e um idealismo no espírito de luta do povo. Durante a década de cinquenta, antecipou-se esta reviravolta no quadro ético e político da sociedade. Assistiu-se à decadência do moralismo rígido, que subsequentemente despoletou a realização de projetos culturais e ideológicos inovadores. Nos anos sessenta, o frenesim social que se sentiu foi acompanhado e estimulado por cartazes, panfletos, flyers e revistas. Fora dos círculos de publicação mais comerciais também se propagaram volumes literários, cujo interesse residia em intercambiar ideias ou buscar uma resposta às incompreensões dos autores. A música ocupou também um papel social, espelhando os sentimentos experienciados pelas massas. A cultura rock bradava arrebatada ao som das guitarras elétricas e inspirou a proliferação de revistas. Vivenciava-se um clima onde toda a informação parecia ser pouca e os media demonstraram-se incapazes de saciar tamanha sede de conhecimento. A comunicação impressa, por sua vez, flexível nas suas técnicas, encontra aqui um período glorioso. O design gráfico atravessou um momento de pura criatividade e libertação. Grupos direcionados para a publicação underground, dinamizadores da impressão política, entre outros motivadores de publicações minoritárias, serviram de catalisadores para a explosão gráfica ocorrente na época. Os livros de artista generalizaram-se e a ilustração cruzou outros terrenos. A “cor” já não estaria confinada a uma categoria particular de livros, começando a manifestar-se noutro tipo de publicações, como biografias e volumes de história. Os livros de fotografia também se multiplicaram. Assistiu-se, então, à génese de um estado, onde os livros se tornaram num médium primário de transmissão artística e ideológica. Esta situação é descrita por Clive Phillpot (2013): Most people, including artists, experienced more art through books, magazines, and reproductions than in the original. Perhaps it is not so surprising that artists

91 should take over the art book, so long the domain of the critic, use it for their own ends, and make a secondary médium suddenly primary (p.98). O ensaísta refere ainda que a experiência artística se fez sentir através de livros, revistas e reproduções, prevalecendo sobre a arte dita original. As políticas de rua nos Estados Unidos eram suspeitas de fazer circular as ideias das alas democrática e socialista. Este posicionamento social levantou algum tumulto entre os praticantes do livro, e refletiu-se nas suas publicações. Seguidos dos livros, os cartazes ou posters eram os veículos mais eficientes de difusão ideológica, capazes de alcançar qualquer estrato social. O realce deste tipo de publicações também ocorreu motivado pela desconstrução da hierarquia das belas-artes. Os livros de artista e as publicações de autor expandiram a panóplia de áreas artísticas, anteriormente restringida à pintura e escultura. O design, a fotografia e o cinema sustentaram-se em meios e técnicas diversificadas, ceifando os constrangimentos que dificultavam uma comunicação ampla entre arte, literatura, dança, teatro e música. O conceito de livro de artista edificou-se nos anos sessenta, divergente das associações de “livro” e “arte”, até então empreendidas. É importante relembrar, que no início do século XX, os futuristas, os dadaístas e os construtivistas já tinham direcionado a sua atenção para a produção de trabalhos impressos. Conta-se um imensurável número de publicações, tais como panfletos, manifestos, revistas e livros, editados e desenvolvidos por praticantes dos movimentos proferidos. Os “artistas”, que desempenhavam funções de design, tipografia, ilustração e escrita, restringiam o seu trabalho a normas de gráficas um tanto rígidas. Tinham como objetivo conformar a eficiência literária. A exploração de uma vertente criativa, era maturada à parte deste processo. Clive Phillpot (2013) alega que, apesar das revistas do movimento Dada poderem ser consideradas obras de arte num tempo corrente, nenhum artista ou designer as concebeu consciente da estrutura do livro, nem tão pouco o considerou um difusor primário de arte:

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Figura 16. Capa e páginas de “Statements” (1968) de Lawrence Weiner

It is only in recent times that Dada magazines, for example, have retrospectively been accorded the status of art: virtually none of the artists of that time consciously employed the structure of the book as a primary vehicle for art (p.99). Os autores já destacados pertencentes a estes movimentos poderiam, sim, ser considerados bons designers e ilustradores. É no decorrer dos anos cinquenta e sessenta, que o “livro como arte” respira uma nova atmosfera. A ideia de múltiplo desenvolveu-se e subsistiu paralela à de book art. Este conceito está geralmente associado a um objeto tridimensional, ao invés da arte múltipla/replicada em duas dimensões. Dieter Roth foi um dos artistas que produziu obras tanto no domínio dos objetos “múltiplos”, como impressões múltiplas. Analisando a atividade decorrida nos anos setenta no terreno da publicação editorial, verifica-se que o volume de trabalhos produzidos esteve em concordância com os preceitos da arte conceptual e minimalista. Muitos destes exemplos assumiram a forma de panfletos e cartazes, de tons leves e crus. Caracterizados por deterem um tom sério, protagonizaram a tipografia, que desempenhava o papel de máximo constituinte gráfico da página. Foram publicados muitos exemplares relevantes, pautados pelo estilo referido, na Holanda e Itália. Lawrence Weiner e Richard Long consubstanciaram qualidades minimalistas e conceptualistas nas obras que produziram. Lawrence Weiner, uma das figuras de relevo na formação da arte conceptual, explorou sobretudo a vertente tipográfica, como um elemento visual e literário do seu trabalho.

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Figura 37. Capa de “The Xerox Book ” Figura 38. Página de “The Xerox Book ” (1968) de Lawrence Weiner Robert (1968) de Lawrence Weiner Robert Morris, Morris, Robert Barry, Sol LeWitt e Carl Andre Robert Barry, Sol LeWitt e Carl Andre

Em 1968 edita o livro “Statements”, um aglomerado de páginas brancas nas quais constam frases redigidas pelo autor. O aspeto mais interessante desta obra está relacionado com a sua sagacidade textual, sendo o autor capaz de criar uma imagem visual no leitor/observador, que acaba por complementar o trabalho de um prisma gráfico e interativo (autor-observador). Weiner afirmava: “Big egocentric expensive works become very imposing. You can not put twenty-four shades of steel in the closet” (Lawrence Weiner, 1968). Através da citação transcrita é perceptível a posição de Weiner face às obras caras e de grandes dimensões. O autor alude à impossibilidade que é colocar “vinte e quatro tons de aço” num armário. Não será inusitado concluir que Lawrence Weiner privilegia os médiuns democráticos. Ainda a respeito de “Statements”, é marcada a opinião do artista, no que diz respeito à reprodutibilidade da obra de arte. Este considera que a reprodução da sua arte, conseguida por parte de terceiros, é um procedimento artístico tão válido, quanto o seu: “Anyone making a reproduction of my art is making art just as valid as art as if I had made it” (Lawrence Weiner, 1968). Uma outra obra merecedora de reportação é “The Xerox Book” (1968), um projeto colaborativo de Lawrence Weiner, Robert Morris, Robert Barry, Sol LeWitt e Carl Andre. Produzida com recurso a fotocopiadoras Xerox, a publicação foi impressa em litografia offset comercial, por ser um processo menos dispendioso comparativamente à impressão em fotocopiadoras. A obra contém trabalhos originais dos artistas mencionados, e

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Figura 17. Capa de “Green as well Blue as well as Red ” (1973) de Lawrence Weiner.

cumpriu a missão de funcionar como um espaço singular de apresentações artísticas inovadoras, tornando-se uma espécie de galeria editada. O editor e comerciante de arte Seth Siegelaub desafiou os artistas ao destacar-lhes vinte e cinco páginas destinadas a matéria artística. Outro exemplo da autoria de Lawrence Weiner, “Traces” (1970), obedece à mesma linha gráfica de “Statements” (1968). No exemplar em causa imperam as palavras curtas, verbos e ações. Já em “Green as well Blue as well as Red” (1973) assiste-se a uma mudança na prática visual do autor, com a capa a vermelho garrido sobre tipografia amarela. A obra seria destacada como a mais “abstrata e sistemática do seu tempo”, segundo Clive Phillpot (2013): “Green as well Blue as well as Red is the most abstract and systematic book up until this time”(p.106). Muitas outras obras poderiam ser esmiuçadas, na medida em que representam exemplos disruptivos e eminentes na história da publicação de autor. São o caso: “Once Upon a Time” (1973), “Towards a Reasonable End” (1975) e “Passage to the North” (1981). Richard Long, escultor inglês e figura de destaque na esfera da land art42, produziu também uma série de exemplares distintos, inspirados no tempo e nos elementos naturais.

42 Land Art, em português “arte da terra” caracteriza-se por ser um movimento artístico emergido nos anos sessenta, no qual a natureza assume o papel de protagonista. Como o nome sugere, trata-se de arte construída através de elementos naturais. As obras resultantes podem ser efémeras, dada a organicidade da matéria integrante.

95 Figura 18. Páginas de “Sculpture by Richard Long made for Martin and Mia Visser Bergeijk” (1969) de Richard Long

Durante o processo de produção artística, o artista fotografa, geralmente em localizações remotas, composições escultóricas da sua autoria. Estas desapareceram, eventual-mente, devido à natureza precária que lhes é inerente ou ao caráter incógnito da sua localização. A fotografia assume um papel preponderante no coletivo de trabalhos de Long, sendo que as imagens documentadas participam graficamente na arte final que é o livro. Em “Sculpture by Richard Long made for Martin and Mia Visser Bergeijk” (1969), o artista assevera que a escultura (sculpture) feita por si para os destinatários indicados no título da obra é o conjunto fotográfico contido no livro. A performance ou os objetos criados numa qualquer localização remota são construídos com o único intuito de serem fotografados. A possibilidade de converter um livro ou um conjunto fotográfico numa escultura, por si só, criou um novo paradigma na história da arte. No mesmo ano de publicação do exemplar focado, a revista “Art Language” estreia-se numa primeira edição, com uma consideração sobre o conceito de Richard Long. Clive Phillpot documenta-a em “Booktrek” (2013), desta forma: “Can this editorial, in itself an attempt to evince some outlines as to what ‘’ is, come up for count as a work of conceptual art?” (p.108). Com esta interrogação a título retórico, questionou-se o cariz da edição de Long. É surpreendente verificar, que no final da década de sessenta tenha havido um desdobramento tal do pano representativo do espaço concetual artístico. Apesar de se ter sentido esta expansão no entendimento da arte, existiram dois polos contrastantes na categorização das publicações de Richard Long.

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Figura 41. Capa de “Robin Redbreast’s Figura 42. Páginas de “Robin Redbreast’s Territory Sculpture” (1973) de Territory Sculpture” (1973) de Lawrence Weiner. LawrenceWeiner.

Segundo o primeiro ponto de vista, as convenções artísticas estariam a alargar as suas fronteiras, o que possibilitou uma conjetura em que qualquer objeto, fenómeno, ou livro podia ser designado arte. No outro lado da moeda, por mais que as fotografias pudessem existir por si mesmas, o livro, como um todo, seria um trabalho de design, no qual o conteúdo não dependeria da sua forma. Daniel Buren, artista conceptual francês, toma uma atitude diferente de Richard Long, ao negar a inclusão das suas publicações na categoria de obra de arte. Buren alegou que os seus livros, cuja argumentação estaria relacionada com trabalhos pré-existentes, tinham um perfil documentativo. O artista publicou sobretudo pageworks43, entre alguns bookworks. Estes coletam as suas teorias, textos e trabalhos. A edição de Julho/Agosto de 1970 da revista “Studio International”44 contém seis páginas do seu trabalho. As contribuições de Buren, no âmbito da publicação, particularizaram-se pelas riscas verticais, que aparecem nas cores verde e branco na revista “Studio”. Apesar do conceptualista apreciar arte no enquadramento editorial, não crê que os livros que documentam o seu trabalho sejam autónomos no sentido artístico.

43 Pageworks é um termo em inglês que se refere a obras artísticas (neste caso) que têm a página como médium. 44 “Studio” é uma revista de arte contemporânea publicada desde Abril de 1893. Na data da sua primeira edição assumia o nome “The Studio: An Illustrated Magazine of Fine and Applied Art”, sendo que algumas edições da revista apareceram como “Studio International: Journal of Modern Art”.

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Figura 19. Página de “Throwing Three Balls...” (1973) de John Baldessari.

O livro “Robin Redbreast’s Territory Sculpture 1969” nota (1970), que documenta uma instalação do artista concetual francês Jan Dibbets, construída um ano antes num parque de Amesterdão, desempenhou um papel fulcral na clarificação da obra. Sem a existência deste tipo de documentação, as obras de arte não são perceptíveis na sua totalidade. Jan Dibbets embrenhou-se numa descoberta sobre os hábitos de uma espécie de pássaros “Robin”45, e procurou estender o seu território de pouso, tornando as pequenas aves, intervenientes diretos do seu projeto. A ideia do artista residia em aliar os seus conhecimentos adquiridos através da observação dos robin e as suas noções de desenho, acabando por aperceber-se que o único meio apropriado de compartilhamento destas interações seria o livro. O exemplo de Jan Dibbets põe à prova, de certa forma, a assertividade de Daniel Buren quanto à natureza do livro como suporte artístico. O próprio debateu-se, também, com um dilema. A dubiedade repartia-se entre deixar o seu trabalho puro e silencioso, ou comprometer-se a uma explanação escrita com recurso a um médium impresso. O artista contribuiu antagonicamente para a esfera da publicação autoral, de três formas padronizadas: escrita ilustrada por foto-documentação, escrita acompanhada de foto-souvenirs, ou sob a forma de arte pura (como é exemplo a sua participação na revista “Studio International”).

45 Em português, “piscos”.

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Fig.44 Páginas de “Metafisikal Translations” (1962) de Paolozzi Figura 45. Páginas de “Abba-zaba” (1970) de Paolozzi

John Baldessari, outro protagonista do movimento concetual americano, usou extensivamente meios fotográficos para produzir murais e filmes. O artista, sensível a muitos formatos editoriais, aplicou convenções de design na paginação e formatação das suas obras, nas quais se destacam as imagens, que parecem não precisar de suporte. A grande parte das edições de Baldessari são narrativas visuais. Destacam-se “Throwing Three Balls...” (1973), pertinente pelo seu formato de portefólio; Fable (1977), disposta em concertina; e “Ingres, and other Parables” (1971), diferente das anteriores (muito focadas na dimensão fotográfica), por privilegiar a textualidade. Outro artista digno de menção, Eduardo Paolozzi, reputou-se por casar influências surrealistas, com princípios “pop” emergentes na época. O fascínio que nutria pela cultura americana incentivou-o a incorporar técnicas de colagem nas suas edições, nas quais exaltou elementos simbólicos da parafernália americana. “Metafisikal Translations” (1962) foi o seu segundo volume conseguido a partir do processo de colagens, e espelha o interesse do artista pelas relações entre o ser humano e instrumentos de maquinaria. Paolozzi representou nesta publicação porcas, parafusos, entre outras formas figurativas a fim de criar novas formulações do corpo, influenciado pelo processo tecnológico, abordando assim o tema da crise de identidade. Percorrendo o historial das suas publicações sobressaem “Moonstripes Empire News” (1967); “Dynamic FUN” (1965-1970) e “Abba-zaba” (1970). Os dois primeiros livros de artista consignados resultam num agregado de impressões coloridas em tons vívidos, característicos da pop art. “Abba-zaba”, uma edição limitada de quinhentos exemplares, consegue uma justaposição extremamente equilibrada entre as imagens e o texto redigido a máquina de escrever. A capa e a contracapa, a amarelo, encarnam o único pano colorido da obra, onde ressalta a tipografia figurativa “Abba-zaba”. As fotografias,

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Figura 46. Páginas de “Index (Book)” (1967) de Andy Figura 47. Páginas de “Aspen no. 3” (1966) de Andy Warhol. Warhol e David Dalton.

retiradas de várias fontes, parecem dispostas de forma aleatória, no entanto, ao serem vistas como um todo, constituem afirmações poderosas sobre a cultura moderna. É importante lembrar, que as edições de alguns artistas da pop art só foram comercializadas, alguns anos depois de terem sido publicadas pela primeira vez, como aconteceu com Claes Oldenburg. Também Andy Warhol, uma das figuras mais emblemáticas da cultura popular, teve os seus exemplares editados em grande escala apenas a partir de 1967. Tornar-se-á uma tarefa difícil ignorar a presença da herança artística de Warhol, já que as suas obras continuam a ser replicadas e disseminadas ao redor do mundo, a pretexto da maior variedade de propósitos. A sua obra “Index (Book)” 1967 traduz-se numa tentativa de apropriação de um livro infantil pop-up nota. Os jogos as imagens garridas e os diferentes tipos e texturas de papel remetem o leitor para uma espécie de nostalgia da infância. Nesta edição assiste-se a uma hibridação do que é convencional e do que é experimental, abrindo acessos no terreno do artist’s book e possibilidades de exploração da forma do livro. Warhol participou, também, na “Aspen Magazine”, uma revista multimédia publicada numa agenda irregular por Phyllis Johnson entre 1965 e 1971. O número três, projetado por Warhol em pareceria com David Dalton, em 1966, apresentava um contentor que imitava uma caixa de detergente e que continha onze itens no seu interior, desde anúncios, folhas soltas, postais, reproduções de pinturas e discos musicais. Tendo em mente os artistas estudados até então, é possível nomear aqueles que recorreram ao livro como um veículo principal e imprescindível à composição do seu trabalho.

100 Por exemplo, Lawrence Weiner construiu sequências verbais plenamente adaptadas à estrutura articulada do livro; Daniel Buren, por sua vez, escreve para se explicar, empregando o livro como recipiente tradicional de informação. Mais artistas poderiam ser nomeados e outros trabalhos esclarecidos pertencentes aos movimentos da pop art, do minimalismo, do conceptualismo e do âmbito da performance. O livro e os formatos editoriais conquistaram o apreço e a curiosidade de artistas, que procuraram na sua forma uma resposta e uma solução para certas questões. Os intuitos que levaram os artistas a percorrer os trilhos da auto publicação, foram dissemelhantes. Abordar-se-á, de seguida, um coletivo de referência enquadrado no mesmo período temporal dos artistas e designers previamente denominados, e que teve como objetivo principal despoletar uma revolução cultural, social e política através da arte. Falar-se-á do grupo Fluxus.

4.2.3 Fluxus

Na década de sessenta surge o coletivo artístico Fluxus, um movimento de margem e de cunho literário que questionou os valores instituídos pelos sistemas oficiais de produção, circulação e exibição de obras e publicações de artista. Fluxus caracterizou-se pela heterogeneidade de áreas operantes, dando primazia às artes visuais, e abarcando também o design, a música e a literatura. A fim de criar um poema dadaísta, Tristan Tzara propôs uma série de operações que, na totalidade, edificam os princípios de Fluxus:

Take a newspaper. Take some scissors. Choose from this paper an article of the length you want to make your poem. Cut out the article. Next carefully cut out each of the words that makes up this article

101 and put them all in a bag. Shake gently. Next take out each cutting one after the other. Copy conscientiously in the other in wich they left the bag. The poem will resemble you. (Tristan Tzara, 1992, p.39)

A relação deste poema com os eventos do coletivo em causa traduz-se na simplicidade dos materiais referidos, tais como os jornais, as tesouras e a mala. Fluxus partilhou também semelhanças estéticas com os movimentos Dada, pop art e até com o construtivismo russo, na medida em que se propunha refletir acerca da função social e política dos artistas. Alguns indivíduos que inspiraram este coletivo foram John Cage, compositor de música concreta, e Marcel Duchamp, cujos ideais contestatários influenciaram os valores estabelecidos e o espírito anárquico do grupo, sendo o fundador oficial o artista . As publicações e os livros de artista foram os pulmões do movimento Fluxus. Por serem relativamente baratos e acessíveis, estes exemplares impressos espalharam a crença de que a arte poderia residir em todo o lado, num sistema mais acessível que o das galerias. “An Anthology” (1963) foi a proto-publicação do coletivo, editada pelo compositor , com design de Maciunas. Esta denota os principais fundamentos gráficos de Fluxus, como a simbiose entre planos saturados de informação e repetições, e a plenitude e vazio encontrada em algumas páginas com conteúdos minimalistas. Em “Fluxus 1” (1964), Maciunas incorpora vários objetos formando um coletivo de publicações. O livro de artista resultante transpõe o formato convencional de revista e livro, contendo envelopes com obras intercaladas de vários artistas, partituras e outro tipo de documentação. Todos estes elementos foram agregados através de parafusos de

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Figura 48. Capa de “An Anhology” (1963) de Coletivo Fluxus Figura 49. Capa de “Fluxus 1” (1964) de Maciunas metal descartáveis, e contidos num caixa de correspondência. A descrição desta publicação é relatada na categoria de “Fluxus Editions” na página web do museu MoMa: “Envelopes serving as pages contain works by various artists, interspersed with scores and performance documentation, all bound with detachable metal bolts and housed in a mailing crate” (2012). “Fluxus 1” foi a primeira de sete caixas concebidas por Maciunas que tinham como destino divulgar os princípios do movimento em áreas geográficas específicas, como os Estados Unidos, o Japão, a França, a Alemanha, a Escandinávia e a Europa Oriental. Introduzindo um novo elemento na equação editorial de Fluxus, , artista e poeta concreto, atribuiu às palavras uma qualidade gráfica. A empreitada produtiva do artista iniciou-se em meados dos anos sessenta, contudo, só a partir da década de setenta é que os seus livros começaram a ser editados em grande escala. Os trabalhos desta década, precisamente em 1966, apresentaram, segundo Clive Phillpot (2013), afinidades com a poesia concreta: “The books of the 1960s, and in particular the books of 1966, have affinities with concrete poetry” (p.111). Assim como Roth, outros artistas Fluxus exploraram a prática do póster e da performance. “Blue Light Containment” (1966) demonstra, através do seu arranjo visual e disposição dos elementos na página, um elevado grau de consciência relativamente ao processo de leitura do livro. Já “Disassemblege” (1966) interage fisicamente com o leitor tornando-o numa espécie de condutor da narrativa. Esta publicação só pode ser lida uma vez. A leitura leva à sua destruição, sendo que as instruções comunicadas obrigam o leitor a estabelecer uma

103 relação física com a obra. Por exemplo, “amachuque este elemento na menor unidade possível”46, é uma das indicações transmitidas. A destruição do livro é um tema abordado por vários artistas. Davi Het Hompson manifestou um grau elevado de sensibilidade quanto à aplicação dos grafismos e tipografia presentes na página. A sonoridade das palavras era outra perspetiva assumida no seu trabalho, o que muitas vezes se refletiu em conversas pairadas no ar. O artista descreveu a sua atividade artística como image-telling, um conceito em que a imagem sugere uma história. Os títulos destas obras transportam alguma autoridade, como por exemplo: “Understand. This is only temporary”47 (Davi Het Hompson, 1977), ou então “May I have a glass of water with no ice please?” 48 (Davi Het Hompson, 1976). Encontram-se algumas semelhanças no tom imperativo das frases citadas e nas instruções de leitura de “Disassemblege” (1966), previamente referidas. A característica mais cativante do trabalho do artista em foco é a destreza com que manipula as palavras, tanto a nível etimológico, como sonoro e gráfico. As frases de Davi Het Hompson “gingam” ao som dos seus próprios propósitos. Alguns dos seus livros mais meritórios da década de oitenta, tais como “II.”, “xp-ix”, “Bla”. e “1 (a, b) 18”, obrigam o leitor a abrandar quando deparado com caracteres em caixa alta e diferentes colorações dos tipos, já que são os elementos gráficos, juntamente com o enquadramento da página, que orientam a leitura. O volume de trabalho de Davi Het Hompson solidifica a vertente do livro de artista, apoiada quase exclusivamente na imagem. Nos seus livros a tipografia torna-se um símbolo que se articula em diversas parcerias com os restantes elementos da página, assumindo várias formas. Clive Phillpot (2013) comprova esta ideia ao proferir: “Since the words function as both images and signs, their combination with the pictures can take several forms” (p.112). Quando aplicadas sob a forma de legendas, as frases podem manipular o significado das imagens. Por outro lado, se as imagens e o texto forem dispostos lado a lado, caem no campo tradicional do livro de ilustração, ao invés de artists’ books. Fazendo uma retrospetiva sobre o colectivo Fluxus, percebe-se que os seus propósitos visavam unir diferentes linguagens e introduzi-las no perímetro das artes

46 Na versão consultada, “Crumple this element into the small unit possible” (Clive Phillpot 2013, p.111). 47 Em português, “Perceba. Isto é apenas temporário”. 48 Em português, “Pode-me dar um copo de água sem gelo, por favor?”

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Figura 50. “1 (a, b) 18” (1980) de Davi Het Hompson

plásticas, inclusive no seio de cineastas, músicos, designers e atores. Os propagadores deste movimento marginal procuraram inovar e expandir as diferentes formas de expressão artística, recorrendo a suportes transitórios e/ou reprodutíveis, como os happenings, as performances, a fotografias e as instalações. Com a morte de Maciunas em 1978, cessa o fluxo de publicações editoriais do grupo. Contudo, os artistas envolvidos continuaram ativos, trilhando caminhos diversos, e transportando os seus trabalhos e considerações para novos suportes digitais, promovidos pelo avanço tecnológico.

4.2.4 As mulheres e a publicação independente

Ao longo deste estudo foram mencionadas publicações e livros de artista desenvolvidos por figuras femininas. As mulheres têm vindo a criar livros desde o início do século XX. A russa Natalia Goncharova e a ucraniana-francesa Sonia Delaunay contribuíram para abrilhantar o espetro da arte do livro, com edições como “A Game in Hell” (1912) e “La prose du Transsibérien et de la petite Jehanne de France” (1913), respetivamente. Contudo, apesar destes trabalhos serem pertinentes e intemporais, não dão indícios específicos de feminilidade na sua produção. Na década de setenta, porém, começa a ser discutida a aura das produções concebidas por mulheres, debate que se prolonga até à atualidade. “Women’s Bookworks” (1981) e “My Grandmother, my Mother, Myself” (1994) são exemplos de exposições nas quais se

105 procurou promover o livro de artista e os book objects, com o propósito de enfatizar o interesse que as mulheres manifestaram desde cedo por uma arte que, por constrangimentos sociais, estava destinada aos homens. A questão colocada por Silvia Bovenschen em 1977, e que dá título à obra “Is there a feminine aesthetic?” 49 , tinha como intento distinguir as particularidades entre os trabalhos desenvolvidos por homens e mulheres. Uma possível resposta a esta pergunta poderá estar relacionada com as preocupações demonstradas pelas mulheres com os detalhes e elementos decorativos. Porém, tendo em conta os exemplares desenvolvidos até à data, não se deverá considerar esta característica preponderante num exercício de particularização. Silvia Bovenschen (1977) esclareceu, que existirá uma estética feminina, se forem tidos em análise aspetos relacionados com a percepção sensorial ou a consciência estética. O mesmo não é asseverado, se estiverem a ser analisadas à lupa variantes incomuns de produção artística: “Certainly there is, if one is talking about aesthetic awareness and modes of sensory perception. Certainly not, if one is talking about an unusual variant of artistic production or about a painstakingly constructed theory of art” (p.136). Stephen Bury, em “Artists’ Books” (2015), propõe uma reformulação da pergunta, indagando o que poderá atrair as mulher artistas ao formato do livro: “(...) what are the attractions of the book format for women artists?” (p.34) O universo das galerias e comércio de arte, apesar de ter vindo, com o decorrer dos anos, a sofrer mudanças graduais, ainda se encontra numa situação dominada pelos homens. As esferas do livro de artista e da publicação de autor respiram, porém, livremente já que o autor/produtor assume o controlo da edição. Talvez a intimidade inerente aos “artit’s books” e a relação gerada entre o artista e o leitor sejam qualidades magnéticas para as mulheres que percorrem este caminho. “The Emissions Book” (1992) de Katherine Meynell e Susan Johanknecht retrata os resíduos naturais deixados pelo corpo feminino. O livro é constituído por páginas de poliéster que incluem amostras reais de cabelo, entre outros elementos. A história desenvolve-se entre negativos fotográficos, arame e linha de costura, retratando, com uma transparência atípica (metafórica e figurativa), o íntimo do ser feminino.

49 Em português, “Existirá uma estética feminina?”.

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Figura 51. Capa e contracapa de “The Figura 52. Páginas de “The Emissions Book” (1992) de Katherine Meynell. Emissions Book” (1992) de Katherine Meynell

Outro exemplo que explora a comunhão do corpo com o formato impresso é “Post- partum Document” (1983) de Mary Keller. Esta edição, publicada em grande escala pela editora “Routledge & Kegan Paul”, narra a relação entre uma mãe e um filho, e a formação do vínculo que os une. A obra derivou de uma exposição decorrida em 1976 no “Institute of Contemporary Arts”, em Londres, sendo a sua natureza, enquanto livro de artista, todavia, questionável. Ainda assim, a beleza presente na justaposição das imagens e do texto engrandece a relevância da publicação. O livro é sobre marcas e vestígios inscritos pelo novo ser humano no corpo da sua figura materna: “(...) the child’s alphabet is an anagram of the maternal body” (Mary Keller, 1993, p.188). A autora assume a sua propensão a transportar uma experiência autobiográfica para o plano da narrativa.

Figura 53.“Post-partum Document” (1983) de Mary Keller

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Figura 20. Páginas de “Chinese Whispers” (1976) Figura 55. Capa e contracapa de “Chinese Whispers” (1976) de de Helen Douglas e Telfer Stokes Helen Douglas e Telfer Stokes

Com foco noutras matérias, Helen Douglas e Telfer Stokes criaram a editora “Weproductions” (iniciada por Stokes em 1971, e acompanhada por Douglas em 1974), caracterizada pelas próprias como um paradigma de produção limitada de livros de artistas, em formatos de bolso e impressão offset. As publicações enaltecem uma exploração da forma do livro enquanto estrutura de narrativa visual. “Chinese Whispers” (1976) quase se dissolve na atmosfera da fotonovela 50, ao constituir-se por imagens enquadradas ao tamanho da página, algumas acompanhadas de frases metafóricas. Por exemplo, “Vire uma folha nova”51, ou “A vida é um livro aberto”52. As palavras habitam a imagem e não flutuam numa construção à parte. O enredo desta obra ilustra uma sebe (imagem de capa) que precisa ser cortada e limpa para que se possa entrar através da porta. É relevante referir que as artistas, enquanto trabalharam juntas, demonstraram extrema sensibilidade ao construírem histórias de cariz cinematográfico, cujas páginas resultaram num conjunto de ações congeladas. Considerando este aspeto, e retomando a obra em causa, no momento anterior à entrada da câmera um bando de gansos desaparece no vazio da porta aberta. No interior do espaço, o conjunto é construído lentamente para que a ação ocorra. “Loophole” (1975) é fruto de uma aventura imagética a preto e branco, onde se vão sobrepondo cânones à media que as folhas vão passando, até não resultar imagem

50 Fotonovela é uma novela retratada através de um conjunto de fotografias sequenciais. Poderá apresentar semelhanças estéticas e concetuais com a banda desenhada. 51 Na versão consultada: “Turn a new leaf” (Helen Douglas & Telfer Stokes, 1976) 52 Na versão consultada: “Life is a na open book” (Helen Douglas & Telfer Stokes, 1976)

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Figura 56. Páginas de “Loophole” (1975) de HelenDouglas e Telfer Stokes

nenhuma deste exercício, e se criar uma nova. Christene Drewe (2016), crítica e bibliotecária na Australian Library of Art, comenta esta obra no blog da instituição: (...) a classic work by Telfer Stokes and Helen Douglas in London in 1975. "Loophole" is a small black and white, offset book, comprising various loose sequences of photographic images which continually disturb usual expectations of how to read the dimensions of a book. We find here an ongoing perceptual game with the conventions of the various levels of illusory photographic and page spaces. This cascade of illusions has philosophical implications for the space occupied by the reader. How, in the end, are we to understand this book? Christene Drew preconiza o cariz filosófico da obra, apontando a ilusão presente na sequência fotográfica, que desafia as fronteiras do livro convencional. Em 2004 acaba a parceria trigenária de Douglas e Stokes e, consequentemente, a “Weproductions”. Do extenso legado deixado pelas artistas, reconhecem-se livros como “Passage” (1972), “Foolscrap” (1973), “Spaces” (1974), “Clinkscale” (1977) e “Back to Back” (1980), entre outros. No horizonte português, Lourdes de Castro encontrou no livro uma forma aprazível de expressão artística, uma face intemporal da sua obra. Produz edições, a sua maioria limitadas, desde o final dos anos cinquenta. Estas foram agrupadas dando origem à exposição decorrida em 2015, promovida pela Biblioteca de Arte da Gulbenkian, intitulada “Todos os livros”, que continha cerca de cinquenta exemplares concebidos pela artista. Lourdes de Castro assume-os como livros de artista, ao proferir: “Trata-se de livros nos quais existe uma intencionalidade da artista em criar uma obra que tem uma unidade.”

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Figura 57. “Avessos Encadeados/Ombre” (1970) de Lourdes de Castro

(Jornal Público, 2015). Muitos dos seus projetos, amparados na estrutura do códex, partiram de poemas, seus, ou de outros (Rilke, Rimbaud, Appolinaire, Paul Éluard, ou Herberto Helder), e incorporam materiais como tecidos, papel, poliéster colorido e negativos fotográficos. “Avessos Encadeados/Ombre” (1970) é uma série de livros bordados que pode encaixar-se numa filosofia conceptualista, distinguindo-se pelas palavras desenhadas a linha em diferentes tons sobre páginas sóbrias. No verso destas, vocábulos como “Sombra” ou “Goethe” são vistos do avesso. A artista encontra beleza no “avesso”, que borda incansavelmente, até não haver qualquer reminiscência e semelhança com a palavra original. Esta recompõe-se noutros delineamentos e perde-se no infinito que é a folha “o avesso, do avesso, do avesso, do avesso”. Lourdes de Castro também aborda temas como a acumulação, admitindo fruir de uma compulsão arquivista – um lado um tanto excessivo e caótico – que revela nas suas colagens. É exemplo “Um Livro de Modas” (1956) no qual estão reunidos recortes de revistas de moda, amostras de tecido, alfinetes e botões, numa espécie de desorganização harmoniosa. A artista preenche a tela que representa o livro de autor no panorama português, com uma mancha vívida e cunho próprio, características que fizeram dela uma mulher à frente do seu tempo e uma das percursoras do artist’s book. Lourdes de Castro adivinhou um futuro onde o livro seria contemplado como um objeto conceptual, de aura imperfeita, e trabalhou-o com uma rudeza e simplicidade estonteantes. Postas estas considerações, verifica-se que existem certas temáticas, sobretudo as que se relacionam com o corpo, e ciclos naturais da mulher, que denotam em algum grau

110 genuinidade e expressão feminina. No entanto, isso não invalida que um homem não as possa descrever, como espectador, ou através de uma personificação. De um ponto de vista contemporâneo, e mesmo remontando aos trabalhos das vanguardas do século XX, torna-se quase inequívoco que os interesses, temas, e estética, estejam revolvidos, de tal modo, que será falacioso proceder a uma particularização dos aspetos mais femininos ou masculinos de uma publicação editorial.

4.3 O século XX, considerações finais

A totalidade dos exemplos retratados, pertencentes à book art, partilha características comuns. Estes livros transportam um rasgo da expressão artística de um autor ou artista, que é revelado e comunicado unicamente sob a sua estrutura quase imortal. A prevalência do artist’s book, num espaço temporal prolongado, torna o livro um objeto místico e autónomo. Contrariamente a qualquer outra forma de expressão artística, a book art tem a capacidade de subsistir globalmente, usufruindo de um grau elevado de flexibilidade. O motivo reside na habilidade circulatória destes exemplares que, apesar de serem objetos inertes, sugerem alguma dinâmica. Os livros adquiridos, os livros perdidos, os livros emprestados, estão numa constante mutabilidade de circunstâncias. Johanna Drucker (2004) conclui, oportunamente, que será pouco provável alguém encontrar ao acaso uma pintura de Jackson Pollock, ou um desenho de Nancy Spero, com a mesma facilidade com que se encontra um livro: “One doesn’t just happen to ‘find’ a Jackson Pollock painting or a Nancy Spero drawing among one’s things (...) (p.358). No entanto, dentro do espectro dos artists’books reconhecem-se edições preciosas, frágeis e delicadas. Estas poderão, um dia, desenvolver a sua vertente móvel. A durabilidade de um livro está diretamente relacionada com a estrutura simples do códex, aliada a um conteúdo e tema – os verdadeiros propulsores da sua longevidade. O livro lança um convite de manuseamento quase irrecusável ao seu leitor/observador, cativando-o, e tirando proveito das suas qualidades formais, verbais, literais e metafóricas. Estas características, quando empregues subtilmente, de tal forma

111 que se cheguem a entrecruzar sem que seja possível reconhecê-las, dão origem a uma publicação sublime de conteúdo dinâmico. Há, contudo, alguns constrangimentos apontados à forma do livro. Objetivamente, é possível identificá-lo como um instrumento efémero, portador de uma sequência, realizado através de determinadas práticas e materiais. Existe uma espécie de contradição entre finito e infinito, quando se tem em conta as diversas experiências sentidas pelos leitores – matrizes de um campo intelectual ilimitado. A própria encadernação e lombada do livro sugerem limites, apesar da página, seu elemento primário, se assemelhar a um mar imenso de associações. Outra dialética associada à forma do códex, tem a ver com a aparente simplicidade da sua estrutura milenar. O carácter convencional da sua forma finita imerge num universo de incontáveis arranjos visuais e possibilidades. O limbo, entre o que é claro e o que é intricado, parece colocar a natureza da book art sob observação. O crescimento da atividade artística focada na forma do livro, durante o século XX, é uma síntese das tradições gráficas e das publicações independentes que o motivaram. A conceptualização da ideia do múltiplo em todas as suas variações e formas inéditas só foi conseguida através do progresso da comunicação visual, desde a pré-história até à atualidade. O livro de artista é uma metamorfose, uma força híbrida, cuja identidade se distingue dos contributos precedentes, contudo enriquecida com uma aura similar à do vídeo e filme, com a exceção de se apoiar num médium tradicional. Ao fazer-se uma retrospetiva histórica do livro durante o século XX, destaca-se o papel proeminente que desempenhou nos diversos movimentos artísticos. Os livros participaram nas estéticas futurista, conceptualista, performativa, pop e, ainda, expressaram matérias feministas. Encontraram vias de disseminação, através de museus, galerias, livrarias e de “mão em mão”. É surpreendente constatar que o livro, enquanto dimensão artística, foi considerado um processo acidental, como se a utilidade da sua forma proviesse de uma questão de conveniência. Contudo, a interação entre o livro e a arte, desde o início do século XX, foi camaleónica, fruto de ações transformadoras e processos de reinvenção, destinados a servir grafismos e sensibilidades particulares.

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Algumas questões sobre a book art

113 5.1 Quem? O quê? Qual? Como? Para quem?

Ao longo deste estudo têm sido apontados exemplos de artistas e trabalhos que tornaram possível a solidificação concetual do livro enquanto objeto artístico, entre outras obras que apesar de não exibirem o título de artist’s book, contribuíram para expandir a esfera dos formatos editoriais. Clive Phillpot prefere empregar o termo book art (livro de arte) em vez de artist’s book, pois acredita que não se deve confinar o livro à sua “profissão” (artistas). Esta ideia é antecedida pelo artista Richard Kostelanetz, que encontra no termo book art, um horizonte mais extenso, propício à criação de outras perspetivas e qualidades de trabalhos. Now ‘artitists’ books’ is a more commonly accepted term than ‘book art’, however I preffer the latter, since ‘artists’ books’, as Richard Kostelanetz has pointed out, defines these artworks by the profession (or education) of their authors, rather than by the qualities of the works themselves (Clive Phillpot, 2013, p.60). O crítico de arte acrescenta ainda, que sob o epíteto artist’s book, podem ser desconsiderados trabalhos que intervém nitidamente no campo ideológico do livro, na ordem da poesia visual e concreta, fotografia, tipografia, e design gráfico. No terreno do book art são combinados outros formatos editorias como revistas; cartas; bandas desenhadas; manifestos; diários, entre outras publicações proveniente da forma do códex, ou totalmente díspares, apoiadas em novas tecnologias e configurações improváveis. Apesar da história da publicação ou livro de autor se encontrar, atualmente, num estágio de alta perceção simbólica, os contornos e fronteiras deste conceito são, todavia, turvos. A ideia do múltiplo e do objeto reproduzido está em crescente aceitação. É inevitável reconhecer a eficiência da reprodutibilidade técnica ao possibilitar que livros e revistas possam alcançar audiências colossais, sendo a reação a estes exemplares unicamente dependente da experiência gerada pelo impacto do seu conteúdo. O facto de existirem ou não milhares de versões idênticas, não interfere com a bagagem contida nos mesmos. A fim de desmistificar as entrelinhas e propósitos da book art, propõe-se um esclarecimento de perguntas colocados por Clive Phillpot (2013). Estas são: Quem? O quê? Como? Para quem? 53

53 Na versão consultada: “Who? What? How? For Whom?” (Clive Phillpot, 2013, p.61).

114 Partindo do “Quem?”, poder-se-á indagar quem é o responsável pelo livro de arte. Em termos de autoria, ao proceder-se a uma análise da palavra “livro de artista” ou artits’s book, chegar-se-ia a uma conclusão imediata, que o produtor envolvido seria um artista, presumivelmente ligado a uma tradição de pintura ou escultura. Outra possibilidade estaria ligada à via fotográfica (dentro do âmbito da arte concetual, por exemplo). No entanto, os autores do livro enquanto estrutura artística, estão ligados a uma tradição gráfica extensa, que inclui no seu seio ilustradores, tipógrafos, designers, que ambicionam produzir as suas próprias publicações, ao invés de trabalharem para outrem. Fora da bolha que acolhe todas estas formas de laboração gráfica e plástica, também são granjeadas ao campo da book art áreas artísticas como a música, poesia ou cinema. Certas entidades, como editoras, podem participar nesta tradição, apoiando os artistas que assumem os custos das suas próprias edições. Devido ao interesse generalizado no livro de artista, têm-se verificado uma disposição por parte dos meios de publicação em alavancar as despesas comerciais destes exemplares. Contam-se, no entanto, poucas editoras dedicadas em exclusivo ao livro de artista. O motivo residirá na dificuldade em assegurar qualidade e diversidade de técnicas disponíveis, porém, “Hansjörg Mayer” e “Printed Matter” são casos substanciais nesta matéria. As galerias e museus, instituições geralmente identificadas por publicar edições de artistas que tenham currículo em exposições, ou sejam particularmente resplandecentes no mercado de vendas, começam a fazer parte do “quem”. Verificam-se algumas exceções interessantes, nas quais os artistas se propõem a desenvolver um trabalho, produzindo um livro que coincida com o evento expositivo. Esta publicação distingue-se totalmente do formato clássico de catálogo impresso. Museums and galleries tend to publish the work of artists already well known, often in the wake of the publishing activities of dealers. But there are some interesting exceptions to this tendency, often on account of the artists themselfs, who ask that instead of having a catalogue printed for their exhibition they be allowed to conceive a publication (...) (Clive Phillpot, 2013, p.63). A próxima questão, “O quê?”, procura captar o que é que constitui um book art. Revolver as entranhas do livro enquanto objeto artísco pode representar uma tarefa difícil e um tanto abstrata, contudo, através de um exercício de memória conseguem-se

115 tatear mentalmente os vários géneros de edições que acompanharam a vida de um indivíduo (desde as bandas desenhadas, livros de culinária, revistas, manuais, entre outros), e entende-se, a multiplicidade de temas que podem partir do códex. A experiência do livro no campo das artes visuais é, contudo, destoante. Formas de arte sequencial como o filme ou o vídeo, completamente dependentes de tecnologia (ao contrário do livro), conferem apenas uma única experiência ao espectador que observa, estático, um plano em movimento. Esta ação, descrita numa fase dissertativa anterior, assemelha-se à contemplação de uma pintura, na qual o observador não tem controlo sobre a imagem colocada na parede. O seu papel é passivo, a única ação que poderá tomar será desligar o ecrã, ou afastar-se da obra. O book art, por outro lado, caracteriza-se por ser uma forma de arte visual participativa, um desvio no padrão contemplativo. A experiência singular conferida pelo livro, segundo Clive Phillpot, estancia-se na liberdade de escolha do espectador, que determina como e quando quer ver uma obra. Este tem o poder de subverter a intenção do artista, já que não existe uma regra de manuseamento, estabelecendo, assim, interações com o objeto. “Spectators also have the power to subvert the intentions of some artists by starting the book at the end, by looking upside down, by reading passages out of sequence, and so on” (Clive Phillpot, 2013, p.64). A questão “Qual?”, procura determinar qual o conteúdo que pode integrar o livro. Não sendo possível prever os desígnios da book art, resta ao estudioso deste domínio, discutir o que já foi feito. Desde arte documentada, a arte efémera, entre outro tipo de trabalho artístico resultado da fusão de várias áreas, o livro de artista tangeu os mais variados métodos. Alguns destes exemplares contém diagramas; imagens; fotografias; textos; colagens, entre outros conteúdos experimentais. Há ainda uma vertente da arte encarnada na forma do livro, que reúne processos crus de pensamento artístico, como são casos os aludidos, book works, bem como alguns cadernos, ou diários gráficos. Van Gogh, Leonardo da Vinci, Sol Lewitt e Jan Dibbets, são exemplos de personalidades que se auxiliaram destes médiuns a fim de perspetivarem uma concetualização artística.

116 Na ótica do que torna bem-sucedido um artist’s book, entende-se que o fator mais importante reside na dependência do conceito em relação à forma do livro. Uma conformidade na qual o livro só adquire sentido, por ser um livro. A interligação plena entre elementos constituintes do livro, como a tipografia e a imagem, compõem por si só, um conteúdo gráfico bastante interessante. Assim como no caso de ausência imagética, a tipografia devidamente escolhida e trabalhada, tem a capacidade de criar planos visualmente aprazíveis, e até formar imagens. Os materiais escolhidos são condicionantes decretórias ao brilhantismo de uma edição. A constituição das páginas permite jogar com questões como a visibilidade, e invisibilidade, que avultam a condição do livro enquanto objeto. A densidade das folhas, a sua textura, coloração, e até a modelação (como é caso o formato pop-up), precisam a natureza mais ou menos escultórica de uma publicação. Em termos de preocupações formais, fazem parte do reportório de artistas, alguns mais preocupados com a estrutura física do livro, e as suas potencialidades expressivas. Noutra margem, existem aqueles que se propõem a experimentar ao máximo, desafiando os limites formais do códex. A abordagem temática da book art, segundo Clive Phillpot (2013), parece vibrar tópicos de cariz pessoal. “But much of the content of book art still seems to me to be self- indulgent, and to deal with essentially private concerns, or to be dependent on the art world” (p.66). Ainda sob o ponto de vista do autor, este defende a possibilidade de um livro de artista ser submetido a uma crítica construtiva e informada, dando, assim algum feedback ao seu produtor. “But all I am really suggesting is that the relative flood of publications needs critical examination and assessment, and that as a result of such assessment much chaff will be winnowed away. Also, that informed criticism would provide feedback for artists, which may be of some value” (Clive Phillpot, 2013, p.66). O humor e a política são ferramentas capazes de conceber edições bastante genuínas, e encontram no formato do códex um verdadeiro habitat natural de abstração teórica. O livro, pela sua estrutura e características inerentes consegue compreender factos, imagens e argumentação. Partindo para a pergunta que se segue, “Como?”, procura saber como são disseminados os livros em causa.

117 Quer uma edição seja concebida a fim de ser massificada ou não, geralmente, as suas características de produção, permitem a sua reprodução técnica (ainda que esta resulte num fac-símile). A versão mais simples do livro, aquela que contém apenas folhas brancas e capa fina, possui um alcance muito amplo em termos de público, dada a familiaridade da sua forma. Porém, cada conteúdo pede um formato específico, havendo livros que se comportam como brinquedos. Com a facilidade que existe atualmente em possuir e utilizar uma impressora, é, todavia, estranho, que não haja exemplos significantes de editoras underground 54 direcionadas para a produção destes exemplares “domésticos” e alternativos. Não é desconsiderada a hipótese de existirem estas editoras, conhecidas apenas em nichos familiares, contudo, lamenta-se a falta de um exemplo vincado no panorama artístico. De um modo geral, as publicações de artista baratas provenientes de círculos underground, cingem-se às suas próprias fantasias, e abraçam a efemeridade, ao invés de deixarem uma pegada crítica e sólida no terreno da book art. No entanto, o futuro é incerto. Talvez no “amanhã”, estas obras sejam valorizadas com a mesma importância e seriedade que as do grupo Fluxus. A última inquisição, “Para quem?”, pretende incitar uma argumentação acerca do público alvo do livro de artista. O primeiro ponto a frisar está relacionado com a universalidade da imagem. Um grande número de publicações, ao conterem exclusivamente conteúdos imagéticos, têm a capacidade de comunicarem num prisma global, transcendendo as barreiras linguísticas, ao invés de alguns conceitos textuais abstratos. Não obstante, apesar do desenho e fotografia usufruírem, à partida, de um entendimento universal existem indivíduos sem literacia visual. É normal que assim seja, de outra forma não existiriam cíticos de arte, semiologistas ou iconógrafos. Da mesma forma que a linguagem escrita tem a capacidade de desconcertar mentalidades, mantendo incógnita a intenção do autor, um livro no qual constem várias ou apenas uma imagem, pode ter uma abordagem complexa, sendo mais ou menos estimulante. A fotografia, a montagem e o desenho comunicam de formas tão diversas, que o potencial dos artists’ books se torna imensurável.

54 O termo em inglês, que significa “subterrâneo”, está associado à cultura artística que se desenvolve paralelamente aos modelos comerciais e à massificação.

118 Os destinatários da book art poderão ser os integrantes do mundo artístico, contudo não são os únicos. Numerosos artistas almejam comunicar fora deste contexto, entrosando-se noutras áreas, tendo em mente um público alvo ao reproduzirem copiosos exemplares das suas obras. De uma amostra dilatada de compradores anónimos, certamente existirão indivíduos que se identificam com as temáticas representadas num livro de artista, tanto quanto o artista que o projetou. Clive Phillpot reconhece a importância dos estímulos visuais na vida das populações, sendo partidário de uma educação voltada para a instigação da criatividade e espontaneidade do pensamento. O autor alude ainda à visão autêntica e livre de um jovem ou criança, já familiarizados com a ideia de livro e imagem, e reflete sobre as mais valias da inserção dos artists’ books no âmbito didático. I would like to see children and college students made aware of visual book and book art in general, of book that are not necessarily made with them in mind, but books to which they might respond, be stimulated by and derive pleasure from. (Clive Phillpot, 2013, p.70). Para consumar esta explanação de intencionalidades, é importante reconhecer o trabalho desenvolvido nas últimas décadas, trabalho esse que colocou a book art na maior mesa redonda da sua história. Crê-se que os desenvolvimentos tecnológicos, e a expansão da era digital vigente, sejam capazes de criar um novo campo de ação do livro de artista, no qual este possa existir num espaço separado.

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Meios de disseminação e Coleções

120 6.1 Bibliotecas, galerias, livrarias e museus

As bibliotecas e livrarias podem participar na divulgação e até financiamento de livros de artista e publicações de autor. É usual encontrar edições de arte documental nestes espaços, bem como outras formas de literatura artística historiada. Alguns catálogos, muitas vezes cedidos por museus ou galerias, também encontram lugar nas prateleiras das instituições livreiras. O livro de artista aparece, porém, de uma forma mais inesperada, uma vez que é considerado arte num estado primário. Ainda que carregue esta conotação, a sua natureza fundamenta-se nos alicerces do códex, o que lhe confere um cariz híbrido. Por um lado, poderá ocupar um espaço expositivo, no qual correntemente se espera um exercício de contemplação por parte dos visitantes, ao mesmo tempo, uma biblioteca ou livraria representam, numa primeira impressão, o ecossistema mais apropriado ao armazenamento literário. Nestes ambientes, espera-se que os exemplares catalogados possam ser folheados, ao contrário do que acontece em museus e galerias. Tendo em vista a situação atual, e recordando os acontecimentos das últimas décadas, verifica-se que ambas as situações são válidas. No quadro nacional, sobressai o exemplo da Biblioteca de Arte Gulbenkian que iniciou uma coleção de livros de artista e edições independentes no início da década de noventa. Desde então, a coleção tem vindo a crescer, contando neste momento com cerca de quinhentos e cinquenta exemplares. Encontram-se, entre as notáveis publicações, obras únicas, que assumem diferentes formatos e tamanhos. Algumas ligam-se a uma tradição artesanal, com recurso a diferentes materiais e técnicas, dando origem a livros-objeto, e outras, produzidas por editoras alternativas, assumem a forma de edições muito limitadas. Esta informação é descrita no site oficial da Gulbenkian, na secção destinada à Biblioteca de Arte: Nesta coleção encontram-se tanto obras únicas como múltiplos, de formatos e tamanhos diversos: livros realizados manualmente pelos artistas, utilizando materiais e técnicas artesanais; livros-objeto, frequentemente peças únicas ou de edição muito limitada; livros editados por pequenas editoras alternativas ao sistema comercial. Figuras como Bruno Munari, Alex Kaprow, Seth Siegelaub e Dieter Roth fazem parte do leque de referências internacionais, cujas obras estão compreendidas na vasta coleção.

121 Destacam-se outras publicações, estas no campo de atividade nacional, concebidas por José Escada, Lourdes de Castro, Alberto Carneiro e Julião Sarmento, entre outros. Será curioso acrescentar que em 2017 a referida biblioteca adquiriu uma coleção particular (das mais relevantes em Portugal) reunida por Catarina Figueiredo Cardoso entre 2007 e 2017, na qual constam 5070 publicações independentes e livros de artista muitíssimo variados, em termos de suportes e técnicas aplicadas, desde exemplares offset, em impressão digital e com caracteres móveis, de tiragens numerosas e reduzidas. São integrantes desta coleção publicações acompanhadas de desenhos e/ou pinturas originais, bem como gravuras e/ou serigrafias, maioritariamente produzidas por artistas portugueses em plena atividade, alguns artistas estrangeiros, e ainda um núcleo francês contemporâneo. Os livros podem ser consultados e manuseados com o devido cuidado numa sala destinada a essa pesquisa. O papel das livrarias e bibliotecas, no âmbito do livro de artista e publicação de autor, passa por aglomerar estes exemplares, distinguidos pela excelência do seu conteúdo e/ou o carácter célebre do seu executor, e colocá-los acessíveis a uma dinâmica de leitura e observação. Em alguns casos, o reconhecimento público e a fama do artista tornam-se irrelevantes, face à vontade de se difundir um trabalho pertinente que, porventura, poderá trazer algum retorno e notoriedade à instituição que o obteve. Contam-se bastantes livros únicos, adquiridos por bibliotecas e livrarias a custos reduzidos que, com a passagem do tempo, se foram tornando cada vez mais valiosos. De algum modo, as instituições mencionadas, tal como as galerias e museus, carregam a missão de promover novas formas de arte, até que estas se tornem significantes. As últimas instituições referidas dão um enfoque ao artist’s book de uma perspetiva distinta, conferindo outro tipo de experiência ao observador. Os museus geralmente detêm uma quantidade significativa de obra artística que, quando exibida ao público, é intitulada “exposição permanente”. A book art pode integrar uma coleção adquirida tanto por uma galeria como por um museu, ou viajar de exposição em exposição, tal como acontece com milhares de obras de arte. Tal circunstância, na qual a obra exposta deambula entre espaços, tornou possível a visualização da coleção da revista “Aspen” (1965-1971) numa fundação como a Culturgest, em Lisboa (2017), embora neste caso, tenha sido cedida por um colecionador privado. Em 1965, a editora norte americana Phyllis Johnson predispôs-se a levar a cabo

122 um projeto editorial empreendedor. A cidade de Aspen, uma reputada estância turística de desportos de inverno, começou a desenvolver desde 1945 uma estética influenciada pela escola alemã Bauhaus, sobretudo no que concerne ao design e à arquitetura. A dinamização da pequena cidade mineira (Aspen), espelhada nestas matrizes gráficas, contou com um programa de incentivo cultural, que atraiu algum turismo de luxo e colocou-a no cerne do círculo artístico americano. A filosofia progressista consistia em cruzar uma ideia setecentista europeia de cultura, com a atração das atividades de inverno, que convidam um mercado de elite. Esta envolvência, tornou Aspen o território ideal para o desenvolvimento da Conferência Internacional de Design em 1965, conduzida por Herbert Bayer55. Neste contexto de fervilhação, Phyllis Johnson cria “Aspen”, da qual resultaram dez números, somente acessíveis por assinatura. Cada número da revista era composto por uma caixa que continha inúmeros materiais, desde brochuras, postais, cartazes, discos e até películas de filme. O conceito de experiência coletiva, próprio das transformações culturais passadas na década de sessenta, determinou que cada exemplar tenha sido editado por designers e artistas diferentes. Os primeiros dois números da coletânea abordaram temáticas ligadas ao ambiente e à própria estância de Aspen. A partir do número três evidenciam-se tendências artisticamente refrescantes, sob a tutela de Marshall McLuhan56, centradas na atmosfera e nas controvérsias da esfera cultural vigente. A publicação “Aspen” refletiu em cada número o desenrolar destas estéticas emergentes, tendo conseguido exercer um papel particularmente estimulante e referenciador no horizonte do design. Hoje reconhecem-se alguns designers envolvidos, como Quentin Fiore, figura marcante tanto a nível concetual como gráfico. Esta informação é confirmada através da seguinte citação constante da folha de sala da exposição “Aspen magazine” na Culturgest.

55 O austríaco Herbert Bayer foi um dos mais influentes estudantes e professores da escola Bauhaus, tendo sido conhecido por exercer várias áreas artísticas (desde o design gráfico e tipografia à fotografia e direção artística) ao longo da sua carreira. 56 Marshall McLuhan foi um filósofo e intelectual canadiano, que ficou particularmente conhecido por desenvolver o conceito de “aldeia global”, prevendo o fenómeno da internet vinte e cinco antes do seu aparecimento.

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Figura 58. Os vários fascículos da revista Aspen (1965-1971) na “Whitechapel Gallery” (Londres) em 2016.

Cada número da Aspen é, portanto, um testemunho vivo de um tempo, quer nos conteúdos publicados, quer no design – sendo hoje particularmente estimulante compreender a importância posterior de alguns dos designers envolvidos, à cabeça dos quais está Quentin Fiore. (Delfim Sardo, 2017) Dada a sua preciosidade, a revista esteve exposta e protegida por vitrines, não sendo possível folheá-la. Os volumes configurados no formato do códex, apresentavam-se abertos em páginas determinadas pela curadoria, e os restantes anexos dispostos individualmente. Ao longo do espaço expositivo, três computadores permitiam o acesso à “Ubu Web”, site que aloja virtualmente a revista, juntamente com a informação detalhada de cada número. A exposição tornou possível uma visão muitíssimo detalhada da revista, apesar dos constrangimentos relativos ao toque e manuseamento, e espelhou a permeabilidade dos artistas e designers participantes, que integraram movimentos de Pop Art, o conceptualismo, a performance, a dança e o pensamento pré-estruturalista. Uma figura crucial no desenvolvimento e status do artist’s book, foi Seth Siegelaub, proprietário de uma galeria convencional de arte, que entre 1964 e 1966 reuniu o trabalho de vários artistas emergentes. A partir de 1968, o curador e comerciante muda a sua prática de trabalho, e passa a cooperar com um pequeno grupo de artistas concetuais, levando a diante, nesse mesmo ano, a exposição “Artists Books”, (que viria a inspirar o livro com o mesmo nome, de Dianne Perry Vanderlip) na Moore College of Art & Design. A obra presente do concetualista Douglas Huebler funcionava bem tanto no contexto da

124 página como fixa numa parede, acabando por constituir um catálogo, que ousou, com sucesso, exercer o papel de galeria. O facto de Seth Siegelaub não possuir uma galeria fixa fez com que o decorrer das seguintes exposições, como é exemplo “Statements” (1968) de Lawrence Weiner, assumisse a forma de catálogo, mudando assim o paradigma deste género de publicação. Clive Phillpot (2013) cita Siegelaub, a respeito das suas considerações sobre a aplicação artística do catálogo: “The catalog which served ‘to document’ (the art), was not referring to an (art) object which existed outside of it, but could simply another aspect of the work, or even the artwork itself” (p.188). Com esta afirmação, o curador afasta o catálogo do seu compromisso convencional de documentador de arte. Este poderia, segundo Siegelaub, reunir aspetos exteriores ao que ocorre nas paredes de uma galeria, funcionando como um trabalho por si só. Por volta da mesma altura, publica em conjunto com John W. Wendler a edição offset “The Xerox Book”, de uma coletiva de Carl Andre, Robert Barry, Douglas, Huebler, Joseph Kosuth, Sol LeWitt, Robert Morris e Lawrence Weiner. As páginas impressas nesta edição, não se tratam de reproduções convencionais de arte: estas constituem por inteiro o trabalho artístico. Siegelaub aponta, ainda, o seu tipo de arte preferida, aquela que é comunicada pela via de livros e catálogos. Defende, também, que a arte, quando alcança um patamar de abstração, deixa de depender da sua presença física, podendo habitar, sem qualquer distorção, em espaços como livros e catálogos. Lucy Lippard transcreve esta ideia no seu livro “Six Years: The Dematerialization of the Art Object from 1966 to 1972” (1973): The art that I am interested in can be communicated with books and catalogs (...) When art does not any longer depend upon its physical presence, when it has become an abstraction, it is not distorted and altered by its representation in books reproduction of conventional art in books and catalogs is necessarily secondary information (...) (p.125). Conclui-se que tanto o curador como o distribuidor de livros contribuíram positivamente para a democratização da obra de arte, ao reorganizarem conteúdo que habitualmente estaria exposto numa galeria ou museu, enquadrando-o num novo formato de exibição, o catálogo. Note-se que “The Xerox Book” (1968) é um dos trabalhos compreendidos no acervo de livros de artista e edições independentes da Biblioteca de

125 Arte da Gulbenkian, e fora do contexto da fundação é possível adquiri-lo em mercados online, por valores razoáveis. Outras obras publicadas gozaram do estatuto de “edição democrática”, ao tornarem- se acessíveis a qualquer tipo de público, é caso de “Twenty Six Gasoline Stations” (1963), de Ed Ruscha, que chegou a custar dois dólares americanos. Este preço consegue ser praticado, se a produção do exemplar for, também, barata. A “Printed Matter”, fundada em 1976, é um exemplo eminente de uma organização sem fins lucrativos, dedicada à disseminação de artists’ books e publicações de autor. Entre os seus fundadores distinguem-se o artista Sol LeWitt e a crítica Lucy Lippard. A organização foi desenvolvida com o objetivo de responder à procura crescente de edições desenvolvidas por artistas e designers, em domínios como aperformance, ambiente, som e outros meios experimentais, inseridos numa vaga concetual. Obras reproduzidas em grande escala manifestavam qualidades de obras de arte, complexas e significantes, detentoras de uma visibilidade ampla e valores acessíveis. A Printed Matter exerceu um papel crucial, mantendo-se na vanguarda da publicação impressa, acabando por mudar-se em 1989 para a Wooster Street no SoHo, treze anos após a sua permanência na Lispenard Street em Tribeca. Nesta nova residência regida por galerias de arte e comércio de luxo, o espaço usufruía da amplitude necessária ao desenvolvimento de uma programação cultural, na qual estavam incluídas exposições, entre outros eventos. Posteriormente em 2001, transfere-se para Chelsea, considerado, então, o distrito das artes contemporâneas de Nova Iorque. O burburinho e a vibração crescente entre a vizinhança sentiam-se pelos locais onde se ia fixando a Printed Matter, sendo o seu local atual, um enorme espaço-livraria na 11th Avenue. Na “cidade que nunca dorme”, a editora continua a fornecer ao público uma impressionante coleção de exemplares focados em práticas artísticas contemporâneas, acompanhando o interesse florescente da publicação de autor. Em sintonia com este fenómeno, a “Printed Matter” mantém-se resiliente, fundando, respetivamente, em 2004 e 2013 as feiras de arte de Nova Iorque e Los Angels, consideradas o maior evento de distribuição, pesquisa e celebração de livros e publicações artísticas, à escala mundial. No panorama europeu, Hansjörg Mayer, fundador da editora do mesmo nome, foi um editor, poeta e designer alemão voltado para a experimentação tipográfica e poesia

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Figura 21.“Futura 1” (1965) editado por Hansjörg Mayer Figura 60. Futura 24” (1968) editado por Hansjörg Mayer

concreta. Em 1968, dois anos após a fundação da sua editora, e com apenas vinte e cinco anos, era já considerado um representante notável do movimento de poesia experimental. A temática principal de Mayer é o alfabeto. O fascínio pela tipografia levou o autor a executar novas formas de carateres individuais, encontradas nas vinte e seis letras e dez números da sua fonte predileta, “Futura”. Deste exercício, excluiu as letras em caixa alta e os sinais de pontuação. O despojamento da expressão tipográfica visível nas obras que executou a partir deste processo de desconstrução, remete para a tipografia dos anos trinta, imersa no estilo da Bauhaus. Partindo dos exemplos discutidos até então, é possível afirmar que um dos aspetos mais atrativos das publicações de autor e dos livros de artista está relacionado com o potencial que estas edições têm de aceder a uma audiência muito diversa em termos de gosto, educação, classe económica e background artístico. A disseminação dos exemplares evidenciados só se torna possível através de meios como galerias, museus, livrarias, bibliotecas, editoras, entre outros projetos independentes (como é exemplo a Printed Matter), que investem e identificam um potencial no leque de publicações que constitui o cosmos da book art.

127 6.2 Colecionar livros de artista e publicações de autor

As coleções de livros de artista e publicações de autor emanam uma criatividade e identidade singulares, próprias de um formato de arquivo distinto dos comuns acervos de fósseis, borboletas, moedas ou postais. No caso de o artista estar vivo, existe a possibilidade de ser questionado acerca dos seus propósitos. Quer as coleções sejam privadas ou públicas podem ser catalogadas de variadíssimas formas. De um ponto de vista geral, procede-se a uma organização datada por período, havendo também a possibilidade de se categorizar uma coleção por temática, distinguindo, por exemplo, artistas que trabalharam individualmente, dos que pertenceram a um determinado movimento ou grupo; os livros concebidos por mulheres e, ainda, aqueles que se classificam por editora. As próprias características que ressaltam de uma obra podem interceder na dinâmica de categorização. Os livros que exibem formatos peculiares mantêm-se apartados das edições mais próximas da estrutura convencional do códex; também as publicações que enfatizam maior qualidade tipográfica podem ser distinguidas daquelas que se apoiam unicamente na fotografia ou no desenho, e por aí adiante. Uma vez que o propósito da coleção é estipulado, é definida uma política de aquisição, implícita ou explícita. Algumas perguntas que devem ser colocadas, segundo Stephen Bury (2015) são: “Que quantia monetária está disponível para cada ano?” ou “Existe algum preço máximo aplicado a uma obra, que não possa, excecionalmente, ser excedido?”, “How much money is available for each year? Is there a maximum price for an item that cannot, exceptionally, be exceeded?” (p.37). A fim de organizar uma coleção, tendo em mente todos os parâmetros relacionados com o armazenamento, as galerias e livrarias especializadas devem criar uma lista de necessidades, desta forma controla-se e prevê-se o valor médio de uma obra. Julgar o custo justo de uma possível compra, não é uma tarefa simples. Dentro dos mercados em segunda mão, que começam a aparecer progressivamente, os preços são oscilantes. Entre os fatores que determinam o valor de uma publicação destacam-se, o tamanho, a quantidade de exemplares publicados, a assinatura, a numeração, o reconhecimento do artista produtor e do círculo artístico envolvente.

128 Por outro lado, conhecem-se algumas obras editadas a preços reduzidos e em grandes tiragens que foram compradas rapidamente, num curto período de tempo. Atualmente, estas são tidas como raras, equiparando-se ao estatuto das edições limitadas. Contam-se ainda casos em que os artistas vendem as suas publicações antes de as finalizarem, com o objetivo de angariarem fundos para processos de encadernação e aplicação de materiais, o que solidifica o cariz insólito de uma obra. O processo de deliberação, onde é julgada a qualidade de um livro, é ainda mais laborioso que a atribuição do preço, sobretudo em exemplares emergentes. O desenvolvimento de uma coleção temática pode ressaltar o potencial de exemplares particulares, enquanto numa coleção de carácter mais generalista a escolha da compra de um livro pode ser influenciada pelo estatuto do artista, ou por uma bem articulada relação formato-conteúdo. A estética é geralmente debatida, sendo questionados os propósitos e as intenções de uma obra, e de que forma é que estes influenciam ou intervêm na sua significação visual. Esta questão fica pendente, sobretudo se o potencial comprador conhecer, ou se interessar pelo trabalho do artista. Uma vez adquirido um livro de artista, ou edição independente, é redigida uma ficha técnica e certificado de autenticidade, onde são especificadas as informações concernentes à obra, como o título e alguns detalhes que não se mostrem evidentes. O tamanho e as variantes particulares de cada cópia (no caso de constarem), também são características assinaladas. É importante manterem-se confidenciais estas minudências, pois desta forma pode precaver-se qualquer tentativa de falsa replicação. Uma instituição deve elaborar um catálogo manual ou digital, preferencialmente acessível através da internet, pois através desta via dispõe-se de um alcance muito maior comparativamente ao manual, apenas acessível presencialmente. Stephen Bury, afirma que independentemente da escolha do sistema empregue, existem dificuldades em catalogar uma publicação de forma coesa e global devido à falta ou ocultação de informações presentes em algumas obras. Por exemplo, “The Xerox Book”, não contém nenhuma informação relativa ao próprio título: “(...) some have no title or author information on the items themselves – The Xerox Book is nowhere described as such in the book (...)” (Stephen Bury, 2015, p.38).

129 Para além da catalogação, também a arrumação e a conservação de livros de artistas e publicações de autor revelam-se complexas. Há uma questão ética relacionada com as edições concebidas para serem efémeras: dever-se-á conservá-las? Certamente, o artista político Gustav Metzger não almejava conservar para a eternidade “Manifesto Auto- destructive Art” (1960), ou ainda outras obras formadas por substâncias orgânicas, como comida, geram alguma controvérsia. Estes trabalhos atuam como happenings, apesar de existirem formalmente. As instituições que albergam coleções de obras valiosas, raras e limitadas, usufruem de condições de controlo de temperatura, luminosidade, refrigeração, contentores despojados de ácidos e limpeza regular. Estes livros, em caso de consulta, são cuidadosamente folheados por intermédio do uso de luvas, o que torna a apreciação do objeto, um tanto incompleta. A fisicalidade do livro, o seu tamanho, peso, textura e toque evapora-se ante a tentativa de converter uma obra interativa numa peça de museu.

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7

Designer como Autor

131 As considerações aprofundadas no decorrer desta dissertação tiverem como foco principal a publicação de autor e o livro de artista, desenvolvidos por indivíduos e grupos criativos. A entrada do artista no palco da book art foi conduzida com o apoio de uma mescla de áreas circundantes, sendo a posição do design, neste domínio, debatida sobretudo a partir do início dos anos noventa. Recordando a retórica profissional vigente até à década de sessenta é possível alegar que o design se desenvolveu como uma atividade anónima, desinteressada da atribuição de títulos autorais. Era expectável que o designer se submetesse a uma vontade de um cliente ou sistema, neutralizando a sua personalidade e interpretação. O anonimato do autor foi uma realidade transversal a vários domínios artísticos. Os primeiros textos sagrados, cujas origens se perdem na história ancestral, carecem de reconhecimento autoral. O facto destes textos serem anónimos seria, segundo o filósofo Michel Focault57, um referente de autenticação. Michael Rock58 (1996) alude a esta ideia de Focault, ao proferir: “The very anonymity of the text served as a certain kind of authentication. The author's name was symbolic, rarely attributable to an individual” (p.1). O “Evangelho segundo Lucas” aglomera uma diversidade de textos da autoria de “Lucas”, alguém que deve ter existido realmente e escrito algumas partes, contudo, crê- se que a totalidade do livro sagrado contou com a colaboração de outros indivíduos anónimos. Já os textos científicos, aflorados no renascimento, usavam a identidade do autor com a intenção de validar ideias. É importante lembrar, que nesta época a ciência era subjetiva, longe da verdade e baseada na invenção de um cientista. Com a mudança do método científico, a identidade do autor deixou de ser requerida, pois as descobertas matemáticas e científicas transcreviam-se em fenómenos, ao invés de ideias individuais. Focault refere que no século XVIII existiu uma reversão da situação descrita: a literatura passou a ter uma autoria e a ciência tornou-se um produto de objetividade anónima. Desta forma, quando um texto transgredia certas estipulações sociais, ou se distanciava da verdade corrente, os autores eram punidos pelas suas considerações, e a ligação entre texto e autor estabelecia-se.

57 Michel Foucault foi um filósofo francês que se aproximou, num início de carreira, da antropologia social (estruturalismo), e teorizou sobre a relação entre o poder e o conhecimento, e as influências causadas por estas forças nas instituições. 58 Michael Rock é um designer gráfico americano, vencedor do prémio National Design Award.

132 Durante o século XX assistiu-se a uma obsessão no que diz respeito à autoria. Esta era capaz de estender a leitura de forma criativa, despertando no leitor uma afinidade com o criador do texto. O texto seminário dos escritores Wimsatt e Beardsley, “The Intentional Fallacy” (1946), corrobora a ideia do leitor poder conhecer o autor, ao apreender a sua obra através do processo de leitura. A década de setenta, período coincidente com o surgimento dos ensaios de Roland Barthes59 e Foucault, cuja crítica se focava no prestígio atribuído ao autor, marcou a génese da atividade reivindicatória no campo do design. Os designers começaram a requerer a autoria sobre as suas criações, pondo de parte a abordagem científica e técnica, portos nos quais se ancoraram até então. A questão da universalidade foi contestada por pensamentos pós-modernistas e outras teorias pós-estruturalistas que ressaltaram a instabilidade do exercício de atribuição de definições, escrutinando as múltiplas entidades, indivíduos e os diferentes significados das formas visuais. Nesta questão, a expressão própria e a criatividade individual era dissociada da influência e da mensagem do cliente, ou consumidor de um serviço de design. Michael Rock escreve o ensaio “Designer as Author” (1996)60 , inserido na edição de Primavera da revista “Eye Magazine”, no qual revela algumas ideias concernentes a este tema. Rock, acredita que muitas das características institucionais do design (sobretudo as respeitantes aos ideais de objetividade e racionalidade, centrados na grelha e impulsionados pelos designers suíços) sejam impedimentos a tentativas de expressão autoral. O facto de o designer assumir uma posição liderante na interpretação da mensagem de um trabalho proposto por um cliente, não obedece a uma hierarquia profissional de negócio, na qual existe uma remuneração para se transmitirem informações ou emoções específicas. Rock frisa, também, o caráter colaborativo presente no design, quer na relação com o cliente, ou num ambiente de atelier repleto de indivíduos criativos, no qual o exercício de creditar um resultado se torna extremamente difícil. Nas cogitações do designer e crítico Michael Bierut perceciona-se um

59 Roland Barthes foi um linguista, semiólogo e crítico francês, ligado ao movimento estruturalista. Nutriu um fascínio especial pela linguagem, e pela forma como esta podia ser aplicada. 60 Em português, “Designer como autor”.

133 prolongamento da ideia de Rock, face ao aspeto coadjuvante e cooperativo do design. Segundo Bierut existem dois modos dispositivos de história do design. Num deles o design é tido como um produto de sucessão de criadores visionários, no outro, um conjunto de forças anónimas que construíram e solidificaram uma história. O crítico afirma ainda, que a existência de um destes modos de registo, não anula o outro, sendo até possível que haja uma mistura ou alternância entre ambos: There seem to be two popular modes of recording design history: either as the product of a succession of visionary creators, as described above, or, more ambitiously perhaps, as the product of massive but essentially anonymous historical forces. Sometimes we get one, sometimes we ger the other, sometimes we get a mix of the two. But what we seldom get is the messy truth in between. (Michael Bierut, 2007, p.108) Retornando ao ensaio de Michael Rock, “Design as Author”, entende-se que a autoria é um tema popular, debatido sobretudo em círculos de design gráfico, localizados em territórios intermédios entre o design e arte. O autor refere que a arte sugere originalidade, e que definir o que se insere no espetro do design de autor pode ser um exercício suscetível de diferentes critérios. A autoria sugere uma reflexão sobre o processo de construção de design, tido frequentemente como uma profissão ligada à comunicação, na qual a concetualização e formulação de uma mensagem não constituem funções principais. E o que é afinal um autor? O termo tem vindo a sofrer alterações ao longo dos anos, estando, as definições mais antigas, relacionadas com a escrita. Autor, refere-se àquele que cria ou produz algo. Com o objetivo de encontrar características similares relativas ao conceito de autor, nas áreas do cinema e do design, Rock expõe no seu ensaio a estratégia definida pelo diretor e crítico de cinema François Truffaut em “La Politique des auters” (1955)61. Esta propunha-se a reconfigurar a teoria crítica do cinema, colocando o filme, um trabalho de natureza colaborativa, num novo paradigma, no qual este se assumiria como uma obra singular, com a autoria de um único indivíduo. O cineasta francês construiu a formulação teórica descrita, através de um conjunto de critérios que permitiriam a um crítico encontrar diretores com qualidades de auteurs. A atribuição do estatuto de obra de arte à

61 Em português, “A Política dos autores”.

134 obra cinematográfica, de acordo com este modelo, ditou que o diretor (até então parte do triângulo criativo: diretor, escritor e diretor de fotografia) seria o responsável pelo controlo final de todo o projeto: “In order to establish the film as a work of art, auteur theory required that the director — heretofore merely a third of the creative troika of director, writer and cinematographer — had the ultimate control of the entire project” (Michael Rock, 1996, p.4). “Auteur theory”, conceito desenvolvido pelos críticos franceses do jornal “Cahiers du cinema” (muitos dos quais tornaram-se diretores da Nouvelle Vague 62 francesa), apresentado pelo crítico de cinema Andrew Sarris, cimentava os seus critérios em três premissas, que poderiam converter um diretor num autor. Sarris propôs que o diretor deveria evidenciar competências técnicas e uma expressão criativa própria, coerentes ao longo do trabalho realizado e, acima de tudo, era expectável que demonstrasse, através dos projetos escolhidos e tratamentos cinematográficos, um significado e visão consistentes na sua obra. O fator mais curioso acerca da “auteur theory”, segundo Rock (1996), seria a semelhança entre teóricos cinematográficos e designers, na medida em que ambos procuram construir uma noção de autor: “(…) film theorists, like designers, had to construct the notion of the author” (p.4). A vantagem em atribuir ao diretor, o título de autor do filme, estava relacionada com a criação de uma possibilidade que elevasse os exemplares de entretenimento mediano ao patamar das artes visuais. Esta elevação, traria ao diretor, uma consideração e um crédito acrescidos em produções futuras. O paralelismo entre a sétima arte e o design manifesta-se na situação colaborativa intrínseca à construção de um produto, seja um cartaz ou um filme. Da mesma forma que existe um diretor principal, de acordo com o critério de auteur, também um designer poderá assumir a autoria de um trabalho cooperativo. No design gráfico, em específico, o domínio da técnica pode ser uma característica partilhada por vários praticantes, quando se adiciona a essa mestria uma qualidade de expressão estilística individual, reconhece- se alguma virtude e excelência no trabalho em questão. Estes atributos não fazem, porém, o auteur. Espera-se que os projetos verdadeiramente ambiciosos encontrem significados

62 A Nouvelle Vague é uma corrente cinematográfica francesa, proveniente dos anos cinquenta e sessenta. Os realizadores da Nouvelle Vague desprenderam-se das ideias convencionais de cinema, voltando-se para a experimentação das características visuais das obras, e narrativas inspiradas no ambiente social e político da época.

135 tão profundos quanto as longas metragens de Hitchcock, Bergman ou Tarantino. Caso estejam reunidas as três condições propostas na “author theory”, o cultivo e aplicação das mesmas deve ser coerente, de modo a que estas se enquadrem numa perspetiva crítica reconhecida: “In these cases the graphic auteur must both seek projects that fit his or her vision and then tackle a project from a specific, recognizable critical perspective” (Michael Rock, 1996, p.4). De que modo é que o filme se poderá equiparar a um cartaz? A dinâmica de apresentação cinematográfica permite uma visão mais alargada de conteúdo, comparativamente à maioria dos produtos de design gráfico, o que significa que para se reconhecer a marca visual de um designer, é necessário apreender-se um denso corpo de trabalho, no qual se possam distinguir padrões. A aplicação da “auteur theory”, na perspetiva de Rock, pode ser um tanto limitada quando enquadrada numa visão de autoria atual. Variantes como o livro de artista, a poesia concreta, a ilustração, as publicações de autor e as edições ativistas, têm sido protagonistas deste estudo e representam, também, paradigmas do design gráfico. “The application of auteur theory may be too limited an engine for our current image of design authorship but there are a variety of other ways to frame the issue, a number of paradigms on which we could base our practice: the artist book, concrete poetry, political activism, publishing, illustration” (Michael Rock, 1996, p.5). Conclui-se que, apesar de existirem estas variantes, nas quais o designer assume a orientação gráfica e conceptual da sua obra, os trabalhos de design como serviços prestados (a um cliente) prendem-se aos propósitos de quem os encomendou. O designer é capaz de ser autor através de variadíssimas formas, muitas delas confusas e complexas. A expressão “designer como autor” começa a proliferar apenas na segunda metade de 1990. Bruce Mau, um dos primeiros impulsionadores deste conceito, defendeu que seria necessário o design compreender o conteúdo, mergulhando na temática. Seria expectável que assumisse as várias etapas de pesquisa e maturação ideológica, até ao culminar do resultado final. Este processo seria importante tanto no caso de se trabalhar com um cliente, como numa hipótese de publicação independente. A conjetura do “designer como autor”, raiada em meados dos anos noventa, foi impulsionada pela revolução digital sentida no final do século XX. As novas tecnologias revolveram os fundamentos do design gráfico, encarregando os designers de tarefas

136 relativas à criação, produção e distribuição de conteúdos. Na década de sessenta a fotocomposição proliferava e os vários procedimentos de arranjo visual eram encadeados num circuito composto por designers (responsáveis pelo layout); compositores (criadores de esquemas tipográficos), responsáveis pela arte final (encarregados de organizar todos os elementos trabalhados pela equipa); operadores de câmara (profissionais de negativos fotográficos); montadores (incumbidos de reunir negativos fotográficos); e impressores (operadores de máquinas offset). Cerca de trinta anos depois, em 1990, o surgimento do desktop publishing63 viabilizou um caminho para o futuro, no qual todas as funções previamente descritas, começaram a ser executadas por uma única pessoa através do computador. Desta forma, economizaram-se bastantes recursos e intervenientes no processo. No livro “Design et al” (2013) é citada por José Bartolo a consideração do designer e teórico Andrew Blauvelt acerca da jornada concetual do design, debruçada nos seus efeitos, simbolismos e novas práticas: Like many things that emerged in the 1990s, it was highly linked to digital technologies, even inspired by its metaphors (e.g., social networking, open-source collaboration, interactivity), but not limited only to the world of zeroes and ones. This phase both follows and departs from twentieth-century experiments in form and content, which have traditionally defined the spheres of avant-garde practice. However, the new practices of relational design include performative, pragmatic, programmatic, process-oriented, open-ended, experiential and participatory elements. This new phase is preoccupied with design’s effects – extending beyond the design object and even its connotations and cultural symbolism (p.108). Blauvelt atesta que, apesar do design ter trilhado um percurso altamente tecnológico (sobretudo a partir da década de noventa), é semeada uma nova fase de design, inspirada nos experimentos avant-garde, concernentes à forma e ao conteúdo. O autor alude também às novas áreas de interesse que a esfera do design atraiu, e à preocupação demonstrada em estudar amplamente as conotações e o simbolismo cultural de um produto. O controlo gráfico e textual de um projeto é detido pelo designer, o derradeiro sobrevivente de uma cadeia de ofícios em decadência, efeito do “furacão” representado

63 Desktop publishing é um termo em inglês que se refere a um sistema editorial de publicações, que combina a utilização de um computador, programa de paginação e impressora.

137 pela revolução digital. O designer manteve-se até à atualidade tecnológica, talvez pela posição criativa e intelectual que ocupa, e que o aproxima do cliente. O acesso a meios tecnológicos absolutamente generalizados permitiu, que quaisquer indivíduos detentores de computador, adquirissem competências informáticas, até então dominadas somente por técnicos. A questão que se coloca, neste caso, é: será o designer indispensável? O arrebatamento tecnológico e o subsequente alastrar da educação técnica, não anulou, de forma alguma, a mais valia conceptual do designer. Esta profissão iniciou, então, uma jornada focada nos atributos verbais (e não apenas nos visuais), ambicionando adentrar-se numa vertente empresarial (desligando-se da artística). Note-se que a partir do início da década de setenta começaram a emergir termos, como design thinking 64 e design estratégico, ligados à parte ideológica e processual de uma prática de design centrada no conceito. Apesar do design ter ascendido a um estágio teórico e concetual elevado, tem-se vindo a reconhecer uma nova geração de designers bastante interessada na dimensão manual, ao invés da tecnológica. Talvez devido à relação de proximidade estabelecida entre o produtor e a obra, conferida pelos processos artesanais e o sentimento de liberdade presente na cultura do do-it-yourself 65, o designer retoma, independente, as rédeas dos processos de impressão, e encontra-se na autopublicação. Esta esteve sempre presente ao longo da história do design, defendida e valorizada sobretudo em núcleos de design editorial e ilustração. Esta forma de expressão, autêntica, incentiva o surgimento de projetos pessoais fora da rigidez do mercado convencional, e demonstra uma atitude face aos contextos, cultural, político e social, apoiando-se num sistema de intercâmbio ideológico. Porém, as motivações reivindicativas não são os únicos geradores de energia dos entusiastas da autopublicação; a angariação de satisfação pessoal, ou o perpetuar desta tendência, são também efeitos magnéticos. Verifica-se uma afluência progressiva de expositores em feiras de publicações independentes nas quais, os designers correspondem, muitas vezes, aos consumidores mais ávidos. Conclui-se que, independentemente de a possibilidade do designer ser ou não autor

64 Termo em inglês que se refere a uma forma de pensar sobre design, aplicada à resolução dos de problemas e desenvolvimento de produtos. É proposto durante o processo de design thinking, uma estruturação das etapas de trabalho, tais como: pesquisa, brainstorming, análise das ideias e prototipagem. 65 Termo em inglês que significa “faça você mesmo”. A cultura do do-it-yourself propõe que a própria pessoa realize tarefas sem recorrer a apoio técnico e especialistas.

138 numa circunstância de serviço prestado a um cliente, o universo da autopublicação é acessível. O domínio total de um trabalho, tanto a nível criativo como concetual conferem liberdade ao designer.

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140 Conclusão

Esta dissertação propõe uma reflexão à cerca do cariz simbólico do códice enquanto objeto de representação imaginativa ilimitada. Detentor de características formais algo místicas e planos abertos, o códice semeia interesse e curiosidade entre aqueles que se propõem eternizar formas de expressão própria. O livro é, então, um espaço temporal protegido no tempo, um habitante em qualquer realidade e uma forma aprazível de organização de matérias, que se desdobra e reinventa em formatos editoriais infinitos: A book is a received form endlessly reconceived to serve the vision and function of its new author, a form in which we all participate, reshaping its identity in the search four our own, experiencing its specificity in our desire for communitive exchange, working through its finitude in our need for a mortal expression of our own bid for immortality. (Johanna Drucker, 2004, pp.363-364) A citação transcrita comprova o caráter experimental e participativo do livro. Drucker alude ainda às operações intercomunicativas resultantes da experiência de conceção de um objeto, que, apesar de espelhar um resultado de expressão mortal, busca através da sua finitude um rasgo de imortalidade. A presente dissertação pretendeu abranger vários tipos de projetos editoriais, no campo da publicação independente e book art, focando as respetivas questões colocadas a estes meios de expressão criativa, que têm como base a forma do códice Conclui-se que o design desenvolveu, desde os seus primórdios, uma atividade edificadora, preocupada em harmonizar e organizar os elementos tipográficos e imagéticos da página. O prazer que residia em conquistar a boa legibilidade evoluiu para a ambição de se construírem espaços de expressão livre e individual, que desafiassem e expandissem os limites gráficos, conceptuais e formais do livro. Desta forma, crê-se que a arte seja também um convite aberto à participação das mais diversas áreas. A mescla de diferentes e numerosas vertentes criativas assemelha-se à composição de um manto constituído por retalhos, cosidos uns aos outros, no qual há sempre espaço para se adicionar mais matéria. Assim é o universo inventivo. No que concerne ao futuro das práticas editoriais, é expectável que os novos media sejam impulsionadores de inovação, ao invés de ditarem o fim da cultura da impressão. É certo que os livros e os artists’ books estão a ser mais produzidos que nunca, não

141 só devido ao valor tradicional que lhes está associado, mas também pela eficiência e pela evolução exponencial dos meios de reprodutibilidade. Consequentemente, os formatos impressos continuarão a ser explorados e dissecados, sem que se vislumbre qualquer vestígio de cansaço no exercício de teste aos limites da edição e às potencialidades do códice.

142 Bibliografia

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