UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO SANDRO LUIZ COSTA ROMA

DESAFIOS DO SUCESSO NO LONGO PRAZO EM ESTRATÉGIAS DE REESTRUTURAÇÃO: o caso da AmBev

RIO DE JANEIRO 2011

Sandro Luiz Costa Roma

DESAFIOS DO SUCESSO NO LONGO PRAZO EM ESTRATÉGIAS DE REESTRUTURAÇÃO: o caso da AmBev

Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Administração, Instituto COPPEAD de Administração, Universidade Federal do Rio de Janeiro, como parte dos requisitos necessários à obtenção do titulo de Mestre em Administração

Orientadora: Denise Lima Fleck, Ph.D.

RIO DE JANEIRO

2011

Roma, Sandro Luiz Costa.

Desafios do sucesso no longo prazo em estratégias de reestruturação: o caso da AmBev / Sandro Luiz Costa Roma.-- Rio de Janeiro: UFRJ, 2011.

332 f.: il.

Dissertação (Mestrado em Administração) - Universidade Federal do Rio de Janeiro, Instituto Coppead de Administração, Rio de Janeiro, 2011.

Orientador: Denise Lima Fleck

1. Estratégia. 2. Administração - Teses. I. Fleck, Denise Lima (Orient.). II. Universidade Federal do Rio de Janeiro. Instituto de COPPEAD de Administração. III. Título.

Sandro Luiz Costa Roma

DESAFIOS DO SUCESSO NO LONGO PRAZO EM ESTRATÉGIAS DE REESTRUTURAÇÃO: o caso da AmBev

Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Administração, Instituto COPPEAD de Administração, Universidade Federal do Rio de Janeiro, como parte dos requisitos necessários à obtenção do titulo de Mestre em Administração

Aprovada em

______- Orientadora Profª. Denise Lima Fleck, Ph.D. (COPPEAD, UFRJ)

______Profº. Adriano Proença, D.Sc. (COPPE, UFRJ)

______Profº. José Vitor Bomtempo Martins, D.Sc. (EQ, UFRJ)

AGRADECIMENTOS

A Deus, por me proporcionar tantas oportunidades, conquistas e alegrias na vida, bem como desafios e dificuldades que potencializaram o meu aprendizado e crescimento. Obrigado por colocar no meu caminho familiares e amigos maravilhosos que contribuíram para que me tornasse uma pessoa com princípios e valores. Por me ensinar que humildade, caráter, generosidade, amor e fé são os ingredientes fundamentais para a felicidade e o sucesso. Aos meus avós Elza e Gerdal, que dedicaram grande parte de suas vidas a mim sem que possuíssem nenhuma obrigação ou responsabilidade. Nunca serei capaz de retribuir-lhes um décimo do que me deram, e carregarei essa gratidão comigo por outras vidas, sempre com a esperança e empenho em cumprir essa missão. Além de me proporcionar o direito de sonhar, vocês são a personificação do amor e da caridade: com vocês aprendi o que significa ―amar sem esperar algo em troca‖. Vocês me ensinaram que existe um propósito muito maior para a vida e que a superioridade espiritual está acima de qualquer conquista material. À minha madrinha Heloisa por tomar-me como filho e dedicar a sua vida à minha criação e educação. Sua presença sempre me deu confiança e segurança para seguir em frente e acreditar no alcance dos meus objetivos. Obrigado por estar sempre disponível nos momentos de dificuldade, por possuir uma palavra de incentivo e apoio, por ouvir sem julgar e por defender-me de tudo e de todos ao longo desses anos. À minha noiva Fernanda, por ser o quarto elemento a compor os alicerces da minha vida. Mesmo chegando mais tarde, você conquistou o meu coração com tanto amor, amizade, tolerância, paciência, companheirismo e respeito. Se não possui na idade a experiência da vida, é capaz de demonstrá-la através de atitudes e ações. São poucas as pessoas que compartilham da sua pureza e luz. Você é o meu futuro, e dedicar-me-ei a tornar-lhe a pessoa mais feliz e amada do mundo. À professora Denise Fleck, não só por aceitar o desafio de me orientar para a realização desta pesquisa, mas pelo cuidado e preocupação em tornar esse processo muito maior do que uma simples relação professor-aluno. Seu papel foi além do que se espera de um professor, zelando acima de tudo pelo meu bem estar. Obrigado pelos conselhos, críticas e incentivos. Obrigado pela compreensão nos

momentos em que fraquejei ou falhei. Obrigado pelo rigor com que trabalhou, estimulando-me a buscar o máximo de minha capacidade intelectual. Obrigado pela dedicação e carinho com que participa e zela pela excelência do COPPEAD. Você se tornou uma grande referência pessoal e acadêmica, e sempre serei grato por essa experiência. Você tornou o Mestrado no COPPEAD único. Aos professores Adriano Proença e José Vitor Bomtempo, que se dispuseram prontamente a fazer parte da banca de defesa da dissertação. Ao Adriano, obrigado por participar novamente do meu desenvolvimento acadêmico e profissional. Você é sem sobra de dúvidas uma das principais referências para a minha carreira, e sua participação engrandece ainda mais essa conquista. Em relação ao José Vitor, ainda que não possuíssemos uma relação anterior, foi um enorme prazer conhecê-lo e ter a possibilidade de trocar idéias e ouvir seus comentários e opiniões a respeito do trabalho, o que lhe conferiu ainda mais excelência. Aos entrevistados, que dedicaram parte de seu tempo a contribuir para a realização desta dissertação. Obrigado pela disponibilidade, sinceridade, paciência, atenção e entusiasmo. Mesmo sem citar nomes, recordo-me de cada um de vocês e suas contribuições, e sempre serei grato pela ajuda. Ao pessoal do Arquivo Nacional, em especial à Telma Roma, e da Comissão de Valores Mobiliários, que ajudaram-me com muita cordialidade e prontidão na árdua tarefa de levantar dados históricos que permitissem contar e analisar a trajetória das empresas envolvidas. Aos amigos e colegas de turma do COPPEAD, que compartilharam grande parte dos desafios, dificuldades e alegrias do Mestrado, tornando essa experiência uma das mais ricas de minha vida. A amigos de longa data como Marcos e Davi, que se mostraram fundamentais e ganharam ainda mais carinho de minha parte, e a pessoas que em tão pouco tempo me conquistaram, como Letícia, Thamy e Thiago. Um agradecimento especial a Maurício e Rodrigo Penalva, grandes companheiros de pesquisa, e a Bruno e Maria-Eugênia, fundamentais para a realização do trabalho. Aos professores do COPPEAD pela qualidade do ensino, em especial Celso Lemme, Roberto Nogueira e Vitor Almeida. À equipe da Secretaria pelo suporte e pela atenção que dedicam aos alunos, tornando nosso dia-a-dia mais fácil e deixando-nos concentrar naquilo que é principal: o estudo. O mesmo vale para a

equipe da Biblioteca do COPPEAD, em especial à Eliane, que nos apóia com sua simpatia e dedicação. Aos demais funcionários, que contribuem para tornar o COPPEAD um centro de excelência em ensino em administração. À família ―Xavier de Oliveira‖, em especial Dutervil, Rosely e Mônica por acreditarem no projeto do Mestrado e participarem ativamente da sua realização. Obrigado pelo carinho, apoio e estímulo ao longo desse trabalho, bem como pela forma com que me recebem em seu lar há cinco anos, fazendo-me sentir como se fizesse parte da família desde sempre. Ao Duda, por ser um verdadeiro irmão mais velho, sempre cuidando, preocupando-se, dando bronca quando necessário, incentivando e elogiando. Por sempre trazer questionamentos e provocações mais profundos quando muitas vezes só preciso de um sim ou não. Isso é sinal de que você me entende como poucos e de que sua opinião tem uma grande capacidade transformadora sobre mim. Você é uma fonte de inspiração para a vida. A Pedro, Cassol e Danilo, grandes irmãos que desde que surgiram em minha vida só tornaram-na mais alegre e especial. Sou um sortudo por tê-los ao meu lado há tanto tempo. Vocês fecham o seleto grupo de pessoas que compartilham da minha amizade, lealdade, confiança e amor. Ao Sr. Osvaldo e à Sra. Marlene, que fazem um trabalho tão bonito de caridade à frente do Dispensário Antônio de Pádua, proporcionando conforto, amparo, luz, fé e sabedoria àqueles que necessitam. O Dispensário foi fundamental em todos os momentos da minha vida, e minha gratidão a todos que lá trabalham é enorme, em especial ao Ubiratan. Por fim, a todos os meus familiares e amigos. Tenho certeza de que cada um contribuiu de uma maneira significativa não só para essa experiência do Mestrado, mas para a minha vida.

RESUMO

ROMA, Sandro Luiz Costa. Desafios do sucesso no longo prazo em estratégias de reestruturação: o caso da AmBev. Rio de Janeiro, 2011. Dissertação (Mestrado em Administração de Empresas) – Instituto COPPEAD de Administração, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2011.

De acordo com Fleck (2009a), a observação empírica sugere que o sucesso parece gerar o fracasso, já que muitas vezes empresas bem sucedidas e admiradas num primeiro instante fracassam e se tornam alvos de críticas no futuro. Uma discussão subjacente a esse fenômeno diz respeito a como firmas e executivos definem, medem e avaliam o sucesso organizacional. Nesse sentido, o horizonte de tempo que norteia a visão de futuro e as estratégias empresariais é um dos aspectos mais relevantes, normalmente caracterizado pelo conflito entre a garantia de resultados no curto prazo e o investimento em iniciativas estratégicas de longo prazo de maturação. Dentro desse contexto, esta dissertação se propôs a compreender a forma com que estratégias de reestruturação, orientadas para a geração de valor aos acionistas no curto prazo, respondem aos desafios do sucesso no longo prazo. Pelo caráter exploratório e explanatório da pesquisa, o método adotado foi uma combinação de estudo de caso e abordagem histórica, tendo como referencial teórico o Modelo de Arquétipos de Sucesso e Fracasso Organizacional (FLECK, 2009a). Selecionou-se a AmBev como objeto de análise por ser uma empresa cuja estratégia corporativa foi desenvolvida pelo grupo pioneiro na atividade de private equity no Brasil, mas que possui ambições de longo prazo e cresce continuamente há mais de vinte anos sob o comando dos antigos sócios do Banco Garantia. Os resultados da pesquisa demonstraram que estratégias de reestruturação estão de fato comprometidas com curtos horizontes de tempo, sem aparente intenção em realizar ajustes e investimentos para o longo prazo. Concluiu-se ainda que o crescimento contínuo é uma condição necessária à perpetuação de estratégias de reestruturação, sendo, inclusive, o motivo para a longa permanência dos controladores da AmBev à frente da empresa, refletido na expansão internacional com a criação da ABInBev.

Palavras-chave: Longevidade Saudável da Firma. Estratégia de Reestruturação. Indústria de Cerveja.

ABSTRACT

ROMA, Sandro Luiz Costa. Desafios do sucesso no longo prazo em estratégias de reestruturação: o caso da AmBev. Rio de Janeiro, 2011. Dissertação (Mestrado em Administração de Empresas) – Instituto COPPEAD de Administração, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2011.

According to Fleck (2009a, p. 79), ―empirical observation suggests that success seems to breed failure, as many today´s widely praised companies fail in the future and become tomorrow´s highly criticized nightmares‖. An underlying discussion to this phenomenon is related to how companies and executives define organizational success and measure and evaluate it. In this sense, the time horizon that drives corporate vision and strategies is one of the most relevant aspects, usually characterized by the trade-off between short-term financial results and long- term investment in strategic initiatives. In this context, this thesis aimed to understand how restructuring strategies, usually focused on shareholder value creation in the short-term, meet the challenges of long-term success. Due to the exploratory and explanatory characteristics of the research, the method adopted was a combination of case study and historical research, using the archetypes of organizational success and failure (Fleck, 2009a) as theoretical framework. AmBev was selected as the object of analysis because it is a company whose corporate strategy was developed by the pioneering group of private equity activity in Brazil, but has long-term ambitions and grows continuously for over twenty years. The results showed that restructuring strategies are indeed committed to the short term, with no apparent willingness to make investments for the long term. It was also concluded that continued growth is a necessary condition for the perpetuation of restructuring strategies, being the reason why AmBev‘s majority shareholders remain controlling the brewery for so long, reflected in their intention to expand internationally with the creation of ABInbev.

Keywords: Organizational Longevity. Restructuring Strategy. Industry.

LISTA DE FIGURAS

Figura 2-1: Trajetórias de crescimento de empresas do setor automotivo ...... 27

Figura 2-2: Modelo de Requisitos para o Desenvolvimento da Propensão à Auto- perpetuação ...... 35

Figura 2-3: A relação prevista entre a folga organizacional e a inovação ...... 53

Figura 2-4: Modelo da relação entre a folga organizacional e a inovação ...... 54

Figura 2-5: Estrutura geral do motor de crescimento contínuo ...... 57

Figura 2-6: Estrutura geral do motor de co-evolução de Todo e Partes ...... 58

Figura 2-7: O efeito de processos de institucionalização para o sucesso no longo prazo ...... 61

Figura 3-1: The building blocks of a scientific study ...... 63

Figura 3-2: Tipos de métodos de pesquisa organizacional ...... 70

Figura 5-1: Esquema de governança da AmBev ...... 114

Figura 5-2: Diretoria Executiva da AmBev ...... 115

Figura 5-3: Estrutura básica de uma Diretoria Regional ...... 116

Figura 5-4: Estrutura básica da Gerência Regional de Distribuição Direta ...... 117

Figura 5-5: Estrutura básica de uma Sala de Vendas ...... 118

Figura 6-1: Os dois motores de crescimento na indústria brasileira de cervejas ..... 131

Figura 6-2: Nova estrutura organizacional da CCB ...... 135

Figura 6-3: Aplicação do Modelo da relação entre a folga e a inovação para a AmBev ...... 206

Figura 6-4: Dinâmica de funcionamento dos instrumentos de controle da AmBev . 207

Figura 6-5: Estratégia de Reestruturação da AmBev segundo o Modelo de Requisitos para o Desenvolvimento da Propensão à Auto-perpetuação ...... 212

Figura 0-1: Primeiro Rótulo da Cerveja Brahma ...... 290

Figura 0-1: Esquema básico do processo de produção de cerveja ...... 327

LISTA DE GRÁFICOS

Gráfico 4-1: Evolução do consumo de cerveja no Brasil ...... 86

Gráfico 4-2: Consumo per capita de cerveja no mundo em 2003 ...... 87

Gráfico 4-3: Composição do preço da cerveja no mercado brasileiro ...... 88

Gráfico 4-4: Volume e valor de vendas de cerveja de lojas – Brasil – 2000/2001 ..... 92

Gráfico 4-5: Preços – Garrafas de 600ml – Bares – Grande São Paulo ...... 96

Gráfico 4-6: Preços – Garrafas de 600ml – Bares – Interior de São Paulo ...... 97

Gráfico 6-1: Evolução do market share de cerveja no Brasil – década de 90 ...... 132

Gráfico 6-2: Evolução do número de funcionários da CCB em comparação com a CAP ...... 137

Gráfico 6-3: Evolução do indicador de produção por empregado (hl) CAP X CCB . 145

Gráfico 6-4: Evolução da composição da receita líquida da AmBev (R$ Milhões) .. 152

Gráfico 6-5: Evolução do passivo trabalhista da AmBev (R$ Milhões) ...... 171

Gráfico 6-6: Evolução do reaproveitamento de insumos e receitas geradas ...... 185

Gráfico 6-7: Evolução das margens bruta, líquida e EBITDA da AmBev ...... 189

Gráfico 6-8: Evolução do caixa e de aplicações financeiras da AmBev (R$ Milhões) ...... 192

Gráfico 6-9: Evolução do indicador de tamanho da AmBev em comparação com a CAP e a CCB ...... 198

Gráfico 6-10: Evolução do indicador de desempenho da AmBev em comparação com a CAP e a CCB ...... 199

LISTA DE TABELAS

Tabela 2-1: Os Cinco Desafios Organizacionais ...... 34

Tabela 2-2: Exemplos de motores de crescimento contínuo ...... 57

Tabela 3-1: Condições relevantes para a escolha da estratégia de pesquisa ...... 66

Tabela 3-2: Quadro resumo das principais fontes de informação ...... 72

Tabela 3-3: Quadro resumo das entrevistas ...... 73

Tabela 3-4: Exemplo do registro de fatos ...... 83

Tabela 5-1: Principais empresas controladas e coligadas da AmBev ...... 107

Tabela 5-2: Portfólio atual da AmBev ...... 110

Tabela 6-1: Quadro comparativo histórico das respostas da CAP e da CCB aos desafios do crescimento ...... 126

Tabela 6-2: Conflitos no processo sucessório da CAP ...... 136

Tabela 6-3: Lançamentos da AmBev para o segmento de cervejas ...... 147

Tabela 6-4: Novas embalagens da AmBev para o segmento de cervejas ...... 149

Tabela 6-5: Iniciativas da AmBev para o segmento de bebidas não-alcoólicas ...... 152

Tabela 6-6: Iniciativas da AmBev para a sua expansão internacional ...... 154

Tabela 6-7: Iniciativas da AmBev para o aprimoramento da distribuição ...... 155

Tabela 6-8: Iniciativas da AmBev para a sua integração vertical ...... 156

Tabela 6-9: Medidas impostas pelo CADE para compensar os custos econômicos da criação da AmBev ...... 158

Tabela 6-10: Ganhos de sinergia (R$ Milhões) ...... 184

Tabela 6-11: Parque industrial da AmBev em 1999 ...... 191

Tabela 6-12: Quadro comparativo das respostas da AmBev e da CCB aos desafios do crescimento ...... 197

Tabela 0-1: Lista de Dimensões de Análise ...... 239

Tabela 0-2: Aquisições da CAP e da CCB ...... 262

Tabela 0-3: Cronograma dos principais eventos que antecederam a aprovação da AmBev pelo CADE ...... 273

Tabela 0-4: Indicadores de desempenho – Unidade Filial Santa Catarina ...... 308

Tabela 0-5: Fórmulas de cálculo de indicadores de desempenho – Unidade Filial Santa Catarina ...... 309

LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS

AB Anheuser-Busch

ABInBev Anheuser-Bush InBev

ABAP Associação Brasileira das Agências de Publicidade

AC Administração Central da AmBev

ADR American Depositary Receipt. Em português, Documento de Depósito Americano

AmBev Companhia de Bebidas das Américas

BOVESPA Bolsa de Valores do Estado de São Paulo

CA Conselho de Administração

CADE Conselho Administrativo de Defesa Econômica

CAP Companhia Antarctica Paulista

CBZ Custo Base Zero

CCB Companhia Cervejaria Brahma

CDD Centro de Distribuição Direta

COFINS Contribuição para o Financiamento da Seguridade Social

CONAR Conselho de Autorregulamentação Publicitária

COPPEAD Instituto COPPEAD de Administração da UFRJ

CSC Centro de Serviços Compartilhados

CVM Comissão de Valores Mobiliários

EBC European Brewery Convention

EVA Economic Value Added. Em português, valor econômico adicionado

FAHZ Fundação Antonio e Helene Zerrener

HILA América Latina Hispânica

HL Hectolitro

ICMS Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Prestação de Serviços

IBI Indústria de Bebidas de Igarassu

IPI Imposto sobre Produtos Industrializados

NANC Non-alcoholic and non-carbonated. Em português, bebida não-alcoólica e não-carbonatada

OBZ Orçamento Base Zero

PDV Ponto-de-venda

PEF Programa de Excelência Fabril

PEV Programa de Excelência em Vendas

PEX Programa de Excelência das Revendas

PIB Produto Interno Bruto

PIS Programa de Integração Social

QUINSA Quilmes Industrial S/A

S.A. Sociedade Anônima

SEAE Secretaria de Acompanhamento Econômico, do Ministério da Fazenda

SDE Secretaria de Direito Econômico, do Ministério da Justiça

SEC U.S. Securities Exchange Comission

SINDICERV Sindicato Nacional da Indústria da Cerveja

STF Superior Tribunal Federal

SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO ...... 21

1.1 OBJETIVO DO ESTUDO ...... 21

1.2 ORGANIZAÇÃO DO ESTUDO ...... 24

2 REVISÃO DE LITERATURA ...... 26

2.1 ARQUÉTIPOS DO SUCESSO E DO FRACASSO ORGANIZACIONAL ...... 32

2.1.1 Desafios do crescimento ...... 35

2.1.1.1 Empreender ...... 36

2.1.1.2 Navegar no ambiente ...... 41

2.1.1.3 Gerir a diversidade ...... 46

2.1.1.4 Aprovisionar recursos gerenciais ...... 47

2.1.1.5 Gerir a complexidade ...... 49

2.1.2 Gestão da folga organizacional ...... 50

2.1.3 Processos ...... 54

2.1.3.1 Crescimento e renovação ...... 54

2.1.3.2 Manutenção da integridade ...... 59

3 METODOLOGIA ...... 63

3.1 DEFINIÇÃO DO TEMA, DA PERGUNTA E DO OBJETO DE PESQUISA ...... 63

3.2 ESTRATÉGIA DE PESQUISA ...... 66

3.3 DELIMITAÇÃO DA UNIDADE DE ANÁLISE ...... 67

3.4 ORGANIZAÇÃO DA PESQUISA ...... 68

3.5 COLETA DE DADOS ...... 70

3.5.1 Entrevistas ...... 72

3.5.2 Análise de arquivos ...... 76

3.5.2.1 Indicadores ...... 79

3.6 REGISTRO DOS DADOS ...... 82

3.7 ANÁLISE DOS DADOS ...... 83

4 A INDÚSTRIA BRASILEIRA DE CERVEJA ...... 85

4.1 PANORAMA DO MERCADO BRASILEIRO DE CERVEJA ...... 85

4.2 BASES COMPETITIVAS DA INDÚSTRIA BRASILEIRA DE CERVEJA ...... 90

4.2.1 Características fundamentais da indústria ...... 90

4.2.2 Mecanismos de competição ...... 95

4.2.3 Práticas ilegais ...... 97

5 A COMPANHIA DE BEBIDAS DAS AMÉRICAS (AMBEV)...... 106

5.1 INTRODUÇÃO ...... 106

5.2 MARCAS E PRODUTOS ...... 108

5.3 CULTURA ...... 110

5.4 ORGANIZAÇÃO INTERNA ...... 113

6 ANÁLISE ...... 119

6.1 ANTECEDENTES DA AMBEV: CAP X CCB ...... 119

6.1.1 Desafio de empreender ...... 127

6.1.2 Desafio de navegar no ambiente ...... 131

6.1.3 Desafio de gerir a diversidade ...... 133

6.1.4 Desafio de aprovisionar recursos gerenciais ...... 135

6.1.5 Desafio de gerir a complexidade ...... 140

6.1.6 Gestão da folga organizacional ...... 144

6.2 ANÁLISE DA AMBEV ...... 146

6.2.1 Resposta da AmBev aos desafios de longo prazo ...... 146

6.2.1.1 Desafio de empreender ...... 146

6.2.1.2 Desafio de navegar no ambiente ...... 156

6.2.1.3 Desafio de gerir a diversidade ...... 164

6.2.1.4 Desafio de aprovisionar recursos gerenciais ...... 169

6.2.1.5 Desafio de gerir a complexidade ...... 177

6.2.1.6 Gestão da folga organizacional ...... 182

6.2.2 A evolução da estratégia da AmBev e a sua forma de lidar com os desafios de longo prazo ...... 193

7 CONCLUSÃO ...... 214

7.1 SUGESTÕES PARA PESQUISAS FUTURAS ...... 218

REFERÊNCIAS ...... 221

APÊNDICES ...... 238

APÊNDICE A – LISTA DE DIMENSÕES DE ANÁLISE ...... 238

APÊNDICE B – HISTÓRIA DA CERVEJA ...... 240

Surgimento ...... 240

Idade Média ...... 243

Introdução do lúpulo ...... 245

Era de Desenvolvimento ...... 245

Lei da Pureza ...... 247

Época de crise ...... 248

Surgimento da Pilsen ...... 249

Retrocesso ...... 251

Modernidade ...... 253

APÊNDICE C – HISTÓRIA DA INDÚSTRIA DA CERVEJA NO BRASIL ...... 255

Surgimento da cerveja no Brasil ...... 255

Domínio Inglês ...... 256

Início das atividades produtivas ...... 258

Nascimento da indústria brasileira de cerveja ...... 260

De empreendimento regional a negócio de escala nacional ...... 261

Reviravolta na indústria cervejeira brasileira ...... 262

Ascensão da CCB e queda da CAP ...... 265

Criação da AmBev ...... 267

Intensificação da consolidação da indústria ...... 274

Onda das microcervejarias ...... 279

APÊNDICE D – HISTÓRIA DA COMPANHIA ANTARCTICA PAULISTA ...... 280

APÊNDICE E – HISTÓRIA DA COMPANHIA CERVEJARIA BRAHMA ...... 289

Período Pré-Banco Garantia ...... 289

Período Pós-Banco Garantia ...... 299

APÊNDICE F – BREVE HISTÓRIA DO BANCO GARANTIA ...... 319

ANEXOS ...... 324

ANEXO A – INGREDIENTES BÁSICOS DA CERVEJA ...... 324

Água ...... 324

Malte ...... 325

Lúpulo ...... 325

Fermento ...... 326

Outros Cereais ...... 326

ANEXO B – PROCESSO BÁSICO DE FABRICAÇÃO ...... 327

ANEXO C – TIPOS DE CERVEJA ...... 329

ANEXO D – BREVE HISTÓRIA DA ...... 331

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1 INTRODUÇÃO

1.1 OBJETIVO DO ESTUDO

Sucesso é uma palavra recorrente e altamente desejada no ambiente empresarial. Organizações, pessoas, processos, sistemas e até mesmo ferramentas são usualmente classificados em termos do sucesso. Um problema que ocorre nessa tarefa, porém, é que muitas vezes não há nenhuma preocupação anterior em compreender com mais profundidade o conceito de sucesso e suas dimensões de análise. Se não bastasse a falta de rigor ao se tratar o tema, observa-se a proliferação de inúmeros métodos e critérios de avaliação que se diferenciam em aspectos como a referência conceitual escolhida, os indicadores selecionados e o horizonte temporal de análise, dentre outros. Há, com isso, certa dificuldade para se criar um entendimento convergente e compartilhado sobre o tema. Análises de mercado e de risco desenvolvidas por bancos e outras instituições financeiras, por exemplo, têm como objetivo a identificação de ativos em que investidores possuem maior probabilidade de obtenção de lucros. Prêmios de qualidade empresarial também se destinam a categorizar empresas e destacá-las em termos de sua excelência administrativa. Vê-se, então, que apesar da variedade, todos os métodos se destinam à identificação explícita ou implícita de sinais e evidências da propensão de um negócio ao sucesso. Dentro desse contexto, um ponto que requer atenção diz respeito à visão de sucesso adotada pelas próprias organizações, a qual está associada diretamente aos objetivos e pretensões dos que as controlam e gerenciam. Sucesso organizacional é comumente associado a termos como crescimento, longevidade, sustentabilidade, sobrevivência e perpetuação. O racional dessa visão é o de que ―as organizações são feitas para durar‖. De certa maneira, quanto mais tempo uma organização sobrevive e se mantém ativa no mercado, mais respaldo parece haver para que seja considerada bem sucedida. Todavia, essa premissa acerca do objetivo das organizações não pode ser generalizada. Segundo Collis e Montgomery (1997), na década de 70 do século passado, motivadas pelo desenvolvimento do mercado de capitais e pela necessidade de diversificação de investimentos em busca de maiores retornos,

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instituições financeiras (fundos de investimento, em especial) passaram a vislumbrar oportunidades de negócio do lado real da economia. A atuação desses grupos se dava através da identificação e aquisição de empresas de baixo desempenho em setores maduros, com baixos graus de inovação tecnológica e produtividade. Também chamada de estratégia de reestruturação (PORTER, 1987), a linha de ação desenvolvida pelos adquirentes incluía uma intervenção proativa no negócio, promovendo mudanças em equipes, processos e tecnologias. A mudança preconizava a responsabilização e autonomia dos novos executivos, que eram estimulados a fornecer desempenho superior em troca de recompensas financeiras agressivas. Para tal, fazia-se uso de métodos de mensuração da criação de valor do negócio como mecanismo para alinhar as decisões ao cumprimento dos interesses dos acionistas. A visão que norteava a atuação dessas instituições financeiras limitava-se a horizontes de tempo considerados curtos dentro do contexto empresarial. A partir do momento em que o negócio estava recuperado e saneado, optava-se pela sua venda de forma a obter o retorno decorrente da intervenção e buscar novas oportunidades de negócio. Se as expectativas de retorno não se confirmassem, os negócios eram desfeitos para reduzir as perdas, muitas vezes através da quebra de empresas e venda de suas partes. Essa estratégia empresarial expandiu-se para todo o mundo, inclusive o Brasil, dando origem ao que se denomina de mercado de private equity. Ao longo dos anos, passou a ocupar um papel cada vez mais relevante na economia global, participando da reestruturação de grandes empresas e até mesmo grandes setores econômicos, alçando-os a novos patamares de competição. É o caso, por exemplo, da indústria mundial de cervejas. No Brasil, um dos principais protagonistas da expansão do private equity no país foi o Banco Garantia, criado na década de 70 por e inspirado no banco de investimentos americano Goldman Sachs. Diante da vontade de identificar novas opções para aplicação dos rendimentos acumulados pelo Banco, Lemann e seus sócios Carlos Alberto Sicupira e Marcel Telles resolveram adquirir empresas fazendo uso de estratégias de reestruturação. O primeiro negócio foram as Lojas Americanas, em 1982, sendo também o primeiro takeover no Brasil. Em 1989, o grupo adquiriu a Companhia Cervejaria

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Brahma (CCB), da qual mantém o controle acionário até os dias atuais. As duas iniciativas levaram os sócios a criarem a GP Investimentos, uma administradora de um fundo de investimento focada na gestão de diversos investimentos de risco e na administração de recursos (sobretudo de terceiros) visando retornos financeiros em prazos mais curtos, de 8 a 10 anos. Dentre os negócios já administrados pela GP Investimentos, destacam-se a ALL Logísitica e o Submarino. O caso da CCB é o mais emblemático dessa cultura de private equity no Brasil. Em pouco menos de duas décadas, a cervejaria carioca deu fim à liderança de mais de um século de sua concorrente paulista, a Companhia Antarctica Paulista (CAP). Como resultado desse processo, as duas cervejarias líderes, que mantiveram grande rivalidade por quase um século, uniram-se e criaram a Companhia de Bebidas das Américas (AmBev) em 1999. A nova empresa já nasceu com mais de 70% do mercado nacional e o portfólio de cervejas mais amplo do país. Seu objetivo principal, porém, era a entrada no mercado internacional, passando a competir numa lógica global tanto no segmento de cervejas quanto de refrigerantes (neste caso, com o Guaraná Antarctica). Em apenas cinco anos, a AmBev passou a atuar em 14 países das Américas de maneira eficiente e lucrativa, o que chamou a atenção dos grandes players mundiais. Em 2004, foi comprada pela cervejaria belga , produtora da marca , formando a InBev. A participação da AmBev no novo negócio foi maior do que se pensava: em dois anos, executivos da cervejaria brasileira assumiram a maioria dos postos de comando da InBev, com a missão de implementar a estratégia brasileira nas operações na Europa. Em 2008, com a aquisição da cervejaria norte-americana Anheuser-Busch (AB) por 52 bilhões de dólares, formou-se o maior grupo cervejeiro do mundo, a ABInBev. Assim como ocorreu na Interbrew, o comando da AB foi assumido por executivos brasileiros, que tinham novamente o desafio de implementar a estratégia da AmBev nas operações nos EUA.

Pouco mais de um ano após comprar a cervejaria Anheuser-Busch, um ícone dos Estados Unidos, os brasileiros da InBev deixam claro qual o caminho escolhido para ganhar dinheiro: uma crença em metas, austeridade e meritocracia que choca os próprios americanos. (LETHBRIDDGE, 2010, p. 1)

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Conforme já mencionado, estratégias de reestruturação não preconizam investimentos de longo prazo, já que não há expectativas de permanência no controle acionário das empresas adquiridas por longos períodos de tempo. Lemann, Telles e Sicupira seguiram essa mesma receita quando passaram a investir na economia real, tanto que a iniciativa se tornou o embrião da GP Investimentos. Contudo, os três mantêm o controle da AmBev há mais de 20 anos e sempre deram demonstrações de que pretendem que a cervejaria se perpetue no longo prazo, diferentemente dos negócios da GP Investimentos. Dessa maneira, diante da dualidade existente entre a origem e as características da estratégia de reestruturação desenvolvida pelo Banco Garantia e o objetivo de auto-perpetuação presente no discurso dos sócios da AmBev, esta dissertação objetivou investigar: Como os desafios do sucesso no longo prazo são tratados em estratégias de reestruturação?

1.2 ORGANIZAÇÃO DO ESTUDO

A presente dissertação está organizada em sete capítulos. Seguindo esta parte introdutória, o segundo Capítulo apresenta o referencial teórico com base no qual a pesquisa foi desenvolvida. O Capítulo 3, por sua vez, descreve a metodologia utilizada para realizar o estudo, incluindo a estratégia de pesquisa adotada, as fontes de dados utilizadas e os procedimentos para coleta e análise dos dados. O quarto capítulo apresenta um panorama da indústria de cervejas no Brasil, explicitando a forma com que a cadeia produtiva está organizada, os principais vetores de competição e ainda uma visão sobre a recorrência de práticas anti-éticas no setor. O quinto capítulo oferece uma introdução à AmBev, contendo informações gerais sobre a empresa, seus negócios, marcas, cultura e ainda alguns detalhamentos sobre a sua organização interna. O Capítulo 6 está dividido em duas partes. Primeiramente, há uma análise comparativa das trajetórias da CAP e da CCB, tentando explicar como as duas cervejarias estavam em situações tão distintas às vésperas da fusão, no ano de 1999. Em seguida, é apresentada a análise da AmBev, descrevendo suas repostas

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aos desafios do sucesso no longo prazo, comparando seu padrão de respostas ao da CCB após a entrada do Banco Garantia e avaliando como se perpetuou ao longo dos dez anos de existência. O sétimo capítulo, por fim, fecha o estudo, apresentando as principais conclusões do autor em resposta à pergunta da pesquisa. Além da Bibliografia, os Apêndices incluem: a história da indústria da cerveja no Brasil; as histórias detalhadas da CAP e da CCB; e a história resumida do Banco Garantia. Já os Anexos contemplam informações básicas sobre a cerveja (especialmente a sua composição, o processo de fabricação e os principais tipos de cerveja) e um breve relato sobre a história da Skol.

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2 REVISÃO DE LITERATURA

O objetivo desta pesquisa é compreender a forma com que organizações geridas a partir de estratégias de reestruturação respondem aos desafios associados ao sucesso no longo prazo. Dessa forma, o ponto de partida para o trabalho é o entendimento do que é sucesso no longo prazo, buscando um enquadramento teórico que permita a sua avaliação tanto qualitativa quanto quantitativamente. A maneira mais comum de se avaliar o sucesso de algo é a sua comparação com algum tipo de objetivo ou meta predeterminado. Para Miller e Friesen (1978 apud Fleck, 2009a, p. 79), ―[organizational] success is related to the degree to which the firms are able to achieve their objectives subject to the constraints of long run viability‖. O sucesso de uma campanha política, por exemplo, é medido pela eleição do candidato. Esse caso, porém, é bastante particular, pois além do resultado final ser facilmente compreendido, existe um limite temporal: a data da eleição. No ambiente empresarial, por outro lado, há inúmeras situações em que os resultados desejados não são evidentes, tangíveis e nem temporalmente determinados. Com base em quais critérios pode-se afirmar que uma organização é bem sucedida? Quanto tempo de análise é suficiente para se fazer tal afirmação? E como se sabe se uma organização é capaz de sustentar o sucesso? O crescimento da firma é um indicador amplamente utilizado para medir o sucesso organizacional (FLECK, 2003). Segundo Whetten (1980 apud FLECK, 2009a, p. 79), o crescimento é uma premissa implícita em estudos e pesquisas, já que se assume que ―crescimento é sinônimo de efetividade‖, que ―quanto maior, melhor‖ e que ―há uma correlação entre tamanho e idade‖. Fleck (2001), partindo da tese de que crescimento pode ser entendido como mudança no tamanho da firma, propõe um indicador que auxilia a visualização da trajetória de crescimento das organizações: Tamanho ano i = (Receita ano i ÷ PIB ano i) X 100. A figura abaixo ilustra o uso do indicador para a comparação das trajetórias de três empresas do setor automotivo: General Motors, Ford e Chrysler.

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Figura 2-1: Trajetórias de crescimento de empresas do setor automotivo Fonte: Fleck, 2001.

Mesmo sendo um indicador que permite a comparação entre empresas ou indústrias e que elimina a influência de fatores como inflação e deflação, Fleck (2004) argumenta que o crescimento por si só não é uma medida confiável de sucesso, já que muitas empresas crescem e depois morrem. O indicador serve de instrumento para monitoramento do desempenho de uma empresa, mas não fornece o diagnóstico nem as ferramentas necessárias para a sua realização. Mais importante do que a medição do sucesso de forma quantitativa é a compreensão dos mecanismos que explicam o sucesso ou o fracasso das organizações no longo prazo. Nesse sentido, Fleck (2009a) compartilha da mesma visão de Porter (1991), para quem a identificação das razões do sucesso ou do fracasso organizacional é a questão central do estudo da estratégia. Segundo este, qualquer esforço de compreensão do sucesso da firma exige o desenvolvimento de uma teoria de características dinâmicas a respeito da mesma. De maneira convergente, Fleck (2009a) afirma que o sucesso organizacional, mais do que um estado final da organização, é um estado potencial que pode ser alcançado na medida em que a firma desenvolve a propensão à auto-perpetuação.

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Self-perpetuation has to do with the organization‘s capacity to outlive its members. Much like the growth process, the self-perpetuation process does not take place automatically. It requires the setting up of contributing mechanisms, such as managerial hierarchy formation. (FLECK, 2009a, p. 80)

Sua abordagem, portanto, pressupõe a natureza processual do sucesso organizacional, tratando-se de um fenômeno dinâmico cujas duas características básicas são: o caráter temporal, presente pela necessidade de se acompanhar a trajetória histórica da firma (estudo longitudinal) e as suas perspectivas futuras no longo prazo; e o caráter multidimensional (FLECK, 2001), entendendo-o como resultado da conjunção de outras dimensões associadas ao contexto organizacional. Ainda segundo Fleck (2009a), se o sucesso no longo prazo está associado à capacidade de a organização se auto-perpetuar, o fracasso é o resultado do processo de declínio organizacional. Sendo assim, o comportamento dinâmico da organização pode levá-la a se tornar propensa a dois estados ideais opostos: a auto- perpetuação ou a auto-destruição. Há duas implicações diretas dessa proposição: o crescimento não é visto como um processo linear de desenvolvimento (GREINER, 1998), nem tampouco é passível de ser analisado sob a perspectiva do ciclo de vida organizacional (WHETTEN, 1987). Em relação à primeira implicação, Whetten (1987) afirma que não existe na literatura nenhuma indicação de que os movimentos entre os estágios evolutivos das organizações devam ser entendidos como uma progressão para níveis superiores de desenvolvimento (ou seja, não é necessariamente um processo de melhoria). Para ele, não se pode também afirmar que os movimentos entre estágios são unidirecionais, pois não há evidências de que os problemas existentes em um determinado estágio são resolvidos unicamente pela transição para os níveis seguintes de desenvolvimento. Já com relação ao ciclo de vida organizacional, Fleck (2009a) refuta a tese de que o declínio é um estágio que as organizações invariavelmente experimentarão em sua história, antecedendo a sua morte, como ocorre na biologia. Apóia-se, portanto, em Penrose (1959), para quem não existem indícios que justifiquem o uso de ciclos de vida biológicos no contexto organizacional, e em Whetten (1987), que observa que o declínio é um tópico que ainda carece de maior estudo, e que os modelos de ciclo de vida existentes contemplam especialmente os estágios de

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crescimento das organizações (do surgimento à maturidade), havendo pouca atenção aos estágios de declínio e morte1. Whetten (1987) menciona que ainda há questionamentos em relação a três aspectos da abordagem do ciclo de vida: (i) o número de estágios a serem considerados no modelo; (ii) a natureza determinística de cada estágio; e (iii) se os movimentos são lineares ou recursivos. A natureza dinâmica do processo de desenvolvimento organizacional, especialmente quanto à possibilidade de a firma se tornar propensa ao sucesso ou ao fracasso, está presente também no trabalho de outros autores. Sull (1999), por exemplo, observa um fenômeno que considera recorrente em organizações bem sucedidas: a falha ao responder a mudanças em seus ambientes de atuação, chegando ao ponto de não conseguir se recuperar do prejuízo e colocar em risco sua existência. Para o autor, o problema não está na inabilidade da organização em agir de maneira tempestiva, mas sim na incapacidade de agir da maneira apropriada. Ou seja, não é uma questão de paralisia, mas do que chama de inércia ativa: a tendência a seguir padrões de comportamento já estabelecidos e de sucesso no passado para lidar com novos problemas e desafios. Miller (1993), por sua vez, propõe uma visão alternativa à idéia de que o crescimento e o sucesso aumentam o grau de complexidade das organizações. Para ele, ocorre um fenômeno contrário ao senso comum: as organizações bem sucedidas entram em declínio por se tornarem excessivamente simples; ou seja, por demonstrarem grande preocupação com um único objetivo, atividade estratégica, departamento ou visão de mundo, em detrimento da consideração de outros aspectos relevantes.

They [most outstanding organizations] amplify and extend a single strength or function while neglecting most others. Ultimately, a rich and complex organization becomes excessively simple – it turns into a monolithic, narrowly focused version of its former self, converting a formula for success into a path toward failure. (MILLER, 1993, p. 116)

Apesar de identificar armadilhas que as organizações podem enfrentar em seus processos de crescimento, Sull (1999) e Miller (1993) afirmam que, da mesma forma que uma fase de sucesso pode ser seguida por um período de declínio, existem caminhos ou meios para se alterar a trajetória auto-destrutiva rumo ao

1 É o caso, por exemplo, do ―Modelo das Cinco Fases de Crescimento‖ proposto por Greiner (1998).

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sucesso novamente. Reforçam, portanto, a importância da ação gerencial para a garantia da perpetuação e da sobrevivência das organizações. É preciso ressaltar, no entanto, que há na academia e na prática das organizações exemplos de teorias, modelos e estratégias que não se pautam pela visão processual e dinâmica do sucesso no longo prazo. Ulrich e Barney (1984), por exemplo, evidenciam isso ao analisar a perspectiva da eficiência sobre a teoria organizacional. Baseada fortemente na teoria econômica, essa perspectiva estabelece a eficiência como o maior critério de sucesso organizacional: as organizações de sucesso são aquelas capazes de gerenciar suas transações de forma eficiente. Por trás dessa perspectiva, há quatro suposições:  Os atores econômicos visam a minimização dos custos de transação;  Há três tipos de mecanismos de governança para mediar as transações: (i) os mercados, que, através de pressões competitivas, garantem que o valor dos produtos e serviços transacionados esteja refletido em seus preços; (ii) a burocracia, que estabelece o que cada parte pode esperar dar e receber de uma transação, mantendo a percepção de justiça e equidade entre as partes da organização; (iii) e os clãs, outro tipo de estrutura hierárquica que governa as relações através de um sistema de valores compartilhados;  A adequação de cada mecanismo de governança depende das características de cada transação, a saber: complexidade, incerteza, dificuldade de convencimento e convergência de objetivos; e  O maior objetivo teórico da perspectiva de eficiência é o alinhamento entre os mecanismos de governança e as características das transações, de forma a indicar os mediadores mais eficientes entre as partes envolvidas. Nessa visão, as organizações existem para mediar as transações econômicas entre os seus membros, interna e externamente. Conseqüentemente, o fator norteador do sucesso é o desenvolvimento de transações estáveis e de baixo custo. Portanto, mesmo que tais tipos de relações contribuam para a sobrevivência no longo prazo, Ulrich e Barney (1984) ressaltam que essa perspectiva não trata de forma direta da questão do sucesso no longo prazo, já que desconsidera que a

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sobrevivência de uma firma pode decorrer de outros aspectos organizacionais, como estratégia, estrutura e até mesmo sorte. Porter (1987), ao analisar o processo de diversificação das principais empresas norte-americanas, identificou um tipo de estratégia corporativa que não se orienta pelo sucesso no longo prazo: a reestruturação (para o autor, diferentemente da estratégia competitiva, que trata de como se criar vantagem competitiva em cada um dos diferentes negócios de uma organização, a estratégia corporativa trata dos negócios em que a organização deveria atuar e como gerenciar o seu portfólio, garantindo que a corporação como um todo seja maior do que a soma das suas partes). Segundo ele, a estratégia de reestruturação se baseia na busca por negócios ineficientes, mal desenvolvidos ou sofrendo ameaças que, por conseguinte, necessitem de mudanças significativas. A empresa compradora atua de maneira ativa, intervindo nos negócios adquiridos, mudando suas equipes, alterando estratégias, aumentando a eficiência ou introduzindo novas tecnologias. O resultado do processo é um negócio fortalecido ou uma indústria transformada. Contudo, apesar da melhoria, o negócio é vendido uma vez que a empresa controladora entenda que os resultados já estejam claros e que não seja mais capaz de adicionar valor, preferindo transferir sua atenção para outras oportunidades. Para funcionar, a estratégia de reestruturação requer uma equipe executiva com a habilidade de identificar e avaliar empresas subvalorizadas ou posições em indústrias apropriadas para mudanças. A mesma habilidade é requerida para conduzir a mudança nas organizações selecionadas, mesmo que se trate de negócios com os quais não se tenha familiaridade (PORTER, 1987). Trata-se, portanto, de uma estratégia que não se orienta pelo longo prazo, cujo critério de decisão para a avaliação do sucesso é a geração de valor para os acionistas. Para tal, as empresas fazem uso do método do Economic Value Added (EVA), ou valor econômico adicionado, que possibilita a mensuração do retorno do negócio, correspondendo ao saldo do lucro, após a dedução do custo de capital investido na empresa. O princípio por trás desse método é o de que o fluxo de caixa livre da empresa ou do negócio é a medida correta do valor do acionista, enfatizando as conseqüências de qualquer decisão estratégica ou operacional (COLLIS; MONTGOMERY, 1997).

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Segundo Collis e Montgomery (1997), esse tipo de estratégia baseada em valor surgiu na década de 80, quando o desenvolvimento do mercado de capitais e as oportunidades de se lucrar através da revitalização de empresas de baixo desempenho permitiram o aparecimento de “corporate raiders e leveraged buyout firms”. Atentos ao baixo desempenho de grandes empresas diversificadas, esses atores foram (e ainda são) responsáveis por uma série de tomadas de controle acionário (―takeovers”), muitas delas de maneira hostil. Apesar de ter sido útil na medida em que se tornou uma forma de disciplinar os executivos através da conexão direta de suas ações com o valor gerado aos acionistas, Collis e Montgomery (1997) concluem que a estratégia baseada em valor é mais adequada para a melhoria da eficiência na utilização de ativos existentes do que no desenvolvimento de iniciativas estratégicas de longo prazo, reforçando, novamente, o seu caráter de curto prazo.

2.1 ARQUÉTIPOS DO SUCESSO E DO FRACASSO ORGANIZACIONAL

A seção anterior mostrou que há formas distintas de se compreender o sucesso organizacional. Há perspectivas e estratégias que se voltam para o curto prazo, eliminando a visão dinâmica do sucesso ao reduzi-lo a um único tipo de indicador, como eficiência nas transações econômicas ou geração de valor aos acionistas. Todavia, um dos desafios desta dissertação é justamente investigar essa natureza processual do sucesso no longo prazo, identificando as razões pelas quais certas empresas desfrutam de crescimento e existência continuados, enquanto outras acabam contraindo-se e, com o tempo, desaparecendo. Nesse sentido, o modelo de arquétipos de sucesso e fracasso organizacional (FLECK, 2009a) se propõe a responder essa questão, conforme será explicado ao longo desta seção. O modelo origina-se da análise comparativa da história de duas grandes rivais norte-americanas: a General Electric e a Westinghouse. Criadas praticamente na mesma época, com atuação em segmentos de negócio semelhantes e num ambiente que passou pelas mesmas grandes transformações, as empresas apresentaram trajetórias bastante distintas: a primeira sustentou a posição de dominância industrial e desempenho financeiro superior, perpetuando-se até os dias

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de hoje, enquanto a segunda, após período de sucesso, entrou em processo de declínio e se extinguiu. Buscando identificar as condições que explicaram a diferença no padrão de comportamento e desempenho das duas rivais, Fleck (2009a) observou que, ao longo do tempo, as empresas adotaram respostas distintas a um conjunto de desafios associados ao crescimento, e que isso afetou suas chances de sucesso ou fracasso no longo prazo. Com base na descoberta, a autora desenvolveu o modelo de arquétipos de sucesso e fracasso organizacional, propondo um instrumento de referência para se avaliar a propensão das organizações à auto-perpetuação ou à auto-destruição. O uso do modelo pressupõe a identificação de traços organizacionais associados a cada desafio do crescimento. Um traço é um comportamento consistente que a organização exibe ao longo do tempo, podendo ser entendido como o padrão de resposta a um desafio gerencial. Dependendo de como responde aos desafios, a organização aumentará a sua propensão à auto-perpetuação ou à auto-destruição. A Tabela 2-1 apresenta os cinco desafios do crescimento propostos por Fleck (2009a). Além das dimensões que compõem cada desafio, a tabela contém ainda a caracterização dos traços organizacionais para os dois estados extremos e ideais de existência da empresa. Vale lembrar que, na prática, uma organização se situa em algum estado intermediário entre os dois pólos. Uma das premissas do modelo é que a sobrevivência é uma propriedade dinâmica da firma, pois, como os desafios enfrentados e as respostas aos mesmos podem variar ao longo do tempo, as chances de a empresa desenvolver uma existência continuada podem igualmente variar ao longo do tempo, na medida em que aumenta ou diminui sua propensão à auto-perpetuação.

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Categoria do Pólos de respostas aos desafios Descrição do desafio Desafio Auto-destruição Auto-perpetuação

Promoção contínua do empreendedorismo através Baixo Alto do fomento à disposição da (baixos níveis de (altos níveis de firma para promover ambição, versatilidade, ambição, versatilidade, movimentos expansivos que imaginação, visão, imaginação, visão, Empreender sejam criadores de valor e habilidade em levantar habilidade em levantar auto-reforçantes (ou seja, financiamento; e financiamento; e que reforcem a busca por realização de realização de novas expansões), expansões nulas ou expansões produtivas prevenindo-se contra a defensivas) ou híbridas) superexposição ao risco.

Passivo Ativo Relacionamento com as (Monitoramento ruim, (Monitoramento múltiplas partes interessadas Navegar no uso inadequado ou regular, uso adequado para assegurar a captura de ambiente importuno de respostas e oportuno de valor e a legitimidade da estratégicas às respostas estratégicas organização. pressões externas) às pressões externas)

Fragmentação Integração (Fracasso no (Desenvolvimento bem Sustentação da integridade estabelecimento tanto sucedido de Gerir a da organização em face do de relacionamentos de relacionamentos de diversidade aumento de conflitos e integração quanto de integração e de rivalidades. capacitações em capacitações em coordenação) coordenação) Fornecer constante de Tardio Aprovisionar recursos humanos Planejado (Ações no momento da recursos qualificados de acordo com (Ações planejadas com necessidade ou depois gerenciais as necessidades da antecedência) dela) organização. Sistemático Gerenciamento de questões Ad-hoc (Forte capacitação para complexas e resolução de (Fraca capacitação solução de problemas, Gerir a problemas de crescente para solução de promovendo buscas complexidade complexidade, evitando problemas, utilizando amplas por soluções e riscos à existência da rápida análise e sem estimulando o organização. aprendizado) aprendizado)

Tabela 2-1: Os Cinco Desafios Organizacionais Fonte: Fleck, 2009a.

Como mostra a Figura 2-1, o conjunto de respostas aos desafios, juntamente com a gestão da folga organizacional, contribui para a capacidade da organização de desenvolver duas habilidades necessárias ao sucesso no longo prazo: a renovação organizacional, através de processos de crescimento contínuos, e a preservação da integridade organizacional, que permite a sua existência continuada. E o desempenho da organização nesses dois processos também influencia a sua

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capacidade de resposta aos desafios, demonstrando o dinamismo e a inter-relação entre os elementos do modelo (ver as setas na Figura 2-1).

DESAFIOS DO CRESCIMENTO

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7 7 +/- Empreender 8 Crescimento organizacional CN 4 e renovação Navegar no CN ambiente 2 +/- CN Sucesso de Gerir a LP: 6 Folga 1 complexidade propensão à auto-perpetuação Gerir a +/- 3 +/- CN diversidade

CN 5 Integridade organizacional 7 Aprovisionar +/- RH 8 8

8

Figura 2-2: Modelo de Requisitos para o Desenvolvimento da Propensão à Auto- perpetuação Fonte: Fleck, 2009a.

A apresentação do modelo seguirá a seguinte ordem. Inicialmente, tratar-se-á dos cinco desafios associados ao crescimento, buscando explicitar as dimensões de cada proposição da autora. Em seguida, serão apresentados os dois processos necessários ao sucesso no longo prazo, explicitando a influência das respostas aos desafios para o seu alcance. Por fim, buscar-se-á descrever como a gestão da folga organizacional contribui para a construção da propensão à auto-perpetuação.

2.1.1 Desafios do crescimento

Como evidencia a Tabela 2-1, os desafios do crescimento são, na verdade, o que Cooper e Emory (1995) chamam de construtos: uma idéia ou imagem

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especificamente criada para o propósito de uma pesquisa científica. Um construto é construído por meio da combinação de conceitos mais simples, especialmente quando a idéia ou imagem que se pretende transmitir não está diretamente sujeita a observação. A seguir, portanto, cada desafio será detalhado de forma a explicitar suas principais dimensões de análise, permitindo a compreensão dos conceitos e fundamentos a partir dos quais foram desenvolvidos.

2.1.1.1 Empreender

O desafio de empreender diz respeito ao desenvolvimento da propensão da organização a se expandir continuamente (FLECK, 2009a). Compreende a disposição para correr riscos, buscar maneiras de evitar riscos e ainda assim expandir, alcançando um crescimento contínuo, em vez de pontual. A expansão organizacional requer a combinação de dois tipos de estratégias (FLECK, 2010): de exploração (“exploration”) e de explotação2 (“exploitation”). Estratégias do tipo “exploration” são aquelas que visam a exploração de novas oportunidades de crescimento, e estão relacionadas a aspectos como pesquisa, investigação, experimentação, risco, flexibilidade, descoberta e inovação (MARCH, 1991). As estratégias do tipo “exploitation”, por outro lado, referem-se ao aproveitamento de oportunidades já existentes e conhecidas, a ―fazer mais do mesmo‖, e estão relacionadas a aspectos como refinamento, produção, eficiência, seleção, implementação e execução (MARCH, 1991). Apoiar-se em uma única estratégia em detrimento da outra pode produzir uma renovação excessiva ou insuficiente para a organização. A concentração em estratégias de exploração tem o risco de gerar um ritmo de inovação mais rápido do que os recursos gerenciais conseguem coordenar, impedindo a organização não só de criar valor de forma responsável, mas de capturar o valor gerado por suas inovações. Já a ênfase excessiva em estratégias de explotação reduz

2 Para as geociências, a explotação é um termo técnico usado para a retirada, extração ou obtenção de recursos naturais, geralmente não-renováveis, para fins de aproveitamento econômico, pelo seu beneficiamento, transformação e utilização.O termo se contrapõe à exploração, que se refere à fase de prospecção e pesquisa de recursos naturais. A exploração visa a descoberta, delimitação e definição de tipologia e teores e qualidade da ocorrência do recurso. Fonte: http://pt.wikipedia.org/wiki/Explota%C3%A7%C3%A3o_de_recursos_naturais.

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progressivamente a capacidade da organização de criar valor para seus stakeholders, tendo que se preocupar mais com a captura de parcela do valor gerado contra os concorrentes. Além da natureza do processo de expansão, o desafio de empreender tem outras três dimensões: a existência de serviços empreendedores; a presença de mecanismos de reforço do crescimento contínuo; e a gestão da exposição à incerteza e ao risco. A existência de mecanismos de reforço será discutida em 2.2.1.1, restando aqui a exposição dos elementos restantes. Para Penrose (1959), empreendedorismo pode ser tratado como uma predisposição psicológica da parte de indivíduos para correr riscos na expectativa de obter ganhos futuros, comprometendo esforços e recursos disponíveis em atividades especulativas3. A própria decisão de investigar perspectivas lucrativas de expansão é uma decisão empreendedora, já que, caso não haja nenhum tipo de pressão ou obviedade sobre o que fazer, a organização pode optar por continuar em seu curso atual de atividades ou despender esforços e comprometer recursos para investigar oportunidades desconhecidas. É uma decisão que requer, portanto, intuição e imaginação, e deve preceder a decisão econômica referente à viabilidade de se prosseguir com uma determinada iniciativa. Contudo, uma empresa que não seja ambiciosa pode muito bem ser administrada de maneira competente. Afinal de contas, há executivos e homens de negócio muito competentes que, devido à exigência em termos de esforço, risco e investimentos, não tentam constantemente obter mais lucros em seus negócios. Da mesma forma, há empresas que operam a partir de uma gestão competente e até mesmo imaginativa por décadas, porém abdicando de aproveitar todas as possibilidades de expansão. Segundo a autora, essa dualidade está relacionada aos tipos de serviços produtivos de que uma organização dispõe. Em seu conceito básico, Penrose (1959) define uma organização como uma coleção de recursos produtivos, físicos e humanos, que são utilizados com o propósito de produzir e vender produtos e serviços. No entanto, faz uma distinção entre recursos e serviços, reforçando a idéia de que, na verdade, os recursos não são os inputs de um processo produtivo, mas sim os serviços que aqueles recursos podem gerar (tais serviços decorrem da

3 Não se trata do caráter especulativo do mercado financeiro, mas do exercício de refletir sobre o futuro e experimentar iniciativas que possibilitem níveis maiores de lucratividade.

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maneira com que os recursos disponíveis são utilizados – um mesmo recurso, quando usado com diferentes propósitos ou de maneiras distintas e em combinação com quantidades e tipos diferentes de outros recursos, fornece um serviço ou conjunto de serviços distintos). Dessa forma, há dois tipos básicos de serviços produtivos: empreendedores e gerenciais. Os serviços gerenciais destinam-se à coordenação dos recursos, planejamento de atividades e administração do dia-a-dia da operação, e são responsáveis pelo que se chamou anteriormente de ―gestão competente‖. Os serviços empreendedores, por sua vez, relacionam-se à absorção e criação de novas idéias tendo em vista a expansão produtiva. Penrose (1959) destaca quatro dimensões principais dos serviços empreendedores, que não resultam unicamente das características dos indivíduos, mas são moldados e condicionados pela própria organização (quando, por exemplo, institui rotinas e procedimentos de estímulo à experimentação):  Versatilidade: é uma questão de imaginação e visão. Trata-se da capacidade de investigar caminhos para a expansão que não são óbvios para a maioria das pessoas e de investigar as possibilidades de novos serviços produtivos provenientes de recursos já existentes. É o caso, por exemplo, de uma organização que altera suas linhas de produtos, até mesmo abandonando produtos anteriores, ou que identifica um novo mercado potencial em uma nova região geográfica. Tem a ver, portanto, com a predisposição de não se restringir às formas tradicionais de enxergar a realidade, empregando recursos e utilizando a criatividade para identificar possibilidades novas de expansão produtiva;  Habilidade em levantar financiamento: é a capacidade de se obter recursos independentemente do tamanho da organização e de sua posição de mercado. Envolve não somente o acesso a fontes de financiamento, mas também a habilidade para se criar confiança junto a possíveis investidores e financiadores. Penrose (1959) menciona ainda que há uma relação entre esta habilidade empreendedora e o quanto de recursos uma empresa consegue obter: a falta de capital pode ser atribuída à falta de serviços empreendedores apropriados, já

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que em situações semelhantes, diferentes empreendedores podem alcançar resultados distintos. Portanto, mesmo que empresas pequenas disponham de condições distintas em comparação com grandes organizações, o acesso limitado a capital não pode ser aceito como a única razão para a dificuldade de levantar recursos;  Ambição: é o desejo de expandir as operações de uma organização na busca por níveis de lucratividade superiores àqueles já alcançados, estando disposto a aumentar esforços, riscos e investimentos. Penrose (1959) sugere dois tipos de perfil ambicioso. Há o “product-minded entrepreneur”, empreendedor motivado principalmente pela lucratividade e crescimento de suas empresas, através, por exemplo, da melhoria da qualidade de seus produtos ou da redução de custos. Por outro lado, o construtor de império (empire-builder), motivado pela visão de construir um grande império industrial, preocupa-se em ampliar o escopo de sua empresa através da aquisição ou eliminação de competidores, adotando meios que não a competição no mercado. Este pode ser um simples especulador financeiro, diferentemente do “product-minded entrepreneur”, que administra sua organização com o propósito de produzir e distribuir produtos e serviços; e  Julgamento: envolve muito mais do que uma combinação de imaginação, bom senso, auto-confiança e outras qualidades pessoais. Está diretamente relacionado à capacidade de reunir informações de forma a considerar e, se possível, reduzir ao máximo os efeitos de incertezas e os riscos decorrentes para a organização. Se por um lado a presença dessas dimensões de serviços empreendedores contribui para uma organização dar uma resposta efetiva ao desafio de empreender, Penrose (1959) chama a atenção para outro aspecto igualmente importante a ser gerenciado na busca pelo crescimento contínuo: os efeitos da incerteza (confiança do empreendedor em suas estimativas e expectativas) e a exposição ao risco (refere-se aos resultados possíveis da ação empreendida, especialmente às perdas incorridas). Primeiramente, a autora cita a existência de teorias que declaram que risco e incerteza são necessariamente fatores restritivos aos planos de expansão de uma

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firma. Segundo tais teorias, o limite à expansão é algo ―dado‖, diante do qual só resta ao empreendedor assumir uma postura passiva: ele pode se ajustar de acordo com seus julgamentos, mas não pode alterar a situação. Penrose (1959), no entanto, sugere que o grau com que o risco e a incerteza afetam os planos de expansão de uma empresa está diretamente associado à disponibilidade de recursos gerenciais para lidar com tais fatores. A incerteza sobre o futuro, subjetiva em sua natureza, decorre, dentre outras coisas, da opinião do empreendedor sobre a suficiência das informações a respeito dos fatores determinantes do futuro. Dessa forma, uma maneira de reduzir a incerteza e aumentar a confiança em seus julgamentos é obter mais informações sobre tais fatores. Essa tarefa, porém, requer a alocação de recursos de diferentes áreas de competências para a investigação sobre o futuro, de forma a permitir ao empreendedor medir a sua exposição ao risco. Empreender, portanto, contempla tanto a disposição de correr riscos quanto de buscar formas de expandir evitando novos riscos. Sempre haverá um momento em que o empreendedor não estará mais disposto a correr tantos riscos, mudando o foco para a identificação de meios de expandir sem ampliar consideravelmente os riscos de suas iniciativas. Por exemplo, em vez de executar um grande programa por inteiro, pode-se dividi-lo em módulos e implementá-lo gradativamente. Independente da solução encontrada, o fato é que quanto maiores a incerteza e o risco, maiores serão as dificuldades enfrentadas pela organização. Portanto, esses dois fatores afetam a quantidade e a variedade de recursos gerenciais requeridos para a expansão da organização, não só por exigirem que se obtenham certos tipos de informações antes da sua execução, mas porque afetam também a composição dos planos de expansão. Afinal de contas, os recursos gerenciais não devem somente reunir um conjunto significativo de informações, mas também analisá-las e chegar a conclusões a respeito das linhas de ação que a organização pode seguir com maior confiança. Enquanto Penrose (1959) se preocupa com os ―pré-requisitos‖ ou aspectos que explicam ou não o caráter empreendedor de uma organização, Chandler (1977) tenta identificar os fatores que motivam as organizações a se expandir. Para o autor, o crescimento contínuo resulta de dois tipos de estratégias motivadoras de expansão: a produtiva, que promove a mudança, e a defensiva, que visa controlar a

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mudança. A expansão produtiva busca o aumento da produtividade através da redução de custos unitários, possibilitando economias de escala, escopo ou velocidade, já que se pauta pelo uso mais intensivo dos recursos existentes. A expansão defensiva, por outro lado, é motivada pelo desejo de proteção e controle, buscando evitar a entrada de novos competidores ou o aparecimento de restrições de fornecimento ou de mercado para os produtos ou serviços da organização (integrações verticais e horizontais que buscam a redução das forças competitivas da indústria podem ser exemplos típicos de expansão defensiva). Em complemento a Chandler, Fleck (2009a) sugere outros dois tipos de estratégias de expansão: híbrida e nula. A expansão híbrida é ao mesmo tempo produtiva e defensiva, objetivando tanto o ganho de eficiência quanto a proteção dos domínios da organização. Já a expansão nula não assume nem o caráter produtivo nem defensivo (há, portanto, o desperdício de recursos), sendo uma expansão típica de construtores de impérios. Para a autora, uma organização que adota somente estratégias defensivas ou nulas tem alta probabilidade de crescer de maneira pontual, encontrando dificuldades para se expandir continuamente e se renovar no longo prazo.

2.1.1.2 Navegar no ambiente

O desafio de navegar no ambiente refere-se à capacidade de atuar frente às diversas partes interessadas (stakeholders) em um ambiente em mudança, de forma a assegurar a captura de valor e a legitimidade da organização (FLECK, 2009a). Segundo a autora, a resposta de uma organização ao desafio de navegar no ambiente apresenta duas dimensões: o monitoramento das pressões do ambiente e o uso de respostas adequadas a essas pressões. O fracasso nas duas tarefas ameaça a capacidade da organização de crescer e se renovar continuamente. Por exemplo, como oportunidades de captura de valor oriundas das iniciativas empreendedoras são perdidas, produz-se menos folga financeira, que futuramente poderia ser utilizada para gerar novas oportunidades de crescimento para a organização. Penrose (1959) afirma que, pelo fato de haver estímulos internos à busca contínua por novas oportunidades produtivas que levem à expansão, o crescimento

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organizacional não pode ser unicamente associado a mudanças no ambiente. A autora, porém, ressalta que o conhecimento e a experiência sobre o ambiente e os impactos de suas mudanças não só fazem parte do estoque de conhecimento da organização como podem mudar a importância dos recursos disponíveis, influenciando o escopo do processo de expansão (por exemplo, se crescerá num mesmo tipo de produto ou se diversificará). Conhecimentos sobre mercados, tecnologias desenvolvidas por concorrentes e comportamento de consumidores, por exemplo, transformam a maneira com que o empreendedor enxerga o ambiente e suas demandas, e, conseqüentemente, interferem em sua pesquisa sobre a utilização de recursos e serviços produtivos para a expansão de suas atividades. Portanto, ainda que de forma não-explícita, Penrose (1959) reforça a importância do monitoramento constante do ambiente para a renovação e o crescimento contínuo. Fleck (2009a), porém, amplia o papel do monitoramento do ambiente incorporando a questão da gestão do relacionamento com os stakeholders, de forma a garantir a captura de valor e a legitimidade da organização. Além de monitorar e avaliar constantemente o ambiente, Fleck (2009a) propõe também que a organização precisa ser bem sucedida na adoção de um conjunto de respostas estratégicas às pressões externas. Nesse sentido, Oliver (1991), ao comparar a teoria institucional e a teoria da dependência de recursos, busca identificar diferentes respostas estratégicas que uma organização pode adotar diante de pressões institucionais (oriundas do seu ambiente social). A autora demonstra que o comportamento organizacional pode variar da conformidade passiva até a resistência proativa, dependendo de dois fatores: a natureza das pressões institucionais, avaliada segundo cinco aspectos – causa, constituintes, conteúdo, controle e contexto – e dos diferentes graus de resistência, consciência, proatividade, influência e auto-interesse da organização. Assim, as respostas estratégicas variam da conformidade à resistência, da passividade à proatividade, da pré-consciência ao controle, da impotência à influência, e da habitualidade ao oportunismo. Com base nessas variações, Oliver (1991) propõe cinco principais estratégias que as organizações podem adotar em resposta às pressões ambientais, detalhando-as segundo um conjunto de táticas características de cada tipo de comportamento:

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 Estratégia de aceitação (“Acquiesce”): aceitação de normas e pressões institucionalizadas no ambiente. As táticas utilizadas para essa estratégia podem ser: o Hábito (“Habit”): aderência inconsciente ou ―cega‖ a regras ou valores institucionalizados; o Imitação (“Imitate”): imitação consciente ou inconsciente de modelos institucionalizados, incluindo modelos de sucesso ou indicados por consultorias; e o Conformidade (“Comply”): incorporação ou obediência consciente a valores, normas ou requisitos institucionais. A conformidade é considerada mais proativa do que o hábito ou a imitação, já que a organização opta por conformar com certas pressões institucionais em antecipação a certos benefícios que vão desde o apoio social até a legitimidade e estabilidade.  Estratégia de negociação (“Compromise”): refere-se a situações em que a organização se confronta com demandas conflituosas ou inconsistências entre as expectativas institucionais e seus objetivos internos relacionados a eficiência e autonomia. Nesse contexto, as táticas adotadas podem ser: o Balanceamento (“Balance”): acomodação de múltiplas demandas de stakeholders em resposta a pressões e expectativas institucionais; o Pacificação (“Pacify”): conformidade parcial a expectativas de um ou mais stakeholders. Uma organização que adota a tática pacifista mantém um mínimo de resistência a pressões institucionais, porém gasta suas energias para apaziguar as fontes de pressão a que resiste; e o Barganha (“Bargain”): envolve o esforço da organização em exigir concessões dos constituintes externos para o atendimento a suas demandas e expectativas. É uma forma mais ativa de comprometimento do que a pacificação.  Estratégia de evasão (“Avoid”): é a tentativa da organização de evitar a necessidade de se adequar a alguma pressão ou demanda

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externa. Enquanto as estratégias de aceitação e de comprometimento constituem respostas empregadas pela organização com o objetivo de conformar parcial ou integralmente às pressões externas, a estratégia de evasão é motivada pelo desejo de contornar as condições que fazem a conformidade necessária. As táticas utilizadas para essa estratégia podem ser: o Ocultação (“Conceal”): maquiagem de não-conformidades ao aparentar aceitar e se comprometer com pressões externas; o Prevenção (“Buffer”): tentativa de reduzir o grau com que a organização é externamente inspecionada, examinada ou avaliada através da dissociação parcial de suas atividades técnicas do contato externo; e o Fuga (“Escape”): sair do domínio onde a pressão é exercida ou alterar seus objetivos, atividades e domínios para evitar a necessidade de conformação.  Estratégia de confrontação (“Defy”): é uma forma mais ativa de resistência a pressões institucionais. Em comparação às demais estratégias, representa uma rejeição inequívoca às normas e expectativas externas, sendo mais fácil de ocorrer quando: o custo de rejeição é percebido como baixo; os interesses internos divergem drasticamente dos valores externos; a organização acredita ser capaz de demonstrar e justificar sua postura conflitante; ou a organização acredita ter pouco a perder ao demonstrar seu antagonismo àqueles que a julgam ou se opõem. As táticas são: o Ignorar (“Dismiss”): caso em que a organização ignora regras ou valores institucionalizados; o Desafio (“Challenge”): é um afastamento maior das regras, normas ou expectativas dos constituintes do que a tática de ignorar. Ocorre quando uma organização adota uma postura ofensiva de desafiar as regras e normas vigentes, sendo até capaz de gerar valor ou reconhecimento a partir de sua iniciativa; e

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o Ataque (“Attack”): distingue-se da tática de desafio pela intensidade e agressividade do distanciamento da organização em relação às pressões e expectativas externas. Uma organização que adota essa tática empenha-se em atacar, desmerecer ou condenar veemente tanto os valores quanto os constituintes que os defendem.  Estratégia de Manipulação (“Manipulate”): de todas, é a forma mais ativa de resposta às pressões externas, pois tem a intenção de alterar ou exercer poder sobre o conteúdo das pressões ou sobre as fontes que as exercem. Diferentemente das demais, considera que as pressões e expectativas não são uma restrição dada, a ser obedecida ou desafiada. As táticas são: o Cooptação (“Co-opt”): persuadir constituintes institucionais a se juntar à organização, de forma a neutralizar oposição e aumentar a sua legitimidade; o Influência (“Influence”): podem ser mais genericamente direcionadas para crenças e valores institucionalizados ou para definições e critérios de práticas aceitáveis ou desempenho; e o Controle (“Control”): esforços específicos para exercer controle e dominância sobre constituintes externos que pressionam a organização. É uma resposta mais agressiva do que a cooptação e a influência porque objetiva dominar as fontes de pressão institucional, em vez de influenciar, moldar ou neutralizá-las. Tomando como base o trabalho de Oliver (1991), Fleck (2009a) propõe que uma organização pode fazer uso de todas as respostas estratégicas às pressões institucionais, com três finalidades: (i) moldar o ambiente (estratégias de manipulação e confrontação); (ii) neutralizar pressões (estratégia de evasão); e (iii) ajustar-se às situações que estão fora de seu controle (estratégias de aceitação e comprometimento). Quanto mais bem sucedida ao moldar o ambiente, maior a probabilidade de que a organização capture valor de seus empreendimentos e maior a tendência para agir de forma a manter imutáveis tanto o ambiente favorável que ajudou a moldar quanto si mesma.

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Por outro lado, também são maiores as chances de a organização se tornar simples e mais vulnerável a sofrer processos autodestrutivos (MILLER, 1993). Fleck (2009b), então, sugere que a busca por moldar um ambiente mais sustentável neutraliza pressões para que as organizações experimentem processos de simplificação e, conseqüentemente, de autodestruição. Além disso, levanta a hipótese de que, ao incluir o planeta Terra entre os seus stakeholders, a organização não só aumenta a variedade de formas para capturar valor como também aciona um mecanismo para neutralizar a sua propensão a se tornar simples.

2.1.1.3 Gerir a diversidade

O crescimento traz consigo o aumento da diversidade da organização sob inúmeros aspectos, como mercados, produtos, tecnologias e recursos humanos. Durante esse processo, a diversidade pode dar espaço ao surgimento de conflitos e rivalidades entre as diferentes partes constituintes da organização, ameaçando a sua unidade. Cyert e March (1963), por exemplo, afirmam que uma organização, por ser uma coalizão de indivíduos (muitas vezes organizados em subcoalizões) tem um potencial intrínseco para o surgimento de conflitos, pois tais indivíduos têm objetivos e aspirações tanto convergentes quanto distintos entre si. Nesse sentido, quanto mais uma organização cresce (seja por ampliar a quantidade de funcionários ou por especializá-los), maior a probabilidade de conflitos e rivalidades, e maior ainda o desafio de garantir a unidade em torno de um objetivo comum. Diante disso, o desafio proposto por Fleck (2009a) diz respeito à sustentação da integridade da organização à medida que se expande e experimenta o aumento de sua diversidade. A gestão bem sucedida da diversidade inclui a distinção entre elementos organizacionais heterogêneos e homogêneos e fomenta a criação de laços ou vínculos entre tais elementos. Para a autora, a construção de vínculos e laços entre os elementos constituintes da organização se dá de duas maneiras: pelo compartilhamento de recursos para os aspectos homogêneos e pelo intercâmbio de recursos para os aspectos heterogêneos. O uso compartilhado de recursos não se limita a elementos tangíveis, como produtos, serviços, pessoal ou instalações, mas engloba também itens como

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reputação, mitos e percepções a respeito de ameaças à existência da organização. A padronização de processos, por exemplo, é uma forma de compartilhamento que pode oferecer à organização economias de escala, escopo e velocidade. Além disso, se os recursos compartilhados forem valiosos e raros devido a condições históricas particulares, os laços criados podem conferir à organização recursos que são difíceis e custosos de imitação (BARNEY, 1991). No caso dos recursos heterogêneos, mais do que produtos, serviços, pessoal e instalações, engloba principalmente o intercâmbio e a combinação de processos organizacionais que requerem complexa interação entre as parte da organização. Novamente, os laços e vínculos criados podem dotar a empresa de processos que são difíceis e custosos de imitação, devido à complexidade social existente (BARNEY, 1991). No entanto, esses dois tipos de relação só serão efetivamente construídos se houver o desenvolvimento de capacitações em coordenação (FLECK, 2009a). Ou seja, a organização precisa dedicar recursos na formação de mecanismos de integração, como forças-tarefa, comitês permanentes, departamentos de integração ou até mesmo cargos responsáveis exclusivamente por integrar as suas partes (como, por exemplo, em ocasiões de aquisições ou fusões). É preciso ressaltar que a implementação de mecanismos de coordenação não elimina a heterogeneidade da organização, mas visa, a partir do estímulo à integração, fazer uso de sua diversidade para construir vantagens competitivas. Em caso de falha nessa tarefa, os funcionários da empresa podem não estar dispostos a cooperar, buscando meios para garantir sua autonomia e, assim, ocasionando a fragmentação da organização e ameaçando a sua integridade.

2.1.1.4 Aprovisionar recursos gerenciais

Embora seja uma questão óbvia em se tratando de administração de empresas, alguns autores chamam a atenção para a importância dos recursos humanos para o processo de crescimento organizacional. Chandler (1990), por exemplo, destacou o investimento em equipes gerenciais como uma condição necessária (mas não suficiente) para aquelas empresas que chama de “first movers”, ou seja, que rapidamente dominaram suas indústrias em seus estágios

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iniciais e mantiveram tal posição por diversas décadas. Para o autor, o sucesso duradouro requer o investimento na formação de duas equipes distintas de gestão: gerentes de níveis médio e inferior para a coordenação do fluxo de produtos através das atividades de produção e de distribuição; e gerentes de alto nível para a coordenação e monitoramento das operações correntes e para o planejamento e alocação de recursos tendo em vista atividades futuras. Penrose (1959), por sua vez, afirma que a disponibilidade de recursos humanos gerenciais necessariamente estabelece um limite para a expansão da firma. Os serviços fornecidos pelo grupo gerencial existente limitam a quantidade de expansão que pode ser planejada pela organização, e quanto maiores e mais complexos os planos de expansão, mais serviços são requeridos para apoiar o processo de crescimento. Além disso, a quantidade de atividades que podem ser planejadas em um determinado momento limita a quantidade de novo pessoal que pode ser lucrativamente absorvido pela empresa no momento seguinte. Para Penrose (1959), no entanto, o diferencial não está somente na formação de um grupo coeso de indivíduos, mas nas experiências que tais pessoas obtiveram ao trabalhar juntas na organização, e que lhes permitem oferecer novos serviços produtivos que, além de singularmente valiosos para as atividades daquele grupo, não podem ser adquiridos através de contratações de fora da empresa. Quando profissionais se acostumam a trabalhar numa empresa ou em um grupo particular de pessoas, eles se tornam mais valiosos, já que os serviços produtivos que geram são fortalecidos pelos conhecimentos de seus companheiros, pelos métodos da empresa e pela forma com que desempenham suas atividades na circunstância particular em que estão inseridos. Seguindo a mesma linha dos dois autores acima, o desafio de aprovisionar recursos humanos diz respeito a constantemente equipar a organização com recursos humanos qualificados e que disponham das habilidades necessárias ao crescimento, antecipando necessidades, formando, retendo, desenvolvendo e renovando tais recursos (FLECK, 2009a). Para a autora, a falha no desempenho dessas atividades não só impede a expansão como também enfraquece a integridade da organização. É de fundamental importância, portanto, que a organização seja capaz de agir de maneira antecipada e preventiva no sentido de sempre dispor de recursos

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humanos qualificados para as suas necessidades atuais e futuras (através, por exemplo, de processos sistematizados de recrutamento e seleção de pessoas e de gerenciamento da sucessão), bem como de criar condições e motivações para que tais recursos se desenvolvam ao longo do tempo e mantenham vínculos com a empresa, mesmo após saírem ou terem se aposentado.

2.1.1.5 Gerir a complexidade

Como visto anteriormente, o processo de crescimento traz consigo o desafio de gerir a crescente diversidade da organização, buscando garantir a sua unidade. Diretamente associado, outra conseqüência do crescimento é o aumento da complexidade dos problemas colocados para a organização, não só pela ampliação das questões a serem consideradas, mas pela interdependência das variáveis em jogo. O desafio de gerir a complexidade, então, refere-se à resolução de problemas que envolvem um grande número de variáveis interdependentes, de forma a não colocar a existência da organização em risco em decorrência de erros de análise (FLECK, 2009a). Requer o desenvolvimento de uma abordagem sistemática para a resolução de problemas, com procedimentos que permitam:  O levantamento de dados, através de rotinas e sistemas que permitam o acesso a informações confiáveis e uniformes para toda a organização, evitando conflitos dessa natureza;  A análise dos dados, através de rotinas, sistemas e ferramentas que permitam o diagnóstico e monitoramento de dados a respeito do desempenho da organização e do ambiente em que está inserida;  A identificação de soluções, envolvendo a criatividade para se criar soluções fora do senso comum, juntamente com critérios de priorização e avaliação da viabilidade das possibilidades, buscando reduzir a exposição ao risco da organização; e  A posterior implementação, monitorando a execução das ações propostas e avaliando a sua eficácia na solução dos problemas iniciais. Além disso, tal abordagem deve preconizar o aprendizado contínuo da organização, de forma a aprimorar constantemente a sua capacidade de avaliar e

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resolver problemas de alta complexidade. Envolve o desenvolvimento de mecanismos de disseminação e compartilhamento do conhecimento obtido com as experiências anteriores, de forma a se obter mais qualidade e eficiência na utilização de recursos para a solução de problemas futuros. É importante ressaltar que, por sua natureza, o desafio de gerir a complexidade afeta diretamente as respostas da organização aos demais desafios associados ao crescimento. Afinal de contas, a atuação da empresa em relação aos desafios inclui invariavelmente a tomada de decisão e a solução de problemas complexos. Por exemplo, a definição da maneira com que a organização se expandirá é um problema complexo e que envolve uma série de variáveis interdependentes: em função da limitação de recursos, um determinado processo de expansão pode não só impedir o aproveitamento de outras oportunidades produtivas, mas também colocar em risco a saúde da organização caso não se alcance os resultados esperados.

2.1.2 Gestão da folga organizacional

Conforme a Figura 2-2, a gestão da folga organizacional influencia diretamente a capacidade da organização de se renovar continuamente e de garantir a sua existência continuada. Segundo Bourgeois (1980 apud LAWSON, 2001, p. 126), a folga pode ser entendida como ―o ‗colchão‘ de recursos atuais ou potenciais que permitem à organização adaptar-se com sucesso a mudanças decorrentes de pressões internas ou externas‖. Na mesma linha, Nohria e Gulati (1997, p. 604) a definem como ―conjunto de recursos em uma organização que excede o mínimo necessário para produzir um determinado nível de output‖. Sharfman et al (1988 apud SENDER, 2004) consideram que, para os recursos serem identificados como folga, precisam ser tanto visíveis para os gestores quanto empregáveis no futuro. Sender (2004) enquadra os recursos considerados como folga em três categorias:  Recursos humanos: pessoas ligadas à organização, em termos de número ou de horas de trabalho, além do mínimo necessário para a realização das atividades da empresa;

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 Recursos físicos: recursos tangíveis que a firma adquire ou produz, parte da operação da empresa cujo uso e propriedade a firma está familiarizada. Dizem respeito à capacidade de máquina, existência de matéria-prima ou outros recursos além do mínimo necessário para a realização das atividades da empresa; e  Recursos financeiros: são aqueles recursos em espécie ou líquidos o suficiente para utilização imediata não prevista na realização das atividades da empresa. Há na literatura duas linhas com visões opostas em relação à folga e seu valor para a organização. De um lado, estão os que valorizam a folga com base na sua relação com o processo de renovação contínua. Penrose (1959), Chandler (1997) e Fleck (2009a), por exemplo, identificam o excesso de recursos produtivos como um dos principais motivadores da expansão organizacional, já que cria oportunidades para a busca por novas formas de se utilizar, de maneira lucrativa, os recursos existentes. Complementarmente, Lawson (2001) e Nohria e Gulati (1997) sugerem que a folga dota a organização de três competências fundamentais para o sucesso no longo prazo – a flexibilidade, a inovação e o aprendizado.

[...] organizations will need to develop strategic flexibility, defined as ‗the capability of the firm to proact or respond quickly to changing competitive conditions and thereby develop and/or maintain competitive advantage‘. Organizations of the future must be able to adapt more quickly to more changes in more complex environments than ever before. Based on what we know, this will require more, rather than less, organizational slack. (LAWSON, 2001, p.126)

Outra linha de argumentação em favor da folga está associada ao seu papel para a proteção da integridade organizacional. Cyert e March (1963 apud NOHRIA; GULATI, 1997), por exemplo, sugerem que a folga não soluciona conflitos de interesses entre as partes da organização, mas pode auxiliar ao permitir a acomodação momentânea de demandas concorrentes. Além disso, a folga pode funcionar como uma maneira de se reduzir o processamento de informações e os custos de coordenação entre as partes da organização (THOMPSON, 1967; GALBRAITH, 1973 apud NOHRIA; GULATI, 1997). Em processos de reestruturação, por exemplo, a folga pode influenciar positivamente a integridade organizacional quando aplicada, dentre outras coisas, para o desenvolvimento e a implementação

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de mecanismos de integração e coordenação (FLECK, 2009a). A autora sugere ainda que, quando utilizada para compensar procedimentos operacionais deficientes, comunicação insuficiente ou repostas insatisfatórias a conflitos, a folga pode afetar negativamente a integridade da organização. Por outro lado, Nohria e Gulati (1997) afirmam que a premissa básica do pensamento que condena a folga organizacional é o seu entendimento como sinônimo de desperdício, tratando-se, assim, de um indicador de incompetência ou preguiça. Aqui, a lógica predominante é a econômica, que declara que a folga organizacional deva ser zero ou a mínima possível em favor de um objetivo maior: a eficiência.

When viewed as waste, resources vital to renewal, organizational learning, and adaptation to change…become candidates for elimination, since the net effect of these activities is difficult to see on the bottom line in a short period of time. (LAWSON, 2001, p.127)

Tais autores, inclusive, argumentam que a inovação e a adaptação podem ser prejudicadas pelo excesso de folga, em função da diminuição da disciplina da organização para, por exemplo, escolher projetos de investimento. Nesse mesmo sentido, Nohria e Gulati (1997) desenvolvem a idéia de que, especialmente para os economistas, a folga pode ser vista como um indício do auto-interesse gerencial, ou seja, do interesse dos gerentes e executivos da organização em detrimento dos interesses de acionistas. É o caso, por exemplo, de um gerente que mantém um orçamento inflado não por necessidade daqueles recursos, mas como forma de garantir o seu poder dentro da organização. Nesse ponto, Nohria e Gulati (1997) relacionam a gestão da folga com a Teoria do Agente-Principal, que argumenta que nem sempre os agentes têm incentivos para agir em benefício dos principais, ocasionando o surgimento de conflitos organizacionais. Para os autores, uma das saídas para solucionar esse problema acaba sendo a intensificação dos instrumentos de controle interno de forma a reduzir a assimetria de informações entre principais e agentes, permitindo que os primeiros possam monitorar constantemente os segundos. Diante dos prós e contras associados à folga organizacional, Nohria e Gulati (1997) propõem que a relação entre a folga e a inovação é curvilínea, geralmente positiva, porém decrescendo após um determinado ponto. Ou seja, sugerem que há

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um nível intermediário de folga em qualquer organização que é ótimo para a inovação.

Disciplina Experimentação

Inovação

Folga organizacional

Figura 2-3: A relação prevista entre a folga organizacional e a inovação Fonte: Nohria e Gulati, 1997, p. 605.

Como mostra a Figura 2-3, existe uma relação positiva (o aumento de um fator é acompanhado pelo aumento do segundo fator), porém decrescente, entre a folga e a experimentação. Por outro lado, a relação entre a folga e a disciplina é negativa (o aumento de um fator leva à redução do segundo fator) e crescente, já que, quanto maior a experimentação em decorrência da folga, menor é o controle sobre a organização, afrouxando a disciplina utilizada para selecionar, apoiar e finalizar projetos. A baixa disciplina não só permite a seleção de projetos ruins, mas também pode levar à descontinuação de projetos promissores. Além disso, os autores identificam a existência de duas variáveis adicionais que mediam a relação entre folga e inovação, como mostra a Figura 2-4. Por um lado, o contexto externo, caracterizado pelo grau de competição e de dinamismo tecnológico do ambiente em que a organização está inserida, exerce um efeito positivo sobre a inovação, já que demanda maior experimentação. Por outro lado, a intensidade dos sistemas de controle interno adotados pela organização exerce um efeito positivo, porém curvilíneo, sobre a sua capacidade de inovar.

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Contexto ambiental

+ Experimentação +

Folga Inovação

- Disciplina ~

Grau de controle interno

Legenda: + efeitos positivos - efeitos negativos ~ efeitos curvilíneos variáveis observáveis variáveis não-observáveis Figura 2-4: Modelo da relação entre a folga organizacional e a inovação Fonte: Nohria e Gulati, 1997, p. 606.

2.1.3 Processos

2.1.3.1 Crescimento e renovação

O processo de renovação organizacional através do crescimento contínuo está associado à resposta aos desafios de empreender e de navegar no ambiente. Uma organização que não busca continuamente caminhos e alternativas para se expandir reduz as possibilidades de se tornar mais lucrativa, já que não se mostra capaz de gerar valor. Lepak, Smith e Taylor (2007) propõem a existência de dois tipos de valores: o valor de uso, associado à percepção (julgamento individual e subjetivo) dos usuários sobre um determinado produto ou serviço frente às suas necessidades; e o valor de troca, que se refere à quantidade monetária paga pelo usuário ao vendedor para fazer uso do produto ou serviço. Dessa forma, a criação de valor deve ao menos se traduzir em disposição do usuário para trocar uma quantidade monetária pelo valor a ser recebido. Além disso, em vez de usar uma

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visão de usuários restrita aos clientes, a organização deve adotar uma abordagem orientada para os stakeholders, já que suas percepções sobre o que é valioso podem ser não só diferentes, mas conflitantes. No entanto, os autores reforçam que, muitas vezes, organizações que criam valor perdem ou são obrigadas a compartilhar esse valor com outros stakeholders, como funcionários, competidores ou a própria sociedade. Tal situação, chamada de “value slippage”, ocorre quando o valor de uso é alto e o valor de troca é baixo. E dois fatores determinarão a parte que se apropriará do valor criado: a competição e os mecanismos de isolamento (qualquer tipo de barreira física, legal ou de conhecimento que pode prevenir a replicação, por parte de competidores, do novo produto ou serviço criador de valor, como, por exemplo, uma patente). Portanto, uma organização também se torna incapaz de se renovar de maneira contínua se não monitora o ambiente e falha na adoção de estratégias para moldá-lo ou para se ajustar e até mesmo neutralizar pressões externas. Além de limitar sua capacidade de identificar oportunidades de crescimento, a organização não consegue capturar todo o valor gerado por seus empreendimentos, o que reduz a formação de folga financeira que apoiaria iniciativas futuras de expansão. Mais do que a importância do crescimento contínuo, é preciso compreender a forma com que esse processo ocorre dentro das organizações. Penrose (1959) sugere que os incentivos internos à expansão provêm, em sua maior parte, da existência de recursos e serviços produtivos não-utilizados pela organização. Sempre haverá incentivos à expansão quando esta permitir a utilização de serviços produtivos de uma forma mais lucrativa do que a corrente. Da mesma maneira, se houver recursos que não sejam inteiramente utilizados, a organização também terá uma razão para encontrar formas de utilizá-los por completo. Serviços e recursos produtivos não-utilizados são um desperdício para a organização (muitas vezes inevitável), mas podem ser, ao mesmo tempo, um desafio à inovação, um incentivo à expansão e uma fonte de vantagem competitiva. Chandler (1977), ao estudar a ascensão da moderna empresa de negócios e de seus administradores na economia norte-americana, identificou que o crescimento contínuo dessa nova forma de organização se dava mediante um mecanismo de auto-reforço: a existência de recursos e habilidades subutilizados e transferíveis (desequilíbrio) levava as grandes empresas industriais integradas a

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expandir suas atividades, em mercados e produtos correntes ou novos, para fazer uso maior dos recursos e habilidades disponíveis. A expansão, por sua vez, intensificava ainda mais o desequilíbrio, já que gerava novas modalidades de recursos e habilidades subutilizados, o que, por sua vez, tornava-se um estímulo a um novo movimento de expansão. Ainda segundo o autor, as motivações de expansão produtivas contribuíram mais para o crescimento contínuo do que as motivações defensivas. O mecanismo de auto-reforço proposto por Penrose (1959) e Chandler (1977) baseia-se na indivisibilidade dos recursos: uma organização nunca será capaz de fazer uso completo dos recursos adquiridos, seja por falta de necessidade ou por haver restrições que impedem o seu uso integral (como, por exemplo, a ausência de folga financeira ou a insuficiência de recursos gerenciais para a sua coordenação). Para Penrose (1959), no entanto, não se trata somente de eliminar a ociosidade dos recursos, mas também de se aproveitar a sua especialização, alocando-os em atividades que fazem o maior uso possível de suas competências e habilidades. É o caso, por exemplo, de um químico que trabalha na farmácia de um hospital e gasta a maior parte do seu tempo verificando fichas de controle de estoque, atividade em que não utiliza a sua formação e que pode ser desempenhada por alguém com grau menor de escolaridade. Dessa forma, a organização terá um incentivo a buscar maneiras de ampliar o uso e a especialização dos recursos e serviços produtivos, através, por exemplo, do aumento da escala de sua operação ou da diversificação de produtos. E tal iniciativa, além de requerer novos recursos, pode criar novos serviços a partir dos recursos empregados, aumentando a heterogeneidade dos recursos e serviços produtivos disponíveis e, conseqüentemente, tornando-se um novo estímulo à busca por conhecimentos que possibilitem o aumento da lucratividade e da eficiência da organização. Fleck (2003, p. 19), tomando como base Penrose (1959) e Chandler (1977), sugere que o mecanismo de auto-reforço proposto pelos autores pode ser visto como ―uma instância de um processo mais geral de crescimento, em que a expansão alimenta condições favoráveis a novas expansões‖. O motor de crescimento contínuo, como o processo é chamado, pressupõe que algum tipo de desequilíbrio ocorrendo dentro ou ao redor da empresa leva a algum tipo de

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expansão em função da percepção de oportunidades de crescimento, a qual, por sua vez, gera algum tipo de mudança que pode intensificar o desequilíbrio.

Desequilíbrio Expansão

+ + Mecanismo de reforço

Figura 2-5: Estrutura geral do motor de crescimento contínuo Fonte: Fleck, 2003.

A tabela abaixo ilustra algumas instâncias do motor de crescimento contínuo.

Tipo de motor Tipo de desequilíbrio Tipo de expansão Mecanismo de reforço

Inercial Difusão dos benefícios Réplica das operações (crescimento Demanda insatisfeita do produto, aumentando existentes aumentando quantitativo das pelos mesmos produtos a demanda pelos o número de usuários mesmas coisas) mesmos produtos

Inovação Resolução do impasse Um impasse do tipo ―OU Inovação tornando o (crescimento pelo acaba produzindo novos isso OU aquilo‖ (trade- impasse ―OU/OU‖ em refinamento de impasses (típico de off) uma situação ―E‖ produtos novos) processos de inovação)

Aquisição de rivais mais Horizontal Vantagem competitiva fracos possuidores de Disponibilidade e uso de (crescimento pela da firma em alguns habilidades e/ou recursos valiosos, raros e aquisição de rivais) aspectos recursos valiosos, raros difíceis de imitar e difíceis de imitar Diversificação relacionada Desequilíbrio Diversificação Diversidade de recursos (crescimento operacional devido a relacionada e habilidades que orgânico pelo recursos subutilizados, aumentando a produzem outros desenvolvimento porém transferíveis para diversidade de recursos desequilíbrios de atividades outras atividades e habilidades operacionais relacionadas) Tabela 2-2: Exemplos de motores de crescimento contínuo Fonte: Fleck, 2003.

Apesar de o mecanismo de auto-reforço do crescimento contínuo sugerir que tal fenômeno ocorra segundo condições existentes dentro da firma, Chandler (1977) observou também que a capacidade de crescimento da indústria em que uma

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organização atua é um requisito para que o seu crescimento ocorra. A partir do relato e análise da indústria ferroviária norte-americana, o autor identificou que uma condição necessária para a capacidade de crescimento das ferrovias era a existência de certo grau de cooperação entre firmas rivais para que se pudesse desfazer alguns gargalos de produção da indústria. Tal padronização, por sua vez, levou ao aumento do nível de competição entre as ferrovias rivais em virtude da redução da diferenciação entre as mesmas, estimulando, portanto, o nível global de atividade da indústria pela ação das firmas existentes e novas. Segundo Fleck (2003, p. 18), ―para ele [Chandler] a cooperação entre as firmas de uma indústria é o mecanismo de deflagração que promove a padronização da indústria, uma condição necessária para que sua capacidade de crescimento se desenvolva‖. Fleck (2003) propôs uma generalização do processo de crescimento concomitante de firmas e indústria descrito por Chandler (1977). Para a autora, esse mecanismo pode ser visto como uma instância de um processo mais geral de co- evolução de um todo e suas partes (Figura 2-6).

COOPERAÇÃO HOMOGENEIZAÇÃO COMPETIÇÃO + Voluntária ou Ofertas de produtos PARTES Recursos escassos compulsória e/ou serviços

CN +

PADRONIZAÇÃO CRESCIMENTO

Tecnologia, CN TODO produtos e/ou Viabilizado processos

Figura 2-6: Estrutura geral do motor de co-evolução de Todo e Partes Fonte: Fleck, 2003.

A lógica do motor de co-evolução é a seguinte: em um determinado momento, as partes de um todo (firmas de uma indústria, por exemplo) são levadas, espontânea ou compulsoriamente, a cooperar tendo em vista um objetivo maior (associado ao todo). O resultado da cooperação é a padronização do todo, que pode abranger tecnologias, produtos e/ou processos. Se por um lado a padronização viabiliza o crescimento da indústria, com o tempo as ofertas das partes se tornam homogêneas, levando a um processo de competição por recursos escassos que

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permitam a diferenciação. Vale destacar que o motor de co-evolução pode se referir a outros casos que não somente indústria e empresas, como: unidades de negócio e firma; firma e funcionários; ou até mesmo economia e indústrias (FLECK, 2003).

2.1.3.2 Manutenção da integridade

A integridade organizacional está no cerne do processo de evolução adaptativa de uma organização, também chamado por Selznick (1957) de processo de institucionalização. Inicialmente, as firmas podem ser entendidas como um conjunto de pessoas cujas atividades são coordenadas segundo os princípios da racionalidade e da disciplina, de forma a cumprir um objetivo específico de negócio (como, por exemplo, assegurar a entrega de um produto ou serviço). Trata-se, na verdade, do que o autor chama de ―organização‖, cujo escopo de atuação é bastante limitado em função de uma visão de negócio igualmente restrita. Contudo, se uma firma não goza de apelo junto aos seus stakeholders, ela não passa de um mero instrumento ―descartável‖, e será facilmente alterada ou deixada de lado quando outro instrumento mais eficiente se tornar disponível. Por isso, Selznick (1957) propõe que a garantia da manutenção (sobrevivência) de uma firma no médio e longo prazos está condicionada a se tornar uma instituição, quando finalmente adquire uma identidade distintiva que lhe gera valor segundo a perspectiva dos stakeholders. Institucionalizar significa, acima de tudo, incutir valor. Do ponto de vista de sistemas sociais, organizações são incutidas de valor à medida que simbolizam as aspirações da comunidade e o seu senso de identidade. Uma organização que alcança esse significado simbólico dispõe de apelo junto à comunidade pela sua preservação, evitando a sua liquidação ou transformação por motivos puramente econômicos e técnicos. A institucionalização é um processo. Reflete a própria história distintiva da firma, das pessoas que nela trabalham, dos grupos que compreende e dos interesses que foram criados, e a forma com que se adapta ao seu ambiente. Diferentemente da organização, uma instituição é um produto natural das necessidades e pressões sociais – um organismo adaptativo. Esse estado final é

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resultado das sucessivas interações e adaptações em resposta a desafios internos e externos que se colocam ao longo do tempo. Em estágios mais avançados de institucionalização, visões, hábitos e outros compromissos são unificados, influenciando todos os aspectos da vida organizacional e dando uma integração social que vai além da coordenação e do comando formal. Nesse sentido, é justamente a observação e a análise desses padrões persistentes de resposta que permitem compreender a integridade de uma organização. O conceito de integridade organizacional diz respeito ao conjunto de valores e compromissos irreversíveis e repetitivos assumidos por uma organização ao longo de sua história e que moldam o seu caráter, ou seja, estabelecem uma perspectiva sobre o que é e como é fazer negócios para aquela empresa. De forma mais tangível, sua manifestação se dá através das práticas, valores e princípios de gestão que se perpetuam ao longo do tempo e que auxiliam na caracterização da organização. Selznick (1957) destaca quatro características principais do caráter organizacional: (i) é histórico, refletindo as experiências particulares da organização; (ii) é integrado, dado que se repete ao longo do tempo; (iii) é funcional, pois auxilia a organização na sua adaptação a pressões internas e externas; e (iv) é dinâmico, pois gera novos esforços, necessidades e problemas. À primeira vista, fica a impressão de que o processo de institucionalização tem uma conotação unicamente positiva. O autor, no entanto, ressalta que, à medida que se incute valor em uma organização, cria-se naturalmente uma resistência a mudanças em decorrência da preocupação com a sua auto-manutenção. Com a estabilidade, há uma necessidade de acomodar interesses internos e adaptar-se a forças externas, de forma a minimizar riscos, atingir objetivos de curto e longo prazos e, assim, garantir a perpetuidade da organização. As pessoas sentem como se a mudança fosse uma perda pessoal, e a identidade do grupo ou da comunidade parece estar de alguma forma sendo violada. Fleck (2007) também chama a atenção para essa armadilha, sugerindo que a natureza do processo de institucionalização pode ser positiva ou negativa: se por um lado contribui para a permanência e a estabilidade da organização, pode também se tornar prejudicial na medida em que traz consigo rigidez e resistência a mudanças (isomorfismo e complacência com regras e práticas institucionalizadas), inibindo a

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proatividade e a flexibilidade e podendo até eliminar as vantagens competitivas construídas pela organização.

CN Longevidade Sucesso no longo organizacional prazo

CN Estabilidade e permanência +

Vantagem Processo de - competitiva no institucionalização Rigidez e resistência a longo prazo mudanças

Figura 2-7: O efeito de processos de institucionalização para o sucesso no longo prazo Fonte: Fleck, 2007.

Diante dessa duplicidade, Fleck (2007) afirma não ser cabível estabelecer uma avaliação única e definitiva sobre os efeitos do processo de institucionalização para as organizações.

Organizational institutionalization is, therefore, neither good nor bad in itself. It may, however, create good as well as bad habits. Good habits such as the systematic problem solving of administrative issues and superior ability to handle environmental pressures are likely to foster a proactive institutionalization process, which neutralizes rigidity and change resistance. On the other hand, bad habits like unsystematic problem solving, and the inability to handle external pressures are likely to give rise to a reactive institutionalization process, which promotes rigidity and change resistance, and reduces long-term success chances. (FLECK, 2007, p. 78)

Sua conclusão reforça, ainda, a importância do líder para a condução da organização em um processo de institucionalização proativo. Selznick (1957) também destaca o papel do líder como agente da institucionalização. Seus principais papéis são: (i) definição da missão e do papel da instituição; (ii) incorporação institucional de propósito; (iii) defesa da integridade institucional; e (iv) organização de conflitos internos. O autor ainda menciona que a proteção da integridade é mais do que uma tentativa de preservar um ambiente confortável ou familiar. É uma preocupação prática de primeira importância porque a defesa da integridade é também a defesa da competência distintiva da organização. À medida que a institucionalização

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progride, a empresa adquire um caráter especial, e isso significa que se torna competente (ou incompetente) para realizar um determinado tipo de atividade. As ameaças à integridade da organização podem ser externas ou internas. No primeiro caso, os efeitos podem decorrer de fatos como crises, guerras e mudanças regulatórias, dentre outros. Todavia, mesmo que a origem seja externa, cabe à organização, na figura de seu líder, proteger-ser das ameaças, adotando as respostas estratégicas adequadas. Já no que se refere às ameaças internas, Selznick (1957) afirma que a rivalidade organizacional pode ser o mais importante e perene problema na vida organizacional, por ameaçar a unidade do todo. A falta de cooperação e a rivalidade mal gerida podem provocar o desmantelamento e desaparecimento da organização. Barnard (1938) compartilha da mesma visão, argumentando que a vitalidade da organização está na disposição dos indivíduos para cooperar. O autor, no entanto, pontua que essa disposição é instável, não podendo ser constante ao longo do tempo. Para ele, poucas organizações sobrevivem, porque tal cooperação se constitui a exceção: a norma na história humana é o fracasso da cooperação, a desorganização, a desintegração e a destruição da organização. Indo na mesma linha dos dois autores, Fleck (2009a) afirma que o crescimento traz consigo ameaças potenciais à longevidade saudável da organização. Além da rivalidade e da pobre cooperação, a autora ainda lista outros dois tipos de pressões que ameaçam a integridade das organizações: a formulação e implementação de estratégias apoiadas em avaliações incompletas da situação; e a coexistência de subcoalizações, que, no caso, pode levar à fragmentação da firma.

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3 METODOLOGIA

Conforme a Figura 3-1, uma pesquisa acadêmica é composta de quatro dimensões principais: teoria, campo, método e a pergunta da pesquisa (esta última identificada com o ponto de interrogação ao centro do esquema). É, portanto, com base nessa estrutura que este capítulo está organizado. Primeiramente, serão apresentados o tema, a pergunta da pesquisa e a unidade de análise do estudo de caso. Em seguida, será explicitado o método utilizado, descrevendo a estratégia de pesquisa, as fontes consultadas e o processo sistemático de coleta, tratamento e análise dos dados. Vale ressaltar que a dimensão teórica do trabalho já foi abordada no capítulo anterior, que contém as principais referências da literatura necessárias para se analisar o caso selecionado e responder a pergunta da pesquisa.

THEORY, FRAMEWORK, SITE MODEL ?

METHOD

Figura 3-1: The building blocks of a scientific study Fonte: Fleck, 2010.

3.1 DEFINIÇÃO DO TEMA, DA PERGUNTA E DO OBJETO DE PESQUISA

A motivação inicial para a realização desta pesquisa foi o interesse do pesquisador pelo crescimento da firma e a perpetuação das organizações, buscando compreender os fatores que explicam o sucesso duradouro das empresas. Conforme apresentado na revisão de literatura, um aspecto importante dos estudos sobre crescimento e sucesso organizacional é o horizonte de tempo a ser considerado. Porter (1991) reforça essa idéia afirmando que o período a partir do

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qual se deve medir e compreender o sucesso competitivo é um desafio para qualquer teoria dessa natureza.

Should we be building theories for explaining success over two or three years, over decades, or over centuries? Clearly the likelihood of significant environmental change will differ, as will the exogenous and endogenous variables. A theory that aims at explaining success over 50 years will focus on very different variables, almost inevitably more internal ones, than a theory that addresses success over one or two decades. (PORTER, 1991, p. 99)

Fleck (2009a), por exemplo, desenvolve o modelo de sucesso e fracasso organizacional para identificar os mecanismos que contribuem para a longevidade saudável das organizações. Na prática, porém, há exemplos de negócios que são conduzidos segundo princípios contrários a esse. É o caso da Lord White of Hanson Industries. A empresa foi construída com uma filosofia de gestão e um modelo de negócios focados no curto prazo, preconizando a geração de valor e sem qualquer tipo de planejamento de longo prazo (HILL, 1998). Em geral, a Hanson fazia uma gestão de portfólio de negócios de diferentes ramos de atividade, sem a necessidade de sinergia entre eles, e aplicava sempre os mesmos métodos de redução de desperdícios e aumento de eficiência. Primeiramente, selecionava empresas ineficientes, com potencial de melhoria, em setores maduros e com baixo grau de inovação tecnológica. Depois de adquiridas, as empresas eram administradas de maneira independente por executivos para os quais eram definidas metas agressivas de desempenho e de recompensa financeira. A partir do momento em que a operação demonstrasse sinais de recuperação, refletidos no valor de suas ações, a Hanson vendia as empresas de forma a recuperar o valor inicialmente investido e ainda obter lucro com a operação. Caso uma empresa não alcançasse os resultados esperados, o problema era minimizado: durante o processo de análise e seleção de empresas, uma premissa da Hanson era o foco em negócios que, caso mal sucedidos, pudessem ser fragmentados e vendidos separadamente, de forma que a soma das partes fosse maior do que o todo. Um exemplo semelhante no Brasil é a GP Investimentos, uma das líderes no mercado de private equity na América Latina. Fundada em 1993 pelos antigos sócios do Banco Garantia, a GP adota métodos semelhantes aos da Hanson, implementando uma gestão de curto prazo focada no aumento da geração de valor

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das empresas controladas, como foi o caso da ALL Logística e do Submarino S.A. Segundo Jorge Paulo Lemann, um de seus sócios fundadores:

Ela [a GP Investimentos] é administradora de um fundo de investimento, que tem participação em uma porção de empresas – do Playcenter à Gafisa, passando pela Telemar. Na realidade, esse é seu foco: gerir diversos investimentos de risco, administrar recursos, sobretudo de terceiros, visando retornos financeiros em prazos mais curtos, de 8 a 10 anos. [...] A GP tem de sair de seus investimentos em períodos de 10 anos, porque os investidores do fundo da GP pretendem que o dinheiro retorne para eles. Na GP Investimentos existem várias situações cuja história final ainda não se conhece, não sabemos se serão bem-sucedidas ou não, mas a expectativa é de que se acerte mais do que se erre. (NETO, 2001, p. 10)

Diante desses casos que fogem à premissa de criar e gerir um negócio para durar, surgiu o interesse em estudar a forma com que os desafios para o sucesso de longo prazo são tratados estratégias de reestruturação. Definido o tema, a empresa selecionada para ser objeto de estudo foi a Companhia de Bebidas das Américas (AmBev). Inicialmente, a escolha se motivou pelo fato de ser um dos principais negócios dos donos do Banco Garantia, e que, junto com as Lojas Americanas, serviu de inspiração para a criação da GP Investimentos. Todavia, com o avanço do trabalho, observou-se que o discurso dos donos do Garantia – Jorge Paulo Lemann, Marcel Telles e Carlos Alberto Sicupira – apontava para o intuito de fazer da AmBev um empresa duradoura, contrapondo a lógica de curto prazo até então prevalecente em seus negócios.

Na GP, nossa intenção é mesmo diferente. Basicamente é uma empresa que faz investimentos e que pode contribuir com a administração, mas não carrega a mesma pretensão de duração que temos com a AmBev. A AmBev é de longe nosso maior investimento, e seu market cap é de US$ 10 bilhões atualmente. [...] É onde temos o foco de construir alguma coisa duradoura, visando muitos e muitos anos. Acreditamos que o ramo de cerveja no Brasil e na América Latina é um negócio muito bom e pretendemos ter uma posição dominante nesse mercado durante muito tempo. Tudo é feito nesse sentido de construir algo duradouro. Temos gente que tem visão de longo prazo. E o comportamento da empresa ao lidar com seus associados, com seus acionistas minoritários, com o público em geral, com o governo, com a natureza, reflete uma visão de duração longa. Pretendemos que a AmBev seja uma empresa excepcional durante muitos anos. (NETO, 2001, p. 9)

Trata-se, então, de um caso de empresa aparentemente gerida pela lógica de curto prazo, com foco em eficiência e geração de valor, cujos donos, porém, têm a pretensão de tornar duradoura, almejando o sucesso no longo prazo. Diante dessa dualidade, a pergunta a que essa pesquisa pretende responder é a seguinte:

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Como os desafios do sucesso no longo prazo são tratados em estratégias de reestruturação?

3.2 ESTRATÉGIA DE PESQUISA

Segundo Yin (1989), uma estratégia de pesquisa representa uma forma específica de coletar e analisar evidências empíricas. O autor enumera cinco principais estratégias de pesquisa no campo das ciências sociais: experimentais, amostrais, análise de arquivos, históricas e estudos de caso. Reforça ainda que é incorreto tentar criar uma hierarquia de estratégias de pesquisa. Não se pode, por exemplo, afirmar que o estudo de caso é apropriado a fases exploratórias de uma investigação, enquanto estratégias amostrais e históricas se destinam à fase descritiva e experimentos a questões explanatórias ou causais. Na verdade, cada estratégia pode ser utilizada para os três propósitos – exploração, descrição e explanação – e sua escolha depende de três condições básicas: o tipo de pergunta da pesquisa, especialmente o seu formato; o controle do investigador sobre os eventos comportamentais; e o foco em eventos contemporâneos ou históricos.

Formato da Requer controle Foco em eventos Estratégia pergunta da sobre eventos contemporâneos? pesquisa comportamentais?

Experimental Como, porquê Sim Sim

Quem, o que, Amostral Não Sim onde, quanto

Análise de arquivos Quem, o que, (p.ex., estudos Não Sim/ Não onde, quanto econômicos)

Histórica Como, porquê Não Não

Estudo de caso Como, porquê Não Sim

Tabela 3-1: Condições relevantes para a escolha da estratégia de pesquisa Fonte: Yin, 1989.

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Em geral, perguntas do tipo ―o que‖ podem ser usadas tanto em pesquisas exploratórias (podendo-se usar qualquer das estratégias) quanto naquelas que buscam identificar a incidência ou prevalência de um fenômeno ou prever a ocorrência de determinados resultados (no caso, a análise de dados e registros pode ser mais indicada). Por outro lado, em perguntas do tipo ―como‖ e ―porquê‖, é mais provável que se faça uso de estudos de caso, experimentos ou históricos. Assumindo-se que o foco da pesquisa encontra-se na segunda categoria de perguntas, uma forma de distinguir entre as estratégias sugeridas está em quanto controle e acesso o investigador tem sobre eventos comportamentais. Quando não há nenhum tipo de controle, a estratégia histórica é recomendada (sugere-se o seu uso para eventos passados). O estudo de caso é preferível no exame de eventos contemporâneos, porém quando os comportamentos relevantes não podem ser manipulados. Baseia-se, então, nas mesmas técnicas da pesquisa histórica, porém adiciona duas novas fontes de evidência: observação direta e entrevistas sistematizadas. Apesar de haver sobreposição entre as duas estratégias, o estudo de caso traz o diferencial de lidar com uma grande variedade de evidências – documentos, artefatos, entrevistas e observação direta. Por fim, diferentemente dos demais, os experimentos se dão através da manipulação direta do comportamento e dos eventos, como, por exemplo, em um laboratório onde certas variáveis podem ser isoladas e submetidas a determinadas condições. Com base na Tabela 3.1 e na pergunta da pesquisa – que reforça a sua natureza exploratória e explanatória – a estratégia adequada é uma combinação de estudo de caso e abordagem histórica.

3.3 DELIMITAÇÃO DA UNIDADE DE ANÁLISE

A unidade de análise se relaciona à questão fundamental de definir sobre o que é o estudo de caso (YIN, 1989). Pode se tratar de um indivíduo, entidade, evento, fenômeno ou até mesmo uma decisão, apresentando, portanto, diferentes graus de precisão em relação aos seus limites (início e fim). Yin (1989) cita três aspectos a serem considerados para a delimitação da unidade de análise da pesquisa, com impactos para as etapas de coleta e de análise

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de dados: (i) o nível de análise (indivíduo, grupos, entidades, eventos, dentre outros); (ii) o limite temporal; e (iii) a abrangência geográfica. Considerando os critérios mencionados acima, a unidade principal de análise deste estudo é uma organização; no caso, a AmBev. Todavia, como originou-se da fusão entre a CAP e a CCB, tais empresas também foram analisadas, de forma a não só contextualizar o momento de criação da AmBev, mas avaliar as influências das duas cervejarias para a empresa resultante e compreender como a sua estratégia evoluiu ao longo dos dez anos de existência. Outra justificativa para o mapeamento histórico da CAP e da CCB é que a origem da estratégia da AmBev remete à entrada do Banco Garantia no comando da CCB em 1989, implementando um processo de mudanças que ocasionou importantes transformações na indústria brasileira de cervejas. No que se refere à delimitação temporal, foi realizado um levantamento histórico para compreender as trajetórias da CAP e da CCB, que acabou contribuindo para o entendimento da formação da indústria de cervejas no Brasil. Além disso, levantou-se toda a história da AmBev, objetivando a visualização de sua trajetória de crescimento e desenvolvimento, já que se trata do objeto central desta pesquisa. Quanto à delimitação geográfica, é importante destacar que, apesar de a AmBev ser uma companhia de bebidas com atuação em 14 países das três Américas, o contexto no qual a empresa é analisada restringe-se ao mercado brasileiro, em função da inviabilidade prática (acesso a informações, restrições geográficas e escassez de tempo) de sua incorporação ao estudo. Nessa mesma linha, apesar de relevantes, outros dois fatos recentes – a compra da AmBev pela cervejaria belga Interbrew em 2004, formando a InBev, e a aquisição da empresa norte-americana Anheuser-Busch em 2008, formando a AB InBev – não ampliam a unidade de análise do estudo. Contudo, suas implicações para a AmBev são consideradas na análise.

3.4 ORGANIZAÇÃO DA PESQUISA

Como o pesquisador não dispunha de conhecimento ou experiência prévia a respeito da indústria de cervejas, a primeira fase do trabalho dedicou-se a gerar uma

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compreensão básica do setor e da empresa selecionada para o caso. De início, através principalmente da internet, houve uma busca de informações básicas sobre a cerveja: origem, matérias-primas, produção, tipos de cerveja, dentre outras. Em paralelo, desenvolveu-se uma noção inicial sobre a AmBev, através da identificação de seus negócios, marcas, operações e mercados de atuação. Após o panorama inicial, a segunda etapa do trabalho objetivou uma compreensão maior sobre a atividade cervejeira, mapeando o funcionamento básico e as principais atividades de uma cervejaria, tendo como referência a AmBev. Para tal, realizaram-se entrevistas com ex-funcionários da empresa que houvessem atuado em cada uma de suas cinco áreas principais – distribuição e vendas, financeiro, logística, recursos humanos e produção. Todos os entrevistados eram jovens, que não ocuparam cargos gerenciais de primeiro nível, mas que tinham domínio sobre as operações da empresa. A terceira etapa da dissertação dividiu-se em duas partes: por um lado, houve a intensificação da coleta de dados sobre a AmBev, buscando informações que servissem para o desenvolvimento e análise do caso. Diferentemente das etapas anteriores, a pesquisa não se restringiu à internet: além de documentos fornecidos por alguns entrevistados, houve uma busca na Biblioteca do COPPEAD. Por outro lado, iniciou-se o levantamento histórico da indústria de cerveja no Brasil e das duas empresas que deram origem à AmBev. Essa tarefa fez uso de análise de arquivos – revistas, jornais, estudos acadêmicos e documentos disponíveis no Arquivo Nacional e na Comissão de Valores Mobiliários (CVM) – e de entrevistas com profissionais que trabalharam por um longo período na CCB. O pesquisador não conseguiu contato com ex-funcionários da CAP. A quarta e última etapa destinou-se à análise dos dados coletados sobre a CAP, a CCB e, por fim, a AmBev. Tentou-se ainda realizar uma terceira rodada de entrevistas com gerentes e executivos da AmBev, de forma a contrapor a visão dos demais entrevistados, porém o pesquisador não obteve sucesso em suas investidas. Somente duas pessoas foram entrevistadas, mas apesar de ocuparem cargo gerencial, haviam saído da empresa há aproximadamente um ano. Todavia, essa restrição não impediu a conclusão do trabalho e a resposta à pergunta da pesquisa, já que se dispunha de um grande e variado acervo composto de materiais públicos sobre a AmBev. Além disso, por ser uma empresa constantemente abordada pela

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mídia no Brasil, a ausência de depoimentos de profissionais de nível gerencial e executivo foi compensada pelos relatos e entrevistas dos lideres da empresa em fontes como livros e revistas especializadas em administração.

3.5 COLETA DE DADOS

Segundo Snow e Thomas (1994), estudos de campo em gestão estratégica se baseiam em uma variedade de métodos de pesquisa, utilizados de forma isolada ou combinada. Os métodos variam consideravelmente em função de sua acurácia e capacidade de capturar a realidade das organizações e do controle exercido pelo pesquisador, podendo ser ordenados como mostra a Figura 3-2.

Altamente Observação direta e participativa realista, incontrolável Entrevista Métodos de campo Pesquisa amostral

Análise de arquivos

Pesquisador acessa informações Bancos de dados computacionais colhidas por outros

Pesquisador tenta criar uma cópia exata e realista da situação, coloca Simulações experimentais em ação e observa os comportamentos Pesquisador examina processos Experimentos laboratoriais organizacionais sob condições bem controladas

Pesquisador utiliza modelagem matemática para construir um Altamente Simulações computacionais artificial, modelo completo e fechado do fenômeno de interesse controlável

Figura 3-2: Tipos de métodos de pesquisa organizacional Fonte: Snow e Thomas, 1994.

De forma semelhante, Yin (1989), ao tratar da etapa de coleta de dados de um estudo de caso, lista seis tipos de fontes de onde as evidências podem ser coletadas: documentação, registro de arquivos, entrevistas, observação direta, observação participativa e artefatos físicos. Além disso, identifica três princípios que devem nortear qualquer esforço de coleta de dados: (i) o uso de fontes múltiplas (ou

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seja, de duas ou mais fontes, porém convergindo para um mesmo conjunto de fatos ou descobertas); (ii) um banco de dados para organização e documentação dos dados coletados, de maneira que outros possam utilizar o material e não estejam restritos aos relatórios finais; e (iii) uma cadeia de evidências com vínculos explícitos entre a pergunta da pesquisa, os dados coletados e as conclusões. Para o autor, a incorporação desses princípios à metodologia do estudo de caso aumenta substancialmente a sua qualidade. Snow e Thomas (1994) também destacam a importância de se utilizar métodos múltiplos de pesquisa. No entanto, fazem questão de esclarecer que, apesar de muitos estudos sobre gestão estratégica utilizarem múltiplos métodos em etapas distintas do projeto de pesquisa, referem-se ao que chamam de triangulação, ou seja, a combinação de métodos destinada a estudar um mesmo fenômeno. Segundo eles, a premissa básica desse tipo de abordagem é que as limitações particulares de um dado método podem ser compensadas pelas potencialidades dos demais métodos. Dessa forma, o uso de métodos múltiplos auxilia o pesquisador dando-lhe mais confiança em que a variabilidade entre os assuntos de sua pesquisa seja um produto dos atributos dos assuntos, e não do método em si. Yin (1989) já tratava do assunto ao afirmar que a vantagem mais importante de se utilizar fontes de evidências múltiplas é o processo de triangulação, ou de desenvolvimento de linhas convergentes de investigação. Afinal de contas, é mais provável que uma descoberta ou conclusão seja mais precisa e convincente se estiver baseada em várias fontes distintas de informação que fortalecem umas as outras. Nesse sentido, já que a estratégia de estudo de caso permite o uso de fontes múltiplas de métodos de coleta de dados e esse tipo de abordagem melhora a qualidade do trabalho, esta pesquisa acadêmica foi realizada segundo dois métodos principais: entrevistas e análise de arquivos. A Tabela 3-2 apresenta as principais fontes utilizadas, demonstrando a combinação dos dois métodos mencionados anteriormente.

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Etapas Objetivo da etapa Principais fontes

- Sites especializados em cerveja Avaliar a viabilidade do caso, verificando a - Site da AmBev (Seções ―Cultura‖, ―Nossas existência de dados e Marcas‖, ―Gente‖, etc) Etapa 1 fontes de consulta - Sites de associações do setor (Sindicerv) disponíveis sobre a AmBev - Estudos acadêmicos (dissertações, casos e e a indústria brasileira de outros trabalhos acadêmicos) cervejas - Matérias de jornais e revistas comerciais

- Sites especializados em cerveja Desenvolver referencial - Site da AmBev (Seção ―Histórico‖) sobre a cerveja, mapear a - Livros (―Larousse da Cerveja‖ e ―Os Primórdios da Etapa 2 história da indústria Cerveja no Brasil‖) nacional e elaborar um panorama do setor - Estudos acadêmicos (dissertações e casos) - Matérias de jornais e revistas comerciais

- Sites especializados em cerveja - Site da AmBev - Livro (―Os Primórdios da Cerveja no Brasil‖) - Estudos acadêmicos (dissertações e casos) Mapear as histórias da - Matérias de jornais e revistas comerciais (Exame, CAP e da CCB e obter Istoé Dinheiro, Veja, Época Negócios, Folha de Etapa 3 evidências para a sua São Paulo) análise com base na - Acervo Arquivo Nacional e CVM (rótulos e revisão de literatura demonstrações financeiras – 1983 a 1997) - Biblioteca do COPPEAD (central de casos, dissertação, trabalhos do mestrado e coleção Revista Exame) - Entrevistas (4, no total)

- Site da AmBev (Seção ―Investidores‖, relatórios anuais) Mapear a história da - Livro (―Como fazer uma empresa dar certo em um AmBev e obter evidências país incerto‖) Etapa 4 para a sua análise com - Estudos acadêmicos (dissertações e casos) base na revisão de - Matérias de jornais e revistas comerciais (Exame, literatura Istoé Dinheiro, Veja, Época Negócios, Folha de São Paulo) - Entrevistas (8, no total)

Tabela 3-2: Quadro resumo das principais fontes de informação

3.5.1 Entrevistas

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No total, foram realizadas 12 entrevistas, em sua maioria com ex-funcionários da AmBev. O esquema de trabalho para as entrevistas dividiu-se em três rodadas, as quais, devido a estágios específicos dentro do cronograma da pesquisa, distinguiram-se em termos do perfil dos entrevistados, dos resultados esperados e do uso do material coletado. A Tabela 3-3 apresenta um panorama das entrevistas.

Total de Etapas Objetivo da etapa Perfil dos entrevistados Nº entrevistas horas - Jovens que entraram na empresa recém-formados, pelos Programas Trainee ou Compreender o Talentos funcionamento básico de uma - Atuação somente em Rodada 1 6 12:30 empresa cervejeira, Diretorias Regionais em especial a - Nível máximo ocupado: AmBev coordenador - Tempo de permanência na empresa baixo: de 2 a 4 anos

- Profissionais com longa Obter evidências história na CCB (de 20 a 30 para a análise da anos), vivendo o período CAP e da CCB, bem anterior ao Banco Garantia Rodada 2 4 06:00 como preencher - Atuação na AC lacunas de suas - Cargo gerencial, em alguns histórias casos respondendo diretamente ao Presidente

Obter evidências - Profissionais experientes, com sobre o estágio formação acadêmica avançada atual da AmBev e (Mestrado) Rodada 3 discutir percepções - Cargo de gerência e comando 2 03:30 decorrentes de em Diretorias Regionais e na análises AC, respondendo diretamente à preliminares diretoria

Tabela 3-3: Quadro resumo das entrevistas

A primeira rodada de entrevistas objetivou a compreensão básica do funcionamento da AmBev. Para tal, entrevistou-se uma pessoa de cada área principal da empresa – distribuição e vendas, financeiro, logística, recursos humanos e produção. Como se tratava praticamente de uma “aula sobre a AmBev e cervejarias em geral”, buscou-se pessoas com quem o pesquisador tivesse proximidade, de modo a contar com a sua disposição em fornecer detalhes e tirar

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dúvidas básicas. Todos os entrevistados eram jovens com ensino superior completo, que entraram pelos Programas Trainee ou Talentos, ocuparam até níveis de coordenação dentro de gerências das Diretorias Regionais e permaneceram na AmBev de 2 a 4 anos. Em geral, as conversas foram longas, variando de uma a duas horas de duração. Em alguns casos, houve mais de um encontro, devido à necessidade de esclarecer dúvidas. No total, 6 pessoas foram entrevistadas. A segunda rodada de entrevistas dedicou-se à investigação acerca da história da CAP e da CCB, preenchendo lacunas oriundas da análise de arquivos e oferecendo impressões e depoimentos sobre as duas empresas. Diferentemente da rodada anterior, pretendeu-se compreender a percepção dos entrevistados sobre as duas empresas e coletar evidências, considerando-se as principais mudanças ocorridas em suas trajetórias. Dessa forma, o perfil pretendido foi o seguinte: pessoas com longa história nas empresas, que tivessem vivenciado as principais mudanças e, se possível, que houvessem ocupado cargos gerenciais ou executivos. Num primeiro momento, houve grande dificuldade para encontrar pessoas que se enquadrassem no perfil desejado. A situação só se reverteu com o contato com um professor do COPPEAD que, por ter trabalhado na CCB durante mais de 10 anos, mantém relacionamento com colegas da empresa através de um grupo de e- mail de ex-funcionários. Quatro pessoas que se enquadravam perfeitamente no perfil desejado participaram da atividade. Uma delas, inclusive, completa em 2010 trinta anos de trabalho na CCB e na AmBev. A terceira e última rodada de entrevistas visou uma análise mais aprofundada sobre a AmBev, buscando percepções que enriquecessem a análise e evidências que permitissem avaliar a empresa com base no conteúdo (teorias, construtos, conceitos, modelos) apresentado na revisão de literatura. Nessa etapa final, conversou-se com duas pessoas que haviam saído recentemente da AmBev, com longa experiência na empresa e que ocuparam cargos gerenciais e executivos tanto na AC quanto em Diretorias Regionais, respondendo diretamente à diretoria. Em relação ao último critério, era uma forma de complementar a visão dos entrevistados da primeira rodada, que viveram experiências apenas em unidades operacionais (chamadas de Regionais). Todas as entrevistas contaram com o apoio de um roteiro que serviu como um checklist dos principais elementos das referências da literatura selecionadas. Em

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vez de abordar de maneira direta o entrevistado com uma série de questões de fundo teórico, o método adotado preconizou a história do entrevistado como fio condutor da conversa. Ou seja, as questões sugeridas pela literatura eram tratadas tendo como pano de fundo as experiências do entrevistado. Muitas vezes, a própria história da pessoa incorporava elementos que se desejava investigar, não necessitando perguntas objetivas sobre determinados assuntos. Dentre os principais temas do roteiro, estavam: conhecimento da trajetória profissional do entrevistado; identificação de fatos históricos relevantes da organização; motivações por trás das principais decisões da organização; pontos de vista de diferentes grupos sobre certos eventos e seus impactos; e posicionamento e críticas à empresa sobre diferentes aspectos. O roteiro, contudo, não foi seguido de maneira rígida, por razões diversas. O avanço na revisão de literatura e na realização de análises dos dados coletados justificou mudanças para incorporar novos aspectos de estudo. Muitas vezes, os ajustes decorreram diretamente do entrevistado: seja por restrição de tempo, desconhecimento de um determinado aspecto da empresa ou época de sua história ou até mesmo algum tipo desconforto em relação a algum assunto. Além disso, o próprio entrevistador sentiu a necessidade de promover mudanças, devido, por exemplo, a só tomar conhecimento das características do entrevistado e de sua trajetória profissional no momento da conversa. Das 12 entrevistas, 8 foram realizadas de forma presencial e contaram com um gravador de áudio para registro das conversas. Em seguida, com o apoio do software Express Scribe, todas as entrevistas foram transcritas pelo pesquisador, para que seu conteúdo pudesse ser posteriormente organizado e classificado em futuras análises. O Express Scribe facilitou o trabalho por permitir o uso de teclas de acesso rápido para manipulação do arquivo de áudio sem que houvesse interferência no arquivo de texto. Além disso, sua versão mais simples pôde ser baixada de graça diretamente no site da empresa desenvolvedora (http://www.nch.com.au/scribe/), reduzindo os gastos da pesquisa. Por fim, é importante ressaltar o compromisso de sigilo firmado com todos os entrevistados, que são identificados através de numeração, sem a exposição de seus nomes.

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3.5.2 Análise de arquivos

A análise de arquivos dividiu-se em quatro etapas distintas, cada qual com um propósito específico e, consequentemente, com o acesso a fontes distintas de informação. Inicialmente, pelo desconhecimento prévio da indústria de cervejas e da AmBev, houve uma pesquisa rápida e de baixa profundidade com o objetivo de confirmar se havia quantidade e variedade significativas de fontes de arquivos da empresa selecionada e do seu setor econômico. E a conclusão foi positiva, sinalizando a continuidade do trabalho. Observou-se que a AmBev, por ser uma empresa de capital aberto, publica regularmente relatórios sobre o seu desempenho e trajetória, estando o material disponível em seu site. Além disso, por ser uma das maiores empresas brasileiras, é alvo constante de análises e reportagens das principais revistas e jornais comerciais do país. Quanto ao setor brasileiro de cervejas, observou-se a existência de alguns sites destinados à bebida e à sua história no Brasil, porém sem a demonstração de referências para os dados publicados. Dessa forma, a alternativa encontrada foi a pesquisa em documentos acadêmicos, complementada por matérias e reportagens de revistas e jornais comerciais. A segunda etapa da análise de arquivos foi desenvolvida com o intuito de gerar um conhecimento mais aprofundado sobre a cerveja, a sua produção e a história da indústria nacional. O ponto de partida para a formação desse conteúdo foram os sites destinados à cerveja, que apresentam uma cobertura bastante ampla de temas sobre a bebida. Havia, porém muita inconsistência entre os dados fornecidos pelos diferentes sites, o que gerou insegurança em relação ao seu uso. Dessa forma, a parte introdutória sobre a cerveja foi elaborada com base em três fontes principais:  Trabalho do Laboratório de Engenharia Bioquímica da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), que, ao comparar a cerveja e o vinho, fornece uma série de informações sobre a bebida, suas características e produção;

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 O site da AmBev, que oferece informações básicas sobre a cerveja, suas matérias-primas, processo produtivo e histórias da CAP e da CCB;  O livro ―Os primórdios da cerveja no Brasil‖, de Santos (2004), única obra produzida exclusivamente para narrar o surgimento da indústria nacional de cerveja; e  O livro ―Larousse da Cerveja‖, de Morado (2009), que, além de ser recente e atualizado, fornece as fontes das informações apresentadas, tornando-se uma referência mais completa sobre a bebida. Para a história da cerveja no Brasil, além das fontes acima mencionadas, tentou-se também o acesso a dados do Sindicato Nacional da Indústria da Cerveja (Sindicerv)4 e da AC Nielsen, consultoria em pesquisa de mercado responsável pelas principais pesquisas de market share do varejo brasileiro, e em especial do setor de cervejas. No entanto, não houve sucesso com nenhuma das instituições. A primeira, além de um site bastante limitado em termos de conteúdo (e com alguns dados desatualizados), disponibilizou somente informações bem gerais da indústria nacional, através de gráficos que sequer permitiam a manipulação dos dados. Já a segunda disponibiliza somente dados consolidados por setor em seu site, sem detalhar a evolução das participações de mercado e outras informações de interesse (vendas por canais, por exemplo). O próprio site da consultoria afirma que seus estudos não são publicados gratuitamente. Outro ponto que merece observação foi não se encontrar uma quantidade significativa de fatos sobre as décadas de 60 e 70 que permitisse um detalhamento da história da indústria nacional de cerveja nesse período, deixando uma evidente lacuna na seção 9.3. A terceira etapa da pesquisa de arquivos destinou-se ao levantamento das histórias da CAP e da CCB. Foi o trabalho mais desafiador em função da existência de poucos documentos, estudos ou livros dedicados a narrar ou analisar a trajetória centenária das duas cervejarias. Além disso, a AmBev não tem nenhum tipo de biblioteca pública para consultas ao acervo das antigas cervejarias. Sabe-se que é

4 O Sindicerv atua em favor dos interesses de seus associados em diversas áreas, com ênfase no encaminhamento de propostas aos governos federal e estaduais que estabeleçam um novo modelo tributário para o país - mais justo e que permita a criação de um maior número de postos de trabalho e a ampliação do mercado. Dentre seus associados, estão a AmBev e a Femsa. Fonte: Sindicerv. Disponível em: . Acesso em: 14 maio 2010.

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proprietária de um dos maiores acervos empresariais do país, incluindo mais de 7.500 objetos históricos, como geladeiras do início do século XX, máquinas de registrar, barris, chopeiras, garrafas e latas, além de 8.000 cartazes e 70.000 registros fotográficos. Porém, de acordo com o Entrevistado #11, o mesmo foi fechado em julho de 2000. Outro fator que dificultou a pesquisa sobre a Brahma e a Antarctica foi o fato de que a maior parte dos dados coletados se encontrava sob a forma de tópicos, sem nenhum tipo de narrativa ou preocupação com a sua contextualização e o seu detalhamento. Sendo assim, tomando como base as informações disponíveis no site da AmBev, o pesquisador complementou os eventos com dados encontrados nas demais fontes, com destaque especial para:  O livro ―Os primórdios da cerveja no Brasil‖, de Santos (2004), que conta de maneira detalhada o surgimento e os processos sucessórios conturbados que a CAP vivenciou durante boa parte de sua história;  O caso “Brahma versus Antarctica: Reversal of Fortune in Brazil’s Beer Market”, de Sull (2005), que descreve com grande detalhe o processo de mudança conduzido pelo Banco Garantia na CCB, a partir de 1989. O artigo ainda oferece um panorama da situação das duas empresas nos anos que antecederam a fusão; e  Material do acervo pessoal do Entrevistado #11. Funcionária da CCB e da AmBev por 30 anos, foi responsável pela organização e manutenção do arquivo da empresa por 10 anos, havendo diversos materiais sob seu domínio. As três etapas até então mencionadas foram realizadas de forma seqüencial. No entanto, paralelamente, houve um esforço constante de pesquisa de arquivos relacionados à AmBev, unidade de análise do estudo. Foram acessados diferentes tipos de documentos: publicações acadêmicas (dissertações, artigos científicos e casos); publicações técnicas (estudos setoriais e notas técnicas); publicações institucionais (relatórios anuais de empresas, órgãos governamentais, associações de classe); e publicações comerciais (matérias de jornais e revistas, livros, entrevistas). Assim como nas etapas anteriores, a maioria dos arquivos encontrava- se em meio eletrônico.

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3.5.2.1 Indicadores

Parte dos dados coletados através da análise de arquivos é de natureza quantitativa. Em alguns casos, esses dados são utilizados apenas para suportar ou complementar uma determinada informação ou opinião, sem a pretensão de oferecer uma análise mais aprofundada ou temporal do objeto de estudo. Outras vezes, no entanto, o objetivo é justamente o contrário: reunir uma quantidade de dados que, organizados e manipulados pelo pesquisador, apóiem análises e até mesmo evidenciem suas descobertas. Para tal, os dados são geralmente apresentados por meio de indicadores. O uso de indicadores neste trabalho preconizou uma abordagem longitudinal, objetivando a visualização da trajetória das empresas estudadas, especialmente quanto à existência ou não de tendências de crescimento. Nesse sentido, o trabalho baseou-se nos indicadores de crescimento da firma propostos por Fleck (2001), que, além de permitir a comparação com o restante da indústria ou outros segmentos econômicos, eliminam a influência de fatores como inflação ou deflação:  Tamanho ano i = (Receita ano i ÷ PIB ano i) X 100; e  Desempenho ano i = (Lucro ano i ÷ PIB ano i) X 100. Algumas observações precisam ser feitas em relação ao uso dos dois indicadores nesta pesquisa. Enquanto os dados referentes à AmBev foram acessados através dos relatórios anuais e financeiros disponíveis pela empresa em seu site, a coleta de dados sobre a CAP e a CCB se deu através da consulta aos acervos do Arquivo Nacional e da Biblioteca da CVM, onde foram encontradas as demonstrações financeiras das duas cervejarias no período 1983-19975. O Arquivo Nacional armazena o antigo acervo da CVM com as principais demonstrações financeiras de companhias abertas brasileiras no período 1983-1992. O material referente aos cinco primeiros anos encontra-se em microfilme, sendo necessário fazer a consulta nos equipamentos da instituição. Como é de fácil acesso, não requer agendamento prévio: basta identificar o código do microfilme que se deseja consultar e o funcionário o providencia de imediato. Já o material dos outros cinco

5 O Arquivo Central da CVM, criado em 1987, iniciou a organização da documentação das companhias abertas nacionais a partir de 1983, pois foi o primeiro ano da padronização das demonstrações financeiras. A partir de 1997, a CVM, em conjunto com a Bovespa, informatizou os formulários periódicos, estando as informações disponíveis em: .

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anos ainda não foi microfilmado, sendo necessário agendar uma data para que seja separado e disponibilizado para consulta manual. A coleta dos dados no Arquivo Nacional se deu através de duas formas. Os dados dos microfilmes foram registrados através de um gravador de áudio, pois, como a sala de consulta de microfilmes não possuía restrições sonoras e a quantidade de informações era elevada, o pesquisador pôde ler aquilo que lhe interessava e gravar com o aparelho. Esse método se mostrou bastante prático e agilizou a tarefa, sem ocasionar em nenhum tipo de problema ou perda de material. Já os dados dos documentos disponíveis em papel tiveram que ser registrados manualmente. Diferentemente do caso anterior, o Arquivo Nacional dispõe de uma sala com restrição ao barulho para que as pessoas consultem os documentos em meio físico. Foi, portanto, uma tarefa mais trabalhosa e lenta, exigindo dois dias completos para a sua concretização. Vale lembrar que o Arquivo Nacional oferece ainda a possibilidade de se fazer cópias do material, porém o valor é alto: R$1,00 por página. Como o pesquisador estava com restrições financeiras, optou por meios mais baratos. A CVM, por sua vez, tem um acervo físico das principais demonstrações financeiras das companhias abertas brasileiras no período 1993-1997. Diferentemente do Arquivo Nacional, o material não está devidamente organizado, não havendo todos os tipos de relatórios para todos os anos e todas as empresas. Por outro lado, a CVM oferece a possibilidade de se fazer cópias a um valor bem inferior ao cobrado pelo Arquivo Nacional: R$0,10 por página. Geralmente, a CVM exige que a pessoa faça a solicitação prévia do material desejado e agende uma visita para a consulta. No entanto, os funcionários do acervo da instituição foram bastante solícitos e separaram as informações de imediato. Além disso, permitiram que o pesquisador registrasse os dados através do gravador de áudio, facilitando o trabalho. Apesar do acesso às informações desejadas, houve dois ajustes importantes na etapa de tratamento e uso dos dados. Primeiramente, devido a restrições à coleta de dados sobre a receita bruta da CAP e da CCB no período 1983-1992, optou-se por utilizar a receita líquida para o cálculo do indicador de tamanho. Além de Fleck não fazer nenhuma menção a qual tipo de receita utilizar, a receita líquida oferece a

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vantagem de minimizar os efeitos da diferença de impostos entre diferentes regiões, países e indústrias (DANTAS, 2007; TIECHER, 2009). O segundo ajuste ocorreu em função dos impactos inflacionários para as regras contábeis adotadas pela CVM. Como o Brasil passou por um período inflacionário intenso nas décadas de 80 e 90, a instituição adotou a prática de se elaborar os relatórios financeiros de acordo com dois métodos referentes ao nível geral de preços: Legislação Societária e Correção Monetária Integral (MARQUES; GRZESZEZESZYN; SOBRINHO, 2003). O primeiro, estabelecido pela Lei 6.406/76, reconhece a perda do poder aquisitivo da moeda nas demonstrações contábeis por meio de um índice geral de preços, porém aplicando-o apenas ao patrimônio líquido e ao ativo permanente. Já o segundo, denominação no Brasil para o Price-Level Accounting, desenvolvido nos Estados Unidos, consiste na ‗restauração‘ das demonstrações contábeis, preparadas com base na contabilidade a custo histórico (ou valor original), em outras em que os valores são corrigidos a fim de refletir a alteração ocorrida no poder aquisitivo da moeda (geralmente do exercício). Esse método foi introduzido no Brasil pela Instrução Normativa CVM nº 64/87. Diante das duas possibilidades, optou-se por trabalhar com os valores de receita líquida e lucro líquido segundo o método da Legislação Societária, pois, ao desconsiderar os impactos inflacionários, utiliza-se uma informação mais próxima da realidade da organização em termos do seu desempenho operacional e financeiro. Tal, escolha, porém, não permitiu o cálculo dos indicadores de crescimento para a CCB nos anos de 1993 e 1994, pois a empresa não publicou suas demonstrações financeiras segundo a Legislação Societária. Por fim, se os comentários anteriores dizem respeito à coleta e tratamento dos dados, houve ainda um desafio diretamente relacionado aos indicadores de crescimento propostos. Conforme mencionado em 3.3, a AmBev é uma empresa com atuação em 14 países das três Américas. Dessa forma, qual o valor do PIB a ser considerado quando uma empresa atua em mais de um país, porém não mundialmente? Num primeiro momento, pensou-se em buscar algum tipo de PIB das Américas. No entanto, esse tipo de solução, além de não resolver por completo o problema inicial, ainda traria outro: o PIB norte-americano distorceria os resultados

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encontrados. Cogitou-se, então, a possibilidade de se usar o PIB da América Latina; porém, apesar de haver essa informação em dólar na base de dados do Banco Mundial (http://databank.worldbank.org/ddp/home.do?Step=3&id=4), só se encontrou informações financeiras da AmBev em real, inclusive nos relatórios enviados à U.S. Securities Exchange Comission (SEC). Diante das limitações, o cálculo foi feito utilizando-se o PIB do Brasil. Reconhece-se que não é o valor totalmente adequado para uma informação mais real e completa sobre a AmBev. Por outro lado, o resultado encontrado oferece uma aproximação aceitável da trajetória de crescimento da empresa, já que as operações no Brasil sempre representaram a maior parcela de sua receita total (63% em 2009).

3.6 REGISTRO DOS DADOS

Os dados coletados foram registrados em dois arquivos distintos do software Microsoft Excel. Um primeiro arquivo, chamado de ―Tabela de Fatos‖, foi destinado ao armazenamento e posterior classificação de todos os fatos da pesquisa, que poderiam se referir a seis temas principais:  História do Brasil;  Indústria da cerveja no Brasil;  Companhia Antarctica Paulista (CAP);  Companhia Cervejaria Brahma (CCB);  Companhia de Bebidas das Américas (AmBev); e  Banco Garantia. No total, foram registrados 926 fatos, cada qual contendo: (i) a descrição do fato; (ii) o ano de ocorrência; (iii) o tema a que se referia; (iv) a fonte bibliográfica; e (v) outras informações complementares relevantes. A Tabela 3-4 apresenta um exemplo do cadastramento de fatos.

Tema Ano Descrição do Fato Fonte Observação

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Letra da Marchinha: A grande originalidade da empresa ―O Brahma Chopp em foi o lançamento, em 1934, da garrafa Brahma Chopp, o chope Querido em todo o Santos, S.P. Os engarrafado, que se tornou um Brasil primórdios da grande sucesso, estimulado pelo Corre longe, a banca cerveja no CCB 1934 carnaval daquele ano, quando uma abafa Brasil, 2ª ed., marchina de Ary Barroso e Bastos É igualzinho ao do Cotia: Ateliê Real, Tigre, Chopp em Garrafa, foi gravada Barril. 2004 por Orlando Silva. A produção Chopp em garrafa daquele ano foi de 30 milhões de Tem justa fama litros, enorme para a época. É o mesmo Chopp Chopp da Brahma.‖

Tabela 3-4: Exemplo do registro de fatos

O segundo arquivo em Excel serviu como banco de dados de informações secundárias coletadas ao longo da pesquisa. Nele, por exemplo, foram armazenados dados operacionais e financeiros da CAP, da CCB e da AmBev, bem como do mercado de cerveja no Brasil. Foi nesse arquivo, inclusive, que foram elaborados os gráficos apresentados neste trabalho. Diferentemente do arquivo anterior, não houve padronização para o registro das informações, já que se trabalhou com dados de diferentes naturezas e em diferentes formatos.

3.7 ANÁLISE DOS DADOS

Por fazer uso de múltiplas fontes de dados, a etapa de análise foi desenvolvida segundo o método de equiparação de padrões, no qual várias partes de informações do mesmo caso podem estar relacionadas às mesmas proposições teóricas (YIN, 1989). Dessa forma, cada dado foi classificado a partir de uma lista de dimensões de análise construída com base no referencial teórico de Fleck (2009a), na seguinte ordem: (i) identificação do(s) desafio(s) de crescimento; e (ii) identificação dos aspectos associados àquele(s) desafio(s). Dependendo do fato, havia até dois níveis de detalhamento de classificação. O Apêndice A apresenta a ―Lista de Dimensões de Análise‖. Após a classificação de todos os fatos, foi feita a análise das respostas das empresas envolvidas no caso aos desafios do crescimento (FLECK, 2009a), buscando identificar a evolução dos principais traços das organizações ao longo de

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suas histórias. A análise teve como referência as dimensões preestabelecidas a partir de revisão de literatura.

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4 A INDÚSTRIA BRASILEIRA DE CERVEJA

4.1 PANORAMA DO MERCADO BRASILEIRO DE CERVEJA

Atualmente, o Brasil é o terceiro país do mundo em termos de consumo de cerveja. Em 2009, mesmo com a crise financeira mundial, o mercado brasileiro de cerveja cresceu 5,29% em volume e chegou a 10,7 bilhões de litros de cerveja (JORNAL DO COMÉRCIO, 2010). Com esse desempenho, o Brasil ultrapassou a Alemanha no ranking cervejeiro mundial, e agora só perde para China, Estados Unidos e Rússia. Além disso, o faturamento do mercado de cervejas no Brasil cresceu mais de 23% em 2010, demonstrando o seu potencial de crescimento. Atualmente, Brasil e China são os países mais atraentes para investimentos, em contraposição à perspectiva de crise maior na Europa e à falta de reação nas vendas dos EUA (ROSA, 2011). Segundo o Sindicerv, fatores como o verão de altas temperaturas; o aumento da renda imediata do consumidor brasileiro, especialmente da classe C; a melhora no desempenho operacional das empresas; e as inovações em embalagens (lançamento do litrão e das latinhas de 260 ml) contribuíram para o aumento do volume de vendas (JORNAL O GLOBO, 2010). A forte demanda em 2009 impulsionou o mercado de cervejas a ponto de faltar produto, como o chope, em alguns bares e restaurantes. Para o período 2020-2015, espera-se um avanço de 4% no volume vendido de bebidas alcoólicas no Brasil (ROSA, 2011). O Gráfico 4-1 ilustra a evolução do consumo de cervejas no Brasil. As colunas se referem ao valor total consumido em milhões de hl, enquanto a linha apresenta a variação percentual anual no consumo de cervejas. Como pode ser visto, a partir de 2004 se iniciou um processo de crescimento no consumo, freado somente pela crise econômica em 2008, porém já recuperado em 2009, chegando a um nível superior a 2007.

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120 0,5

0,4 100

0,3

80

0,2 %

60 0,1

0 40

-0,1 Volume total Volumetotal consumido (Milhões de hectolitros de cerveja) 20 -0,2

0 -0,3 1985 1986 1987 1988 1989 1990 1991 1992 1993 1994 1995 1996 1997 1998 1999 2000 2001 2002 2003 2004 2005 2006 2007 2008 2009

Gráfico 4-1: Evolução do consumo de cerveja no Brasil Fonte: Baseado em Ferrari (2008), Sindicerv (2010) e Jornal do Comércio (2010).

O mercado consumidor brasileiro de cerveja é caracterizado predominantemente por ter uma população jovem (61% entre 25 e 44 anos), que em virtude do seu baixo poder aquisitivo, faz com que o consumo per capita (por volta de 51,9 litros/habitante em 2006) ainda seja considerado relativamente baixo, principalmente levando-se em consideração a tropicalidade do país (FERRARI, 2008).

87

Rep. Checa 158

Alemanha 117,7

Reino Unido 101,5

Austrália 92

Estados Unidos 84

Espanha 78,3

Japão 56

México 50

Brasil 47

França 35,5

Argentina 34

China 18

0 20 40 60 80 100 120 140 160 180

Gráfico 4-2: Consumo per capita de cerveja no mundo em 2003 Fonte: Sindicerv, 2010.

Embora o consumo per capita tenha sido incrementado nos primeiros anos de implantação do Plano Real (1994/1995), saltando de 38 litros/ano por pessoa para aproximadamente 50 litros/ano/habitante, o nível se mantém estável desde então, especialmente porque, ao se levar em conta o baixo poder aquisitivo de boa parte de seus consumidores, o preço do produto é alto. Na saída da fábrica, seu custo é um dos menores do mundo. Contudo, até chegar ao consumidor final, a cerveja sofre a incidência de uma série de tributos, conforme demonstra o Gráfico 4-3.

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11,5%

35,6% Impostos Varejo 26,3% Indústria Distribuidores

26,6%

Gráfico 4-3: Composição do preço da cerveja no mercado brasileiro Fonte: Sindicerv, 2010.

Apesar do aumento do número de microcervejarias a partir do início do século XXI, o mercado brasileiro de cerveja ainda é caracterizado pela baixa diversificação de pro dutos (SANTOS, 2001). Já na década de 80, a cerveja do tipo pilsen detinha cerca de 96% da produção vendida no país, e esse valor é atualmente de 98% (o restante se divide entre as do tipo Bock, Light, Malzbier e Stout, geralmente destinadas a alguns nichos de mercado premium). A pouca diversificação tem suas origens no desenvolvimento da cerveja no país, que foi direcionado a uma uniformização dos sabores oferecidos ao mercado. Tipos alternativos de cerveja, como Porter e München, foram retirados do mercado ou tiveram sua oferta diminuída sensivelmente. Nesse aspecto, o mercado brasileiro caminhou em sentido inverso ao que ocorre em países tradicionais na produção de cerveja. Alemanha, Bélgica e Inglaterra, por exemplo, desfrutam de uma grande variedade de tipos de bebida, indo das leves cervejas frutadas até variedades de puro malte, mais encorpadas. Em 2008, as classes C e D foram responsáveis por 72% das vendas totais do setor. Cerca de 56% do público consumidor de cervejas é do sexo masculino. O consumidor brasileiro é considerado como pouco exigente, não tendo o hábito de degustar a bebida e apreciar seu sabor. Além de função socializante, a cerveja também é vista como uma bebida para ―matar a sede‖, sendo consumida em temperatura bastante baixa – daí a expressão ―estupidamente gelada‖. Devido a

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essa relação com o clima tropical, o consumo de cerveja no Brasil apresenta uma sazonalidade anual, com forte redução no inverno. Atualmente, o uso de embalagens retornáveis ocupa 71% do total consumido, sendo 67% no formato de garrafas de vidro e 4% no formato de barril. Na década de 90 do último século, a participação das embalagens retornáveis no total comercializado experimentou queda acentuada, particularmente na segunda metade da década, caindo de 88,3% em 1994 para uma participação de aproximadamente 68% em 1998. As embalagens descartáveis participam com 29%, sendo 26% em latas e 3% em garrafas long-neck. A proposta de redução contínua da demanda por embalagens retornáveis é decorrente da clara preferência das grandes redes de supermercados pelas embalagens descartáveis, com o objetivo de reduzir seus custos operacionais. Mais do que isso, o aumento do uso de embalagens descartáveis amplia e diversifica canais de comercialização, sendo de extrema relevância na medida em que contribui para a ampliação das situações de consumo da bebida, o que, no limite, colabora para aumentar o consumo per capita de cerveja no Brasil. Existe hoje um projeto de lei, apoiado pelo Sindicerv, que estabelece que um mínimo de 80% da produção de cerveja seja engarrafada em embalagens retornáveis. Justifica a lei o fato de que haveria redução da geração de lixo urbano e da embalagem retornável reduzir em até 25% o preço final ao consumidor, além do fato de a reciclagem solucionar apenas parcialmente os problemas relacionados à geração de embalagens descartáveis. Com relação aos tipos de embalagens descartáveis, o alumínio não causa os mesmos problemas ao meio ambiente que o vidro, pois, com o aumento dos preços internos do alumínio, a partir da desvalorização do real em 1999, viabilizou-se a sua reciclagem. Segundo a Associação Brasileira de Refrigerantes e Alumínio (Abal), 89% das latas de refrigerantes e cervejas foram recicladas em 2004. A estrutura da indústria cervejeira brasileira permanece oligopolizada, onde somente as grandes empresas podem arcar com elevados investimentos em marketing, ampliação dos canais de distribuição e crescimento da capacidade instalada, de forma a garantir participação nacional. Em 2009, a AmBev fechou o ano na liderança, com 69,6% do mercado, posição que a empresa mantém desde a

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sua criação, em 1999. O Grupo Schincariol permaneceu em segundo lugar, com 11,8% de participação, seguido pela Cervejaria Petrópolis, com 9,5%. A Femsa, que acabou de ser comprada pela holandesa Heineken, ficou em quarto lugar, com 7,6%. O 1,5% restante corresponde a médias e microcervejarias.

4.2 BASES COMPETITIVAS DA INDÚSTRIA BRASILEIRA DE CERVEJA

4.2.1 Características fundamentais da indústria

A indústria da cerveja tem sua cadeia produtiva organizada segundo três principais elos: fornecimento de matérias-primas, produção e distribuição. A seguir, serão abordados aspectos relevantes sobre cada um deles. A cerveja é basicamente composta por água, grão (cevada, principalmente), lúpulo e fermento. O lúpulo é totalmente importado (o Brasil não tem produção desse insumo), e ainda que haja produção de cevada na Região Sul do país, grande parte do seu fornecimento se dá também através de importações – especialmente do Canadá, da Bélgica, da Argentina e da Austrália – em razão das dificuldades de se obter uma cevada nacional de boa qualidade. Além disso, as empresas líderes do mercado dispõem de maltarias próprias que lhes abastecem parcialmente as necessidades dessa matéria-prima, reduzindo a dependência de fornecedores (PAULA; SOUZA; LEVORATO, 1992). Sendo assim, as cervejarias brasileiras estão expostas às variações nos preços internacionais dessas commodities; contudo, devido à pulverização dos fornecedores, nunca houve nenhum tipo de pressão de preço ou corte de produção que se constituísse em ameaça à indústria nacional (SILVA, 2003). Segundo Schuch (1998), os fabricantes de cerveja no Brasil são poucos e estão mais concentrados do que as indústrias dos fornecedores, reduzindo o poder de barganha destes em relação aos preços e condições de qualidade oferecidos. No que se refere ao processo produtivo, além da preocupação logística de instalar indústrias em pontos estratégicos para distribuição e consumo, outro fator crítico é a disponibilidade de fontes naturais (água, especialmente) e investimentos no desenvolvimento de novas idéias para a produção da cerveja. A questão

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tecnológica, porém, é simples e conhecida universalmente, não se tratando de uma barreira de entrada ou driver de competição. Para Schuch (1998), o know-how e a tecnologia de fabricação de cerveja deixaram de ser barreiras não só pela evolução tecnológica e a automação dos processos de fabricação, como também pela disseminação do conhecimento e da experiência na arte de produzir cerveja através de escolas especializadas na formação de profissionais (cervejeiros práticos).

Pesquisa e Desenvolvimento é um investimento necessário, mas não uma barreira para dificultar a entrada de qualquer novo concorrente, pois a cerveja tem um processo de fabricação conhecido universalmente e que difere apenas na proporção e na qualidade de matérias-primas usadas, não se tratando de um elemento diferenciador. (PAULA; SOUZA E LEVORATO,1992, p. 7)

Já a distribuição é um dos pontos-chave da indústria cervejeira. Há um forte vínculo entre a capacidade de distribuição e a promoção da marca, já que a venda se concentra no varejo, principalmente em bares6. As vendas realizadas por esses bares não somente são as de maior relevância em termos de volume (50,6%), como também são as que representam maior valor (55,4%). Já as vendas em auto-serviço aumentaram sua participação em 2001, mas não representam tanto na composição do valor de venda.

6 Em suas pesquisas, a Nielsen considera três principais canais de distribuição para o mercado de cerveja: bares (adegas, bares, bar e café, bar e lanches, bar e restaurante, boteco, botequim, lancheria, lanchonete e snacks bar); Tradicional (são lojas onde o atendimento é feito por um vendedor ou balconista; são conhecidas como mercearias, padarias, empórios e outros); e Auto- Serviço (são lojas onde o consumidor escolhe os produtos sem a intermediação de um vendedor ou balconista; tem como características fundamentais o "check-out", carrinhos ou cestas à disposição).

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Gráfico 4-4: Volume e valor de vendas de cerveja de lojas – Brasil – 2000/2001 Fonte: Reproduzido de Silva (2003), p. 2.

Diante disso, fica evidente que não basta ter uma ótima campanha de marketing e forte investimento em propaganda se a empresa não mantiver um adequado abastecimento no ponto-de-venda (PDV). Este é um dos grandes desafios dessa indústria. Para se ter uma noção da complexidade que está por trás da distribuição no mercado brasileiro, a AmBev afirma atender a mais de 1 milhão de PDVs espalhados por todo o país, visitados por sua equipe de vendas e abastecidos duas vezes por semana (AMBEV, 2009). Além disso, as grandes cervejarias tentam exercer o controle sobre os distribuidores e os pontos-de-venda através da ―venda casada‖ – ou seja, da imposição de compra de toda a linha de produtos do fabricante, muitas vezes não se permitindo mais de um fornecedor por revendedor ou PDV (EVANGELISTA; KELLER; SIQUEIRA, 1990). Nos últimos anos, assistiu-se a uma verdadeira guerra entre as cervejarias pelo controle dos PDVs, especialmente bares e restaurantes. Com o acirramento da competição, as empresas passaram a oferecer vantagens e até mesmo dinheiro em troca da exclusividade na comercialização e exposição de suas marcas e produtos. Segundo Onaga (2006a), em outubro de 2006, representantes da AmBev e da Femsa trocaram sopapos em um bar em Moema, zona sul de São Paulo, na tentativa de ter mais espaço para seu material de propaganda. Um funcionário da Femsa registrou boletim de ocorrência para verificar a prática de crime de concorrência desleal. Na mesma semana, a AmBev ofereceu 350 mil reais para que

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o bar Dona Flor, onde foi lançada a Sol, abandonasse a parceria com a Femsa e voltasse a vender o chope Brahma. Dias depois, a Femsa teria pago 3,5 milhões de reais para que um dos maiores distribuidores de chope Brahma no país, o empresário Robério Paiva, passasse a trabalhar exclusivamente com a marca Sol. A AmBev, como era de se esperar, não assistiu passivamente à traição: a companhia conseguiu uma liminar impedindo Paiva de vender produtos da Femsa. A disputa, que inclui acusações de ameaça de morte registradas em delegacia por um representante da AmBev contra Paiva, continua nos tribunais. O mercado de cerveja brasileiro caracteriza-se pela presença de duas principais barreiras à entrada: a de distribuição, relativa à dificuldade de fazer chegar aos consumidores, de forma capilarizada, um produto cujo custo de transporte é significativo, em virtude do volume e baixo valor unitário; e a de marca, consistindo na dificuldade de tornar uma marca conhecida e desejada pelos consumidores (FERREIRA; OLIVEIRA; SALGADO, 2008). Os sistemas de distribuição são fundamentais para garantir a posição de mercado das empresas cervejeiras. Embora a fabricação de cerveja esteja sujeita a certas economias de escala, elas são limitadas por vários fatores, especialmente o custo de transporte. Isso significa que as grandes empresas são obrigadas a constituir unidades produtivas em cada região consumidora, pois geralmente aceita- se que o frete além de 500 km inviabiliza a competitividade do produto. De outro lado, a barreira do frete também permite o funcionamento das pequenas e médias cervejarias, que sustentam sua competitividade em outros fatores que não a escala, através, por exemplo, de uma identificação com a região ou da diferenciação de produto. A capacidade de gerar uma imagem positiva do produto, diferenciando-o em relação aos de concorrentes, é outro aspecto fundamental para o sucesso de uma marca, explicando o expressivo gasto em propaganda que caracteriza essa indústria. Diante do baixo grau de exigência do consumidor brasileiro (refletido na predominância das cervejas do tipo Pilsen), que direciona sua opção de compra por fatores que não o sabor da bebida, as cervejarias investem agressivamente em ferramentas de marketing (comunicação, embalagem, dentre outras) para gerar identificação e simpatia por suas marcas.

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Um exemplo recente dessa ênfase em marketing foi a guerra travada entre as campanhas das marcas Nova Schin, do Grupo Schincariol, e Brahma, da AmBev, na primeira metade do século atual. Em setembro de 2003, a campanha de divulgação da Nova Schin – também conhecida como ―Experimenta!‖ – foi protagonizada pelo cantor Zeca Pagodinho, consumidor publicamente declarado da cerveja Brahma. No ano seguinte, Nizan Guanaes, da Agência Africa (que tinha a conta da Brahma), convenceu Zeca Pagodinho, cujo contrato com a Schin ainda estava em vigor, a se tornar o garoto-propaganda da nova campanha da cerveja da AmBev. A empresa, inclusive, se dispôs a assumir a multa de rescisão de contrato – que o mercado estimava chegar a 18 milhões de reais – e outros custos possíveis com o processo (ALMEIDA, 2004). Intitulado de ―Amor de Verão‖, o filme da Brahma provocava a cervejaria concorrente com a mensagem de que o ―caso‖ de Zeca Pagodinho com a Schincariol havia sido nada mais do que um ―amor de verão‖. Segundo a fala do cantor: ―cair em tentação pode ocorrer com qualquer um. Mas grande amor, só existe um. Fui provar outro sabor, eu sei! Mas não largo meu amor, voltei‖. A reação da Nova Schin, além da ira nos bastidores (incluindo pedido formal da Fischer América, agência da Schincariol, pela expulsão da Agência Africa da Associação Brasileira de Agências de Publicidade – ABAP) e de processo de quebra de contrato contra Zeca Pagodinho e contra a AmBev, por aliciamento do cantor em plena vigência de contrato, veio com o filme ―Botequim‖. O comercial mostrava uma conversa de bar na qual um rapaz provoca seu amigo, personagem batizado de Zequinha, perguntando se ele trocaria de cerveja por ―300 mil‖. Diante da resposta negativa, o amigo ia subindo o valor da suposta proposta, até chegar a ―3 milhões de dólares‖. Aí Zequinha se rende: ―E falo que amo, ainda beijo na boca e rodo até a baiana‖, diz o personagem. O filme é encerrado com uma lata de cerveja com o rótulo ―velha‖ cercada de dólares. No final das contas, a AmBev saiu vencedora da briga. A ABAP decidiu não fazer qualquer tipo de advertência à Agência Africa. E o CONAR indeferiu o pedido da Fischer América e manteve o comercial da Brahma com Zeca Pagodinho.

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4.2.2 Mecanismos de competição

Diante de tudo que foi mencionado na seção anterior, e com base no trabalho de Silva (2003), pode-se dizer que os principais vetores de concorrência do mercado de cervejas estão concentrados na etapa de produção, distribuição e consumo, e são: economias de escala e escopo; preço; segmentação de clientes; distribuição e fortalecimento da marca. As estratégias vinculadas à etapa de produção são as de economia de escopo e de escala. Enquanto a primeira se refere aos ganhos obtidos com a produção de itens diferentes na mesma fábrica, a segunda está relacionada à produção em grande volume. Para ter economias de escopo, os fabricantes de cerveja produzem outras bebidas, principalmente refrigerantes, e têm nesse tipo de estratégia economias fundamentais para seu negócio. Já a economia de escala é obtida com ganhos em: negociação e compra de maior volume de matéria-prima; produção, por meio de maior produtividade a partir de um volume maior produzido por planta; e distribuição, pela redução dos custos logísticos e de propaganda por volume negociado. As estratégias de economia de escala e de escopo são seguidas pelas principais cervejarias do mercado, em especial a AmBev. A fim de conquistar consumidores de diferentes perfis, as cervejarias adotam a estratégia de posicionar diferentes marcas em diferentes segmentos de mercado. A classificação mais usual divide o mercado brasileiro em três faixas distintas, que podem ser classificadas por ordem decrescente de preços como: premium, medium e low. Para Silva (2003), as principais vantagens relacionadas à proliferação de marcas e preços por parte das cervejarias são: reforçar o preço como sinal de qualidade para o consumidor; ter a possibilidade de construir as denominadas ―marcas de combate‖, que são lançadas para disciplinar possíveis guerras de preços sem interferir na imagem das marcas premium; e a diversificação de risco do negócio, permitida pela atuação em segmentos com diferentes graus de sensibilidade ao ciclo econômico. O Grupo Schincariol adotou eficazmente essas duas estratégias. A participação de mercado da cervejaria foi conquistada, em boa parte, graças ao baixo preço, mas a empresa também resolveu apostar em uma nova marca para agregar valor: a Primus, lançada em 2002. Em 2003, enquanto a Schin custava em

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torno de R$ 0,85 a garrafa padrão no comércio, a Primus custava em torno de R$ 1,60 (SILVA, 2003). Ferreira, Oliveira e Salgado (2008), através de estudo econométrico, encontraram indícios de que, diante da estratégia do Grupo Schincariol, a AmBev fez uso da marca Antarctica como marca de combate, de modo a bloquear a expansão da Nova Schin, como mostram os gráficos 4-5 e 4-6.

Gráfico 4-5: Preços – Garrafas de 600ml – Bares – Grande São Paulo Fonte: Reproduzido de Ferreira, Oliveira e Salgado (2008), p. 22.

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Gráfico 4-6: Preços – Garrafas de 600ml – Bares – Interior de São Paulo Fonte: Reproduzido de Ferreira, Oliveira e Salgado (2008), p. 23.

A AmBev também busca a segmentação de mercado por meio do fortalecimento de marcas de maior valor (como Bohemia e Antarctica Original) e ganhos na diferenciação de produtos (como a Bohemia Escura, lançada em 2002, cujo preço está em torno de R$ 6,00). Essa estratégia está focada na atração de consumidores das classes A e B, cujo consumo atualmente não ultrapassa 42 litros per capita, enquanto o consumo das classes C e D chega a 55 litros per capita. Tais informações alimentam a estratégia de agregação de valor, focada principalmente na segmentação de produtos e em propaganda e distribuição. Por sinal, a Kaiser foi pioneira na aplicação da estratégia de segmentação de mercado, criando a Kaiser Bock em 1993, cerveja voltada aos períodos frios, buscando minimizar o problema de sazonalidade enfrentado pela indústria de cervejas.

4.2.3 Práticas ilegais

As seções anteriores apresentaram um panorama da indústria brasileira de cervejas e dos desafios enfrentados pelas companhias que concorrem no setor, tendo como premissa básica a legalidade das ações e das condutas das empresas e

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de seus executivos. No entanto, nem sempre a história da cerveja no Brasil foi construída através da legalidade e da ética empresarial. A primeira década do século XXI, em especial, destacou-se negativamente pela descoberta de inúmeros casos e acusações de práticas anti-competitivas adotadas pelas cervejarias brasileiras. A indústria nacional de cervejas passou por importantes mudanças no período que compreendeu as duas últimas décadas do século passado e o século atual. CAP e CCB, que historicamente disputaram a liderança no mercado nacional, foram surpreendidas com o sucesso rápido de novas cervejarias regionais, apoiadas em estratégias de baixo custo e baixo preço, como Kaiser e, especialmente, Schincariol e Petrópolis. Apesar da criação da AmBev, que responde por quase 70% de market share, as demais concorrentes mantiveram seu poder de fogo e intensificaram a competição no mercado, obtendo, em geral, bons resultados e garantindo um pouco mais de dinamismo ao setor. O exemplo mais emblemático de ascensão talvez seja o Grupo Schincariol. Em apenas doze anos, a participação da empresa saiu de 2,1% em 1992 para 13,1% em 2004, tornando-se a segunda maior cervejaria do país. Segundo Silva e Martino (2005), ao longo desse período, a concorrência atribuiu o avanço às brilhantes campanhas publicitárias financiadas pela empresa com o dinheiro que deveria ter sido usado para recolher impostos (só em 2003, foram gastos 150 milhões de reais com publicidade). A denúncia provocou um verdadeiro bate-boca no setor no fim de 2003, mas, inicialmente, nada foi provado. Contudo, em junho de 2005, uma ação conjunta entre a Polícia Federal, a Receita Federal e o Ministério Público, batizada de Operação Cevada, confirmou a suspeita. A ação prendeu setenta pessoas em apenas um dia, dentre elas os cinco sócios do Grupo Schincariol. A companhia foi acusada de sonegar 1 bilhão de reais em quatro anos, num esquema de sonegação fiscal de tributos estaduais e federais montado em conjunto com suas distribuidoras. Se não bastasse, as suspeitas incluíam outros crimes: evasão de divisas, formação de quadrilha, lavagem de dinheiro e corrupção ativa (SILVA; MARTINO, 2005). O esquema de fraudes tinha como base o subfaturamento na venda de produtos. A Primo Schincariol, fábrica da Schincariol, fechava contratos com grandes distribuidoras e estabelecia uma proporção de 30% de produtos da fábrica e

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70% de produtos das distribuidoras, que contavam com benefícios fiscais. A diferença era embolsada pela empresa. Segundo Lage (2005), a maior parte das distribuidoras tinha "laranjas" como donos. Essas empresas, boa parte sem estrutura mínima para realizar os serviços, obtinham liminares com a Justiça estadual e federal para não recolher o Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Prestação de Serviços (ICMS) e o Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI). Na prática, quando a liminar era cassada, a empresa desaparecia. Em seguida, outra era aberta e solicitava o não pagamento dos impostos. O esquema de sonegação foi aperfeiçoado após sucessivas autuações dos fiscos estaduais e federal contra o Grupo. As empresas distribuidoras também eram usadas para a emissão de notas fiscais e simulação contábil. As investigações indicavam também que a Schincariol remetia os recursos sonegados ao exterior e então comprava títulos do Tesouro dos Estados Unidos; depois, vendia os papéis no mercado internacional e repatriava o dinheiro, concluindo o esquema de lavagem. A polícia ainda identificou operações fictícias de exportação, sobre as quais não incidiam impostos, intermediadas por empresas de Foz do Iguaçu, no Paraná. Havia também indícios de importação com falsa declaração de conteúdo e classificação incorreta de mercadorias. Além disso, foi encontrado nas batidas da Operação Cevada um total de 227 placas de automóveis sem lacre, utilizadas em caminhões que transportavam bebidas da Schincariol. As chapas frias faziam parte de uma artimanha para driblar a cobrança do ICMS, com alíquota que variava entre 18% e 30% dependendo do estado. Outra prática comum era o uso de notas fiscais "viajadas". A operação, denominada triangulação de notas fiscais, caracterizava-se pela entrega em local diferente do indicado na nota fiscal. A empresa emitia uma nota em São Paulo descrevendo a entrega no Espírito Santo, por exemplo, onde a alíquota de ICMS é de 7%. Na realidade, a mercadoria seguia para Minas Gerais, onde a alíquota era maior, de 12%. A diferença era embolsada pela empresa. Sem o carimbo de fiscais estaduais nas fronteiras, uma mesma nota era usada várias vezes até receber o carimbo. A conivência dos fiscais era um dos principais pontos investigados. Nas investigações, a Polícia Federal identificou o envolvimento de agentes públicos no esquema. Eles eram usados tanto no momento de obter facilidades

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como para aparentar legalidade nas operações para cruzar as fronteiras federais. Sete servidores públicos foram presos. "Descobrimos um dos mais sofisticados sistemas utilizados para fraudar impostos. Eles aperfeiçoaram o esquema depois de várias autuações feitas pelos fiscais", disse Gerson Schaan, coordenador da área de inteligência da Receita Federal, à Revista Veja (2005). As suspeitas de sonegação contra o Grupo Schincariol eram antigas. Ex- funcionários que participaram dos golpes indicaram que a prática teria começado em 1989. Nesse período, o empresário Walter Faria (dono da Cervejaria Petrópolis na época da Operação Cevada), que também foi preso na mesma semana, ainda era proprietário de pelo menos 80% dos depósitos da Schincariol. Ele teria criado o esquema de sonegação, juntamente com Nélson Schincariol, o então presidente da empresa (assassinado com três tiros em 2003, quando entrava em casa, em Itu, SP). Nesse caso, o golpe consistia em criar empresas de fachada em nome de "laranjas". A maior parte recebia até 2 mil reais por mês para emitir as notas fiscais usadas para burlar os impostos. Os laranjas participaram desse esquema até 1997, quando se afastaram da empresa. Em 1994, a Schincariol já havia enfrentado problemas com o Fisco. A companhia foi acusada pela Receita Federal e pela Secretaria de Fazenda de São Paulo de não pagar tributos sobre mais da metade das vendas. Tal prática permitia que os preços da cerveja fossem jogados para baixo. Os fiscais foram acionados, e a companhia passou a ser um dos maiores contribuintes paulistas. Em 2001, surgiu nova suspeita, após uma denúncia anônima, que acabou por desencadear a Operação Cevada. A cervejaria foi então tachada de ser conivente com irregularidades ocorridas em uma de suas distribuidoras exclusivas de bebidas, em Minas Gerais. A apuração do caso, que durou dois anos, confirmou os problemas na distribuidora, autuada em 1 milhão de reais. Serviu também para constatar a participação da cervejaria nas irregularidades. Quem também foi preso na Operação Cevada foi Walter Faria, dono da Cervejaria Petrópolis. Suspeito de ter ajudado a montar o esquema de fraude fiscal do Grupo Schincariol na década de 90, época em que era o principal distribuidor da companhia, Walter foi acusado de sonegação fiscal e formação de quadrilha (SANCHES, 2008).

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Assim como a Schincariol, a Cervejaria Petrópolis também foi alvo de inúmeros casos de desvio de conduta. Para Onaga (2006b), a cervejaria Petrópolis basicamente repetiu a trajetória da concorrente, tanto no sucesso de vendas quanto no noticiário policial. Em 2006, Paulo Henrique Vilela Pedras, diretor comercial e sócio da cervejaria, foi preso durante a Operação Cerol, que também levou para a cadeia policiais, empresários e advogados envolvidos em crimes contra a Receita Federal e a Previdência Social. Dias antes, a Polícia Civil de São Paulo apreendeu seis caminhões de entrega da Praiamar – a distribuidora de Walter Faria que respondia por 40% das vendas da Petrópolis – com caixas de Itaipava e Crystal sem as respectivas notas fiscais ou com notas emitidas com valores muito inferiores aos que constavam nos pedidos. Em 2008, outro incidente. O lobista Marcos Valério, acusado de participar do esquema do mensalão do governo Lula, foi preso por sua atuação como ―conselheiro‖ da Cervejaria Petrópolis (SANCHES, 2008). No começo daquele ano, a cervejaria havia sido multada em quase 105 milhões de reais pela Receita Estadual de São Paulo por sonegação fiscal. Valério, então, arquitetou a abertura de um inquérito policial para tentar desqualificar os dois fiscais responsáveis pela autuação da cervejaria e assim evitar o pagamento da multa. O inquérito havia sido aberto fazia dois meses na delegacia da Polícia Federal em Santos com a participação de dois delegados e dois policiais federais aposentados, conhecidos de Valério. Durante a operação, a polícia apreendeu em Belo Horizonte mais de 500 mil reais na casa de uma advogada ligada ao grupo, valor que serviria para o pagamento dos policiais que ajudaram na abertura do inquérito. Segundo as investigações, Marcos Valério fazia a ligação entre a empresa, os policiais e os advogados. As práticas ilegais, no entanto, não se restringem somente à etapa de distribuição de cervejas. Damiani (2003), em matéria da Revista ISTOÉ Dinheiro, apresentou trechos de um dossiê no qual Edson Guterres, um transportador e fornecedor de insumos (como malte e lúpulo) para diferentes companhias, declarava abertamente que montou esquemas de sonegação fiscal para as principais cervejarias, especialmente a Schincariol. Segundo ele, os esquemas de sonegação eram uma prática comum no setor, envolvendo praticamente todos os fabricantes. Ele admitia fazer negócios com a maior parte das pequenas cervejarias, como a

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Belco, dirigida por Walter Faria. Disse também que, no passado, realizou operações ilegais para a CAP, ―nos anos que a Antarctica subiu, para dar o ‗pool‘ para a AmBev, pra Brahma pegar ela‖. Guterres disse ter sido prestador de serviços para a empresa, com registro em carteira, responsável pelo que chamava de ―toda a parte ilegal‖, fazendo especialmente o esquema da garrafa, no qual vendia garrafas, tampinhas e rótulos sem nota fiscal. De acordo com o material, Guterres afirmava vender praticamente 50% dos insumos sem nota, num esquema que significava 5% do mercado nacional de matéria-prima e rendia em torno de 27 a 30 milhões de dólares por ano. O principal esquema de sonegação ocorria com a compra de grandes quantidades de malte, um dos mais importantes insumos na fabricação de cerveja. Como intermediário entre as maltarias e as cervejarias, Guterres fazia com que parte dos insumos chegasse às fábricas sem constar das notas fiscais. Dessa forma, as cervejarias podiam, ao final do processo, vender lotes da sua produção também sem emitir notas fiscais. Segundo Guterres, com a economia, as empresas utilizavam o dinheiro em outras atividades, como o marketing e o pagamento de bonificação. O mediador dizia ser muito próximo de Nélson Schincariol, presidente do Grupo Schincariol, o que permitia uma estreita colaboração entre ambos nos esquemas de sonegação. Segundo ele, Nélson faturava 1 milhão de dólares por mês só com a compra de malte: [...] ―Bom, ele sonega em tudo, matéria-prima, na venda, tudo‖. Em seu relato, Guterres demonstrava o temor com a morte de Nelson Schincariol, com quem havia desenvolvido o modelo mais aperfeiçoado de pagamento, também chamado de Estilo Schincariol, totalmente em dinheiro vivo, para não deixar rastros. ―Estilo Schincariol [é] quilo, quilo de dinheiro. [...] Tem uma sala lá deles com fedor de dinheiro, não dá para entrar‖. Embora seu principal negócio fosse a venda de malte, Guterres vangloriava- se também de operar da mesma forma com outros insumos usados na produção de cerveja. Alegava ter, por exemplo, boas relações na indústria de latas de alumínio, onde chegou a fazer 150 milhões de dólares em apenas um ano. A história da sonegação na indústria cervejeira nacional é tão antiga quanto o gosto por essa bebida (SILVA; MARTINO, 2005). Com impostos que chegam a 35% do valor do litro de cerveja, é grande a tentação dos produtores e distribuidores de criar alternativas para fugir do Fisco. Em 2003, o Sindicerv fez uma pesquisa com

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empresas do setor e descobriu que 15% do total de impostos devidos pelo setor era sonegado, algo correspondente a cerca de 750 milhões de reais por ano. Ferrari (2008), baseando-se nas demonstrações contábeis das empresas cervejeiras e em dados obtidos com o Sindicerv, constatou que, do faturamento bruto de 22,2 bilhões de reais registrado pelas indústrias brasileiras de cerveja no ano de 2006, cerca R$ 10,3 bilhões foram destinados ao pagamento de tributos: 2,4 bilhões de reais referentes ao IPI, 6,7 bilhões de reais recolhidos ao ICMS e outros 1,2 bilhões de reais destinados ao pagamento do Programa de Integração Social (PIS) e da Contribuição para o Financiamento da Seguridade Social (COFINS). Segundo seus cálculos, o valor da carga tributária correspondeu a cerca de 46,40% do faturamento da indústria, e teve um reflexo de 35,54% no preço final ao consumidor. Ainda segundo a autora, a participação da cerveja na arrecadação dos tributos indiretos é a maior entre todos os setores da economia que se dedicam à produção de bens de consumo – 5,1% – superando até mesmo a carga incidente sobre tabaco e automóveis. A primeira medida mais abrangente adotada para diminuir a evasão fiscal foi instituída pela Receita Federal em 2004. Foi a obrigatoriedade, a cervejarias com produção superior a 5 milhões de litros/ ano, do uso do Sistema de Medição de Vazão (SMV). O SMV é composto de equipamentos medidores de vazão, condutivímetros e aparelhos para controle, registro, gravação e transmissão remota dos dados medidos à Receita Federal. Esta, portanto, tem acesso, a qualquer momento, aos números de produção, sem conhecimento das empresas, permitindo o monitoramento contínuo da produção de cerveja nos estabelecimentos onde estiver instalado. A AmBev foi pioneira na adoção do mecanismo em sua fábrica em Jaguariúna, interior de São Paulo, no ano de 2004. Após a instalação do primeiro medidor, as demais cervejarias tiveram o prazo de seis meses para se adequar à nova regra. Vale lembrar que o SMV já era amplamente utilizado nas indústrias de bebidas, alimentos e farmacêutica em vários países do mundo. Nos Estados Unidos, esses equipamentos são homologados pela Food and Drugs Administration (FDA) para o controle de produção. Na Tailândia, são utilizados para a apuração dos impostos da indústria de cervejas, com grande sucesso na redução da sonegação.

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No Brasil, o Sindicerv pesquisou e investiu em uma solução com o intuito de trazer o que havia de melhor nas experiências em operação no mundo. Ainda que não fosse considerado infalível no combate à sonegação, o sistema foi um dos principais mecanismos de combate à evasão fiscal do setor nos últimos anos. Logo em 2005, enquanto o volume de produção do setor cervejeiro cresceu 6,5%, a arrecadação aumentou 15% – o equivalente a quase R$ 350 milhões – sendo que não houve nenhum tipo de alteração tributária no período. O sucesso da medida foi tamanho que levou à sua adoção também no segmento de refrigerantes, cachaça e água em 2007. Apesar das melhorias possibilitadas pelo SMV, o dispositivo contabiliza somente o volume de litros de produção. Diante da necessidade de aprimorar o método de fiscalização em função da nova sistemática de tributação instituída pela Lei nº 11.727/2008 – baseada no tipo de embalagem, marca comercial e preço – a Receita Federal tornou obrigatório o uso do Sistema de Controle de Produção de Bebidas (Sicobe) a todo o setor de bebidas em 2008 (MARTELLO, 2008). Trata-se de um sistema que, além de contar a quantidade de produtos fabricados pelos estabelecimentos industriais, também identifica o tipo de produto, embalagem e sua respectiva marca comercial. As bebidas são marcadas pelo Sicobe com códigos que funcionam como uma espécie de assinatura digital, e possibilitam à Receita Federal fazer o rastreamento individual de cada bebida produzida no país. Esses códigos contêm informações sobre o fabricante, a marca comercial e a data de fabricação do produto. A iniciativa não só foi apoiada pelo Sindicerv (―Apoiamos 100% o Sicobe. É mais rigoroso do que o sistema de medidor de vazão, que era usado pela Receita para controlar a produção de bebidas‖) como também pela principal empresa do setor, a AmBev, primeira a ter 100% das instalações controladas pelo sistema: ―A sonegação servia de diferencial competitivo. Como os tributos compõem um terço do preço, quem sonega vende mais barato. Está comprovado que o Sicobe intimidou a sonegação". Em 2009, a arrecadação de impostos federais do setor de bebidas aumentou 20% após a Receita Federal passar a controlar a produção de cervejas, refrigerantes e água mineral com a instalação do Sicobe. No mesmo ano, o setor pagou R$ 8 bilhões em impostos federais e estaduais. Segundo a Receita Federal, o novo

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sistema é mais eficiente que o anterior porque permite fazer o rastreamento individual de cada bebida produzida no país. Em 2009, a Receita controlou a produção de 11 bilhões de litros de cerveja e de 13 bilhões de litros de refrigerantes – correspondente a um faturamento de R$ 30 bilhões de reais – nas 108 fábricas, de grande e médio portes, que já contavam com o sistema (ROLLI; FERNANDES, 2010).

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5 A COMPANHIA DE BEBIDAS DAS AMÉRICAS (AMBEV)

5.1 INTRODUÇÃO

Criada em 1999 a partir da fusão das duas cervejarias líderes do mercado brasileiro – a CAP e a CCB – a AmBev faz parte da maior plataforma de produção e comercialização de cervejas do mundo, por meio da Anheuser-Bush InBev (ABInBev). Com operações em 14 países nas três Américas, é a quinta maior cervejaria do mundo e a líder do mercado latino-americano. Suas operações consistem na produção e comercialização de cervejas, refrigerantes, outras bebidas não-alcoólicas e malte, dividindo-se em três unidades de negócio (AMBEV, 2010):  Operações Brasil, representadas pelas vendas de (i) cerveja; (ii) refrigerantes e bebidas não-alcoólicas e não-carbonatadas; e (iii) malte e sub-produtos;  América Latina Hispânica (HILA), dividida em duas operações: (i) Quinsa, composta por operações na Argentina, Bolívia, Chile, Paraguai e Uruguai, e (ii) HILA excluindo Quinsa (denominada HILA-Ex), composta pelas operações da Companhia em El Salvador, Equador, Guatemala, Nicarágua, Peru, República Dominicana e Venezuela; e  América do Norte, representada pelas operações da Limited (―Labatt‖), incluindo vendas de cerveja no Canadá e exportações para os Estados Unidos (―EUA‖). Dos países em que atua, é líder em pelo menos seis deles: Argentina, Paraguai, Uruguai, Bolívia, Canadá e Brasil. Neste caso, é a líder do mercado de cervejas com aproximadamente 70% de market share, posição mantida desde a sua criação, em 1999. No segmento de refrigerantes e outras bebidas não-alcoólicas, é a vice-líder, ficando atrás somente da Coca-Cola. Vale lembrar que a AmBev é a maior engarrafadora da Pepsico no mundo (AMBEV, 2010). A AmBev mantém vínculo com 47 empresas controladas (companhias nas quais dispõe, direta ou indiretamente, de mais da metade do capital com direito a voto ou outro tipo de controle sobre as operações que lhe permitam auferir benefícios das atividades dessas companhias) e coligadas (pessoas jurídicas nas quais exerce influência significativa sobre as políticas financeiras e operacionais,

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porém não o controle; em geral, isso é evidenciado por uma participação entre 20% e 50% no capital votante). As principais empresas são listadas na Tabela 5-1, juntamente com a respectiva participação acionária da AmBev.

Percentual de País Empresa Localização participação

CERVECERIA Y MALTERIA Argentina Buenos Aires 99,6% QUILMES SAICA Y G CERVECERIA BOLIVIANA Bolívia La Paz 86,1% NACIONAL S.A.

COMPANHIA DE BEBIDAS DAS Companhia São Paulo AMÉRICAS – AMBEV consolidadora

AMBEV BRASIL BEBIDAS Jaguariúna 100% LTDA. AROSUCO AROMAS E SUCOS Manaus 100% Brasil LTDA. EAGLE DISTRIBUIDORA DE Jaguariúna 100% BEBIDAS S.A.

FRATELLI VITA BEBIDAS S.A. Jacarepaguá 99,5%

TAURUS INVESTMENTS SPC Cayman Islands 100%

LABATT BREWING COMPANY Canadá 100% LIMITED – 207 COMPAÑIA CERVECERA República Dominicana AMBEV DOMINICANA, C. POR Santo Domingo 100% A. Companhia Cervecera AMBEV Equador Guayaquil 100% ECUADOR S.A. INDUSTRIAS DEL ATLÁNTICO, Guatemala Zacapa 50% SOCIEDAD ANÓNIMA

Paraguai CERVECERIA PARAGUAY S.A. Ypané 87,2%

COMPANÍA CERVECERA Peru Lima 100% AMBEV PERU S.A.C.

Uruguai CERVECERIA NACIONAL Payssandu 97,4%

COMPAÑÍA BRAHMA Venezuela Caracas 51% VENEZUELA, S.A.

Tabela 5-1: Principais empresas controladas e coligadas da AmBev Fonte: AmBev, 2010.

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5.2 MARCAS E PRODUTOS

Com a missão de ―Criar vínculos fortes e duradouros com os consumidores e clientes, fornecendo-lhes as melhores marcas, produtos e serviços‖ e a visão de ―Ser a Melhor Empresa de Bebidas em um Mundo Melhor‖, a AmBev é dona do portfólio de bebidas mais diversificado do Brasil, que inclui as marcas apresentadas na tabela abaixo.

Ano de País de Marcas Linha de produtos lançamento Desenvolvedor origem da marca

Segmento de cervejas

Cervejarias Reunidas Skol- . Skol Pilsen Skol 1967 Caracu (adquirida pela Brasil . Skol Beats CCB em 1980)

. Brahma Pilsen . Chopp Brahma . Brahma Malzbier Brahma 1888 CCB Brasil . Brahma Extra . Brahma Liber . Chopp Brahma Black

. Antarctica Pilsen . Antarctica Malzbier CAP . Antarctica Extra Cristal (*Cervejaria Adriática, Antarctica 1885 Brasil . Antarctica Sub Zero adquirida pela CAP em . Antarctica Chopp 1941) . Antarctica Original*

. Bohemia Pilsen . Bohemia Weiss Bohemia 1853 Cervejaria Bohemia Brasil . Bohemia Escura . Bohemia Confraria

Kronenbier . Kronenbier 1991 CAP Brasil

Cervejaria Serramalte, Serramalte . Serramalte Extra 1957 adquirida pela CAP em Brasil 1978 Cervejarias Reunidas Skol- Caracu . Caracu 1899 Caracu (adquirida pela Brasil CCB em 1980)

Cervejaria Polar, adquirida Polar . Polar Export 1929 Brasil pela CAP em 1972

Cervejaria e Maltaria Quilmes . Quilmes Cristal 1888 Quilmes, adquirida pela Argentina AmBev em 2002

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Pilsen . Pilsen 1956 Não encontrado Uruguai

Compañía Salus S.A, Patrícia . Patrícia 1936 adquirida pela AmBev em Uruguai 2000 Cerveceria y Malteria Paysandú (Cympai), Norteña . Norteña 1948 Uruguai adquirida pela AmBev em 2000 Leuven's Den Horen Stella Artois . Stella Artois 1366 Bélgica Brewery

Budweiser . 1883 Anheuser-Busch EUA

Cerveceria Boliviana Paceña . Paceña 1888 Bolívia Nacional S.A.

Alexander Não Labatt Brewing Company . Alexander Keith‘s Canadá Keith’s encontrado Limited

Segmento de refrigerantes e bebidas não-alcoólicas . Guaraná Antarctica Zero . Guaraná Antarctica Guaraná Caçulinha 1921 CAP Brasil Antarctica . Guaraná Antarctica Ice . Guaraná Antarctica Açaí Soda . Soda Antarctica 1912 CAP Brasil Antarctica . Soda Antarctica Diet

Água Tônica . Tônica Antarctica 1914 CAP Brasil Antarctica . Tônica Antarctica Diet

. Pepsi Cola . Pepsi Light Pepsi . Pepsi Twist 1898 Pepsico EUA . Pepsi Twist 3 . Pepsi Twist Light

. Sukita Laranja Fratelli Vita Indústria e . Sukita Uva Sukita 1976 Comércio S.A., adqurida Brasil . Sukita Vitaminada pela CCB em 1976 . Sukita Zero Açúcar . H2OH! Limão . H2OH! Limão e Abacaxi com hortelã H2OH! 2006 Pepsico EUA . H2OH! Limão e Maçã . H2OH! Limão e Maracujá Teem . TEEM 1995 Pepsico EUA

. Laranja Frutzzz . Pêssego 2009 Pepsi Brasil Brasil . Uva

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Gatorade . Vários sabores 1988 Pepsico EUA

Guarah . Guarah 2007 AmBev Brasil

. Pêssego (light) Lipton Ice . Limão (light) 1972 Pepsico Brasil Tea . Chá Verde . Kiwi-morango Propel . Limão 2009 Pepsico EUA Hydractive . Tangerina-laranja

Tabela 5-2: Portfólio atual da AmBev Fonte: AmBev, 2010.

5.3 CULTURA

Em 2009, a AmBev contava com mais de 45 mil funcionários distribuídos em 64 fábricas, maltarias, Centros de Distribuição Direta e Centros de Excelência. Para orientar a atuação de todos esses funcionários, a empresa dispõe de um conjunto de 10 princípios que definem quem quer ser e como quer agir, sendo a essência de sua Cultura (AMBEV, 2009): Sonho: 1. Nosso sonho nos motiva a trabalhar juntos com um único objetivo: ser a Melhor Empresa de Bebidas em um Mundo Melhor. . Ser a melhor é o que move a nossa Gente. . Seremos do tamanho do nosso sonho. . Nosso sonho é desafiador, factível e tem conseqüências para todos nós. . Atingiremos nosso sonho de forma responsável. Gente: 2. Pessoas excelentes, com liberdade para crescer em velocidades condizentes com seus talentos e recompensadas adequadamente, são os ativos mais valiosos da nossa Companhia. . Gente excelente é fundamental. . Gente excelente atrai mais gente excelente.

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. Líderes mantêm os caminhos livres. . Gente excelente gosta de meritocracia, informalidade e sinceridade. 3. Nossos líderes devem selecionar pessoas com potencial para ser melhor do que eles. Avaliaremos nossos líderes pela qualidade das suas equipes. . Contratamos e selecionamos pessoas com potencial para ser melhores do que nós. . Líderes precisam ter tempo para garantir que seu time esteja engajado. . Proporcionamos experiências desafiadoras para ajudar a desenvolver nossa Gente. Cultura: 4. Nunca estamos completamente satisfeitos com os nossos resultados. Foco e tolerância zero ajudam a garantir uma vantagem competitiva duradoura. . O que importa são os resultados sustentáveis. . Focamos no que realmente interessa, no que nos trará resultado. . Meios são importantes, mas sem resultados não significam nada. . Celebramos nossas vitórias, mas imediatamente buscamos novos desafios. 5. O consumidor é o patrão. Nos relacionamos com os consumidores por meio de experiências significativas das nossas marcas, unindo tradição e inovação, sempre de forma responsável. . Consumidores e marcas são o nosso foco. . Conhecer nosso consumidor é a chave para o sucesso. . Tradição é importante para o nosso compromisso com os consumidores. . Somos embaixadores dos nossos produtos.

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6. Somos uma Companhia de donos. Donos assumem resultados pessoalmente. . Somos donos da Companhia e isso se reflete em nossas decisões. . Aceitamos responsabilidades e vivemos as consequências de nossas decisões. . Construímos nosso negócio todos os dias. . Donos assumem resultados e desafios pessoalmente. 7. Acreditamos que bom senso e simplicidade orientam melhor que sofisticação e complexidade. . Senso comum e simplicidade conduzem a um melhor julgamento. . Nossas ações são o resultado do que falamos. . Tomamos decisões baseadas em fatos e dados. . Mantemos a transparência e clareza no que fazemos. . Somos disciplinados na forma como executamos e monitoramos nossos resultados. 8. Gerenciamos nossos custos rigorosamente para liberar mais recursos para suportar nosso crescimento no mercado. . Controlamos nossos custos, sempre buscando oportunidades. . Empresas ―enxutas‖ não apenas têm mais chance de sobreviver em tempos difíceis como prosperam mais do que as outras nos bons momentos. . Usamos o ―dinheiro que não gera valor para a Companhia‖ para investir naquilo que gera valor e suporta nosso crescimento no mercado – coisas que os consumidores vêem, tocam e bebem e aquilo pelo qual eles estão dispostos a pagar mais. 9. Liderança pelo exemplo pessoal é o melhor guia para nossa Cultura. Fazemos o que falamos. . Exemplo pessoal, atitudes e comportamento são muito mais poderosos do que as palavras.

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. Vivemos o nosso trabalho todo dia com paixão e com senso de urgência. . Liderança é a chave para apresentar resultados, junto com a sua equipe, fazendo as coisas da maneira correta. . Líderes vão aonde as ―coisas acontecem‖. . Gerenciamos, sempre que possível, de onde devemos estar: no campo. 10. Não pegamos ―atalhos‖. Integridade, trabalho duro e consistência são a chave para construir nossa Companhia. . Adotar os mais elevados padrões de integridade na condução do nosso negócio sempre valerão a pena. . A segurança da nossa Gente, a qualidade dos nossos produtos e a singularidade da experiência do nosso consumidor nunca podem ser comprometidas.

5.4 ORGANIZAÇÃO INTERNA

A AmBev não publica a sua estrutura organizacional; porém, com base nas informações dos entrevistados, foi possível fazer um esboço de como a cervejaria está organizada. O órgão máximo de sua linha hierárquica é o Conselho de Administração (CA). Composto por nove membros efetivos, determina o direcionamento geral estratégico da companhia. Os conselheiros são responsáveis pela nomeação dos diretores executivos e por garantir que valores, ética e cultura da empresa sejam praticados e disseminados entre os colaboradores. Todos os conselheiros são acionistas da AmBev e nenhum exerce cargo executivo na Companhia, visando garantir maior independência e autonomia entre os principais órgãos de Governança. Os membros são eleitos nas Assembléias Gerais de acionistas para um mandato de três anos, com reeleição permitida. O bloco controlador é formado pela Anheuser-Busch InBev e pela FAHZ, que juntas detêm 90,9% do capital votante e 71,4% do capital total da empresa. O Conselho de Administração recebe o apoio de dois Comitês: de Operações e Finanças e de Compliance. O primeiro tem a finalidade de promover e manter uma

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cultura ética, competitividade e alcance de objetivos de longo prazo, assistindo o CA em relação a inúmeras matérias, como Gente & Gestão, inovação, boas práticas, dentre outras. Já o segundo tem por finalidade assistir o CA em operações com partes relacionadas; situações de conflito de interesses; cumprimento dos dispositivos legais, regulamentares e estatutários referentes a condutas, concorrências; dentre outros. Os membros do Conselho Fiscal são eleitos pelos acionistas em Assembléia Geral, realizada uma vez ao ano. O mandato é de um ano com reeleição permitida. As principais atribuições do Conselho Fiscal são: fiscalizar os atos dos administradores; verificar o cumprimento dos seus deveres legais e estatutários; e analisar e dar parecer sobre as demonstrações financeiras da Companhia. Como os membros são independentes, sua isenção é garantida. Nenhum membro integra o Conselho de Administração ou a Diretoria Executiva, sendo um deles representante dos acionistas minoritários.

Acionistas

AGO Comitê de Operações e Finanças

Conselho Conselho de Fiscal Administração

Comitê de Compliance Diretoria Executiva

Figura 5-1: Esquema de governança da AmBev Fonte: Baseado em AmBev (2009).

A Diretoria Executiva é integrada por 11 diretores, com mandato de três anos e possibilidade de reeleição. É responsável pela gestão dos negócios da AmBev e por apresentar propostas de planejamento de médio e longo prazos ao Conselho de Administração. Os diretores são profissionais experientes que conhecem os

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mercados de atuação da AmBev e que estão na empresa, em média, há cerca de dez anos.

DIRETORIA EXECUTIVA

Diretor Geral Presidente da Presidente da Diretor de da AmBev Quinsa Labatt Vendas

Diretor Diretor de Diretor de Financeiro e de Diretor Diretor Relações Marketing Relações com Jurídico Industrial Corporativas Investidores

Diretor de Diretor para Diretor de TI e Diretor de Gente & HILA-Ex e de Serviços Logística Gestão Refrigerantes Compartilhados

Figura 5-2: Diretoria Executiva da AmBev Fonte: Baseado em AmBev (2009).

Diretamente ligada ao Diretor de Vendas, existe uma rede de Diretorias Regionais que são responsáveis pela operação dos negócios da AmBev, incluindo as atividades de produção, envasamento e distribuição. A Figura 5-3 apresenta a estrutura básica de uma dessas Diretorias, inspirada na Regional Rio de Janeiro.

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Diretor Regional

Gerência de 1ª Linha Gerentes de Gerente Gerente de Gerente Gerente de Distribuição Gerente Adm.- Operação e Gerente de Comercial Gente & Direta Jurídico Financeiro Distribuição Informática (GC) Gestão (GDDs) (GAF) (GOD) Responsáveis pelos CDDs

São Cristóvão

Niterói

Campos

Jacarepaguá

Campo Grande

Figura 5-3: Estrutura básica de uma Diretoria Regional Fonte: Baseado nas entrevistas.

A área central de uma Diretoria Regional é a de Vendas, que contempla as Gerências Comercial e de Distribuição Direta. Esta é responsável pela operação das unidades próprias da AmBev – os Centros de Distribuição Direta (CDDs) – e coordena dois tipos principais de estrutura: a de vendas, composta pelos vendedores AmBev que visitam duas vezes por semana mais de um milhão de PDVs por todo o Brasil, e a de Trade Marketing, que cuida de toda a visibilidade das marcas da empresa nos PDVs, bem como de eventos e do relacionamento com clientes considerados especiais (margem alta ou grande volume).

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Gerente de Distribuição Direta (GDD)

Gerente de Salas de Gerentes de Trade Vendas Vendas Marketing

Mesas de Supervisores Vendas de Vendas Supervisores Trade de Trade Marketing VIP Marketing e Eventos

Marcas Vendedores

Auxiliares

Repositores

Figura 5-4: Estrutura básica da Gerência Regional de Distribuição Direta Fonte: Baseado nas entrevistas.

A forma de organização básica da Gerência de Distribuição Direta são as Salas de Vendas. Cada Sala é composta por um conjunto de Mesas de Vendas, divididas não por produto, mas por segmentos de cliente. Há três divisões bem claras (ENTREVISTADO #1): as pessoas que vendem para o frio, que são os botecos e restaurantes que comercializam o produto gelado pronto para o consumo; as pessoas que vendem para o quente, que são os depósitos, que comercializam para o consumo em casa; e aqueles que vendem para o que se chama de auto- serviço (AS), que são supermercados e lojas de conveniência. Cada Mesa de Vendas é liderada por um Supervisor de Vendas, que coordena uma equipe de vendedores e de repositores (funcionários que repõem os produtos nos PDVs). Os vendedores de uma mesma Mesa são divididos por marca, da seguinte maneira: há sempre duplas que cobrem os mesmo PDVS, porém um cuida da marca mais vendida enquanto o outro cuida das outras marcas, como se fosse um espelho.

Existe, por exemplo, a questão do vendedor espelho, em que um vende Skol e Brahma e o outro vende Antarctica e Bohemia. Eu não lembro agora, mas eles não vendem os mesmos produtos, mas vendem para os mesmos

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PDVs. Eles não competem. Algumas vezes pode acontecer, como, por exemplo, se o cara estiver querendo aumentar o volume do seu produto e empurra mais produto em detrimento do outro. Mas isso é uma situação com qual o supervisor de vendas tem que lidar muito bem. (ENTREVISTADO #1)

A Figura 5-5 ilustra o funcionamento de uma Sala de Vendas.

Supervisores Vendedores M1 Vendedores M2, M3 de Vendas

Mesa 1 Mesa 2 Mesa 3 Mesa de Gerente de Refrigerantes e GV Vendas Bebidas Não- alcoólicas Mesa 4 Mesa 5 Mesa 6

Figura 5-5: Estrutura básica de uma Sala de Vendas Fonte: Baseado nas entrevistas.

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6 ANÁLISE

Este capítulo está organizado em duas grandes partes. Primeiramente, as trajetórias das duas empresas que deram origem à AmBev – CAP e CCB – são analisadas comparativamente, tendo como base o Modelo de Requisitos para o Desenvolvimento da Propensão à Auto-perpetuação (FLECK, 2009a). Além de apresentar o contexto em que a AmBev surgiu, este bloco servirá de referência para a segunda parte da análise, onde será feita a comparação da situação atual da AmBev em relação ao momento de sua criação, buscando compreender, após dez anos de existência, como se comportou a estratégia desenvolvida pelo Banco Garantia em relação às respostas aos desafios de sucesso no longo prazo.

6.1 ANTECEDENTES DA AMBEV: CAP X CCB

A Tabela 6-1 contém um quadro resumo com a comparação histórica da CAP e da CCB tendo como base as suas respostas aos cinco desafios do crescimento propostos por Fleck (2009a). A Tabela foi dividida em três grandes fases, definidas a partir de eventos críticos identificados pelo pesquisador ao longo de sua investigação, a saber:  Fase 1: compreende o período da época em que surgiu o embrião das duas cervejarias (final do século XIX) até os anos 20 do século XX, quando ambas se diversificaram rumo a bebidas não-alcoólicas;  Fase 2: período em que tanto a CAP quanto a CCB consolidaram a indústria nacional, expandindo-se por todo o país e adquirindo uma série de cervejarias regionais; e  Fase 3: vai de 1989, ano em que o Banco Garantia se tornou o controlador da CCB, até 1999, quando foi anunciada a fusão entre as duas cervejarias e a criação da AmBev. Essa delimitação foi estabelecida para facilitar a análise das iniciativas empreendidas pelo Banco Garantia em comparação com aquelas desenvolvidas pela CAP. As linhas da Tabela 6-1 contêm as principais dimensões dos desafios propostos por Fleck (2009a). Vale ressaltar que nem sempre foi possível encontrar

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evidências para se analisar os traços das duas empresas para todas as dimensões dos desafios, em todas as três fases. Após a Tabela 6-1, será feita uma análise comparativa mais detalhada das respostas das duas empresas aos desafios do sucesso no longo prazo.

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Final do século XIX até os anos 1920: Surgimento e diversificação inicial Desafio Dimensão de análise CAP CCB

- Combinação de estratégias de exploração Estratégia de expansão: - Estratégia de explotação, já que seguiu os (produção de baixa fermentação, refrigerantes exploração x explotação movimentos da CAP com alguma defasagem de e geladeiras a gelo) e de explotação (MARCH, 1991) tempo (ampliação da produção de cerveja).

- Ambição (pioneirismo de seus movimentos - Ambição (movimentos de diversificação e de diversificação e de expansão) expansão) Serviços - Versatilidade (diversificação) - Versatilidade (diversificação) empreendedores - Julgamento (negócios sinérgicos com a - Julgamento (negócios sinérgicos com a produção Empreender (PENROSE, 1959) produção de cerveja e de gelo) de cerveja) - Levantamento de financiamento (primeira a - Levantamento de financiamento (capital alemão e ser tornar S.A.) depois ao se tornar S.A.)

Motivação da expansão - Defensiva: aquisição de concorrentes e início - Defensiva: aquisição de concorrentes e início de (CHANDLER, 1977; de expansão geográfica pelo Brasil (SP e RJ), expansão geográfica pelo Brasil (SP e RJ), FLECK, 2009a) buscando ocupar espaços antes da CCB respondendo aos movimentos da CAP

Gestão do risco - Sem evidências - Sem evidências (PENROSE, 1959)

Monitoramento do ambiente (FLECK, - Sem evidências - Sem evidências 2009a) Navegar no ambiente Respostas estratégicas a pressões externas - Sem evidências - Sem evidências (OLIVER, 1991)

Compartilhamento de recursos homogêneos/ Gerir a intercâmbio de recursos - Sem evidências - Sem evidências diversidade heterogêneos (FLECK, 2009a)

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Capacitações em coordenação (FLECK, - Sem evidências - Sem evidências 2009a) Antecipação de necessidades (FLECK, - Sem evidências - Sem evidências 2009a) Aprovisionar Manutenção da recursos qualidade dos recursos gerenciais e criação de vínculos - Sem evidências - Sem evidências com a organização (FLECK, 2009a) Levantamento e análise de dados (FLECK, - Sem evidências - Sem evidências 2009a) Gerir a Identificação e complexidade priorização de soluções - Sem evidências - Sem evidências (FLECK, 2009a) Aprendizado (FLECK, - Sem evidências - Sem evidências 2009a) Década de 30 a 1988: Expansão nacional Desafio Dimensão de análise CAP CCB

Estratégia de expansão: - Estratégia de explotação, sem nenhum tipo - Estratégia de explotação, sem nenhum tipo de exploração x explotação de inovação inovação (MARCH, 1991)

Serviços - Ambição (esforços crescentes para expandir- - Ambição (esforços crescentes para expandir-se Empreender empreendedores se nacionalmente) nacionalmente) (PENROSE, 1959) - Sem versatilidade (hiato de inovação) - Versatilidade em embalagens - Defensiva: aquisição de concorrentes e Motivação da expansão - Defensiva: aquisição de concorrentes e disputa disputa contra a CCB pelas oportunidades de (CHANDLER, 1977; contra a CAP pelas oportunidades de expansão, expansão, especialmente através de FLECK, 2009a) especialmente através de aquisições aquisições

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Gestão do risco - Sem evidências - Sem evidências (PENROSE, 1959) Monitoramento do ambiente (FLECK, - Sem evidências - Sem evidências Navegar no 2009a) ambiente Respostas estratégicas a pressões externas - Sem evidências - Sem evidências (OLIVER, 1991) - Manutenção de algumas cervejarias - Companhias adquiridas com o objetivo único de Compartilhamento de adquiridas, chegando a incorporar seus aumentar capacidade produtiva, descontinuando os recursos homogêneos/ produtos ao portfólio Antarctica como forma de seus produtos e substituindo pelo portfólio Brahma intercâmbio de recursos lidar com a diversidade regional - Padronização de processos heterogêneos (FLECK, - Grupo formado por 28 empresas coligadas Gerir a - Centralização da tomada de decisão na 2009a) ou controladas, porém governadas com diversidade controladora centralização da tomada de decisão Capacitações em coordenação (FLECK, - Sem evidências - Sem evidências 2009a) Antecipação de - Três crises de sucessão que duraram quase - Sem problemas sucessórios, com o comando necessidades (FLECK, meio século, envolvendo brigas judiciais pelo alternando entre herdeiros e profissionais de carreira 2009a) controle da cervejaria na empresa, todos com experiência no negócio Aprovisionar recursos Manutenção da gerenciais qualidade dos recursos e criação de vínculos - Sem evidências - Sem evidências com a organização (FLECK, 2009a) Levantamento e análise de dados (FLECK, - Sem evidências - Sem evidências Gerir a 2009a) complexidade Identificação e priorização de soluções - Sem evidências - Sem evidências (FLECK, 2009a)

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Aprendizado (FLECK, - Sem evidências - Sem evidências 2009a)

De 1988 a 1999: Reviravolta na indústria Desafio Dimensão de análise CAP CCB

Estratégia de expansão: - Estratégia de explotação, sem nenhum tipo - Estratégia de explotação, com pouca ênfase em exploração x explotação de inovação inovação de produto (MARCH, 1991)

- Ambição (esforços crescentes para expandir-se - Ambição (esforços crescentes para expandir- nacional e internacionalmente) se nacionalmente) Serviços - Versatilidade (embalagens; renovação e extensão - Versatilidade (embalagens; renovação e empreendedores de linhas de produtos existentes; diversificação para extensão de linhas de produtos existentes) (PENROSE, 1959) NANCs através da parceria com a Pepsico) Empreender - Levantamento de financiamento: alto grau de - Levantamento de financiamento: lançamento de endividamento ADRs na NYSE - Defensiva: aquisição de concorrentes e - Defensiva: aquisição de concorrentes e disputa Motivação da expansão disputa contra a CCB e demais marcas de contra a CAP e demais marcas de baixo custo pelas (CHANDLER, 1977; baixo custo pelas oportunidades de expansão oportunidades de expansão e ganhos de market FLECK, 2009a) e ganhos de market share share Gestão do risco - Sem evidências - Sem evidências (PENROSE, 1959) - Falha ao não perceber a movimentação das Monitoramento do - Falha ao não perceber a movimentação das cervejarias de baixo custo, deixando-as roubar ambiente (FLECK, cervejarias de baixo custo, deixando-as roubar sua sua participação de mercado 2009a) participação de mercado Navegar no - Foco excessivo para dentro ambiente Respostas estratégicas - Falha na resposta às marcas de baixo custo, - Resposta bem sucedida às marcas de baixo custo, a pressões externas fracassando no lançamento da Bavaria e com o lançamento da Skol, que se tornou a líder do (OLIVER, 1991) realizando guerra de preços mercado

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- Companhias adquiridas com o objetivo único de aumentar capacidade produtiva, descontinuando os - Manutenção de algumas cervejarias seus produtos e substituindo pelo portfólio Brahma Compartilhamento de adquiridas, chegando a incorporar seus (exceção para a Skol-Caracu) recursos homogêneos/ produtos ao portfólio Antarctica como forma de - Padronização de processos e métodos de trabalho intercâmbio de recursos lidar com a diversidade regional - Descentralização administrativa e autonomia heterogêneos (FLECK, Grupo formado por 28 empresas coligadas ou Gerir a mediante pactuação de metas 2009a) controladas, porém governadas com diversidade - Desenvolvimento de instrumentos de controle centralização da tomada de decisão interno para alinhamento de funcionários com os interesses dos acionistas

Capacitações em - Coordenação independente das atividades de coordenação (FLECK, - Complexa estrutura de governança cervejas e de refrigerantes 2009a) - Criação de Diretorias Regionais

- Demissão da metade dos funcionários Antecipação de - Demissão de quase 2/3 dos funcionários, - Programa Trainee para o recrutamento de jovens necessidades (FLECK, com substituição em áreas específicas talentos e renovação dos quadros 2009a) (Marketing, por exemplo) - Estímulo ao desenvolvimento de sucessores em todos os níveis gerenciais Aprovisionar - Universidade Corporativa recursos - Avaliação de desempenho sistemática com base gerenciais Manutenção da em metas individuais vinculadas aos objetivos qualidade dos recursos corporativos e remuneração variável e criação de vínculos - Sem evidências - Aumento da competição interna, adoção de com a organização práticas anti-éticas entre pares e, assim, aumento do (FLECK, 2009a) passivo trabalhista - Estímulo ao desenvolvimento de jovens líderes Levantamento e análise - Desenvolvimento de sistemas informatizados de Insuficiência de sistemas informatizados de de dados (FLECK, apoio à decisão nas áreas de contabilidade, apoio à tomada de decisão 2009a) distribuição, logística e marketing Gerir a - Presa às soluções que deram certo no - Realização de benchmarking mundial em diversas complexidade Identificação e passado, com aversão a identificar problemas áreas do negócio, buscando novas abordagens priorização de soluções e desenvolver novas soluções - Contratação de consultorias para diagnóstico e (FLECK, 2009a) - Predomínio da prudência e do proposição de soluções conservadorismo na tomada de decisões - Adoção do método EVA como critério principal para

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a tomada de decisão

Aprendizado (FLECK, Complexa estrutura de governança impedia o Sem evidências 2009a) aprendizado

Tabela 6-1: Quadro comparativo histórico das respostas da CAP e da CCB aos desafios do crescimento

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6.1.1 Desafio de empreender

Em termos gerais, pode-se dizer que, com exceção da primeira fase, as respostas da CAP e da CCB às dimensões do desafio de empreender foram praticamente semelhantes. A distinção no primeiro período decorre do fato de a CAP combinar efetivamente as estratégias de exploração e de explotação propostas por March (1991). No que se refere ao primeiro tipo de estratégia, a cervejaria foi pioneira em três principais aspectos:  Primeira fábrica de cerveja do país com tecnologia apropriada para a produção de baixa fermentação, permitindo a realização dessa atividade em escala industrial;  Primeira cervejaria a diversificar para o segmento de bebidas não- alcoólicas, passando a produzir água mineral e refrigerantes em escala industrial. Além disso, foi pioneira na pesquisa com guaraná para fins alimentícios, que se tornou responsável pelo lançamento do primeiro refrigerante de guaraná no Brasil em 1921; e  Responsável pela fabricação das primeiras geladeiras a gelo do país, utilizadas tanto em casas comerciais quanto em residências (1915). O gelo para o funcionamento do equipamento era fornecido pela própria empresa, por meio de assinaturas de consumidores. Já em relação à estratégia de explotação, a CAP, paralelamente às inovações, deu continuidade às suas atividades principais – a produção de cervejas e de gelo – ampliando sua capacidade produtiva, aprimorando seus processos produtivos e expandindo a comercialização de suas bebidas geograficamente. A CCB, em contrapartida, fez uso apenas de estratégia de explotação, pois se limitou a seguir os movimentos de sua concorrente paulista com alguma defasagem. A cervejaria não foi capaz de apresentar nenhum tipo de novidade ao mercado, contentando-se apenas em copiar as mesmas oportunidades de expansão que já haviam sido desbravadas pela CAP. Por exemplo, o uso de tecnologia para produção de cerveja de baixa fermentação só iniciou-se em 1896, 8 anos depois da CAP. Enquanto a CCB ainda produzia cerveja de alta fermentação, de cor escura e sabor amargo, a CAP já operava há tempos em escala industrial com a produção de

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baixa fermentação, desenvolvendo domínio sobre a nova tecnologia e oferecendo um produto de maior qualidade e mais agradável ao paladar. O processo de diversificação da CCB para o segmento de bebidas não- alcoólicas também apresentou defasagem em relação à CAP. A companhia passou a atuar nesse setor em 1918, quando lançou seis refrigerantes. Todavia, à época, a CAP já dispunha de três refrigerantes e uma água mineral em seu portfólio de produtos, tendo em vista que sua inserção no segmento iniciou-se em 1909, quase dez anos antes. O caso do guaraná evidencia o atraso da CCB em relação à CAP: a primeira bebida desse tipo desenvolvida pela CCB – o Guaraná Genuíno – foi registrada somente em 1924, três anos após a CAP lançar o Guaraná Champagne Antarctica. Vale lembrar que a empresa paulista iniciara as pesquisas com o guaraná em 1905, vinte e dois anos antes da versão definitiva do produto da CCB – Guaraná Brahma – ser finalmente lançada em 1927. Apesar dessas diferenças iniciais, o que se vê no decorrer das fases seguintes é que as duas cervejarias uniformizaram as suas maneiras de empreender. Após a diversificação inicial, não houve mais nenhum tipo de inovação substancial, com ambas restringindo-se a adotar estratégias de explotação. O foco na inovação deu lugar à execução, não só no aprimoramento dos processos produtivos e de distribuição, mas também na busca pela expansão nacional.

No meu entender, [a Brahma] não [era inovadora]. Ela, como a Antarctica, valorizava a compra de qualquer cervejaria que aparecesse no país, por isso elas se tornaram grandes. (ENTREVISTADO #9)

A atuação da CCB no segmento de bebidas não-alcoólicas é um exemplo da renúncia à inovação. A empresa abriu mão de investir internamente no desenvolvimento de novos produtos para incorporar ao seu portfólio marcas de outras empresas, mediante contratos de concessão. O principal exemplo dessa estratégia foi a parceria com a Pepsico, estabelecida em 1984, através da qual a CCB se tornou engarrafadora e distribuidora dos produtos da empresa norte- americana no Brasil. Outro caso foi a concessão da Unilever para fabricar, comercializar e distribuir o chá gelado Lipton Ice Tea, líder mundial nesse segmento, em 1997. Ao longo da segunda e da terceira fases, observa-se que a CAP e a CCB realizaram uma corrida expansionista pelo domínio do mercado nacional, buscando

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entrar primeiro nos principais centros consumidores. Para tal, apesar de também crescerem organicamente através de investimentos para a construção de fábricas e filiais, adquiriram várias cervejarias locais espalhadas por todo o Brasil, consolidando a indústria nacional. Tomando como base Chandler (1977), não foram encontradas evidências de que tais movimentos de expansão objetivassem o ganho de economias de escala ou escopo, mas não há dúvidas de que foram expansões de caráter defensivo, já que cada empresa tinha o intuito de evitar a entrada do concorrente nos mercados-alvo. Em relação aos serviços empreendedores (PENROSE, 1959), a principal qualidade identificada nas duas empresas é a ambição, refletida na busca por níveis maiores de lucratividade. Observa-se, porém, que o perfil ambicioso da CAP se aproximou do que Penrose (1959) chama de construtor de império (“empire- builder”), especialmente quando Walter Belian esteve à frente da cervejaria. Belian, que dirigiu a empresa por quase 30 anos, tinha esse desejo pelo poder de estar à frente do império industrial que era a CAP, sendo responsável pela maioria das aquisições da empresa na década de 70. Se a CAP foi mais versátil na primeira fase, sendo pioneira em termos de inovação e diversificação, pode-se afirmar que, a partir da segunda fase, a CCB passou a dar mais sinais de imaginação e visão com as novidades em termos de embalagens, que contribuíam para o aumento do consumo de bebidas. A grande mudança, porém, ocorreu após a entrada do Banco Garantia, quando a companhia desenvolveu duas estratégias de expansão. Primeiro, investiu no segmento de bebidas não-alcoólicas, buscando tornar-se uma empresa completa dentro do conceito de “Total Beverage Company” (CCB, 1997). Além de ampliar seu portfólio com o segundo refrigerante de cola do mundo (Pepsi-Cola, através da parceria com a Pepsico), a CCB acompanhou a tendência de consumo mais saudável, com o isotônico Marathon e a concessão do Lipton Ice Tea. Enquanto isso, a CAP manteve-se limitada ao segmento de refrigerantes, comercializando as mesmas bebidas que havia lançado no início do século XX. A segunda estratégia da CCB foi de internacionalização, com a construção de sua primeira planta fora do Brasil, na Argentina (onde já atuava através de exportação da cerveja Brahma), e a aquisição da Companhia Cervecera Nacional, da Venezuela, que ocupava a segunda posição daquele mercado. Enquanto

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intencionava se tornar um “World Class Player” (CCB, 1997), a CAP manteve-se concentrada ao mercado brasileiro, restringindo-se a ampliar a base de países para onde exportava seus produtos, sem realizar nenhum tipo de investimento produtivo. Diante de tudo que foi mencionado, especialmente a falta de inovação e a corrida expansionista, conclui-se que o processo de crescimento e de renovação tanto da CAP quanto da CCB condiz com o motor de crescimento inercial proposto por Fleck (2003), crescendo de forma quantitativa com base nas mesmas atividades e produtos. Tal crescimento, por sua vez, só foi possível pela capacidade de crescimento da indústria brasileira de cervejas, decorrente da padronização da oferta de cervejas, coerente com o motor de co-evolução proposto por Chandler (1977). O mercado brasileiro é caracterizado pela baixa diversificação de produtos, sendo a cerveja do tipo Pilsen responsável por 98% de toda a produção vendida no país. Segundo Santos (2001), a pouca diversificação tem suas origens no desenvolvimento da cerveja no Brasil, que foi direcionado à uniformização dos sabores oferecidos ao mercado. Tipos alternativos de cerveja, como Porter e München, foram retirados do mercado ou tiveram sua oferta diminuída sensivelmente. Nesse aspecto, o mercado brasileiro caminhou em sentido inverso ao que ocorre em países tradicionais na produção de cerveja. A Figura 6-1 demonstra o funcionamento e a conexão entre os dois motores de crescimento da indústria de cervejas brasileira.

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Competição com Esforços Homogeneização dos + base em MKT: canais cooperativos entre as produtos oferecidos de distribuição e CERVEJARIAS cervejarias ao mercado promoção +

CN

Padronização da CN Crescimento da oferta, com a cerveja indústria do tipo pilsen INDÚSTRIA Motor de co- evolução

Difusão dos Motor de benefícios da cerveja crescimento pilsen, aumentando a contínuo sua demanda

+ As marcas Antarctica e Brahma se tornaram as + mais desejadas pelo mercado, havendo estímulo através de ações de marketing

Réplica das operações existentes Demanda insatisfeita ampliando o por cervejas consumo

Expansão nacional centrada na Consumo per capita muito baixo ampliação de ativos em comparação com outros operacionais países

Figura 6-1: Os dois motores de crescimento na indústria brasileira de cervejas Fonte: Baseado em Fleck (2003).

6.1.2 Desafio de navegar no ambiente

Não foram encontradas evidências que permitissem uma análise histórica mais aprofundada sobre as respostas das duas empresas ao desafio de navegar no ambiente no período anterior a 1980. Em função da proximidade temporal, as evidências coletadas abrangem o período mais recente que vai do final da década de 70 até o final da década de 90 do século XX. Observa-se que tanto a CAP quanto a CCB deram demonstrações de falha em uma tarefa que Fleck (2009a) considera fundamental para uma resposta efetiva a este desafio: o monitoramento do ambiente. Dois fenômenos em especial demonstram a fraqueza das empresas neste quesito: as mudanças na economia brasileira e o surgimento de novos concorrentes. Com a redução do poder aquisitivo em decorrência do processo inflacionário, houve, além da redução do consumo total, a migração dos consumidores das marcas mais tradicionais – Brahma e Antarctica – para as de baixo custo, como

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Schincariol, Kaiser e Itaipava. Como pode ser visto no Gráfico 6-1, a marca Antarctica saiu da liderança do mercado brasileiro com 40,8% de market share em 1989 para 17,5% em 1998. De forma semelhante, a marca Brahma foi de 37,8% em 1989 para 22,5% em 1998.

45%

40,8% 40% 38,1% 38,0% 37,4% 37,8% 37,8% 35,1% 35,2% 35% 34,0% 33,3% 31,9% 31,5% 30% 30,2% 31,4% 28,6% 25,3% 25,5% Antarctica 25% 24,9% 23,2% Brahma Skol 22,5% 20% 20,3% 20,3% Kaiser

16,8% 17,5% Bavaria 15,0% 15,2% 16,7% 14,1% 15,5% Schincariol 15% 13,3% 12,7% 14,6% 15,9% Outras (premium) 12,5% 13,9% 13,6% 11,6% 11,5% 10% 9,8% 7,8% 7,9% 5,4% 7,3% 4,7% 5,3% 5% 3,8% 4,9% 3,6% 4,6% 2,1% 1,5% 1,1% 0,8% 0,9% 3,0% 0,8% 0,8%1,2% 0,9% 0% 0,0%0,2% 0,0% 1989 1990 1991 1992 1993 1994 1995 1996 1997 1998

Gráfico 6-1: Evolução do market share de cerveja no Brasil – década de 90 Fonte: Baseado em Ferrari (2008), Sindicerv (2010) e Sull (2005).

O Gráfico 6-1 acima mostra ainda que, se falharam no monitoramento do ambiente, as duas cervejarias adotaram respostas estratégicas bem distintas às pressões exercidas pelos novos concorrentes. Apesar de ambas agirem de maneira proativa às pressões, a CCB foi mais bem sucedida em função de dois aspectos: o processo de mudança empreendido pelo Banco Garantia e o sucesso no relançamento da marca Skol, que se tornou a líder do mercado no final da década de 90. Vale lembrar que todo o posicionamento da nova Skol decorreu de uma série de pesquisas desenvolvidas pela CCB, que passou a investir em inteligência de mercado de maneira antecipada para compreender melhor o comportamento dos consumidores. A CAP também investiu nesse quesito, porém de forma atrasada em comparação com sua concorrente.

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6.1.3 Desafio de gerir a diversidade

As evidências coletadas apontaram para uma grande diferença na forma com que a CAP e a CCB gerenciaram o aumento da diversidade decorrente de seus movimentos de expansão. Como já mencionado, ambas fizeram bastante uso de aquisições para tornar suas operações de escala nacional, estando presentes em todas as regiões do País. Todavia, a maneira com que se deu a integração das empresas adquiridas foi divergente. A CAP, por um lado, apresentou evidências de preconizar a preservação de algumas das cervejarias adquiridas, incorporando muitas marcas ao seu portfólio de produtos como forma de lidar com a diversidade regional em termos de consumo, que se constituía em importante barreira de entrada. Por exemplo, as cervejas Bavária (Cervejaria Bavária), Original (Cervejaria Adriática), Bohemia (Cervejaria Bohemia), Polar (Cervejaria Polar) e Serra-Malte (Cervejaria Serramalte) continuaram presentes no mercado durante toda a história da CAP. Além disso, apesar de se constituir em um grupo formado por 28 empresas coligadas ou controladas, a CAP preconizou a centralização da tomada de decisão mediante um esquema complexo de governança. Até 1995, a CAP não tinha um presidente ou executivo-chefe. O órgão máximo de decisão era o Conselho de Administração, e boa parte de seus integrantes acumulava postos na diretoria. Muitas decisões, por mais simples que fossem, tinham de receber a ―bênção‖ desse grupo. A concessão de um desconto para um bar no interior da Bahia, por exemplo, era discutida pelos diretores em São Paulo. Conseqüentemente, muitas decisões podiam se arrastar por até dez dias (CASTANHEIRA, 1995). A CCB, por outro lado, gerenciou o aumento da diversidade com muito mais ênfase na padronização de produtos, processos e métodos de trabalho. Diferentemente da CAP, suas aquisições objetivavam unicamente o aumento da capacidade produtiva, descontinuando os produtos das cervejarias adquiridas e introduzindo o portfólio Brahma em suas linhas de produção. A única exceção foram as Cervejarias Reunidas Skol-Caracu S.A., adquiridas em 1980. Não foi possível descobrir a razão, mas a CCB manteve a autonomia da cervejaria, dando continuidade à linha de produtos existentes e mantendo o seu mestre cervejeiro.

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O processo de padronização se tornou ainda mais intenso com a entrada do Banco Garantia em 1989. Novos padrões de trabalho foram desenvolvidos tendo em vista o aumento da eficiência e da qualidade dos produtos. Complementarmente, foram desenvolvidos inúmeros instrumentos de controle e incentivo que visavam alinhar toda a organização e até mesmo algumas partes interessadas (revendedores, por exemplo) com os objetivos dos novos acionistas: sistemas de informação e relatórios gerenciais; pagamento de bônus e distribuição de ações; programas de excelência fabril e de vendas (PTP, PPF); dentre outros.

Todos nós temos metas claras e quantificáveis, que se ordenam e consolidam nas metas da Companhia para cada ano, e uma parcela muito grande de nossa remuneração depende de seu atingimento. Essas metas anuais levam em conta o mercado, a concorrência, as principais oportunidades de melhoria interna, mas sempre se subordinam ao que chamamos de ―as metas de longo prazo dos acionistas‖. (CCB, 1997, p.4)

Mais do que alinhar a organização e homogeneizar práticas, os novos sócios também atuaram na construção de mecanismos de coordenação, considerado por Fleck (2009a) uma condição necessária ao sucesso da gestão da diversidade. Nesse sentido, as principais mudanças ocorrem na estrutura organizacional da CCB, que já em 1990 se tornou mais leve, com uma sensível redução dos níveis gerenciais, de 12 para 6, no máximo (CCB, 1991). Consolidou-se a estrutura de gerenciamento distinto das atividades relativas a cervejas e refrigerantes. Foram implantadas Diretorias Regionais, como forma de descentralização das atividades operacionais, o que não só garantiu a agilidade na tomada de decisão, mas também permitiu a integração de atividades operacionais em regiões próximas ou de características comuns. A autonomia dada a essas novas unidades foi compensada pelos instrumentos de controle desenvolvidos, de forma a evitar a fragmentação da organização. Além disso, a Diretoria de Recursos Humanos passou a ter uma função mais estratégica dentro da organização, ficando diretamente reportada à Diretoria Geral (PAULA; SOUZA; LEVORATO, 1992), como mostra a Figura 6-2.

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Conselho de Administração

Conselho Fiscal

Diretoria de Diretoria Geral Recursos Humanos

Superintendência Jurídica

Diretoria Diretoria Diretoria de Diretoria Diretoria de Diretoria de Administrativa Industrial Marketing Financeira Refrigerantes Revendas

Diretoria Diretoria Diretoria Diretoria Diretoria Regional Rio/ Regional São Regional Regional Norte/ Regional Sul Minas Paulo Centro-Oeste NE

Figura 6-2: Nova estrutura organizacional da CCB Fonte: CCB, 2001.

6.1.4 Desafio de aprovisionar recursos gerenciais

Um primeiro aspecto importante do aprovisionamento de recursos gerenciais na CAP foram as crises de sucessão enfrentadas pela empresa por três décadas. Antonio Zerrener, que consolidou a o controle acionário da empresa em 1923, faleceu em 1932 sem deixar herdeiros nem tampouco preparar um sucessor, limitando-se a ordenar que seus bens fossem enviados à Alemanha, sua terra natal. A partir daí, foram três conflitos pelo controle da FAHZ, acionista majoritária da cervejaria, que só se finalizaram em 1962, quando o STF decidiu pelo não-envio dos bens de Zerrener à Alemanha. Se não bastassem as disputas judiciais, o foco demasiado pelo controle do negócio levou a um vácuo de liderança dentro da CAP. Diferentemente da CCB, cujos processos sucessórios foram sempre tranqüilos e preconizaram a experiência técnica dos novos Presidentes da companhia (muitos deles com carreira na empresa), a CAP passou a ser comandada por pessoas sem experiência na produção de cervejas e de bebidas e que não foram preparadas para exercer o cargo de liderança. Não foram encontradas evidências de que Walter Belian e sua irmã, Erna Belian, tinham trabalhado anteriormente na CAP ou em

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outra cervejaria. Walter Belian, inclusive, não foi considerado um bom administrador, chegando a ser afastado do comando da empresa pela Curadoria da FAHZ e substituído por um juiz do Estado de São Paulo. Segundo Santos (2004), Belian era ávido por poder e fazia uso de meios não-convencionais para se perpetuar na direção da CAP, como foi o caso da aproximação junto a Juscelino Kubitschek para voltar à companhia, com a conseqüente mudança de posição do STF após o apoio presidencial. A Tabela 6-2 resume as principais disputas pelo controle da CAP.

Disputas Motivo Envolvidos Resultado Duração sucessórias

Derrota dos Helene Zerrener alemães, cujos Herança de Antonio Briga 1 (esposa) x herdeiros legados foram 1932-1962 Zerrener alemães incorporados à FAZH Vitória de Belian, Herança de Helene Testamenteiros de que se tornou Briga 2 1936-1944 Zerrener Helen Zerrener plenipotenciário da FAZH

Quebra do acordo de cavalheiros existente Herdeiros de von Informação não Briga 3 entre as famílias von Büllow x Walter 1958-1963 disponível Bülow e Zerrener, por Belian Walter Belian

Walter Belian x Final da Afastamento Falta de transparência Retorno de Belian Procuradoria Geral década de 50 de Walter na condução da ao comando da do Estado de São e início dos Belian companhia FAZH Paulo anos 60

Tabela 6-2: Conflitos no processo sucessório da CAP Fonte: Baseado em Santos (2004).

Uma segunda análise importante sobre as respostas ao desafio de aprovisionamento de recursos humanos refere-se aos processos de mudança ocorridos nas duas empresas na década de 90. Após a entrada do Banco Garantia, a CCB vivenciou um intenso processo de redução do seu quadro de funcionários. Em apenas uma semana, quase 2.000 pessoas foram demitidas (CCB, 2001). Em cinco anos de reestruturação, foram aproximadamente 16.000 demissões, como mostra o Gráfico 6-2.

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30.000

25.000 25.000 23.102 22.900

23.054 21.654 21.609 20.000 19.190 17.748 15.997 15.850 16.416 15.000 CCB 14.591 CAP 13.610 11.400 10.708

10.000 10.955 9.987 9.535 9.003 7.800

5.000

0 1989 1990 1991 1992 1993 1994 1995 1996 1997 1998

Gráfico 6-2: Evolução do número de funcionários da CCB em comparação com a CAP Fonte: Baseado em Sull (2005).

Tais iniciativas, porém, trouxeram consigo impactos importantes no clima organizacional, como insatisfação, medo, insegurança e resistência a mudanças. Segundo entrevistados que presenciaram esse momento:

No início, foi muito medo, pois a coisa começou com uma consultoria da Arthur Anderson e todos sabiam que a Brahma seria vendida. Nisso, aparece o Garantia comprando o controle acionário e, nos primeiros anos, houve muitas demissões, fechamentos de fabricas, perda de direitos adquiridos pelos aposentados (IBSS). (ENTREVISTADO #9)

A linha de produção, por exemplo, não era automatizada. Possuíamos muitas fábricas antigas e desatualizadas. Tanto que, com a entrada do Marcel, fechamos diversas fábricas. E isso causou muita comoção em alguns lugares, como, por exemplo, pequenas cidades onde boa parte da população trabalhava na Brahma. (ENTREVISTADO #10)

Além disso, em decorrência da grande quantidade de demissões, a reestruturação da CCB foi o ponto de partida para outro fenômeno presente na história da AmBev, e que será trabalhado mais adiante: o seu elevado passivo trabalhista.

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[O passivo trabalhista vem] desde a Brahma. Afinal de contas, muitas pessoas foram demitidas, e isso gera insatisfação. Acho que há um aproveitamento da situação por parte de advogados. Quando os caras entram com o processo na justiça, pedem valores absurdos. Mais tarde, na hora da negociação, esse valor cai significativamente. Não vejo esse passivo trabalhista como um problema. É natural. A empresa precisava fazer as mudanças, e demitir pessoas era necessário. (ENTREVISTADO #10)

No tempo da Brahma [antes do Garantia], se tinha passivo trabalhista, era muito pequeno. Acho que, como éramos 23.000 trabalhadores e chegamos a ter menos de 15.000, então o que aconteceu com essa diferença? E quando foi criada a AmBev, para comprar a Antarctica, quantas pessoas perderam emprego? E quantas fábricas foram fechadas? Deve ser daí esse passivo trabalhista atual. (ENTREVISTADO #9)

Outra grande mudança foi a implementação de uma nova política de remuneração, através da qual a parcela fixa do salário ficava abaixo da média do mercado, porém, em compensação, a parcela variável, associada ao desempenho, era altamente agressiva, podendo-se ganhar até vinte salários ao final do ano. Além disso, os melhores funcionários obtinham o direito de adquirir ações da empresa, tornando-se sócios do negócio. Tal política era apoiada por um sistema de medição de desempenho, desenvolvido no início do processo. As novas práticas significaram grandes mudanças em relação às formas tradicionais de trabalho dentro da CCB. Até então, não havia essa pressão por resultados, nem tampouco algum tipo de sistema ou esquema de medição de desempenho mais elaborado.

O Garantia trouxe isso de importante: eles aceleraram o uso de procedimentos e técnicas modernas de administração. Ou seja, acredito que faríamos as mudanças, porém num ritmo muito mais lento do que aquele imposto pelo Garantia. Por exemplo, já tínhamos avaliação de desempenho. No entanto, era uma avaliação mais tradicional, sem qualquer tipo de metas, dando margem para subjetividades. Ninguém tinha meta, e isso só passou a acontecer com o Garantia. (ENTREVISTADO #10)

Diante da nova regra, houve um aumento do clima de competição entre os funcionários, já que todos buscavam estar entre os ganhadores de bônus. Isso, por sua vez, levou ao aumento dos conflitos entre as pessoas, que não só se sentiam insatisfeitas com a nova cultura, mas vivenciavam a adoção de inúmeras práticas desleais entre os membros das equipes.

Essa cultura de cumprir metas trouxe problemas para muitas pessoas, pois eles mantiveram os salários abaixo do mercado (de propósito e comunicado

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a nós) para que 10% das pessoas pudessem se destacar como excelentes, ganhando 10 salários a mais, e 25% das pessoas destacadas como superiores pudessem ganhar mais 5 salários, causando uma disputa até às vezes desonestas. Era desonesta porque se uma pessoa descobrisse como fazer um trabalho que desse mais resultado, tentava cortar do outro a chance de também realizar aquele trabalho melhor. Eu conheci caso de chefe que indicava o funcionário para receber parte do prêmio. (ENTREVISTADO #9)

O mesmo fenômeno ocorreu também nas revendas Brahma, após a empresa implementar o seu Programa de Excelência das Revendas – PEX. A CCB, buscando a profissionalização e aumento de escala de sua rede de revendas, desenvolveu, com base nas práticas da Anheuser-Busch, uma série de requisitos de desempenho e de gestão que deveriam ser atendidos para se permanecer como revendedor Brahma. Segundo uma entrevistada que trabalhava em uma revenda na época:

No meu caso, posso falar pelo que vivi [carga de trabalho e pressão] na revenda. Isso aconteceu na década de 90, lá por volta de 93, 94 e 95, quando do lançamento do PEX – Programa de Excelência das Revendas, pois tínhamos que cumprir uma série de requisitos colocados pela Brahma, e trabalhávamos muito. (ENTREVISTADO #7)

Mesmo sem trabalhar diretamente na CCB, a entrevistada afirmou ter ouvido muito sobre funcionários da cervejaria que, diante da nova forma de trabalho, ficavam insatisfeitas e chegavam a processá-la por isso.

E muita gente processava a empresa e ganhava na justiça. Eu ouvia muito sobre isso. Como não trabalhava na empresa, não posso afirmar. (ENTREVISTADO #7)

O aprovisionamento de recursos gerenciais foi diretamente afetado pela busca por eficiência e redução de custos. Contudo, para dar conta da redução de funcionários e garantir a qualidade das novas equipes (foram aproximadamente 4.000 novas admissões), a CCB lançou duas iniciativas – o Programa Trainee, em 1990, e a Universidade Brahma, em 1995 – passando a administrar seus recursos humanos de maneira proativa, sistematizando práticas que permitissem constantemente equipar a organização com os recursos gerenciais necessários, através da seleção, do treinamento e do gerenciamento de carreiras. Criado em 1990, o Programa Trainee Brahma recrutava estudantes diretamente das faculdades, e servia como fonte primária de gerenciamento de talentos. Já a Universidade Brahma foi criada em 1995 com o objetivo de

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sistematizar os esforços de treinamento e desenvolvimento de funcionários da companhia. Na CAP, os cortes de pessoal iniciaram-se bem depois e foram mais lentos do que os que ocorreram na CCB. Mesmo assim, o fato é que aconteceram muitas demissões: de 1989 a 1998, o total de empregados caiu de aproximadamente 23.000 para menos de 8.000 (SULL, 2005). Algumas demissões ocorreram de acordo com a maneira tradicional, com o pagamento apenas de direitos trabalhistas. A maioria, porém, seguiu o que Castanheira (1995) chama de figurino clássico da Antarctica – sem alarde, com acomodações pessoais e em doses quase homeopáticas. Aqui, está, portanto, uma demonstração de que a CAP sofreu da armadilha da inércia ativa (SULL, 1999), prendendo-se a princípios e práticas do passado mesmo quando havia pressão e razão para buscar novas formas de ação. Infelizmente, não foram encontradas evidências que permitissem analisar os impactos das demissões para o bem estar da CAP, como foi feito para o caso da CCB. Todavia, observa-se que a cervejaria paulista, diferentemente de sua concorrente, não desenvolveu iniciativas que compensassem os prejuízos das demissões, nem tampouco se preocupou em sistematizar determinadas práticas de gerenciamento de recursos humanos para antecipar necessidades e garantir a qualidade de suas equipes.

6.1.5 Desafio de gerir a complexidade

A análise da CAP e da CCB em relação a este desafio no período anterior à criação da AmBev não pôde ser realizada em função da ausência de evidências. Foi o desafio com o menor número de fatos coletados, sendo os poucos registros concentrados nos anos anteriores à fusão e criação da AmBev em 1999. Uma das prioridades do Banco Garantia ao assumir o controle da CCB foi o diagnóstico da organização. Marcel Telles e sua equipe não tomaram nenhuma decisão crítica para o negócio sem antes compreender e avaliar com mais detalhe o funcionamento da cervejaria. Nesse sentido, foram realizados estudos que indicaram a situação da CCB e possíveis caminhos para melhorias, dentre os quais se destacaram:

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 A descoberta da dívida de 250 milhões de dólares no fundo de pensão, que demonstrou que os problemas eram maiores do que se imaginava;  A pesquisa de mercado que evidenciou a desvantagem da marca Brahma frente à Antarctica no gosto dos consumidores e a possível ameaça de redução da demanda quando do aumento de capacidade da cervejaria concorrente; e  O estudo do sistema produtivo da empresa, realizado por uma empresa de consultoria, que apontou não só a ineficiência de inúmeras fábricas da CCB, mas a desatualização tecnológica de seus processos de produção em comparação com as principais cervejarias do mundo. Além do diagnóstico, a nova diretoria da CCB investiu no desenvolvimento de procedimentos sistemáticos de recolhimento e análise de informação, juntamente com novos critérios para a tomada de decisão. Grande parte das iniciativas esteve associada ao desenvolvimento de sistemas de informação que fornecessem dados confiáveis e em tempo real. Foi o caso, por exemplo, do Relatório Gerencial de Desempenho (RGD), um demonstrativo de resultado baseado no custeamento direto variável, também utilizado pelas unidades industriais como ferramenta de simulação para diversas operações e investimentos. Até 1993, a CCB era a única cervejaria que dispunha de um sistema de informações Commander EIS, que garantia a confiabilidade e velocidade do fluxo de informações em tempo real dentro da empresa, numa tentativa de obter maior agilidade e flexibilidade na tomada de decisão (RONCARATI; LEMMA; MATTOS, 1995). As informações eram geradas pela área de orçamento da matriz após a consolidação dos dados enviados pelas unidades e encontravam-se disponíveis para os diretores e gerentes fabris. O acesso às informações podia gerar um processo de investigação para se descobrir, por exemplo, qual havia sido o insumo responsável pelo estouro do orçamento de custos de uma determinada fábrica. Com essa informação, gerentes e diretores podiam definir alternativas de ação, anulando o fato gerador do aumento dos custos ou prevenindo a repetição desse aumento. A adoção desse sistema de controle de custos subsidiou as decisões da companhia de desativar fábricas antigas e investir cada vez mais na construção de unidades novas e com maior grau de automação (RONCARATI; LEMMA; MATTOS,

142

1995). Com base no sistema, foi possível determinar com maior exatidão e rapidez as diferenças, em termos de custos, entre as unidades produtivas. A área de Marketing também foi contemplada com um sistema informatizo de apoio à tomada de decisão – o Sistema de Informações de Marketing (SIM). Tratava-se de um banco de dados de cerveja e refrigerante que tinha como objetivo a otimização do processo de decisão em marketing, e continha informações sobre consumidores, participação de mercado e pontos-de-venda, de forma a subsidiar o planejamento de marketing da companhia (CCB, 1997). O Banco Garantia também realizou mudanças no que se refere aos critérios de priorização para a tomada de decisão. A principal foi o uso do EVA para medir a criação de valor na empresa. Sua implementação objetivava o uso de um indicador que fosse ainda mais relacionado com a geração de valor para os sócios, já que, até então, a companhia utilizava outros dois indicadores: Retorno sobre o Patrimônio Líquido, cuja meta era acima de 20%; e o Lucro por Ação, cuja meta era acima de 15%. Até hoje a AmBev se baseia nesse indicador para avaliar seu desempenho financeiro e distribuir bônus. A gestão da complexidade na CAP, em contrapartida, evidencia que a cervejaria foi vítima tanto da paralisia quanto da inércia ativa (SULL, 1999):

[A CAP possuía] uma cultura consolidada ao longo de mais de 100 anos de existência da empresa, e que se poderia resumir em algumas máximas indiscutíveis dentro de casa: ninguém conhece o negócio melhor que nós; não se mexe naquilo que está dando certo; decidir com rapidez é decidir mal; a prudência é a virtude número 1. [...] o estilo da Antarctica parece mais vagaroso, prudente demais, talvez pouco eficiente. Mas a empresa está convencida de que esse ―caminhar sobre os ovos‖, como diz um executivo, é essencial para que ―a Antarctica mude sem deixar de ser Antarctica‖. (CASTANHEIRA, 1995, p. 97)

Em 1993, o resultado de um trabalho de consultoria da Andersen Consulting identificou que, a seu favor, a CAP tinha dois pontos: (i) um excelente produto, graças ao domínio tecnológico e a um time de técnicos de primeira; e (ii) uma marca fortíssima, dona de credibilidade e simpatia dos consumidores. Porém, de acordo com Luiz Carlos Ferezin, diretor da Andersen e responsável pelo trabalho na cervejaria, ―as más notícias eram muitas, todas derivadas, de uma forma ou de outra, do que chama de ‗cultura do conformismo‘‖.

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A empresa não estava habituada a identificar problemas, nem a mudar mandamentos internos para enfrentá-los. Toda a estrutura era voltada para a produção, e não para o mercado. Alguns importantes canais de vendas, como os supermercados, eram olimpicamente ignorados. Os distribuidores eram tratados como uma extensão do departamento comercial da empresa, e não como empresários independentes. Havia, em tudo isso, uma receita clássica de paralisia: a mistura de envelhecimento gerencial com um mercado fechado e pouco exigente. (CASTANHEIRA, 1995, p. 98)

[Um ponto fraco da CAP] era a maior resistência à realização de mudanças em seus métodos de gestão, frente a seus concorrentes. (PAULA; SOUZA; LEVORATO, 1992, p. 14)

Como já mencionado, o processo decisório, além de centralizado, era lento, confuso e não permitia o aprendizado, em função: (i) da falta de critério para a escolha dos assuntos a serem tratados em níveis superior de decisão; (ii) e do esquema de governança onde diretores ocupavam cargos no Conselho de Administração. Sull (2005) também chamou a atenção para a complexa estrutura de governança da empresa, indicando-a como uma das razões para a dificuldade da CAP em implementar as melhorias operacionais necessárias para a sua recuperação. No mesmo sentido, Galuppo (1997) apontava a estrutura da CAP, mais lenta do que as das concorrentes CCB e Kaiser, como a razão principal para a inércia da empresa quando da perda de mercado. Até 1997, a Presidência do Conselho era ocupada em sistema rotativo entre os seus membros segundo periodicidade mensal. Somente nesse ano os executivos da cervejaria finalmente convenceram a Fundação Zerrenner a simplificar sua estrutura de governança e consolidar a tomada de decisão da Companhia (SULL, 2005). Além disso, a CAP não dispunha de sistemas e rotinas sistematizadas de coleta e análise de dados. Tal fator, inclusive, mostrou-se prejudicial quando a empresa iniciou as reduções de preço para fazer frente às marcas de baixo custo. A empresa passou a oferecer descontos aos PDVs sem nenhum tipo de critério, pois, diferentemente da CCB, não dispunha de sistemas de informação, o que impedia os vendedores de estabelecer metas de desconto para PDVs selecionados onde a guerra de preços fosse mais intensa, enquanto mantivessem os preços em outras regiões (SULL, 2005).

144

6.1.6 Gestão da folga organizacional

Apesar de não ser um desafio associado ao crescimento organizacional, a gestão da folga é um elemento fundamental do Modelo de Fleck (2009a), devendo ser analisada em detalhe. A gestão da folga foi, sem dúvidas, o elemento central do processo de mudança empreendido pelo Banco Garantia na CCB, em virtude da cultura predominantemente voltada para a eficiência e a busca incessante por redução de custos.

Efficiency and low costs are the best insurance you can have in a turbulent environment. We always say that when the storm comes and everyone is drowning, we want to hold our breath longer. If everyone else drowns in three minutes, we want to be able to survive two minutes longer. Operational efficiency lets you do that. We have to hammer and hammer on cost savings and efficiency all the time. Sometimes when the business is going great, people start looking at you and ask why are we pushing for so much hardship? The answer is simple. This is our insurance for unexpected things on really hard times. (SULL, 2005, p. 1)

Logo ao assumir o controle da cervejaria, Marcel Telles e sua equipe implementaram um conjunto de mudanças que, além de demonstrarem a nova cultura pretendida, contribuíram para a redução imediata de desperdícios, tais como: unificação dos restaurantes; eliminação de benefícios para diretores; alteração do layout dos escritórios e estímulo à interação e troca de informações.

A Brahma era uma empresa muito familiar. Era controlada por três famílias – Gregg, Künning e Perez –, e o Banco Garantia adquiriu a participação das famílias Gregg e Künning. Além disso, era burocrática e formal. Com a entrada do Garantia, o clima ficou mais informal, saímos do terno e gravata e passamos a usar jeans e camisa, como era de hábito do Banco. Outro exemplo: às 17h01min, todos os funcionários da Antarctica iam embora. Isso mudou. Com a mudança, muitas vezes, tínhamos que ficar até mais tarde para terminar nossas tarefas. Isso é algo normal em qualquer trabalho. Mas não funcionava assim na Brahma. Com a mudança, os funcionários deixaram de se restringir às caixinhas, às suas áreas. Houve um estímulo e aumento do intercâmbio entre as áreas. As pessoas aprenderam a olhar para fora de suas caixas, a pensar também nas outras áreas da empresa. Um exemplo disso é que, uma vez por ano, todos os funcionários da Administração Central, inclusive Diretores e Gerentes, saíam para o mercado. Era um estímulo a olhar o mercado, olhar para fora. (ENTREVISTADO #10)

145

As grandes transformações, porém, ocorreram no quadro de funcionários e no parque industrial. Em relação aos funcionários, houve um intenso processo de demissão, com a redução de quase 2/3 do contingente em apenas cinco anos. No caso do sistema produtivo, dez fábricas foram fechadas só nos dois primeiros anos de gestão Garantia (SULL, 2005). Além disso, houve o investimento na modernização de plantas e no aumento da escala produtiva das novas instalações, que passaram a contar com tecnologias modernas de produção. Enquanto isso, a CAP continuou a construir plantas pequenas por vários anos, com a justificativa de querer estar próxima dos consumidores. Sua primeira fábrica "world-class" só foi construída em 1998, dois anos depois da CCB. Para se ter uma noção da disparidade entre as duas empresas, em 1995, a CAP tinha 49 fábricas, mais que o triplo da CCB, que contava com apenas 16 (BARROS, 1995). A CAP também alcançou níveis agressivos de produtividade, mas a lentidão na modernização de plantas e nos cortes de pessoal resultou em ganhos de produtividade que vieram com atraso e foram menos substanciais do que os da CCB, como mostra o Gráfico 6-3

6.000

5.099

5.000

4.283 4.199 4.716 4.615 4.628

4.000

3.000 CCB 2.879 CAP 2.344

1.842 2.262 2.000 1.671 2.145 1.514 1.529 1.926

1.615 1.407 1.433 1.472 1.000 1.200

0 1989 1990 1991 1992 1993 1994 1995 1996 1997 1998 Gráfico 6-3: Evolução do indicador de produção por empregado (hl) CAP X CCB

Fonte: Baseado em Sull (2005).

146

6.2 ANÁLISE DA AMBEV

Inicialmente, assim como no item anterior, a AmBev será analisada em relação aos desafios do crescimento no longo prazo e à gestão da folga organizacional (FLECK, 2009a). Em seguida, a partir da comparação do padrão de resposta aos desafios de longo prazo da AmBev em relação à CAP e à CCB, será feita uma análise acerca da forma com que sua estratégia contribui para a organização construir as condições para o sucesso no longo prazo.

6.2.1 Resposta da AmBev aos desafios de longo prazo

6.2.1.1 Desafio de empreender

As respostas da AmBev ao desafio de empreender seguem basicamente os mesmo princípios da forma de empreender implementada pelo Banco Garantia na CCB. Por um lado, a cervejaria se expande majoritariamente através do que March (1991) chama de estratégias de explotação; ou seja, buscando ampliar suas operações em mercados e produtos existentes. Por outro lado, observa-se também a presença destacada da versatilidade e da ambição propostas por Penrose (1959), em especial no que se refere à busca por alternativas e soluções para que a organização se expanda continuamente e mantenha a sua trajetória de crescimento. No segmento de cervejas, por exemplo, além de ampliar as três principais linhas de produtos – Antarctica, Brahma e Skol – a empresa busca otimizar o mix de seu portfólio, migrando progressivamente para marcas com maiores margens, através da extensão da linha Bohemia. Mesmo se tratando de tipos de cerveja amplamente conhecidos e fabricados em todo o mundo, inclusive por microcervejarias no Brasil, a AmBev foi a pioneira entre as grandes cervejarias nacionais na introdução de cervejas premium no mercado de massa, sendo a linha Bohemia o exemplo mais emblemático dessa iniciativa. A Tabela 6-3 apresenta os principais lançamentos da AmBev para o segmento de cervejas.

147

Iniciativas Descrição Nova versão da cerveja Skol dirigida ao público Lançamento da Skol Beats adulto jovem que se diverte nas baladas. Tem (2002) menor teor alcoólico e foi lançada em uma inovadora embalagem de garrafa de 330ml.

Lançamento da Bohemia Cerveja do tipo Schwarzbier de aroma com notas Escura (2002) de toffe, maltes torrados e espuma cremosa.

Mantiveram-se as mesmas características do Relançamento da Antarctica produto comercializado pela Cervejaria Adriática, Original (2003) porém houve uma renovação de sua identidade e novo posicionamento de mercado.

Lançamento da Bohemia Cerveja de trigo, naturalmente turva e refrescante, Weiss (2003) com aroma frutado e de especiarias.

Cerveja encorpada, tipicamente inglesa. Feita com Lançamento da Bohemia maltes especiais e lúpulos europeus que conferem Royal Ale (2004) cor acobreada, sabor marcante e paladar com notas de toffee.

Única cerveja com 0% de álcool do País. A Liber é produzida com tecnologia inédita na América Lançamento da Liber (2004) Latina, que inclui o uso de equipamentos especiais para a retirada total do álcool da bebida. Cerveja do tipo abadia, inspirada nas receitas e nos registros históricos dos mosteiros belgas. As garrafas eram produzidas de forma quase Bohemia Confraria (2005) artesanal, proporcionando um efeito visual de cerâmica, o que faz com que cada unidade seja exclusiva. Cerveja com composto de limão. Unia refrescância Skol Lemon (2006) e leveza, atributos valorizados pelos consumidores, principalmente em ocasiões de consumo diurnas. Chopp tipo pilsen escuro, com características inéditas: cremosidade extra e visual de cascata Chopp Brahma Black (2006) quando colocado no copo. O efeito é resultado do processo de fabricação especial, em que gás carbônico e nitrogênio são adicionados ao líquido. Lançamento exclusivo para os estados da Região Nordeste, para competir com a Schin. Cerveja Brahma Fresh (2007) pilsen refrescante, mais suave e de cor mais clara e brilhante do que a Brahma tradicional. Cerveja maturada em carvalho, inspirada no Bohemia Oaken (2008) processo de produção de vinho e uísque. Cerveja com um novo método de filtragem, a Antarctica Sub Zero (2009) menos 2ºC.

Tabela 6-3: Lançamentos da AmBev para o segmento de cervejas Fonte: Baseado em AmBev.

148

Paralelamente aos novos produtos, a AmBev sempre deu ênfase a novidades em termos de embalagens, mantendo a tradição da Skol de pioneira nesse tipo de estratégia que, após comprovação de sucesso, é replicada nas demais linhas de produtos. Trata-se, assim, de um exemplo da presença do serviço empreendedor da versatilidade na AmBev, já que a empresa sempre busca nova soluções de embalagem que fujam à maneira tradicional de se pensar a venda de cervejas e que, dessa forma, contribua para ampliar as vendas mediante a criação de novas situações de consumo dos seus produtos. A Tabela 6-4 exemplifica essa versatilidade da AmBev no que se refere a embalagens.

Embalagens Descrição

Brahma edição especial de Garrafa com rolha, semelhante ao champanhe. Ano Novo (2001) Lançamento da Skol Big Neck Embalagem inédita no Brasil: uma garrafa de 500 (2004) ml com tampa de rosca e boca mais larga.

Lata que conserva a cerveja gelada por muito mais tempo, graças a uma tecnologia de isolante térmico inédita no Brasil que impede a passagem do calor Skol Geladona (2006) externo para o líquido. Utiliza a tecnologia Cool2GoTM*, desenvolvida e patenteada pela DuPont. Novidade da Skol para o verão, o rótulo vinha com uma seta transparente que se torna azul a partir Rótulo termossensível (2006) dos 4°C e mostra quando a cerveja está na temperatura ideal para o consumo. Pack com 28 latas e alça para manuseio, colocado no mercado especialmente para a Copa do Mundo Skol Redondaço (2006) para os torcedores assistirem aos jogos com os amigos.

Pack Skol c/ 18 latas (2007) - Lata de 269 ml com sensor termossensível, que gela mais rápido e avisa quando a cerveja está Skol redondinha (2008) pronta para beber. Comercializada também em Pack de 15 latas. Skol Litrão (2008) Primeira garrafa de 1 litro retornável do país.

Pack Skol 24 latas (2008) -

Versão latinha, com um formato moderno e 269 ml. Comercializada em um fridgepack com oito Skol Beats em lata (2008) unidades, uma embalagem prática que o consumidor pode colocar direto na geladeira.

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Relançamento de 11 rótulos históricos na coleção comemorativa dos 120 anos da marca – Latas Brahma edição de aniversário Centenárias. Ainda nas comemorações, foi lançada (2008) uma garrafa especial de fim de ano, ―Brahma Celebration‖, com formato similar ao de uma garrafa de champagne, fechada até com rolha. Brahma Litrão + packs 18 e 14 - latas (2008) Stella Artois: lata e litrão Lata de 269 ml e garrafa de 1 litro. (2008) A Antactica também lançou a sua embalagem de Antarctica 1 litro e latinha um litro a ―BOAZONA‖ e a latinha 269 ml no Rio de (2009) Janeiro.

Nova identidade visual e uma garrafa long neck Revitalização Bohemia (2009) proprietária, com shape exclusivo.

Tabela 6-4: Novas embalagens da AmBev para o segmento de cervejas Fonte: Baseado em AmBev.

No segmento de bebidas não-alcoólicas, o objetivo é o mesmo: incluir novos produtos de maior valor, possibilitando maiores margens para o negócio, como foi o caso do Gatorade, que passou a ser fabricado e distribuído pela AmBev em 2002 através de concessão da Pepsico. Além disso, a empresa também prioriza a criação de novas embalagens que ampliem as situações de consumo dos produtos. Paralelamente, busca aumentar sua presença nos PDVs e diluir custos gerais de vendas e de distribuição dessas bebidas, capturando as sinergias existentes com as operações de cervejas. Cerca de 50% dos produtos originam-se de fábricas mistas que, por engarrafar cerveja e refrigerantes, apresentam muitas oportunidades de sinergias de produção.

Utilizamos nossas fortes marcas de refrigerantes e outras bebidas para maximizar nossa eficiência em distribuição, e para aumentar nossa posição de liderança nos pontos-de-venda. Quanto mais produtos temos nos pontos-de-venda, mais eficientes somos na redução dos custos de distribuição. (AMBEV, 2003, p. 17)

Apesar de o Guaraná Antarctica ser uma marca importante de refrigerantes, o crescimento desse segmento baseia-se principalmente na parceria com a Pepsico, que conferiu à AmBev um portfólio completo de bebidas não-alcoólicas, incluindo: o guaraná mais vendido do país (Antarctica); a segunda marca de sabor cola do mundo (Pepsi); o chá gelado mais vendido do mundo (Lipton Ice Tea); e o isotônico líder mundial (Gatorade).

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De acordo com a parceria, a AmBev é responsável por produzir e distribuir os produtos da Pepsico tanto no Brasil quanto nos demais países em que tenha operações (contanto que não houvesse outro engarrafador já estabelecido). Se, por um lado, essa parceria ampliou significativamente a importância das bebidas não- alcoólicas para as vendas da empresa, por outro lado pode significar a presença do serviço empreendedor do julgamento (PENROSE, 1959), na medida em que demonstra a preocupação da cervejaria em reduzir os riscos associados à comercialização de produtos próprios que não sejam capazes de competir efetivamente com os principais lideres de suas categorias. Outra forma possível de se enxergar esse aspecto pode ser como uma demonstração de renúncia à inovação, optando por concentrar-se naquilo em que considera sua competência principal: a execução. Para a AmBev, o mais importante é ter um produto de melhor posicionamento e de reputação comprovada do que gastar energia para tornar um produto próprio bem sucedido. E a empresa não se preocupa em eliminar um produto existente caso haja outro que tenha desempenho melhor. Foi o caso, por exemplo, do isotônico Marathon, desenvolvido na década de 90 e que foi eliminado quando a AmBev obteve da Pepsico o direito de produção e distribuição do Gatorade. A Tabela 6-5 apresenta os principais lançamentos da AmBev para o segmento de bebidas não-alcoólicas. Observa-se que as ações da AmBev se concentram em variações de produtos existentes e novas embalagens, sendo as novidades em termos de produtos decorrentes sempre da Pepsico.

Produtos/ Embalagens Descrição Provenientes da AmBev

Guaraná com uma dose extra de guaranina, substância que agrega ao produto energia. Lançamento do Guaraná Zon Refrigerante energético que combinava a fórmula (2004) original do Guaraná Antarctica com um conteúdo energético especial extraído do fruto do guaraná.

Garrafa PET 2,5 litros (2005) -

Edição limitada para a Copa do Mundo que Guaraná Antarctica Seleção combinou o sabor do guaraná com um toque de (2006) frutas, diferenciando-se ainda pela coloração rosada.

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Garrafa PET 1,5 litros (2006) -

Baseado em um dos principais atributos do Guaraná Antarctica: a refrescância de um produto Guaraná Antarctica Ice (2007) genuinamente brasileiro com seu sabor único e autêntico.

Picolé Guaraná Antarctica Lançado em parceria com a Kibon. (2007)

Maior do mercado e desenvolvida para o consumo Garrafa PET 3,3 litros (2007) de famílias.

Refrigerante de guaraná de baixa caloria. Extensão Guarah (2008) de linha do Guaraná Antarctica.

Sukita Uva (2008) Refrigerante de uva.

Refrigerante de laranja com aroma de maça, Sukita Vitaminada (2009) mamão e banana.

Provenientes da Pepsico Isotônico líder mundial, incorporado em 2002 Incorporação do Gatorade ao mediante concessão da Pepsico. A AmBev, porém, portfólio de produtos (2002) foi obrigada pelo CADE a se desfazer da marca Marathon, seu antigo isotônico. Lançamento da Pepsi Twist Refrigerante tipo cola com suco de limão. (2002)

Energy Cola que mistura o sabor da Pepsi com as Lançamento da Pepsi X (2003) propriedades de uma bebida energética. Primeiro refrigerante energético do mundo. A AmBev beneficiou-se da nova garrafa PET desenvolvida pela PepsiCo e coordenou seu lançamento no mercado brasileiro. Essa nova Nova Garrafa PET 2l da Pepsi embalagem de dois litros requeria muito menos resina PET do que a garrafa anterior, resultando em uma significativa redução nos custos de produção. Bebida sabor limão, sem açúcar e levemente gaseificada, lançada em parceria com a Pepsico. H2OH! (2006) Novos sabores e embalagens foram lançados posteriormente. Lançada na Argentina, no Uruguai e no Estado do Pepsi Max (2006) Rio Grande do Sul, era uma versão da tradicional cola com o máximo de sabor e zero caloria. Gatorade (novos sabores e Sabores inéditos (Açaí-Guaraná) e novas embalagens) embalagens plásticas e TetraPak 200ml. Lipton Ice Tea: sabor chá - verde (2007) Refrigerante zero açúcar, com sabor mais próximo Pepsi Twist 3 (2008) ao da versão original e apenas três calorias do suco natural de limão. Extensão da linha Gatorade, é uma bebida sem Propel (2009) calorias e com vitaminas.

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Bebida à base de suco com gás, comercializada na Frutzzz (2009) Região Sul.

Tabela 6-5: Iniciativas da AmBev para o segmento de bebidas não-alcoólicas Fonte: Baseado em AmBev.

Outro exemplo de que a AmBev deu continuidade à forma de empreender desenvolvida pelo Banco Garantia na CCB foi o seu processo de internacionalização. Em apenas cinco anos, a cervejaria brasileira se tornou efetivamente uma Companhia de Bebidas das Américas, estabelecendo operações em 14 países nas três regiões do continente. O Gráfico 6-4 demonstra isso através do aumento da participação de operações internacionais na receita líquida da empresa.

25000

20000

15000

América do Norte

Hila

10000 Outros - Brasil

Refrigenanc - Brasil Cervejas - Brasil

5000

0 1999 2000 2001 2002 2003 2004 2005 2006 2007 2008 2009

Gráfico 6-4: Evolução da composição da receita líquida da AmBev (R$ Milhões) Fonte: Baseado em AmBev.

Complementarmente, a Tabela 6-6 apresenta em detalhe os movimentos de expansão internacional da AmBev.

153

Iniciativas Descrição

Segunda maior cervejaria uruguaia, com participação de mercado de 20%, e líder do Aquisição da Companhia mercado local de águas minerais, com participação Salus (2000) de 42%. A compra englobou duas unidades fabris, uma de água e outra de cerveja e refrigerantes. Dona das marcas de cerveja Norteña e Prinz, detinha market share de 19,7%. A Cympay também dispunha de 8% de participação do Aquisição da Cerveceria y mercado água mineral, por meio de sua controlada Malteria Paysandu S.A. Fuente Matutina S.A. A Cympay era dona de uma (Cympay) (2001) fábrica de malte, que aumentou em quase um terço a capacidade de produção da matéria-prima da AmBev. Com a compra, as instalações da cervejaria Aquisição do parque paraguaia foram reformadas e a fábrica, com industrial da Cervecería capacidade de 300 mil hectolitros anuais, passou a Internacional (2001) produzir as marcas Brahma e Ouro Fino. Maior cervejaria da Argentina, Bolívia, Paraguai e Uruguai, além de competir no mercado chileno. A Aquisição da Quilmes compra criou a terceira maior operação comercial Industrial S/A (Quinsa) (2002) de bebidas do mundo, com 10 bilhões de litros anuais em 2002. Principal engarrafadora da Pepsi na América Joint venture com a Central Central, com operações na Guatemala, Honduras, American Bottling El Salvador e Nicarágua. Contou ainda com a Corporation (CabCorp) (2002) construção de uma fábrica, a Cerveceria Rio, que entrou em operação em setembro de 2003. Conferiu à AmBev a franquia da Pepsi nas regiões Aquisição de ativos de de Lima e Norte do Peru, que representavam mais produção e distribuição da de 80% do mercado, e duas unidades industriais, Embotelladora Rivera (2003) com capacidade de produção estimada de 630 milhões de litros anuais. Construção de fábrica no Iniciada em 2003 e concluída em 2005. Peru (2003) Segunda maior cervejaria do Equador. Com a operação, a AmBev obteve acesso às modernas Aquisição da Cerveceria instalações de fabricação de cerveja em Guaiaquil, SurAmericana (2003) maior cidade do Equador e principal mercado de cervejas.

Engarrafadora exclusiva da PepsiCo na República Aquisição da Embotelladora Dominicana e principal no Caribe, e a maior Dominicana CXA (Embodom) fabricante de refrigerantes da República (2004) Dominicana.

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Principal cervejaria no mercado canadense, no qual Incorporação da Labatt detém uma participação de mercado de 43%. Sua Brewing Company Limited incorporação se deu em função da fusão da AmBev (2004) com a cervejaria belga Interbrew.

Tabela 6-6: Iniciativas da AmBev para a sua expansão internacional Fonte: Baseado em AmBev.

Pode-se observar na tabela acima que a maior parte da internacionalização da AmBev se deu através de aquisições, com exceção das fábricas no Peru e na Guatemala. Segundo a própria companhia, a estratégia de atravessar fronteiras estava baseada na capacidade de penetração em mercados nos quais existisse um potencial muito promissor para os seus produtos, possibilitando o incremento do EVA da empresa (AmBev, 2001). Nesse sentido, devido à proximidade e à maior semelhança com o mercado brasileiro, a AmBev optou por mercados na América Latina, particularmente aqueles caracterizados por forte concentração de participantes, onde acreditava que, após adquirir grandes players de mercado, suas vantagens competitivas em execução poderiam ser um fator de conquista de espaços importantes. Outro aspecto da internacionalização da AmBev é que a empresa optou por adquirir outras engarrafadoras da Pepsi espalhadas pelas Américas, tendo em vista possíveis sinergias com as operações brasileiras de refrigerantes e, além disso, o aproveitamento de sinergias de produção e distribuição para o lançamento da marca Brahma nesses mercados. Atualmente, a AmBev é a maior engarrafadora da Pepsico no mundo.

[...] conferiu à AmBev a franquia da Pepsi nas regiões de Lima e Norte do Peru. Essas regiões representam mais de 80% do mercado e esperamos que a plataforma de distribuição da Pepsi facilite o lançamento de nossas marcas de cerveja no país. (AMBEV, 2004, p. 14)

O processo de internacionalização da AmBev mostra que, novamente, o intuito da companhia é simplesmente fazer uso de forma limitada do seu motor de crescimento contínuo inercial, aumentando quantitativamente a produção dos mesmos tipos de produtos, só que agora em outros mercados além do brasileiro. É por essa razão, inclusive, que a empresa tem como prioridade a redução de custos e

155

a excelência na execução, pois acredita que é daí que se origina a sua vantagem competitiva. Desde a sua criação, a AmBev enfatiza o aprimoramento do processo de distribuição, com quatro frentes de atuação: substituição de revendas por distribuição direta; desenvolvimento de canais específicos com margens altas; desenvolvimento de uma rede multi-marcas de distribuidores; e melhoria da execução no PDV. A Tabela 6-7 resume as principais iniciativas da AmBev para o aprimoramento da distribuição.

Iniciativas Descrição

Aplicado em grandes centros consumidores onde a Substituição de revendas por escala das operações justificasse a mudança distribuição própria economicamente.

Para clientes com margens altas (bares Desenvolvimento de canais especializados em cerveja) ou volumes altos de distribuição específicos (escolas de samba)

Em vez de redes exclusivas para cada uma das Desenvolvimento de rede três principais marcas, houve a consolidação em multi-marcas de redes multi-marcas comercializando todo o portfólio distribuidores da AmBev. A mudança valeu tanto para a distribuição direta quanto para as revendas.

Uso da tecnologia para apoiar a tomada de Melhoria na execução no PDV decisão, bem como para a geração de folga de tempo dos vendedores.

Tabela 6-7: Iniciativas da AmBev para o aprimoramento da distribuição Fonte: Baseado em AmBev.

Outro movimento importante da AmBev se refere ao fato de cada vez mais se integrar verticalmente para frente, passando a atuar também no varejo e comercializar seus produtos diretamente para os consumidores finais. Nesse sentido, a cervejaria dá mais um exemplo do que Penrose (1959) chama de versatilidade, não só por ampliar as possibilidades de lucro da companhia, mas por ter sido a pioneira dentre as grandes cervejarias brasileiras a pensar maneiras criativas e pouco óbvias de oferecer serviços que ampliem o consumo de seus produtos e aumentem a geração de receita para a empresa. As duas iniciativas nessa área estão apresentadas na Tabela 6-8.

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Iniciativas Descrição

Sistema para tirar chopp Brahma gelado nas casas dos consumidores para festas e reuniões, Lançamento do Chopp utilizando um barril de 12 litros. Iniciativa voltada Express (2001) para ampliar o consumo residencial, que ainda era baixo.

Franquia de chopp voltada especialmente para Lançamento do Quiosque shopping centers, aeroportos e outras áreas Chopp Brahma (2003) públicas.

Tabela 6-8: Iniciativas da AmBev para a sua integração vertical Fonte: Baseado em AmBev.

Ao final de 2009, eram mais de 700 franquias do Quiosque Chopp Brahma no Brasil, tornando a marca Brahma a 3ª maior franqueadora do país. O volume de venda por loja é duas vezes superior à média do mercado de chope. Já o Chopp Brahma Express ganhou um show-room em 2005 que proporcionava uma experiência total da marca aos consumidores. No final daquele ano, já se transformara no maior ponto-de-venda de chope na cidade de São Paulo. Em 2006, o serviço de entrega em domicílio da bebida e do equipamento contava com sete lojas no Brasil.

6.2.1.2 Desafio de navegar no ambiente

Ao longo de sua história, a AmBev fez uso de diversos tipos de respostas estratégicas sugeridas por Oliver (1991), buscando ajustar-se a situações que estivessem fora de seu controle, moldar o ambiente e neutralizar pressões, de forma aderente à defendida por Fleck (2009a). A aprovação da fusão da CAP e da CCB foi um exemplo claro da capacidade da AmBev de navegar no ambiente, já que houve muita resistência e questionamentos à validade da operação, tanto por parte de competidores quanto de outros órgãos reguladores. A empresa, porém, resistiu proativamente às exigências sugeridas pelos atores institucionais, muitas das quais significavam a inviabilidade do negócio. Isso ficou explícito quando se opôs publicamente aos pareceres da SEAE do Ministério da Fazenda (recomendação de venda da Skol) e da SDE do Ministério da

157

Justiça (recomendação de venda de uma de suas três mais importantes marcas de cerveja — Brahma, Antarctica ou Skol). Mais do que se posicionar contrária à posição dos dois órgãos reguladores, a AmBev partiu para o ataque, adotando um misto de estratégias de confrontação e de manipulação. Por um lado, a empresa rejeitou as propostas de restrição sugeridas, não se limitando a ignorá-las, mas empenhando-se para desmerecer ou condená-las – tática que Oliver (2001) define de ataque. Por outro lado, buscou alterar a natureza das pressões, de forma a torná- las as mais benéficas possíveis, aproximando-se diretamente do então Presidente Fernando Henrique Cardoso e de Ruy Coutinho, Secretário de Direito Econômico (JARDIM, 1999), numa tática evidente de cooptação e influência, para que obtivesse o seu apoio à aprovação do negócio. Não se obteve acesso ao conteúdo das conversas, mas o desfecho do processo mostra que a AmBev conseguiu aquilo que queria: em comparação com os primeiros pareceres, a decisão final do CADE foi muito mais branda do que se imaginava. A própria empresa afirmou que as restrições não eram capazes de restringir a fusão.

Tão logo o presidente do Cade, Gesner Oliveira, cercado por um batalhão de fotógrafos e repórteres, anunciou na noite da quinta-feira 30 a autorização para a incorporação da Antarctica pela Brahma, os presidentes das duas empresas, Victorio De Marchi e Marcel Telles, se lançaram a uma comemoração discreta. Em alguns momentos, tentaram até amenizar o resultado, criticando as ―restrições pesadas‖ impostas no relatório aprovado. Não enganaram ninguém. A vitória da AmBev foi esmagadora, proporcional, aliás, ao poder de fogo que terá no mercado. A megacompanhia, com ativos de R$ 8,1 bilhões e 50 fábricas em quatro países, nasceu muito mais musculosa do que os sonhos mais otimistas dos próprios executivos poderiam indicar. (LÍRIO, 2000)

Ainda que a CAP tivesse investido intensamente na marca Bavaria, a empresa não alcançou os resultados esperados: seu market share caiu de 7,3% em 1998 para 4,1% em 2000, demonstrando a decadência da marca. Juntas, Kaiser, Schincariol e Bavaria teriam, no máximo, 27% do mercado, enquanto a AmBev se tornaria responsável por 70%. Além do mais, as cinco unidades de produção a serem vendidas faziam parte da lista de plantas que a AmBev pretendia desativar: em alguns casos, a tecnologia estava ultrapassada; em outros, os incentivos fiscais concedidos pelos Estados estavam chegando ao fim (LÍRIO, 2000).

158

Após a aprovação da fusão, a AmBev passou a adotar outro padrão de resposta ao desafio de navegar no ambiente. Se antes assumiu uma postura proativa, agora precisava se adequar às exigências do CADE de forma a garantir a sua legitimidade e estabilidade, numa tática semelhante ao que Oliver (1991) define como de conformidade. A Tabela 6-9 apresenta as principais restrições do CADE.

Decisão do CADE Venda da marca Bavaria no prazo de oito meses, com a transferência dos contatos de fornecimento e distribuição da cervejaria. O comprador não poderá ter participação acima de 5% do mercado de cerveja.

Venda de cinco fábricas da Antarctica e da Brahma com capacidade Restrições total de 709 milhões de litros, também no prazo de oito meses, principais localizadas em Getúlio Vargas (RS), Ribeirão Preto (SP), Cuiabá (MT), Salvador (BA) e Manaus (AM).

A AmBev deverá compartilhar, por quatro anos, sua rede de distribuição com cinco pequenas empresas (com até 5% de participação de mercado), uma em cada região. A nova empresa fica proibida de desativar fábricas por um período de quatro anos. Se quiser se desfazer de uma unidade durante este prazo, terá de vendê-la a terceiros.

Deverá ser mantido o nível de emprego anterior à fusão. Em caso de demissão conseqüente de programas de reestruturação, a AmBev terá de oferecer cursos de qualificação e realocação profissional aos trabalhadores. A fábrica da Antarctica de Ribeirão Preto deverá ser equipada antes da venda, passando a oferecer também envasamento em latas. Restrições adicionais A AmBev terá de compartilhar sua rede de distribuição com os compradores da Bavaria e das outras cinco fábricas por um período de quatro anos, renovável por mais dois anos.

A AmBev não poderá obrigar a venda exclusiva de seus produtos nos pontos-de-venda.

A Empresa assinará com o CADE um termo de compromisso de desempenho com metas de redução de custos e ganhos de eficiência que devem ser cumpridas por um período de cinco anos, sob pena de pagamento de multa.

Tabela 6-9: Medidas impostas pelo CADE para compensar os custos econômicos da criação da AmBev Fonte: Higuthi, 2002.

Em maio de 2000, a AmBev assinou convênios com o Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial (Senai) e o Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas (Sebrae) para requalificação de funcionários. O primeiro ficou

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responsável pela elaboração de cursos de atualização e requalificação profissional, e o segundo pela realização de cursos de desenvolvimento de novos empreendedores. Os termos dos convênios tiveram aprovação do CADE, e foram orientados e supervisionados pelo Ministério do Trabalho e Emprego (MTE). No mês de junho, a AmBev contratou o banco de investimentos norte- americano Donaldson, Lufkin & Jenrette Securities Corp. (DLJ), especializado em fu- sões e aquisições no mercado mundial. O grupo passou a cuidar do processo de negociações da venda da marca Bavaria e das fábricas. No final de julho, já havia 10 companhias estrangeiras interessadas na marca, entre elas a (SAB) e a Anheuser-Busch. A melhor proposta foi apresentada pela Molson Inc., cervejaria líder no mercado canadense com 45% de participação e 24º lugar no ranking mundial. As negociações foram concluídas em novembro de 2000 e a marca Bavaria foi vendida à Molson Inc. por US$ 213 milhões, dos quais US$ 98 milhões foram pagos no fechamento do negócio e o restante condicionado ao desempenho da companhia. As cinco unidades produtivas foram entregues pela AmBev em plena operação, que investiu cerca de R$ 17 milhões para a venda, cumprindo a determinação do CADE. No acordo, a AmBev se responsabilizou pela distribuição da Bavaria por um período de 10 anos. Apesar de manter a liderança do mercado brasileiro de cervejas com grande vantagem em relação aos demais concorrentes, a AmBev levou um susto com o crescimento das cervejas Nova Schin e Itaipava em meados da década atual. Sua liderança caiu para os menores valores desde a sua trajetória (67,2% em 2003 e 66,2% em 2004), sendo que cada ponto percentual representa aproximadamente 100 milhões de dólares em receitas anuais (ONAGA, 2007). Diante da ameaça, a empresa partiu para o ataque às duas concorrentes. Por um lado, adotou uma postura proativa em relação a uma das questões mais sérias da indústria de bebidas no Brasil: a evasão fiscal. Como mencionado na seção 4.2.3 (―Práticas Ilegais‖), a companhia, em conjunto com a Receita Federal, foi pioneira na adoção do Sistema de Medição de Vazão (SMV), que permitia o acesso a qualquer momento aos números de produção, sem conhecimento das empresas.

Encontramos um ambiente de preços mais saudável no Brasil em 2004. Ficamos particularmente satisfeitos com a iniciativa de longo prazo que desenvolvemos em conjunto com o governo federal e que culminou, durante o ano, com a bem-sucedida implementação de medidores de vazão no

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mercado brasileiro de cerveja. Essa medida deve permitir que o governo federal arrecade cerca de R$700 milhões adicionais de impostos por ano, ao mesmo tempo em que elimina descontos artificiais no segmento das cervejas, subsidiados pela evasão fiscal. (AMBEV, 2005, p. 18)

O sucesso da medida foi tamanho que levou à sua adoção também no segmento de refrigerantes, cachaça e água em 2007.

Estamos entusiasmados com a instalação de medidores de vazão nas indústrias de refrigerantes, que passa a ser obrigatória em setembro de 2006. Da mesma forma como aconteceu na indústria de cerveja, os equipamentos tornarão mais justa a competição no setor, reduzindo a pressão de descontos de competidores informais. (AMBEV, 2006, p. 12)

A AmBev sempre fez lobby junto aos órgãos governamentais para o aumento do controle fiscal no setor de bebidas. A razão para essa postura foi que tanto o Grupo Schincariol quanto a Cervejaria Petrópolis conseguiram crescer e se tornar importantes players do mercado brasileiro fazendo uso de práticas ilegais para o não pagamento de tributos, o que permitia a aplicação de preços bastante inferiores à cervejaria líder. Enquanto isso, a AmBev agia em conformidade com a lei, chegando a ser a quinta maior empresa privada do país em pagamento de impostos. Vale lembrar que ela recolhe os impostos por muitos bares, já que quase nenhum é pessoa jurídica (ENTREVISTADO #3).

Olha, não conseguimos competir com a Schincariol e a Petrópolis porque elas faziam uso de nota fria. Por isso que possuíam um preço muito inferior aos nossos. Não dava para competir: a gente pagava todos os impostos, e eles não. Tanto que, no final dos anos 90/ início 2000, houve a mudança na lei do imposto de renda, propondo nova forma de cálculo. Foi uma iniciativa da Receita Federal em conjunto com as cervejarias. A questão era simples: os dois lados perdiam. Nós, porque competíamos em condições desfavoráveis, e a Receita Federal porque deixava de arrecadar. (ENTREVISTADO #10)

Acho que o risco de mercado é muito baixo; a AmBev é muito mais eficiente que os outros. Está há anos luz dos concorrentes em eficiência. Uma Schin, por exemplo, só consegue ter um custo mais baixo por benefício fiscal ou por sonegação. Tem muita gente que sonega. A AMBEV não tem como sonegar, é muito grande. Os caras da AMBEV não dão mole. A Assessoria Jurídica é muito forte, o lobby político é muito forte. (ENTREVISTADO #4)

Outra linha de ação foi o lançamento, em 2003, do programa de fidelidade ―Tô Contigo‖, através do qual distribuía prêmios e dava descontos aos bares participantes em troca da garantia da exclusividade nas vendas. Com a iniciativa, a

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AmBev garantia a disponibilidade e o giro de seus produtos nos PDVs, dominando o canal de distribuição com a força de seu portfólio. Todavia, diante da iniciativa, o Grupo Schincariol moveu processo contra a AmBev, denunciado que a cervejaria fazia uso de prática anti-competitivas, atuando de forma monopolista já que concentrava mais da metade do mercado brasileiro. A Schincariol argumentava que os bares viram-se forçados a aderir ao Tô Contigo para ter direito aos descontos oferecidos pela AmBev, em troca da exclusividade (ONAGA, 2007). Após mais de dois anos de análise, em maio de 2007, a Secretaria de Direito Econômico (SDE) do Ministério da Justiça recomendou que a empresa fosse condenada, argumentando que o programa era contrário às leis da concorrência, prejudicando o mercado de cervejas no Brasil. O processo foi enviado ao CADE com a recomendação de que a AmBev desse tratamento igual a todos os bares do país, independentemente de haver contrato de exclusividade de vendas (ONAGA, 2007). Mesmo a AmBev afirmando ter feito os ajustes recomendados pela SDE, o CADE confirmou a posição da SDE e declarou-a culpada em julho de 2009, sendo obrigada a pagar multa de 2% do seu faturamento bruto no ano anterior à denúncia e a cessar o programa (NETO, 2009). No total, o valor da multa foi de 352,6 milhões de reais, a maior multa já aplicada a uma empresa no Brasil até então, considerando-se não só o CADE como todos os demais órgãos e agências reguladoras (BECK, 2009). Para chegar a essa conclusão, o CADE baseou-se em investigações da SDE, onde a ação correu nos três primeiros anos, e se valeu de uma pesquisa adicional realizada pelo IBOPE com PDVs atendidos pelo programa. A partir da análise, o CADE apontou três irregularidades na campanha de fidelidade da AmBev: a exigência de exclusividade ou de concentração de ao menos 90% das cervejas vendidas no estabelecimento; a proibição de exposição de material publicitário da concorrência; e a escolha criteriosa dos PDVs participantes – adimplentes que apresentassem as melhores vendas. Um dos prêmios adotados pela companhia, a redução do preço das cervejas, também não foi aceito pelo CADE. O depoimento de alguns entrevistados confirma a existência do Programa ―Tô Contigo‖ como uma prática institucionalizada na AmBev, e de conhecimento de seus funcionários.

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Eu era responsável direto pelo programa de fidelidade da empresa – o ―Tô Contigo‖. Eu tinha que monitorar todos os vendedores, todos os supervisores, todos os gerentes de vendas; a quantidade de estabelecimentos que estavam relacionados ao Tô Contigo. Eu tinha que cumprir uma meta do Tô Contigo e tinha que cumprir uma meta de volume de cada estabelecimento relacionado ao Tô Contigo. Então, eu tinha que ficar em cima de gerentes e vendedores, monitorando se eles estavam batendo as metas ou não, e desenvolver relatórios para o Diretor Regional. (ENTREVISTADO #4)

Era um plano de fidelização em que o vendedor dava um livro ao dono do bar e, de acordo com a regra, alcançando tantos pontos se ganhava uma geladeira, e com outros tantos se ganhava uma televisão. Mas, para ganhar esses pontos, só podia comprar AmBev, porque do contrário nunca ia bater a meta e ganhar os prêmios. E o pessoal que é dono de bar, boteco, é meio ignorante, pobre, e imagina ganhar uma TV de plasma gigantesca. (ENTREVISTADO #1)

O que acontece é que, principalmente os donos de bar que ficam atrás do balcão, são pessoas mais simples, então eles não fazem questão de dinheiro em troca. Se você vier com uma idéia boa (―Eu te dou 3 geladeiras, jogo de mesas, letreiro‖), você faz uma propaganda gatruita para a AmBev e ao mesmo tempo agradando o cliente e trazendo retorno. Só que eu só te dou isso tudo se você tirar a Coca-Cola e só trabalhar com as minhas marcas, se você for 100% exclusivo. Quando teve a fusão, o CADE proibiu a AmBev de negociar exclusividade com os donos de PDVs. Foi uma das imposições da fusão. Daí, o que eles fizeram foi criar um programa para burlar a regra e ao mesmo tempo ter o cliente exclusivo. Foi aí que criaram o Programa de Fidelidade. Que é o seguinte: a cada caixa de cerveja de 600ml (a maioria dos bares do Brasil vende garrafa de 600ml), um ponto. E você vai acumulando pontos e os trocando por prêmios. Você troca por televisão, viagem, jogos de futebol (Sky com jogos do Brasileirão). E, ao mesmo tempo, na hora em que se fecha o termo de adesão, o dono de bar fecha uma exclusividade verbal com a AMBEV, já que não pode colocar esse requisito no papel. E como a equipe de vendas está o tempo inteiro na rua e o trabalho é muito de parceria e eles conhecem os PDVS muito bem, isso é normal, é na palavra mesmo e funciona. (ENTREVISTADO #3)

O CADE entendeu que a AmBev estava consciente da ilegalidade de seu programa e que agiu de má-fé, adotando mecanismos que visavam dificultar a descoberta da operação pelo órgão regulador (NETO, 2009). O processo poderia ter sido atenuado se, durante os cinco anos em que a ação correu na SDE e no CADE, a AmBev tivesse apresentado um Termo de Compromisso de Cessação da Prática (TCC). A companhia só apresentou seu parecer na véspera do julgamento, o que, mesmo permitido por lei, não foi visto com bons olhos pelos conselheiros da instituição, considerando uma demonstração de falta de compromisso da empresa com a resolução do problema Por esses motivos, a multa inicial de 1,5% do faturamento bruto foi aumentada para 2%.

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Além do processo movido pela Schin, a AmBev enfrentou outros três processos na SDE. Um deles, aberto pela Kaiser, alegava as mesmas práticas anti- competitivas informadas pela Schincariol no caso já julgado. Em outro, a cervejaria reclamava do lançamento das marcas ―Puerto do Sol‖ e ―Puerto Del Mar‖, que trazia um posicionamento e identidade muito semelhante à recém-lançada Sol, outra marca do Grupo FEMSA, detentora da Kaiser, supostamente com o objetivo de confundir o consumidor e prejudicar o lançamento da concorrente. A AmBev retirou as marcas denunciadas do mercado brasileiro após uma imposição do Superior Tribunal de Justiça, acionado pela FEMSA. Outro caso ainda em investigação pela SDE é a adoção de uma nova garrafa de vidro de 630 ml que traria em alto relevo o logotipo da AmBev. Como é comum a utilização de um único modelo retornável de garrafa de 600 ml bastante semelhante, as concorrentes alegavam que a adoção da nova garrafa para as marcas Bohemia, no Rio Grande do Sul, e Skol, no Rio de Janeiro, prejudicava a livre concorrência. Segundo a denúncia dos representantes em 2008, entre eles a Kaiser, a concorrência não poderia reutilizar a embalagem e pagaria mais caro por garrafas novas, além de ter um custo adicional de separá-las das demais. Por outro lado, o pedido das concorrentes infringia o direto de inovar da AmBev. Diante do que foi mencionado, as evidências mostram que a AmBev passou a fazer uso de sua força econômica e da posição de liderança no mercado brasileiro de bebidas para exercer controle sobre um dos stakeholders mais importantes – os varejistas – numa estratégia claramente semelhante ao que Oliver (1991) chama de manipulação. Os concorrentes logo se mexeram, passando a atuar de forma mais agressiva na guerra que se constitui no mercado brasileiro pela presença nos PDVs (ver item 5.3.1). Além disso, recorreram aos órgãos reguladores para frear a AmBev, que não permitiram a manutenção de práticas dessa natureza, não só proibindo-as, mas também aplicando penalidades à empresa. A reação da AmBev foi típica do que Oliver (1991) define como estratégia de confrontação, questionando a posição dos órgãos reguladores e dos concorrentes, não aceitando as restrições com facilidade. O caso da multa de 352,6 milhões de reais, por exemplo, ainda está em aberto, com a AmBev e o CADE duelando nas instâncias judiciárias do país pela manutenção ou anulação da decisão.

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Segundo um entrevistado, o programa de fidelidade ainda funcionava quando saiu da empresa em 2008. Outra pessoa que saiu da AmBev em 2009, porém, afirmou que o programa não mais existia nos moldes antigos, mas que é natural haver uma negociação entre vendedores e donos de PDVs por um relacionamento exclusivo, como fazem as companhias aéreas.

O Programa Fidelidade já não existe há mais ou menos dois anos. Eu escutei nitidamente ser dito, em TV interna, que não existe mais. Nunca foi cobrada exclusividade no programa, não existe esse termo. Orientava-se, claro, e aí é questão de mercado. A gente tá vendendo, estamos batalhando por um mercado com consumidores que têm limite de compra, então o PDV tem que escolher de quem ele vai comprar. A idéia de qualquer programa de fidelidade é estimular o cara, de alguma forma, a ser fiel a você, a continuar comprando mais e em maior quantidade os seus produtos. Vale para a TAM, a Gol, a AMBEV, para qualquer empresa. Então, sempre o vendedor dizia: ―Poxa, cara, eu estou te oferecendo tudo isso, estou oferecendo esse programa em que você pode trocar por coisas, compra as minhas, por que você vai comprar as dele? O que ele está te oferecendo?‖ Era uma forma também de compensar um preço mais alto da AMBEV em relação à Schincariol. (ENTREVISTADO #2)

A grande diferença, porém, é que a companhia aérea não tem como monitorar as escolhas de compra dos consumidores, sendo complicado para descobrir se está viajando pelas concorrentes. No caso do varejo, isso é muito mais simples, pois as empresas estão constantemente em contato com os clientes. De qualquer forma, a divergência de opiniões só reforça a tese de que a AmBev não aceitou a posição do CADE e de que resiste à suas decisões.

6.2.1.3 Desafio de gerir a diversidade

A gestão da diversidade está no cerne de um processo de fusão, já que é necessário integrar culturas, processos, ferramentas e sistemas de trabalho com o mínimo possível de conflitos e focos de resistência. A despeito do caráter positivo ou negativo das ações empreendidas, observa-se que a AmBev soube gerenciar a diversidade inerente à fusão, evitando uma possível fragmentação. Em primeiro lugar, houve a preocupação em se criar o que Fleck (2009a) define como mecanismos de integração, tanto para conduzir o processo de fusão quanto para a gestão dos principais negócios da empresa. Em relação à integração, foram criadas forças-tarefas compostas por membros da CAP e da CCB que,

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conjuntamente, planejaram e executaram as ações necessárias. Esse fator, associado à imparcialidade dos critérios para escolha do que seria mantido, facilitou a cooperação entre as equipes e garantiu a transparência do processo. Assim como já havia acontecido na CCB, foi criada em 2000 uma divisão independente de Refrigerantes e demais bebidas não-alcoólicas, segregando integralmente as operações de refrigerantes das operações de cerveja e reforçando seu foco no mercado nacional de bebidas. A divisão era responsável por traçar políticas e estratégias próprias, focando em produtos premium, e utilizando a estrutura de produção e logística propiciada pela AmBev. Além disso, para fazer frente à crescente complexidade das operações no exterior e buscando preparar-se para os próximos passos de internacionalização, a AmBev criou em 2000 uma Diretoria de Operações Internacionais, responsável pelas atividades de exportações e pelas operações de bebidas e malte no Exterior, como já ocorria na Argentina, no Uruguai e na Venezuela. Apesar dos fatos mencionados acima, o aspecto que mais chama a atenção na AmBev em relação à gestão da diversidade é o esforço de homogeneização de práticas e processos de trabalho. Tal prática esteve presente em todos os momentos da empresa, seja na integração da CAP e da CCB ou nos movimentos de expansão internacional. A integração entre a CCB e a CAP foi marcada pelo predomínio do estilo de gestão da primeira sobre a segunda, salvo pouquíssimas exceções. De fato, os principais elementos da estratégia introduzida pelo Banco Garantia na CCB foram replicados e disseminados na nova cervejaria. No que se refere à gestão de recursos humanos, a política de remuneração variável agressiva, sustentada por um Sistema de Medição e Avaliação de Metas, foi mantida, juntamente com o modelo de partnership (programa de aquisição de ações para funcionários de alto desempenho). Além disso, outras duas iniciativas desenvolvidas na década de 90 na CCB também foram preservadas: (i) a Universidade Brahma, que se tornou Universidade AmBev, mantendo o propósito de integrar todos os esforços de desenvolvimento e aprendizagem da companhia; e (ii) o Programa Trainee da Brahma, que se tornou o Programa Trainee AmBev, mantendo as mesmas características (requisitos, etapas, mecanismos de avaliação,

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envolvimento da Diretoria, dentre outros) do processo de recrutamento e seleção de talentos desenvolvido pelo Garantia. Outra prática da CCB que foi replicada para toda a AmBev e existe até hoje foram os programas de excelência, que contêm um conjunto de regras, procedimentos, ferramentas e métodos de gestão que visam aprimorar os resultados das unidades de negócio. Havia (e ainda há) dois programas internos de incentivo à qualidade de gestão, com o objetivo de motivar e comprometer os profissionais com a melhoria dos processos e da produtividade: o PEF (Programa de Excelência Fabril) e o PEV (Programa de Excelência em Vendas). O PEF foi desenvolvido com o objetivo de medir, orientar e motivar todos os empregados, por meio de regras claras no que se refere à excelência do sistema de gestão fabril, considerando-se tanto os resultados como os meios para alcançá-los. O PEF estabelece uma classificação das melhores unidades, que são reconhecidas e recompensadas por seus esforços. Já o PEV foi criado para orientar, medir, reconhecer e motivar os funcionários das áreas comerciais, dos Centros de Distribuição Direta e dos núcleos regionais de marketing também no que se refere à excelência gerencial. O PEV estabelece uma base padrão para operação nas unidades de negócios da AmBev. Uma característica importante dos dois programas internos de excelência é que a avaliação do desempenho das unidades e a construção do ranking final são feitas pelas próprias unidades participantes que, no fundo, estão rivalizando pelos melhores resultados. Ou seja, uma unidade é tanto avaliadora de outras unidades quanto avaliada por outras unidades, havendo, assim, um estímulo à competição interna.

Todos esses programas são dedicados a maximizar a eficiência, e as unidades competem entre si para atingir o maior número de pontos com base no cumprimento de determinados procedimentos. Os funcionários das unidades vencedoras de cada programa recebem uma remuneração extra, e, caso uma unidade atinja o maior número de pontos mais de três vezes, ela recebe o título de ―Embaixadora‖. Além de motivar pessoas e parceiros- chave, os programas de excelência dão apoio efetivo a nossas iniciativas de redução de custos. (AMBEV, 2004, p. 16)

Além desses dois programas, foi mantido o Programa de Excelência em Revendas (PEX), criado em 1992 a partir do modelo desenvolvido pela Anheuser- Busch para ser um instrumento de capacitação e profissionalização da rede de

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distribuição da AmBev. Sua aplicação permite à AmBev avaliar, orientar e motivar os revendedores, buscando sempre melhores resultados, crescimento na participação de mercado e maior lucratividade. Todas as práticas, processos e ferramentas implementados nas atividades brasileiras foram replicados para os negócios no exterior, na medida em que a empresa executou seu processo de internacionalização. A maior evidência da preocupação com a gestão eficiente e integrada das novas operações foi o estabelecimento de uma nova estrutura administrativa em 2004, quando foi designado um Diretor Geral para cada uma das novas Unidades de Negócios da companhia: Brasil, América Latina Hispânica (HILA) e América do Norte. Ou seja, a empresa desenvolveu o que Fleck (2009a) chama de capacitação em coordenação, criando mecanismos de integração de seus novos negócios às operações brasileiras. Além da reestruturação mencionada acima, a AmBev sempre buscou construir vínculos e laços entre suas diferentes operações. Baseando-se em Fleck (2009a), a empresa o fez através do compartilhamento de recursos para os aspectos homogêneos e do intercâmbio de recursos para os aspectos heterogêneos. O compartilhamento de recursos ocorre de diversas maneiras. No campo da cultura, pode-se citar a busca interminável pela redução de custos e pela qualidade da execução nos PDVs. Quanto a produtos, há a inserção da Brahma em praticamente todos os países, com algumas variações de sabor, nome ou embalagem. Em termos de práticas, replicam-se os programas de excelência; a estratégia de consolidação da rede de distribuidores; os sistemas e equipamentos de apoio às vendas. Os trechos a seguir evidenciam esse esforço de disseminação daquilo que é desenvolvido no Brasil

Desenvolvemos processos proprietários e meios eficazes de replicar melhores práticas - que têm funcionado tão bem no mercado brasileiro - em nossa crescente rede de unidades industriais, sistemas de distribuição e negócios de bebidas em todas as Américas. (AMBEV, 2005, p. 6)

Maiores ganhos e vendas em toda a região da HILA durante o ano também podem ser atribuídos à implementação do programa para replicar em outros países as lições do nosso sucesso brasileiro. Isso incluiu o projeto para introduzir melhores práticas de gerenciamento em todas as operações da HILA extra-Quinsa, a partir da checagem de pontos tipo ―plano de vôo‖ que procurou assegurar o alinhamento com processos e práticas selecionados a partir de um benchmarking com as nossas experiências brasileiras. Também começamos a centralizar as funções administrativas da HILA, com

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a integração das suas unidades à rede central da AmBev, por meio do sistema de gestão SAP/R3. (AMBEV, 2005, p. 25)

A marca Brahma se renovou na Argentina em 2008 com o lançamento de Brahma Beats, uma nova proposta desenvolvida especialmente para a noite. (AMBEV, 2009, p. 26)

A Brahma Light foi a grande estrela em 2009 na República Dominicana. Ela ganhou o ―litrão‖ e a etiqueta termossensível. Em refrigerantes, nosso foco foram os lançamentos, visando manter nossa posição de vice-líder e crescer ainda mais no mercado. Lançamos H2OH! no país e novas embalagens como PET de 500ml (AMBEV, 2010, p. 33)

Já o intercâmbio de recursos heterogêneos ocorre principalmente através da ida de talentos da AmBev para assumir posições de liderança nas operações internacionais ou para somente apoiar as equipes locais na implementação dos métodos de gestão brasileiros. Para tal, no entanto, a empresa necessita de folga de recursos humanos e de uma resposta adequada ao desafio de aprovisionar recursos humanos já que precisa se antecipar a eventuais necessidades de movimentação de pessoas e garantir que não haja falta de pessoal qualificado nas posições envolvidas.

Uma das regras que permaneceu e que serve de combustível para o crescimento da AmBev é a de estimular o crescimento das pessoas à base do desafio. É uma prática levada ao extremo de colocar pessoas de 24 anos para tocar as operações da empresa em outros países. "A gente joga sempre um osso maior do que se pode morder", diz Telles. "Tem gente que adora isso, tem gente que fica assustado pra burro. Assustou, saiu." E qual o custo de colocar pessoas tão jovens, inexperientes, para tocar operações importantes? "Nós damos o suporte e eles aprendem rodando. A vantagem de formar alguém assim compensa os riscos." Hoje [2005], a maioria da diretoria da AmBev é formada por profissionais que começaram a operação da Brahma na Argentina, concorrendo com a Quilmes, a cervejaria dominante na época, que acabou comprada pela Brahma em seis anos de briga. (INSTITUTO EMPREENDER ENDEAVOR, 2005, p. 115)

Outro exemplo do intercâmbio de recursos humanos ocorreu quando a AmBev foi comprada pela Interbrew em 2004, formando a InBev. Em 2006, menos de dois anos após o negócio, Carlos Brito, antigo Diretor Geral da AmBev, tornou-se Presidente Mundial da InBev, assumindo a nova empresa juntamente com outros executivos formados na AmBev – dos 13 da cúpula da InBev, nove eram e ainda são brasileiros (CORREA, 2008).

O movimento protagonizado pela InBev já vem sendo chamado por pessoas próximas às empresas de reverse takeover – algo como aquisição às avessas. Trata-se de um evento incomum no mundo empresarial. Em geral,

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empresas compradas são simplesmente absorvidas pelos novos donos, que impõem o estilo de fazer negócios. Em casos raros, porém, prevalece a cultura considerada mais eficiente e capaz de entregar os melhores resultados aos acionistas. É justamente o caso da InBev, onde, apesar da trepidação interna, o estilo brasileiro gerou transformações positivas. (CORREA, 2005, p.1)

Um terceiro exemplo ocorreu em 2008, quando Carlos Brito enviou Luiz Fernando Edmond (ex-presidente da AmBev) e outros comandados brasileiros para comandar a incorporação da cervejaria norte-americana Anheuser-Busch, com a missão de eliminar custos, aumentar a eficiência e reduzir o endividamento da empresa a níveis considerados normais.

6.2.1.4 Desafio de aprovisionar recursos gerenciais

A gestão de recursos humanos da AmBev é organizada à semelhança daquela da CCB, mantendo as principais práticas desenvolvidas pelo Banco Garantia, como já mencionado no desafio de gerir a diversidade. É esperado que uma fusão de empresas acarrete na demissão de pessoas, já que se busca eliminar sobreposições e redundâncias. Esse fenômeno ocorreu na criação da AmBev, porém em grau muito menor do que na CCB, até porque havia restrição do CADE quanto a essa questão (passou de 18.500 em 1998 – soma da CCB e da CAP – para 18.136 em 2001).

Não se ouviu falar na época da fusão da Brahma com a Antarctica a respeito do número de pessoas a serem demitidas. Foi analisado qual o tamanho da empresa seria necessário para tocar a operação. Isso deu a medida da empresa, que eventualmente resultou em demissões. (INSTITUTO EMPREENDER ENDEAVOR, 2005, p. 116)

Todavia, se os funcionários da CCB já estavam acostumados com as práticas de trabalho que passaram a valer na AmBev, aqueles oriundos da CAP experimentaram uma mudança radical em relação à gestão conduzida pela cervejaria paulista, e nem todos se mostraram dispostos a aceitar ou se adaptaram à nova cultura e ao novo modelo de gestão.

Quando teve a junção das duas empresas, foi um rolo compressor em termos de cultura, porque a cultura que prevaleceu foi sem dúvida nenhuma a da Brahma. Até porque já tinha passado dessa primeira fase de Brahma

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pré-Garantia para pós-Garantia, e foi mais ou menos o que aconteceu: Brahma pós-Garantia assumindo e passando por cima da Antarctica ―pré- banco‖. Porque, com essa nova cultura, poucas pessoas conseguiram permanecer da época da Antarctica. Não suportaram a pressão, a correria, a busca por resultado. Não se adaptaram. Não é que sejam melhores ou piores, mas não se adaptaram à cultura. Então, assim, hoje são pouquíssimas pessoas de época de Antarctica que ainda permanecem na empresa. Foi um rolo compressor. (ENTREVISTADO #8)

Os que ficaram conseguiram resistir durante muito tempo a essa ―número, número, número‖, produtividade, custo, receita, no mínimo detalhe? Não, porque não estavam acostumados a isso. Mesmo os que ficaram. Começou a ter uma saída natural dessas pessoas: ou as próprias pessoas falaram que não queriam continuar e foram embora ou o próprio ambiente as expeliu porque não estavam performando da maneira que se desejava. Foi um movimento forte e eu diria até rápido. (ENTREVISTADO #8)

Mas a saída de funcionários, especialmente aqueles que vinham da CAP, não foi uma questão preocupante para a AmBev. O problema maior surgiu alguns anos após a fusão, quando passou a haver um desvirtuamento da cultura de resultados desenvolvida pelo Banco Garantia. O mesmo já havia acontecido na CCB, porém a repercussão do fenômeno na AmBev foi muito maior do que na antiga cervejaria, chegando aos principais veículos de comunicação e afetando a imagem da cervejaria. Então, aconteceu sim, o negócio andou meio solto durante um período. Isso [aumento dos processos trabalhistas] era pós-Garantia na Brahma, mas continuou acontecendo mesmo depois da fusão. Acho que até um pouco por causa dessa ansiedade de mostrar resultado, por ser uma nova empresa e etc. Então, isso chegou a acontecer muito também após a fusão. (ENTREVISTADO #8)

Sob vários aspectos, a AmBev é um exemplo de sucesso que pode inspirar orgulho da classe empresarial brasileira. Mesmo atuando num setor infestado de concorrência informal (gente que lucra muito porque não paga impostos), domina as vendas de cerveja no país com assombrosos 68% do mercado. Com todas as dificuldades brasileiras para se internacionalizar, está presente em 14 países. Essas conquistas são fruto de uma cultura especialmente agressiva na cobrança de metas e largamente compensadora para os bem-sucedidos. Analisada por seus números, a AmBev pratica, inegavelmente, um modelo de negócios vencedor. E, no entanto, é um modelo que está em xeque. (NEVES; CANÇADO, 2006, p.1)

Desde 2002, centenas de vendedores da AmBev foram à Justiça com a denúncia de que sofriam castigos por não cumprir metas de venda. Em entrevista à Revista Época em 2006, um vendedor de Porto Alegre afirmou que foi obrigado a entrar num caixão para ouvir os insultos do chefe e dos colegas de trabalho. Outro vendedor mineiro disse que era obrigado a fazer flexões de braço como forma de punição. Havia relatos semelhantes no país todo, representando o extremo a que

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pôde chegar a cultura da AmBev de grande informalidade no ambiente de trabalho e busca agressiva por resultados.

O curitibano Marcos Vinícius de Faria trabalhou na AmBev por dois anos. Ele diz que foi demitido porque não cumpriu as metas de venda. Em 2002, decidiu processar a companhia por assédio moral e horas extras não pagas. 'Além de trabalhar muito, era humilhado. Eu já fui obrigado a dançar na boquinha da garrafa de cerveja'.

Ronaldo diz que, enquanto trabalhou na AmBev, sua vida foi um inferno. Ele afirma que descontava o estresse do trabalho na família, e seu casamento quase acabou. Seu maior trauma eram os castigos por não-cumprimento de metas de venda. 'Era obrigado a atravessar um corredor polonês. Recebia insultos dos colegas e chefes.' Ronaldo já ganhou uma ação trabalhista contra a empresa. (NEVES; CANÇADO, 2006, p. 3)

O resultado desse processo foi a escalada no aumento do contingente reservado pela empresa para processos trabalhistas. Conforme o Gráfico 6-5, entre 2002 e 2004 ocorreu o aumento mais expressivo – de 131 milhões de reais para 309 milhões de reais – chegando ao seu ápice em toda a história da companhia.

350,00

309,00 300,00

278,4 273,3

249,5 250,00 245,50 226,3 211,08 200,00

Processos 150,00 trabalhistas (acumulado) 131,47

108,30 100,00 100,09

79,04

50,00

- 1999 (Pro 2000 2001 2002 2003 2004 2005 2006 2007 2008 2009 forma*)

Gráfico 6-5: Evolução do passivo trabalhista da AmBev (R$ Milhões) Fonte: Baseado em AmBev.

O problema foi reconhecido oficialmente pela Companhia. ―Isso foi uma distorção da nossa cultura‖, disse Marcio Fróes, gerente-corporativo de Gestão e

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Gente da AmBev, em 2006 (NEVES; CANÇADO, 2006). Um entrevistado que presenciou essa fase também reconheceu a questão, identificando dois motivos: a sobrecarga de trabalho e o assédio moral. Em sua opinião, por detrás dessas duas questões está a política de remuneração variável da AmBev. Por um lado, aqueles que se esforçam para receber o bônus e não o conseguem acabam tomados pelo sentimento de frustração. Diante disso, insatisfeitos com a empresa e acreditando que, no final das contas, poderiam ganhar mais em outro lugar, buscam a complementação que faltou através de processos trabalhistas.

O próprio modelo de remuneração, na parte variável (bônus), é muito agressivo. O que acontece: 60% das pessoas recebendo e 40% não recebendo variável. Só que quem recebe, recebe 5, 6, 7 ou 8 salários, e quem não recebe fica com zero. Então, muitas pessoas acabam desestimuladas na hora em que pegam um ano sem bônus. Até porque a remuneração-base é um pouquinho abaixo da média do mercado [...] e fica aquele sentimento de que poderia estar ganhando mais em outro lugar (pensando só no curto prazo). Isso é verdade, mas quando se pensa no longo prazo, deixa de ser verdade. Mas muita gente acaba sendo muito ―curto-prazista‖ e, por não receber o bônus, sai da empresa. E, normalmente, não sai muito contente (―não ganhei bônus, estou ganhando mal‖) e vai buscar essa complementação nesse tipo de coisa – hora-extra e outros argumentos que só se consegue via justiça. (ENTREVISTADO #8)

Quanto ao assédio moral, o entrevistado entende que algumas pessoas desvirtuam o ―ser agressivo‖, aceitando comportamentos e atitudes anti-éticas em função de um objetivo maior: o cumprimento dos resultados e a conquista do bônus.

O problema é que algumas pessoas desvirtuavam o ―ser agressivo‖. Você pode ser agressivo em termos de busca de resultados sem agredir fisicamente, sem ter que humilhar. Porém algumas pessoas começaram a desvirtuar que o ―ser agressivo‖ era atingir o resultado independente do método utilizado. Assim, gerava-se esse tipo de coisa: botar sapo ou caveira na mesa do supervisor que melhor performasse naquele dia ou naquela semana, ou um bobo ou palhaço, coisas desse tipo. Então, isso sim aconteceu em um determinado momento; as coisas andaram desvirtuando por esse caminho. (ENTREVISTADO #8)

Esse meu chefe falava: as pessoas na AMBEV às vezes confundem liberdade com libertinagem. Libertinagem na forma de tratar. O pessoal perde a noção: falta com respeito, xinga. (ENTREVISTADO #3)

Tomando como base o argumento de Barnard (1938) de que a vitalidade da organização está na disposição dos indivíduos para cooperar, conclui-se que a AmBev se encontra diante de uma ameaça à sua integridade, pois as evidências

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sugerem que muitas pessoas só estão dispostas a cooperar até o momento em que recebem a remuneração variável. Ou seja, a sustentação da integridade da AmBev é muito frágil, já que se baseia numa política de remuneração variável que, em sua origem, preza a segregação entre as pessoas, premiando o sucesso de uns através da punição aos demais. De 2005 para cá, observa-se uma mudança da postura da AmBev, dando a entender que a empresa percebeu a ameaça à sua imagem. Naquele ano, foi a primeira vez que o tema ―qualidade de vida‖ foi tratado com destaque pela empresa em seus Relatórios Anuais. A empresa lançou o Programa Vida Legal, que tem os objetivos de estimular hábitos saudáveis, desenvolver ações preventivas de saúde e incentivar o tratamento de doenças crônicas entre funcionários e seus familiares. Mais do que a qualidade de vida dos funcionários, a empresa também busca a redução de gastos com despesas de saúde.

Além de melhoria na qualidade de vida, vamos economizar 15% nos gastos anuais com assistência médica – e esses recursos serão convertidos em outros benefícios, como bolsas de estudo. (AMBEV, 2006, p. 44)

No mesmo ano, a AmBev lançou o Programa de Contratação de Profissionais com Necessidades Especiais, iniciativa com o intuito de ser estímulo à diversidade e à inclusão social. O programa foi acompanhado por um processo de conscientização e mobilização, que despertou também o interesse de unidades de fora do Brasil, como Equador e República Dominicana. Foram feitas parcerias com entidades especializadas em recrutamento de portadores de necessidades especiais, adotando-se os mesmos critérios de seleção e remuneração usados para os não- portadores de deficiência. Na área de segurança, a empresa mantém desde então um Plano Diretor de Segurança para que as Comissões Internas de Prevenção de Acidentes (CIPA), a área de Serviço Especializado de Segurança e Medicina do Trabalho (SESMT) e os gerentes e supervisores estejam constantemente envolvidos no tema. As unidades fabris e os centros de distribuição são regidos pelas Diretrizes de Segurança e Saúde Ocupacional, que trata, entre outros itens, de permissão para trabalhos de risco, inspeções de rota, bloqueio de energia, e exigências mínimas de segurança para prestadores de serviço.

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Eu era a dona da minha revenda, eu andava para onde quisesse, mandava em todo mundo, falava o que não estava bom. E no dia seguinte da venda, que virou AMBEV, eu não podia entrar no armazém. Era regra da empresa: só entra no armazém se estiver com os equipamentos de segurança. Vivi ali por 3 anos e não tinha nada daquilo. Mudaram desde coisas básicas até um mundo de preocupação com a segurança das pessoas, a forma com que o líder fala com você. Qualquer pessoa que tenha sido da revenda e que tenha sido incorporada falará com brilho nos olhos, porque se sai de uma realidade péssima e vai para algo que parece um sonho. É muito forte. (ENTREVISTADO #5)

Nas áreas de Vendas e Distribuição também é realizado o Paz no Trânsito, programa que busca garantir a integridade física dos profissionais, gerenciar os índices de segurança e reduzir os acidentes de trânsito. Desde que foi criado no Brasil, em agosto de 2003, o Programa foi fundamental para o alcance de cerca de 70% de redução do número de acidentes com afastamento na Companhia. O depoimento de um funcionário da área de Gente & Gestão confirma essa preocupação com a qualidade de vida e saúde dos trabalhadores, especialmente de níveis mais inferiores.

Hoje, um cara passou no cone e esbarrou. Na segunda tentativa, esbarrou de novo. Aí a gente perguntou se ele estava legal, e ele disse que agora ia conseguir. Aí passou na última vez, e disse: ―Pô, sacanagem me fazer voltar, viu‖. Daí, a minha chefe disse: ―Cara, eu estou preocupada contigo. Quem vai cair da moto é você, não sou eu. Quem vai se machucar é você‖. Aí ele disse: ―É mesmo, né. Você se importa comigo de verdade. Eu sinto que vocês se importam comigo de verdade‖. Depois ele saiu e nós ficamos todos felizes, porque esse é o nosso maior objetivo. É óbvio que eu tenho meta em cima disso, todo mundo tem meta e tal, mas não é só pela meta. Dizem que a gente tem lavagem cerebral; pode até ser de uma forma inconsciente, mas é uma mensagem muito verdadeira. (ENTREVISTADO #5)

Apesar dos avanços, a análise dos depoimentos dos entrevistados mostra que a questão da qualidade de vida ainda permanece controversa. Os que acreditam que o trabalho na empresa é compatível com qualidade de vida são pessoas que demonstram lidar melhor com o ambiente de pressão, tendo clareza em relação às exigências da empresa e renúncias que precisam ser feitas para ser bem sucedido no seu modelo de gestão, especialmente quanto ao modelo de remuneração variável.

É possível ter qualidade de vida dentro da AmBev. O ponto é que o variável é uma coisa fora do padrão de mercado. Você só vai receber se entregar

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algo a mais do que deveria entregar. Então, isso é uma questão de querer ou não. (ENTREVISTADO #8)

Mas é uma pressão que chega a ser prazerosa; a gente vicia na pressão. A minha rotina mensal passa pelos primeiros quinze dias de pressão a ponto de eu não conseguir respirar, e os últimos quinze dias são muito tranqüilos. Eu tenho a minha rotina das coisas que eu tenho que fazer e dos prazos de entrega. Os primeiro quinze dias são enlouquecedores, mas a gente não percebe. O meu horário é das 8hs às 18:30 – quando necessário, chego às 6, 7hs da manhã (mas também quando preciso, posso chegar às 11; não tem problema nenhum) – e às vezes eu saio às 21, 22hs e não vejo a hora passar. É impressionante: você não vê a hora passar. É muito trabalho, mas a gente tem todas as ferramentas para aquele trabalho; se não tiver, a gente cria. Então, não é um desespero a ponto de você ficar anotando no papel as coisas sem saber como dar conta de tudo. Você vai dar conta, só que eu estou pedindo um pouco mais do que você pode me dar. Se eu deixasse, você faria um trabalho em dois dias, mas eu quero em um dia, pode ser? É um mega desafio, mas é um desafio bom de se vencer. Você acha que não consegue e vai lá e faz. Dá prazer ser mega desafiado. E nós somos muito desafiados. (ENTREVISTADO #5)

Para aqueles que acreditam ser impossível estar na AmBev e ter qualidade de vida, os argumentos vão desde a necessidade de trabalhar nos fins de semana até ter que mudar de base constantemente.

É difícil ter qualidade de vida dentro da AmBev. Eu acho que é uma questão de escolha e necessidade. Tem gente que precisa trabalhar, tem família para sustentar e não tem como sair. E há pessoas que têm como e escolhem isso: ―Quero virar sócio da Companhia antes dos 30 anos e, então, vou trabalhar pra caramba e abrir mão de um monte de coisa por causa disso‖. Eu acho difícil, e foi por isso que saí. Não quero necessariamente ser sócia da companhia antes dos 30 anos, mas óbvio que quero trabalhar em algo que me dê prazer. Mas eu acho que é uma empresa que tem uma política que valoriza as pessoas, que reconhece bons resultados. Eu acho que isso faz parte de uma empresa de pessoas. É claro que pode não ser bem executada em toda a operação, até porque é uma operação muito grande. Mas não é assim: tira as pessoas e que se danem. (ENTREVISTADO #6)

Eu acho que eles ainda não conseguiram a forma de atingir os resultados e as metas que eles querem com qualidade de vida. Não conseguiram ainda. Quando eles conseguirem isso, aí a empresa vai bombar mais ainda. Por exemplo, no meu emprego atual eu tenho qualidade de vida. Não me incomodo em trabalhar muito, contato que eu tenha tranqüilidade. Lá na AMmBev não, é muita pressão. Houve uma vez eu que eu trabalhei das 7 da manhã até as 6 da manhã do dia seguinte. Teve um ano em que eu não trabalhei só 9 sábados, de tão pesado que foi. (ENTREVISTADO #3)

Com relação aos casos de assédio moral, os entrevistados afirmaram que houve uma mudança na postura da AmBev, que passou a não tolerar mais qualquer tipo de constrangimento a funcionários.

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Depois que as ações trabalhistas começaram a tomar vulto maior, isso não só atrapalhou resultado, mas também imagem. Na hora em que se percebeu isso, foram feitos vários treinamentos e acompanhamentos. Atualmente, é feito um acompanhamento de perto desses casos fora da curva justamente para evitar que aconteçam. Isso aconteceu no passado, mas esses casos foram tratados para que não voltassem a acontecer. E sempre que isso acontece, as pessoas que fazem, de uma maneira ou de outra, são punidas por terem feito algo. Então, aconteceu sim, o negócio andou meio solto durante um período. (ENTREVISTADO #8)

Eu trabalhei três anos e meio chamando um cara de índio, porque é assim que ele gosta de ser chamado, e não posso fazer isso na AMBEV porque amanhã ou depois ele pode entrar com um processo dizendo que o chamavam de índio. É uma preocupação grande e forte em respeitar os limites das leis trabalhistas e do entendimento do funcionário. Então, se aquele cara se sentiu humilhado, isso já é um motivo para um processo trabalhista. Então, não vou humilhá-lo de forma alguma. (ENTREVISTADO #5)

Eu nunca vi. Eu acho que existe um esforço muito grande de não deixar esse tipo de coisa acontecer nunca mais. Eu acho que é um pouco de gestões passadas que acabam interpretando mal a cultura da empresa. Existe a cultura da empresa de querer resultados melhores, lutar por isso, e cada um vai interpretar da forma que entender. Se não tem um cara vendo aquilo e achando errado, o negócio vai acontecer. Isso é muito mais na parte de Vendas; na parte de fábrica não existe muito essa coisa. Porque em Vendas, o motivacional é muito importante. Quer dizer: é importante de um modo geral, mas lá é muito mais forte. Eu sempre ouvi falar, mas nunca presenciei nada disso. Nenhum tipo de humilhação. Acho que é uma coisa meio mito, que as pessoas ouviram falar, mas nunca viram. (ENTREVISTADO #6)

Mesmo agindo de maneira proativa para eliminar ou aliviar os focos de tensão existentes no passado, criou-se um mito altamente nocivo à integridade da AmBev. Para muitos entrevistados, entrar com um processo trabalhista se tornou comum, em função de uma visão compartilhada por muitas pessoas de que acionar a justiça do trabalho contra a empresa é vitória garantida. Dessa forma, surgiu praticamente um negócio paralelo à empresa: de um lado, funcionários insatisfeitos e com pouco compromisso com a companhia, e de outro, advogados em busca de clientes e oportunidades de fazer negócios.

Tem muito processo trabalhista em cima da AMBEV. Colocar um processo trabalhista em cima da AMBEV é quase garantido ganhar muito dinheiro. Para citar um caso emblemático: na saída do CDD, em final de ano, tem advogado na porta entregando cartãozinho de advogado trabalhista dos funcionários. Já aconteceu isso comigo. Já recebi cartão de advogado trabalhista para processar a AMBEV. E isso acontece com todos os tipos de nível hierárquico. (ENTREVISTADO #1)

É isso mesmo. Sempre ganham. Especialmente os mais antigos. Quando eu saí, o passivo trabalhista só na Regional RJ era de 24 milhões de reais. Na época em que eu saí. E tem que separar o dinheiro, é contingência

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tributária. Mas pensa o seguinte: são 24 milhões, e eles conseguem enrolar por uns 5, 6 anos cada um. Eles já ganharam esses 24 milhões facilmente. (ENTREVISTADO #5)

Tais problemas, no entanto, parecem não afetar os jovens recém-formados que estão em busca de oportunidades profissionais. E a maior prova foi o Programa Trainee da AmBev em 2009, que contou com quase 60.000 candidatos, praticamente o dobro de 2008, quando 32.000 pessoas participaram do processo. Ao final, somente 26 jovens foram selecionados, o que resultou num recorde de 2310 candidatos por vaga. Segundo Amorim (2009), nenhum outro processo de seleção na iniciativa privada ou na esfera pública é tão concorrido no Brasil. A disputa por uma vaga na AmBev supera concursos públicos, como o da Polícia Federal, um dos mais disputados do país, com 192 candidatos por vaga. É também maior do que o vestibular de medicina da Universidade de São Paulo.

6.2.1.5 Desafio de gerir a complexidade

O primeiro desafio da AmBev em relação à gestão da complexidade foi a tomada de decisão para a implementação da fusão entre a CAP e a CCB. Durante o processo de aprovação pelo CADE, aproximadamente 100 funcionários da CCB e da CAP desenharam as futuras operações da AmBev, definindo pessoas, processos e objetivos que seriam adotados para garantir a efetiva integração das cervejarias no prazo desejado. Ou seja, diante da necessidade de se analisar e solucionar problemas de alta complexidade e compostos de variáveis interdependentes, a tomada de decisão se deu de maneira antecipada, estruturada e sistemática.

Uma coisa interessante é que foram montados grupos de trabalho em logística, sistemas, RH e etc para ver o que tinha de bom e ruim em cada uma das empresas. Os grupos eram formados por pessoas das duas empresas, trabalhando juntas para, das duas operações, identificar qual era a melhor e poder garantir que a melhor, independente da empresa, fosse mantida. Tanto que algumas coisas da Antarctica ficaram – o sistema SAP, por exemplo, ficou. Não é que só da Brahma era bom. Uma série de coisas da Antarctica também eram boas e acabaram permanecendo. (ENTREVISTADO #8)

Outro aspecto importante desse processo foi a definição de três regras básicas para subsidiar a tomada de decisão da equipe:

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 Toda decisão deveria criar o maior valor possível para os investidores;  Seriam selecionados os melhores processos em cada área de cada Companhia; e  Os melhores profissionais assumiriam a direção dos negócios. Portanto, mesmo se tratando de uma aquisição (da CAP pela CCB), um aspecto importante do processo de integração foi o trabalho conjunto entre as equipes das duas cervejarias, baseado no princípio de que a adquirente não deveria impor sua vontade à adquirida, mas sim definir em conjunto aquilo que seria melhor para a nova empresa. Exemplo maior dessa postura foi o fato de a Presidência do Conselho de Administração da AmBev ter sido ocupada por um representante de cada empresa: Marcel Telles, por parte da CCB, e Victório de Marchi, da CAP. Mesmo refutando a idéia de aquisição, Jorge Paulo Lemann reconhecia essa abordagem igualitária:

A fusão da Antarctica com a Brahma foi realmente uma fusão, os principais dirigentes da Antarctica fazem parte do conselho da AmBev em condições equitativas com nossos representantes, nos damos muito bem, a integração tem funcionado. (NETO, 2001, p. 9)

Um entrevistado que participou do processo também reconheceu o trabalho conjunto e a imparcialidade com que foi desenvolvido, especialmente quando à questão das demissões:

O planejamento de demissões foi completamente diferente [do que ocorreu na Brahma]. Pusemos todos os pares das duas empresas, organizados por área, e começamos a definir o que era melhor para cada área. Foi um trabalho conjunto, sem nenhum tipo de imposição da Brahma. Houve muito mais transparência nesse processo em comparação com o da Brahma. (ENTREVISTADO #10)

No final, porém, a cultura da CCB acabou se impondo em relação à da CAP.

Sem querer melindrar ninguém, a cultura da Brahma era mais agressiva, mais forte. E, no tocar dos negócios, tem sido a predominante. Entretanto, a idéia é dar oportunidade às pessoas, não importa de onde venham, se da Antarctica ou da Brahma; simplesmente, quem é bom tem oportunidade, tem lugar para crescer. É assim que vemos a coisa e estamos todos lá tentando construir uma empresa excepcional, de longa duração, de grande sucesso em termos brasileiros e mundiais. (NETO, 2001, p. 9)

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Assim como na CCB, sempre houve uma preocupação constante com a tomada de decisão dentro da AmBev. As próprias metas (individuais ou corporativas) servem como um balizador para os funcionários, que têm a noção exata dos objetivos a cumprir e dos critérios a utilizar na tomada de decisão. O uso do EVA como critério fundamental de decisão, por exemplo, garante a geração de valor para os acionistas. Há também a preocupação com a coleta de dados para subsidiar a tomada de decisão, especialmente com o desenvolvimento ou aquisição de sistemas informatizados. Na área logística, a empresa desenvolveu um sistema próprio que cruza informações dos 550 distribuidores, 45 centros de distribuição e 38 fábricas da AmBev no Brasil, além de 350 diferentes itens de estoque (versões de embalagens das diversas marcas de bebidas). Esse sistema inteligente de malha logística analisa todas as variáveis de previsão de vendas, custo e produção regional e aponta a melhor alternativa de atendimento aos pedidos das áreas de vendas e distribuição. No que se refere à gestão da distribuição, a AmBev utiliza um sistema informatizado para levantamento de dados e cruzamento de informações sobre cada PDV, capaz de permitir uma execução mais eficiente de roteiros de venda e de entrega. Os avanços nas tecnologias de apoio aos vendedores para a execução no PDV também demonstra que facilitar a tomada de decisão é algo importante para a empresa, independente do nível das atividades. Além de sistemas, existe o cuidado em preparar as equipes para a solução de problemas. É o caso, por exemplo, do programa Seis Sigma, metodologia utilizada pela AmBev desde 1999 e que busca a redução do número de defeitos nos processos industriais, administrativos e de vendas. Para a sua execução, são desenvolvidos programas de formação de Green Belts e Black Belts, envolvendo profissionais de diferentes áreas da empresa que aprendem a solucionar problemas crônicos e complexos com a ajuda de análises e ferramentas estatísticas. Os Green Belts são selecionados e treinados para resolver problemas de curto prazo. Já os Black Belts são capacitados para implementar o Seis Sigma e recebem uma carga de treinamento de dois anos. A questão do foco na execução é um aspecto importante da cultura da AmBev que impacta na sua capacidade de gerir a complexidade. Em função dessa

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máxima, alguns entrevistados sugeriram que a empresa opta por investir naquilo que acredita ser realmente a sua maior competência e que faz a diferença: distribuição e logística. Analisando os Relatórios Anuais, verifica-se um destaque a sistemas que de apoio a decisões de marketing e a sistemas que permitam a otimização de custos e aumento da produtividade.

Um estruturado sistema de inteligência de mercado e o uso de técnicas de marketing e comunicação que permitem a nossas marcas tornarem-se referências – até mesmo ícones – e avançarem na preferência dos consumidores. Nossas pesquisas de mercado vão além de identificar hábitos de consumo, expectativas de consumidores e novas oportunidades de crescimento de volumes. (AMBEV, 2009, p. 11)

Uma conseqüência direta desse fato é que há uma resistência da AmBev a investir em sistemas integrados de gestão que sejam mais robustos ou atendam a toda a organização. E como os sistemas existentes muitas vezes não são capazes de oferecer as informações da maneira que as áreas precisam, existe uma tradição de se trabalhar em paralelo com o software Microsoft Excel para solucionar as demandas internas. O funcionário AmBev é conhecido como especialista em fazer macros, ou algoritmos que permitem a execução de funções de acordo com as necessidades do usuário.

É Excel na veia. Você vê coisas lá de Excel...eu fiquei profissional em Excel lá. E o Excel é uma ferramenta poderosa. Eles dão treinamento em Excel para os funcionários, até e-learning. Eles fazem coisas no Excel que eu não imaginava. Você abra um programinha lá que não parece Excel, mas na verdade é um Excel na sua frente. Então, é praticamente gasto zero com sistema. Eu estou exagerando quando digo gasto zero, mas a maioria, principalmente na operação, é Excel na veia. (ENTREVISTADO #1)

É muito Excel. Muito, muito. Eles focam muito mais em desenvolver soluções internas porque, muitas vezes, não se paga comprar um sistema externo. Eu não sei até que ponto isso vale a pena, mas eu acho que tem pessoas bastante inteligentes lá em cima para tomarem esses tipos de decisão. Eles estão pensando em mudar e vão avaliando [....] assim, eu acho que eventualmente, e muito por causa da compra da AB, que é uma empresa extremamente automatizada na parte de operação, isso aos poucos vai vindo para cá. Mas acaba que é muito isso: são muitas soluções de Excel, porque na AmBev tudo é gigante e, então, você trabalha com um zilhão de dados. Todo mundo lá é macreiro – faz macro para lá e para cá – e acaba que se usa esse tipo de solução. E as pessoas compartilham. Por exemplo, o cara da fábrica de SP fez uma macro para fazer o controle de idade de produto, e ele compartilha com as outras unidades. Não tem, necessariamente, ferramentas bem desenvolvidas. Eu acho que acaba sendo caro para a AmBev porque as operações, apesar de serem razoavelmente homogêneas, têm muitas particularidades. Há, por exemplo, uma fábrica como a do Rio que é um monstro e outra que só tem uma linha

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de produção. Ao mesmo tempo em que muita coisa é igual, as operações são diferentes, têm complexidades diferentes. (ENTREVISTADO #6)

Se por um lado contribui para o desenvolvimento profissional do funcionário, já que se trata de uma habilidade importante nos dias atuais, esse uso descoordenado do Microsoft Excel leva muitas vezes a conflitos de informação, pois pode acontecer de uma área, que utiliza uma mesma informação que a outra, ter registros distintos, em função de ferramentas distintas de coleta e tratamento dos dados.

O fato é que existem muitos conflitos de informação. A pessoa pode gerar a sua própria informação, mas tem uma informação consolidada da AC que é diferente. Por exemplo, eu aqui na Regional digo que vendi 10.000 hectolitros de cerveja hoje, e a informação da Regional é outra. Muitas vezes, as bases são diferentes, então há muito conflito de informação, e isso gera um stress para a pessoa muito alto. Não sei se já foi resolvido ou não, mas estavam com um projeto para fazer uma base única de dados. Enfim, conflito de informação acontecia muito, e isso estressa muito a pessoa, especialmente quem era do financeiro e da área de vendas (o cara acha que vendeu tanto e na verdade não vendeu – é uma grande confusão). (ENTREVISTADO #1)

Além da incompatibilidade de informações, outro entrevistado que ocupou cargos gerencias em áreas de Tecnologia da Informação da AmBev mencionou que o foco na execução já levou à falta de controle e sistematização de informações em outras áreas da empresa. Para ele, isso explica em parte o problema do aumento do passivo trabalhista, pois a AmBev não dispunha de sistemas ou procedimentos que apoiassem a tomada de decisão sobre essa questão, ou que tampouco lhe dessem insumos para agir diante das acusações de assédio moral ou de não-cumprimento das leis trabalhistas brasileiras.

Como a Brahma sempre foi uma empresa de executar, boa em execução, era assim: planeja o básico, executa e o que dá errado vai lá e conserta para poder seguir. Então, não é tipo uma Unilever ou Shell da vida que passam 1, 2 anos planejando para estar com 100% dos riscos mapeados e, a partir daí, ter um percentual de insucesso menor. Lá é ao contrário: planeja 2 ou 3 meses, vai em frente e, o que der errado, vai acertando. Isso, portanto, gerou muita falta de controle de ponto, muita coisa se perdia, o arquivo não era muito bem organizado. E, quando se vai para uma reclamação trabalhista mal-embasado, a chance de perder é muito maior. Por isso que tinha muito essa lenda de que, se entrar contra a AmBev, ganha; porque a empresa estava desorganizada nesse sentido. ―Cadê o cartão de ponto? Não tem‖. Na verdade, o cara acaba exagerando, mas, no conceito, tudo isso era verdade. Podia ser mais ou menos horas, mas que tinha, tinha. Então, acabava ganhando. Mas aí, na hora em que se começou a mapear o problema, a empresa começou a organizar melhor o controle de

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jornada e outras coisas, como implementação de banco de horas, para evitar isso. Eu digo que é um outro ciclo: desorganização, pouco controle e etc geram problemas, despesas financeiras altas e riscos de imagem, e você começa a se organizar e a mitigar esses erros para evitar que aconteçam. Isso é fato. (ENTREVISTADO #8)

Apesar de confirmar as impressões acima, o mesmo entrevistado afirmou que a empresa iniciou há alguns anos um processo de mudança desse panorama. Para ele, o Centro de Serviços Compartilhados vem desempenhando papel importante na consolidação das informações.

Eu acho que esse movimento tem diminuído ao longo do tempo, mas é uma verdade. O Excel era muito usado. Você tem um SAP por detrás, mas o SAP não tem todos os relatórios necessários, e para tê-los seria preciso gastar um dinheiro monumental. Quando eu saí de lá, estavam implantando um BI (Business Intelligence) de uma empresa cujo nome não recordo, mas para tentar diminuir a questão de contas feitas por fora. Mas, na verdade, você tem os sistemas mães, que um é o SAP e o outro é o PROMAX. Este é do Sul, usado para as partes de vendas e faturamentos nos Centros de Distribuição, e com o qual os palmtops têm interface. E tem também outro sistema, o SAV, que é da parte de Vendas [....]. Tem uns 3 ou 4 grandes sistemas, cada um na sua área, e o Excel acaba puxando as bases de todos esses locais para fazer relatórios, análises, coisas diferentes, contas diferentes, tentar descobrir coisas. Por ser uma base de dados muito grande, ela sempre te diz alguma coisa; você só precisa interpretar o que está ali por detrás, e o Excel é muito utilizado para isso. Sem dúvida que, num primeiro momento, todo mundo quer mostrar serviço. Então, como é que você mostra serviço? Por exemplo, um macreiro não sei de onde que gera um relatório que, ao invés de demorar um dia para sair a informação, sai em 5 minutos. Isso aconteceu muito e, justamente vendo que isso estava começando a gerar desencontro de informações, começou-se também a se aglutinar quem tira as informações. Por exemplo, hoje, uma grande parte das informações, mesmo que sejam em Excel, são geradas no Centro de Serviços Compartilhados (CSC) que fica em Jaguariúna (SP). (ENTREVISTADO #8)

6.2.1.6 Gestão da folga organizacional

Um dos argumentos em defesa da aprovação da fusão entre a CAP e a CCB eram os ganhos de sinergia que poderiam ser obtidos com a transação, de mais de 500 milhões de reais. O alcance dessa meta, além de aumentar a eficiência das operações da nova empresa, liberaria recursos para futuros investimentos, especialmente num possível movimento de expansão internacional. O desafio era semelhante àquele que os executivos do Banco Garantia enfrentaram quando adquiriram o controle acionário da CCB: por um lado,

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aperfeiçoar o gerenciamento de receitas, e, por outro, buscar permanentemente uma maior produtividade, com minimização de custos. No que se refere ao gerenciamento de receitas, tendo em vista que a grande maioria dos consumidores decide o que consome dentro do PDV, na ocasião de compra, a execução no PDV era e ainda é um aspecto fundamental no reforço da preferência das marcas AmBev. Ciente disso, a empresa desenvolve duas linhas de ação:  Ativar as variáveis que aumentam a venda dos produtos dentro dos PDVs: merchandising, disponibilidade, refrigeração e precificação; e  Garantir sempre o melhor preço, para que, na visão do consumidor, os produtos sejam mais competitivos frente à concorrência. Para tal, o esforço central da empresa está no desenvolvimento de sua rede de distribuição direta e revendas, com o objetivo de manter o sistema de distribuição mais eficiente do País, otimizando o custo de atendimento a cada PDV. A grande iniciativa da AmBev, então, foi equipar seus vendedores com palmtops capazes de analisar a base de dados (market share, histórico de pedidos, estoques, tipos de embalagens, preço médio, dentre outros) de cada PDV a ser visitado, de forma a auxiliar no processo de negociação. Ao facilitar a venda, o uso de palmtops traz consigo outro ganho importante: dá mais tempo aos vendedores para ficar na rua vendendo, já que o computador de mão cuida de toda a complexidade das decisões de venda. Ou seja, é um caso em que o uso da tecnologia gera folga (no caso, homem-hora) que pode ser utilizada para a expansão das atividades da organização. Além disso, é uma forma de gerir a diversidade de formatos de canais de venda, tornando mais efetivo o processo de negociação.

E, na rua, eles [vendedores] fazem o processo de vendas completo, que está cada vez mais fácil por causa da tecnologia. O palmtop já sugere quanto deve vender em cada ponto de venda. Todo palmtop tem todos os pontos de venda que o vendedor tem que passar naquele dia, incluindo a sugestão de venda. Além disso, o vendedor anota o estoque do cara e coloca no sistema. (ENTREVISTADO #1)

O desafio de minimizar custos, por sua vez, sempre foi um aspecto fundamental da identidade ―Garantia‖, tornando-se um valor preconizado e seguido em todas as empresas controladas pelo Banco. Com a criação da AmBev, tal princípio se tornou ainda mais forte: a administração de custos é uma obstinação na

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AmBev, que busca se tornar um dos produtores de mais baixo custo do mundo (AMBEV, 2009). Em apenas dois anos de existência, a AmBev obteve aproximadamente 99% dos ganhos de sinergia previstos com a fusão, conforme a Tabela 6-10.

Eu diria que, em um ano e meio a dois anos, 95% das sinergias já estavam capturadas. Porque é diferente, por exemplo, do movimento da AmBev quando juntou com a Interbrew lá na Bélgica e formou a InBev. Nesse caso, você está falando de mercados complementares, pois um estava nas Américas e o outro na Europa. Você pode ter sinergia mesmo nesses casos, mas são menores e demora-se um pouco mais de tempo para capturá-las. Mas aqui, onde as operações eram nas mesmas cidades e mesmos locais, uma do lado da outra (até porque tinham que estar uma do lado da outra porque eram concorrentes), então foi mais rápido de eliminar e mais fácil de cortar. (ENTREVISTADO #8)

Ganhos Real % Real Real % Conquista projetados 2000 Conquista 2001 Total

Produção/ 273,7 91,3 33,4% 114,4 205,7 75,2% Industrial

Distribuição 105,8 31,8 30,1% 103,4 135,2 127,8%

Administrativo 49,5 34,9 70,5% 19 53,9 108,9%

Compras 15,0 14,5 96,7% 20,1 34,6 230,7%

Juros 60,3 19,6 32,5% 49,4 69 114,4%

Total 504,3 192,1 38,1% 306,3 498,4 98,8%

Tabela 6-10: Ganhos de sinergia (R$ Milhões) Fonte: AmBev, 2001 e 2002.

O processo de redução de custos se baseia principalmente no Orçamento Base Zero (OBZ) e no Custo Base Zero (CBZ), duas abordagens desenvolvidas no tempo da CCB que estabelecem, a cada ano, novas metas para o controle de despesas e custos, com o objetivo de ampliar as margens da empresa. Cada equipe é responsável pela administração de seu próprio orçamento e o alcance das metas é um dos itens de avaliação de desempenho e do programa de remuneração variável.

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Desde 2005, a AmBev é benchmark mundial em itens importantes na composição dos custos de produção, como é o caso da água (AMBEV, 2010). Em 2009, houve uma redução índice de consumo de água de 2,4 bilhões de litros, economia de água suficiente para abastecer, por um mês, uma população de 450 mil habitantes. Em março de 2009, a AmBev lançou um programa em referência ao dia mundial da água criado pelas Nações Unidas. O ―Mês de redução da água‖ resultou numa redução de 132.000 m3 de água durante o período do programa, o que representa R$1,2 milhão de economia no ano. Outro aspecto em que a empresa se destaca é o reaproveitamento de insumos, cuja origem remete à época da CCB. Em 2009, a AmBev reaproveitou 98,3% dos resíduos industriais na forma de subprodutos, que são tratados como negócio: a sua comercialização gerou uma receita de 78,8 milhões de reais nas operações no Brasil e no norte da América do Sul.

90 99,0%

80 98,0%

70 97,0%

60 96,0%

50 Receita com a venda de 95,0% subprodutos e resíduos

R$ MilhõesR$ 40 Reaproveitamento de resíduos sólidos do processo 94,0% produtivo 30

93,0% 20

92,0% 10

0 91,0% 2001 2002 2003 2004 2005 2006 2007 2008 2009

Gráfico 6-6: Evolução do reaproveitamento de insumos e receitas geradas Fonte: Baseado em AmBev.

Contribui ainda para a estratégia de eficiência em custo a decisão de produzir parte dos insumos consumidos. A AmBev é proprietária de cinco maltarias (uma no

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Brasil, duas na Argentina e duas no Uruguai), que fornecem parte do malte consumido na fabricação de cervejas, e ainda existe outra em construção no município de Passo Fundo (RS), que será a maior maltaria do Brasil, com capacidade para produzir 220.000 toneladas de malte. A empresa ainda mantém uma fábrica de vidro no Paraguai, uma fábrica de rolhas metálicas e outra de pré- formas de garrafas PET em Manaus (AM) e uma fábrica de embalagens de vidro em Campo Grande (RJ), além de quatro unidades de adjuntos sólidos (grits de milho, em Guarulhos e Cuiabá; flakes de milho, em Sergipe; e milho degerminado, em Corrientes). Os Centros de Serviços Compartilhados, localizados em Jaguariúna (SP) e em Ontário (Canadá), possibilitam economias em termos de despesas gerais e administrativas. A primeira estrutura foi criada no ano de 2001 em São Paulo, visando racionalizar as atividades operacionais administrativas, com a expectativa de ganhos de escala e de processos mais eficientes no curto prazo e a implementação acelerada de novas tecnologias no médio prazo. Em 2004, a AmBev montou estrutura semelhante em Ontário (Canadá), de forma a capturar economias em compras de matérias-primas e obter vantagens em negociações globais, sem contar a redução de gastos administrativos. As duas estruturas são compostas de funcionários fluentes em pelo menos dois idiomas, para que possam atender todas as operações da cervejaria espalhadas pelas Américas. Ao centralizar atividades como logística, recursos humanos e finanças, os CSCs permitiram que as unidades de vendas e produção pudessem atuar com mais foco na operação.

[O escopo do CSC incluía:] RH; Compras; Logística; toda a parte de ressuprimento das fábricas e dos CDDs; uma série de projetos são tocados por lá; contabilidade; contas a pagar e a receber; tudo isso é tocado centralizadamente. Só o que não dá para fazer sem ser na ponta, como algo que precisa do contato com o vendedor, fica nas Regionais. Mas o restante, tudo que dá para ser feito remotamente, é feito no CSC. (ENTREVISTADO #8)

[O início do CSC] Foi em 2002 mais ou menos. Começou devagarzinho, juntando algumas coisas, e, com o passar do tempo, foi cada vez mais juntando. Tanto que, quando eu saí de lá, eles tinham quase 1.000 pessoas trabalhando no CSC. Se você tem 1.000 num esquema centralizado, deveria ter, disparado, de 3.000 a 5.000 pelo Brasil. O ganho de escala foi absurdo. E não só o ganho de escala; mas o ganho na padronização de informações. Às vezes, sem dúvida nenhuma, é mais barato fazer no Excel, mas se você tem um cara só que faz para o Brasil inteiro, garante a uniformidade da informação e dos dados. (ENTREVISTADO #8)

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Tal mudança, porém, impactou a organização, especialmente as áreas operacionais, de outra maneira: com a centralização de determinadas atividades, reduziu-se a necessidade de manter equipes espalhadas por várias unidades, levando a um enxugamento dos quadros. A opinião de dois entrevistados que trabalharam em Unidades Regionais da AmBev sustenta a idéia. Outro entrevistado que ocupou cargos gerencias na AC, quando questionado se a criação do CSC explicava os quadros reduzidos das Unidades Regionais, confirmou a hipótese, argumentando inclusive que esse processo de enxugamento eliminou qualquer tipo de folga de tempo nas atividades operacionais.

Não tem folga, principalmente nos CDDs. A equipe é 100% enxuta. Na minha percepção, eu acho que vai diminuindo à medida que aumenta o nível hierárquico. O CCD é pancada, execução de trabalho 100% do tempo, não se pára um minuto. Em cima do CDD, tem a Regional, onde já tem uma folguinha para se pensar outra maneira de desenvolver coisas, como uma nova medição para o acompanhamento da Área de Vendas, mas que também é muito reduzida. Já na AC, eu só passei por lá uma semana e minha visita foi muito superficial, mas a percepção é de que existe sim gente lá pensando estrategicamente. Não sei se pensar estrategicamente pode ser considerado como folga, eu acho que sim. (ENTREVISTADO #1)

Eu acho que não tem muito tempo. É claro que tempo você gera. Se você entende que uma coisa é importante para o seu negócio, que você vai perder mais tempo – vai trabalhar no final de semana, seja lá o que for – vai criar um momento, vai priorizar. Agora, todo mundo prioriza as coisas lá, em todas as funções, é uma regra porque se trabalha muito, com equipes enxutas, muito reduzidas. Cada vez mais. Gente muito boa, mas equipes enxutas e com muito trabalho. Vendedor, por exemplo, tem uma rotina legal. Vou dizer que até supervisores e gerentes trabalham mais, mas vendedor ao menos tem hora para chegar e para sair. Trabalha muito na rua, com palmtop e de lá para cá, mas às quatro e meia está em casa e cada vez mais tem se forçado para que isso seja cumprido (chegam às sete horas da manhã). E sempre foi cumprido. Já os outros cargos gerenciais ficam até concluir suas tarefas. Um Gerente de Vendas, por exemplo, tem a rotina inteira de vendas durante o dia e, se quiser desenvolver algo novo, uma ferramenta, fica trabalhando de noite. Isso é muito comum. Muita gente fica lá de noite madrugando e desenvolvendo coisas que não tiveram tempo. (ENTREVISTADO #2)

Ao longo dos anos, a AmBev sempre intensificou os esforços para a captura das sinergias decorrentes das novas operações internacionais, impondo a esses negócios a mesma cultura de redução de custos e aumento de produtividade desenvolvida no Brasil. O caso da Quinsa foi o mais emblemático. Após a aprovação do órgão regulador argentino, a Quinsa e a AmBev conduziram um amplo processo de integração dedicado à fusão dos ativos de cerveja na Argentina, Paraguai e

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Uruguai. A combinação bem-sucedida das operações resultou em sinergias operacionais, que permitiram à recém-ampliada Quinsa obter um crescimento de 108% no EBITDA ainda no primeiro ano de operação. O sucesso da iniciativa, associado às expansões ocorridas em 2003, levou a AmBev a desenvolver um ―pacote de serviços‖ visando apoiar o desenvolvimento de novas operações de maneira eficiente. O pacote utilizava tecnologia que simplificava o processo de integração, permitindo que a AmBev atribuísse tarefas administrativas, a partir de qualquer uma de suas operações, aos seus Centros de Serviços Compartilhados. Com isso, eliminava-se a necessidade de manter toda a estrutura administrativa em cada nova subsidiária, reduzindo significativamente as exigências de recursos humanos, além de evitar qualquer estrutura de custo fixo adicional. O resultado de todos esses esforços de redução de custos e aumento de eficiência está demonstrado no Gráfico 6-7, que apresenta a evolução das margens bruta e líquida da AmBev, juntamente com a margem EBITDA. Pode-se observar que, apesar de algumas quedas, houve em sua maioria um aumento das margens bruta e líquida, que decorrem, respectivamente, das iniciativas para redução dos custos de fabricação e das despesas de marketing, gerais e administrativas. De forma semelhante, verifica-se também o aumento da margem EBITDA, que serve como uma proxy da capacidade de geração de caixa da organização.

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70,00%

60,00%

50,00%

40,00%

Margem bruta

Margem líquida 30,00% Margem EBITDA

20,00%

10,00%

0,00% 1999 (Pro 2000 2001 2002 2003 2004 2005 2006 2007 2008 2009 forma*)

Gráfico 6-7: Evolução das margens bruta, líquida e EBITDA da AmBev Fonte: Baseado em AmBev.

No que se refere ao parque industrial, a AmBev fez uso das unidades produtivas que herdou da CAP e da CCB durante os primeiros cinco anos de existência. Após a fusão, não houve fechamento de fábricas, pois o CADE, como forma de compensar os custos econômicos da fusão, proibiu a desativação de fábricas por um período de quatro anos, sendo a AmBev obrigada a vender a terceiros qualquer unidade de que desejasse se desfazer durante o prazo. A única exceção ficou por conta da obrigatoriedade em vender 5 fábricas para um novo concorrente, cada uma em uma região do país. A Tabela 6-11 lista as fábricas da AmBev no ano de sua criação. Nela estão destacadas com a cor cinza as 5 fábricas que foram vendidas. Pode-se observar também que havia capacidade disponível no parque industrial da cervejaria, passível de utilização para sustentar o seu crescimento futuro.

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Capacidade Localização Utilização (hl/ano)

Companhia Antarctica Paulista

AM Manaus 1.150.000 38% BA Camaçari 3.225.000 48% GO Goiânia 650.000 100% MG Pirapora 1.200.000 100% MT Cuiabá 2.000.000 100% PA Belém 1.000.000 100% PB João Pessoa 3.800.000 40% PI Teresina 1.870.000 91% RJ Jacarepaguá 7.500.000 62% RN Natal 1.500.000 56% RS Estrela 700.000 78% RS Montenegro 680.000 78% RS Getúlio Vargas 580.000 78% SC Joinville 185.000 59% SP Jaguariúna 7.000.000 44% SP Ribeirão Preto 3.200.000 44% TOTAL 36.240.000 21.672.650 Companhia Cervejaria Brahma AM Manaus 380.000 38% BA Camaçari 3.500.000 48% DF Brasília 990.000 100% GO Anápolis 1.000.000 100% MA São Luis 1.000.000 77% MG Mateus Leme 3.100.000 100% MT Cuiabá 600.000 100% PE Cabo 2.000.000 100% PR Curitiba 1.850.000 100% RJ Rio de Janeiro 12.000.000 62% RS Viamão 3.000.000 78% SC Lages 4.000.000 59% SE Estância 3.000.000 20% SP Jacareí 8.000.000 44%

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SP Agudos 3.500.000 44% SP Guarulhos 3.000.000 44% TOTAL 50.920.000 31.254.400

Tabela 6-11: Parque industrial da AmBev em 1999 Fonte: Baseado em Higuthi (2002).

Os principais investimentos da AmBev em capacidade produtiva só ocorreram em 2006, com a duplicação da capacidade da maltaria e a ampliação de fábricas na Argentina, para compensar a venda da unidade de Luján, como parte do compromisso assumido com o órgão regulador daquele país após adquirir a Quinsa. Também houve investimento no Canadá, com a aquisição das unidades produtivas da Lakeport Brewing Income Fund, pelo valor de 208,5 milhões de dólares canadenses, com o objetivo de ampliar sua atuação na região de Ontário. O Brasil, porém, foi o foco principal de investimentos para aumento de capacidade produtiva. Em 2007, a AmBev comprou a totalidade das quotas da sociedade Goldensand Comércio e Serviços Lda., controladora da Cervejarias Cintra Indústria e Comércio Ltda (Cintra). O valor da operação foi de aproximadamente 150 milhões de dólares, não incluindo a aquisição das marcas e dos ativos de distribuição da Cintra, que foram incluídos no negócio posteriormente, em 2008. A transação envolveu as duas fábricas da cervejaria em Piraí (RJ) e Mogi Mirim (SP), com capacidade de produção de 420 milhões de litros de cerveja e 280 milhões de litros de refrigerantes. Ainda que tenha justificado a operação pela necessidade de expandir capacidade de produção para atender à demanda crescente nos mercados de cerveja e refrigerantes, Siqueira (2009) sugere que a aquisição ocorreu para impedir que a Cervejaria Petrópolis o fizesse, já que tentara comprar a unidade de Mogi Mirim da Cintra um ano e meio antes. A razão para a suspeita foi o fato de a AmBev ter fechado a unidade em fevereiro de 2009 sob a alegação de que foi a única cervejaria brasileira que teve aumento da carga de impostos federais (IPI/PIS e Cofins) em 2009, sendo necessário assim encontrar alternativas para compensar essa desvantagem relativa frente à concorrência. Ou seja, em vez de buscar a geração de folga e disponibilidade de capacidade produtiva, tratou-se de uma expansão puramente defensiva, objetivando impedir o crescimento de um concorrente.

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Em 2009, a empresa iniciou a construção de uma nova fábrica em Sete Lagoas (MG), no valor de 280 milhões de reais. A unidade, que foi inaugurada oficialmente em março de 2010, tem a capacidade de ser a segunda maior fábrica da AmBev nas Américas (a primeira é a Filial Nova Rio, no Rio de Janeiro). Em 2010, a AmBev anunciou um programa de 2 bilhões de reais destinado a ampliar entre 10% e 15% a sua capacidade produtiva no Brasil no ano, na esteira do crescimento de vendas em 2009 e nos primeiros meses de 2010. O valor é o maior já investido pela empresa em um único ano desde a sua criação. De concreto, foram anunciadas a ampliação da fábrica de Viamão (RS), no valor de 152 milhões de reais, e a construção de uma fábrica em Pernambuco, no valor de 260 milhões de reais. No que se refere à folga financeira, a AmBev passou por três períodos, como mostra o Gráfico 6-8. Nos três primeiros anos, focada na integração entre as duas cervejarias e na captura de sinergias, a empresa priorizou a geração e renovação de folga financeira. Num segundo momento, houve o gasto das disponibilidades de caixa para financiar o seu processo de internacionalização até o ano de 2005. A partir de 2006, o foco voltou a ser a geração de folga financeira.

4.500,00

4.000,00 4.043,00

3.500,00 3.505,00 3.299,00

3.000,00

2.500,00 2.539,00 2.534,00 2.308,00

2.000,00 Caixa e aplicações financeiras

1.751,40 1.505,00 1.500,00 1.539,00

1.096,00 1.000,00 1.028,30

500,00

- 1999 (Pro 2000 2001 2002 2003 2004 2005 2006 2007 2008 2009 forma*)

Gráfico 6-8: Evolução do caixa e de aplicações financeiras da AmBev (R$ Milhões) Fonte: Baseado em AmBev.

193

Por fim, a folga de recursos humanos é outro aspecto fundamental da AmBev e da sua estratégia de expansão. Como já mencionado, diferentemente do que houve na aquisição da CCB pelo Garantia, não ocorreram grandes demissões no processo de fusão que deu origem à AmBev. Dessa maneira, a cervejaria fez uso do quantitativo de pessoal para executar a sua expansão internacional. Tanto na América Latina quanto na Europa e nos Estados Unidos, a expansão se deu em grande parte através da exportação de talentos do Brasil para assumir posições de liderança nos novos negócios no exterior. Tal intercâmbio de pessoas, por sua vez, pressupõe a existência de folga de recursos humanos e uma gestão de pessoas que evite que as movimentações de funcionários deixem lacunas nas posições e atividades envolvidas. Nesse sentido, a empresa se beneficia da grande procura por seu Programa Trainee, que lhe garante a existência de reserva de mercado em termos de candidatos interessados em fazer parte de sua equipe, e do programa de sucessão, que estimula todos os funcionários a preparar continuamente seus sucessores e faz dessa tarefa uma pré-condição para a movimentação interna. Com isso, a AmBev consegue garantir um fluxo regular de pessoas entrando, saindo ou se movimentando dentro da organização, minimizando riscos reais de falta de pessoal qualificado e preparado para assumir posições.

6.2.2 A evolução da estratégia da AmBev e a sua forma de lidar com os desafios de longo prazo

Após analisar o padrão de resposta da AmBev a cada desafio de longo prazo, conclui-se que há uma grande semelhança com o padrão de resposta da CCB sob o comando do Banco Garantia, com praticamente nenhum resquício da CAP. Na verdade, o que aconteceu ao longo desses dez anos de existência da AmBev foi a consolidação da estratégia empresarial do Banco Garantia, que se encaixa perfeitamente no que Porter (1987) chama de estratégia corporativa de reestruturação, também denominada por Collis e Montgomery (1997) de estratégia baseada em valor. Isso se deu através da sua replicação não só para os negócios internacionais da AmBev, mas para o grupo do qual faz parte, a ABInBev. Além disso, houve em alguns casos o aperfeiçoamento das práticas e processos de

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trabalho, como mostra a tabela abaixo, que compara as respostas da AmBev e da CCB aos desafios do sucesso no longo prazo.

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CCB (Período que antecedeu a fusão, já sob Desafio Dimensão de análise AmBev comando do Banco Garantia)

Estratégia de expansão: - Estratégia de explotação, com pouca ênfase - Estratégia de explotação, com pouca ênfase em exploração x explotação em inovação de produtos inovações de produto (MARCH, 1991)

- Ambição (expansão internacional, tornando-se presente nas três Américas) - Ambição (esforços crescentes para expandir- - Versatilidade (embalagens; renovação e extensão se nacional e internacionalmente) de linhas de produtos existentes; diversificação - Versatilidade (embalagens; renovação e para NANCs através da parceria com a Pepsico; Serviços extensão de linhas de produtos existentes; serviços para atendimento direto aos consumidores empreendedores diversificação para NANCs através da parceria finais) (PENROSE, 1959) Empreender com a Pepsico) - Julgamento (decisão de desativar produtos - Levantamento de financiamento: lançamento próprios e engarrafar e distribuir os produtos lideres de ADRs na NYSE em certas categorias, a exemplo do Gatorade - Levantamento de financiamento: lançamento de ADRs na NYSE - Defensiva: aquisição de concorrentes e - Híbrida: aquisição de empresas em mercados Motivação da expansão disputa contra a CCB e demais marcas de baixo próximos objetivando tanto ganhos de eficiência (CHANDLER, 1977; custo pelas oportunidades de expansão e quanto a proteção dos mercados contra FLECK, 2009a) ganhos de market share concorrentes internacionais Gestão do risco - Sem evidências - Sem evidências (PENROSE, 1959) - Falha ao não perceber a movimentação das cervejarias de baixo custo, deixando-as roubar Monitoramento do Navegar no sua participação de mercado - Desenvolvimento de bases de dados, pesquisas ambiente (FLECK, ambiente - Posterior desenvolvimento de bases de dados, de mercado e estudos de benchmarking 2009a) pesquisas de mercado e estudos de benchmarking

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- Uso dos diversos tipos de respostas estratégicas Respostas estratégicas - Resposta bem sucedida às marcas de baixo para moldar o ambiente, neutralizar pressões e a pressões externas custo, com o lançamento da Skol, que se tornou ajustar-se a situações fora de seu controle, (OLIVER, 1991) a líder do mercado garantindo a sua legitimidade e a captura do valor gerado

- Companhias adquiridas com o objetivo único - Companhias adquiridas com o objetivo de facilitar de aumentar capacidade produtiva, a entrada em mercados consolidados e descontinuando os seus produtos e substituindo semelhantes ao brasileiro pelo portfólio Brahma (exceção para a Skol- - Padronização de processos, métodos de trabalho, Compartilhamento de Caracu) produtos, marcas e embalagens recursos homogêneos/ - Padronização de processos e métodos de - Descentralização administrativa e autonomia intercâmbio de recursos trabalho mediante pactuação de metas heterogêneos (FLECK, - Descentralização administrativa e autonomia - Desenvolvimento de instrumentos de controle 2009a) Gerir a mediante pactuação de metas interno para alinhamento de funcionários com os diversidade - Desenvolvimento de instrumentos de controle interesses dos acionistas interno para alinhamento de funcionários com - Intercâmbio de recursos humanos para assumir os interesses dos acionistas posições de liderança nas operações no exterior

- Coordenação independente das atividades de Capacitações em - Coordenação independente das atividades de cervejas e de refrigerantes coordenação (FLECK, cervejas e de refrigerantes - Divisão da coordenação das operações 2009a) - Criação de Diretorias Regionais internacionais de acordo com as regiões de atuação - Demissão da metade dos funcionários - Programa Trainee para o recrutamento de jovens Aprovisionar Antecipação de - Programa Trainee para o recrutamento de talentos e renovação dos quadros recursos necessidades (FLECK, jovens talentos e renovação dos quadros - Estímulo ao desenvolvimento de sucessores em gerenciais 2009a) - Estímulo ao desenvolvimento de sucessores todos os níveis gerenciais em todos os níveis gerenciais

197

- Universidade Corporativa - Universidade Corporativa - Avaliação de desempenho sistemática com - Avaliação de desempenho sistemática com base Manutenção da base em metas individuais vinculadas aos em metas individuais vinculadas aos objetivos qualidade dos recursos objetivos corporativos e remuneração variável corporativos e remuneração variável e criação de vínculos - Aumento da competição interna, adoção de - Intensificação da competição interna, adoção de com a organização práticas anti-éticas entre pares e, assim, práticas anti-éticas entre pares e, assim, aumento (FLECK, 2009a) aumento do passivo trabalhista do passivo trabalhista - Estímulo ao desenvolvimento de jovens líderes - Estímulo ao desenvolvimento de jovens líderes

- Desenvolvimento de sistemas informatizados de apoio à decisão nas áreas de contabilidade, Levantamento e análise - Desenvolvimento de sistemas informatizados distribuição, logística e marketing de dados (FLECK, de apoio à decisão nas áreas de contabilidade, - Sistemas em Excel são desenvolvidos em 2009a) distribuição, logística e marketing paralelo aos sistemas oficiais, acarretando em divergência de informações Gerir a - Realização de benchmarking mundial em complexidade diversas áreas do negócio, buscando novas Identificação e abordagens - Adoção do método EVA como critério principal priorização de soluções - Contratação de consultorias para diagnóstico e para a tomada de decisão (FLECK, 2009a) proposição de soluções - Treinamentos em solução de problemas - Adoção do método EVA como critério principal para a tomada de decisão Aprendizado (FLECK, - Sem evidências - Condução do processo de fusão 2009a)

Tabela 6-12: Quadro comparativo das respostas da AmBev e da CCB aos desafios do crescimento

198

Os Gráficos 6-9 e 6-10 mostram a trajetória de crescimento da AmBev em comparação com suas antecessoras, tendo como base os indicadores de tamanho e de desempenho propostos por Fleck (2001). Observa-se que a AmBev não só inverteu as trajetórias decrescentes da CAP e da CCB, mas também iniciou um processo de crescimento que, apesar de algumas quedas, se mantém em andamento, sem qualquer indicação de reversão na trajetória das curvas.

0,9000%

0,8000%

0,7000%

0,6000%

Indicador de Tamanho - AmBev 0,5000% Indicador de Tamanho - Antarctica

Indicador de Tamanho - Brahma 0,4000% Poly. (Indicador de Tamanho - Antarctica)

0,3000% Poly. (Indicador de Tamanho - Brahma)

0,2000%

0,1000%

0,0000%

1983 1985 1987 1990 1992 1994 1999 2001 2003 2008 1981 1982 1984 1986 1988 1989 1991 1993 1995 1996 1997 1998 2000 2002 2004 2005 2006 2007 2009

Gráfico 6-9: Evolução do indicador de tamanho da AmBev em comparação com a CAP e a CCB

199

0,2500%

0,2000%

0,1500%

Indicador de Desempenho - AmBev

Indicador de Desempenho - Antarctica

0,1000% Indicador de Desempenho - Brahma

Poly. (Indicador de Desempenho - Antarctica)

Poly. (Indicador de Desempenho - Brahma) 0,0500%

0,0000%

1981 1984 1985 1988 1989 1992 1993 1996 1997 2000 2001 2004 2005 2008 2009 1982 1983 1986 1987 1990 1991 1994 1995 1998 1999 2002 2003 2006 2007

-0,0500%

Gráfico 6-10: Evolução do indicador de desempenho da AmBev em comparação com a CAP e a CCB

É preciso, contudo, compreender a forma com que a empresa se renova e cresce ao longo do tempo. Assim como a CCB, o motor de crescimento contínuo da empresa é o que Fleck (2003) considera inercial, limitando-se a crescer quantitativamente a partir das mesmas atividades e produtos. A lógica por trás do motor inercial da AmBev se baseia em duas premissas. Nos países em que os níveis de consumo ainda são inferiores a outros países com tradição cervejeira, a empresa concentra-se na possibilidade de aumentar o consumo de cerveja e de refrigerantes, capturando a maior parcela possível da demanda potencial. Para tal, a AmBev investe na ampliação das ocasiões de consumo de seus produtos através de diversas iniciativas, tais como: o lançamento de novas embalagens; a verticalização para o varejo com serviços alternativos (quiosques Chopp Brahma e Brahma Express); a comercialização de cervejas importadas; e a ampliação de suas linhas de produtos com tipos de cervejas comuns em outros mercados. Já em mercados mais maduros, como o Canadá, a estratégia é de gerenciamento de receitas e de redução de custos, de forma a ampliar as margens

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dos negócios. As novidades lançadas na situação anterior também aparecem aqui, e servem como forma de manter o interesse dos consumidores nos produtos comercializados e de garantir a sua parcela da demanda total. Como a ênfase está em ―fazer mais do mesmo‖, a AmBev adota basicamente estratégias de explotação, limitando-se a tirar proveito econômico das atividades já estabelecidas. Dessa maneira, a companhia busca reduzir as incertezas e minimizar os riscos do negócio, focando esforços naquilo que diz estar sob seu controle: a eficiência de sua operação e a melhoria dos resultados financeiros. O mainstream das operações em cervejas, por exemplo, são as marcas Antarctica, Brahma e Skol. As duas primeiras foram lançadas há mais de um século atrás, e a terceira foi adquirida pela CCB em 1980. A Bohemia, que pode ser considerada a quarta linha de cerveja, adveio de outra aquisição da CAP em 1961. Mesmo que a AmBev tenha estendido a linha Bohemia e criado uma série de cervejas especiais (trigo, escura e de abadia), tratam-se de variações de cerveja existentes na Europa e em outros países há séculos. Aqui mesmo no Brasil já eram produzidas, em menor escala e muitas vezes artesanalmente, por microcervejarias. Portanto, ainda que decorram de processos de pesquisa e desenvolvimento, só ganharam destaque pelo fato de serem novidades no mercado de massa de cervejas no Brasil, que é dominado em quase a sua totalidade por um único tipo de cerveja (pilsen). O mesmo padrão de comportamento se repete no segmento de refrigerantes e bebidas não-alcoólicas. As poucas marcas próprias da AmBev foram desenvolvidas no início do século passado, como é o caso do Guaraná Antarctica, da Água Tônica e da Soda Limonada. No mais, o portfólio diversificado da empresa pertence, na realidade, à Pepsico, com a qual tem contrato de engarrafamento e distribuição. Marcas líderes mundiais como Gatorade, Pepsi, H2OH! e Lipton Ice Tea são de propriedade da Pepsico, para quem a empresa brasileira paga royalties. Em seu julgamento, a AmBev considera preferível ter um produto externo de melhor posicionamento e de reputação comprovada a despender esforços e recursos para tornar um produto próprio bem sucedido. Não há restrições para se eliminar um produto atual se houver outro que tenha desempenho melhor. Foi o caso, por exemplo, do isotônico Marathon, desenvolvido na década de 90 e

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posteriormente eliminado quando a AmBev obteve da Pepsico o direito de produção e distribuição do Gatorade. Esta pesquisa identificou três explicações plausíveis para essa ―renúncia‖ à inovação de produto na AmBev. A primeira e mais importante é o próprio mercado de cervejas brasileiro, que é de massa, composto principalmente de consumidores das classes C e D e com baixo grau de inovação tecnológica. Dessa forma, a competição não se dá através de produtos, mas nos canais de distribuição. Como a fidelidade à marca é pequena e grande parte dos consumidores faz sua escolha nos PDVs no momento do consumo, o mais importante para uma cervejaria é estar presente e com visibilidade no maior número possível de canais. É por isso, inclusive, que se observa uma batalha cada vez mais agressiva pelo domínio de PDVs no Brasil. Outro ponto importante é que a AmBev nasceu com quase 70% de participação de mercado e as três marcas líderes do pais, gozando de uma posição frente aos competidores muito confortável e difícil de ser revertida. A empresa já sofreu algumas perdas de participação de mercado, porém nunca foram ameaças mais sérias à sua liderança. A segunda explicação plausível é a própria visão de negócio dos antigos sócios do Banco Garantia – Lemann, Sicupira e Telles. Analisando suas trajetórias, os três afirmam seguir um princípio básico de negócios: vale mais a pena copiar do que inovar (INSTITUTO EMPREENDER ENDEAVOR, 2005). O próprio Banco Garantia ilustra perfeitamente essa mentalidade. Sua operação foi feita à imagem e semelhança do Goldman Sachs, banco de investimentos americano com o qual Lemann sempre buscou fazer o maior número possível de negócios. Segundo o banqueiro: ―Consegui know-how para competir com os grandes bancos. O que é bom a gente copia e tenta melhorar em cima" (INSTITUTO EMPREENDER ENDEAVOR, 2005, p. 122). Sicupira reafirma essa visão, explicando que as novidades que o Banco Garantia implementou no Brasil e que o levaram ao reconhecimento no mercado financeiro basearam-se em instituições financeiras internacionais como o Goldman Sachs: "Não tinha nenhuma novidade nisso. Era tudo copiado de outro lugar‖ (INSTITUTO EMPREENDER ENDEAVOR, 2005, p. 143). De acordo com Lemann:

Vale muito mais uma lógica boa, uma execução boa, do que qualquer inovação brilhante. Você tem que se preocupar com a inovação. Mas se tem

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alguém fazendo bem, melhor não gastar muito tempo procurando como fazer. Vai lá, olha e adapta da sua maneira. E pronto. (INSTITUTO EMPREENDER ENDEAVOR, 2005, p. 173)

Sicupira se coloca como um pregador da cópia como o método mais seguro e eficiente de ter bons resultados na empresa. E adotou essa mesma estratégia quando assumiu o comando das Lojas Americanas. Desde o seu primeiro dia na rede de varejo, já tinha uma boa noção do que fazer: descobrir de onde iria copiar o negócio das Lojas Americanas. A empresa escolhida foi o Wal-Mart, onde teve a autorização de Sam Walton para copiar o seu modelo de gestão.

A grande vantagem do Brasil durante a vida toda (inclusive hoje - 2005) é que você pode copiar o que está sendo desenvolvido em outro lugar e fazer aqui. Pode copiar tudo, não precisa ficar reinventando a roda. O que nós fizemos a vida toda? Só copiamos. Não inventamos nada, nada. Inventar coisas é um perigo danado. (INSTITUTO EMPREENDER ENDEAVOR, 2005, p. 174)

Telles fez o mesmo quando assumiu a direção da CCB em 1989. Como não sabia nada de administração de empresas e nem tampouco de cervejas, aconselhou-se com Sicupira, que lhe orientou a não tentar fazer nada sobre o negócio, apenas aquilo que entendia, o básico. Telles focou na redução de custos desde o início, ao mesmo tempo em que trabalhou para implantar uma boa medição de resultados, para que pudesse recompensar quem atingia as metas. Montou também um programa de trainee, que fez questão de supervisionar pessoalmente.

Foi o que eu fiz. O básico que eu entendia era que uma empresa precisa ser enxuta e que era preciso investir em pessoas. (INSTITUTO EMPREENDER ENDEAVOR, 2005, p. 190)

A estratégia da AmBev é um grande exemplo dessa ênfase na cópia em detrimento da inovação. O foco em eficiência e produtividade foi inspirado na cultura do Wal-Mart. Nas palavras de Lemann:

"Ele [Sam Walton, fundador da Wal-Mart] ia todo dia ao Carrefour no Brasil para entender como funcionava o conceito de hipermercado, que ainda não conhecia‖, diz Lemann. "Sam copiava tudo!" Algum tempo depois, Lemann e Walton estavam jogando tênis no Arkansas, terra natal da Wal-Mart, quando o americano reparou no tênis diferente do brasileiro. Lemann explicou que era um tênis mais largo que os outros, bom para ele, que tinha o pé mais largo. No dia seguinte, Walton apareceu para jogar com o um tênis absolutamente igual. Buscava a eficiência como a Wal-Mart, a maior

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empresa do mundo em vendas. Sem muita inovação. (INSTITUTO EMPREENDER ENDEAVOR, 2005, p. 121)

Outra prática da AmBev, o modelo de partnership, considerado um pioneirismo do Garantia no Brasil e que foi replicado em todos os negócios do grupo, foi copiado do Banco Goldman Sachs. Num sistema de partnership, os mais velhos vão passando a sociedade para os mais jovens, que dão continuidade à empresa, a seus princípios e à sua cultura, garantindo o sucesso da empresa nas gerações futuras. A idéia é envolver o maior número de pessoas com responsabilidade societária, de forma a se ter mais funcionários de destaque tomando para si a necessidade de trazer bons resultados para o negócio. A ênfase na simplicidade é uma marca tão forte da cultura Garantia que não se limita à questão da inovação. Analisando também os processos de expansão da AmBev, verifica-se, por exemplo, que sua expansão internacional foi feita em sua maioria por aquisições, havendo um ou outro caso de investimento produtivo próprio. Tal padrão também demonstra que a execução é realmente a prioridade da empresa, já que, com as barreiras de entrada eliminadas, pode competir com base naquilo que considera ser sua maior competência: a eficiência na operação.

A estratégia de atravessar fronteiras está baseada na capacidade de penetração em mercados nos quais exista um potencial muito promissor para os seus produtos, possibilitando o incremento do EVA da Companhia. Na América Latina, particularmente em mercados caracterizados por forte concentração de participantes, a AmBev acredita que existam situações em que as vantagens competitivas serão um fator de conquista de espaços importantes. (AMBEV, 2001, p. 20)

Em entrevista à Revista HSM Management em 2008, quando perguntado sobre o andamento da fusão com a Interbrew, Lemann deu uma resposta que resume a vocação da AmBev: ―Nós queremos construir um negócio grande e eles também, e as aptidões deles são diferentes das nossas; somos mais operadores, eles cuidam mais do produto. Há complementaridade‖ (NETO, 2008, p. 22, grifo nosso). A terceira explicação plausível para a ―renúncia‖ à inovação de produto está diretamente associada à anterior: a cultura de gestão dos sócios do Garantia. Além da preferência pela imitação e pela simplicidade, observa-se também que são desenvolvidos diversos mecanismos de controle e motivação que, se por um lado

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estimulam a rivalidade mediante a competição interna, desempenham o papel fundamental de garantir o alinhamento dos funcionários e a sua cooperação pelo alcance do interesse maior dos acionistas: a geração de valor. A referência conceitual por detrás desse traço da AmBev é a Teoria do Agente-Principal, segundo a qual os agentes (funcionários, por exemplo) nem sempre são motivados a agir em interesse dos principais (sócios, p.ex.), fazendo uso, por exemplo, da assimetria de informações a seu próprio proveito. Cientes desse fenômeno, Lemann, Sicupira e Telles trataram de forjar uma série de instrumentos que reduzissem ao máximo qualquer tipo de comportamento indesejado. De quebra, ainda reduziram a folga organizacional, que pode ser entendida não só como desperdício, mas também como indício do auto-interesse gerencial segundo Nohria e Gulati (1997). A redução da folga ocorre especialmente nas Diretorias Regionais, responsáveis pelas operações da empresa. Conforme mencionado pelos entrevistados, a preocupação única dessas unidades é a execução das atividades de produção e de distribuição de bebidas, o que contrasta com a AC, onde ficam as ―equipes criativas‖, ―que realmente pensam no futuro da AmBev‖ e ―tomam as decisões estratégicas‖. Há, portanto, uma separação muito evidente entre os dois mundos, presente especialmente na fala de muitos entrevistados, que sequer sabiam explicar como a AC está organizada, suas áreas e equipes.

As inovações de produto, no meu entendimento, vêm lá da AC. São pessoas que pensam, principalmente pessoas de marketing que desenvolvem uma nova embalagem em conjunto com o cara do financeiro, que vai ver se é viável ou não. Mas a inovações de produto vêm de lá, do comando central da AMBEV, lá daquele quartel general em SP. E as inovações de processo, na maioria das vezes, surgem das Regionais. Ou seja, o que eu quero dizer é que as inovações de produto são top-down, e as de processo são bottom-up. (ENTREVISTADO #1)

É preciso ressaltar, entretanto, que a falta de estímulo à inovação de produto não permite afirmar que a AmBev não seja uma empresa inovadora. Tomando como base as quatro categorias de inovação do Manual de Oslo (OECD, 1997) – produto, processo, marketing e organizacional –, as evidências permitem concluir que, com exceção da primeira categoria, a AmBev pode ser considerada uma empresa bastante inovadora.

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No que se refere a inovações de processo, pode-se destacar o pioneirismo na construção de fábricas de alta tecnologia no Brasil e o uso de palmtops como suporte ao processo de vendas. No campo do marketing, o freezer que mantém as bebidas geladas em temperatura adequada ao consumo nos PDVs, as diversas embalagens, as mudanças de rótulos e o esforço de posicionamento das marcas também são inovações e demonstrações da criatividade da empresa. Já em termos de inovação organizacional, pode-se destacar o Orçamento Base Zero (OBZ) e os Programas de Excelência como exemplos, respectivamente, de práticas desenvolvidas pela empresa e aprimoradas por ela para solucionar problemas internos e que se tornaram referências no mercado. Se por um lado a indústria de cervejas e a cultura dos sócios do Banco Garantia não justificam os riscos inerentes a investimentos em P&D de produtos, a busca constante por patamares superiores de eficiência e produtividade estimula a existência dos demais tipos de inovação na AmBev. Ao pressionar seus funcionários para que nunca estejam satisfeitos com os níveis correntes de desempenho e ao vincular a remuneração variável ao alcance de metas cada vez mais desafiadoras, a AmBev cria um mecanismo de estímulo à busca por soluções que resolvam problemas em sua operação e a tornem mais ágil e barata. É por isso, por exemplo, que muitos funcionários ampliam sua jornada de trabalho em busca de novas práticas que impactem significativamente os resultados da empresa. Conclui-se, assim, que a estratégia da AmBev se aplica perfeitamente ao Modelo da Relação entre a Folga e a Inovação de Nohria e Gulati (1997), como mostra a figura abaixo. O baixo grau de inovação de produto decorre da busca pela redução da folga organizacional, sendo essa relação mediada por outros dois fatores: a experimentação e o controle interno. Por um lado, a indústria de cervejas, caracterizada pelo baixo dinamismo tecnológico e pela competição baseada nos canais de distribuição, não demanda grandes investimentos em experimentação, exercendo um efeito negativo sobre esse tipo de inovação. Por outro lado, o rigor dos controles internos extrapola os limites em que a disciplina pode ser favorável à inovação, já que a regra básica é de sempre fazer o mais simples, incluindo copiar aquilo que funciona bem em outros casos.

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-Baixo dinamismo tecnológico -Baixa nas Unidades Contexto - Competição baseada Regionais ambiental nos canais de - Segregação entre a AC e as distribuição, e não em Regionais: a primeira pensa produtos e tecnologias estrategicamente, e a segunda executa + Experimentação + - AC: foco em embalagens e Folga Inovação marketing - Regionais: foco em processos - Disciplina ~

- Controle rígido e foco na disciplina, Grau de especialmente na controle interno execução - Metas, remuneração Legenda: variável, programas de excelência, dentre + efeitos positivos outros - efeitos negativos ~ efeitos curvilíneos variáveis observáveis variáveis não-observáveis

Figura 6-3: Aplicação do Modelo da relação entre a folga e a inovação para a AmBev Fonte: Baseado em Nohria e Gulati (1997).

Como o crescimento se dá através do motor inercial, a folga destina-se à manutenção dessa forma de crescimento, especialmente no que se refere à folga financeira e de pessoas. A primeira é relevante na medida em que dota a organização de flexibilidade para se adaptar ao ambiente e crescer, especialmente no que se refere à capacidade de adquirir outros negócios. A folga de pessoal, por sua vez, visa construir e manter a habilidade da organização de absorver novos negócios e garantir a efetiva implementação de sua estratégia corporativa. Para tal, faz uso da padronização de processos e da replicação de práticas, produtos, marcas e iniciativas testadas com sucesso anteriormente, reduzindo ao máximo a diversidade e evitando a possibilidade de fragmentação. Se a cultura da AmBev não preza pela inovação de produto, o mesmo não pode se falar sobre o desenvolvimento de controles internos. Nesse aspecto, não se resume apenas a um controle vertical entre níveis hierárquicos, mas compreende também o controle horizontal, entre unidades e pares, como ilustra a Figura 6-4.

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Figura 6-4: Dinâmica de funcionamento dos instrumentos de controle da AmBev

O estímulo à competição interna, porém, é capaz de gerar possíveis conflitos de interesses. A partir do momento em que aquela atividade interfere diretamente na remuneração variável do funcionário, há uma mudança natural de comportamento, pois, no limite, ele será beneficiado com o fracasso do concorrente. Por outro lado, surge também certo de clima de insegurança, já que não se sabe qual será a postura da unidade avaliadora, que é parte diretamente interessada no resultado do processo.

Como a auditoria é feita por pessoal de outra Regional, o cara tem que estar com tudo certo mesmo. Porque há visitas de estabelecimento, até porque é a galera de fora que escolhe os estabelecimentos, e um cara quer ferrar o outro, ele quer descobrir erro porque estão disputando o bônus. (ENTREVISTADO #4)

O mesmo acontece com a política de remuneração variável para funcionários de cargo gerencial, que apareceu como elemento sustentador da cultura Garantia. Todos concorrem entre si pelos bônus, sem distinção por área ou nível hierárquico (uma pessoa da área de Vendas concorre com outro do Financeiro). Além disso, os bônus são distribuídos apenas a uma pequena parte dos elegíveis, sendo o salário regular abaixo da média do mercado.

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Basicamente eu [Jorge Paulo Lemann] acho que o salário tem de ser o apropriado para viver adequadamente. Ninguém deve ficar aflito se não houver bônus, o salário deve conseguir pagar as contas. Mas, para que se tenha estímulo, é preciso haver o bônus, por ano, que no Banco Garantia às vezes podia chegar a algumas vezes o salário anual. Em negócios mais maduros, maiores, industriais, o bônus pode até duplicar o salário anual. (INSTITUTO EMPREENDER ENDEAVOR, 2005, p. 191)

Eu prefiro te dar um bônus maior a pagar a uma outra pessoa. Eu entendo dessa forma. Eu prefiro te dar toda a rede de benefícios que eu te dou, te dar o bônus e te dar o suporte que eu posso te dar porque você é um, do que ter que dividir tudo isso para duas pessoas. (ENTREVISTADO #5)

É importante lembrar que, na visão dos controladores, a alternativa de dividir o bolo por igual com o mesmo número de salários a mais para todos os colaboradores, é uma má alocação de recursos. Por conta disso, vale a pena remunerar - e bem - aqueles que têm um desempenho acima do normal. (INSTITUTO EMPREENDER ENDEAVOR, 2005, p. 192)

A AmBev ainda dispõe de outro instrumento de controle sobre os funcionários: o programa de compra de ações. Ao oferecer a opção de uso do bônus para compra de ações da companhia com prazo de carência, os sócios criam mais uma motivação para garantir o alinhamento dos funcionários aos seus interesses. Para Lemann:

Nós basicamente achamos que a empresa ideal é uma que tem acionistas públicos e também acionistas trabalhando dentro da empresa, porque estes certamente estão interessados no desempenho de longuíssimo prazo, em perpetuar o negócio, entende? Acho que esse é o equilíbrio ideal para uma empresa boa e duradoura. Eu participei de alguns conselhos de empresas americanas totalmente abertas, daquele tipo que ninguém tem mais de 2% ou 3% etc. Acho razoável o resultado, mas, em geral, os donos teóricos passam a ser os executivos, e isso não me parece saudável, porque gera esse clima de excesso de opções de ações, de gratificações, de atenção no resultado do trimestre. Em resumo, meu modelo ideal não é a empresa da qual ninguém é dono. Prefiro um modelo como o da InBev hoje em dia, que tem vários sócios na gestão, querendo que ela dure no longuíssimo prazo, e tem também o público investidor, os executivos e as pessoas que trabalham nela, com planos de compra de ações bastante generosos. (NETO, 2008, p. 23)

O grande perigo por trás desse modelo, porém, é que a remuneração variável (bônus e compra de ações) se tornou o elemento de sustentação da cultura da AmBev. É ela que mantém as pessoas dispostas a se dedicar pela empresa, muitas vezes abdicando de suas vidas pessoais. Como afirmou um entrevistado, o bônus é a moeda de troca oferecida ao funcionário pela renúncia que ele faz à sua vida.

A maior motivação de ficar até mais tarde não é porque não tem equipe, mas porque você quer o seu variável no final do ano. E tem um lado

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também que é o seguinte: tem muita gente que quer. Se você não quer ficar e não quer receber o variável, deixa o seu espaço porque alguém vai querer vir para o seu lugar e fazer. Sai, ou é saído, porque tem outro que quer o seu lugar porque quer receber o variável. E é isso que tem feito a empresa crescer em ritmos muito velozes. O variável é a chave do crescimento contínuo da AmBev. (ENTREVISTADO #8)

O problema é que esse pilar de sustentação pode não ser suficiente para garantir a existência continuada da AmBev. O efeito mais imediato foi o aumento dos processos trabalhistas, decorrentes tanto de assédio moral quanto de insatisfação com o tratamento dado pela empresa. No primeiro caso, a manifestação se deu através de funcionários levando ao extremo o clima de competição, fazendo uso de práticas inadequadas para garantir a bonificação. No segundo caso, observou-se que o comprometimento de algumas pessoas com a empresa durava até o momento em que a remuneração variável se fazia presente. Era justamente quando isso não acontecia que alguns funcionários mostravam sua verdadeira posição em relação à cervejaria.

Mas eu quero dizer que a relação é conturbada no sentido de que é muita carga horária; nem sempre sai bônus (era muito difícil, agora eles flexibilizaram para bater as metas e liberar bônus). Então, os caras acabam querendo sair da empresa revoltados, porque trabalharam muito, não ganharam bem; enfim, muito processo trabalhista contra a empresa. (ENTREVISTADO #1)

Algumas fontes colocam em xeque a sustentação do modelo da AmBev em função da mudança de comportamento do ser humano no novo século. Neves (2006), por exemplo, afirmava que não eram bem os destemperos – tenham eles acabado ou não – que colocavam em risco o modelo da AmBev. Para o autor, o problema era de descompasso em relação ao espírito do tempo:

[...] Os sócios do Garantia adotaram a filosofia típica das empresas americanas das décadas de 80 e 90, cujo mantra era a célebre expressão americana ―Greed is good‖ (a ganância é uma coisa boa). Em linhas gerais, tratava-se de tirar o máximo das pessoas, alcançar o máximo de resultados e recompensá-las de acordo. O mundo, porém, mudou: entre a disseminação de filosofias orientais, busca de qualidade de vida, descrédito na riqueza como caminho para a felicidade e, finalmente, a descoberta de uma onda de fraudes nas empresas americanas, a ganância passou a ser vista com muita desconfiança. (NEVES; CANÇADO, 2006, p. 1)

Jorge Garcia, pesquisador e professor de Estratégia da Escola de Administração do Ibmec, compartilhava da mesma visão de Neves, defendendo a

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tese de que o modelo da AmBev era mais aceitável nos anos 90. Para Garcia, não significava que a AmBev já estava ameaçada, mas que o recrutamento de talentos não era tão fácil como antigamente. Segundo ele, isso ficava visível na sala de aula, onde ―uma parte da turma tinha horror à AmBev, enquanto a outra parte estava doida para entrar‖. No passado, trabalhar na AmBev era o sonho dourado de todo jovem que queria carreira em empresas (NEVES; CANÇADO, 2006, p. 1). Mesmo quem entra pode não ficar muito tempo. Como a empresa exige dedicação total – incluindo mudança de residência, horas extras e viagens constantes – ela acaba atraindo gente mais jovem. Em 2006, um ex-executivo da AmBev dizia que o modelo se esgotaria em cinco a dez anos.

No começo, você tem liberdade para agir, aprende muito e tem chances de subir. Depois, começa a questionar: será que é isso que quero para minha vida? Eu, por exemplo, buscava valores emocionais, que a empresa não entrega. Houve um ano em que trabalhei 42 dos 52 fins de semana. Você se sente explorado. Mas o jogo é limpo. Você aprende e ganha um bom dinheiro por isso. (NEVES; CANÇADO, 2006, p. 2)

Alguns entrevistados também mencionaram a fragilidade do modelo da AmBev. Uns citaram que a passagem pela empresa pode ser vista através da lógica de ciclo de vida, com um prazo indeterminado, mas existente.

Todo mundo diz que a AMBEV tem 3 fases. Primeiro, a fase do encanto, que é o deslumbramento, quando entra para a empresa e acha irado. Depois, a fase em que você já coloca os pés no chão, já se adapta, sabe como é a cultura, realmente vê que é fantástico, mas não é um mundo perfeito, mas você convive com aquilo. E, por fim, a fase do desencanto, que é quando você vê que não tem mais perspectiva, que não ganhou o bônus que queria ganhar, que foi sacaneado lá dentro. Sempre acontece isso. (ENTREVISTADO #3)

Todo mundo fala assim: ―Tem que vestir a camisa, não sei o que‖. Mas de vez em quando chegava a um grau tão intenso que uma menina que entrou comigo falou: ―Eu vou vestir a camisa, mas não vou tatuar na pele‖. Para você ver: estava naquele nível de, caramba, está muito. Eles têm isso claro na cabeça. É claro que eles não são ingênuos. Eles têm claro na cabeça que é uma seleção natural, e por isso que lá realmente trabalha muita gente boa, competente. Só que tem gente que não é para aquilo, ou é para aquilo. Todo mundo tem um prazo de validade lá dentro. Poucos ficam até a aposentadoria. Mas o que eu vi era isso: todo mundo tem um prazo de validade lá dentro. Chega uma hora em que aquilo ali não é mais para o cara. (ENTREVISTADO #1)

Eu sou apaixonada pelo que faço e pelo ambiente de trabalho. Mas ao longo do tempo, ele vai ser cansativo. Vai chegar uma hora em que ficar longe de casa, do filho e do marido pesará. Eu entendo claramente que a gente faz muito, mas também recebe muito. Isso é muito forte. Só que eu

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acho que chegará uma hora em que isso pesará na balança, porque a gente dá muito, recebe muito, mas tem um pequenininho em casa, um marido em casa, e na hora em que eu precisar ficar até mais tarde [....]. (ENTREVISTADO #5)

A AmBev está se dando conta dos riscos e tem feito esforço para mudar, numa demonstração de que a organização aprende com seus erros e acertos e de que sua estratégia corporativa está evoluindo com o tempo. Os primeiro sinais de mudança ocorrem a partir de 2005, quando incluiu a questão da qualidade de vida em sua agenda de gestão. Houve também algumas flexibilizações no programa de remuneração variável, diminuindo as regras e ampliando as condições para que mais pessoas se tornassem elegíveis.

Isso vem mudando muito nos dois anos em que estive na companhia. Antes era de acordo com o resultado da operação Brasil, tudo isso ia definir quantos salários a pessoa ganha. Agora, eles já estão dividindo de acordo com o resultado (EBITDA, por exemplo) da sua Regional, que junta a Regional na parte de fábricas, que vai ter toda a parte de custos, e a Regional de Vendas, onde há toda a parte de receita e margem. Agora, portanto, funciona com base nos resultados por Regionais pelo Brasil. (ENTREVISTADO #6)

A partir daí para baixo, mudou também, por conta das indisposições que estavam sendo geradas. Ao invés de ser 60%-40%, passou a ser 70% (recebem)-30% (não recebem). (ENTREVISTADO #8)

O fato é que, independente da natureza e da velocidade das mudanças, a AmBev ao menos é coerente em seu discurso, mantendo-se fiel aos valores em que acredita. Por detrás disso está a consciência da empresa de que fazer parte da AmBev é viver de perto a seleção natural, onde a disputa é intensa e só alguns sobrevivem. E o interesse da empresa é justamente esse: manter em seu quadro e permitir a ascensão daqueles que concordam com a sua cultura e estão dispostos a fazer parte disso, motivados em grande parte pelas promessas de ganho financeiro.

Como frisa a especialista em administração Betania Tanure, pesquisadora da Fundação Dom Cabral, a AmBev tem um discurso coerente. 'As pessoas que vão para lá sabem o que vão encontrar', afirma ela. 'É uma empresa boa para quem está interessado nesse modelo.' A questão é que há menos gente interessada. O grande desafio para a AmBev é incorporar valores mais modernos, como os que norteiam o Google, por exemplo, sem perder a identidade que a tornou uma empresa de tanto sucesso. (NEVES; CANÇADO, 2006, p. 2)

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Diante de tudo que foi mencionado, conclui-se que, durante grande parte de sua história, a habilidade da AmBev em se renovar continuamente e em preservar a sua integridade organizacional se sustentou em dois alicerces – o motor inercial (com foco em eficiência) e a remuneração variável – que, apesar de terem funcionado bem no período, já deram sinais de fragilidade, colocando em xeque a sua suficiência para a organização construir a propensão à auto-perpetuação no longo prazo. A Figura 6-4 reúne todos os elementos discutidos nesta seção e ilustra, de maneira sintética, a estratégia de reestruturação da AmBev segundo o Modelo de Requisitos para o Desenvolvimento da Propensão à Auto-perpetuação (FLECK, 2009a).

Figura 6-5: Estratégia de Reestruturação da AmBev segundo o Modelo de Requisitos para o Desenvolvimento da Propensão à Auto-perpetuação Fonte: Baseado em Fleck (2009a).

Apesar dos riscos mencionados anteriormente, é de se reconhecer o sucesso dos sócios do Banco Garantia no desenvolvimento e implementação de uma estratégia corporativa que, reunindo elementos copiados de outras empresas e

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posteriormente aprimorados, tem oferecido uma resposta concreta à superação de desafios gerenciais ainda predominantes na estrutura produtiva brasileira, como é o caso da ineficiência. Pode-se dizer que o caráter inovador da gestão do Banco Garantia residiu na sua capacidade de promover um novo paradigma de gestão em um setor industrial marcado pela ineficiência e pelo atraso gerencial, e até então considerado de natureza artesanal. Esse paradigma é caracterizado, dentre outros, pela junção de elementos oriundos do mercado financeiro e de gestão de custos e da qualidade baseados na experiência japonesa, e se constituiu em uma vantagem competitiva que concorrentes nacionais e internacionais ainda encontram dificuldades para imitar. No Brasil e mais recentemente no mundo, por fazer parte do maior grupo cervejeiro e deter os maiores níveis de eficiência do setor, as práticas da AmBev se tornaram referência para a indústria como um todo, forçando concorrentes a seguir seus passos em busca do alcance de patamar semelhante de operação.

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7 CONCLUSÃO

Tomando como base o estudo de caso da AmBev, a presente pesquisa se propôs a compreender e discutir as questões das respostas aos desafios de longo prazo no caso de estratégias corporativas de reestruturação. Segundo Porter (1987) e Collis e Montgomery (1997), um aspecto relevante de uma estratégia de reestruturação é a ausência de compromisso com o longo prazo, refletida na atitude dos controladores de se desfazer dos negócios tão longo alcançassem o retorno esperado pelo investimento, para então buscar novas oportunidades para replicar a mesma abordagem. No caso da AmBev, contudo, os antigos sócios do Banco Garantia permanecem no controle da empresa há mais de 20 anos, chegando, inclusive, a assumir posição de liderança no grupo internacional do qual a cervejaria brasileira faz parte atualmente. Ou seja, ainda persiste o objetivo prioritário de criar consistentemente valor aos acionistas, mas numa intervenção cujo horizonte de tempo está além do esperado para estratégias de reestruturação. Uma primeira maneira de interpretar essa inconsistência é imaginar que a reestruturação da AmBev ainda está em andamento. Todavia, as evidências levantadas na pesquisa demonstram que os processos de turnaround necessários para reerguer a CCB e posteriormente para alavancar a posição da AmBev no contexto internacional já foram há tempos superados. No caso da CCB, o evento que simboliza o fim da reestruturação foi a fusão com a CAP, pois se já não bastasse ter alcançado a liderança do mercado nacional, a cervejaria praticamente adquiriu a sua concorrente no que se chamou de fusão em 1999. Já no caso da AmBev, a operação com o grupo europeu Interbrew também pode ser entendida como o fim do processo de reestruturação da cervejaria nacional, pois ali os controladores da companhia brasileira, ao trocar suas ações por participação no novo grupo criado (InBev), obtiveram o retorno esperado pelo investimento na fusão em 1999. Uma segunda interpretação plausível é que a atual estratégia de reestruturação da AmBev, aprimorada ao longo do tempo em função do aprendizado adquirido por seus acionistas e executivos, representa uma inovação em relação ao

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modelo inicialmente identificado por Porter (1987) e Collis e Montgomery (1997). Em outras palavras, haveria uma nova estratégia de reestruturação que concilia a geração de valor no curto prazo com ambições de longo prazo. As evidências desta pesquisa realmente apontaram para um aprimoramento da estratégia de reestruturação da AmBev, como é o caso da flexibilização nas regras da remuneração variável. Todavia, essa ―evolução‖ do modelo é muito tímida para se afirmar que se trata de um tipo avançado de estratégia de reestruturação. As principais características apontadas por Porter (1987), como orientação para a geração de valor, remuneração agressiva, ênfase em redução de custos e ganhos de eficiência, ainda estão presentes nos dias de hoje na AmBev e compõem a essência de sua estratégia corporativa. Em alguns casos, obviamente, houve ajustes, mas nada que represente uma ruptura com o modelo inicial. Por exemplo, a flexibilização da remuneração variável não eliminou o fato de que os funcionários recebem um salário abaixo da média do mercado e precisam bater metas agressivas de desempenho. Resta, então, encontrar uma explicação para a permanência dos acionistas no controle da AmBev, já que é o único aspecto que difere a estratégia da cervejaria de uma típica estratégia de reestruturação. Nesse sentido, o pesquisador concluiu que a necessidade primária de crescer, latente tanto para a organização quanto para seus funcionários, foi o fator que justificou a manutenção do controle acionário por parte dos antigos sócios do Banco Garantia. A partir do momento em que a AmBev já havia se expandido de maneira bem sucedida pela América do Sul, era preciso criar novas oportunidades de expansão que permitissem manter a sua estratégia de reestruturação em pleno funcionamento. O mecanismo de reforço que existe na pressão sobre os funcionários no sentido de tirar-lhes da zona de conforto e sempre exigir metas mais audaciosas de desempenho, por exemplo, só é sustentável na medida em que a organização oferece condições concretas de expansão e crescimento. No caso, isso se deu através da criação da ABInbev, oriunda dos movimentos de fusão com a Interbrew e de aquisição da Anheuser-Busch. Ao mesmo tempo em que significou o fim do processo de reestruturação da AmBev, a formação da InBev representou para Lemann, Telles e Sicupira não só o ganho financeiro esperado com a cervejaria brasileira, mas o início de um novo

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processo de reestruturação. Naquele momento, os ex-banqueiros estavam diante da oportunidade de investir recursos e apostar na reestruturação de um novo negócio, só que dessa vez em uma operação de escala global (e, portanto, com perspectivas de ganhos ainda maiores) e com a vantagem de ser o mesmo setor onde desenvolveram sua estratégia corporativa e onde detinham uma ampla experiência de mercado. A mesma análise pode ser estendida para a aquisição da Anheuser-Busch. Assim como a Interbrew, a AB também era uma cervejaria que passava por dificuldades em termos financeiros e operacionais, apresentando baixa eficiência e perda de participação de mercado. Analisando atentamente, observa-se que CCB, InBev e AB estavam em situações semelhantes quando houve a implantação da estratégia de reestruturação do Banco Garantia. Além disso, constata-se também que, da mesma forma que consolidaram a indústria nacional de cerveja e assumiram a liderança nesse mercado, os sócios do Banco Garantia estão repetindo a receita em escala mundial: a ABInBev é atualmente o maior grupo produtor de cervejas do mundo. Portanto, o foco dos antigos sócios do Banco Garantia passou a ser o desafio de conduzir o processo de reestruturação da ABInBev de forma a consolidar a liderança mundial do setor com patamares de desempenho financeiro e operacional semelhantes ao sucesso obtido no Brasil. Não é à toa, inclusive, que a AmBev ocupa papel central dentro da ABInBev: além da grande capacidade de geração de caixa proveniente de sua eficiência operacional, exporta recursos humanos e práticas de trabalho para todo o mundo. Sendo assim, conclui-se que o crescimento contínuo é uma condição necessária à perpetuação e o sucesso de estratégias de reestruturação. Inicialmente, tal condição é atendida quando, ao analisar oportunidades de investimento, priorizam-se negócios improdutivos em indústrias maduras, com baixo grau de inovação, baixa produtividade e potencial de consolidação (PORTER, 1987), como foi o caso da CCB e da indústria de cervejas no Brasil. No mais, é igualmente importante uma boa capacidade de navegação no ambiente de forma a moldá-lo de acordo com os seus interesses e mantê-lo sempre favorável às suas pretensões. A AmBev, por exemplo, possui essa competência para navegar no ambiente, sendo a referência para o setor e liderando-o sem grandes ameaças.

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Esse contexto do ambiente é que torna a implementação da estratégia de reestruturação viável, pois permite que a intervenção nos negócios se oriente para a geração de valor aos acionistas segundo horizontes curtos de tempo, sem oferecer grandes entraves à organização e à sua maneira de ser gerida. Pode-se dizer que, em linhas gerais, essa abordagem preconiza o cumprimento de um roteiro específico e limitado de mudança que passa por iniciativas para reduções de custo e gerenciamento de receitas, sem nenhuma propensão ao comprometimento de recursos para explorar o futuro. Além da ambiência favorável ao crescimento, o sucesso da implementação de uma estratégia de reestruturação está associado a outros dois construtos do modelo proposto por Fleck (2009a): a gestão da folga e o desafio de gerir a diversidade. No primeiro caso, há uma prioridade deliberada pela maximização da folga financeira. O racional para essa decisão é o entendimento de que esse tipo de folga dota a empresa de flexibilidade necessária para crescer continuamente e se adequar a possíveis mudanças no ambiente, indo de encontro ao sugerido por Lawson (2001) e por Nohria e Gulati (1997). Em geral, essa flexibilidade diz respeito à capacidade de adquirir outras empresas. Tal aspecto é bastante evidente ao longo da história da AmBev, assumindo um caráter tanto defensivo quanto produtivo. A fusão da Antarctica com a Brahma é um exemplo dessa conduta, sendo justificada pela necessidade de proteger a indústria brasileira de uma possível aquisição por parte de cervejarias internacionais e de ganhar escala para competir mundialmente. A expansão da empresa pela América Latina também se enquadra nesse racional: tendo em vista a tendência de consolidação mundial da indústria de cervejas, a AmBev tratou de adquirir negócios em países da região de forma a alcançar um tamanho que lhe permitisse competir com os líderes mundiais e gozar de uma posição de maior poder dentro do processo de fusões e aquisições. Complementarmente à folga financeira, é preciso desenvolver competência para absorver empresas adquiridas e imprimir-lhes as melhores práticas da organização. Essa competência exige folga de recursos humanos e uma resposta efetiva ao desafio de gerir a diversidade, permitindo que novos negócios sejam rapidamente incorporados, sinergias capturadas e riscos de fragmentação da organização minimizados. Para exemplificar, através de inúmeros mecanismos de

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controle interno e de padronização e do intercâmbio de pessoas, a AmBev adquiriu aproximadamente 10 negócios nas Américas em apenas cinco anos, imprimindo suas práticas e sempre ocupando posição entre as líderes dos mercados.

7.1 SUGESTÕES PARA PESQUISAS FUTURAS

Um aspecto que provocou curiosidade durante a elaboração do trabalho e que merece ser investigado em profundidade são as experiências dos executivos da AmBev para implementar a estratégia de reestruturação brasileira na Europa e mais recentemente nos Estados Unidos, por meio da ABInBev. Em levantamento inicial, encontraram-se evidências de que está havendo dificuldades para implementar a cultura, as práticas e os procedimentos brasileiros nesses países. No cerne da questão há diferenças culturais que afetam não só o mercado de cervejas naquelas regiões, mas também outras dimensões do ambiente de negócios, em especial em relação a emprego e trabalho. Primeiramente, nos EUA e em países da Europa que já apresentam uma cultura cervejeira mais bem desenvolvida, a demanda pela bebida apresenta-se estagnada, havendo bastante dificuldade para reverter o quadro atual. Um dos desafios reside no crescimento do consumo de outras bebidas alcoólicas que são substitutos diretos da cerveja, como o vinho. Isso faz com que a ABInBev venha enfrentando dificuldades para aumentar suas receitas e volume de vendas, diferentemente do que ocorre no Brasil. Boa parte dos ganhos obtidos até o momento decorreram do aumento da eficiência das operações, através da redução de custos e desperdícios e do aproveitamento de sinergias. Na Bélgica, por exemplo, a cerveja é uma questão de orgulho nacional, e são produzidos mais de 300 tipos da bebida em seu território. "A cerveja é para os belgas o que o vinho é para os franceses" (MAMULY, 2008, p. 2). Diferentemente do Brasil, onde a padronização e a concentração da oferta permitem o funcionamento pleno do motor de crescimento inercial, a Europa é caracterizada pela diversificação dos produtos oferecidos ao mercado, bem como pela existência de inúmeras microcervejarias competindo contra as grandes empresas multinacionais. Além disso, na Europa Ocidental, há anos os consumidores têm trocado a cerveja tradicional por marcas mais caras ou mesmo por outros tipos de bebida, como vinho

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e destilados. Segundo Mamuly (2008), o consumo de cerveja caiu 20% entre 2000 e 2008 na Bélgica, berço da Interbrew. Essa cultura cervejeira faz ainda com que muitos funcionários questionem as características da estratégia brasileira, especialmente a ênfase excessiva em execução. Dentre as queixas contra a ABInBev, há o suposto predomínio do volume de vendas sobre a qualidade da cerveja. Nas palavras de um jornalista belga, a impressão é de que os brasileiros são operadores de mercado e vendem cerveja como venderiam sabonete. Um segundo aspecto diz respeito ao mercado de trabalho, sua regulação e o papel social assumido pelo Estado. Ainda na Europa, a implementação do modelo da AmBev vem esbarrando em outro contraste cultural em relação ao Brasil: diferentemente do que ocorre aqui, os trabalhadores europeus não demonstram a mesma atração pelo esquema de remuneração variável, além de contar com o auxílio do Estado em caso de desemprego.

Na Europa a situação é outra. "Lá, as relações de trabalho são muito diferentes das que encontramos no Brasil ou nos Estados Unidos", diz Betania Tanure, pesquisadora da Fundação Dom Cabral, especialista em comportamento organizacional. Em bom português, isso significa que trabalhar não é a prioridade na vida da maioria das pessoas.

Querem diminuir nosso salário fixo e aumentar a remuneração variável, mas não estamos interessados em ganhar bônus", afirma um funcionário da fábrica de Leuven, que pediu para não ser identificado. "Se quiserem nos mandar embora por causa disso não há problema algum, porque o Estado vai prover tudo de que precisamos. (CORREA, 2005, p. 3)

Ao longo dos cinco anos à frente da ABInBev, os executivos da AmBev já contabilizaram algumas derrotas, dentre elas o fracasso na implementação integral do sistema de remuneração variável na Bélgica. O máximo que conseguiram foi condicionar 10% dos rendimentos dos funcionários com cargo de gerência a resultados (MAMULY, 2008). Em janeiro de 2010, trabalhadores belgas bloquearam as entradas às fábricas em Leuven, Liège e Hoegaarden durante duas semanas, exigindo o abandono de um plano para cortar 10% dos 8 mil empregados da AB InBev na Europa Ocidental. Paralisaram inclusive a produção da Stella Artois, principal marca da empresa no continente. Os sindicatos mobilizaram políticos e abriram sites de boicote na internet. No 15º dia, a empresa retirou seu plano de demissões (MOREIRA, 2010).

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A ABInBev também está acumulando resistência da comunidade na Bélgica, que se manifesta através da imprensa local e de outras mídias contrariamente às mudanças empreendidas pelos brasileiros, questionando a legitimidade da organização. Para um jornalista belga, "A InBev não faz mais parte da tradição belga. Os diretores agora só querem saber de cortar, cortar e cortar, para gerar lucros. Parece uma obsessão." (MAMULY, 2008, p. 3). As experiências mais recentes nos Estados Unidos são semelhantes. A cartilha seguida pelos executivos brasileiros foi a mesma: demissão de pessoal (1400 demitidos semanas após a conclusão do negócio); corte de custos (venda dos parques Busch Gardens e outras iniciativas que totalizaram aproximadamente um bilhão de dólares em 2009); e fixação dos salários num nível abaixo da média de mercado, sendo a parte variável maior do que a média (benefícios como seguro de vida para aposentados foram cortados). Tais mudanças, contudo, provocaram a reação da comunidade, em especial na cidade de Saint Louis, que abriga a cervejaria norte-americana. Boicote às cervejas da empresa, críticas e mobilização através das mídias sociais contra os novos métodos de trabalho e os executivos brasileiros se tornaram freqüentes.

"Os novos donos não têm o menor respeito pelas tradições da Anheuser- Busch, e sua ganância é um tapa na cara do trabalhador americano. Descansem em paz, AB." afirmou à Revista Exame, por e-mail, um funcionário que deixou a cervejaria em abril. (LETHBRIDDGE, 2010, p. 4)

Os fatos mencionados acima, portanto, demonstram que a experiência de internacionalização da estratégia de reestruturação da AmBev poderá contribuir para o aprofundamento da discussão sobre o seu impacto para a longevidade das organizações. Dado que se trata de um ambiente distinto em relação ao brasileiro, quais são ou serão as grandes dificuldades para a implementação dessa estratégias em outros mercados? Como essa estratégia evoluirá para se adaptar a essas restrições? Haverá mudanças significativas ou manter-se-á o mesmo compromisso e rigidez com a estratégia atual?

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APÊNDICES

APÊNDICE A – LISTA DE DIMENSÕES DE ANÁLISE

Dimensão Detalhamento Processo Desafio Dimensão 1 Detalhamento 1 2 2 Crescimento Serviço Perfil Empreender Ambição “Empire-builder” contínuo empreendedor ambicioso “Product- Crescimento Serviço Perfil Empreender Ambição minded contínuo empreendedor ambicioso entrepreneur” Natureza Crescimento Serviço Empreender Versatilidade da “Exploration” contínuo empreendedor novidade Natureza Crescimento Serviço Empreender Versatilidade da “Exploitation” contínuo empreendedor novidade Habilidade em Crescimento Serviço Empreender levantar - - contínuo empreendedor financiamento Crescimento Serviço Empreender Julgamento - - contínuo empreendedor Predisposição Crescimento Disposição de Empreender da firma de - - contínuo correr riscos crescer Predisposição Busca pela Crescimento Empreender da firma de minimização de - - contínuo crescer riscos Crescimento Motivação da Expansão Empreender - - contínuo expansão produtiva Crescimento Motivação da Expansão Empreender - - contínuo expansão defensiva Crescimento Motivação da Empreender Expansão híbrida - - contínuo expansão Crescimento Motivação da Empreender Expansão nula - - contínuo expansão Monitoramento Crescimento Navegar no das pressões - - - contínuo ambiente do ambiente Crescimento Navegar no Respostas Estratégia de Tática Hábito contínuo ambiente estratégicas aceitação Crescimento Navegar no Respostas Estratégia de Tática Imitação contínuo ambiente estratégicas aceitação Crescimento Navegar no Respostas Estratégia de Tática Conformidade contínuo ambiente estratégicas aceitação Crescimento Navegar no Respostas Estratégia de Tática Balanceamento contínuo ambiente estratégicas comprometimento Crescimento Navegar no Respostas Estratégia de Tática Pacificação contínuo ambiente estratégicas comprometimento Crescimento Navegar no Respostas Estratégia de Tática Barganha contínuo ambiente estratégicas comprometimento Crescimento Navegar no Respostas Estratégia de Tática Ocultação contínuo ambiente estratégicas evasão Crescimento Navegar no Respostas Estratégia de Tática Prevenção

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contínuo ambiente estratégicas evasão Crescimento Navegar no Respostas Estratégia de Tática Fuga contínuo ambiente estratégicas evasão Crescimento Navegar no Respostas Estratégia de Tática Ignorar contínuo ambiente estratégicas confrontação Crescimento Navegar no Respostas Estratégia de Tática Desafio contínuo ambiente estratégicas confrontação Crescimento Navegar no Respostas Estratégia de Tática Ataque contínuo ambiente estratégicas confrontação Crescimento Navegar no Respostas Estratégia de Tática Cooptação contínuo ambiente estratégicas manipulação Crescimento Navegar no Respostas Estratégia de Tática Influência contínuo ambiente estratégicas manipulação Crescimento Navegar no Respostas Estratégia de Tática Controle contínuo ambiente estratégicas manipulação Compartilhamento Existência Gerir a Construção de de recursos - - continuada diversidade laços e vínculos homogêneos Intercâmbio de Existência Gerir a Construção de recursos - - continuada diversidade laços e vínculos heterogêneos Capacitações Existência Gerir a em - - - continuada diversidade coordenação Aprovisionar Existência Antecipação de recursos Antecipação - - continuada necessidades gerenciais Aprovisionar Existência Antecipação de recursos Retenção - - continuada necessidades gerenciais Aprovisionar Existência Antecipação de recursos Sucessão - - continuada necessidades gerenciais Aprovisionar Existência Manutenção da recursos Avaliação - - continuada qualidade gerenciais Aprovisionar Existência Manutenção da recursos Renovação - - continuada qualidade gerenciais Aprovisionar Existência Manutenção da Desenvolvimento recursos - - continuada qualidade e formação gerenciais Resolução Gerir a Amplitude da - sistemática de - - complexidade busca problemas Resolução Gerir a - sistemática de Aprendizado - - complexidade problemas Resolução Gerir a - sistemática de Forma de busca - - complexidade problemas Tabela 0-1: Lista de Dimensões de Análise

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APÊNDICE B – HISTÓRIA DA CERVEJA

Surgimento

Segundo Morado (2009), acredita-se que a cerveja tenha nascido no Oriente Médio ou no Egito. Isso porque, em meados do século XIX, arqueólogos que escavavam tumbas de faraós encontraram, preservados por séculos em meio a valiosos tesouros e outras especiarias, vasos com resquícios de cevada. Historiadores contam que o homem pré-histórico abandonou a vida nômade ao desenvolver as primeiras técnicas de agricultura e começou a cultivar grãos. A possibilidade do cultivo de cereais (sorgo, cevada, trigo) e seu armazenamento para consumo permitiram a fixação do homem em grupos. Os primeiros campos de cultura de cereais surgiram na Ásia Ocidental por volta do ano 9000 a.C. Os agricultores primitivos colhiam os grãos e os transformavam em farinha. Daí surgiu a lenda que diz que o que fixou o homem foi a necessidade de produzir pão e cerveja (existe uma relação direta entre os dois alimentos: são feitos de grãos, água e fermento, e apresentam o mesmo valor nutricional – assim como o pão, a cerveja alimenta e já foi, por isso, chamada de ―pão líquido‖). Ainda segundo o autor, há diversos indícios que levam a crer que, à época em que o homem começou a construir cidades – por volta de 6000 a.C. – a fabricação de cerveja já era uma atividade bem estabelecida e aparentemente organizada. Os documentos mais antigos já encontrados estão repletos de símbolos de cerveja como mercadoria e moeda de troca. Em 1913, o arqueólogo e lingüista checo Bedrich Hrozny decifrou algumas tábuas com registros comprovando que, na região entre os rios Tigre e Eufrates (hoje Iraque), os sumérios consumiam uma bebida chamada sikaru. Quase vinte tipos diferentes da bebida eram produzidos para serem usados como remédios (para os olhos e a pele), para pagar o salário de trabalhadores ou servir de oferenda aos deuses. A peça suméria conhecida como Monumento Blau, de 4.000 a.C., mostra a cerveja sendo oferecida à deusa Nin-Harra.

 Este capítulo foi elaborado com base na estrutura e no conteúdo desenvolvidos por Ronaldo Morado em ―Larousse da Cerveja‖, São Paulo: Larousse do Brasil, 2009.

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O Império Mesopotâmico, que sucedeu o Sumério, também deixou indícios da importância social da cerveja, particularmente o Código de Hamurábi, escrito pelos babilônios por volta de 1730 a.C. (SANTOS, 2004). Um dos artigos desse Código previa o afogamento do cervejeiro em sua própria bebida, caso fosse intragável. Outro artigo estabelecia a pena de morte para os sacerdotes encontrados em bares. Também determinava que o pagamento pela venda de cerveja não poderia ser em dinheiro, mas apenas em grãos de cereais. Na sociedade babilônica, o cervejeiro era um homem de reputação, dispensado do serviço militar sob a condição de suprir os exércitos com sua bebida. Já nos bordéis, cada prostituta produzia sua própria cerveja para ser oferecida aos clientes. A cervejaria mais antiga foi descoberta por arqueólogos em Tebas, Egito, e data de 3400 a.C. Essa fábrica produzia cerveja de diferentes variedades, como a ―Cerveja dos Notáveis‖ e a ―Cerveja de Tebas‖ (SANTOS, 2001). O primeiro grande centro produtor de cerveja da história foi a cidade de Pelesium, atual Port-Said, também no Egito. Os egípcios faziam vários tipos de cerveja sob o nome genérico de zythum (MORADO, 2009). As mais suaves eram destinadas aos pobres e as aromatizadas com gengibre, tâmara e mel ficavam reservadas aos nobres. A bebida era indispensável nas cerimônias fúnebres e também usada em banhos, como tratamento para a pele. Os gregos conheceram a cerveja através dos egípcios, mas a bebida não era bem aceita. Pedáneo Dioscórides (40-90), médico grego considerado o fundador da Farmacognosia (parte da farmacologia que trata das drogas ou substâncias medicinais em seu estado natural, antes de serem manipuladas), afirmava que a cerveja tinha efeito diurético e a recomendava apenas para tratamento médico. O poder de influência dos gregos e, mais tarde, dos romanos, produtores e apreciadores do vinho, fez com que a cerveja perdesse um pouco de sua popularidade, já que a política dos conquistadores era impor seus costumes aos conquistados. Mais tarde, o vinho, por ser a bebida dos judeus e dos cristãos europeus, com vários significados simbólicos e também identificado com o sangue de Cristo, ocupou uma parte importante na cultura da época. Entretanto, a cerveja, por ser mais abundante e barata, passou, gradualmente, a ser a bebida das classes mais pobres e dos bárbaros (como os estrangeiros eram chamados pelos romanos).

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Outra razão da popularidade e prestígio da cerveja é que, ao contrário do vinho, que dependia exclusivamente de uvas de cuidadoso plantio e colheita delicada, a cerveja podia ser fabricada a partir de diferentes cereais (trigo, milho, sorgo e arroz, além da cevada), produtos mais resistentes e abundantes, principalmente nas regiões conquistadas e em parte do Império Romano. Consta que, em 49 a.C., Júlio César, ao atravessar o Rio Rubicon, brindou suas tropas com cerveja. A onda de expansão da cultura cervejeira a partir da Mesopotâmia teve outra rota de difusão, igualmente importante, graças aos trácios, povo que dominava um enorme território onde hoje estão, além da própria Trácia, a Bulgária, a Romênia, a Moldávia e partes da Grécia, da Macedônia, da Sérvia e da Turquia. A cerveja era uma bebida sagrada para esses povos, e acredita-se que, devido aos movimentos migratórios, eles acabaram por influenciar os germânicos e os celtas. Os celtas, por sua vez, habitaram boa parte da Europa e dividiam-se em várias tribos: gauleses, belgas, bretões, batavos, escotos, eburões, gálatas, trinovantes e caledônios. Foram eles os formadores de países como França, Portugal, Espanha, Bélgica, Inglaterra, Irlanda e Escócia. Além de referência na metalurgia do ferro, os celtas são reconhecidos por terem desenvolvido novas receitas e técnicas de fabricação de cerveja. Plínio, o Velho, autor romano que viveu entre os anos 23 e 79 a.C., escreveu, em Naturalis Historia, sobre celtas fazendo cerveja na Gália (hoje França) e na Galícia (hoje Espanha). E foi exatamente na Gália que a bebida recebeu o nome latino até hoje conhecido: era chamada de cerevisia ou cervisia, em homenagem a Ceres, deusa da colheita e da fertilidade. Era uma bebida alcoólica, fermentada a partir de cevada ou de outro cereal, não continha lúpulo, era aromatizada com mel e maturada em ânforas de barro ou em tonéis de madeira. Durante o primeiro milênio da era cristã, celtas e germânicos eram os povos que mais produziam e consumiam a cerveja. Ela era considerada sagrada, uma recompensa aos heróis e uma oferenda aos deuses; era servida em intermináveis festas e banquetes, assim como em cerimônias nas quais os guerreiros contavam suas histórias de bravura e conquistas. Vários outros povos (escandinavos, asiáticos, africanos e os da América primitiva) desenvolveram bebidas fermentadas a partir de cereais, que eram também muito populares, e que podem ser igualmente chamadas de cerveja. Os chineses,

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por exemplo, foram pioneiros na utilização de cereais para fazer as cervejas Kin e Sanshu a partir de grãos de arroz, aproximadamente em 2300 a. C. Os índios norte- americanos serviram uma bebida semelhante à cerveja aos primeiros espanhóis que chegaram ao continente, e os Incas já preparavam a CHICHA e a SORA, cervejas de milho fermentado (ENTREVISTADO #11).

Idade Média

Até o início da Idade Média, a produção de cerveja era uma atividade exclusivamente caseira, de responsabilidade das esposas e dirigida ao consumo doméstico, já que fazia parte da dieta da família. Era a bebida preferida, por sua disponibilidade e seu baixo custo (em comparação ao vinho). No período medieval, além de uma necessidade nutricional, a cerveja era, às vezes, usada como remédio – para o que a ela eram misturadas cascas, raízes, especiarias como tomilho, pimenta e ervas em geral. Também era consumida em festas, como inebriante e refrescante, sendo, não raras vezes, uma alternativa para a água, que nem sempre era possível. As primeiras iniciativas de produção em maior escala aconteceram nos mosteiros, a partir do século VI. Nessa época, os monges irlandeses Columbano e Galo (hoje São Columbano e São Galo) fundaram, pela Europa, diversos mosteiros que tinham amplas instalações para a fabricação de cerveja. Os mais famosos são a Abadia de Sankt Gallen, na Suiça, e a Abadia de Bobbio, na Itália. Numa época de sociedade iletrada, os mosteiros eram locais de conhecimento, desenvolvimento de técnicas e com capacidade de registrar as receitas e os acontecimentos que serviram para construir sua história. Por sua capacidade de trabalho, dedicação e, principalmente, por serem alfabetizados, os religiosos se tornaram, de fato, os primeiros pesquisadores sobre a cerveja, tendo aprimorado seu método de fabricação e introduzido a idéia de conservação a frio da bebida (MORADO, 2009). Os mosteiros não eram os únicos estabelecimentos religiosos com cervejarias. Casas episcopais e catedrais também estavam envolvidas de algum modo com a fabricação e o consumo da bebida. A Catedral de Estrasburgo (França), por exemplo, tem registros de produção para algumas festividades religiosas no

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século X. Era característica da vida monástica que as abadias e os mosteiros fossem auto-suficientes. Assim, ali se cultivavam hortas e pomares e se construíam móveis e ferramentas. Os mosteiros tornaram-se produtores de cerveja de boa qualidade, e desenvolveram técnicas, utensílios e receitas próprias. Se necessário, segundo as regras do Império, podiam contar com o abastecimento de cereais. O Império de Carlos Magno contribuiu bastante para a consolidação da cerveja como mercadoria e como atividade importante na economia da época. O Capitulare de Villis, conjunto de regras para a correta administração das terras do Estado, publicado por Carlos Magno no final do século VIII, reconhecia os cervejeiros como artesãos especializados, com destacado papel na constituição dos vilarejos. Seu Império era organizado em vários Estados, cada um com uma estrutura própria: igreja, padaria, comércio em geral, estábulos, celeiros e cervejarias. O apoio do Imperador à Igreja Católica, que beneficiou a instituição de grandes mosteiros, contribuiu para a consolidação da cerveja como bebida e alternativa ao vinho. Durante todo o período medieval até a Renascença, os processos de fabricação e comercialização de cerveja sofreram transformações lentas e graduais. Morado (2009) identifica cinco diferentes estágios que ilustram a evolução da organização do trabalho humano. Primeiro, ocorreu uma especialização da mão-de- obra cervejeira, mas como atividade esporádica, apenas para completar a renda familiar. Aos poucos esse trabalho passou a se concentrar em determinadas épocas do ano, especialmente nas estações fora da época de plantio ou de colheita. De maneira natural e espontânea, esses cervejeiros foram se reunindo em grupos regionais como verdadeiros arranjos produtivos. Com a crescente urbanização e o aumento da demanda, os grupos locais ampliaram sua capacidade e passaram a produzir o ano todo. Então, as técnicas e melhorias de processo fizeram a grande diferença na qualidade e produtividade, numa época considerada o primórdio da industrialização. E, finalmente, os estados e burgos se interessaram pelo negócio, regulando e assumindo a produção local e regional. A Renascença trouxe os fundamentos do capitalismo, novos conceitos e técnicas de produção, ampliação de volumes e de mercados. A urbanização provocou mudanças comportamentais e sociais, e a cerveja acompanhou essas mudanças.

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Introdução do lúpulo

Desde a origem da cerveja, na Antiguidade, os cervejeiros usam aditivos para enriquecer o sabor da bebida, adicionar-lhe aromas, dar-lhe mais cor, aumentar seu teor alcoólico, conservar ou provocar seus efeitos inebriantes. Mel, canela, açúcar mascavo, anis, gengibre, rúcula, alecrim, cravo, e raízes em geral foram alguns dos ingredientes usados ao longo do tempo. O uso do lúpulo na produção de cerveja era comum desde o século IX, mas o primeiro registro, escrito em plena Idade Média, está no livro Physica sive Subtilitatum, da monja beneditina alemã Hildegarg von Bingen (1098-1179). Apesar do seu amargor e do efeito inebriante, o lúpulo foi adotado porque suas propriedades de conservação foram logo percebidas. Como o processo de fermentação não era controlado, a produção de cerveja nos meses quentes era muito difícil, pois as altas temperaturas aceleravam o trabalho dos micro-organismos presentes no ar e azedavam mais rapidamente o produto. Portanto, qualquer ingrediente ou processo que ajudasse a conservar o produto por mais tempo seria um grande diferencial para os cervejeiros (MORADO, 2009). Por volta do ano 1400, o lúpulo já era bastante difundido na Alemanha e nos Países Baixos. Apesar da resistência inicial dos consumidores, especialmente no Reino Unido, durante o século XV ele finalmente se impôs como conservante e aromatizante, em contraposição à grande variedade de ervas, flores, frutas, raízes, cascas e até hortaliças. O que não impediu, no entanto, que algumas cervejas continuassem a receber a adição desses ingredientes que lhes conferiam sabores e aromas diversos.

Era de Desenvolvimento

Entre os séculos VIII e XVI, a cerveja passou por vários estágios de desenvolvimento, simultaneamente com toda a estrutura social e econômica da sociedade ocidental. Tornou-se um item crítico de fornecimento nas vilas e cidades que começaram a se formar: de atividade caseira, a produção de cerveja transformou-se lentamente em um negócio com características de indústria.

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Ao longo de 700 anos, à medida que aglomerações humanas se tornaram mais numerosas, algumas pequenas cervejarias comerciais foram se estabelecendo nas cidades européias. Mais à frente, a urbanização ocorrida nos séculos XII e XIII concentrou o consumo e ajudou na criação do negócio especializado da cerveja. Durante esse período, diferentes estabelecimentos e instituições se desenvolveram com a produção e a comercialização da bebida. A partir da produção caseira – responsabilidade das donas de casas, sem fins lucrativos e realizada de forma absolutamente artesanal – começaram a surgir grupos de vizinhos e amigos que se reuniam temporariamente para produzir e comercializar cervejas em escala maior e já com fins lucrativos. Começaram a surgir, então, especialistas na produção da bebida. Tal profissional se ocupava desde o plantio dos ingredientes, passando pela fabricação e indo até a comercialização. Essa atividade era totalmente dominada pelo homem, chefe da família. O modelo acabou evoluindo para os chamados grupos de produtores locais, que se uniam para formar um núcleo mais forte, com o compartilhamento de técnicas, negociações de compra de insumos e comercialização de seus produtos. Finalmente, surgiram as primeiras manufaturas – protótipos das futuras indústrias – nas quais grupos de especialistas se uniam em torno de instalações comuns, produzindo cerveja em grande escala com o objetivo de atender a mercados maiores e mais distantes. Em 1040, o Mosteiro de Weihenstephan, em Freising, na Alemanha, conseguiu a licença para produzir cerveja comercialmente (inclusive, se intitula a cervejaria mais antiga ainda hoje em funcionamento no mundo). No século XII, a cerveja era distribuída gratuitamente e era dada até mesmo às crianças como preventivo ao tifo e à cólera, porque era isenta de contaminação. Pressionados pelos senhores feudais, porém, a Igreja e os monastérios foram obrigados a renunciar à prática de distribuição gratuita de cerveja, sob a alegação de concorrência desleal, uma vez que sua produção era uma atividade lucrativa e rendia impostos, enquanto a Igreja e os monges não pagavam nenhum imposto – nem pelos ingredientes nem pelo trabalho. Em 1200, a atividade cervejeira se estabeleceu comercialmente nas regiões atualmente conhecidas como Alemanha, Áustria e Inglaterra. No primeiro país, a primeira cervejaria de Frankfurt foi instalada em 1288, e, em menos de cem anos

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depois, Munique já tinha três cervejarias. Vale lembrar que a localização das cervejarias dependia de bom fornecimento de água, que também determinava o tipo de cerveja produzida, já que as possíveis manipulações químicas, especialmente da água, ainda não eram conhecidas. A demanda crescente estimulou o aumento da comunidade cervejeira e promoveu o primeiro movimento de aperfeiçoamento dos artesãos e de diversificação e melhoramento dos tipos de cerveja produzidos. Outro fator que acompanhou o desenvolvimento da rudimentar indústria cervejeira foi o apetite dos governos por arrecadação de impostos. É difícil determinar o estilo das cervejas dessa época de acordo com as classificações atualmente adotadas. Segundo Morado (2009), sabe-se que as cervejas eram azedas, com muita variação de cor e de aroma, opacas e com resíduos de fermentação. Tudo isso em conseqüência das más condições de higiene, da falta de controle de temperatura e da não-filtração do produto final.

Lei da Pureza

O início da Idade Moderna, marcado pelo descobrimento da América em 1492 por Cristóvão Colombo e pela Reforma Protestante, trouxe consigo vários acontecimentos relevantes para a cultura cervejeira. A Reforma Protestante desencadeou, na Europa, uma onda de mudanças que enfraqueceu e quase destruiu a estrutura dos mosteiros cervejeiros espalhados pelo continente. Os primeiros passos para regulamentar as atividades relacionadas à cultura cervejeira ocorreram paralelamente aos grandes avanços tecnológicos. Mas todas as medidas de controle visavam questões econômicas (impostos) ou a qualidade dos produtos. Obter o direito de produzir cerveja comercialmente não era fácil. A atividade era fortemente controlada por ser boa fonte de impostos. Em 1514, em Paris, estabeleceu-se a exigência de três anos de formação para que alguém pudesse se habilitar a abrir uma cervejaria comercial. No entanto, já havia algum tempo que os governantes, em toda a Europa, estavam preocupados em estabelecer padrões para o processo de produção da bebida. Apesar de ter havido tentativas anteriores, registradas desde 1165, a

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primeira regulamentação sobre fabricação de cerveja foi decretada em 1487 pelo Duque Albrecht IV da Baviera. Ela serviu de inspiração para a promulgação da Lei da Pureza, a Reinheitsgebot, de 1516, de grande amplitude territorial, que se tornou a mais famosa referência da história sobre a padronização do processo de fabricação de cerveja. Estabelecida pelos Duques Wilhelm IV e Ludwig X, em 23 de abril de 1516, essa lei dizia, entre outras coisas, que os únicos ingredientes permitidos para a fabricação de cerveja eram a água, a cevada e o lúpulo. Não mencionava a levedura porque não se tinha conhecimento de sua participação no processo; ela era considerada uma dádiva dos céus. A aceitação da Reinheitsgebot foi se espalhando gradativamente da Baviera para outras regiões vizinhas. Em 1906, estendeu-se a todo o Império Alemão, mas já incluindo o fermento como ingrediente básico e admitindo o trigo como adjunto em cervejas de alta fermentação. A lei sobreviveu por mais de quatrocentos anos, inclusive ao Terceiro Reich, que a adotou integralmente. Outros países como Noruega, Suíça e Grécia também a adotaram. Ainda que os alemães tenham aberto mão da lei no final do século XX, em função de pressão competitiva no mundo globalizado, o apelo à Lei da Pureza é uma referência bastante usada por cervejarias que desejam indicar a alta qualidade de seus produtos, fazendo constar nos rótulos e no material de divulgação o ―atestado‖ de cumprimento do padrão por ela estabelecido.

Época de crise

Os séculos XV e XVI foram um período muito próspero para a indústria cervejeira. Aproveitando os altos preços do vinho e a redução dos custos de produção de cerveja pela escala alcançada, o mercado consumidor se espalhou por toda a Europa. Um litro de vinho custava o equivalente a 6,1 litros de cerveja. O consumo per capita alcançou os maiores índices em toda a história (MORADO, 2009). A cerveja se tornou um item importante nas transações de mercado entre países. O volume era considerável, a ponto de provocar uma crise no abastecimento de madeira para os barris. Em 1543, um Ato do Parlamento Inglês determinou que

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toda exportação de cerveja deveria prever a importação de madeira equivalente ao volume embarcado na forma de barril. O século XVII, entretanto, já começou com uma série de desafios à nascente indústria cervejeira. Em primeiro lugar, a alta demanda por cevada elevou o preço do cereal, diminuindo as margens de lucro. Depois, surgiu uma intensa competição por mercados: muitas cervejarias foram criadas, e muitos países que viviam da exportação de seus produtos começaram a sofrer com a instalação de concorrentes locais nos mercados-alvo. Outro problema veio com a competição com os produtores de vinho, que reagiram à queda do consumo e influenciaram governantes a aumentar os impostos sobre a cerveja. Em alguns lugares da Europa, os impostos representavam mais de 50% do preço final da bebida. Além disso, para enfrentar a popularidade da cerveja, lançaram o brandy (conhaque), feito a partir da destilação do vinho, a preços bem competitivos.

Surgimento da Pilsen

Depois de quase duzentos anos de declínio e crises na história da produção da cerveja, o século XIX assistiu ao renascimento da bebida, em grande parte graças ao avanço tecnológico que caracterizou aquela época. A partir da segunda metade do século XVI, algumas cervejarias alemãs localizadas perto de Munique foram proibidas, pelo Duque Albrecht V da Baviera, de fabricar cervejas no verão. Entretanto, era-lhes concedida a permissão para produzir suas cervejas nos meses frios e guardá-las para serem consumidas no verão. Para não sofrer com o aumento de temperatura, a bebida era, então, armazenada em adegas frias e úmidas, nos Alpes. A cerveja assim produzida, chamada Lager – que significa ―guardada, armazenada‖ em alemão (MORADO, 2009) – tinha características interessantes. Embora não se soubesse explicar o motivo, percebeu- se que a cerveja armazenada dessa forma adquiria sabor acentuado e aparência mais clara e leve. Hoje se sabe que as leveduras, responsáveis pela aparência esfumaçada ou turbidez da cerveja, tendem a não se flocular a baixas temperaturas, o que tornava mais limpa, refrescante e leve a cerveja armazenada durante o inverno.

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Outra mudança significativa no que diz respeito à composição da cerveja ocorreu com o malte. Até o início do século XVII, a maioria dos maltes usados na fabricação de cerveja era seco em fornalhas, o que os deixava um pouco queimados, quase torrados, e invariavelmente defumados. Isso resultava em uma cerveja escura e com notas de fumaça. As poucas cervejas claras existentes usavam maltes secos naturalmente, mas essa prática não era muito comum. A partir de 1642, o coque, um combustível derivado do carvão betuminoso, começou a ser usado para secar o malte. Esse novo procedimento permitiu que os grãos passassem pelo processo de secagem sem serem torrados, o que resultava em cervejas mais claras, chamadas de Pale Ale. Outro avanço aconteceu no início do século XIX, quando Gabriel Sedlmayr II, de tradicional família de cervejeiros, desenvolveu um método de secagem via aquecimento indireto dos grãos, tornando o processo de produção de malte passível de total controle. Tal procedimento permitiu controlar melhor a cor e eliminou odores e sabores de fumaça e de queimado do produto final. O estilo mais popular de cerveja nos tempos atuais deve seu nome à cidade de Pilsen, na Boêmia, atual República Checa. Era uma cidade como centenas de outras, que desde o século XVI produziam suas próprias cervejas em pequenas instalações, muitas delas caseiras. No final da década de 1830, algum problema indeterminado estava ocorrendo com a bebida na cidade, provavelmente contaminação, mas os conhecimentos bioquímicos eram muito rudimentares para que se pudesse determinar sua real causa. Foi, então, contratado um especialista – Josef Groll – mestre cervejeiro atualizado com as novas tendências de maltagem clara (pale) e fermentação a frio (lager). Groll produziu, no dia 5 de outubro de 1842, uma nova cerveja clara e carbonatada, com sabor acentuado e refrescante. Depois de alguns dias, em 11 de novembro, ele apresentou a nova bebida à população da cidade, que imediatamente a aprovou. Poucos anos depois, esse tipo de cerveja foi batizado de ou Pilsen, em alusão à cidade de Pilsen. O lançamento da Pilsen se deu em uma época muito especial, coincidindo com a novidade que eram os cristais da Boêmia. Até a primeira metade do século XIX, as cervejas eram servidas em canecas de louça, estanho, madeira e até de

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couro. Mas a cor, o brilho, o colarinho e o borbulhar da nova cerveja Pilsen exigiam transparência e leveza. Foi, portanto, uma combinação perfeita, já que, nessa época, a região da Boêmia já era famosa por fabricar os melhores cristais da Europa. Portanto, a cerveja, como é conhecida até hoje, fabricada com malte de cevada e lúpulo por grandes corporações, é resultado do desenvolvimento científico e industrial ocorrido no século XIX. Com a invenção da máquina a vapor e outras inovações trazidas pela Revolução Industrial (segunda metade do século XVIII), como a melhoria dos sistemas de refrigeração e nos meios de transporte, a produção de cerveja passou de uma atividade doméstica para uma escala industrial. Também alguns instrumentos, como o microscópio e o termômetro, que já eram utilizados há mais de duzentos anos na medicina, passaram a ser empregados no acompanhamento do processo de fermentação e no controle das variações de temperatura durante toda a produção. As descobertas da fórmula da fermentação pelo químico francês Gay Lussac e da pasteurização pelo cientista Louis Pasteur, em 1859, proporcionaram um melhor entendimento do processo de fermentação, que a partir de então passou a ser um fator importante para a diversificação da cerveja. Apesar de o nome de Pasteur ser popularmente associado ao processo de pasteurização do leite, na verdade, suas pesquisas foram direcionadas à cerveja, como está registrado em seu documento Études sur la bière, de 1876. Pasteur foi, durante muitos anos, consultor de várias cervejarias. Por fim, em 1883, o cientista dinamarquês Emil Christian Hansen isolou as primeiras culturas puras de levedura, iniciando sua produção controlada na cervejaria Carlsberg. Foi assim que a cerveja começou a ganhar estabilidade organoléptica.

Retrocesso

O período compreendido entre o final do século XIX e o início do século XX foi marcado pelos movimentos de repressão ao consumo de álcool. As primeiras reações surgiram na Europa, especificamente na Bélgica e no Reino Unido, onde o

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gim, cujo teor alcoólico é quase dez vezes superior ao da cerveja, passou a ser um fenômeno de consumo. No primeiro país, o governo proibiu, em 1919, a venda de outras bebidas alcoólicas além da cerveja em bares. Tal restrição só foi revogada em 1983. Já no Reino Unido, o Parlamento Inglês aprovou, em julho de 1830, o ―Beer Act of 1830‖, resolução que tentava incentivar a produção e venda de cerveja, numa tentativa de diminuir a oferta e o consumo de gim. Isso levou ao surgimento das public beer houses (pubs): em apenas oito anos, surgiram 46 mil pubs na Inglaterra e no País de Gales, dobrando, assim, o número de estabelecimentos (tabernas, bares e pousadas) existentes anteriormente. No caso dos Estados Unidos, a Lei Seca só foi promulgada em 1918, mas suas raízes remetem ao processo de colonização do país, já que o pensamento proibicionista, ou movimento antialcoólico, existiu desde o início de sua colonização e, de alguma forma, persiste até hoje. Na raiz da questão está a rejeição da sociedade às conseqüências comportamentais e patológicas geradas pelo alcoolismo. A Lei Seca causou grande impacto econômico para o país, pois a indústria de bebidas era o quinto segmento mais importante na economia americana. A Lei foi lançada, mantida, disseminada e aprovada pelo Congresso como resultado da influência da coalizão entre democratas e republicanos e religiosos cristãos e protestantes. O tema da proibição foi absorvido como uma preocupação com a saúde pública e as leis da época só permitiam o consumo de bebidas com teor alcoólico abaixo de 0,5%. Em função da inflexibilidade do Governo, que se manteve irredutível diante de protestos e movimentos em favor da liberação da cerveja, aos poucos a clandestinidade passou a incentivar a criminalidade, encorajando uma nova cultura criminosa que girava em torno do contrabando de bebidas, como cervejas e destilados, para atender à demanda de grande parcela da população. Nessa época, os Estados Unidos praticamente começaram a ser controlados por gângsteres e armas. Al Capone, filho de um imigrante italiano, passou a dominar as destilarias e cervejarias do país e chegou a faturar cem milhões de dólares por ano durante a Lei Seca.

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A situação, porém, começou a sair do controle: Al Capone comandou, em Chicago, um massacre que ajudou a desencadear o fim da Lei Seca. A população passou a se posicionar contra a restrição e o presidente Franklin Roosevelt aprovou, em abril de 1933, uma emenda que previa a permissão para o consumo de bebidas com 4,0% por volume de álcool, mas recebendo alta tributação. Por fim, em dezembro do mesmo ano, no ápice da Grande Depressão e após treze anos de proibição, a Lei Seca foi abolida pelo presidente Roosevelt, num clima de grande comemoração. A eficácia das ações contra o consumo de álcool era controversa e gerava muita polêmica. Em 1929, em plena vigência da Lei Seca, o governo americano estimava que a produção ilícita de cerveja era de 26 milhões de hectolitros (hl)7. Para se ter uma idéia, em termos de comparação, esse foi o consumo de cerveja no Brasil no final da década de 70.

Modernidade

As duas Grandes Guerras impactaram profundamente a indústria cervejeira mundial. Cercados pela escassez de mão-de-obra, pelas restrições ao álcool em alguns países, pela dificuldade de obter matéria-prima e pelas restrições financeiras dos consumidores, a indústria e o comércio de cerveja foram drasticamente reduzidos. As 3.223 cervejarias existentes na Bélgica antes da Primeira Grande Guerra estavam reduzidas a 755 em 1946. Nos Estados Unidos, eram 2.330 cervejarias em 1880, caindo para 160 no início da Segunda Grande Guerra e para apenas 60 no início da década de 60. No Reino Unido, eram 6.447 em 1990, tendo sido reduzidas para 885 em 1939 e 358 em 1960. O pós-guerra, no entanto, criou um clima de renascimento em todo o mundo. Estimulada pelo renascimento das cervejarias européias no pós-guerra e pelo boom desenvolvimentista norte-americano, uma onda de microcervejarias começou a se formar na costa oeste do país. Outro importante movimento surgiu a partir de 1970. A Inglaterra foi o berço de uma iniciativa importante pelo ―renascimento‖ das cervejas Ale, motivada pela preocupação com a crescente massificação e industrialização das cervejas. Em

7 Hectolitro=100 litros.

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novembro de 1972, alguns cervejeiros ingleses iniciaram o movimento Campaign for Real Ale (CAMRA), uma campanha em favor da autêntica Ale, que motivou e incentivou bares e pequenos produtores. Como conseqüência, milhares de micro e pequenas fábricas surgiram, provocando um fenômeno mundial que se espalhou pela Europa, Estados Unidos, Ásia e, mais recentemente, América Latina. Tal movimento acabou favorecendo não só as cervejas do tipo Ale, mas a bebida de maneira geral. Livres da obsessão por satisfazer o gosto-padrão de mercado, essas pequenas fábricas têm oferecido ao público a possibilidade de explorar a diversidade de sabores, texturas, cores e aromas de cervejas. De certa maneira, essa situação tem forçado as grandes cervejarias a também oferecer outros tipos além da cerveja do tipo pilsen. Outro acontecimento estimulante para o consumo de cerveja aconteceu em fevereiro de 1979, nos Estados Unidos. O presidente Jimmy Carter revogou as restrições à produção caseira de cerveja, em vigor desde 1917 (por uma falha, o Ato que determinou o fim da Lei Seca em 1933 havia liberado a produção caseira de vinho, mas não a de cerveja). Essa foi uma das principais razões da popularidade do movimento de fabricação de cerveja em casa (homebrewing) que tomou conta do Canadá e dos Estados Unidos nas últimas décadas, e que chegou finalmente ao Brasil. A despeito desses movimentos de revitalização da cultura cervejeira, o mercado mundial tem crescido enormemente nas últimas décadas. A globalização de mercados, que provocou o gigantismo das empresas e a competição internacional, levou à massificação dos produtos. Se, por séculos, as cervejarias foram direcionadas pelos mestres cervejeiros, os departamentos de marketing é que assumiram a condução do negócio. O final do século XX e o início do XXI representaram um momento de transição na estrutura produtora e consumidora mundial de cerveja. Por um lado, as fusões das cervejarias levaram a uma concentração cada vez maior do mercado nas mãos de poucas empresas. Por outro lado, a proliferação de pequenas indústrias aliviou essa pressão e favoreceu a diversificação e a experimentação. No tocante ao consumidor, este se mostra cada vez mais exigente, buscando produtos ecologicamente corretos e de boa qualidade, e atento a novidades e sofisticação.

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APÊNDICE C – HISTÓRIA DA INDÚSTRIA DA CERVEJA NO BRASIL

Surgimento da cerveja no Brasil

A cerveja é um produto com longa tradição no Brasil, surgindo já referências à bebida em documentos que datam do século XVII, possivelmente com a colonização holandesa pela Companhia das Índias Ocidentais (1634-1654): segundo Santos (2004), os mercadores flamengos, grandes apreciadores de cerveja, tinham não só uma boa organização política como de suprimentos e até de cultura e lazer. No entanto, com a saída dos holandeses em 1654, a cerveja deixou o país por um século e meio, só reaparecendo no final do século XVIII e início do seguinte. Ainda assim, sua ascensão foi demorada e tortuosa, sendo que, no início do século XIX, a cachaça e o vinho eram as bebidas alcoólicas preferidas pelo povo. Os colonizadores portugueses não eram consumidores de cerveja, nem tampouco os nativos, que sequer a conheciam. A situação começou a mudar com a transferência da corte portuguesa para o Brasil, em 1808. Como a economia portuguesa se encontrava há tempos subordinada à inglesa, D. João relutou em aderir incondicionalmente ao Bloqueio Continental, decretado por Napoleão em 1806, para fazer frente ao poderio britânico e desestabilizar a economia inglesa. Diante do impasse, Napoleão ordenou a invasão do reino ibérico, e a família real portuguesa, sem chances de resistir ao ataque, fugiu para o Brasil, em 1808, sob proteção inglesa (KOSHIBA, 1996). A capital do reino de Portugal foi estabelecida na capital do Estado do Brasil, a cidade do Rio de Janeiro, registrando-se o que alguns historiadores denominam de "inversão metropolitana"; ou seja, da antiga colônia passou a ser exercido o governo do império português. A fuga da Corte para o Rio de Janeiro trouxe duas importantes conseqüências para o Brasil: a ruptura colonial e o seu ingresso na esfera de domínio da Inglaterra. Ainda em 1808, D. João decretou a abertura dos portos às nações amigas, pondo fim, na prática, ao exclusivo metropolitano que restringia drasticamente o comércio do Brasil. A Carta Régia, de 28 de janeiro de 1808, permitiu a abertura dos portos a todos "os navios estrangeiros das potências que se conservem em paz e harmonia com a minha Real Coroa", acabando com o pacto colonial (KOSHIBA, 1996, p. 94).

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Segundo Santos (2004), antes desta data, a cerveja consumida no país vinha contrabandeada para o Recife, Rio de Janeiro e Salvador. Freire (1977), em seu livro ―Ingleses no Brasil‖, registra que o inglês Lindley a tomou em 1800 em um mosteiro em Salvador, onde encontrou um grande estoque de cerveja de sua terra. No início do século XIX, a cachaça e o vinho eram as bebidas alcoólicas preferidas pelo povo; devido à pressão portuguesa, o vinho era a bebida mais comercializada no país. Nessa época, a cerveja já era produzida, mas o seu consumo não se encontrava generalizado, permanecendo como uma produção caseira e típica de populações imigrantes. No final dos anos 20, o oficial alemão Carl Seidler encontrou, no Rio Grande do Sul, imigrantes alemães com conhecimento para fabricar cerveja lucrativamente.

Domínio Inglês

A partir da abertura dos portos, inúmeros comerciantes estrangeiros – principalmente ingleses – instalaram-se no Brasil, fazendo vir da Europa, entre outros produtos, a cerveja. Além de exercer grande influência comercial e cultural sobre Portugal, a Inglaterra, no início do século XIX, era de longe a maior produtora de cerveja da Europa (SANTOS, 2004). Os ingleses no Brasil não abriam mão de suas preferências tradicionais, e os portugueses de mais posses os imitavam, passando a ter em suas mesas o pão branco, o chá, o queijo, o presunto, o gim, o uísque e a cerveja. Sendo assim, a cerveja inglesa dominou o mercado brasileiro por muito tempo, com a Porter e a Pale Ale, menos alcoólica. Em 1809, a Inglaterra fez D. João assinar três tratados que a favorecia comercialmente, contendo artigos que feriam os interesses econômicos de Portugal e do Brasil (KOSHIBA, 1996). Um deles era o de Amizade e Aliança; o outro de Comércio e Navegação; e um último que regulamentou as relações postais entre os dois reinos. De acordo com o segundo Tratado, o governo português concedia aos produtos ingleses uma tarifa preferencial de 15%, ao passo que a que incidia sobre os artigos provenientes de Portugal era de 16% e a dos demais países amigos, 24%. A brutalidade dos tratados se explica pela pesada pressão econômica que o bloqueio napoleônico exerceu sobre a Inglaterra, reforçando a necessidade de se abrir novos mercados. A facilidade com que a Inglaterra impôs seus interesses ao

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Brasil permitiu a maciça exportação de seus produtos, inundando o mercado brasileiro, e trouxe modificações radicais tanto nos hábitos de consumo quanto na posição do Brasil dentro do mercado internacional: da órbita do colonialismo mercantilista português para a dependência do capitalismo industrial inglês. Koshiba (1996, p. 91, grifo nosso) cita trecho de um viajante inglês, John Mawe, que descreveu o Rio de Janeiro dessa época da seguinte forma:

O mercado ficou inteiramente abarrotado; tão grande e inesperado foi o fluxo de manufaturas inglesas no Rio, logo em seguida à chegada do Príncipe Regente, que os aluguéis das casas para armazená-las elevaram- se vertiginosamente. A baía estava coalhada de navios, e em breve a alfândega transbordou com o volume de mercadorias. Montes de ferragens e pregos, peixe salgado, montanhas de queijos, chapéus, caixas de vidro, cerâmica, cordoalha, cerveja engarrafada em barris, tintas, gomas, resinas, alcatrão, etc., achavam-se expostos não somente ao sol e à chuva, mas à depredação geral; (...) espartilhos, caixões mortuários, selas e mesmo patins para gelo abarrotavam o mercado, no qual não poderiam ser vendidos e para o qual nunca deveriam ter sido enviados.

Os Decretos de 1810 praticamente anularam o Alvará de 1º de abril de 1808, que revogou o de 1875 que proibia a instalação de manufaturas no Brasil (complementando, desse modo, a Carta Régia de 1808). Ainda que a medida tenha permitido a instalação, em 1811, de duas fábricas de ferro em São Paulo e Minas Gerais, o sopro de desenvolvimento parou por aí, pois a presença de artigos ingleses bem elaborados e a preços relativamente acessíveis bloqueava a produção de similares em território brasileiro. Nesse contexto, não há relatos de produção lucrativa de cerveja no Brasil até o início do Segundo Reinado, em 1840. Durante o período, só houve venda e comercialização de cerveja importada, especialmente da Inglaterra. Os anúncios comerciais nos jornais referiam-se, exclusivamente, à venda de cerveja, nunca à produção. Foi só a partir da década seguinte que as famílias de imigrantes começaram a usar escravos e também a empregar trabalhadores livres para produzir a bebida e vendê-la ao comércio local. Nesse momento, o Rio de Janeiro já tinha uma população de padrão médio formada por militares, oficiais de indústrias, proprietários de pequenas manufaturas, profissionais liberais e funcionários públicos. A cidade já era comparável a outras da Europa Central, e tinha um mercado consumidor relevante. A venda era feita no balcão e na própria cervejaria. Convites eram espalhados pelos proprietários em bares próximos e festas eram realizadas

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dentro das cervejarias. As entregas eram feitas por carroças ao comércio dos bairros próximos e, a partir da metade do século XIX, a fabricação de cerveja brasileira começou a tomar vulto com o aparecimento de diversas fábricas.

Início das atividades produtivas

Para Santos (2004), não se pode precisar com exatidão o início da produção de cerveja no Brasil. Além de as fábricas não produzirem cerveja com marca alguma, a bebida era geralmente vendida em barris para os depósitos (comércio que nem sempre era só de cerveja), que as comercializavam de várias formas, às vezes engarrafadas e com rótulos próprios. No entanto, o autor reconhece que a década de 40 foi um período de grande desenvolvimento na fabricação e consumo de cerveja. Em 1846, Georg Heinrich Ritter instalou uma pequena linha de produção de cerveja na região de Nova Petrópolis – Rio Grande do Sul (RS), criando a marca Ritter, uma das precursoras do ramo cervejeiro. Além dessa, muitas outras aproveitaram o caminho anteriormente desbravado, como foram os casos da firma Vogelin & Bager, que abriu uma cervejaria no bairro do Jardim Botânico, no Rio de Janeiro (RJ); e a Henrique Leiden e Cia, que deu origem à Imperial Fábrica de Cerveja Nacional, também no RJ. O Almanak Laemmert8 cita muitas outras cervejarias que surgiram por todo o Brasil, desde Joinville – Santa Catarina (SC) a São Paulo – São Paulo (SP), passando por Petrópolis e Niterói – RJ (CERVEJAS DO MUNDO, 2010). Na década seguinte (50), apareceu uma nova leva de industriais interessados em investir nesse negócio: a Fábrica de Cerveja Nacional de Alexandre Maria VillasBoas & Cia, no Rio de Janeiro - RJ; a Fábrica de Cerveja de Thimóteo Durier, em Petrópolis - RJ; a Fábrica de Jacob Nauerth, no Rio de Janeiro - RJ; a Fábrica de Cerveja Guarda Velha de Bartholomeu Correa da Silva, também no Rio de Janeiro; e a Fábrica de Cerveja de Friederich Christoffel, em Porto Alegre - RS. Todas

8 O Almanak Laemmert, publicado no Rio de Janeiro entre 1844 e 1889, pelos irmãos Eduard e Heinrich Laemmert, é considerado atualmente como um instrumento indispensável de consulta para conhecimento do passado comercial, financeiro e social brasileiro do Século XIX e início do Século XX. Fonte: Ministério da Cultura. Disponível em: . Acesso em: 19 fev. 2010.

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artesanais, de pequena produção – 200 a 300 mil garrafas/ano – e vida efêmera (SANTOS, 2004). Nas décadas de 60 e 70, houve um grande aumento da produção nacional de cerveja, que se manteve até a Primeira Guerra Mundial, quando não se pôde mais obter cevada e lúpulo de procedências alemã e austríaca. As cervejas brasileiras, artesanais, tinham um precário controle de fermentação e, conseqüentemente, uma pressão variável. As rolhas, portanto, eram presas às garrafas por barbantes (como hoje se fixam as de champanhe com arame), dando origem à expressão "marca barbante", usada, desde então, para qualquer produto ordinário. Vale lembrar também que o abastecimento de cevada e de lúpulo sempre foi problemático, tendo os cervejeiros que recorrer a outros cereais como arroz, trigo e milho, prática corrente em vários países. O domínio da cerveja inglesa no mercado brasileiro durou até os anos 70, quando declinou significativamente, em função, principalmente, do aumento da concorrência da cerveja já produzida no país, de qualidade inferior, porém mais barata. De 1865 a 1869, o valor da cerveja inglesa enviada ao Brasil foi de 480 mil libras, contra 90 mil de 1885 a 1889 (SANTOS, 2004). No final do século XIX, a importação de cerveja voltou a crescer – ainda que a níveis inferiores aos dos anos 60 – mas agora a preferência era pela cerveja alemã, que vinha em garrafas e em caixas, ao contrário das antigas cervejas inglesas, até então trazidas em barris. Na realidade, desde a segunda metade do século XIX a cerveja alemã já vinha ganhando espaço e predominância em toda a Europa Continental, pelo sucesso da variedade de baixa fermentação, oriunda da Baviera e da Boêmia. Essa cerveja se contrapunha à de alta fermentação: era clara, límpida, conservava-se melhor e correspondia mais ao paladar da época. Vale ressaltar que, à época, havia ocorrido duas grandes inovações que se difundiram rapidamente pela Europa e possibilitaram a produção de cerveja de baixa fermentação em grande escala: o desenvolvimento de sistemas de refrigeração eficientes e as máquinas a vapor, como as da Inglaterra. O período áureo da cerveja alemã no Brasil, contudo, não foi longo, pois em 1896 o governo quadruplicou os impostos de importação e, em 1904, mais ainda, limitando a importação. Com essas dificuldades e com o desenvolvimento da

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indústria nacional de cerveja, praticamente cessou a importação no início do século XX.

Nascimento da indústria brasileira de cerveja

As primeiras cervejarias industrializadas do país surgiram nas décadas de 1870 e 1880 (SANTOS, 2004). A pioneira foi a de Friederich Christoffel, em Porto Alegre, que em 1878 produzia mais de um milhão de garrafas. Ainda permanecia a dificuldade de obtenção de matéria-prima e o mesmo problema de fermentação em um país de clima tropical. Tentou-se o controle da temperatura de fermentação com o uso do gelo natural, trazido em barcos a vela dos Estados Unidos. Em 1880, instalaram-se no Rio de Janeiro as primeiras máquinas compressoras frigoríficas que, produzindo gelo artificial, propiciavam um ambiente refrigerado, representando um grande avanço na indústria cervejeira do país. Com essa tecnologia, podia-se obter cerveja de baixa fermentação, uniforme e límpida, como as da Bavária e da Boêmia. É desse contexto, inclusive, que se originam as duas cervejarias que viriam a dominar a indústria nacional: a Companhia Antarctica Paulista, de São Paulo, e a Companhia Cervejaria Brahma, do Rio de Janeiro. No final do século XIX, a cidade de São Paulo contava com 52 fábricas, das quais apenas a Antarctica e outras dez dispunham de mais de 100 funcionários. O Brasil tinha uma população de 14 milhões de habitantes, uma inflação anual de 7,2% e o PIB era de 1,8 milhão de contos de réis, produzidos basicamente pela economia do café (SANTOS, 2001). O século XX marcou a inserção e o fortalecimento do Brasil na indústria internacional de cerveja, destacando-se tanto por fatores relacionados às condições econômicas, quanto às previsões de demanda, alavancadas pela evolução do mapa de consumo da população. No início do século, seguindo movimento do final do século anterior, a indústria nacional de cerveja surpreendia pelo grande número de cervejarias e de marcas lançadas pelas empresas. Como o mercado cervejeiro se encontrava em grande ebulição, inúmeras cervejarias foram fundadas por todo o Brasil, sendo que cada empresa tratava logo de registrar um número elevado de marcas diferentes, de forma a assegurar uma determinada fatia do mercado. A CCB era um exemplo claro

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dessa estratégia: entre 1894 e 1914, registrou aproximadamente 20 marcas de cerveja, sem haver, no entanto, evidências da comercialização de todas as marcas. Em 1913, um ano antes da Primeira Guerra Mundial, existiam 134 cervejarias só no Estado do Rio Grande do Sul (CERVEJAS DO MUNDO, 2010). A Primeira Guerra Mundial não trouxe grandes alterações ao panorama cervejeiro do Brasil. O fato de a guerra se desenrolar principalmente na Europa e de a importação de cerveja estrangeira ser reduzida fez com que não só o consumo como também a produção se mantivessem a níveis bastante elevados e em franco crescimento, havendo, contudo, restrições em relação à obtenção de cevada e lúpulo de origem alemã e austríaca. Já no período da Segunda Guerra Mundial, o mercado nacional foi beneficiado pela suspensão de importação de bebidas, incentivando ainda mais o crescimento da indústria brasileira de cerveja.

De empreendimento regional a negócio de escala nacional

A despeito das duas Grandes Guerras, o século XX foi marcado pela vocação expansionista da CAP e da CCB e pela sua consolidação na liderança da indústria cervejeira nacional. Ambas experimentaram um crescimento bastante acentuado, expandindo-se por todo o país e encampando inúmeras outras cervejarias (SANTOS, 2004), como mostra o quadro abaixo. Para Sull (2005), Brahma e Antarctica moldaram a indústria de cerveja no Brasil por mais de 100 anos: durante o século XX, ambas consolidaram a fragmentada indústria nacional através da aquisição de rivais menores e da construção de marcas, produção e distribuição de proporções nacionais. Migrou-se, portanto, de uma situação de desconcentração e regionalização para a consolidação de uma estrutura concentrada em escala nacional.

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Companhia Antarctica Paulista Companhia Cervejaria Brahma

 Cervejaria Bavária, SP (1904)  Companhia Guanabara, SP (1928)

 Companhia Adriática, PR (1941)  Cervejaria Atlântica, PR (1942)

 Cervejaria Bohemia, RJ (1961)  Bopp, Sassen, Ritter e Cia. Ltda – Cervejaria Continental, RS (1946)  Cervejaria Polar, RS (1972)  Companhia Paulista de Cerveja Vienenses,  Cervejaria Catarinense, SC (1972) SP (1954)  Cervejaria de Manaus S.A – Cerman, MA  Fratelli Vita Indústria e Comércio S.A., BA (1972) (1970)  Companhia Baiana de Alimentos, BA (1972)  Cervejaria Astra S.A., CE (1971)  Companhia Cervejaria Paulista, SP (1972)  Cervejarias Reunidas Skol – Caracu S.A.,  Cervejaria Pérola, RS (1973) SP (1980)

 Companhia Itacolomy de Cervejas, MG (1973)

 Cervejaria Serramalte, RS (1978)

 Companhia Alterosa de Cervejas, MG (1980)

 Cervejaria Nordestina S/A: Cerva, RS (1989)

Tabela 0-2: Aquisições da CAP e da CCB Fonte: Baseado em CAP e CCB.

Reviravolta na indústria cervejeira brasileira

Os anos 70 e 80 foram um período difícil para a economia brasileira em geral e especialmente para a indústria de cervejas. A alta na inflação e o controle de preços impediram as cervejarias de aumentar seus preços para cobrir o aumento dos custos de matérias-primas, reduzindo as suas margens. O alto custo de capital tornou investimentos produtivos proibitivos, e a demanda muitas vezes excedeu a capacidade de fornecimento. Além disso, a indústria se ressentia das importações de malte, cevada e equipamentos necessários à produção da bebida. Por

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conseqüência, um dos problemas enfrentados pelo mercado era a falta da bebida nos meses quentes, época de maior demanda (SANTOS, 2001). Por ser a mais fraca das duas cervejarias líderes, a CCB vivenciou dificuldades particulares para lidar com esses desafios. Em 1983, um grupo de investidores liderados por dois bancos brasileiros – Banco Bradesco e Sul America Seguros – lançaram uma oferta hostil pelo controle da CCB, que a empresa conseguiu evitar com êxito mediante a ajuda do Banco Garantia (SULL, 2005). Enquanto as demais cervejarias sofreram nos anos 80, a CAP superou a tempestade em condições superiores às rivais. Em 1989, a marca Antarctica detinha 40,8% de participação de mercado, contra 37,8% da Brahma. No entanto, 60% dos consumidores citavam a Antarctica como sua cerveja favorita, contra somente 20% a favor da Brahma. Tais consumidores não tinham sempre a possibilidade de comprar Antarctica, pois havia faltas freqüentes em bares e restaurantes em função de a empresa ter evitado realizar os gastos de capital necessários para atender à demanda existente, por causa dos baixos retornos sobre investimentos. A CAP era também mais lucrativa do que a CCB: margem bruta de 44% em 1989, contra 16% para a concorrente, e margem EBITDA de 25%, contra 5%. Para mexer ainda mais com o mercado, com o término do controle de preços, parte da década de 80 e a década de 90 presenciaram a entrada de três novas marcas de cerveja que viriam a fazer frente às duas líderes centenárias: a Kaiser, a Schincariol e a Itaipava. Em 1982, o empresário mineiro Luis Otavio Possas Gonçalves, um dos principais acionistas do Grupo Gonçalves-Guarany – proprietário, desde 1947, de duas grandes engarrafadoras de Coca-Cola no estado de Minas Gerais – resolveu fabricar cerveja. Tal decisão foi motivada pela perda gradual de participação da empresa no mercado de refrigerantes, já que a CAP e a CCB praticavam a venda casada de cervejas e refrigerantes, praticamente obrigando os comerciantes a comprar guaraná e soda juntamente com cerveja. Diante disso, o empreendedor arriscou todo o capital de que dispunha na construção de uma cervejaria (Cervejaria Kaiser), em Divinópolis – MG, e em nove meses já colocava a sua primeira garrafa no mercado. A cerveja Kaiser, de baixo preço e focada nos consumidores mais jovens, rapidamente ganhou participação de mercado em Minas Gerais e, posteriormente, no Brasil, em sua maioria da Brahma e da Antarctica. Em 1983, a

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cervejaria holandesa Heineken, uma das maiores exportadoras do mundo, passou a dar assistência técnica à Kaiser. Diante do sucesso, a Coca-cola Internacional comprou 10% da cervejaria em 1984, sendo o único investimento da empresa no mundo em bebidas alcoólicas. E não era à toa: o Brasil é um dos poucos mercados no mundo em que produtores de refrigerantes distribuem cervejas e vice-versa. Em 1989, a Primo Schincariol, fundada em 1939 na cidade de Itu, SP, e que no início se limitou à produção de conhaque, groselha, vinho e o refrigerante Itubaína, lançou a sua primeira cerveja, do tipo pilsen: a Schincariol (GRUPO SCHINCARIOL, 2010). Em uma década, a cerveja de baixo preço pulou de um market share de menos de 1%, em 1990, para 7,5%, em 1999. Por fim, em 1993, um grupo de empresários se associou e comprou algumas máquinas, equipamentos e um terreno às margens da Rodovia BR 040 - Km 51, dando origem à Cervejaria Petrópolis S/A, em Petrópolis – RJ. Aproveitando o clima ameno da região serrana, a existência de água de qualidade excepcional e fazendo uso dos conhecimentos de um mestre cervejeiro e de matéria-prima importada de alta qualidade, foi lançada, em 1994, a cerveja Itaipava. Em 1998, a cervejaria foi vendida a um grupo de empresários que, com mais capacidade financeira, ampliou as instalações, lançou novas marcas – como a cerveja Crystal, em 1998 – dando início a uma fase de crescimento vertiginoso. Foi também a primeira fabricante a adotar o selo higiênico: uma folha final de alumínio que cobre a parte superior da latinha, protegendo-a de poeira e eventuais contaminações (MORADO, 2009). Se o início dos anos 90 foi marcado pela queda acentuada no consumo de cerveja, em decorrência da redução do poder de compra da população brasileira (inflação), a introdução do Plano Real, em 1994, propiciou um considerável aumento no consumo da bebida no biênio 1994/95, sendo um dos mercados que mais cresceu na era pós-real. Com a estabilização da economia, acredita-se que 30 milhões de novos consumidores entraram no mercado em 1995, considerando-se aqueles que voltaram a beber cerveja e os que passaram a consumi-la em maior escala (OLIVEIRA, 1996). As vendas para aquele ano foram de 7,5 bilhões de litros de cerveja, representando um crescimento de 27% em relação a 1994 (SANTOS, 2001). O consumo per capita também experimentou aumento, passando de 38 litros/habitante para 48 litros/habitante. O mapa de consumo regional, entretanto, determinava uma condição bastante heterogênea para o mercado brasileiro.

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Enquanto a região do Grande Rio apresentava índice de 96 litros/habitante, a região Nordeste chegava a modestos 24 litros/habitante. O mercado brasileiro era formado por uma população jovem e de baixo poder aquisitivo, sendo as classes C, D e E responsáveis por 77% do total das vendas. O Estado de São Paulo era responsável por cerca de 40% desse mercado.

Ascensão da CCB e queda da CAP

Com o aumento da demanda, as marcas de baixo preço, como Kaiser, Schincariol e Itaipava começaram a ganhar participação de mercado: entre 1989 e 1998, a CAP e a CCB sofreram declínios no market share de suas marcas principais de 23,8% e 15,7%, respectivamente (SULL, 2005). Diante da ameaça, as duas cervejarias responderam através de duas iniciativas: o lançamento de cervejas para concorrer diretamente com as novas marcas e o corte de custos. No que se refere à primeira iniciativa, a CCB saiu na frente ao relançar, em 1994, a cerveja Skol. A combinação de uma série inovações de sabor e embalagem, publicidade agressiva e direcionada ao público jovem, um preço menor do que o da Brahma e intervenções na rede de distribuição, levou a Skol não só a experimentar a maior taxa de crescimento entre as marcas disponíveis como a chegar à liderança do mercado em 1998, com 25,3% de market share. O sucesso da Skol serviu para consolidar a CCB como a líder do mercado brasileiro. Apesar da perda de participação da marca Brahma, o crescimento da marca Skol permitiu à cervejaria manter seu market share próximo de 50% do mercado, enquanto a CAP passou de 40,8% em 1989 a 25,45% em 1998. Historicamente, embora as duas empresas fossem comparáveis em termos de tamanho, a CAP geralmente liderou em market share, lucratividade, introdução de novos produtos e gestão da inovação. Sob a gestão do Banco Garantia, no entanto, a história começou a mudar, com a CCB ultrapassando a sua rival. Enquanto a Skol se tornou um dos maiores sucessos do País, a cerveja Bavaria, lançada em 1996 pela CAP, atingiu seu ápice em 1998, com somente 7,3% de market share. No final das contas, a Bavaria acabou desempenhando papel muito diferente do pretendido: em vez de roubar participação de mercado das

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concorrentes, a marca canibalizou as altas margens das outras marcas da cervejaria (SULL, 2005). Diante do fracasso da Bavaria e buscando manter o market share e a utilização de sua capacidade, a CAP iniciou uma intensa guerra de preços no mercado brasileiro, embora sua grande estrutura de custos resultasse em perdas operacionais quando os preços caíam. Por outro lado, a CCB, que iniciara um processo de reestruturação após a entrada do Banco Garantia em 1989, conseguiu manter saudáveis margens brutas apesar dos baixos preços, graças aos esforços internos de redução de custos e aumento de eficiência produtiva e de distribuição. A guerra de preços deixou a CAP com um alto grau de endividamento. Além disso, a desvalorização do real em 1999 praticamente dobrou o custo de serviço da dívida em dólar. A CCB, por sua vez, tinha uma dívida absoluta maior do que a concorrente ao final de 1998, porém, além de gerar um fluxo de caixa operacional muito maior para cobrir juros, havia feito o hedge de 100% de sua dívida em dólar. Essa posição ajudou a empresa a resistir à desvalorização cambial, diferentemente da CAP, cuja sobrevivência encontrava-se ameaçada. Em matéria publicada na Revista Exame, Caetano (1999) mencionava estudo realizado por Oscar Malvessi, professor de finanças da FGV-SP, que concluiu que a CAP, ao contrário da CCB, vinha, gradativamente, destruindo o patrimônio de seus acionistas. O professor atestava que, em 1994, ambas ocupavam o mesmo patamar, com ligeira vantagem para a CAP, cotada em 2,5 bilhões de reais, enquanto a CCB valia 2,2 bilhões de reais. Contudo, ao final de 1998, o valor da CCB havia crescido para 3,7 bilhões de reais, ao passo que o da CAP se reduzira a apenas 330 milhões de reais. Pelo critério do EVA, Malvessi calculava que a cifra acumulada, entre 1993 e 1998, havia, no caso da CCB, crescido até 1997, com diminuição em 1998, totalizando, ao final de seis anos, um valor positivo de 700 milhões de reais. A CAP, por sua vez, só apresentou EVA positivo em 1993, e o valor acumulado até 1997 teria sido de 680 milhões de reais negativos. Para Malvessi, os números traduziam- se numa lógica simples: enquanto a CCB era uma fonte de riqueza, a CAP destruía valor para seus acionistas (o que explicava a queda da cotação da empresa na Bolsa).

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Criação da AmBev

A urgência de injeção de caixa para salvar a CAP trouxe especulações a respeito da possibilidade de uma cervejaria estrangeira adquirir participação acionária na empresa. Após um longo período de isolamento da concorrência internacional e de controle de preços, a indústria cervejeira, assim como todas as demais, teve que se readaptar ao novo ambiente institucional de abertura comercial e liberalização de preços.

Se até alguns anos atrás, uma das características marcantes do mercado mundial de cerveja era o fato de que as empresas dirigiam sua produção para o mercado doméstico, exportando pequenos excedentes, o que se constata atualmente, com relação às estratégias mercadológicas de empresas com atuações globais, é a agressiva penetração em mercados novos e promissores, buscando fixar suas marcas. (CASTRO, 1997 apud BANDES, 2004, p. 7)

Silva (2003) cita estudo da consultoria McKinsey segundo o qual as quatro maiores cervejarias produziam cerca de 20% do consumo mundial. O estudo ainda mencionava que a progressiva queda de barreiras regionais proporcionava um ambiente favorável a uma série de fusões e aquisições no setor de cervejas. Se, até então, as cervejarias atuavam de maneira regional, passariam a adotar uma postura mais globalizada, transformando-se em companhias internacionais. O panorama mostrava profundas mudanças: a holandesa Heineken, segunda maior cervejaria do mundo, acabara de comprar a espanhola Cruzcampo; e a belga Interbrew e a sul- africana South African Breweries esboçavam uma associação com empresas como a Miller, do Grupo Philip Morris, e a Krönenburg, da francesa Danone. Por sinal, ao longo da década de 90, houve um processo de aproximação entre cervejarias estrangeiras e brasileiras, comprovando o real interesse no mercado brasileiro:  Em 1995, a CCB firmou parceria com outra cervejaria norte-america, a Miller Brewing Company, para distribuir a Miller Genuine Draft no país. Um ano mais tarde, o acordo foi ampliado e a cerveja passou a ser fabricada e distribuída pela rede de revendas exclusivas da CCB;

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 A CAP associou-se à americana Anheuser-Busch, em 1997, no sentido de viabilizar a distribuição da cerveja Budweiser nos postos de revenda da cervejaria no Brasil e, em troca, a venda do Guaraná Antarctica nos Estados Unidos. Vale lembrar que, em 1975, a japonesa Kirin havia sondado a CAP com vistas à formação de uma joint venture (EXAME, 1979); e  A Carlsberg Beer, de origem dinamarquesa, chegou ao Brasil em 1997 por um acordo firmado com as Cervejarias Reunidas Skol-Caracu. A ameaça de entrada de uma cervejaria estrangeira no mercado brasileiro através da CAP levou a CCB a iniciar os contatos com os executivos da concorrente no sentido de analisar e viabilizar uma possível fusão entre as duas empresas (SULL, 2005). Tudo começou a partir de um almoço realizado entre Marcel Telles, presidente do Conselho de Administração da CCB, e Victório de Marchi, da CAP, em meados de maio de 1999, num restaurante em São Paulo (JARDIM, 1999). Os executivos, embora de empresas concorrentes, cultivavam havia algum tempo o hábito de conversar. "Para chorar as mágoas", segundo Telles. Logo no início do almoço, Telles expôs suas dificuldades para expandir as operações da empresa. Contou a De Marchi que tentara fincar o pé na Colômbia, comprando uma fábrica local, mas que o negócio havia sido cancelado na fase final. De Marchi fez reclamações semelhantes. Chegaram à óbvia conclusão de que era preciso ocupar esses novos espaços. Com os pratos de sobremesa diante de ambos, Telles formulou uma proposta tão ousada quanto direta. "Por que não juntar as duas empresas?", perguntou. De Marchi não refutou a idéia; pelo contrário, sinalizou que a CAP poderia topar. A proposta foi levada ao conselho de administração da CAP, e o sinal verde foi dado, já que a possível fusão era tratada como uma ―questão de sobrevivência‖ para a empresa. Os acionistas da CCB também deram o "sim" necessário para o andamento das conversas. Formou-se, então, um grupo de trabalho que incluía, além de Telles e De Marchi, mais dois executivos de cada uma das companhias. A primeira reunião do grupo foi realizada no final de maio. Os encontros aconteciam numa das salas do escritório da GP Investimentos, empresa que pertencia aos controladores da CCB, em São Paulo. Nas duas primeiras semanas, essa pequena

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equipe traçou as bases do negócio. Aos poucos, o grupo dos seis foi sendo ampliado. Na última semana, já eram mais de trinta pessoas (SULL, 2005). Para evitar que a movimentação da equipe deixasse pistas, foram tomadas algumas precauções. Os integrantes do grupo receberam crachás especiais, identificados apenas por números. Isso lhes permitia movimentar-se à vontade pelo prédio, sem ter de revelar seus nomes ou os das empresas para as quais trabalhavam. Combinou-se também que os crachás seriam mantidos sempre à mostra, para evitar que algum estranho fosse confundido com um membro da equipe. Na tarde de quarta-feira, 20 de junho, no entanto, os executivos das duas cervejarias temeram que o sigilo estivesse em xeque ao perceber que as ações da CAP, estáveis há muito tempo, deram um salto de 8,1% naquele dia. Resolveram, então, agir rápido, e antecipar em uma semana o anúncio da fusão. No dia 1º de julho de 1999, foi anunciada a fusão da CAP e da CCB, para criar a AmBev – Companhia de Bebidas das Américas, Compañia de Bebidas de Las Américas, American Beverage Company. Considerada a primeira multinacional brasileira, a AmBev surgiu como a terceira maior indústria cervejeira (menor apenas que a holandesa Heineken e a americana Anheuser-Busch, dona da marca Budweiser) e quinta maior produtora de bebidas do mundo (AMBEV, 2009). As duas maiores concorrentes do setor tiveram reações distintas à notícia. A Schincariol anunciou que não temia a nova organização e que estava pronta para enfrentá-la, acreditando que poderia até ganhar espaço no mercado. Já a Kaiser se manifestou por meio de uma nota oficial, repudiando a possibilidade de restrição de concorrência: "A anunciada fusão entre Brahma e Antarctica, se concretizada, concentrará em uma única empresa mais de 70% do setor, fato inaceitável em qualquer economia do mundo moderno". Os argumentos da Kaiser contra a fusão eram: a imposição de aumentos de preço aos consumidores; a concentração de marca se caracterizaria como a formação de cartel; o sistema de distribuição eliminaria as marcas menores; haveria desemprego em massa, sem absorção por outras empresas; e as prioridades da AmBev seriam os investimentos no mercado externo (SANTOS, 2001). O curioso é que um dos donos da Kaiser era a Coca-Cola, que detinha metade do mercado brasileiro de refrigerantes. Devido ao porte da nova empresa e por se tratar da maior fusão do mercado brasileiro até então, a operação não foi tão facilmente completada. Logo após o

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anúncio, o CADE emitiu um Despacho Cautelar sobre a fusão, proibindo, por 120 dias, quaisquer operações da AmBev no mercado de bebidas que fossem irreversíveis, como, por exemplo, o fechamento de fábricas e a demissão de funcionários. O despacho não proibia, no entanto, a existência da nova empresa, porém a aprovação do negócio só aconteceria nove meses mais tarde, em 30 de março de 2000. Durante o período, houve de tudo: denúncia de corrupção, gravações clandestinas de telefonemas e guerra declarada entre AmBev e Kaiser (a principal oponente à fusão). O clima entre as empresas esteve tão tenso que foi preciso a interferência do ministro do Desenvolvimento, Alcides Tápias, para apartar os concorrentes e recomendar trégua (REVISTA VEJA, 2000). A batalha entre o Sistema Coca-Cola/ Kaiser e a AmBev foi levada tão a sério pelas partes que, em 6 de julho de 1999, a AmBev entrou com um pedido de representação no Conselho de Autoregulamentação Publicitária (Conar) reclamando a retirada de um anúncio da Kaiser pejorativo às suas marcas, de título "Com Fusão - Sem Fusão", e de dois filmes para TV. O anúncio externava as opiniões da Kaiser sobre a criação da AmBev e era ilustrado, sob o título "Com Fusão", com uma garrafa formada a partir de pedaços recortados de fotografias das várias marcas de cerveja produzidas pela CAP e pela CCB. Ao lado, sob o título "Sem Fusão", aparecia uma garrafa íntegra da Kaiser. Após ouvir as partes, os membros da 1ª Câmara do Conselho de Ética do Conar deliberaram julgar separadamente o anúncio em mídia impressa e os filmes de TV. Em 29 de julho, depois de extenso debate ficou decidido, por maioria de votos: propor alteração na ilustração do anúncio para jornal (a Câmara considerou que o texto do anúncio refletia apenas a opinião do anunciante, sem ofensas aos concorrentes, mas que a ilustração infringia a ética publicitária, uma vez que usava marcas de terceiros em contexto pejorativo); e recomendar a sustação da veiculação dos filmes para TV, pois entendeu-se que houve denegrimento, por gestos e imagens, das marcas e produtos da Antarctica e Brahma (CONAR, 2000). A estratégia da AmBev para obter o apoio do governo e a aprovação do CADE incluiu uma passagem pelos gabinetes do Presidente Fernando Henrique Cardoso e de Ruy Coutinho, Secretário de Direito Econômico. O encontro com o presidente, inicialmente programado para dez minutos, durou cerca de quarenta e cinco minutos. "O Brasil precisa internacionalizar-se para não ser

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internacionalizado", disse Fernando Henrique a Telles e De Marchi (JARDIM, 1999). A visita seguinte, ao secretário de Direito Econômico, foi mais formal: ele simplesmente recebeu a comitiva e ouviu uma rápida exposição sobre a idéia da fusão. Em novembro de 1999, a Secretaria de Acompanhamento Econômico (SEAE) do Ministério da Fazenda, primeira a analisar o caso, divulgou um parecer recomendando a venda da Skol, a marca mais consumida no país, que pertencia à CCB, para que a fusão fosse permitida. Tal proposta, no entanto, foi rapidamente rechaçada pela AmBev: se assim fosse, seria o primeiro caso em que a fusão de duas empresas originaria uma nova empresa com menor participação de mercado do que a anterior (no caso, CCB), já que a Skol detinha market share superior à Brahma e à Antarctica. Na mesma linha, em fevereiro de 2000, a Secretaria de Direito Econômico (SDE) do Ministério da Justiça deu o seu veredicto: era a favor da fusão, desde que a AmBev vendesse uma de suas três mais importantes marcas de cerveja — Brahma, Antarctica ou Skol. Novamente, a AmBev contra-argumentou afirmando que a proposta da SDE inviabilizaria os planos da nova companhia de competir no mercado internacionalmente (NETTO; PERES, 2000). A decisão do CADE de aprovar a fusão, ainda que com restrições, acabou contrariando os pareceres da SDE e da SEAE. Por quatro votos a favor e um contra, os conselheiros do CADE recomendaram a venda da Bavaria, marca que fazia parte do portfólio da Antarctica e que detinha apenas 4,4% do mercado nacional, para a concretização da fusão. Quem comprasse a marca teria de comprar também cinco unidades fabris da AmBev (uma em cada região do País) e poderia compartilhar da rede de distribuição da empresa por um período de quatro anos. Um detalhe, porém, reduzia o número de interessados: o comprador não podia ter participação superior a 5% no mercado de cervejas, o que automaticamente tirava da disputa concorrentes como Kaiser e Schincariol (que detinham 15% e 9%, respectivamente) e abria espaço para a entrada de um novo competidor estrangeiro. Apesar das limitações, o ―pacote Bavária‖ era um atrativo para as multinacionais, já que o Brasil se mostrava um país promissor (LÍRIO, 2000). Para o autor, uma participação de 4% em um mercado com um potencial de crescimento significativo como o brasileiro seria um trunfo bastante interessante para uma empresa estrangeira. E não deu outra: em novembro de 2000, em cumprimento ao

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termo de compromisso firmado com o CADE, a cervejaria canadense Molson Coors Brewing adquiriu a marca de cerveja Bavaria e cinco fábricas (Ribeirão Preto/SP, Getúlio Vargas/RS, Camaçari/BA, Cuiabá/MT e Manaus/AM) por 213 milhões de dólares. Um aspecto interessante da operação foi a composição do preço final. A Molson pagou 98 milhões de dólares à vista, e o pagamento do restante da quantia ficou condicionado ao desempenho da Bavaria nos cinco anos seguintes. A Molson se comprometeu a pagar 23 milhões de dólares a cada meio ponto percentual alcançado, a partir de 4,5% – à época, a marca detinha 3,4% de mercado. Tal estratégia buscava garantir o comprometimento da AmBev com o crescimento da Bavaria. A Tabela 9-3 lista cronologicamente os principais fatos relativos à criação da AmBev.

Data Fatos Anúncio da criação da AmBev. O processo entrou em análise 01 de julho de 1999 no CADE. CAP e CCB entraram com pedido de representação no Conar 06 a 29 de julho de 1999 contra anúncio da Kaiser. Foi a guerra entre o Sistema Coca- Cola/ Kaiser e a AmBev. O CADE emitiu Despacho Regulamentar sobre a fusão, 14 de julho de 1999 proibindo por 120 dias, até o parecer final, quaisquer operações da AmBev que fossem irreversíveis.

Foram anunciados os objetivos da AmBev – criar uma empresa global nacional, reduzir o custo de capital e combater a desnacionalização – e os benefícios da fusão, tais como a 29 de julho de 1999 sustentação e criação de empregos no médio prazo, o crescimento das exportações brasileiras, a repatriação de divisas, a redução de preços aos consumidores e o aumento da receita de impostos para o país. Acionistas da CAP aprovaram a permuta de ações da companhia por papéis da AmBev, em operação aprovada pela Comissão de Valores Mobiliários (CVM) que abriu caminho 15 de setembro de 1999 para operação similar dos acionistas da Brahma e para o lançamento de títulos ADR (American Depositary Receipts) na bolsa de Nova Iorque. O Presidente da República, Fernando Henrique Cardoso, foi comunicado pessoalmente do acordo com a PepsiCo para 20 de outubro de 1999 distribuição do Guaraná Antarctica em todo o mundo. Inicialmente, o acordo era peça-chave do processo de internacionalização da AmBev. A SEAE propôs que a AmBev venda a marca Skol e os ativos da companhia para aprovar a fusão. A AmBev contestou a 11 de novembro de 1999 proposta, mostrando que isso inviabilizaria o surgimento da nova empresa, já que, dessa forma, ela ficaria menor do que a própria CCB.

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A AmBev divulgou seu primeiro balanço financeiro com os resultados do terceiro trimestre de 1999. A receita líquida no período foi de 1,078 bilhão de reais, representando um 29 de novembro de 1999 crescimento de 4,9% em relação ao mesmo período de 1998. O lucro líquido subiu para 418,8 milhões de reais, um aumento de 10,2%. A SDE divulgou parecer recomendando a venda dos ativos de uma das três companhias (Brahma, Antarctica ou Skol) para 31 de janeiro de 2000 aprovar a fusão. A AmBev voltou a contestar a idéia, reforçando que inviabilizaria a fusão e abriria a porta para a entrada de mais empresas estrangeiras no setor. Os co-presidentes do Conselho de Administração da AmBev expuseram, na Comissão de Economia da Câmara dos 9 de fevereiro de 2000 Deputados, em Brasília, mostrando as vantagens que a AmBev traria para o desenvolvimento da economia brasileira, incluindo a redução de preços e inovações para os consumidores. Estudo da consultoria Trevisan & Associados calculou em 504 milhões de reais os ganhos anuais de eficiência decorrentes da 22 de fevereiro de 2000 fusão entre a CAP e a CCB (se aprovada sem restrições), valor que permitiria ampliar investimentos e reduzir os preços esperados aos consumidores. O Ministro do Desenvolvimento, Alcides Tápias, entregou ao 02 de março de 2000 CADE parecer favorável à fusão, considerada por ela como de interesse nacional.

O presidente da Pepsi-Cola Internacional, Steve Reinemund, reuniu os principais executivos responsáveis pelas marcas da companhia no mundo para apresentar oficialmente o Guaraná 03 de março de 2000 Antarctica. O encontro foi no Rio de Janeiro, logo após o carnaval e serviu para dar início à estratégia de lançamento do Guaraná Antarctica mundialmente. A fusão foi aprovada pelo CADE com restrições que não 30 de março de 2000 inviabilizaram o negócio. Após nove meses, nasceu a primeira empresa global de bebidas brasileira.

Tabela 0-3: Cronograma dos principais eventos que antecederam a aprovação da AmBev pelo CADE Fonte: Baseado em Santos (2001).

À época da fusão, o Brasil era o quarto maior mercado de bebidas no mundo, com um consumo total de 82 milhões de hectolitros, ficando atrás somente dos EUA (230 milhões hl), China (199 milhões hl) e Alemanha (107 milhões hl). Todavia, medido em termos do consumo per capita, o país ocupava a 23ª posição com 50 litros per capita por ano, em comparação a 131 litros na Alemanha, 101 no Reino Unido e 84 nos EUA. Analistas acreditavam que a combinação de um consumo per capita baixo com uma população relativamente jovem (44% da população abaixo dos 48 anos de idade em 1998) fazia do Brasil um mercado crescente bastante atrativo para as cervejarias (SULL, 2005).

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Entre 70% a 80% de toda a bebida vendida no Brasil era consumida no estabelecimento comercial em garrafas retornáveis, com o restante vendido através do varejo, principalmente em latas. Em outros mercados latinos (Chile e México, por exemplo) e nos EUA, somente 20% a 25% das cervejas eram vendidas nos estabelecimentos de consumo. Além disso, muitos clientes compravam cerveja sem pedir uma marca específica. Dessa forma, o grande percentual de consumo imediato, combinado com o baixo grau de preferência de marca, aumentava a importância de uma forte rede de distribuição para disponibilizar cervejas em bares e restaurantes locais. As margens das cervejarias com garrafas de cervejas vendidas em bares e restaurantes eram aproximadamente 2,5 maiores do que as margens de cervejas em lata vendidas através de distribuidores e varejistas (SULL, 2005). As três maiores cervejarias controlavam quase 90% das vendas de cerveja no Brasil, com a Brahma vendendo cerca de 48%, seguida por Antarctica (26%) e Kaiser (16%). Cervejarias regionais de baixo custo, muitas vezes chamadas de "tubaínas", tinham historicamente ganhado share em refrigerante sem cola e estavam aproveitando uma participação crescente no mercado de cervejas, lideradas pela Schincariol e pela Distribuidora Guararape de Bebidas (DGB). As cervejas importadas (que incorriam em 23% de tarifa) correspondiam a menos de 1% do consumo total.

Intensificação da consolidação da indústria

Paralelamente ao domínio da AmBev, cujo market share sempre se manteve próximo de 70%, o século XXI viu a intensificação do processo de consolidação da indústria de cerveja. Diante da necessidade de competir com a AmBev, os principais concorrentes foram ao mercado e protagonizaram uma série de aquisições na busca não só pelo fortalecimento de sua presença por todo o país, mas também de espaços e segmentos de atuação que oferecessem melhores oportunidades de crescimento e maior rentabilidade. Em março de 2002, a Molson Coors Brewing, que já comprara a Bavaria da AmBev, adquiriu a Cervejaria Kaiser por quase 1 bilhão de dólares, motivada pela expectativa de chegar a cerca de 30% do mercado nacional. Em outras palavras, a

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Kaiser, que não podia comprar a Bavaria, foi comprada pela dona da Bavaria, jogando por terra toda a teoria do CADE para aprovar a criação da AmBev. Todavia, desde a aquisição, a marca Kaiser só perdeu espaço no mercado. De janeiro de 2002 a janeiro de 2004, a participação da Kaiser Pilsen caiu de 13,4% para 8,6%. Em São Paulo, onde já havia sido líder, a marca perdeu quase cinco pontos em 2003 e, no ano seguinte, disputava o terceiro lugar, sob assédio da Nova Schin. No Rio de Janeiro, sua participação caiu a zero em 2004, segundo pesquisa da Nielsen. Seu melhor mercado continuava sendo o Paraná, mas mesmo lá a Kaiser já perdia nos bares e restaurantes para a Skol. Tudo isso apesar de ser a terceira mais barata entre as principais marcas, atrás apenas da Bavaria (que também pertencia à Molson) e da Nova Schin. Seu preço médio por litro era de R$ 2,92, contra, por exemplo, R$ 3,52 da Antarctica (TEIXEIRA, 2004). Diante do fracasso, a Molson vendeu o controle da marca Kaiser à empresa mexicana Femsa em janeiro de 2006. A Femsa pagou 68 milhões de dólares por 68% do capital da Kaiser mais dívidas de cerca de 60 milhões de dólares. Outros 15% da empresa continuaram com a Molson e os 17% restantes pertencem à holandesa Heineken (COUTINHO, 2010). O Grupo Femsa e a Heineken têm uma parceria comercial no Brasil, de duração de 10 anos, segundo a qual a Femsa Cerveja Brasil produz, distribui e vende, com exclusividade, a marca Heineken no país. Em outubro de 2006, a Femsa lançou a cerveja Sol no mercado brasileiro para competir com as cervejas da AmBev. Embora a bebida tenha o mesmo nome da Sol, popular cerveja premium da Femsa, a nova Sol é feita a partir de uma receita inteiramente diferente, desenvolvida especialmente para o mercado brasileiro. A Femsa continuou a comercializar a versão premium da Sol no Brasil em bares e restaurantes refinados, direcionando o produto para o segmento premium. Já a nova Sol, que tem rótulo parecido com a versão premium e é vendida por preço menor em latas, garrafas e barril, essencialmente substituiu a Kaiser como bandeira de cerveja da Femsa no Brasil. Desde que a cervejaria mexicana assumiu a Kaiser, sua participação de mercado encolheu, recuando para 7,6% em 2009. No ano de 2007, outras duas cervejarias protagonizaram importantes aquisições no mercado nacional. Em maio, a Cervejaria Petrópolis, dona das marcas Itaipava e Crystal, incorporou a Cervejaria Teresópolis, fabricante das cervejas

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Lokal, Black Princess e Therezópolis. Com essa estratégia de aquisição de outras marcas e o lançamento de novos produtos (o mestre cervejeiro da Petrópolis, o alemão Roland Reis, veio da Brahma), a empresa superou a cervejaria Femsa em 2007, assumindo a terceira posição do mercado nacional. Se, em 2003, era dona de pouco de mais de 2% de market share, a Petrópolis fechou o ano de 2009 com 9,5% de participação de mercado, mantendo-se atrás da AmBev e do Grupo Schincariol. No entanto, o movimento de mercado mais surpreendente ficou a cargo do Grupo Schincariol, que, em pouco menos de dois anos, adquiriu quatro das principais microcervejarias brasileiras, num intuito evidente de ingressar no promissor segmento de cervejas premium, que custam pelo menos 15% a mais que a média das cervejas. Em janeiro de 2007, o segundo maior grupo cervejeiro do país adquiriu a marca e a fábrica da microcervejaria paulista Baden Baden, por valor não informado. Considerado um negócio pequeno, com produção quase artesanal, a Baden Baden faturou 5,5 milhões de reais em 2006, e suas cervejas eram vendidas na faixa entre oito e dezesseis reais, com boa aceitação em São Paulo (CANÇADO; RIBEIRO, 2007). Cinco meses depois, foi a vez da Indústria de Bebidas de Igarassu (IBI), cervejaria pernambucana fabricante da marca premium Nobel, também por valor não informado. Inaugurada em 2006, sua capacidade de produção instalada era de 42 milhões litro/ano, e contava com rede de distribuição própria em todo o Estado de Pernambuco. A aquisição fez parte do plano do Grupo Schincariol de consolidar sua posição na Região Nordeste, onde a cerveja Nova Schin era a marca líder com 36,2% de participação de mercado (G1, 2007). Logo após a aquisição da IBI, o Grupo Schincariol comprou, em agosto de 2007, 70% da União das Devassas Cervejaria - UDC (Cervejaria Devassa) por 30 milhões de reais. A empresa assumiu as marcas da UDC, a unidade de produção e a estrutura de distribuição. Com um faturamento anual de 12 milhões de reais, a rede Devassa, criada no Rio de Janeiro em 2000, era uma das marcas mais conhecidas de cerveja e chope artesanal no Brasil, e contava com 13 bares no Rio de Janeiro e em São Paulo e uma fábrica no Rio (ARANHA, 2007). Com a compra, a Devassa passou a utilizar não só os canais de distribuição da Schin como as 12

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fábricas espalhadas pelo país para produzir e distribuir o chope e a cerveja da marca, possibilitando a sua expansão nacional. Em maio de 2008, o Grupo Schincariol fez a sua quarta aquisição voltada ao segmento premium: a cervejaria catarinense Eisenbahn, especializada na fabricação de cervejas artesanais e premium, por valor não informado. Com a compra, o Grupo Schincariol pretendia consolidar a sua posição de liderança na venda de cervejas premium, já que a Eisenbahn tinha boa presença nas regiões Sul e Sudeste e nos Estados de Goiás, Distrito Federal e Ceará, além de Estados Unidos, Austrália e Uruguai. A expectativa era de que a Eisenbahn chegasse a 20 milhões de receita em 2008. O plano era expandir as vendas para todo o país, reforçar a presença nos Estados Unidos e abrir novos mercados, como Inglaterra, Alemanha e Japão (SALLES, 2008). Ainda em maio de 2008, a Schincariol deu outra demonstração de seu apetite de crescimento e, principalmente, de sua capacidade financeira: adquiriu da AmBev a marca e a fórmula de cervejas Cintra por 39 milhões de reais (REVISTA EXAME, 2008). Pelo negócio, a Schincariol também assumiu a rede de distribuição da Cintra e todo o material promocional, como as mesas e geladeiras com logotipos instaladas em bares. O negócio fechado com a Schincariol não abrangeu as duas fábricas que a AmBev adquiriu da Cintra no início de 2007 por 150 milhões de dólares. As plantas, instaladas em Piraí, no Rio de Janeiro, e em Mogi Mirim, em São Paulo, continuaram com a AmBev. Na época em que divulgou a compra, a AmBev afirmou que precisava das plantas para atender à expansão da produção programada para essas regiões. Com a venda, a AmBev atendeu a uma recomendação dos órgãos brasileiros de regulação do mercado. Em janeiro de 2008, a SDE, vinculada ao Ministério da Justiça, aconselhou a companhia a vender a marca e a rede de distribuição da Cintra, a fim de evitar problemas com o CADE. A idéia foi endossada pela SEAE, do Ministério da Fazenda. As aquisições do Grupo Schincariol foram motivadas, em grande parte, pela perda de participação de mercado na segunda metade da atual década. Após o sucesso da cerveja Nova Schin, lançada em 2003 juntamente com a campanha de marketing ―Experimenta!‖, o Grupo Schincariol obteve perdas sucessivas de

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mercado: de 13,1% em 2005 para 11,8% em 2009. Com uma estratégia de competição centrada em preço baixo, a Schincariol encontrou dificuldades para enfrentar a resposta da AmBev ao lançamento e promoção da cerveja Nova Schin, sendo que ainda tinha que lidar com a cada vez maior pressão competitiva da Cervejaria Petrópolis. Diante do ganho imediato de market share da Schin – segundo números da AC Nielsen, a empresa avançou de 8,6% em agosto de 2003 para 13% em fevereiro de 2004 – a AmBev fez uso de sua força nos canais de distribuição para frear o crescimento da rival. A empresa passou a investir pesado na decoração e na refrigeração dos PDVs, colocando foco nos bares, que representavam 65% do volume de vendas. Também voltou a oferecer descontos em troca de fidelidade, através do programa ―Tô Contigo!‖, prática que havia sido proibida na época da sua criação (ALMEIDA, 2004). Por fim, é importante mencionar que o processo de consolidação da indústria brasileira de cervejas ainda se encontra em andamento. Se num primeiro momento as cervejarias nacionais foram protagonistas do movimento em questão, a expectativa de entrada de cervejarias estrangeiras é cada vez maior. Se não bastasse a atratividade do mercado brasileiro, somam-se ainda a estagnação e até mesmo crise em mercados mais maduros como EUA e Europa, respectivamente. Mais recentemente, a realização de grandes eventos esportivos mundiais no Brasil serviu para aumentar o interesse de cervejarias internacionais em participar do mercado nacional. De acordo com Rosa (2011), as grandes cervejarias mundiais estão olhando o Brasil como nunca. Companhias como a sul-africana SAB Miller, a holandesa Heineken e a dinamarquesa Carlsberg passaram a intensificar a disputa pela compra de empresas nacionais, especialmente os grupos Schincariol e Petrópolis. Vale lembrar que, em janeiro de 2010, a cervejaria holandesa Heineken adquiriu a Femsa, dona da Kaiser e da Sol no Brasil, por 7,6 bilhões de dólares. Em comunicado, a Heineken afirmou que, dentre os benefícios esperados com o negócio, estavam: (i) o aumento dos valores e volumes de vendas no México; (ii) a consolidação da marca nos Estados Unidos nos segmentos de bebidas importadas e na comunidade hispânica no país; e (iii) marcar presença mais forte no Brasil (FOLHA DE SÃO PAULO, 2010).

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Onda das microcervejarias

Paralelamente à consolidação da indústria, outro fenômeno ganhou particular destaque no mercado brasileiro: a expansão das microcervejarias, juntamente com o crescimento do segmento de cerveja premium. Segundo Morado (2009), historicamente, a cerveja sempre teve um tratamento mais de refresco do que de bebida alcoólica no Brasil, sendo tradicionalmente tratada como uma bebida gelada pouco sofisticada. Muito explorada como produto para consumo de massa, tornou- se pouco merecedora de cuidados e atenção, e ficou relegada ao plano dos itens populares de baixo apelo gastronômico. Entretanto, a onda do renascimento da cerveja, que começou na Inglaterra e nos Estados Unidos, acabou por atingir o Brasil no final dos anos 1980 e, ainda mais fortemente, no início do século XXI. Microcervejarias, importadoras de cervejas e cervejeiros caseiros começaram a surgir em diversas cidades do país e foram transformando a oferta de produtos, e excitando a curiosidade dos formadores de opinião e do público em geral. Pegando carona na onda gastronômica, a cultura cervejeira abriu espaço na mídia especializada para apresentar e defender novos conceitos de valorização da bebida, por meio de degustações e harmonizações gastronômicas. Após o aparecimento da primeira marca, que muitos consideram ser a Bavarian Park, de Curitiba, surgem, por ano, entre 4 a 6 novas marcas, elaboradas por microcervejarias tendo em vista a qualidade do produto e a satisfação do consumidor. Com cervejas que fogem do padrão comum, nomeadamente o tipo Pilsen, foco central das grandes cervejarias brasileiras, essas novas marcas estão gradualmente conquistando o paladar do brasileiro. Tal fato se refletiu nas grandes empresas, obrigadas a criar novos produtos que acompanhem essas tendências. Como descrito no item anterior, o Grupo Schincariol, também de olho nessa tendência, adquiriu uma série de microcervejarias espalhadas pelo país com o objetivo de conquistar a liderança do segmento. A AmBev, por exemplo, tem uma estratégia voltada para o desenvolvimento do segmento premium e super premium de cervejas, buscando produtos de maior valor agregado que, naturalmente, ofereçam maior rentabilidade.

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Um exemplo de ação da empresa ocorreu em 2002: o reposicionamento e a ampliação da linha de produtos Bohemia, adicionando novos sabores e processos de fabricação, e a sua comercialização em séries limitadas, com garrafas personalizadas e numeradas. Em 2006, o segmento de cerveja premium movimentou 1,4 bilhão de reais por ano no Brasil, representando 7,6% das vendas de cerveja no país. Além disso, foi a categoria que mais cresceu – de 2001 a 2006, a participação nas vendas totais de cerveja mais que dobrou.

APÊNDICE D – HISTÓRIA DA COMPANHIA ANTARCTICA PAULISTA

A história da Companhia Antarctica Paulista se iniciou em 1868, quando Louis Bücher, de uma família de cervejeiros de Wiesbaden, Alemanha, chegou a São Paulo e abriu uma pequena cervejaria, na qual empregava arroz, milho e outros cereais em vez de cevada (SANTOS, 2004). Em 1882, Bücher se associou a Joaquim Salles, proprietário de um abatedouro de suínos cujo nome era "Antarctica". A razão para a sociedade foi o fato de Salles, dono de uma máquina de fazer gelo em seu abatedouro com capacidade ociosa, ter encontrado em Bücher, um cervejeiro que necessitava de gelo para a fabricação de cervejas de baixa fermentação, uma nova serventia para o equipamento. Dessa forma, em 1888, criou- se a primeira fábrica de cerveja do país com tecnologia apropriada para a produção de baixa fermentação: a "Antarctica Paulista – Fábrica de Gelo e Cervejaria", dirigida por Louis Bücher. A produção inicial da nova cervejaria era muito pequena, de 1.000 a 1.500 litros diários, logo aumentando para 6.000. Em 1889, foi publicado o primeiro anúncio da cerveja Antarctica no jornal ―A Província de São Paulo‖ (atual O Estado de S. Paulo): “Cerveja Antarctica em garrafa e barril – encontra-se à venda no depósito da fábrica à Rua Boa Vista, 50”. A edição foi do dia 13 de março (AMBEV, 2009). No ano seguinte, além de aumentar seu quadro de funcionários para 200, a empresa tinha capacidade de produção de 40 mil hectolitros/ano (COUTINHO, 2009). Em 12 de fevereiro de 1891, motivada pelos incentivos oferecidos pela República, a empresa passou a se chamar "Companhia Antarctica Paulista", uma Sociedade Anônima (S.A.) com 61 acionistas e 2.245 contos de réis de capital

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inicial. O decreto oficializando a Sociedade Anônima da Antarctica foi assinado no dia 11 de maio de 1891 pelo então presidente Marechal Deodoro da Fonseca. João Carlos Antonio Zerrener, alemão, e Adam Ditrik von Bülow, dinamarquês, ambos naturalizados brasileiros e proprietários da Zerrener, Bülow e Cia., de Santos, importadores e exportadores de café, estavam entre os sócios da nova empresa, e desempenharam papel fundamental na sua modernização, fornecendo equipamentos importados da Alemanha e colocando à disposição da nova sociedade 860 contos de réis de seu próprio capital. No entanto, dois anos após se tornar uma S.A., a companhia estava em situação de insolvência como conseqüência da crise financeira do início da República, também conhecida como ―Crise do Encilhamento9‖. Foi quando a Zerrener, Bülow & Cia., principal credora, assumiu o controle acionário da Companhia Antarctica Paulista, tendo como sócios majoritários Antonio Zerrener e Adam Ditrik von Bülow. Os acionistas decidiram pela redução do capital da empresa para 1.710 contos de réis e o crédito concedido pela firma Zerrener, Bülow & Cia. foi transformado em ações, tornando-os acionistas majoritários da cervejaria (SANTOS, 2004). Os problemas financeiros não duraram muito tempo. Em 1899, o capital da empresa, que empregava trezentos funcionários, produzia 50.000 hectolitros (hl) anuais de cerveja e 50 toneladas de gelo por dia, passou a 3.500 contos de réis. Além disso, em 1895, a Antarctica ganhou a sua primeira logomarca: uma estrela de seis pontas com a letra ―A‖ inscrita em seu centro. A estrela, usada pelos fabricantes europeus desde a Idade Média, foi uma sugestão de técnicos cervejeiros alemães que estavam no Brasil desde 1891. A estrela também era usada na Idade Média

9 Crise do ―Encilhamento‖: Com o fim da escravidão e a imigração (e o trabalho assalariado), o dinheiro passou a ser usado por todos, ampliando o mercado de consumo. Para atender à nova necessidade, o Governo Provisório adotou uma política emissionista em 17 de janeiro de 1890. Rui Barbosa dividiu o Brasil em 4 regiões (Bahia, Rio de Janeiro, São Paulo e Rio Grande do Sul), autorizando em cada uma delas um banco emissor. O objetivo da medida era o de cobrir as necessidades de pagamento dos assalariados e expandir o crédito a fim de estimular a criação de novas empresas. Todavia, a política acarretou uma inflação incontrolável, pois os "papéis pintados" não tinham como lastro outra coisa que não a garantia do governo. Por isso, em vez de estimular a economia a crescer, desencadeou uma onda especulativa. Os especuladores criaram projetos mirabolantes e irrealizáveis e, em seguida, lançaram as suas ações na Bolsa de Valores, onde eram vendidas a alto preço. Desse modo, algumas pessoas fizeram fortunas da noite para o dia, enquanto seus projetos permaneciam apenas no papel. Em 1891, Rui Barbosa se deu conta de sua medida e tentou remediá-la, buscando unificar as emissões no Bando da República dos Estados Unidos do Brasil, mas a demissão coletiva do ministério naquele ano frustrou a sua tentativa (Koshiba, 1996, p. 234).

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para identificar as estalagens que ofereciam melhores condições de hospedagem aos viajantes, sistema semelhante à atual classificação de hotéis. Em 1902, o capital da CAP era de 10.000 contos de réis, pagando altos dividendos – de apenas 3% em 1891, a de 6 a 20% de 1898 a 1901 e estabilizando- se em 10% em 1906. Dois anos depois, já recuperada financeiramente, comprou a sua maior concorrente em São Paulo, a Cervejaria Bavária, por 3.700 contos de réis, quando seu capital já era de 8.500 contos de réis. Fundada por Henrique Stupakoff em 20 de outubro de 1892 e localizada no bairro da Mooca, a cervejaria recém- comprada passou a ser a principal unidade fabril da Antarctica. A partir de 1905, a CAP ampliou sua oferta de produtos para além da cerveja e do gelo. Nesse mesmo ano, a empresa desenvolveu as primeiras experiências com o guaraná, visando a sua utilização em alimentos. Quatro anos mais tarde, iniciou a produção de água mineral e, em 1911, lançou o Club Soda Antarctica. Ainda em 1911, a empresa construiu uma nova filial em Ribeirão Preto, município do interior de São Paulo (SP), onde fabricava gelo e cerveja (AMBEV, 2009). Nos três anos seguintes, a CAP deu continuidade ao seu processo de diversificação e lançou dois novos produtos: a Soda Limonada Antarctica (1912) e a Água Tônica Antarctica (1914). A primeira propaganda deste refrigerante destacava: ―Água Tônica de Quinino: bebida adequada ao clima quente. Tônica, com todas as excelentes qualidades da casca de quina, agradável e refrescante‖. Em 1915, a empresa foi além e fabricou as primeiras geladeiras a gelo. Batizadas de ―Perfeitas‖, eram utilizadas tanto em casas comerciais quanto em residências, e o gelo era fornecido pela própria empresa, por meio de assinaturas de consumidores. No início dos anos 20, com um capital de 12.750 contos de réis e produção de 250 mil hl/ano, a companhia se mudou da Água Branca para as antigas instalações da Cerveja Bavária, no bairro da Mooca. Em 1921, iniciou-se a produção e comercialização do Guaraná Champagne Antarctica. À época, a empresa contava com filiais em Santos, Ribeirão Preto e Rio de Janeiro, bem como agências nos principais centros consumidores do país. Além disso, mantinha várias áreas de lazer e entretenimento na cidade de São Paulo, como o Parque Antarctica, o Bosque Saúde, o Bosque Ipiranga, o Teatro Cassino e o Cinema Central. Em 1923, a CAP vivenciou o início de um processo de sucessão que se prolongaria por várias décadas em virtude de três grandes brigas judiciais pelo

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controle do negócio. No mesmo ano, após a morte de Adam Ditrik von Bülow, seu patrimônio passou aos seus cinco filhos, dos quais dois venderam suas partes na Companhia a Antonio Zerrener, que se transformou no sócio majoritário e assumiu o controle da cervejaria. Zerrener morreu dez anos mais tarde, sem filhos. Seu testamento, de 1932, dispunha que a esposa, Helene Mathilde Ilda Emma Zerrener, com quem era casado em regime de separação de bens, fosse dotada somente de 50.000$000 (cincoenta contos de réis), e que, após a sua morte, seus bens fossem enviados à Alemanha, onde seriam destinados a uma fundação beneficente e a obras de caridade (SANTOS, 2004). No entanto, os advogados da viúva procuraram transformá-la de legatária em herdeira de todos os bens do marido, para evitar que fossem enviados ao exterior. Iniciou-se, então, a primeira briga judicial envolvendo a Companhia, que só teria fim em 1962 com a decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) contra os alemães, que tiveram seus legados incorporados à Fundação Antonio e Helene Zerrener (FAHZ), acionista majoritária da CAP à época. Ainda durante o processo judicial, Helene faleceu em 1936, deixando como testamenteiros: Walter Belian, Antonio Bento Vidal, Manuel Thedim Lobo, Albert Wolf e Fritz Gericke, os dois últimos alemães e residentes na Alemanha. Coube aos testamenteiros brasileiros e residentes no Brasil a posse e a administração de todos os seus bens em sua totalidade e em conjunto. Contudo, logo após o seu enterro, os testamenteiros se desentenderam em relação à administração do patrimônio, especialmente quanto à criação da FAHZ. Iniciou-se, então, a segunda disputa judicial envolvendo a empresa, dessa vez entre os grupos de acionistas ligados a Belian, a Bento Vidal, a von Bülow e aos herdeiros na Alemanha, num longo e desgastante processo que durou mais de uma década e envolveu quase todo o meio jurídico de São Paulo (SANTOS, 2004). Em 1936, criou-se a Fundação Antonio e Helene Zerrener Instituição Nacional de Beneficência, acionista majoritária da CAP, que mantinha hospitais, escolas e creches que atendiam os funcionários da empresa e seus dependentes. Ainda assim, a disputa entre os testamenteiros só terminou em 1944, com a vitória do grupo de Belian, que passou a ser o "plenipotenciário" da Fundação e, conseqüentemente, da CAP.

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Nesse meio tempo, ocorreram três fatos relevantes para a empresa. O primeiro disse respeito à sua marca: em 1935, houve mudanças no rótulo da Antarctica – dois pingüins passaram a acompanhar a estrela dourada de seis pontas, e o slogan ―A grande marca‖ também se incorporou ao visual. O segundo acontecimento se referiu ao processo de crescimento e expansão da companhia: em 1941, a CAP adquiriu o controle da Companhia Adriática, instalada em Ponta Grossa, Paraná (PR). Fundada em 1917 e de propriedade dos Thielen, família de origem alemã, sua principal marca era a cerveja Original, produzida desde 1930. O terceiro e último fato, por sua vez, esteve diretamente relacionado ao já conturbado processo sucessório da empresa: Karl Adolph von Bülow, filho de Adam von Bülow, morreu em 1942, sendo substituído na empresa por seu filho, homônimo do avô, e por seu genro Luis de Morgan Snell. Walter Belian, zeloso pelo poder, afastou os dois novos diretores, rompendo o "acordo de cavalheiros" que vigorava entre as duas famílias majoritárias da empresa (Zerrener e von Bülow) desde a sua fundação. Tal fato, então, deu origem à terceira disputa judicial pela CAP entre os herdeiros de Von Bülow e Belian, e que duraria outros cinco anos. Em 1953, buscando baratear os custos de produção, a companhia inaugurou sua Maltaria própria em Jaguaré, SP. Ainda no início da década de 50, patrocinou shows do Carnaval no Gelo, antecessor do Holiday on Ice, e lançou o Caçulinha, ou Guaraná Caçula. Em tamanho menor (185 ml), o refrigerante se tornou popular entre as crianças, levando a empresa a lançar, no ano seguinte, as histórias do Capitão Caçula, herói dos quadrinhos criado para promover o produto. Os esforços de promoção da marca e dos produtos não pararam por aí: com a introdução da televisão no país por Assis Chateaubriand, a CAP, assim como sua concorrente, fez uso da nova mídia para divulgar seus produtos. Vale lembrar que não foi a primeira vez que a empresa utilizou os meios de comunicação com essa finalidade: já na década de 30, a CAP e a CCB patrocinavam programas de emissoras de rádio populares, como a Difusora e a Tupy, contribuindo para impulsionar a era do rádio no Brasil. Alguns anos mais tarde, em 1966, a Companhia novamente inovou ao promover uma campanha de distribuição de prêmios para consumidores de seus refrigerantes, cujo principal prêmio era assistir à final da Copa do Mundo na Inglaterra.

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De acordo com Santos (2004), Walter Belian, apesar de autoritário e eficiente na política, não foi um bom administrador. Além de dispor de um batalhão de advogados de alto nível que o acompanhavam até em reuniões de Diretoria da cervejaria, Belian mantinha algumas ligações questionáveis, como, por exemplo, com Assis Chateaubriand, cujas empresas, os Diários Associados, faziam toda a publicidade da Antarctica. O autor menciona ainda que Belian, quando possível, preferia resolver pendências com adversários através de dinheiro e vantagens. Por exemplo, entre 1955 e 1957, O. A. Bindel e Samuel Wainer (este diretor da Última Hora, jornal escandaloso criado para apoiar Getúlio Vargas), desafetos de Belian, pretenderam extorqui-lo com reportagens caluniosas sobre a Antarctica. Wainer foi derrotado na Justiça, mas Bindel não, recebendo como recompensa um cargo na direção da empresa, situação que manteve até o fim da vida. A contabilidade da empresa também não era clara, chegando ao ponto de a Curadoria da FAZH, a mandado da Procuradoria Geral da Fazenda do Estado de São Paulo, afastar Belian da Fundação, colocando em seu lugar um interventor, o juiz da Segunda Vara da Família José Luiz Vicente de Azevedo Franceschini. Buscando apoio para retornar ao controle da CAP, Belian se aproximou de Juscelino Jubitschek na época da construção de Brasília, chegando a prometer ao presidente a instalação de uma cervejaria na nova capital (SANTOS, 2004). A promessa não foi cumprida, mas a CAP promoveu uma carreata até Brasília com o intuito de divulgar seus produtos e comemorar a inauguração da nova capital federal, em 1960. O apoio presidencial foi decisivo para Belian: se não teve um único voto a seu favor nas primeiras instâncias no STF, venceu sem nenhum voto desfavorável após o apoio de Juscelino. Vale ressaltar que Belian retomou o controle da empresa justamente no ano em que se celebrava 75 anos de história. Nesse período, a CAP ampliou sua capacidade de produção de cervejas e refrigerantes em mais de 100 vezes, atingindo a marca de 3,9 milhões de hectolitros/ano. Belian permaneceu no controle da CAP até 1975, ano em que morreu, sendo substituído por sua irmã, Erna Belian Wernsdorf Rappa. Durante as décadas de 60 e 70, a Companhia continuou seu processo de expansão, através da construção de duas novas fábricas – em Manaus e em Minas Gerais – e, principalmente, da aquisição de outras cervejarias. Em 1962, adquiriu o controle da Cervejaria Bohemia, considerada a mais antiga do país, fundada em 1853, em Petrópolis (RJ).

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À época, a Cervejaria Bohemia era presidida pelo jornalista dos Diários Associados Carlos Rizzini, e produzia cerca de 10.000 dúzias de garrafas por mês. Além da cerveja Bohemia, a CAP eliminou um foco de competição no setor de refrigerantes: a cervejaria produzia o Guaraná Petrópolis, grande concorrente do Guaraná Antarctica. Em 1972, a CAP adquiriu os controles da Cervejaria Polar (RS), da Companhia Baiana de Alimentos (com fábrica de cervejas em Camaçari, BA), da Cervejaria de Manaus S.A (Cerman) e da Cervejaria Catarinense (que se instalou em Joinville em 1938). No ano seguinte, além de constituir filiais em Goiânia (GO), Montenegro (RS), Rio de Janeiro (RJ) e Viana (ES), foram adquiridos os controles da Cervejaria Pérola, de Caxias do Sul (RS), e da Companhia Itacolomy de Cervejas, de Pirapora (MG). No mesmo ano, a empresa adquiriu a Companhia Cervejaria Paulista, instalada em Ribeirão Preto (SP) desde 1913. E a expansão não se restringiu ao segmento de cervejas: a CAP ainda construiu, em Maués, Amazonas (AM), uma unidade de processamento de sementes de guaraná – Sociedade Agrícola de Maués S.A. – e criou a Fazenda Santa Helena para pesquisa e plantio de guaranazeiros. No final da década de 70, a CAP continuou expandindo suas operações através da constituição de filial em Teresina (PI), da ampliação da Maltaria em Jaguaré (SP) e da aquisição de uma área de 14,32 hectares em Paulo de Frontim (PR) para pesquisa e experimentação agrícola com a cevada cervejeira. Um ano mais tarde, em 1978, a companhia assumiu o controle da Cervejaria Serramalte, do RS, existente desde 1957, com as suas fábricas de Getúlio Vargas e Feliz (RS). No ano seguinte, começou a exportar seus produtos para a Europa, os Estados Unidos e a Ásia, sendo que, em duas décadas, seus produtos já eram consumidos em diversos países e a cerveja Antarctica havia conquistado prêmios internacionais de melhor cerveja estrangeira em Miesenbach, Berlim, Dusseldorf e Baviera (na Alemanha) e o Selo de Qualidade Monde Selection. A CAP chegou à década de 80 com a marca recorde de 16,4 milhões de hl/ano, alcançada com a aquisição do controle da Companhia Alterosa de Cervejas, em Vespasiano (MG), existente desde 1968. Em 1982, a empresa inaugurou sua unidade de recebimento, armazenagem e beneficiamento de cevada cervejeira na cidade de Lapa (PR). Dois anos mais tarde, com a realização de Assembléia Geral

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Extraordinária em 15 de fevereiro de 1984, nos termos da Lei 6.404/76, foi constituído o ―Grupo Antarctica‖, conferindo à Companhia Antarctica Paulista Indústria Brasileira de Bebidas e Conexos a condição de Unidade de Comando de um total de 28 empresas controladas e coligadas (CAP, 1983). Coincidentemente ou não, a mudança ocorreu justo no ano em que Erna Belian se afastou da Presidência da FAZH. A partir daí, o comando da Fundação passou a ser exercido por um Conselho de Administração, composto, dentre outros, por pessoas que acumulavam, em paralelo, cargos na diretoria da empresa. É o caso, por exemplo, de Victório de Marchi, que mais tarde se tornaria o grande líder da cervejaria, estando à frente do período em que passou por importantes mudanças. Ainda que a CAP mantivesse a busca constante pela ampliação de sua capacidade produtiva por todo o País, o final da década de 80 foi marcado por um movimento de renovação tanto do seu portfólio de produtos quanto de embalagens. No que diz respeito à operação, além da aquisição do controle acionário da Cervejaria Nordestina S/A: Cerva, em 1989, a Antarctica inaugurou uma série de fábricas resultantes de investimentos próprios: Fábrica Antarctica de João Pessoa, PB (1988); Fábrica de Cervejas Antarctica em Jacarepaguá (RJ), com capacidade de produção de 3,5 milhões de hectolitros/ano (1988); fábrica de refrigerantes em Jaguariúna, SP (1990); fábrica de cerveja em Jaguariúna; SP (1993); e as fábricas no Rio Grande do Norte e em Canoas (RS), em 1994. Foi adquirida, ainda, uma nova área de 40,2 hectares em Lapa (PR) para incremento dos trabalhos de pesquisa com cevada cervejeira nacional. Para se ter uma noção do porte das operações da empresa, de acordo com o Relatório Anual de Atividades de 1988, a CAP contava com quase 22.000 funcionários espalhados por 99 unidades fabris, 7 filiais, 2 Maltarias – Jaguaré, SP, e Caxias do Sul, RS – e o Escritório Central, na capital paulista. Já no que se refere ao processo de renovação do portfólio de produtos e de embalagens, destacaram-se os seguintes lançamentos: a versão diet do Guaraná Antarctica (1989); a Bavaria Premium, considerada a primeira cerveja premium do país, comercializada nos mercados de SP e RJ (1989); a embalagem PET de 2l para refrigerantes, em SP e no RJ (1989); a Kronenbier (1991), primeira cerveja sem álcool do país; Antarctica Bock, Antarctica Pilsen Extra em long neck e Antarctica Pilsen em long neck com rótulo metalizado (1992); e Polar e Polar Pilsen. Além

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disso, a empresa foi eleita um dos 40 Marketing Superstars pela Advertising Age Internacional, em 1993. Apesar dos investimentos produtivos e do esforço de renovação de seu portfólio de produtos, a década de 90 foi marcada pela perda de participação de mercado da Antarctica (e de sua rival, a Brahma) para as cervejas Kaiser, Schincariol e Skol. A resposta da empresa se deu através do lançamento, em 1996, de uma segunda marca para competir diretamente com a Kaiser. A Bavaria obteve aproximadamente 5% de mercado, mas os ganhos não foram suficientes para contrapor as perdas incorridas com a marca Antarctica (SULL, 2005). No desespero por uma retomada do crescimento, a empresa decidiu competir por preço baixo com as novas concorrentes, iniciando grande parte das reduções de preço do mercado. Tal estratégia, contudo, além de gerar perdas operacionais em virtude da grande estrutura de custos da cervejaria, foi marcada por demonstrações de despreparo para lidar com a nova realidade competitiva do mercado. A guerra de preços levou a CAP a um alto grau de endividamento, e o pobre desempenho operacional da cervejaria a deixou sem fundos para gerenciar sua exposição monetária. Em entrevista à mídia, o Diretor Financeiro da empresa, Victório de Marchi, explicou que a CAP não tinha condições de bancar os custos de hedge de suas dívidas. Assim como outras empresas brasileiras, a CAP estava exposta à desvalorização monetária, que desencadeou um problema imediato de liquidez para a empresa. Tal situação exigia uma rápida injeção de caixa de uma empresa forte para manter a cervejaria respirando. Historicamente, esse papel havia sido desempenhado por multinacionais, que adquiriam empresas brasileiras quando se encontravam com problemas. Diante do interesse cada vez maior de cervejarias estrangeiras pelo mercado brasileiro, evidenciado através da aproximação com as cervejarias brasileiras, Marcel Telles, Presidente do Conselho de Administração da CCB, percebeu que a situação financeira saudável de sua empresa lhe permitia se mover mais rapidamente do que qualquer um dos rivais estrangeiros e fechar um acordo com a CAP. Após 4 meses de negociação, foi anunciada, no dia 1º de julho de 1999, a fusão da CAP e da CCB, para criar a AmBev – Companhia de Bebidas das Américas. Vale lembrar, por fim, que, com a fusão, foi desfeita a parceria entre a CAP e a cervejaria norte-americana Anheuser-Busch, firmada em 1997 para a criação da

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Budweiser Brasil, que tinha como objetivo a distribuição da cerveja Budweiser nos postos de revenda da CAP e, em troca, a venda do Guaraná Antarctica nos Estados Unidos.

APÊNDICE E – HISTÓRIA DA COMPANHIA CERVEJARIA BRAHMA

Período Pré-Banco Garantia

A história da Companhia Cervejaria Brahma iniciou-se no final do século XIX, em 1879, com a chegada, ao Rio de Janeiro, do imigrante suíço Joseph Villiger (SANTOS, 2004). Engenheiro de profissão e apreciador e conhecedor de cerveja, Villiger, que morava em Petrópolis, não gostou da bebida que encontrou por aqui e decidiu fazer a sua própria cerveja. A "produção" foi apreciada pelos amigos e pelos amigos destes, a ponto de, em março de 1888, o suíço resolver industrializar sua cerveja de alta fermentação. Para tal, fundou, juntamente com Paul Fritz e Ludwig Mack, a "Manufactura de Cerveja Brahma, Villiger & Companhia", e registrou a marca Brahma na Junta Comercial do Rio de Janeiro, então capital do Império, no dia 6 de setembro do mesmo ano. A empresa, que se instalara na Rua Visconde de Sapucahy nº 122-B, contava com apenas 32 funcionários e uma produção diária de 12.000 litros de cerveja. O primeiro rótulo apresentava o desenho de uma mulher envolta em ramos floridos de lúpulo e cevada, como mostra a Figura 9-2. Nunca se esclareceu a razão exata pela escolha do nome Brahma, mas há três versões de acordo com a AmBev (2009): a atração de Villiger pela cultura indiana; a admiração pelo compositor Johannes Brahms; ou uma homenagem ao inventor da válvula de chope, o inglês Joseph Brahma.

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Figura 0-1: Primeiro Rótulo da Cerveja Brahma Fonte: Arquivo Nacional.

Seis anos depois, em 1894, a pequena empresa foi comprada pelo cervejeiro Georg Maschke. Em outubro do ano seguinte, Maschke firmou sociedade com o comerciante alemão J. Baptist Friederizi, proprietário do restaurante Stadt München, localizado na Praça Tiradentes, então o centro nervoso da noite carioca, repleto de teatros, restaurantes e boêmios. Maschke e Friederizi constituíram a firma ―Georg Maschke & Companhia Cervejaria Brahma‖ (MARQUES, 2003). Maschke assumiu o papel de sócio gerente, responsável pelo dia-a-dia da cervejaria. Friederizi era um dos sócios capitalistas, e seu genro, Heinrich Hoelck, outro sócio gerente. Em termos legais, a companhia era uma sociedade em comandita por ações. Tratava-se de uma modalidade de associação de capitais em que havia dois ou mais sócios gerentes, e um número não definido de sócios entrava apenas com o capital para o negócio. Os primeiros detinham poder de administrar, e os comanditários (capitalistas) não participavam da administração. Em compensação, os sócios- gerentes assumiam a responsabilidade ilimitada por todas as dívidas, compromissos e obrigações sociais. Já os sócios comanditários se responsabilizavam apenas pela quota de capital que tivessem subscrito. Os sócios capitalistas podiam convocar assembléias e dispunham de instrumentos para fiscalizar os negócios da empresa. Podiam, inclusive, destituir os gerentes, fazendo valer uma decisão tomada em assembléia. Nos primeiros anos, o carro-chefe das vendas da CCB era a cerveja escura e amarga, do tipo München, igual às de muitas outras cervejarias que havia pela

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cidade. Era, no entanto, preciso ampliar o negócio, passar a produzir em escala industrial, como cerveja de baixa fermentação, bem como diversificar a linha de produção. A saída para a escassez de recursos próprios foi buscar associação com outras empresas pertencentes à comunidade de negócios alemã no Brasil. Assim, Maschke negociou um pedido de empréstimo com a firma Herm. Stoltz & Cia. para adquirir equipamentos e ampliar as instalações da fábrica. A Herm. Stoltz & Cia., com sede em Hamburgo, Alemanha, pertencia ao alemão Herman Stoltz, que esteve no Brasil desde a fundação da empresa, em 1883, até o início do século XX, quando deixou os negócios ao encargo de seu filho Hans Stoltz. Era tanto uma empresa comercial importadora quanto agente de seguros. Também fretava navios que percorriam o litoral brasileiro distribuindo mercadorias das indústrias do Centro-Sul. Cabotagem, representação comercial de fábricas de locomotivas e navios e importação de mercadorias diversas estavam dentre as suas atividades. Da empresa saíram vários nomes que fizeram parte da história da CCB, a começar por Hoelck, sócio capitalista de Maschke, que exercia o cargo de gerente geral da Herm. Stoltz no Brasil, quando foram realizadas as negociações do empréstimo de 1896. Outro nome egresso da Stoltz era J. Künning, que se tornou presidente da CCB de 1907 até 1938, ano de sua morte (MARQUES, 2003). O valor do empréstimo foi de 278.223,88 marcos alemães, cotados a 378:384$480 mil réis (MARQUES, 2003). Em complemento à concessão de crédito, ou talvez como exigência imposta na negociação, Maschke firmou um contrato privado com a Herm. Stoltz & Cia. em março de 1896. Por esse contrato, cabia à firma fornecer matéria-prima originada no mercado europeu, especialmente no alemão. A Stoltz também foi incumbida de distribuir parte da produção da CCB nos mercados costeiros do Brasil. Além de aperfeiçoar a fabricação de cerveja e importar equipamentos, a nova cervejaria patrocinou bares, restaurantes, clubes e artistas. Houve também um esforço contínuo, ao longo dos anos seguintes, de registro de uma série de marcas de cerveja, sem evidências, no entanto, de que houvesse efetivamente a comercialização de todos os produtos: Bier (1894); Crystal e Pilsener (1897); Pilsen e Franziskaner-Bräu (1899); Ypiranga, München, Brahma Porter e Guarany (1902); e Bock-Ale (1903).

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Em 1904, a companhia comprou a fábrica de cerveja Preiss, Häussler e Companhia Teutônia, surgindo a Companhia Cervejaria Brahma S.A., presidida por Georg Maschke (então com 28 anos), com capital de 5.000 contos de réis. A Fábrica de Cerveja Teutônia foi instalada no ano de 1895 em Mendes, RJ. Dentre duas principais marcas, destacavam-se: Excelsior, Munchen-Bock eTeutônia, todas registradas pela empresa em 17 de outubro de 1901 (COUTINHO, 2010). Segundo Marques (2003), a transação era uma resposta ao movimento de concentração regional iniciado pouco antes pela CAP – com a aquisição da Cervejaria Bavária em São Paulo. A partir da compra, a CCB passou a deter o domínio quase absoluto sobre o mercado produtor de cerveja de baixa fermentação da capital federal. Seu concorrente mais próximo, a Viveiros & Castro, fabricante da cerveja Polônia, estava longe de representar uma ameaça. No interior do Estado do Rio de Janeiro, restava a Bohemia, de Petrópolis, que, até onde se sabia, seguiu sendo uma empresa familiar. A conversão jurídica para sociedade anônima trouxe uma nova dinâmica ao processo decisório da empresa. A CCB deixou de ser um negócio quase pessoal de Maschke, que pouco partilhava as decisões com outros sócios, e assumiu a forma mais complexa de uma associação de capitais. Surgiram novos atores políticos, os acionistas e seus interesses. No final de 1904, a produção de chope em tonéis chegou a 6 milhões de litros e a distribuição contava com 9 depósitos situados no centro do Rio de Janeiro: Largo de São Francisco de Paula, 18; Praça Tiradentes, 31; Rua dos Inválidos, 74; Rua da Lapa, 19; Rua do Lavradio, 109 a 171; Rua do Riachuelo, 15; Rua do Rosário, 18; Rua do Sacramento, 26; e outro cujo endereço não foi localizado. Dois anos mais tarde, a cervejaria desativou a fábrica da Teutônia em Mendes, por ser impraticável a comunicação permanente, e trouxe o seu maquinário para o Rio de Janeiro. Vale destacar que, nos anos seguintes à fusão, a nova empresa manteve a linha de registrar uma série de marcas de cerveja (sem que haja, novamente, evidências de comercialização de todos os produtos): ABC (1905); Bock-Crystal (1907); Bramina e Bull Bock (1910); Colombo e Rainha (1911); Cavalleira (1912); e Suprema, Malzbier e Fidalga (1914). Maschke renunciou ao cargo de presidente da cervejaria em setembro de 1906, retornando à Europa, e foi sucedido por Johann Friedrich Künning, que vinha

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participando da direção da companhia desde 1904. Nascido em Bremen, Alemanha, Künning veio para o Brasil ainda jovem para trabalhar na Herm. Stoltz & Cia., onde anteriormente exercia o cargo de gerente do setor de transporte de cerveja por cabotagem. Ele permaneceu à frente da CCB até 1938, ano em que faleceu. Sob o comando de Künning, a CCB expandiu sua rede de depósitos pela cidade: a partir de 1908, foram estabelecidos os primeiros depósitos na Zona Sul, como o situado à Praia de Botafogo, 260, e o da Rua Dezenove de Fevereiro, 54, também em Botafogo. Em 1910, além do depósito na Av. Mem de Sá, 77, foi construído o da Rua Payssandu, 55, no Flamengo. Em 1914, verificava-se a existência de um depósito na área de aterro recém-criada junto ao centro, à Av. Cais do Porto, 829, bem como no principal bairro residencial litorâneo que se formava, à Av. Nossa Senhora de Copacabana, 562. Paralelamente à expansão da infra-estrutura de distribuição, foi sob o comando de Künning que a produção de refrigerantes iniciou-se em 1918, com o lançamento de seis refrigerantes “com óptimas qualidades tônicas e digestivas”: Água de Meza Crystal, Ginger-Ale, Berquis, Soda Limonada Especial, Soda Limonada e High Life. No mesmo ano, ainda houve o lançamento da cerveja Malzbier, marca registrada pela Companhia em 1914, e cujo anúncio dizia: ―Saborosa e nutritiva, recomendada especialmente às mulheres que amamentam‖. Na década de 20, a CCB realizou dois movimentos de expansão. Por um lado, houve um esforço de diversificação com o desenvolvimento do guaraná. Em 1924, foi registrado o primeiro guaraná da CCB, o Guaraná Genuíno. Dois anos depois, lançou-se o Guaraná Athleta, cujo rótulo mostrava também o nome Genuíno. Finalmente, só em 1927 é que foi lançado o Guaraná Brahma, que viria a concorrer com o Guaraná Antarctica ao longo do restante do século XX. Aparentemente, não houve mudanças em relação ao sabor das bebidas, ficando a diferença por conta somente dos rótulos (ENTREVISTADO #11). Diferentemente do anterior, o segundo movimento de expansão da década de 20 foi puramente geográfico: em 1928, a Companhia adquiriu o controle da Companhia Guanabara, antiga Germânia, em São Paulo, que passou a ser conhecida como filial Paraíso. A importância da aquisição estava no fato de marcar o início da produção da cerveja Brahma no Estado de SP, reduto da CAP.

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No início da década de 30, a CCB apostou em novas tecnologias e em publicidade para criar afinidade com os consumidores, verificada com o lançamento, em 1934, da Brahma Chopp. O novo produto representava um feito tido na época como impossível: engarrafar o chope sem alterar o sabor (EVANGELISTA; KELLER; SIQUEIRA, 1990). O chope engarrafado da Brahma se tornou um grande sucesso, estimulado pelo carnaval daquele ano, quando uma marchinha de Ary Barroso e Bastos Tigre – Chopp em Garrafa10 – foi gravada por Orlando Silva. A produção daquele ano foi de 30 milhões de litros, considerada enorme para a época, e a Brahma Chopp se tornou a cerveja mais consumida no país. Até 1932, todo o transporte era feito por animais, cavalos e bois, que transportavam os produtos (inclusive o gelo) em carroças pelas ruas do Rio de Janeiro. A CCB chegou a ter 440 animais para esse serviço. O transporte para os subúrbios era penoso pela falta de calçamento. As carroças puxadas pelos animais levavam muito tempo para chegar, e atolavam em dias de chuva, comprometendo a distribuição da bebida, a ponto de a companhia ter que embarcar a cerveja e o chope em vagões da Central do Brasil (ENTREVISTADO #11). Com o crescimento da cidade do Rio de Janeiro e a expansão do consumo da cerveja, contudo, surgiu a necessidade de melhorar o sistema de distribuição, o que culminou na aquisição da primeira frota de caminhões para transporte dos barris, em 1932, e na criação de novos depósitos, dentre eles o depósito do Méier, em 1935, e outros mais no subúrbio da cidade. Johann Künning foi sucedido em outubro de 1938 por Franz Icken, alemão que, por causa de sua experiência industrial, veio diretamente do país europeu para trabalhar com Johann Künning, de quem foi assessor direto, dentre outras funções que ocupou. Icken manteve-se no cargo de até setembro de 1941, quando Henrich Künning, filho de Johann Künning, assumiu a Presidência da cervejaria, função que exerceu até o ano de 1967. Em 1941, a CCB adquiriu a Companhia Hanseática, no Rio de Janeiro, e suas controladas: Cervejaria Moravia, de São Paulo, Paranaense, de Curitiba (posteriormente desativadas) e ainda a cervejaria Atlântica, que deu origem à Filial

10 ―O Brahma Chopp em garrafa/ Querido em todo o Brasil/ Corre longe, a banca abafa/ É igualzinho ao do Barril. / Chopp em garrafa/ Tem justa fama/ É o mesmo Chopp/ Chopp da Brahma‖. Fonte: Letras.com.br. Disponível em: . Acesso em: 08 de mar. 2010.

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Curitiba. No ano seguinte, entraram em operação a Filial Hanseática, no RJ, e a Filial Curitiba, no Paraná. Em 1943, a Companhia ampliou sua linha Brahma com o lançamento da cerveja Brahma Extra: ―Extra no sabor, Extra na qualidade, Extra nos ingredientes – Cerveja Brahma Extra, em garrafas ou 1/2 garrafas‖. Paralelamente, a política de aquisições da Brahma se manteve bastante ativa. Em 1946, a empresa adquiriu o maior grupo cervejeiro do Rio Grande do Sul, a Bopp, Sassen, Ritter e Cia. Ltda, também conhecida por Cervejaria Continental, que mais tarde viria a se tornar a filial Rio Grande do Sul (essa fábrica foi, entretanto, descontinuada em 1988). Assim como a sua principal concorrente, a CCB também investiu desde cedo na promoção de sua marca e de seus produtos. Já na década de 30, através do patrocínio a programas de emissoras de rádio populares, como a Difusora e a Tupy, a empresa contribuiu para impulsionar a era do rádio no Brasil. Em 1950, tomou carona na introdução da televisão no país, por Assis Chateaubriand, para divulgar seus produtos. Em 1960, o programa radiofônico Irradiações Esportivas Brahma, também patrocinado pela empresa, era um sucesso na Rádio Nacional (AMBEV, 2010). Em 1954, a CCB celebrou o seu qüinquagésimo aniversário. Nesse curto espaço de tempo, a empresa tinha se tornado uma das maiores do Brasil, com 6 fábricas e 1 maltaria em laboração (Maltaria Navegantes, em Porto Alegre, inaugurada em 1960 com capacidade de 8 mil ton./ano). Para continuar a expandir- se, tornava-se urgente a elaboração de um plano de distribuição que abrangesse as áreas mais afastadas dos grandes centros urbanos. Para isso, a CCB comprou pequenas empresas e criou filiais, como a de Agudos (SP), que nasceu a partir da antiga Companhia Paulista de Cerveja Vienenses, e a Filial do Nordeste, na cidade do Cabo (PE), que foi inaugurada em 1962. As primeiras revendas da Brahma, constituídas por antigos funcionários da empresa, surgiram em 1965. Dois anos mais tarde, no final de 1967, ocorreu mais uma sucessão no comando da CCB: saiu Henrich Künning e entrou Rudolf Ahrns, que ocupou a posição por somente dois anos, já que veio a falecer em junho de 1969. Em 1968, por ser uma empresa de capital 100% nacional e preocupada em manter o padrão de qualidade dos seus produtos e a participação no

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desenvolvimento do país, a Companhia decidiu incluir em seus planos um esforço associado à pesquisa e ao desenvolvimento tecnológico. Assim, foi inaugurada, em Encruzilhada do Sul (RS), a Estação Experimental de Cevada para testes de novas variedades de cevada cervejeira, adaptadas ao clima e ao solo da região. No ano seguinte, houve mais uma sucessão no comando da CCB: devido ao falecimento de Rudolf Ahrns, Karl Hubert Gregg se tornou o Presidente da cervejaria. Alemão e filho de um engenheiro dono de uma fábrica de refrigerantes em sua terra natal, Gregg chegou ao Brasil em 1933, e começou sua carreira na cervejaria como aprendiz de cervejeiro. A década 70 foi marcada por novos lançamentos no segmento de refrigerantes e por um conjunto de inovações em termos de embalagens e apresentação dos produtos. Houve também a criação, em 1972, do Agro-Brahma, projeto integrado para o cultivo de guaranazeiros em Camamu, Bahia. Em 1970, a CCB firmou associação com a Fratelli Vita Indústria e Comércio S.A., marcando o início da produção de mais três marcas de refrigerantes: a Sukita, o Guaraná Fratelli e a Gasosa Limão. No ano seguinte, a filial em Curitiba (antiga Cervejaria Atlântica, na posse da empresa desde 1942) inovou ao adotar engradados plásticos para o transporte de cervejas e refrigerantes. Em 1972, a filial de Agudos (SP) lançou embalagens em lata de folha de flandres para as cervejas Brahma Chopp e Brahma Extra. Foi também nesse ano que chegou ao mercado a garrafa "personalizada", de vidro incolor e com o nome do produto gravado no vidro. Essa inovação deu origem, alguns anos mais tarde, ao lançamento da Brahma Chopp em garrafa própria, de vidro e cor âmbar (antes era engarrafada em vasilhames de qualquer cor). No segmento de cervejas, o fato mais importante dos anos 70 foi a aliança (aquisição) firmada com a Cervejaria Astra S.A., em 1971, para a fabricação e distribuição dos produtos Brahma nas Regiões Norte e Nordeste do Brasil. A Cervejaria Astra S.A. foi criada um ano antes pela firma J. Macêdo & Cia, em Fortaleza - CE, produzindo então uma cerveja de marca própria. Ainda nesse ano, a J. Macêdo adquiriu o controle acionário da Cervejaria Miranda Corrêa, de Manaus - AM, para, em seguida, se associar à CCB (CERVEJAS DO MUNDO, 2010). Em 1973, a CCB iniciou as primeiras exportações de cerveja e de refrigerante, com a e o Guaraná Rioco. Em 1976 e 1977 expandiu as

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novidades em embalagens para o negócio de refrigerantes. Primeiramente, todos os produtos passaram a ser comercializados em embalagem de 1 litro. Em seguida, os refrigerantes Brahma Soda Limonada, Guaraná e Água Tônica ganharam embalagens em lata. O ano de 1978 foi marcado por avanços em diversas áreas da empresa. Possivelmente, o fato mais importante foi o Guaraná Brahma ser engarrafado por duas franquias internacionais: a Fábrica de Bebidas Gasosas Oriental, de Santa Cruz de La Sierra, e a Embotelladora Tunari, de Cochabamba, ambas na Bolívia. Além do pioneirismo ao criar o primeiro curso de cervejeiro prático da América Latina, a CCB recebeu o prêmio Mauá como empresa que mais se destacou na comunicação e no atendimento aos acionistas, uma distinção conferida pelo Jornal do Brasil, pela Bolsa de Valores e pela Associação Comercial do Rio de Janeiro. Apesar do lançamento do limão Brahma em 1980, comercializado em garrafa verde personalizada em todo o Brasil, os anos 80 começaram de maneira distinta em relação à década anterior. Se antes a Companhia apostou forte no mercado de refrigerantes, não havendo nenhum lançamento significativo de cerveja, a CCB deu um passo importante para consolidar sua atuação neste segmento já em 1980: a aquisição do controle acionário das Cervejarias Reunidas Skol – Caracu S.A., fabricante da cerveja Skol desde 196711. A negociação foi muito discreta para não levantar suspeita e um possível interesse por parte da CAP. Além da cerveja Skol, Chopp Claro Skol, da cerveja em lata Ouro Fino (destinada à exportação) e da cerveja Caracu, a Companhia deu continuidade à sua linha de produtos, produzidos em 7 fábricas espalhadas pelo Brasil, e manteve até mesmo o mestre cervejeiro, diferentemente do que havia feito com a maioria das cervejarias adquiridas ao longo da sua história. Ainda em 1980, a Brahma Beer foi eleita pela revista The Washingtonian como a melhor cerveja importada nos Estados Unidos. Aproveitando o sucesso de sua principal marca, a Companhia lançou a primeira versão da cerveja Brahma Light, do tipo pilsen de baixos teores alcoólicos e calóricos. Logo no ano seguinte, a Brahma Light concorreu com mais de 972 trabalhos internacionais e 14 brasileiros ao prêmio "Clio Awards", na cidade de Nova Iorque, um dos mais prestigiados do mundo publicitário, tendo alcançado o primeiro lugar na categoria Melhor

11 A história resumida da Skol encontra-se na seção 9.6.

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Embalagem. Segundo Santos (2001), no entanto, a Brahma Light viria a ser, talvez, o maior fracasso da cervejaria, sendo retirada do mercado em 1987. Em 1982, foi criada a Fundação Assistencial Brahma, destinada a prestar assistência médico-hospitalar e dentária aos empregados e dependentes da cervejaria, bem como oferecer bolsas de estudo de 1º e 2º graus e estimular o esporte, o lazer e atividades de caráter científicas e culturais. Dois anos depois, a CCB e a PepsiCo International Inc. firmaram um acordo para a fabricação, comercialização e distribuição da Pepsi Cola no Brasil (inicialmente, no Rio de Janeiro), incluindo ainda a operação de três fábricas no Rio Grande do Sul. É o início de uma parceria que duraria até os dias de hoje. Ainda em 1984, a CCB, buscando se aproximar da ―leveza‖ da cerveja Antarctica, lançou a cerveja Malt 90, destinada ao público jovem. Cerveja do tipo pilsen, com cor clara, teor alcoólico médio e paladar suave, seu slogan era: ―O prazer de fazer bem-feito‖. Infelizmente, foi descontinuada alguns anos mais tarde, havendo duas versões para a decisão: não ter sido muito bem recebida pelos consumidores (muitos a consideravam aguada) ou ter se tornado tão famosa a ponto de ameaçar a Brahma, produto principal da cervejaria. Em 1987, foi inaugurada, no laboratório da filial Brahma Rio, uma cervejaria- piloto para o desenvolvimento de novos produtos. Outras duas grandes realizações da década foram a aquisição da Fábrica de Refrigerantes Refinco, em 1987, e a inauguração de mais uma fábrica de cerveja, a Cebrasp, em Jacareí (SP), em 1988. O final dos anos 80 foi marcado pelo lançamento de novidades em termos de embalagem dos produtos, dando prosseguimento ao processo iniciado no início da década: os refrigerantes Brahma ganharam embalagem não-retornável (one way), em 1988, e a Sukita ganhou embalagem PET, em 1999. Além disso, acompanhando a evolução do mercado e a preocupação com o meio ambiente, a CCB lançou o "Projeto Brahma para Reciclagem", introduzindo a embalagem em lata de alumínio para a Brahma Chopp, a Skol e a Pepsi, e também a embalagem descartável de 300 ml para a Malt 90.

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Período Pós-Banco Garantia

Em 1989, o controle acionário da CCB foi adquirido pelo Banco Garantia12, dando início a uma nova fase da história da cervejaria. Depois de quatro meses de negociação, a BRACO, uma empresa de investimento fundada pelos parceiros do Garantia, adquiriu, em novembro de 1989, 40,7% das ações da Companhia por um investimento de 65 milhões de dólares. Essa participação deu aos sócios do Banco Garantia – Jorge Paulo Lemann, Carlos Alberto Sicupira e Marcel Telles – o controle operacional sobre a cervejaria (Karl Hubert Gregg, que até então era o Presidente, passou a exercer o cargo de Conselheiro Administrativo). À época da aquisição, a CCB tinha uma capitalização de mercado de aproximadamente 380 milhões de dólares, e suas ações eram negociadas na Bolsa de Valores de São Paulo (SULL, 2005). Quando assumiu a direção da CCB, Marcel Telles não sabia nada sobre cervejas. Seu segundo em comando, Magim Rodrigues, ex-presidente da Lacta, sabia tudo sobre chocolates, mas também não estava familiarizado com o setor. Além de Magim, Telles levou outros dois funcionários de sua confiança: Luiz Claudio Nascimento, que trabalhava no Garantia, e Carlos Brito, recém egresso de um MBA em Stanford, nos Estados Unidos (CORREA, 2008) – por sinal, financiado por Jorge Paulo Lemann, experiência que deu origem à Fundação Estudar13. Apesar da inexperiência, Marcel Telles tinha uma única certeza: teria que transformar a organização e a cultura existentes na CCB para se parecer mais com aquela que ele e seus sócios haviam construído no Banco Garantia. O ex-banqueiro acreditava que a essência dessa cultura estava em escolher pessoas por sua atitude, treiná-las, pagá-las bem para reter os talentos com alto desempenho, manter um foco implacável em resultados e colocar em funcionamento uma estrutura de incentivos com altas recompensas para desempenho e punições para falhas (SULL ,2005).

12 A história resumida do Banco Garantia encontra-se na seção 9.7. 13 Criada por Jorge Paulo Lemann em 1991, a Fundação Estudar é uma instituição sem fins lucrativos que investe no desenvolvimento do Brasil por meio do incentivo à educação e à formação de futuros líderes. Para isso, seleciona jovens talentos que recebem bolsas de estudo nas melhores instituições de ensino do Brasil e do mundo para cursos de graduação e pós-graduação. Fonte: Fundação Estudar, 2010.

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Para tal, o novo CEO gastou as duas primeiras semanas de trabalho conduzindo entrevistas com os dois níveis gerenciais superiores da empresa, uma técnica que aprendeu com Sicupira, que havia feito o mesmo nas Lojas Americanas. Com base nas entrevistas, ele selecionou um grupo de gerentes de nível médio para ajudá-lo a liderar o processo de mudança, e também identificou aqueles que não acreditava serem capazes de fazer a transição (tais gerentes saíram da empresa ou foram realocados em posições menos importantes). O contingente total corporativo foi reduzido em 10% por ano em 1990 e 1991, através principalmente de demissão voluntária. Outra iniciativa imediata de Telles, inspirado na cultura do Banco Garantia, foi acabar com paredes e salas individuais na Administração Central (AC) para criar um espaço de trabalho “single-floor, no cubicles", de forma a promover um ambiente mais aberto. Além disso, selecionou 240 funcionários para estimular a interação constante entre as pessoas e a troca de informação em tempo real. Os escritórios abertos foram replicados para todas as instalações da empresa, incluindo plantas industriais e call centers. Também tomou uma série de medidas simbólicas para demonstrar comprometimento com a mudança de cultura. Historicamente, a CCB tinha quatro restaurantes separados de acordo com o público: diretores, executivos seniores, gerentes médios e funcionários. Telles, no entanto, consolidou-os em um único restaurante. Eliminou qualquer coisa que fosse vista como símbolo de status, incluindo área reservada em estacionamentos, banheiros e carros separados para diretores. Segundo ele, falou-se às pessoas que todo mundo estaria começando do mesmo lugar, e que, de ali em diante, iriam se diferenciar por si mesmos através de seus desempenhos. O executivo, no entanto, teve que adiar momentaneamente a continuidade de seus planos de reestruturação ao descobrir que a situação da CCB era pior do que imaginava: havia uma dívida de 250 milhões de dólares sem financiamento, resultado de um plano de pensão generoso através do qual os empregados podiam se aposentar com 50 anos de idade. Telles percebeu que seria impossível cobrir aquelas obrigações através do mercado de capitais ou de bancos. Dessa forma, durante alguns meses, visitou pessoalmente todos os escritórios da CCB para

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persuadir funcionários e os representantes de sindicatos a assinar um novo plano de pensão. Segundo Jorge Paulo Lemann:

[...] no caso da compra da Brahma, se nós tivéssemos feito o due diligence [análise e avaliação detalhada de informações e documentos de determinada empresa e/ou seu ativo, com abordagem contábil ou jurídica] adequadamente, nunca a teríamos comprado. Logo depois da aquisição, descobrimos grandes problemas financeiros, especialmente no fundo de pensão. Mas nós compramos. Por quê? Porque nosso feeling dizia que somos um país de população jovem, com muito calor, e acreditávamos que cerveja era um bom negócio mal tocado aqui. Para nós isso valia mais do que se o Lula ou o Collor ia ganhar ou se o fundo de pensão tinha ou não problema. (NETO, 2008, p. 24)

Além da dívida, a nova Direção descobriu que o aparente market share de 40% mascarava problemas mais profundos: pesquisas de opinião revelavam que somente 20% dos consumidores preferiam a marca Brahma, enquanto mais de 60% tomariam Antarctica se estivesse disponível. A Brahma só manteve seu market share porque a capacidade de produção da CAP não acompanhava a demanda e os consumidores compravam Brahma quando não encontravam sua cerveja predileta.

Segundo uma pesquisa feita pela Nielsen na época, à qual tive acesso, a Antarctica era uma loira muito acessível e a Brahma era como uma enfermeira alemã que vivia dando ordens (a Brahma dava a impressão de que você deveria tomá-la por obrigação e não por gosto). Isso fazia com que o público gostasse mais da Antarctica. Nessa mesma pesquisa, descobriu-se que a Kaiser seria um pequeno querendo se meter na briga de grandes, por isso a propaganda focou no baixinho. (ENTREVISTADO #9)

Avaliação realizada pela equipe concluiu que a baixa preferência pela marca Brahma resultava, em grande parte, da baixa qualidade do produto. Enquanto o restante das empresas de cervejaria no mundo havia migrado para processos padronizados em busca da melhoria da qualidade, o Departamento de Produção da CCB ainda via a fabricação de cerveja como um trabalho artesanal. O engenheiro- chefe de cervejaria se considerava um artista em vez de um técnico, com a licença para produzir cerveja da maneira que considerasse melhor. As quatro plantas da empresa no Rio de Janeiro ainda fabricavam cerveja em tanques descobertos, um processo que a maioria das grandes empresas já havia abandonado por causar variação no sabor do produto. Era necessário, portanto, repensar a estratégia de produção para garantir produtos de alta qualidade e de maneira consistente. Telles fez da garantia de alta

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qualidade da cerveja a maior prioridade da empresa. Seu antecessor havia contratado uma empresa internacional de consultoria em gestão para rever a estratégia global da CCB, e pagou pelo estudo antecipadamente. Telles, então, orientou os consultores a abandonar a revisão estratégica e analisar qual seria o "optimal factory footprint14" se uma nova cervejaria pretendesse entrar no mercado do zero, sem nenhum tipo de planta de legado. Segundo o executivo:

We asked ourselves the following question: If we could start from scratch, what types of factories should we build and where? We then visited several companies around the world (Modelo, Coors, Anheuser-Busch) and made an ideal blueprint of the factories and their locations throughout Brazil […]. We came back with a lot of ideas. (SULL, 2005, p. 8)

Com base nessa análise, concluiu-se que a CCB dispunha de muitas fábricas, a maioria muito pequena. Algumas plantas eram altamente eficientes, como a de Jacareí que produzia até 4.000 hectolitros/ empregado por dia, enquanto algumas das plantas mais antigas produziam somente 150-200 hl/ empregado por dia. Além disso, as grandes plantas produziam consistentemente cervejas com alta qualidade, enquanto as menores produziam lotes de cervejas com sabor inconsistente. Entre 1989 e 1991, a CCB fechou mais de dez fábricas. Essa estratégia, no entanto, foi muito questionada quando, em 1995, a empresa perdeu a liderança do mercado para a CAP, em virtude da falta de capacidade produtiva. Segundo Barros (1995), ―‘A Brahma foi vítima do seu próprio sucesso‘, afirma um fornecedor da empresa. Em sua opinião, a Brahma foi tão obsessiva em cortar custos que acabou prejudicando seu próprio desempenho, como mostra o fechamento de fábricas‖. Por trás dessa falha, estava o erro das previsões da companhia em relação ao aumento de consumo decorrente do Plano Real, associado ao atraso na construção das plantas de Lages, em Santa Catarina, e de Buenos Aires, Argentina, devido a problemas de fornecimento.

O fato é que houve um brutal erro de cálculo da companhia. A Brahma não soube armar-se a tempo, aumentando sua capacidade de produção. Suas previsões de venda estavam todas frustradas, frustradíssimas. Ninguém definiu tão bem a responsabilidade pelo erro como seu próprio presidente: ‗O responsável sou eu‘, afirma [Marcel] Telles. (BARROS, 1995)

14 Manufacturing Footprint Optimization (MFO) is an approach for achieving a step-change in cost reduction across a company‘s manufacturing network. It addresses the fundamental ―What should be made, where?‖ question to maximize value.

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Diante da derrota, a empresa conseguiu, ainda no final de 1995, a aprovação do projeto de construção de uma nova unidade no Rio de Janeiro, que estava engavetado há dois anos pelo então governador Leonel Brizola. No ano seguinte, iniciaram-se as obras daquela que seria a sua primeira fábrica "estado da arte", incorporando as últimas novidades tecnológicas, com capacidade de 12 milhões de hl. A CCB conseguiu incentivos do governo para custear o gasto de capital necessário para a construção da nova planta. Apesar dos avanços na área fabril, percebeu-se logo que as melhorias operacionais não poderiam se limitar à produção, mas deviam incluir também o marketing e a sua ampla rede de distribuição. No primeiro caso, foram implementadas mudanças importantes na estrutura de Marketing da empresa, que passou a assumir uma atitude mais agressiva, especialmente nas campanhas publicitárias. O principal trabalho realizado foi a definição de uma forte identidade de marca para a Brahma Chopp, surgindo então o conceito ―Número 1‖. Houve também a implementação de uma arrojada política de comunicação de marketing no campo, objetivando a liderança em merchandising e eventos promocionais. Neste caso, o maior exemplo foi o lançamento do Camarote Brahma durante o carnaval carioca de 1991, sendo o primeiro evento exclusivo dedicado à cerveja. Quanto às revendas, foi criada uma Diretoria com a função específica de gerenciar o relacionamento com os revendedores e implementar melhorias nessa área. Para isso, contribuiu o fato de a CCB ter 24 revendas próprias, que serviam como laboratório, permitindo entender e acompanhar os problemas de distribuição. O objetivo da empresa era que os negócios ―Revenda Brahma‖ e ―Revenda Skol‖ fossem encarados como verdadeiras franquias para comercialização de seus produtos e continuassem atraindo empresários que quisessem levar adiante seus objetivos de desenvolvimento do mercado e que buscasse sempre a eficiência. Em 1991, Telles articulou um conjunto de prioridades centradas no aumento da eficiência e do profissionalismo entre os revendedores.

We established a new rule in 1991 – no friends, relatives, or former employees could be distributors. Although this was a very common practice at the time, such relationships created tremendous conflicts and distractions…and for the most part family, former employees and friends turned out to be bad distributors because decisions were made for personal not business reasons. This new rule was a watershed event. (SULL, 2005, p. 8)

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Além da nova regra, a empresa, pretendendo colocar em prática um sistema de incentivos e métricas para seus distribuidores, percorreu o mundo para aprender as melhores práticas globais de gerenciamento de revendedores. A Anheuser-Busch foi a grande inspiração da cervejaria:

Every year Anheuser-Busch gave out Excellence Awards to its best distributors based on objective criteria. They used the same data to decide which distributors to keep and which to shed. We decided to use similar criteria to start aligning our distributors with Brahma's goals. This way, we could shape their decisions on infrastructure, warehouse size, and so forth. We could also help them make a lot of money, which created incentives for them to re-invest in the business. The program was a way of getting other entrepreneurs with their own agendas to align their interests with ours. (SULL, 2005, p. 9)

Dessa forma, foi criado o Programa de Excelência em Distribuição no ano de 1992. A meta do programa era definir a padronização da atuação dos revendedores, objetivando a Qualidade Total em termos da prestação de serviços e infra-estrutura administrativa e operacional, considerando-se principalmente as atividades de vendas, distribuição e comunicação de marketing no campo. O programa tinha também um forte sentido motivacional, através de solenidades especialmente destinadas ao reconhecimento de mérito de todos os revendedores classificados como ―Competidores Fortes‖ ou ―Líderes Absolutos‖ (acima de 75% da pontuação máxima possível). Os revendedores que não obtivessem a pontuação mínima de 40% podia ser automaticamente excluídos do sistema de revendas, tendo o contrato rescindido (PORTO; VINICIUS; LINS, 1994). Inicialmente, a mudança de regras gerou controvérsia entre os distribuidores. Embora estudo de benchmarking demonstrasse que os distribuidores Brahma ganhavam algumas das margens mais gordas do mundo, muitos não estavam empolgados com os novos requisitos exigidos pela empresa. Diante disso, a direção da CCB reduziu o número de distribuidores para não só focar naqueles que estivessem entusiasmados com o novo plano, como também permitir que alcançassem escala. A CCB exigia dos candidatos que cumprissem os requisitos financeiros e de qualidade da informação preestabelecidos; mantivessem padrões específicos de qualidade; controlassem um número mínimo de pontos de venda; e tivessem um plano de sucessão para a alta gerência. Também pôs em prática um programa de treinamento para filhos de distribuidores.

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Em 1989, a Brahma tinha 957 distribuidores, mas esse número foi reduzido para 358 em 1998. O tamanho médio de um distribuidor aumentou quatro vezes: de 27.746 hl por ano em 1989 para 108.885 em 1996 (SULL, 2005). Paralelamente às melhorias nas atividades produtivas e de distribuição, a CCB lançou, em 1990, um programa trainee que recrutava estudantes diretamente das faculdades, e servia como fonte primária de gerenciamento de talentos. Em 1999, mais de 9.000 estudantes se inscreveram para 25 vagas de trainee, colocando o programa entre os mais populares do Brasil. Magim Rodriguez, então presidente, coordenava pessoalmente o processo de seleção, visitando as principais faculdades para explicar o programa, entrevistando os candidatos na última etapa do processo e fazendo a seleção final dos aprovados. Os candidatos eram avaliados com base em vários critérios, incluindo a sua capacidade para lidar com situações inesperadas, habilidades de negociação, potencial para trabalhar sob pressão, disposição para buscar novos desafios, fluência em inglês e habilidades de informática. Os trainees passavam os primeiros quatro meses rodando pelas diferentes unidades de negócio e, em seguida, treinavam por 3 semanas na Administração Central da empresa. Durante as 5 semanas restantes, eram alocados em um projeto específico dentro de uma unidade de negócio, e posteriormente assumiam posições de analistas ou gerentes- assistentes. Em 1998, o turnover voluntário entre trainees foi zero (SULL, 2005). Se, por um lado, a CCB investiu no desenvolvimento de um Programa Trainee voltado ao recrutamento e gestão de talentos, por outro, a redução de custos se deu através de muita demissão. Desde o início, Telles e sua equipe sabiam que, para alcançar níveis de produtividade de classe mundial, era necessário reduzir significativamente o quadro de pessoal da empresa. De 25.000 funcionários em 1989, a CCB chegou a ter apenas 9.003 em 1994, o que representa uma redução de quase 2/3. Ao longo desse processo, Telles inventou um procedimento para aumentar a transparência nas decisões de demissão de pessoal. Durante uma semana, os gerentes executivos da empresa faziam um "leilão" de todos os funcionários que não poderiam manter em suas equipes para cumprir as metas de quantitativo de pessoal estabelecidas pela direção. Cada chefe de área descrevia a pessoa que deixaria sair, focando em seu desempenho em relação aos objetivos, e os gerentes de outras

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áreas decidiam se iriam ou não demitir a pessoa. Carlos Brito relembra o processo: "Alguém se levantava e diria: 'Eu tenho que deixar o Paulo sair, o seu background é esse, ele desempenhou da seguinte forma. Alguém pode fazer uso de suas competências?‖.

Houve um leilão dos funcionários. Reuniram-se os diretores e gerentes, cada um com o ranking de suas equipes, e a indicação de quem não seria aproveitado. Essa pessoa era oferecida às demais áreas. Caso alguém quisesse, poderia ficar com o profissional, contanto que cumprisse suas metas de pessoal. Do contrário, era demitido. Em uma semana, demitimos 10% dos 19.000 funcionários da empresa. (ENTREVISTADO #10)

A modernização fabril, combinada com a redução de pessoal, permitiu à CCB alcançar um ganho de 97% em produtividade entre 1993 e 1995, excedendo a marca de 4.600 hl por empregado. Em complementação à redução de pessoal, Telles e sua equipe planejavam estabelecer incentivos baseados em desempenho, algo que não existia anteriormente na companhia. Para existir meritocracia, no entanto, eram necessários não só sistemas de informação, mas também de medição e avaliação de metas. Quanto ao primeiro requisito, os sistemas gerenciais existentes não eram capazes de oferecer informações confiáveis necessárias para a avaliação de desempenho e a distribuição de bônus. Telles, então, entregou a Carlos Brito a tarefa de construir um sistema de relatórios de gestão que oferecesse dados de lucratividade por linha de produtos, territórios e embalagens. Brito gastou os seus primeiros oito meses na empresa construindo o novo sistema do zero, com base em um modelo que os gerentes da CCB haviam aprendido com outra empresa de alimentos. Já em relação ao estabelecimento de metas, Telles encontrou a solução de maneira inesperada. No início dos anos 90, ao procurar a então ministra Dorothea Werneck para obter um aumento nos preços (até então tabelados pelo governo), ouviu que seu pedido estaria condicionado a que fosse procurar os professores da Fundação Christiano Ottoni para investir em produtividade. Telles nunca tinha ouvido falar deles, mas decidiu ir até lá (TEIXEIRA, 2008). Vicente Falconi e José Martins de Godoy eram professores de metalurgia quando começaram a ouvir sobre métodos gerenciais aplicados no Japão, nos anos 80. Na época, os dois prestavam consultoria pela Fundação Christiano Ottoni, ligada

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à Universidade Federal de Minas Gerais, para aumentar a produtividade de metalúrgicas e siderúrgicas. Por meio de um convênio patrocinado pelo governo brasileiro junto ao JUSE (Sindicato Japonês de Cientistas e Engenheiros), ambos fizeram dezenas de visitas a empresas japonesas para aprender princípios do conceito da qualidade total e também receber delegações de executivos japoneses no país. Segundo Mano (2009), a essência do trabalho de Falconi e Godoy era a metodologia do PDCA, do inglês plan-do-check-act ("planejar, executar, conferir e corrigir"). A adoção do método transformou a empresa quando chegou a todos os níveis da organização, e não apenas à área industrial. Ao longo dos anos 90, dezenas de diretores da CCB visitaram o Japão para se aprofundar nas técnicas difundidas por Falconi e Godoy. No Brasil, outras centenas de executivos aprenderam em sala de aula o ciclo do PDCA e outras metodologias, como o ―Gerenciamento por Diretrizes‖, que mais tarde se tornou a base para a formação e o desdobramento de metas da companhia. "Nada foi mais convincente para que todos aceitassem o modelo do que os resultados. Com o tempo, planejar metas com disciplina virou algo corriqueiro, que ninguém mais pensava antes de fazer‖ (MANO, 2009, p. 3). Em abril de 1997, Falconi passou se tornou a primeira pessoa de fora a integrar o conselho da CCB, cargo que ocupa até os dias de hoje.

Aos 69 anos, mais do que um veterano do conselho de administração da AmBev, ele [Vicente Falconi] é uma eminência parda por trás da cultura de eficiência da empresa. Ao lado das inúmeras referências que a AmBev incorporou a seu DNA, como a meritocracia do Goldman Sachs e o mbwa [management by walking around] de Sam Walton, fundador do Wal-Mart, existe a aparentemente inabalável obsessão pelo método gerencial desse senhor de cerca de 1,70 metro, cabelos brancos e jeito de vovô. A maior manifestação disso está no fato de que hoje cada um dos 120 000 funcionários da ABInBev no mundo tem metas – calculadas e checadas com uma disciplina de inspiração declaradamente nipônica, sob influência de Falconi. "Trouxemos a meritocracia para a AmBev, mas devemos a Falconi o método e a disciplina para colocá-la em prática", afirma Telles. (MANO, 2009, p. 1)

O sistema formal de "Medição e Avaliação de Desempenho" da CCB, baseado no modelo de desdobramento de diretrizes preconizado por Falconi, partia do princípio de que as metas (objetivos) a serem alcançados pelas unidades de uma empresa devem se originar das metas da organização. A CCB seguia rigorosamente

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essa filosofia para definir os objetivos anuais a serem alcançados por cada uma de suas Unidades e pessoal (SCHUCH, 1998). Para cada um dos objetivos definidos, que se constituíam em fatores críticos de sucesso definidos pela Matriz, era elaborado um indicador ou um conjunto de indicadores para medir o desempenho obtido, isto é, medir em que nível o objetivo estava ou não sendo atingido.

Indicadores de Desempenho Objetivos (fatores críticos de sucesso)

- Eficiência das linhas - Volumes produzidos Alta escala de produção - Tempo médio de limpeza das linhas - Tempo médio de parada de equipamentos - Custo variável dos produtos - Receita de venda de sub-produtos e refugos - Custo de manutenção - Consumo de matéria-prima e insumos - Índice de horas-extras Baixo custo de produção - Manut. do estoque dentro dos limites da política de estoques - % de diferença entre programação da Área Comercial e carregamento realizado pelas Revendas - Reclamações no SAC (Sistema de Atendimento Padrão de qualidade reconhecido ao Consumidor)

- % Itens verdes no Padrão Técnico de Processos (PTP) Conformidade dos processos - Estabilidade da cerveja - % Padronização das atividades críticas

- Tempo médio de carregamento Não disponível

- % Satisfação do Revendedor no atendimento Não disponível dos pedidos

- Mix de produtos produzidos Não disponível

- Tempo médio de atendimento ao distribuidor Não disponível

Tabela 0-4: Indicadores de desempenho – Unidade Filial Santa Catarina Fonte: Schuch, 1998.

Os indicadores eram financeiros e não-financeiros, e, em sua maioria, expressos por fórmulas matemáticas, com o método de coleta de dados e de cálculos definido mediante padrões de uso corporativo da própria empresa. A Tabela

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9-5 exemplifica as fórmulas de cálculo de alguns dos indicadores da Filial Santa Catarina.

Fórmula (cálculo com os dados apurados no Indicadores Mensais fechamento do mês)

(Montante em Reais gasto com MP + Embalagem + MOD + Despesas Indiretas de Custo variável dos produtos Fabricação + Quebras de garrafas) / Produção envasada do mês

(Consumo de malte + High-maltose) / Produção Índice de Consumo de MP líquida de cerveja

(Horas normais e extras da MOD) /Produção Produtividade Homem-Hora envasada do mês

Tabela 0-5: Fórmulas de cálculo de indicadores de desempenho – Unidade Filial Santa Catarina Fonte: Schuch, 1998.

Complementando o Sistema de Medição e Avaliação de Desempenho, o acompanhamento dos indicadores de todas as Unidades da Cia. Brahma era feito mensalmente, sendo utilizado para monitorar as atividades gerais da empresa e para avaliar os resultados de suas estratégias. Este acompanhamento se dava através de uma reunião formal, na qual cada Gerente de Unidade apresentava para os Diretores da empresa o desempenho obtido nos seus indicadores, o motivo daquele desempenho e as ações que estava tomando para as eventuais correções de rumo que se mostrassem necessárias. Como já mencionado, o ponto de partida para o funcionamento do Sistema de Medição e Avaliação de Metas eram os objetivos corporativos. Todo ano, os executivos decidiam até 3 objetivos-chave para a empresa como um todo. Entre setembro e novembro de cada ano, os gerentes se reuniam com seus supervisores para estabelecer 5 metas para o próximo ano. As metas dos gerentes eram ligadas aos objetivos corporativos, mas traduzidas em objetivos que pudessem ser alcançados individualmente. As metas eram quantitativas e tipicamente incluíam categorias como margem, giro do estoque, custos e indicadores de serviço. O desempenho individual dos gerentes, em relação aos seus objetivos, era registrado semanalmente e as informações disponibilizadas publicamente.

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Em vez de mudar a estratégia ou visão da empresa, Telles decidiu focar as metas corporativas da empresa em melhorias operacionais. Uma das razões para essa decisão foi o fato de, durante o processo de due diligence, ter observado que a CCB compartilhava com a CAP essencialmente a mesma estratégia: ambas aspiravam ser a melhor cervejaria no Brasil. Ele acreditava que suas diferenças de desempenho tinham pouco a ver com estratégias diferentes, e tudo a ver com execução. Como já citado, um de seus primeiros passos como CEO foi paralisar um projeto desenvolvido por uma firma de consultoria internacional e realocar a equipe para estudar potenciais de melhoria operacional. "A última coisa que nós precisávamos era uma grande estratégia" (SULL, 2005, p. 7). Em vez de focar em estratégia ou visão de futuro, Telles preferiu avaliar a situação, estabelecer um número pequeno de prioridades para toda a organização e garantir que a empresa as executasse.

We try to keep things down to three operational priorities per year. I always keep the company's three priorities on a sheet of paper on my desk, and these are translated into performance objectives for every employee in Brahma. Humans cannot keep more than three things simultaneously in their head - we are just not built for that. (SULL, 2005, p. 7)

A estratégia é uma história contada no retrovisor. – Carlos Alberto Sicupira (INSTITUTO EMPREENDER ENDEAVOR, 2005, p. 49)

Telles via o foco em melhoria operacional como consistente com o aproveitamento de oportunidades estratégicas. Para o executivo, uma empresa só pode capturar oportunidades extraordinárias se é muito boa nas operações rotineiras, pois quando as grandes oportunidades aparecem, eles podem aproveitá- las. Além disso, entendia ser sua obrigação exigir o máximo possível de sua equipe, tarefa que cumpria através do estabelecimento de metas cada vez mais agressivas para a organização:

My biggest challenge is setting the right targets that are almost impossible but not impossible. Management will always tell you that growth and profitability targets are impossible. They will tell you that there is an inherent tradeoff between the two. The good CEO has to know how far he can push his people. (SULL, 2005, p. 7)

E o pagamento de bônus agressivos era o principal estímulo para que os funcionários superassem seus limites e fizessem o máximo possível para alcançar

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as metas estabelecidas. Enquanto a base salarial da CCB estava abaixo da média da indústria, o bônus era muito maior. Segundo Telles, "um bônus tem que ser grande o suficiente para motivar verdadeiramente as pessoas. Se você o dá a todos, ele não será grande o suficiente" (SULL, 2005, p. 6). O estatuto da empresa permitia a distribuição de até 10% do lucro líquido consolidado para empregados sob a forma de bônus, porém nada era pago se a empresa não alcançasse seus objetivos corporativos. Caso os objetivos corporativos fossem alcançados, o bônus para os primeiros 3.000 gerentes variava de acordo com o seu desempenho em relação às metas. Os 13% melhores gerentes ganhavam o bônus duplo, equivalente a aproximadamente 18 salários, enquanto os gerentes entre 13%-60% ganhavam um bônus equivalente a nove salários; os 40% restantes não recebiam bônus. Todas as fábricas, por exemplo, eram comparadas entre si, e os empregados das 1/3 melhores em termos de desempenho relativo (ajuste de acordo com o tamanho da planta, tecnologia usada, dentre outros) eram recompensados com bônus, enquanto o restante não ganhava nada. Além do pagamento de bônus, outro artifício usado para alinhar o comportamento e o desempenho dos funcionários aos objetivos e aspirações corporativos era a possibilidade de adquirir ações da empresa, tornando-se sócios do negócio através do ―Clube de Acionistas da Brahma‖. Os primeiros 200 gerentes se tornavam elegíveis a adquirir ações da empresa, que os financiava com o dinheiro necessário para adquirir suas cotas, mas exigia o pagamento do empréstimo através dos bônus a serem recebidos, e aplicava um período de carência de 5 anos. A introdução do real como moeda brasileira em 1994 reduziu a inflação para aproximadamente 4%-10% ao ano. Ainda que a moeda estável tenha aumentado a renda disponível da população e, conseqüentemente, a demanda por cerveja, Telles acreditava haver um lado negro com o fim da inflação no país:

Until 1994 companies needed good financial managers to stay afloat amidst hyperinflation. When prices stablilized, we had to control costs, something that was irrelevant in the past. During the hyperinflation years you could always pass on your cost inefficiencies to consumers via price increases and no one would notice. That all changed with the real. (SULL, 2005, p. 10)

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O alto escalão da empresa rapidamente percebeu que a cervejaria não tinha disciplina para gerenciar custos, e respondeu ao novo desafio com o estabelecimento de metas agressivas de redução de custos como a principal prioridade por toda a empresa. Tudo começou com o refinamento dos sistemas de contabilidade para garantir dados atualizados de custos no nível de produtos, embalagens e distribuidores. A empresa também desenvolveu fontes de baixo custo para matérias-primas e negociou descontos agressivos com seus fornecedores- chave. Houve ainda a instituição de programas de melhoria, chamados de "Programas de Excelência", tanto na parte industrial como na parte de distribuição, tendo em vista a busca contínua de escala de produção e a redução dos custos unitários dos produtos. Na área fabril, o controle de custos variáveis se deu através da Padronização Tecnológica de Processos (PTP), uma iniciativa que se consolidou na companhia em 1996 e representou um avanço significativo na obtenção da excelência dos produtos. No mesmo ano, lançou-se o Programa de Produtividade Fabril (PPF). Com implantação de três anos, o objetivo era reduzir os custos fixos e variáveis através da identificação de possíveis lacunas entre as práticas da empresa e o padrão de comparação internacional da época. O programa trabalhava com um conjunto de 70 indicadores, contemplando três dimensões: aporte de novas tecnologias, reestruturação de ativos e melhorias das fábricas (CCB, 1997). Diferentemente da CAP, que experimentou aumentos de custos nos anos seguintes, a CCB reduziu o seu custo de produto vendido (em termos reais) por hectoliro entre 1994 e 1995 e sustentou os baixos custos pelos quatro anos seguintes. Na área de marketing, houve um estudo detalhado sobre os custos de vendas da cervejaria. Em conseqüência disso, desenvolveu-se e implantou-se o Sistema de Informações de Marketing (SIM), um banco de dados de cerveja e refrigerante que tinha como objetivo a otimização do processo de decisão em marketing. Foram coletadas informações sobre consumidores, participação de mercado e pontos-de- venda, de forma a subsidiar os planejamento de marketing da companhia (CCB, 1997). Além da necessidade de aumentar a eficiência de suas operações, o ano de 1994 colocou outro desafio igualmente importante para a CCB: dar uma resposta à ameaça crescente das cervejas de baixo preço, como a Kaiser e a Schincariol. E a

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saída encontrada pela empresa foi a elevação de sua segunda marca - Skol - à posição de principal prioridade. Em 1994, a CCB investiu pesadamente para anunciar a Skol como uma alternativa à Kaiser, e usou a marca para realizar uma série de experimentos que seus diretores eram relutantes em tentar com sua marca principal, a Brahma. Em pouco tempo, a Skol introduziu várias inovações, incluindo: um sabor mais leve; novas embalagens, como as garrafas long-neck e latas de alumínio; publicidade explicitamente direcionada para o mercado jovem; e um preço menor do que a Brahma. Embora uma empresa de consultoria tenha recomendado a consolidação das redes de distribuição da Brahma e da Skol para reduzir custos, Telles e sua equipe acreditavam que os distribuidores Brahma – muitos dos quais era donos dos negócios há duas ou mais gerações de suas famílias – já estavam ricos e satisfeitos com o status quo. Por outro lado, muitas revendas Skol ainda eram conduzidas por primeiras gerações de empreendedores que haviam adquirido a franquia, e, de acordo com as palavras de Telles, estavam famintos para crescer seus negócios.

The Skol distributor would go out and drive his own delivery van to make sure costumers were happy, while his wife would sit in the passenger seat and check the books. Most Brahma distributors resisted the new franchise manual, while the Skol distributors wanted everything we could give them that would help them in the market‖. (SULL, 2005, p. 11)

Com a combinação de inovações de produto e de embalagem, distribuidores agressivos e uma campanha de marketing significativa, a Skol se tornou a cerveja de crescimento mais acelerado no Brasil. Depois de uma queda inicial em 1995, a marca Skol ganhou 10,1% de market share até o ano de 1998, quando ultrapassou a Brahma e se tornou a marca líder do mercado brasileiro. Os executivos da cervejaria ficaram surpresos com o sucesso da Skol:

We re-lauched Skol as a light beer because we had to hedge our bets against continued losses in the Brahma brand, not because we necessarily believed it could ever approach or outsell Brahma. (SULL, 2005, p. 11)

A companhia também investiu pesadamente para construir sua divisão de refrigerantes. Em 1994, a CCB lançou a Fratelli Vita para vender água mineral, sucos prontos, chás, isotônicos e outros tipos de refrigerantes. Em 1995, adquiriu a

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marca Marathon para concorrer diretamente com o Gatorade. No entanto, cinco anos depois, a empresa ainda não havia alcançado o mesmo nível de sucesso financeiro e de market share como obteve com cervejas. Segundo Telles:

Telles described the company‘s continued investment in soft drinks: ―They are cheap call options, it costs us very little to offer soft drinks and one day it may prove itself useful. It also helps us compete with Coca Cola distributors which also sell Kaiser beer‖. (SULL, 2005, p. 11)

Paralelamente aos investimentos no mercado interno, os executivos da CCB desejavam explorar opções para aumentar seu market share fora do Brasil. Porém, eram relutantes a fazer grandes aquisições sem antes compreender melhor os mercados externos. Dessa forma, em 1993, Telles enviou vários dos jovens gerentes mais talentosos da empresa para explorar o mercado argentino e construir as operações locais da empresa. No mesmo ano, iniciou-se a construção da Fábrica de Luján, na Grande Buenos Aires, primeira fábrica fora do Brasil e que viria a ser inaugurada em novembro de 1994, com custos de US$ 120 milhões (BLECHER, 1994). Vale lembrar que a cerveja Brahma já era exportada para a Argentina desde 1992, sendo que, ao final do primeiro ano, já se tornara a cerveja número 1 entre as importadas. Logo após a Argentina, a CCB expandiu suas operações para a Venezeula: em janeiro 1994, adquiriu a Companhia Anônima Cervecera Nacional, vice-líder de mercado, passando aí a produzir a Brahma Chopp para concorrer com a Polar, líder do mercado (MAFEI, 1994). O ano de 1994 foi ainda marcado pelo lançamento de duas novas cervejas no mercado brasileiro: a Skol Bock e a Skol Ice em lata e long-neck, uma cerveja refrescante produzida com o processo "ice process", inventado pela Cervejaria Labatt, no Canadá, em 1993, onde parte da água da cerveja era retirada por congelamento (COUTINHO, 2010). Em 1995, a CCB mudou sua sede para São Paulo, de modo a ficar mais perto dos fornecedores e de agências de propaganda, dando mais agilidade a seu processo decisório. A decisão também foi tomada para reduzir a carga tributária, pois o ICMS do Rio de Janeiro era um dos maiores no Brasil: 25%, mas pouco tempo depois foi reduzido para 18% (MORGADO et al, 1997).

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Ainda no ano, os avanços e o desenvolvimento da CCB após a entrada do Banco Garantia chamaram a atenção da empresa norte-americana Miller Brewing Company, de Wisconsin, que produzia a cerveja Miller desde 1855. Diante da previsão de crescimento do mercado cervejeiro mundial, e em especial na América do Sul, a Miller estabeleceu uma joint venture com a Brahma para distribuir a Miller Genuine Draft, num acordo que incluía ainda a possibilidade de se fabricar a cerveja no Brasil para competir no mercado interno. E foi exatamente o que aconteceu no ano seguinte: a Miller Genuine Draft passou a ser fabricada pela Cebrasp e distribuída pela rede exclusiva de revendas da Brahma. Ainda em 1996, a CCB, diante do crescimento da demanda oriundo tanto do mercado doméstico (controle da inflação) quanto internacional (Argentina e Venezuela), tomou a decisão de expandir o parque fabril. No início do ano, foi inaugurada a Filial Rio de Janeiro, no bairro de Campo Grande - RJ e foram iniciadas as obras de construção de mais 2 unidades fabris: uma em Viamão, RS, e outra correspondente à Cervejaria Águas Claras, no município de Estância, Aracaju. O aumento da produção permitiu também um incremento nas exportações, pelo que, em 1998, a Brahma Chopp passou a ser exportada para a Europa, utilizando como porta de entrada a França. O ano de 1997 manteve o processo de fortalecimento e expansão da cervejaria. A empresa deu um passo adiante em direção ao segmento de NANCs ao adquirir, da Unilever, a concessão para fabricar, comercializar e distribuir o chá Lipton Ice Tea no Brasil. Enquanto isso, a Skol-Caracu firmou acordo com a cervejaria dinamarquesa Carlsberg Beer, fundada em 1847, para a sua distribuição no mercado brasileiro. Por fim, buscando ampliar seus mecanismos de financiamento, a CCB lançou ações na Bolsa de Nova Iorque, sob a forma de American Depositary Receipts (ADRs), em junho de 1997 (AMBEV, 2009). Além dos eventos acima, o ano de 1997 foi marcado pelo acordo de franchising firmado entre a companhia e a Pepsico, de duração de 20 anos, para produzir e distribuir os produtos Pepsi no Brasil. Na verdade, a CCB já havia firmado acordo semelhante com a Pepsi em 1984, porém, em 1993, perdeu os direitos de distribuição dos produtos Pepsi no Brasil quando a empresa americana transferiu a licença para a Baesa, uma empresa argentina que pretendia distribuir por toda a América do Sul e que foi, por alguns anos, a maior distribuidora internacional da

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Pepsi. Em 1997, contudo, a Baesa, que havia se endividado pesadamente para construir capacidade, entrou em falência com a recessão na Argentina. No ano seguinte, a Pepsi, retornando ao Brasil em busca de um parceiro distribuidor, aproximou-se tanto da CCB quanto da CAP. A empresa selecionou a CCB com base, em grande parte, na sua força financeira, pois não queria repetir o fiasco da Baesa. Os executivos da Pepsi também ficaram impressionados com a velocidade com que a cervejaria foi capaz de negociar e executar o acordo. Já em 1998, o segmento de refrigerantes correspondia a 17% da receita líquida e 8% da margem bruta da empresa. Paralelamente ao crescimento em refrigerantes, a CCB chegou ao final da década de 90 se consolidando como a maior cervejaria brasileira. Em 1999, suas duas principais marcas – Skol e Brahma – detinham, respectivamente, 30,7% e 22,1% de market share, levando a empresa a ter mais da metade do mercado brasileiro. No mesmo ano, buscando criar mais ocasiões de compra e mudar o perfil de consumo nos PDVs, inovou com o lançamento do freezer para gelar as garrafas de 600ml, com grande capacidade de resfriamento. Tais freezers se tornaram padrão na indústria, pois mantêm a cerveja a -5ºC, não elevam o consumo de eletricidade do PDV e não emitem CFC/poluentes que prejudicam o meio ambiente. Já em relação às operações na Argentina e na Venezuela, a CCB também se mostrava bem sucedida em sua expansão internacional. Em 1998, com uma produção de 1,4 milhões de hl, a cervejaria aumentou seu volume de vendas no mercado argentino (que caiu 2%) em 5%, tornando-se o segundo maior player no país, atrás somente da Quinsa (73% do mercado). Já na Venezuela, sua produção de 3 milhões de hl correspondia a 14% do mercado, atrás somente da líder Polar, que controlava 75% do mercado. Em 1998, as vendas na Venezuela correspondiam a 2,5% das receitas líquidas totais da empresa, enquanto as vendas na Argentina contribuíam com 2,2% das vendas totais. O bom desempenho de mercado da companhia era fruto direto do processo de reestruturação conduzido pelos executivos do Banco Garantia. Se, inicialmente, a pouca expertise de Telles e sua equipe no ramo de cervejas poderia ser uma dificuldade para identificar e implementar as mudanças necessárias, a ampla experiência no Banco Garantia contribuiu para a garantia da saúde financeira da cervejaria.

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Primeiramente, no início da década de 90, por ter uma estrutura de custos mais enxuta e desenvolver sistemas de informação contábeis e de vendas que permitiam a decisão criteriosa em relação à precificação dos produtos, a CCB pôde manter saudáveis margens brutas, apesar dos baixos preços. Ao final de 1998, mesmo com uma dívida absoluta maior do que a Antarctica, a Brahma gerava fluxo de caixa operacional muito maior para cobrir juros.

Em 1998, último ano antes do início do processo de fusão com a Antarctica, a Brahma havia deixado sua histórica concorrente vergonhosamente para trás. Seu lucro líquido era de R$ 329,1 milhões, ante R$ 64,2 milhões dos paulistas. Em 1999, um ano complicadíssimo por causa da desvalorização do real, o faturamento da Brahma foi mais do que o dobro do da Antarctica: US$ 7 bilhões, ante US$ 3,3 bilhões. A cervejaria, que custara US$ 60 milhões à turma do Garantia dez anos antes, valia então R$ 3,7 bilhões. A Antarctica, parada no tempo, foi simplesmente atropelada. (TEIXEIRA, 2008, p. 17)

Foi nesse ano, inclusive, que surgiu o embrião do hoje famoso Orçamento Base Zero (OBZ), com o Programa Volta às Origens, organizado em torno de uma meta de redução de custo de R$ 100 milhões (TEIXEIRA, 2008). Ao final de 1998, numa reunião de conselho, Lemann quis saber qual havia sido a economia conseguida com o tal programa, porém não se sabia a resposta exata. Imediatamente, Telles acionou Falconi e o também consultor Gustavo Pierini. Gustavo propôs métodos de planejamento para a redução de custos das várias fábricas e da matriz. Falconi acrescentou métodos para execução e verificação das economias - "sem um sistema que em sete dias úteis te mostra o resultado do mês anterior, esqueça, não tem corte de custos". Diferentemente do orçamento tradicional, que costumava se inspirar no orçamento do ano anterior e aplicar-lhe índices de redução para montar o do ano corrente, sem saber se o valor de cada despesa corresponde à realidade daquele momento, o OBZ partia sempre do zero, estudando as despesas uma por uma para identificar possíveis excessos (ou carências) nos gastos de cada item. Isso valia para tudo: compra de insumos, aquisição de material de escritório ou gestão de serviços terceirizados. Não por acaso, surgiram nos escritórios da Brahma especialistas em itens como transporte, aluguel, iluminação e água, que atuavam como consultores internos, conhecidos até hoje como Boinas Verdes.

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Além da capacidade de geração de caixa, a CCB havia feito o hedge de 100% de sua dívida em dólar. Em janeiro de 1999, os sócios do GP reuniram um grupo de CEOs para ouvir um economista renomado discutir a possibilidade de uma potencial desvalorização cambial em função da reeleição de Fernando Henrique Cardoso. O economista argumentou que o perigo havia praticamente dissipado e que o hedging, a preços correntes, não era necessário. Muitos dos CEOs seguiram as orientações do economista e foram pegos de surpresa, duas semanas depois, por uma desvalorização de 64%. Telles, no entanto, sentiu que o custo financeiro de uma desvalorização seria muito alto e manteve a empresa 100% coberta. Tal decisão ajudou a cervejaria a resistir à desvalorização cambial. Diferentemente da CCB, a CAP ficou exposta à desvalorização cambial e à conseqüente crise de liquidez, sem capacidade operacional para cobrir suas dívidas. Diante da fragilidade da empresa e da possibilidade de aquisição por parte de alguma cervejaria estrangeira interessada em entrar no mercado brasileiro, Marcel Telles propôs a Victório de Marchi, da CAP, a possibilidade de fundir as duas empresas. Para Aguiar (apud Santos, 2001), a fusão seria o antídoto imediato para o problema do endividamento da CAP. O balanço da CCB de setembro de 1999 indicava a existência de um caixa de 1,455 bilhão de reais, suficiente para recapitalizar a CAP. O tipo de endividamento da CCB, de 34,5% do patrimônio à época, era todo de longo prazo e, se a operação da AmBev viesse a ser aprovada, a nova empresa não apresentaria os problemas de liquidez que se abatiam sobre a CAP. Numa base pro forma, a fusão geraria a quinta maior cervejaria do mundo em volume. E Telles acreditava que o consumo per capita de cerveja poderia crescer no Brasil, e que a nova empresa poderia gerenciar melhor a distribuição de produtos e lançar marcas premium para estimular a demanda. Além disso, internacionalmente, a nova empresa poderia alavancar sua posição dominante no Brasil para expandir- se em mercados estrangeiros. Dessa forma, após quatro meses de negociações, foi anunciada, no dia 1º de julho de 1999, a fusão da CAP e da CCB, para criar a AmBev – Companhia de Bebidas das Américas.

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APÊNDICE F – BREVE HISTÓRIA DO BANCO GARANTIA15

Criado na década de 70 por Jorge Paulo Lemann, o Banco Garantia virou sinônimo de banco nacional de investimento. Sua presença nas bolsas de valores e nos mercados de câmbio e juros distinguiu-se pela agressividade das operações. Sempre foi considerado o mais ousado e inovador entre seus pares. Os mesmos adjetivos estiveram por vinte anos grudados no fundador do banco, também ele uma lenda entre os banqueiros brasileiros.

Para o mercado de modo geral, o que mais define Jorge Paulo Lemann talvez seja sua capacidade de comprar participações em empresas, injetar- lhes competitividade com uma gestão excepcional e revender os papéis com lucro. Afinal, foi assim que ele subverteu a velha lógica das fusões e aquisições, em que uma companhia era comprada, desmontada e os pedaços vendidos com ágio e, geralmente, sem competitividade alguma. (NETO, 2008, p. 18)

A estréia de Lemann no mercado de capitais coincidiu também com o seu primeiro fracasso. Na década de 70, abriu uma financeira para, anos depois, quebrar, tanto na pessoa jurídica como na física. Um amigo do pai, Ricardo Haegler, o ajudou a sair da encrenca. Lemann, porém, não abandonou o setor e criou a Corretora Garantia, que logo virou banco e depois começou a fazer investimentos em empresas de outros setores – uma atividade batizada de private equity, na qual foi pioneiro no Brasil. Além de Lemann, tido como um Midas das finanças, foram sócios do banco nomes como Claudio Haddad, Marcel Hermann Telles, Carlos Alberto Sicupira, Luiz César Fernandes, Tom Freitas Valle, entre outros. O sangue-frio nos negócios, a disposição por correr riscos e uma cultura baseada na meritocracia transformaram o Garantia numa espécie de escola para banqueiros. Fernandes deixou a sociedade para criar o Pactual, e Valle, para montar o Matrix. A operação do Garantia era feita à imagem e semelhança do Goldman Sachs, banco de investimentos americano, com o qual Lemann tentava sempre fazer o maior número possível de negócios. Foi lá, inclusive, que conheceu alguns dos princípios que formam a ―cultura Garantia‖, como a meritocracia, o treinamento

15 Elaborado pelo autor com base em: Barros, 1998; Castanheira, 2000; Instituto Empreender Endeavor, 2005; Jardim, 1998; Magella, 2003; e Neto, 2001 e 2008.

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intenso e a necessidade de dar oportunidades às pessoas. Foi de lá também que Lemann copiou o sistema de partnership e o introduziu pela primeira vez no Brasil. Trata-se de uma sociedade na qual os sócios mais velhos vão gradualmente passando suas ações e poder para os jovens mais promissores, que dão continuidade à empresa, a seus princípios e sua cultura.

Eu [Lemann] tive a oportunidade de estudar no exterior e aprendi logo cedo que, em termos de negócios, eles estão na nossa frente. Isso não quer dizer que tudo o que eles fazem é melhor ou que tudo o que eles fazem é copiável aqui; é preciso analisar caso a caso. Mas sempre me dediquei muito a tentar aprender, ver como as coisas estão sendo feitas lá fora para aplicá-las aqui no Brasil. No banco, tentávamos fazer muitos negócios com a Goldman Sachs, procurávamos ver como eles funcionavam. (NETO, 2001, p. 7)

Mas nada era tão simples como parece. Algumas regras precisavam ser cumpridas, como a de não levar ações para casa até completar certo tempo no Banco. Telles, por exemplo, ganhou sociedade no Garantia, foi crescendo e comprando ações. Mais tarde, passou a vender os papéis da empresa para os mais novos, obrigando a reciclagem das ações dentro do próprio negócio. Para esse modelo funcionar, em função de ser um banco de investimentos, não poderia haver muito capital acumulado. Do contrário, seria muito caro para uma pessoa nova entrar na sociedade, pois o valor das ações ficaria alto demais. Além disso, com muito capital acumulado, a rentabilidade seria baixa, uma vez que o dinheiro estaria parado, sem gerar nada. "Também não queríamos distribuir muito, porque pessoas com dinheiro começam a fazer besteira", dizia Telles. "Foi assim que resolvemos aplicar o dinheiro em um lugar que todos achassem ser um grande investimento para um de nós tocar" (INSTITUTO EMPREENDER ENDEAVOR, 2005, p. 189). A primeira empresa para a qual Sicupira e os sócios direcionaram a mira foi a Brahma, logo descartada, pois achavam impossível de administrar. "Negócio de cervejeiro era um mistério para nós", dizia. Além disso, as ações da Brahma eram caras, o que os fez buscar outra companhia que pudessem comprar via Bolsa. "Então, fomos para outra opção, as Lojas Americanas. Lá, começaríamos a comprar ações devagar e, se desse tudo errado, estaríamos 'protegidos' pelo valor dos imóveis pertencentes à empresa" (INSTITUTO EMPREENDER ENDEAVOR, 2005, p. 144).

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O primeiro desembolso foi para a compra das Lojas Americanas via Bolsa de Valores, em 1982. Foi o primeiro takeover no Brasil - jargão do mercado financeiro para tomada de poder - via mercado de capitais. O escolhido para tocar a operação foi Carlos Alberto Sicupira. Essa decisão abriu os horizontes de Lemann. "Isso nos tirou da área financeira e nos colocou dentro da economia real." (INSTITUTO EMPREENDER ENDEAVOR, 2005, p. 328) A vez de Telles chegou em 1989, com a compra da Brahma. Ele estava no comando da área de trading do Garantia, mas, de acordo com a política de deixar espaço para os mais jovens crescerem, saiu para assumir a linha de frente na cervejaria. Mesmo assim, investimentos como Lojas Americanas, Brahma e GP Investimentos foram feitos em configurações societárias diferentes, conforme a disponibilidade e vontade dos sócios. Segundo Lemann:

Cada empresa é totalmente autônoma. A Lojas Americanas compra cerveja de quem quer; a Brahma aplica seu caixa em várias instituições financeiras e até tem limites normais para aplicar no Banco Garantia. Nunca houve intenção de formar um grupo, fazer planejamento estratégico comum, buscar sinergias ou centralizar o caixa, coisas corriqueiras nos grupos. A única estratégia comum é a de fazer bons investimentos, buscar excelência e criar oportunidades excepcionais para quem quiser construir conosco. (BARROS, 1998, p. 1)

A GP Investimentos, por exemplo, é uma administradora de um fundo de investimento criada pelos sócios, que já teve participação em diversas empresas, como Gavisa, Submarino e Telemar. Diferentemente do Garantia, o foco da GP é gerir diversos investimentos de risco, administrar recursos sobretudo de terceiros visando retornos financeiros em prazos mais curtos, de 8 a 10 anos. Apesar do sucesso e de anos de bom desempenho, o Garantia não resistiu aos estragos provocados pela quebra da Rússia, em 1998. Lemann foi obrigado a vendê-lo para o Credit Suisse First Boston. O problema do Garantia, e a razão de sua venda, foi que o encanto quebrou. O banco sofreu um tranco violento no final de outubro de 1997, em função da crise asiática. Seus operadores avaliaram mal os riscos de uma virada repentina dos mercados, que vinham subindo havia tempos de forma exuberante. Por estar fincados em posições mais agressivas, das quais demoraram a se livrar, perderam mais – assim como teriam abarrotado seus cofres de dinheiro se o cenário não virasse pelo avesso.

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A aposta errada foi desastrosa para os resultados do banco. O lucro do Garantia reduziu-se para 10,8 milhões de dólares em 1997, volume equivalente a um décimo do lucro do ano anterior. Seus acionistas foram obrigados a injetar às pressas 50 milhões de dólares na instituição para cobrir perdas admitidas de 110 milhões de dólares, valor que seus concorrentes garantiam ter sido bem mais alto. Para piorar, o patrimônio dos fundos de investimento administrados pelo banco caiu pela metade no segundo semestre de 1997: era de 4,5 bilhões de reais em junho e terminou o ano em 2,2 bilhões de reais. Foi um baque de proporções inéditas para quem estava acostumado a vencer sempre – ou a, pelo menos, conseguir recuperar-se no momento seguinte. "A paulada asiática os atingiu num ponto fundamental na cultura do banco, a invencibilidade", afirmava um banqueiro na época. "Foi um choque que os deixou tontos". A crise provocou uma tensão inigualável na história do Garantia. Chegou a tal ponto que o trio Lemann, Telles e Sicupira passou a comandar diretamente a mesa de operações por alguns dias, algo que não acontecia havia quase uma década. A relação com sua fiel e riquíssima clientela também ficou abalada. Houve fundos de alto risco, nos quais não se entrava com menos de 250.000 reais, que viraram pó. Não bastasse, o Garantia ousou pedir aos cotistas de alguns desses fundos mais dinheiro para recapitalizá-los. Embora seja prática incomum, o banco estava escorado nos estatutos dos tais fundos, que foram esquecidos pelos investidores que aplicavam dinheiro no banco na crença de sua infalibilidade. Na maior parte dos casos, em vez de dinheiro, o Garantia recebeu de volta impropérios de investidores coléricos. "Eles venderam dinamite", dizia um diretor de um banco de investimentos carioca. "Ela apenas explodiu, um dia tinha de acontecer." Como se estava falando de muito dinheiro, os investidores preferiram perdê-lo no anonimato. Uma exceção foi o piloto de Fórmula Indy Raul Boesel, que garantiu ter visto escorrer pelo ralo 1,5 milhão de dólares nos fundos do Garantia. A reclamação de Boesel era de que o banco não o alertou inteiramente dos riscos que corria. Foi essa implosão que levou Lemann a passar adiante o banco que fundou 27 anos antes. "O Jorge Paulo ficou desgostoso com tudo isso, com a credibilidade construída ano a ano abalada", afirmou um executivo financeiro que conhecia o

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banqueiro desde os anos 80. "Passou por situações que ele considerava meio humilhantes." Em meados de janeiro, por exemplo, recebeu a visita de Luiz Cezar Fernandes, dono do Banco Pactual, um dos mais fortes concorrentes do Garantia. Fernandes, ex-sócio do Garantia, deixou o banco em 1982 por causa de desentendimentos com Lemann e acabou fundando o Pactual em seguida. "Se você precisar de ajuda, eu compro ou podemos nos fundir", disse Fernandes no encontro. "Lemann não topou, claro, mas detestou ter de passar por aquilo", diz um banqueiro. "Detestou ver um banqueiro brasileiro lhe oferecendo ajuda." Ainda assim, na época de sua venda, o Garantia valia muito. O banco ainda estava em primeiro lugar em muitas das operações em que se envolvia, embora sua liderança não fosse mais absoluta, como no passado. De acordo com o que foi acertado com o Credit Suisse First Boston, Lemann, Haddad, Telles e Sicupira saíram completamente do banco, mas os outros quinze sócios permaneceram. Só que viraram funcionários, embora mantivessem os bônus milionários que faziam parte da lenda Garantia.

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ANEXOS

ANEXO A – INGREDIENTES BÁSICOS DA CERVEJA

Como já mencionado, são quatro os elementos fundamentais para produzir cerveja: água, malte, lúpulo e fermento. Cereais como milho, arroz e trigo também são utilizados, em substituição parcial ao malte. O açúcar, em pequenas proporções, também pode ser adicionado (AMBEV, 2009).

Água

Em quantidade, a água é o principal componente da cerveja, sendo um dos principais fatores a serem levados em consideração na sua fabricação. Basicamente, a água define o local onde a cervejaria deve ser instalada. Para cada 1 litro de cerveja produzida, são gastos, em média, 10 litros de água, considerando todas as etapas do processo. A água para cervejaria deve ser insípida e inodora para não interferir no gosto e no aroma da cerveja acabada. Também deve possuir um pH entre 6,5 e 8,0, faixa onde as enzimas do malte atuam para a transformação do amido em açúcares fermentáveis. Muito do sucesso de certas cervejas se deve às características da água com que são produzidas. Por exemplo, a cerveja produzida em Pilsen, na Tchecoslováquia, ficou famosa porque a água utilizada em sua produção apresentava uma característica peculiar: baixíssima salinidade, o que conferia à bebida um paladar especial, chegando a originar um tipo de cerveja conhecido no mundo inteiro como "cerveja tipo Pilsen". Atualmente, a tecnologia de tratamento de águas evoluiu de tal forma que, em tese, é possível adequar a composição de qualquer água às características desejadas. No entanto, como o custo de alterar a composição salina da água normalmente é muito alto, muitas cervejarias ainda hoje consideram a qualidade da água disponível como fator determinante para a localização de suas fábricas. No Brasil, por exemplo, a maioria das regiões dispõe de águas suaves e adequadas à

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produção das cervejas lager, denominação genérica do tipo de cerveja clara e suave que é produzida no país.

Malte

O malte utilizado em cervejaria é obtido a partir de cevadas de variedades selecionadas especificamente para esta finalidade. A cevada é uma planta da família das gramíneas, parente próxima do trigo, e sua cultura é efetuada em climas temperados. No Brasil, é produzida em algumas partes do Rio Grande do Sul durante o inverno; a Argentina, contudo, é a grande produtora na América do Sul. Após a colheita da safra no campo, os grãos (sementes) de cevada são armazenados em silos, sob condições controladas de temperatura e umidade, aguardando o envio para a Maltaria, que é a indústria que irá fazer a transformação da cevada em malte. Esse processo consiste, basicamente, em colocar o grão de cevada em condições favoráveis à germinação, deixar esta começar a ocorrer e interrompê-la tão logo o grão tenha iniciado o processo de criação de uma nova planta. Nessa fase, além do amido do grão se apresentar em cadeias menores do que na cevada, o que o torna menos duro e mais solúvel, formam-se enzimas no interior do grão que são fundamentais para o processo de fabricação da cerveja. A germinação é então interrompida por secagem a temperaturas controladas, de modo a reduzir o teor de umidade sem destruir as enzimas formadas. Malte, portanto, é o grão de cevada que foi submetido a um processo de germinação controlada para desenvolver enzimas e modificar o amido, tornando-o mais macio e solúvel. Esse processo utiliza basicamente as forças da natureza, que proveu as sementes da capacidade de germinar para desenvolver uma nova planta; a ação humana se limita a controlar as condições de temperatura, umidade e aeração do grão.

Lúpulo

O lúpulo (Humulus lupulus L.) é uma trepadeira perene cujas flores fêmeas apresentam grande quantidade de resinas amargas e óleos essenciais que

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conferem à cerveja o sabor amargo e o aroma que caracterizam a bebida. É o tempero da cerveja e um dos principais elementos de que os mestres cervejeiros dispõem para diferenciar seus produtos dos demais. A quantidade e o tipo (variedade) de lúpulo utilizado são um segredo guardado a sete chaves pelos cervejeiros. Trata-se de uma cultura dos climas frios do hemisfério norte, sendo os países do norte europeu e os Estados Unidos os grandes produtores. No Brasil, não existem condições climáticas adequadas à produção de lúpulo, e todo o suprimento nacional é importado da Europa e dos Estados Unidos.

Fermento

Fermento é o nome genérico de microorganismos, também conhecidos por leveduras, que são utilizados na indústria cervejeira graças à sua capacidade de transformar açúcar em álcool. Especificamente, a levedura utilizada em cervejaria é a espécie Saccharomyces Cerevisiae e cada cervejaria dispõe de sua própria cepa (linhagem de levedura). Embora todas as cepas façam basicamente o mesmo trabalho de transformar açúcar em álcool e gás carbônico, o sabor do produto obtido difere de uma cepa para outra, em virtude de pequenas diferenças de metabolismo e da conseqüente formação de substâncias capazes de conferir aroma e sabor ao produto, mesmo estando presentes em quantidades muito pequenas.

Outros Cereais

Na maioria dos países, inclusive o Brasil, é hábito substituir parte do malte de cevada por outros cereais, também chamados de adjuntos. Consegue-se, dessa forma, uma vantagem econômica, caso o cereal substituto seja mais barato que o malte, e produz-se uma cerveja mais leve e suave que a obtida exclusivamente com malte de cevada. Os adjuntos normalmente usados para esse fim são o arroz e o milho, embora seja possível adotar qualquer fonte de amido.

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ANEXO B – PROCESSO BÁSICO DE FABRICAÇÃO

O processo básico de fabricação de cerveja segue as etapas apresentadas na Figura 9-1 e descritas em seguida.

Figura 0-1: Esquema básico do processo de produção de cerveja Fonte: Departamento de Engenharia Química e Engenharia de Alimentos – UFSC/ Laboratório de Engenharia Bioquímica – ENGEBIO.

 Recebimento e Armazenagem do Malte: Em grandes empresas, o malte é recebido a granel a partir de caminhões (1) e armazenado em silos (2).  Moagem do Malte: No início da produção, o malte é enviado até moinhos (3) que cuja função é promover um corte na casca e então liberar o material amiláceo (amido) para o processo. Outra função da moagem é promover a diminuição do tamanho de partícula do amido de modo a aumentar a sua área superficial, para futuramente ocasionar um aumento na velocidade de hidrólise do amido.  Mosturação: Após ser moído, o malte é enviado até os tanques de mostura (4). Nessa etapa, o malte moído é misturado com água e submetido a aquecimento. As enzimas contidas no malte são liberadas

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para o meio e, sob ação de calor, são ativadas pra promover a hidrólise catalítica do amido. O aquecimento não costuma ultrapassar temperaturas de 72ºC, pois as enzimas são inativadas em temperaturas acima desses valores.  Filtração: A mistura obtida, também chamada de mostura, atravessa um sistema de filtros (5) que tem por função separar a casca da mistura. Na torta formada ainda existem frações de açúcares que poderão ser utilizados na fermentação. Após filtrada, a mostura passa a denominar-se mosto.  Fervura: Em seguida, o mosto é adicionado a um tanque (7) onde recebe a adição de lúpulo (6). A mistura é fervida por volta de 30 minutos. Durante esse intervalo, ocorre a extração e isomerização de alguns óleos essenciais extraídos do lúpulo.  Resfriamento: Terminada a fervura, o mosto fervido, acrescido de lúpulo, é resfriado por trocadores de calor, com o objetivo de receber a levedura (8) que irá promover a fermentação.  Fermentação: Nessa fase, as leveduras consomem os açúcares fermentiscíveis, se reproduzem e, além disso, produzem álcool e dióxido de carbono e também alguns ésteres, ácidos e alcoóis superiores que irão transmitir propriedades organolépticas à cerveja. A fermentação ocorre em tanques fechados, revestidos por uma camisa externa que permite a passagem de fluído refrigerante (amônia ou etileno glicol) para manter o sistema na temperatura desejada de filtração, que pode variar de 10 a 25ºC. O tipo de fermentação dependerá da levedura utilizada, de forma que podemos encontrar: o Cerveja de Alta Fermentação - Levedura: Saccharomyces Cerevisiae; e o Cerveja de Baixa Fermentação - Levedura: Saccharomyces Uvarum.  Maturação: Terminada a fermentação, a cerveja obtida do fermentador (cerveja verde) é enviada aos tanques de maturação (10) onde é mantida por períodos variáveis a temperaturas de aproximadamente 0ºC. Essa fase é importante porque ocorre a sedimentação de algumas

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partículas em suspensão e também desencadeiam-se algumas reações de esterificação que irão produzir alguns aromatizantes essenciais para a cerveja.  Segunda Filtração: Nessa nova filtração (12), é acrescida terra diatomácea (11) à cerveja madura, com o objetivo de remover as partículas em suspensão e também adsorver certas substâncias que conferem cor desagradável à cerveja.  Acabamento: Após a segunda filtração, a cerveja passa por uma fase de acabamento (13) onde irá receber dióxido de carbono (armazenado a partir da fermentação) e outras substâncias que irão garantir a qualidade da cerveja e aumentar o seu tempo de prateleira, como estabilizantes e antioxidantes.  Engarrafamento: A cerveja acabada (14) é enviada à engarrafadora (16), que recebe as garrafas limpas (15) com solução de hidróxido de sódio.  Pasteurização: A cerveja engarrafada antes de ser pasteurizada recebe a denominação Chopp. Após ser pasteurizada, ela passa a se denominar cerveja. O objetivo da pasteurização (17) é eliminar alguns microorganismos que irão prejudicar as características originais da cerveja. A pasteurização costuma ser realizada a temperaturas por volta de 70ºC, que é a temperatura letal dos microorganismos em questão. Quando a cerveja é engarrafada antes da pasteurização, esse processo é conduzido em câmaras onde a bebida recebe jatos de vapor e em seguida é refrigerada com jatos de água fria. Caso a pasteurização ocorra antes do engarrafamento, a cerveja é pasteurizada através de sua passagem por trocadores de calor.

ANEXO C – TIPOS DE CERVEJA

As cervejas podem ser classificadas de acordo com os seguintes critérios16:  Tipo de fermentação:

16 Fonte: Departamento de Engenharia Química e Engenharia de Alimentos – UFSC/ Laboratório de Engenharia Bioquímica – ENGEBIO.

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o Cerveja de Alta Fermentação: obtida pela ação de levedura cervejeira (saccharomyces cerevisiae) que emerge à superfície do líquido na fermentação tumultuosa (Ale). o Cerveja de Baixa Fermentação: obtida pela ação de levedura cervejeira (saccharomyces uvarun) que se deposita no fundo da cuba durante ou após a fermentação tumultuosa (Lager).  Teor de extrato primitivo: o Cerveja Fraca: quando fabricada a partir de mosto com teor de extrato primitivo igual ou maior que 7,0% e menor que 11% em peso. o Cerveja Normal ou Comum: quando produzida a partir de mosto com teor de extrato primitivo igual ou maior que 11% e menor que 12,5% em peso. o Cerveja Extra: quando fabricada a partir de mosto com teor de extrato primitivo igual ou maior que 12,5% e menor que 14% em peso. o Cerveja Forte: quando produzida a partir de mosto com teor de extrato primitivo maior que 14% em peso.  Cor: o Cerveja Clara: quando possuir cor correspondente a menos de 15 unidades European Brewery Convention (EBC)17. o Cerveja Escura: quando possuir cor correspondente a 15 ou mais unidades EBC.  Teor Alcoólico: o Cerveja sem álcool: quando seu conteúdo de álcool for menor ou igual a 0,5% em peso. o Cerveja de baixo teor alcoólico: quando seu conteúdo for maior que 0,5% e menor que 2,0% em peso.

17 A European Brewery Convention (EBC) é o braço científico e tecnológico da ―The Brewers of Europe‖ (fundada em 1958, é a associação que representa a indústria de cerveja européia), e tem como objetivo facilitar a criação e transferência de conhecimento e a colaboração entre seus parceiros, os produtores de cerveja e as instituições acadêmicas, para o benefício da indústria de cerveja, dos consumidores e da comunidade. Fonte: EBC. Disponível em: . Acesso em: 19 fev. 2010.

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o Cerveja de médio teor alcoólico: quando seu conteúdo for igual ou maior que 2,0% e menor que 4,5% em peso. o Cerveja de alto teor alcoólico: quando seu conteúdo for igual ou maior que 4,5% e menor que 7,0% em peso.

ANEXO D – BREVE HISTÓRIA DA SKOL18

A história das Cervejarias Reunidas Skol-Caracu começou em 1964, quando a Sociedade Central de Cervejas, maior grupo cervejeiro português, associou-se a outras cinco cervejarias – Allied Breweries Ltd (Inglaterra), John Labatt Ltd (Canadá), Pripp Pryggerierna AB (Escandiávia), Unibra AS (Bélgica) e Bravarei Schwechat AG (Áustria) – e juntas fundaram a Skol International Ltd. O desejo de crescer em novos mercados fez com que a Sociedade Central de Cervejas começasse a sondar o mercado brasileiro, quando então descobriu que já havia um proprietário da marca Skol no País, o grupo Scarpa. Esse grupo detinha cinco cervejarias – Cia Cervejaria Rio Claro (SP), Cia Cervejaria Caracu (SP), Cia Cervejaria Santista (SP), Cia Cervejaria Cayru (RJ) e Cia Cervejaria Londrina (PR) – e também desejava expandir-se no mercado nacional. Em 1967, devido à comunhão de interesses, a associação entre o grupo Scarpa e a Skol International Ltd, via Sociedade Central de Cervejas, foi rápida. O grupo Scarpa cedeu a marca à cervejaria européia e, dois anos depois, as cervejarias do grupo foram incorporadas à Skol, originando as Cervejarias Reunidas Skol-Caracu S.A. Paralelamente, o Grupo Brascan (Canadá) manifestava interesse em ingressar no mercado nacional, adquirindo a Cia Mineira de Cerveja, fabricante das marcas Ouro Fino, Ouro Branco e Ouro Preto, em 1972. Coincidentemente, os acionistas das Cervejarias Reunidas Skol-Caracu S.A. buscavam novos sócios para dar prosseguimento à sua ampliação. Em 1973, portanto, a Sociedade Central de Cervejas e o já então constituído grupo Brascan-Labatt Participações Ltda adquiriram as cotas da Skol International Ltd na Skol International Participações Indústria e Comércio, acionista majoritária das Cervejarias Reunidas Skol-Caracu S.A.

18 Fonte: Evangelista; Keller; Siqueira, 1990.

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Assim participaram, em iguais condições, até 1976, quando o grupo português vendeu sua participação para o canadense. Em 1977, foi feita a incorporação da Cia Brasiliense de Cervejas ao grupo, e em 1978 inaugurou-se uma nova fábrica de Skol em Guarulhos (SP). Em 1980, a Cia Cervejaria Brahma adquiriu as cotas da Brascan Labatt, passando a controlar as Cervejarias Reunidas Skol-Caracu S.A., sob o nome Brahma Administração Investimentos e Participações Ldta., mantendo, no entanto, sua independência jurídica. Sempre na vanguarda tecnológica, a Skol foi a primeira cerveja em lata do Brasil a ser comercializada em folha de flandres, em 1971, além de ter inovado com embalagens descartáveis de vidro e tampas de abertura fácil (AMBEV, 2009).