2 Microfísica Do Poder Jovem
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2 Microfísica do Poder Jovem 2.1 As formas simples do pragmatismo “... o poder é sempre jovem, quando é alguma coisa mais do que o poder.” Carlos Drummond de Andrade Na memória esportiva nacional, o segundo semestre do ano de 1966 ficaria marcado pela perda da Seleção Brasileira de futebol na Copa do Mundo da Inglaterra. O abalo com a derrota e com o medíocre desempenho naquele torneio internacional, que adiaria por mais quatro anos a conquista do inédito tricampeonato para o país, seria seguido ainda pelo pesar com o desaparecimento de uma das figuras mais atuantes e proeminentes do mundo esportivo no Brasil: Mário Rodrigues Filho. Aos cinqüenta e oito anos de idade, o falecimento do jornalista pernambucano representava o fim de uma vida que se confundia com a própria história do futebol profissional e com a criação de alguns dos maiores espetáculos de massa no país. Durante um período que se estende por quatro décadas – dos anos de 1920 aos anos de 1960 –, Mário Filho exerceu larga influência sobre a área do esporte, da cultura e da política. Na cidade do Rio de Janeiro, foi reconhecido como introdutor de um novo modelo narrativo de crônica esportiva e como promotor do Desfile das Escolas de Samba na década de 1930. Por ocasião de sua morte e de seu enterro, os superlativos atribuídos a Mário Filho – “o homem fluvial”, “o inventor de multidões”1 – não se restringiram ao âmbito retórico e mobilizaram de igual maneira ações concretas com o intuito de fixar uma imagem grandiosa e de criar um “lugar de memória”2 para o jornalista na posteridade. A sugestão do radialista Valdir Amaral e do cronista Nelson Rodrigues, seu irmão mais novo, enviada à Câmara de Vereadores da cidade, culminou com a mudança no nome do 1 Cf. RODRIGUES, N. “O homem fluvial”. In: RODRIGUES FILHO, M. O sapo de Arubinha: os anos de sonho do futebol brasileiro. São Paulo: Companhia das Letras, 1995. 2 Cf. NORA, P. “Entre memória e história – a problemática dos lugares”. In: Revista Projeto História. São Paulo: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 1993, n.º 10. 159 Estádio Municipal do Rio de Janeiro, o Maracanã, para Estádio Mário Filho, praça desportiva que ele tanto se empenhara em construir nos anos 50. Como seria de se esperar, o Jornal dos Sports, de que fora diretor-proprietário durante trinta anos (1936-1966), também lhe prestou uma série de homenagens póstumas e desde então deixou de ser veiculado com o subtítulo “o matutino esportivo de maior circulação na América do Sul” e passou a adotar simplesmente o bordão “o jornal de Mário Filho”. O primeiro bordão, no entanto, se tratava de uma adaptação e de uma ampliação do slogan do jornal A Crítica, de propriedade do pai de Mário Filho, que em setembro de 1929 passou a circular com o dizer “o matutino de maior circulação do Brasil”3. A transformação do Estádio Municipal do Rio de Janeiro em Estádio Mário Filho pode ser entendida, na acepção do historiador francês Pierre Nora, como parte do processo de construção da memória nacional. Ele passa por uma articulação com a história e com a experiência temporal em três dimensões: material, simbólica e funcional. Neste sentido, seria possível compreender de que maneira o espaço físico das arenas e dos complexos esportivos modernos recebe a designação oficial dos nomes de seus agentes tidos como mais destacados no passado, de modo a estabelecer uma unidade e um continuum com as gerações seguintes. No caso do periódico, entretanto, o impacto da morte de seu principal artífice acarretava mudanças internas significativas. De maneira análoga à época do falecimento de seu pai, o também jornalista Mário Rodrigues, dono na década de 1920 dos jornais sensacionalistas A Manhã (1925) e A Crítica (1928), que viriam a ser empastelados pela Revolução de 30, a morte de Mário Filho trazia para a família novos desafios na condução de sua empresa e no prosseguimento de um projeto de imprensa esportiva que havia se tornado hegemônico na antiga capital da República e no Brasil. Mais do que isso, a morte de Mário Filho reavivou uma tragédia por que havia passado aquela numerosa família que estruturou sua existência no campo do jornalismo. Ela dizia respeito a um acontecimento fatal com um dos irmãos de Mário, o jovem e talentoso artista plástico Roberto Rodrigues, assassinado em 1929 em represália a uma notícia por ele veiculada em sua coluna de A Crítica, que 3 Cf. BARBOSA, M. História cultural da imprensa: Brasil, 1900-2000. Rio de Janeiro: Mauad X, 2007, p. 61. 160 tratava da vida íntima conjugal de uma personagem da alta sociedade carioca, Sylvia Tibau, ferindo os brios da moça e precipitando a fatalidade. Diante do isolamento e do ostracismo político, a astúcia do primogênito na mudança de direção da atividade jornalística resultou em uma recomposição exitosa para a família. O investimento de Mário Filho nos esportes amadores e no futebol profissional propiciou um espaço promissor de atuação, de crescimento e de reconversão de sua identidade no meio jornalístico nas décadas seguintes, iniciada em O Globo e materializada com a aquisição do Jornal dos Sports – periódico fundado em 1931 por Álvaro Nascimento e Argemiro Bulcão, ambos até então donos do Rio Sportivo. Mário Filho comprou o JS em outubro de 1936, graças ao apoio financeiro inicial dos amigos Roberto Marinho, Arnaldo Guinle e José Bastos Padilha. Mas o vácuo criado com seu enfarte em 1966, seguida da morte de outro irmão no ano seguinte, Paulo Rodrigues, vítima trágica do desabamento do prédio em que morava, levou novamente a uma situação de indeterminação e de modificação dos destinos familiares. Em um primeiro momento, a mulher Célia Rodrigues assumiu de maneira interina a chefia do jornal e procurou dar continuidade ao sucesso do empreendimento iniciado pelo marido, até que um súbito acontecimento transtornou mais uma vez a família. Transcorrido pouco mais de um ano, em dezembro de 1967, a viúva de Mário Filho também vem a falecer, com o cometimento de um suicídio. As especulações sobre as insondáveis motivações de ordem psicológica que teriam provocado aquele ato fatal não excluiriam por parte do cunhado, Nelson Rodrigues, em uma crônica publicada pouco depois do incidente em O Globo, “Amor para além da vida e da morte”, o dilaceramento diante da perda e da ausência do marido depois de quarenta anos de união matrimonial4. Coube enfim ao filho único, Mário Júlio Rodrigues, a tarefa de assumir em 1967 a mais alta posição que havia pertencido a seu pai no jornal. A sucessão, contudo, não constituiria nos anos seguintes uma mera transferência de poder na manutenção e na administração de uma herança patrimonial. Assim como havia sucedido entre o avô e o pai, quando este último vislumbrou nos 4 A crônica foi escrita em 23 de dezembro de 1967 e publicada em livro de antologia de crônicas selecionadas por Ruy Castro. Cf. RODRIGUES, N. O óbvio ululante: primeiras confissões. São Paulo: Companhia das Letras, 1993, p. 61. 161 esportes, segundo o antropólogo José Sérgio Leite Lopes5, um novo meio de fazer política, o representante da terceira linhagem desta árvore genealógica também iria imprimir uma marca específica na esfera do jornalismo esportivo, no final da década de 1960. Embora sempre inspirado no exemplo paterno, é possível perceber no sucessor um alargamento considerável no conceito de jornalismo esportivo vigente até aquela altura, em consonância também com as transformações por que passava a indústria gráfica e a indústria cultural desde o decênio anterior. Além das alterações de conteúdo e de informação, o novo estilo do jornal coadunava-se às reformas editoriais que vinham se processando em outros periódicos, como as efetuadas, por exemplo, por Jânio de Freitas no Jornal do Brasil, em fins de 1950. A alteração era implementada com a compra de novos equipamentos gráficos e com a viagem da condessa Pereira Carneiro – proprietária do JB ─ aos Estados Unidos, a fim de atualizar o jornal com as mudanças diagramáticas em curso naquele país, também conhecidas como new journalism, que incorporavam a objetividade do lead em suas reportagens com a regra dos cinco W e um H (where, who, when, what, why e how). A reformulação do jornal abrangeu ainda a criação de um Suplemento Dominical em 1956, do Caderno B – voltado para teatro e cinema – e do Caderno C – específico para classificados – em 1960, transição consolidada no ano seguinte com a entrada de Alberto Dines na editoria do jornal.6. A inflexão na política editorial do Jornal dos Sports seguiria tal tendência, mas não se daria sem dificuldades, com a passagem por graves dificuldades financeiras, que ao longo do tempo tentariam ser sanadas por Mário Júlio Rodrigues. A alternativa inicial à delicada situação em que se encontrava o periódico consistia na diversificação do público-alvo do Jornal dos Sports e na ampliação do escopo temático de suas reportagens. Se o noticiário esportivo continuava sendo a pedra angular do jornal, logo ele passava a conviver com outra ordem de assuntos, que incluíam o jornalismo estudantil e o jornalismo cultural. Embora Mário Filho já tivesse desenvolvido 5 Cf. LOPES, J. S. L. “A vitória do futebol que incorporou a pelada”. In: Revista USP. São Paulo: s.e., 1994, nº 22, p. 78 e 79. 6 Cf. FERREIRA, M. de M.. “A reforma do Jornal do Brasil”. In: ABREU, A. A. de. (Org.). A imprensa em transição: o jornalismo brasileiro nos Anos 50. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas Editora, 1996, p. 151-154. 162 com maestria a união entre o futebol e a música popular desde a década de 1930, os esportes passavam agora a ser integrados em um contexto mais amplo, que abrangia também temas relativos à cultura, à educação e à juventude.