DA MILITÂNCIA FEMINISTA AO DOCUMENTÁRIO CONTEMPORÂNEO: A TRAJETÓRIA INCOMUM DE HELENA SOLBERG

Mariana Ribeiro da Silva Tavares1

Resumo: Este trabalho aborda os dezesseis filmes (quatorze documentários e duas ficções) realizados pela cineasta brasileira Helena Solberg nas últimas seis décadas. Questões pessoais vividas pela cineasta e suas contemporâneas de colégio no RJ são abordadas em seu primeiro filme A Entrevista (1966). O deslocamento para os Estados Unidos propicia reflexões históricas, sociais e políticas sobre a ação de mulheres estadunidenses e inglesas no ambiente doméstico e no espaço público originando The Emerging Woman (A Nova Mulher), de 1974. Essas investigações se estendem para Venezuela, México, Bolívia e Argentina, originando o primeiro documentário feminista latino-americano – The Double Day (A dupla jornada), 1975 a abordar a mulher no ambiente de trabalho. Os deslocamentos geográficos tem continuidade em produções subsequentes, resultando numa trajetória incomum na qual o posicionamento político das mulheres frente à exploração sexual, no trabalho e política e mais recentemente, ao cerceamento do próprio corpo (como a questão da ilegalidade do aborto no Brasil) são alvo das investigações da cineasta.

Palavras-chave: Cinema feminista. Documentário Cinema contemporâneo.

A cineasta brasileira Helena Solberg apresenta trajetória singular no contexto da produção documental do país com filmografia que perpassa o , a militância feminista na América Latina e nos Estados Unidos, a ficção e o documentário contemporâneo. Veremos neste artigo que as questões femininas confrontadas ao contexto social, politico e econômico nas Américas são recorrentes em seu trabalho. Em 1957 Helena ingressa na PUC-RJ para cursar Línguas Neo-Latinas onde convive com estudantes como Cacá Diegues, David Neves e Arnaldo Jabor. Com eles compartilha o trabalho em O Metropolitano – suplemento do jornal Diário de Notícias, financiado pela UNE. Também frequentam as sessões na Cinemateca do MAM – Museu de Arte Moderna, no , onde assistem filmes do Neorrealismo italiano, da Nouvelle Vague francesa e outras filmografias. Nesse período, Solberg trabalha como continuísta em Capitu, 1968, de Paulo César Saraceni e como assistente de direção em A Mulher de todos, 1969, de Rogério Sganzerla. A convivência com expoentes desta geração possibilita à estudante de Neo-Latinas participar de um contexto de criação que impulsiona à experimentação audiovisual e conduz ao seu filme de estreia como diretora, o documentário em curta-metragem, A Entrevista, 1966.

1 Pós-Doutoranda (Bolsa PNPD-CAPES) no PPG Artes – Programa de Pós Graduação da Escola de Belas Artes – Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, Brasil.

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A concepção do filme é compartilhada em conversas com o cineasta Glauber Rocha que, inclusive, avaliza o projeto para a obtenção de financiamento junto à Carteira de Auxílio à Industria Cinematográfica (CAIC), que, naquele momento, apoiava as produções do novo cinema que surgia no Brasil.

Mário Carneiro, que já havia fotografado O Padre e a Moça, 1965, de Joaquim Pedro de Andrade, e Arraial do Cabo, 1959, dirigido por ele e Paulo César Sarraceni, dois filmes referenciais para o movimento, assina a fotografia. A montagem fica a cargo de Rogério Sganzerla, que participa do Cinema Novo e que se torna pouco depois, um dos principais nomes do Cinema Marginal no Brasil.

A experimentação, a reflexividade, a encenação, a ambiguidade, as elipses temporais, a ausência de narração off, a quase ausência de entrevistas em som direto, o uso da ficção e o assincronismo entre sons e imagens apontam para uma singularidade estilística que irá marcar o cinema de Solberg. A autonomia na escolha do tema – a condição da mulher carioca, de classe média-alta – contraria a pauta cinemanovista que, com frequência, elegia como personagem “a miséria de uma massa camponesa, sofredora e apática, não só do Nordeste brasileiro, como do campesinato latino-americano e do Terceiro Mundo em geral” – como salientou Jean-Claude Bernadet (BERNADET, 2003, p. 240).

Equipada com um gravador Nagra que ela mesma opera, a diretora entrevista 30 mulheres que haviam sido suas contemporâneas de colégio. As conversas são gravadas ao longo do ano de 1964 e giram em torno das aspirações dessas mulheres na adolescência e suas atitudes em relação ao casamento, sexualidade, virgindade, educação recebida dos pais, criação de filhos e engajamento político. Neste mesmo ano, entidades femininas de perfil conservador, como a Campanha da Mulher pela Democracia (CAMDE), setores da elite econômica dentre outros, organizam uma série de marchas – Marcha da Família com Deus pela Liberdade – em resposta ao comício realizado no Rio de Janeiro, em 13 de março de 1964, no qual o então presidente João Goulart anuncia seu programa de reformas de base. Apoiada por boa parte da imprensa, a elite política e econômica congrega segmentos da classe média, temerosos do “perigo comunista” e favoráveis à deposição do Presidente da República.2

2 No dia 1º de abril de 1964, o presidente João Goulart seria deposto através de um golpe civil-militar.

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Parte significativa das jovens entrevistadas em A Entrevista pertence à esta elite e quando interrogada no filme, revela sentimentos contraditórios e desinformação a respeito da realidade social e política do país. Esta incoerência também se manifesta nos demais temas abordados. As vozes das mulheres são montadas em over sobre imagens que reforçam o ritual de preparação para o casamento em que uma noiva (interpretada por Glória Solberg) se veste de branco (ideal de pureza) e se maqueia.

Nesta articulação da montagem, Solberg dá os primeiros passos na criação de um estilo próprio que emerge em filmes posteriores. A Entrevista introduz imagens que farão parte de seu arquivo pessoal: as bonecas aparecerem nesse primeiro filme em quartos de crianças, para em filmes seguintes, surgir em vitrines de lojas (The Emerging Woman, 1974) ou esfaceladas (, Bananas Is My Business, 1995).

Por fim, a contextualização do momento político – Marcha da Família com Deus pela liberdade e o golpe militar de 1º de abril de 1964 – salienta outro procedimento recorrente em seu cinema, que não se contenta em focar apenas os indivíduos. É preciso relacioná-los a um contexto social, político e econômico.

O curta-metragem antecipa, do ponto de vista temático e formal, a Trilogia da Mulher realizada em seguida, nos EUA, para onde Solberg se muda com a família em 1971. O primeiro filme da trilogia é The Emerging Woman (A Nova Mulher, 1974), feito com mulheres do coletivo International Women’s film Project criado para realizar filmes sobre temáticas feministas. Nesse média-metragem, Solberg prossegue na utilização de elementos ficcionais para contar a história do Movimento Feminista nos EUA e na Inglaterra. A ficção se manifesta no uso de vozes femininas na interpretação de textos escritos na 1ª pessoa, por ativistas em 200 anos de história.

O diálogo criado no roteiro, entre a narração do filme e as interpretações do material original escrito pelas militantes; o processo colaborativo de realização do International Women’s film Project explicitados em imagens no início do documentário; a pesquisa de material de arquivo e o poder de síntese do roteiro, ao percorrer, de forma pioneira em documentário, a trajetória das mulheres nos EUA, fazem de The Emerging Woman um significativo documento histórico. No mesmo ano, foi lançado o documentário Women’s rights in the U.S, an informal history (dir: Dan Klugherz) com temática similar, mas sem a preocupação em percorrer a história com rigor cronológico.

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The Emerging Woman é incluído como um dos filmes oficiais da Comissão Bicentenária Americana, em 1976 – série de celebrações que homenageiam os eventos históricos que levaram à criação dos Estados Unidos como república independente.

O filme é também a pedra fundamental do International Woman’s Film Project, coletivo de mulheres de várias nacionalidades, que realiza também os próximos filmes da trilogia. O tema de The Emerging Woman se estende para a América Latina e o coletivo para Argentina, México, Venezuela e Bolívia, no intuito de registrar a condição da mulher de classe baixa no trabalho e em casa. Esse processo resulta em seu primeiro longa-metragem, The Double Day (A dupla jornada, 1975).

O filme parte de uma hipótese: de que nos países subdesenvolvidos a necessidade de ligar a opressão da mulher a uma análise econômica da sociedade se faz necessária. A maioria das mulheres da América Latina é duas vezes oprimida: compartilha com os homens a opressão de classe e, ao mesmo tempo, sofre opressão, por serem mulheres. Em The Double Day, pela primeira vez, Solberg entrevista o “outro popular” ou o “outro de classe” (na acepção de Jean-Claude Bernardet).

A limitação de tempo na montagem, feito para estrear na sessão de abertura da Primeira Conferência Internacional da Mulher, na cidade do México, em 1975 e a articulação das entrevistas e narração em voz over para comprovar a hipótese, fazem com que o documentário se assemelhe a um debate entre mulheres dos países visitados.

A objetividade do tema se manifesta na forma que não abre espaço para os momentos oníricos, a ficção, a oposição de significados e as imagens do universo autoral de Solberg. A reflexividade é também evidenciada na apresentação da equipe de filmagem composta pelas mulheres do coletivo, o que reforça a mulher no trabalho, exercendo funções comumente associadas a equipes masculinas e insere o média-metragem no contexto da produção norte-americana de documentários feministas da década de 1970 que eram fruto de trabalho colaborativo entre mulheres.

O pesquisador estadunidense David William Foster acrescenta que The Double Day é considerado o primeiro documentário latino-americano sobre o feminismo, no qual a cineasta discute com as entrevistadas, o dia a dia no trabalho, demonstrando a natureza da dupla jornada,

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onde a primeira parte ocorre nas fábricas ou no campo e a segunda, no ambiente doméstico (FOSTER, 2012, p.55). Distante da pressão do tempo e com a liberdade de fazer o filme que desejava, Helena pôde aproximar-se de seu universo poético, sem perder de vista, a análise histórica em Simplesmente Jenny, 1977, feito a partir do material bruto de The Double Day. O filme reverbera as mesmas questões mas se diferencia ao focar três personagens femininas adolescentes – Jenny, Marly e Patrícia – estupradas e conduzidas à prostituição na Bolívia. Presas em um reformatório para meninas, elas revelam consciência de sua condição, sem perderem o ideal do casamento romântico, de se tornarem profissionais e terem acesso aos padrões de consumo da classe média. Os temas de The Double Day se repetem sob novo prisma, com mais liberdade na articulação de seu universo poético. Observamos nesse terceiro filme da trilogia a transição para a fase seguinte em que as relações políticas entre os Estados Unidos e a América Latina são problematizadas, gerando seis documentários viabilizados e exibidos em Rede Pública Nacional de Televisão naquele país, PBS (Public Broadcasting Service). São filmes que também utilizam procedimentos do cinema militante, da reportagem televisiva e do documentário clássico contemporâneo. Em geral, buscam identificar a ação da política externa estadunidense em apoio às ditaduras latino-americanas nos anos de 1980. Questionam o papel da igreja Católica e identificam a capacidade de mobilização dos civis frente aos regimes totalitários, como nos dez anos de ditadura do General Augusto Pinochet no Chile (Chile, By Reason or By Force - Chile, pela Razão ou pela Força, 1983) ou na mobilização popular na Nicarágua, contra os 45 anos de ditadura da família Somoza, o que provoca a Revolução Sandinista (From the Ashes... Nicaragua Today/ Nicarágua Hoje, 1982). O primeiro da série é From The Ashes que marca o início da parceria com o produtor norte- americano David Meyer e com a PBS. O longa parte das questões femininas ao eleger uma família nicaraguense composta, em grande parte, por mulheres, para compreender, a partir do ponto de vista dessa família, a Revolução Sandinista.

A reflexividade manifesta na voz over da própria cineasta (que não se identifica); a apresentação da história da família Chavarría em fotografias de família; o uso de imagens de arquivo de cine-jornais estadunidenses dos anos de 1940/1950; o uso de diversas vozes na interpretação para o inglês, das entrevistas gravadas originalmente em espanhol; o elenco de entrevistados entre trabalhadores das cidades e do interior, políticos e missionários fazem de From

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the Ashes... Nicaragua Today um dos documentários mais relevantes de sua filmografia. A montagem acrescenta um material de arquivo significativo com os cine-jornais que contam a relação histórica entre EUA e Nicarágua. Um fundamento que, na opinião da cineasta, contribue para que o documentário ganhasse o “Oscar” da TV norte-americana: o National Emmy Award, em 1983, por Outstanding background analysis of a current story (excelente análise de fundo para uma história atual).

From the Ashes... Nicaragua Today assim como os outros cinco filmes desta fase, são concebidos e realizados em plena Guerra Fria, marcada pelo radicalismo da política anticomunista do Presidente norte-americano Ronald Reagan, na África, Ásia, Europa e América Latina. A diretora vivencia uma situação ímpar para uma realizadora latino-americana – a de poder viver e trabalhar na América do Norte, com acesso à mecanismos internacionais de financiamento e liberdade de expressão, sem paralelo entre seus contemporâneos latino-americanos que permanecem na América do Sul, tendo de enfrentar a censura de regimes totalitários.

O reconhecimento do filme viabiliza a produção de dois projetos seguintes: Chile, By Reason or By Force (Chile, pela razão ou pela força, 1983) e The Brazilian Connection, a struggle for democracy (A Conexão Brasileira, a luta pela democracia, 1982/1983).

The Brazilian Connection introduz informações que despertam o interesse das audiências norte-americanas. Cativa o espectador para, em seguida, conduzi-lo pela história do Brasil – os governos dos Presidentes Getúlio Vargas e Juscelino Kubitscheck – e suas participações na conformação da dívida externa brasileira. O Golpe Militar de 1964 é apresentado em imagens de arquivo e narração off do âncora. É o filme de Helena Solberg que apresenta mais elementos do jornalismo televisivo, com entrevistas de políticos, economistas e especialistas.

Após a realização, Solberg e sua equipe partem para o Chile para a cobertura do 10º aniversário do governo do General Augusto Pinochet. A cobertura dá origem ao documentário Chile, By Reason or By Force (Chile, pela razão ou pela força, 1983), realizado nas mesmas condições de The Brazilian Connection (cronograma apertado e interferências da PBS quanto à linguagem do filme). O filme realizado no Brasil, traz como âncora, o então editor-chefe do New York Times, Warren Hoge, que havia trabalhado no Rio de Janeiro. Para o documentário sobre o Chile, o jornalista John Dinges, que já tinha vasta experiência na cobertura de matérias sobre a América Latina e havia trabalhado no jornal The Washington Post e, também, na revista Time.

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Ambos conferem credibilidade e, embora fossem uma exigência da rede de televisão, constatamos que, através deles, está também a voz da diretora. As ideias, análises, e informações pesquisadas por Solberg e Meyer em pareceria com esses jornalistas estão por trás das informações que a locução off apresenta. Em última análise, o ponto de vista do âncora-narrador é também, o ponto de vista da cineasta.

Outra interferência da PBS era a exigência de que os documentários apresentassem diferentes pontos de vista - marca do jornalismo televisivo. Para a realização de The Brazilian Connection, Helena e David entrevistam vinte profissionais que colaboram com suas opiniões sobre as relações econômicas entre o Brasil e os EUA e sobre a estrutura política e econômica do Brasil em 1982. O filme propõe amplo debate de ideias a respeito das relações entre os dois países e se sustenta nas entrevistas, prendendo a audiência, que chega a solicitar à PBS, uma reprise, após sua veiculação em rede nacional nos Estados Unidos.

Nos filmes políticos, a voz off é um elemento que conduz a narrativa, mas sem reivindicar o discurso absoluto sobre os temas tratados. É uma voz que convive com outras, na composição de painéis sobre as realidades investigadas. Desta forma é também estruturado, Portrait of a Terrorist (Retrato de um terrorista, 1986).

O longa-metragem parte de um pretexto – o terrorismo – para abrir o leque a respeito dos sucessivos atentados contra cidadãos e instituições norte-americanos no mundo, visando provocar a reflexão das audiências no país, a respeito das causas desses atentados.

Nesse filme, excepcionalmente, Helena centra-se nos personagens que haviam vivido os dois lados de um sequestro: um sequestrador - Fernando Gabeira3 e uma vítima de sequestro – o então embaixador americano para o Brasil, Diego Asencio4 – para garantir a oposição de visões e contribuir para o debate. O filme contrapõe as opiniões e, ao mesmo tempo, amplia as discussões ao percorrer sucessivos atentados às instituições americanas no exterior, bem como o próprio conceito de “terrorismo”.

3 Em 1969 Fernando Gabeira, integrante do MR-8 (Movimento Revolucionário 8 de outubro) havia participado do primeiro sequestro no mundo, de um diplomata americano, o embaixador Charles Elbrick que trabalhava na Embaixada dos Estados Unidos na cidade do Rio de Janeiro, Brasil. 4 Diego Asencio foi sequestrado junto com vários colegas pelo grupo guerrilheiro M19 em Bogotá, na Colômbia em 1980. Ficou cativo por mais de 60 dias, sendo libertado após extensas negociações que tiveram inclusive, ajuda do governo cubano.

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A partir do panorama traçado pelo documentário que revisita a temática das relações internacionais entre EUA e América Latina, a cineasta começa a encerrar o ciclo latino-americano ao mesmo tempo em que lança o olhar sobre outras questões a respeito da região como a revisão do papel da igreja Católica em The Forbidden Land (A Terra Proibida, 1990) e a relação das nações indígenas com a terra em Home of the Brave (Berço dos Bravos, 1986). Ambos apresentam discussões sobre as lutas/ mobilizações políticas de homens e mulheres do campo pela terra.

Em Home of the Brave a possibilidade de diálogo entre diversos povos indígenas do mundo inteiro em torno dessas questões o insere num debate internacional. Nas filmagens, Helena e sua equipe convivem durante uma semana, com uma família de índios Navajo no interior do país. No centro da família, a índia Katherine Smith é acompanhada em seu dia-a-dia, na lida com os animais e com a terra.

Em The Forbidden Land é feita a análise dos conflitos entre a igreja Católica conservadora e sua ala progressista, manifesta na Teologia da Libertação, tendo como mote a luta dos trabalhadores sem terra. Exibido pela PBS em 1990, o documentário encerra a Fase Política Latino-Americana e conduz à Carmen Miranda: Bananas Is My Business (Carmen Miranda, Meu Negócio É Bananas,1994) que marca o retorno à temática feminina centrada na personagem de Carmen tendo como pano de fundo, a política da boa vizinhança entre Brasil e EUA no período da Segunda Guerra Mundial.

O longa percorre a vida e obra da cantora luso-brasileira Carmen Miranda com o objetivo de reconstituir sua história e sua contribuição para a cultura brasileira como uma das primeiras intérpretes do samba a levar de forma pioneira e com estilo único, a música popular brasileira para a América do Norte. Helena arrisca-se ao potencializar de maneira reflexiva, a voz na primeira pessoa do singular que, como um desabafo íntimo, expõe as dificuldades na coleta de documentos sobre Carmen e na investigação de sua vida, ao mesmo tempo em que questiona os impasses vividos pela artista no país. A abordagem da personagem é pessoal, afetiva. Solberg cria um terceiro plano que é o da memória afetiva, como se sua voz fosse a de uma amiga, um parente próximo à cantora.

O uso da ficção; o intenso trabalho de pesquisa de imagens ao longo de três anos; a memória de dezesseis entrevistados que conviveram com a artista e concedem seu último testemunho, fazem

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de Carmen Miranda, Bananas Is My Business um dos grandes documentários brasileiros da década de 1990 e um dos filmes relevantes do período da retomada do cinema nacional.

Carmen Miranda, Bananas Is My Business é também um filme de transição para as produções seguintes que evidenciam diferentes manifestações artísticas brasileiras como a literatura, a música e a dança. O reconhecimento do filme em festivais nacionais e internacionais alavanca a produção de Vida de Menina, 2004, rodado no Brasil, depois do retorno de Solberg ao país. Produzir e filmar no Brasil torna-se novamente possível com a redemocratização, a criação da Ancine – Agência Nacional do Cinema e a implementação de mecanismos de incentivo a produção nacional.

Primeiro longa-metragem ficcional da cineasta, Vida de Menina é um adaptação de Helena Morley, Minha Vida de Menina de Alice Dayrell Caldeira Brant. Publicado pela primeira vez em 1942, pela José Olympio, o livro é o diário da autora, escrito nos tempos de menina-moça, na cidade de Diamantina/MG, entre 1893 e 1895. Alice Dayrell Caldeira Brant/ Helena Morley tinha entre 13 e 15 anos de idade e presencia na província, um período de grandes transformações políticas, econômicas e sociais: o fim da Monarquia; a Proclamação da República (1889); a abolição da escravatura (1888) e, no plano regional, o esgotamento das jazidas de diamantes, o que provoca a decadência e o empobrecimento de várias famílias, dentre elas, a da própria autora.

Alice Dayrell publica o diário no Rio de Janeiro, aos 62 anos de idade, para mostrar às netas, que o período mais feliz de sua vida, havia sido a adolescência na província mineira. Época sem luz elétrica, sem telefone, geladeira, fogão e outras comodidades que iriam revolucionar o cotidiano de mulheres e homens no século XX.

Atenta às transformações nas relações sociais, políticas e econômicas à sua volta, Alice / Helena escreve o diário com humor e perspicácia sobre o que vê, ouve e sente. Com a escrita, ela se constrói. Ela interpreta os acontecimentos no dia à dia e desenvolve um olhar de fora, estrangeiro. A escrita possibilita que crie um distanciamento com relação aos acontecimentos, permitindo compreendê-los melhor. Possibilita também que se individue, se construa como pessoa, apesar de toda a fragmentação dos tempos de adolescência. A personagem é interpretada pela atriz Ludmila Dayer.

A relação com a palavra escrita iniciada no filme, se estende para o documentário Palavra (En)cantada, 2009 que parte da relação entre a poesia e a canção brasileira para traçar um panorama

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da música popular no país, em momentos importantes – a conformação do samba e da canção nos anos de 1930; os antecedentes da bossa nova; o tropicalismo; o rock nos anos de 1980; o rap e o hip hop a partir da década de 1990 e a diversidade de estilos que encontramos na música popular brasileira contemporânea. Para traçar o percurso, Solberg conta com os depoimentos e performances de dezoito artistas, entre músicos, poetas, intérpretes e pensadores da música brasileira. Como uma espécie de leitmotiv, a relação da música com a palavra é reiterada nas questões que a cineasta propõe, incitando-os a refletirem sobre o lugar da literatura e da poesia em seus processos criativos.

Palavra (En)cantada é um filme de depoimentos, embora utilize, igualmente, imagens de arquivo e interpretações dos músicos. Percebemos um peso maior na entrevista/filmagem com a cantora Adriana Calcanhoto que introduz e encerra o longa-metragem. Para o pesquisador Hernani Heffner, Helena Solberg revela, com o filme, “estar extremamente afinada com a ideia de poética contemporânea, onde a língua não só instrumentaliza o real, a língua cria o real”. E acrescenta: “Helena tem um olhar que se manteve contemporâneo ao longo de toda a sua trajetória artística”.5

O filme acaba por apresentar um panorama denso da música popular no Brasil. Como defende o professor, músico e pesquisador José Miguel Wisnik em um dos depoimentos: “Em um país com uma forte cultura oral como o Brasil, a música popular pode ser a grande ponte entre a poesia e a literatura”. Ideia reforçada por outros depoimentos, pelas performances musicais e material de arquivo, tornando Palavra (En) cantada referância para a compreensão da história do cancioneiro no país.

Três anos após o lançamento, a diretora junto com o produtor David Meyer, retoma um projeto que haviam iniciado em 2002: acompanhar adolescentes do projeto Corpo de Dança da Marés, coordenado pelo educador e coreógrafo Ivaldo Bertazzo. Por meio da expressão da fala e do corpo desses jovens está a busca dos diretores pela expressão corporal, pela construção da fala e pela individualidade dos jovens bailarinos. Todos enfrentam as condições precárias de moradia, transporte, segurança e higiene do Complexo da Maré onde vivem. O local reúne diversas comunidades e favelas às margens da baía de Guanabara, zona norte do Rio de Janeiro.

Assim como o clássico Cabra Marcado para Morrer 1984, de Eduardo Coutinho, o filme é rodado em dois tempos: no acompanhamento dos ensaios para o espetáculo em 2002 e no retorno da

5 Hernani Heffner em entrevista a Mariana Tavares no Rio de Janeiro, em 04.01.11.

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equipe, dez anos depois, em 2012, para saber se a experiência com a arte poderia ter despertado um processo de transformação na vida dos adolescentes, agora jovens adultos.

A partir do depoimento de uma das jovens, surge o nome do filme A Alma da Gente assim como, 35 anos antes, havia surgido o título de Simplesmente Jenny, 1977, quando Jenny (vítima de um estupro com apenas 13 anos de idade e, como dito, presa em um reformatório para meninas na Bolívia) disse para a câmera “eu queria ser simplesmente Jenny”.

Embora não seja um filme feminista, A Alma da Gente ,2013, tem uma forte presença de adolescentes mulheres que, para a desolação da cineasta no reencontro dez anos depois, estavam grávidas, ainda bem jovens. Entre as poucas exceções, Joana, a única que efetivamente, seguiu a carreira artística e se tornou bailarina.

Em 2017, a cineasta lança o documentário Meu corpo minha vida que trata da questão da ilegalidade do aborto no Brasil a partir da trajetória de Jandyra dos Santos, vítima fatal de um procedimento em uma clínica clandestina em Campo Grande, zona oeste da cidade do Rio de Janeiro. São retomadas questões presentes na Trilogia da Mulher como a imagem idealizada de pureza e submissão da mulher, reforçada agora, pela Igreja Evangélica, assim como a idealização do casamento romântico, com atenção aos movimentos de mulheres feministas da 3ª onda, que saem às ruas das metrópoles brasileiras e reivindicam a liberdade de seus corpos e de suas vidas e também, justiça para o caso Jandyra.

O amplo debate proposto em filmes anteriores se repete manifesto em depoimentos de juízes, advogados, pastores evangélicos, ativistas, escritores, profissionais da saúde, politicos, além de familiares de Jandyra. Meu corpo, minha vida chama a atenção para a urgência do debate a respeito da discriminalização do aborto no país.

Aos 78 anos de idade, Helena Solberg está em plena maturidade profissional, com fôlego para a realização de inúmeros projetos. A convivência intelectual e produtiva com David Meyer (que é também cineasta) e os novos produtores, roteiristas, montadores e demais profissionais que colaboraram em seu trabalho, propiciam discussões e o desenvolvimento de novos projetos. No foco da câmera, a presença da mulher que critica seu meio, e investe em novas formas de relacionamento com os parceiros, com os filhos, com o país. Um reflexo de sua postura enquanto mulher - cineasta entre duas Américas: a Latina e a anglo-saxã.

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Referências

BERNARDET, Jean-Claude. Cineastas e imagens do povo. 1ª reimpressão, São Paulo: Companhia das Letras, 2003.

BURTON, Julianne. Helena Solberg-Ladd In: Cinema and Social Change in Latin America. Austin Texas: University of Texas Press, 1986.

FOSTER, David William. This woman wich is One: Helena Solberg-Ladd’s The Double Day. Disponível em: http://dx.doi.org/10.1080/13260219.2012.691261. Acessado em 09 de setembro de 2016. Publicado em: 17 julho 2012. Journal of Iberian and Latin American Research

SOLBERG, Helena. The Emerging woman. (Filme completo) https://archive.org/details/theemergingwoman.

TAVARES, Mariana. Helena Solberg: do cinema novo ao documentário contemporâneo. 1ª ed. São Paulo: Imprensa Oficial/É Tudo Verdade, 2014. www.radiantefilmes.com Site oficial da produtora de Helena Solberg e David Meyer

From feminist militancy to contemporary documentary: the unusual trajectory of Helena Solberg.

Abstract: This presentation approaches the sixteen films (fourteen documentaries and two fictions) made by the brazilian filmmaker Helena Solberg in the last six decades. The domestic space and personal issues of classmates from school in Rio de Janeiro are addressed in her first film The Interview (1966). The consciousness of being latin american emerges in the where she moves with her family in 1971. This shift will raise historical, social and political issues about the 200 years of the feminist movement in the US and in England covered in The Emerging Woman, 1974. Those issues are extended to four latin american countries resulting in the first latin american feminist documentary - The Double Day about women in labor, 1975. Geographical shifts will continue in subsequent productions, resulting in a an unusual trajectory in which the political position of women against sexual exploitation, labor’s exploitation and Latin American dictatorships and, more recently, against the restriction of their body itself (such as the question of the ilegality of abortion in ) are investigated by Solberg. Keywords: Feminist cinema. Documentary. Contemporary cinema.

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