RaízesRevista de Ciências Sociais e Econômicas CDD - 330 - CDU -33843 (05) - ISSN 0102 - 552X

Revista de Ciências Sociais e Econômicas v.33, n.1, jan-jun /2013

Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais

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Raízes: Revista de Ciências Sociais e Econômicas/Universidade Federal de Campina Grande, Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais - v.33, n.1, jan-jun /2013 - . - Campina Grande: UFCG/PPGCS, 1982 - . v. Semestral Resumos em português, abstracts in Ebglis ISSN 0102-552X ISSN eletrônico 23588705

1. Sociologia - Periódico. 2. Sociologia rural - Periódico.3.Economia - Periódico.I. Universidade Federal de Campina Grande. Programa de Pós-Graduação em Sociologia. CDD 330 CDU 338-43 (05) SUMÁRIO

Editorial...... 05

Artigos Técnicos-Científicos...... 08

Elizabeth Christina de Andrade Lima “A Herança Bendita”: o poeta, a festa e a instituição do poder da família Cunha Lima...... 09

Rejane Vasconcelos Accioly Carvalho A disputa pelo governo do em 2010: consolidação de um ciclo político pós tassismo?..... 34

José Adilson Filho Família, tradição e poder na transversal da modernidade brasileira: o caso das famílias Mendonça e Moura da cidade de Belo Jardim – PE...... 53

Maria Ferreira Sociabilidade e poder: famílias tradicionais e práticas políticas no sertão do médio São Francisco...... 68

João Emanuel Evangelista e Gustavo César de Macêdo Ribeiro Democracia eleitoral e transformismo político: o caso da dominação política no ...... 85

Irlys Alencar Firmo Barreira Conselhos de fato e conselhos no papel - poderes locais e práticas de participação...... 105

José Romildo Souza Lemos Júnior O poder local entre práticas e representações: possibilidades de construção de uma história cultural do político...... 119

Maria Lucinete Fortunato e Mariana Moreira Neto Tramas e ardis do jogo político: entre microfones, cores e fugidias promessas...... 136

José Marciano Monteiro Cultura política, violência simbólica e dominação no nordeste semiárido...... 149 Raízes v.33, n.1, jan-jun /2013

EDITORIAL Raízes v.33, n.1, jan-jun /2013

EDITORIAL

Este número da Revista Raízes dossiê “Poder local, mandonismo, família e política”,organizado pela Professora Elizabeth Christina de Andrade Lima (PPGCS/UFCG), reúne um conjunto de trabalhos articulados por temas de grande relevância no campo das ciências sociais em geral, sociologia, antropologia e ciência política e, da história de modo particular. Informados pela pesquisa empírica, os textos revisitam os conceitos de poder local, mandonismo, jogos e disputas de famílias no cenário performatizado pela espetacularização da política. Os comportamentos polí- ticos são vistos e analisados a partir de teias e tramas que envolvem dimensões diversas da vida social, atravessadas por elementos da cultura política tradicional, ressignificados e contornados por expressões da política moderna, sempre misturando – representações sociais, vida comunitária, família e redes sociais, mídia, festividades, capital político e carisma. Apesar de diversos os universos empíricos, o enfoque da participação política e da descrição críti- ca e minuciosa dos casos tratados dá coerência aos artigos aqui compelidos s: todos falam de um lugar – o Nordeste do Brasil, onde o passado da política local, marcado pelo mandonismo, pelo apelo ao carisma e pelos jogos que ali- mentam os interesses de família, longe de estarem adormecidos reacendem as lealdades familiares e as vinculações partidárias, atualizando compromissos e práticas que dão significado ao poder local.

Dos artigos que integram o dossiê destacam-se, A Herança Bendita”: o poeta, a festa e a instituição do poder da família Cunha Lima, de autoria de Elizabeth Christina de Andrade Lima, que pontua a instituição e consolidação do grupo Cunha Lima no Estado da Paraíba, e especialmente na cidade de Campina Grande; consolidação essa simbo- licamente representada e fortalecida pela Festa do Maior São João do Mundo. O artigo problematiza a instituição da rede de poder do grupo “Cunha Lima” através da biografia política do Poeta Ronaldo José da Cunha Lima.

Na sequência, temos o artigo A disputa pelo governo do Ceará em 2010: consolidação de um ciclo político pós tassismo?, de Rejane Vasconcelos Accioly Carvalho, cujo objetivo é analisar a noção de Ciclos Políticos, a partir do processo de disputa eleitoral no ano de 2010, período em que se percebe a forte vinculação entre a mídia e a esfera política, e as afetações desta nas disputas eleitorais instituindo temporalidades políticas com características peculiares.

O artigo de José Adilson Filho, Família, tradição e poder na transversal da modernidade brasileira: o caso das famí- lias Mendonça e Moura da cidade de Belo Jardim – PE, propõe uma análise do poder local, feita sob a perspectiva do Tempo Presente, tempo esse encruzilhado entre a experiência do autor, a observação dos fatos e a sua narrativa. A trama analisada é tecida no município de Belo Jardim – PE, localizado no agreste central, onde há mais de quatro décadas a cena política e econômica é protagonizada pelas famílias Mendonça, Galvão e Moura.

Sociabilidade e poder: famílias tradicionais e práticas políticas no sertão do médio São Francisco, artigo escrito por

Raízes, v.33, n.1, jan-jun /2013 Maria Ferreira, busca refletir sobre as dinâmicas que possibilitaram a permanência de latifundiários e de latifúndios no Sertão do sub-médio São Francisco. Seguindo a trajetória social de quatro proprietários de terras em suas redes de relações, constata-se que processos de sociabilidade experimentados por algumas famílias reforça a condição de abastadas, as características de pertencimento a um grupo social, permitindo que estes transitem em lugares de poder, preservando o status quo, ainda que em situações adversas.

A discussão instigante apresentada no artigo Democracia eleitoral e transformismo político: o caso da dominação política no Rio Grande do Norte, escrito por João Emanuel Evangelista e Gustavo César de Macêdo Ribeiro, ressalta os contornos assumidos pelas disputas político-eleitorais no Rio Grande do Nor- te a partir da polarização de grupos clânico-oligarquícos, liderados pelas famílias Alves e Maia, que nos anos 2000, reaparece num típico caso de transformismo político representado na personagem de Wilma de Faria (PSB), originária dos grupos políticos tradicionais, e que desponta no cenário político com uma vitória para o governo do estado.

O artigo de autoria de Irlys Alencar Firmo Barreira, Conselhos de fato e conselhos no papel - poderes locais e praticas de participação, convida os leitores para o debate sobre o tema da participação, cuja face moderna pressupõe a existência de conselhos como instrumentos reguladores de políticas públicas. A análi- se empírica se baseia em diferentes experiências de articulação entre entidades associativas e poderes locais em municípios cearenses (Sobral e Santana do Acaraú).

O poder local entre práticas e representações: possibilidades de construção de uma história cultural do po- lítico, artigo de autoria de José Romildo Souza Lemos Júnior, busca revisitar, a partir de esforço de análise crítica, a bibliografia que trata do poder local. O esforço de reflexão se dirige para pesquisas relacionadas ao poder político no campo da história cultural, tomando como referência as relações entre poder local e representações na construção de uma história cultural do político.

Com as lentes voltadas para o tema do Poder Local, o artigo de Maria Lucinete Fortunato e Mariana Mo- reira Neto busca contribuir com a discussão dos jogos da política no Alto Sertão Paraibano, considerando as eleições de 2012 no município de Cajazeiras - PB. Tramas e ardis do jogo político: entre microfones, cores e fugidias promessas, analisa as relações de poder em municípios do Alto Sertão Paraibano, no que concerne ao exercício do poder político local, relações estas historicamente analisadas como relações “tra- dicionais” ou de “apadrinhamento” e dominação.

O artigo intitulado Cultura política, violência simbólica e dominação no nordeste semiárido, escrito por José Marciano Monteiro, adota uma perspectiva relacional para analisar a cultura política local e as prá- ticas de dominação exercidas pela família Ernesto-Rêgo, no município de Queimadas (PB). A reflexão problematizou os elementos que propiciaram a continuidade e a reprodução do poder no interior do gru- po familiar, a partir das seguintes questões: a partir de quais práticas se instituiu tal dominação? Quais as estratégias são ou foram implementadas para realizar as ações políticas locais? O estilo e conteúdo adotados pelos diferentes autores permitirá ao leitor analisar os universos políticos construídos, os processos que personalizam a política, o poder das famílias e a perpetuidade das redes que conformam ainda o mandonismo. A todos uma boa leitura! Raízes v.33, n.1, jan-jun /2013

Poder local, Mandonismo, Família e Política (Elizabeth Christina de Andrade Lima Org.) ARTIGOS TÉCNICO-CIENTÍFICOS Raízes v.33, n.1, jan-jun /2013

A HERANÇA BENDITA: O POETA, A FESTA E A INSTITUIÇÃO DO PODER DA FAMÍLIA CUNHA LIMA NA PARAÍBA

Elizabeth Christina de Andrade Lima

RESUMO

A continuidade do poder através do nome de família e da disputa entre grupos clânico-oligárquicos tem sido uma constante na cultura política brasileira. Neste artigo analisaremos a instituição e a consolidação do grupo Cunha Lima no Estado da Paraíba, e especialmente na cidade de Campina Grande, por ser esta cidade o principal reduto eleitoral do grupo e de seus aliados. Investigamos a instituição da rede de poder do grupo “Cunha Lima” através da biografia política de Ronaldo José da Cunha Lima. Este é aclamado e festejado como o “poeta Ronaldo” e considerado o “pai’ do “Maior São João do Mundo”, festa junina que dura 30 dias ininterruptos, que acontece no município de Campina Grande, no agreste da Paraíba. Nossa intenção aqui é pensar a festa na política e a política na festa, vendo essa articulação como uma estratégia de construção do poder da referida família e grupo político na cidade e região.

Palavras-chave: Familismo; Grupo Político; Festa, Oligarquias

THE BLESSED HERITAGE: THE POET, THE PARTY AND THE POWER ESTABLISHMENT OF CUNHA LIMA FAMILY IN PARAIBA STATE

ABSTRACT

The continuity of power through the family name and the dispute between clan-oligarchic groups has been a constant in the Brazilian political culture. In this article we analyze the establishment and consolidation of the Cunha Lima group in Paraíba State, and especially in the city of Campina Grande, because this city is the main constituency of the group and its allies. We investigate the power establishment of the Cunha Lima group through the political biography of Ronaldo José da Cunha Lima. He is acclaimed and feted as the “poet Ronaldo” and considered the “father” of the “Maior São João do Mundo”, a June party that lasts 30 uninterrupted days in Campina Grande. Is our intention here thinking about the party in the politics and the politics in the party, regarding the articulation between both elements as a power building strategy of the referred family and political group in Campina Grande City and region.

Key words: Familism; Political Group; Party; Oligarchies

Professora do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da Universidade Federal de Campina Grande (PPGCS/UFCG). E-mail: [email protected].

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O POETA BOÊMIO Na trajetória da política paraibana, um grupo político merece destaque por sua lon- gevidade, carisma e continuidade no poder: o “Hoje, meu filho, você anuncia as Manche- chamado “Grupo Cunha Lima”. Tudo se inicia tes do dia, amanhã você será Manchete!”! com o maior e mais importante representante do grupo, Ronaldo José da Cunha Lima.3 Fi- Não é nenhuma novidade o poder que gura paradigmática, marcada pela simplicidade os nomes de família e grupos políticos possuem e proximidade com o povo; detentor de dotes no Brasil, na região Nordeste e, particularmen- inusitados para um político e para carreira po- te, em nosso caso de estudo, no Estado da Pa- lítica: o dom da poesia de improviso e a práti- raíba. O que se observa é o revezamento do po- ca boêmia. Entra no imaginário coletivo como der entre grupos políticos e suas linhagens fa- “Ronaldo coisa linda”. Tais atributos fizeram 2 miliares. dele um campeão de votos e detentor de diver- Wright Mills, sociólogo norte-america- sos cargos políticos, à exceção da Presidência no, em seu livro “A Elite do Poder”, assinala que: do Brasil, cargo para o qual nunca se candida- tou; como também conseguiu eleger seu filho, Em toda cidade média ou pequena da Amé- Cássio Cunha Lima e outros tantos parentes e rica um grupo superior de famílias paira aci- prepostos em variados cargos. O escritor Bráu- ma da classe média e sobre a massa de as- lio Tavares assim definiu a veia poética do polí- salariados, funcionários, camponeses e de- tico Ronaldo: sempregados. E que tais famílias possuem a maior parte do que existe localmente para O que mais marcou as campanhas de Ronal- ser possuído. Seus nomes e retratos são im- do, e que vive até hoje na memória dos que pressos com frequência nos jornais, e na rea- as assistiram, foram seus discursos em re- lidade, os jornais são deles como deles são as dondilha, naqueles versos simples de rimas duas estações de rádio. Também são donos exatas que o povo reconhece tão pronta- da maioria das lojas comerciais e das pou- mente, porque faz parte de nossa memória cas fábricas existentes (MILLS, 1982, p.41). cultural. (Jornal da Paraíba, 08/07/2012).

1 Frase atribuída a Dona Nenzinha Cunha Lima, mãe de Ronaldo Cunha Lima, quando ele ainda era um jovem e vendia jornais, gritando suas Manchetes. OLIVEIRA, Harrison. Ronaldo, os degraus da glória. Traços biográficos do candidato Ronaldo Cunha Lima. Companhia Brasileira de Artes Gráficas. s/d, p. 15. 2 Para aprofundar o estudo da disputa pelo poder entre grupos políticos e as chamadas “dinastias familiares”, consultar: Lewin, (1993), Gurjão (1994), Lemenhe (1995), Rêgo (2008) e Adilson Filho (2009). 3 “Ronaldo José da Cunha Lima nasceu no dia 18 de março de 1936, na cidade Guarabira, Estado da Paraíba. Filho de Demóste- nes da Cunha Lima e Francisca Bandeira da Cunha Lima (D. Nezinha). Estudou no Colégio Pio XI e no Colégio Estadual da Pra- ta, de Campina Grande, bacharelando-se em Ciências Jurídicas pela Faculdade de Direito da Universidade Federal da Paraíba – UFPB; é casado com Maria da Glória Rodrigues da Cunha Lima e tem quatro filhos: Ronaldo Filho, Cássio, Glauce e Savigny. En- trou na vida política na década de 1960, como vereador pelo PTB (1959-1963), em Campina Grande. Foi eleito Deputado Esta- dual, pelo PTB, para o mandato de 1963-1967; reeleito em 1967-1969. Em 1969 se elegeu prefeito de Campina Grande, perma- necendo no cargo por apenas 38 dias por ter o seu mandato cassado, assumindo no seu lugar, o interventor Manoel Paz de Lima. Após a destituição do cargo, fixa residência no . Na capital fluminense trabalha como advogado e em 1982, retor- na à Campina Grande, ano que se candidata a prefeitura de Campina Grande, pelo MDB; o substitui, o seu filho, Cássio Cunha Lima, em 1989. Tornou-se governador da Paraíba pelo PMDB, no período de 1991-1994. Foi ainda eleito para o Senado da Re- pública, no período de 1995-2002 e em 2003, assume uma cadeira na Câmara Federal desta feita, pelo PSDB e se reelege no ano de 2006”. (Pereira Filho, 2009, p. 105) 11

Com uma tremenda capacidade de rein- de local; espraiou-se a ideia de que tal gesto se- ventar-se o tempo inteiro, sem deixar de lado ria uma última homenagem à memória de Ro- as marcas tradicionais que o caracterizaram co- naldo e a todos os seus feitos como político. mo um vencedor na política, Ronaldo na ver- Merece destaque o fato de que durante a cam- dade só sai de cena, pelo menos em termos físi- panha eleitoral surgiu todo um “circuito de cos, com a sua morte, em 07 de julho de 2012, boatos” (Barreira, 1998) que afirmavam ter si- cujos funerais, igualmente, foram um sucesso, do “a última vontade de Ronaldo que Rome- um verdadeiro espetáculo de “reatualização do ro fosse o candidato a prefeitura de Campina”; mito”, marcado pela comoção popular e por ou ainda que ele (Ronaldo) “teria pedido a seu algumas centenas de manifestações públicas de filho, Ronaldo Filho, para compor chapa com amor e admiração. Romero”; chegou-se ainda a afirmar-se que Ro- O último adeus a Ronaldo, não sem naldo teria gravado um vídeo, fazendo todos coincidência, ocorreu na Pirâmide do Parque esses pedidos e que tal vídeo seria exibido no do Povo. A emblemática em torno de Ronal- guia eleitoral de Romero. Tal fato não se deu. do Cunha Lima é tão forte que o seu funeral foi A repercussão em torno do uso da ima- realizado por um dia e uma noite, que, ainda gem de Ronaldo, após a sua morte, e a neces- enfeitada com motivos juninos, recebeu o seu sidade dos eleitores lhe prestarem a última ho- corpo para o adeus “ao poeta”. Tal espaço que, menagem foram tão alardeadas na cidade, que há 29 anos, ele mesmo construiu e prometeu a irmã de uma das candidatas à prefeitura da ci- inaugurar a festa junina batizada de o “Maior dade, Marta Medeiros, escreveu, no dia seguin- São João do Mundo”4. Ao ser velado no Par- te ao resultado das eleições, em sua página no que do Povo, no dia 07 de julho de 2012, pa- facebook, um discurso bastante ressentido na ra o último adeus, sela-se uma espécie de “fide- defesa de sua irmã, a candidata Tatiana Medei- lidade eterna” para com “o poeta”, de tal sorte ros, do PMDB, que a admirava “por sua garra e que sua memória e sentimento de gratidão por competência, que enfrentou com destemor um parte dos eleitores campinenses, muito possi- grupo sem escrúpulos, onde mais valem os fins velmente ajudaram nas vitórias dos candidatos que os meios utilizados; um grupo que se utili- a prefeito, Romero Rodrigues, sobrinho de sua zou da própria morte de seu patriarca para ala- mulher, Glória Cunha Lima, e a vice-prefeito vancar a campanha de seu candidato.”5 de seu filho, Ronaldo José da Cunha Lima Fi- Não sem coincidência, no ano seguin- lho, a prefeitura da cidade de Campina Gran- te a morte de Ronaldo, no ano de 2013, e já de, nas Eleições 2012, desbancando as candida- com a prefeitura nas mãos, o agora prefeito e turas de dois fortes grupos políticos representa- vice-prefeito Romero Rodrigues e Ronaldo Fi- dos pelas famílias Vital do Rêgo e Ribeiro. lho se preparam para realizar mais uma edição De certa maneira o voto dado a Romero de trinta dias da festa do “Maior São João do ganhou um significado muito forte na socieda Mundo” e novamente, de maneira astuta, a fes-

4 . Para maiores informações sobre a construção da festa do Maior São João do Mundo, consultar o livro: “A Fábrica dos Sonhos”: A invenção da Festa Junina no espaço urbano. 2ª edição, Campina Grande, EDUFCG, 2010, de nossa autoria. 5 .http://www.apalavraonline.com.br/index.php?option=com_content&view=category&layout=blog&id=2&Itemid=128&id_ noticia=3287. Acesso em 29/10/2012. 12

ta tem início no dia 07 de junho e se prolonga ta do “Maior São João do Mundo”, fortalecem até o dia 07 de julho. No dia 07 de julho se co- a construção mítica do citado político. memorou também um ano da morte de Ronal- Foi também no ano de 2013 que a fes- do Cunha Lima e seu filho, o vice-prefeito, Ro- ta do “Maior São João do Mundo” comemorou naldo Filho, ocupa o palco do Parque do Povo seus trinta anos de existência. Na tentativa de para fazer um discurso emocionado para lem- reconstituir os primeiros anos de existência do brar a morte do pai e o primeiro aniversário de “Maior São João do Mundo” e da vida pública sua morte. de Ronaldo, retornamos ao ano de 1983, quan- No Paraibaonline.com. br, no dia 08 de ju- do assume a prefeitura da cidade aquele que é nho de 2013, foi possível ler a seguinte notícia: considerado o “pai” do evento junino. O intento deste artigo é, portanto, apre- O prefeito em exercício de Campina Gran- sentar como essa festa se institui como um me- de, Ronaldo Cunha Lima Filho, encerrou os ga evento junino durante a administração de festejos do Maior São João do Mundo com Ronaldo José da Cunha Lima (no período de um discurso emocionado. Ele disse que “a 1983-1988) para demonstrar os vários usos e festa realizada em 30 dias mostrou para a apropriações da festa utilizadas pelo seu idea- Paraíba, para o Brasil e para o Mundo uma lizador e prepostos. Em outras palavras, busca- festa de paz, alegria e que vai deixar sauda- mos analisar os vários usos e apropriações da des no coração da população.” O prefeito ainda lembrou que “a data marca um ano chamada “tradição da festa junina”, entre eles, do falecimento do poeta Ronaldo Cunha todo um processo de manipulação tática e es- Lima.” “Estou tomado por uma forte emo- tratégica do chamado “Grupo Cunha Lima”, ção por estar neste palco encerrando o São na busca da construção de seus perfis políti- João criado pelo meu pai, o poeta Ronal- cos mediados pelo evento. Buscamos demons- do Cunha Lima. Faz um ano que ele partiu, trar que um dos principais usos da festa junina mas recebeu o carinho do povo na Pirâmi- em Campina Grande é o de possibilitar a me- de que ele construiu. As palavras dele mar- tamorfose do político em festa; a figura do po- caram aquele momento: ‘Pra que este meu lítico é construída e mediada pela festa por ele gesto marque o nascer de um tempo novo, o povo pediu o parque e eu fiz o Parque pro gestada, de maneira que não há mais como se- Povo’” – finalizou Ronaldinho. parar o evento de seu idealizador, e tal “suave jogo político” consubstancia-se em um excelen- No discurso acima descrito fica clara te palco de disputas e definição do poder políti- a tentativa de fazer com que Ronaldo não se- co. Um teatro no qual se encenam as táticas do ja esquecido. Ele deve continuar presente co- fazer político e a consequente possibilidade de mo uma fantasmagoria no imaginário e nas re- uso da política como um espetáculo. presentações dos citadinos como uma presen- Buscamos construir uma série de inter- ça e gratidão eternas. então afirmar cessões entre poder, festa e política. A Antro- que o espetáculo do funeral de Ronaldo, alia- pologia, ao voltar o seu “olhar” para as socie- do a sua presença em forma de discursos cons- dades contemporâneas e para o espaço urba- tantes, proferidos durante os trinta dias de fes- no, redescobre essa importante área da cultura e passa a tomar a política, sobretudo, como um 13 processo ritual. Entre os antropólogos brasi- Para propor algumas reflexões da rela- leiros, não foi diferente; principalmente a par- ção entre a festa e a política e os usos desta tir da década de 90, do século passado, um es- relação simbiótica e ambígua por parte da fa- forço foi direcionado a releitura da “política”, mília Cunha Lima, consultamos, especialmen- buscando analisar as atividades políticas den- te, os arquivos do Jornal da Paraíba, na déca- tro do Estado moderno-contemporâneo, evi- da de 80, durante o mês de junho, além da pes- tando limitá-las às organizações partidárias e às quisa aos arquivos do Jornal Folha Junina, notí- instituições, sendo estes objetos de investigação cias das décadas seguintes, veiculadas pelos jor- privilegiados da Ciência Política. Tais estudos nais locais, bem como obras escritas pelo poeta atentaram para a necessidade de interrogar as Ronaldo e obras que tiveram o referido políti- matizes do pensamento político moderno, bem co como tema principal. como as relações nele tecidas entre conceitos, representações e imaginários. Esta nova perspectiva de estudos de- 1. A FESTA NA POLÍTICA nominada de Antropologia da Política6 surge apontando para uma amplitude na concepção Iniciamos a nossa reflexão indagando: o do termo política, colocando-a mais próxima que a festa como dimensão política pode enun- do vivido e de temas e aspectos diversos, a par- ciar? A festa tem congregado vários sentidos. tir da percepção de que há uma multiplicida- Em sua relação com a política ela tem servido, de de questões que envolvem a prática políti- por exemplo, para a reprodução da legitimação ca e suas representações. A análise das práticas das relações de poder dos políticos locais. Jac- políticas é realizada a partir dos discursos e das ques Heers, ao atentar para a relação estratégi- ações dos atores sociais, e não exclusivamente a ca entre a festa e a política, assevera que a fes- partir das instituições sociais. A política é toma- ta se apresenta como reflexo de uma sociedade da enquanto representação, visando contribuir e suas intenções políticas. Para o autor: para alargar a sua concepção para além da esfe- ra institucional/administrativa e contemplar, de A festa pública exalta os poderes, a festa forma muito clara, a ação de outros atores co- privada reforça as clientelas e as audiências letivos até então praticamente ignorados. sociais. Não são nem jogos nem meros es- Optamos por pensar o lugar da política petáculos, mas sim forças que pesam muito nos equilíbrios ou nas hierarquias, elemen- em suas práticas cotidianas, destacando assim o tos decisivos para forjar ou conservar repu- “lugar” da interseção política e cultura, reinsti- tações (HEERS, 1987, p.18). tuindo o peso explicativo das tradições políti- cas e seus rituais. Como bem sinalizou Geertz A festa parece servir como um excelen- (2001), o antropólogo pretende uma busca in- te instrumento de comunicação entre os políti- terpretativa e, ao fazê-lo, quer, ainda, encon- cos ou seus eleitores; analisar a imagem da polí- trar significados. tica tendo por referência a festa – como um es- 6 Sobre tal problemática consultar Kuschinir (2007), Palmeira e Golman (1996), Palmeira e Heredia (2010) e Barreira e Palmeira (1998) Palmeira e Barreira (2006), Mendonça (2002) e Lima (2010). 14

paço privilegiado de entrecruzamento de subje- mordial da política local manifesta-se não nos tivações e devires que apontam para uma nova partidos, mas nos políticos, contradizendo o forma de política é algo instigante, porque tal eixo definidor das análises e da teoria política atitude pode vir a se constituir em um exercício modernas, mostrando ser necessária uma reo- de reavaliação do que é o próprio “fazer polí- rientação do modo de compreender a política tico”. É preciso, pois, considerar o que a festa local e a política no Brasil. Em nosso estudo ob- como dimensão política enuncia, em que uni- servamos que o lugar do partido é ocupado pe- versos ela toca, que aspectos das singularida- lo “bom político”, e o bom político é, dentre des subjetivas ela exacerba. Em outras palavras, outros atributos, aquele que faz festa para o po- cremos ser necessário desconstruir “o que está vo, aquele que frequenta a festa com o povo. A ‘dado’ para mostrar as fissuras saturadas, para festa assim conforma um espaço político con- demonstrar que o que se considera um discurso creto onde a política é vivida e percebida como privilegiado não passa de mera construção que relação particular entre pessoas. encobre o poder e o interesse pessoais” (ARO- Entre os simpatizantes e eleitores dos NOWITZ, 1992, p. 165). Ou seja, a festa co- políticos que congregam o chamado “Gru- mo dimensão política constitui uma existência po Cunha Lima”, Ronaldo José da Cunha Li- coletiva particular; ela não é tão somente: ma representa uma espécie de ponto de parti- da, de chefia das chefias. Ronaldo, líder caris- (...) a multidão numericamente expressiva mático, soube desde sempre fazer ótimo uso de configurada pela assistência de um comício – ainda que este frequentemente tome-lhe de sua imagem pública; aclamado como o “polí- empréstimo a feição; não constitui um ato tico poeta” sempre fez questão de estar muito político com fim determinado externamen- próximo do povo, tornando-se aquela pessoa te, como uma passeata. A festa, lugar do lú- sem orgulho, que conhecia a todos pelo nome, dico, domínio social auto-referenciado, di- o boêmio que entrava noite adentro nos bares mensiona um espaço político presentificado campinenses fazendo versos e a todos tratando e celebrado como união primordial e neces- com igual simpatia. sária entre pessoas. (CHAVES, 2003, p.66) Conforme Mello (2008), que pesquisou Nesses termos, sobre a história do PMDB na Paraíba, o anti- go MDB ao assumir a candidatura de Ronaldo A festa, como expressão e realização políti- ca, evento, faz política. Acontecimento social Cunha Lima, para Prefeitura de Campina Gran- com conotações políticas, porquanto ato po- de, nas Eleições de 1968, buscou encontrar um lítico, a festa é eficaz na medida em que vei- vice que desse credibilidade à chapa e gerasse cula mensagens dotadas de sentido. Aconte- confiança junto aos segmentos da alta classe mé- cimento, ela dá lugar à conjunção de repre- dia campinense, uma vez que este grupo social sentações e práticas (CHAVES, 2003, p.66). não simpatizava com o “jeitão boêmio e rueiro de Ronaldo”. Foi escolhido para vice o genro do Na cidade de Campina Grande, ao pes- senador Argemiro de Figueiredo, Orlando Al- quisar a festa do “Maior São João do Mundo” meida. Segundo o radialista Joel Carlos: (LIMA, 2010), percebemos que o elemento pri- 15

[...] Ronaldo era chamado de “Ronaldo Sou fome, sou mesa e pão, coisa linda”. Isso começou com as mulhe- Sou adulto, sou criança, res dos cabarés do centro, o de Nina, e os Sou descrença e esperança, da Rua João Pessoa de Danda e de Zé Gar- Sou pai, sou filho e irmão. çom, depois tomou as ruas e criaram o mote Sou discórdia, sou estima, “Ronaldo coisa linda” que pegou e alastrou- Sou a curva, sou a reta, se pelos bairros por todo canto. Ele bebia e Sou, simplesmente, poeta, improvisava poesia. Ele pertenceu ao Grê- Sou Ronaldo Cunha Lima mio Literário. O modo dele agir na política, (Lima, 2004, p.15) criou um clima político muito interessante em Campina Grande. [...] Ele era um sujeito No ano de 1983 assume a Prefeitura de novo, simpático, muito comunicativo e im- Campina Grande Ronaldo José da Cunha Li- provisava poesias. Desde as eleições de 59, 62 e 66 ele tinha inventado essa história de ma. Ronaldo já havia assumido os cargos de improvisar versos nos comícios. Vereador (1959), Deputado Estadual (por duas vezes – 1963 e 1967) e em 1969, foi eleito pre- É sobre todo esse imaginário em torno da feito de Campina Grande. No entanto, só ad- figura emblemática de Ronaldo Cunha Lima e ministrou a cidade por 38 dias pois teve o seu de sua invenção da Festa do “Maior São João do mandato cassado pelo regime militar. Com o Mundo”, que passamos a descrever. Para tanto, acontecido, viajou para a cidade do Rio de Ja- vamos fazer incursões na sua vida pública, até neiro onde exerceu a sua atividade de bacharel chegarmos à construção do citado evento junino. em direito. Mesmo não mais residindo em Campi- na Grande Ronaldo não sai de cena; continua 2. A POLÍTICA NA FESTA a manter com os seus correligionários contatos constantes. Passa a ser comum Ronaldo receber Quem sou eu em sua residência no Rio de Janeiro, campinen- Sou plateia e personagem ses que precisam àquela cidade se deslocar, bem Sou multidão, sou sozinho, como continua a ter um diálogo constante com Sou bloqueio, sou caminho, os políticos aliados. Para manter-se informado Sou verdade, sou miragem. sobre Campina Grande passa a receber os Jor- Sou pensamento, sou vida, Sou cisma, sou acalanto, nais locais, enviado pelos correios por amigos. Sou regozijo, sou pranto, Um acontecimento que lhe dá grande vi- Sou chegada, sou partida. sibilidade midiática é a sua participação, na dé- Sou abandono, sou ninho, cada de 70, de um programa exibido pela ex- Sou desamor, sou amante, tinta TV Tupi, “O céu é o limite”, onde ele res- Sou eterno, sou instante, ponde perguntas sobre a obra de Augusto dos Sou desconforto e carinho. Sou amparo e abandono, Anjos. Ele sai vencedor na disputa com outros Sou revide, sou perdão, candidatos. Tal participação naturalmente o Sou inverno, sou verão, torna conhecido em todo o Brasil e tudo isso Sou primavera e outono. ajuda a fortalecer a sua imagem de poeta. 16

Em sua autobiografia pode-se ler alguns poemas que retratam as suas vitórias para os re- Pedindo votos de graça, feridos cargos. Vale a pena descrevermos partes nova eleição eu disputo. Não dispondo de reduto, desses poemas para termos a devida dimensão eu saí de praça em praça. de como a sua veia poética é um grande alia- Viola, versos, cachaça, do na construção de sua imagem pública7 e ser- coisas bem do meu agrado, ve para fortalecer a representação do boêmio e percorri todo o Estado, poeta festeiro próximo do povo. É o persona- litoral, sertão, caatinga, gem do common man, tão bem posto por Sch- na base do pinga-pinga fui eleito Deputado. wartzenberg (1978) 8 (Lima, 2004, p.52) . Abaixo poemas que retratam as suas vitórias para a Câmara de Vereadores, Assembleia Es- tadual, Prefeitura Municipal e cassação de seu I mandato, respectivamente: Eram seis, no total, os candidatos. Bravos, fortes de ardis, intimoratos, numa luta ferrenha e desigual. Lembro, com emoção, minha partida: Parecia, até mesmo, um desatino, Newton Rique, um dia, me convida, eu querer enfrentar Osmar de Aquino, convite simplesmente tentador. Plínio Lemos, Estênio e “seu” Cabral! O PTB foi, então, minha legenda, Além de tudo, para completar, a classe estudantil me recomenda numa mesma legenda enfrentar e Campina me faz Vereador. o formidável talento de Vital Daí até ser Governador, Foi longa, foi difícil a caminhada. Com o apoio da minha terra amada, II Juntos, sempre juntos, prosseguimos. E mais difícil se fez essa contenda Assim, eu e Campina construímos com o advento da sublegenda, Uma bonita história de amor. novidade da lei eleitoral (Lima, 2004, p.51) que somente admitia vitória

7 A prática política está definida como uma luta pela imposição de imagens públicas de atores públicos. Uma competição pela produção da percepção pública dos interesses e das pretensões que se apresentam na cena política. As atividades políticas estão as- sociadas à criação e à circulação de imagens. A política de imagem é entendida como “a prática política naquilo que nela está vol- tado para a competição pela produção e controle de imagens públicas de personagens e instituições políticas” (GOMES, 2004, p. 242). É um fenômeno que tem como ponto central a construção da imagem pública e está permeado por um jogo de papéis, de status, de posições relativas e de valores sociais. Dessa forma, a imagem pública é algo conceitual, que está apoiado e construído sobre mecanismos enunciativos linguísticos. A construção dessa imagem está ligada a um manuseio apropriado de informações. É uma construção cognitiva, que possui correspondência com os valores que estão presentes em uma determinada sociedade. É im- portante salientar que esse tipo de construção não está ligado necessariamente a uma imagem plástica, de configuração visual, mas sim a uma forma de representação e apresentação de algo que está situado na realidade. As imagens públicas estão relacionadas a ações, discursos e configurações expressivas, que podem incluir elementos visuais, mas que não dependem dos mesmos para exis- tir. Nesse sentido, “elementos visuais podem contribuir para a formação de uma imagem, desde que se submetam a uma conver- são em indícios, pistas, sintomas que sirvam para sustentar inferências lógicas” (GOMES, 2004, p. 252). 8 . O personagem do common man, do homem comum, aplica-se muito bem a imagem de Ronaldo Cunha Lima. Por seu compor- tamento boêmio, e sua veia poética, além de sua proximidade e afeto para com a população, ele é o homem comum, a boa pessoa, igual a todo mundo, o homem “simples da cidade”, nos termos de Schwartzenberg (1978). 17

àquele que vencesse a somatória de. Eu quando chego aqui me sinto bem, dos votos das legendas do rival. me sinto feliz e, por isso, sonho com o dia A disputa foi mesmo uma “Coisa Linda”, de voltar definitivamente para cá.9 E muito mais bonita foi, ainda, Minha homérica vitória no final. Para comemorar a sua vitória, em poe- (LIMA, 2004, p.53) sia, ele registra esse momento em sua autobio- Pelo povo de Campina fui eleito grafia e em seu discurso de posse, respectiva- para ser do município seu prefeito. mente: Mas não pude o meu povo governar. Com pouco mais de um mês ter-se passado, Mais de dez anos se passaram. sem pecado nenhum eu fui cassado O lugar que me tomaram, por ato do regime militar. Campina me devolveu. Noites e dias vivi, os mais medonhos, enfrentei Vital, de novo, amargando a desdita de meus sonhos, e, graças de Deus, o povo quase sem forças pra recomeçar. novamente me escolheu. (LIMA, 2004, p.54) (LIMA, 2004, p.56)

Aqui estou de novo para cumprir meu man- Compondo versos e concorrendo em vá- dato. Repete-se o cenário e, pela segunda rios pleitos eleitorais, Ronaldo a todos venceu, vez, eu vivo o mesmo instante dentro de como também os candidatos os quais apoiou, mim. Até parece que o tempo parou, mar- igualmente saíram vencedores, de tal sorte que cando compasso de espera para que não se podemos falar na existência de um Grupo Polí- fragmentassem ilusões, não se dissipassem tico, num primeiro momento conhecido como sonhos, não se adiassem esperanças (MEL- “ronaldistas” e, posteriormente, Grupo Cunha LO, p.147, no prelo). Lima. O “timoneiro da esperança”, o “salva- Na sequencia da vida pública de Ronal- dor da pátria”, estava de volta ao seu “lugar”. do Cunha Lima, chegamos às eleições de 1982. Pronto para se “dar em serviço a cidade que Sabedor de sua popularidade na cidade e das sempre o acolheu”. É corriqueira a tentativa de condições propícias a sua vitória, retorna Ro- um gestor público tentar construir uma marca naldo a cidade de Campina Grande, para con- para a sua administração e no caso do Prefeito correr à prefeitura, e sai vencedor. Indagado Ronaldo, a sua administração na cidade ficará sobre as suas expectativas de retornar a cidade marcada pela festa que ele criou e imprimiu vi- ele assim se manifestou: sibilidade midiática e marca turística: as festas juninas, batizadas como “O Maior São João do Sempre esperei e sonhei com o dia da vol- Mundo”. Nestes termos, a história da passagem ta. Cheguei até a escrever música, escrever canção. Eu tenho uma devoção especial pe- desse político no governo do município, no pe- la Paraíba, em especial por Campina Gran- ríodo de 1983-1988, constrói, nos discursos e

9 . TEJO, William. “As Eleições Municipais de 82”. In: “Oposições se unem, dividindo-se”. Anuário de Campina Grande – 81.p.39/40. 18

na prática da festa, uma espécie de divisor entre No ano de 1983, época do primeiro São o que era a festa junina da cidade antes e depois João de sua administração, a festa junina pas- de Ronaldo. sa a ser realizada ao lado do Centro Cultural – mesmo lugar onde no ano de 1986 é inaugura- do o “Parque do Povo”, espaço que atualmen- te centraliza a festa. O Centro Cultural situa-se próximo ao Parque do Açude Novo – conhe- cido também como Parque Evaldo Cruz –, no centro da cidade, local onde acontecia até 1982 à festa junina. No último ano da administração do en- tão prefeito Enivaldo Ribeiro, em 1982, ocor- re à desapropriação de uma grande área anexa ao Parque do Açude Novo, chamada de “Co- queiros de Zé Rodrigues” e em parte dessa área é construída e inaugurada por este administra- dor o Centro Cultural; só que uma grande área, de quase 25.000 metros quadrados, fica ociosa e é exatamente nesse espaço que na administra- Ronaldo José da Cunha Lima. Fonte: Folha Junina, 09 a 15 de junho de 1989. ção de Ronaldo é montado o “Palhoção” – uma espécie de palhoça coberta com palhas de co- Aclamado e festejado como o pai, o co e folhas de bananeiras, que serve como espa- idealizador do evento “O Maior São João do ço para dança e venda de bebidas e tira-gostos Mundo”, é na sua administração que a festa de – para realizar o que os organizadores da mon- São João assume a asserção de um espetáculo e tagem da festa e a mídia irão denominar a épo- a perspicácia e astúcia do citado administrador ca de “O Maior São João do País”. e de seus prepostos permitem a utilização da A infraestrutura do “Palhoção” é rudi- festa como um excelente instrumento de cons- mentar, o terreno é em terraplanagem e o sis- trução de estratégias, de táticas e de correlações tema de iluminação é fraco, no entanto, é da- de força em busca e continuidade do poder.10 do o primeiro passo para transformar essa área, três anos depois – 1986 – num suntuoso espaço

10 Referimo-nos a estratégia como “(...) o cálculo (ou a manipulação) das relações de forças que se torna possível a partir do mo- mento em que um sujeito de querer e poder (...) pode ser isolado.” (Certeau, 1994, p. 99). A tática como uma “(...) ação calcula- da que é determinada pela ausência de um próprio. (...) A tática não tem lugar, senão o do outro. E por isso deve jogar com o ter- reno que lhe é imposto, (...) a tática é movimento ‘dentro do campo de visão do inimigo’ (...) e no espaço por ele controlado (...) Ela opera golpe por golpe, lance por lance. Aproveita as ‘ocasiões’ e delas dependem. Consegue estar onde ninguém espera. É as- túcia” (Certeau, 1994. p. 100). E a poder como algo que “não se dá, não se troca nem se retoma, mas se exerce, só existe em ação (...) o poder não é principalmente manutenção e reprodução das relações econômicas, mas acima de tudo uma relação de força.” (Foucault, 1993, p. 175). 11 “Forródromo” é o nome como será batizada a área coberta do Parque do Povo, em forma de Pirâmide, como uma evocação ao “Sambódromo” carioca. 19 para a festa, com a inauguração do “Parque do proviso, dirige-se ao público e recita a seguinte Povo” e o seu “Forródromo”.11 estrofe:

Grande festa nordestina, Forró a cada segundo, Vamos fazer em Campina, O Maior São João do Mundo.12

Esta estrofe não surge tão somente co- mo resultado de uma inspiração do governan- te municipal. Ele continua a pôr em prática e a substancializar um projeto extremamente bem definido de construir na cidade a festa junina, instituindo-a como um evento turístico. A pro- pósito, essa fala do prefeito será diversas vezes “Palhoção”. utilizada e reproduzida como discurso que, não Fonte: www.cgretalhos.blogspot.com só institui a festa, mas também a sua figura de pessoa profundamente festeira. Na oportunidade em que discursa na A partir de então a festa assume cada vez noite de São João e no primeiro festejo juni- mais um novo contorno. Ela passa a ser a ex- no de sua administração, o prefeito Ronaldo da pressão da administração municipal; é o prefei- Cunha Lima dirige-se ao público concentrado to poeta quem a constrói e a torna um fato con- no Centro Cultural e em versos “profetiza”: creto, real, um evento “sem precedentes” na e para a história do município, é isso que relatam Vendo assim minha gente, Feliz e toda contente, os jornais locais da época. A festa junina agora Nasce um desejo profundo... tem não apenas um gestor, mas um dono, uma Hei de fazer em Campina espécie de pai, que passa a ser paulatinamente O Maior São João do Mundo.12 identificado à festa por ele criada.

Com essa fala o prefeito, na verdade, 3. A POLÍTICA MEDIADA PELA FESTA E A planta a primeira semente do que pretendia CRIAÇÃO DO MITO POLÍTICO concretizar: transformar a festa junina na cida- de em um espetáculo turístico. Em seu discur- Um fato recorrente observado na cons- so de abertura do festejo junino em 1984, no trução e execução da festa junina na cidade de “Palhoção” do Centro Cultural, ocorrido no Campina Grande é a participação e a presen- dia 02 de junho, o prefeito, novamente fazen- ça dos políticos aliados, não só em seus espa- do uso de sua capacidade para a poesia de im- ços, mas em todo um conjunto de produções 12 Jornal da Paraíba – C. Grande, 23/06/1983. 13 Jornal da Paraíba – C. Grande, 02/06/1984. 20

discursivas que apontam para a disputa da festa feito toma a palavra e, ao discursar, comumen- como um bem, um instrumento de apropriação te engrandece a sua cidade e o seu povo pelo e de reivindicação à gestação do evento. De fa- majestoso evento que é oferecido aos citadinos to, a construção da festa junina no espaço urba- e aos turistas. A festa, nesse momento, trans- no surge como um excelente campo de busca e forma-se em uma espécie de palanque para um concretização por prestígio e poder. comício político; é a ocasião por excelência na A fabricação da festa junina consubstan- qual os humores, as sensibilidades estão volta- cia-se, ainda, como um espaço de comunicação das para viver a festa. dos políticos locais com o povo; os momentos O público, ansioso, espera e aguarda o de suas aparições públicas nos espaços da festa veredicto final, ou o famoso: “declaro oficial- do “Maior São João do Mundo”, configuram- mente aberto ‘O Maior São João do Mundo’ se em uma oportunidade de, não só pôr em con- deste ano”. É exatamente nesse momento que, fronto a sua audiência e receptividade “popu- de maneira subliminar e estratégica, o políti- lar”, mas, sobretudo, de criar um ambiente pro- co passa a sua mensagem de festeiro, de “ami- pício para a construção de imagens públicas.14 go do povo e da cidade”, de “administrador A imagem pública é um repertório construído moderno”, pois, afinal, na sua administração, coletivamente por representações sociais, ou se- construiu espetáculo tão rico, popular e alegre; ja, é uma imagem coletiva, que não se consti- além de não esquecer de destacar a importân- tui de apenas uma expressão, mas de uma gran- cia do evento como um instrumento de divisas de variedade delas. É um somatório de expe- econômicas para o município, para a divulga- riências vividas e que precisam ser compartilha- ção da cidade, etc. das pelo grupo. A construção de uma imagem O espaço da festa configura-se como um pública está ligada a um complexo de informa- importante ambiente de comunicação e passa ções, de noções, conceitos que uma determina- a ser amplamente utilizado por Ronaldo como da coletividade partilha e que tem como obje- uma maneira de construir sua imagem pública. tivo caracterizar um sujeito. O ator político é estabelecido como uma personalidade, um per- sonagem que existe para si, mas que também possui uma forma de existência exterior, uma existência que é representacional, ligada a uma imagem. Para que uma imagem seja formada é preciso reconhecer um conjunto de proprieda- des que caracterizam determinado ator políti- co, servindo dessa forma como uma atribuição. Um dos momentos mais esperados pelos políticos locais é, sem dúvida, o dia da abertura oficial da festa junina; momento em que o pre- Fonte: Jornal da Paraíba, 07/07/1984 14 O homem político deve, portanto, concordar em desempenhar de maneira duradoura a personagem em cuja pele se meteu. Precisa aceitar ajustar-se à imagem de si mesmo divulgada pela propaganda. Assim “vive ele, aprisionado num papel determinado, como ator, e escravo do seu próprio mito”. (SCHWARTZEMBERG, 1978, p. 14). 21

Daí que sua presença nos arraiais, por paço da festa urbana para estabelecer uma co- entre as barracas, no palco, discursando, a sua municação com o público eleitor e transmitir ocupação, enfim, de todos os espaços da festa, as suas mensagens, seja deles se aproximando, é uma prova inconteste de que na festa junina com todo um conjunto de discursos que apon- urbana pode-se experimentar uma nova forma tam para a sua identidade com a festa, reivin- de fazer política, desta vez, mediada por um jo- dicando o seu papel de gestor, seja aproveitan- go de sedução, de disputas por pertencimentos, do o espaço para criticar os opositores, classifi- de comunicação direta com o público. É sob es- cando-os como antifesteiros e até “inimigos do se prisma que a política não é mais, como for- povo”. O espaço da festa junina serve também mula Jacques Le Goff: de palco para o acirramento das disputas políti- cas e para a construção de figuras políticas. As Um simples estoque de ideias programáticas menções ao idealizador do “Maior São João do produzidas pelas “elites conscientes”, pelos Mundo”, os seus discursos e os usos que irão partidos nascidos nas crises revolucionárias, fazer do evento, demonstram de forma práti- e que teria se difundido progressivamente ao conjunto do corpo social por sua própria ca, como a festa é um excelente espaço de dis- capacidade de convencer e mobilizar. Para putas pelo poder. É exatamente a partir do ano impregnar a vida social a política teve que de 1984, que se esboçam os primeiros discursos tornar-se algo diverso de si mesma – seria- que enaltecem a figura do prefeito como com- mos tentados a dizer, mas do que ela mes- pletamente comprometido com a cidade e com ma: não só um projeto sobre a organização o citadino; a festa é propalada como um pre- de poder, mas uma maneira de se comuni- sente, uma dádiva do administrador municipal, car com os outros e compreender o mundo (LE GOFF, 1993, p.149). que, “com todo o empenho”, envidou os esfor- ços necessários para torná-la uma realidade na cidade, como enuncia o discurso abaixo:

Não bastava apenas o evento. Era preciso usar a criatividade, o amor maior por um acontecimento de domínio popular. Servin- do não apenas de lazer, mas especialmente marcante pelos traços históricos. Pelo fol- clore, por sua beleza de um modo geral que forçam por si só a participação espontânea de todas as pessoas. A partir do dia 02 de ju- nho, a consagração total, com a presença de Ronaldo fantasiado de “caipira”, juntamente com seu um público incalculável no Parque do Cen- aliado político, o prefeito Félix Araújo Filho, tro Cultural. Durante todo o mês de junho, durante a festa junina. em todos os bairros havia festas, quadrilhas, Fonte: Jornal da Paraíba, 19/06/1994. todos recebendo o apoio da Prefeitura Mu- nicipal. Apesar das dificuldades econômicas A política, assim, nos “tempos da socie- do município, Ronaldo Cunha Lima usando dade do espetáculo”, utiliza amplamente o es- novamente a sua inteligência e criatividade 22

na divulgação da promoção, colhia os fru- O sonho primeiro de ver o São João reali- tos do trabalho realizado.15 zado naquele local foi nosso. Recordo-me que a Secretaria de Educação estava funcio- nando provisoriamente no Centro Cultural. A festa, nestes termos, assume um con- Da varanda eu olhava para aquele espaço e torno diferente: ela passa a ser a expressão da algo me dizia que era ali que a festa devia administração municipal; é o prefeito quem a ser realizada. Levei a sugestão para o Prefei- constrói e a torna uma realidade, um evento to e ele concordou. Porém a construção do sem precedentes na e para a história do municí- Forródromo tem outra história... Ronaldo pio. A matéria acrescenta, ainda, a atenção que queria marcar sua administração com uma o evento recebeu de entidades, de instituições e obra monumental. Pesquisas e consultas fo- ram feitas e ele optou por uma realização de grupos políticos, através do envio de votos que pudesse fazer o povo eternamente fe- de parabéns ao administrador, pela iniciativa e liz. Acertou.17 patrocínio da festa:

Enquanto isso, o Gabinete da Prefeitura campinense começava a receber de todas as partes do Brasil, telegramas, cartas, ofícios e outros documentos, numa unanimidade de expressões parabenizando o Prefeito Ronal- do Cunha Lima, pela promoção do Maior São João do Mundo.16

Com a inauguração do Parque do Povo, ocorrida no ano de 1986, os jornais locais inci- Construção do Forródromo do Parque do Povo. tam a seguinte indagação: como e por que surgiu Fonte: www.cgretalhos.blogspot.com a ideia de construir uma espacialidade para a fes- A importância que a festa junina vai as- ta junina na cidade? Segundo relatos da época, sumir na cidade e entre os seus habitantes, bem houve um que parece ter sido definidor na exe- como a sua relação com o seu idealizador, vão cução da citada obra: o de marcar a administra- materializar-se nos espaços do Parque do Po- ção de Ronaldo José da Cunha Lima, como ex- vo.18 Daí porque não há mais como separar a pressa, anos depois, o então secretário de Educa- festa de seu pai, os discursos instituem essa re- ção e Cultura do Município, ao ser indagado so- lação de verdadeira simbiose, a ponto de, ano bre quem teve a ideia de arquitetar o Parque do após ano, a sua memória, lembrança e presen- Povo e o seu “Forródromo”. Em entrevista con- ça, não serem mais esquecidas. cedida ao Jornal da Paraíba, ele assevera:

15 Jornal da Paraíba – C. Grande, 07/07/1984. 16 Jornal da Paraíba – C. Grande, 07/07/1984. 17 Entrevista com o Secretário de Educação e Cultura do Município, Eraldo César, concedida ao Jornal da Paraíba – C. Grande, 14/06/1992. 18 Georges Balandier formula que: “no decorrer de sua história toda cidade se enriquece de lugares aos quais pode ser atribuída 23

A sua imagem passa a apresentar-se co- Ronaldo José da Cunha Lima atinge, as- mo uma espécie de fantasmagoria a percorrer sim, o seu objetivo, que não foi somente o de os espaços da festa; desde a abertura do even- marcar a sua administração – com a construção to, quando nos discursos ele é lembrado como de uma “obra monumental” – mas, sobretudo, o seu pai, até o encerramento do ciclo junino, o de não ser esquecido, pois consegue se meta- quando, novamente, ele se apresenta marcado morfosear em festa20. no adeus à festa. No parque vazio e sem festa, Prova de tal fato, ainda no campo da resta a sua lembrança nas paredes de blocos de ação política21 e das estratégias de poder, pode concreto que revestem a pirâmide e duas gran- ser mensurado no dia da inauguração do Par- des placas fincadas ao longo do espaço do par- que do Povo, em 14 de maio de 1986. Cerca que, sinalizam a sua passagem pela administra- de 10 mil pessoas para lá acorreram e enquan- ção do município. Em uma dessas placas estão to fazia uso da palavra, o prefeito, ao dirigir-se registrados os seguintes versos por ele escritos: ao público, fez uma inusitada pergunta: se de- Que esse meu gesto marque via ou não deixar a Prefeitura – no meio de seu O nascer de um tempo novo, mandato – para se candidatar ao Governo do O povo pediu o Parque Estado. Os jornais noticiaram na época, que o Eu fiz o Parque do Povo.19 povo aos “gritos” assim se manifestou em res- posta à indagação do prefeito: “fica, fica, fica”. Em seguida, ele transmitiu o seguinte discurso para o público:

Eu devo renunciar a meu mandato de Pre- feito. Tenho até meia-noite para me decidir. Mas para atender à vontade do meu povo, fico. Ficarei até o fim governando Campi- na Grande para bem servi-la. Aqui, no mo- mento histórico da mais alta responsabili- dade para minha vida política, para o desti- no de Campina Grande e da Paraíba, eu re- Ronaldo carregado nos braços do Povo. pito o que foi dito há muito tempo atrás, Fonte: www.cgretalhos.blogspot.com uma frase que ficou na história deste País: se uma função simbólica, recebida por destinação ou em virtude de algum acontecimento. São os teatros onde se apresenta a socie- dade “oficial” e, inversamente em que se “manifesta” o protesto popular. A topografia simbólica de uma grande cidade é uma to- pografia social e política. (...) Certos lugares exprimem o poder e impõem seu ar sagrado melhor do que qualquer explicação”. (Balandier, 1982, p. 11-12). 19 Informação recolhida em Pesquisa de Campo no Parque do Povo. 20 Georges Balandier assevera que: “Ao centro das ilusões produzidas pelo poder se encontra a capacidade de escapar aos assal- tos do tempo. Tão inevitável como os embaraços naturais ele quer ser fator de continuidade, ele apresenta as provas de sua dura- ção em face dos homens e das gerações que passam, de seus súditos que morrem” (Balandier, 1982, p. 10). 21 Edgar Morin ensina que: “a ação política é um jogo (...) constantemente defrontado com o problema do erro de percepção, do erro de diagnóstico, do erro de previsão e do erro de comportamento. (...) A ação política, por último, é estratégia, e como toda estratégia necessita de certo segredo e de certa astúcia”. (...). (Morin, 1995, p.152). 24

Campina Grande pede e se é pela vontade receptividade, o prefeito, ao demonstrar o seu deste povo, eu digo a este povo que fico.22 poder, sai fortalecido, não só nos limites do Município, mas do Estado e de sua liderança Momento mais que propício para o go- no interior de seu partido. vernante, em plena inauguração do espaço da festa, transformar o evento em uma espécie de A repercussão de seu gesto e o desenro- “showmício”. Na verdade, a decisão de não lar de todos os acontecimentos ocorridos no dia mais se candidatar ao Governo do Estado, foi da inauguração do Parque do Povo foi de tama- tomada um dia antes, após longas horas de re- nha magnitude que provocou na Câmara de Ve- união com a cúpula de seu partido – o PMDB – readores da cidade, uma propositura estapafúr- e com aliados políticos, ocasião em que o pre- dia de uma vereadora aliada ao prefeito, Ma- feito decide dar continuidade ao seu mandato. ria Barbosa, de instituir por “Lei Municipal, O Mas, por tratar-se de um político ousado e con- DIA DO FICO”. Chega a ser anedótica tal pro- fiante de que o carisma é seu principal trunfo posta, mas em seu bojo, ela encerra uma evi- e, principalmente, após ter sido criada na cida- dência concreta: a força política do prefeito.23 de toda uma expectativa em torno da inaugu- O próprio Ronaldo, em sua autobiogra- ração do Parque do Povo com o seu “Forródro- fia, dedica uma poesia para marcar o aconteci- mo”, ele resolve “por à prova” o seu poder, a mento que ficou conhecido como o “DIA DO sua popularidade e a sua audiência, diante de FICO”: uma plateia atenta e de toda a cúpula do PM- DB, presente ao evento. Vim pra decidir o meu caminho, abri as asas para um voo mais alto. Ouvindo esse clamor, adio o salto, fico ao abrigo do meu próprio ninho”. (LIMA, 2004, p.67)

A partir do ano de 1986 o Jornal da Pa- raíba começa a circular, durante o mês de ju- nho, com suplementos especiais que tratam ex- clusivamente da festa junina na cidade e, neste ano, todo o caderno intitulado: “O Folclore Pa- raibano está de parabéns”, é dedicado à inaugu- ração do Parque do Povo. Nele há um discurso Público no Parque do Povo no “dia do fico”. extremamente interessante chamado de “Poesia Fonte: www.cgretalhos.blogspot.com e Sonho”:

Político astuto, já sabia, obviamente, A inauguração, hoje, do Parque do Povo, qual seria a reação do público e, diante de tal traz em seu bojo uma simbologia que trans-

22 Jornal da Paraíba – C. Grande, 15/05/1986. 23 Jornal da Paraíba – C. Grande, 31/05/1986. 25

cende à própria obra em sua dimensão ma- de do povo festeiro”; o “sonho” se concretiza terial. Feliz associação entre a vontade de porque, por uma “feliz coincidência”, o “poe- quem faz e as origens culturais da terra, o ta” também administra a cidade; ele não entre- Parque com o Forródromo marca definiti- ga aos campinenses uma “obra”, mas a possibi- vamente, o reencontro do Prefeito Ronal- do Cunha Lima com o povo de Campina lidade de um “sonho” de poder festejar as suas Grande, naquilo que ele tem de mais impor- datas mais importantes, particularmente, a fes- tante: a sua identidade cultural. Líder caris- ta junina.25 mático, Ronaldo soube aproveitar bem os Outro fato que merece destaque ocorri- anseios da coletividade, que antes de pla- do no ano de 1987, na véspera do dia de São nos mirabolantes, que acenem com um fu- turo nebuloso, quer um pouco de pedra e João (23), foi à soltura de dezenas de balões no cal na concretização de suas quimeras. De Parque do Povo, mas com uma peculiaridade: parabéns Campina Grande. De parabéns o eles continham as iniciais do prefeito local: Prefeito Cunha Lima, que com sua alma de poeta faz transbordar o coração dos cam- Por volta das 22 horas, os céus de Campina pinenses, na alegria da festa que nos toca Grande se vestiram de um colorido mági- mais de perto. Feliz o povo que ainda pode co, quando se iniciou o “show pirotécnico”. sonhar. Abençoado o governante que pode Ao mesmo tempo, dezenas de balões foram proporcionar aos seus concidadãos, além de soltos na imensidão da cidade, os quais tra- obras materiais, o lirismo e o sonho.24 ziam a inicial do nome do Prefeito (R).26

Este discurso institui um sentido interes- A criatividade do prefeito-poeta em se sante para a construção da imagem pública de metamorfosear em festa não tem limites; os ba- Ronaldo Cunha Lima; ele não é tão somente lões trazendo as suas iniciais servem de lem- um gestor que cria o espaço para a festa, ele é brança e mensagem simbólica ao povo de que o poeta que clama pelos “anseios do povo cam- aquela festa tem um dono, um idealizador, um pinense” e pela emoção de sua festa maior – a pai. A escolha do balão junino para marcar a festa junina – que se deixando levar pela sensi- presença do referido político, não é sem conse- bilidade, transforma “armações de concreto em quência; o balão – um dos emblemas e sinais da sonho”. festa junina – é utilizado exatamente para pro- A festa, neste sentido, serve para a le- vocar uma simbiose da figura do político a um gitimação de perfis políticos a partir de cons- ícone da festa, a tal ponto que, como produ- truções imagéticas e discursivas tais como: “é a to de construções imagéticas e discursivas, ele sensibilidade de poeta que se une à sensibilida-

24. Jornal da Paraíba – C. Grande, 31/05/1986. Suplemento especial com o título: “O Folclore Paraibano está de Parabéns”. 25 Georges Balandier defende que é “o mito do herói que acentua com mais frequência a teatralidade política. (...) Ele é reco- nhecido em virtude de sua força dramática. Dela deriva sua qualidade e não do nascimento ou da formação recebida. Ele apare- ce, age, provoca a adesão, recebe o poder. A surpresa, a ação, e o sucesso são as três leis do drama que lhe dão existência. Ele de- ve ainda respeitá-los na condução do governo, manter-se no próprio papel, mostrar que a sorte permanece sua aliada contra to- dos”(BALANDIER, 1982, p. 07). 26 Jornal da Paraíba – C. Grande, 26/06/1987. 26

passa a ser representado igualmente, como ele- Haverei de palmilhar os caminhos de Cam- mento constitutivo e instituinte da festa. pina Grande, iniciados por Ronaldo Cunha No ano seguinte, em 1989, há uma Lima (...) E com o vosso apoio e vossa con- fiança, oferecer minha juventude e ideias, questão crucial para ser resolvida pelo prefeito para que Campina permaneça com o en- Ronaldo Cunha Lima: que nome escolher para contro marcado para o futuro.28 sucedê-lo na administração municipal, nas elei- ções do mês de novembro do corrente ano. E, Dando continuidade ao jogo de sedução não por coincidência, ele escolhe o nome de numa noite de melancolia em que os festeiros seu próprio filho, Cássio Rodrigues da Cunha se despediam de sua “festa maior”, Raimundo Lima, na época, exercendo o mandato de De- Lira, o então Senador da República e aliado do putado Federal. E não menos sem coincidência, prefeito, toma a palavra, afirmando que: “a ci- ele escolhe exatamente o espaço de realização dade terá a grande satisfação de ver um grande da festa do “Maior São João do Mundo” para filho suceder um grande pai”.29 lançar a candidatura de seu filho – na oportuni- dade em que no Parque do Povo ocorria o en- cerramento oficial do festejo junino no referido ano. Ao discursar para o público presente – cer- ca de 50 mil pessoas – o prefeito, como de pra- xe, agradece ao povo, aos patrocinadores e aos que, direta ou indiretamente, contribuíram pa- ra o sucesso da festa e assumindo a paternidade do evento, formula astutamente:

Essa festa eu criei como se cria um filho, pe- queno crescendo e jogando-o ao mundo. E só um filho poderia prossegui-la no Maior São João do Mundo. Por isso, entrego Cássio ao próprio destino de Campina Grande.27

Cássio Rodrigues da Cunha Lima após a fala do pai, estrategicamente acrescenta: Ronaldo com seu filho, Cássio. Acenos para o público. Fonte: Jornal Folha Junina, 15/06/1989

27 Jornal da Paraíba – C. Grande, 12/07/1988. 28 Jornal da Paraíba – C. Grande, 12/07/1988. 29 Jornal da Paraíba – C. Grande, 12/07/1988. O poder investido nestas três últimas falas pode ser evidenciado tomando de em- préstimo as palavras de Georges Balandier: “Sua pregação transforma o imaginário em presença. (...) A mecânica empregada pa- ra produzir efeitos é a máquina oratória. O poder adquirido é teatral na acepção mais imediata do termo. Nasce de uma voz, no sentido lírico do termo. É uma “ditadura da voz”. É com este desempenho que o imaginário e a ideologia se tornam ilusões reali- zadas. (...) O grande ator político comanda o real através do imaginário. Ele pode, aliás, manter-se em uma ou outra destas cenas, separá-las, governar e produzir um espetáculo” (Balandier, 1982, p. 06). 27

Aproveita ainda o Senador o momento Carregados nos braços da população, o de euforia política para “alfinetar” os seus ad- Prefeito Ronaldo Cunha Lima e o deputa- versários políticos que, segundo ele, “preten- do Cássio Cunha Lima foram retirados do palanque, num encerramento de uma festa dem acabar com o São João de Campina”. Nes- com gosto de comício.31 te sentido, formula, enfático: “esta festa está as- segurada, pelo menos até 1992”,30 exatamente Em entrevista concedida a Gabriella Ca- o período de mandato do sucessor de Ronaldo niello32, no dia 16 de agosto de 2012, o Sena- que, como previsto, foi seu filho, Cássio. dor Cássio Cunha Lima relata aspectos curiosos Ao formular que a oposição é contrária de sua candidatura. Vejamos trechos de seu de- à festa, o Senador de maneira estratégica, cria poimento: uma espécie de “estado de terror” junto à po- pulação de que a festa do “Maior São João do Tem uma coisa curiosa que agora eu nunca Mundo”, “tão caprichosamente criada por Ro- revelei a ninguém, vou revelar a você pela naldo”, corre o risco de ser extinta, caso a Pre- primeira vez; meu pai fazia uma exortação feitura chegue a mãos erradas. A festa, além de tão emotiva, tão comovente, que no primei- ro instante eu tinha preocupação de como servir de instrumento e dispositivo de legitima- a cidade ia receber aquilo. Eu tinha um re- ção, é também, moeda política; assim, para que ceio da cidade achar que era uma coisa exa- ela não desapareça, é preciso um “guardião” e gerada, e que por isso podia provocar certa ninguém melhor que o próprio filho do “pai da rejeição. Eu nunca disse nem a ele isso, por- festa”, para protegê-la de seus “algozes” e “de- que ele fazia a coisa com tanto amor, que safetos”. Esse discurso e outros irão permear era verdadeiro, não era uma jogada de mar- keting, o tempo me mostrou, né, que não a campanha política do candidato do prefei- era uma jogada de marketing, era o coração to, de tal maneira que será comum o enunciado dele falando e por isso funcionou. Mas na- de que “é necessário que Cássio ganhe as elei- quele instante eu me assustava muito por- ções para que o São João de Campina Grande que ele fazia uma exortação muito grande, não desapareça”; portanto, uma das estratégias ele dizia a cidade: “eu vou deixar a vocês o de perpetuação de poder amplamente utilizada que eu tenho de melhor que é meu próprio pelo grupo político dos “Cunha Lima” é exata- filho, eu tô doando a vocês o que eu tenho de melhor que é minha descendência” e ele mente a apropriação da festa, tomando para si fazia isso com a vocação poética dele. Então a autoria e, sobretudo, a proteção do evento. me lembro exatamente desse dia, teve esse E a suposta festa de encerramento do dia no parque do povo, na época, a legis- festejo junino transforma-se em uma festa de lação eleitoral permitia, né, hoje não seria lançamento do candidato Cássio Rodrigues da mais possível, permitia, o que gerava uma vantagem enorme, a legislação fez bem em Cunha Lima à Prefeitura do Município: proibir, mas era legal naquela época, e en-

30 Jornal da Paraíba – C. Grande, 12/07/1988. 31 Jornal da Paraíba – C. Grande, 12/07/1988. 32 Gabriella Caniello foi orientanda no mestrado em Ciências Sociais pelo PPGCS/UFCG. A sua dissertação teve como tema a construção da imagem pública do Senador Cássio Cunha Lima, defendida no ano de 2013. 28

fim, eu já me sentia preparado, eu, eu to- Chego, agora, ao fim dessa jornada, marca- pei ser candidato a prefeito, é outro episó- da que foi por angústias iniciais, por preo- dio. Eu quando vinha de Brasília, eu trazia cupações atormentadas, por dificuldades os anteprojetos da Constituição para o meu que foram sendo superadas, para culminar pai ver, meu pai sempre foi um brilhante ad- na majestosidade deste instante em que me vogado, mas do que advogado, ele era um concedeis a suprema ventura de passar às jurista, tinha um conhecimento de direito mãos de um filho o destino de minha ci- muito profundo. Então eu chegava de Bra- dade, palco dos meus sonhos e depositá- sília, vinha aqui dar um beijo nele, um bei- ria do meu amor. Prefeito Cássio, meu filho jo na minha mãe, falar das novidades, e nes- Cássio Cunha Lima: entrego-lhe, agora, ao ta casa aqui, me lembro como se fosse ho- testemunho do meu povo e sob as bênçãos je, meu pai tava na rede, no quarto, dei um de Deus, a responsabilidade que foi minha beijo nele, “oi poeta, cheguei de Brasília”, até agora de dirigir minha amada Campina ele, as vezes muito atribulado, ai entreguei Grande, reduto inviolável de minhas cren- o anteprojeto da Constituição. Com pouco ças. Suplanta-me em amor e dedicação e eu tempo eu escuto o grito: “Cássio vem cá”, me aumentarei no amor de pai, orgulhoso e eu digo: “diga pai”; “já leu isso aqui?”, eu pela ação do filho. [...]. Receba as minhas digo: “li, o que tem?”, “com isso aqui vo- bênçãos de pai, mais acima delas, acredite cê pode ser candidato a prefeito”, “como é nas bênçãos de Deus.33 a história? Não posso não pai, sou inelegí- vel”, ele disse: “não, leia aqui direito”. Ti- Com as condições legais necessárias para nha sido feita uma medida casuística, não sua candidatura e vitória, Cássio governa a ci- pra me atender, pra atender a família Sar- ney, lá no Maranhão, que era o seguinte: dade de Campina Grande no período de 1989 a regra eleitoral não permite que parente a 1992 e é sucedido por um aliado do Grupo de primeiro e segundo grau sucedam, você Cunha Lima, Félix Araújo Filho, no período de não pode ser candidato, qual foi o casuís- 1993 a 1997 até que novamente, Cássio Cunha mo que foi feito? Naquela época, naquela Lima volta a administrar a cidade, para o perío- eleição para prefeito eles faziam uma exce- do de 1997 a 2000. ção: quem fosse detentor de mandato, mes- mo sendo parente, podia suceder, e não era No ano de 1991, Ronaldo vence as elei- pra mim aquilo. (...) Aí resultado, meu pai ções para assumir o governo do Estado da Pa- grita, como eu contei: “com isso aqui você raíba e no mês de junho, no dia da abertura da pode se candidatar”, eu digo: “pai, não pos- festa do “Maior São João do Mundo” ele se di- so”, ele disse: “leia”. rige ao Parque do Povo, com o seu filho prefei- to e demais prepostos e assim discursa: No dia da posse de seu filho, Cássio Cunha Lima, Ronaldo, em um discurso emo- Neste instante estou revivendo alguns mi- cionado, ao transmitir o cargo para seu próprio nutos quando assumi a prefeitura de Cam- filho, profere as seguintes palavras, as quais ca- pina Grande numa situação muito difícil, racterizam muito bem a continuidade e o forta- não tão grande como a do Estado, que es- lecimento do Grupo Cunha Lima: tou vivendo agora. Na época em que idea-

33 Jornal da Paraíba – C. Grande, 03/01/1989. 29

lizei essa festa houve quem não acreditasse o reatualizado, relembrado insistentemente para resultado agora é que ela cresce a cada ano, e não ser esquecido. Um último poema, por ele aqui estou vivendo a emoção de um governa- escrito, caracteriza bem esse poder: dor que declara oficialmente aberto o Maior São João do Mundo, e que em épocas passa- Vitórias absolutas, das o inaugurou como prefeito. 34 mesmo sem ser candidato, disputando ou não, mandato, Tal discurso é seguido pela fala de seu fi- fui feliz nessas disputas. lho, o prefeito Cássio Cunha Lima: Venci, bem, todas as lutas, pois meus amigos fiéis Este ano o Maior São João do Mundo tem sa- impediram-me o revés bor diferente, já que após uma longa espera, pelas suas posições. um governador, o próprio que criou a festa, Foram dez as eleições, faz a sua abertura oficial.35 e venci todas as dez. (LIMA, 2004, p.51) Um dos traços da personalidade de Ro- naldo, com base no exposto, é de ser, sem dúvi- Ser um vencedor, um campeão em to- da, uma pessoa bastante vaidosa e crente em seu das as disputas eleitorais em que concorreu fez, carisma. Os atributos de poeta, boêmio e políti- sem dúvida, de Ronaldo Cunha Lima, um po- co, “por sacerdócio e não por negócio”, como deroso personagem político local, alguém que gostava de afirmar, fizeram dele um forte per- mesmo com alguns episódios de queda em sua sonagem da política local, ao modo de poder- biografia particular, como o atentado ao gover- mos então usar o termo Grupo Político, para ele nador do Estado, Tarcísio de Miranda Burity, e seus prepostos. Assim acreditamos que mesmo ocorrido no ano de 1993,36 e a perda de sua com a sua morte, ele não sai de cena, muito pe- saúde, por ter sido vitimado com um AVC – lo contrário, o mito sempre que necessário, será acidente vascular cerebral, ocorrido em 30 de

34 Jornal da Paraíba – C. Grande, 02/06/1991. 35 Jornal da Paraíba – C. Grande, 02/06/1991 36 Ronaldo, no exercício de seu cargo de governador da Paraíba, atentou contra a vida do ex-governador da Paraíba, Tarcício Bu- rity, no dia 03 de novembro de 1993. Dirigiu-se ao restaurante Gulliver, em João Pessoa, por volta das 14:00 horas e desferiu, a queima roupa, três tiros em seu desafeto. Tal fato repercutiu na imprensa nacional que noticiou o acontecido e afirmava que a ra- zão de tal ato devia-se a uma vingança de Ronaldo contra Burity que estaria por trás de uma série de acusações contra as ativida- des desenvolvidas por seu filho, Cássio Cunha Lima, junto a Superintendência da Sudene. A revista Veja, no dia 10 de novembro do referido ano, trás em sua capa a seguinte mensagem: “Denúncias respondidas a balas.” Em seis páginas de matéria há um inte- ressante trocadilho entre a imagem do homem violento e o poeta. O título da matéria sugestivamente foi “Viola calibre 38”. (VE- JA, Edição 1 313. Ano 26, nº 45, p.32-37). Ao praticar tal ato, Ronaldo, para se livrar do flagrante, astutamente foge para o seu reduto eleitoral, a cidade de Campina Grande e lá é literalmente ovacionado pelo povo que, aos gritos, em frente de sua residên- cia, demonstra seu apoio a tão querido líder político. Por ocasião de uma sessão solene, acontecida no Senado Federal, no dia 18 de março de 2013, data de aniversário de Ronaldo e como uma homenagem póstuma a sua memória, vários parlamentares se re- vessam em discursos emocionados a relatar a trajetória pessoal e política de Ronaldo Cunha Lima. Um dos senadores a discursar foi José Agripino Maia, que à época era governador do Estado do Rio Grande do Norte, que em sua fala, ao fazer menção ao aten- tado contra a vida de Burity, narrou o fato de ao saber do acontecido com seu amigo Ronaldo, o telefonou imediatamente e se co- locou a sua disposição, chegando a afirmar que se Ronaldo necessitasse, poderia dirigir-se a cidade de Natal, que ele colocaria to- do o poder policial e bélico do seu Estado para protegê-lo, de acusado ele passa a ser vítima. Essa seria, mais um singelo exemplo do poder das oligarquias no Brasil, e particularmente, no Nordeste. 30

abril de 1999, o que comprometeu o seu movi- Para coroar a vitória de Cássio, ao go- mento de um lado de seu corpo, fazendo-o an- verno do Estado, escreve Ronaldo, o seguinte dar de cadeiras de rodas e ter que passar por poema: um longo processo de recuperação da fala e dos movimentos do corpo – não só se “reergue” de Cássio a vitória lavra tais infortúnios, como se lança candidato a De- Com a presença e a palavra putado Federal, nas Eleições 2002, agora pelo De forma bem destemida Todo o Estado se agita PSDB, com o slogan “um voto especial”, desta Na campanha mais bonita feita, conclamando o eleitor a votar nele “por Que já vi na minha vida. todos os serviços prestados à Paraíba” e não le- (Lima, 2002, p.61) var em consideração a sua frágil saúde. O seu apelo logra êxito e ele sai vencedor, sendo o Quem ainda poderia colocar em suspei- segundo mais votado no Estado e ainda terá a ção o poder da família Cunha Lima e do Grupo grande alegria de ver seu filho, Cássio Cunha Político que ele representa, por tantas e sucessi- Lima, Governador do Estado. vas histórias de vitórias, deixa de possuir qual- Nas eleições de 2006, o fato se repete, quer dúvida. O Grupo continua extremamente Ronaldo se reelege Deputado Federal e Cássio forte, com uma incrível capacidade de “ressur- também é reeleito para o Governo do Estado, gir das cinzas” em momentos de crise38 e vol- vencendo inclusive o grande desafeto políti- tar ao poder ainda mais fortalecido. Campeão co de seu pai, José Targino Maranhão, do PM- de votos, não só Ronaldo, mas seu filho Cássio, DB.37 que herda do pai, todo o seu carisma, perpetua-

37 Ronaldo, em sua vida política, sempre demonstrou forte paixão pelo seu partido o PMDB. Cônscio de que era o seu princi- pal representante e de que todos os demais membros a ele estariam subjugados, vê tal poder ser ameaçado por outro político que intenta igual poder: o então governador do Estado, José Targino Maranhão, que ambicionava por sua reeleição. O motivo de tal contenda, iniciada no dia 21 de março de 1998, por ocasião da comemoração da festa de aniversário de Ronaldo Cunha Lima, no Clube Campestre, em Campina Grande, é quem seria o escolhido pelo partido para ser o candidato nas eleições que se avizinha- vam. Na verdade, Ronaldo se irrita profundamente com a festa que foi dada com muito mais efusão quando da chegada de Mara- nhão ao clube, acompanhado de um intenso foguetório e aplausos, o que provocou a ira do aniversariante que se vê preterido. Em um longo discurso, Ronaldo destila a sua raiva em frases tais como: “Esta festa seria uma festa particular de homenagem a mim. Mas quero concluir as minhas palavras, para que ninguém tenha dúvidas a respeito de meu compromisso: que eu, Governador Jo- sé Maranhão, estarei a seu lado – defendendo seu nome, defendendo a unidade do partido. Apenas lhe peço – não sei se peço mui- to, e não estou trocando isto pelo meu apoio, que é incondicional, ele será dado de qualquer maneira – eu estou vacinado contra a intriga: vacine-se contra a bajulação!” (Jornal Correio da Paraíba, 23/03/1998) Como consequência do acontecido e da posterior convenção do Partido para escolher o novo candidato ao governo do Estado, o próprio Ronaldo se candidata para ser presidente do diretório estadual do PMDB no estado e sai derrotado pela chapa apoiada por Maranhão. Tais fatos promovem um verdadeiro racha no partido e Maranhão sai fortalecido nessa crise, não só sai candidato a reeleição, como a vence e de certa maneira, pro- voca a saída de Ronaldo do PMDB, o qual se desfilia para filiar-se ao PSDB, no ano de 2002. A partir de então “cria-se” um novo grupo político no Estado: os maranhistas que passam a se confrontar diretamente com os ronaldistas. 38 Cássio assume o governo do Estado, no ano de 2002 e se reelege em 2006. Em 2007 é cassado pelo pelo Tribunal Regional Eleitoral da Paraíba (TRE-PB) sob a acusação de ter distribuído 35 mil cheques a cidadãos carentes durante a campanha eleitoral de 2006, por meio de programa assistencial da Fundação Ação Comunitária (FAC), vinculada ao governo estadual. Segundo a de- núncia, os cheques totalizavam cerca de R$ 4 milhões. Continua a governar, por força de uma liminar, até 2008, sendo novamen- te julgado pelo Tribunal Superior Eleitoral e novamente cassado. Em seu lugar, assume o segundo candidato mais votado nas elei- ções de 2006, o agora, mais do que nunca desafeto político, José Maranhão. Cássio também enfrentará o estigma de “ficha suja”, o que o tornaria inelegível. Mesmo assim, ele se candidata a uma vaga no Senado Federal e é o candidato mais bem votado em to- 31 se no poder e com grande força para ver serem eram frágeis teus passos, quando andando derrotado os seus desafetos e fazer vencedores O tempo, em nossos passos, foi passando, os seus aliados políticos. Descobrimos, nós dois, novos espaços, com a tua juventude e os meus cansaços, tu me amando bem mais e eu mais te amando. CONSIDERAÇÕES FINAIS Hoje, Cássio, és meu norte e minha meta. Em ti, o meu futuro se projeta, permitindo da morte ir mais além. A “saga” do Grupo Cunha Lima, com Porque me deixas, filho, convencido, base nas reflexões acima descritas, aponta para que através de tua voz serei ouvido, a sua continuidade como forte grupo a dispu- que por teus passos andarei também. tar o poder local. A história contada e decanta- (LIMA, 2004, p. 152) da de Ronaldo Cunha Lima, que perdura mes- mo depois de sua morte, unida ao carisma e es- O Senador Cássio Cunha Lima ao ser in- petacular poder de encenação teatral de seu fi- dagado sobre a importância de seu pai em sua lho, Cássio Cunha Lima, sinalizam para a evi- vida, em entrevista concedida a Gabriella Ca- dência de que o grupo ressurge e se reinventa o niello, em 05 de agosto de 2012, assim se ma- tempo todo, fazendo uso principalmente de um nifestou: imaginário coletivo que se cristalizou no “Ro- naldo coisa linda” e no “menino de Ronaldo” Tudo que eu sou, eu devo a ele, porque ele garantindo a sua longevidade. me conduziu pelos braços, me conduziu de O grupo, mesmo não contando atual- forma muito fraterna, como um pai muito mente com a presença física de seu iniciador e carinhoso, um pai amoroso, e me transfe- riu todo o patrimônio de imagem pública principal representante, Ronaldo Cunha Lima, que ele construiu. Eu tenho a imensa hon- sobrevive de sua memória e da esperança colo- ra, a imensa felicidade de ter um pai que me cada pelo pai, nos ombros de Cássio, para ser o amou com amor materno. Ele fez o que po- seu continuador. Não à toa que o poeta, em um de e mais do que podia até, pra contribuir outro poema tratou dessa herança e transferên- com a minha trajetória. cia de poder: A gratidão tão bem explicitada por pai e Guiei teus passos na vida, um dia, quando filho, coroa, para além do amor filial, uma mui- precisavas de colos e regaços, to bem sucedida relação de disputa por espaços eram fortes e firmes os meus braços, do o Estado da Paraíba, com mais de um milhão de votos. Esse acontecimento constrói um fato inédito na história política brasi- leira: um candidato inelegível ser eleito. E, de fato, ele não assume o cargo imediatamente, assumindo em seu lugar o terceiro can- didato mais votado. Com cerca de um ano após as eleições o Tribunal Superior Eleitoral decide que a chamada “Lei da Ficha Lim- pa” não se aplica aos candidatos eleitos nas eleições de 2008, o que permite a condução de Cássio ao Senado Federal. De todo o exposto, o que fica claro para nós, é a força política do grupo Cunha Lima, que ressurge das cinzas e no ano de 2010 leva ao po- der o candidato, por eles apoiado, Ricardo Coutinho, a uma memorável vitória contra José Targino Maranhão. Para completar a força do Grupo, quebra ainda nas Eleições majoritárias de 2012, o poder dos maranhistas, na cidade de Campina Grande, que já vinham no poder a oito anos, representado pela família Vital do Rêgo. Vence as citadas eleições, já com a morte de Ronaldo, Ro- mero Rodrigues, primo legítimo da esposa de Ronaldo, Glória Cunha Lima, para prefeito e Ronaldo Cunha Lima Filho, filho de Ronaldo, para vice-prefeito. 32

de poder. O pai encaminha o filho, o filho se- BURSZTYN, Marcel. O poder dos donos: Pla- gue os ensinamentos do pai. E de pai para filho nejamento e clientelismo no Nordeste. 3 ed. podemos falar na existência de verdadeiras “di- Ver. Rio de Janeiro: Garamond, 2008. nastias políticas” no poder no Brasil. Sucessão e mais sucessão do poder através dos nomes de CERTEAU, Michel. A invenção do cotidiano. famílias, que ao se instituírem enquanto grupos Artes de fazer. Petrópolis: Vozes, 1994. buscam naturalizar, na sociedade e na cultura CHAVES, Christine de Alencar. Festas da Po- política, a ideia de que a disputa eleitoral se re- lítica. Uma etnografia da modernidade no ser- sume na briga entre grupos políticos rivais. tão (Buritis-MG). Rio de Janeiro: Relume Du- mará, 2003. Trabalho recebido em 20/10/2012 Aprovado para publicação em 11/12/2012 FAORO, Raymundo. Os Donos do Poder. For- mação do patronato político brasileiro. 3 ed. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS São Paulo: Globo, 2001. FOUCAULT, Michel. A Arqueologia do Saber. ADILSON FILHO, José. A Cidade Atravessada. Rio de Janeiro, Forense, 1987. Velhos e novos cenários na política belojardi- nense. Recife: Comunigraf, 2009. ______. A Microfísica do Poder. Rio de Janeiro: Graal, 1989. AIRES, José Luciano de Queiroz. A Fabricação do Mito João Pessoa: batalhas e memórias na GEERTZ, Clifford. A Interpretação das Cultu- Paraíba (1930-1945). Campina Grande, EDU- ras. Rio de Janeiro: Zahar, 1978. FCG, 2013. GIRARDET, Raoul. Mitos e Mitologias Políti- BALANDIER, George. O Poder em cena. Edi- cas. São Paulo: Companhia das Letras, 1987. tora Universidade de Brasília, 1982. GOMES, Wilson. Transformações da Política BARREIRA, Irlys Alencar Firmo. Chuva de Pa- na era da Comunicação de Massa. São Paulo, péis. Ritos e símbolos de campanhas eleito- Paulus, 2004. rais no Brasil. Rio de Janeiro: Relume Duma- GURJÃO, Eliete de Queiroz. Morte e Vida das rá, 1998. Oligarquias. João Pessoa, EDUFPB, 1994. BARREIRA, Irlys; PALMEIRA, Moacir. (Org.). HEERS, Jacques. Festas de Loucos e Carnavais. Candidatos e Candiaturas: enredos de campanha Lisboa, Dom Quixote, 1987. eleitoral no Brasil. São Paulo: Annablume, 1998. KUSCHNIR, Karina. Antropologia da Política. BAUDRILLARD, Jean. À Sombra das Maiorias Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2007. Silenciosas. O fim do social e o surgimento das massas. São Paulo: Brasiliense, 1994. 33

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A DISPUTA PELO GOVERNO DO CEARÁ EM 2010: A CONSOLIDAÇÃO DE UM CICLO POLÍTICO PÓS TASSISMO?

Rejane Vasconcelos Accioly Carvalho

RESUMO

Este artigo coloca em discussão a noção de ciclo político, assim como as condições de sua emergência, consolidação e declínio em esferas públicas midiatizadas, tomando por referência estudos sobre eleições majoritárias para o poder executivo no Brasil e de modo especial no estado do Ceará, a partir do retorno das eleições diretas na década de 1980. A campanha eleitoral de 2010 para o governo do referido estado é analisada como momento de demarcação de um ciclo “pós tassista” na política cearense, marcado pela reeleição em 1º turno do governador Cid Ferreira Gomes, por uma maioria consagradora de votos, desta feita em oposição a Tássio Jereissati, antigo aliado, que, sem seu apoio, foi candidato derrotado a uma das duas vagas do Ceará no senado.

Palavras-Chave: Poder; Mídia e Política; Grupo Político

THE DISPUTE FOR CEARÁ STATE GOVERNMENT IN 2010: THE CONSOLIDATION OF A POST TASSISM POLITICAL CYCLE?

ABSTRACT This paper discusses the notion of the political cycle, as well as the conditions of its emergence, consolidation and decline in Brazilian media public sphere, taking as reference studies on majoritarian elections to the executive power in Brazil and espe- cially in Ceará State, since the return of direct elections in 1980. An analysis of electoral campaign of 2010 int the referred state is analyzed as a turning point of a post Tasso Jereissati period, started with the re-election in first round of the former governor, Cid Ferreira Gomes, with a consecrating majority of votes, defeating Tássio Jereissati’s group candidate. Without the support of Cid Gomes and his political group Tássio Jeressati was also defeated as candidate for one of two places of Ceará State at the Federal Senate.

Key words: Power; Media and Politics; Political Group

Professora de Sociologia da Universidade Federal do Ceará. E-mail: [email protected].

Raízes, v.33, n.1, jan-jun /2013 35

INTRODUÇÃO tro indicativo importante da dissolução de suas bases eleitorais1. O objetivo deste texto é analisar a cam- Na quarta seção desenvolvo a análise panha estadual de 2010 no Ceará sob a perspec- dos cenários pré-eleitoral e eleitoral da campa- tiva dos Ciclos Políticos no período da redemo- nha de reeleição de Cid Gomes marcada pela cratização, admitindo que sua dinâmica vincu- quase ausência de competitividade, e finalmen- la-se ao processo de midiatização da esfera po- te os resultados eleitorais que definiram ganha- lítica que afeta as condições de competitividade dores e perdedores, reafirmando a indagação nas disputas eleitorais instituindo temporalida- posta no início do texto: consolidação de um des políticas com características peculiares. novo ciclo político na política cearense? Na primeira seção teço considerações sobre a noção de ciclo político, de suas con- 1. CICLOS POLÍTICOS: CONDIÇÕES DE dições de sua emergência, consolidação e de- LONGEVIDADE EM ESFERAS PÚBLICAS clínio em esferas públicas midiatizadas, toman- MIDIATIZADAS do como referência estudos sobre eleições ma- joritárias para o poder executivo no Brasil e de modo especial no Ceará, a partir do retorno de A noção de ciclo político se assenta na eleições diretas na década de 1980. longevidade de uma liderança pessoal, de um grupo político ou partidário cuja permanência Na segunda levanto e teço argumentos no poder ultrapassa um mandato e seja acom- que sustentam a tese de que as campanhas ao panhada do reconhecimento de sua hegemonia governo do Ceará em 2002 e 2006 podem ser em determinado espaço político (nacional ou consideradas de transição para um ciclo polí- estadual). tico “pós tassista”, cujos contornos vão sendo definidos nas eleições estaduais de 2010. Algumas considerações sobre peculiari- dades de ciclos políticos que transcorrem no Na terceira seção analiso peculiaridades período da pós-redemocratização do Brasil, em da campanha de 2010, como momento de de- ambiência de esferas públicas midiatizadas que marcação de um ciclo “pós tassista” na políti- merecem ser discutidas, assim nomeadas por- ca cearense com a reeleição do governador Cid que são as diferentes mídias as principais fon- Gomes em 1º turno por uma maioria consagra- tes de produção, circulação e consumo de in- dora de votos, desta feita em oposição ao anti- formações às quais a população tem acesso, não go aliado, que sem seu apoio foi candidato der- só sobre a política, mas sobre os acontecimen- rotado a uma das duas vagas ao senado. A re- tos que se inscrevem na categoria “atualidades” dução da bancada de deputados federais e esta- ou “fait divers”. duais do PSDB, partido de Tasso Jereissati é ou-

1 Ver texto de Jakson Aquino e Rejane Vasconcelos Carvalho, “A derrota de Tasso Jereissati na disputa para o Senado em 2010: como entender a dissolução de suas bases eleitorais?”, apresentado na Reunião da ANPOCS em 2010, Caxambu MG. 36

No Brasil é na década de 1970, com a imagens de si (ethos) que suscitem sentimentos ampliação das redes de televisão para todo o de empatia e crença que se convertam em vo- território nacional, que se efetiva mais nitida- tos. Exemplo disso é o que se nomeia de “sur- mente este processo. Seus efeitos sobre o fun- presa eleitoral”, ou seja, candidatos que iniciam cionamento da esfera política brasileira somen- a disputa como quase desconhecidos, com irri- te se fazem sentir vigorosamente na década de sórios índices nas pesquisas pré-eleitorais ultra- 1980, com o retorno do voto direto nas cam- passam em um curto tempo de campanha, com- panhas eleitorais majoritárias para cargos exe- petidores antes considerados imbatíveis, atin- cutivos2. gindo meteoricamente o estrelato político3. A gênese de ciclos políticos em esferas A longevidade por sua vez exige dos go- públicas midiatizadas pressupõe uma tempo- vernantes a confirmação de imagens de gestão ralidade marcada no imaginário político por cuidadosamente produzidas no âmbito de es- acontecimentos e narrativas de forte teor sim- tratégias de marketing institucional que reali- bólico, encarnados por personagens centrais mentem continuamente os laços com o eleito- dos enredos de campanhas eleitorais, produzi- rado. Acrescento ao debate a tese de que a mais das com recursos midiáticos - publicitários para recente redemocratização no Brasil agregou al- alcançar uma audiência de massa. guns fatores que conjugados afetaram a dinâmi- No Brasil a midiatização das campanhas ca da política nacional acentuando a tendência eleitorais para cargos no poder executivo, pre- de instalação de ciclos políticos longevos. sidencial, estadual e para prefeituras de capi- O primeiro fator, já mencionado, repor- tais encontra nos programas do horário eleito- ta-se ao uso dos protocolos da comunicação mi- ral na televisão sua forma principal de expres- diática e publicitária nas campanhas eleitorais são. Neles são desenvolvidas e super-dimensio- majoritárias cujo sucesso depende do vigor das nadas as estratégias para construção da imagem imagens dos personagens que protagonizam o dos candidatos, a batalha entre os concorren- duelo apresentando-os como inauguradores de tes, e os estilos de persuasão utilizados na “co- uma nova e promissora era política (lugar de fa- municação direta” com os eleitores. Desse mo- la da oposição), ou como defensores de sua per- do os mediadores políticos tradicionais (chefes manência, sob o argumento principal de que os políticos, partidos, entre outros) têm suas fun- bons frutos de uma gestão somente podem ser ções reduzidas na medida em que se ampliam as preservados por quem os plantou. (lugar de fala possibilidades dos candidatos mobilizarem, em da situação). Os sentimentos básicos mobiliza- determinados cenários políticos, recursos sim- dos são respectivamente o da esperança (na fase bólicos eficazes para apresentar aos eleitores inaugural de um ciclo), e medo (quando a espe-

2 Sobre o tema ver: Transição Democrática Brasileira e Padrão Midiático Publicitário da Política, Pontes, Campinas: 1999. 3 Sistema que Richard Sennett nomeia como “star system” no livro O declínio do homem público: as tiranias da intimidade. Compa- nhia das Letras, SP 1998. A conquista da Presidência da Republica por Fernando Collor de Melo em 1989 ilustra bem o sentido de ascensão meteórica ao estrelato político; no Ceará a vitória de Maria Luiza Fontenele (PT) para a prefeitura de Fortaleza em 1985, de Tasso Jereissati para o governo do Ceara em 1986 em 1986, e a de Luizianne Lins ( PT) para a prefeitura de Fortaleza em 2002. 37 rança declina, mas ainda não é maior que o me- xão de ciclos políticos no plano nacional que do do desconhecido). O segundo fator está re- tendem a se espraiar aos estados e municípios, lacionado à alteração da legislação eleitoral bra- viabilizando a alternância de poder, condição sileira para permitir a possibilidade de reeleição necessária aos regimes de democracia represen- dos detentores de mandatos no poder executi- tativa. No texto “Já não se fazem mais máqui- vo. Não por acaso o estatuto da reeleição data- nas políticas com antigamente: competição ver- do de 1997, contou com o empenho direto do tical e mudança eleitoral nos estados brasilei- então presidente Fernando Henrique Cardo- ros”, Borges centra sua análise empírica em es- so, que se empenhou pessoalmente na aprova- tados de baixo desenvolvimento econômico e ção pelo parlamento da emenda que alterava a social que segundo a literatura acadêmica ten- cláusula constitucional impeditiva. Reconheci- deriam a preservar padrões políticos de domi- do como Pai do Real, vitorioso na batalha sobre nação oligárquicos face ao peso das práticas a inflação, até então considerada missão impos- clientelistas na alimentação das máquinas polí- sível, o Presidente alcançava índices de popula- ticas estaduais. Segundo o autor a hipótese ex- ridade. Outro fator destacado com proprieda- plicativa, apoiada em dados estatísticos é que a de por André Borges4, é a simultaneidade das ascensão da esquerda ao poder, e mais especifi- eleições majoritárias e proporcionais para pos- camente a conquista da Presidência da Repúbli- tos do executivo e legislativo nos níveis federal ca pelo em 2002, conduziu à dissolução das ba- e estadual introduzida em 1994, que acentuou ses eleitorais dos partidos considerados de di- o impacto da competição vertical resultando reita ou de centro nos estados mais pobres on- em alinhamentos situacionistas de modo espe- de antes predominavam e que progressivamen- cial em estados e municípios mais pobres e por te aderem aos vitoriosos. Ou seja, os partidos e consequência com maior grau de dependência coalizões nomeados de esquerda mudaram sig- de transferência de recursos federais e estaduais nificativamente o padrão de votação, inverten- para alimentar máquinas políticas. Por conse- do sua dominância dos estados mais ricos para quência o autor considera que as eleições regio- os estados de regiões periféricas, de modo es- nais tendem a seguir uma lógica nacional, que pecial Norte e Nordeste. Em síntese, a tendên- resultaria em mudanças concomitantes nas coa- cia situacionista geograficamente localizada se- lizões governativas estaduais. Borges confirma ria assim suprapartidária e supra-ideológica. esta hipótese com dados estatísticos referentes Como já dito anteriormente a mais re- aos resultados eleitorais em cinco estados classi- cente transição brasileira nos ofereceu no pla- ficados como de baixo desenvolvimento econô- no presidencial dois ciclos políticos longevos, o mico: Ceará, Rio Grande do Norte, Pará, Ma- primeiro protagonizado por um partido consi- ranhão, Goiás e Paraíba. derado de centro esquerda, o PSDB, encarnado Uma indagação ainda pouco esclarecida na figura estelar do presidente sociólogo, Fer- reporta-se às condições que favorecem a infle- nando Henrique Cardoso, símbolo da conquis- ta do controle da inflação que afligia os brasi- 4 André Borges “Já não se fazem mais máquinas políticas com antigamente: competição vertical e mudança eleitoral nos estados brasileiros”. In: Revista de Política e Sociologia.. 38

leiros; e o segundo por um partido de esquerda datário, ou a alguém que o represente, outro o PT, personalizado na figura de Lula, um ope- mandato, como espécie de gratidão pelo que rário, um homem do povo cuja bandeira era foi feito, e principalmente como forma de ga- cuidar dos pobres, erradicando a miséria abso- rantia de que as boas obras não serão interrom- luta no país com programas sociais de distribui- pidas, esperando assim que seus benefícios pos- ção de renda, que teve no bolsa família o ícone sam ser multiplicados. O termo “continuidade” mais consagrado. assume o sentido de processo natural de evolu- A hipótese que proponho é que, se a ção do que está funcionando bem. fragmentação e baixa credibilidade dos parti- Vale ressaltar que o estatuto da reelei- dos políticos no Brasil conspiram contra a lon- ção alterou as condições sociais de produção gevidade, e em contrapartida a centralida- dos discursos políticos “situacionistas” e “opo- de da personalidade de políticos cujas imagens sicionistas”. O lugar de produção dos discur- se consagram por seus feitos, funciona como sos políticos situacionistas configura-se como âncora da estabilidade na medida em que sua aquele de onde o poder é exercido, e a possibi- atuação ocorre no âmbito de uma matriz insti- lidade de continuar a exercê-lo tende a poten- tucional cujas regras reforçam a dimensão per- cializar sua dimensão performática de apontar sonalista das disputas eleitorais. O estatuto ju- para o que foi feito o que se está fazendo e se rídico da reeleição foi acompanhado de altera- continuará a fazer para melhorar a vida da po- ções valorativas nos usos e distinções semânti- pulação. As fronteiras entre os discursos eleito- cas entre os termos “continuísmo” e “continui- rais e os de publicidade institucional são pou- dade”.Negativamente valorado, o “continuís- co nítidas, já que o governante e o candidato mo” pressupõe práticas de sujeição próprias do são reconhecidos como a mesma fonte emis- poder tradicional ou oligárquico para produzir sora5. O teor e o tom dos discursos situacio- e manter “votos cativos” por formas de coerção nistas dos candidatos à reeleição tendem a ser, simultaneamente econômicas e extra-econômi- mais afirmativos que negativos, mais otimistas cas negadoras dos princípios democráticos. No que pessimistas. O lugar de produção dos dis- vocabulário político o continuísmo é execrado, cursos políticos de oposição, ao contrário, tor- confundindo-se com o “fisiologismo”, metáfo- na-se quase sempre mais espinhoso. Em cená- ra biológica que evoca a política de adesões e rios nos quais são altos os índices de populari- “conchavos” oportunistas motivados pela me- dade dos governantes, as condições de produ- ra fome de poder. O termo “continuidade” ao ção dos discursos de oposição eficazes são ex- contrário, distingue-se do primeiro ao ser re- tremamente precárias, algumas vezes pratica- significado e valorado positivamente como pro- mente inviáveis. Face à redução das oportuni- cesso, que resultante da livre escolha dos cida- dades de mostrar realizações objetivas, a opo- dãos e reconhecendo os méritos de uma gestão sição obriga-se a produzir discursos negativos, política optam por conceder, ao mesmo man- de crítica aos mal feitos dos que ocupam o po-

5 A legislação eleitoral no Brasil não exige que candidatos a reeleição a cargos no poder executivo sejam afastados dos mesmos du- rante o período de campanha eleitoral. 39 der com potencial de sensibilização do eleitora- e em quais condições a atmosfera da campanha do para rejeitar o tempo presente e ainda apre- eleitoral favorece a que denúncias sejam con- sentar propostas que ensejem o desejo e a cren- vertidas em escândalos e surtam os efeitos dese- ça de mudança de rumo para um futuro me- jados pela oposição? Esta é uma indagação pa- lhor. As críticas, no entanto não podem ser ex- ra qual não se tem uma resposta clara, exigindo cessivamente agressivas ou diretas nos casos em um exame das particularidades de cada caso. que a opinião majoritária dos eleitores objetiva- Finalmente ressalto que a perspectiva de reelei- da em percentuais das pesquisas revela-se favo- ção dos ocupantes do poder executivo afeta de rável aos governantes. Foi o que aconteceu na forma significativa a dinâmica das campanhas campanha de reeleição de FHC a presidência para o parlamento ao estimular amplas coliga- em 1998, vitória caucionada na mística de con- ções pré-eleitorais e intensificar o arco das coa- tinuidade do Plano Real. Novamente aconteceu lizões situacionistas pós-eleitorais. Na configu- na reeleição de Lula em 2006, consagrado co- ração de ciclos políticos de longa duração há mo o homem do povo que cuida dos pobres e assim uma confluência dos laços da política tra- em 2010 quando em uma espécie de reeleição dicional com as inovações introduzidas pelas virtual votava-se em Dilma “como se” estives- novas formas de fazer política. Na medida em se votando mais uma vez em Lula. José Serra que o principal “trabalho político” dos parla- (PSDB), principal candidato de oposição à can- mentares, aquele que lhes garante a conquista didatura de Dilma (PT), lançada e encampada e manutenção de mandatos, continua a ser as por um presidente com mais de 70% de apro- benfeitorias e obras, que conseguem levar pa- vação popular, obrigava-se a reconhecer publi- ra suas bases eleitorais (Estados ou Municípios) camente os méritos da ERA LULA e a afian- torna-se essencial estabelecer o melhor trânsi- çar a continuidade do “que tinha dado certo”. to possível com as escalas mais altas do poder Por outro lado, a simbiose das imagens de Lu- executivo estadual e federal que se constituem la e Dilma tornava difícil decidir para quem di- fontes principais das verbas a serem distribuí- recionar os ataques (a candidata? ao seu patro- das e aplicadas7. A longevidade dos ciclos polí- no?) e mais complicado ainda ponderar os ris- ticos potencializa assim as dificuldades de man- cos de que os mesmos fossem interpretados co- ter-se na oposição. O adesismo passa a ser a re- mo ressentimento de inimigos desleais, a quem gra mais geral acentuando a desproporção en- não restavam armas mais honrosas. Como lem- tre as bancadas situacionistas e a oposicionistas. bra Thompson (2002) a propagação de denún- Sob o argumento legitimador de manter uma cias e sua transformação em “escândalos” polí- suposta “governabilidade,” o que se constitui é ticos não se fazem na ausência de oxigênio na uma quase unanimidade. A coloração ideológi- “atmosfera política”, que desencadeie o proces- ca de “esquerda” e “direita”, os princípios nor- so de combustão capaz de corroer rapidamen- mativos e ideológicos que diferenciavam parti- te as imagens dos envolvidos6. Em que medida dos e grupos políticos se diluem na vala comum

6 Ver a obra de Thompson Escândalo Político e Midia- Poder e Visibilidade na Era da Mídia, Ed. Vozes, RJ, 2002. 7 Ver o texto Em Nome das “Bases” - BEZERRA, Marcos Otávio. Em nome das “bases”. Rio de Janeiro: Relume Du- mará, 1999. 40

do pragmatismo político. Um exemplo disto é apresentado e reconhecido como capaz de dar a composição da bancada de apoio a atual pre- continuidade ao seu legado político. A indica- sidente Dilma Roussef: Os resultados das elei- ção do sucessor ideal envolve um paradoxo: ele ções de 2010 para a Câmara dos Deputados e não pode ser um simples “poste” 8 para fixação para o Senado mostram que a base de apoio ao da imagem do Outro, mas, sua imagem não po- governo federal será formada por 402 deputa- de ganhar uma autonomia que ponha em risco dos (de 513) e 59 senadores (de 81) A base alia- o sentido de continuidade que sustenta sua pos- da do governo Dilma Roussef é 13% maior do tulação ao cargo. A relação posterior entre o à alcançada por Lula no segundo mandato: se- eleito e sua “sombra” é quase sempre fonte per- rão 402 deputados federais, contra os 380 que manente de tensões: como governante não po- possuem mandato até 31 de janeiro e os 357 de ser visto como um “fantoche”; como porta- eleitos em outubro de 2006. A bancada oposi- dor de uma “herança” não pode renegá-la pa- cionista antes formada por 33 senadores passou ra eximir-se de responsabilidade de problemas a ter 22 parlamentares contra os 59 da base go- ou crises que tenha que enfrentar. A lealdade ao vernista. A mesma tendência pode ser constata- antecessor em certos casos pode tornar-se um da no Ceará onde a coligação da disputa presi- fardo. Os “sucessores” são quase sempre alvos dencial foi mantida. A dificuldade de manter-se mais fáceis de ataques, o que aumenta a proba- na oposição é ilustrada no depoimento de um bilidade de que o “encanto” da temporalidade senador colhido por jornalista do “Congresso política por eles representada se estenda indefi- em Foco” por ocasião da solenidade de posse nidamente. Ter-se-ia assim uma temporalida- da nova presidente: “Tolerância com o governo de de transição entre ciclos marcada pela gra- em razão da popularidade do presidente. Mui- dativa acumulação de forças de oposição sinali- tos não fizeram oposição com medo disso. E zada pelo crescimento do nível de competitivi- acabaram se estrepando inclusive nas suas pró- dade das campanhas eleitorais? prias candidaturas”, disse o senador Demóste- A eleição de Dilma Roussef, em que o nes Torres (DEM-GO). leitor votou nela como se votasse no próprio Neste sentido quais percalços podem Lula (solicitação explicitamente feita durante a fragilizar a imagem de uma persona política campanha) inaugurou em condições democrá- que encarna a hegemonia de um ciclo político ticas na política brasileira a vigência do ciclo viabilizando a vitória das forças de oposição? político para além de dois mandatos, traz in- Como pensar as perspectivas de alternância do dicações interessantes para as indagações pos- poder? A longa duração de um ciclo que exceda tas sobre condições de transferência de imagens os limites legais do número de mandatos con- sustentadoras da continuidade. Tem-se que es- secutivos exercido por um mesmo mandatário, perar a próxima eleição presidencial em 2014 pressupõe a escolha de um nome que possa ser para analisar em que medida o peso da simbó-

8 Sobre o assunto ver o texto “Luzes no “poste”: análise da eleição para prefeito de Recife em 2008” de Aquiles Magide Bizarro/ Artur Leandro Alves da Silva / Enivaldo C. Rocha publicado na coletânea Como o Eleitor Escolhe seu prefeito – campanha e voto nas eleições municipais, organizada por Antônio Lavareda e Helcimara Teles. FGV Editora, RJ, 2011. 41 lica “Era Lula” permanecerá ou não, como fa- que a vitória de Lúcio Alcântara pode ser tribu- vor preponderante na determinação dos rumos tada principalmente à falta de ousadia da opo- da sucessão: reeleição de Dilma Roussef? A al- sição de esquerda que não acreditando em sua ternância no interior do ciclo político com ou- própria força política lança como candidato ao tra candidatura, ou o retorno do próprio Lu- governo estadual o ex-prefeito do município de la? Quais perspectivas de competitividade de Expõe, José Airton, de reduzida expressivida- um candidato de oposição? Em qualquer das al- de política dentro do seu próprio partido, o PT. ternativas, haverá ainda lugar para a reprodu- Prenunciava-se uma campanha pouco compe- ção de polarização nas disputas simbólica entre titiva e não foi o que aconteceu. Embalado no Lula e FHC que tem marcado as eleições presi- slogan “É Lula Lá e José Airton Cá” a disputa denciais no país desde 1994? foi levada para o segundo turno e vencida pelo Considerando a hipótese de perspectiva candidato do PSDB por uma diferença irrisória de alternância no poder presidencial, quais as de menos de quatro mil votos. Por outro lado repercussões se fariam sentir sobre os ciclos po- a presença de Tasso na campanha de Lúcio Al- líticos estaduais? A de um outro realinhamento cântara na TV ocorreu apenas no segundo tur- que confirme a tendência de articulação verti- no e reduziu-se a uma justificação de que o can- cal e sincrônica entre os níveis governamentais didato por ele escolhido tinha o perfil e o estilo federal, estaduais e municipais? Esta é ainda do político tradicional, maleável no trato e ne- uma longa agenda de pesquisa a ser percorrida. gociações com os seus pares. Pode-se dizer que a força da inércia no campo político atuou no sentido de preservar posições já estabelecidas, 2. AS CAMPANHAS ESTADUAIS DE 2002 E prolongando um ciclo político já em declínio. 2006 NO CEARÁ: TRANSIÇÃO ENTRE CI- Em 2006 o governador Lúcio Alcântara CLOS POLÍTICOS candidata-se a reeleição pelo PSDB sem o apoio de Tasso que durante a fase pré-eleitoral rom- Considero que as campanhas estaduais pe publicamente com ele tecendo duras críti- de 2002 e 2006 trazem as marcas ambíguas de cas à sua gestão. Se na fase pré-eleitoral Lúcio uma transição na quais os enlaçamentos simbó- Alcântara liderava as intenções de voto, com o licos e políticos dos governadores eleitos com a início da campanha no rádio e TV, é ultrapassa- Era Tasso ainda não tinham sido completamen- do por Cid Gomes (PSB) e a distância entre os te desfeitos. dois cresceu de forma constante e substancial eliminando perspectivas de competitividade. Em 2002, a vitória ao governo do can- Os resultados eleitorais confirmaram as previ- didato do PSDB, Lúcio Alcântara, e a conquista sões das pesquisas: vitória retumbante de Cid das duas vagas do Senado, a primeira ocupada Gomes no 1º turno com 2.411.457 votos, cor- pelo próprio Tasso e a segunda por Patrícia Go- respondente a 62,38% do total de votos váli- mes, candidata pelo PPS que teve seu apoio, en- dos, quase o dobro dos 1.309.277 obtidos por cobriam os sinais de declínio do ciclo político Lúcio Alcântara, candidato a reeleição. Acen- tassista. O primeiro e mais importante deles é 42

tua-se a fragilidade do senador Tasso Jereissati serem lançados em oposição à única candidatu- em uma situação em que o governador Cid Go- ra considerada certa, a de reeleição do governa- mes tendo sido eleito por uma coligação de es- dor Cid Gomes. Em janeiro a manchete do jor- querda da qual participavam PSB, PT, PMDB e nal o Povo com citação do governador Cid Go- PC do B não tinha garantias de que o seu apóio mes, “2010 será para visitar obras”, não deixa poderia ser retribuído em 2010 quando preten- dúvidas que sua campanha estava em curso. A dia reelegendo-se ao senado preparar sua saída fotografia do governador com capacete de pro- de cena sem que seu prestígio tivesse sido con- teção utilizado por operários nas obras sinaliza testado. O script da disputa pelo senado seguiu para o “ethos” do “homem de ação”. um rumo distinto do traçado por Tasso. Sem o apóio do governador em exercício, ele desco- Com essa maratona de viagens aos qua- bre no desconforto da oposição que já não era tro cantos do Estado, Cid espera conseguir detentor de força política própria que lhe ga- dar mais celeridade a um conjunto de pro- rantisse a reeleição ao senado. jetos que, segundo ele, estão acontecendo em áreas como educação, saúde, segurança e transporte. (Povo,21-1-2010). 3. A PRÉ CAMPANHA ELEITORAL PARA O GOVERNO DO CEARÁ EM 2010: ASPEC- Somente um nome, o do ex-deputado TOS INUSITADOS federal e prefeito de Maracanaú Roberto Pes- soa (PR), aparece em janeiro como possível pré- O que se convencionou nomear “pré candidato de oposição, decisão condicionada a campanha” para postos majoritários, não é conquista do aval de outros partidos além do uma fase de “não acontecimentos”, ao contrá- PPS, o que não aconteceu. rio, é aquela em que é mais intensa a intera- Por outro lado o centro das discussões ção entre os campos da mídia e da política pa- localizou-se nas perspectivas de rompimento da ra produzir e trazer para a esfera da visibilidade aliança histórica e suprapartidária entre o sena- pública os “bastidores da política”, dando a co- dor Tasso Jereissati e o governador Cid Gomes. nhecer ao eleitor “quem é quem”, identifican- do zonas de atrito, ou de convergência de inte- Prenunciava-se o dilema que o PSDB en- resses entre personagens que com protagonis- frentaria durante todo o período pré-eleito- tas principais ou coadjuvantes têm pretensão de ral: lançar candidato próprio ao governo ou integrar a trama de enredos eleitorais mais ou manter-se na confortável posição de apoiar e menos previsíveis de campanhas com graus de ser apoiado pelo governador em sua pretensão competitividade mais altos ou baixos. maior, a reeleição de Tasso Jereissati ao sena- do. E foi exatamente sobre este dilema que en- O aspecto que considero inusitado na volvia as relações entre Tasso, Ciro e o PT, que pré campanha ao governo do Estado em 2010 o enredo da pré-campanha se desenrolou, ar- é que a pauta jornalista na fase pré eleitoral não rastando-se até ás vésperas das datas finais pa- estivesse centrada em nomes de candidatos a ra realização das convenções partidárias. Para 43 o PSDB de Tasso o melhor dos mundos seria re- partido e do governo Lula, era uma meta vital ceber o apoio do governador para uma das va- e não negociável. gas do senado. O acordo firmado na campanha As observações anteriores não deixam estadual de 2006 entre o PSB de Cid, o PT e o dúvidas que em 2010 os cenários das dispu- PMDB envolveu a desistência de Eunício Oli- tas para a presidência, governo e senado fede- veira (PMDB) de candidatar-se ao senado, em ral no Ceará não estavam dissociados. Para o favor do candidato do PC do B Inácio Arruda, governador era vital a manutenção do arco de tendo com contrapartida a garantia de apóio a alianças que o elegera em 2006. Para tanto te- sua candidatura ao mesmo posto em 2010. Por ria que ultrapassar duas grandes barreiras: no sua vez, Tasso que informalmente apoiou a can- plano nacional as ambições presidenciais do ir- didatura de Cid Gomes em 2006 mantendo o mão mostravam-se incompatíveis seu grupo na base governista durante toda sua com o apoio de Cid a candidatura de Lula; no gestão, esperava em 2010 receber o apóio do plano estadual o lançamento por sua coligação governador a sua reeleição ao senado para uma de duas candidaturas ao senado, Eunício Oli- das duas vagas a serem preenchidas. Cid Go- veira (PMDB) e José Pimentel (PT) implicaria mes supostamente poderia manter o compro- no rompimento definitivo dos laços de lealda- misso com Eunício e ao mesmo tempo apoiar de política entre os Ferreira Gomes e Tasso Je- o amigo e aliado Tasso. Não havia no horizon- reissati preservados até então. te do PSDB a perspectiva de rompimento com o governador. A estratégia adotada por Cid foi adiar ao máximo a explicitação de suas decisões dei- Em matéria intitulada PT rejeita acordo xando que o tempo e a força das circunstân- entre Cid e Tasso, o PT indicava que não seria cias conduzissem o desfecho já esperado, mas fácil ao governador manter os laços políticos no qual ele não aparecia como autor do gesto até então preservados com o tassismo: material do rompimento.

Um dos nomes fortes do PT cearense, o de- No decorrer dos meses de fevereiro, putado federal José Nobre Guimarães afir- março e abril nas páginas do Povo se desenro- mou ontem que se o governador Cid Go- laram capítulos das escaramuças de Ciro Go- mes (PSB) der qualquer tipo de apoio à ree- mes para garantir sua candidatura à presidên- leição do senador Tasso Jereissati (PSDB), cia do país pelo PSB partido que integrava a co- ainda que “por debaixo do pano”, o PT dei- ligação governista que teria assim no primeiro xará a aliança”. Segundo Guimarães, ‘mes- turno dois nomes para disputa, o dele, e o de mo que chova canivetes’ o partido terá no- me próprio para o Senado, o do ministro , candidata do PT lançada por José Pimentel (Previdência). (Guimarães. Lula. Seus pronunciamentos em peculiar esti- 22-2 O Povo). lo provocativo traziam ofensas que atingiam ao PT, ao PMDB e a seu próprio partido. Ciro Para o PT derrotar Tasso Jereissati, iden- pressiona PSB e cobra que partido “pense gran- tificado com um dos maiores adversários do de”. Na disputa pela manutenção da sua candi- datura Ciro Gomes afirma que o PSB deve deci- 44

dir, entre ter candidato, ou continuar em alian- pelas duas partes encontrava impedimento de ças pautadas na distribuição de cargos e favo- uma terceira, o PT. res” (08 de abril de 2010). O dilema político vivido pelo governa- Luizianne Lins representando a direção dor Cid Gomes (PSB), que vem sendo pressio- do PT de Fortaleza assume a dianteira do deba- nado pelo PT e PSDB a optar entre uma das si- te com o governador cobrando dele, com amea- glas no palanque, é a prova de que, também na ças pouco sutis, o apoio incondicional a candi- política, não se pode ter tudo. Abrir mão de datura presidencial de Dilma Roussef, qualquer aliados, cargos e até da própria ideologia faz que fosse o destino da candidatura do seu ir- parte do jogo. É o custo das alianças. E paga mão, Ciro Gomes. quem quer. (O Povo, Coluna Política assinada O argumento principal de Ciro para por Fábio Campos). manter sua candidatura à presidência era am- Tasso persistia na esperança de ter Cid pliar a margem de segurança na derrota do can- como aliado: “Só faltam alguns arranjos para didato do PSDB no primeiro turno, ou na pior aliança”. (o Povo 2/4/2010). Até junho manti- das hipóteses no segundo, o que não se mostra- nha-se a situação paradoxal de existira apenas va convincente nem para o PT, nem para co- um candidato ao governo, Cid Gomes, candi- mando nacional do PSB nas mãos de Eduardo dato a reeleição, justificando-se assim o comen- Campos, governador pernambucano, candida- tário jocoso da imprensa de que sua vitória se- to a reeleição ao mesmo cargo. ria por WO. (metáfora esportiva para a vitória O PT coloca o governador Cid Gomes de um competidor pelo não comparecimento em situação melindrosa ao exigir o apoio às do adversário). duas candidaturas da coligação ao senado e a Cid Gomes não tinha pressa, afirman- indicação do vice na chapa governamental. A do que só se pronunciaria sobre a disputa esta- ameaça era mais um ingrediente de uma ence- dual depois da definição da sucessão presiden- nação na qual o PT sabia que não tinha em suas cial. O tempo corria a seu favor na mesma me- fileiras um nome com densidade política para dida em que minguava o tempo que a oposição fazer frente a Cid, para quem por sua vez era teria para construir candidaturas viáveis e dis- fundamental manter e se possível ampliar a co- cursos plausíveis. ligação que o elegera em 2006. A matéria “Bases frágeis de uma sóli- Ao candidato ao senado pelo PMDB, da hegemonia”, (O Povo, 05/6/2010) a jorna- Eunício Oliveira, também não interessava que lista Kamila Bokasso, aborda essa ausência de um terceiro concorrente colocasse em risco oposição questionando se ela poderia ser inter- uma vitória considerada certa. Matéria publica- pretada como hegemonia completa do gover- da em 1° de maio de 2010, sob o título, O Go- nador Cid. Entre os “especialistas” (sociólogos vernador quer tucanos também, mas resistência e cientistas políticos de Universidades) convo- persiste comenta que o “casamento” desejado cados a pronunciar-se prevaleceu à tese de que a heterogeneidade da base política de sustenta- 45

ção de Cid implicava em um equilíbrio instável para decidir rumos eleitorais”, é reveladora de que poderia ser rompido com facilidade. que a esperança de contar com a adesão do go- Em 22 de abril o jornal, o Povo, dá vernador se esgotará. Três dias após, o desfe- destaque ao encontro de Lula com Ciro como cho ganha manchete: “De aliado a adversário “parte da estratégia do Presidente de remover – Sem resposta de Cid, o PSDB anuncia dispu- sua pré candidatura ao Planalto”. O anúncio ta ao governo”. O presidente estadual do par- oficial do PSB sobre a saída de Ciro da dispu- tido explicou: “a reação é resultado de uma sé- ta presidencial acontece após a decisão tomada rie de desgastes com o Palácio Iracema. Ele dis- em reunião da executiva nacional do partido, se que o insistente silêncio de Cid sobre as co- realizada em Brasília em 27 de abril. Naque- ligações para a corrida eleitoral deste ano soou la ocasião a maioria absoluta dos dirigentes es- como ingratidão diante da fidelidade da sigla” taduais do partido, incluindo Sergio Novais do (11/06/2010). Ceará, votou contra a tese de candidatura pró- Somente com a realização das conven- pria a presidência da República. ções estaduais dos partidos ao final de junho, Faltava a Cid desatar o nó com o PSDB definiram-se as composições das três coligações que insistia na aposta de que os ressentimen- principais para as disputas majoritárias para o tos, resultantes da exclusão de Ciro da disputa governo e o senado: presidencial poderia abalar as relações do go- Coligação “Por um Ceará melhor pra to- vernador com o PT. Todos os partidos (PT, PS- dos”, integrada pelos partidos PSB, PT, PMDB, DB e partidos se oposição – PR e PPS) adiaram PC do B, PDT, PSC e PC do B), apresenta o ao máximo suas convenções a espera da pala- nome do governador Cid Ferreira Gomes co- vra final do governador, que insistia em reafir- mo candidato a reeleição, tendo como vice o mar que seu compromisso político era apenas deputado estadual e presidente da Assembleia de apoio a Eunício Oliveira. Legislativa, Domingos Filho do PMDB. Para o Sem alternativa, em oito de junho Tasso senado vence a tese defendida pelo PT de ter divulga na imprensa seu ultimato ao governa- dois candidatos da coligação ao senado: Euní- dor Cid Gomes: cio Oliveira (PMDB) e José Pimentel (PT). Coligação “Por um Ceará moderno e for- O senador Tasso Jereissati avisou ontem te”, integrada pelos partidos de oposição PSDB que o prazo para o PSDB definir sua estra- tégia eleitoral se encerra neste final de se- e DEM, lançou a candidatura do deputado es- mana. Num gesto de pressão contra o go- tadual César Cals Neto para o governo, tendo vernador Tasso afirmou que tendo, ou não como vice o empresário Pedro Fiúza. Para o se- conversa com Cid, o PSDB vai fechar suas nado, Tasso Jereissati era o único candidato da definições eleitorais até a próxima sexta fei- coligação. ra (O POVO, 8/06/2010). Coligação “Por um Ceará melhor pa- ra todos”, integrada pelos partidos PR, e PPS A matéria intitulada “Tasso teme estar apresentou o ex-governador, Lúcio Alcântara sendo cozinhado por Cid e convoca reunião 46

(PR), para concorrer ao governo tendo como fim do controle do Ceará pelas famílias Je- vice o empresário Alexandre Pereira (PR). ressati e Ferreira Gomes que governam o Estado quase ininterruptamente há quase A matéria “PSDB á procura de um dis- 24 anos. É um ciclo cansado, Ferreira Go- curso de oposição” traz à baila as reduzidas mes e Jereissati, tá na hora de mudar. perspectivas de construção de um discurso de oposição de um partido que até o último mo- mento apoiava o governo e cujo candidato so- O ataque foi sentido e respondido pelo mente pediu exoneração do cargo que ocupava deputado estadual licenciado Ivo Gomes (PSB) de Secretario de Justiça e do gover- irmão do governador e vice prefeito na 1ª ges- no Cid no limite do prazo exigido para desin- tão da prefeita Luizianne Lins (PT): compatibilização dos que pretendiam candida- “O Governo Cid Gomes não pertence tar-se a algum cargo nas eleições daquele ano. ao ciclo político iniciado pelo ex governador e O desconforto de Marcos Cals por uma impre- hoje senador Tasso Jereissati, como afirmou o vista, mas irrecusável convocação de Tasso para próprio tucano em tom de crítica”. O nosso go- ser o candidato ao governo do PSDB, frustrava verno é a inauguração de um novo ciclo no Es- seus planos de uma reeleição considerada certa tado do Ceará. ao sexto mandato de deputado estadual foi ob- Não menos frágil era a candidatura ao jeto de comentário na matéria “Saia Justa” (O governo do ex-governador Lúcio Alcântara Povo 23 de junho). (PR), também decidida nos últimos dias que an- tecederam ao prazo final das convenções par- Da costela de Cid eis que surge o candida- tidárias (28 de junho). O ex-governador Lú- to tucano (...) E Cals resistiu o quanto po- cio Alcântara que amargara fragorosa derrota de a concorrer a um cargo executivo, tendo para Cid Gomes na sua tentativa de reeleição repetido que preferia se manter aliado de em 2006 pelo PSDB (sem o apoio de Tasso) em Cid. Contudo diante da ausência de nomes da confiança de Tasso Jereissati ele foi o es- 2010, com uma base partidária restrita a dois colhido. E imagino que isso tenha aconteci- pequenos partidos tinha remotíssimas chances do só depois de muita chiaderia” A bancada de um bom desempenho em um segundo con- tucana ciente de que enfrentar frontalmen- fronto com Cid. te o governo seria no mínimo contraditó- rio, preferiu destacar seu perfil competen- O título da matéria “Ao oficializar sua te e conciliador. candidatura ao governo diz que é “oposição de verdade”, é posto em dúvida no corpo do texto”: É emblemático o título da matéria publi- cada na edição do jornal em 25 de junho, “Pa- Com um discurso muito parecido com o ra Tasso, Ciclo está cansado”. Nela o senador do PSDB o ex-governador Lúcio Alcântara faz um misto de autocrítica e ensaio de ataque: (PR) se lançou ontem oficialmente na dis- puta pelo Governo do Estado. (...) Lúcio lembra que sua candidatura é anterior à da O senador Tasso Jereissati defendeu ontem legenda tucana. “Eu fiquei na oposição de durante entrevista coletiva em Fortaleza, o 47

desde o início”. Muitas vezes até me ridi- colher em listas previamente selecionas pelos cularizaram, me hostilizaram, dizendo que pesquisadores. eu era um ressentido, dizendo que eu estava fazendo isso por vingança, ressalta (O Povo Na solicitação espontânea, 20% da po- 29 de junho). pulação cearense declarou intenção de voto em Cid Gomes. Entre os “outros” alguns nomes cujas candidaturas eram absolutamente impro- Após as querelas da pré-eleição o cená- váveis como Ciro Gomes (5%), Tasso Jereissati rio que se apresentava era de franco favoritis- e Lúcio Alcântara (ambos com 4%), Luizianne mo da candidatura de Cid Gomes a reeleição ao Lins (2%), e Moroni Torgan e Eunício Oliveira Governo do Estado. O teste de força entre os (1% para cada). irmãos Ferreira Gomes e Tassismo será trava- do na disputa ao senado. Os acertos de última Foram também apresentados aos entre- hora das cúpulas partidárias deixavam as bases vistados dois cenários, o primeiro que incluía eleitorais nos municípios perplexas e cautelosas o nome de Cid e Tasso Jereissati como candi- sobre quem apoiar. De modo especial os depu- datos e o segundo sem a presença do último. tados partidários da candidatura de Eunício do O pressuposto que justifica a estratégia era tes- PMDB reclamavam da concentração de poder: tar o prestígio dos políticos dos dois nomes na disputa eleitoral naquele ano, mesmo sabendo- “Integrantes dos diretórios municipais se que Tasso não seria candidato ao governo, criticam a centralização excessiva da executi- mas ao senado. A transcrição dos dois “cená- va estadual do PMDB nas mãos de Eunício. Os rios” que indicam a preferência do eleitorado prefeitos de Itarema, Robério Monteiro, e do não deixa dúvidas que em uma possível “queda Iguatu, Agenor Neto, admitem apoiar o nome de braços” entre os dois até então aliados, o go- de Jereissati (PSDB) e Pimentel.” vernador Cid Gomes seria o grande vencedor.

4. O QUE DIZIAM AS PESQUISAS ELEITO- Cenário 1 Cenário 2

RAIS: CID GOMES E OS “OUTROS” 16 a 19/03/2008 16 a 19/03/2008

Cid Gomes (PSB) 34 Cid Gomes (PSB) 39 Tasso Jereissati (PSDB) 18 Lúcio Alcântara (PR) 18 Em pesquisa realizada nos dias 16 e 17 Lúcio Alcântara (PR) 13 Moroni Torgan (DEM) 14 de março de 2009, pelo Instituto DATAFO- Luizianne Lins (PT) 12 Luizianne Lins (PT) 13 LHA, o governador Gomes (PSB) liderava iso- Moroni Torgan (DEM) 11 Eunício Oliveira (PMDB) 4 ladamente a disputa pelo governo no Ceará. Os Eunício Oliveira (PMDB) 3 Renato Roseno (PSOL) 3 “outros” que apareciam nos quadros exibidos Renato Roseno (PSOL) 3 Em branco/nulo/nenhum 6 eram de certo modo resultantes dos próprios Em branco/nulo/nenhum 3 Não sabe 3 Não sabe 4 procedimentos das pesquisas pré-eleitorais que precisam apontar competidores possíveis re- A pesquisa do Instituto Datafolha realiza- correndo para tanto a citações de nomes que os da entre os dias 14 e 18 de dezembro de 2009, dez eleitores lembrem, ou de nomes que de forma meses antes das eleições, indicava que o gover- induzida os entrevistados são solicitados a es- nador Cid Gomes seria o grande vencedor em 1º 48

turno em uma disputa de baixa competitividade. dor. A divulgação em agosto de matéria na re- Na primeira pesquisa realizada nos dias 14 e 15 vista Veja com denúncias de envolvimento do de julho após o início do horário gratuito, com governador (e seu irmão Ciro Gomes) em es- candidatos já oficialmente inscritos, ampliou-se quema de desvio de recursos públicos em pre- para 21 pontos a diferença entre Cid Gomes ( feituras cearenses também contribuiu para colo- 47%) e o segundo colocado, Lúcio Alcântara ( cá-lo no desconforto de uma posição defensiva. PR) com 26%. O deputado estadual, Marcos Apesar da queda de seis pontos o gover- Cals, do PSDB, aparecia com 9%, Gonzaga (PS- nador, candidato a reeleição, mantinha-se na li- TU) e Marcelo Silva (PV) com 1% cada. Sora- derança com 52% das intenções de voto (levan- ya Tupinambá (PSOL) e Nati (PSOL) foram ci- tamento anterior, feito nos dias 9 e 10 do mes- tados, mas não atingiram 1% das menções. Os mo e mês, ele aparecia com 58%). votos em branco, ou anulados atingiam 6%, e 12% dos eleitores se declararam indecisos. Em pesquisa IBOPE publicada em 04 de outubro de 2010 o governador Cid Gomes Os dados da pesquisa do IBOBE publi- (PSB), seria reeleito em primeiro turno. Há cados no jornal Diário do Nordeste em dois de dois dias antes das eleições Cid Gomes tinha setembro justificavam a manchete, Hoje Cid es- 55% das intenções de voto contra 32% de to- taria eleito. O governador Cid Gomes (PSB) ti- dos os outros seis candidatos juntos. Lúcio Al- nha 61% das intenções de votos ultrapassando cântara (PR) aparecia com 19% das intenções em 31% as intenções de votos de todos os ou- de voto, Marcos Cals (PSDB) com 11%, Marce- tros seis candidatos ao Governo do Estado do lo Silva (PV) e Soraya Tupinambá (PSOL) com Ceará. O segundo colocado na pesquisa, Lúcio um ponto percentual cada. Os demais candi- Alcântara (PR) aparecia com 17%, o terceiro datos: Gonzaga (PSTU) e Nati (PCB) não pon- Marcos Cals (PSDB) com 10%. tuaram. Em síntese, todas as pesquisas eleito- Pesquisa realizada pelo Datafolha nos rais realizadas nas fases pré eleitoral e eleito- dias 23 e 24 de setembro mostrou que Cid Go- ral eram unânimes nas previsões de que a cam- mes pela primeira vez perdera seis pontos nas panha seria vencida em 1º turno por Cid Go- intenções de voto ao governo, interrompendo a mes que em nenhum momento foi ameaçado tendência constante de alta das pesquisas ante- por outro candidato. riores. A queda foi atribuída ao acirramento das críticas á administração estadual desencadeada CONSIDERAÇÕES FINAIS: O QUE NOS DI- pela morte de um adolescente em ação desastra- ZEM OS RESULTADOS ELEITORAIS DE 2010? da de policiais do programa Ronda do Quartei- rão, que durante toda a primeira gestão contri- buía para sustentar a popularidade do governa- Uma breve análise dos resultados eleito- rais é suficiente para demonstrar que Cid impôs 9 Optei por manter o texto datado, sem atualização da análise face aos acontecimentos políticos posteriores á sua redação original em 2011. Algumas previsões feitas naquele momento se confirmaram. Foi o caso do rompimento entre o PT de Luizianne e o PSB do governador Cid Gomes na disputa pela prefeitura de Fortaleza em 2012, com o lançamento candidaturas apadrinhadas por cada um dos governantes, respectivamente, Elmano Freitas Roberto Cláudio. Com a vitória do seu candidato Cid Gomes se fortaleceu, o que, como já dito, não elimina as tensões entre PT e PSB para manter ou construir novas alianças nas eleições estaduais de 2014. 49 sua supremacia eleitoral em todos os níveis da central nas decisões sobre as próximas dispu- disputa. Elegeu-se governador no 1º turno com tas eleitorais em 20129 para a prefeitura da ca- 61,27% de votos; foram eleitos os dois candi- pital. A prefeita de Fortaleza, Luizianne, tem a datos a senador da sua coligação, Eunício Oli- pretensão de indicar o candidato a sua suces- veira do PMDB com 36,32% dos votos, José são, o que poderá suscitar resistências de ten- Pimentel com 32,3%; a coligação situacionis- dências internas ao PT que disputam com ela a ta elegeu também a maior bancada de deputa- hegemonia do partido. Por sua vez Cid afirma dos estaduais (31 deputados de um total de 46) que seu compromisso com a prefeita já foi cum- e deputados federais (18 deputados de um to- prido com o apóio a sua reeleição em 2008, tal de 22). No primeiro turno a candidatura de invocando por conseqüência autonomia sobre Dilma à presidência obteve no Ceará 66, 3% quem apoiará como candidato a prefeitura de do total de votos válidos, e no segundo turno Fortaleza em 2012. O PC do B também já ma- obteve 77, 35% dos votos válidos. nifestou a intenção de indicar candidato à pre- A votação de Cid foi maior do que a feitura de Fortaleza em 2012, argumentando dos seus opositores não apenas nos municípios que o partido já disputou o cargo por duas ve- do interior, mas na capital, Fortaleza: obteve zes, sendo uma delas contra a própria Luizian- 733.649 votos nominais contra 228.594 de ne em 2004, quando Inácio Arruda foi derro- Marcos Cal (PSDB) e 111.767 de Lúcio Alcân- tado em disputa acirrada decidida em 2º turno tara (PR). A supremacia de Cid Gomes na po- por ínfima diferença de votos. Ou seja, para os lítica estadual confirma-se não apenas por sua partidos que compõem a atual base governis- reeleição ao governo do estado em primeiro ta não há uma “candidatura natural” para a su- turno, derrotando fragorosamente o candida- cessão da prefeita da capital, o que coloca em to do PSDB, mas de modo especial pela derrota pauta a possibilidade de cisões na coligação si- do próprio Tasso na disputa por uma das vagas tuacionista atualmente instalada no governo do para o senado. Seu desempenho foi desastroso Estado e na prefeitura da capital. mesmo em municípios onde os prefeitos per- As turbulências são maiores no horizon- tenciam ao seu partido, o PSDB: dos 54 muni- te das eleições de 2014. A principal dificulda- cípios em apenas 06 (11,11%) Tasso foi o can- de será garantir a vitória do seu sucessor ao go- didato a senador mais votado; em 23 (42,59%) verno estadual, já que não pode mais ser reelei- ocupou a segunda colocação e em 25 (46,29%) to, nem indicar um de seus irmãos como candi- foi o terceiro colocado. A bancada de quinze dato. Para manter-se como personagem nuclear deputados estaduais eleitos em 2006 pelo PS- do ciclo político a que deu início terá que en- DB encolheu para oito em 2010; a de deputa- contrar para sucedê-lo alguém que por um la- dos federais decresceu de cinco para dois. A vi- do não seja um simples “poste”, onde sua pró- tória de Cid Gomes marca o início de outro ci- pria imagem seria fixada e, por outro, que não clo político na política cearense? Do ponto de tenha brilho próprio a rivalizar com a sua. O vista de longevidade eu diria que sim. Tudo le- fato da carreira política de Cid estar associada va a crer que no exercício do segundo manda- ao sobrenome familiar, “os Ferreira Gomes”, to Cid consolidará sua posição de personagem 50

poderá ensejar o ressurgimento de um discur- REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS so de oposição “anti-oligárquico”. Esta foi a se- nha oferecida por Tasso, quando já na oposição ALDÉ, Alessandra. Construção da Política: de- ao governador defendeu “o fim do controle do mocracia, cidadania e meios de comunicação Ceará pelas famílias Jereissati e Ferreira Gomes de massa. Rio de Janeiro, editora FGV, 2004. que governam o Estado quase ininterruptamen- te há quase 24 anos. É um ciclo cansado, Fer- ALMEIDA , Jorge. Como Vota o Povo Brasilei- reira Gomes e Jereissati, tá na hora de mudar” ro. São Paulo, Ed Xamã, 1998. (Jornal o Povo, julho de 2010). Vale ressaltar ainda que sua margem de AQUILES, Magide Bizarro/Artur Leandro Al- manobra no âmbito institucional tende a se re- ves da Silva / Enivaldo C. Rocha, “ Luzes no duzir ao longo do segundo mandato. Diferen- “poste”: análise da eleição para prefeito de Re- temente de Tasso que tinha controle total sobre cife em 2008”. In: Como o Eleitor Escolhe seu o PSDB estadual que com ele se confundia, Cid prefeito: campanha e voto nas eleições munici- Gomes não tem um partido político “que pos- pais, organizada por Antônio Lavareda e Helci- sa chamar de seu.” No plano nacional o pre- mara Teles. Rio de Janeiro, FGV Editora, 2011. sidente do PSB, Eduardo Campos, governador BALANDIER, George. O Poder em Cena. Bra- de ao barrar as pretensões de Ciro sília, Editora UNB, 1982. Gomes de lançar-se candidato a presidência em 2010 deixou evidente sua baixa influência nas BARHES, Roland. Mitologias. São Paulo, Ber- decisões do partido. Na esfera estadual do PSB trand, 1993. Cid Gomes encontra resistências de dirigentes “históricos” da sigla que o consideram de cer- Barreira, Irlys. Imagens Ritualizadas: apresen- to modo “um estranho no ninho”. Por outro tação de mulheres em cenários eleitorais. Cam- lado não me parece que se tenha consolidado pinas/SP, Ed Pontes, 2008. ainda uma simbólica suficientemente forte para demarcar uma temporalidade política reconhe- BERGER, Peter e LUCKMANN, Thomas. A cida como ERA CID. O que não impede que a Construção Social da Realidade - Tratado de marca pessoal de “Construtor de um Ceará No- Sociologia do Conhecimento. Petrópolis – RJ, vo” possa ser alcançada no decorrer do segun- Editora Vozes, 1991. do mandato. BEZERRA, Marcos Otávio. Em nome das “ba- ses”. Rio de Janeiro, Relume Dumará, 1999. Trabalho recebido em 14/10/2012 BORGES, André. “Já não se fazem mais má- Aprovado para publicação em 20/12/2012 quinas políticas como antigamente: competição vertical e mudança eleitoral nos estados brasi- leiros”. Revista de Sociologia e Política, Curiti- ba, v. 18, n. 35, Fev. 2010. 51

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FAMÍLIA, TRADIÇÃO E PODER NA MODERNIDADE BRASILEIRA: O CASO DAS FAMÍLIAS MENDONÇA E MOURA, NA CIDADE DE BELO JARDIM - PE

José Adilson Filho

RESUMO

Este texto apresenta uma reflexão histórica e sociológica sobre as contradições e ambiguidades da cultura política brasileira, focalizando a influência política e socioeconômica de algumas famílias tradicionais nordestinas na história recente do Brasil. De modo mais especifico, analisamos o caso das famílias Mendonça e Moura, na cidade de Belo Jardim, Pernambuco. Os dados indicam que elas utilizam estratégias tradicionais de manutenção e/ou consolidação do poder político, em uma época cujas características mais fortes e visíveis são as mudanças e transformações aceleradas vivenciadas, simultaneamente, em escala global e local.

Palavras-chave: Famílias; Poder político; Tradição; Modernidade brasileira

FAMILY, TRADITION AND POWER IN BRAZILIAN MODERNITY: THE CASE OF MEN- DONÇA E MOURA FAMILIES IN THE CITY OF BELO JARDIM - PE

ABSTRACT This text presents a historic and sociologic reflection on contradictions and ambiguities of the Brazilian political culture from the traditional northeastern families in Brazil’s recent history. Specifically we analyze the case of Mendonça and Moura families, in the city of Belo Jardim - Pernambuco State. The data point out that they have been used traditional strategies in order to maintain and consolidating politic power in an epoch whose strongest and more visible features are the fast changes and transformations, which are experienced both in global and local scales.

Key words: Families; Political Power; Tradition; Brazilian Modernity

Professor da Universidade Estadual da Paraíba, e da FAFICA/Caruaru (PE). E-mail: [email protected]

Raízes, v.33, n.1, jan-jun /2013 54

INTRODUÇÃO a refletir tanto sobre a operação historiográfica como sobre a necessidade de novas leituras das A reflexão histórica sobre o poder lo- relações de poder, plasmadas entre as elites e os cal, principalmente aquela focada no Tempo demais atores, a despeito desta trama ser tecida Presente, tende, não obstante, a se tornar mais numa grande, média ou micro realidade social. vulnerável às altas pressões advindas do calor A hegemonia política das elites (aqui me dos acontecimentos. É, pois, sob tal efeito que refiro as de origem ou perfil tradicionais) e a grande parte das pesquisas sobre a política lo- sua legitimidade em diversos municípios brasi- cal, na sua fase mais contemporânea tem sido leiros é o foco de nosso principal interesse nes- produzida. Analisar este tipo de poder é sem- te texto. Essa hegemonia foi e continua sen- pre problemático, pois mesmo quando nos en- do interpretada por uma plêiade de jornalistas, contramos relativamente distante dele sentimos cientistas políticos, sociólogos e historiadores o peso da sua gravidade. Agora imaginemos o de forma ainda bastante convencional e, mui- pesquisador mergulhado no tempo e no espa- tas vezes recheada de preconceitos, produzin- ço do objeto que pretende investigar, o que po- do, com efeito, uma retração do nosso campo deríamos inferir dessa relação? É possível afir- visual para enxergar outros problemas e possi- mar que devido a proximidade e aos contatos bilidades. de primeiro grau entre os atores (pesquisado- A complexidade e a diversidade presen- res, políticos, cidadãos, etc.) a leitura da trama te nas formas e conteúdos do social e da polí- política venha a se constituir bem mais visce- tica são reduzidas muitas vezes a interpretações ral do que quaisquer outras, por adentrar-se de polarizadas por dicotomias do tipo: modernida- forma aparentemente mais intensa e duradoura de versus tradição, rural versus urbano, nature- no âmago das pessoas. Eis aí uma questão im- za versus cultura, progresso versus atraso, coro- portante para aqueles que procuram pesquisar nelismo versus democracia, como se essas coi- realidades com as quais se encontram umbili- sas fossem vivenciadas na realidade brasileira so- calmente ligados. Os vínculos afetivos e políti- mente a base de antagonismos irreconciliáveis. co-partidários fazem-nos transcender da condi- Sabemos da importância dos dualismos ção de “distantes” observadores a protagonista nas interpretações das realidades históricas e da trama. E vice-versa, já que os caminhos que também do próprio fazer das ciências humanas, levam ao conhecimento da política local são à medida que nos ajudam a classificar, separar e clivados por posições, oposições e misturas. distinguir seres, objetos, ideias e valores. Toda- A análise do poder local, feita sob a pers- via, a vida social é mais dinâmica e tende a em- pectiva do Tempo Presente, tempo esse encru- baralhar as cartas do jogo, rompendo com as zilhado entre a experiência do autor, a observa- fronteiras do in e do out , justapondo-as e mis- ção dos fatos e a sua narrativa1 – interpela-nos turando-as Ao sofrer tal ação as oposições biná-

1. A problemática relação da análise histórica de um tempo, cuja experiência do autor se entrecruza com objeto de estudo tem se constituído um campo historiográfico bastante inovador, sobretudo a partir dos trabalhos desenvolvidos por historiadores france- ses, ligados ao Instituto de História do Tempo Presente. Sobre isso, vide CHAVEAU, J., TÉTART, Phillipe. Questões para o pre- sente. Bauru: Edusc, 2000. 55 rias transfiguram-se em ambiguidades e ambi- gresso, cientificidade e racionalidade. A vida na valências, passando a colocar em dúvida e sus- modernidade corresponderia a um estágio su- peição a vitalidade epistemológica e metodoló- perior da condição humana. Foi sob essa óti- gica de certos paradigmas interpretativos. Por- ca que filósofos iluministas, revolucionários li- que numa realidade mutatis mutandis torna-se berais, socialistas e marxistas forjaram suas uto- imprescindível rever teorias e ampliar a imagi- pias e lutas. Eles criam, fielmente, que “não se nação para pensar as coisas de maneira diferen- podia fazer vinhos novos em odres velhos”. To- te, mesmo que ainda nela estejam fortemente da uma geração de poetas, escritores, artistas, enraizadas velhas práticas do passado. políticos, engenheiros e pensadores da Europa Pensar a longevidade no poder de algu- e de outras partes do mundo radicalizaram a mas famílias ou personagens ditos tradicionais, ideia de que somente sob os escombros da velha a luz do Tempo Presente - seja nos pequenos, ordem é que seria possível erigir-se uma nova e 2 médios ou grandes municípios do Brasil -, de- fulgurante sociedade . Daí a revolução e a guer- manda de cada um de nós maior disposição pa- ra constituírem-se nos métodos mais privilegia- ra ler tal realidade sob a lógica do contrassen- dos para a emergência da civilização moderna. so, principalmente da política na sua dimensão Esta imagem da modernidade fora cons- local e contemporânea (interiorana e nordesti- truída entre os séculos 18 e 19, a partir da com- na, por exemplo). Romper com certos lugares- binação das ideias iluministas com as revolu- comuns, significa tentar apreendê-la como algo ções burguesas, a revolução industrial e as lu- que é simultaneamente complexa, diversa, des- tas dos movimentos sociais, sob a liderança de contínua, contraditória e ambivalente. anarquistas, socialistas e comunistas. Entre to- dos eles vicejava o sentimento e o desejo de destruição e criação, uma crença inabalável de 1. AMBIVALÊNCIA POLÍTICA NO BRASIL que “tudo que era sólido se desmanchava no ar”, como metaforizou Marx no Manifesto Co- Desde cedo nos ensinaram a estudar a munista, em 1848. modernidade como um projeto de ruptura com Contudo, devemos diferenciar o proje- a tradição. Nestes termos, ambos seriam assimi- to original da modernidade do seu processo de ladas não apenas como experiências distintas, ocidentalização3. A ocidentalização da moder- mas, sobretudo, antagônicas. A tradição seria o nidade, isto é, a sua aventura pelo mundo em corolário do antigo, do arcaico, das permanên- paisagens como a América Latina e, particular- cias, ao passo que o moderno se caracterizaria mente, o Brasil, dera-se sobre formações sociais pela pulsação do novo e da novidade, articu- variadas e profundamente complexas. Ao via- ladas ao desejo de velocidade, mudança, pro- jar pelos oceanos atlântico, pacífico e índico,

2 Sobre este espírito destruidor que caracterizou o pensamento e as práticas modernas, Ver Condição Pós-moderna de HARVEY, David. Ver também Tudo que é sólido se desmancha no ar de. BERMAN, Marshal e o Manifesto do Partido Comunista de MARX, karl, entre outros sagazes intérpretes dos sentidos da modernidade. 3 Sobre o processo de ocidentalização da modernidade, suas diferenças e continuidades, vide o texto de EINSENSTADT, N.S. Modernidades Múltiplas. In. SOCIOLOGIA, PROBLEMAS E PRÁTICAS. N° 35, 2001, pp. 139-140. 56

a modernidade não foi simplesmente impondo ocidente a abolir oficialmente a escravidão. En- seus valores e avatares, ao contrário, no conta- quanto sistema político e modo de produção, to com o Outro experimentou tensões, lutas e nós éramos de fato o Outro das Américas. Is- negociações, o que significa dizer que fora for- so tudo foi o resultado dos esforços das nossas çada a dialogar e, não obstante, a mesclar-se elites para que o novo não submergir-se com- com projetos e tradições locais. Seus ventos no pletamente ao velho. Até mesmo alguns libe- Brasil não produziram ciclones e tufões iguais rais críticos como o jornalista Evaristo da Veiga aos ocorridos nas paisagens do centro e do nor- apud Carlos Guilherme Mota (1999) queriam te do continente europeu. mudanças, sem rupturas traumáticas: “Nada de Na “Terra de Santa Cruz”, a modernida- jacobinismo de qualquer cor que seja. Nada de de teve que coabitar com imaginários, crenças e excessos. A linha está traçada – é a constituição. práticas que antes associava à selvageria e à bar- Tornar prática a Constituição que existe sobre bárie... Na verdade, ela chega-nos de forma in- o papel deve ser o esforço dos liberais [...].As- vertida, pois para se adentrar no nosso território sim, Deus e o Diabo na Terra do Sol podiam tivera que ocultar do seu menu justamente a sua conviver juntos e, ao mesmo tempo separados. parte mais radical, democrática e popular. De- Na formação e consolidação do império la absorvemos e incorporamos vividamente seus e da república venceriam as forças mais retró- aspectos políticos mais retrógrados, filtrados pe- gradas, Mas tais vitórias, não obstante, ancora- la reação implacável de papas, czares e reis ab- ram-se no uso frequente da violência privada e solutistas às rupturas e princípios democráticos estatal e de ressignificações da tradição e apro- da Revolução Francesa e da chamada Primavera priações seletivas e pragmáticas do moderno. A dos Povos, arquitetados pelo Congresso de Vie- visão de modernidade era, porém, estrategica- na e a Santa Aliança. No Brasil, conforme assina- mente míope, pois segundo assevera José Mu- la Carlos Guilherme Mota, tais reacionarismos rilo de Carvalho (1997, p.113). contaram desde logo cedo com a firme adesão 4 do imperador Pedro I e das elites dominantes . Na época de que nos ocupamos, moder- O projeto que venceu no Brasil fora o nos, modernidade, modernização significa- projeto conservador e reacionário, que nos per- va muita coisa: a estrada de ferro, a eletri- mitiu conviver lado a lado com uma monarquia cidade, o telégrafo, o telefone, o gramofo- ne, o cinema, o automóvel, o avião [...] To- regida por um príncipe português, a escravi- dos os elementos mencionados podiam ser dão, o patriarcalismo e o catolicismo como a parte do conceito de moderno, mas a ma- religião legitimadora do poder e das estrutu- neira pela qual se combinavam é que vai ras socioeconômicas. Como vimos, as elites do dar o sentido de modernidade, seu maior império souberam apropriar-se dos ideais libe- ou menor grau de rompimento coma tradi- rais adequando-as a estruturas obsoletas e se- ção. Começando pelo aspecto político ela culares. O Brasil tornar-se-ia a última nação do não contemplava a ideia de igualdade e de democracia [...].

4 Sobre a vitória do projeto conservador na construção do Estado brasileiro, ver o texto Ideias de Brasil : Formação e Problemas (1817-1850) de Carlos Guilherme Mota. In. Viagem Incompleta. Vol 1. São Paulo: Editora Senac, 1999. 57

As teses da cidadania, democracia e par- Ditadura Militar e, mais, especificamente a par- ticipação popular que deveriam compor a mo- tir da Nova República, as mídias do país passa- dernidade eram as tematizadas apenas pelos ram a produzir, quase que ininterruptamente, movimentos sociais e alguns intelectuais anar- manchetes e reportagens sobre escândalos en- quistas, socialistas e democráticos. Para as elites volvendo as esferas do executivo, do legislativo da República Velha, a igualdade jurídica pre- e do judiciário com agentes do mercado5. tendida pela maioria seria substituída pela ver- Misturar os opostos do espectro políti- ticalização política, jurídica e social. co constitui prática comum na história mais re- A hegemonia política no Império e na cente do Brasil. Lembremos que no final da dé- República foi favorecida também graças à fraca cada de 1940, sob a batuta do queremismo6, organização e luta dos movimentos sociais, so- o líder comunista Luís Carlos Prestes encon- mada logicamente a violência e ao medo deriva- trou uma estratégia para combater o imperia- do da ação de coronéis, fazendeiros, empresá- lismo e o “entreguismo” das elites conservado- rios, magistrados, promotores, delegados, po- ras, aliando-se a Getúlio Vargas, o mesmo que liciais. Enquanto que a classe média, composta lhe retirou a liberdade por dez anos e entregou por jornalistas, médicos, engenheiros e intelec- sua esposa, Olga Benário, aos nazistas para ser tuais coube à tarefa de produzir, divulgar e legi- morta num campo de concentração. E o que di- timar teses de cunho racistas e autoritárias, fun- zermos do outrora “príncipe da sociologia bra- damentais para a verticalização do poder e da sileira” Fernando Henrique Cardoso, que junto manutenção das desigualdades sociais. a figuras como Mário Covas, José Serra, Fran- A república brasileira de fato ainda não co Montoro fundaram o Partido Social Demo- se republicanizou, pois os segmentos mais rea- crático Brasileiro (PSDB), sob a alegação de que cionários continuam suficientemente sólidos o PMDB estava demasiadamente promiscuído para conter as tendências propulsoras das mu- pela volúpia do poder. Todavia, em 1994, as li- danças históricas. E isto tem sido duramente deranças deste partido, pretensamente ético, fi- percebido pelos setores ditos , que zeram uma ampla aliança que juntava desde o no seu afã para conquistar uma hegemonia po- carcomido PMDB às “retrógradas” oligarquias lítica, terminam sucumbindo a alianças excessi- das regiões norte e nordeste, filiados ao PFL, vamente frouxas e pragmáticas. Após o fim da cuja origem vem da ARENA e do PDS, parti-

5 Denúncias sobre corrupção e formação de quadrilha, comissões parlamentar de inquérito (CPIS), Ações Penais, envolvendo par- lamentares, governantes, empresários e setores da mídia deixam perplexos a sociedade brasileira. No governo de Fernando Hen- rique Cardoso, tivemos os escândalos relacionados a compra de parlamentares para garantir a Reeleição presidencial, a privatiza- ção das empresas estatais, a chamada Pasta Cor de Rosa, o Caso Cacciola, o Projeto Sivam, o Mensalão Tucano e nos governos Lu- la e Dilma, o Mensalão do PT, a CPI dos Correios, denúncias e investigação contra funcionários de alto escalão do governo e de ministros do PT e da base aliada. E parte da própria imprensa mostraria vínculos espúrios, como podemos ver nas relações do re- pórter Policarpo Jr da Revista Veja com a rede criminosa do empresário Carlinhos Cachoeira. Além disso, o próprio procurador da República, Roberto Gurgel, responsável pela formulação da denúncia da Ação 470, apelidada de Mensalão, foi acusado de pre- varicação pelo senador , por ter feito “corpo mole” em relação às investigações da Operação Vegas da polícia federal sobre ações supostamente criminosas praticadas pelo empresário Daniel Dantas. 6 O Queremismo foi o movimento que desejou a volta de Getúlio Vargas à presidência da República no Brasil, após o fim da Se- gunda Guerra Mundial. 58

dos que deram sustentação a Ditadura Mili- pretensamente progressistas atraem forças his- tar. Sob o argumento de que o Brasil precisaria toricamente hostis às mudanças sociais de am- se modernizar e entrar com força na globaliza- pla envergadura. ção, diversos intelectuais “uspianos”, empresá- São indiscutíveis os avanços sociais e os rios e políticos do ninho tucano e do moderno ganhos de cidadania efetuados nos governos “Sul Maravilha” se amalgamaram com antigos Lula/Dilma, mas também se pode dizer que am- “chefes políticos” das regiões Norte/Nordeste, bos tornaram-se reféns do apoio de persona- a exemplo de Antonio Carlos Magalhães (ape- gens incongruentes com o que antes defendia lidado de ACM, “Toninho Malvadeza”), José a ideologia e programa de governo do PT. O Sarney, Jáder Barbalho, , Mar- PT, paradoxalmente, avançou no governo com co Maciel, entre outros. a ajuda de políticos como José Sarney, a quem O PT e os governos de Lula e de Dilma apoiou na sua reeleição à presidência do Sena- são o outro exemplo dos limites da nossa mo- do e a quem defendeu contra denúncia de cor- dernidade política: a de que não é possível se rupção na mesma instituição, sem falar em Col- fazer mudanças econômicas e sociais significa- lor, Renan Calheiros e, mais recentemente Pau- tivas via jogo institucional, sem o conluio com lo Maluf. O malufismo se constituiu em São representantes da velha ordem. Romper total- Paulo como a dissonância absoluta do PT. Ma- mente com ela implicaria em assumir cada vez luf era a tese e Lula a sua antítese. No entanto, mais formas radicais e revolucionárias de se fa- a vontade de manutenção de uma hegemonia zer política. O problema, como sabemos, é que política em São Paulo e no Brasil, levaram Lula a grande maioria do povo tem aderido maci- e Maluf a produzir uma nova síntese na políti- çamente à democracia parlamentar e represen- ca brasileira. tativa e as mudanças moderadas em contrapo- As sentinelas do tradicionalismo políti- sição as propostas radicais ou as formas mais co aprenderam a jogar o jogo das performan- diretas e participativas de exercício do poder7. ces, operando as contradições e as ambivalên- Deriva daí uma fragilização do discurso ideo- cias com mais naturalidade e menos remorso do lógico e da politização das massas e das classes que as esquerdas. Para sobreviver às novas lin- médias em nome de um pragmatismo eleitoral guagens e subjetividades contemporâneas, tor- e de poder, cuja lógica tem juntado os diferen- naram-se, portanto, mais dramatúrgicos. Com- tes como o PT, PSB, PC do B e PDT aos teo- binar velhos e novos dispositivos tem sido práti- ricamente contrários, tais como o PMDB, PP, ca comum aos mais ousados representantes dos PR, PTB, PSD. No teatro da política brasileira, grupos de poder tradicionais. Para eles não bas- veem-se as polaridades do espectro convergi- ta somente representar é preciso fazer acreditar. rem para o centro, pois partidos de orientação

7 Podemos observar isso nas atitudes ambíguas dos eleitores que votam em candidaturas majoritárias de esquerda em nível pre- sidencial e em deputados de direita, filiados a partidos como o DEM e o PP. O próprio eleitor encontra uma forma de conciliar suas paixões locais, intestinais, conservadoras com algo que sinalize uma mudança maior. Vale frisar que este mesmo povo tam- bém se mostra profundamente insensível a ideologias e a propostas radicais, sejam estas advindas da extrema esquerda ou da ex- trema direita. Daí estes partidos se caracterizarem pelo inexpressivo desempenho eleitoral e força política junto à sociedade brasi- leira. Parece-nos que o pragmatismo é a principal característica da nossa “Cultura Política” na sua dimensão mais contemporânea. 59

Vale apena perscrutar o pathos que le- tes públicos ou privados, sagrados ou profanos, va empresários, trabalhadores, desempregados, macros ou micros. Apesar das intempéries pro- funcionários públicos, profissionais liberais, re- vocadas pela dinâmica da vida moderna, elas ligiosos, estudantes, professores e intelectuais continuam vivas, imponentes e sedutoras. Tal de cidades médias, porém, já modernas e com- como a Fênix renascem das cinzas. Mas a ver- plexas como Campina Grande (PB), Carua- dade é que elas nunca foram submetidas a cin- ru (PE), Belo Jardim (PE), Mossoró (RN), Pe- zas por nenhuma revolução social ou quaisquer trolina (PE) a creditarem sua confiança e o go- tipos de mudanças radicais. Portanto, em certa verno de suas cidades em indivíduos e famílias medida, podemos afirmar que as famílias con- que roubam a cena pública há várias décadas? tinuam influenciando o jogo político nos mu- De onde emanam tanta sedução e paixão? São nicípios, estados e até na nação, como vimos questões difíceis, mas que exigem algumas res- com as famílias Sarney e Magalhães. No cam- postas. Neste momento iremos nos debruçar so- po das comunicações, sobretudo, nas mídias te- bre três famílias proeminentes da vida política e levisivas e impressas onde apenas algumas famí- econômica do estado de Pernambuco, mas que lias (Marinho, Frias, Mesquita, Civita, Macedo, tem suas origens e ações mais fortes fincadas na Sayad, Abravanel) exercendo o monopólio dos cidade de Belo Jardim, no agreste central, a cer- principais meios de comunicação do país. ca de 180 km do Recife, a capital do estado. Se tal realidade salta aos olhos em ní- vel nacional, macro, o que dizer então da atua- 2. PODER E NEGÓCIOS: DUAS FAMÍLIAS, ção das famílias mais poderosas em nível micro, UM SÓ CORPO municipal, sobretudo, nas cidades interioranas e periféricas do Brasil? A leitura da nossa mo- dernidade passa por essa presença intersticial Na história da sociedade brasileira a pre- do poder familiar na vida das pequenas e mé- sença do poder de tipo familiar constitui-se nu- dias cidades. Iremos discutir como isso se deli- ma marca indelével. Vimos sua força através do neia no município de Belo Jardim – PE, locali- poder discricionário dos senhores proprietários zado no agreste central e contando atualmente de terras e de escravos e dos coronéis da repú- com uma população de mais de 70 mil habitan- blica, mas também na constituição e consagra- tes, sendo há mais de quatro décadas hegemo- ção de juristas, burocratas, empresários, jorna- nizada política e economicamente pelas famí- listas, políticos e até em alguns dos intelectuais lias Mendonça, Galvão e Moura. responsáveis pelas principais interpretações do Brasil. Como afirma Wright Mills (1982) em quase todos os municípios da América sem- As famílias ainda exercem influencia na pre existiu ou ainda existem algumas famílias nossa história, a despeito de estarmos viven- voejando sobre as demais. Estas famílias são do sob o prisma de tempos líquidos (Bauman, as mais influentes, pois são as detentoras dos 2000) ou fraturados (Hobsbawn, 2012). Elas meios de produção e dos bens simbólicos mais caminham na transversal da história brasilei- desejados e cultivados pela maioria dos indiví- ra, obliquamente, nos entre-lugares, sejam es- 60

duos que constituem as sociedades locais. Se- duas famílias que se tornariam fulgentes e em- guindo uma velha e eficiente tradição, elas esta- blemáticas não apenas na história de Belo Jar- belecem alianças políticas e forjam casamentos dim, mas também no Estado de Pernambuco. entre si com vistas à manutenção e a ampliação Ambas fortaleceram-se mutuamente do capital político, econômico e cultural. com a aliança. Os Moura financiavam as cam- Na cidade do Belo Jardins, ambos as- panhas eleitorais dos Mendonça enquanto es- sumem, metaforicamente, a condição de seus tes, através de mecanismos políticos e burocrá- principais jardineiros, os responsáveis legítimos ticos, atraiam investimentos públicos para o por cuidar da sua ordem, beleza e progresso. As Grupo Moura. Todavia, era preciso garantir es- famílias Mendonça, Moura e Galvão são, em sa unidade na forma de coesão familiar, da pre- última instância, os definidores da trama po- servação e continuação de um capital simbóli- lítica que se desenvolve há quase meio século. co: os sobrenomes e sua significação. Os sobre- Desde 1960 até o presente momento, estive- nomes das famílias tradicionais, segundo Bour- ram ininterruptamente se alternando no poder. dieu (1996, p.137), constituem-se “num dos lu- E por um curto período (1969-73) foram alia- gares por excelência de capital simbólico sob dos contra a família Maciel e o grupo lidera- diferentes aspectos e a sua transmissão entre as do pelo deputado estadual Luís de França. Em gerações resguarda a sua unidade. Isso se torna certa medida sua ascensão e hegemonia política bem claro, por exemplo, na transmissão do no- foram favorecidas pelo apoio dado a Ditadura me da família, elemento primordial do capital Militar, mas não sucumbiram ao declínio deste simbólico hereditário”. regime, já que souberam adaptar-se aos novos Este capital simbólico de que nos fa- arranjos políticos, econômicos e culturais vivi- la Pierre Bourdieu é realmente consagrado no dos pelo país. Sua personalidade forte e atuan- nome dos filhos e, principalmente na sua lu- te mostra os limites e descontinuidades da “No- ta para continuar mantendo-o visível e forte, a va” República brasileira. Uma tradição que pre- partir dos dispositivos que dispõem para isso. cisa se legitimar pela apropriação de algumas Na cidade do Belo Jardim, as famílias Moura e mudanças. Mendonça dispõem de vários meios para man- Os Mendonça e os Moura se constituem ter seus espectros sempre reluzentes e duradou- na esfera local como duas famílias que formam ros no imaginário social dos citadinos. um só corpo do ponto de vista da unidade dos interesses políticos e econômicos que os mobi- lizam. Tal união começa com o casamento de 3. OPERANDO COM A AMBIVALÊNCIA: Estefânia Moura, filho de Pedro Moura Jr. e ir- TRADICIONAIS E MODERNOS, NA MEDI- mã do engenheiro Edson Mororó Moura, pro- DA DO POSSÍVEL prietário das fábricas de baterias Moura, com o jovem empresário e futuro deputado estadual José Mendonça Bezerra. Deste casamento nas- Os nossos pretensos demiurgos seguin- ceria simbolicamente uma grande aliança entre do uma prática discursiva entre as elites brasi- leiras dão a entender que seu sucesso na políti- 61 ca e nos negócios advém, sobretudo, do seu ta- tos e instituições. Os Moura e os Mendonça se- lento e vocação individuais. Procuram colocar- rão, na cidade do Belo Jardim, aqueles atores se como o super-homem de Nietzsche, isto é, que irão constituir uma extensa e variada rede como homens que a partir da sua vontade de de relações pessoais e interpessoais com vistas potencia conseguiram superar as barreiras im- a voos por paisagens sociais, geograficamente, postas pelo lugar, o tempo e a cultura. Mas pa- bem maiores do que aquelas circunscritas ao lu- ra além de quaisquer talentos ou determinação, gar vivido. eles tiveram que lançar mãos de vários subter- A partir dos anos 1990, os Mendonça fúgios e estratégias para vir a se tornar as figu- vão deixar de ser uma elite de expressão local ras proeminentes da sociedade local. Suas his- para se transformar numa oligarquia estadual. tórias de sucesso, seja nos negócios ou na polí- Mas esta visada política passava por conexões tica, estão associadas ao braço amigo da Dita- com áreas que envolviam a cultura, os esportes, dura Militar, que apoiaram do início até o fim, o judiciário, organismos estatais, casamentos e e a seu pragmatismo para imergir-se em novas alianças até então impensáveis. Ousadia e des- tramas sociais e políticas. pudor tornaram-se também marcas dos Men- O pragmatismo e a ambivalência estarão donça na política. presentes nas suas práticas e discursos, enfim, No campo cultural procuraram fortale- nas suas estratégias de sobrevivência e mesmo cer o habitus de classe, mediante uma forma- de hegemonia. E tais ações se tornaram mais ção universitária mais jurídica e técnica. Alguns evidentes em momentos de crise, transições de dos seus filhos e filhas serão formados em Ad- regimes, mudanças mais à esquerda do espectro ministração de empresas e Direito, sendo pre- político, como as que ocorreram no Brasil, des- parados, portanto, para atenderem simultanea- de as Diretas Já (1984), a eleição de Tancredo mente os interesses políticos e econômicos do Neves, no Colégio contra Paulo Maluf, a cria- clã, uma vez que durante os anos 1980 e 1990, ção do PFL (Partido da Frente Liberal), oriun- atuaram como empresários nos setores da pe- do de uma ruptura com o PDS, o inchamento cuária, suinocultura e da avicultura na região do PMDB com a filiação de representantes das do agreste pernambucano. Empresas como a velhas oligarquias do norte e do nordeste e as Belasa, Pecasa e Suibesa representaram o bra- alianças destas com o PSDB e o PT durante os ço econômico do clã. Mas parte de seus investi- governos de Fernando Henrique Cardoso e de mentos foi direcionado ao setor imobiliário co- Lula e Dilma. mo atestam a construção de um hotel e de um Assim, as elites de Belo Jardim interpe- condomínio. Sendo que a maior parte dos re- ladas pelos novos contextos e arranjos políti- cursos que financiava tais empreendimentos ad- cos, sociais e econômicos do país procuraram vinha de organismos estatais como o Finor, a renovar suas práticas e estabelecer novos dis- Sudene e o BNDES, ou seja, das conexões e in- positivos e alianças. Era preciso ampliar o ca- fluências que o líder do grupo, o então deputa- pital social para construir interna e externa- do federal José Mendonça (falecido em 2011) mente conexões e alianças com outros segmen- mantinha com figuras de peso na política esta- 62

dual como Marco Maciel, Moura Cavalcanti, nos jardins do Caxangá Golf Club, teve mais Nilo Coelho ou de militares de alta patente e al- de dois mil convidados, 160 padrinhos e a pre- tos executivos instalados na burocracia federal. sença festejada, entre outros, do então governa- Enquanto que Mendonça Filho (atual- dor do estado Joaquim Francisco, do prefeito mente deputado federal pelo DEM) ampliaria do Recife e de Paulo Maluf, o capital social e cultural do grupo familiar ao amigo de longa data da família. O casamento se casar, em 1988, com Taciana Vilaça, a filha foi um fiasco, pois não duraria uma noite de ve- de Marcus Vinícius Vilaça, ex-ministro do TCU rão, mas cumpriu seu papel diante dos holofo- (Tribunal de Contas da União) e ex-presidente tes da mídia e dos interesses políticos e de clas- da ABL (Academia Brasileira de Letras). O casa- se que estavam subjacentes. Ali estava presente mento aconteceria na oficina do artista plástico o líder máximo do PMDB estadual, Jarbas Vas- Francisco Brennand para algumas centenas de concelos, e muitos líderes do PFL como Joa- convidados e padrinhos; governador, ex-gover- quim Francisco, Marco Maciel, Roberto Maga- nadores, desembargadores, ministros, prefei- lhães. Velhos antípodas que viriam a se tornar tos, deputados, empresários, artistas, enfim, a aliados. Nas palavras de Adilson Filho (2009, “nata” da elite pernambucana. Este casamento p.157-158): foi preparado para se tornar um grande acon- tecimento político e social: a escolha do local, A família Mendonça – mais do que os Gal- a suntuosidade, a quantidade e o tipo de per- vão – recorre com mais avidez aos envolvi- sonagens, sem esquecer da cobertura feita por mentos com a chamada “alta sociedade per- jornalistas e colunistas dos jornais do Comér- nambucana”, ou seja, com seu estrato so- cial dominante, através de eventos e espa- cio, do Diário de Pernambuco e das emissoras ços exclusivos como baile municipal do Re- filiadas à Rede Globo, SBT e Bandeirantes aju- cife, Lyons Club, maçonaria, viagens ao ex- dou a consagrar a imagem dos Mendonça en- terior etc. Com frequência ganham visibili- tre os mais altos estratos da elite pernambuca- dade nas colunas sociais dos principais jor- na. Portanto, não fora apenas um casamento de nais e canais de televisão da região. gente importante, mas um rito de passagem pa- ra coroa-los simbolicamente entre aqueles que A partir da década de 1990, os Mendon- não apenas se veem como os mais ricos e pode- ça conquistaram mais projeção na política e a rosos, mas também como os melhores, os mais partir dela noutros espaços sociais. Um exem- refinados e educados da sociedade. Seguindo a plo disso será sua eleição para presidência do mesma lógica, Danilo Mendonça, um dos ca- Santa Cruz Futebol Club, um time cuja torci- çulas do clã, reproduzia a mesma suntuosidade da é uma das mais fanáticas do país. Será com e espetacularização do irmão, ao se casar, em a ousadia e o pragmatismo de José Mendon- 1993, com Aline Correa (ex-deputada pelo Es- ça que sua família e seu grupo chegam aos pos- tado de São Paulo), filha do então deputado fe- tos mais elevados do poder político no Esta- deral Pedro Corrêa, (atualmente envolvido no do de Pernambuco. Este momento chegou sob escândalo do “Mensalão”). O evento aconteceu o embalo de uma festa ocorrida no dia 05 de 63 dezembro de 1993, na Fazenda São José, lo- Mas eles precisam da legitimidade po- calizada no município de São bento do Uma. pular e, por isso investem nos elementos da tra- Este encontro articulado pelo deputado fede- dição, do sagrado e do profano. Sua legitimi- ral José Mendonça juntou velhos remanescen- dade passa pelo imaginário dos seus eleitores tes do conservadorismo com figuras históri- das camadas populares. Daí a invenção de fes- cas da resistência democrática ao regime mili- tas, sua valorização e presença em bares, clubes, tar. Colou Jarbas no mesmo palanque de Mar- praças, restaurantes, jogos desportivos bem co- co Maciel, Roberto Magalhães e Inocêncio Oli- mo a criação de times de futebol e de estádios, veira, distanciando da frente popular, liderada e de relações com jovens e religiosos. José Men- por Miguel Arraes. De acordo com Adilson Fi- donça começou sua carreira política sempre ao lho (2009, p.142). lado de figuras religiosas importantes como Pa- dre Zuzinha, liderança da cidade de Santa Cruz Desta aliança resultaria a eleição de Men- do Capibaribe e do Bispo Dom Mariano, da donça Filho por duas vezes consecutivas pa- Diocese de Pesqueira - PE. Foi utilizando de ra o cargo de vice-governador do estado de tais dispositivos que tornarem-se durante cer- Pernambuco e de sua indicação a candidato to tempo figuras destacadas no cenário políti- oficial da aliança PMDB, PFL e PSDB a go- verno do estado nas eleições de 2006. Até o co estadual. Depois da chegada de Lula/Dilma dia 31 de dezembro de 2006, Mendonça Fi- e Eduardo ao poder, as forças ligadas a Jarbas e lho ocupou o cargo de governador de Per- a Marco Maciel sofreram um forte encolhimen- nambuco, em substituição a Jarbas Vascon- to, que afetou os Mendonça, mas que não re- celos, que precisou renunciar ao cargo pa- presentou ainda a morte do grupo. Ainda lhes ra se candidatar a uma vaga no senado. Na restam dois deputados federais, alguns depu- corrida ao Palácio das Princesas, Mendonça tados estaduais, dezenas de vereadores, alguns Filho seria derrotado por Eduardo campos por uma diferença de um milhão e trezen- prefeitos e uma razoável rede de amigos, corre- tos mil votos (...). ligionários, médicos, advogados, funcionários públicos, empresários, entre outros. Como podemos perceber o referido clã Já os Moura, a partir da década de 1990, foi a cada lance alargando as bases políticas e tornar-se-iam os maiores produtores de bate- aumentando com isso seu cacife, até chegar ao rias da América Latina. Seu sobrenome passa- governo de Pernambuco, mesmo que fosse por ria a dar fama a um produto que articulou o lo- um curto período de tempo. Nesse período, o cal ao global, já que as baterias automobilísticas grupo atingiu o máximo de seu poder. Sua es- produzidas pelos operários(as) de Belo Jardim tratégia visava trabalhar em três frentes: des- se espalharam por todo território nacional, par- bancar o grupo Cintra Galvão na cidade de Be- te da América Latina, Itália e Alemanha e Esta- lo jardim, fortalecer a influencia no espectro dos Unidos. As baterias também trouxeram fa- político estadual e eleger Mendonça Filho, o ma, poder e fortuna para a família Moura. governador do Estado. Quase conseguiram se Através de mudanças na gestão, na po- não fossem desbancados pela aliança Eduardo lítica de recursos humanos, investimentos em e Lula, via frente popular. 64

tecnologia e qualificação da mão-de-obra as ba- É de lá que sai um quarto de todas as bate- terias fizeram a família Moura ser reconhecida rias de automóveis produzidas no Brasil; os e respeitada nacional e internacionalmente no 2,5 milhões de unidades fabricados anual- mente pela Bateria Moura, grupo que er- setor. Os vários prêmios recebidos no Brasil e gueu em Belo Jardim a maior indústria de no exterior são legitimadores deste sucesso em- acumuladores da América Latina. presarial. Sua pujança levou-a a competir em pé de igualdade com a fábrica Heliar, uma mul- Para construir a diferença e excepcio- tinacional norte-americana. nalidade do grupo Moura, a reportagem invo- O crescimento e a consolidação no mer- ca uma série de imagens estereotipadas da re- cado nacional pelo Grupo Moura e, principal- gião, tais como seca, pobreza, atraso econômi- mente o fato de ter a matriz sediada em Belo co, social e cultural para demarcar a importân- Jardim e, logicamente, por gerar a maior quan- cia e o significado da empresa para a cidade e tidade de empregos industriais e de impostos o país. Será, portanto, o talento, a determina- para o município, fez com ela se tornasse uma ção e a criatividade desta família os verdadei- espécie de emblema do progresso e da moder- ros responsáveis por retirarem os belojardinen- nidade local. Os discursos de fora também aju- ses de um “cenário medieval” para inseri-los no dam a reforçar esta imagem ufanista. Numa re- tempo da modernidade, o tempo do progresso portagem feita pelo Jornalista Jomar Morais da e do desenvolvimento social. Mas este tipo de Revista Exame, em 20 de outubro de 1999, a reportagens fortalece, por sua vez, o espírito de Moura foi colocada como uma espécie de “oá- demiurgos dos Moura em relação à cidade. To- sis” do “sertão”. Vejamo-la: das essas questões associadas e articuladas for- necem o cabedal para sua legitimação social. À véspera do ano 2000, Belo Jardim, cida- Reproduzindo um discurso comum a de de 50.000 habitantes no sertão de Per- burguesia brasileira, essa família procura digni- nambuco, surpreende o visitante com uma cena que lembra tempos medievais. Ali, po- ficar seu êxito e o tamanho do patrimônio acu- de-se perceber a classe social de uma pessoa mulado nos negócios a partir da valorização da não apenas pela aparência da roupa ou do capacidade individual dos seus membros para meio de transporte que esteja usando, mas, superar as dificuldades. Geralmente, tais histó- sobretudo, pelo tipo de vaso que utiliza rias começam com uma figura visionária, que num ritual que, três vezes por semana, reú- “sem lenço, nem documento, nada no bolso ou ne os moradores no lugar: a romaria aos ca- na mão”, venceram as intempéries da história e minhões-tanques que trazem água potável, líquido que a seca implacável há dez me- as hostilidades de uma natureza implacável. As ses fez sumir das torneiras. Os mais pobres falas a seguir de Dona Conceição e de Edson carregam baldes, latas e panelas. A classe Moura (o Dr. Edson, “o visionário”), respecti- média exibe potes e barris de plástico. Esse vamente, realçam bem tal argumento. drama poderia ser o único destaque de uma cidade incrustada numa das áreas mais ári- Por isso, é preciso olhar as páginas do passa- das do Nordeste. Poderia. Mas Belo Jardim do para entender o sucesso da Moura. Mais não surpreende apenas por seus problemas. 65

do que isso, é preciso compreender o senti- se teria avançado tanto”. E este apoio nunca foi mento de um homem que sonha e busca in- dissimulado, embora o amigo de Marco Maciel cansavelmente a realização dos seus ideais, e cunhado de José Mendonça, ambos do PFL, esquecendo as dificuldades, ignorando bar- sabia usar da sua “excentricidade” para dar gui- reiras [...] quem poderia imaginar que uma empresa do interior do Nordeste pudesse se nadas à esquerda quando lhe fosse interessante. colocar no podium nacional das melhores Neste artigo e em vários pronunciamentos fize- em sua área de atuação. (40 anos de ener- ra duras críticas ao governo de Fernando Hen- gia. In. Notícias Moura – Ano 3 – agosto de rique e a candidatura de José Serra por acha-los 1997, Nº 25.). demasiadamente contrários a soberania nacio- nal e ao Nordeste. Nas eleições de 2002 e 2006 A própria Moura é, em si mesma, um caso surpreendente. Surgiu do nada, há 42 anos, votou em Lula para presidente e, como efeito quando havia na cidade apenas um carro e dos bons índices de crescimento econômico vi- não mais que 700.000 mil veículos roda- vidos durante o governo do petista, teceu vá- vam no resto do país. Desde então, escreveu rios elogios a ele antes do seu falecimento em uma história na qual a mistura de criativida- 2009. Era uma figura ambivalente ou “excên- de e audácia, especialmente nos momentos trica”, como gostava de se definir, pois quem de crise, tem garantido à empresa avanços poderia imaginar “um capitalista que tece loas num dos setores mais competitivos da eco- nomia. (Revista Exame, op. cit, p. 71) ao bigodudo Josef Stálin, o sanguinário comu- nista, e um pefelista que trata de negócios sob uma foto emoldurada de Che Guevara? (Revis- Embora também resguardem certa coe- ta Exame, p.9) aproveitando-se dessa ‘excen- rência, tais discursos superdimensionam o pa- tricidade escreveu um artigo no Diário de Per- pel do indivíduo em detrimento da classe social nambuco intitulado “A Sudene é nossa”, o qual e das suas conexões políticas e institucionais visava: que os envolvem. E mais do que isso: quando não ocultam a terríveis condições de trabalho e saúde dos operários e a própria poluição da na- O apoio de todos os expoentes da política e da cultura pernambucana. Da direita à es- tureza, procura naturalizá-los como decorrên- querda, passando por intelectuais como Mi- cia inevitável do progresso. Ou seja, dando a chel Zaidan, Ariano Suassuna, Evaldo Ca- entender que é preço que se paga pelos avanços bral, pede-se o seu concurso “independente conquistados por todos os citadinos. de suas convicções político-partidárias, pa- As histórias de sofrimentos dos operá- ra com uma Sudene fortalecida cantarmos com toda autenticidade a “Nova Roma de rios e a defesa da Ditadura militar, a visão auto- Bravos Guerreiros”. (Adilson Filho, 2000, ritária e as ambiguidades de Edson Moura são p.192). ofuscadas pelo brilho do visionário nacionalis- ta e empreendedor. Mas ele mesmo reconhe- Seu pragmatismo e ambiguidade torna- ce num artigo intitulado “A Agonia Nacional”, ram-lhe menos alinhado e fiel politicamente em publicado no Diário de Pernambuco, no dia 20 nível nacional às teses do seu amigo e cunhado de julho de 2001, que “sem apoio político não deputado José Mendonça Bezerra. Mas, no pla- 66

no municipal e estadual, eles foram como “car- outras forças políticas ( casos do PT, Deputado ne e unha”, unidos como duas famílias num só Luís de França, família Maciel) foram humilha- corpo. E a morte comprova isso: José Men- das nas urnas. donça foi enterrado no próprio túmulo de Ed- O que explica, a meu ver, a continuida- son Moura, selando simbolicamente a unidade de e força política e econômica destas famílias dos interesses das duas famílias. Os dois líderes no poder, talvez seja o fato de terem aprendi- mesmo mortos continuariam juntos. do a dialogar e a se apropriar simultaneamente dos signos do moderno e da tradição nos seus CONSIDERAÇÕES FINAIS mais variados aspectos. Sendo assim, tais famí- lias, sem perder de vista os aspectos essenciais da tradição – o discurso sobre o sagrado, o pro- Ao longo deste texto focamos nosso fano, certas moralidades – investem nos novos olhar nas contradições e ambivalências da cul- avatares do discurso político moderno, além tura política brasileira, tentando mostrar como das alianças e conexões que passaram a fazer o velho e os novo se tencionam e se justapõe no sentido da ampliação dos seus vários tipos em dados momentos da história do país. Toda- de capital. via, o objetivo principal foi analisar as estraté- gias de algumas famílias tradicionais para conti- A sua legitimidade cada vez mais pres- nuarem influentes no espectro da política, uma cinde desta capacidade de vestir e se revestir vez que buscamos discutir como tais atores vêm com as máscaras e os adornos de diferentes interferindo na dinâmica das tramas políticas temporalidades. As famílias Mendonça, Moura que envolvem tanto os municípios como os es- e Galvão tanto a nível político quanto nos ne- tados da federação, a partir da segunda metade gócios aprenderam a jogar esse jogo, e operan- do século XX, a despeito das suas transforma- do com simbiose que conseguem fazerem-se in- ções aceleradas. fluentes e, ainda decisivos num mundo repletos de intempéries. Os casos das famílias Mendonça, Mou- ra e Galvão são exemplos razoáveis desta pre- sença insofismável da força da tradição na vida Trabalho recebido em 10/10/2012 sociopolítica e econômica brasileira. Há meio Aprovado para publicação em 22/12/2012 século hegemonizam as escolhas políticas dos cidadãos do município de Belo Jardim, locali- REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS zado no agreste pernambucano, de tal forma que até o presente momento não houve nenhu- ADILSON FILHO, José. A cidade atravessada. ma fissura na sua hegemonia, a não ser entre Velhos e novos cenários na política belo-jardi- os próprios familiares. Mas a dominação políti- nense. Recife: Comunigraf, 2009. ca inscrita a partir dos referidos sobrenomes se mantém sólida. As poucas tentativas de romper BAUMAN, Zygmunt. Modernidade líquida. a bipolarização, sustentada na oposição Men- Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2000. donça-Moura versus Galvão, provocadas por 67

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SOCIABILIDADE E PODER: FAMÍLIAS TRADICIONAIS E PRÁTICAS POLÍTICAS NO SERTÃO DO MÉDIO SÃO FRANCISCO

Maria Ferreira

RESUMO

Este artigo busca refletir sobre práticas de sociabilidade e poder familiar em torno da terra e da política no médio São Francisco, dois elementos fundamentais para produzir e reproduzir uma elite local e o tipo hegemônico de propriedade familiar privada, de modo a dividi-la sem que se altere o status quo. Os membros das principais famílias proprietárias de terras da região men- cionada formaram um coletivo de atores políticos, os quais são co-proprietários de terras e defendem seus interesses de modo a perpetuar suas posições de poder na área.

Palavras-chave: Família; Poder político; Redes de sociabilidade.

SOCIABILITY AND POWER: TRADITIONAL FAMILIES AND POLITICAL PRACTICES IN THE SERTÃO OF MEDIUM SAN FRANCISCO (BRAZILIAN NORTHEAST)

ABSTRACT

This article deals with practices of sociability and family power around the land control and politics in the sertão of medium São Francisco River (Brazilian Northeast), two key elements for producing and reproducing a local elite and the hegemonic type of of family land private property, through internal sharing without changing in the status quo. Members of traditional landowners’ families formed a body of politicians, co-owners of land who defend their interests in a way that perpetuates their power position in the mentioned area.

Key words: Family; Political Power; Sociability Network.

Professora da FABEJA, Faculdades de Ciências Humanas e Aplicadas de Belo Jardim-PE. E-mail: [email protected]

Raízes, v.33, n.1, jan-jun /2013 69

INTRODUÇÃO tinos. Ao mesmo tempo em que eram “gigan- tes e inexplorados”, sinônimo de perigo e de O Sertão português no Brasil compreen- medo, os sertões se tornaram um desafio e ali- de uma área singular no conjunto das posses- mentavam o desejo do colonizador de ali en- sões ultramarinas lusitanas. Ao se afastarem da contrar ouro e outras riquezas. Portanto, pode- Zona da Mata1 e se interiorizarem, portugueses se dizer que, no contexto dos primeiros séculos passaram a conviver não somente em um clima de domínio europeu no Brasil, sertão significa- diferente, também, estavam frente a um gran- va o ‘locus’, cujo sentido é o interior das terras de desafio. A hinterlândia pernambucana, além ou do continente, pode ou não vir implícita à de distante, é quente e seca. Área de coloniza- ideia de aridez ou de área despovoada. ção tardia, a região sub-médio do rio São Fran- Segundo Manoel Correia de Andrade3, cisco serviu de Porto Seguro ao povoamento es- o Sertão é uma sub-região do Nordeste, que trangeiro a partir do século XVII. Nesse inte- abrange nove Estados da federação4, com exten- rior, desenvolveu-se, como atividade econômi- são total de aproximadamente 912.208 km2. O ca principal, a pecuária, que abastecia de carne clima, de acordo com a maior ou menor quan- e couro o centro exportador da cana-de-açúcar, tidade de chuvas, é classificado como “tropical e, como atividade secundária, o fornecimento com chuvas de verão-outono e clima seco, esté- de animais de tração para os centros mais movi- pico, quente com chuvas de verão” 5. O solo da mentados do Nordeste. Antonil (1971, p. 201) região é antigo e, em geral, pouco profundo. A assinala que desde o início do século XVIII: maior parte da região do Sertão nordestino tem [são muitos os] [...] “os engenhos do Brasil que solo de embasamento cristalino, com baixa ca- cada ano fornecem bois para os carros e os de pacidade de infiltração, embora em outros lo- que necessitam os lavradores de canas, taba- cais, nas bacias sedimentares, os solos são mais co, mandioca serrarias e lenhas” [...]. Os ser- profundos, permitindo uma maior infiltração tões eram grandes espaços de terras ainda pou- e um melhor suprimento d’água. A vegetação co explorados ou inexplorados pelos coloniza- característica é a caatinga, onde se destacam o dores. Mas, não eram despovoados. Segundo umbuzeiro, o xiquexique, o mandacarú e a pal- Bartira Barbosa2, os Kariri, povos nativos da re- ma, plantas resistentes ao clima seco. gião, formavam o grupo mais forte dos indíge- A sociedade colonial que se instalou nes- nas da capitania de Pernambuco. Eles domina- ta área da América portuguesa foi profunda- vam as áreas mais férteis dos sertões nordes- mente marcada e demarcada pelas diversas re-

1 Zona litorânea de Pernambuco, onde predomina o clima tropical e uma vegetação exuberante de floresta. 2 BARBOSA, Bartira e FERRAZ, Socorro . Sertão, um espaço construído. Universidad de Salamanca – Centro de estudios brasi- leños, Impresso na Espanha, 2005, p. 15. 3 ANDRADE, Manoel Correia de. A Terra e o Homem no Nordeste: Contribuição ao estudo da questão agrária no Nordeste. Re- cife: Editora Universitária da UFPE, 1998. 4 Oito estados nordestinos (Piauí, Ceará, Rio Grande do Norte, Paraíba, Pernambuco, , e ), além de . 5 Lígia Bernardes e Inês Guerra, geógrafas, In. BARBOSA, Bartira e FERRAZ, Socorro, op. cit. p. 31. 70

lações entre os colonizadores que naquele lu- Os dados que subsidiaram as análises gar se estabeleciam. O objetivo principal da te- apontam que o modo como os proprietários se se que inspirou este artigo foi analisar como se firmaram na região e se apropriaram das Vilas deu a permanência de latifundiários e de lati- de Floresta e Tacaratú, ocorreu devido ao siste- fúndios no Sertão do sub-médio São Francisco, ma de posses de terras de cada família, mas, so- vistas pelo ângulo da trajetória social de cen- bretudo, a uma forma de sociabilidade. Algu- to e cinquenta e quatro proprietários de ter- mas famílias prosperaram financeiramente de- ras em suas redes de relações. Partimos de três vido aos empréstimos de dinheiro a juros, con- questões principais. Primeira: os bens patrimo- cedidos/negociados com famílias menos abasta- niais eram divididos em partes iguais entre her- das da região. Outras não prosperaram muito. deiros e herdeiras. Segunda: depois de mais de No entanto, fossem mais ou menos abastadas, um século, a divisão igualitária dos bens pode- os membros dessas famílias permaneciam jun- ria ter resultado na transformação dos latifún- tos e exibiam características de pertencimento dios em pequenas propriedades, como indicava a um grupo social que transitava nos lugares de a primeira leitura de cento e cinquenta e qua- poder. E como teria sido possível preservar es- tro processos de inventários post-mortem. Te r- se status quo em situações adversas? ceira: Ao contrário do que se esperava, a divi- As diversas relações sociais se organiza- são igualitária dos bens indicava a permanência ram de elementos dinâmicos e centrais, comuns do sistema latifundiário. O que não se encaixa- de uma rede de sociabilidade, como os matri- va no quadro fundiário eram as diversas peque- mônios, as amizades, os compadrios, o patri- nas posses de terras registradas nas partilhas he- mônio, a política, os conflitos. Ao mesmo tem- reditárias de mais de 80% dos processos de in- po, a intensidade ou a estreiteza das relações ventários post-mortem. podiam variar de acordo com a intensidade das ligações mantidas entre os membros da rede de Partimos, então, em busca do que e de sociabilidade que as famílias criaram. como os proprietários fizeram para equilibrar A rede de sociabilidade, em Floresta e a situação, aparentemente adversa, e manter em Tacaratú, baseou-se em relações sociais que a propriedade fundiária no seio do grupo fa- se complementavam e, na maioria dos casos, miliar, após um século de partilhas igualitárias eram indissociáveis, como os compadrios e os das terras, cuja tendência era o desaparecimen- matrimônios duradouros até a morte. As pri- to dos latifúndios. Os primeiros resultados das meiras relações de proximidade foram consti- pesquisas apontaram que as famílias estavam li- tuídas dentro das famílias, das amizades e, mui- gadas por quatro tipos de relações complemen- tas vezes, no lugar de origem comum. Temos tares: os matrimônios, as amizades, o patrimô- muitos casos de doações ou negociações de ter- nio e a política. Entendemos, então, que anali- ras entre parentes distantes por causa dos matri- sar a trajetória social através dessas relações se- mônios. As segundas relações derivam das pri- ria a forma mais coerente de trabalhar as ques- meiras e se dão em torno de bens patrimoniais, tões pendentes no quadro fundiário da região. como a terra e os escravos. As terceiras, em tor- 71 no da política. No seio das famílias, as relações 1.1. Rede A- Matrimônios: conectores da re- se desenvolveram, lateralmente, pelo recurso de família das alianças matrimoniais, amigáveis e de com- padrios, não exclusivamente endogâmicas e, co- Na rede de poder que se estabeleceu em lateralmente, por relações de copropriedades e Floresta e Tacaratú existiram duas pessoas que, cossenhorios. Essas relações são complementa- se eles desaparecessem, poderiam ter modifica- res, coerentes e movimentaram várias ligações. do completamente as relações entre a maioria Outro tipo, diferentemente das relações dos membros das famílias aqui mencionadas. familiares, patrimoniais e políticas, conectavam Tratam-se dos portugueses, Manuel Lopes Di- indivíduos, porém, pelo viés de relações de de- niz e Manoel Alves de Carvalho. Segundo Leo- pendências, no entanto, não eram menos im- nardo Gominho6, os Carvalho, de Floresta, vin- portantes para o funcionamento do sistema. dos da Bahia, eram filhos nascidos de casamen- Eram as relações de autoridade e de subordina- tos entre filhos e netos de Manuel Lopes Diniz. ção entre os cossenhores e os seus escravos, en- O genealogista7 afirma que foram estas duas fa- tre proprietários e agregados, que, muitas ve- mílias o tronco de outras famílias de destaque zes, foram recrutados por eles para compor a da região, como Alves de Barros, Torres Barbo- sua guarda pessoal. sa, Nogueira de Barros, Valgueiro Barros, Tor- res Carvalho, Carvalho Barros, Lopes Barros, 1. AS REDES DE ALIANÇAS E OS CONEC- Diniz Carvalho e outras. Os Lopes Diniz tam- TORES bém eram conectados com membros da família Souza Ferraz, por laços de família, de amizade e de compadrio. Manuel Lopes Diniz foi com- Uma vez constituídas as alianças, apare- padre do capitão Dâmaso de Souza Ferraz, por ceram, entre 1840 e 1880, três redes maiores batizar uma de suas filhas. A mulher de Manuel de alianças ligando a maior parte dos proprie- Lopes Diniz era tia do capitão Dâmaso. A quin- tários de Floresta e Tacaratú. Cada uma des- ta filha de Manoel Lopes Diniz, Rosa Maria do sas redes apresentava características particula- Nascimento, casou-se com Francisco Gomes de res e o lugar que nelas ocupavam os proprie- Sá, um dos proprietários da fazenda Mandantes tários não era o mesmo, mas, às vezes, se con- e um dos juízes ordinários de Fazenda Grande. fundiam. Então, é interessante analisar o siste- Manoel Lopes Diniz e José Lopes Diniz foram ma que elas revelam. Todas as genealogias que grandes financistas, emprestando dinheiro a ju- mencionamos aqui repousam sobre a possibili- ros aos fazendeiros das vilas de Tacaratú e Flo- dade de ligar, entre eles, proprietários, por in- resta, como de outras mais próximas da região: termédio de alianças matrimoniais, patrimo- Cabrobó, Itabaiana, Penedo e Serra Talhada. niais e políticas.

6 GOMINHO, Leonardo Ferraz. Floresta, uma terra, um povo. Coleção Tempo Municipal, vol. 14. FIAM, Centro de Estudos de História Municipal, Prefeitura Municipal de Floresta, 1996, p. 56. 7 Idem. 72

Membros da família Carvalho chegaram Manuel Lopes Diniz, outro grande fazendeiro ao Sertão de Pernambuco na segunda metade da região, arrendou terras de sesmarias à Casa do século XVIII e se instalaram, primeiramente, da Torre9, na Bahia. Logo depois, em meados na fazenda Campo Grande e, depois, na Pane- do século XVIII, ele arrendou a fazenda Pane- la D’Água, dos Lopes Diniz, e em mais quator- la d’Água, localizada na altura do afluente do ze outras, dentre as quais, encontramos referên- riacho do Capim Grosso, afluente do rio Pajeú, cias a sete delas nos processos de inventários. local onde fixou residência definitiva e onde se Inácia Maria da Conceição foi uma das constituiu o povoado Fazenda Grande, atual de primeiras mulheres da família a conectar defi- Floresta. nitivamente a família Carvalho à Lopes Diniz. Quanto aos Gomes de Sá, de Floresta, Os casamentos foram um importante fio conec- provavelmente,10 eles eram descendentes dos tor das redes de relações dessa elite. Filha de irmãos pernambucanos Francisco Gomes de Manuel Lopes Diniz, Maria da Conceição foi a Sá, José Gomes de Sá, Anacleto Gomes de Sá, segunda mulher do português Manoel de Car- Cypriano Gomes de Sá e Alexandre Gomes de valho Alves, que já havia desposado uma prima, Sá, que teriam dado origem a uma das maiores também, da prole Diniz. Deste casal, nasceram famílias do Sertão pernambucano, particular- treze filhos, entre eles, Francisco Alves de Car- mente em Floresta, onde, também, influencia- valho, homem que veio a ocupar um importan- ram na política local.11 Os Novaes descendiam te papel de mando na política e na rede de fun- de Antônio Francisco de Novaes, já residente cionários da administração judicial de Fazenda no Sertão pernambucano. A estrutura do gru- Grande. Igualmente ao pai, ele também despo- po, como foi visualizada nos documentos, mais sou duas primas da família Diniz e, na trajetória de cem anos depois, resultou, essencialmente, política, foi um importante condutor de paren- do encontro desses grupos e da mescla de inte- tes na estrutura da administração judicial. rações e antagonismos resultantes dele. Os proprietários de Floresta e Tacara- Seria impossível explicar a configuração tú, das décadas de 1840 a 1880, compõem-se, social que os proprietários criaram em Floresta predominantemente, de membros da geração e Tacaratú sem fazer referências à genealogia, de bisnetos dos colonizadores do século XVIII. à geografia, sem dizer de onde vieram ou sem Na família Ferraz8, são bisnetos de Jerônimo de tentar expor o modo como eles foram ali se in- Souza Ferraz, o primeiro a chegar. As notícias serindo e formaram as redes, desde os primei- indicam que Jerônimo era originário de Sergi- ros proprietários, que, afinal, nem eram tão es- pe e teria chegado ao Sertão de Pernambuco em trangeiros assim, nem estranhos entre si. Exis- meados do século XVIII, onde fixou residên- tiam relações criadas anteriormente em outras cia na fazenda conhecida por Riacho do Navio. vizinhanças, como na Bahia, com os proprietá-

8 Idem. 9 Idem, p. 57. 10 Idem, p. 85. 11 Idem, p. 86. 73 rios da Casa da Torre, entre os quais há possibi- não podiam ser considerados proprietários le- lidades de relações de parentescos.12 Outro fato gítimos de terras, pois não possuíam um título importante no quadro fundiário é que, à época, legítimo do domínio16. os arrendamentos de terras eram comuns en- A extinção de concessões de sesmarias tre eles. em 1822 não extinguiu a vigência dos decre- De trinta e dois nomes de famílias men- tos, leis, alvarás, avisos referentes à terra, do cionados no conjunto das fontes pesquisadas13, período colonial. Segundo Lígia Osório, o di- dezenove são reconhecidos como desmembra- reito à propriedade não era absoluto, mesmo mentos dos primeiros grupos de colonizadores para os sesmeiros que cumpriram as condições da região14 do Sub-Médio São Francisco, à par- da doação, pois a condicionalidade estipulada tir do século XVIII. nas Ordenações nunca foi revogada.17 No en- Esses “nomes de família” indicam uma tanto, pela força do uso, empregamos o termo parte importante da genealogia dos sujeitos que proprietário18, designando com essa expressão, compuseram a elite, eles são recorrentes nos todos os inventariados que tiveram posses de processos de inventários post-mortem e nos do- terras registradas em Floresta e Tacaratú, inde- cumentos concernentes a cargos e funções nas pendente da situação jurídica. diversas esferas do poder local, como os Souza A cada morte de um chefe de família ou Ferraz, Novaes, Lopes Diniz, Gomes de Sá. Nes- do seu cônjuge, as fazendas foram sendo dividi- se tempo, o tecido social já estava consolidado. das entre herdeiras e herdeiros legítimos, igua- litariamente. Dependendo do tamanho da pro- le do inventariado, ou inventariada, e da área 1.2. Rede B - Conectores Patrimoniais: Copro- do terreno, a partilha e a parte de terra da fa- prietários zenda poderia ser grande ou pequena. No en- tanto, a cada nova geração, partilhar era inevi- As tentativas do Império do Brasil de im- tável. Geralmente eram realizadas entre um nú- 15 plantar mudanças na política de terras em ma- mero tão grande de herdeiros que toda posse téria de Direito, em nada havia alterado, pois, de terra, por menor que fosse, tornava-se im- os “proprietários” das décadas de 1840 ainda portante para quem a obtivesse.

12 FERRAZ, Carlos Antônio de Souza. Floresta do Navio. Capítulo da História Sertaneja. Biblioteca Pernambucana de História Municipal 26. Centro de Estudos de História Municipal, Recife, 1992, p. 57. 13 Inventários post mortem, cadastro de terras, atos de compra e venda de terrenos, ofícios da Câmara Municipal de Floresta 14 FERRAZ, Tatiana Valença. A Formação da Sociedade no Sertão de Pernambuco: trajetória de formação de núcleos familiares. Recife: UFPE, 2004. (Dissertação de Mestrado em História) p. 40.. 15 A extinção do Sistema de Sesmarias, em 1822, e a execução da Lei de Terras, de 1850. 16 SILVA, Lígia Osório. Terras Devolutas e Latifúndio, efeitos da Lei de1850. São Paulo: Editora da UNICAMP, 1996. p. 80 17 Idem.. 18 No caso do Brasil, segundo Alice Canabrava, o termo propriedade, na época em questão, não podia assumir conotação jurídi- ca precisa. In SILVA, Lígia Osório. Op. cit. p. 93, 2. 74

Nesse contexto, um dos elementos re- mentos entre parentes colaterais, como primos, correntes na composição dos bens patrimoniais tios e sobrinhas, ex-cunhados e, também, entre eram as posses de terras em comum. Esse fa- membros de famílias vizinhas da região. As re- to se repetiu, não somente entre herdeiros de lações familiares, de amizades, de compadrios uma mesma família, mas, entre os herdeiros da e de vizinhanças entre os primeiros colonos fo- maioria das famílias tradicionais. Por esse sis- ram fios desse tipo de configuração social que tema de partilhar, emergiu a figura do co-pro- se prolongou na localidade. prietário de terras e um sistema condominial de Os terrenos adquiridos e compartilha- propriedades familiares. dos sob o sistema de condomínios rurais, co- Os condomínios se apresentaram de mo estes que caracterizamos, não foram um ca- dois tipos: mistos e familiares. O condomínio so isolado nas vilas de Tacaratú e Floresta. Se- tipo misto tinha uma configuração heterogê- gundo Tânia Maria Pires Brandão19, esse tipo nea, não somente quanto à composição genea- de copropriedade familiar também foi encon- lógica, mas, também, quanto ao quesito finan- trado no Piauí, situada a leste da província de ceiro, visto que neles tinham posses proprietá- Pernambuco. O sistema teria ocorrido pelas ati- rios classificados como ricos, devido ao mon- tudes de homens de prestígio da época da co- tante total de seus bens e de sua posição social lonização, como o Capitão Domingos Afonso e proprietários classificados como empobreci- Mafrense, que solicitou e recebeu o título de dos, vistos pelos mesmos critérios econômicos propriedade de Sesmarias. Tânia Brandão en- e sociais, que eram para menos. controu o condomínio entre famílias e/ou ami- Cada um dos novos co-proprietários gos, mesmo durante o período após a conquista das fazendas tinha o domínio de sua posse, par- do território. Como na província de Pernambu- te do todo patrimonial. As vastas extensões das co, o condomínio na província do Piauí, ultra- fazendas sofreram divisões sucessivas entre co passou o simples propósito de colonização. Em -herdeiros, mas não deixaram de funcionar co- termos práticos, era uma maneira de ampliar o mo grande propriedade. Seus domínios, mes- patrimônio e reproduzir a propriedade familiar mo apropriados em comum, guardaram-nas do na região. desaparecimento. Os homens e mulheres, co -proprietários dos bens patrimoniais, mantive- 1.2.1 Os Condomínios Rurais ram nessas terras elementos que caracterizavam o sistema de dominação nos moldes latifundiá- rios da região, o trabalho escravo e a produção Na Comarca de Flores, Província de Per- pecuarista. nambuco, na fazenda Paus Pretos, uma das mais O número de coproprietários se multi- antigas do Vale do Pajeú20, criada por um mem- plicava sucessivamente, configurando uma re- bro da família Silva Leal, funcionou um condo- de baseada em relações sociais, como de casa- mínio formado por quatro coproprietários di-

19 BRANDÃO, Tânia Maria Pires. A Elite Colonial Piauiense: família e poder. Teresina: Fundação Cultural Monsenhor Chaves, 1995. 20 O Vale do Pajeú é uma microregião do Estado de Pernambuco a 420 km de Recife. 75 ferentes. O primeiro perfil social que traçamos social privilegiada, por comparação a uma po- é o da coproprietária Francisca Maria de Jesus, pulação de despossuídos à margem do sistema. uma mulher solteira 21. Suas oitenta braças22 de Ela possuía um cativo ao seu serviço. terras foram avaliadas, para efeito do inventá- Oitenta braças de terras são insuficientes rio post-mortem, em cento e oitenta mil réis. para praticar a criação de gados num cenário Os seus herdeiros legítimos eram os seus oi- onde se desenvolve a pecuária intensiva, mas to irmãos que, depois de sua morte, tornaram- não nesta realidade, onde a pecuária era exten- se os coproprietários desse pequeno terreno e siva e tecnicamente precária. Os gados pasta- do seu único escravo. Francisca deixou um pa- vam a céu aberto em terras das matas ou mes- trimônio muito modesto que, à primeira vista, mo em terras dos vizinhos. Os proprietários in- surpreende porque o sujeito da pesquisa é a eli- dicavam aos vizinhos a propriedade dos ani- te proprietária. Entre os bens que pertenceram mais imprimindo-lhes as iniciais dos seus no- a Francisca, estão descritos um engenho de fiar, mes sobre o couro. Quinze vacas não produzem um tamborete, um banco, três chapéus de sol, carne, leite e derivados suficientes para realizar quinze vacas, uma besta, um poldro e o escra- um comércio no mercado regional, mas permi- vo Benedito, de trinta e um anos. Tudo somou tem que se produzam os meios de subsistência, um total de oitocentos e trinta e oito mil sete- sobretudo quando se tem o trabalho escravo e centos e vinte réis. O quantitativo dos bens de o livre, realizado pelos oito irmãos. Francisca Maria de Jesus era compatível com O engenho de fiar significa que Fran- um patrimônio empobrecido, remanescente de cisca possuía uma pequena lavoura de algo- uma herança várias vezes partilhada. A segun- dão ou que trabalhava na produção de tecidos da vista, este patrimônio não é compatível com ou de linhas para costuras ou, ainda, que fos- o conceito de “riqueza”, comparando-se com se uma costureira, profissão muito comum en- proprietários da zona canavieira da Província tre as mulheres sertanejas da época. A besta e o de Pernambuco. Quando o analisamos de acor- poldro indicam que possuía animais de peque- do com a realidade do Sertão, à época, encon- no porte para transporte. Na realidade, o patri- tramos que Francisca possuía dois bens que fo- mônio de Francisca revela que ela se diferencia ram os elementos concretos e essenciais de ri- dos despossuídos na medida em que tinha ter- queza no Brasil durante os três primeiros sécu- ras, um criado, animais e, provavelmente, uma los da colonização, mesmo que as pessoas não profissão. Essa realidade mostra as duas faces os possuíssem em abundância e que não geras- do conceito de elite do Sertão de Pernambuco. sem lucros financeiros. Oitenta braças de ter- Em relação aos outros, os coproprietá- ras atribuíram a Francisca à condição de copro- rios de famílias que possuíam um patrimônio prietária do direito de posse e a propriedade abundante, casos, como o de Francisca, mos- do escravo lhe poupava da realização dos tra- tra um empobrecimento devido às sucessões balhos domésticos, deixando-a numa condição

21 LAPEH/UFPE - Inventário post mortem de Francisca Maria de Jesus, 1862. 22 Equivalente a 176 m2. 76

hereditárias entre numerosos herdeiros. Isto ria que as pessoas e os grupos recolhem de seus é visualizado pela pequena extensão do terre- contatos cotidianos. no, pela posse de um escravo e de poucas ca- A segunda coproprietária do condomí- beças de gado. Em relação à sociedade como nio onde Francisca morava era Maria de Souza um todo, composta por diversas categorias so- da Silveira23, viúva de Francisco de Souza Leal. ciais completamente despossuídas, como os es- Após a viuvez, tornou-se a “cabeça de casal” cravos, os agregados, os indígenas e mestiços, o da família e passou a administrar os bens dos caso de Francisca revela que o conceito de eli- noves filhos herdeiros, três homens e seis mu- te e de riqueza estão associados não somente lheres, até que eles atingissem a maioridade ou à abundância ou ao lucro, mas a uma realida- casassem. Descendente da tradicional família de definida pela posição hierárquica dos grupos Souza Ferraz, era uma mulher muito respeita- sociais. Obviamente, Francisca não tinha a opu- da na região e conhecida pelo apelido de “Mãe lência dos proprietários da zona canavieira de Grande dos Paus Pretos24. Pernambuco, mas tinha bens que lhes propor- No começo do século XIX, a fazenda cionavam os meios de subsistência, relativo po- condomínio chamada Paus Pretos, funcionou der econômico devido à posse do escravo, bem um cartório de notas da povoação de Fazen- de maior valor no mercado. Esses elementos já da Grande, sob a orientação de Manoel da Sil- lhe davam distinção. Para além do peso econô- va Leal, filho do casal Maria de Souza da Silvei- mico relativo desse bem, não podemos deixar ra e Francisco de Souza Leal25. As filhas casa- de considerar o peso do imaginário social cria- ram com homens de destaque na região. A sua do em torno dessas famílias. Ser senhor de ter- terceira filha, Margarida de Souza e Silva, ca- ras e de escravos, independente do quantitativo sou-se com o tenente coronel Serafim de Sou- desses bens, já produzia e reproduzia toda uma za Ferraz. A sexta filha, Antonia Maria da Pu- imagem idealizada entre os despossuídos e en- rificação, casou-se com Narciso Gomes de Sá. tre os senhores, como cada um se percebia nes- A sétima, Joaquina Maria da Purificação, com ta sociedade. Pedro de Souza Ferraz. Todos os maridos eram O imaginário social é composto por um membros de famílias tradicionais e enriqueci- conjunto de relações imagéticas que atuam co- das. Maria de Souza da Silveira possuiu 392 mo memória afetivo-social de uma cultura, um braças26 de terras, avaliadas ao preço de sete- substrato ideológico mantido pela comunida- centos e oitenta e quatro mil réis. Entre os ou- de. Acrescentamos que se trata de uma produ- tros bens, foram mencionadas uma casa de qua- ção coletiva, já que é o depositário da memó- tro vãos, uma casa de um vão, contígua à pri-

23 LAPEH/UFPE - Inventário de Maria de Souza da Silveira, 1861. Este documento faz parte da coleção de inventários post-mor- tem do Sertão do Médio São Francisco, século XIX. 24 Genealogia pernambucana. http://www.araujo.eti.br/familia.asp?numPessoa=81&dir=genxdir/ 25 Idem. 26 Equivalente a 862,4 m2. 77 meira e uma outra localizada na povoação de Em outra fazenda-condomínio mista, Fazenda Grande. denominada Mulungú, outro grupo, forma- O mobiliário mencionado era constituí- do por nove coproprietários, registrou posses do por uma cama e por um estrado. Foi dona adquiridas por herança e por compra. Gonça- de uma criação de vinte e sete cabeças de gados lo Theodório de Oliveira, Antonio dos Anjos vacuns, seis cabeças de cavalos, trinta e cinco de Farias e Barnabé de Souza, herdaram suas cabruns, tratados pelo trabalho de doze escra- glebas dos pais, Theodorio de Oliveira e Iná- vos. Todos os bens juntos somaram um mon- cia Maria. Antonio Fillipe Nere herdou da sua tante total de oito contos e quarenta mil réis, sogra, Anastácia Maria. Vicente José de Araú- valor dez vezes maior do que o da sua vizinha jo herdou da sogra, Inácia Maria. Porém, José Francisca. Esse montante colocava a família de Domingues de Farias comprou a Anna Fillipa e Maria de Souza da Silveira entre as mais ricas Victorino da Silva Barros comprou duas posses, da região. uma a Anna Gomes de Oliveira e outra a Ân- Em nível intermediário de riqueza, entre gelo Pele da Costa. Essas relações estavam ba- Francisca e Maria de Souza da Silveira, Manuel seadas nos costumes e na estrutura social e eco- de Souza Leal27 foi o terceiro coproprietário. nômica da região. Um dos aspectos dessa eco- Ele tinha um montante de cinco contos duzen- nomia era a escassez de dinheiro em espécie e tos e vinte e nove mil trezentos e sessenta réis. o uso do sistema de créditos para pagamentos. Manuel possuía oitenta e oito braças,28 avalia- Escravos, joias, terras e animais funcionavam das por oitenta e oito mil réis, mais quarenta e como moedas de pagamentos, em algumas si- seis cabeças de gados diversos e sete escravos. tuações, inclusive para pagar os custos dos pro- cessos de inventários post mortem. Manoel Barbosa de Sá29 e Quitéria Ma- ria de Jesus30, foram os quartos coproprietários. A partilha hereditária, ao contrário de Tiveram nove filhos e possuíram um terreno no promover a separação, transformava os herdei- valor de noventa mil réis, quarenta e seis cabeças ros em novos co-proprietários e, assim, contri- de gados e sete escravos. Todos esses bens soma- buiu para o fortalecimento do sistema condomi- ram um montante total de cinco contos duzen- nial de propriedade privada familiar, fornecendo tos e vinte nove mil réis. Os quatro coproprie- elementos para a constituição de uma rede de so- tários possuíam juntos mais de seiscentas bra- ciabilidade que teve como papel maior a susten- ças de terras adquiridas por heranças, na fazen- tação das copropriedades latifundiárias nas mãos da Paus Pretas, uma das mais antigas da região. do grupo de famílias tradicionais da região.

27 LAPEH/UFPE - Inventário de Manoel de Souza Leal. Este documento faz parte da coleção de inventários post-mortem do Ser- tão do Médio São Francisco, século XIX, em microfilmes e em papel. 28 Equivalente a 99 m2. 29 LAPEH/UFPE - Inventário de Manoel Barbosa de Sá, 1887. Este documento faz parte da coleção de inventários post-mortem do Sertão do Médio São Francisco, em microfilmes e em papel. 30 LAPEH/UFPE - Inventário de Quitéria Maria de Jesus, 1859. Este documento faz parte da coleção de inventários post-mortem do Sertão do Médio São Francisco, século XIX, em microfilmes e em papel. 78

As fazendas de criar das vilas de Tacara- desta lógica que práticas, como a de coproprie- tú e de Floresta, onde se desenrolavam as prin- dade da terra, desenvolveu-se com o objetivo cipais atividades econômicas, foram, também, de evitar um real desmembramento da grande lugares de uma diversidade de relações sociais propriedade. convenientes. Certamente, as redes de sociabi- A análise da partilha de bens indica que lidade, conectadas pelos matrimônios, patri- a mesma estratégia adotada para evitar o de- mônios e pela política, os três tipos de ligações saparecimento de grandes propriedades rurais maiores, promoveram a reprodução do patri- de Floresta e de Tacaratú, foi adotada para evi- mônio fundiário familiar. Quer se tratassem de tar que a família fosse obrigada a se desfazer relações formais ou informais, estavam no coti- de seus cativos após a morte do proprietário. diano dessa sociedade elitista. Entretanto, ape- O relativamente baixo plantel de escravos e o sar da importância de cada uma das ligações, grande número de herdeiros por família, im- isoladamente, nenhuma delas pode ser conside- pedia que cada um herdasse um cativo indivi- rada mais importante que a outra. dualmente. Além disto, numa sociedade onde as transações comerciais não se baseavam es- 1.2.2 Cossenhores de Escravos sencialmente no dinheiro em espécie, nem sem- pre era vantajoso vender um cativo, bem mão- de-obra caro e que poderia servir a toda uma Segundo Emanuele Carvalheira de Mau- família. 31 peou , no Sertão do Sub-Médio São Francisco, Neste cenário, tornou-se comum que, a escravidão persistiu, mesmo por entre aquelas no momento da realização de um processo de famílias que não tinham mais os meios de man- inventário post mortem, um mesmo escravo ter seus cativos. O contexto de empobrecimen- fosse partilhado por vários herdeiros. Entre- to e de crise levou, através de partilhas sucessi- tanto, em muitos casos, onde o número de es- vas de bens entre descendentes das antigas fa- cravos era menor que os de herdeiros, um ca- mílias de colonos, à fragmentação do patrimô- tivo era usado em comum pelos herdeiros. Por nio familiar. Estas famílias que, em momentos exemplo, se a família possuía nove filhos e três de dificuldade, vêem-se na impossibilidade de escravos, após a morte do senhor ou senhora, manter intacta a riqueza acabam utilizando es- caberia um escravo para servir a três herdeiros. tratégias de preservação, se não do patrimônio Este sistema de trabalho foi chamado de co-se- familiar inteiro, pelo menos de uma posição so- nhorio32. No processo de inventário post-mor- cial que as identifiquem com a camada de pro- tem de Custódia Gomes de Sá33 ficaram eviden- prietários de gados, terras e escravos. É dentro tes como ele funcionava na prática.

31 MAUPEOU, Emanuele Carvalheira de. Cativeiro e cotidiano num ambiente rural: o Sertão do Médio São Francis- co - Pernambuco (1840-1888). Recife: UFPE, 2008. (Dissertação de Mestrado em História). Todos os dados citados neste artigo sobre « cossenhorio de escravos » estão baseados nas pesquisas de Emanuele Carvalheira de Maupeou, a quem sou muito grata pelo forte apoio documental, tão importante na construção do meu trabalho. 32 LAPEH/UFPE - O termo é utilizado em um documento do período, uma Ação de Liberdade da Escrava Marcela, Floresta, 1886. 33 LAPEH/UFPE - Inventário de bens de Custódia Gomes de Sá, 1886, Floresta. 79

Quando faleceu em 1886, Custódia dei- estes seriam vendidos e o valor em dinheiro di- xou, entre outros bens, cinco escravos para se- vidido entre os herdeiros. Entretanto, outros rem divididos entre o viúvo Capitão Antônio casos mais complexos, em que partes de escra- Gonçalves Torres da Silva e os oito filhos maio- vos herdadas eram re-divididas em heranças su- res do casal. Assim, na partilha, os escravos Sa- cessivas, comprovam que o cossenhorio de es- turnino, de vinte e cinco anos, avaliado em du- cravos não era apenas um artifício jurídico, mas zentos mil réis, e Rita, quarenta e sete anos, uma prática comum na região e um dos meios avaliada em cem mil réis, couberam ao meeiro. pelos quais os herdeiros continuavam ligados, Entretanto, os outros três cativos declarados no após as partilhas sucessivas. Não é incomum inventário foram divididos em partes desiguais, encontrar inventários de pessoas que falecem e de modo que todos os filhos do casal herdaram deixam como herança, não escravos, mas par- partes em escravos. tes nestes. Desta maneira, no escravo José, de de- Na maioria dos casos, “dividir” um es- zoito anos, avaliado no inventário post-mor- cravo significava continuar os laços familiares tem em quatrocentos mil réis, o viúvo herdou pela cossenhorio do escravo, que ficava ao ser- uma parte, no valor de duzentos e cinquenta viço da família. Na prática cotidiana, esta divi- mil réis, o segundo filho do casal, uma parte, no são se traduzia pela utilização do trabalho do valor de cinquenta mil réis e o filho mais novo, cativo por vários herdeiros, senhores ou senho- uma parte, no valor de cem mil réis. Da mesma ras, de acordo com as necessidades de cada um forma, a escrava Joanna, de vinte nove anos, e com o valor que cabia a cada um deles. Mui- avaliada em trezentos mil réis cabe, na partilha, tos herdeiros moravam não muito longe uns dos à filha mais velha numa parte, no valor de cen- outros, nas terras dos antigos latifúndios, num to e vinte mil réis, à terceira filha, numa parte sistema de condôminos. Deste modo, era possí- no valor de cem mil réis e ao sétimo filho, nu- vel para escravo de vários senhores se movimen- ma parte no valor de oitenta mil réis. Finalmen- tar por entre as copropriedades e servir a todos. te, uma última escrava, de dezesseis anos e ava- liada em trezentos e cinquenta mil réis, foi di- Os descendentes das antigas famílias da re- vidida entre a segunda filha, que herdou uma gião adaptaram a essa prática escravista à parte no valor de cinquenta mil réis, o quarto, realidade de crise, explorando em copro- o quinto e o sexto filho do casal, que herdaram priedade a mão-de-obra cativa de acordo cada uma, parte no valor de cem mil réis. Perce- com as possibilidades existentes. be-se, assim, que todos os filhos do casal rece- beram partes em escravos de valores semelhan- tes ou aproximados, tornando-se cossenhores 1.3 Rede C – Na Trilha da Administração Pú- dos escravos. O condomínio de terras familiar blica e o cossenhorio de escravos serviram como co- nectores na rede de sociabilidade patrimonial. As ligações entre titulares de cargos ad- Em uma primeira análise, uma divisão ministrativos envolviam, no mínimo, um pa- tão complicada dos cativos parece indicar que rente na trajetória política. Um único membro 80

em cada uma das famílias (Novaes, Souza Fer- pes Diniz, foi o primeiro membro da família a raz, Lopes Diniz e Gomes de Sá) e oitenta e entrar para administração judicial. A sua passa- oito pessoas, ligadas por laços de parentesco, gem na administração deixou marcas de sua in- estavam conectadas no exercício de funções e fluência na trilha dos demais familiares que vie- cargos na política, na organização militar e na ram a compor a rede administrativa nas gera- judicial das vilas de Tacaratú e Floresta. Essas ções futuras. Em 1802, quando o juiz ordiná- pessoas formaram a rede de funcionários da ad- rio deveria ter sido eleito pelas câmaras munici- ministração pública ao longo de um século. O pais, Manoel Lopes Diniz foi nomeado por mé- total de homens dessas famílias na administra- rito pessoal (grifo nosso), juiz ordinário do Jul- ção pode ter sido maior do que as nossas fon- gado do Certão do Pajeú para exercer, durante tes permitiram visualizar, entretanto, todos ti- um ano, a serventia do ofício36. O papel da Jus- veram papeis decisivos na política, na adminis- tiça Real era diverso, absorvendo atividades po- tração, ocupando cargos centrais. líticas e administrativas, ao mesmo tempo em Na jurisdição do Sertão do Pajeú e, es- que coexistia com outras instituições judiciais, pecificamente, na Vila de Floresta, vinte e cin- como a justiça eclesiástica e a da Inquisição. co membros da família Lopes Diniz ocuparam O cargo de juiz ordinário foi criado no posições de poder e autonomia na administra- ano de 1532 e, segundo Graça Salgado37, era ção judicial e militar. Para Graça Salgado, a no- eletivo pela Câmara Municipal, com alçada so- ção de justiça, no período colonial, tinha um bre as demandas ali acontecidas. Os ocupantes sentido bem mais amplo do que na contempo- do cargo não tinham formação jurídica, obri- raneidade. Além da relação com o aparelho ju- gatoriamente. Nessa época, o analfabetismo dicial, era, igualmente, sinônimo de legislação, era altíssimo, sendo normal que, entre os juí- lei e direito34. Com isso, a Coroa concedia po- zes ordinários, houvesse homens de pouquís- deres imensos e autonomia aos homens investi- sima instrução escolar, pois a única condição dos nos cargos administrativos. Segundo Victor exigida para ocupar o cargo era a mesma dos Nunes Leal35, a justiça eletiva, com atuação nos demais membros da Câmara: que fossem “ho- municípios, constituía importante instrumento mens bons”, ou, pessoas influentes na comuni- de dominação do senhoriato rural, cuja influên- dade, por sua riqueza. cia elegia juízes, vereadores e outros funcioná- As atribuições de um juiz ordinário rios subordinados às câmaras. O primeiro filho eram amplas. A pluralidade de atribuições que de Manuel Lopes Diniz, o coronel Manoel Lo- tinha, tornava-o, em geral, responsável por as-

34 SALGADO, Graça. Fiscais e Meirinhos: administração no Brasil Colonial. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1895. p. 73. 35 LEAL, Victor Nunes. Coronelismo, enxada e voto. O município e o Regime Representativo no Brasil. São Paulo: Alfa-Ome- ga, 1975, p. 186. 36 Livro Registro de Provisões 1/8, na folha 79, Arquivo Público do Estado de Pernambuco Jordão Emereciano. Ele foi nomea- do e provido no cargo por Dom José Joaquim da Cunha de Azeredo Coutinho, do Conselho de S.A.R., Bispo de Pernambuco, Pe- dro Sheverim, chefe de esquadra e intendente da Marinha, desembargador José Joaquim Nabuco de Araújo, ouvidor geral desta Comarca, governadores interinos da capitanial geral de Pernambuco. 37 SALGADO, Graça. Fiscais e Meirinhos: administração no Brasil Colonial. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1895. p. 75. 81 pectos administrativos e fiscais, além dos espe- cional, eleitor, Presidente da Câmara, como foi cificamente judiciais. Além disso, em conjunto o caso de Francisco Barros do Nascimento. com os demais oficiais da Câmara – os verea- A primeira Câmara de Vereadores da vi- dores e o procurador – também elaborava a le- la de Floresta, empossada em 1846, já estava gislação local. Possuía, igualmente, atribuições adequada às reformas da legislação eleitoral do do ministério público, como as de representar Império. A Lei de 1º de outubro/1828 deter- a Câmara contra as ações particulares que pre- minava que “As Câmaras das cidades se com- judicassem o interesse comum. porão de nove membros, e as das vilas de se- Floresta só conheceu a sua primeira Câ- te, e de um secretário”. O vereador mais vota- mara de Vereadores na década de 1840, quan- do exercia a função de presidente da Câmara, o do foi elevada à categoria de vila. Em 1846, a que corresponderia, hoje, ao cargo de prefeito e pedido do Presidente da Província, a Câmara as eleições eram realizadas de quatro em quatro de Floresta foi empossada pelo juiz de paz do anos. A Constituição do Império retirou a atri- Distrito de Fazenda Grande e major da Guar- buição jurídica das Câmaras e eliminou a fun- da Nacional, Francisco de Barros do Nascimen- ção de juiz ordinário e instituiu os cargos de juiz to, neto de Manuel Lopes Diniz e o responsá- municipal ou de paz, promotor e juiz de órfãos. vel financeiro de todos os negócios da família. Ele era primo e herdeiro político do seu sogro, As Câmaras, transformadas em corpo- o capitão Francisco Alves de Carvalho, primei- rações administrativas, também perderam par- ro juiz de paz de Fazenda Grande, provido no te de sua antiga autonomia, ao serem submeti- ano de 1830. Conectados por laços familiares das ao controle dos Conselhos Gerais e de Pre- bem próximos, também se conectaram por li- sidentes de Província. Mesmo tendo reduzidas gações políticas, acumularam cargos e sucede- suas atribuições, as Câmaras, em âmbito local, ram-se uns aos outros. abrangiam amplos aspetos da vida cotidiana No ano de 1847, depois que Francisco dos moradores, legislando e administrando as de Barros do Nascimento cumpriu o seu man- relações sociais, econômicas e políticas. Entre dato de um ano no cargo de juiz de paz, o seu suas atribuições, destacavam-se: a elaboração e sogro e primo volta ao cargo e, depois, em aprovação do Código de Posturas Municipais 1848, Francisco Barros do Nascimento, toma em que se estabeleciam as normas para o fun- posse, outra vez. Continuando na política, pe- cionamento do comércio, da utilização/preser- lo partido conservador, nas eleições de 1847, vação do espaço urbano e dos recursos naturais ele se tornou um dos doze eleitores de senado- da vila, além da regulamentação do comporta- res e deputados provinciais. Em 1864, Francis- mento e da convivência social. Os vereadores co Barros do Nascimento foi presidente da Câ- eram os responsáveis pela fiscalização dos fun- mara Municipal da Vila de Floresta, então res- cionários, pela realização das eleições e, prin- taurada. Num quadro como este, era muito co- cipalmente, pela vigilância, para que as “pos- mum que as autoridades se confundissem em turas”38 fossem obedecidas com a aplicação e o suas atribuições de juiz, major da Guarda Na- recolhimento de multas aos infratores.

38 Postura municipal era a ordem emanada das câmaras municipais, que obrigava ao cumprimento de certos deveres de ordem pública. 82

Uma das características marcantes da to de “homens bons” da localidade pertencen- primeira Câmara de Floresta são as fortes re- tes às famílias tradicionais. De dezoito verea- lações de parentesco e amizade entre os polí- dores, em três legislaturas, a maioria tinha al- ticos. O vereador Norberto Gomes dos San- gum grau de parentesco ou amizade e assumiu tos era genro do juiz de paz Francisco Alves de na Câmara por mais de uma vez, potencializan- Carvalho, o vereador Manuel da Silva Leal era do a influência dos grandes proprietários e de primo e cunhado do presidente da Câmara, Se- seus descendentes. rafim de Souza Ferraz, era amigo do vereador A ver pelos nomes que compuseram as José Rodrigues de Moraes, ao ponto de entre- atas de eleitores, constamos que membros das gar a este a presidência da Câmara, nas suas au- famílias Gomes de Sá ocuparam posição de in- sências, o que afirma a trama de solidariedades fluência nas duas vilas, seus nomes estão presen- diversas desses membros da elite. tes em ambas, mas, pelo número de votos obti- Uma presença que se repetiu nas duas dos individualmente, eles eram mais fortes em Câmaras foi a do presidente, na pessoa de Fran- Tacaratú, onde foram os três primeiros mais vo- cisco de Barros do Nascimento, figura de desta- tados e somaram quatro, entre os nove eleitos. que na política, entre os descendentes da famí- Mapeando lugares de poder que os co- lia Lopes Diniz e de outras, na região, ocupan- proprietários abastados ocuparam, constata- do posições chaves, seja na Câmara, como no mos que os mais frequentes foram de coman- judicial e na polícia. Ele foi delegado do termo dantes e oficiais das Ordenanças das jurisdi- de Floresta, primeiro suplente de juiz munici- ções39. José Gomes de Sá esteve no comando pal e de órfãos, também, do termo de Floresta, da jurisdição da Varge da Ema, fazendas Qui- procedeu o inventário do tenente coronel Sera- xabá e Varge Redonda, no Rio de São Francis- fim de Souza Ferraz, foi juiz de paz, suplente de co, onde embarcava e desembarcava todo o co- vereador e vereador. Norberto Gomes dos San- mércio desse rio. A sua jurisdição compreen- tos, bisneto de Manuel Lopes Diniz, foi mais dia, também, três fazendas: Atalho, Papagaio, um membro da rede, compondo o quadro da Riacho, na foz do Riacho dos Comandantes, primeira Câmara de Vereadores de vereadores. como se chamava anteriormente o Riacho dos As Câmaras de Floresta e de Tacaratú, Mandantes, por separar as juridições dos capi- como instituição, foram um lugar essencial pa- tães comandantes José Gomes de Sá e do seu ir- ra as articulações. Rapidamente, elas se consti- mão Cypriano Gomes de Sá, cuja autoridade tuíram em órgão de defesa dos interesses dos começava e se estendia pelas paragens que bei- fazendeiros coproprietários locais. O perfil dos ravam o rio São Francisco, abrangendo quatro componentes das Câmaras Municipais, desde fazendas: fazendas Crauatá, Ambrósio, Sabiucá a sua instituição, é caracterizado pela presen- e Barra, todas localizadas no município de Flo- ça maciça de coproprietários de terras, cosse- resta. A jurisdição do comandante Inácio Gon- nhores de escravos e criadores de gados. Cons- çalves Torres compreendia cinco fazendas: Ta- tatamos que estava presente todo o segmen- curubá, onde começam as ilhas do São Francis-

39 FERRAZ, Carlos. Op. cit. pp. 39-40. 83 co e também as fazendas Jatinan, Pedra, Cana Neste sentido, trabalhamos as relações de socia- Braba e Alegra. bilidade desenvolvidas entre os coproprietários Entre os dois tipos principais de rede de Floresta e Tacaratú. As relações que os conec- de sociabilidade dos coproprietários (a da ad- tavam não eram unicamente políticas: elas eram ministração e a das terras), existe certamente indissociavelmente políticas, familiares, profis- uma ligação mais forte. De modo geral, os Go- sionais, econômicas, amigáveis, conflituosas. mes de Sá se projetaram no rio São Francisco, Ter propriedade de terras, de escravos e no Riacho dos Mandantes, em Fazenda Gran- de gados foi decisivo no papel que certos indi- de, em Tacaratú e no Sertão. Os Souza Ferraz e víduos ocuparam nesta sociedade. Num espaço Rodrigues de Moraes destacaram-se no Riacho onde as relações pessoais podiam dar susten- do Navio. Alexandre Rufino Gomes foi líder da tação à condição social, colonizadores recém- Barra do Pajeú. Os Sá e Silva e os Silva Leal, li- chegados, que se instalaram primeiramente na deravam na confluência do Pajeú. Os Novaes, condição de fazendeiros, donos de escravos e no Pajeú. criadores de gado vacum, logo, passaram à con- dição de altos funcionários da administração da CONSIDERAÇÕES FINAIS Coroa no Brasil, como oficiais das Ordenanças e, depois, no exercício de cargos públicos ele- tivos. Eles foram investidos de autoridade e de Coletivas ou individuais, as conexões da autonomia. As suas práticas exprimiam estraté- rede política nas vilas de Floresta e Tacaratú, fo- gias que reforçavam essa autonomia social, po- ram baseadas na reciprocidade de interesses pe- lítica e economicamente indissociáveis. A relei- lo poder, via acumulação de cargos na estrutura tura da vida política desses proprietários, pe- da administração judicial, militar, política e po- lo ângulo das práticas de sociabilidade indicou licial nas mãos dos mesmos grupos familiares. que a politização desse grupo foi inseparável Fizemos uma análise com base na micro das condições de vida e trabalho e, por conse- -histórica, na prosopografia e na história serial. guinte, do espaço que construíram. A sociabili- Consideramos, então, que os problemas e con- dade como uma categoria de análise de grupos tradições ocorridas em Tacaratú e Floresta tam- sociais é um convite para percorrer as relações bém ocorreram em vilas de outras províncias ou que tecem a organização social e as suas práti- podiam ocorrer em qualquer outro lugar. No cas políticas. contexto das vilas de Floresta e de Tacaratú, fi- lhos da elite se encontraram e, de modo seme- Trabalho recebido em 20/09/2012 lhante, ligaram-se ao poder político local, seja Aprovado para publicação em 15/12/2012 conservador ou liberal, nas diversas instâncias administrativas, judicial, policial e militar. A leitura “construtivista” do termo socia- bilidade permite dizer que ele exprime, em pri- meiro lugar, a riqueza da vida social cotidiana. 84

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ELEIÇÕES DEMOCRÁTICAS E TRANSFORMISMO POLÍTICO: PODER E DOMINAÇÃO POLÍTICA NO RIO GRANDE DO NORTE

João Emanuel Evangelista, Gustavo César de Macêdo Ribeiro

RESUMO Este artigo analisa os contornos assumidos pelas disputas eleitorais no Rio Grande do Norte. A polarização advinda dos tempos do regime militar entre os grupos clânico-oligarquicos liderados pelas famílias Alves e Maia no referido estado (agrupados partidariamente no PMDB e PFL/DEM, respectivamente) continua, após a redemocratização, a influenciar decisivamente a formação de alianças políticas, bem como as dinâmicas eleitorais no estado, no período 1994-2010. Nos anos 2000, num típico caso de transformismo político, conforme a elaboração gramsciana, Wilma de Faria (PSB), originária dos grupos políticos tradicionais, desponta no cenário político com uma vitória para o governo do estado. Entre disputas internas e arregimentação de grupos políticos secundários (que vão desde grupos familiares com influência no interior do estado aos partidos de esquerda, como o PT), esses três grupos monopoli- zam a cena política, mantendo no estado um padrão bipolar de disputa eleitoral.

Palavras-chave: Política; Eleições; Hegemonia; Transformismo; Oligarquias DEMOCRATIC ELECTIONS AND POLITICAL TRANSFORMISM: POLITICAL DOMINA- TION AT RIO GRANDE DO NORTE STATE

ABSTRACT This article examines the contours assumed by the elections disputes at the Rio Grande do Norte State. The po- larization between the groups clan-oligarchic led by the Families Alves and Maia in the referred state (grouped adherently at the PMDB and PFL/DEM parties, respectively), arising from the times of Military Regime, continues after the redemocratization to influence decisively the formation of political aliances, as well the electoral dynamics at the State, at the period from1994 to 2010. At the 2000’s, in a typical case of political transformism, according to Gramsci’s political theory, Wilma de Faria (PSB), originating from traditional groups, emerges on the political scene with a victory for the state government. Between infighting and regimentation of secondary political groups (that includes other familiar groups in the countryside of the state and Left Parties, as the PT), this three groups monopolize the political scene, keeping a bipolar pattern of electoral dispute.

Key words: Politics; Elections; Hegemony; Transformism and Oligarchies

Professor do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (PPGCS/UFRN). E-mail: [email protected]. Doutorando do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais (PPGCS/UFRN). E-mail: [email protected]

Raízes, v.33, n.1, jan-jun /2013 86

INTRODUÇÃO tos das classes dominantes são concentradas na luta pelo controle dos aparatos governamentais e da burocracia do Estado brasileiro, que se tor- A modernização capitalista no Brasil se- na o palco privilegiado dos conflitos e das con- guiu uma lógica histórica retardatária em rela- tradições em torno do acesso aos fundos públi- ção aos países capitalistas centrais. Houve, du- cos, da definição de políticas públicas e da dis- rante muitas décadas do século XX, o predomí- tribuição da riqueza social produzida. Esse ce- nio inconteste da sociedade política sobre a so- nário sociopolítico é muito apropriado para a ciedade civil, cujo fortalecimento também foi reprodução da tradição patrimonialista nas re- muito lento e tardio. Somente depois do ex- lações entre o Estado e a sociedade civil na so- pressivo desenvolvimento capitalista e intenso ciedade brasileira (Evangelista, 2006b, p. 4). processo de urbanização, ocorrido a partir do governo Kubichek e, em especial, durante o re- As transformações ocorridas na socieda- gime militar, surgiu uma sociedade civil diversi- de brasileira como consequência necessária da ficada e complexa, criando um novo equilíbrio modernização capitalista tomou a forma de re- nas relações entre a sociedade política e a socie- volução passiva, com a generalização da prática dade civil na composição do Estado ampliado política do transformismo pelas classes e seus brasileiro (Gramsci, 2000; Coutinho, 1999). grupos político-partidários dominantes. No Isso ocorreu, sobretudo, nas unidades federati- Brasil, as contradições sociais e os conflitos po- vas mais desenvolvidas que atuam como polos líticos engendrados no processo histórico são dinâmicos da modernização capitalista, como sempre adiados e nunca são superados; ao con- São Paulo, Rio de Janeiro, Minas Gerais e Rio trário, as posições que representam o velho e o Grande do Sul. Esse fenômeno não foi homo- novo e o moderno e o arcaico encontram numa gêneo na sociedade brasileira. Nas regiões peri- monótona reiteração em formas heteróclitas de féricas, como as unidades federativas nordesti- combinação e acomodação. A “conciliação pe- nas, com exceção de alguns estados com tradi- lo alto” entre os grupos políticos dominantes e ção histórica de grandes lutas e movimentos so- a incorporação e cooptação transformistas dos ciais, caso de Pernambuco, continuou a imperar grupos subalternos e dos movimentos poten- uma forte assimetria entre a sociedade política cialmente transformadores são estratégias com- e a sociedade civil, com a centralidade da socie- plementares que predominam nos momentos dade política. históricos decisivos (Coutinho, 1988; Grams- ci, 2002; Vianna, 1997). Assim, o bloco hege- Essa relação assimétrica entre um Estado mônico é composto por grupos político-parti- forte e hipertrofiado e uma sociedade civil frá- dários que podem se revezar no governo e na gil e gelatinosa produziram um deslocamento oposição e disputar nos processos eleitorais a das lutas e conflitos da sociedade civil para o in- condição de grupo político governante. A he- terior do Estado no sentido estrito, que desem- gemonia é exercida por diversos grupos e alian- penha o papel de centro impulsionador de mu- ças político-partidários que objetivam o con- danças políticas e socioeconômicas. Com isso, trole do governo nos diferentes níveis. Não há as disputas políticas entre os diferentes segmen- 87 diferenças substanciais de visão de mundo en- Com a redemocratização do país e a tre esses diferentes grupos político-partidários consolidação da democracia eleitoral e do mul- que constituem o bloco hegemônico, que tanto tipartidarismo, as polarizações entre dois blo- podem ser adversários como aliados políticos cos político-partidários, que obedecem a uma nas eleições realizadas em diferentes momentos lógica clânico-oligárquica, incorporaram no- e processos eleitorais. vos atores políticos e sociais, que adquiriram maior complexidade e diversidade. Além dis- so, os clãs políticos Maia e Alves sofreram divi- 2. A TRADIÇÃO HISTÓRICA DA BIPOLARI- sões internas, com importantes consequências ZAÇÃO POLÍTICA E ELEITORAL para o rearranjo das forças políticas no cená- rio estadual. Neste processo, uma “terceira for- A política norte-rio-grandense possui ça” surge e consolida-se: a liderança de Wilma 1 uma longa tradição histórica de bipolarização de Faria . Contudo, mesmo com sua ascensão, entre duas grandes lideranças e seus respecti- a dinâmica do sistema político estadual man- vos grupos políticos que competem para dirigir teve-se condicionada pela competição e movi- a sociedade e comandar o governo e o apare- mentação, num padrão bipolar, entre três gru- lho de Estado em aliança com lideranças políti- pos político-partidários principais – José Agri- cas secundárias ou auxiliares. Nos anos 1960 e pino Maia/DEM, Garibaldi Filho/Henrique Al- 1970, as disputas políticas ocorriam entre o di- ves/PMDB e a própria Wilma de Faria/PSB – nartismo, liderado por Dinarte Mariz, e o alui- que se alternam no comando do aparelho go- zismo, comandado por Aluízio Alves, abriga- vernamental como governo e como oposição e dos no início em facções dentro da antiga ARE- estabelecem entre si alianças pendulares. NA – “ARENA Vermelha” e “ARENA Verde” O senador José Agripino Maia é filho e, depois, no PDS e no MDB, respectivamente. e herdeiro político do ex-governador Tarcísio Nos anos 1980 e 1990, a competição se dava Maia (1975-1978), que foi indicado de forma entre o “maismo, liderado por Tarcísio Maia, indireta para o cargo com o apoio do então se- Lavoisier Maia e José Agripino Maia no PDS nador Dinarte Mariz (ARENA/PDS), de quem e, depois”, PFL, e o “aluizismo”, comandado havia sido Secretário de Educação em seu go- por Aluízio Alves, Henrique Alves e Garibal- verno no período de 1955 a 1960. Nesse início di Alves Filho no MDB e, depois, PMDB. Ao da sua carreira política, Tarcísio Maia elegeu-se longo do tempo, a família Rosado, que coman- deputado federal pela UDN (1959-1963) com da tradicionalmente a política em Mossoró, se- atuação pouco expressiva. José Agripino in- gunda maior cidade, dividiu-se em duas facções gressou na política como prefeito indicado de políticas que estabelecem alianças com os dois Natal, em 1979, por seu primo e também go- grupos oligárquicos dominantes que ocupam a vernador indireto Lavoisier Maia (1979-1982). condição de governo e de oposição (Evangelis- Fazia parte da geração de jovens prefeitos das ta, 2006a). capitais nordestinas, com formação profissio-

1 Primeiro filiada ao PDT, consolida sua figura pública filiada ao PSB, partido que ajuda a expandir no plano estadual. 88

nal universitária e perfil tecnocrático, que fo- O antigo “aluizismo”, que se trasmu- ram indicados para os cargos pelo governo mi- tou em “alvismo”, identifica-se com o PMDB litar num esforço de renovação de suas lideran- no Rio Grande do Norte. Com o passar dos ças no Nordeste. Na prefeitura, construiu sua anos, as limitações de saúde trazidas pela ida- liderança política promovendo a expansão ha- de avançada impôs a transferência da liderança bitacional e a modernização urbana de Natal, de Aluízio Alves2 para Henrique Alves, seu fi- através do incentivo e apoio ao desenvolvimen- lho, e , seu sobrinho. Essa to do turismo e construção de avenidas e con- liderança compartilhada nem sempre é exerci- juntos habitacionais em bairros populares peri- da sem conflitos, provocados por eventuais di- féricos. Em 1982, na primeira eleição direta pa- vergências entre os interesses políticos de Gari- ra os governos estaduais depois do golpe civil- baldi e de Henrique, o que leva o PMDB a uma militar de 1964, candidato pelo PDS, foi elei- situação de ambiguidade e/ou de paralisia em to governador (1983-1986) vencendo a mito- certos contextos eleitorais. Apesar do desejo e lógica liderança do ex-governador Aluízio Al- dos esforços de Aluízio Alves, Henrique Alves ves (1961-1966). não conseguiu, até agora, ocupar nenhum car- Depois disso, disputou todas as eleições go executivo. Em 1988, foi candidato do PM- e tornou-se uma das mais importantes lideran- DB à sucessão de Garibaldi Alves Filho à Prefei- ças políticas do Rio Grande do Norte. Nas elei- tura de Natal, sendo derrotado por Wilma de ções de 1986, foi eleito senador; nas eleições Faria (que à época ainda era Wilma Maia, pois de 1990, foi eleito governador (1991-1994) era esposa de Lavoisier Maia). Em 1992, foi pela segunda vez. Nas eleições de 1994 elegeu- candidato, mais uma vez, a prefeito de Natal e se novamente senador e renovou seu mandato perdeu, no segundo turno, para o desconheci- senatorial nas eleições de 2002 e 2010. Contu- do Aldo Tinoco, engenheiro sanitarista, apoia- do, foi candidato derrotado a governador nas do por Wilma de Faria. No segundo manda- eleições de 1998, com o apoio do PSB de Wil- to como governador de Garibaldi Alves Filho, ma de Faria, quando perdeu para Garibaldi Al- mais uma vez fracassou a estratégia de capacitar ves Filho, que foi reeleito. Nos últimos anos, Henrique Alves para disputar com chances de tornou-se uma das mais importantes lideranças vitória a sucessão estadual em 2002. Em con- nacionais do antigo PFL e do atual DEM, que trapartida, Henrique Alves possui uma trajetó- dirige o bloco liberal-conservador em aliança ria política marcada por votações expressivas orgânica com o PSDB e o PPS, com destacada na renovação consecutiva do seu mandato de atuação no Congresso Nacional em apoio e sus- deputado federal desde 1970, sobressaindo-se tentação ao Governo do Presidente Fernando sempre como um dos deputados federais mais Henrique Cardoso e de oposição sistemática ao votados na bancada potiguar. Tornou-se uma Governo do Presidente Luiz Inácio Lula da Sil- das principais lideranças e articuladores políti- va e da Presidenta Dilma Rousseff. cos do PMDB na Câmara dos Deputados.

2 Aluízio Alves faleceu em maio de 2006. 89

Por sua vez, a trajetória política de Gari- Natal: perdeu em Natal (1º turno: 43,3%, 2º baldi Alves Filho começou com sua eleição pa- turno: 47,5%), mas venceu em Parnamirim (1º ra a Assembleia Legislativa em 1970 pelo anti- turno: 54,1%, 2º turno: 56,6%), em São Gon- go MDB. Depois de quatro mandatos como um çalo do Amarante (1º turno: 52,8%, 2º turno: dos deputados estaduais mais votados, Garibal- 54,7%) e em Macaíba (1º turno: 56,3%, 2º di Filho derrotou Wilma de Faria – à época Wil- turno: 57,9%). Em 2010, em aliança com Jo- ma Maia -, representante do grupo Maia, sendo sé Agripino, com a estratégia do “voto casado”, eleito prefeito de Natal em 1985, na primeira foi reeleito como o senador mais votado (TSE). eleição direta para as capitais brasileiras depois Em mais uma dessas ironias da história, do golpe militar de 1964. A candidatura de Ga- José Agripino, o algoz do patriarca Aluízio Al- ribaldi Filho representava a ampla aliança das ves em 1982, tem conseguido sobreviver ao de- forças políticas que estiveram à frente da resis- clínio nacional do DEM através do apoio ativo tência democrática durante o regime autoritá- de Garibaldi Filho nos últimos processos elei- rio. Nestas eleições, o grupo Alves recuperou torais. Num olhar retrospectivo sobre a políti- seu prestígio e força política, depois da eston- ca potiguar, uma das “novidades” mais recentes teante derrota sofrida por Aluízio Alves, pelo é a reiterada aliança político-eleitoral estabele- PMDB, no confronto com o jovem José Agri- cida entre Garibaldi Filho (PMDB) e José Agri- pino Maia, pelo PDS, nas eleições para gover- pino (DEM). nador em 1982. Depois do mandato de prefei- to da capital, foi eleito senador em 1990 e em 1994 foi eleito no primeiro turno como gover- 3. O SURGIMENTO DE UMA “TERCEIRA nador do Rio Grande do Norte, com 52,7% FORÇA” dos votos, derrotando Lavoisier Maia (PDT), 38,7% dos votos, que teve o apoio de José Agri- pino (PFL). Em 1998, foi reeleito governador Wilma de Faria lidera, no PSB, o tercei- com 50,2% dos votos no primeiro turno, ven- ro grande grupo político-partidário estadual. cendo José Agripino (PFL), que obtém 41,3% Trata-se de um caso típico de renovação polí- dos votos. Deixou o governo para concorrer e tica transformista num contexto de dominação ser eleito ao senado nas eleições de 2002. clânico-oligárquica, em que uma liderança com origem no grupo Maia, que surgiu como base de Amargou sua primeira derrota eleitoral apoio ao regime militar, operou uma transmu- ao perder, no segundo turno, as eleições para o tação ao migrar para partidos políticos que na- governo estadual em 2006 para Wilma de Faria, cionalmente se situam no espectro de centro-es- 3 reeleita governadora do Rio Grande do Norte . querda e de esquerda. Ao mesmo tempo, atua Apesar de derrotado, Garibaldi Filho confir- com um discurso de esquerda e reproduz prá- mou sua liderança política com vitória eleitoral ticas e valores políticos conservadores tradicio- nas maiores cidades da região metropolitana de nais – como, por exemplo, o personalismo, o fa-

3 Para uma análise das eleições de 2006, ver Spinelli (2010). 90

milismo, o clientelismo e o assistencialismo4 –, Como uma liderança emergente, elegeu ocupando o espaço político da esquerda local. como prefeito de Natal Aldo Tinoco (PSB), en- Seu ingresso na política decorreu dos genheiro sanitarista que era seu colaborador seus vínculos familiares com o grupo Maia, na no secretariado municipal, em 1992, derrotan- condição de esposa do governador indireto La- do no segundo turno Henrique Alves (PMDB), voisier Maia5, organizando as ações de assistên- que pretendia ser o principal herdeiro do alui- cia social do governo estadual. No governo de zismo. Rompeu com Aldo Tinoco e candidatou- José Agripino, eleito em 1982, assumiu a Se- se novamente à eleição para Prefeitura de Natal cretaria de Trabalho e Ação Social, dando con- em 1996, com o apoio de José Agripino. Nessas tinuidade ao assistencialismo oficial com gran- eleições enfrentou com sucesso a surpreenden- de foco em Natal. Suas relações com as comu- te candidatura da então deputada estadual Fáti- nidades dos novos conjuntos habitacionais nos ma Bezerra (PT) no segundo turno, numa cam- bairros periféricos foram suas credenciais pa- panha histórica disputadíssima – Wilma de Fa- ra concorrer à Prefeitura de Natal nas eleições ria (PSB), com 51,7% dos votos e Fátima Bezer- de 1985, perdendo para Garibaldi Alves Filho ra (PT), com 48,3% dos votos –, que transfor- (PMDB), que era apoiado por uma aliança de mou, pela primeira vez, o PT na principal força forças democráticas liberais e de esquerda. competitiva da esquerda na política local (TSE, 1996). Eleita para o Congresso Constituinte, em 1986, teve destacada atuação e se aproximou da Em 2000, com o apoio do governador agenda e das propostas defendidas pela esquer- Garibaldi Alves (PMDB), candidatou-se e foi da. Depois disso, apropriou-se da legenda do reeleita como prefeita de Natal com 57,7% PDT, forçando a saída de militantes trabalhis- dos votos, enfrentando Fátima Bezerra (PT) tas históricos, sendo eleita prefeita de Natal em – 29,4% dos votos – e Sonali Rosado (PFL), 1988 ao derrotar a candidatura de Henrique Al- candidata de José Agripino, que obteve ape- ves (PMDB), numa aliança com José Agripino nas 11,0% (TSE, 2000). Renunciou à prefei- (PFL), que tem Ney Lopes (PDS) como vice-pre- tura, sendo substituída pelo vice-prefeito Car- feito. Depois disso, trocou novamente de filia- los Eduardo Alves (PSB), para concorrer às ção partidária e passou a controlar o PSB, mais eleições para governador em 20026. No segun- uma vez tomando para suas mãos uma legenda do turno, venceu o candidato Fernando Frei- de esquerda de militantes socialistas.

4 Há, inclusive, graves acusações de práticas de corrupção, com a investigação da Polícia Federal, na Operação Hígia, sobre o en- volvimento do advogado Lauro Maia, filho da ex-governadora Wilma de Faria (PSB) e do deputado estadual Lavoisier Maia (PSB). Ele é acusado de tráfico de influência na Secretaria Estadual de Saúde. Em junho de 2008, chegou a ser preso, juntamente com ou- tros 12 investigados, pela Polícia Federal (HÍGIA, Nominuto - http://www.nominuto.com/noticias/politica/higia-lauro-diz-que-a- cusacoes-sao-tentativa-de-atingir-wilma-de-faria/52203). A Operação Hígia apura fraudes em licitações e contratos superfaturados na Secretária Estadual da Saúde, durante o governo de Wilma. Suspeita-se também que esse seria um dos mecanismos de financia- mento ilegal de campanha do grupo política da ex-governadora Wilma de Faria. 5 Foi o último governador indicado, nomeado em 1978, durante o regime militar. 6 Nas eleições de 2002, no primeiro turno, Wilma de Faria (PSB) foi a mais votada com 37,6% dos votos, seguida por Fernan- do Freire (PMDB) com 30,9% dos votos e, em terceiro lugar, por Fernando Bezerra (PTB) com 19,9% dos votos (TSE, 2002). 91 re (PMDB), vice-governador apoiado por Ga- ma de Faria ao senado que tentava a reeleição, ribaldi Filho, tendo o apoio de José Agripino Fernando Bezerra (PTB), foi derrotado em Na- (PFL) e do PT7: Wilma de Faria obteve 61,05% tal por Rosalba Ciarlini Rosado (PFL), ex-pre- e Fernando Freire alcançou 38,95% dos votos. feita de Mossoró, candidata apoiada por Ga- ribaldi Filho e José Agripino9 Finalmente, em Em 2006, numa eleição muito disputa- 2010, renunciou ao governo do Estado pa- da, Wilma de Faria enfrentou a forte liderança ra candidatar-se sem sucesso ao Senado, sendo de Garibaldi Filho, considerado favorito no iní- derrotada com a recondução dos mandatos se- cio da campanha eleitoral. No primeiro turno, natoriais de Garibaldi Filho (PMDB) e de Jo- a então candidata postulante à reeleição conse- sé Agripino (DEM), que se mantiveram aliados guiu 49,6% e Garibaldi, 48,6% dos votos; no nas últimas disputas políticas locais. segundo turno, venceu a eleição com uma pe- quena ampliação da sua maioria eleitoral - al- cançando 52,38%, contra 47,62% de seu opo- 4. AS FORÇAS POLÍTICAS AUXILIARES sitor. Nessas eleições, Wilma de Faria (PSB) foi reeleita governadora, em aliança com o PT, derrotando Garibaldi Filho (PMDB), que esta- Ao lado desses três principais conglome- va aliado com José Agripino (PFL). rados político-partidários, há grupos auxiliares, que estabelecem alianças com os grupos políti- Contudo, no auge da sua trajetória po- co-partidários principais em arranjos diferentes lítica, quando foi reeleita governadora do Rio em cada processo eleitoral. Grande do Norte em 2006, surgiram os primei- ros sinais de declínio da sua liderança política Dentre estas forças políticas, destaca-se em Natal e na região metropolitana de Natal. a família Rosado, com base eleitoral em Mos- O seu desafiante, Garibaldi Filho, ganhou nos soró e cidades circunvizinhas da região Oeste, dois turnos da eleição na região metropolitana, que ocupa continuamente 2 vagas (25%) da re- enquanto Wilma de Faria ganhou somente em presentação política potiguar na Câmara dos Natal, mesmo assim com uma diferença relati- Deputados há mais de 50 anos, sendo consti- va que diminuiu no segundo turno8. Além dis- tuída por duas facções da família Rosado, hoje so, nessa eleição, o candidato apoiado por Wil- abrigadas no DEM e no PSB.

7 No primeiro turno, o PFL apoiou Fernando Bezerra (PTB), numa coligação entre PTB, PFL, PPS, PV, PAN e PSL, que obteve 261.225 votos (19,9%); e o PT lançou a candidatura de Ruy Pereira (PT), que alcançou 147.380 votos (11,2%), numa coligação entre PT, PcdoB, PMN e PL (TSE, 2002). 8 O resultado eleitoral, em 2006, foi o seguinte em termos relativos da preferência dos eleitores. No primeiro turno: Natal – Wil- ma 52,3% e Garibaldi 43,3%; Parnamirim – Wilma 42,4% e Garibaldi 54,1%; São Gonçalo do Amarante – Wilma 44,9% e Ga- ribaldi 52,8%; e Macaíba – Wilma 42,4% e Garibaldi 56,3%. No segundo turno: Natal - Wilma 52,4% e Garibaldi 47,5%; Par- namirim – Wilma 43,3% e Garibaldi 56,6%; São Gonçalo do Amarante – Wilma 45,3% e Garibaldi 54,7%; e Macaíba – Wilma 42,0% e Garibaldi 57,9% (TSE, 2006). 9 No Rio Grande do Norte, numa eleição com três candidatos competitivos, a ex-prefeita de Mossoró Rosalba Ciarlini (PFL) ob- teve 44,18% dos votos; o senador Fernando Bezerra (PTB), 43,42% dos votos; e o ex-governador Geraldo Melo (PSDB), 10,64% dos votos. Em Natal, foi esse o resultado eleitoral: Rosalba Ciarlini com 41,99% dos votos, Fernando Bezerra com 40,28% dos votos e Geraldo Melo com 12,98% dos votos (TSE, 2006). 92

Sobressai-se, também, algumas lideran- Outro fenômeno recorrente na política ças emergentes, como o atual vice-governador potiguar é a acomodação de um grupo de de- Robinson Faria, que controlava o PMN e re- putados estaduais numa determinada sigla par- centemente passou a comandar o PSD no Rio tidária que atua como forma de aumentar o seu Grande do Norte, possuindo base eleitoral con- poder de barganha para obter acesso a recursos centrada na região metropolitana de Natal e na políticos para a reprodução da sua base políti- região Agreste do Rio Grande do Norte; o de- co-eleitoral – sobretudo, cargos e investimentos putado federal João Maia, que controla o PR, locais – em troca do apoio necessário à susten- tendo base eleitoral principalmente na região tação parlamentar dos sucessivos governos es- metropolitana de Natal e na região do Seri- taduais. Foi assim no passado recente com o PL dó do Rio Grande do Norte; o prefeito Car- e com o PMN. É assim com o PROS, que foi los Eduardo Alves, atualmente no comando do criado, em 2013, no Rio Grande do Norte, sob PDT, com forte presença eleitoral em Natal e a liderança do deputado estadual Ricardo Mot- também em algumas cidades da região metro- ta, presidente da Assembléia Legislativa, com a politana de Natal; e o ex-deputado federal Ro- participação de cinco deputados estaduais11. gério Marinho10, que controla atualmente o PS- Na esquerda, o PT e o PCdoB são as DB, e tem sua principal base eleitoral na região duas forças político-partidárias com maior ex- metropolitana de Natal. pressão eleitoral. O PCdoB foi um aliado do As lideranças intermediárias precisam projeto político de Wilma de Faria (PSB) du- ter o controle de máquinas partidárias de pe- rante seus mandatos enquanto governadora quenos e médios partidos como forma de asse- do estado. O PT, premido pela política nacio- gurar um mínimo de autonomia para aumentar nal de alianças, oscilou entre a independência seu poder de barganha nas alianças com os gru- e o apoio político aos governos do PSB no Rio pos político-partidários principais, como são o Grande do Norte. caso, por exemplo, de Robinson Faria com o O PT representa o maior partido da es- PMN e o PSD, de João Maia com o PR e de querda potiguar, apesar da persistente dificul- Carlos Eduardo com o PDT. Essas lideranças dade para ampliar sua base eleitoral e supe- políticas não podem abrir mão de ter o contro- rar o trauma de origem de luta interna entre le das máquinas partidárias, para viabilizar seus lideranças de correntes-partidos que paralisam projetos políticos pessoais. a ação partidária e impedem o surgimento de

10 Rogério Marinho é uma liderança política em declínio. Atualmente é secretário de Desenvolvimento Econômico do governo Rosalba Ciarlini. Despontou no cenário político atuando no PSB. Com o apoio de Wilma de Faria e dos recursos políticos da má- quina governamental, elegeu-se vereador em 2004, ocupando a presidente da Câmara Municipal de Natal, e, depois, deputado fe- deral em 2006. No período que antecedeu as eleições para prefeito de Natal em 2008, insurgiu-se contra a liderança de Wilma de Faria, que defendia uma candidatura de unidade da chamada base aliada do governo Lula à prefeitura de Natal. Seu projeto era ser candidato do PSB a prefeito de Natal. Perdeu a indicação na convenção eleitoral do PSB de Natal. Depois disso, ingressou no PSDB e comanda o seu diretório estadual. Conseguiu uma suplência de deputado federal na eleição de 2010. Foi candidato a pre- feito de Natal em 2012, ficando em quarto lugar, com 38.575 votos (10,2%). 11 No Rio Grande do Norte, o PROS é presidido pelo deputado estadual Ricardo Motta, presidente da Assembléia Legislativa, que era filiado ao PMN, e pelos deputados estaduais Gilson Moura (ex-PV), Gustavo Carvalho (ex-PSB), Raimundo Fernandes (ex-PMN) e Vivaldo Costa (ex-PR). 93 um projeto político alternativo para a socieda- de contradição aparente, as derrotas eleitorais de norte-rio-grandense. O PT local não conse- em Natal criaram condições sinérgicas para a guiu seguir a trajetória nacional do PT e seu de- consolidação da imagem pública e da liderança sempenho político-eleitoral em outros estados de Fátima Bezerra, que tem destacada atuação do Nordeste, transformando-se em partido de parlamentar na Câmara dos Deputados13. massas com vocação para chegar ao poder e di- Na eleição para a prefeitura de Natal em rigir a sociedade. 2012, o deputado estadual Fernando Mineiro Na ausência de um projeto político par- (PT) fez uma campanha eleitoral em que se di- tidário, predominam os interesses e os projetos ferenciou dos demais candidatos por apresen- políticos das lideranças dos grupos políticos in- tar diagnósticos e propostas de solução para os ternos, numa aproximação da lógica geral de problemas da população natalense. O caráter prevalência dos interesses de ascensão e sobre- propositivo da sua campanha configurou um vivência política de lideranças individuais nos contraponto à monótona polarização promovi- partidos políticos brasileiros. Mesmo assim, o da pelo marketing eleitoral de Carlos Eduardo PT tem mantido a representação política míni- (PDT) e de Hermano Moraes (PMDB). Além ma de 01 deputado estadual na Assembleia Le- disso, destacou-se como um candidato que gislativa12 e 01 deputado federal na Câmara dos apresentou um programa de governo qualifica- Deputados. do nos debates promovidos pelas diversas emis- Na trajetória petista, destaca-se a lide- soras de televisão. Com isso, sua candidatura te- rança da deputada federal Fátima Bezerra, que ve um grande crescimento na reta final da cam- foi candidata sem sucesso à Prefeitura de Na- panha e por muito pouco não foi para o segun- tal em quatro eleições consecutivas – de 1996 do turno das eleições para disputar a Prefeitu- a 2008 – e tem demonstrado grande desempe- ra de Natal com Carlos Eduardo Alves (PDT). nho nas eleições para a Câmara dos Deputados, No primeiro turno, Carlos Eduardo (PDT) ob- sendo reconduzida para seu terceiro manda- teve 153.464 votos (40,4%); Hermano Moraes to como a deputada federal mais votada, com (PMDB), 87.380 votos (23,0%); e Fernando 14 220.335 votos, em 2010 (TSE, 2010). Apesar Mineiro (PT), 85.915 votos (22,6%) .

12 A eleição de 2002 constituiu uma exceção a isso, pois o PT elegeu dois deputados estaduais: Paulo Davim e Fernando Minei- ro (TSE, 2002). 13 Em 1996, em seu melhor desempenho eleitoral para a Prefeitura de Natal, numa eleição muito competitiva: Wilma de Faria (PSB) obteve 35,79% dos votos, seguida por Fátima Bezerra (PT) com 28,88% dos votos e João Faustino (PSDB) com 25,69% dos votos; no segundo turno, Wilma de Faria vence a eleição com 51,68% dos votos contra 48,32% de votos para Fátima Bezerra (TSE, 1996). Em 2000, perde novamente para Wilma de Faria, agora no primeiro turno, alcançando 29,3% dos votos e ficando na segunda colocação. Em 2004, em seu pior desempenho eleitoral, fica em quarto lugar com apenas 7,4%, numa eleição em que Carlos Eduardo Alves (PSB) vence Luiz Almir (PSDB) no segundo turno. E, finalmente, na última eleição municipal em 2008, fina- lizada no primeiro turno, Fátima Bezerra, com o apoio de Wilma de Faria (PSB), Garibaldi Filho e Henrique Alves (PMDB), atin- ge 36,8% dos votos e perde para Micarla de Sousa, que alcança 50,8% dos votos, com o apoio do senador José Agripino (DEM), da senadora Rosalba Ciarlini (DEM), do deputado federal João Maia (PR) e do deputado federal Rogério Marinho (PSDB) e do deputado estadual Robinson Faria (PMN). 14 No segundo turno, Carlos Eduardo (PDT) foi eleito Prefeito de Natal, com 214.687 votos (58,3%), contra Hermano Moraes (PMDB), com 153.522 votos (41,7%). Dados disponíveis no TSE (2012). 94

Tal pleito, ademais, marcou uma reorga- namento e na articulação das coligações elei- nização do grupo liderado pelo PSB de Wilma torais há mais de 40 anos. Ingressam na políti- de Faria: além do cisão do PT, com a candidatu- ca na década de 1970 e 1980. Para evitar o es- ra de Fernando Mineiro, a ex-governadora vol- gotamento histórico desse sistema político clâ- tou ao executivo municipal de Natal como vi- nico-oligárquico, nos processos eleitorais mais ce-prefeita eleita na chapa de Carlos Eduardo. recentes, há evidências de uma tentativa de re- novação dos principais grupos político-partidá- Na eleição municipal em 2012, surgiram rios, através da entrada em cena de novos per- também novos atores de esquerda na represen- sonagens do sempre igual enredo político. tação parlamentar da Câmara Municipal de Na- tal. Nessa eleição, aconteceu um fenômeno po- Os partidos políticos brasileiros pos- lítico inusitado. Em decorrência da exposição suem algumas características que lhes são pe- de vídeo nas novas redes sociais na internet e culiares. A grande maioria dos nossos partidos sua repercussão em programa nacional de televi- políticos não dispõe de uma burocracia profis- são15, Amanda Gurgel, professora da rede públi- sional que é indispensável para a disputa e a ca estadual, tornou-se a grande estrela das elei- conquista de votos numa democracia eleitoral ções em Natal. Amanda Gurgel (PSTU) foi a ve- em ampliação constante (SANTOS, 2003). Is- readora mais votada, ultrapassando as fronteiras so requer que se estabeleçam vínculos de con- sociais e geográficas das zonas eleitorais de Na- fiança e dependência mútuas entre os líderes e tal. Alcançou 32.819 (8,6%) votos, fato inédito a máquina partidária nas sociedades modernas na história política de Natal e do Rio Grande do (WEBER, 1999), com a captação dos recursos Norte. Com essa votação excepcional, possibili- materiais necessários às campanhas eleitorais tou a eleição de dois vereadores do PSOL, San- que são cada vez mais dispendiosas. Diante da dro Pimentel, com 1.398 votos, e Marcos Fer- inexistência dessas condições, são criados parti- reira, com 717 votos, através do quociente elei- dos que são máquinas políticas sob o comando toral obtido pela coligação partidária firmada pessoal de lideranças políticas, cujas relações de entre o PSTU e o PSOL (TSE, 2012). confiança estão baseadas e dependem de laços familiares ou laços afetivos de lealdade e gra- tidão para assegurar o segredo imprescindível 5. O ESGOTAMENTO HISTÓRICO DAS LI- na relação com as fontes de financiamento das DERANÇAS TRADICIONAIS? campanhas e na ocupação de cargos e distribui- ção de recursos políticos provenientes do exer- cício do poder. Essa visão panorâmica do cenário políti- co estadual, com a apresentação dos seus gru- O sistema político estadual apresenta si- pos político-partidários constitutivos, também nais de mais um ciclo de renovação com o sur- evidencia que as principais lideranças políticas gimento de novas lideranças, num processo que ocupam o lugar de protagonismo no posicio- reproduz a lógica clânico-oligárquico dominan- te. Assim, destaca-se o fenômeno do “filhotis-

15 Foi entrevistada pelo apresentador Fausto Silva no programa Domingão do Faustão da Rede Globo de Televisão. 95 mo” político com o advento na cena política de ma de Faria, de Garibaldi Alves Filho e Henri- uma nova geração de herdeiros familiares dos que Alves; e em 2010 com a eleição de Rosalba diversos grupos político-partidários. Esse pro- Ciarlini Rosado (DEM) como governadora do cesso é conduzido pelas atuais principais lide- Rio Grande do Norte e sua reeleição para uma ranças estaduais que já foram, quase em sua to- das vagas em disputa para o senado. talidade, frutos dessa renovação clânico-oligár- quica algumas décadas atrás. Os principais gru- pos político-partidários cuidam agora de asse- 6. ASCENSÃO E DECLÍNIO DA GOVERNA- gurar a iniciação política de seus descendentes DORA ROSALBA CIARLINI que irão dar continuidade aos respectivos inte- resses políticos. A transformação da liderança regional Em 2002, Wilma de Faria elegeu sua fi- de Rosalba Ciarlini Rosado em liderança esta- lha, Márcia Maia, para seu primeiro mandato dual foi o resultado de um longo trabalho de como deputada estadual. Esse processo se in- construção da sua imagem pública. Médica pe- tensificou em 2006 com a eleição do deputa- diatra, casada com o ex-deputado estadual Car- do federal Felipe Maia, filho de José Agripino los Augusto Rosado, filho do ex-governador Maia (DEM), do deputado federal Fábio Faria, Dix-Sept Rosado, um dos principais represen- filho do atual vice-governador Robinson Faria tantes da família Rosado, que domina a política (PSD) e do deputado estadual Walter Alves, fi- mossoroense a partir da metade do século XX, lho de Garibaldi Alves Filho (PMDB). ingressou na política sendo eleita três vezes co- mo prefeita de Mossoró (1988, 1996 e 2000). A renovação clânico-oligárquica ganhou Adotou como marca política o nome de Rosal- maior densidade pela relevância dos cargos ba Ciarlini, conveniente e aparentemente des- conquistados, com a eleição de Rosalba Ciarli- vinculada dos grupos oligárquicos. Tornou-se ni Rosado (DEM), ex-prefeita de Mossoró, co- uma liderança estadual contrariando uma ten- mo senadora em 2006 e governadora eleita em dência que caracteriza a política potiguar. Em 2010. geral, as lideranças estaduais surgem e se con- Isso ocorreu como parte do contexto solidam a partir da projeção de uma liderança geral paradoxal em que o declínio nacional do política que tem origem em Natal, capital do DEM foi acompanhado da recuperação da lide- Estado e principal colégio eleitoral. rança de José Agripino no Rio Grande do Nor- Rosalba Ciarlini firmou sua liderança na te, que adotou uma estratégia vitoriosa nas elei- principal cidade do interior como uma prefei- ções majoritárias em 2006, quando elegeu Ro- ta que, em três mandatos, transformou e mo- salba Ciarlini Rosado como senadora em dis- dernizou a infraestrutura urbana de Mossoró. puta com o então senador Fernando Bezerra O grande crescimento econômico-social da ci- (PTB); em 2008, com a eleição de Micarla de dade foi atribuído unilateralmente à compe- Sousa (PV) como prefeita de Natal, com a der- tência de Rosalba como gestora, omitindo-se o rota de Fátima Bezerra (PT), apoiada por Wil- substancial aumento da arrecadação municipal 96

oriundo das atividades desenvolvidas pela Pe- za à Prefeitura de Natal, consolidando sua ima- trobras e as empresas que se fixaram em Mos- gem pública junto ao eleitorado natalense. soró para dar suporte técnico às crescentes de- O ciclo de ascensão político-eleitoral de mandas do setor petrolífero na região. É nesse Ciarlini se completou com o êxito nas eleições contexto que a cidade despontou como centro 2010. Ao concorrer com o então governador regional de médio porte, que se sobressaiu por Iberê Ferreira (que havia sido vice de Wilma de expressivas melhorias urbanas e exitosas polí- Faria e assumido o cargo com a renúncia des- ticas públicas, com intenso trabalho de marke- ta para se candidatar ao Senado) e o ex-pre- ting político na área cultural. Essa foi a base pa- feito de Natal, Carlos Eduardo Alves, Rosalba ra a construção da sua imagem pública de ad- venceu já no primeiro turno do pleito, obten- ministradora competente que foi difundida por do 52,5% de votos (contra 36,3% de Iberê e toda a sociedade norte-rio-grandense. 10,4% de Carlos Eduardo). Esse fenômeno ganhou expressão polí- O consórcio político que levou Rosalba tica na campanha eleitoral para o senado em Ciarlini ao êxito eleitoral em 2010 foi marcado 2006, quando Rosalba Ciarlini enfrentou e pela continuidade do acordo político entre Ga- venceu, ao mesmo tempo, Fernando Bezerra, ribaldi Alves e José Agripino que, por extensão, então senador e líder do governo Lula no Sena- se constituíram nos principais cabos eleitorais do, e o ex-governador e senador Geraldo Me- da então senadora. Há de se notar, contudo, lo. Numa campanha surpreendente ganhou a que somente José Agripino fez parte da cha- vaga senatorial e derrotou Fernando Bezerra, pa majoritária encabeçada por Rosalba. O PM- que iniciou a campanha como favorito. Rosal- DB do grupo Alves lançou, com vistas a acomo- ba Ciarlini (PFL) obteve 44,18% % dos votos; dar os interesses conflitantes em seu interior, Fernando Bezerra (PTB), 43,42% dos votos; e uma chapa majoritária própria, capitaneada pe- Geraldo Melo (PSDB), 10,64% dos votos. Is- la candidatura ao senado de Garibaldi. so aconteceu também em Natal: Rosalba Ciarli- ni conseguiu 41,99% dos votos e derrotou Fer- Com tal artifício, Henrique Alves se viu nando Freire, apoiado por Wilma de Faria, com liberado para apoiar Iberê ao governo e Wilma 40,28% dos votos, e Geraldo Melo, que rece- ao senado. Ademais, o PMDB também atraiu o beu 12,98% dos votos dos eleitores natalenses PR, do deputado João Maia, e o PV, da então (TSE, 2006). prefeita de Natal, Micarla de Souza, para uma coligação a deputado federal, que possibilitou Rosalba Ciarlini consolidou sua lideran- a reeleição de Henrique Alves e João Maia e ça estadual nas eleições municipais de 2008, a eleição de Paulo Wagner (PV) para a Câma- quando teve destacada atuação política ao par- ra Federal. ticipar ativamente da campanha eleitoral em ci- dades de todas as regiões do Estado. Pela im- Rosalba também contou com o decisivo portância estratégica, todavia, concentrou sua apoio do então presidente da Assembleia Legis- atuação nos principais colégios eleitorais. Teve lativa do RN, Robinson Faria, que foi candida- papel de relevo na vitória de Micarla de Sou- to a vice-governador em sua chapa. Robinson, 97 que apoiou Wilma de Faria durante boa parte sado, marido da governadora, que provocou o de seus dois mandatos como governadora, mi- pedido de exoneração do advogado Paulo de grou para a oposição quando ficou definida a Tarso, chefe de gabinete, que era até então um candidatura de Iberê Ferreira ao governo em dos principais assessores do governo. A partir 2010. A migração de Robinson e seus lidera- daí, o vice-governador rompeu com a governa- dos (1 deputado federal, seu filho Fábio Farias, dora e passou a fazer oposição ao governo. 4 deputados estaduais e vários prefeitos no in- Naquele episódio, a sociedade norte terior do estado) foi a peça final no quebra-ca- -rio-grandense tomou conhecimento de fatos beça que levou Rosalba ao governo do Estado. graves que abalaram a autoridade da governa- O outro lado da moeda na ascensão po- dora Rosalba na condução do governo. As notí- lítico-eleitoral de Rosalba Ciarlini e associados cias veiculadas na imprensa informavam que o na eleição de 2010 foi o consequente declínio centro de decisão do governo estadual era ocu- do grupo liderado por Wilma de Faria. Além da pado por Carlos Augusto Rosado, marido da derrota de seu candidato ao governo, a própria governadora. Wilma sofreu um revés eleitoral (651.358 vo- Ao longo do tempo, o governo Rosalba tos) em sua candidatura ao senado, sendo der- não conseguiu mostrar que era capaz de imple- rotada justamente por seus dois principais ad- mentar as políticas públicas prometidas duran- versários, Garibaldi Alves (1.042.272 votos) e te a campanha eleitoral. Ficou paralisado em José Agripino (958.891 votos). suas ações administrativas. Com isso, o discur- A composição inicial da equipe de go- so que marcou o início da gestão, que atribuía verno de Rosalba indicaria uma das princi- todas as dificuldades administrativas às dificul- pais características da atual gestão estadual. As dades orçamentárias herdadas do governo an- principais secretarias foram ocupadas por anti- terior de Iberê Ferreira de Souza e Wilma de gos colaboradores de Rosalba na prefeitura de Faria, perdeu sua capacidade de convencer a Mossoró. Essa tendência à provincianização do sociedade sobre a fragilidade e a ineficiência no governo levou, a médio prazo, ao seu crescente desempenho do novo governo. isolamento em relação às forças políticas e so- A crise administrativa e financeira do ciais que poderiam dar sustentação ao gover- governo Rosalba atingiu seu ápice com a im- no Rosalba. A paralisia administrativa e o iso- possibilidade do governo honrar seus compro- lamento político tem sido a marca do governo missos dos repasses previstos constitucional- Rosalba nesses quase três anos do seu mandato. mente dos recursos orçamentários para o Poder A coalização de forças políticas que foi Legislativo e o Poder Judiciário. Apesar do au- formada para a eleição de Rosalba começou a mento da arrecadação de impostos, o governo se desfazer, em outubro de 2011, antes de com- estadual propôs a redução do percentual a ser pletar um ano do governo, com a crise políti- repassado ao Legislativo e ao Judiciário. Além ca envolvendo o vice-governador Robson Faria disso, como há muito não acontecia na admi- e o ex-deputado estadual Carlos Augusto Ro- nistração pública estadual, o governo Rosalba 98

atrasou o pagamento da folha salarial dos servi- 7. ELEIÇÕES AO GOVERNO DO RIO GRAN- dores públicos estaduais. DE DO NORTE: OBSERVANDO O PADRÃO O PMDB, que participou do governo BIPOLAR DE DISPUTA desde o início, se distancia do governo Rosalba e anunciou que terá candidato próprio nas elei- No plano eleitoral, a movimentação dos ções de 2014. três principais grupos clânico-oligárquicos, em Enquanto isso, o senador José Agripino, associação com os grupos alternativos e auxi- presidente do DEM, declarou que o principal liares, tem impactos diferenciados ao longo do objetivo estratégico do partido não seria a ree- tempo. Observando-se as disputas para o gover- leição da governadora Rosalba, mas a preser- no do estado no pós-redemocratização, é possí- vação eleitoral da sua bancada federal no Rio vel destacar três momentos distintos. Na déca- Grande do Norte. O seu objetivo é assegurar a da de 1990, a polarização entre Alves e Maias, reeleição do seu filho, o deputado federal Fe- advinda dos tempos de regime militar, é a tôni- lipe Maia (DEM). Para tanto, começam a ser ca central. As eleições de 2002 marcam uma vi- estabelecidos os primeiros entendimentos en- rada no padrão, com a ascensão de Wilma de tre José Agripino e Garibaldi Filho. O objetivo Faria ao executivo estadual e consequente der- é manter a aliança político-eleitoral entre am- rota dos candidatos referendados pelos grupos bos, traduzindo-se numa coligação partidária que antes monopolizavam a cena. Em 2006 e que conte com a participação do PMDB e do 2010, o embate passa a ser entre o campo lide- DEM em 2014. rado por Wilma e o consórcio político resultan- O resultado foi o desgaste16 crescente te da união entre Alves e Maia. De forma seme- frente à opinião pública e a consequente desa- lhante ao que ocorre nas eleições presidenciais, provação popular, como tem revelado recen- polarizadas por blocos políticos liderados pelo tes pesquisas de opinião realizadas pela Consult PT e pelo PSDB, as eleições para o governo es- Pesquisa e pelo Instituto Índice Pesquisa, que são tadual baseiam-se numa lógica dual de disputa. institutos de pesquisa locais. Em junho de 2013, A despeito das recorrentes avaliações de o Instituto Índice Pesquisa avaliou a aprovação fragmentação do quadro partidário brasileiro, do governo Rosalba: é desaprovado por 70,1% estudos recentes sobre o assunto demonstram da população – sendo 17,9% de regular negati- que, em se tratando de eleições para o execu- vo, ruim de 20,7% e péssimo de 31,5% (Vidal, tivo, os padrões de disputa tendem a envolver 2013). E em agosto de 2013, a Consult Pesqui- uma seleção restrita de postulantes. Assim, es- sa avaliou o governo Rosalba: apenas 11,53% pecificamente no caso das eleições presidenciais aprovam, 83,35% desaprovam e 5,12% não e para os governos dos estados, o número de têm opinião formada (Dantas, 2013). partidos em competição é reduzido e tende a se estruturar na oposição entre dois grandes gru- pos. Ademais, em larga medida, as coligações e

16 Nos debates parlamentares da Assembléia Legislativa, começa a ser cogitada a proposta de um impeachment da governadora Rosalba Ciarlini. 99 arranjos políticos presentes nas primeiras ten- tição baseado no confronto entre dois candida- dem a influenciar a composição das segundas, tos competitivos por pleito. A primeira eleição mesmo que nelas exista um maior espaço para dos anos 2000 apresenta um Número de Parti- acomodação de interesses locais diversos da ló- dos Efetivos fora da curva justamente porque gica nacional (Limongi e Cortez, 2010; Mene- há uma mudança na configuração dos grupos guello, 2011). Em sintonia com tais tendências, em disputa, com a ascensão de Wilma de Fa- nas décadas de 1990 e 2000, as eleições para o ria ao governo. Neste caso, torna-se importan- governo do estado do Rio Grande do Norte en- te salientar, a candidata do PSB se impôs à po- volveram um número restrito de concorrentes, larização anterior, mesmo com as candidaturas recaindo, no mais das vezes, em um padrão bi- das famílias Alves e Maia postas (o vice-gover- polar de disputa. nador Fernando Freire, PPB, e o senador Fer- É o que se pode visualizar através do nando Bezerra, PTB, respectivamente). Número de Partidos Efetivos (Ne)17 das elei- O padrão polarizado e restrito das dis- ções para o governo do estado entre 1990 e putas ao executivo diferencia-se daquele encon- 2010: trado para a Assembleia Legislativa. Por um la- do, o Número de Partidos Efetivos para o le- gislativo no período foi maior (numa média de Tabela 1 – Número Efetivo de Partidos por 6,46 entre 1990 e 2006, conforme estudo de Eleição – Governo RN – 1990-2010 Ferreira, Batista e Stabile, 2008, p. 443), de- Eleição Candidatos Ne monstrado uma abertura à pluralidade. Por ou- 1990 4 2,51 tro, embora tal pluralidade possa ser encontra- 1994 4 2,32 da, a influência do executivo também se fez pre- 1998 6 2,34 sente, restringindo os partidos em disputa em 2002 7 3,46 determinados pleitos. É o que se pode depreen- 2006 7 2,07 der da comparação entre a votação obtida pe- 2010 5 2,39 las coligações vencedoras ao governo e seus re- presentantes na casa legislativa estadual. Entre Fonte: FERREIRA, BATISTA, STABILE (2008); TSE 1994 e 2010, quando se tratou da primeira elei- (elaboração própria) ção de um(a) dado(a) candidato(a) ao governo (Garibaldi Alves em 1994, Wilma de Faria em No período considerado, embora o nú- 2002 e Rosalba Ciarlini, em 2010), a tendência mero de candidatos concorrentes tenha apre- foi a de que suas respectivas coligações ao le- sentado uma média de 5,5, o índice relativo à gislativo obtivessem uma votação menor, con- quantidade efetiva de partidos sempre esteve forme mostra a tabela 2 (baseada em estudo de em torno de 2 (numa média de 2,51). Isto é, ex- Rachel Meneguello, 2011). No sentido oposto, cetuando-se a eleição de 2002, tais dados cor- quando o(a) governador(a) foi reeleito(a) (Ga- roboram a avaliação de um padrão de compe-

17 Calculado a partir da divisão por 1 do somatório dos quadrados da proporção de votos ou cadeiras obtidos pelos partidos. Pa- ra mais informações, ver Laakso e Taagepera (1979). 100

ribaldi em 1998 e Wilma em 2006), os núme- governo do estado do RN a fração de votos ob- ros mudaram, levando a uma maior volume de tida pelos grupos tradicionais e os índices de votação de seus apoiadores legislativos. volatilidade eleitoral. A tabela 3 expõe os per- centuais alcançados pelos candidatos lança- dos pelos três grupos aqui analisados no perío- Tabela 2 – Votação dos candidatos eleitos ao go- do compreendido entre 1994 e 2010. Em to- verno do RN e de suas respectivas coligações para das as eleições da série, a parcela de votos váli- a Assembleia Legislativa (1994-2010) dos arregimentados por eles é muito larga e gi- Candidato(a) Votos Válidos Coligação Ass. ra em torno dos 90%. Nelas, os pleitos polari- Eleição Eleito(a) Eleito(a) (1º T %) Legislativa (%) zados são aqueles que apresentam maiores índi- ces (acima de 90% em 1994 e 1998 e chegan- 1994 Garibaldi Alves 52,7 33,3 (PMDB) do aos 98,2% em 2006, todos em eleições com pelo menos quatro candidatos em disputa). Nas 1998 Garibaldi Alves 50,2 50 (PMDB) eleições mais fragmentadas, com quatro e três 2002 Wilma de Faria 37,6 8,3 candidatos obtendo mais do que 10% dos vo- (PSB) tos (em 2002 e 2010, respectivamente), os pos- Wilma de Faria tulantes ao governo chancelados pela associa- 2006 (PSB) 49,6 50 ção entre Alves e Maia e pelo grupo liderado Rosalba Ciarlini por Wilma de Faria agregam uma fatia menor, 2010 (DEM) 52,5 29,1 mais ainda bastante elevada, dos votos (88,39% Fonte: Meneguello, 2011, pp. 24-29. e 88,8%).

Embora ocorra uma maior quantidade É válido salientar que, para o cálculo da de partidos em disputa para a Assembleia Legis- proporção de votos obtidos pelos três grupos lativa, o “governismo” termina por prevalecer em questão, foram considerados somente os es- na dinâmica parlamentar (ABRUCIO, 1998), cores ou das lideranças dos mesmos ou dos can- fazendo com que adversários do(a) governa- didatos por elas diretamente chancelados. O que dor(a) na campanha eleitoral sejam convertidos exclui dos resultados agregados expostos na co- em base de apoio governamental no transcor- luna “Total Grupos” as votações de Ruy Perei- rer do mandato. Esse fenômeno fica muito evi- ra, em 2002 (uma vez que o PT somente passou dente nos números obtidos por Wilma de Faria a apoiar Wilma de Faria no segundo turno da- e sua base de apoio. Em 2002, os candidatos da quele pleito), e Carlos Eduardo, em 2010 (posto sua coligação partidária obtiveram apenas 8,3% que, formalmente, a ex-governadora apoiava o dos votos válidos. Na sua reeleição, em 2006, o candidato de seu partido, Iberê Ferreira). Toda- número de candidatos eleitos por sua coligação via, com vistas a calcular os índices de volatili- partidária elevou-se para 50% em 2006. dade eleitoral no período, é possível incorporar os percentuais obtidos por tais candidatos àque- Além dos dados acima, também são re- les arregimentados pelos demais postulantes ao presentativos do padrão bipolar de disputa ao governo advindos dos mesmos grupos. 101

Tabela 3 – Votação dos(das) candidatos ao partidos ou “blocos” políticos18 . Quanto me- governo do RN (1994-2010) nor o índice, menor a fragmentação do sistema partidário em análise. Para o período em ques- Votos Válidos Total Eleição Candidatos(as) Polarização Grupos tão, foram calculados índices de volatilidade (1º T %) (%) dos períodos 1994-1998, 2002-2006 e 2006- Garibaldi Alves 2010 (todos relativos aos primeiros turnos das (PMDB) 52,7 1994 91,4 diferentes eleições). Lavoisier Maia 38,7 (PDT) Cada par representa os diversos momen- Garibaldi Alves tos da disputa política no estado. O primeiro (PMDB) 50,2 1998 91,56 demonstra que, nas duas disputas nas quais Ga- José Agripino (PFL) 41,36 ribaldi Alves derrotou seus contendores da fa- Wilma de Faria 37,6 mília Maia, as votações variaram em 2,58. No (PSB) segundo conjunto de eleições, representativo Fernando Freire (PPB) 30,89 88,39 dos dois pleitos vencidos por Wilma de Faria, 2002 19 Fernando Bezerra tal índice chega a mínimos 0,2 . Por fim, no (PTB) 19,9 último período, a volatilidade eleitoral obteve Ruy Pereira (PT) 11,24 seu maior número na série, mas ainda apresen- Wilma de Faria tou um resultado baixíssimo, com 3,41. Por se (PSB) 49,6 2006 98,2 tratar de um indicador que, teoricamente, po- Garibaldi Alves de variar entre 0 e 100, os números apresenta- (PMDB) 48,6 dos pelo índice de volatilidade eleitoral no Rio Rosalba Ciarlini (DEM 52,5 Grande do Norte foram ínfimos. Iberê Ferreira 2010 (PSB) 36,3 88,8 Isso significa que, nos pares de eleições Carlos Eduardo considerados, os eleitores tenderam a manter Alves (PDT) 10,38 suas escolhas restritas aos partidos e blocos con- Fonte: TSE (elaboração própria) siderados. Tomando-se em conjunto o reduzi- do número de partidos efetivos em disputa pelo governo, os baixos índices de volatilidade elei- Em geral, o índice de volatilidade elei- toral e da elevada proporção de votos arregi- toral mede o grau de estabilidade da votação mentada pelos três grupos tradicionais estabele- entre pares de eleições, a partir do cálculo da cidos na cena política norte-rio-grandense, po- quantidade de votos ganhos ou perdidos entre de-se ter a dimensão da sua capacidade de hege-

18 Nicolau explica como o índice é calculado: “The volatility index is calculated as follows: The percentage of votes (or seats) that a party received in an election is subtracted from the percentage of votes obtained by this same party in the preceding election; the difference indicates the change, and the (-) or (+) signs reveal the decline or growth of a party, respectively. The next step is to add the result of this operation (not considering the sign) and divide by two” (2011, p. 36). Como dito, o índice também pode ser calculado para blocos de partidos a partir do somatório das votações de seus partidos constitutivos. 19 Neste caso, os percentuais da socialista foram somados aos do candidato petista, em 2002, e comparados com a votação da mesma em 2006. Por seu turno, as votações de Fernando Freire e Fernando Bezerra foram comparadas com as de Garibaldi Alves em 2006. 102

monizar a disputa política no estado. Em se tra- Esse maior protagonismo do PMDB dos Alves tando das eleições para o executivo estadual há, ocorre tanto devido ao declínio político do go- portanto, pouco espaço para candidaturas po- verno Ciarlini, quanto da maior proeminência líticas que se organizem para além deles. Ade- dos seus líderes em âmbito nacional20. Como fi- mais, o padrão bipolar de disputa mostrou-se guras-chave da aliança nacional entre PT e PM- consolidado, mesmo que com atores diferentes. DB, Garibaldi e Henrique Alves passaram a dis- putar, em plano estadual, os legados dos gover- nos Lula e Dilma, apesar de manter localmente CONSIDERAÇÕES FINAIS a aliança com o DEM (adversário mais aguerri- do dos governos petistas). A exemplo das corridas presidenciais A apropriação dos feitos das administra- brasileiras, baseadas no “duopólio” (LIMON- ções presidenciais petistas e seu espólio eleito- GI E CORTEZ, 2010, p. 23) do PT e PSDB, ral tem sido uma das características do grupo as eleições para o governo do Rio Grande do de Wilma de Faria. Após a derrota fulminan- Norte têm ocorrido através de disputas duais te em 2010, Wilma de Faria mantem-se na ce- entre os três principais grupos políticos do esta- na política como vice-prefeita de Carlos Eduar- do, liderados pelas famílias Alves e Maia e pela do em Natal. Na esteira da crise de popularida- ex-governadora Wilma de Farias. Ao longo do de de Rosalba Ciarlini, Wilma de Faria apresen- período que se estende da “abertura” política ta sinais de reabilitação e pode voltar a influir aos dias atuais, as relações entre tais conglome- sobre o destino de lideranças auxiliares como rados hegemônicos ocorrem com tensões inter- Carlos Eduardo Alves e Robson Faria. nas recorrentes entre suas lideranças (seja entre Mesmo com uma eventual mudança de Garibaldi e Henrique Alves, José Agripino e o atores, o quadro de polarização de forças polí- casal Rosado, Wilma de Faria e Robson Faria) e ticas no Rio Grande do Norte tende a se repro- processos pendulares de aproximação e afasta- duzir num futuro próximo. mento entre os mesmos. Nesse processo, alguns indícios relativos ao processo de formação e manutenção de tais Trabalho recebido em 20/09/2012 grupos revelam tendências políticas que rever- Aprovado para publicação em 15/12/2012 beram na atual conjuntura política do estado. Pelo movimento das principais lideran- REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ças, há uma tendência na manutenção da alian- ça política entre os grupos Alves e Maia nas ABRUCIO, Fernando Luiz. O ultrapresidencia- eleições de 2014. Atualmente, os rumos desse lismo Estadual. In: ANDRADE, Regis de Cas- consórcio dependem dos desígnios do PMDB. tro (Org.). Processo de Governo e no Estado:

20 Atualmente, Garibaldi Filho é o ministro da Previdência Social, desde o início do governo Dilma Rousseff, e Henrique Alves é o presidente da Câmara dos Deputados. 103 uma análise a partir de São Paulo. São Paulo: LAAKSO, M. e TAAGEPERA, R. Effective EDUSP, 1998a. Number of Parties: a measure with application to Western Europe. Comparative Political Stu- COUTINHO, Carlos Nelson. As categorias de dies, vol.12, nº1, 1979. Gramsci e a realidade brasileira. Gramsci e a América Latina. Rio de Janeiro: Paz e Terra, LIMONGI, F e CORTEZ, R. As eleições 2010 1988. e o quadro partidário. Novos Estudos, 2010, n. 88. EVANGELISTA, João Emanuel. Os candidatos e a campanha eleitoral na televisão: as estratégias MENEGUELLO, Rachel. Las elecciones de político-discursivas dos candidatos à prefeitura 2010 y los rumbos del sistema de partidos bra- de Natal em 2004. In LEMENHE, Maria sileño. Política nacional, fragmentación y lógi- Auxiliadora e CARVALHO, Rejane Vasconcelos ca de coaliciones. Disponível em: http://venus. Accioly. Política, Cultura e Processos Eleitorais. ifch.unicamp.br/pos/cp/selecao/2011/las_elec- Fortaleza: Fundação Konrad Adenauer, 2006a. ciones_de_2010_y_los_rumbos_del_sistema_ de_partidos_brasile%C3%B1o.pdf. Acesso em EVANGELISTA, João Emanuel. As classes su- 30 de dezembro de 2011. balternas e o mundo da política: senso comum e bom senso na recepção e decodificação do NICOLAU, Jairo. Elections, Volatility, In: BER- HGPE nas eleições de 2004. GT mídia e elei- TRAND BADIE; BERG-SCHOLOSSER, Dirk; ções. I Compolítica. UFBA, 2006b. MORLINO, Leonardo. (Org.). International Encyclopedia of Political Science. Los Angeles: DANTAS, Diógenes. Dona Wilma já lidera ce- Sage, 2011, v. 4 , p. 35-38. nário com Garibaldi na disputa pelo gover- no. Disponível em http://nominuto.com/blog- SANTOS, Wanderley Guilherme dos. A univer- dodiogenes/bandconsult-dona-wilma-ja-lidera- salização da democracia. In BENEVIDES, Ma- cenario-com-garibaldi-na-disputa-pelo-gover- ria Victoria; KERCHE, Fábio; e VANNUCHI, no/4457/. Acesso em 15 de novembro de 203. Paulo (orgs.). Reforma Política e Cidadania. São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo, 2003. FERREIRA, Denise Paiva; BATISTA, Carlos Marcos; STABILE, Max. A evolução do siste- VIANNA, Luiz Werneck. A revolução passiva: ma partidário brasileiro: número de partidos e Iberismo e americanismo no Brasil. Rio de votação no plano subnacional 1982-2006. Opi- Janeiro: Revan, 1997. nião Pública. Campinas, v.14, n.2, 2008. VIDAL, Casciano. Pesquisa Índice revela apro- GRAMSCI, Antonio. Cadernos do Cárcere: O vação de Carlos Eduardo e Dilma Rousseff e Risorgimento. Notas sobre a história da Itália. mostra Rosalba Ciarlini sem aprovação. Dis- Volume 5. Rio de Janeiro: Civilização Brasilei- ponível em: http://www.cascianovidal.com.br/ ra, 2002. pesquisa-indice-revela-aprovacao-de-carlose- duardo-e-dilma-rousseff-e-mostra-rosalba-ciar- 104

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WEBER, Max. A Política como Vocação. In WEBER, Max. Ciência e Política: duas voca- ções. 11a ed., São Paulo: Cultrix, 1999. Raízes v.33, n.1, jan-jun /2013

CONSELHOS DE FATO E CONSELHOS NO PAPEL - PODERES LOCAIS E PRATICAS DE PARTICIPAÇÃO

Irlys Alencar Firmo Barreira

RESUMO As práticas designadas como participativas no estado do Ceará foram implementadas com base na constituição de 1988, expressando um duplo registro: um conforme o previsto nas políticas oficiais de caráter nacional, que supu- nha a existência de conselhos como instancia de regulação de políticas públicas; o outro, referido a experiências que se tornaram notáveis, para além da legalidade, assumindo um lugar de exemplaridade. O presente artigo reflete sobre o tema da participação se baseando na análise de diferentes experiências de articulação entre entidades asso- ciativas e poderes locais em municípios cearenses (Sobral e Santana do Acaraú). O desenvolvimento das questões norteadoras da pesquisa baseia-se nos diferentes sentidos e ações atribuídas à participação e a inscrição das organi- zações associativas na rede de poderes locais. Dois modelos antagônicos de interlocução efetivados em municípios cearenses servem de referência à pesquisa: uma proposta de gestão baseada na forte presença de conselhos em es- paço municipal decisório e outra forma de articulação na qual os mecanismos de participação são menos evidentes.

Palavras-chaves: Participação; Conselhos; Poderes Locais; Espaço Municipal.

ACTUAL COUNCILS AND ON-PAPER COUNCILS: LOCAL POWER AND PARTICIPATIVE PRACTICES ABSTRACT Practices seen as participative activities in the State of Ceara were implemented under the auspices of the 1988 Constitution, and are shown according to a double registry: in the one hand, a record that was foreseen in national official policies that took for granted the existence of councils as a regulation claim from public policies, and in the other hand experiences that became notorious, going beyond legality and serving as an example to be followed. This article evaluates the participative theme based on different articulating experiences between associative enti- ties and local power representatives from municipalities in the State of Ceara (Sobral and Santana do Acarau cities). The unfolding of guiding issues for the research is based on different meanings and actions attached to participation and enrollment of associative organizations in the local power structure. Two conflicting interlocutory models we have found in municipalities in the State of Ceara are used as reference to the research: an administrative proposal based on strong presence of councils in decision-making municipal configurations, and one other form of articula- tion where participation mechanisms which are not so evident.

Key words: Participation; Councils; Local Power; Municipal Power Configurations

Professora do Programa de Pós-graduação em Sociologia da Universidade Federal do Ceará. (PPGS/UFC). E-mail: [email protected]

Raízes, v.33, n.1, jan-jun /2013 106

INTRODUÇÃO dania e posse de bens coletivos de consumo na cidade. Materializou-se tanto em forma de rei- vindicações dirigidas ao Estado, como em pro- Um representativo conjunto de estu- postas governamentais que condicionavam o dos abordando os poderes locais municipais no gerenciamento de programas sociais à interme- Brasil priorizou, em suas observações, a descen- diação de entidades populares organizadas que tralização das decisões políticas e a participação eram muitas vezes consideradas como “vindas popular como variáveis fundamentais indicati- de cima”, ou “cooptadas”2. Perspectiva seme- vas de transformações políticas. Se o poder lo- lhante pareceu ocorrer no âmbito dos poderes cal, assim posto no singular para indicar uma locais municipais cujas práticas de atuação dos expressão conjunta de práticas tradicionais de conselhos acionaram tanto mecanismos de am- mando1 caracterizava formas de dominação tí- pliação das decisões como promoveram confli- picas de municípios brasileiros, segundo parte tos em torno de entidades associativas e instan- significativa da literatura sociológica, uma es- cias governamentais de representação. pécie de inversão do olhar ocorreu em traba- lhos voltados para o registro mais recente da O presente artigo enfoca uma reflexão participação em segmentos organizados no go- sobre o tema baseada na análise de diferentes verno municipal. Os acenos às mudanças ma- experiências de articulação entre entidades as- terializaram-se, principalmente, na proposta de sociativas e poderes locais3. Duas questões ser- orçamento participativo e nas conexões estabe- vem de roteiro ao desenvolvimento das ideias: lecidas entre prefeitura e conselhos de repre- os diferentes sentidos e ações atribuídos à par- sentantes junto à gestão municipal que aponta- ticipação e a inscrição das organizações associa- va diversas dinâmicas associativas. tivas na rede de poderes locais. O ideário da participação tem memória Dois modelos antagônicos de interlocu- feita de histórias diversificadas. Esteve presente ção efetivados em municípios cearenses servem desde os diversos movimentos sociais, dos anos de referência à pesquisa. Uma proposta de ges- 1980 e 1990 que demandavam direitos de cida- tão baseada na forte presença de conselhos4 em

1 Ver, a esse respeito, o trabalho de Maria Isaura Pereira Queiroz, O Mandonismo local na vida política brasileira e outros ensaios, Alfa-Omega, São Paulo, 1976. 2 Em pesquisa sobre o tema, denominamos de “política da escassez” (Barreira e Braga, 1991) a gestão de limitada de bens (alimen- tação, saúde e moradia) realizada por associações de moradores de bairros populares em Fortaleza que disputavam a posse legíti- ma da representação. 3 Os dados provenientes do trabalho de campo foram coletados por meio de entrevistas feitas com políticos e representantes de conselhos, observação de reuniões, depoimentos de conselheiros e visitas feitas em áreas diversas (rural e urbana) nos municípios pesquisados. A investigação que dá subsídio ao presente texto circunscreve-se a uma pesquisa denominada “Gestão municipal e formas de participação popular” realizada em quatro estados brasileiros entre 2002 e 2004. Uma versão modificada desse artigo foi publicada na coletânea organizada por Beatriz Maria Alásia de Heredia e Moacir Palmeira, Politica, governo e participação po- pular col Sociologia e Antropologia, ed 7 letras, Rio de Janeiro, 2012. 4 No âmbito do governo estadual durante a segunda gestão de Tasso Jereissati (1995-1998), os denominados Conselhos de Desenvolvimento Sustentável foram criados como “estrutura de representação, de articulação, de integração, de orientação, de acompanhamento e de mobilização da municipalidade em sua busca de desenvolvimento”, visando “contribuir para o desenvolvimento sustentável e compartilhado dos municípios, integrando pessoas, ações, tempo e recursos, dentro de uma visão estratégica e cooperativa” (Governo do Estado do Ceará, cf, Cordeiro, ANPOCS, 2000). 107 espaço municipal decisório e outra forma de ar- Embora a avaliação esteja também pre- ticulação na qual os mecanismos de participa- sente em trabalhos de teor acadêmico mais evi- ção são menos evidentes. dente, observa-se que muitas das reflexões en- caminham-se para a observação de práticas de participação sob o prisma da democracia e dos 1. DIALOGANDO COM A LITERATURA mecanismos de intermediação de interesses6. CEARENSE Outra vertente interpretativa focaliza o tema da participação como possibilidade de incre- No campo acadêmico, a literatura que mento de capital social, considerando o poder aborda o tema da participação é bastante he- das ações políticas no embate com as forças tra- 7 terogênea. Nela é possível encontrar relatórios dicionais do Estado . de pesquisa, livros e artigos que abordam o te- A literatura sobre o tema da participa- ma relacionando-o às formas de gestão munici- ção percorreu algumas matrizes que subsidiaram pal ou, de modo mais específico, verificando o o conjunto dos trabalhos. Um primeiro bloco de papel de setores populares e usuários na defini- estudos emergiu com base nas discussões sobre ção e apropriação de políticas públicas (educa- movimentos sociais vistos como indutores de ca- ção, saúde, habitação etc). Em torno desse con- nais de intermediação entre população e políti- junto amplo é possível demarcar diferenças en- cas públicas8. O registro das discussões sobre a tre trabalhos voltados diretamente para avalia- participação ocorria no plano de demandas po- ção de políticas públicas que se apresentam por pulares e no âmbito de políticas sociais que indu- meio de relatórios e folhetos, visando divulgar ziam a criação associações e conselhos como es- experiências consideradas bem-sucedidas, e ar- paços de intermediação entre governos e mora- tigos, livros, teses e dissertações que refletem dores. sobre a temática enfocando as questões da de- A vigência de associações, outras entida- mocracia e da descentralização. Trata-se, via de des e conselhos vistos ora como representantes regra, de percepções que incluem registros de legítimos de segmentos organizados da chama- mudança do poder local, caracterizado histori- da sociedade civil, ora como espaços restritos camente como oligárquico e tradicional5.

5 Ver Elza Braga, “O local e a construção de uma nova cultura política” in Braga Elza (org) América Latina, transformações eco- nômicas e políticas, Editora UFC, Fortaleza, 2003. 6 Na perspectiva de verificação dos conselhos como expressão de um espaço público democrático ver a tese de Celeste Cordei- ro para concurso de Professora Titular, “Democracia, conselhos e esfera pública local no Brasil – uma análise do CMDS no Cea- rá. UECE, 2001. 7 Destaca-se nesse sentido o livro de Jawdat Abu-El-Haj, A mobilização do capital social do Brasil, o caso da reforma sanitária no Ceará, Annablume, São Paulo, 1999. 8 Ver a esse respeito, entre outros, Irlys Barreira e Elza Braga, A política da escassez, lutas urbanas e programas sociais governa- mentais, Stylus, Fortaleza, 1991 9 Uma discussão sobre as formas institucionalizadas de participação e os conflitos entre entidades representativas pode ser vista nos artigos de Ana Quiroga Fausto Neto “Revivendo mecanismos autoritários: as organizações de moradores na gestão de políti- cas públicas” e Irlys Barreira “Entre a rebeldia e a disciplina: dimensões simbólicas e políticas nos movimentos sociais urbanos in Brasil Urbano, cenários da ordem e da desordem, Notrya, Rio de Janeiro, 1993. 108

de repasse de verbas, confere ao tema da parti- efetivadas em seu nome sejam bastante variadas cipação práticas e sentidos variados9. sinalizando, em sua maioria, o poder de pres- são sobre a influência decisória de políticas mu- As discussões sobre a participação inte- nicipais. A passagem de uma fase reivindicati- gram no contexto das análises sobre os movi- va para a tradução de demandas em propostas mentos sociais uma perspectiva abrangente na políticas redefine o peso conferido às emendas medida em que “de fato, trata-se atualmente, constituintes, “na luta fazemos a lei” e a organi- mais de um campo que de um tema. Neste cam- zação de propostas políticas efetivadas através po encontram-se articuladas questões relativas de canais institucionais (Carvalho, 1999). à ação coletiva, às mediações institucionais, aos limites da participação política, às bases morais Vários trabalhos não restritos ao Ceará, e culturais do exercício do poder, aos interesses baseados na observação etnográfica de muni- envolvidos nas políticas públicas e às oportuni- cípios chamam atenção para a emergência de dades de superação dos atuais níveis atingidos conflitos entre espaços de representação nem pela pobreza urbana” (Ribeiro,1993, p.13). sempre articulados e às vezes concorrentes11. A esse respeito cabe a reflexão de que o tema da A literatura abarca nessa perspectiva um participação mantém muitas vezes um conteú- duplo período: aquele cujo tema da participa- do performático que o põe em um lado anta- ção circunscreve-se no protagonismo de seto- gônico aos conflitos de poder. Trata-se de uma res populares designados por movimentos so- linguagem frequentemente acompanhada de ciais e outro recorte temático mais recente que termos como comunitário, união, convergên- percorre reflexões baseadas em diferentes ex- cia de interesses os quais provocam a percepção pressões de gestão municipal oriundas de mu- dos conflitos como obstáculos à participação. danças na Constituição. É possível acrescen- tar a essa análise o fato de que nas décadas de As situações pesquisadas expostas a se- 1970 e 1980 questões opcionais (participar ou guir apontam o modo como se constituem ex- não participar?) tocam os limites de uma socie- periências de participação associadas a práticas 12 dade onde os canais democráticos se encontra- e sentidos diversificados . vam em processo de consolidação. Adjetivos que buscam mais recentemen- 2. A PARTICIPAÇÃO COMO ALTERNÂN- te qualificar os modos de participação (demo- CIA DE PODER crática, cidadã etc) delimitam esse momento conjuntural no qual participar passa a ser um O município de Santa Mariana notabili- pressuposto legítimo muito embora as práticas zou-se como modelo de “participação bem su-

11 Ver Bezerra, Marcos Otavio “formas de participação popular e produção de interesses coletivos – observação a partir de du- as experiências no Estado do Rio de Janeiro” e Herédia, Beatriz Maria Alásia “participação e política – experiências de dois mu- nicípios gaúchos em Política, governo e participação popular col. Sociologia e Antropologia, ed 7 letras, Rio de Janeiro, 2012. 12 Para efeitos de manutenção de sigilo modificamos os nomes de pessoas e municípios pesquisados. 13 Santa Mariana, foi reconhecida pela UNICEF como um dos modelos de gestão participativa, constituindo uma das experiên- cias governamentais municipais classificadas, no Brasil, sob a nomenclatura da participação. 109 cedida”, obtendo premiações13 e referências em 1989, o poder era disputado por dois grupos trabalhos acadêmicos. Os destaques enfatizam políticos representados através dos “chefes polí- a forma de gestão municipal, baseada no pla- ticos”, João Araújo Neto e Antônio Vargas, am- nejamento de recursos, efetivada em conjunto bos descendentes de uma mesma família tradi- com entidades populares organizadas. Posto no cional da região. Durante trinta anos o grupo contexto de “experiências exitosas”, o Municí- político liderado por Antônio Vargas ocupou pio passou a figurar, ao lado de outros existen- o poder executivo local. O primeiro período é tes no País, como exemplo de descentralização nesse sentido denominado como tempo de vi- e participação materializadas na criação de en- gência da “política tradicional” também desig- tidades mediadoras de demandas sociais articu- nado por termos como “clientelismo”, “oligar- ladas em um fórum unificado, conhecido popu- quia”, com predomínio do “voto de cabresto”. larmente como Conselhão. A campanha eleitoral de Adriana Al- As práticas acumuladas de organização meida14 pelo PSB foi marcada pelo discurso de de trabalhadores em assentamentos ou sindi- rompimento com o passado oligárquico e ace- catos influenciaram a emergência de canais de nos à construção de espaços de “participação comunicação fortalecidos por ocasião da ad- popular” na gestão pública municipal. O slogan ministração municipal inaugurada por Adria- de campanha em 1989, “Povo em Ação”, con- no Almeida. Portanto, as vivências mais recen- vocava a população de Santa Mariana “a virar tes designadas posteriormente como participa- uma página na história daquele município”. tivas foram cumulativas, sendo realimentadas e As práticas participativas que caracte- transferidas para o Conselhão, que se tornou rizam a gestão municipal de Adriano Almeida reconhecido por constituir um espaço poten- consolidaram-se institucionalmente através da cial de acolhimento das demandas. criação, em 1989, de um espaço único e centra- A ênfase conferida à participação como lizado de comunicação entre Executivo Muni- marca registrada da administração de Adriano cipal e entidades organizadas da sociedade civil Almeida apresenta-se, nos relatos dos morado- nomeado Conselhão. Este órgão representati- res, como sendo proveniente de uma espécie de vo acolhia as demandas, discutia as prioridades ato inaugural que materializou o rompimen- com os interessados e elaborava um termo de to com o poder tradicional. Foi também recor- compromisso conjunto. rente, nas entrevistas realizadas, ou mesmo em O chamado método da administração conversas informais com os moradores, a divi- concreta, elaborado por assessores municipa- são da história política local em dois momen- listas, tinha por objetivo recolher e adaptar as tos históricos. No primeiro período, anterior a demandas de associações comunitárias aos pa-

14 A trajetória do prefeito considerado mentor da ideia de participação tem características interessantes de serem ressaltadas. Adriano Almeida, quando estudou medicina em Portugal, engajou-se no movimento sanitarista e em lutas estudantis no período da ditadura salazarista. Em Portugal, cursou parte das cadeiras de medicina, voltando em 1976 para Fortaleza para concluir seu curso na Universidade Federal do Ceará. 15 Informação obtida através da Dissertação de Holanda Ivna, A Participação Popular na Gestão Municipal, Curso de Mestrado em Educação da UFC, Fortaleza, 1995. 110

drões legais orçamentários15. Era o momento pação por sediar um coletivo forte, considera- inaugural de uma experiência que se construía do único e capaz de ultrapassar a diversidade com base em dinâmicas associativas já existen- de interesses. Também impor uma hegemonia tes. De fato, não se pode atribuir exclusivamen- que se contrapunha a outras possibilidades de te ao Prefeito Adriano Almeida o engajamento representação consideradas não legítimas. de lideranças comunitárias no projeto do Con- Os Conselhos Municipais de Desenvol- selhão. A ideia de cumulatividade de experiên- vimento Sustentável – CMDS, por exemplo, cias articulada a processos que caracterizam de- que eram propostos pelo Governo do Estado terminadas figurações sociais, tal como pensou do Ceará, foram preteridos e Santa Mariana, Elias (1994) para fazer referência à rede de fun- tendo em vista ser o Conselhão considerado o ções e papéis desempenhados em dada socieda- único autônomo e comprometido com as for- de, torna-se importante para ultrapassar a dico- mas preexistentes de organização popular. Não tomia do “sujeito criador” versus “determina- por acaso, a palavra participação confundia-se ção social”. Se o pressuposto do marco zero es- com a entidade Conselhão, sendo as reuniões tá presente em depoimentos que validam a exis- realizadas na entidade o momento de expres- tência do antes e depois, a existência de outras são de práticas nomeadas participativas. experiências associativas não classificadas na- quele momento como participação chama aten- É interessante observar que a participa- ção para os sentidos históricos das práticas so- ção no Conselhão não se refere apenas à pers- ciais e suas formas de designação e classificação. pectiva de uma ação política, incluindo também a vigência de um domínio social composto de O Conselhão torna-se o espaço de mate- sociabilidades, classificações (os que frequentam rialização das práticas de participação, lugar para e os que não frequentam a entidade) e o próprio o qual convergiram as múltiplas redes de sociabi- senso obrigatório de pertença, indutor de críti- lidade política, fazendo convergir vivências pro- cas e justificativas de ausências nas reuniões. venientes de diferentes espaços de organização. Alguns depoimentos punham em lados O discurso de representantes de enti- opostos o que seria da ordem da política e o dades populares corrobora também com o lu- que estaria no âmbito da participação. Era sob gar do Conselhão, como afirmação de um ideal a ótica da participação que o termo comuni- comunitário baseado no princípio da unidade, tário emergia mais fortemente, porque com- sendo a participação percebida como a presen- preendido como desvinculado de interesses ça nas reuniões da entidade. O modo como o partidários. Na realidade, a palavra política era Conselhão operacionalizava a conjugação de utilizada de forma ambígua e negativa, estando demandas pautava-se em representações ba- associada a disputas partidárias, em curso, so- seadas no princípio da unidade. Santa Maria- bretudo, em ano eleitoral. na aparecia como modelo exemplar de partici-

16 A distinção entre comunitário e político faz parte de uma nomenclatura típica dos movimentos populares, sendo encontrada entre moradores da periferia da cidade organizados em associações de bairro. As categorias nativas que põem em lugares opostos a “política comunitária” e a “política partidária” fundamentam essa distinção nos ideais coletivos que supostamente seriam que- brados pela presença de representantes políticos (Barreira, 1998). 111

Também a distinção entre a política “li- munitário. Tudo se passa como se a fala coletiva gada a interesses partidários”16 e as práticas e a presença, em um mesmo espaço, de segmen- consideradas “comunitárias” estiveram eviden- tos socialmente distantes, contribuíssem para a tes, sobretudo, por ocasião do rompimento do construção de uma identidade de interesses. prefeito com seu sucessor, em 2001, momento A percepção da participação como prá- em que os destinos do Conselhão pareciam es- tica social inovadora, como expressão de socia- tar em suspense. Outras situações expressivas bilidade e arma simbólica de identificação das de conflitos internos faziam emergir versões di- demandas populares contribui para a afirmação ferenciadas entre propostas orçamentárias, ca- de um ethos comunitário. Nele vão estar pre- talogadas como estando vinculadas a interesses sentes os referentes de unidade ou os interesses políticos, em contraposição a princípios comu- coletivos que fazem dos conflitos uma espécie nitários. de força negativa a ser expurgada, denegando a A participação como prática sui gene- ideia de que participar é também integrar a tra- ris de organização associa-se também a uma di- ma das relações de poder. mensão de sociabilidade, sendo o Conselhão As demandas apresentadas ao Conse- mencionado como um lugar de partilha de in- lhão como sendo “propostas do povo” promo- formações e encontro de lideranças. Lugar tam- viam, em algumas situações, disputas entre lu- bém de aprendizado, troca de experiências e formação política. De acordo com vários de- gares de representação, sendo fonte potencial poimentos, no início das atividades do Conse- de disputas simbólicas. Na medida em que o lhão as pessoas eram mais inibidas. No decor- Conselhão revelou-se como um lugar de refor- rer do tempo, aprendiam a expressar-se e usar ço à legitimidade do prefeito tornou-se, em al- a palavra diante de “autoridades”. Observa-se, gumas situações, um lugar de concorrência com assim, que a participação é promotora de capi- a Câmara de Vereadores. Ainda mais, possuía tal simbólico, no sentido empregado por Bour- a prerrogativa de expressar o que era visto co- dieu (1989) que poderá ser potencialmente mo veículo de uma “vontade geral”, pondo-se convertido em formas variadas de reconheci- em patamar superior aos interesses partidários. mento social e político. Observa-se que a concepção que evoca- É importante, no entanto, salientar que va a participação atribuía ao “povo” a capaci- a percepção do Conselhão como espaço de en- dade de falar sobre “as reais necessidades para contro “entre iguais” não exclui a reverência o planejamento das políticas públicas. Por ou- e distinção hierárquica. A chegada do prefeito tro lado, a ideologia dos “interesses coletivos”, às reuniões e as interações que se desenvolvem vigente no momento em que se quebrava o dis- com os participantes e integra uma ritualidade17 curso do “apadrinhamento”, revelava-se difícil com suspensão aparente de um espaço de hie- de ser realizada por conta das imposições legais rarquia, que reforça o discurso de um ideal co- orçamentárias e da necessidade de definição de

17 Uma análise mais pormenorizada das reuniões do Conselhão e sua dinâmica na efetivação de laços de sociabilidade e relações de poder encontra-se em Silva dos Santos, Clodson ( 2004). 112

prioridades. Segundo informações de um dos 3. “CONSELHOS NO PAPEL”, A EXPERIÊN- principais assessores municipais, a grande aber- CIA DE SANDOVAL19 tura de pedidos, sem a devida restrição legal, dificultava o andamento de propostas. Era ne- Menos reconhecido como exemplo de cessário solicitar dentro das rubricas disponí- práticas de participação Sandoval, ao lado de veis, não obstante o atendimento das deman- outros municípios cearenses, aparece nos meios das não ser apenas técnico. As implicações po- de comunicação como exemplo de “gestão líticas advindas de necessidades insatisfeitas ex- competente”, signatária de ruptura na forma punham a defasagem entre carências e possibi- tradicional de gerir o Município. De fato, San- lidades de atendimento. doval há vinte anos era praticamente governa- O patrimônio simbólico da participação do pela família Prata e família Nogueira. Após como legitimidade de uma “conquista popular” a hegemonia das duas oligarquias que se reve- já assegurada, associou-se na gestão posterior a zavam no poder a aliança entre PT e PSB viabi- Adriano Almeida a outros referenciais de “efi- lizou a mudança nos poderes municipais incor- ciência”. A forma como a participação foi in- porando-se nesse momento as ideias de inova- corporada na gestão de Nunes chama atenção ção do poder. para os sentidos diferenciados à ela atribuídos, De fato, a entrada de partidos de oposi- capazes de fundamentar distintas práticas so- ção e assessorias com atuação aberta e a inclu- ciais. Comprova as múltiplas possibilidades de são de conselhos e formas variadas de represen- apropriação do termo com seu poder simbólico tação expressam mudanças e, é nesse contexto de construir e resignificar espaços sociais de re- que se configura a vigência de intermediações e presentação política. organismos encarregados de construir a chama- A análise das relações entre o Conselhão da “participação popular”. e os poderes municipais aponta para a defini- Outros elementos não relacionados di- ção complexa dos lugares de representação po- retamente à gestão do poder municipal deram à lítica, revelando a disputa pela posse legítima cidade de Sandoval o sentido de uma transfor- da participação em um jogo de retração e am- mação, revelada através de um maior intercâm- pliação da esfera pública18. De todo modo, o bio entre nativos e migrantes vindos de outras Conselhão constituiu a expressão do que pode- localidades do País. Técnicos e profissionais do ria ser designado “conselhos de fato”, tornan- Sul do País vieram atraídos pela fábrica de cal- do-se ícone da expressão das demandas comu- çados Grandene e projetos de expansão na uni- nitárias de Santa Mariana. versidade que favoreceram o desenvolvimento

18 A importância que os novos canais de acesso á participação adquirem para as disputas locais é analisada no pesquisa de Be- zerra, Marcos Otávio (2004) feita com base na experiência de Niterói. As disputas entre associação de moradores e políticos pe- la ocupação de espaços de representação revela, segundo o autor, a importância de reescrever as experiências de participação nas configurações de poder. 19 Surgido em 1841, O município de Sandoval, situa-se na região Norte do Ceará, a 235 km da capital. Seu território abrange uma área de 2.129 km² com uma população de 155.276 habitantes á época da pesquisa. No Município existem cerca de 25 bair- ros, espalhados principalmente na zona urbana, 86,6% do total, incluindo 11 distritos, além da sede. 113 de atividades de lazer e consumo. A ampliação referência a entidades restrita ao cumprimen- de cursos universitários, a exemplo da instala- to formal da legalidade, supostamente esvazia- ção da faculdade de medicina, reforçou o sen- da de engajamento popular. tido de investimento e racionalização de recur- sos que passaram a presidir a nova gestão mu- 4. “CONSELHOS NO PAPEL” nicipal. Do ponto de vista dos municípios que se destacam pelo discurso da participação, Sando- Como acontece em diversas situações, o val diferia de Santa Mariana, aproximando-se Município mantém formalmente uma série de mais do que poderia ser designado como “mo- conselhos, muitos dos quais legalmente criados, dernização administrativa” segundo a lógica es- mas inativos, constando “apenas no papel”, co- tratégica de construção de “municípios saudá- mo costumam dizer alguns informantes. A ideia veis”. Trata-se de uma proposta originada de de conselhos no papel, freqüentemente mencio- trabalhos realizados na área de saúde que pre- nada nas entrevistas, traduz uma categoria na- via a existência de políticas intersetoriais em ar- tiva reveladora da criação institucional de enti- ticulação com várias instituições da sociedade e dades sem funcionamento orgânico efetivo. O secretarias municipais. CMDS, por exemplo, criado pelo Governo do Estado do Ceará como forma de dinamizar os Se a lógica de uma “participação induzi- municípios, terminou em muitas situações in- da”, ou a criação de espaços de atuação, como duzindo espaços, pouco representativos de de- conselhos, parece traduzir as mudanças recen- mandas populares, sendo muitas vezes acusado temente implantadas no Município, ideias de de tornarem-se correia de sustentação do po- modernização e desenvolvimento se tornaram der. Em conversa mantida com o presidente do mais evidentes desde a percepção do dirigente CMDS constatamos que a entidade há tempos municipal que, comparando sua administração não se reunia e não mantinha atividades de or- com aquelas notabilizadas pelo slogan da par- ganização e mobilização dos participantes. ticipação, afirmava que “mais do que alardear proposta é importante pagar as contas em dia”. Outros conselhos criados sob o impac- to da necessidade de elaboração de projetos ti- O discurso da participação no municí- nham sua existência limitada sem o poder de pio é, no entanto, anterior a essa gestão, sendo continuidade. Nesse sentido o presidente do veiculado desde décadas anteriores, por sindi- CMDS queixava-se da superposição de papéis catos de trabalhadores, associações comunitá- entre associações e conselhos, que criavam di- rias e entidades filantrópicas. Com a ascensão ficuldades para viabilizar a “participação”: tem da atual força política, materializada na aliança gente que diz que os conselhos tomam lugar das PPS/PT, o discurso da participação agregou-se a associações na área de educação e saúde. temas associados à “modernidade” e ao “desen- volvimento”, promovendo no discurso nativo a Na realidade, a vigência de projetos e designação de “conselhos no papel” para fazer formas de financiamento condicionadas à exis- tência de entidades populares terminou em vá- 114

rias situações emprestando aos conselhos um A distinção revela, assim, uma hierarquia entre caráter burocrático e pouco representativo. Di- participantes remetendo ao tema da legitimida- zer que os conselhos “funcionam no papel” é de da representação. expressar a lógica dos requisitos administrativos É importante ressaltar que atualmente, do poder, distanciados do que era percebido co- grande parte das associações comunitárias tem mo sendo a “autêntica representação”. Mesmo algum convênio, seja com a Prefeitura, seja co- que alguns informantes tivessem enfatizado a mo Governo do Estado. A experiência de San- importância de criar instituições representati- doval não difere de outras cidades do Estado e vas, era claro o divisor de águas entre o conse- do País. Muitos programas e verbas governa- lho que funcionava e o que “estava no papel”. mentais surgem através de associações comuni- Um dos requisitos apontados pelos en- tárias. (um bom exemplo disso é o Projeto São trevistados para o funcionamento dos Conse- José e os programas financiados pelo Banco lhos referia-se à necessidade de mudança na Mundial e pelo Banco Interamericano de De- forma de participação dos Conselheiros nas senvolvimento). Essa necessidade de que as as- reuniões. A distinção feita com base em cate- sociações dispusessem das verbas criou uma si- gorias nativas entre “governamentais” e “não tuação de simbiose entre poder e espaços as- governamentais” demonstrava a existência de sociativos de representação. Além do mais fa- uma polaridade cuja consequência estava no vorecia a criação de entidades cadastradas que interesse e na importância atribuída à entida- não eram “verdadeiras”. de. Segundo Francisca Lopes20, coordenado- ra da Mobilização Social, um setor da Secre- 5. OS MÚLTIPLOS SIGNIFICADOS DA PAR- taria de Saúde e Assistência Social que congre- TICIPAÇÃO gava diversos conselhos, incluindo o de Saúde, um dos problemas mais recorrentes que vinha dificultando o andamento dos trabalhos era a Sandoval apresenta diferentes apropria- “falta de compromisso”, principalmente de ções da palavra participação, incluindo tanto Conselheiros governamentais, escolhidos mui- os formatos institucionalizados materializados tas vezes à revelia dos participantes e sem assu- em conselhos como as experiências associati- mirem o papel atribuído de representação em vas não imediatamente catalogadas como parti- sua profundidade. Os governamentais, segun- cipativas. No âmbito dos espaços reconhecidos do ela, não iam às reuniões, não se compro- como expressão da mudança, nas formas de in- metiam, queriam impor horários de reuniões a termediação entre representantes e população partir de suas conveniências e criavam uma sé- destacam-se os conselhos de saúde como exem- rie de problemas com os não-governamentais, plos de transformação nas redes do poder local. que eram muitas vezes voluntários e, portanto, não tinham a mesma disponibilidade de tempo.

20 Francisca Lopes Souza é assistente social e trabalha na Secretaria de Assistência e Saúde do Município. Foi convidada pelo Se- cretário Odorico Menezes para ocupar o cargo de coordenadora da Mobilização Social, dando apoio técnico aos Conselhos. 115

A presença nos Conselhos e associações tiveram enfrentamentos com os diferentes po- é, sobretudo, feminina. Segundo Benedito re- deres, sendo suas demandas muitas vezes con- presentante dos usuários eleitos pioneiramente sideradas como “não atendidas”, produzindo em substituição à tradicional escolha de médi- uma sensação de impotência decisória. cos para ocupação do cargo de presidência da As múltiplas apropriações da participa- entidade, “Por incrível que pareça são as mu- ção e seus formatos institucionais demonstram lheres que participam mais. Acho porque o ho- a impossibilidade de pensá-las a partir de uma mem tem a cabeça mais dura, acha que passa única direção. Sandoval, diferente da situação o dia trabalhando e as reuniões às vezes são à de Santa Mariana apresentou uma articulação noite; quando são à tarde eles estão trabalhan- mais complexa dos espaços de representação do... quando a gente vê muito homem, a gente presente no antagonismo entre “governamen- vê que a coisa ta melhorando”. tais e não governamentais”. Trata-se na reali- Existe outra noção de participação asso- dade de classificações reveladoras de disputas ciada a aspectos legais de funcionamento dos simbólicas. conselhos. Do ponto de vista dos gestores, a lei “permite” que os Conselhos sejam paritários, CONSIDERAÇÕES FINAIS ou seja, dividam-se entre “governamentais” e “não governamentais”. É válido ressaltar que parte dos “governamentais” indicados pelo po- Os municípios de Sandoval e Santa Ma- der público nem sempre se interessa pelas te- riana apresentam a diversidade e a complexida- máticas, não dispondo muitas vezes de tempo de dos mecanismos de poder no conjunto das para integrar Conselhos com reuniões e discus- práticas participativas. Tentando romper com sões que muitas vezes não apresentam “resul- uma análise meramente avaliativa, a pesquisa tados”. revelou os espaços institucionais, os agentes e Do ponto de vista do poder público, os os discursos que acenavam com as formas mais conselhos muitas vezes constituem uma ameaça recentes de inclusão de segmentos sociais orga- ao poder local. Tudo se passa como se os con- nizados nas esferas do poder municipal. selhos fossem potenciais apropriadores dos po- Os mecanismos de participação social, deres e, dependendo do seu andamento, pudes- presentes em gestões municipais, apontaram sem se tornar um espaço paralelo, capaz inclu- também dimensões importantes de uma “cultu- sive, de descredenciar o executivo municipal. ra política” calcada nas experiências anteriores Esse argumento era também extensivo de organização e nas redes do poder local, in- às articulações entre conselhos e poder legis- cluindo os discursos que acenam com propos- lativo. Muitos vereadores percebiam os conse- tas de renovação. A multiplicação de seminá- lhos como ameaça à governança legislativa, mi- rios, reuniões e fóruns variados de discussão so- nimizando suas funções de intermediação junto bre a questão exprimem a construção de um à população. Por sua vez, os conselhos também “saber” sobre a participação, no sentido fou- caultiano do termo, implicando na emergência 116

de especialistas, discursos e situações exempla- taca-se a ideia de que existe uma grande varie- res a partir dos quais as experiências de organi- dade de acepções sobre o conceito de partici- zação e representação passam a ser geridas. pação. São acepções que apontam a existência As narrativas da participação considera- de conflitos simbólicos e luta entre classifica- das eficazes apresentam-se como sendo signa- ções: os que participam, os que não participam tárias de uma temporalidade dividida entre um e os que deveriam participar. Na mesma dire- “antes” e um “depois”, fundamentados na ideia ção, destacam-se os políticos que incentivam ou de ruptura com o poder local. Percebe-se, nesse dificultam a participação, reproduzindo as cli- sentido, que a ideia de participação opera co- vagens sociais entre o que se nomeia de gover- mo forte elemento de legitimação de governos no e população. de oposição. É importante também redimensio- Para o pesquisador, interessado em des- nar o tema da participação à luz das experiên- vendar processos e tramas da realidade social, cias anteriores. Do ponto de vista sociológico, há sempre o desafio de entender a formulação suplantar a leitura do “antes” e do “depois” su- de conceitos nativos e o papel que desempe- gerida pelas forças de oposição no poder, ou a nham na construção de práticas de intervenção ideia de que a participação opera a partir de um efetivadas por diferentes agentes sociais. Nes- marco zero, supõe uma análise do modo como se sentido, o recurso metodológico etnográfi- as experiências de organização se redefinem em co utilizado na pesquisa contribuiu para pensar diferentes contextos históricos. os modos diferenciados de construir e pensar a Os Conselhos Municipais, enquanto participação, incorporando as formas de apro- instituições operativas de realização de “gestão priação por parte de múltiplos atores sociais. municipal participativa”, constituem espaços A participação como legitimação de grupos he- ideais de verificação das mediações e valores gemônicos, como bandeira política de segmen- que envolvem o tema da participação. Ressalta- tos organizados ou como afirmação de espaços se, nesse contexto experiências diversificadas. de poder apresenta possibilidades analíticas in- No âmbito das experiências analisadas verifi- teressantes a serem exploradas no contexto de camos como as tradições locais, as concepções pesquisas comparadas. partidárias e as vivências societárias, advindas É importante salientar que a participa- de práticas variadas de organização popular, se ção opera como uma espécie de rede de comu- articulavam ou se antagonizavam. As situações nicação interativa e conflitiva entre grupos, lí- apresentadas revelaram o quanto é diversifica- deres e políticos. Uma “cultura da participa- da e complexa uma analise sobre a participação ção” cria a rotatividade de assessores que de- não pautada na perspectiva de avaliação. sempenham a função de “intelectuais orgâni- Menos que uma conclusão para o que se cos” difusores de experiências. O próprio Par- apresenta como “entraves à participação” é im- tido dos Trabalhadores, enquanto um dos men- portante salientar algumas questões que se im- tores da ideia de participação, reproduz expe- puseram na pesquisa. Em primeiro lugar, des- riências percebidas como cumulativas. 117

Uma institucionalização das articulações Se a participação é compreendida e entre poderes locais e segmentos sociais popu- apreendida de forma múltipla, essa polissemia lares repõe, por outro lado, os conflitos de po- não é em vão. Ela traz a possibilidade e flexi- der existentes entre espaços diferenciados de bilidade de resignificações conceituais, no tem- representação: Conselhos Populares, Prefeitu- po e espaço por diferentes agentes. Nessa pers- ra e Câmara de Vereadores. pectiva, a participação pode ser percebida co- A participação se institui com base em mo “obra sem autor”, para usar uma expressão discursos diferenciados e práticas também di- de Grün e Donanone (2001) para referir-se ao versificadas. Talvez, uma das contribuições modo como ela foi apropriada por empresários maiores no exame das situações concretas, se- e Conselhos de Fábrica, no momento da socie- ja introduzir com base em estudos etnográficos, dade brasileira em que se buscava organizar lu- a ideia de conflito não como entrave ao ideal cros e partilhar decisões. As lutas simbólicas em comunitário que a participação parece sugerir. torno da definição da participação e dos pro- As redes interativas que se estabelecem entre a cessos de legitimação subjacentes têm, portan- participação, os agentes e os espaços de poder to, diversos alcances e difusões, transforman- constituem matéria prima para se pensar em in- do-se em patrimônio da gestão municipal. vestigações posteriores. Se o discurso que justifica o tema da Trabalho recebido em 20/10/2012 participação política pôde se fundamentar em Aprovado para publicação em 11/12/2012 ideais de reciprocidade, os conflitos ineren- tes à própria política, referentes à concentra- REFERÊNCIAS BIBLIOGRAFIAS ção ou distribuição desigual de poderes apon- taram também dificuldades de aplicar os prin- cípios na prática. Não é possível esquecer que BARREIRA, Irlys e Braga Elza. A Política da Es- a participação não ocorre em uma arena uni- cassez, lutas urbanas e programas sociais gover- forme de representação política, o que gera di- namentais. Fundação Demócrito Rocha, Forta- ferentes efeitos na implementação das práticas leza, 2001. efetivadas em seu nome. Tampouco, se imple- ______. Chuva de papéis, ritos e símbolos menta em um vazio social de histórias e interes- de campanha eleitoral no Brasil. Relume Duma- ses como parece sugerir a narrativa do “antes” rá: Rio de Janeiro, 1998. e “depois”, sugestiva de um “marco zero” típi- co de um mito fundador. Nesse sentido emerge BEZERRA, Marcos Otávio. Participação po- uma questão: como os valores que embasam o pular e conflitos de representação política. In: tema da participação coadunam-se com a práti- Texeira Carla Costa e Chaves, Christine de ca de atores sociais inseridos em diferentes es- Alencar. Espaços e Tempos da Política. Relume paços de representação? Dumará: Rio de Janeiro, 2004. 118

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PRÁTICAS E REPRESENTAÇÕES DO PODER LOCAL: POSSIBILIDADES DE CONSTRUÇÃO DE UMA HISTÓRIA CULTURAL DO POLÍTICO

José Romildo Souza Lemos Júnior

RESUMO

O presente artigo tem como objetivo analisar a bibliografia em Língua Portuguesa sobre poder local, sendo um dos resultados das reflexões que feitas na dissertação de mestrado, de minha autoria, intitulada Família, Poder e Representações: tramas do cenário político agrestinense entre o final da década de 1940 e o início dos anos 1990. Discutimos aqui a utilização das contribuições da história cultural na análise das relações entre poder local e re- presentações. O artigo apresenta considerações a respeito da aplicabilidade de conceitos tais como coronelismo, cultura política e representações, todos estes em diálogo com o conceito de poder local.

Palavras-chave: Poder Local; Representações; História cultural

LOCAL POWER PRACTICES AND REPRESENTATIONS: POSSIBILITIES OF A CULTURAL HISTORY ON POLITICS

ABSTRACT

ABSTRACT This article aims to analyze the literature in Portuguese on local government, being one of the results of reflections done in our Master’s dissertation untitled Family, Power and Representations: plots of the agrestinense political scene between the end of the 1940 decade and the beginning of the 1990’ s. We discuss here the using of Cultural History in analyzing the local political power and its representations. This article presents comments on the apli- cability of concepts as Coronelism, Political Culture and Representations, all them in reference to the local power.

Key words: Local Power; Representations; Cultural History

Mestre em História pelo Programa de Pós-Graduação em História, Universidade Federal de Campina Grande (PPGH/UFCG). E-mail: [email protected]

Raízes, v.33, n.1, jan-jun /2013 120

INTRODUÇÃO de base familiar, não chega a ser uma especifi- cidade do município de Agrestina, já que pare- ce ser característico também em outras cidades Este trabalho foi produzido a partir da região1. Contudo, o que chama a atenção na das reflexões, em termos de referencial teóri- trajetória política de Agrestina é que, durante co, que fundamentaram a dissertação de mes- um período considerável de sua história, não trado de minha autoria, intitulada Família, Po- houve propriamente um revezamento dos gru- der e Representações: tramas do cenário políti- pos opositores no poder, isto porque um dos co agrestinense entre o final da década de 1940 tais grupos, que tinha como núcleo a família e o início dos anos 1990. Ainda que relaciona- Ribeiro, conseguiu tornar-se hegemônico no do a uma pesquisa historiográfica, o presente controle da prefeitura e da câmara de vereado- texto apresenta também um esforço de revisão res. Este grupo político, que teve como princi- bibliográfica acerca do poder local, tendo em pal liderança o ex-prefeito e deputado estadual vista que nos limitaremos, neste espaço, a uma Elias Libânio da Silva Ribeiro, exerceu um do- discussão conceitual. mínio quase que ininterrupto na vida política Nesta discussão, entretanto, serão cons- local entre 1947 e 1992, nestes quarenta e cin- tantes as referências ao objeto de pesquisa, isto co anos a oposição, formada por um grupo que porque as reflexões que se seguem foram estru- tinha como núcleo a família Guilherme, conse- turadas a partir de considerações acerca da apli- guiu vencer apenas uma disputa eleitoral, tendo cabilidade de conceitos como coronelismo, cul- governado a cidade entre 1969 e 1972. tura política e representações ao nosso objeto, Neste sentido, o objetivo central da pes- sendo que este, por sua vez, está relacionado à quisa que inspirou a produção deste artigo foi história política do município de Agrestina. compreender o período em que as instituições Em sua relativamente curta história, ten- políticas do município de Agrestina estiveram do em vista que a emancipação ocorreu ape- sob o domínio do grupo Ribeiro. Para tanto, fi- nas em 1928, esta pequena cidade do interior zemos uso de relatos orais, coletados através de do estado de Pernambuco, localizada no Agres- entrevistas. Nestes relatos nos chamou a aten- te e distante 154 km da capital Recife, apre- ção o fato de que o poder atribuído a este gru- senta um cenário político marcado pela dispu- po e, em especial, ao seu líder pelos atores so- ta entre grupos que, de forma geral, tinham co- ciais agrestinenses, de modo geral, era imenso, mo base famílias consideradas abastadas e com mas, por outro lado, a avaliação positiva ou ne- grande prestígio político no âmbito municipal. gativa do poder e das práticas do grupo Ribei- Um cenário como este, onde predomina ro, durante o período em que este controlou o a disputa e o revezamento no poder de grupos cenário político local, variava de acordo com o pertencimento dos nossos entrevistados ao pró-

1 Como exemplo de pesquisa relacionada a esta temática em uma cidade do interior de Pernambuco, podemos citar o seguinte trabalho: ADILSON FILHO, José. A Cidade Atravessada: Velhos e novos cenários na política belojardinense. Recife: COMUNI- GRAF, 2009. Neste livro, o autor analisa a permanência das famílias Mendonça e Galvão, por cerca de quatro décadas, no poder municipal da cidade de Belo Jardim. 121 prio grupo Ribeiro ou ao grupo opositor que, Neste artigo refletiremos sobre a utili- como afirmamos anteriormente, tinha como zação do conceito de representações e da in- núcleo a família Guilherme. serção do trabalho no campo da história cultu- O caminho escolhido para a compreen- ral, incluindo nesse caldo considerações acer- são deste domínio foi à análise das representa- ca dos conceitos de coronelismo e cultura polí- ções em torno do poder político do grupo Ri- tica, além de uma rápida abordagem relativa à beiro, assim como as lutas em torno destas e a noção de grupos de base familiar e ao próprio maneira pela qual estas mesmas representações itinerário da história política, sobretudo nos úl- e as práticas delas decorrente contribuíram pa- timos anos com o chamado retorno ao político ra a efetivação e legitimação de certa hegemo- e ao desenvolvimento da nova história política. nia política. Por se tratar de uma pesquisa que te- 1. PODER, REPRESENTAÇÕES E HISTÓRIA ve como objeto as representações em torno de CULTURAL: UM DIÁLOGO POSSÍVEL grupos de base familiar, fizemos ainda algumas reflexões em torno das relações entre família e poder político. Nesta perspectiva, procuramos Optamos por problematizar o objeto de compreender o contexto em que atuaram e a pesquisa a luz de uma história cultural do polí- trajetória política das famílias Ribeiro e Gui- tico, procurando fugir da associação quase au- lherme no município de Agrestina, assim como tomática e ainda bastante comum – sobretudo as representações em torno destas famílias, jul- quando se trata da análise de temáticas ligadas gamos que estas representações tiveram um pe- ao campo político em pequenas e médias cida- so fundamental para a construção e manuten- des do interior – entre poder local e coronelis- ção do prestígio político destas e, até mesmo, mo, assim, apesar de trabalhar com um obje- de seus respectivos grupos. to que envolve a relação entre família e poder, não utilizamos este conceito, o que será justifi- Tendo em vista nossa opção de anali- cado mais adiante. sarmos, basicamente, as práticas e representa- ções do poder, acreditamos que o nosso traba- Por outro lado, é evidente que o traba- lho possa ser incluído no campo de uma histó- lho se insere no processo de renovação teórico- ria cultural do político. Com isto, por um la- metodológica pelo qual vem passando nas úl- do, nos afastamos da tradicional análise do po- timas décadas, e em especial nos últimos anos, der local a partir da questão do coronelismo, a história política, processo este que desembo- mas, por outro lado, não aderimos à perspec- cou no chamado retorno ao político ou na cha- tiva da chamada nova história política. No en- mada nova história política. Desta forma, pro- tanto, esta breve apresentação dos objetivos e curamos estabelecer um diálogo tanto com es- dos conceitos centrais da nossa pesquisa escon- te processo de renovação, quanto com o con- dem o caminho tortuoso que foi trilhado até a ceito de cultura política, que vem sendo utiliza- definição quanto à utilização deste instrumen- do por historiadores, sobretudo, a partir do iní- tal teórico. cio dos anos 1990. No entanto, os limites apre- 122

sentados pelo conceito de cultura política para truído o estado no Brasil e que a família é tão a análise do nosso objeto e o questionamento indissociável das estruturas de poder no Brasil, de alguns dos pressupostos básicos da chamada que estudá-la é estudar essas mesmas estruturas. nova história política, nos levaram a considerar Nesta perspectiva, tivemos a preocupa- a possibilidade de uma história cultural do po- ção de abordar o contexto de atuação e a traje- lítico sem a utilização deste conceito e focando tória política das famílias Ribeiro e Guilherme na questão das representações e práticas do po- no município de Agrestina. No entanto não uti- der, sendo, basicamente, estas as reflexões que lizamos, especificamente, o conceito de família. passamos a fazer a partir de agora. Isto porque consideramos mais apropriado pa- Além da preocupação central que cir- ra essa análise a noção de grupo de base fami- cundam as práticas e representações do poder, liar proposta por Lewin (1993), tendo em vis- o trabalho também apresenta algumas conside- ta que os grupos Ribeiro e Guilherme não eram rações em torno das relações entre família e po- formados apenas por membros destas famílias, der político, pois, como já assinalamos, os dois mas também por aliados, já que os vínculos e grupos que disputavam o poder no município alianças destes grupos eram definidos por di- de Agrestina, durante o período que coincide versos elementos que iam desde interesses con- com o recorte temporal estabelecido, ou seja, junturais até a amizade política. entre 1947 e 1992, tinham como núcleo famí- Ainda com relação às famílias Ribeiro e lias consideradas abastadas e com significativo Guilherme, abordamos também, como afirma- prestígio no cenário político local, uma dessas mos na introdução, a questão da maneira pela famílias, inclusive, a família Guilherme, apre- qual os atores sociais agrestinenses representa- sentava um longo histórico de atuação política, vam estas famílias, as lutas em torno destas re- que se iniciara ainda na época da emancipação presentações e a importância disto para o prestí- do município. gio político tanto destas famílias como dos seus A temática que articula poder político respectivos grupos. No entanto esta questão, e família tem sido abordada a bastante tempo, das representações em torno das famílias Ribei- atualmente é vasta a produção2 em campos dis- ro e Guilherme, será retomada mais adiante. ciplinares como, sociologia, antropologia e his- A opção pela não utilização do conceito toria. De modo geral, os trabalhos tem revela- de coronelismo se deu pelo fato de considerar- do a importância da família nas estruturas do mos inadequada a utilização deste conceito em poder político ao longo de toda a história bra- períodos históricos anteriores ou posteriores à sileira. Rego (2008), por exemplo, afirma que a chamada primeira república (1889-1930). Is- família representou papel essencial no estabele- to porque, a partir das contribuições de Carva- cimento das estruturas sobre as quais foi cons- lho (1997), que por sua vez adota a perspectiva

2 Conferir, entre outros: LEWIN, Linda. Política e Parentela na Paraíba: Um estudo de caso da oligarquia de base familiar. Rio de Janeiro: Record, 1993. LEMENHE, Maria Auxiliadora. Família, Tradição e Poder: o (caso) dos coronéis. São Paulo: Annablu- me/Edições UFC, 1995. RÊGO, André Heráclio do. Família e Coronelismo no Brasil: uma história de poder. São Paulo: A Gira- fa Editora, 2008. 123 clássica proposta por Victor Nunes Leal acerca à existência local de estruturas oligárquicas deste conceito, o coronelismo foi um sistema e personalizadas de poder. O mandão, o po- político que envolvia compromissos recípro- tentado, o chefe, ou mesmo o coronel como indivíduo, é aquele que, em função do con- cos entre os governos federal, estadual e mu- trole de algum recurso estratégico, em ge- nicipal. Tal sistema é situado historicamente na ral a posse da terra, exerce sobre a popula- primeira república e surge da convergência de ção um domínio pessoal e arbitrário que a uma conjuntura econômica com um fato políti- impede de ter acesso ao mercado e à socie- co: a conjuntura econômica é a decadência dos dade política.4 fazendeiros e o fato político o federalismo im- plantado neste período. Desta forma, este siste- Nesta formulação do conceito o mando- ma não existiu antes da proclamação da repú- nismo, no entanto, não é um sistema, é uma blica e não continuou a existir depois da cha- prática característica da política tradicional. Ele mada revolução de 1930, que pôs fim ao fede- atravessa a história da colonização e do impé- ralismo existente até então. rio, sobrevivendo, ainda hoje, em regiões iso- ladas. Porém, segundo este autor, a tendência Segundo Carvalho (1997), a insistência é que desapareça completamente à medida que na permanência do coronelismo que caracteri- os direitos civis e políticos alcancem todos os za parte da produção acadêmica ligada ao po- cidadãos. der local aponta para uma confusão conceitual: confunde-se mandonismo e clientelismo – práti- cas que atravessam praticamente toda a história Na visão de Leal, o coronelismo seria um brasileira e que não são incompatíveis os signos momento particular do mandonismo, exa- tamente aquele em que os mandões come- do moderno e mesmo com processos de moder- çam a perder força e tem de recorrer ao go- nização nas ambivalentes posturas e estratégias verno. Mandonismo, segundo ele sempre adotadas pelos políticos brasileiros3 – com o co- existiu. É uma característica do coronelis- ronelismo e, em consequência dessa confusão, mo, assim como o é o clientelismo.5 estas práticas são pensadas como traços da per- manência do coronelismo e dos coronéis, em- Parte da produção acadêmica sobre po- bora adaptados a novos contextos históricos. der local identifica coronelismo e mandonis- Neste sentido, o referido autor busca definir, de mo. Segundo Carvalho (1997), esta produção forma mais precisa, os três conceitos. Procure- contribuiu para esclarecer o fenômeno do man- mos, então, acompanhar o seu raciocínio. donismo, no entanto: Para Carvalho (1997), a noção de man- donismo implica: O fato de esta literatura ter tornado sinôni- mos os conceitos de coronelismo e mando-

3 A discussão e análise destas questões encontra-se em ADILSON FILHO, Op. Cit. 4 CARVALHO, Jose Murilo. Mandonismo, Coronelismo, Clientelismo: uma discussão conceitual. In. DADOS – Revista de Ciên- cias Sociais, Rio de Janeiro, Vol. 40, n°. 2, 1997, p. 3. 5 CARVALHO, Op. Cit., p.3. 124

nismo foi negativo. Alguns autores encon- no não era sistêmico, embora houvesse vín- tram mesmo um coronelismo urbano (Reis, culos estaduais e federais. Por vários anos as 1971), ou um coronelismo sem coronéis duas famílias mantiveram o controle polí- (Banck, 1974: 1979).6 tico da cidade, alternando-se no poder. Os resultados eleitorais eram previstos de an- temão com precisão quase matemática. Os Outro conceito frequentemente confun- votos tinham dono, eram de uma ou de ou- dido com coronelismo é conceito de clientelis- tra família. Tratava-se de um caso exacer- mo. Este último indica um tipo de relação en- bado de clientelismo político exercido num tre atores políticos que envolve a troca de be- meio predominantemente urbano. Não se 7 nefícios como empregos, isenções fiscais, etc. tratava de coronelismo. por apoio político, principalmente na forma de voto. O clientelismo também não constitui Por outro lado, além desta inadequa- um sistema, mas uma prática, ele, assim como ção, em termos da própria definição do con- o mandonismo, atravessa quase toda a histó- ceito de coronelismo em análises acerca do po- ria do país. No entanto, o clientelismo não se- der local fora do período da chamada primei- gue uma trajetória sistematicamente decrescen- ra república, também consideramos que há li- te como o mandonismo, ele pode aumentar ou mites na concepção de poder que norteia par- diminuir ao longo da história, de acordo com o te dos trabalhos que interpretam a longevidade sistema político. de famílias, ou grupos no controle político de alguns municípios como a permanência do co- Ainda segundo Carvalho (1997), os au- ronelismo. tores que veem coronelismo no meio urbano e em fases recentes da história do Brasil estão fa- Isto porque, nestes casos, o poder local lando de fato de relações clientelistas. Contu- é visto quase sempre como um poder discricio- do, estas relações, nos casos acima citados, dis- nário que pertence exclusivamente ao coronel pensam a figura do coronel. Para sumarizar a e, desta forma, os trabalhos têm enfatizado a questão da inadequação do conceito de corone- dominação em detrimento da forma como os lismo na análise do poder local fora do período atores sociais representam o universo político da chamada primeira república observemos um e, consequentemente, de como orientam suas exemplo dado pelo autor: práticas em meio às relações de poder. Práti- cas estas que, se consideradas em termos táti- cos, como propõe Certeau (2008), podem re- que na década de 60 era dominada por duas velar diversas formas de resistências. Além do famílias, cujo poder baseava-se simplesmen- mais, esta ênfase no poder dos grupos domi- te na capacidade de barganhar empregos e nantes desconsidera a questão da crença parti- benefícios públicos em troca de votos (Car- lhada na autoridade. valho, 1966). As famílias não tinham recur- sos próprios, como os coronéis, e o fenôme-

6 CARVALHO, Op. Cit., p.3. 7 CARVALHO, Op. Cit., p.3. 125

Até aqui temos adiado as reflexões em fatos tal como aconteceram, extraindo-os dos torno do conceito de representações. Isto se de documentos oficiais ou, para usarmos uma ex- deve, por um lado, ao fato de considerarmos pressão bem conhecida, fazendo os documen- necessárias as considerações iniciais feitas a res- tos falarem por si sós – e por uma narrativa fac- peito das relações entre família e poder político tual, cronológica e linear, que enfatizava os fei- e em torno da não utilização do conceito de co- tos dos grandes homens.8 ronelismo, por outro lado, a própria discussão No entanto, a partir do final da década em torno das representações é mais complexa e de 1920, com o advento da chamada escola do requer maiores cuidados. Analles, essa história política perdeu prestígio, Estudos relacionados ao poder políti- passando a ser considerada o símbolo maior da co, apontam para o processo, hoje bastante co- história tradicional e tornando-se, desta forma, nhecido, de renovação da história política. Sen- o principal alvo das críticas dos historiadores do assim, a entrada em cena do conceito de re- dos Analles. Os membros desta corrente propu- presentações está ligada ao próprio itinerário seram uma renovação historiográfica pautada da história política nas últimas décadas. No en- numa história-problema, interdisciplinar e so- tanto, para compreendermos as transformações cioeconômica, além de inovarem também com pelas quais passou a história política, é necessá- a utilização de novas fontes e uma nova con- rio considerar, mesmo que brevemente, sua tra- cepção de tempo histórico.9 Isto acabou levan- jetória desde o final do século XIX. De forma do a história política a passar algumas décadas bastante esquemática, esta trajetória pode ser numa espécie de ostracismo, pois sendo con- dividida em momentos distintos, todos eles re- siderada “Factual, subjetivista, psicologizante, lacionados tanto às tendências dominantes co- idealista, a história política reunia [...] todos os mo às transformações ocorridas no campo his- defeitos do gênero de história do qual uma ge- toriográfico. ração almejava encerrar o reinado e precipitar 10 Em um primeiro momento, ainda no sé- a decadência”. culo XIX, a história política foi considerada o O último momento, que já é o do pro- objeto por excelência dos estudos históricos pe- cesso de renovação da história política, de- la chamada história tradicional. Esta tendência pois do longo período em que ela permaneceu historiográfica, capitaneada pela escola metó- num segundo plano, é bem mais difícil de pre- dica francesa, caracterizava-se, grosso modo, cisar, pois são múltiplos os fatores que impul- por uma postura cientificista – que advogava sionaram esta renovação, mesmo assim tentare- uma separação absoluta entre o objeto e o his- mos seguir algumas pistas na tentativa de com- toriador, já que este deveria apenas expor os preendê-lo. Uma contribuição decisiva para es-

8 Conferir: MALERBA, Jurandir (Org.). Lições de História: o caminho da ciência no longo século XIX. Rio de Janeiro: Edito- ra FGV, 2010. 9 Conferir: BURKE, Peter. A escola dos Annales (1929-1989): a Revolução Francesa da historiografia. São Paulo: Fundação Edi- tora da UNESP, 1997. 10 RÉMOND, René (Org.). Por Uma História Política. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2003, p. 18. 126

te processo foi dada pelo grupo liderado pelo ral, em particular no campo das represen- historiador francês René Rémond que, a partir tações.11 do final dos anos 1960, quando o campo his- toriográfico ainda era dominado pelo paradig- Ao chegarmos neste ponto faremos algu- ma braudeliano da segunda geração dos Anal- mas considerações a cerca do conceito de cul- les, defendeu o retorno, sob nova roupagem, tura política, considerando o recente interesse da história política. Por outro lado, o advento pelas representações do universo político que da chamada terceira geração dos Analles ques- possibilitam uma redefinição e a reabilitação do tionou o modelo historiográfico braudeliano e próprio conceito. Entre os autores que busca- ajudou a reestabelecer a história política, pois ram apresentar uma definição do conceito de esta passou a ser vista como uma alternativa ao cultura política – como, Andrade (1999), Motta predomínio da história econômica e social. Este (2009), Berstein (2009) e Guedes (2011) – pa- processo de renovação pelo qual passou a his- rece haver certo consenso em situar o surgimen- tória política foi ainda influenciado e impulsio- to e o desenvolvimento do estatuto acadêmico nado pelo desenvolvimento da história cultural deste conceito entre o final da década de 1950 e pelo contato como outras disciplinas como a e o início dos anos 1960, no âmbito da ciência sociologia, a ciência política e, sobretudo, a an- política norte-americana. Isto a partir dos tra- tropologia, pois estas disciplinas também em- balhos de Gabriel Almond e Sidney Verba, prin- preenderam renovações teórico-metodológicas cipalmente no livro “The Civic Culture”. relacionadas às pesquisas em torno do político, Situados no contexto da guerra fria, pense-se, por exemplo, no desenvolvimento da num momento em que os esforços estavam vol- antropologia da política.10 tados para o fortalecimento do campo demo- É neste contexto que, nos últimos anos, crático liderado pelos Estados Unidos, tratava- tem crescido o interesse dos historiadores do se para estes teóricos de compreender a origem político pelo universo do simbólico e das repre- das democracias políticas. Influenciados pelo sentações. Neste sentido, ao caracterizar o mo- campo antropológico, criaram tipologias para vimento de renovação liderado por Réne Ré- enquadrar as diferentes formas de cultura polí- mond, ao qual nos referimos e do qual partici- tica, no esquema organizado por estes autores pou, Serge Berstein afirma que: havia três tipos básicos: cultura política paro- quial, cultura política da sujeição e cultura po- lítica participativa, esta última corresponderia O móvel principal dessa renovação consis- ao estágio superior a ser alcançado pelos po- tia em aplicar à história política os enfoques vos atrasados na corrida para o desenvolvimen- e questionamentos das ciências humanas e to de sistemas democráticos. Buscaram, ainda, sociais, da ciência política, e os novos hori- encontrar: zontes abertos pela voga da história cultu-

10 Conferir KUSCHNIR, Karina. Antropologia da Politica. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor., 2007. 11 BERSTEIN, Serge. Culturas Políticas e Historiografia. In: Org. AZEVEDO, Cecília; ROLLEMBERG, Denise; BICALHO, Ma- ria Fernanda Baptista. Cultura Política, Memória e Historiografia. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2009, p. 30. 127

uma regra de comparação entre sistemas uma redefinição, como citamos anteriormente, políticos diferentes, mas considerados de do conceito de cultura política. valor desigual, com relação a critérios de desenvolvimento, estabelecendo como mo- No campo historiográfico, como não delo da modernidade as normas e os valo- poderíamos deixar de comentar, foi só a par- res das democracias liberais do ocidente12. tir desta redefinição que a noção de cultura po- lítica passou a ser utilizada. O conceito apare- Desta forma, fica clara a perspectiva evo- ce na historiografia francesa no início da déca- lucionista e etnocêntrica que norteia esta for- da de 1990, com autores como Serge Berstein e mulação do conceito. Outra característica da Jean-François Sirinelle, Estes historiadores são concepção de cultura política é que ela é pensa- externos ao movimento dos Annales e ligados da em termos de território nacional. Neste úl- ao grupo de René Rémond, ao qual nos referi- timo ponto, entretanto, há discordâncias en- mos anteriormente. O livro manifesto, se assim tre os autores que discutem o surgimento deste podemos chamá-lo, “Por Uma História Políti- conceito. Na concepção de Berstein (2009), Al- ca”, organizado por René Rémond e publicado mond e Verba postularam a existência de cultu- em 1988, não tinha um capítulo dedicado à no- ras políticas nacionais homogêneas, no entan- ção de cultura política, no entanto, outros his- to, para Motta (2009) o esquema não era tão toriadores do grupo passaram a desenvolvê-la. simplório, pois concebe casos em que convivem De fato, os diversos autores que postula- até os três modelos de cultura política citados ram uma redefinição do conceito de cultura po- anteriormente. lítica tem colocado no cerne desta ressignifica- Uma coisa, porém, é certa: com a reno- ção a noção de representações. A socióloga Ma- vação teórico-metodológica pela qual passou o ria Antônia Alonso de Andrade, por exemplo, campo político nas últimas décadas e, mais re- ao comentar as vantagens de uma nova concep- centemente, nos últimos anos, sobretudo com a ção deste conceito, propõe que a cultura polí- entrada em cena da questão das representações, tica seja entendida “não como as atitudes, mas diversas foram as críticas que se abateram sobre como as representações sociais do mundo da esta concepção de cultura política. Críticas em- política, ou mais precisamente, como o campo 13 preendidas principalmente por antropólogos, de representação da política”. sociólogos e historiadores que norteiam suas Já o historiador francês Serge Berstein pesquisas a partir de temáticas ligadas à rela- define da seguinte forma o modo como o con- ção entre cultura e política, e que contestaram, ceito é apropriado pelo campo historiográfi- sobretudo, os aspectos evolucionista, etnocên- co: “Os historiadores entendem por cultura trico e nacional desta formulação do conceito. política um grupo de representações, porta- Nesta perspectiva, alguns autores tem proposto doras de normas e valores, que constituem a

12 BERSTEIN. Op. Cit., p. 32. 13 ANDRADE, Maria Antônia Alonso de. Cultura Política, Identidade e Representações sociais. Recife: FJN, Ed. Massangana, 1999, p. 22. 128

identidade das grandes famílias políticas e que turas políticas, ou seja, ao contrário do que ha- vão muito além da noção reducionista de par- viam pensado os fundadores norte-americanos tido político.”14 do conceito na década de 1960, numa mesma sociedade podem conviver culturas políticas di- Por outro lado, o também historiador ferentes e rivais entre si, o que não significa que Rodrigo Patto Sá Motta, apesar de se funda- estas não possam entrar em contato e sofrer in- mentar teoricamente em Berstein e por no cen- fluências mútuas. tro de suas reflexões as representações, procura ampliar o conceito definindo-o como: Outro aspecto, destacado por Berstein (2009), é que a cultura política de determina- Um conjunto de valores, tradições, práticas do grupo social constitui um todo homogêneo e representações políticas partilhado por cujos elementos são interdependentes, sendo determinado grupo humano, que expres- preciso levar em consideração as redes de socia- sa uma identidade coletiva e fornece leitu- bilidade que garantem a coesão do grupo. Es- ras comuns do passado, assim como forne- te historiador classifica, ainda, as culturas polí- ce inspiração para projetos políticos dire- ticas como um “fenômeno evolutivo”, no sen- 15 cionados ao futuro. tido de que estão, como tudo que é histórico, sujeitas a mudanças, no entanto, as transforma- Para Berstein (2009), o que justifica o ções pelas quais passam estas culturas políticas recurso a esta noção do conceito de cultura po- só podem ser percebidas na longa duração. lítica é que ela possibilita a explicação dos com- Outro ponto que tem sido discutido, e portamentos políticos, respondendo a questio- que vem sendo considerado ainda bastante pro- namentos como o que faz um grupo de pessoas blemático, é a questão da difusão ou reprodu- se sentir mais próximo de uma força política ção das culturas políticas. Porém, tanto Bers- do que de outra, Votar a favor ou contra de- tein (2009) como Motta (2009) consideram terminado partido, aprovar ou protestar contra que esta difusão ocorre através de vetores so- esta ou aquela medida. Por outro lado, Motta ciais como a família, igrejas, instituições milita- (2009) aponta ainda a força que tem o paradig- res e escolares, ambientes de trabalho e até pe- ma culturalista na atualidade como motivação las mídias. para a utilização deste conceito. É inegável que este recurso a um con- A partir desta ressignificação, a produ- ceito de cultura política renovado, e que dire- ção historiográfica que volta seu olhar para ciona o olhar do pesquisador para o estudo das as relações entre cultura e política na história representações, trouxe ganhos e contribuições tem procurado definir o que seriam os aspectos importantes para o campo da história política. centrais da cultura política. Um primeiro ponto Se adequado ao objeto de estudo, o conceito que tem sido enfatizado é a pluralidade das cul-

14 BERSTEIN, serge. Culturas Políticas e Historiografia. In: Orgs. AZEVEDO, Cecília; ROLLEMBERG, Denise; BICALHO, Ma- ria Fernanda Baptista. Cultura Política, Memória e Historiografia. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2009, p. 31. 15 MOTTA, Rodrigo Patto Sá (Org.). Culturas Políticas na História: novos estudos. Belo Horizonte, MG: Fino Traço, 2009, p. 21. 129 pode ser extremamente útil para as pesquisas mo um todo homogêneo e bem delimitado em nesta área. oposição a culturas políticas diferentes e rivais, No entanto, como instrumento chave de pois numa configuração social como a existen- análise o conceito de cultura política apresen- te na cidade de Agrestina entre 1947 e 1992, ta limitações. A primeira delas é que a noção de os traços de uma “cultura política” estavam di- cultura política, da forma como foi pensada pe- fusos por toda a sociedade, alterando-se ape- los historiadores acima citados, refere-se ape- nas os usos que os diversos grupos sociais fa- 17 nas a grupos políticos intelectualizados e com ziam deles, considere-se, a título de exemplo, fundamentação teórica bem definida, como, a questão do clientelismo. Esta prática pôde ser por exemplo, os Liberais, os Marxistas, os Re- apropriada tanto como uma estratégia pelos publicanos, etc. Neste sentido, Berstein (2009) grupos que disputavam o poder – fosse o gru- afirma que um dos elementos que compõe a po Ribeiro ou Guilherme, embora a intensida- cultura política de determinado grupo é o que de com que a utilizavam variasse – quanto co- ele chama de substrato filosófico, este, por sua mo uma tática, no sentido proposto por Cer- vez, seria apropriado de maneira diferente pe- teau (2008), pelos eleitores. los membros do grupo, pois enquanto: Outro problema do conceito, este aponta- do por Motta (2009), é o risco de se cair nos ex- as elites cultas se referem diretamente às tremos do paradigma culturalista, absolutizando obras fundadoras, na massa da sociedade a determinação cultural e se esquecendo de rela- essas mesmas ideias penetram sob a forma cionar as representações com a realidade social. de uma vulgata que exprime, a partir de po- sições concretas, os princípios de cada uma Por outro lado, também consideramos dessas culturas políticas.16 limitada a perspectiva de alguns autores da cha- mada nova história política ou do chamado re- Nesta perspectiva, não conseguimos vis- torno ao político, que postularam uma consis- lumbrar os atores políticos agrestinenses entre tência própria e “certa” autonomia do campo o final da década de 1940 e o início dos anos político em relação ao social, isto é o que de- 1990, numa cidade pequena do interior de Per- fende, por exemplo, René Rémond (2003). Vol- nambuco, se definindo como pertencentes a es- tando ao nosso objeto, não seria possível pen- tas “grandes famílias políticas”, para utilizar- sar a hegemonia do grupo Ribeiro em Agres- mos uma expressão de Berstein (2009). tina sem considerar, por exemplo, os recursos econômicos e o capital social de que este gru- Também não parece adequado conside- po dispunha e que, na perspectiva dos próprios rar a cultura política de determinado grupo co-

16 BERTEIN, serge. Culturas Políticas e Historiografia. In: Orgs. AZEVEDO, Cecília; ROLLEMBERG, Denise; BICALHO, Ma- ria Fernanda Baptista. Cultura Política, Memória e Historiografia. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2009, p. 33. 17 Apesar de adaptadas ao nosso objeto, estas reflexões estão fundamentadas nas críticas que o historiador Roger Chartier faz às noções de cultura popular e cultura erudita. Conferir: CHARTIER, Roger. A História Cultural entre práticas e representa- ções. Ed. Difel, (1988).______. À Beira da Falésia a história entre certezas e inquietudes. Porto Alegre: Ed. Universidade/UFRGS, 2002.______. A História ou a Leitura do Tempo. – 2ª Ed. – Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2009. 130

atores sociais agrestinenses, eram fundamentais cerca da forma como os atores sociais, de acor- para a manutenção do seu poder. do com o seu pertencimento e inserção em gru- Apesar de optarmos, pelos motivos aci- pos, apreendem e atribuem sentido à realidade, permite também pensar a forma como orien- ma expostos, pela não utilização do conceito tam suas práticas em meio ao contexto social de cultura política em nosso trabalho, tivemos no qual interagem. a pretensão, ainda assim, como já insinuamos, de fazer uma história cultural do político, isto Em relação ao nosso objeto, estas pri- porque, para lembrarmos mais uma vez, o foco meiras características do conceito de represen- da pesquisa esteve voltado para as práticas e re- tações já o tornaram bastante interessante, pois presentações do poder. as representações em torno do poder do gru- po Ribeiro e as práticas delas decorrente con- A utilização de conceitos, como práticas tribuíram para a efetivação da hegemonia polí- e representações, sugere um olhar sobre a no- tica deste grupo no município de Agrestina en- ção de representações proposta pelo historia- tre o final da década de 1940 e o início dos anos dor francês Roger Chartier. Ao se apropriar do 1990. conceito de representações, Chartier o tornou central, não apenas em sua obra, mas também Entendidas como esquemas de classifi- para a própria história cultural já que, da for- cações, delimitações e juízos que organizam a ma como a define, esta corrente historiográfica apreensão da realidade, as representações in- tem por objetivo principal “identificar o modo corporam nos indivíduos as próprias divisões como em diferentes lugares e momentos uma do mundo social e, Segundo Roger Chartier, determinada realidade social é construída, pen- “são estes esquemas intelectuais incorporados sada, dada a ler”.18 que criam as figuras graças às quais o presente pode adquirir sentido, o outro tornar-se inteli- Segundo este autor, as representações gível e o espaço ser decifrado”19. não são simples imagens, falsas ou verdadeiras, do real, além disto, elas têm uma energia pró- As representações do mundo social, pria que convence os atores sociais de que o construídas desta maneira, apesar de aspirarem real corresponde efetivamente ao que elas afir- a uma verdade e validade universal, são sem- mam ou mostram. Outro aspecto da formula- pre determinadas pelos interesses dos grupos ção do conceito, de representações em Roger que as formulam. Desta forma, o autor chama a Chartier deve-se ao fato que representações são atenção para a necessidade de relacionar os dis- consideradas, ainda, as matrizes de práticas que cursos proferidos com a posição social de quem constroem o próprio mundo social. os utiliza.

Sendo assim, associado às noções de prá- As percepções do social não são de forma tica e apropriação, como discutiremos a seguir, alguma discursos neutros: produzem estra- este conceito possibilita ao historiador refletir a tégias e práticas (sociais, escolares, políti-

18 CHARTIER, Roger. A História Cultural entre práticas e representações. Ed. Difel, 1988, pp, 16-17. 19 CHARTIER. Op. Cit. p. 17. 131

cas) que tendem a impor uma autoridade à lacionadas não apenas à inserção dos atores so- custa de outros, por elas menosprezados, a ciais agrestinenses em um ou outro grupo po- legitimar um projeto reformador ou a jus- lítico, mas, também, às experiências decorren- tificar, para os próprios indivíduos, as suas tes do lugar social e político por eles ocupado. escolhas e condutas.20 Com isso, o que queremos deixar evidenciar aqui é que se, por um lado, não pretendemos Roger Chartier alerta, ainda, para a ne- encontrar “a” verdade em torno destas ques- cessidade de pensar as representações colocando tões, por outro lado, não pretendemos relati- -as em um campo de concorrências que possibi- vizar ao ponto de afirmarmos que o que existe lite uma reflexão acerca das relações de poder e são apenas discursos, pois em termos historio- dominação que elas implicam. Nesta perspectiva: gráficos, se faz necessário um esforço no senti- do de relacionar as representações com a reali- As lutas de representações tem tanta impor- dade socialmente construída ou, em outras pa- tância como as lutas econômicas para com- lavras, é preciso relacionar os discursos ao seu preender os mecanismos pelos quais um grupo impõe, ou tenta impor, a sua con- referente externo. cepção do mundo social, os valores que são É importante ressaltar ainda que, segun- 21 seus, e o seu domínio . do este autor, a reflexão acerca das representa- ções não afasta a pesquisa historiográfica do so- Sendo assim, abordamos a forma como cial, ele propõe, inclusive, acabar com os “fal- variavam as representações acerca do grupo Ri- sos” debates entre a objetividade das estruturas beiro e, em especial, do seu líder, de acordo e a subjetividade das representações. Isto por- com a inserção dos atores sociais agrestinenses que, em sua perspectiva, os esquemas geradores no próprio grupo Ribeiro o no grupo opositor, de classificações e juízos, próprios de cada gru- ou seja, o grupo Guilherme. Esta variação tam- po, são verdadeiras instituições sociais, tendo bém se dava com relação às representações em em vista que incorporam nos indivíduos, sob a torno do estatuto das próprias famílias Ribei- forma de representações coletivas, como já ha- ro e Guilherme no cenário municipal, sobretu- víamos frisado antes, as divisões da própria or- do, como também abordamos, quando se trata- ganização social. va da “origem” da família Ribeiro. Em Roger Chartier o conceito de repre- Fica evidente, a partir da análise das sentações não pode ser dissociado da noção de fontes, a existência de certa disputa entre os prática. Segundo o autor, esta associação, entre partidários dos dois grupos acerca da produ- práticas e representações, permite articular três ção de narrativas como “verdade”. Contudo, tipos de relação dos atores sociais com o mundo: entendemos que as versões conflitantes em tor- no dos temas – poder local, coronelismo, man- Em primeiro lugar, o trabalho de classifi- donismo e clientelismo - estão diretamente re- cação e de delimitação que produz as con-

20 CHARTIER. Op. Cit. p. 17. 21 CHARTIER. Op. Cit. p. 17. 132

figurações intelectuais múltiplas, através sua vontade de possessão e estruturação das re- das quais a realidade é contraditoriamen- presentações e da própria realidade social, os te construída pelos diferentes grupos; se- consumidores comuns reinventam o que lhes é guidamente, as práticas que visam fazer re- imposto. É interessante ressaltar a simetria en- conhecer uma identidade social, uma ma- neira própria de estar no mundo, significar tre Roger Chartier e Michel de Certeau no que simbolicamente um estatuto e uma posição, se refere as noções de controle e uso para um e por fim, as formas institucionalizadas e ob- estratégia e tática para outro. jetivadas graças as quais uns ‘representan- tes’ (instâncias coletivas ou pessoas singu- Ao analisar as práticas dos atores sociais lares) marcam de forma visível e perpetua- na cena política agrestinense em termos de es- da a existência do grupo, da classe ou da co- tratégias e táticas no sentido proposto por Mi- munidade22. chel de Certeau, ou seja, a primeira entendida como “o cálculo das relações de força que se Para Chartier, o recurso e a importância torna possível a partir do momento em que um atribuída à noção de prática, assim como sua sujeito de querer e poder é isolado em um am- 24 associação às representações, se justificam pe- biente”, enquanto que a segunda seria la necessidade de considerar e refletir acerca da irredutibilidade das maneiras de fazer aos dis- um cálculo que não pode contar com um cursos que as prescrevem ou as proscrevem ou, próprio, nem portanto com uma fronteira ainda, as organizam. Ao falar de apropriação que distingue o outro como totalidade visí- vel. A tática só tem por lugar o do outro [...] Roger Chartier assinala: sem cessar, o fraco deve tirar partido de for- ças que lhes são estranhas25. A problemática do “mundo como represen- tação”, moldado através de séries de discur- Porém esta noção de prática, entendi- sos que o apreendem e o estruturam, conduz da como estratégia de dominação e táticas de obrigatoriamente a uma reflexão sobre o resistência, implicam algum tipo de apropria- modo como uma figuração desse tipo pode ção, no sentido proposto por Roger Chartier, ser apropriada pelos leitores dos textos (ou ou seja, como controle e uso. Para exemplifi- 23 das imagens) que dão a ver e pensar o real. car voltemos à questão do clientelismo, esta é uma prática que pôde ser apropriada e usada Na perspectiva do autor, o conceito de tanto como estratégia pelos grupos que dispu- apropriação é entendido ao mesmo tempo co- tam o poder, quanto como tática pelos eleito- mo controle e uso, ou seja, enquanto as auto- res. Neste sentido analisamos as práticas – en- ridades ou os grupos hegemônicos expressam quanto estratégias de poder – tanto do grupo

22 CHARTIER. Op. Cit. p. 23-24. 23 CHARTIER. Op. Cit. p. 23-24. 24 CERTEAU, Michel. A Invenção do Cotidiano: 1. artes de fazer. Petrópolis, RJ: Vozes, 1994. P. 46. 25 CERTEAU. Op. cit. pp. 46-47. 133

Ribeiro como do grupo Guilherme e as práticas derações acerca da aplicabilidade de conceitos – no sentido tático – dos demais atores sociais como coronelismo, cultura política e represen- agrestinenses. No entanto, uma reflexão acerca tações a um objeto de pesquisa específico – a das práticas que têm lugar no campo político, saber, as práticas e representações do poder du- sejam elas estratégias ou táticas, apontam para rante o período de hegemonia do grupo Ribei- a necessidade de relacioná-las às representações ro no município de Agrestina-PE entre o final que lhes servem de matriz. da década de 1940 e o início dos anos 1990 – no entanto, apesar de termos tomado como re- Nesta perspectiva, optamos por analisar, ferência um objeto singular, acreditamos que, sobretudo a partir das contribuições de Roger desta discussão, possamos extrair algumas con- Chartier, as representações que o grupo Ribei- clusões de ordem geral sobre poder local e, es- ro construiu de si e de seu poder, através de suas pecialmente, acerca da possibilidade de inser- estratégias, durante o período em que manteve ção deste tema no campo da história cultural, o controle das instituições políticas agrestinen- já que este foi o eixo norteador das reflexões do ses, assim como a validade atribuída, ou não, pe- presente trabalho. los demais atores sociais a estas representações, pois, como afirma o referido autor, “A autorida- Nesta perspectiva, consideramos o con- de de um poder ou a dominação de um grupo ceito de coronelismo inadequado para a análise depende do crédito outorgado ou recusado às de questões ligadas ao poder local em períodos representações que proponham de si mesmos.”26 anteriores ou posteriores à chamada Primeira República (1889-1930). Isto porque, tomando Por outro lado, além de tentar perceber como referência as contribuições do historiador a forma como se dava a crença partilhada no José Murilo de Carvalho, entendemos corone- poder do grupo Ribeiro e a forma como os ato- lismo como o sistema político predominante no res sociais representavam, de acordo com seus período acima citado. Por outro lado, a insis- pertencimentos e inserções em determinados tência na permanência do coronelismo, em fa- grupos, este poder, procuramos, ainda, com- ses recentes da história do Brasil, implica certo preender a forma como estes atores representa- equivoco, tendo em vista que muitos trabalhos vam o próprio campo político e norteavam suas têm identificado coronelismo com mandonis- práticas, em termos táticos, no contexto de he- mo e clientelismo. Por fim, acreditamos que o gemonia do grupo Ribeiro na cidade Agrestina conceito de coronelismo seja por demais limita- entre o final da década de 1940 e o início dos do para dar conta da complexidade das relações anos 1990. de poder no campo político, tanto em fases re- centes da nossa história como na atualidade. CONSIDERAÇÕES FINAIS Com relação ao conceito de cultura po- lítica, apesar dos debates que ainda ocorrem acerca do seu estatuto e dele não ter se con- A discussão conceitual, realizada no cur- solidado no meio acadêmico, acreditamos que so desse artigo foi estruturada a partir de consi-

26 CHARTIER, Roger. A História ou a Leitura do Tempo. – 2ª Ed. – Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2009. p, 50. 134

possa ser útil, desde que adequado ao objeto BERSTEIN, Serge. Culturas Políticas e Histo- de pesquisa, já que se refere a grupos políticos riografia. In: Orgs. AZEVEDO, Cecília; ROL mais específicos como os comunistas, os libe- rais, etc. Para pensar a relação entre poder po- LEMBERG, Denise; BICALHO, Maria Fernan- lítico e cultura de forma mais ampla, partindo- da Baptista. Cultura Política, Memória e Histo- se do pressuposto de que os traços culturais es- riografia. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2009. tão presentes nas práticas dos diversos grupos BOURDIEU, Pierre. O Poder Simbólico. – 8ª sociais e políticos, embora se altere os usos que Ed. – Rio de Janeiro; Ed. Bertrand Brasil, 2005. se fazem deles a forma como são apropriados, o conceito de cultura política se mostra bastante BURKE, Peter. A escola dos Annales (1929- limitado ou completamente inadequado. 1989): a Revolução Francesa da historiografia. Neste caso, o conceito de representações São Paulo: Fundação Editora da UNESP, 1997. em Roger Chartier, pode ser mais apropriado, tendo em vista que este possibilita a análise da CARVALHO, Jose Murilo. Mandonismo, Co- percepção que os mais diversos grupos e atores ronelismo, Clientelismo: uma discussão concei- sociais têm do campo político e a forma como tual. In. DADOS – Revista de Ciências Sociais, orientam suas práticas em meio às relações de Rio de Janeiro, Vol. 40, n°. 2, 1997. poder nas quais estão inseridos. Dito isto, rei- CAVALCANTE NETO, Faustino Teatino; teramos que é possível a inserção de pesquisas GUEDES, Paulo Henrique Marques de Quei- relacionadas ao poder local no campo da histó- roz; SANTOS NETO, Martinho Guedes dos. ria cultural e consequente a construção de uma Cultura e Poder Político: historiografia, imagi- história cultural do político, mesmo que não se nário social e representações da política na Pa- recorra exclusivamente ao conceito de cultura raíba republicana. João Pessoa: Editora Univer- política. sitária – UFPB, 2012.

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TRAMAS E ARDIS DO JOGO POLÍTICO: ENTRE MICROFONES, CORES E PROMESSAS FUGIDIAS Maria Lucinete Fortunato, Mariana Moreira Neto

RESUMO As relações de poder em municípios do Alto Sertão Paraibano, no que concerne ao exercício do poder político local, têm sido historicamente analisadas como relações “tradicionais” ou de “apadrinhamento” e dominação. Na contemporaneidade, o “poder” tem sido pensado enquanto uma rede de relações entre forças distintas e confli- tantes, a partir do entendimento foucaultiano de que não há relação de poder sem a constituição de um campo de saber. Neste texto defendemos a relevância da problematização da presença ou não dessas relações tradicionais e da existência de continuidades e descontinuidades no quadro atual. No campo discursivo, mudanças de concep- ções, atitudes e procedimentos de agentes tais como os políticos, a mídia, partidos, associações civis organizados, movimentos sociais etc., representam uma interessante trilha para o entendimento de como são (re)significadas as vivências e as concepções sobre poder local. O objetivo deste artigo é contribuir com esse debate, discutindo o caso dos jogos político-eleitorais nas eleições de 2012 no município de Cajazeiras - PB. A discussão será permeada pelo entendimento do poder como um conjunto de relações de forças e estratégias específicas que instituem uma cultura política, questionando até que ponto, nesse contexto, o poder é pensado como extensão de domínios privados, em suas dinâmicas sutis e microscópicas. Palavras Chave: Relações de poder; Poder local, Jogo político.

PLOTS AND TRICKS OF POLITICAL GAME: AMONG MICROPHONES, COLORS AND FLEETING PROMISES ABSTRACT Power relations in the municipalities of sertão of Paraiba State, regarding to the exercise of local political power have historically been considered as traditional “relationships”, “sponsorship” and domination relations. Recently Power has been thought as a relations network among distinct and conflicting forces, inspired in the Foucauldian understanding that there is no relationship of power without the constitution of a correspondent knowledge field. We argue here that is relevant to put in questioning the presence or not of these traditional relations and the exis- tence of continuities and discontinuities in the contemporary scenarios. In the discursive field, changes of concep- tions, attitudes and agents built by actors such as politicians, media, political parties, civil associations, social move- ments etc. represent an interesting track to understand how have been (re) meant the experiences and conceptions of local power. This text aims to contribute to this debate, discussing the political games played at 2012 elections in the municipality of Cajazeiras-PB. In our discussion is pervasive the understanding of power as a set of relationships of forces and specific strategies that establish a political culture, questioning to what extent, in this context, the power is thought as an extension of private domains, taking it into account in its subtle and microscopic dynamics. Key words: Power Relations; Local Power; Political Games

Professora da Universidade Federal de Campina Grande (UFCG). E-mail: [email protected]. Professora da Universidade Federal de Campina Grande (UFCG). E-mail: [email protected].

Raízes, v.33, n.1, jan-jun /2013 137

INTRODUÇÃO de enunciados e visibilidades que se positivam culturalmente.1 Nas investigações acerca do “poder lo- Considerando que, nos municípios da cal” no “Nordeste” brasileiro, de forma recor- região do Alto Sertão Paraibano, as relações de rente, o poder tem sido sinonimizado como poder, no que concerne ao exercício do poder “relações tradicionais” caracterizadas por sua político local, geralmente são analisadas como forma clientelística, hierárquica e institucional. relações “tradicionais” ou de “apadrinhamen- Assim, o “poder” seria tomado como fenôme- to”, problematizar a presença ou não dessas no de dominação homogênea de um indivíduo, chamadas relações tradicionais e a existência de grupo ou classe sobre outros e localizado em continuidades e descontinuidades, hoje, dentro um determinado lugar. (FORTUNATO, 2008). desse quadro, é de fundamental importância. Assim, faz-se mister questionar, no nível do dis- A partir do final do século XX, surgiu curso, como ocorrem as mudanças nos valores uma nova preocupação por parte dos Cientis- e noções veiculados por agentes como: os po- tas Sociais no sentido de produzir análises só- líticos, a mídia etc., no que diz respeito às rela- cio-culturais, por meio de abordagens que pos- ções de poder na nossa contemporaneidade, já sibilitam a adoção de novas perspectivas, no- que o poder não é exercido de forma unilinear, tadamente no que se refere à cultura, como mas se constitui enquanto relação, com respal- as ações e noções subjacentes à vida cotidia- do, interesses e estratégias dos vários agentes na (GEERTZ, 1978); ao imaginário, enquan- envolvidos. to criação incessante e essencialmente indeter- minada de formas e imagens, a partir das quais somente é possível falar de alguma coisa (CAS- 1. PODER LOCAL NO ALTO SERTÃO PA- TORIADIS, 1986); ao poder, enquanto corre- RAIBANO: VELHAS E NOVAS MANEIRAS lação de forças, relação contínua (FOUCAULT, DE VIVER A POLÍTICA 1989), etc.

Neste sentido, o “poder” passa a ser O exercício de poder local, sobretudo pensado enquanto uma rede de relações, de en- no Nordeste, tem sido pensado, majoritaria- trelaçamentos entre forças distintas e conflitan- mente, por meio da análise da perpetuação de tes, a partir do entendimento de que não há re- relações econômicas e de denominação políti- lação de poder sem a constituição de um campo ca, através da ideia de poder como dispositivo de saber. Todo saber, por sua vez, institui novas que estaria acima das classes sociais tendo co- relações de poder e, como tal, não pode ser ca- mo eixo principal a institucionalização e ação racterizado como neutro, mas como dispositivo do Estado2. Assim, o poder é visto enquanto

1 Cf. FOUCAULT, 1989, p. 171. 2 O Estado, segundo essa visão, seria uma instituição neutra ou autônoma, faria parte das estratégias de defesa dos interesses da “classe dominante” e de apaziguamento dos conflitos sociais de modo a instituir uma visão do mundo visando determinados inte- resses e estratégias para consolidá-la em sua defesa de forma universalizante. 138

apropriação e vários são os enunciados que ins- e a “passividade” como verdades apreendidas tituem essa concepção. pela vivência de relações sociais desiguais. Historicamente, um dos principais me- Nessas relações as pessoas ocupam luga- canismos de reprodução da idéia de perpe- res diferenciados, os quais, muitas vezes, apare- tuação de relações “tradicionais” de poder no cem como “destino”, e, embora apontem para Nordeste é a seca. as desigualdades e oposições, para a existência da exploração e da injustiça, se justificam pela O discurso da seca, elaborado no final do concepção de que uns detém um saber que se século passado [século XIX], consegue car- pretende superior aos outros. rear para o ‘Nordeste’ investimento por par- Outro enunciado importante para ca- te do Estado, notadamente no período das secas, que irão beneficiar as terras dos gran- racterizar as relações de poder no Nordeste é des proprietários (...) Além de atingir obje- a família. As relações no interior da família são tivos de cunho econômico, o discurso da se- pensadas enfatizando-a como instituição hie- ca serve como pano de fundo ideológico pa- rárquica. Mas, apesar de haver uma definição ra o estabelecimento de uma nova hegemo- hierárquica de papéis, ela se define por uma re- nia na ‘região’, a medida que cria uma nova lação de sociabilidade também vista como “na- coesão social, ou uma nova imagem do gru- tural”, que pressupõe unidade e interesses co- po dominante para os dominados, mascara as verdadeiras intenções destes dominantes muns. A união no seio da família é tida como (ALBUQUERQUE JR., 1985, p. 76). núcleo central de sociabilidade e perspectiva de consolidação de poder. Assim, a seca, elemento constitutivo do Contudo, na nossa contemporaneidade, espaço nordestino como “natural”, constante e essa compreensão também vem sendo redefi- ameaçador, pelo fato de desorganizar a nature- nida. Novos dizeres, sobretudo sobre o sertão, za, é vista como eterna, e diante dela o homem começam a ganhar visibilidade, por meio da se vê como ser impotente. O discurso veiculado ideia de convivência com o Semiárido, e a con- a partir da temática da seca é construído a fim figurar como ilegítimo tudo o que traz a mar- de legitimar as diferenças sociais e fortalecer o ca da seca e tudo que a ela se associa como: a exercício efetivo do poder por parte dos cha- fome, o degredo, a miséria, a desterritorializa- mados “políticos locais tradicionais”. Institui- ção, subordinação política e sócio-cultural, etc. se, então, um saber, através do qual toda a de- desconsiderando que, historicamente, a seca foi sorganização da natureza e todos os problemas instituída como o principal enunciado para ca- sociais que são frutos de implicações surgidas racterizar e definir o Nordeste, sobretudo, a re- social, cultural e politicamente aparecem como gião do Semiárido. sendo causados pela seca e não por fatores vin- culados as transformações econômicas e sócio- Nesse contexto, às famílias desem-pe- culturais. Tenta-se passar a ideia de que tudo nham posição principal na montagem da tecno- pode quem tudo tem, ou seja, a realidade surge logia de captação da água da chuva, passando como já dada, naturalizando a “subordinação” a vivenciar uma ordem específica de relações 139 de poder assentadas na partilha e no sentimen- concepções de mundo, sejam aceitos e reprodu- to de comunidade e que se traduz nas inúmeras zidos procederes e comportamentos. (MOREI- modalidades de fundos rotativos3 criados e ad- RA NETO, 2010). ministrados pela comunidade para o gerencia- Em suma, a família, enquanto força estra- mento e propagação de táticas de convivência, tégica nas relações de poder, não mais é vista co- 4 a exemplo das cisternas de placas , dos bancos mo modelo a ser reproduzido. De modelo passa a comunitários de sementes5 etc.. No discurso da convivência, as tecnologias devem ser experi- mentadas, apreciadas e reconhecidas no âmbito (...) segmento privilegiado porque, quando da agricultura familiar, como formas de superar se quiser obter alguma coisa da população a semiaridez e de produzir possibilidade de vi- quanto ao comportamento sexual, quanto vência digna na região. à demografia, ao número de filhos, quanto ao consumo, é pela família que se terá efe- Embora ainda se constitua a principal tivamente de passar. Mas, de modelo, a fa- modalidade de composição social, a família já mília vai se tornar instrumento privilegiado não se apresenta como uma instituição que con- para o governo das populações e não mo- delo quimérico para o bom governo (Fou- solida e legitima relações sociais e políticas de- cault, 2008, p. 139). siguais. A importância da família como foco de atenção e de atuação do discurso da convivên- cia representa a possibilidade de que, através de “Outros mecanismos que fazem parte da um processo educativo informal, sinonimizado legitimação do poder local e que deixam cla- e experienciado em oficinas, capacitações, vi- ro como essa legitimação ocorre de forma rela- sitas de intercâmbio e inúmeras outras moda- cional são os laços de vizinhança e a considera- lidades que se apresentam fartas nas experiên- ção”. (Fortunato, 1993, p. 33). cias das entidades que trabalham com a pro- No que diz respeito aos laços de vizi- posta da convivência, sejam transformadas em nhança, a ideia da convivência preconiza novas

3 Os fundos rotativos são uma espécie de poupança coletiva, comunitária. Os recursos poupados são aplicados em obras de infra -estrutura e projetos de geração de trabalho, renda e inclusão social na própria comunidade, especialmente as situadas no Semiári- do Brasileiro. São fundos mantidos por entidades da sociedade civil ou organizações comunitárias, e destinados ao apoio de pro- jetos associativos e comunitários de produção de bens e serviços. Por meio dos fundos rotativos solidários, investem-se recursos na comunidade, através de empréstimos com prazos e reembolsos mais flexíveis e mais adaptados às condições socioeconômicas das famílias beneficiadas nos projetos. 4 Cisterna de placa são as famosas cisternas de captação de água de chuva, que recolhem a água dos telhados, conduzindo-a dire- tamente para o reservatório, sem deixá-la cair no chão. Tem a finalidade de oferecer, durante as estiagens, água de qualidade pa- ra o consumo humano e para o preparo dos alimentos. Hermeticamente fechadas, não permitem a entrada da luz; assim, também não permitem a multiplicação de algas e outros elementos vivos. A água fica preservada. As cisternas de placas são tanques cons- truídos sob os oitões das casas a partir de placas de concreto e onde é armazenada a água da chuva coletada dos telhados. Cada cisterna armazena em média 16 mil litros de água. 5 Os bancos comunitários de sementes (BCS) se constituem em espaços coletivos organizados pelos agricultores familiares onde são armazenadas as sementes que, anualmente, a cada início da estação chuvosa, são distribuídas com os agricultores para o cul- tivo das lavouras. Além de preservarem sementes de variedades nativas ou já adaptadas as condições de clima e solo do Semiári- do, os bancos de sementes são considerados, sobretudo, pelos que comungam da proposta de convivência, como espaço impor- tante de discussão política sobre preservação do solo, conservação da caatinga, uso de fertilizantes e defensivos naturais, utiliza- ção de recursos hídricos. 140

formas de sociabilidade que podem ser conside- nhecido por aquilo que ele é: uma das ex- radas opcionais, uma vez que, apesar da apro- tremamente numerosas reaparições do de- ximação pelo espaço físico, essa aproximação licado ajustamento entre o poder político exercido sobre sujeitos civis e o poder pas- não se constrói no interior de um mesmo espa- toral que se exerce sobre indivíduos vivos. ço. Daí a necessidade de união surgir da amiza- (Foucault, 2006, p. 366). de entre um vizinho e outro.

Vivendo em condições precárias a ami- A partir dessa compreensão, pensar as zade e a troca de favores, no sertão nordesti- relações de poder no Alto Sertão Paraibano, no são vistas enquanto elementos imprescindí- na nossa contemporaneidade, considerando o veis. Como estratégias de sobrevivência e for- exercício efetivo do poder local e as diversas mas de proporcionar o aumento da capacidade estratégias de resistência frente às mudanças e/ de enfrentamento cotidiano nas relações sociais ou permanências de tais relações, nos remete à e de poder. É como se no vizinho se configuras- problematização dos rituais da política na refe- se uma extensão da família. rida região. É neste sentido que se torna impor- A consideração, por sua vez, é caracteri- tante apreender os enunciados que se mantém zada como reposta a benefícios recebidos, co- válidos até hoje para se pensar as relações de mo uma troca, um dever moral que se edifica poder no sertão, como e até que ponto o poder pela reciprocidade. Assim, o “poder” surge co- é relacionado com os momentos institucionais mo uma relação e implica um contra-poder, de e não institucionais e as contradições que neste tal modo que as relações de poder não se ca- sentido se apresentam. racterizam apenas como subordinação de uns e domínios de outros; elas envolvem amizade, compadrio, aliança, sedução, etc.6 2. RELAÇÕES DE PODER, MÍDIA E OU- TRAS TÁTICAS DE SEDUÇÃO POLÍTICA A interface das relações familiares e de NO ALTO SERTÃO PARAIBANO vizinhança com o poder político que opera no seio do Estado, configurado como um quadro jurídico de unidade, traz embutidos os princí- Em seu sentido amplo a palavra governo pios de um desenvolvimento sustentável, a par- tem sido usada para designar o poder do Esta- tir de várias matizes – política, econômica, so- do e a pessoa que o exerce configurando-se co- cial, ambiental, cultural, étnica – e sugere o mo um lugar distante onde se exerce o poder e/ amálgama entre poder político e poder pasto- ou como a pessoa que exerce o poder. Assim, ral. Tal poder pastoral evidencia não apenas o governo significa instância máxima de poder, e, como tal, tem a responsabilidade de assegu- rar a ordem social7 e costuma designar o poder as necessidades ou as novas técnicas de go- verno do mundo atual. Ele deve ser reco- do Estado. Neste sentido, o governo é consi-

6 Cf. FOUCAULT, 1989. p. 186. 7 Cf. CALDEIRA, 1984. 141 derado a instância capaz de resolver os proble- apresentação dos candidatos à sociedade e se mas sociais, aquele que tem condição de mu- completam através da campanha política. Mas, dar a vida dos cidadãos através de políticas pú- a própria campanha política, segundo os estu- blicas que redimensionem a qualidade de vida diosos do poder9, se apoia nos benefícios pú- das pessoas. Por outro lado, pode-se considerar blicos oferecidos pelos políticos locais, que ad- que a ideia de governo se relaciona a um jogo vém das camadas altas da sociedade e chegam a de forças ajudando a compor o quadro das de- tal posição através do sistema de parentela, das sigualdades sociais através de alianças e favore- suas próprias condições econômicas e/ou da sua cimentos interessados. relação com as esferas governamentais do po- O governo aparece também como po- der Estadual e Federal. (FORTUNATO, 2008). der personalizado8. Nesse caso há uma percep- Até a década de 1980, pode-se a firmar que, ção de que o poder tem dono, e é a pessoa que ocupa a posição de governo que tem o poder O sucesso de uma campanha eleitoral de- de se posicionar como uma força neutra ou de pendia, em boa medida, do contato direto defender os interesses de alguns, acentuando a do candidato com os eleitores. Isso era fei- desigualdade social. É dela que se espera a so- to através de inúmeras e constantes viagens, lução dos problemas de todos e é a ela que se visitas e comícios em centenas de cidades do país. Como o candidato dependia de su- atribui obrigações determinadas juridicamente. porte local nas cidades a serem visitadas, a Essa visão tem se evidenciado nos jogos políti- organização e a estrutura partidárias torna- cos, sobretudo, como forma de potencializar as vam-se de importância fundamental. Outro campanhas eleitorais. recurso eram as viagens e visitas de corre- ligionários políticos. Os partidos/coligações As campanhas eleitorais se apresentam partidárias e as demais organizações polí- como momentos significativos de expressão das ticas exerciam a função de mediadores en- relações de poder. As eleições possibilitam uma tre o candidato e os eleitores. Além disso, maior visibilidade do confronto entre os gru- constituíam-se, para o eleitor, em fonte pri- pos políticos locais e destes com os outros seg- meira de informações sobre o candidato e mentos sociais, colocando frente a frente, for- seu programa de governo. Era através des- ças distintas e antagônicas, cada qual defenden- sas instituições e da distribuição de cartazes, faixas, medalhas, distintivos, santinhos, etc. do à sua maneira, os seus interesses. Isso por- que os candidatos buscavam definir a agen- que o processo eleitoral implica uma seleção, da da campanha e construir a sua imagem no seio da qual determinadas pessoas serão au- junto aos eleitores. (Lima, 2004, p. 53) torizadas por toda sociedade a “governar” ou “administrar” os bens e interesses públicos. Mas, se antes, nas eleições, quem inter- Esse processo, por sua vez, se compõe mediava o voto eram os patrões e os eleitores de determinados rituais, que se iniciam com a votavam por “consideração”, em políticos que

8 Cf. FAORO, 1979; 1977. 9 Cf. QUEIROZ, 1977; LEAL, 1978; SÁ, 1974. 142

visavam ter status, na atualidade, o voto se tor- Assim, nos processos eleitorais que se nou uma mercadoria devido ao fato de que a realizaram a partir das duas últimas décadas do política se tornou um emprego, um ganho, e, século XX, a mídia passa a ser objeto de dispu- como tal, exige uma relação político-eleitor di- ta de diferentes atores e campos políticos, uma ferenciada. Nessa “nova” relação os investi- vez que em sua centralidade a política é cons- mentos a serem feitos para assegurar o sucesso truída simbolicamente, adquire um significado eleitoral passam pela compra do voto, pelo es- (LIMA, 2004). petáculo dos shows, pela propaganda e pela se- No sertão paraibano, por exemplo, um dução. À medida que a política se mercantiliza, dos rituais da política é viabilizado pelas emis- os eleitores passam a encarar o voto como uma soras de rádio que exercitam a função de ca- propriedade, como uma mercadoria e desesta- nalizadoras das demandas populares através de biliza-se o vínculo de “compadrio” estabeleci- programas comandados por radialistas, muitos do anteriormente. dos quais têm se transformado, com sucesso, No sertão paraibano, no entanto, é pra- em políticos profissionais, a exemplo do radia- ticamente consensual o reconhecimento da his- lista Ivanildo Dunga10, no município de Caja- tórica inexistência de uma tradição partidária zeiras, que exerce mandato de Vereador, ten- consolidada. O exercício da política tem sido do desenvolvido toda a sua campanha política perpassado por relações personalistas, de tal com base na liderança midiática, por ser um dos modo que o processo político tem representa- principais apresentadores do Programa “Rádio do uma disputa entre pessoas (políticos) e não Vivo”, da rádio Alto Piranhas, que se configura entre propostas políticas alternativas (partidos). como espaço de interlocução entre as instâncias A mídia neste cenário, sobretudo as emissoras políticas e as demandas sociais do município. de rádio e os jornais, assume, algumas das tra- Há um ritual de interdependência entre dicionais funções dos partidos: gera e transmi- mídia e governo, já que na política local, as emis- te informações políticas; oferece programas de soras de rádio sobrevivem, sobretudo, de verbas fiscalização de ações governamentais e de críti- publicitárias dos governos estadual e municipais cas ou apologias às políticas públicas, consoli- da região do Alto Sertão e de contratos cele- dando, desse modo, uma preferência pela co- brados com políticos, como: vereadores, prefei- bertura jornalística de candidatos, e não de par- tos, deputados estaduais e federais. Tais contra- tidos políticos e diminuindo, progressivamen- tos asseguram espaço, nesse veiculo de comuni- te, a atuação partidária como canal de articu- cação, para divulgação de suas figuras e ações lação entre a governamentalidade, as políticas políticas e demonstração de que a liderança po- públicas e as demandas sociais. (Wattenberg, lítica conquistada diz respeito à sua capacidade 1991; 1994). de afetar os seus adversários ou se sobressaírem

10 Nas eleições de 2012, além do radialista Ivanildo Dunga Gonçalves, o radialista e advogado Adjamilton Pereira de Araújo, um dos principais apresentadores do Programa ‘Boca Quente’, da Difusora Rádio Cajazeiras, considerando um dos maiores líderes de audiência da região, foi candidato a vice-prefeito na chapa de Carlos Rafael. O também advogado e radialista Antonio Wilson La- cerda, conhecido por Wilson Furtado, outro apresentador titular do Programa ‘Boca Quente’, foi eleito para o quinto mandato de vereador no município de Bonito de Santa Fé, na região do Alto Sertão Paraibano. 143 diante da opinião pública. Tanto é assim que as rem as disputas na prática política eleitoral; es- redefinições no campo da política não surgem, quecendo-se do fato de que o poder passa, tam- nesses discursos, como redefinições das relações bém, pelo assentimento ou reação dos “domi- de poder, e, sim, como redefinições que estão li- nados”. Ou seja, que “O campo da política tem gadas meramente às características pessoais dos como uma de suas regras a disputa e convivên- líderes políticos e à forma através da qual eles cia entre as partes contrárias no palco das elei- gerem a administração municipal. ções”11. E, nesse sentido, esquece-se de consi- Essa questão nos remete, ainda que indi- derar que no referido campo as eleições são retamente, a outro patamar, que é o da relação apenas um momento de maior visibilidade do entre os políticos locais e os demais segmentos confronto, que se define entre forças distintas e sociais. Percebemos que as estratégias dos polí- antagônicas, as quais ditam, cada qual à sua ma- ticos locais, sobretudo as que se dão via mídia, neira, as regras do jogo. ocultam toda uma gama de relações que se rea- Trabalhando com diferentes momentos lizam nos espaços e instituições locais onde se dos rituais que compõem ou informam a polí- exerce o poder, servindo de fundamento para o tica local no município de Cajazeiras – PB, po- fortalecimento dos laços de poder e impossibi- de-se apreender como se apresenta a correla- litando uma maior visibilidade do confronto e ção entre as várias forças sociais que se deba- das correlações de forças que se estabelecem no tem nestes momentos privilegiados, em que a cotidiano das relações de poder e das campa- política se apresenta como arma capaz de trans- nhas eleitorais. formar, ou não, determinadas relações, como Nos discursos da mídia, no que concer- algo que possibilita uma inversão social. ne à apologia e/ ou a crítica aos políticos lo- As eleições 2012 no município de Ca- cais, pode-se perceber o ocultamento do con- jazeiras – PB, por exemplo, trouxeram, para a flito entre as diversas forças sociais e até a anu- cena política, novos parâmetros em termos de lação da existência de determinadas forças na campanha e de propaganda políticas. cena política, além de definir-se, enfaticamen- Os principais Candidatos a Prefeito, te, um lugar no poder para cada agente social. Carlos Rafael Medeiros de Souza (PTB), en- Dessa forma, legitima-se apenas o poder políti- tão prefeito e Carlos Antônio Araújo de Oli- co dos “dominantes”. veira (DEM), que ocupou, por dois mandatos Os programas de rádio que possuem um consecutivos, o cargo de prefeito (2001-2008), cunho político no município de Cajazeiras – compartilharam o cenário com Carlos Gilde- PB, por exemplo, quase sempre só fazem uso mar Pontes (PSOL), até as vésperas da eleição, da opinião pública para defenderem os interes- quando o TSE impugnou a candidatura a pre- ses de grupos determinados. Não se tenta en- feito de Carlos Antônio Araújo de Oliveira, lí- tender como os mecanismos de poder e os pro- der em todas as pesquisas de intenções de vo- cessos sociais se correlacionam, ou como ocor- to, com base na “Lei da Ficha Limpa”. A jus-

11 Cf. BARREIRA, 1993. p.141. 144

tiça eleitoral permitiu, de última hora, a can- Não se negou a doar com muita tranquilidade didatura da sua esposa Francisca Denise Albu- o Instituto IJB para a Universidade (...). querque de Oliveira (PSB), como forma de pro- vável substituição do mesmo no caso dele ven- Neste sentido dava-se ênfase as obras cer o pleito. públicas realizadas na sua administração como exemplo de competencia polítca e de legitimi- Assim, a campanha política foi marcada dade para a reeleição. por um contexto de incertezas, uma vez que, o tempo todo, a confirmação ou não da im- Também era evocada a questão das co- pugnação de Carlos Antonio, foi utilizada por memorações de feriados nacionais como benes- seus correligionários e opositores políticos co- ses e concessões viabilizadas pelo prefeito: mo elementos chave do marketing político da Campanha. No cotidiano do processo eleitoral, vis- nz (...) A festa que não havia no dia da cidade. Com muita seriedade fez o Auto de Natal, lumbrou-se uma disputa efervescente, na qual São João e Carnaval tudo é realidade. o jogo político se manifestou por meio de pro- pagandas, “reuniões” públicas, noticiários de emissoras de rádio, impressos e meios ciber- Além disso, as ações executadas em sua néticos, com espetáculos diversos alimentados gestão, possibilitadas via políticas públicas, le- não somente pelos candidatos e correligioná- gitimavam o seu poder de realização pessoal da rios, mas pela população que protagonizou a mesma forma: cena por meio de embates apaixonados expres- sos, inclusive, pelas cores adotadas pelos candi- nz (...) E das estradas rurais fez a recuperação. datos (Carlos Antonio – Verde e Carlos Rafael De poços perfuração teve em vários locais. – vermelho). E nas ações sociais Pro-Jovem é garantia. As músicas da campanha também ex- O PETI a cada dia tem uma ação maior, Morando melhor, jornada da cidadania. pressavam os enunciados que eram utilizados para sensibilizar os eleitores. Na campanha de Carlos Rafael a música chefe enfatizava a admi- Toda essa construção enunciativa era nistração do mesmo: permeada pelo refrão:

nz Eu vou votar pra prefeito eu vou votar, nz Sua administração a população aprova, com Carlos Rafael Cajazeiras vai ganhar. a creche da Vila Nova e também a construção da Praça Coração de Jesus que a gente tem. A Padre Cícero também que já saiu do papel, Já a música de Campanha de Carlos An- porque Carlos Rafael trabalha como ninguém. tônio, também não deixava a desejar, dando o (...) O SAMU com atitude que Cajazeiras ganhou, foi ele quem implantou mostrando grandes virtudes. tom do retorno do político competente, expe- Os postos de saúde também mandou reformar. riente, que vai devolver a esperança ao povo: 145

nz Pra nossa terra voltar a sorrir, Cajazeiras vai reagir. a esperança renovou (...)”. Ou seja, não se evo- Quem não lembra de um tempo feliz que o povo canta- cava a forma de governar, os ganhos políticos e va assim: administrativos que o município usufruiria. (Alô Cajazeiras, a hora da mudança chegou, Dr. Carlos voltou...) A preocupação maior foi a de ironizar (...) É Dr. Carlos, um nome com amor e paixão, os opositores, por meio de um espetáculo que 25 confirme, Cajzeiras em boas mãos. ia dos businaços, às carreatas e se concluiam em Que seja feita a vontade do povo, praça pública na recepção calorosa de “Mãi- Cajazeiras quer ele de novo, 12 quer Dr. Carlos e Júnior Araújo, nha” , ou seja, “Drª Denise”, que vencendo as experiência e ação. eleições majoritárias municipais diante do im- Dr. Carlos fez e fará mais, pedimento legal da candidatura de seu espo- Júnior Araújo é o vice da paz. so, o substituiria no exercício efetivo do poder O 25 tá no coração com amor e paixão. executivo municipal. É 25 oh oh oh. É 25 oh oh oh No palco das eleições, como forma de Dr. Carlos prefeito, institucionalizar a primeira prefeita do municí- é 25 Oh, Dr Carlos voltou, pio e creditar à mesma uma legitimação políti- a esperança renovou, ca, foi publicado um panfleto sob o título “Ca- sou 25 com amor. jazeiras meu amor, Cajazeiras minha paixão”13 cujo discurso se utilizou de uma linguagem ape- Como se pode observar, pelas regras do lativa que contrariou todo um processo históri- marketing eleitoral as músicas são sedutoras, co em que, nos últimos dois séculos, em diver- mas não abrem espaço para propostas políticas sas partes do planeta, mulheres, e homens, es- propositivas, são muito mais competitivas e vi- tão tecendo novas relações e buscando articu- sam exaltar as habilidades e competencias pes- lar diferentes formas de viver, diversas daquela soais dos candidatos como meio de ascensão ao que, milenarmente, pensou o mundo pela pers- exercício do poder. pectiva androcêntrica. É tanto, que na eleição, quando foi con- A eleição de Francisca Denise Albuquer- firmada a vitória de Carlos Antônio, as mani- que de Oliveira também expressou a compreen- festações públicas também se expressavam por são de como as relações de poder são encaradas meio da musicalidade, com chavões do tipo: e vivenciadas como peças que podem ser ma- “nz (...) e tomeee remédioo ... Pra insônia, dor nipuladas ao sabor dos interesses e das conve- de cabeça, dor de cotovelo, dor no juízo , dor niências. Como neste tabuleiro as pessoas e, so- de barriga... e etc - - - Êêê... Dr. Carlos voltou, bretudo, as propostas e programas de governo

12 O tratamento de “Mãinha” para a prefeita Francisca Denise Albuquerque de Oliveira foi amplamente estimulado como estra- tégia eleitoral e revela como as relações políticas e as concepções de poder se misturam e se confundem com relações familiares, traduzindo como o poder é compreendido como uma expressão maternal, de quem vai zelar pelos que lhes são fiéis. 13 O slogan “Cajazeiras meu amor, Cajazeiras minha paixão”, foi a principal peça de marketing eleitoral das duas campanhas em que Carlos Antonio foi eleito prefeito de Cajazeiras e retornou na Campanha de 2012 como principal elemento de aglutinação e de promoção de sua candidatura. Após o impedimento legal, as vésperas da eleição, o slogan foi ‘naturalmente’ transferido como marca característica da candidatura de Francisca Denise Albuquerque de Oliveira (sua esposa.). 146

que representem os interesses e necessidades da debate de propostas e programas de governo população, se diluem e se esgarçam na tessitu- que tenham como objetivo derradeiro, a solu- ra de acordos e conchavos que buscam a per- ção de problemas sociais e o atendimento de petuação de relações personalistas. Dessa for- demandas que se configurem como alternativas ma, o panfleto que circulou no dia anterior a para a construção de melhores condições de vi- eleição e que buscava legitimar o nome de De- da para a população. nise como ‘substituta e herdeira política natu- No debate que foi realizado na Câma- ral’ de Carlos Antonio deixa transparecer co- ra Municipal de Cajazeiras, promovido e trans- mo, nesta trama, a candidata perde a sua auto- mitido pela Difusora Rádio Cajazeiras, as pro- nomia e identidade, convertendo-se numa apa- postas de Carlos Gildemar Pontes e suas colo- gada sombra da figura masculina, que suga sua cações frente aos demais candidatos, que reve- vontade, seu amor próprio, seus sentimentos e, lavam certo cunho político e impessoal, foram dessa forma, lhe usurpa a autonomia. Nestes consideradas pela mídia e pela população como termos, a relevância histórica da primeira mu- as mais viáveis. No entanto, não conseguiram lher eleita prefeita de Cajazeiras é ofuscada pe- dissimular a bipolaridade da campanha. Mui- lo escrito que circulou as vésperas da eleição e tos eleitores afirmavam reconhecer que Carlos que afirma: Gildemar “ganhou” o debate, mas não iam dei- xar de votar num ou noutro candidato, entre os Empresto meu nome nesta eleição para que opositores, pois, se assim o fizessem, estariam eu possa ser, a frente dos destinos de Caja- ajudando a derrubar o melhor dos que tinham zeiras, os olhos, as mãos, a cabeça, a alma e, probabilidades de vencer o pleito. principalmente, o coração de Carlos Anto- nio. (...) É ele que estará, efetivamente, as- Portanto, o que se apresenta como maior sentado na cadeira de prefeito. probabilidade e como resposta inicial as inquie- tações que instigaram essa reflexão é que ain- da é majoritária a compreensão de uma cultu- Palavras que expressam uma concepção ra política que, historicamente, considera a coi- que, ocultando ou negligenciando a participa- sa pública como extensão de domínios priva- ção feminina no mundo público do jogo políti- dos escamoteando a mecânica sutil e microscó- co, considera a mulher mera marionete, inani- pica do poder. mada, fantoche cujos cordéis seguem a vontade da manipulação masculina. Nesse intricado jogo político das elei- CONSIDERAÇÕES FINAIS ções municipais de Cajazeiras a candidatura de Carlos Gildemar Pontes , bem como o envol- Considerando que o poder está relacio- vimento da sociedade civil organizada, através nado a momentos institucionais e não institu- de inúmeras entidades (sindicatos, associações, cionais, e como tal, que não pode ser visto co- conselhos etc.), não ganharam a mesma visibi- mo algo global, nem tão pouco como algo pos- lidade, seja na mídia, seja como espaço para o sível de apropriação, entendemos que, os no- 147 vos canais de comunicação e os novos signos ______. Falas de Astúcia e Angustia: a seca no que alimentaram o jogo político na campanha imaginário nordestino: do problema à solução para prefeito, no município de Cajazeiras – PB, (1887 – 1922). Dissertação de Mestrado em no ano de 2012, serviram como formas de ex- História, Campinas, UNICAMP, 1988. pressão de argumentos que iam da defesa à crí- tica ferrenha dos principais candidatos, tendo BARREIRA, César. Trilhas e Atalhos do Poder – como enunciados de base as suas administra- conflitos sociais no Sertão. Rio de Janeiro, Rio ções públicas e sua (im)probidade. E é a partir Fundo, 1992. desses jogos que é possível descobrir, sob uma BOURDIEU, Pierre. O Poder Simbólico. Rio de aparente naturalidade, as facetas que se elabo- Janeiro, Difel, 1989. ram e movimentam a cena política em nome do poder. BURSZTYN, Marcel. O Poder dos Donos – Pla- É neste sentido que pretendemos apro- nejamento e Clientelismo no Nordeste. 2 ed., fundar esse debate por meio de estudos e pes- Petrópolis, Vozes, 1985. quisas sobre os jogos da política no Alto Ser- tão paraibano, com destaque para os enuncia- CALDEIRA, Tereza Pires do Rio. A Política dos dos discursivos que os instituem e/ou as condi- Outros – o cotidiano dos moradores da perife- ções de possibilidade dos embates, das alianças, ria e o que Pensam do Poder e dos Poderosos. das correlações de forças, das estratégias e as São Paulo, Brasiliense, 1984. táticas de campanha. CARVALHO, Rejane Vasconcelos. A Nova Es- tética do Espetáculo Político. In: XIMENES Te- reza. (Org.). Novos Paradigmas e Realidade Bra- sileira. Belém, UFPA/NAEA, 1993, p. 124-139. Trabalho recebido em 20/09/2012 Aprovado para publicação em 15/12/2012 CASTORÍADIS, Cornelius. A Instituição Ima- ginária da Sociedade. 2. ed., São Paulo, Paz e REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS Terra, 1986.

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FAMÍLIAS, CULTURA POLÍTICA E DOMINAÇÃO NO SEMIÁRIDO NORDESTINO: O CASO DE QUEIMADAS-PB

José Marciano Monteiro

RESUMO No presente artigo apresentamos os resultados do estudo do caso de de Queimadas, município localizado no nor- deste semiárido do Brasil, interior da Paraíba. Partindo de uma perspectiva relacional e histórica buscamos analisar a cultura política local e as práticas de dominação exercidas pela família Ernesto Rêgo, através das estratégias media- das por redes de parentesco, no curso de quatro gerações. A reflexão aqui apresentada problematiza os elementos que propiciaram a continuidade e a reprodução do poder do referido grupo familiar na cidade citada, a partir das seguintes questões: Através de que práticas se instituiu tal dominação? Quais as estratégias implementadas por essa família para conquistar poder no nível local? Constatou-se que as práticas de dominação se estabeleceram através da instituição de redes de dependência entre detentores de maiores e menores quanta de capital econômico.

Palavras-chave: Cultura política; Familismo; Dominação

FAMILIES, POLITICAL CULTURE AND DOMINANCE IN BRAZILIAN NORTHEAST SEMIARID: THE CASE OF QUEIMADAS, PARAIBA STATE

ABSTRACT

In this article we present results of a case study carried out in Queimadas, a small city located at the countryside of Paraiba State, in Northeast of Brazil. From a relational and historical perspective, we analyze the local politi- cal culture and the domination exerted by the Family Ernesto Rêgo, through the use of strategies mediated by the establishing of kinship networks for more than four generations. The reflections we present here put into question- ing which elements propriciate the continuity and reproduction of the power of the referred familiar group in the cited city, from the following questions: Through which practices was established such dominance? Through which ways this Family conquer dominance in the local level government? We argue that this domination was established through the institution of dependence networks among holders of bigger and smaller quanta of economic capital.

Key words: Political culture; Families Political Domination

Doutorando em Ciências Sociais (PPGCS/UFCG). Professor da Universidade Federal de Campina Grande. E-mail: [email protected]

Raízes, v.33, n.1, jan-jun /2013 150

INTRODUÇÃO: O ESPAÇO LOCAL CONS- çais? Eram exatamente os despossuídos de um TRUÍDO PELAS RELAÇÕES DE PODER: quantum maior de capital, aqueles que presta- O CASO DA CIDADE DE QUEIMADAS NO vam serviços aos donos das fazendas que exis- NORDESTE BRASILEIRO tentes no município estes os que tinham acesso às instituições e aos bens públicos. José Adilson Filho, em seu livro “A cida- Dessa forma, uma das formas de ex- de atravessada: velhos e novos cenários na polí- pressar o discurso historiográfico, por meio do tica belojardinense”, abre o Capítulo II – “A Ci- imaginário local, é que foi a partir das “queima- dade do Progresso: Mitos e Emblemas”, com a das” que se originou o município. E, posterior- seguinte narrativa: “toda cidade é um fenôme- mente, contraditoriamente, os que serão relem- no socialmente construído que se materializa brados como fundadores deste município são em maneiras e estilos de vida que são ao mes- os responsáveis por emancipá-lo diante da or- mo tempo marcados por certa universalidade e dem jurídica. Os membros da elite política local particularidade histórico -espacial” (Adilson Fi- que tinham acesso à esfera estatal. lho, 2009, p. 87). A trajetória do município de Queimadas A cidade de Queimadas1 não seria dife- é marcada por uma história de dominação po- rente. Foi construída socialmente a partir das lítica econômica, cultural e territorial. O espa- ações e relações de poder constituídas pelos ço fora ocupado por diversos agentes, cabendo que neste espaço a habitavam. Ou seja, o espa- aos agentes das famílias tradicionais o domínio ço é construído conforme as práticas que nele sobre as melhores terras, os melhores espaços são desenvolvidas. físicos territoriais. Logo, este espaço físico- ter- ritorial foi construído a partir de um espaço na Quando se pergunta a um munícipe ordem do poder. Motivo pelo qual quando se queimadense sobre a história e a fundação do fala em Queimadas, são reconhecidamente, re- município, muitos remeterão a narrativa que, lembrados aqueles que a dominaram politica- o Município de Queimadas teve origem a partir mente, mas não se faz menção aos processos e do momento em que diversas pessoas passaram práticas de dominação por estes exercidas e co- a realizar “queimadas”, ou seja queimar o “aga- mo esta se construiu, passa-se, despercebidos os ve”, o “sisal”, que por lá existia. mecanismos de dominação, naturalizando-os. Mas quem foram essas pessoas que tra- As famílias caracterizadas como tradi- balhavam queimando o sisal? Quais eram os tra- cionais no município são aquelas que possuíam balhadores que vivenciaram as atividades bra- as melhores terras. São às que exerciam o do-

1 O município de Queimadas situa-se no agreste paraibano, a 133 km da capital João Pessoa, e a 19 km de Campina Grande. O povoamento de Queimadas iniciou-se por volta do ano de 1889, quando chegaram à região as primeiras famílias: Maia, Muniz, Tavares, Gomes e, posteriormente, em 1930, a família Ernesto-Rêgo. Foi distrito de Campina Grande – maior cidade do interior paraibano e segunda maior cidade interiorana do nordeste – até quando foi emancipada política e juridicamente através da lei nº 2.622, de 14 de dezembro de 1961, de autoria do então deputado estadual Antônio Vital do Rêgo. 151 mínio sobre uma quantidade maior de traba- 1. RELAÇÕES DE COMPADRIO, FAVORES lhadores atuando em suas terras; em uma de- E DOMINAÇÃO: O FAZER POLÍTICO EX- terminada época, queimando o sisal, e em ou- PRESSO POR UMA LIDERANÇA LOCAL tra plantando e colhendo o algodão, o milho e o feijão. É do tronco dessas famílias que exerce- No início da década de 60 o Brasil pas- ram domínio e poder, sobre as relações de tra- sava por transformações políticas que reper- balho local, que se configura, historicamente a cutiriam em todas as esferas. Nesta década foi “possível nobreza”, que assumirá o poder do deflagrado o Golpe Militar, este que perdura- município por mais de quatro gerações. rá até a primeira metade da década de 80, pe- E não foi por mero acaso ou por obser- ríodo em que foram constituídos legalmente e vância da lei divina que estas famílias domina- institucionalizado o bipartidarismo, através da ram política, econômica, espacial e cultural- Aliança Renovadora Nacional – ARENA e Mo- mente o município de Queimadas, mas através vimento Democrático Brasileiro – MDB. O pri- de suas práticas desenvolvidas no interior de meiro, entendido como partido situacionista, um espaço social construído desigualmente por mantém a maioria no congresso nacional, bem elementos de diferenciação, tais como família, como em todas as regiões do país, e o segundo terra, poder econômico, político e cultural. sobreviventes do processo de cassação, se tor- Os filhos das famílias tradicionais, em nam oposicionista ao regime militar2. sua grande maioria, saiam para estudar nos Essa dinâmica de domínio político por grandes centros e voltavam para o exercício de parte dos militares ocupando a maioria das ca- cargos públicos locais como “Doutores”, mais deiras no Senado e na Câmera Federal, conse- acúmulo de capital simbólico, o que permitiu guindo eleger a maioria dos representantes na o exercício legítimo da dominação política lo- Câmara e no Senado, perdurou durante todo o cal, como sendo aqueles mais preparados para regime. Para tanto, vale destacar que em termos o ofício da governança local. Possuiam, quan- de Nordeste, no final dos anos 70, os situacio- do não os dois, um ou outro capital distintivo e nistas apresentaram-se, ainda, com uma repre- diferenciador das sociedades modernas, o capi- sentatividade extraordinária, ou seja, “a maio- tal cultural e o capital econômico, como salien- ria da ARENA no Congresso Nacional foi ob- ta Bourdieu. tida no Nordeste, garantindo, segundo alguns, a estabilidade do regime (...) O partido do Go- verno preencheu 08 (oito) as 09 (nove) vagas senatoriais em disputa e elegeu 92 (noventa e

2 Em termos de representatividade no Senado Federal, com esta reforma partidária, que o regime militar realiza do pluripartida- rismo para o bipartidarismo, a situação consegue, através da ARENA, obter uma representatividade de 69,2 %, enquanto que a oposição alcançaria uma representatividade de 30,8 % , o que equivaleria em termos numéricos a 45 Senadores da ARENA e 20 Senadores do MDB, isto a composição do Senado Federal em 1965/1966. (SCHMITT, 2000, p.36). Através desses números já se percebe a disparidade representativa entre ARENA e MDB, e a maneira através da qual o regime militar manteria domínio sobre a situação política. 152

dois) Deputados Federais contra 34 (trinta e além do algodão cuja produção pertencia ao fa- quatro) do MDB, correspondendo, neste caso, zendeiro. O comércio era muito incipiente, ine- a uma diferença de 58 (cinquenta e oito) cadei- xistindo praticamente estabelecimentos comer- ras” 3 (ROLIM, 1979, p. 53). ciais de grande porte. As famílias denominadas tradicionais que aqui residiam e exerciam poder políti- FAVORES E A CONSTITUIÇÃO DA LIDE- co, eram as famílias Barbosa, Gonzaga, Ernes- RANÇA LOCAL to, Rêgo, Maia, Ribeiro e Lucena. Todas essas exerciam domínio sobre as melhores terras do Inserido em um contexto político regio- município e, consequentemente, possuíam as nal que se destaca no município de Queima- grandes extensões de terras. 4 das, como liderança local Carlos Ernesto , ad- Os Ernesto-Rêgo, por exemplo, pos- 5 vindo de uma família tradicional de políticos . suíam mais de 600 hectares de terras, que além Carlos Ernesto é filho de Francisco Ernesto do de serem propícias para o plantio de culturas Rêgo, sobrinho do José Vital Ernesto do Rêgo, como, milho, feijão, fava e algodão, possuíam e primo legítimo do Major Veneziano, este que grandes reservatórios de água que, em períodos exerceu grande influência política no municí- de seca, serviam a população carente. Soma-se pio de Queimadas até o início dos anos 60. a isso, o gado que estas famílias criavam e des- Na década de 60 no município de Quei- tes tiravam o leite para ser vendido na cidade madas6 a economia local se concentrava na em vizinha e pólo comercial – Campina Grande. torno da agricultura e, de modo bastante tími- Associava-se a essas formas de expressão do nos poucos empregos que o poder públi- do poder outras práticas costumeiras na região, co local produzia. A maior parte da população o fazendeiro garantir, por dia, um litro de leite vivia na zona rural e sobrevivia da lavoura de aos seus afilhados. Em virtude dessa relação de subsistência, principalmente o milho e o feijão, troca era comum as famílias mais carentes, atri-

3 Estes dados permitem afirmar o controle político que o regime militar mantinha sobre a maioria das lideranças do Nordeste e não será diferente com a Paraíba. Nas eleições municipais de 1972 e 1976, para se ter um exemplo, verificou-se que a ARENA ele- geu a maioria esmagadora dos Prefeitos e Vereadores em todos os Estados, o MDB elegera, em todo o Brasil, 463 Prefeitos, en- quanto que a ARENA com os prefeitos nomeados somava-se 3.484. No Nordeste seguia-se o mesmo ritmo, em termos de maioria, a ARENA obteve 1.229 prefeituras e o MDB 145. Embora, à época, a Paraíba se destacasse por possuir 36 prefeituras governadas pelo MDB dos 171 municípios, vê-se que a maioria estava sob o controle dos partidaristas da ARENA. (Rolim, 1979) 4 Liderança do município de Queimadas da década de 1960 até o final da década de 1980, apresenta algumas características interessantes para se compreender as relações sociais, os laços e o elo moral que caracterizavam o habitus político do município. Ele serviu ao exército brasileiro, em meados do período da segunda grande Guerra Mundial, na cidade de Recife, chegando, as- sim, a receber a patente de Tenente. Foi também Secretário de Agricultura no Governo de Severino Cabral, no Município de Cam- pina Grande e em Queimadas nunca quis ocupar cargos políticos, porém indicou ao poder Executivo local quatro nomes e os fez prefeito, são eles: José Ribeiro, Leonardo Honório, Sebastião de Paula Rêgo e Saulo Leal Ernesto de Melo. 5 Ver, em anexo, a árvore genealógica da família Ernesto-Rêgo da qual Carlos Ernesto advêm. 6 Ver os dados da dissertação “Agricultura Familiar no município de Queimadas, PB: Forma de organização, desafios e perspecti- va” de Antônia Maria da Silva (2001, p. 61), apresentada à Coordenação do curso de Mestrado em Economia Rural, da Universi- dade Federal da Paraíba, em 27 de Abril de 2001. 153 buir um dos seus filhos como afilhados de uma município, os pais “davam” para que Carlos Er- dessas famílias tradicionais, visto que além da nesto fosse, juntamente com Maria Leal, seus “proteção” e “segurança”, o leite da criança já padrinhos, durante a pesquisa de campo iden- esta ria garantido. tificamos muitos desses afilhados. Em suas nar- Geralmente essas famílias carentes, das rativas algumas pessoas afirmaram ter orgulho quais eram a grande maioria da população no e se sentirem agradecidas aos seus pais por te- município, em épocas de seca, como já men- rem concedido que se tornassem afilhadas de cionado, dependia das famílias tradicionais em Carlos Ernesto. Afirmam, esses entrevistados – relação aos reservatórios de água. Bem como, que em sua grande maioria são pessoas pobres trabalhavam na agricultura cultivando as ter- – que Carlos Ernesto era como um pai, uma vez ras dessas famílias tradicionais locais. Trabalha- que tudo que precisava ele “ajudava”. É nesse vam como meeiros, vaqueiros, cultivando o al- sentido, que as palavras do senhor João Vitori- godão, o milho e o feijão, em período de plan- no, um dos entrevistados, reafirma o exercício tação, e em período de colheita, colhendo es- de dominação exercido por Carlos Ernesto, ao tas culturas. Na seca, exerciam atividades atra- reafirma que “o que ele dizia, podia confiar”: vés do corte da lenha, da palma, do capim, e de alimentos em geral para o gado. Nesse sen- uma pessoa que resolvia qualquer proble- tido, criava-se toda uma relação de dependên- ma no município, problema de ordem in- cia para com estas famílias tradicionais as quais clusive muito particular, a exemplo de bri- em troca garantiria a “segurança”, a “proteção” gas entre casais, entre outros colocados pe- e o básico para a sobrevivência de todo o gru- la sociedade de Queimadas, quando não da- va mesmo para resolver ele avisava anteci- po familiar. padamente à pessoa. A palavra de seu Car- Nesse contexto permeado por relações los valia tudo, pois o que ele dizia, podia sociais de favores e relações de dependência, confiar. Carlos Ernesto foi uma liderança que se constitui socialmente a liderança políti- em todos os aspectos, não gostava de par- ticipar de governo, nem tampouco subir ao ca de Carlos Ernesto, este que exercera grande palco para pedir votos, gostava de ficar en- influência, a partir da metade da década de 60 tre o povo, conversando com seus compa- até o início da década de oitenta, através de um dres, e o que prometia, cumpria. (Entrevis- modo peculiar de fazer política. ta com João Vitorino Silva, em 27 de maio de 2006).

2. RELAÇÕES DE COMPADRIO E DOMI- Os que pertenciam a este sistema de apa- NAÇÃO drinhamento, compadres e afilhados, os que o seguiam e, sobretudo, respeitavam as suas “pa- lavras de ordem”, ou seja, que obedeciam as Segundo uma de suas filhas, Tereza Leal, suas determinações para resolução de proble- Carlos Ernesto teve muito mais de 300 (trezen- mas do tipo, as brigas entre casais, segundo os tos) afilhados, as crianças quando nasciam no informantes, não era Carlos Ernesto, que esta- 154

va resolvendo determinado problema, mas “o destas relações observa-se que os processos de Tenente Carlos Ernesto”, filho de “Francisco dominação se farão mais presentes. É nesta re- Ernesto” que, por sua vez é da família do Coro- lação do “dando” que se “recebe”, movido pe- nel Chico Heráclio”, ou seja, fica evidenciado las trocas de interesses, que, na maioria das ve- a árvore de poder, justificando os elementos de zes, não são racionalmente calculadas, mas sim distinção que reafirma a liderança de Carlos Er- tomadas e guiadas pelo senso prático dos agen- nesto no município de Queimadas, estabelecida tes, que se constroem relações de dependência por capitais simbólicos que vão se acumulando e, consequentemente, de dominação. no decorrer de sua própria história social. O compadrio, por assim dizer, assume Há um processo de dominação, pauta- uma característica fundamental, qual seja a ca- do na tradição familiar e associado a sua ima- racterística de ser um ritual7 , no qual a esco- gem. Agrega-se a essa imagem a patente de “te- lha dos padrinhos para os filhos estava respal- nente”, representante do poder militar, e é es- dada em critérios como, credibilidade (con- te poder que no período histórico compreen- fiança), respeito (admiração), segurança (pro- dido, entre 1960 e 1984 que está sendo exer- teção). O ritual, portanto, de “dar” os filhos cido e reconhecido, portanto, legitimado, nes- para que Carlos Ernesto e Maria Leal8 fossem te país. E não seria diferente uma vez que a li- padrinhos caracterizava-se por ações simbólicas derança política local comunga da cartilha po- manifestas por emblemas sensíveis e materiais. lítica da ARENA, que embora não seja candi- Possui toda uma função estratégica, visto que dato para disputar o cargo executivo local, é a credibilidade – confiança está no fato, como quem indica os nomes, dentre os quais se des- já mencionado, de Carlos Ernesto ser um “ho- tacarão nos pleitos ocorridos em 1980, 1990 e mem de palavra”, o que “dizia cumpria”, e isto 2004, Sebastião de Paula Rêgo e Saulo Ernesto, lhe conferia respeito, pois o espaço da política este último primo do primeiro e filho de Car- nem sempre é o espaço da “palavra cumprida”, los Ernesto, considerado o seu herdeiro políti- porém, é sem dúvida, da “palavra prometida”. co, e que virá a ser o chefe do executivo local Talvez seja essa a razão pela qual Carlos por duas vezes em 1976 e em 2004. Ernesto tenha sempre se recusado a subir em As relações de compadrio, como já men- um palanque, ao lado dos candidatos que ele cionado, assumem uma importância fundamen- apresentava, preferindo agir nos bastidores do tal na compreensão das relações sociais da fa- poder, exercendo sua liderança política por trás mília Ernesto Rego em Queimadas, a partir do “palco”, posto que é uma atitude totalmen-

7 Como assinala Martine Segalen (2002), “o rito ou ritual é um conjunto de atos formalizados, expressivos, portadores de uma dimensão simbólica. O rito é caracterizado por uma configuração espaço-temporal específica, pelo recurso a uma série de obje- tos, por sistemas de linguagens e comportamentos específicos e por signos emblemáticos cujo sentido codificado constitui um dos bens comuns do grupo”. E, continua a autora, “o ritual faz sentido, visto que ordena a desordem, atribui sentido ao acidental e ao incompreensível, confere aos atores sociais os meios para dominar o mal, o tempo e as relações sociais. Sua essência é misturar o tempo individual e o tempo coletivo. Definido em suas propriedades morfológicas e através de sua eficácia social, os ritos também se caracterizam por ações simbólicas manifestas por emblemas sensíveis, materiais e corporais.” (SEGALEM, 2002:32) 8 Esposa de Carlos Ernesto e irmã de Patrício Leal, este último, médico, muito admirado no município de Queimadas pelos traba- lhos relacionados à saúde que o mesmo exercia na região. Patrício Leal casara-se com a irmã de Carlos Ernesto, Beatriz Ernesto. 155 te estratégica permanecer junto aos compadres, mento de precisão mais do cara é quando tá na mesma condição, de “igual para igual”. É a morrendo de fome ou doente, quem chegar liderança que, embora ocupando uma posição é o primeiro. Seu Carlos cobria tudo de re- médio, de feira. Era todo mundo que adoe- diferente das demais pessoas, dentro da estru- cesse, que precisava de alguma coisa, era tura política e social local, está no mesmo espa- só ir lá. Ele conseguia, fazia de todo o jei- ço compartilhando conversas e saberes do coti- to, mas, dava jeito. Tinha dia que eu tra- diano com os seus compadres e amigos. balhando lá, o dinheiro que ele recebia do leite, ele tirava, tirava do dinheiro do leite Esta era uma entre tantas maneiras que que era dele e ajudava, ajudava a todo mun- o líder adotava para se relacionar com os seus do, o povo que ia atrás. Nunca foi uma pes- “conterrâneos”, demonstrando simplicidade, soa pra dizer assim, voltei sem nada, nun- mas, ao mesmo tempo, exercendo dominação, ca, nunca, até hoje. Morreu, mas a fama fi- visto que as pessoas nestes espaços quase sem- cou que até hoje está por aí, é, e outro que pre “pedem” algo à liderança política local. Te- nem ele não tem mais não. A palavra dele era um tiro, se ele dissesse assim, é assim, é mos, nesse sentido, uma aproximação afeti- assim, pronto, podia escrever, podia escre- va e econômica que se imbricam nas relações ver que era aquilo mesmo, e o pessoal obe- da construção do fazer político local. O estar decia ao conselho que ele dava, sempre pa- próximo é estratégico do ponto de vista políti- ra o bem. Olhe você ia tremendo de raiva, co, haja vista que podia conversar com diferen- vamos dizer assim, você tinha raiva de mim, tes pessoas e analisar, no interior do espaço so- você ia para me pegar com a maior raiva, se cial, como as mesmas estavam se comportando ele encontrasse com você ou mandasse cha- mar você, aí você já vinha rindo para o meu e quais atitudes tomavam quando os candida- lado, você já vinha “olá rapaz tudo bom”. tos, por ele apoiado, estavam discursando, co- Eu vi muitas vezes lá, os cabras ali do Oi- mo atuavam etc. tí, do Balanço, ali da Serralta, quando pega- As relações parentais e os laços de credi- va briga pra lá, corria lá pra seu Carlos. O pessoal não precisava ir para a delegacia, ele bilidade vão sendo construídos na força da pa- mandava só o recado, diga a fulano que ve- lavra, das “ajudas”, dos “favores”, em uma fra- nha aqui, acabavam as encrencas. (Entrevis- se: “do que se promete, faz”. Todas estas ações ta com João Vitorino de Andrade Filho, em trazem consigo uma dimensão simbólica mui- 27 de maio de 2006) to forte posto que imprimem valores que con- duz os agentes a passarem a ter respeito – ad- Esta fala evidencia o tratamento que as miração, levando várias famílias a tomar a lide- pessoas atribuíam e até hoje tem como repre- rança, como exemplo de uma pessoa a ser se- sentação de uma liderança local, conceben- guida, tornando-se, assim, num misto de “pro- do-o como “protetor”, uma liderança sempre tetor dos pobres” e “conciliador de conflitos”: disposta a “ajudar” os mais humildes e os mais necessitados. Este exercício político configu- ra uma prática assistencialista, característica do Porque o povo tinha ele com maior respei- fazer política na região Nordeste. Associa-se a to, ninguém ia na casa dele para voltar com essas ações à prática de empregar diversas pes- as mãos sem nada, tá um doente aqui, o mo- 156

soas nos setores em que exercia influência, ou batismo10 caracteriza-se por isso – mas era tam- seja, no serviço público do Município, bem co- bém e, sobretudo, ter “conforto material”, se- mo nos estabelecimentos públicos do Estado. gurança, sentir-se protegido. Esta noção fica O que nos conduz a afirmar que, associado ao ressaltada, de maneira nítida, nas palavras de assistencialismo, registra-se também a prática uma de suas afilhadas: do clientelismo e empreguismo, as quais vão se constituindo como uma rede de relações legíti- mas e reconhecíveis que vão moldando, junta- eu gostava muito dele, é... para mim é mes- mente com as relações de compadrio, o exercí- mo que ser meu pai. Maravilhoso ele, muito bom , para mim e para todo mundo, qual- cio da dominação através dos laços de depen- quer coisa que o povo queria era com ele. lá dência. e ia ser muito bem recebido, do jeito que ele É daí que se constroem os laços senti- recebia um rico recebia um pobre, do mes- mentais e pragmáticos que ligam os liderados à mo jeito. Ele não tinha escolha, não tinha distinção, meu padrinho não tin ha esco- liderança e a “dependência política se traduz na lha. E sempre muito educado. Eles dois aí, expressão “eu devo favor”, o que significa uma eu sempre olho muito para eles porque são forma de gratidão, uma dívida cujo preço é a fi- maravilhosos, e agente todinho lá de casa delidade sem limites, mas que pode resultar na ama eles todo. (Entrevista com Albertina de possibilidade constante da humilhação pessoal Souza Andrade, em 27 de maio de 2006). e familiar, (...). Em outros termos, perde mais que ganha, devido aos prejuízos causados pela Esta é uma estratégia fundamental na 9 perda da autonomia” relação de compadrio, fazendo dessas relações Em outra dimensão, o sentido da segu- processos rituais no sentido de que devem ser rança – proteção – as pessoas que escolhiam consideradas “como um conjunto de condutas Carlos Ernesto e Maria Leal para serem padri- individuais ou coletivas relativamente codifica- nhos de seus filhos e, consequentemente, com- das, com suporte corporal (verbal, gestual e de padre e comadre, se devia pelo fato “receber”, postura), caráter repetitivo e forte carga sim- por parte dos compadres proteção, uma vez bólica para atores e testemunhas” (SEGALEN, que ele resolvia qualquer “problema”, seja na 2002, p.32). esfera política, judicial, econômica e, até mes- Além dos padrinhos, a quem os pais mo, nas relações de micro poderes entre as fa- “prometiam” seus filhos, tinha-se também a ma- mílias. “Oferecer” à criança, a Carlos Ernesto e drinha de apresentação e todos aqueles também Maria Leal, era estar atribuindo-lhes não ape- que viam ritualisticamente este ato. Assim, “o nas do ponto de vista do “conforto espiritual” rito é uma linguagem eficaz na medida em que – tendo em vista que o ritual de passagem do

9 ADILSON FILHO, José. A cidade atravessada: velhos e novos cenários na política belojardinense. 10 Conforme Ellen F. Woortmann, “Toda criança, ao ser batizada, ganha um padrinho, um “pai espiritual”, e uma madrinha, “mãe espiritual”, que, como em todas as sociedades de tradição cristã, mantêm com seus afilhados determinadas relações de obri- gações social e ritual”. Essa relação é fundada em um rito de passagem, o batismo, enquanto nascimento simbólico. (Woortmann, 1995, p.285) 157 atua na realidade social, decorrendo daí que o executando tarefas graciosamente, votando em rito não se efetiva de qualquer maneira, preci- seus candidatos, entre outros”11 sando está apoiado em símbolos reconheci- O compadrio além de ritualizar o paren- dos pela coletividade” (Segalen, 2002, p.32). tesco, parte da própria estrutura do parentesco, em outras palavras, como assinala Ellen Woort- No contexto em que Carlos Ernesto se mann (1995), inscreve, três elementos podem ser destacados enquanto símbolos reconhecidos pela coleti- o compadrio não é apenas uma forma de vidade, a saber, à credibilidade (confiança), o ‘parentesco ritual’ ou de ‘parentesco fictí- respeito (admiração) e a segurança (proteção). cio’, isto é de paraparentesco. Ele é parte da Tais elementos são fundamentais para a legiti- própria estrutura de parentesco. (...) consi- mação desta liderança através do exercício de dero o significado do compadrio (...) desta- cando a relação entre padrinhos e afilhados, dominação material e simbólica, uma vez que assim como a relação entre compadrio e no- se por um lado tem-se instituído na cultura lo- meação. (WOORTMANN, 1995, p.285). cal a prática política baseada no assistencialis- mo e no clientelismo, como já mencionado; por outro, tem-se, associado a esta, a prática simbó- Observa-se, com isso, seguindo ainda os lica do batismo, do “dar o filho” como forma passos de Ellen Woortmann que: de reconhecimento legítimo do poder exercido pela liderança. Assim, além dos “favores” que entre padrinho e pai estabelece-se, então, se realizavam no espaço político, propriamen- uma relação de troca, pois a obrigação de te dito, através do assistencialismo e do clien- um tem como contrapartida a obrigação do outro. É preciso lembrar que pelo menos telismo, observava-se também os favores no es- em tese, todo pai é também padrinho, e to- paço religioso. do padrinho é pai. Instaura-se uma relação Dito de outra maneira, o compadrio tem de reciprocidade de obrigação entre pai e outras funções além das espirituais, quais se- padrinho em função de um terceiro termo, o filho/afilhado(a), que no futuro será pai e jam, assegurar socialização das crianças, esta- padrinho. (Woortmann, 1995, p.290) (gri- belecendo laços entre pessoas da mesma clas- fos nossos) se ou de classes sociais diferentes, atendendo às necessidades da família, garantindo trabalho Ellen Woortmann destaca dois tipos de e abrigo, etc. As relações, para tanto, funcio- compadrio, o que se caracterizam por ser “ho- nam da seguinte forma: “na maioria das vezes é rizontal” e “intensivo” no qual os pais convi- o padrinho quem oferece ajuda e proteção aos dam pessoas do mesmo status social para serem afilhados e compadres, mas esses também de- padrinhos dos seus filhos e que residam dentro vem retribuir, trabalhando para ele sem cobrar, do mesmo sítio, do mesmo círculo de parentes; e o outro é o que se caracteriza por ser “verti-

11 RÊGO, André Heráclio. Família e Coronelismo no Brasil: uma história de poder. São Paulo, Girafa Editora, 2008, p. 48 158

cal” e “extensivo” no qual as relações se dão vés de um cálculo racional, mas sim pelo sim- com pessoas de status superior, caracterizado ples fato de estar em jogo, de dar importância a pela patronagem, nesses casos os laços se dão um jogo social. fora do círculo, do sítio, ampliando as redes de Outro informante destaca esta prática solidariedade. local de fazer política pautada nos favores afir- É no modelo de compadrio, “vertical” e mando que: “extensivo”, que se inscreve a liderança aquí in- terpretada, visto que, para a sociedade queima- dense da época, el a tinha status, possuía capi- Carlos era um homem de ação, era um ho- mem de ação. Ele não gostava de duas con- tal simbólico incorporado, posto que pertencia versas. Se ele pudesse te ajudar, estava te a uma “família de tradição”, cujo nome reme- ajudando; se ele não, não podia também te te a uma investidura de poder, associado a is- ajudar. Ele não tinha esse desencontro de to também havia recebido a patente de “Tenen- informação. Se você dissesse “eu preciso”, te Carlos Ernesto”, e as pessoas que “davam”, ele estava ali. Então ele era um homem de “ofereciam” seus filhos para serem afilhados “sim?”, “sim”; e eu creio que também no “não”, “não”, ele também sabia dar e com dele, eram, em quase sua totalidade, pessoas isso fez a diferença – e ainda faz a diferença, exteriores a família Ernesto. hoje tem um nome forte por isso. Era um Desta feita, cresciam às relações de soli- homem íntegro; era um homem que tinha, dariedade, criando através do compadrio, vín- portanto, além da integridade, respeito ao ser que tinha menor condição material do culos alternativos e análogos ao parentesco, es- que ele – e às vezes ele se colocava até no tendia-se à rede de favores, os laços de depen- mesmo nível para resolver o problema dele. dência, e o exercício de dominação material e Por isso ele fez a diferença. (Entrevista com simbólica sobre estes que ficavam devendo “fa- Maurício Xavier, em 18 de Abril de 2008) vores”, é a dádiva, enquanto dívida permanente. A fala deste entrevistado legitima, por as- 3. TROCA DE FAVORES E VIOLÊNCIA SIM- sim dizer, o discurso de que Carlos Ernesto era BÓLICA um homem de “ação”. Ação esta referente ao modo de “fazer ajudas”, de realizar “favores” para os mais humildes, não percebendo, assim, O “fazer favor” está na base da constru- os mecanismos de dominação que estão por traz ção dessas práticas. O “fazer favor” é o alicerce de todas essas formas de realizar ajudas. do “fazer político”, e este, por sua vez, é moe- A prática é vista como formas virtuosas da corrente que se converterá em uma retribui- do agir, não as percebem como maneiras su- ção, o “fazer favor” – é um dar –, portanto, tis de dominação e subserviência por parte dos – está no plano da dádiva, destaca-se que to- que necessitavam. Estes ficam presos a um re- da dádiva já é em si mesma uma dívida – exi- gime político de dominação e de dívidas qua- ge obrigatoriamente, um compromisso moral, se que “eternas”, as quais se reproduzem como uma retribuição. Esta que não se realiza atra- 159 dívidas para serem pagas, preferencialmente e sição do habitus que vem a ser a generosidade principalmente, na forma de votos. Ou seja, as e que tende, sem intenção explícita e expres- relações de favores, as ajudas, se criam num es- sa, à conservação ou aumento do capital sim- paço social específico, com valores construídos bólico12: como o sentido da honra”. (Bourdieu, historicamente por agentes que detêm os capi- 20001a, p. 236). tais simbólicos de notoriedades legitimados. As Os “favores” prestados pelas lideranças, pessoas participam desses “jogos sociais” por ainda é uma prática comum no Município, cujo causa de necessidades que os levam a recorrer a significado é imponderável para a pessoa que lideres que podem “ajudar”. recebe o favor, gerando nesta um sentimento Bourdieu (1996) utiliza a palavra illusio quase “eterno” de gratidão. O dom se exprime que vem da raiz da palavra latina ludus (jogo), na linguagem da obrigação, “que se converte e assim substitui a palavra interesse, visto que em reconhecimento incorporado, em inscrições interesse é “estar em”, participar, admitir que o nos corpos sob forma de paixão, amor, submis- jogo valha a pena ser jogado. Portanto, são, respeito, de uma dívida insolvente e, co- mo se diz, frequentemente eterna” (Bourdieu, os jogos sociais são jogos que se fazem es- quecer como jogos e a illusio é essa rela- 2001a, p. 242) ção encantada com um jogo que é produto É nesse sentido que Bourdieu (2001) nos de uma relação de cumplicidade ontológica chama a atenção para o efeito simbólico dessas entre as estruturas mentais e as estruturas relações, além disso, para o fundamento do po- objetivas do espaço social. Isso é o que que- ro dizer ao falar de interesse: vocês acham der simbólico, que é um poder que cria, se acu- importantes, interessantes, os jogos que têm mula e se perpetua pelo fato de haver uma tro- importância para vocês porque eles foram ca simbólica, “em relações duráveis de poder impostos e postos em suas mentes, em seus simbólico pelas quais se é obrigado e com as corpos, sob a forma daquilo que chamamos quais a gente se sente obrigado; ela transfigu- de o sentido do jogo. (...) assim pode-se es- ra o capital econômico em capital simbólico, a tar interessado em um jogo (no sentido de dominação econômica em dependência pessoal não lhe ser indiferente) sem ter interesse ne- le. (Bourdieu, 1996, p. 139) até em devotamento, em piedade (filial) ou em amor”. (Bourdieu, 2001a, p. 242).

No princípio dessa ação “generosa” de uma variedade de favores prestados e, conse- 4. SOBRE UMA POSSÍVEL NOBREZA LOCAL quentemente, de trocas de favores, ao contrá- rio de existir uma intenção consciente de um indivíduo isolado, “o que existe é essa dispo- As estratégias de dominação que foram construídas socialmente pela elite política local

12 Fazendo uma leitura de Bourdieu, Jessé Souza destaca o capital simbólico como sendo um capital negado e travestido. Em ou- tras palavras esse capital é só “percebido como legítimo quando desconhecido enquanto capital”. Logo, continua Jessé, “Capital simbólico parece significar o capital, ou melhor, uma espécie de crédito social no sentido mais amplo, que logra transmutar-se e não revelar suas origens arbitrárias. Desse modo, capital simbólico pressupõe mascaramento e opacidade com relação às suas ori- gens e funcionamento prático”. (Souza, 2003, p. 48). 160

foram sendo incorporadas aos agentes, como se É a força desta prática discursiva incor- fossem naturais, ou seja, os corpos passam a ser porada que levou muitos cidadãos e cidadãs no o espaço do exercício da dominação e da incor- município de Queimadas a reproduzirem o dis- poração dos valores construídos por um peque- curso de que a política deve ser para os filhos no grupo que tem um maior quantum de capital. daqueles que atuam ou atuaram no cenário po- lítico porque tem “sangue” político e não é por Após incorporados esses valores como acaso que o município de Queimadas, em ter- legítimos, os desprovidos de capital dentro da mos de ruas e estabelecimentos de ordem públi- estrutura social, acabam reproduzindo a con- ca, recebem os nomes, em sua grande maioria, cepção dominante como se esta não pudesse ser dos familiares dos políticos que pelo executivo mudada, bem como a percebe como se fosse a passaram, ou seja, é mais uma maneira de dei- única verdadeira. Com isso, “a força política xar marcado no imaginário popular aquilo que dos grupos locais se inscrevem, primeiramente fez, e de, sobretudo, referendar e fortalecer a nos corpos e mentes dos indivíduos através de tradição familiar. valores e imaginários que já existem na própria cultura do povo e que favorecem substancial- Neste sentido, se constrói no município, mente a sua dominação” 13. Através desta incor- certa nobreza familiar da qual deverá sair os poração os indivíduos passam a orientar suas nomes, posto que se concebem como se fossem, práticas e suas maneiras de agir e tomar deci- os verdadeiros herdeiros da representação polí- sões por meio dos valores que estão lhes servin- tica local. Estes são encarados como os detento- do, depois de incorporados, de matriz de per- res “legítimos” para a representação do poder cepção e de escolhas e decisões no seio da so- público local. Daí decorre que, até o presente ciedade. Ou seja, os indivíduos passam a orien- momento, o município continua sobre o domí- tar suas práticas pelos valores construídos e im- nio da família Ernesto -Rêgo, e as outras famí- postos pela elite política local. lias tradicionais dão base de sustentação a estes grupos, enquanto seus prepostos, pois também É a partir desta “naturalização”, da in- são beneficiados com cargos nos órgãos e insti- corporação dos valores produzidos pelos que tuições públicas locais. detêm um maior número de capitais, que se sustentam às ideias de que os “caminhos da po- O significado incorporado de que a no- 15 lítica somente podem ser trilhados por alguns breza familiar, ou as famílias de tradição, “as poucos personagens ou algumas poucas famí- fundadoras do município”, é quem devem, le- lias, como sendo as únicas capazes do exercício gitimamente ocupar espaços no poder local, es- do poder público municipal”14. sa prática se apresenta de maneira tão contun- dente na cultura política local que, em períodos

13 ADILSON FILHO, José. Op. Cit., p. 60. 14 ADILSON FILHO, José. Op. Cit., p. 60. 15 Ver: BOURDIEU, Pierre. O Campo econômico: dimensão simbólica da dominação. Campinas, São Paulo, Papirus, 2000, p. 60. A idéia de nobreza é construída e desenvolvida a partir da concepção que Bourdieu oferece, recuperando do latim, ou seja, “o nobre”, segundo o latim, é um nobilis, um homem “conhecido” e “reconhecido”. 161 de “crise de lideranças”, digo aqui que com a Conforme um dos entrevistados quan- falta de liderança para as disputas, sempre pro- do perguntado sobre essa possível nobreza fa- curam recorrer àqueles que estão ligados a al- miliar que domina historicamente o município, gumas das famílias tradicionais. ele afirma: Isto não se estabelece de maneira alea- tória, mas sim pelo fato que são esses represen- O povo acha que se é pra ser submisso a al- tantes, possuidores de elementos de distinção, guém, que seja submisso a alguém que te- que são mais fortes em termos de concorrên- nha tradição, certo? Então, nunca eu vou cia dentro do campo político, associados a is- querer ser mandado, ou dominado, ou sei so se acrescenta que eles tenderão a reprodu- lá, ou liderado por uma pessoa que seja do zir as práticas dos seus antepassados políticos, mesmo nível que eu. (...) Então sempre vai continuar assim. É mais fácil votar no filho como maneira, inclusive de “honrar” o nome de Saulo Ernesto, do que votar no filho de da família, garantindo os empregos àqueles que um agricultor por aí – isso aí é muito sim- sempre o “acompanharam” politicamente. ples. O povo é que cria essas situações. (En- A nobreza, portanto, enquanto repre- trevista com José Ezequiel, em 18 de Abril de 2008). sentantes legítimos, visto que são reconhecidos através dos capitais sociais, se tornam, por ex- celência, aqueles que podem e devem dominar O entrevistado refere-se ao “povo” de o município, por concessão feita pela maioria Queimadas, enfatizando a relação de domina- da população, a qual de maneira direta ou in- ção que existe entre este e as lideranças locais direta, já foi beneficiada por algum favor, é nos através do elemento distintivo o nome da fa- momentos de campanhas eleitorais que as famí- mília. Apresenta-nos como se isto fosse culpa lias tradicionais relembram aqueles que foram do povo, no entanto, em primeiro momento, beneficiados por favores já realizados, junto às não se coloca como pertencente a esta concep- famílias mais necessitadas. ção de que quem deve governar o município A dominação, nesse sentido, é exerci- sejam apenas pessoas das famílias tradicionais, da e só se exerce pelo fato que é reconhecida, mas percebe-se, em outro momento, e se colo- em outras palavras, permitida, legitimada, pos- ca como povo quando afirma “que sempre vai to que possuem os que acreditam que as famí- continuar assim”, ou seja, ele também incorpo- lias tradicionais são as representantes políticas ra em parte a visão de que a “nobreza familiar” do poder político local. Não percebendo que é quem continuará a dominar o município, uma este discurso incorporado que se apresenta de vez que “o povo é quem cria as situações”. maneira natural, foi construído historicamente As práticas realizadas por essas famílias através de profundas violências promovidas pe- tradicionais, o exercício de poder sobre os cor- la elite política local que se manteve e se man- pos dos agentes, a maneira de pensar as estru- têm no poder reproduzindo as mesmas práticas turas mentais desse “povo” que o entrevista- estabelecidas pelos seu grupo parental, se cons- do se remete, estão incorporados nos agentes, tituindo como os herdeiros da política local. nas falas e no modo de agir, isto que a percep- 162

ção de escolhas são orientadas a partir da histó- estratos inferiores da sociedade – não partici- ria que fora incorporada e da dominação, atra- pariam dessa definição de “público”. (KUSCH- vés das práticas realizadas pelas elites locais, as NIR, 2007). Por isso mesmo, o acesso às fon- quais construíram historicamente todo um mo- tes públicas de bens e serviços precisa ser in- do de fazer política através de violências arbi- termediado pelo político ou por alguém ligado trárias que foram marcadas na pela das pessoas ao político, como o médico citado acima, por e, muitas dessas, não conseguem se desprender exemplo, e é visto como um bem extraordiná- percebendo este modo como legítimo e, por- rio “que não tem preço”. tanto, como verdadeiro e único. Esta análise suscita duas compreensões, primeiro, que o clientelismo e o assistencialis- CONSIDERAÇÕES FINAIS mo possibilitam acesso a bens e serviços públi- cos; e segundo, que a concepção de “público” para o “nativo” significa recursos monopoliza- É consenso na vertente da produção da dos pelas elites políticas e econômicas e não a escola sociológica francesa afirmar que as socie- concepção apontada pela ciência política, que dades se constituem a partir do elemento da tro- significa recursos que pretendem a todos. ca, quer seja troca de bens materiais quer seja Os agentes sociais, nesse sentido, orien- troca de bens simbólicos. Todavia salienta-se que tam suas práticas pelo senso prático, confor- as trocas de favores, como mencionadas entre me o seu habitus, o qual é construído histori- os agentes sociais e os agentes políticos locais, camente e incorporado pelo agente no decor- além de estabelecer toda a ordem de funciona- rer de sua vida. O que se tem percebido, a par- mento de modus operandi de fazer política, tam- tir dos discursos é que as práticas políticas, no bém possibilita aos agentes sociais se tornarem município de Queimadas, são profundamente submissos nesta relação de poder, àquele (políti- marcadas pelo assistencialismo e pelo clientelis- co) que oferece algo ao agente necessitado. mo, por “ajudas” oferecidas por parte dos po- Assim essas práticas clientelistas e assis- líticos aos agentes sociais, o que tem sido de- tencialistas longe de serem encaradas como pri- nominado de cultura da sujeição, a qual se dá e vatização de bens públicos, por parte do agente se firma através dos laços de dependência, que político local, conforme concebe a ciência polí- não deixa de ser uma violência simbólica. tica, são encaradas sob a ótica “nativa”, a partir E assim sendo contribui para a sujeição dos benefícios que recebem do político, como do “outro” em relação ao “eu”, ou seja, a sujei- sendo acesso a bens e serviços públicos, às pes- ção do agente social em relação ao agente polí- soas que, devido a sua própria condição social, tico local, se tornando, nesta relação, um agen- não os teriam de outra forma. te heterônomo, ao invés de autônomo, o que Nesse contexto, a palavra “público” não provoca a submissão e atitudes de subserviên- significa “recursos que pertencem a todos”, cia. Daí que este fazer político fundamentado mas recursos monopolizados pelas elites polí- em “relações de favores” favorece a violência ticas e econômicas. Pessoas “ordinárias” – de 163 simbólica, que decorre da própria maneira co- DINIZ, Eli. Voto e máquina política: patrona- mo se encontram estruturadas as relações so- gem e clientelismo no Rio de Janeiro. Rio de ciais e políticas no município de Queimadas. Janeiro, Paz e Terra, 1982.

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COLABORADORES

COLABORARAM NESTE NÚMERO

PARECERISTAS Aldenor Gomes da Silva Antonio Torres Montenegro Antonio Jacó Brand COLABORAÇÃO TÉCNICA Antonio Claudio Rabello Celso Gestermeier do Nascimento Lemuel Dourado Guerra Sobrinho Eli de Fátima Napoleão de Lima Luis Henrique Cunha Eric Sabourin (Revisão do Inglês e do Francês) Ghislaine Duque Gonzalo Adrián Rojas Juciene Ricarte Apolinário Roberto de Sousa Miranda Luiz Manoel de Moraes Camargo Almeida (Revisão Linguística e Normatização) Márcia Maria M. Motta Marinalva Vilar de Lima Paulo Pinheiro Machado Sônia Maria P. P. Bergamasco Wagner Neves Diniz Chaves 166

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1. A revista Raízes aceita trabalhos originais, ou inéditos em . As notas devem ser sempre de pé-de-página, numeradas língua portuguesa ou espanhol, sob a forma de artigo técnico- sequencialmente, e nelas poderão ser incluídas informa- científicos, ensaios teóricos, resenhas ou avaliações de resultados ções adicionais não incluídas na bibliografia; de pesquisa cuja abordagem assista ao seu interesse temático edi- 12. As referências bibliográficas ou Bibliografia deverão vir em torial. conjunto ao final, obedecendo ao seguinte critério: 2. O envio de trabalhos para publicação pressupõe . LIVRO: Nome do autor. Título do livro. Local de pub- o interesse de públicá-lo em Raízes, compromotendo-se seu (s) licação: Editora, ano de publicação, número (s) de página autor (es) a manter a com Raíão oferecer zes a exclusividade do (s); nas citações deve constar o número de páginas citadas. oferecimento para a publicação pelo prazo mínimo de 6 meses, . 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