
Ver para Crer Aurélio Pereira com Rui Miguel Tovar Ver para Crer Memórias de descoberta e formação de talentos 1. ESFORÇO Stop, vamos jogar ao Stop? Dizemos o A em voz alta e depois percorremos o abecedário em silêncio, até que alguém diga stop. Vamos a isso. Um, dois, três. A. Stop. F. Futre, Paulo Futre. Bola de Prata em 1987 e primeiro português a levantar uma taça no estrangeiro como capitão de equipa (Atlético Madrid, 1992). «Vi­ ­o pela primeira vez no torneio Onda Verde, organizado pelo Sporting. Apanhei­‑o no final de jogo de uma equipa do Montijo chamada Estabelecimentos Cancela e havia alguém que voava, parecia um passarinho. Mal lhe meti a vista em cima, fiquei de boca aberta, estilo: “Eh, pá, o que é aquilo?” Era o Paulinho, que jogava com a cédula de outro jogador porque ainda não tinha idade para participar no torneio.» Isto é engraçado. A. Stop. F. Outra vez? Seja. Figo, Luís Figo. Bola de Ouro em 2000 e único jogador a capitanear os inimigos figadais, Barcelona mais Real Madrid. Um olheiro nosso, o Armando Martins, é que me disse: «Tem de vir aqui ao Pastilhas, há um jogador fantástico chamado Figo.» Por coincidência, o Figo apareceu nas captações do Sporting e já se via uma persona­ lidade vincada aos 12/13 anos, porque o João Barnabé nunca mais dizia de sua justiça e o Figo virou­‑se: «Ó míster, decida­‑se, senão vou­‑me embora hoje.» Mais, mais. A. Stop. R. Ronaldo, Cristiano Ronaldo. Bola de Ouro em 2008, 2013, 2014, 2016, 2017, melhor marcador da 16 Aurélio Pereira seleção de todos os tempos, melhor marcador da história do Real Madrid, melhor marcador da Liga dos Campeões, melhor mar­ cador de tudo e mais alguma coisa. «Tudo começa com o Franco, um jogador nosso que foi para o Odivelas. O Nacional contra­ tou­‑o ao Odivelas e fez­‑lhe um contrato profissional. O Odivelas queixou­‑se à federação e ganhou o caso. A multa era de cinco mil contos. Como o Nacional já tinha inscrito o Franco e não tinha essa verba para pagar a multa, falou com o Dr. Marques Freitas, presidente do núcleo sportinguista do Funchal, e pediu­‑lhe que falasse com o Sporting. Quando o Dr. Marques Freitas falou comigo, até mais pela consideração que tinha pelo homem, acer­ támos uma solução que tinha que ver com um jogador fora de série no Nacional chamado Ronaldo. Diziam­‑me maravilhas dele e resolvemos trazê­‑lo para Lisboa. O Nacional pagava a passagem ao miúdo, ele ficava em Alvalade uma semana, nós observávamo­ ­lo e depois logo se via. Lá veio ele, com o padrinho. Ao segundo dia, já sabíamos que o queríamos. Tinha traquejo com a bola, velocidade, imaginação. Mas, acima de tudo, reparei na forma como ele dominava completamente o ambiente. Falava, dava ordens, gritava. Todos os outros miúdos olhavam para ele como uma coisa rara, como um talento. E, já se sabe, os miúdos sele­ cionam como ninguém. Não dão descontos, como costumo dizer. São juízes implacáveis e se eles, ao segundo dia, já sabem o nome de outro miúdo e lhe passam a bola para ele jogar, é porque esse miúdo é bom jogador.» E agora? Isto é irresistível. A. Stop. P. Peixe, Emílio Peixe. Bola de Ouro do Mundial sub­‑20, em 1991. «Ele jogava nos iniciados do Nazarenos e já era um leão naquela arena, sempre ensanguen­ tado pelos constantes carrinhos e roubos de bola. A história dele é engraçada: foi fazer testes de manhã ao Benfica e ficou no Spor­ ting na parte da tarde.» Stop, temos meeesmo de parar. Só mais uma volta, pode ser? A. Stop. C. Cadete, Jorge Cadete. Último capitão do Sporting a sagrar­‑se melhor marcador da 1.ª divisão, em 1992. «Vi­‑o num Ver para Crer 17 fim de semana romântico, em Benavente. Estava com a minha mulher, a Nani, mais um casal amigo (o César Nascimento e a esposa), num cafezinho, a tomar o pequeno­‑almoço, e vejo um póster do jogo para essa manhã, às 11h00, entre o Benavente e a Académica de Santarém. Pedi autorização à Nani para ver só 15 minutos e foi o que bastou. O Cadete marcou dois ou três golos. Já se notava a sua presença com aqueles caracóis, vai lá vai, mas era mais do que isso: era um avançado velocíssimo, mais rápido do que a própria sombra.» É o fim da picada, se quisermos continuar a jogar ao Stop. A de Abel Xavier. B de Boa Morte. C de Cédric. D de Dani. E de Edgar Ié. F de Fernando Mendes. G de Gelson. H de Hugo Viana. I de Inácio. J de João Mário. L de Litos. M de Mário Jorge. N de Nani. P de Porfírio. Q de Quaresma. R de Rui Patrício. S de Silas. V de Venâncio. W de William. Y de Yannick. Podemos até repetir algu­ mas letras sem o menor problema. A de Adrien. Ou André Almeida. B de Beto (em dose dupla, o guarda­‑redes e o central). C de Carlos Martins. Ou Carlos Xavier. F de Freire. Ou Fonseca. G de Gabriel. J de José Fonte. Ou João Moutinho. L de Laran­ jeira. Ou Lima. M de Miguel Veloso. Ou Morato. N de Nuno Assis. Ou Nuno Valente. P de Paulo Torres. Ou Pedro Xavier. R de Rui Correia. Ou Rui Águas. S de Secretário. Ou Simão. V de Varela. Ou Virgílio. Que regabofe. Bem­‑vindo ao mundo do olheiro mais bem­‑sucedido da histó­ ria. A. Stop, stop, stop, já! A. Pois sim, letra A. De Aurélio Pereira, o elo entre todas estas figuras do nosso contentamento. Ao todo, Aurélio representa a descoberta de 62 internacionais AA. O seu abecedário é do mais vasto que há, as suas ramificações estendem­ ­se até ao infinito. E mais além. Aurélio da Silva Pereira nasce a 1 de outubro de 1947. É uma quarta­‑feira. A temperatura máxima para Lisboa é de 26 °C, a mínima de 15 °C. A Rádio Renascença abre a emissão às 18h00 com o boletim religioso e fecha à meia­ ­noite com a leitura da programação do dia seguinte. E a televisão? Essa é boa, ainda faltam dez anos para a abertura da RTP. 18 Aurélio Pereira Nos cinemas, o Chiado Terrasse, na antiga Rua do Tesouro Velho, atual Rua António Maria Cardoso, apresenta o enésimo filme da série «Bucha e Estica». Chama­‑se Mestres de Dança e começa às 21h15. Por muito engraçado que seja, nada se compara ao Bola ao Centro, com Raul de Carvalho, Maria Domingas, José Amaro, Barroso Lopes, Tomás de Macedo e as irmãs Meire­ les. Como assim, nada se compara? O filme português está em três salas: Odeon, Palácio e Capitólio. No cinema Condes, é a 20.ª semana das matinés diárias de Capas Negras, com Amália Rodrigues e Alberto Ribeiro. Outro pormenor delicioso, este relacionado com os números de telefones em Lisboa: ainda só têm cinco algarismos. E futebol, que tal? A um mês e meio do início do campeonato nacional, a notícia futebolística mais palpitante do dia é a carta enviada pelo central belenense Feliciano para o apartamento de Rogério Pipi no Rio de Janeiro, a pedir­‑lhe ajuda na procura de um clube brasileiro. Repetimo­‑nos: 1947, nasce Aurélio Pereira em Alfama e vive no Beco dos Paus. A família muda­‑se para a Venda Nova, concelho da Amadora, e é lá que se cruza com Jorge Jesus. Ou vice­‑versa. «Pouca gente sabe que aquela expressão de “andarmos juntos na escola” pode ser literalmente aplicada ao míster Aurélio Pereira e à minha pessoa. Na década de 1960, na escola Pedro de Santarém, na Venda Nova, apesar de não sermos da mesma classe, recordo­ ­me perfeitamente de partilhar o recreio da escola com ele e algu­ mas jogatanas que ali decorriam todos os dias. Longe de nós imaginar que décadas depois nos encontraríamos profissional­ mente no Sporting Clube de Portugal, cada um em funções que apaixonadamente desempenhamos. Porque é esta a imagem que eu e todos aqueles que acompanham o futebol em Portugal têm do Aurélio Pereira, a de um homem apaixonado pelo futebol, pela sua essência, pelo talento bruto à espera do seu olho clínico.» Calma, estamos a ir muito depressa. Abrandemos o ritmo. E passemos a bola a Aurélio Pereira. Ver para Crer 19 * Cresci no meio de miúdos atrevidos, amigos do bairro, esse suporte tão importante. Hoje, temos medo de deixar os filhos brincar na rua. Antigamente, os miúdos iam à escola de manhã e depois do almoço andavam todos soltos por aí, sobretudo a rou­ bar fruta aos vizinhos. Naquela zona, entre a Venda Nova e Ben­ fica, havia quintas e mais quintas com maçãs, peras e sei lá mais o quê. De vez em quando, o dono da quinta saía com uma espin­ garda de pressão de ar em riste e disparava sal. Sim, senhor, escrevi bem: sal. Aquilo era tramado, porque andávamos quase sempre de calções. Então levar com sal nas pernas era uma coisa tramada. Doía que se fartava. Antes ou depois dessas aventuras e desventuras nas quintas, jogávamos à bola, ali ao pé da igreja de Benfica. Eram jogatanas intermináveis. Ou pareciam intermináveis. Às cinco da tarde, paragem obrigatória para lanchar produtos da Cáritas, através da igreja de Benfica: leite em pó, margarina e marmelada. Tudo a cargo do padre Álvaro Proença. Paralelamente, também havia a família Lobo Antunes, que abria as portas de sua casa para dar comida aos miúdos desfavorecidos. Um momento futebolístico, pouco falado, por sinal, ocorre nesse período.
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