Alpiarça, 1950. As Rotinas Da Sobrevivência E O Momento De Uma Bala
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ALPIARÇA, 1950. AS ROTINAS DA SOBREVIVÊNCIA E O MOMENTO DE UMA BALA Inês Fonseca Dulce Freire Paula Godinho O objectivo desta comunicação é confrontar as perspectivas que, dentio dos gmpos sociais dominantes e dos assalariados no Portugal mral salazarista, foram convocadas por um mesmo acontecimento, dando legi- biUdade às configurações de classe que, num tempo social determinado - o im'cio da década de 50 em Portugal - permitem identificar o interesse dos gmpos e as relações entie os níveis local e nacional, bem como a detecção de um instante de mudança nas relações das forças sociais. A investigação de que representa uma fase dos resultados, decorre há cerca de tires anos, envolve uma equipa interdisciplinar, dirigida pelos professores Jorge Crespo e Femando Rosas, e é composta pelas três investigadoras, inseridas num projecto financiado pela Fundação para a Ciência e a Tecnologia (programa PRAXIS XXI). Além de uma pesquisa documental^ os dados aqui apresentados constitiiem uma etapa entie o levantamento extensivo, levado a cabo por todo o país, e uma pesquisa de caracter intensivo, atendendo à pecuUaridade de um lugar e às caracterís ticas de um momento. • Consultámos os seguintes arquivos: dos Governos Civis, Distritais, do Ministério do Inte rior e PIDE/DGS Revista da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, n.° 12, Lisboa, Edições Colibri, 1998, pp. 157-172 Tempo, Temporalidades, Durações Alpiarça é um dos 19 concelhos integrados no Ribatejo que "ê uma região de transição, entre o litoral e o interior, entre o poliformismo da Estremadura e a estrutura, em todos os aspectos mais monótona do Alentejo"'^. Nos anos 50, a dimensão média da propriedade, as formas de a explorar e as culturas praticadas evidenciam esse caracter de tiansição. A maior parte das propriedades do distrito de Santarém têm menos de 1 hectare ou entre 1 e 5 hectares (contabiUzam-se com estas dimensões 56000 parcelas), existindo também 195 parcelas com 100 ou mais hecta res. Não sendo tão pequenas como no Minho ou nas Beiras as parcelas raramente atingem as dimensões das dos "campos do Sul". Para explorar a terra, recorria-se sobretudo ao arrendamento (60%); a conta própria e a parceria representam cerca de 20% cada. Nesta região domina a vinha. Os solos também produziam fmta, azeite e cereais, e apesar das tentativas do govemo do Estado Novo para expulsar as cepas das lezírias, o vinho continuou a ser, até à década de oitenta, o principal produto agrícola. Este concelho, o mais pequeno do Ribatejo, era o quarto maior produtor (depois de Almeirim, Cartaxo e Santarém). Nos anos 40, produzia à volta de 18 milhões de hectolitros de vinho: era "uma vinha pegada"^. No Distrito de Santarém, nos anos 40, os trabalhadores por conta de outiém representavam 62% da população activa agrícola, dez anos depois subira para 74%"*. Para a exploração destes campos, tomava-se indispen sável o recurso a grandes quantidades de mão-de-obra. Os trabalhadores mrais de algumas localidades ribatejanas chegaram ao Estado Novo com uma longa herança de insurgências. Em Alpiarça, as tradições de luta dos trabalhadores mrais remontam (de acordo com a memória oral veiculada por elementos deste gmpo) ao tempo da I República: "Desde logo os operários agrícolas começaram-se a destacar através de organizações de classe, portanto, tiveram logo uma Associação de Trabalhadores Rurais ali por volta de 1911. A primeira luta consiste na contestação do horário de trabalho de sol-a-sol. Donde 2 Orlando Ribeiro, Hermann Lautenssach, Suzanne Daveau, Geografia de Portugal, IV. A vida econômica e social. Edições João Sá da Costa, Lisboa, 1991; pp. 1258-1259 3 Antônio Augusto Antunes Júnior, Ribatejo Vinícola, Ministério da Economia, Direcção Geral dos Serviços Agrícolas, 1946, p. 183 4 Femando Rosas, O Estado Novo, História de Portugal, Vol.VII, José Mattoso (dir.), Editorial Estampa, 1994, pp. 36 e 43 158 Alpiarça, 1950. As Rotinas da Sobrevivência e o Momento de uma Bala emergiram, portanto, as reivirulicações [...] do sol alto, da hora de sol, da molhadura^ e, portanto, de coruiições que se salientavam das dos outros trabalhadores aqui à volta. [...]A consciência de classe dos operá rios agrícolas foi tomando consistência. E, portanto, havia embora sem uma organização legal de defesa, os operários agrícolas de uma forma resistente iam, consoante as possibilidades, exigindo. "^ Em 1934, é extinta a Associação dos Trabalhadores Rurais (sendo substitiiída por uma Delegação do Instituto Nacional do Trabalho e Pre vidência). Muitos dos dirigentes da Associação são absorvidos pelo novo regime: "Os próprios agrários tiveram o cuidado (porque foram sempre muito habilidosos) de procurar os melhores quadros entre os campone ses, aqueles que eram bons trabalhadores e que tinham capacidade de orientação, pagando-lhes bem, para traírem a sua própria classe. [...JTemos muitos desses trabalhadores que passaram depois, para capatazes ou feitores das casas agrícolas. Quer dizer, deixaram a sua própria classe, combatendo depois a sua própria classe pagos pelos lavradores, pelos agrários. ""^ As lutas laborais que ocorreram durante a I República, perpetuam-se pelo Estado Novo. Os tiabalhadores agrícolas exigem, essencialmente, melhores salários e melhores condições de trabalho. Levam a cabo as suas reivindicações nas praças de joma, onde já então era habitual a pre sença e intervenção da GNR, o que fazia com que muitas destas lutas terminassem em confrontos entre os assalariados e os elementos desta força policial. A animosidade existente entie estes dois gmpos está patente, não só nas acções de desafio e insurgência por parte de uns e nas medidas repressivas e violentas por parte de outios, mas também nos dis cursos produzidos. Trata-se de gmpos inimigos: "Até a GNR, quando vinha para cá, já vinha preparada para isso: que a gente não éramos seres humanos, a gente éramos pessoas que não merecíamos conside ração de ninguém. "^ 5 A molhadura consistia no pagamento em gêneros: 1 litro de vinho (de 12.°) por dia. Depois desta conquista, os patrões tentaram recuar, dando vinho de pior qualidade aos trabalhadores. Estes protestavam entornando o vinho para o chão no momento em que o recebiam, no campo, quando andavam a tabalhar 6 Entrevista com Antônio Calarrão, Alpiarça, 12 de Setembro de 98 (cassete n.° 58, lado b) ^ Entrevista com Álvaro Brasileiro, Alpiarça, 23 de Agosto de 98 (cassete n.° 61, lado a) S Entrevista com Antônio Malaquias Abalada, 12 de Setembro de 98 (cassete n.° 59, lado b) 159 Tempo, Temporalidades, Durações São vários os episódios, desde o início do século (1919, 1928, 1934, 1936, etc), em que os revoltosos desarmaram os guardas ou em que estes prenderam, feriram ou mataram alguns dos manifestantes. Em 1940 / 41 (a seguir à reorganização do PCP), surge um comitê local do Partido Comunista Português em Alpiarça. As lutas e reivindica ções passam a ser conduzidas por esta organização e assumem, por vezes, uma natureza política para além do seu caracter apenas laborai. A persistência e regularidade com que as acções de luta ocorriam em Alpiarça, durante o Estado Novo, valeram-lhe a ímpar distinção (entie as terras vizinhas) da criação, em 1965, de um posto da PIDE, que dependia directamente do Comando do Entroncamento, até 1969, altura em que foi transferido para a cidade de Santarém, até então desprovida de seme lhante organização. As lutas desenvolvidas pelos trabalhadores de Alpiarça, não são, substancialmente diferentes das protagonizadas pelos congêneres do Alentejo. Quanto às estiatégias de resistência e de agitação, este concelho integra-se nos "campos do Sul", caracterizados por Pacheco Pereira. Aqui, entre as décadas de 40 e 60, "os rurais lutam pelo emprego, pelo salário, pelo horário de trabalho, por melhor comida, por uma condição de dignidade do trabalhador, perante o lavrador e as autoridades"^. Nestes 20 anos, a agitação é recorrente: "Todos os anos há lutas maiores ou menores, ou incidentes de amplitude geográfica ou de niÁmero de par ticipantes diversos, mas que se sucedem periodicamente, ano a ano, sem bruscas alterações no seu ciclo sazonal (...), há uma sucessão de peque nos incidentes locais cuja envergadura varia de ano para ano, ou em ciclos de vários anos, que quase sempre não assumem uma grande amplitude, mas que também nunca desaparecem em absoluto"^^. Nos finais da década de 40, parece fechar-se uma fase de fluxo. Os anos 1950-51 caracterizam-se pelo refluxo dos conflitos, num momento em que aumenta a repressão govemamental e são desmanteladas as orga nizações locais do PCP. Por outro lado, as lutas nas praças de joma per- 9 José Pacheco Pereira, Conflitos sociais nos campos do Sul, Publicações Europa-América, Lisboa, 1982, p. 126. Ainda segundo este autor, as grandes diferenças verificadas neste período devem-se a quatro factores: "uma maior continuidade dos conflitos ao longo do tempo, o aparecimento de novas formas organizativas e novos terrenos de actuação, a influência do PCP e. em conseqüência disso, uma mediação política mais acentuada dos "interesses" dos trabalhadores rurais, através da formulação de um programa de "reforma agrária " ". 10 Idem, Ibidem, pp. 126-127 160 Alpiarça, 1950. As Rotinas da Sobrevivência e o Momento de uma Bala dem importância em detiimento de formas mais activas de garantir o emprego, a luta pelo salário perde significado e a exigência de emprego tomara-se mais premente. É neste contexto que se insere o episódio que analisamos. Corria o ano de 1950. A 4 de Junho, regressado de um dia de tiaba- Iho no campo, apesar de ser domingo, Alfredo Dias Lima está, com outros trabalhadores mrais, no sítio errado no momento errado. Será assim, apesar do espaço ser central na povoação que habitava, a vila de Alpiarça, no distiito de Santarém. Não se lhe conhecem alinhamentos políticos anteriores, a memória famiUar não encaminha na senda do anti- -salazarismo miUtante que marcava outias Unhas genealôgicas locais. Durante a praça de joma'^ as mulheres reivindicavam melhores condi ções de trabalho e aumento de salário, para as mondas do arroz.