Da Militância Feminista Ao Documentário Contemporâneo: a Trajetória Incomum De Helena Solberg
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DA MILITÂNCIA FEMINISTA AO DOCUMENTÁRIO CONTEMPORÂNEO: A TRAJETÓRIA INCOMUM DE HELENA SOLBERG Mariana Ribeiro da Silva Tavares1 Resumo: Este trabalho aborda os dezesseis filmes (quatorze documentários e duas ficções) realizados pela cineasta brasileira Helena Solberg nas últimas seis décadas. Questões pessoais vividas pela cineasta e suas contemporâneas de colégio no RJ são abordadas em seu primeiro filme A Entrevista (1966). O deslocamento para os Estados Unidos propicia reflexões históricas, sociais e políticas sobre a ação de mulheres estadunidenses e inglesas no ambiente doméstico e no espaço público originando The Emerging Woman (A Nova Mulher), de 1974. Essas investigações se estendem para Venezuela, México, Bolívia e Argentina, originando o primeiro documentário feminista latino-americano – The Double Day (A dupla jornada), 1975 a abordar a mulher no ambiente de trabalho. Os deslocamentos geográficos tem continuidade em produções subsequentes, resultando numa trajetória incomum na qual o posicionamento político das mulheres frente à exploração sexual, no trabalho e política e mais recentemente, ao cerceamento do próprio corpo (como a questão da ilegalidade do aborto no Brasil) são alvo das investigações da cineasta. Palavras-chave: Cinema feminista. Documentário Cinema contemporâneo. A cineasta brasileira Helena Solberg apresenta trajetória singular no contexto da produção documental do país com filmografia que perpassa o cinema novo, a militância feminista na América Latina e nos Estados Unidos, a ficção e o documentário contemporâneo. Veremos neste artigo que as questões femininas confrontadas ao contexto social, politico e econômico nas Américas são recorrentes em seu trabalho. Em 1957 Helena ingressa na PUC-RJ para cursar Línguas Neo-Latinas onde convive com estudantes como Cacá Diegues, David Neves e Arnaldo Jabor. Com eles compartilha o trabalho em O Metropolitano – suplemento do jornal Diário de Notícias, financiado pela UNE. Também frequentam as sessões na Cinemateca do MAM – Museu de Arte Moderna, no Rio de Janeiro, onde assistem filmes do Neorrealismo italiano, da Nouvelle Vague francesa e outras filmografias. Nesse período, Solberg trabalha como continuísta em Capitu, 1968, de Paulo César Saraceni e como assistente de direção em A Mulher de todos, 1969, de Rogério Sganzerla. A convivência com expoentes desta geração possibilita à estudante de Neo-Latinas participar de um contexto de criação que impulsiona à experimentação audiovisual e conduz ao seu filme de estreia como diretora, o documentário em curta-metragem, A Entrevista, 1966. 1 Pós-Doutoranda (Bolsa PNPD-CAPES) no PPG Artes – Programa de Pós Graduação da Escola de Belas Artes – Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, Brasil. 1 Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos), Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X A concepção do filme é compartilhada em conversas com o cineasta Glauber Rocha que, inclusive, avaliza o projeto para a obtenção de financiamento junto à Carteira de Auxílio à Industria Cinematográfica (CAIC), que, naquele momento, apoiava as produções do novo cinema que surgia no Brasil. Mário Carneiro, que já havia fotografado O Padre e a Moça, 1965, de Joaquim Pedro de Andrade, e Arraial do Cabo, 1959, dirigido por ele e Paulo César Sarraceni, dois filmes referenciais para o movimento, assina a fotografia. A montagem fica a cargo de Rogério Sganzerla, que participa do Cinema Novo e que se torna pouco depois, um dos principais nomes do Cinema Marginal no Brasil. A experimentação, a reflexividade, a encenação, a ambiguidade, as elipses temporais, a ausência de narração off, a quase ausência de entrevistas em som direto, o uso da ficção e o assincronismo entre sons e imagens apontam para uma singularidade estilística que irá marcar o cinema de Solberg. A autonomia na escolha do tema – a condição da mulher carioca, de classe média-alta – contraria a pauta cinemanovista que, com frequência, elegia como personagem “a miséria de uma massa camponesa, sofredora e apática, não só do Nordeste brasileiro, como do campesinato latino-americano e do Terceiro Mundo em geral” – como salientou Jean-Claude Bernadet (BERNADET, 2003, p. 240). Equipada com um gravador Nagra que ela mesma opera, a diretora entrevista 30 mulheres que haviam sido suas contemporâneas de colégio. As conversas são gravadas ao longo do ano de 1964 e giram em torno das aspirações dessas mulheres na adolescência e suas atitudes em relação ao casamento, sexualidade, virgindade, educação recebida dos pais, criação de filhos e engajamento político. Neste mesmo ano, entidades femininas de perfil conservador, como a Campanha da Mulher pela Democracia (CAMDE), setores da elite econômica dentre outros, organizam uma série de marchas – Marcha da Família com Deus pela Liberdade – em resposta ao comício realizado no Rio de Janeiro, em 13 de março de 1964, no qual o então presidente João Goulart anuncia seu programa de reformas de base. Apoiada por boa parte da imprensa, a elite política e econômica congrega segmentos da classe média, temerosos do “perigo comunista” e favoráveis à deposição do Presidente da República.2 2 No dia 1º de abril de 1964, o presidente João Goulart seria deposto através de um golpe civil-militar. 2 Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos), Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X Parte significativa das jovens entrevistadas em A Entrevista pertence à esta elite e quando interrogada no filme, revela sentimentos contraditórios e desinformação a respeito da realidade social e política do país. Esta incoerência também se manifesta nos demais temas abordados. As vozes das mulheres são montadas em over sobre imagens que reforçam o ritual de preparação para o casamento em que uma noiva (interpretada por Glória Solberg) se veste de branco (ideal de pureza) e se maqueia. Nesta articulação da montagem, Solberg dá os primeiros passos na criação de um estilo próprio que emerge em filmes posteriores. A Entrevista introduz imagens que farão parte de seu arquivo pessoal: as bonecas aparecerem nesse primeiro filme em quartos de crianças, para em filmes seguintes, surgir em vitrines de lojas (The Emerging Woman, 1974) ou esfaceladas (Carmen Miranda, Bananas Is My Business, 1995). Por fim, a contextualização do momento político – Marcha da Família com Deus pela liberdade e o golpe militar de 1º de abril de 1964 – salienta outro procedimento recorrente em seu cinema, que não se contenta em focar apenas os indivíduos. É preciso relacioná-los a um contexto social, político e econômico. O curta-metragem antecipa, do ponto de vista temático e formal, a Trilogia da Mulher realizada em seguida, nos EUA, para onde Solberg se muda com a família em 1971. O primeiro filme da trilogia é The Emerging Woman (A Nova Mulher, 1974), feito com mulheres do coletivo International Women’s film Project criado para realizar filmes sobre temáticas feministas. Nesse média-metragem, Solberg prossegue na utilização de elementos ficcionais para contar a história do Movimento Feminista nos EUA e na Inglaterra. A ficção se manifesta no uso de vozes femininas na interpretação de textos escritos na 1ª pessoa, por ativistas em 200 anos de história. O diálogo criado no roteiro, entre a narração do filme e as interpretações do material original escrito pelas militantes; o processo colaborativo de realização do International Women’s film Project explicitados em imagens no início do documentário; a pesquisa de material de arquivo e o poder de síntese do roteiro, ao percorrer, de forma pioneira em documentário, a trajetória das mulheres nos EUA, fazem de The Emerging Woman um significativo documento histórico. No mesmo ano, foi lançado o documentário Women’s rights in the U.S, an informal history (dir: Dan Klugherz) com temática similar, mas sem a preocupação em percorrer a história com rigor cronológico. 3 Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos), Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X The Emerging Woman é incluído como um dos filmes oficiais da Comissão Bicentenária Americana, em 1976 – série de celebrações que homenageiam os eventos históricos que levaram à criação dos Estados Unidos como república independente. O filme é também a pedra fundamental do International Woman’s Film Project, coletivo de mulheres de várias nacionalidades, que realiza também os próximos filmes da trilogia. O tema de The Emerging Woman se estende para a América Latina e o coletivo para Argentina, México, Venezuela e Bolívia, no intuito de registrar a condição da mulher de classe baixa no trabalho e em casa. Esse processo resulta em seu primeiro longa-metragem, The Double Day (A dupla jornada, 1975). O filme parte de uma hipótese: de que nos países subdesenvolvidos a necessidade de ligar a opressão da mulher a uma análise econômica da sociedade se faz necessária. A maioria das mulheres da América Latina é duas vezes oprimida: compartilha com os homens a opressão de classe e, ao mesmo tempo, sofre opressão, por serem mulheres. Em The Double Day, pela primeira vez, Solberg entrevista o “outro popular” ou o “outro de classe” (na acepção de Jean-Claude Bernardet). A limitação de tempo na montagem, feito para estrear na sessão de abertura da Primeira Conferência Internacional da Mulher, na cidade do México, em 1975 e a articulação das entrevistas e narração em voz over para comprovar a hipótese, fazem com que o documentário se assemelhe a um debate entre mulheres dos países visitados. A objetividade