Ver para Crer Aurélio Pereira com Rui Miguel Tovar

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Memórias de descoberta e formação de talentos 1. ESFORÇO

Stop, vamos jogar ao Stop? Dizemos o A em voz alta e depois percorremos o abecedário em silêncio, até que alguém diga stop. Vamos a isso. Um, dois, três. A. Stop. F. Futre, Paulo Futre. em 1987 e primeiro português a levantar uma taça no estrangeiro como capitão de equipa (Atlético , 1992). «Vi­ ‑o pela primeira vez no torneio Onda Verde, organizado pelo Sporting. Apanhei­‑o no final de jogo de uma equipa do Montijo chamada Estabelecimentos Cancela e havia alguém que voava, parecia um passarinho. Mal lhe meti a vista em cima, fiquei de boca aberta, estilo: “Eh, pá, o que é aquilo?” Era o Paulinho, que jogava com a cédula de outro jogador porque ainda não tinha idade para participar no torneio.» Isto é engraçado. A. Stop. F. Outra vez? Seja. Figo, Luís Figo. Bola de Ouro em 2000 e único jogador a capitanear os inimigos figadais, Barcelona mais Real Madrid. Um olheiro nosso, o Armando Martins, é que me disse: «Tem de vir aqui ao Pastilhas, há um jogador fantástico chamado Figo.» Por coincidência, o Figo apareceu nas captações do Sporting e já se via uma persona­ lidade vincada aos 12/13 anos, porque o João Barnabé nunca mais dizia de sua justiça e o Figo virou­‑se: «Ó míster, decida­‑se, senão vou­‑me embora hoje.» Mais, mais. A. Stop. R. Ronaldo, Cristiano Ronaldo. Bola de Ouro em 2008, 2013, 2014, 2016, 2017, melhor marcador da 16 Aurélio Pereira seleção de todos os tempos, melhor marcador da história do Real Madrid, melhor marcador da Liga dos Campeões, melhor mar­ cador de tudo e mais alguma coisa. «Tudo começa com o Franco, um jogador nosso que foi para o Odivelas. O Nacional contra­ tou­‑o ao Odivelas e fez­‑lhe um contrato profissional. O Odivelas queixou­‑se à federação e ganhou o caso. A multa era de cinco mil contos. Como o Nacional já tinha inscrito o Franco e não tinha essa verba para pagar a multa, falou com o Dr. Marques Freitas, presidente do núcleo sportinguista do Funchal, e pediu­‑lhe que falasse com o Sporting. Quando o Dr. Marques Freitas falou comigo, até mais pela consideração que tinha pelo homem, acer­ támos uma solução que tinha que ver com um jogador fora de série no Nacional chamado Ronaldo. Diziam­‑me maravilhas dele e resolvemos trazê­‑lo para Lisboa. O Nacional pagava a passagem ao miúdo, ele ficava em Alvalade uma semana, nós observávamo­ ‑lo e depois logo se via. Lá veio ele, com o padrinho. Ao segundo dia, já sabíamos que o queríamos. Tinha traquejo com a bola, velocidade, imaginação. Mas, acima de tudo, reparei na forma como ele dominava completamente o ambiente. Falava, dava ordens, gritava. Todos os outros miúdos olhavam para ele como uma coisa rara, como um talento. E, já se sabe, os miúdos sele­ cionam como ninguém. Não dão descontos, como costumo dizer. São juízes implacáveis e se eles, ao segundo dia, já sabem o nome de outro miúdo e lhe passam a bola para ele jogar, é porque esse miúdo é bom jogador.» E agora? Isto é irresistível. A. Stop. P. Peixe, Emílio Peixe. Bola de Ouro do Mundial sub­‑20, em 1991. «Ele jogava nos iniciados do Nazarenos e já era um leão naquela arena, sempre ensanguen­ tado pelos constantes carrinhos e roubos de bola. A história dele é engraçada: foi fazer testes de manhã ao Benfica e ficou no Spor­ ting na parte da tarde.» Stop, temos meeesmo de parar. Só mais uma volta, pode ser? A. Stop. C. Cadete, Jorge Cadete. Último capitão do Sporting a sagrar­‑se melhor marcador da 1.ª divisão, em 1992. «Vi­‑o num Ver para Crer 17 fim de semana romântico, em Benavente. Estava com a minha mulher, a Nani, mais um casal amigo (o César Nascimento e a esposa), num cafezinho, a tomar o pequeno­‑almoço, e vejo um póster do jogo para essa manhã, às 11h00, entre o Benavente e a Académica de Santarém. Pedi autorização à Nani para ver só 15 minutos e foi o que bastou. O Cadete marcou dois ou três golos. Já se notava a sua presença com aqueles caracóis, vai lá vai, mas era mais do que isso: era um avançado velocíssimo, mais rápido do que a própria sombra.» É o fim da picada, se quisermos continuar a jogar ao Stop. A de Abel Xavier. B de Boa Morte. C de Cédric. D de Dani. E de Edgar Ié. F de Fernando Mendes. G de Gelson. H de Hugo Viana. I de Inácio. J de João Mário. L de Litos. M de Mário Jorge. N de Nani. P de Porfírio. Q de Quaresma. R de Rui Patrício. S de Silas. V de Venâncio. W de William. Y de Yannick. Podemos até repetir algu­ mas letras sem o menor problema. A de Adrien. Ou André Almeida. B de Beto (em dose dupla, o guarda­‑redes e o central). C de Carlos Martins. Ou Carlos Xavier. F de Freire. Ou Fonseca. G de Gabriel. J de José Fonte. Ou João Moutinho. L de Laran­ jeira. Ou . M de Miguel Veloso. Ou Morato. N de Nuno Assis. Ou Nuno Valente. P de Paulo Torres. Ou Pedro Xavier. R de Rui Correia. Ou Rui Águas. S de Secretário. Ou Simão. V de Varela. Ou Virgílio. Que regabofe. Bem­‑vindo ao mundo do olheiro mais bem­‑sucedido da histó­ ria. A. Stop, stop, stop, já! A. Pois sim, letra A. De Aurélio Pereira, o elo entre todas estas figuras do nosso contentamento. Ao todo, Aurélio representa a descoberta de 62 internacionais AA. O seu abecedário é do mais vasto que há, as suas ramificações estendem­ ‑se até ao infinito. E mais além. Aurélio da Silva Pereira nasce a 1 de outubro de 1947. É uma quarta­‑feira. A temperatura máxima para Lisboa é de 26 °C, a mínima de 15 °C. A Rádio Renascença abre a emissão às 18h00 com o boletim religioso e fecha à meia­ ‑noite com a leitura da programação do dia seguinte. E a televisão? Essa é boa, ainda faltam dez anos para a abertura da RTP. 18 Aurélio Pereira

Nos cinemas, o Chiado Terrasse, na antiga Rua do Tesouro Velho, atual Rua António Maria Cardoso, apresenta o enésimo filme da série «Bucha e Estica». Chama­‑se Mestres de Dança e começa às 21h15. Por muito engraçado que seja, nada se compara ao Bola ao Centro, com Raul de Carvalho, Maria Domingas, José Amaro, Barroso Lopes, Tomás de Macedo e as irmãs Meire­ les. Como assim, nada se compara? O filme português está em três salas: Odeon, Palácio e Capitólio. No cinema Condes, é a 20.ª semana das matinés diárias de Capas Negras, com Amália Rodrigues e Alberto Ribeiro. Outro pormenor delicioso, este relacionado com os números de telefones em Lisboa: ainda só têm cinco algarismos. E futebol, que tal? A um mês e meio do início do campeonato nacional, a notícia futebolística mais palpitante do dia é a carta enviada pelo central belenense Feliciano para o apartamento de Rogério Pipi no Rio de Janeiro, a pedir­‑lhe ajuda na procura de um clube brasileiro. Repetimo­‑nos: 1947, nasce Aurélio Pereira em Alfama e vive no Beco dos Paus. A família muda­‑se para a Venda Nova, concelho da Amadora, e é lá que se cruza com Jorge Jesus. Ou vice­‑versa. «Pouca gente sabe que aquela expressão de “andarmos juntos na escola” pode ser literalmente aplicada ao míster Aurélio Pereira e à minha pessoa. Na década de 1960, na escola Pedro de Santarém, na Venda Nova, apesar de não sermos da mesma classe, recordo­ ‑me perfeitamente de partilhar o recreio da escola com ele e algu­ mas jogatanas que ali decorriam todos os dias. Longe de nós imaginar que décadas depois nos encontraríamos profissional­ mente no Sporting Clube de , cada um em funções que apaixonadamente desempenhamos. Porque é esta a imagem que eu e todos aqueles que acompanham o futebol em Portugal têm do Aurélio Pereira, a de um homem apaixonado pelo futebol, pela sua essência, pelo talento bruto à espera do seu olho clínico.» Calma, estamos a ir muito depressa. Abrandemos o ritmo. E passemos a bola a Aurélio Pereira. Ver para Crer 19

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Cresci no meio de miúdos atrevidos, amigos do bairro, esse suporte tão importante. Hoje, temos medo de deixar os filhos brincar na rua. Antigamente, os miúdos iam à escola de manhã e depois do almoço andavam todos soltos por aí, sobretudo a rou­ bar fruta aos vizinhos. Naquela zona, entre a Venda Nova e Ben­ fica, havia quintas e mais quintas com maçãs, peras e sei lá mais o quê. De vez em quando, o dono da quinta saía com uma espin­ garda de pressão de ar em riste e disparava sal. Sim, senhor, escrevi bem: sal. Aquilo era tramado, porque andávamos quase sempre de calções. Então levar com sal nas pernas era uma coisa tramada. Doía que se fartava. Antes ou depois dessas aventuras e desventuras nas quintas, jogávamos à bola, ali ao pé da igreja de Benfica. Eram jogatanas intermináveis. Ou pareciam intermináveis. Às cinco da tarde, paragem obrigatória para lanchar produtos da Cáritas, através da igreja de Benfica: leite em pó, margarina e marmelada. Tudo a cargo do padre Álvaro Proença. Paralelamente, também havia a família Lobo Antunes, que abria as portas de sua casa para dar comida aos miúdos desfavorecidos. Um momento futebolístico, pouco falado, por sinal, ocorre nesse período. Ocorre até antes do primeiro título de campeão europeu do Benfica, em maio de 1961. Em abril, a seleção portuguesa de juniores sagra­‑se campeã europeia. Na final, 4­‑0 à Polónia. Quatro golos de Serafim, um matulão do Benfica, que, como sénior, também jogaria no FC Porto. Dessa equipa, fazem parte jogadores com uma história riquíssima, como o guarda­‑redes Rui, o defesa Carriço, os extre­ mos Simões e Peres e Oliveira Duarte, grande jogador. O treinador era o Pedroto. Já aí o Pedroto dava cartas, recém­‑formado pela escola de treinadores em França. E o selecionador era um senhor chamado David Sequerra. Jornalista de profissão, foi ele quem me levou à Associação de Futebol de Lisboa e fez de mim coordena­ dor técnico. Devo­‑lhe muito. E o país também. Foi o primeiro 20 Aurélio Pereira selecionador português a ganhar um título internacional. É obra. Tenho­‑lhe imenso respeito. Outro jornalista que deu muito ao fute­ bol jovem foi o Rui Santos, por quem tenho uma grande conside­ ração por se tratar de um homem verdadeiro e de uma palavra só. Também brincávamos ao ciclismo. Com uns arames fazíamos um guiador e íamos a correr com os pés no chão até à Damaia. E havia ainda o hóquei em patins, muito hóquei mesmo. Na altura, a única modalidade em que éramos campeões, daí o nosso crescente entusiasmo. Fazíamos os sticks e inventávamos jogos de Europeus ou Mundiais ou então a famosa Taça das Nações, em Montreux, na Suíça. Como nem toda a gente tinha rádio, a malta metia as telefonias em cima da janela e sentávamo­‑nos no meio da rua a ouvir os relatos dos jogos, pelas vozes dos inimitá­ veis Artur Agostinho e Amadeu José de Freitas, o pai do José Manuel Freitas. Mesmo que ganhássemos 36­‑0, a malta festejava todos os golos. Era cá uma festa! Quando esses heróis chegavam a Portugal, eram recebidos como reis, sobretudo o Livramento, que também morava na Venda Nova, ao pé de nós. Grande amigo, grande referência. Nunca mais me esqueço de outra personagem

Os meus avós maternos, Manuel Maria da Silva e Amélia da Silva. Ver para Crer 21 desses tempos lá do bairro. Chamava­‑se Sandokan, conhecido por ter uma agência funerária. Lá estava ele à porta, sempre pronto para engatar as meninas com o cabelo asa de corvo. Na montra, um dístico dizia: «Porque teimas em viver se por 300 escudos podes ter um grande funeral?» Isto é do melhor marketing que há. Nunca me esqueci. Quem também patrocinava dias de satisfação plena era a Dona Celeste, que nos fazia as calças, a mim e ao meu irmão Carlos. O primeiro dia de um par de calças era cá um acontecimento! Nem dormíamos na noite anterior só a sonhar com a estreia, a estreia, a estreia. Aquilo crescia na nossa cabeça. Foi uma infância fantás­ tica. Porque éramos saudáveis, andávamos à vontade e não tínha­ mos medo de nada. Medo de nada, vamos lá a ver, havia os pais em casa e os professores na escola. Estou a rir­‑me agora, mas naquele tempo até chorava. A disciplina era mesmo muito rígida. Se o meu professor André, que era tramado, me batesse e eu fizesse queixa ao meu pai, que também era tramado, mas num outro sentido, levava logo do meu pai. Era assim a psicologia dessa altura. Se nós – eu, o meu irmão ou a nossa irmã Célia – falhássemos o horário estipulado para almoçar, às 13 em ponto, ou jantar às 20 certinhas, estávamos bem tramados. Ai, estávamos, estávamos. Lá em casa, o meu pai, António Pereira, só vivia para a família e para o trabalho. Nada mais. Em relação à família, ocupava­‑se da educação, mas à sua maneira. Isso queria dizer que nos man­ tinha ocupados aos fins de semana. Aos sábados, havia a Moci­ dade Portuguesa. Aos domingos, a aventura dos sacos. A aventura dos sacos era uma invenção de negócio do meu pai. Só do meu pai. Ele comprava aos merceeiros sacos de açúcar, sacos de batata e sacos de bacalhau e vendia­‑os aos saqueiros em Alfama, para enviar produtos para a estiva, nas colónias. Outro negócio engra­ çado tinha a ver com os Laboratórios Vitória. Um senhor de lá queria despachar umas latas vazias. O meu pai assumiu o desafio e o que é que fez? Foi para a Brandoa, onde havia muitas casas velhas e barracas. Falou com as donas de casa e elas precisavam 22 Aurélio Pereira das latas para o feijão, para o sal, para isto e para aquilo. Vendeu tudo. O meu pai era assim, tinha cá um jeito para o negócio, governava a vida até na ponta de uma árvore. E nós, os filhos, íamos com ele no seu Ford Anglia, de cor verde. A minha mãe chamava­‑se Elvira da Silva Pereira e aparava­‑nos os golpes como podia, porque éramos, de facto, muito travessos. Gostávamos de nos armar ao pingarelho, de forçar a barra. Uma vez, por altura do Carnaval, entrei na papelaria do senhor Ferreira e ele estava a fazer negócio com a sua clientela. Havia alguns produtos em cima do balcão, inclusive uma bisnaga redonda, daquelas que se apertavam no meio e deitavam água. Vi a bisnaga ali à solta e meti­‑a ao bolso. Saí de fininho. Só que estava lá um rapagão chamado Pimpão. Quando a tal clientela quis ver nova­ mente a bisnaga, chapéu. Então o tal Pimpão disse que me tinha visto a levar a bisnaga. Bom, alguém contou essa história ao meu pai e ele esperou­‑me em casa. Quando cheguei do futebol, o meu pai apalpou­‑me os bolsos e, claro, lá estava a bisnaga. Agarrou­ ‑me num braço e puxou­‑me. Aquilo abanou tanto que mais pare­ cia um trovão. Fomos direitos à papelaria, aquilo estava cheio e foi uma vergonha. «Senhor Ferreira», disse o meu pai, «trago­‑lhe um gatuno.» Mandou­‑me ajoelhar aos pés do senhor Ferreira, pedir­‑lhe desculpa e dizer­‑lhe que nunca mais iria roubar nada. Foi remédio santo. O meu irmão também tem uma boa. No tal negócio dos sacos, fomos parar a uma mercearia e ele viu grãos pretos. Como nunca os tinha visto e lhes achou piada, agarrou em três ou quatro e meteu­‑os ao bolso. Nesse dia, não fomos no Ford e sim de camioneta. Para não pagarmos bilhetes, viajávamos em cima do meu pai. Literalmente. E ele reparou nos bolsos do Carlos. «O que tens aqui?» Na semana seguinte, o meu pai levou o meu irmão à mercearia e foi a mesma cena. Quando o pai dava folga, íamos ver a bola. Fosse Alvalade, Luz ou Restelo, íamos a pé para os estádios e pedíamos às pessoas para entrar com elas, para ver o jogo sem pagar bilhete. Dizíamos: «Você pode ser o meu pai ou o meu tio? Deixe­‑me ir consigo.» Ver para Crer 23

Só estilo, eu e o meu irmão Carlos.

Havia pessoas que nos davam a mão e entrávamos à vontade. Havia outras que nem por isso e diziam­‑no: «Tu já tens pelos nas pernas, nem pensar nisso.» Também podia dar­‑se o caso de termos sorte e encontrarmos um porteiro do estádio que fosse nosso vizinho na Venda Nova. Aí era na boa e víamos o jogo entre a multidão. Se não conseguíssemos entrar, e eu como era alto sentia muitas dificuldades em ludibriar os porteiros mais implacáveis, ficávamos a ver o jogo por uma porta ou isso. E, digo­‑vos, ver os jogadores a correr de um lado para o outro já nos fazia felizes. A mesma sensação no cinema. Como não havia dinheiro para pagar o bilhete, encostávamos os ouvidos à porta de saída, que era de madeira, e já nos contentávamos em ouvir os tiros dos cobóis ou os gritos dos índios. Também havia a magia da televisão, claro. Dizíamos entre nós: «A seguir à tempestade, vem a bonança; e a seguir ao Telejornal, vem o Bonanza.» E lá íamos a correr para o café a ver se o homem nos deixava ficar em pé a ver a série. Uma das minhas primeiras, o Bonanza, com a família Cartwright. Tinha para aí uns 8 anos e lembro­‑me perfeitamente do campo de Pina Manique a abarrotar para ver os juniores do Sporting. Estamos a falar de 1955, 1956. A equipa era fantástica. Jogavam 24 Aurélio Pereira o Fernando Mendes, o Morato pai, o filho do Azevedo à baliza e o Jorge Mendonça à frente. Pouca gente se lembra do Jorge Men­ donça, mas saiu do Sporting para o Atlético Madrid e ainda pas­ sou pelo Barcelona. Foi respeitadíssimo em Madrid, a trabalhar na embaixada de Angola durante largos anos, formou­‑se em medi­ cina e era um jogador tremendo, de uma vivacidade contagiante. Jogava muito bem, como toda a equipa. Esse Sporting foi cam­ peão de juniores e a minha ligação ao clube já era um dado mais do que adquirido. Agora, a minha ligação de facto começou aos 14 anos, em agosto de 1963. Os meus pais partiram de férias para a aldeia de Vidual de Cima, na Pampilhosa da Serra, e eu fui para casa de uns tios, em Benfica. O tio Aníbal e a tia Etelvina. A ideia passava por frequentar um curso de aprendiz no C. Santos Automóveis.

Abro parêntesis para anotar este pormenor delicioso: Aurélio conhece a futura mulher, Nani, no C. Santos Automóveis; e, já agora, acrescente­ ‑se que a C. Santos Automóveis é, já em 1963, uma empresa XXL, que vende Mercedes a torto e a direito, com oito stands em Lisboa e mais uns quantos espalhados por todo o país.

Enquanto esperava que me chamassem para realizar o curso, vi num jornal o anúncio das captações para os juvenis do Spor­ ting. Desloquei­‑me então a pé desde as portas de Benfica até ao Estádio José Alvalade, juntamente com seis amigos. Quatro ficaram no Estádio da Luz para as captações do Benfica e os outros dois seguiram caminho, tal como eu. Qual não foi o nosso espanto quando nos deparámos com uma fila gigante da 10­‑A até à 15­‑A, junto à porta da maratona, quase meia volta ao estádio. Uma coisa impressionante. Mais espantado fiquei quando chegaram dois seccionistas, o senhor Borralho mais o senhor Manuel Jesus, e começaram a mandar entrar apenas os jovens com uma estatura alta; ou seja, os baixinhos tinham de voltar para casa. Esse episódio marcou­‑me e acabou por me Ver para Crer 25 influenciar. Por isso é que eu digo sempre: o talento não tem tamanho. Infelizmente, os meus amigos receberam essa má notícia e tive­ ram de regressar a pé até casa, completamente desiludidos por não terem tido sequer a possibilidade de participar na captação. Diria sem qualquer problema que não era melhor jogador do que os outros amigos. Eles eram até muito superiores. Atenção, natu­ ralmente que tinha alguma qualidade, mas só fiquei porque era alto. E, já agora, porque fiz um bom treino. O Sporting dava um calção e umas alpercatas (ainda se chamavam alpercatas, vejam lá bem). E as alpercatas eram de um tamanho qualquer, não havia rigor por aí além. Se pedisse 38, saía­‑me um 41. Ainda hoje me lembro desses ténis azuis e brancos feios à brava. Apanhei como treinador o Travassos.

Mais um parêntesis: o Travassos é o José Travassos, um dos cinco violi­ nos, mais conhecido como Zé da Europa, o primeiro português convo­ cado para integrar uma seleção da UEFA, em 1955.

O José Travassos é um homem que me marcou muito, muito, muito. Pelo jogador que era, talentoso como nunca. A sua exe­ cução técnica deixou­‑me sempre de boca aberta. Tudo nele era habilidade. Até a pentear­‑se. Tinha estilo. Um dia, e esta vi­‑a com os meus olhos no campo cá de cima em Alvalade, junto aos pré­ dios novos, o Kubala apareceu lá com a sua nova equipa, o Espanyol. O Kubala era um intérprete formidável do futebol, um húngaro cheio de estilo e qualidade artística, com uma carreira riquíssima, vice­‑campeão mundial em 1954 e campeão de tudo ao serviço do Barcelona. Em 1963, ano em que fui às captações do Sporting, o Kubala trocou de equipa mas não saiu da cidade: Barça por Espanyol. Então o Kubala apareceu em Alvalade para um treino de adaptação e apanhou o Travassos. Grandes abraços, grande conversa e, de repente, começam a trocar bolas de um lado para o outro. Meteram um guarda­‑redes à baliza e começaram a 26 Aurélio Pereira fazer jogadas de improviso: um cruzava, o outro rematava. À vez. Cada tiro, cada melro. Era golo, fosse pé direito ou esquerdo. Pobre guarda­‑redes. Nunca vi uma coisa assim, um espetáculo improvisado assim. Foi uma delícia. Porque eram dois génios da bola. Como treinador, o Travassos era um homem com paciência infinita e conhecimento alargado, características indispensáveis para gerir uma série de miúdos. No meu dia, fizemos um jogo 11 contra 11 e joguei a defesa­‑central. Durou meia hora. Mal terminou, o Travassos encaminhou­‑me para um homem, era o senhor Borralho, responsável pela minha inscrição. Não cabia em mim de contentamento. E perguntei ao senhor Travassos (era assim que o tratava) se podia levar o meu irmão. «É tão bom como tu?» E eu: «É melhor.» E era mesmo. O Carlos, que tinha ido de férias para a aldeia com os meus pais, tinha um pé esquerdo fabu­ loso e sabia­‑o tremendamente talentoso. Jogávamos futebol de salão juntos, a nossa equipa chamava­‑se Shadows, uma homena­ gem a uma banda inglesa do início dos anos 60. Aquilo era sempre a andar. Tínhamos um guarda­‑redes muito bom chamado Nélson, eu cá atrás e o Jorge Roque, o meu irmão e o Vítor Roque, que também jogou no Sporting, lá à frente. Era só pessoal da Venda Nova e ganhávamos dinheiro a jogar no Rio de Janeiro, um clube de boxe misto associação recreativa no Bairro Alto, entre os jor­ nais A Bola e . Foi o meu irmão chegar das férias com a minha irmã e os meus pais e logo lhe contei as novidades. Que tinha ido às captações do Sporting, que tinha ficado, que tinha tirado fotografias, que tinha treinado com o Travassos. Lá levei o Carlos ao Sporting, apresentei­‑o ao senhor Borralho e bastaram 20 minutos de trei­ nos. O Travassos disse­‑me: «Tinhas razão, o Carlos é melhor do que tu.» Ficámos inchados, contentíssimos. À saída, o senhor Borralho deu­‑nos 20 escudos a cada um para os transportes. Vinte escudos era uma fortuna. Só para verem, o elétrico do estádio para casa era oito tostões. Tínhamos de apanhar dois, 16 tostões. Ver para Crer 27

Sobrava imenso. O que fazíamos então? Comprávamos uns cigar­ ros, curiosamente da marca dos clubes. Havia Sporting, Benfica e Porto. Também havia os Paris e os High­‑Life, só que isso era outro campeonato. Bom, eu e o meu irmão entrámos no Sporting. Até aqui tudo bem, faltava outro berbicacho, por assim dizer. O meu pai, faltava convencer o meu pai, que era um homem muito exigente, disciplinador e que não via no futebol um futuro para os filhos. Valeu­‑nos o tal tio Aníbal, todo sportinguista, de usar pin na lapela e tudo, que conseguiu convencê­‑lo a deixar­‑nos ficar no Sporting. Juntos no Sporting, como já sonhava há algum tempo. Vale sempre a esperar por momentos gloriosos como este. Joguei nos juvenis A, o Carlos nos juvenis B e éramos ambos laterais­‑esquerdos, embora eu não fosse canhoto. Nunca me esquecerei da estreia, no campo do Império, um clube em Chelas. O campo estava rodeado de barracas e aquilo impunha respeito. Joguei com o número 3. Depois também joguei com o 5, porque havia treinadores que metiam o 3 a central e o 5 a lateral, ou vice­ ‑versa. Nessa equipa do Sporting, havia o Orlando, o João Barnabé, o Ernesto Santos, o Leitão, mais conhecido como «a mula».

A cumprir um sonho de menino, como jogador do Sporting, nos principiantes, em 1963-64. Estou em pé, com a braçadeira de capitão.