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PONTIFÍCIAUNIVERSIDADECATÓLICADESÃOPAULO PUCSP

ValériaAparecidaAlves

“DESAFINANDO O CORO DOS CONTENTES ”:

TORQUATONETOEAPRODUÇÃOCULTURALBRASILEIRA

NASDÉCADASDE196070

DOUTORADOEMHISTÓRIASOCIAL

SÃOPAULO

2011 2

PONTIFÍCIAUNIVERSIDADECATÓLICADESÃOPAULO PUCSP

ValériaAparecidaAlves

“DESAFINANDO O CORO DOS CONTENTES ”:

TORQUATONETOEAPRODUÇÃOCULTURALBRASILEIRA

NASDÉCADASDE196070

Tese apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, como exigência parcial para obtenção do título de Doutora em História Social, sob a orientação da Profª Drª Maria Izilda Santos de Matos.

DOUTORADOEMHISTÓRIASOCIAL

SÃOPAULO

2011

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BANCAEXAMINADORA

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Ao meu pai, in memoriam, com saudades.

À minha mãe, pelo incentivo.

Ao Gersinho, pela opinião sincera.

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AGRADECIMENTOS

Manifesto minha sincera gratidão a todos que colaboraram direta ou indiretamente para a realização deste trabalho e de forma particular:

À Profª Drª Maria Izilda Santos de Matos, pela orientação e pelo voto de confiança. Pela convivência, desde 1998, que influencia minha formação. Ensina-me mediante as aulas e orientações os caminhos da pesquisa, de forma rigorosa e exigente, mas com extrema delicadeza e atenção. Com muita paciência, acompanhou o lento processo da construção do texto e ofereceu apoio e incentivo a cada etapa, tornando possível a realização deste estudo.

Ao Prof. Dr. Antonio Rago Filho, pela leitura atenta e observações feitas no Exame de Qualificação, pelas aulas e discussões sobre o período da Ditadura Militar, pelo diálogo e, principalmente, pela generosidade, só posso reiterar minha gratidão, sempre.

Ao Prof. Dr. Adalberto Paranhos, pelo exame criterioso na Banca de Qualificação, contribuição inestimável para o desenvolvimento do trabalho. Pela acolhida nos Seminários Temáticos - História e Música, nos simpósios da ANPUH, possibilitando a troca de experiências sobre o tema da pesquisa e enriquecendo minha formação.

Aos Professores do Programa de Pós-Graduação em História da PUC, especialmente à Profª Drª Yara Maria Aun Khoury e Prof. Dr. Fernando Londoño, exemplos de seriedade e compromisso, cujos ensinamentos contribuíram não apenas para o desenvolvimento desta pesquisa, mas para minha formação pessoal e acadêmica.

Aos colegas de curso, em particular ao Luiz Henrique Blume e à Liliam Marta, por compartilhar as angústias e alegrias vividas durante nossa trajetória.

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À Telma Bessa Salles, amiga de todas as horas, que me anima a continuar, mesmo diante das maiores dificuldades.

Ao Júlio César de Oliveira, que, ao presentear-me com a obra de Torquato Neto, não sabia, mas oferecia-me o objeto de estudo desta pesquisa.

Às amigas Helô Aguiar da Silva e Vânia Marques Leite, com quem pude dividir as descobertas e os dilemas vividos durante o processo e que suportaram com “ resignação ” uma conversa, durante quatro anos, sobre o mesmo assunto.

Aos amigos Edivaldo Marchi, Fernanda Pitta, Juliana Caldeira Monzani, Andréa Kogan, Elaine Cuencas, Eliana Ribeiro, Isilda Lozano Perez, Liliam Manocchi, Isabel de Souza, Eliane Pascoal, Denise Campos, Alessandra Garcia e Douglas Tinti, pelo incentivo e pela torcida.

Aos meus alunos, motivos de orgulho, incentivo ao exercício da minha prática docente e com quem aprendo a “ser professora”.

Ao Gustavo Ferreira, Karina Cobo e sua equipe, pelo trabalho de revisão do texto, feito com profissionalismo, competência e gentileza.

À minha família, pelo apoio, compreensão e estímulo.

E, finalmente, à CAPES, pela ajuda financeira.

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VALÉRIA APARECIDA ALVES

“DESAFINANDO O CORO DOS CONTENTES ”: TORQUATO NETO E A PRODUÇÃO CULTURAL BRASILEIRA NAS DÉCADAS DE 1960-70

RESUMO

A pesquisa ora apresentada privilegiou como objeto de estudo Torquato de Araújo Neto. Sujeito que vivenciou as transformações políticas, econômicas e culturais ocorridas entre o final dos anos 50 e início da década de 1970. Participante ativo do tropicalismo musical e da produção do cinema “ marginal ” ou underground , ocupou espaço privilegiado – a imprensa – para debater e explicitar o contexto vivido.

Buscou-se a partir da análise da trajetória e discurso de Torquato Neto, problematizar a produção cultural brasileira durante o período de vigência do autoritarismo e discutir as propostas de renovação para a Música Popular Brasileira, o debate entre artistas e intelectuais e as diversas formas de resistência.

As fontes utilizadas para o desenvolvimento da pesquisa foram: as letras das canções, as colunas “ Música Popular ”, publicada no jornal dos Sports , no ano de 1967, “ Plug ”, no Correio da Manhã e “ Geléia Geral ”, no jornal Última Hora , ambos na década de 1970, além de cartas, anotações e poemas, as imagens produzidas sobre o movimento tropicalista, encontradas nas capas dos discos, nas fotos publicadas na imprensa, nos jornais O Estado de São Paulo , Folha de São Paulo e Folha da Tarde e na revista Veja, além dos vídeos que registraram a performance de seus integrantes nos palcos.

Através desta pesquisa, conclui-se que durante o período de ampliação das medidas de cerceamento das liberdades e repressão, uma parcela de artistas e intelectuais resistiu ao arbítrio e protestou contra a ordem estabelecida, assumindo a defesa de que “ Criar é resistir ”. Produziram à margem, buscaram espaços “alternativos” e uma nova linguagem estética. Assumiram uma postura anárquica em relação à ordem política e cultural. Reivindicavam liberdade, em todos os sentidos, e Torquato Neto foi “porta-voz” dessa defesa.

Palavraschave: Ditadura Militar, Torquato Neto, Produção Cultural – 1960-70, Música Popular Brasileira, Tropicália e Contracultura.

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VALÉRIA APARECIDA ALVES

“UNTUNE THE CHOIR OF THE SATISFIED ”: TORQUATO NETO AND THE BRAZILIAN CULTURAL PRODUCTION IN THE 1960’S-70’S

ABSTRACT

The object of study of this research has singled out Torquato de Araújo Neto, who experienced political, economical, and cultural transformations in the late 1950’s and the early 1970’s. He participated actively in the tropicalism movement in music and in the marginal or underground movie production. He also used the press, a privileged medium, to debate and explicit the context in which he was living.

From the analysis of Torquato Neto’s life’s path and discourse, this work aimed at problematizing the Brazilian cultural production during the period of authoritarianism and at discussing the proposals for a renewed Brazilian popular music, the debate among artists and intellectuals, and the various forms of resistance.

The research was carried out using the following sources of information: song lyrics, three newspaper columns - Música Popular , published in the Sports newspaper in 1967, Plug , published in Correio da Manhã in 1970, and Geléia Geral , published in Última Hora also in 1970. Other sources were letters, notes, poems, and images about the tropicalism movement found on record covers, in O Estado de São Paulo , Folha de São Paulo and Folha da Tarde newspapers, and in Veja magazine. Videos which registered the stage performance of the movement participants were also used.

It is possible to conclude that, during the period of time when increasing measures were taken to curtail freedoms and to repress, a number of artists and intellectuals resisted that arbitrariness and protested against the established order, using the defense that “Creating is resisting.” They marginally produced, searched for alternative spaces and a new aesthetic language. They displayed anarchic behavior in relation to political and cultural order. They revendicated freedom in every aspect of life, and Torquato Neto was the spokesman of this defense movement.

Keywords: Military dictatorship, Torquato Neto, Cultural production -1960’s-70’s, Brazilian popular music, Tropicalism and counterculture.

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SUMÁRIO CONSIDERAÇÕESINICIAIS ...... 12 CAPÍTULOI–TROPICÁLIA ...... 22 1.1 - O PALCO: A PRODUÇÃO CULTURAL NA DÉCADA DE 60...... 24 1.2 - PERSONAGENS TROPICALISTAS...... 43 1.3 - CENA TROPICALISTA: AS APRESENTAÇÕES...... 80

CAPÍTULOIITORQUATONETO:“ EU SOU COMO EU SOU”...... 95 2.1 - TORQUATO NETO: “ DO LADO DE DENTRO ”...... 97

2.2 - “ROTEIRISTA” DA TROPICÁLIA...... 135 2.3 - “MEU CARO AMIGO”: CORRESPONDÊNCIAS...... 145

CAPÍTULOIIIAMÚSICAPOPULARBRASILEIRAEMDEBATE ...... 155 3.1 - MÚSICA POPULAR: O DEBATE SOBRE O NACIONAL E O UNIVERSAL...... 157 3.2 - JOVEM GUARDA: POLÊMICA SOBRE O “IÊ-IÊ-IÊ”...... 176 3.3 - NOVOS RUMOS PARA A MPB: TROPICÁLIA...... 189

CAPÍTULOIVGELÉIAGERAL:APRODUÇÃOCULTURALEM DEBATE ...... 201 4.1 - CRIAR É RESISTIR: ENTRE A INDÚSTRIA CULTURAL E A CENSURA...... 203

4.2 - CINEMA NOVO E “ UDIGRUDI ” EM DEBATE...... 225 4.3 - A DEFESA DOS DIREITOS AUTORAIS...... 241

CAPÍTULOV“DESAFINANDO O CORO DOS CONTENTES” ...... 261

5.1 - TROPICAL MELANCOLIA...... 263 5.2 - O DIA-QUE-VIRÁ...... 287 5.3 - A ALEGRIA É A PROVA DOS NOVE...... 294 CONSIDERAÇÕESFINAIS ...... 302

FONTESEBIBLIOGRAFIA ...... 307

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LISTADEFIGURAS

Figura1Tropicália ...... 43

Figura2CaetanoVeloso“Alegria,Alegria” ...... 49

Figura3GilbertoGil“DomingonoParque” ...... 53

Figura4GalCosta“DivinoMaravilhoso” ...... 56

Figura5ProgramadeTV“DivinoMaravilhoso” ...... 63

Figura6TomZé“São,SãoPaulo,MeuAmor” ...... 71

Figura7JohnnyDandurand“ÉProibidoProibir” ...... 85

Figura8CaetanoeOsMutantes“ÉProibidoProibir” ...... 85

Figura9Reaçãodaplateia“ÉProibidoProibir”...... 86

Figura10OsMutantes“CaminhanteNoturno” ...... 90

Figura11EstandartedeHélioOiticica ...... 93

Figura12TorquatoNeto ...... 97

Figura13TorquatoNetoeAnaDuartenacerimôniadecasamento ...... 103

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Existirmos: a que será que se destina? Pois quanto tu me deste a rosa pequenina Vi que és um homem lindo e que se acaso a sina Do menino infeliz não se nos ilumina Tampouco turva-se a lágrima nordestina Apenas a matéria vida era tão fina E éramos olharmo-nos intacta retina A cajuína cristalina em Teresina

Cajuína

Caetano Veloso 12

CONSIDERAÇÕESINICIAIS

A partir do final da década de 1950 o Brasil sofreu uma série de transformações econômicas, com a adoção da política “desenvolvimentista” durante o governo Juscelino Kubitschek (1956-1961), que, combinando investimentos de capital público e privado, abertura do mercado interno ao capital estrangeiro e aumento significativo da dívida externa, acelerou o processo de industrialização, ampliou o mercado consumidor e garantiu a expansão da classe média, ao mesmo tempo que fomentou as contradições sociais. As medidas provocaram mudanças no âmbito político e cultural. Com a expansão da escolarização – principalmente dos ensinos secundário e profissionalizante –, muitos jovens da classe média chegaram à universidade, fato que favoreceu a circulação das ideias e debates.

Período de ampliação das discussões e da conscientização política, temas como nacionalismo, imperialismo, dependência, desenvolvimento, subdesenvolvimento, esquerda, direita, capitalismo, socialismo, reformas e revolução estavam presentes nos debates realizados nas universidades, nos institutos – ISEB, CEPAL –, na imprensa e nas artes. Tais debates incitaram a organização e a mobilização de diversos setores da sociedade, de diferentes posições ideológicas: estudantes, intelectuais, artistas, operários, clero e políticos organizavam-se, mobilizavam-se e reivindicavam transformações.

Na produção cultural a influência estrangeira, cada vez maior em virtude da política econômica adotada nos anos JK, corroborou o processo de renovação, uma vez que artistas e intelectuais tomaram contato com as novas tendências estéticas internacionais, que estimularam o debate sobre o nacional-popular, temática que predominou no discurso e projetos de muitos setores da produção cultural brasileira até meados da década de 1960, bem como as propostas inovadoras, como o surgimento da , do Cinema Novo e da Poesia Concreta, para citar alguns movimentos.

No cenário político, as tensões foram muitas: a renúncia do Presidente Jânio Quadros, em setembro de 1961; a crise estabelecida em virtude do impedimento da imediata posse do vice-presidente João Goulart pela Junta Militar; a organização da Frente Legalista, a partir da resistência organizada em Porto Alegre; a aprovação de 13

emenda constitucional, estratégia para a solução da crise, que criava o sistema parlamentar, dividindo os cargos de Chefe de Estado, assumido por João Goulart, e Chefe de Governo, assumido por Tancredo Neves, com a aprovação dos militares. Mas a crise permanecia, suscitando a antecipação do plebiscito, em janeiro de 1963, com a vitória do presidencialismo, que unificou os cargos – chefe de Estado e de Governo –, garantindo autoridade para o Presidente João Goulart e o descontentamento dos militares.

Em 1963, as tensões políticas aumentavam com a proposta do programa de Reformas de Base – incluindo a reforma agrária – e o Plano Trienal, que visava a controlar os altos índices de inflação, com medidas impopulares, como o congelamento de preços e salários e os cortes nos gastos públicos. Os projetos foram rejeitados pelo Congresso. Diante da crise econômica, greves operárias, comícios e passeatas mobilizavam o país. Nas forças armadas, a Marinha era exemplo de insubordinação militar.

Assim, diante do acirramento das discussões e mobilização, setores da sociedade brasileira se inquietavam. Aqueles identificados como conservadores percebiam com desconfiança e temor as mudanças em movimento. E, em meio à crescente agitação social – greves, passeatas e comícios –, o país vivenciou, em 31 de março de 1964, o golpe militar e a instauração de uma ditadura que se estendeu por 21 anos.

A pesquisa ora apresentada propõe uma reflexão sobre a produção cultural durante as décadas de 1960 e 1970. Busca-se analisar o contexto histórico e a produção da arte – em especial a música – para compreender o debate estabelecido e, principalmente, as formas de resistência ao autoritarismo verificadas entre artistas e intelectuais.

Elegeu-se como objeto de estudo Torquato de Araújo Neto, sujeito que viveu as transformações políticas, econômicas e culturais ocorridas no final dos anos 50 e nas décadas de 1960-70. Foi participante ativo do Tropicalismo musical e ocupou espaço estratégico – a imprensa – para debater e explicitar as transformações políticas e culturais vividas.

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Inicialmente a proposta era discutir a Tropicália no seu aspecto musical. O interesse pela temática surgiu durante a pesquisa desenvolvida no Mestrado, entre 1998 e 2001, quando analisei os festivais de Música Popular Brasileira na década de 1960. Contudo, ao iniciar a investigação, o levantamento das fontes revelavam a importância da participação de Torquato Neto no cenário cultural brasileiro do final da década de 1960 e início dos anos 70. Dessa forma, sem abandonar a proposta de analisar o movimento Tropicália, elegeu-se como foco da reflexão a participação desse sujeito.

Na década de 1960, os tropicalistas adotaram uma postura diferenciada, contrariando parte dos representantes da MPB. Na época, recusavam "rótulos" e contestavam a posição política defendida pelos representantes da canção de protesto e pelos universitários ditos "participantes".

Propondo a inovação, enquanto parte da MPB valorizava o "retorno" às origens da música brasileira e o combate à influência da música estrangeira, os tropicalistas sintonizavam-se internacionalmente, adotando instrumentos elétricos (símbolo da "alienação" na música, para alguns), como forma de "seguir o caminho evolutivo" da Música Popular Brasileira. Aproveitando os espaços dos festivais de música na programação da televisão brasileira da década de 1960, os tropicalistas lançaram seu "movimento", em 1967, deflagrando a inovação e o desafio, pois na plateia estavam principalmente jovens universitários, contrários à inovação pretendida pelos tropicalistas, e nos bastidores, compositores, músicos, arranjadores e intérpretes, que também viam nesse movimento a "alienação" e "americanização" da MPB.

Assim, o movimento tropicalista revela-se bastante fértil para a reflexão sobre o debate estético, ampliado na década de 1960, entre a arte denominada “engajada”, identificada pelas canções de protesto, e a arte denominada “livre”, tendo entre seus representantes a Tropicália.

O levantamento das referências revela que o tema já foi e continua sendo amplamente discutido. O que comprova sua pertinência, pois se apresenta rico em possibilidades de análise, reflexão e debate. Porém, apesar da vasta discussão, observa-se que o tema foi valorizado nas áreas da Semiótica, Literatura e Comunicação, ainda pouco analisado na área da História, cabendo, portanto, a análise do movimento tropicalista pelo historiador. 15

O movimento musical Tropicália contou com os seguintes participantes: , , Capinam, , Torquato Neto, Tom Zé, Os Mutantes, Rogério Duprat, Damiano Cozzella, Rogério Duarte e Nara Leão. Porém, os estudos sobre o movimento centralizam-se nas figuras de Caetano Veloso e Gilberto Gil, identificados como seus idealizadores e principais representantes. Mas, ao se historicizar o movimento, nota-se a pluralidade de propostas; por isso torna-se relevante discutir a participação dos demais participantes:

E não se trata de propor uma inversão do exercício discursivo, excluindo a arte de Caetano Veloso e Gilberto Gil desse universo de “ondas portadoras”. Trata-se, antes, de demonstrar que o processo de nomeação do movimento tropicalista varre para a margem outros tantos nomes que, a partir da década de 60, estiveram empenhados no processo de redefinição e de universalização da arte brasileira. 1

A partir da reflexão sobre a participação dos demais representantes do movimento, a pesquisa prioriza a trajetória de Torquato de Araújo Neto. Figura importante, apesar de pouco visível, uma vez que sua contribuição deu-se mediante a composição de letras, algumas das mais significativas da produção tropicalista, como “ Geléia Geral ”, que pode ser considerada como “síntese” do movimento. Além das letras, Torquato Neto contribuiu para a ampliação do debate estético nas décadas de 1960 e 1970, por meio das colunas “ Música Popular ”, publicada no Jornal dos Sports , no ano de 1967, “ Plug ”, no Correio da Manhã, e “ Geléia Geral ”, do jornal Última Hora , ambas na década de 1970, utilizadas como fontes para a pesquisa.

Não se pretende elaborar uma biografia no sentido literal do termo – narrativa dos fatos particulares das várias fases da vida de uma pessoa ou personagem. Mas refletir, a partir da trajetória de Torquato Neto, sobre o debate estético e político nas décadas de 1960 e 1970. Apreender, a partir de sua visão singular, o contexto histórico e cultural vivido sob o período de ditadura militar. Analisar, mediante sua produção (canções, colunas, cartas e poemas), as propostas de inovação para a Música Popular Brasileira e o debate suscitado. Discutir, com

1 CASTELO BRANCO, Edward de Alencar. Além dos caracóis dos seus cabelos: outras vanguardas na cartografia tropicalista. III Simpósio Nacional de História Cultural – Mundos da Imagem: do texto ao visual. Florianópolis - SC, 2006. p.1239. 16

base na trajetória de Torquato Neto, a rede de relações estabelecidas no contexto histórico, com suas contradições e lutas pela hegemonia. Analisar, por meio da narrativa produzida por Torquato Neto, sua visão de mundo e sua consciência do lugar social que ocupava no contexto histórico. Dessa forma, “a biografia pode ser um elemento privilegiado na reconstituição de uma época, com seus sonhos e angústias”. 2

Contudo, é necessário observar os riscos de se “heroicizar” o indivíduo estudado. Pois,

[...] para o historiador, a redação de uma biografia presta-se a toda sorte de desvios. Convém manter certa distância do sujeito que em geral lhe é simpático e que, por isso mesmo, o arrasta a uma adesão não apenas intelectual, mas não raro afetiva e passional. Existe, pois, uma “ilusão biográfica” de que é bom desconfiar. 3

Para problematizar a trajetória vivida por Torquato Neto, as cartas que trocou com o amigo Hélio Oiticica foram fontes privilegiadas na pesquisa. Entendidas como escritos autobiográficos ,

As cartas revelam um grande campo de possibilidades para o historiador, pois resultam de atividades solitárias de introspecção, da escrita de si, na primeira pessoa, na qual o indivíduo assume uma posição reflexiva em relação à sua história e ao mundo onde se movimenta. 4

Consistem, dessa forma, em fonte privilegiada para acessar as representações do sujeito pesquisado. Como as demais fontes, as cartas exigem do historiador “cuidados metodológicos”, porém carregam especificidades a serem consideradas, pois, “ao contarem realidades interiores, reproduzem experiências

2 DOSSE, François. Odesafiobiográfico:escreverumavida . Tradução de Gilson César Cardoso de Souza. São Paulo: EDUSP, 2009. p.11. 3 Ibidem. p.208. 4 MALATIAN, Teresa. Narrador, registro e arquivo. In: PINSKY, Carla Bassanezi; LUCA, Tania Regina de (Org.). Ohistoriadoresuasfontes . São Paulo: Contexto, 2009. p.195. 17

individuais nas quais fantasias e ‘realidades’ se mesclam num jogo de ocultar/ revelar apresentado como um compromisso com a verdade”. 5

Além das colunas e cartas, para se examinar a participação de Torquato Neto no movimento Tropicália, também é utilizada como fonte de pesquisa sua produção musical, ou seja, 38 letras compostas no período de 1965 (anterior à eclosão do movimento) a 1972.

Embora tenha sido um participante ativo da proposta tropicalista, Torquato Neto não foi a figura mais reconhecida do movimento. Sua participação como letrista, e não como intérprete, contribuiu para isso: “Gil conta que Torquato, apesar de cantar muito mal, não ter afinação e não tocar nenhum instrumento, era muito musical.” 6

No que diz respeito ao termo “canção”, neste estudo considera-se a seguinte definição sintetizada:

[...] [complexo] conjunto composto pelos elementos musicais por excelência: harmonia, ritmo, melodia, arranjo, instrumentação – e por uma série de outros elementos que compõem sua forma: a interpretação e os signos visuais que formam a imagem do intérprete, a performance envolvida, os efeitos timbrísticos e os recursos sonoros utilizados na gravação [...] a estes elementos acrescenta-se a letra da canção e toda a sua complexidade estrutural, à medida que qualquer signo lingüístico, associado a um determinado signo musical, ganha outra conotação semântica, que extrapola o universo da compreensão da linguagem literária. 7

A incorporação da canção na pesquisa histórica insere-se no seu processo da renovação, que vem sendo ampliado por novos objetos, fontes e metodologias, possibilitando assim “novos olhares” do historiador. Por meio de levantamento

5 GAY, Peter. Apud: MALATIAN, Teresa. Narrador, registro e arquivo. In: PINSKY, Carla Bassanezi; LUCA, Tania Regina de (Org.). Ohistoriadoresuasfontes . São Paulo: Contexto, 2009. p.206. 6 Depoimento especial concedido a Tarik de Souza, em julho de 1984, para o disco O poeta desfolha a bandeira , feito em homenagem a Torquato. Gilberto Gil comenta como funcionava o trabalho dos dois em relação à letra e música. Apud: ANDRADE, Paulo. Torquato Neto: uma poética de estilhaços. São Paulo: Annablume/ FAPESP, 2002. p.48. 7 VILLAÇA, Mariana. Propostas metodológicas para a abordagem da canção popular como documentohistórico . Anais do II Simpósio Latino-Americano de Musicologia. Fundação Cultural de Curitiba, 1999. p.330. Apud: NAPOLITANO, Marcos. A História depois do papel. In: PINSKY, Carla Bassanezi (Org.). Fonteshistóricas . 2ªed. São Paulo: Contexto, 2006. p.258. 18

bibliográfico, percebe-se que a canção tem sido tanto objeto de estudo – História da Música –, como também utilizada como fonte/documento – História e Música:

A produção historiográfica contemporânea tem trazido à luz uma diversidade documental, um mosaico de pequenas referências esparsas, mediante uma paciente busca de indícios, sinais e sintomas, na tentativa de esmiuçar o implícito e o oculto, para descortinar o passado. 8

O uso da canção como fonte para a pesquisa histórica possibilita a análise sobre aspectos muitas vezes não revelados por outras fontes, como os sentimentos, o protesto, a denúncia, entre outros. Pois, como manifestação artística, revela aspectos do cotidiano de seus compositores e do público ouvinte:

Assim, se o compositor capta, reproduz e explora episódios do cotidiano, seu público, por outro lado, interage, capta, reproduz e assume idéias e sentimentos expressos pelo autor na canção, mas também rejeita, adapta, troca e até inverte sentidos. 9

Porém, o uso da canção como fonte, ou seja, a abordagem História e Música ainda se apresenta restrita, pois trata-se de documento com enorme potencialidade, ainda a ser explorado:

A produção musical se apresenta como um corpo documental particularmente instigante, já que por muito tempo constitui um dos poucos documentos sobre certos setores relegados ao silêncio, centrando-se na expressão de sentimentos e abordando temáticas tão raras em outros documentos.10

8 MATOS, Maria Izilda Santos de. Âncora de emoções: corpos, subjetividades e sensibilidades. Bauru - SP: EDUSC, 2005. p.30. 9 Idem. “Saudosa maloca” vai à escola . Nossa História . Ano 3, n.32. , junho 2006. p.80. 10 Idem. Dolores Duran: experiências boêmias em Copacabana nos anos 50. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1997. p.29. 19

Como nas demais fontes, no trato metodológico dado pelo historiador à canção deve-se considerar o contexto de sua produção. É preciso questionar quem a produziu, quando, como, para quem e por quê:

Assim, pretende-se que, ao dar historicidade ao acontecimento musical, a abordagem de história e música fuja de uma história da música linear e até progressiva, para discutir as tensões entre vários aspectos como: o artista, sua formação, obra e produção; estilos e movimentos musicais; circuitos culturais, boêmios e de sociabilidade; o consumo das canções, recepção e gosto musical, como elementos constitutivos de diversos momentos históricos e estratégicos na construção das subjetividades. 11

Ainda sobre os procedimentos metodológicos da análise da canção, é preciso considerar a interpretação, o arranjo musical, a instrumentalização, a observação da composição e recomposição, ou seja, a análise da gravação original e das regravações:

[...] a melhor abordagem para retirar as informações desse tipo de documento é a interdisciplinar, na medida em que uma canção, estruturalmente, opera com séries de linguagens e implica séries informativas que podem escapar à área de competência de um profissional especializado. 12

Há ainda várias outras formas de analisar a canção como fonte no ofício do historiador, como a análise semiótica, que busca seus significados simbólicos, e a análise musical propriamente dita, ou seja, a leitura da partitura, a composição musical, literalmente. Porém, tal procedimento de análise requer formação musical do pesquisador.

Assim, a abordagem das canções nesta pesquisa é feita por intermédio da História e Música, ou seja, as canções são utilizadas como fontes e a análise focaliza sobretudo as letras – sentido linguístico –, o discurso, combinando,

11 MATOS, Maria Izilda Santos de. Âncora de emoções: corpos, subjetividades e sensibilidades. Bauru, SP: EDUSC, 2005. p.31. 12 NAPOLITANO, Marcos. História & Música - história cultural da música popular. 2ªed. Belo Horizonte: Autêntica, 2005. p.96. 20

evidentemente, a significação da melodia, mas sem o propósito de discutir os aspectos formais da composição musical.

Para o desenvolvimento da pesquisa, utiliza-se também a discografia tropicalista, que foi localizada em consulta ao acervo do Centro Cultural São Paulo, na Discoteca Oneyda Alvarenga. No setor de Multimeios, foram localizados entrevistas e depoimentos dos protagonistas do movimento tropicalista, que também são incorporados à análise. Outro acervo consultado para a localização da discografia tropicalista foi o Museu da Imagem e do Som - MIS, em São Paulo.

A análise da discografia tropicalista é fundamental para a presente pesquisa, pois possibilita a identificação e reflexão sobre as temáticas das canções, bem como a análise da historicidade do movimento.

Outras fontes incorporadas à pesquisa foram as imagens produzidas sobre o movimento tropicalista, como as capas dos discos, as fotos publicadas na imprensa, nos jornais O Estado de São Paulo , Folha de São Paulo e Folha da Tarde e na revista Veja, além dos vídeos que registraram as performances de seus integrantes nos palcos.

Assim, cabe apresentar a divisão dos temas analisados com o auxílio das fontes selecionadas para a pesquisa. O texto está dividido em cinco capítulos. No primeirocapítulo apresenta-se a Tropicália e sua inserção no debate promovido na década de 1960 sobre a Música Popular Brasileira. Verificam-se alguns dos participantes do movimento – Caetano Veloso, Gilberto Gil, Gal Costa, Tom Zé, Os Mutantes, Rogério Duprat, Capinam e Nara Leão – e a repercussão das apresentações tropicalistas, por meio da imprensa – análise dos jornais Folha de São Paulo, O Estado de São Paulo, Folha da Tarde e revista Veja .

No segundo capítulo a análise privilegia a trajetória de Torquato Neto : nascimento, infância e adolescência no Piauí, a mudança para a Bahia e a aproximação com Caetano Veloso e Gilberto Gil, os estudos secundários, o ingresso na faculdade de Jornalismo no Rio de Janeiro, o trabalho como colunista – Jornal dos Sports e Última Hora –, as internações em sanatórios, consequências do uso de álcool e drogas, a militância em defesa da reformulação do sistema de arrecadação dos direitos autorais, os projetos idealizados – a revista Navilouca , o cinema Super-8 – discutidos por meio de correspondências com o amigo Hélio Oiticica e, por fim, os 21

dilemas, as angústias e a depressão que o levaram ao suicídio aos 28 anos de idade.

No terceiro capítulo o foco da discussão é a coluna “Música Popular ”, publicada pelo Jornal dos Sports no período de março a setembro de 1967. A análise dos textos publicados por Torquato permite perceber o intenso debate sobre a Música Popular Brasileira na década de 1960. A coluna também contribuiu para a divulgação do movimento tropicalista, divulgando notas sobre as apresentações, comentários sobre os discos lançados, performances dos intérpretes e entrevistas com os representantes do movimento.

No quarto capítulo examina-se a coluna “Geléia Geral ”, publicada pelo jornal Última Hora no período de agosto de 1971 a março de 1972. Na análise dos textos observa-se o debate sobre a produção cultural no Brasil durante o período de severa censura, após a edição do AI-5, em dezembro de 1968. Os textos trazem a reflexão do autor sobre o papel da censura, tanto a promovida pelo Estado como aquela advinda da indústria cultural. Discutem-se as possibilidades de criação e resistência dos movimentos artísticos e de oposição. Nos textos Torquato analisa a produção musical e o cinema brasileiro, em especial o chamado “Cinema Marginal” ou underground , apresentando, portanto, a produção da contracultura no Brasil.

Por fim, no quintocapítulo , o objeto de estudo é a produçãomusicalde Torquato Neto . Como letrista, compôs 38 canções. As letras analisadas nesta pesquisa foram divididas em três itens. No primeiro, intitulado “ Tropical Melancolia ”, examina-se a temática do amor nas letras de Torquato. No segundo, “ O dia-que- virá ”, o foco está nas letras do autor que revelam características da canção de protesto. Na composição dessas canções se nota a influência dos parceiros: e Geraldo Vandré, ligados à produção do CPC da UNE. E, no último item, “ A alegria é a prova dos nove ”, analisa-se a produção “tropicalista”.

Destarte, a pesquisa apresentada pretende contribuir para a reflexão sobre a importância do movimento tropicalista, discutir a heterogeneidade do movimento, levando em conta as propostas dos demais participantes, mas, sobretudo, problematizar, mediante a trajetória e o discurso de Torquato Neto, a produção cultural brasileira durante o período de vigência do autoritarismo e abordar as diversas formas de resistência dos artistas e intelectuais. 22

CAPÍTULOITROPICÁLIA

[...] eu organizo o movimento eu oriento o carnaval eu inauguro o monumento no planalto central do país [...] o monumento não tem porta a entrada é uma rua antiga estreita e torta e no joelho uma criança sorridente feia e morta estende a mão [...]

Tropicália

Caetano Veloso

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Neste capítulo apresenta-se a Tropicália no seu aspecto musical. O texto está dividido em três partes. No primeiro item, “ O Palco: a produção cultural na década de 60 ”, analisa-se o cenário cultural, a partir do final dos anos 50, com o surgimento da Bossa Nova e a produção cultural de 1960: a proposta surgida da organização do Centro Popular de Cultura - CPC, da União Nacional dos Estudantes - UNE; o debate musical promovido durante a década e a “polarização” entre “nacionalismo” versus “universalismo” ou “engajamento” e “vanguardismo”; a polêmica instaurada sobre a influência estrangeira; e a retomada da “linha evolutiva”, assumida pelos integrantes do movimento tropicalista.

No segundo item, “ Personagens tropicalistas ”, serão apresentados os participantes do movimento tropicalista, tomando-se como referência para a seleção a célebre capa do disco-manifesto “ Tropicália ou Panis et Circencis ”. Portanto, destaca-se a participação de Caetano Veloso, Gilberto Gil, Gal Costa, Tom Zé, Os Mutantes, Rogério Duprat, Capinam e Nara Leão. Será possível verificar suas trajetórias musicais e contribuição para o movimento.

E, por fim, no último item, “ Cena tropicalista: as apresentações ”, a discussão versa sobre as apresentações tropicalistas, com destaque para aquelas feitas nos festivais de música promovidos entre 1967 e 1968 pela TV Record, de São Paulo, e TV Globo, do Rio de Janeiro, e o programa “ Divino Maravilhoso ”, exibido pela TV Tupi, de São Paulo. Analisa-se ainda a repercussão das apresentações na imprensa, a partir da leitura e análise dos jornais O Estado de São Paulo, Folha de São Paulo, Jornal da Tarde e revista Veja .

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1.1 - O PALCO: A PRODUÇÃO CULTURAL NA DÉCADA DE 60

Neste subcapítulo apresenta-se a produção cultural a partir do final dos anos 50, com o surgimento da Bossa Nova e a efervescência artística/ intelectual durante a década de 60. Ressalta-se, porém, que a abordagem apresentada tem como objetivo subsidiar as discussões sobre a inserção da produção de Torquato Neto – objeto de análise desta pesquisa – no período analisado, e não aprofundar o debate relativo ao cenário cultural brasileiro no período, uma vez que, em virtude de sua complexidade e desdobramentos possíveis, demanda uma nova pesquisa. 13

A partir do final da década de 1950, o cenário musical brasileiro passou a apresentar grande movimentação, principalmente devido às inovações que estavam sendo introduzidas na música popular, como novas formas de interpretação. Estas contribuíram para o surgimento de uma das maiores renovações no campo musical: a Bossa Nova 14 , que se firmou a partir de 1958, sendo considerada a partir de então a nova música da juventude brasileira.

Indubitavelmente, a eclosão da bossa nova revolucionou o ambiente musical no Brasil: nunca antes um acontecimento ocorrido no âmbito de nossa música popular trouxera tal

13 Ao longo da discussão, apresento as leituras que serviram de referência para as considerações. No entanto, por trata-se de temática amplamente estudada, estão disponíveis para o aprofundamento das questões as seguintes obras: BARROS, Laan Mendes de. Consumodascançõesdeconsumo : uma análise dos processos de recepção da canção popular brasileira por jovens universitários. São Paulo, 1994. Tese (Doutorado) – Escola de Comunicação e Artes, Universidade de São Paulo. BENTO, Maria Aparecida. SãoPaulosonoranosanos60(acançãopopular). São Paulo, 1998. Tese (Doutorado) – Escola de Comunicação e Artes, Universidade de São Paulo. CLETO, Ciley. Blanc/Bosco . Arte e resistência. São Paulo, 1996. Dissertação (Mestrado) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo. COELHO, Frederico Oliveira. Canção de protesto: cultura, poder e história ma música popular brasileira dos anos 60. Rio de Janeiro, 1999. (Monografia). UFRJ/IFCS. CONTIER, Arnaldo Daraya. Edu Lobo e :o Nacional e o Popular na canção de protesto (anos 60) RevistaBrasileiradeHistória . São Paulo: ANPUH, v. 18, nº 35, 1998. HOLLANDA, Heloísa B. de; GONÇALVES, Marcos A. Cultura e participação nos anos 60. São Paulo: Brasiliense, 1999. POENER, Artur José. Opoderjovem : Históriada participação política dos estudantes brasileiros. 4ª ed. São Paulo: Centro de Memória da Juventude, 1995. RICARDO, Sérgio. Quemquebroumeuviolão - Uma análise da cultura brasileira nas décadas de 40 a 90 . Rio de Janeiro: Record, 1991. SOUZA, Miliandre Garcia. DoArenaaoCPC : o debate em torno da arte engajada (1959-1964).Curitiba, 2002 . Dissertação (Mestrado) – Universidade Federal do Paraná, 2002 e ZAN, José Roberto. Dofundodequintalàvanguarda: contribuição para uma história social da Música Popular Brasileira. Campinas, SP, 1996. Tese (Doutorado) – IFCH, UNICAMP, entre outras. 14 Consultar PEREIRA, Simone Luci. BossaNovaéSal,éSol,éSul :Música e experiências urbanas (Rio de Janeiro - 1954 - 1964). São Paulo, 1998. Dissertação (Mestrado em História Social) – Pontifícia Universidade Católica. 25

acirramento de controvérsias e polêmicas, motivando mesas redondas, artigos, reportagens e entrevistas, mobilizando enfim os meios de divulgação mais variados. 15

O “álbum Chega de Saudade , causou grande impacto na música popular brasileira e mundial. O long play (LP) conseguiu sintetizar a vontade de ruptura a partir do adensamento da tradição”. 16 As reações foram imediatas – a favor e contra. Entre os críticos do movimento, destacou-se o pesquisador musical José Ramos Tinhorão. Reconhecido por seu discurso conservador e intransigente, considerou a bossa nova “um novo exemplo de alienação das elites brasileiras”:

Esse divórcio, iniciado com a fase do tipo bebop e abolerado de meados da década de 1940, atingiria o auge em 1958, quando um grupo de moços, entre 17 e 22 anos, rompeu definitivamente com a tradição, modificando o samba no que lhe restava de original, ou seja, o próprio ritmo. Essa nova moda, em matéria de música popular, correspondia exatamente a um tipo novo de alienação não desejada das elites brasileiras, ao início de um processo de rápida industrialização. 17

Mas, ao contrário das afirmações realizadas pelo crítico Tinhorão, o novo gênero musical – a bossa nova – não apagou o samba tradicional ou o samba- canção do cenário musical, e ainda possibilitou o diálogo entre os gêneros. Sobre sua importância no cenário musical, ressalta-se que o novo gênero:

[...] ajudou a estimular ainda mais as aglutinações a favor ou contra o movimento: rapidamente o “samba moderno” passou a ser visto como a antítese do “samba quadrado”, ou seja, aquele samba com um ataque percutivo e divisões rítmicas bem definidas. Mas, no seio do “samba moderno”, surgia uma outra clivagem, que acabou por politizar a bossa nova e iniciar outra tradição: a canção engajada ou “de protesto”. 18

15 BRITO, Brasil Rocha. Apud: CAMPOS, Augusto de. BalançodaBossaeOutrasBossas . 5ªed. São Paulo: Perspectiva, 1993. p.17. 16 NAPOLITANO, Marcos. Asíncopedasidéias: a questão da tradição na música popular brasileira. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2007. p.69. 17 TINHORÃO, José Ramos. Música Popular: um tema em debate. São Paulo: Editora 34, 1997. p.37-8. 18 Ibidem. p.72. 26

No debate sobre a inovação musical proposta pela Bossa Nova estavam contidas as discussões e críticas sobre a influência estrangeira, resultado da dependência econômica brasileira, vivida desde o período colonial e pauta das discussões realizadas, principalmente, a partir do final da década de 1950, em meio à política desenvolvimentista do governo JK, e presente durante os anos 60. Para muitos, o surgimento da Bossa Nova resultou do aumento do poder aquisitivo da classe média durante os “anos dourados” (1956-61).

Sem negar o impacto das transformações decorrentes da política econômica desenvolvida durante o governo Kubitschek na produção cultural, considerar a inovação musical promovida pela Bossa Nova como “resultado” da aceleração do crescimento econômico e maior influência estrangeira, promovida pela abertura do comércio brasileiro ao capital estrangeiro, é reduzir a explicação a uma análise “determinista”:

[...] deduzir daí, à moda de Tinhorão, que o capitalismo norte- americano tenha como que “inventado” a Bossa Nova consiste em acreditar num tal automatismo das forças de mercado que reduz os agentes de criação da Bossa Nova a meros produtos (manipuláveis) de necessidades econômicas. Enfim, a correlação de formas dentro do sistema capitalista internacional, a exportação da música norte-americana e a existência de uma classe média urbana com poder aquisitivo e nível de informação cultural mais sofisticado são condições que ajudam a explicar o surgimento da Bossa Nova, mas não o determinam por imposição cega das forças de mercado. 19

As inovações apresentadas pela Bossa Nova contribuíram para ampliar o debate sobre os rumos da Música Popular Brasileira, discussão que adentrou a década de 1960. Alguns defendiam que a produção musical no Brasil deveria continuar na sua trajetória "evolutiva", enquanto outros advogavam o rompimento dessa "evolução".

O retorno às origens, ou seja, à tradição do samba, inspirado no morro, com temas ditos "legitimamente nacionais", representava os anseios de uma das tendências da música brasileira, enquanto outras sugeriam a renovação, inclusive

19 PARANHOS, Adalberto. Novas bossas e velhos argumentos (tradição e contemporaneidade na MPB). História e Perspectiva . n.3. Uberlândia: Universidade Federal de Uberlândia, jul./dez.1990. p.13-4. 27

técnica (utilização de novos instrumentos), como contribuição para o avanço da MPB. Pode-se observar o tom que a discussão a respeito da MPB iria atingir nos anos seguintes: palavras como original, tradicional e alienação seriam muito utilizadas, a partir de então, para classificar as tendências musicais.

A bossa nova veio pôr um fim nesse estado de inocência já integrado e ainda pré-MPB, ela criou a cisão irreparável e fecunda entre dois patamares da música popular - o romantismo de massas [...] e a música “intelectualizada”, marcada por influências literárias e eruditas, de gosto universitário ou estetizado. 20

Repercutindo em amplo debate, a bossa nova influenciou grande parte – senão quase a totalidade – dos músicos, compositores e cantores posteriores a ela, nomes que percorreram outros caminhos musicais, mas que tiveram como influência na sua formação esse novo gênero, sobretudo o trabalho de João Gilberto. Entre eles estão Caetano Veloso, , Edu Lobo, Gal Costa, Geraldo Vandré, Gilberto Gil, Roberto Carlos e Sérgio Ricardo, para citar alguns.

A década de 1960 foi marcada pelo processo de revisão cultural, cuja proposta se constituía em construir um novo Brasil, e “os temas básicos dessa revisão consistiam na redescoberta do Brasil, volta às origens nacionais, internacionalização da cultura, dependência econômica, consumo e conscientização”. 21 E a “tensão decorrente do contraste entre as intenções ideológicas e o resultado musical marcou o início de um processo que vai se tornar mais complexo à medida que o mercado brasileiro de MPB vai se ampliando”. 22

Nesse período de efervescência política e intensa mobilização, principalmente do movimento estudantil, desenvolveu-se, por intermédio da União Nacional dos Estudantes (UNE), o Centro Popular de Cultura (CPC). Os debates promovidos pelos universitários acerca de temas como o nacional-popular, desenvolvimento econômico, dependência, reformas e revolução, ampliados desde o final dos anos 50, atingiram seu auge durante a década de 1960, especialmente

20 WISNIK, José Miguel. Algumas questões de música e política no Brasil. In: BOSI, Alfredo. Cultura Brasileira: temas e situações. São Paulo: Ática, 1992. p.117-28. 21 FAVARETTO, Celso. TropicáliaAlegoria,Alegria . 3ªed. São Paulo: Ateliê Editorial, 2000. p.28. 22 NAPOLITANO, Marcos. Asíncopedasidéias: a questão da tradição na música popular brasileira. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2007. p.79. 28

durante o governo de João Goulart e a proposta das reformas de base. Apoiando as medidas apresentadas pelo governo, os estudantes, representados na UNE, protagonizaram debates, manifestações, protestos e reivindicações e idealizaram conscientizar as massas por meio da arte:

[...] Largamente controlada pela esquerda, estará nesse período pré e pós-64 marcada pelos temas do debate político. Seja ao nível da produção em traços populistas, seja em relação às vanguardas, os temas da modernização, da democratização, o nacionalismo e a “fé no povo” estarão no centro das discussões, informando e delineando a necessidade de uma arte participante, forjando o mito do alcance revolucionário da palavra poética. [...] 23

Fundado em março de 1962, com sede na Guanabara, o CPC afirmava o compromisso de desenvolver a produção cultural – música, cinema, teatro e literatura – valorizando a temática social, ou seja, a realidade brasileira e seus dilemas, com o objetivo de conscientizar o povo, de forma que os indivíduos pudessem atuar como agentes revolucionários, desde que conscientizados pela classe média sobre os problemas sociais.

O desenvolvimento da proposta do CPC insere-se no contexto “romântico revolucionário” dos anos 60, ambientado pelo florescimento de inúmeros movimentos sociais no plano internacional, que influenciaram a mobilização de setores no Brasil:

[...] havia exemplos vivos de povos subdesenvolvidos que se rebelavam contra as potências mundiais, construindo pela ação as circunstâncias históricas das quais deveria brotar o homem novo. Especialmente a vitória da revolução cubana, no quintal dos Estados Unidos, era uma esperança para os revolucionários na América Latina, inclusive no Brasil. [...] 24

23 HOLLANDA, Heloísa Buarque de. Impressões de viagem: CPC, vanguarda e desbunde - 1960/70. 4ªed. Rio de Janeiro: Aeroplano, 2004. p.21. 24 RIDENTI, Marcelo. Embuscadopovobrasileiro: artistas da revolução, do CPC à era da TV. Rio de Janeiro: Record, 2000. p.34. 29

Em razão dos movimentos sociais e das transformações ocorridas em diversas partes do mundo e no cenário da política nacional, especialmente, durante a década de 1960, arte e política confundiam-se nos debates de artistas e intelectuais, inclusive após o golpe de 1964. Sobre a crescente politização da produção cultural, argumentou-se:

[...] as pessoas que tinham forte interesse pela política terminaram levando esse interesse para a área da cultura. Isso teve um lado positivo. Claramente a cultura tem uma dimensão política. Mas, às vezes, também teve um lado negativo, no sentido de que se politizaram excessivamente disputas que na verdade são mais culturais. [...] A esquerda era forte na cultura e em mais nada. É uma coisa muito estranha. Os sindicatos reprimidos, a imprensa operária completamente ausente. E onde a esquerda era forte? Na cultura. 25

A proposta esboçada no CPC considerava a arte indissociável da política e afirmava que os artistas e intelectuais teriam de escolher entre três alternativas de posicionamento: o conformismo, o inconformismo ou a atitude revolucionária. Defendendo a última alternativa, uma vez que o “inconformismo” por si só não resultaria em projetos de transformação da realidade, entendido pelos representantes do CPC como atitude inconsequente, seria preciso executar ações concretas para provocar as mudanças necessárias. Tal postura era reconhecida, por seus representantes, como engajamento e uma exigência para os artistas e intelectuais:

[...] A tomada de consciência, por parte de artistas e intelectuais, da necessidade de se organizarem para atuar mais eficaz e conseqüentemente na luta ideológica que se trava no seio da sociedade brasileira levou-os a criar o Centro Popular de Cultura. Partindo dessa tomada de consciência, o CPC se propõe, desde o seu nascimento, a levar arte e cultura ao povo, lançando mão das formas de comunicação de comprovada acessibilidade à grande massa, e aprofundar nos demais níveis da arte e da cultura o conhecimento e a expressão da realidade brasileira. Não é propósito do CPC popularizar a cultura vigente, mas sim, através da arte e da informação, despertar a

25 Depoimento de Carlos Nelson Coutinho. Cf.: RIDENTI, Marcelo. Em busca do povo brasileiro: artistas da revolução, do CPC à era da TV. Rio de Janeiro: Record, 2000. p.55. 30

consciência política do povo. É também preocupação da UNE a valorização das expressões populares autênticas, sem perder de vista que sua organização e manutenção é mais importante que o conteúdo alienado que com freqüência nelas se encontra. 26

O posicionamento dos representantes do CPC revela a efervescência vivida no Brasil no início dos anos 60, a influência das esquerdas e o amplo debate político mantido mesmo após o golpe militar de 1964. “Apesar da ditadura de direita, há relativa hegemonia cultural da esquerda no país.” 27 Na sua tese, desenvolvida entre 1964 e 1969, Schwarz afirmava que tal hegemonia resultara das estratégias do Partido Comunista Brasileiro - PCB, que visava a divulgar amplamente suas defesas: a superação do modo de produção capitalista, aliança com a burguesia, política anti-imperialista e defesa do nacionalismo, objetivando atingir também as camadas populares.

Em resumo, a proposta apresentada pelo PCB defendia a denominada “Revolução Democrática Burguesa”, apresentada por Nélson Werneck Sodré, considerado um dos mais importantes historiadores da década de 1950 e um dos principais porta-vozes da ideologia do Partido Comunista no Brasil. Sodré defendia a aceleração das forças produtivas e o desenvolvimento da política nacionalista como primeira “etapa” para a superação do modo de produção capitalista:

[...] De qualquer forma, não há saída para o desenvolvimento com a política de compromissos com o imperialismo, a que constitui aqui, a base do que se convencionou conhecer como “desenvolvimento”. Medidas preliminares ao desenvolvimento autêntico seriam obrigatórias: o monopólio estatal do câmbio em benefício dos empreendimentos nacionais; rigoroso controle das remessas de lucros e, portanto, das divisas que as atendem; abolição dos privilégios que cobrem os investimentos estrangeiros em prejuízo dos investimentos nacionais; nacionalização da produção e da distribuição da energia elétrica; adoção de formas nacionais inequívocas de

26 Relatório do Centro Popular de Cultura, redigido por Carlos Estevam Martins (primeiro diretor do CPC). Apud: BARCELLOS, Jalusa. CPC: uma história de paixão e consciência. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1994. p.441-2. 27 SCHWARZ, Roberto. Cultura e Política, 1964-1969 – alguns esquemas. In: SCHWARZ, Roberto. O paidefamíliaeoutrosestudos . 2ªed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992. p. 62. Vale lembrar que em 1978, em nota, o autor faz uma autocrítica e afirma que “seu prognóstico estava errado”, fato que não invalida sua tese. 31

monopólio de Estado; reforma agrária; auto-suficiência no abastecimento do petróleo. [...] 28

A explicitação da proposta do Partido Comunista Brasileiro, na defesa da “Revolução Democrática Burguesa”, imaginada já em curso no Brasil, desde meados da década de 1950, contribui para o entendimento da pertinência do debate sobre o nacional-popular no cenário cultural brasileiro, principalmente até o fim da década de 1960. Defendia-se que o:

[...] aliado principal do imperialismo, e portanto o inimigo principal da esquerda, seriam as aspectos arcaicos da sociedade brasileira, basicamente o latifúndio, contra o qual deveria ergue-se o povo , composto por todos aqueles interessados no progresso do país. 29

Sob a influência do Partido Comunista Brasileiro, o movimento estudantil organizou e viabilizou formas de divulgar tal discurso, a fim de “agitar as massas”, principalmente no período do governo de João Goulart, para pressionar o Congresso a aprovar as reformas de base. A análise do discurso apresentado no Anteprojeto do Manifesto do CPC, em março de 1962, evidencia o compromisso assumido por seus representantes de “esclarecer o povo” e reitera o compromisso de “liderar” o povo no processo da transformação social:

O CPC não poderia nascer, nem se desenvolver e se expandir por todo o país senão como momento de um árduo processo de ascensão das massas. [...] É na linha deste desenvolvimento que se situa o CPC como arma para um tipo novo e superior de combate. As reivindicações das massas partindo das necessidades mais primárias reativas à própria subsistência física chegam ao nível das exigências médicas, sanitárias e segurativas para atingir, por fim, o plano das pretensões políticas e culturais. 30

28 SODRÉ, Nélson Werneck. FormaçãoHistóricadoBrasil . 14ªed. Rio de Janeiro: Graphia, 2002. p.422. 29 SCHWARZ, Roberto. Cultura e Política, 1964-1969 – alguns esquemas. In: SCHWARZ, Roberto. O paidefamíliaeoutrosestudos . 2ªed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992. p. 65. 30 Anteprojeto do Manifesto do Centro Popular de Cultura, março de 1962. Apud: HOLLANDA, Heloísa Buarque de. Impressõesdeviagem: CPC, vanguarda e desbunde - 1960/70. 4ªed. Rio de Janeiro: Aeroplano, 2004. p.144. 32

Embora o CPC apresentasse um discurso evidentemente identificado com as esquerdas, há divergências sobre a influência direta, ou até mesmo a interferência do Partido Comunista Brasileiro. De acordo com alguns militantes, apesar da existência de um Comitê Cultural, não havia diretrizes claras da direção do partido para uma política cultural partidária:

[...] O Comitê Cultural era um órgão do Partido para atuar no front da política cultural. Eu participei dessa experiência, dessa tentativa de definir os critérios de uma política cultural, os métodos adequados numa nova época. A grande preocupação era de, no diálogo com os produtores e difusores de cultural, exercer uma influência no sentido de fortalecer elementos na atividade deles que contribuíssem para um esclarecimento, uma consciência mais crítica, crítica social, política. [...] Não ditava regra, não impunha coisa alguma. [...] O Comitê Cultural, em geral, tinha a função de dar assistência. O assistente – sempre um sujeito dessa comissão executiva – não decidia nada, só coordenava os trabalhos. 31

Criado para promover a difusão cultural e artística e conscientizar a população brasileira sobre os dilemas nacionais, o CPC contava com um coordenador – Jorge Werneck Vianna –, um conselho diretor e seis grupos de trabalho, a saber: 32

- Repertório – responsável pela produção de peças teatrais e argumentos, sob o comando de Oduvaldo Viana Filho e Armando Costa;

- Construção do Teatro – encarregado da supervisão das obras de construção do Teatro de Cultura Popular e atividades de promoção dos espetáculos, sob o comando de Carlos Miranda e João das Neves;

- Cinema – responsável pela realização dos filmes e atividades cineclubistas, sob o comando de Walter Pontes e Wilson de Carvalho;

31 Anteprojeto do Manifesto do Centro Popular de Cultura, março de 1962. Apud: HOLLANDA, Heloísa Buarque de. Impressõesdeviagem: CPC, vanguarda e desbunde - 1960/70. 4ªed. Rio de Janeiro: Aeroplano, 2004. p.144. 32 Relatório do Centro Popular de Cultura. Apud: BARCELLOS, Jalusa. CPC: uma história de paixão e consciência. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1994. p.441-2. 33

- Espetáculos Populares – encarregado de promover espetáculos em espaços de ampla concentração popular, como favelas, praças públicas, associações de moradores, sindicatos profissionais, sob a responsabilidade de Paulo Hime e Francisco Nélson;

- Produtora de Arte e Cultura – responsável pela produção cultural e divulgação, por meio de livros e discos, sob o comando de Teresa Aragão e Almir Gonçalves;

- Reestruturação – com a tarefa de propor uma nova estrutura orgânica, viabilizando a ampliação do CPC, sob a responsabilidade de e Mânilo Marat.

É importante ressaltar que o CPC diferenciava a arte, classificando-a em três categorias, nitidamente hierarquizadas. A arte do povo era definida da seguinte forma:

A arte do povo é predominantemente um produto das comunidades economicamente atrasadas e floresce de preferência no meio rural ou em áreas urbanas que ainda não atingiram as formas de vida que acompanham a industrialização. O traço que melhor a define é que nela o artista não se distingue da massa consumidora. Artista e público vivem integrados no mesmo anonimato e o nível de elaboração é tão primário que o ato de criar não vai além de um simples ordenar os dados mais patentes da consciência popular atrasada. [...] Com efeito, a arte do povo é tão desprovida de qualidade artística e de pretensões culturais que nunca vai além de uma tentativa tosca e desajeitada de exprimir fatos triviais dados à sensibilidade mais embotada. É ingênua e retardatária e na realidade não tem outra função que a de satisfazer necessidades lúdicas e de ornamento. 33

Já a arte popular se distinguia da arte do povo:

[...] não só pelo seu público que é constituído pela população dos centros urbanos desenvolvidos, como também devido ao aparecimento de uma divisão de trabalho que faz da massa a receptora improdutiva de obras que foram criadas por um grupo profissionalizado de especialistas. Os artistas se

33 Anteprojeto do Manifesto do Centro Popular de Cultura, março de 1962. Apud: HOLLANDA, Heloísa Buarque de. Impressõesdeviagem: CPC, vanguarda e desbunde - 1960/70. 4ªed. Rio de Janeiro: Aeroplano, 2004. p.147-8. 34

constituem assim num estrato social diferenciado de seu público, o qual se apresenta no mercado como mero consumidor de bens cuja elaboração e divulgação escapam ao seu controle. [...] A arte popular, por sua vez, mais apurada e apresentando um grau de elaboração técnica superior, não consegue entretanto atingir o nível de dignidade artística que a credenciasse como experiência legítima no campo da arte, pois a finalidade que a orienta é a de oferecer ao público um passatempo, uma ocupação inconseqüente para o lazer, não se colando para ela jamais o projeto de enfrentar os problemas fundamentais da existência. 34

Consideradas “alienadas e alienantes”, tanto a arte do povo como a arte popular eram rejeitadas pelo CPC, que defendia a arte popular revolucionária :

[...] Radical como é, nossa arte revolucionária pretende ser popular quando se identifica com a aspiração fundamental do povo, quando se une ao esforço coletivo que visa dar cumprimento ao projeto de existência do povo o qual não pode ser senão o de deixar de ser povo como ele se apresenta na sociedade de classes, ou seja, um povo que não dirige a sociedade da qual ele é o povo. [...] Afirmamos a necessidade de centralizarmos nossa arte na situação do homem brasileiro posto diante do duplo desafio de entender urgentemente o mundo em que vive, em suas tendências e virtualidades, e de munir-se da vontade, dos valores e dos sentimentos revolucionários e de todos os elementos subjetivos que o habilitem a romper os limites da presente situação material opressora. 35

Cumprindo o compromisso de produzir “ arte revolucionária popular ”, identificada com os problemas sociais e com o objetivo de promover a consciência do “povo”, entre as atividades promovidas pelo CPC destacaram-se: a Campanha pela Reforma Universitária, desenvolvida em 1962, com a encenação da peça Auto dos 99% , que favorecia a discussão sobre o distanciamento dos conhecimentos acadêmicos e a prática dos movimentos sociais. A peça foi apresentada nas diversas faculdades do Rio de Janeiro e em outros estados brasileiros. Em razão da

34 HOLLANDA, Heloísa Buarque de. Impressões de viagem: CPC, vanguarda e desbunde - 1960/70. 4ªed. Rio de Janeiro: Aeroplano, 2004. 35 Anteprojeto do Manifesto do Centro Popular de Cultura, março de 1962. Apud: HOLLANDA, Heloísa Buarque de. Impressõesdeviagem: CPC, vanguarda e desbunde - 1960/70. 4ªed. Rio de Janeiro: Aeroplano, 2004. p.149-51. 35

proibição da encenação em praça pública, o CPC estreou a peça Auto dos Cassetetes, que discutia a proibição da peça anterior.

Realizaram-se ainda outros espetáculos teatrais, como: A vez da recusa , de Carlos Estavam; Eles não usam black-tie , de ; Brasil, versão brasileira , de Oduvaldo Viana; Miséria ao alcance de todos , uma coletânea de textos de , Chico de Assis, Carlos Lyra, Arnaldo Jabor e Bertolt Brecht; Revolução na América do Sul , de Augusto Boal, entre outros. O CPC promoveu debates, seminários de dramaturgia, curso de atores. Exibição de filmes ( Cinco vezes favela ), venda de livros (cordel, poesia, série “Violão de rua”, em parceria com a editora Civilização Brasileira) e discos, como o compacto O povo canta , com as canções O subdesenvolvido, de Carlos Lyra, e o Hino da UNE , composição de Vinícius de Moraes, além de promover espetáculos musicais – com ênfase nas apresentações de samba e bossa nova e festivais de música. Com a preocupação de que tais atividades fossem vistas por um público amplo, e não apenas pelos frequentadores da sede no Rio de Janeiro, criou-se a UNE Volante – adaptação de um palco na carroceria de um caminhão que circulava pelas capitais brasileiras.

Assumindo a “ arte revolucionária popular ”, considerando que a arte deveria cumprir o papel de despertar a consciência popular, promover a reflexão, e não apenas servir de entretenimento, defendia que, para atingir os objetivos propostos, a criação artística deveria ser elaborada a partir de determinados “limites”, ou seja, havia uma preocupação “didática”, na tentativa de comunicar ao público as questões nacionais. O artista deveria não apenas limitar-se aos temas sociais, mas também adequar-se às formas de comunicação que atingissem o público – que na concepção cepecista compreendia o povo brasileiro na sua amplitude, com foco principalmente nas classes mais pobres.

A proposta do CPC para a produção cultural foi alvo de críticas de vários setores artísticos, intelectuais e inclusive de seus próprios representantes. Recusando os “limites” impostos pelos ideais cepecistas, alguns artistas e intelectuais rebateram e rejeitaram a proposição, acusando seus idealizadores de promover a “redução da arte a mero instrumento político”, além de contribuir para o “empobrecimento” da criação estética:

36

O CPC nasceu muito sectário. O documento programático, de autoria do Carlos Estevam Martins, era um negócio meio aterrador, aquela divisão de arte popular, arte para o povo, arte popular revolucionária, sendo que só a arte popular revolucionária era boa, as outras duas eram alienadas. Eu achei aquilo um horror. Posteriormente, o CPC na prática foi retificando a linha, mas eu fiquei sempre preso àquela primeira imagem. 36

Respondendo às críticas, o documento que explicitava os ideais cepecistas rejeitava a acusação de contribuir para o “atraso cultural”, a partir da imposição de limites à atividade criadora, priorizando o “conteúdo” e negligenciando a “forma”. Defenderam-se afirmando que:

[...] para nós não tem importância que os meios convencionais de expressão restrinjam o conteúdo de nossas concepções no ato de formulá-las, se sabemos que, por outro lado, eles constituem o único caminho para chegar à consciência do outro e dum outro que, em nosso caso, é exatamente o povo. Em toda esta discussão para nós o que está em jogo é uma só e mesma questão, a de saber o que vale mais: se o deleite estético pessoal ou a se a integração com o povo. 37

Ressalta-se que a proposta do CPC impactou a produção cultural, sobretudo a musical, mas isso não quer dizer que o documento tenha sido obedecido. O manifesto do CPC esboça o clima vivido durante os anos 60 e a importância da produção cultural para o movimento estudantil, mas o documento pouco influiu na produção musical da época, mesmo para os representantes da “canção de protesto”, que, portanto, não deve ser “lida” apenas a partir dos critérios estabelecidos pelo CPC:

A perspectiva homogeneizadora, que dilui os matizes dos diversos tipos de canção engajada no Brasil entre 1960 e 1968 é questionável, pois desconsidera diferenças musicais (e mesmo poéticas) importantes, limitando-se a utilização de um

36 Depoimento de Leandro Konder, na época membro do Comitê Cultural do PCB. Cf.: RIDENTI, Marcelo. Embuscadopovobrasileiro: artistas da revolução, do CPC à era da TV. Rio de Janeiro: Record, 2000. p.72. 37 Anteprojeto do Manifesto do Centro Popular de Cultura, março de 1962. Apud: HOLLANDA, Heloísa Buarque de. Impressõesdeviagem: CPC, vanguarda e desbunde - 1960/70. 4ªed. Rio de Janeiro: Aeroplano, 2004. p.163. 37

vago critério temático para classificá-las. Mesmo a busca de comunicabilidade e um certo “conteudismo” que se nota, por exemplo em Geraldo Vandré, deve ser cruzado com outros elementos históricos, como os imperativos oriundos do mercado fonográfico, aos quais esse compositor sempre esteve atento. A presença do manifesto [do CPC], para a música engajada, sempre esteve num plano muito difuso, mais como uma “carta de intenções” ideológica do que como um documento definidor de procedimentos técnicos-estéticos. 38

Apesar dos esforços empreendidos pelo CPC, mesmo com a criação da UNE Volante, o “povo” não foi atingido em sua maioria, pois os espetáculos resumiam-se a criações de jovens universitários para jovens universitários, e o projeto revolucionário de utilizar a arte como instrumento na tomada de poder fracassou. A “Revolução Democrática Burguesa”, imaginada em curso pelo PCB, difundida nas obras de Sodré, não se concretizou. A aliança entre camponeses, operários e burguesia industrial não ocorreu, pelo contrário, a aliança entre burguesia rural e industrial contribuiu para a articulação e efetivação do golpe militar de 1964. Sobre o “fracasso” da mobilização das esquerdas, segue a seguinte análise:

Se o PC teve o grande mérito de difundir a ligação entre imperialismo e reação interna, a sua maneira de especificá-la foi seu ponto fraco, a razão do desastre futuro de 64. Muito mais anti-imperialista que anti-capitalista, o PC distinguia no interior das classes dominantes um setor agrário, retrógado e pró-americano, e um setor industrial, nacional e progressista, ao qual se aliava contra o primeiro. Ora, esta oposição existia, mas sem a profundidade que lhe atribuíam, e nunca pesaria mais do que a oposição entre as classes proprietárias, em bloco, e o perigo do comunismo. 39

Apesar do distanciamento das “massas”, a proposta sugerida pelo CPC inaugurou amplo debate sobre a criação artística e promoveu o desenvolvimento de uma produção cultural de alto nível. Marcado pela polêmica, o debate, travado principalmente no cenário musical, sobre a dicotomia “nacionalismo” versus

38 NAPOLITANO, Marcos. Seguindo a canção: engajamento político e indústria cultural na MPB (1959-1969). São Paulo: Annablume/ FAPESP, 2001. p.44. 39 SCHWARZ, Roberto. Opaidefamíliaeoutrosestudos . 2ªed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992. p.64-5. 38

“vanguardismo”, ou “arte engajada” e “arte livre”, resultou em conflitos entre os representantes da canção de protesto e os tropicalistas. Vale ressaltar que os grupos identificados não podem ser considerados homogêneos – divergiam, por exemplo, quando à ideia de reduzir a preocupação com o conteúdo na “arte engajada” ou valorizar a estética na “arte livre”, pois:

[...] na verdade, a totalidade “forma-conteúdo” estava em jogo nos dois pólos do debate. Apenas seu equacionamento era diferenciado: enquanto os “nacionalistas” defendiam a estilização técnico-musical do material que acreditavam “ser popular”, os “vanguardistas” almejavam a revisão dos códigos (musicais e poéticos) da “moderna” MPB, taxadas de “conservadoras”. 40

Instalados o debate e a polêmica, o cenário musical brasileiro encontrou nos festivais de música promovidos pelas emissoras de televisão palco privilegiado para as discussões e embates. Por meio das posições assumidas por compositores, intérpretes, arranjadores e público – verificadas na reação da plateia presente nas eliminatórias –, além da ampla discussão promovida pela imprensa, as propostas ocuparam o espaço dos festivais para defender suas posições e desenvolver seus projetos.

Os principais festivais de música televisivos ocorreram entre 1965 e 1982, apesar de a efervescência ter ocorrido nos anos 60 – conhecida como a “Era dos Festivais”. Praticamente todas as emissoras promoviam o evento, o que revela a importância da música na programação televisiva brasileira:

[...] A era dos festivais marcou a história da música e da televisão brasileiras. Houve uma primeira tentativa da TV Record de São Paulo em 1960, com a organização de um festival que não marcou época, sendo relegado ao esquecimento. Mas, a partir de 1965, em meio ao impacto causado pelo surgimento da “moderna MPB”, a TV Excelsior de São Paulo organizou o I Festival Nacional de Música Popular, que teve como vencedora a canção “Arrastão”, de Edu Lobo e Vinícius de Moraes, interpretada por , grande revelação do ano. [...] Os festivais realizaram o elo, articulado a partir da linguagem da TV, entre a performance viva dos palcos

40 SCHWARZ, Roberto. Opaidefamíliaeoutrosestudos . 2ªed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992. p.137-8. 39

e a audição privada dos discos. Além disso, eram um simulacro de participação popular e liberdade de expressão num momento em que o país mergulhava cada vez mais no autoritarismo político. Uma coisa é consenso: foi neles que o novo conceito de MPB se cristalizou na audiência. 41

Adotando procedimento quase idêntico, apenas com algumas variações, as emissoras de TV organizavam os festivais a partir da inscrição das canções, realizada mediante o envio de cópia da letra e gravação da canção em fita cassete, quando se iniciava a fase de pré-seleção feita por um júri (geralmente de maestros), que classificava 36 canções, as quais eram divididas em grupos de 12, para apresentação em três eliminatórias, que classificariam quatro canções para disputar a final. Os jurados escolhidos para julgar as canções nas eliminatórias eram artistas em geral – sendo que muitos músicos e intérpretes foram convidados –, produtores da TV e do rádio, jornalistas e intelectuais.

Embora praticamente todas as emissoras – durante a década de 60 – promovessem festivais, os principais eventos foram produzidos pela TV Record, em São Paulo, e pela TV Globo, no Rio de Janeiro. Ambas contavam com o patrocínio da Secretaria de Turismo de seus respectivos estados e da imprensa, em especial as revistas Fatos e Fotos, Manchete, Realidade e Veja (a partir de 1968) e os jornais O Estado de São Paulo , Folha de São Paulo , Jornal da Tarde e Última Hora – este circulava com um suplemento especial sobre os festivais.

Além da premiação em dinheiro para os primeiros colocados e dos troféus, vencer ou simplesmente participar do festival representava divulgação e possibilidade de ascensão profissional para os concorrentes. Apresentados pelas emissoras de TV, os participantes encontravam meios de ampliar a divulgação de seu trabalho – mesmo que o alcance da transmissão ainda não fosse nacional. Além disso, a indústria fonográfica estava presente nos espetáculos, para selecionar as melhores canções e os melhores intérpretes para gravações. Portanto, esses eventos atraíam representantes de todos os gêneros musicais:

41 SCHWARZ, Roberto. Opaidefamíliaeoutrosestudos . 2ªed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992. p.92-3. 40

Entre as 36 músicas classificadas para o III Festival da Música Popular Brasileira da Record oito são do gênero marcha- rancho. O samba tradicional comparece com cinco, a canção com quatro, a bossa nova com três. A moda de viola, relembrada a partir de Disparada, no anão passado, vem com três, incluindo uma nova de Geraldo Vandré. Há também dois frevos, um samba de partido alto (improviso), uma macumba. As outras músicas concorrentes são músicas de capoeira, com samba de roda, moda de viola com marcha rancho, épicos nordestinos. A maioria dos temas das letras – que não podem ainda ser divulgadas, pelo regulamento do concurso, até a sua apresentação no festival – falam de amor. Uma ou outra apresenta um pouco de protesto, mas de maneira suave. 42

O festival de música deve ser compreendido não apenas como um “concurso musical”, mas principalmente como um programa de televisão cujo propósito imediato era atingir boa audiência. Com a maioria dos participantes – principalmente no período de 1965 a 1968 – já contratados pelas emissoras e com a participação condicionada, os organizadores acirravam as “rivalidades” entre determinados grupos, em especial entre os representantes da canção de protesto e os tropicalistas, com o objetivo de atrair a atenção do público, pois, quanto maior fosse a polêmica e a “confusão” nas apresentações, maior seria a audiência e a venda de jornais, revistas e discos que divulgavam o evento.

O clima de “guerra” instaurado pelas emissoras e imprensa era vivenciado nos bastidores, no palco e na plateia: “- Este festival virou guerra, vai sair gente de ambulância no final. Uma guerra de todos contra todos”, continua , “em que uns ficam torcendo pelo insucesso dos outros, e em que o mais forte engole o mais fraco ”. 43

Ainda sobre a importância dos festivais na década de 60, cabe notar que:

[...] os festivais simbolizaram o “fórum” e a feira” onde se consolidaram as formas de “popularização” e o estatuto básico da MPB. A indústria cultural no país dava um novo salto, capitaneada pela modernização do sistema de televisão (o sistema de transmissão via satélite, pela EMBRATEL, foi criado em 1969) e pela indústria editorial. 44

42 JORNAL DA TARDE. São Paulo, 9 set. 1967. p.13. 43 A GAZETA. São Paulo, 14 out. 1967. p.12. 44 NAPOLITANO, Marcos. Seguindo a canção: engajamento político e indústria cultural na MPB (1959-1969). São Paulo: Annablume/ FAPESP, 2001. p.322. 41

Embora as discussões sobre a produção cultural e os rumos da Música Popular Brasileira já estivessem presentes nos primeiros festivais, foi nos eventos de 1967 e 1968 que elas ganharam “fôlego” e acirramento. Representando a canção de protesto – talvez a figura mais representativa – destacou-se o compositor e intérprete Geraldo Vandré, que,por meio de suas canções, interpretações e declarações feitas à imprensa, ocupou a posição de principal antagonista do tropicalismo, tornando-se conhecido como um dos maiores críticos do movimento. Herdeiro da proposta do CPC, Vandré assumiu, durante a década de 1960, o papel de “porta-voz” da defesa do “nacional-popular” no cenário musical. Sobre os rumos da música brasileira, afirmava:

A obra de arte deve representar fiel, livre e desembaraçadamente a realidade de um grupo humano ou de coletividade. Assim, a Música Popular Brasileira deve ser comprometida com a realidade nacional em termos culturais, focalizar os anseios, necessidades e frustrações do povo. Não deve, porém, ser apenas notícia dessa realidade, pois precisa dizer coisas do povo e dirigir-se a esse povo. 45

Entre os representantes da “canção de protesto”, também se destacou Edu Lobo, menos polêmico que Vandré, mas também assumindo posição distinta da proposta tropicalista, valorizando a temática social na composição de suas canções, mas com arranjos sofisticados – sua produção musical reitera a impossibilidade da análise pelo viés da dicotomia “conteúdo” e “forma”. Evidenciado na imprensa pela qualidade de suas letras e arranjos, foi considerado, já na década de 60, um dos mais importantes representantes do cenário musical brasileiro. Em 1967, concorreu no III Festival da Música Popular Brasileira, da TV Record, em São Paulo, com a canção “ Ponteio ”, anunciada como uma das favoritas desde a primeira apresentação:

[...] “Ponteio”, está claro, não é uma música totalmente nova, nem Edu Lobo é o primeiro a se utilizar de nosso folclore. Sua importância está em ter sido o primeiro a se utilizar desse folclore na música popular urbana. E que não fosse por Edu e Capinam (música e letra realmente bonitas) “Ponteio” tem um

45 FOLHA DE SÃO PAULO. Folha Ilustrada, p.1. São Paulo, 25 nov. 1967. 42

arranjo muito brilhante e uma interpretação excelente. Tanto o Quarteto Novo como Edu Lobo, Maria Medalha (ganhará a Viola de Prata?) e o Momento -4, podem não vencer, mas estão bem preparados. 46

Também participaram do III Festival da Música Popular Brasileira da TV Record, em 1967, Caetano Veloso e Gilberto Gil. Suas apresentações, respectivamente, “ Alegria , Alegria ” e “ Domingo no Parque ”, causaram impacto e agitaram o cenário musical. Estava deflagrada nova polêmica:

[...] [Caetano e Gil] não se apresentavam como porta-vozes de qualquer movimento. Contudo, destoavam das outras canções por não se enquadrarem nos limites do que se denominava MMPB (Moderna Música Popular Brasileira). Ao público consumidor desse tipo de música – formado preponderantemente por universitários – tornava-se difícil reconhecer uma postura política participante ou certo lirismo, que davam a tônica à maior parte das canções da época. 47

No contexto da discussão sobre o papel social da arte e do artista, as formas ideais de comunicação com o povo, a influência estrangeira e a identidade nacional, as apresentações tropicalistas promoveram a ampliação do debate e contribuíram para acirrar a polêmica, uma vez que questionavam a proposta da “arte engajada” e rompiam com os propósitos defendidos pelo CPC. Inaugurando uma nova proposta de criação musical, caracterizada pelas “colagens” dos temas cotidianos, pela releitura da tradição brasileira, pela paródia e pelo deboche, a provocação tropicalista despertou reações distintas, porém extremadas, a favor ou contra o movimento. As opiniões eram expressas em tom agudo.

Amplamente divulgadas pela imprensa, que “batizou” o movimento como “tropicalista”, as apresentações de Caetano e Gil, em 1967, inauguraram uma nova fase no cenário musical brasileiro. Os participantes do movimento e o debate instaurado e veiculado mediante a imprensa serão apresentados nos próximos itens deste capítulo. Já a proposta tropicalista e a discussão sobre “tradição e modernidade”, “retomada da linha evolutiva”, promovida pelo movimento serão estudadas no capítulo III.

46 FOLHA DE SÃO PAULO. 2º Caderno, p.3. São Paulo, 20 out. 1967. 47 FAVARETTO, Celso. Tropicália: Alegoria, alegria. 3ªed. São Paulo: Ateliê, 2000. p.19. 43

1.2 - PERSONAGENS TROPICALISTAS

Participaram diretamente do movimento tropicalista, no aspecto musical, Caetano Veloso, Gilberto Gil, Gal Costa, Capinam, Torquato Neto, Tom Zé, , Sérgio e Arnaldo Baptista, Rogério Duarte, Rogério Duprat, Júlio Medaglia, Damiano Cozzella, Nara Leão e . No entanto, foram selecionados para apresentação neste texto apenas os personagens tropicalistas que figuram na capa do “disco-manifesto” Tropicália ou Panis et Circencis , de 1968, resultado de produção coletiva.

Figura1Tropicália.48

Na capa destaca-se Gilberto Gil, exibindo fotografia de Capinam; na segunda fila, da esquerda para a direita, estão Rogério Duprat, Caetano Veloso, com fotografia de Nara Leão, Gal Costa e Torquato Neto. Na última fila, Os Mutantes

48 Capa do disco-manifesto “ Tropicália ou Panis et Circencis”, lançado pela gravadora Fontana, em maio de 1968. Ficha técnica - Arranjos: Rogério Duprat, Produção: Manuel Barenbeim, Técnico de gravação: Estélio. Estúdio de Gravação: RGE, em São Paulo. 44

– Sérgio Baptista, Rita Lee e Arnaldo Baptista –, ao lado de Tom Zé. No presente subcapítulo, os personagens citados serão apresentados, com exceção de Torquato Neto, cuja trajetória será abordada no capítulo II.

O lançamento do disco oficializava o movimento do “grupo baiano”.

Suma tropicalista, este disco integra e atualiza o projeto estético e o exercício de linguagem tropicalistas. Os diversos procedimentos e efeito da mistura aí comparecem – carnavalização, festa, alegoria do Brasil, crítica da musicalidade brasileira, crítica social, cafonice – compondo um ritual de devoração. [...] O disco, com efeito, realiza uma encenação das “relíquias do Brasil” (culturais, políticas, artísticas), ritualizando, ao desdobrar-se, o próprio ato de fazer música, também exposto à devoração. 49

Além da foto que estampa a capa e das canções selecionadas 50 para compor o repertório, é preciso considerar também a contracapa, com um texto- manifesto que explica o movimento, mais especificamente um suposto roteiro cinematográfico tropicalista, com a descrição das locações, cenas e texto dos personagens. Destaque para a sequência 5, cena 5:

Exterior, dia cinzento, o maestro Rogério Duprat no alto de uma torre de TV. Ao fundo a cidade de São Paulo. Rogério Duprat – A música não existe mais. Entretanto sinto que é necessário criar algo novo. OU melhor, sei que alguma coisa nova se cria e a partir daí o resto não me interessa. Já não me interessa o municipal, nem a queda do municipal, nem a destruição do municipal. Mas, e vocês, mal saídos do calor do borralho, vocês baianos, terão coragem de procurar comigo? Terão coragem de fussar [ sic ] o chão do real? Como receberão a notícia de que um disco é feito para vender? Com que olhos verão um jovem paulista nascido à época de Celly Campello e que desconhece Aracy & Caymmi & Cia.? Terão coragem de reconhecer que esse mesmo jovem pode ter muito

49 FAVARETTO, Celso. Tropicália: Alegoria, alegria. 3ªed. São Paulo: Ateliê, 2000. p.78-9. 50 Conforme justifiquei no item anterior, a análise simplificada do movimento tropicalista, apresentada e discutida nesta tese, cumpre o objetivo de situar a figura de Torquato Neto – objeto de estudo da pesquisa. A análise das canções do “disco-manifesto” Tropicália ou Panis etCircencis pode ser observada nas obras: Ibidem. p.78-112. OLIVEIRA, Ana (et. al.). TropicáliaouPanisetCircencis . São Paulo:IyáOmin, 2010. SANCHES, Pedro Alexandre. Tropicalismo: decadência bonita do samba. São Paulo: Boitempo, 2000. p.45-78. VILLAÇA, Mariana Martins. Polifonia Tropical: experimentalismo e engajamento na música popular (Brasil e Cuba, 1967-1972). Série Teses. São Paulo: Humanitas/ FFLCH-USP, 2004. p.167-82. 45

que lhe ensinar? (Pausa) Sabem vocês o risco que correm? Sabem que podem ganhar muito dinheiro? Terão coragem de ganhar muito dinheiro? Terão mesmo coragem de saber que só desvencilhando-se do conhecimento atual que têm das formas puras do passado é que poderão reencontrá-las em sua verdade mais profunda? Por acaso entendem alguma coisa do que estou dizendo? Baianos, respondam. A noite cai repentinamente. Zoom. Silhueta do maestro agarrado a torre de TV. Acende-se a luz vermelha no alto da torre. Ouve-se uma voz ao longe, em resposta ao chamado do maestro. Adroaldo Ribeiro Costa – (voz off, longínqua) – Enquanto nós cantarmos haverá Brasil. Corta. 51

Conforme o trecho citado, observa-se que o veículo escolhido para a divulgação do movimento tropicalista era a televisão. Escolha que revela o propósito de assumir nova postura no cenário musical. Desafiando a ordem cultural vigente, o tropicalismo provocou a reação de artistas, intelectuais e público por propor uma nova forma de inserção do artista e da canção no cenário da produção cultural. Assumindo o caráter comercial, questionavam àqueles que “suspeitavam” da arte como “mercadoria”. As reações contrárias eram evidentes, considerando o contexto da “eclosão” do movimento.

Além da situação política vivida – pós-golpe militar de 1964 –, o período estava marcado pelo debate sobre a importância da arte, do papel do artista e a tomada de consciência. O Tropicalismo tornou-se, portanto, marco divisório no campo musical brasileiro ao representar uma nova tendência e propor novos caminhos para a Música Popular Brasileira:

Ao assumir a canção como produto, a partir do questionamento do seu processo de criação e do seu lugar social, o Tropicalismo inaugurou uma fase capital no processo de redefinição da MPB nos anos 60. A partir dele, essa sigla, já poderia, potencialmente, englobar quase todas as expressões da canção popular, independente do lugar ocupado por elas na hierarquia de valores culturais. [...] O Tropicalismo assumia para si a tarefa de “modernizar” a MPB. 52

51 Contracapa do disco-manifesto “ Tropicália ou Panis et Circencis”. 52 NAPOLITANO, Marcos. Seguindo a canção: engajamento político e indústria cultural na MPB (1959-1969). São Paulo: Annablume/ FAPESP, 2001. p.239. 46

Apesar de o “disco-manifesto” identificá-los como o “grupo tropicalista”, os participantes desempenharam papéis distintos no movimento. Considerados os idealizadores, teóricos, principais articuladores e porta-vozes do tropicalismo musical, destacam-se Caetano Veloso e Gilberto Gil.

Caetano Emanuel Vianna Teles Veloso 53 nasceu em 7 de agosto de 1942, na cidade de Santo Amaro da Purificação, no Recôncavo Baiano. Sétimo filho do funcionário público - agente postal telegráfico - Sr. José Telles Velloso e da dona de casa Claudionor Vianna Telles Velloso, a “D. Canô”. Até o final dos anos 50, viveu na pequena cidade do interior baiano e, como outros jovens interioranos, cresceu em um ambiente marcado por valores rígidos e vida “pacata”:

Eu levava uma vida pacífica, em meio a uma família grande e amorosa, nessa cidade pequena e bonita no seu urbanismo aconchegante. No entanto, não apenas a pobreza vista sempre tão de perto me levava a querer pôr o mundo em questão: os valores e hábitos consagrados estavam longe de me parecer aceitáveis. [...] O ambiente em nossa casa era um tanto opressivo por impor-se a cada um de nós como um mundo fechado em si mesmo. Um mundo pacífico e terno mas talvez demasiado introspectivo. O fato de meu pai trabalhar em casa (a agência postal-telegráfica tinha então que ser na casa de seu chefe) contribuía muito para criar essa sensação. [...] As dimensões gigantescas do sobrado e o número elevado de membros da família também eram fatores agravantes. [...] Além das visitas que vinham ver nossos pais, companheiros de estudo e trabalho de nossas irmãs e primas mais velhas apareciam para conversas. Muitos visitantes diários eram indefectíveis. Assim, o casarão era um mundo também para toda essa gente que vinha do mundo. Nós próprios saíamos pouco, nunca nenhum de nós tendo tido hábito de ir brincar “na casa dos outros” [...]. 54

53 Participante da Tropicália mais estudado no meio acadêmico e fora dele. Para uma análise mais detalhada, consultar: FERRAZ, Eucanaã (Org.). CaetanoVeloso: o mundo não é chato. São Paulo: Companhia das Letras, 2005. Idem. Caetano Veloso: Letra só - Sobre as Letras. São Paulo: Companhia das Letras, 2003. FONSECA, Heber. Caetano,essecara . Rio de Janeiro: Revan, 1993. LUCCHESI, Ivo; DIEGUEZ, Gilda Korff. Caetano . Por que não? Uma viagem entre a aurora e a sombra. Rio de Janeiro: Leviatã, 1993. MARTINS, Eder. AMPBentreonacional,opopulareo universal: Edu Lobo e Caetano Veloso, engajamento político e atualização musical em debate (1965- 1968). Dissertação (Mestrado), Pontifícia Universidade Católica, São Paulo, 2008. NAVES, Santuza Cambraia. Objetonãoidentificado: a trajetória de Caetano Veloso. Dissertação (Mestrado), PPGAS - Museu Nacional, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 1988. Idem. Velô, de Caetano Veloso . Rio de Janeiro: Língua Geral, 2009. OLIVEIRA, Sylvio de. Letra: as canções do exílio de Caetano Veloso. Rio de Janeiro: 2AB Editora, 2008. WISNIK, Guilherme. CaetanoVeloso . São Paulo: Publifolha, 2005. 54 VELOSO, Caetano. VerdadeTropical . São Paulo: Companhia das Letras, 1997. p.26. 47

Em suas memórias, Caetano Veloso afirma ter sido influenciado, ainda em Santo Amaro, pelas canções ouvidas na rádio – Frank Sinatra, Nat King Cole, , , , Mário Reis, , , Sílvio Caldas, Ângela Maria, Cauby Peixoto, Jackson do Pandeiro, entre outros – e principalmente pelo cinema, musicais com Gene Kelly e Cyd Charisse, além dos filmes franceses e italianos. Contudo, o grande impacto foi a audição das primeiras canções da Bossa Nova:

Eu tinha dezessete anos quando ouvi pela primeira vez João Gilberto. Ainda Morava em Santo Amaro, e foi um colega do ginásio quem me mostrou a novidade que lhe parecera estanha e que, por isso mesmo, ele julgara que me interessaria: “Caetano, você que gosta de coisas loucas, você precisa ouvir o disco desse sujeito que canta totalmente desafinado, a orquestra vai pra um lado e ele vai pro outro”. Ele exagerava a estranheza que a audição de João lhe causava, possivelmente encorajado pelo título da canção “Desafinado” – uma pista falsa para primeiros ouvintes de uma composição que, com seus intervalos melódicos inusitados, exigia intérpretes afinadíssimos e terminava, na delicada ironia de suas palavras pedindo tolerância para aqueles que não o era. A bossa nova nos arrebatou. 55

Filho de classe média, estudou regularmente em Santo Amaro da Purificação e, em 1960, mudou-se para Salvador para continuar os estudos. Encontrou um ambiente de efervescência cultural, em decorrência das inovações adotadas na Universidade Federal da Bahia, promovidas pelo reitor Edgard Santos. Foi em Salvador, no ano de 1963, que conheceu Gilberto Gil, Gal Costa e Tom Zé.

Em 1964 foi convidado a organizar um show de música popular brasileira para a inauguração do Teatro Vila Velha. O show intitulado “ Nós, por exemplo ” estreou em 22 de agosto de 1964, com a participação de jovens compositores, intérpretes e instrumentistas identificados com a proposta de renovação musical iniciada pela Bossa Nova, entre eles Gilberto Gil, Gal Costa e Maria Bethânia. O sucesso do espetáculo resultou em continuidade - “Nós, por exemplo 2 ”, que incluiu Tom Zé.

55 VELOSO, Caetano. VerdadeTropical . São Paulo: Companhia das Letras, 1997. p.35. 48

Em 1965 seguiu para o Rio de Janeiro como acompanhante da irmã Maria Bethânia, que substituiria Nara Leão no show Opinião . No mesmo ano, participou, com Gilberto Gil, Gal Costa, Tom Zé e Maria Bethânia, do espetáculo “ Arena Canta Bahia” , dirigido por Augusto Boal, em São Paulo. Não obstante o envolvimento na produção cultural, especialmente na área musical, afirmava ter dúvidas sobre a carreira. Mas, apesar da incerteza e certa relutância em deixar Salvador, em 1966, mudou-se para o Rio de Janeiro para dedicar-se à atividade musical.

Naquele momento, envolveu-se em amplo debate sobre os rumos da Música Popular Brasileira, por meio de discussões e entrevistas, como as publicadas na Revista Civilização Brasileira . Defendendo a “linha evolutiva”, já antecipava a polêmica proposta que, a partir de 1967, seria denominada de Tropicália .

Ainda em 1966, sua canção “ Boa Palavra ” foi classificada em 5º lugar no Festival Nacional da Música Popular, promovido pela TV Excelsior, e a canção “ Um Dia ” ganhou o prêmio de melhor letra no II Festival de Música Popular Brasileira da TV Record, garantindo maior visibilidade no cenário musical. Também na TV Record, participou do programa musical “ Esta noite se improvisa ”, dividindo a cena com Chico Buarque.

Em 1967, já relativamente conhecido e reconhecido no cenário musical, apresentou a canção “ Alegria, alegria ”, no III Festival da Música Popular Brasileira, da TV Record. Apesar das declarações feitas pelo próprio Caetano e por Gilberto Gil informando que o movimento tropicalista não foi elaborado com antecedência, ou seja, que as canções inscritas para concorrer nesse festival não identificavam, ainda, o movimento, que teria tomado forma e denominação posteriormente, Caetano se contradisse ao afirmar:

[...] decidi que no festival de 67 nós deflagraríamos a revolução. No meu apartamentinho do Solar da Fossa, comecei a compor uma canção que eu desejava que fosse fácil de apreender por parte dos espectadores do festival e, ao mesmo tempo, caracterizasse de modo inequívoco a nova atitude que queríamos inaugurar. [...] Para o que seria a estréia tropicalista, a apresentação de “Alegria, Alegria” no festival da TV Record, estávamos todos certos, Gil, Guilherme e eu, de um grupo de iê-iê-iê (rock) deveria ser contratado como acompanhante. 56

56 VELOSO, Caetano. VerdadeTropical . São Paulo: Companhia das Letras, 1997. p.165-8. 49

Embora a canção “ Alegria, Alegria ” tenha sido classificada em 4º lugar, a apresentação cumpriu seu objetivo. A canção foi um sucesso, mesmo tendo recebido inúmeras críticas, e projetou a carreira musical de Caetano. No mesmo ano, gravou seu primeiro LP, “ Domingo ”, com Gal Costa e direção de Dori Caymmi. E, em 21 de novembro de 1967, casou-se com Andréia (Dedé) Gadelha, em Salvador.

Figura2CaetanoVeloso“Alegria,Alegria”.57

Em 1968, no auge do movimento tropicalista, Caetano Veloso estava morando em São Paulo. Foi no seu apartamento que o grupo discutiu os projetos que deram “forma” à Tropicália. Momento de intensa produção, lançou seu primeiro LP individual, intitulado “ Caetano Veloso ”, e participou, com a canção “ É Proibido, proibir ”,do III Festival Internacional da Canção, da TV Globo, com apresentação polêmica, que resultou no famoso discurso no TUCA, em São Paulo, bem como da série de apresentações na boate Sucata, no Rio de Janeiro, e do programa Divino Maravilhoso , exibido pela TV Tupi:

57 Caetano Veloso na apresentação da canção “ Alegria, Alegria ” no Festival da Record, 1967. O ESTADO DE SÃO PAULO. Caderno 2. São Paulo, 21 de julho de 2010. p.D5. 50

Teríamos como participantes fixos do programa Os Mutantes, Gal e Tom Zé, além de Gil e eu. Tivemos como convidados Jorge Ben, Juca Chaves [...] e .[...] Eu participava das reuniões de criação na TV Tupi – e dos ensaios e dos próprios programas [...]. O programa Divino Maravilhoso estreara com um sucesso de estima muito grande, mas não sei qual foi a audiência em números. Fizemos um atrás de grades e dentro de gaiolas (o proscênio era tomado por uma grade de madeira imitando ferro; outras jaulas menores, dentro da grande jaula que era o palco, guardavam os Mutantes, Gal, Tom Zé etc.; Jorge Bem cantava dentro de uma jaula que pendia do teto): no final, eu vinha do fundo o palco berrando o sucesso de Roberto Carlos “Um leão está solto nas ruas” e quebrava as grades, convidando todo o elenco de participantes a colaborar comigo nesta destruição. A platéia de jovens identificados com nossa onda respondia com entusiasmo. [...] 58

Por sua vez, Gilberto Passos Gil Moreira, Gilberto Gil59 , nasceu em Salvador, Bahia, no dia 26 de junho de 1942. Filho primogênito do médico José Gil Moreira e da professora primária Claudina Passos Gil Moreira. Logo após seu nascimento, a família mudou-se para Ituaçu, cidade do interior da Bahia, onde Gil permaneceu até 1951, quando voltou para Salvador para continuar seus estudos. Durante a infância e adolescência foi influenciado tanto pela música erudita como pela música popular. Frequentava as apresentações das bandas de violeiros locais, os blocos de carnaval e ouvia, por meio do rádio, os cantores Orlando Silva e Luiz Gonzaga, considerado seu primeiro ídolo musical. O interesse pela música levou-o a participar do programa da rádio Excelsior e organizar o conjunto musical “ Os Desafinados”:

[...] O primeiro fenômeno musical que deixou um lastro muito grande em mim foi Luiz Gonzaga. Em grande parte pela intimidade que a música de Luiz Gonzaga teve comigo. Eu fui criado no interior do sertão da Bahia, naquele tipo de cultura e de ambiente que forneceu todo o material para o trabalho dele em relação à musica nordestina. Uma outra coisa bacana no Luiz Gonzaga – e a consciência disso veio depois, quando eu já especulava em torno dos problemas da MPB – foi o reconhecimento de que o Luiz Gonzaga foi também, possivelmente, a primeira grande coisa significativa do ponto

58 VELOSO, Caetano. VerdadeTropical . São Paulo: Companhia das Letras, 1997. p.330-42. 59 Cf.: RENNÓ, Carlos (Org.). GilbertoGil: todas as letras. São Paulo: Companhia das Letras, 1996. RISÉRIO, Antonio; GIL, Gilberto. Opoéticoeopolíticoeoutrosescritos . Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988. Além das obras que discutem a Tropicália, pois, como Gil foi considerado um dos líderes do movimento, as obras que tratam o assunto apresentam análise aprofundada sobre ele. 51

de vista da cultura de massa no Brasil. Talvez o primeiro grande artista ligado à cultural de massa, tendo a música e a sua atuação vinculadas a um trabalho de propaganda, de promoção. Nos idos de 1951-52, ele fez um contrato fabuloso, de alto nível promocional, com o Colírio Moura Brasil, que organizou excursões de Luiz Gonzaga por todo o Brasil. 60

No final dos anos 50, a influência da Bossa Nova seria decisiva em sua trajetória musical. Em 1961 ingressou no curso de Administração de Empresas da Universidade da Bahia, mas sem abandonar suas experiências musicais. Em 1963, gravou seu primeiro disco, “ Gilberto Gil sua música, sua interpretação ”, um compacto duplo com composições próprias: “ Serenata de Teleco-Teco”, “Maria Tristeza”, “Vontade de Amar” e “Minha lua, minhas canções” . Nesse mesmo ano, conheceu Caetano Veloso, em Salvador. Com interesses musicais semelhantes, a afinidade garantiu uma amizade e parceria:

[...] Até que apareceu João Gilberto, meu filho. E 1959, cêta entendendo? Eu estava voltando do colégio, eu me lembro. Nessa época eu tava terminando o curso científico. Já tocava acordeon há uns oito anos, já tinha um conjunto onde eu tocava, Os Desafinados, já tinha transado mil forrós no interior daquelas fazendas... aquelas coisas todas. Bom, eu tava voltando do colégio, chego em casa, minha tia Margarida bota o almoço e liga o rádio, Rádio Bahia. Aí meu filho, está tocando aquela música que abre o primeiro LP do João Gilberto, o Chega de Saudade, Eu aí disse: “o que é isso?” Sabe, senti uma coisa estranhíssima mesmo, aí parei de comer, fiquei de pé no rádio, escutando, aí acabou porque as músicas de João eram rápidas, era aquela coisa “fuuu”, aí acabou. Aí eu fiquei, fiquei a tarde toda estudando com o rádio ligado. Aí, lá pelas quatro horas, vem de novo, rapaz, João Gilberto, já cantando uma outra faixa do disco mas com a mesma sonoridade. Aquilo me impressionou terrivelmente [...]. Aí eu digo: “agora num tem jeito, eu tenho que tocar violão, eu tenho que fazer isso que esse homem ta fazendo, eu quero aprender a fazer isso”. E aí começou [...]. 61

Após a conclusão do curso de Administração, em 1966, Gil mudou-se para São Paulo, onde pôde se aproximar de muitos artistas e estabelecer contatos que

60 Depoimento de Gilberto Gil, em entrevista concedida a (publicada originalmente em Balanço da bossa , 1968). Cf.: COHN, Sérgio (Org.). GilbertoGil . Série Encontros/ Entrevistas. Rio de Janeiro: Beco do Azogue, 2007. p.18. 61 Depoimento de Gilberto Gil, em entrevista concedida a Hamilton Almeida (publicada originalmente na revista O Bondinho , em 16fev. 1972). Cf.: Ibidem. p.66-7. 52

foram fundamentais para o desenvolvimento de sua carreira. Empregado no escritório da Gessy Lever, conciliava o emprego com as atividades musicais, até abandonar o emprego para dedicar-se apenas à música:

Fiquei na Gessy, trabalhando, trabalhando, trabalhando um ano, aí conheci Vinicius, nesse período foi que Bethânia estava no Opinião aqui em São Paulo. E aí eu comecei, né? Redondo. Todo fim de tarde, acabava o trabalho, chegava eu de pastinha, e gravata, paletó, punha a malinha de lado, sentava lá no Redondo e tomava aquele chope. Aí aparecia o Vinícius, o Baden de vez em quando. Bethânia já tava conhecendo o pessoal todo, me apresentava, e tal, aí a gente sempre tocava um violãozinho. Nessa época eu tava morando na Cidade Vargas, trabalhando na Gessy, mas o tempo todo voltado pra o mundo da música. Aí assistia a todos os Fino da Bossa, na Record, batendo papo ali no corredor, com todo mundo, Bethânia me apresentando a um hoje, outro amanhã; e eu com Caetano ficando amigos da turma. [...] 62

Em 1967, após uma viagem pelo Nordeste, a convite do Teatro Popular do Nordeste, para uma série de apresentações para o público universitário, retornou ao Rio de Janeiro com o projeto de misturar as influências da cultura popular, como a Banda de Pífaros de Caruaru, com Beatles . Nascia a proposta do “som universal”, que foi apresentada a diversos representantes da Música Popular Brasileira, sem provocar grande interesse:

Em 1966 [ sic ], Gil externou sua inquietação e sua impaciência com relação ao modo de encarar o trabalho. Falou dos Beatles e da fome no Nordeste (tinha passado uns meses no Recife), da violência da ditadura militar e da cultura de massas: não podíamos mais nos manter no mundo resguardado da “esquerda” pós-bossa nova. Falou primeiro aos íntimos – Capinam, eu, Gal, Torquato, Guilherme Araújo, Rogério Duarte. E logo, aos colegas em geral. Isso aconteceu em reuniões (houve mais de uma) marcadas pelo próprio Gil. Ele acreditava firmemente que todos entenderiam e que suas idéias fariam nascer um movimento que fosse de todos. 63

62 COHN, Sérgio (Org.). GilbertoGil . Série Encontros/ Entrevistas. Rio de Janeiro: Beco do Azogue, 2007. p.70. 63 Caetano Veloso, na apresentação do Songbook , de Gilberto Gil, 1992. Cf.: FERRAZ, Eucanaã (Org.). CaetanoVeloso: o mundo não é chato. São Paulo: Companhia das Letras, 2005. p.97. 53

Mas, apesar da reação desinteressada de parte dos representantes da MPB, Gilberto Gil não desistiu do projeto e, juntamente com aqueles que se identificaram com a proposta, desenvolveu o movimento que foi, posteriormente, denominado de Tropicália. Nesse ínterim, apresentou a canção “ Domingo no Parque ”no III Festival da Música Popular Brasileira, na TV Record:

O trabalho que fizemos, eu e Caetano, surgiu mais de uma preocupação entusiasmada pela discussão do novo do que propriamente como um movimento organizado. Eu acho que só agora, em função dos resultados dessas nossas investidas iniciais, pode-se pensar numa programação, numa administração desse material novo que foi lançado no mercado. [...] 64

Figura3GilbertoGil“DomingonoParque”.65

No auge da “explosão tropicalista”, Gil e Caetano Veloso foram presos, em 27 de dezembro de 1968, em São Paulo. Ambos foram levados para o quartel do Exército de Marechal Deodoro, no Rio de Janeiro. Ficaram presos até fevereiro de

64 Depoimento de Gilberto Gil, em entrevista concedida a Augusto de Campos (publicada originalmente em Balanço da bossa , 1968). Cf.: COHN, Sérgio (Org.). GilbertoGil . Série Encontros/ Entrevistas. Rio de Janeiro: Beco do Azogue, 2007. p.22. 65 Gilberto Gil na apresentação da canção “ Domingo no Parque ”. O ESTADO DE SÃO PAULO. Caderno 2. São Paulo, 08 abr. 2010. p.D3. 54

1969, quando seguiram para Salvador, mas submetidos ao regime de confinamento. E, em março de 1969, Gilberto Gil casou-se com Sandra Barreira Gadelha.

Partiram para o exílio juntos em julho de 1969. Moraram em Londres e, em 17 de maio de 1970, nasceu o primeiro filho de Gil e Sandra Gadelha – Pedro Gadelha Gil Moreira. Retornaram ao Brasil em 1972. Diferente de Caetano Veloso, que enfrentou o exílio em grande depressão, Gilberto Gil considerou a experiência proveitosa, apesar das dificuldades enfrentadas:

Londres representou para mim um período de fraqueza total. Freqüentei umas aulas de inglês para estrangeiros numa daquelas escolas de várias salas com turmas grandes. Mas falava português quase o tempo todo, morando numa casa habitada por brasileiros e freqüentemente visitada por brasileiros. Eu me sentia incapaz de aproveitar o que deveria ser visto como oportunidade. [...] Assombra-me pensar que, em dois anos e meio, não fui uma só vez ver uma peça de teatro inglesa, não assisti a um só concerto de música clássica, não entrei numa livraria ou numa biblioteca, e só fui aos museus (o British Museum e a Tate Galery) na semana de voltar ao Brasil. [...] 66

Acho que evolui mesmo. No Brasil, eu era um fazedor de músicas e tocava violão incidentalmente. Não tinha oportunidade de me aprofundar no instrumento. Eu me assustei, ao chegar na Inglaterra, com o nível, a qualidade, o acabamento da música que se fazia aqui. O meu nível não era nada comparado com o da praça. Hoje, eu sou um instrumentista. E posso passar para o plano concreto mito mais das minhas idéias. Isso é um ganho. Tive contato com outros instrumentistas, ia em tudo que era festival, armando minha barraquinha. Passei do palco para a platéia, o que, de certa maneira, foi fundamental para o meu processo de absorção. 67

Como intérprete tropicalista, destaca-se Maria da Graça Costa Penna Burgos, Gal Costa 68 , filha de D. Mariah Costa Penna e Arnaldo Burgos. Nasceu em

66 VELOSO, Caetano. VerdadeTropical . São Paulo: Companhia das Letras, 1997. p.424-5. 67 Depoimento de Gilberto Gil, em entrevista concedida a Bernardo Kucinski(publicada originalmente na revista Veja , em 19 jan. 1972). Cf.: COHN, Sérgio (Org.). Gilberto Gil . Série Encontros/ Entrevistas. Rio de Janeiro: Beco do Azogue, 2007. p.45. 68 As referências para a biografia e trajetória musical de Gal Costa estão disponíveis apenas nas obras que discutem o movimento tropicalista. Ainda não há pesquisas acadêmicas que focalizem individualmente a trajetória da intérprete e, quando citada na bibliografia já existente, as referências são bastante limitadas. Cf.: ALBIN, Ricardo Cravo (criação e supervisão geral). DicionárioHouaiss Ilustrado - Música Popular Brasileira. Rio de Janeiro: Paracatu, 2006. NESTROVSKI, Arthur (Org.). MúsicaPopularBrasileiraHoje . São Paulo: Publifolha, 2002. p.100-2. 55

26 de setembro de 1945, em Salvador, quando seus pais já estavam separados. Gal não conheceu seu pai, sendo criada apenas pela mãe, que, para sustentar a filha, trabalhava no comércio de leite, junto com o irmão fazendeiro. Na adolescência, em virtude das dificuldades financeiras, Gal Costa empregou-se como balconista numa loja de discos, o que contribuiu para ampliar seu contato com o universo musical, mantendo-se atualizada sobre a produção nacional e estrangeira. Em 1959, também foi influenciada pela Bossa Nova, a partir da audição das canções de João Gilberto, que passou a ser sua principal referência no campo musical.

Em 1963, conheceu Caetano Veloso e Gilberto Gil – a apresentação foi feita por Dedé Gadelha. A amizade travada rapidamente resultou em parcerias musicais. Ainda no início dos anos 60, mudou-se para o Rio de Janeiro. Em 1965, estreou como intérprete no disco de Maria Bethânia. Nesse mesmo ano, gravou seu primeiro compacto, interpretando as canções “ Eu vim da Bahia ”, de Gilberto Gil, e “ Sim, foi você ”, de Caetano Veloso, e encenou, junto com Tom Zé, a peça “ Arena canta Bahia ”, dirigida por Augusto Boal, no Teatro Brasileiro de Comédia - TBC, em São Paulo.

Em 1966, participou do I Festival Internacional da Canção, da TV Globo, defendendo a canção “ Minha Senhora ”, de Gilberto Gil e Torquato Neto. Mas a canção foi desclassificada pelo júri. No ano seguinte, em 1967, interpretou a canção “Bom Dia ”, de Gilberto Gil e Nana Caymmi, e “ Dadá Maria ”, de Renato Teixeira, ambas apresentadas no III Festival da Música Popular Brasileira, da TV Record.

A partir de 1968, Gal Costa começou a notabilizar-se como intérprete. O reconhecimento iniciou-se com a participação em destaque no disco-manifesto “Tropicália ”, com as canções “ Mamãe Coragem ”, de Caetano Veloso e Torquato Neto, “ Parque Industrial ”, de Tom Zé, “ Enquanto seu lobo não vem ” e “ Baby ”, ambas de Caetano Veloso.

No mesmo ano, participou do III Festival Internacional da Canção, da TV Globo, interpretando a canção “ Gabriela mais bela ”, de Roberto Carlos e . Porém, a participação no IV Festival da Música Popular Brasileira, da TV Record, em novembro de 1968, representou uma reviravolta estética e pessoal. Interpretando a canção “ Divino Maravilhoso ”, de Caetano Veloso e Gilberto Gil, assumindo visual hippie e interpretação agressiva, com influências do rock internacional, a ousada apresentação destacou Gal Costa no cenário musical. 56

Figura4GalCosta“DivinoMaravilhoso”.69

Com o exílio de Caetano Veloso e Gilberto Gil, Gal tornou-se a figura mais evidente do movimento tropicalista, com amplo destaque na imprensa. Tal visibilidade garantiu o lançamento do primeiro LP individual,“ Gal Costa ”, bem como do segundo, “ Gal ”, ambos lançados em 1969:

Gal seu disco é bacana. Seu disco é muito bacana mesmo. Cada ano sai melhor. Cada vez que eu leio um comentário sobre cinema em revista brasileira eu gosto mais do seu disco. Cada música nova que eu faço eu gosto mais do seu disco. Cada vez que eu sinto a barra. E a barra não está leve. Cada vez que eu vejo televisão colorida, cada papo sinistro que alimento, cada supergroup que aparece. Seu disco é bacana. Você deve ter brigado muito por ele. Com você mesma, com alguém, com alguma coisa. Se não brigou para fazê-lo, ainda vai brigar por tê-lo feito. Seu disco é muito mais bacana do que o outro que você fez antes. Eu falo que você deve, de alguma forma, ter brigado pra fazer o disco como você fez, porque eu acho que ele é demais. E não é fácil a pessoa chegar inteira até o fim de um disco. Você chegou aqui, no disco, e você está maravilhosa. [...] 70

69 Gal Costa na apresentação da canção “ Divino Maravilhoso ”. O ESTADO DE SÃO PAULO. Caderno 2. São Paulo, 08 abr. 2010. p.D3. 70 Caetano Veloso, comentando sobre o LP Gal - Philips, 1969 (publicado originalmente em O Pasquim , 19 fev. 1970). Cf.: FERRAZ, Eucanaã (Org.). CaetanoVeloso: o mundo não é chato. São Paulo: Companhia das Letras, 2005. p.141. 57

No início da década de 1970, já identificada com o movimento da contracultura, estreou, em outubro de 1971, o show “ Gal a todo vapor ”, no Teatro Teresa Raquel, no Rio de Janeiro. O espetáculo tinha a direção de Waly Salomão e cenário de Luciano Figueiredo e Oscar Ramos. Gal era acompanhada do guitarrista Lanny Gordon, que também elaborou os arranjos. O show foi considerado um dos maiores acontecimentos no cenário musical, no início da década de 1970.

Torquato Neto, que naquele momento assinava a coluna “ Geléia Geral ”, no jornal Última Hora , destacou a apresentação, inserindo Gal no “panteão” das grandes cantoras do Brasil:

Disse e repito: Gal é a maior cantora. E garanto. E você, bobão tropicalista, não venha me falar em épocas: todo mundo sabe que existem cantoras maiores em cada “época”, para todas as “épocas”e que Aracy [de Almeida] é a maior cantora e que Angela [Maria] e Dalva [de Oliveira] também são as maiores e que Elizeth [Cardoso] ainda é a maior cantora. Mas se você quer saber mesmo da maior cantora, a que sintetiza melhor e mais profundamente todas as épocas aqui, a mais quente, presente, perfeita e livre e eu lhe digo, bobão: Gal [...] 71

Apesar do impacto que a apresentação do show causou, obviamente, a avaliação positiva do espetáculo não era unanimidade. Rebatendo as críticas que circulavam na imprensa, Torquato Neto avaliava e exaltava os aspectos positivos e inovadores da apresentação, considerada de vanguarda e, portanto, resultando em falta de entendimento e depreciação de alguns:

A Todo Vapor, o show de Gal Costa no teatrão da Siqueira Campos, não foi pensado nem feito pra quem anda atrás de mistérios: é a coisa mais simples do mundo. Bobões da imprensa “especializada” e bobões cegos-surdos não compreendem as palavras-destaque de Waly e Luciano, do que se utilizam pra demonstrar ignorância e insensibilidade profunda a respeito de todas as novas formas de poesia, da imagem e do canto. Querem explicações. Esses bobões não contam nada. O show é simples e, por isso mesmo, complexo. A complexidade reside na dificuldade que as pessoas ainda enfrentam, para simplesmente, ouvir e sacar o canto desligado/ligadíssimo de Gal, as transas da técnica inteligente

71 ÚLTIMA HORA. Rio de Janeiro, 16 out. 1971. 58

com a emoção (sincera?, perguntam os trouxas), que recria, por exemplo, mais gravação recente da boneca – “Falsa baiana” – dentro do espírito normalmente pop do show inteiro, das transas de Gal (mais Waly, Luciano, Paulinho, Lanny, Jorginho e Novelli), do público que chega lá e escuta e se liga, do ambiente geral do Teatrão e de tudo o que Gal representa com seu canto e com sua presença (ainda) entre nós. Ufa! [...] 72

Mesmo diante das críticas contrárias, o show foi um sucesso e abriu portas para novas apresentações. No início de 1972 Gal estreou o segundo show,“ Gal a Todo Vapor ”, quando apresentou as canções “ Pérola Negra ”, de , e “Vapor Barato ”, de Jards Macalé e Waly Salomão, composições consideradas ícones da contracultura.

O movimento tropicalista também contou com a participação irreverente d’Os Mutantes 73 . O grupo era formado pelo trio de jovens paulistanos: os irmãos Arnaldo, nascido em 06 de julho de 1948, e Sérgio Baptista, nascido em 1º de dezembro de 1951, e Rita Lee Jones, nascida em 21 de dezembro de 1947. Como muitos jovens na década de 60, os três participaram de outros grupos musicais antes da formação d’Os Mutantes. Quando foi convidado a participar do programa musical da TV Record, a Jovem Guarda , o grupo ainda era denominado O’Seis. A primeira exibição já como “Os Mutantes” ocorreu na TV Record, em outubro de 1966, no programa O pequeno mundo de Ronnie Von .

A aproximação d’Os Mutantes com os tropicalistas ocorreu por intermédio de Rogério Duprat, que já conhecia o trabalho dos jovens paulistanos e os apresentou a Gilberto Gil para a apresentação da canção “ Domingo no Parque ”, no III Festival da TV Record, em 1967. O convite foi fundamental para a carreira do trio, que teve sua carreira musical consolidada, pois imediatamente após a apresentação o grupo recebeu convite da gravadora Philips para gravar seu primeiro LP.

Para a apresentação “tropicalista” da canção “ Domingo no Parque ”, Os Mutantes já revelaram sintonia com as ideias que seriam características do

72 CALADO, Carlos. ADivinaComédiadosMutantes . Rio de Janeiro: Editora 34, 1995. p.95. 73 Cf.: SANTOS, Daniela Vieira dos. Nãováseperderporaí: a trajetória dos Mutantes. São Paulo: Annablume / FAPESP, 2010 (a obra resulta da Dissertação de Mestrado, com mesmo título, apresentada ao Departamento de Sociologia da UNESP - campus Araraquara, em 2008). FONTENELLE, Paulo Henrique (direção). LÓKI - Arnaldo Baptista. Documentário. São Paulo: MZA, 2008. 59

movimento: o vestuário escolhido por Rita Lee para o trio já evidenciava, em 1967, que Os Mutantes seriam personagens fundamentais para a Tropicália.

[...] Rita usou um vestido estampado e bem largo, que deixava seus joelhos à vista. Serginho trazia uma grande e esquisita capa preta sobre a roupa. Mais discreto, ainda com um bigodinho ralo de adolescente, Arnaldo vestia um paletó esporte, acompanhado da devida gravata – nada a ver com os smokings que a grande maioria dos artistas costumava usar nessas ocasiões. 74

A irreverência d’Os Mutantes, com seu vestuário nada convencional, repetiu- se na final do Festival da TV Record, em 21 de outubro de 1967:

Desta vez, Rita surgiu com um vestidinho azul, que mais uma vez deixava de fora seus joelhos. A novidade era um pequeno coração que ela havia desenhado na bochecha esquerda (curtição hippie que, na semana seguinte, já tinha virado moda entre as jovens mais ligadas, depois de render comentários e reportagens em revistas). Já os Baptistas, numa evidente gozação, trocaram de roupa: Arnaldo trazia sobre a roupa a mesma capa esquisita que o irmão usara na eliminatória; Sérgio, com um sóbrio paletó e gravata, não precisou de mais nada além de sua genuína guitarra para provocar os quadrados nacionalistas. 75

A presença d’Os Mutantes no movimento tropicalista foi importantíssima, pois os jovens paulistanos agregaram ao movimento um dos elementos primordiais para o projeto de renovação da Música Popular Brasileira: o rock estrangeiro, com o qual já estavam sintonizados. A irreverência do grupo era visível, não apenas pelo vestuário inovador e provocativo usado nas apresentações dos festivais, mas também pelo uso de objetos inusitados que produziam novas sonoridades. A pesquisa – caminho inclusive defendido pelos tropicalistas como “fórmula” para a renovação da Música Popular Brasileira – era realizada de forma bem peculiar pelo trio:

74 CALADO, Carlos. ADivinaComédiadosMutantes . Rio de Janeiro: Editora 34, 1995. p.108-9. 75 Ibidem. p.110. 60

Manoel Barenbeim ficou um tanto perplexo ao ver Rita Lee entrar no estúdio, trazendo na sua mão uma bomba de Flit (um inseticida muito popular na época, que era usado com um vaporizador primitivo, pré-embalagem aerosol). Durante alguns minutos, o produtor da Philips até conseguiu fingir que tudo corria normal. StélioCarlini, o técnico de som, já estava completando os preparativos para iniciar a gravação de Le PermierBonheur de Jour, quando Barenbein viu aquele objeto bizarro sendo colocado junto com os instrumentos do conjunto. O produtor não conseguiu segurar mais a curiosidade e quis saber o que eles pretendiam com aquela geringonça. Muito simples: a idéia dos Mutantes era usar o ruído da bomba para substituir o som do chimbau da bateria, durante a gravação. O maestro Rogério Duprat não só adorou a proposta, como sugeriu encher a bomba com água, em vez de usá-la vazia, porque dessa forma o som podia ficar mais encorpado. Acabaram descobrindo que a água também alterava a sonoridade do inusitado instrumento. 76

As experiências musicais realizadas pel’Os Mutantes contribuíram para aproximá-los do maestro Rogério Duprat – responsável pelos principais arranjos que caracterizaram a Tropicália. Logo de início, Duprat percebeu a importância e o talento que o trio trazia:

Essa atitude irreverente conquistou logo Duprat, que com toda sua experiência acumulada na área da música contemporânea, ou mesmo organizando happenings à John Cage, ajudava a coordenar e realizar as divertidas idéias dos garotos. Lançado no final de junho de 68, Os Mutantes, primeiro LP do trio, era recheado de curtições musicais e extramusicais. A começar da vinheta com o prefixo do popular jornal radiofônico Repórter Esso, que abre o disco. Em Ave GengisKahan, o doutor Cesár Baptista (pai de Arnaldo e Sérgio) parece estar cantando em russo, já que a fita gravada com seus vocais foi reproduzida de trás para a frente. Em Panis etCircensis , o som da gravação vai sendo distorcido até sumir por alguns segundos, dando a impressão ao ouvinte de que seu toca-discos parou. A intenção dos garotos era a de que alguma vítima mais ingênua chegasse a tentar ligar seu aparelho de novo. Um happening com gosto de molecagem. 77

76 CALADO, Carlos. ADivinaComédiadosMutantes . Rio de Janeiro: Editora 34, 1995. p.115. 77 Ibidem. p.117. 61

Rapidamente reconhecido pelo talento musical, o trio, consciente de sua importância no movimento, evidenciava que não desempenharia mero papel de “coadjuvante":

Além de aparecerem sozinhos na canção PanisetCircensis , os Mutantes colaboraram em outras quatro faixas do disco- manifesto: Misere Nóbis (de Gil e Capinam), Parque Industrial, Bat Macumba (de Gil e Caetano) e Hino ao Senhor do Bonfim da Bahia (de João Antonio Wanderley). A essa altura, depois de terem participado dos discos de Gil, Caetano e Duprat, o conjunto funcionava como uma espécie de espinha dorsal do grupo tropicalista, convocado com freqüência por seus adeptos a acompanhá-los em shows e programas de TV. Principalmente Duprat, Gil e Caetano sabiam muito bem quanto o intercâmbio musical que estabeleceram com os Mutantes era valioso para todos. 78

Aproveitando a notoriedade que alcançavam, Os Mutantes concorreram no festival da TV Excelsior, em julho de 1968, com a canção “ Mágica ”, desenvolvendo carreira independente:

Mágica, uma ciranda temperada com rock, foi a canção inscrita pelos Mutantes nesse festival. Era uma das primeiras composições coletivas do trio, com letra de Rita e Arnaldo, melodia de Serginho e arranjo de Rogério Duprat. Para interpretá-la, os três convocaram o próprio Duprat, tocando seu violoncelo eletrificado (Cláudio – irmão mais velho de Arnaldo e Sérgio – instalou um captador no instrumento), e (na época, guitarrista dos Baobás, conjunto que estava acompanhando Caetano Veloso), no violão de 12 cordas. 79

Utilizando os mesmos recursos que “emprestavam” à Tropicália – a irreverência, o deboche, os instrumentos elétricos e arranjos musicais inovadores –, Os Mutantes conseguiram “chocar” a plateia com sua apresentação. Dessa forma, tornaram-se ainda mais conhecidos, em virtude da polêmica que provocavam:

78 CALADO, Carlos. ADivinaComédiadosMutantes . Rio de Janeiro: Editora 34, 1995. p.123. 79 Ibidem. p.124-5. 62

O resultado não poderia ter sido melhor. Da terceira eliminatória, que aconteceu dia 7 de julho, no auditório da TV Excelsior, na rua Nestor Pestana, o trio já saiu como vencedor... em vaias: “Fora! Isto é um festival de música brasileira!”, gritaram, entre outras coisas, da platéia. Quando Mágica foi anunciada como finalista, as vaias e os gritos que já tinham sido ouvidos durante a primeira apresentação dos Mutantes se multiplicaram. Era difícil saber o que mais chocara a ala conservadora do público: as guitarras elétricas e as mistura de cantiga de roda com rock ou as roupas extravagantes do trio. Rita, a responsável pelo visual do conjunto, já começara a perceber que quanto maior a esculhambação, maior era o impacto. Tocando sua harpa-de- mão, ela entrou no palco com um vestido curtinho; Sérgio usou um boné de couro no estilo dos anões da Branca de Neve; Arnaldo, um chapéu de palha caipira. 80

Após participar do festival da TV Excelsior, Os Mutantes voltaram a protagonizar outra apresentação polêmica. Em setembro de 1968, concorreram no III Festival Internacional da Canção - FIC, da TV Globo, com a canção “Caminhante Noturno ” e, ainda, acompanharam Caetano Veloso, na apresentação, também polêmica, da canção “ É Proibido Proibir” , no mesmo festival. Apesar das controvérsias e com a desistência de Caetano Veloso, o grupo foi convocado pelos organizadores do festival a disputar a semifinal, em 26 de setembro de 1986, no ginásio do Maracanãzinho, no Rio de Janeiro, fato que ampliou as polêmicas e críticas, resultando inclusive em abaixo-assinado de jornalistas, compositores e músicos participantes do evento, entre os quais estavam Geraldo Vandré e .

Não obstante os protestos, Os Mutantes prosseguiram no festival e, para a apresentação, continuaram a exibir toda a irreverência característica do trio. Numa atitude explicitamente provocativa, a escolha do vestuário era feita cuidadosamente por Rita Lee, com o intuito de “chamar a atenção” da plateia e escandalizar:

Rita tocou seus pratos de metal usando um vestido longo rosa, com um singela tiara nos cabelos; Arnaldo entrou de casaca e preta, da qual saíam duas tranças de cabelo postiço à moda indígena; Serginho também lembrava um índio, com uma fita hippie na testa, segurando seu cabelo, e um berrante casaco estampado. 81

80 CALADO, Carlos. ADivinaComédiadosMutantes . Rio de Janeiro: Editora 34, 1995. p.125. 81 Ibidem. p.125. 63

Recebidos com vaias por parte da plateia, Os Mutantes foram surpreendidos por inúmeros aplausos e até mesmo pedidos de “bis” ao final da apresentação. E conseguiram chegar à final do festival. Nessa fase, a irreverência do vestuário chegou ao “limite”:

Rita fez uma visita ao guarda-roupa da TV Globo e lá encontrou as roupas bizarras que precisava para causar o máximo de impacto. Surgiu no palco toda de branco, de véu e grinalda, com um vestido de noiva que já tinha sido usado antes pela atriz . Serginho entrou de toureiro, com a mesma fita hippie-indígena da apresentação anterior, na testa. Arnaldo foi fantasiado de arlequim, inclusive com um penacho azul na cabeça. E para completar a série de provocações, uma sacada multimídia avant lalettre : além de seus tradicionais pratos de metal, Rita também levou ao palco um gravador cassete. A idéia era responder às esperadas vaias com a gravação do polêmico discurso de Caetano, em “É Proibido Proibir”. 82

No final de 1968, Os Mutantes também protagonizaram a cena no programa tropicalista exibido na TV Tupi: “ Divino Maravilhoso ”.

Figura5ProgramadeTV“DivinoMaravilhoso”.83

82 CALADO, Carlos. ADivinaComédiadosMutantes . Rio de Janeiro: Editora 34, 1995. p.138-9. 83 Cena do programa “ Divino Maravilhoso ”, exibido pela TV Tupi, de São Paulo, em 1968. Cf.: TROPICÁLIA. Disponível em: . Projeto de Ana de Oliveira. Acesso em: 24 nov. 2010. 64

Após a prisão e o exílio de Caetano Veloso e Gilberto Gil, Os Mutantes seguiram com sua carreira independente. Viajaram para a Europa, em janeiro de 1969, para apresentação no Mercado Internacional de Discos e Editores Musicais - MIDEM, na França. Retornaram ao Brasil em março de 1969, quando participaram de campanhas publicitárias da Shell, realizaram shows e concorreram no IV Festival Internacional da Canção, da TV Globo, com a canção “Ando meio desligado ”, classificada em 2º lugar. Ainda gravaram o terceiro LP do grupo, “ A divina comédia ou ando meio desligado ”, lançado pela Polydor.

Na década de 1970, já contratados pela TV Globo, participaram do programa Exportação , e continuaram o lançamento de seus discos.

[...] ironicamente o braço que prosseguiria até mais tarde na verve tropicalista, divergindo de Caetano, Gil e Gal, [...] a discografia dos Mutantes continuou tropicalista até pelo menos 1970 (com três discos lançados) e, em nível um pouco menos ostensivo, por ainda mais quatro discos até 1972. 84

Em 31 de janeiro de 1970, Rita Lee e Arnaldo Baptista se casaram. Porém, a união, marcada por brigas, resultou em separação em 1972, quando Rita Lee rompeu também com Os Mutantes, seguindo carreira solo. Em 1973, foi Arnaldo que deixou o grupo. Contando, apenas, com Sérgio, da formação original, o grupo continuou a existir até 1978, quando foi oficialmente “encerrado”.

Considerado o responsável pela “sonoridade tropicalista”, destaca-se no movimento também a participação do maestro Rogério Duprat 85 . Filho de Délio Duprat e Olga Ronchi Duprat, nasceu em 7 de fevereiro de 1932, na cidade do Rio de Janeiro, onde permaneceu até 1935, quando sua família se mudou para a cidade de São Paulo. Pertencente à classe média, frequentou o Colégio Ipiranga de São Paulo, durante os cursos primário e ginasial.

Aos catorze anos, em razão de dificuldades financeiras, empregou-se como officeboy, ocupando, posteriormente, diversas funções para contribuir no sustento

84 SANCHES, Pedro Alexandre. Tropicalismo: decadência bonita do samba. São Paulo: Boitempo, 2000. p.71. 85 Cf.: GAÚNA, Regina. Rogério Duprat: sonoridades múltiplas. São Paulo: UNESP, 2002 (a obra resulta da Dissertação de Mestrado “Rogério Duprat: artesão e filósofo das sonoridades múltiplas”, apresentada ao Instituto de Artes da UNESP, em 2000). 65

familiar, sem, contudo, deixar os estudos e o interesse pela música. Com formação musical teórica e prática, foi aluno de músicos e regentes importantes, como: Raphael D’ Angelo - violão e violino; Olivier Toni - percepção, harmonia, contraponto e composição; e Calixto Corazza- violoncelo. Participou, junto com seu irmão Régis Duprat, da Orquestra Angelicum do Brasil , formada por 23 estudantes brasileiros e inspirada no modelo italiano, e da Orquestra de Câmara de São Paulo, que ajudou a fundar. Participou também da Orquestra Sinfônica Estadual de São Paulo, do Quarteto de Cordas da Associação Paulista de Música e da Orquestra Sinfônica Municipal de São Paulo.

Na década de 1950, casou-se com Eulalina Portella, a Lali, com quem teve três filhos: Raí, Rudá e Roatã. Ingressou na Universidade de São Paulo - USP, porém, abandonou o curso em 1952, para dedicar-se exclusivamente à música.

Durante a década de 1960, manteve ritmo de trabalho intenso no campo musical. Compôs para o teatro, o cinema e a televisão, assumiu aulas no curso de música da Universidade de Brasília, em 1964 – na qual permaneceu apenas até 1965, quando pediu demissão em protesto pela interferência das medidas autoritárias na organização universitária –, e organizou, com Damiano Cozzella, Willy Correia de Oliveira e , o movimento “ Música Nova ”, que propunha a renovação no campo musical erudito. Na metade da década de 60, desempregado, dedicou-se à produção de jingles para campanhas publicitárias e trilhas sonoras para filmes. Destacando-se como arranjador no cenário musical, recebeu vários prêmios.

Seu interesse pela renovação musical e aproximação entre música erudita e música popular favoreceu o contato com os jovens que organizariam o movimento tropicalista no final da década de 1960. Indicado pelo maestro Júlio Medaglia, aproximou-se, inicialmente, de Gilberto Gil, para produzir o arranjo da canção “Domingo no Parque ”. A parceria que se estabeleceria possibilitou a “eclosão” do movimento em busca do “som universal”:

O arranjo da canção “Domingo no Parque” pode ser considerado não apenas um marco para a música popular brasileira, mas um marco na carreira de Duprat: a inauguração de um estilo sincrético que ele adotaria, a partir de então, na maioria de seus arranjos. Ruídos, gritos e instrumentos 66

regionais somados a instrumentos elétricos e orquestrais compõem o ambiente sonoro de “Domingo no Parque”. Esse recurso de fazer coexistir elementos aparentemente disparatados, em uma mesma canção, tornou-se uma de suas marcas estilísticas como arranjador. 86

Com a contribuição de Rogério Duprat, o movimento musical tropicalista pôde desenvolver seu projeto de renovar a música brasileira, a partir da sonoridade que conseguia reunir os elementos mais diversos e aparentemente opostos. E Duprat, ao mesmo tempo que representou a possibilidade da criação musical tropicalista, por meio dos seus arranjos, também encontrou a oportunidade de realizar seu projeto de renovação, defendido desde a publicação do manifesto do grupo “ Música Nova ”, e desenvolver sua criatividade musical, marcada pela ironia, deboche e liberdade, elementos comuns da produção tropicalista.

Após a “explosão tropicalista”, a partir de 1970, embora continuasse a compor arranjos, principalmente para Os Mutantes, sobrevivia principalmente da produção de jingles publicitários. Foi sócio no estúdio de gravação Pauta, com Sá e Guarabira, entre outros. Em 1978, sob estado de depressão acentuada, em razão das dificuldades enfrentadas devido à morte quase que simultânea do irmão Rubens e de seu pai, além do agravamento da surdez, resolveu romper a sociedade, vendendo sua parte, e abandonou a atividade comercial/musical.

Considerado o “eterno tropicalista”, outro destaque no movimento foi Antônio José Santana Martins, Tom Zé 87 , atuando como compositor e intérprete. Nascido em 11 de outubro de 1936, no sertão da Bahia, na cidade de Irar, filho primogênito do segundo casamento do comerciante de tecidos Éverton Martins e da dona de casa Helena Santana, teve seis irmãos. Ainda adolescente, Tom Zé já manifestava interesse em produzir música fora do modelo convencional. Sobre seu processo de criação, explicou:

86 GAÚNA, Regina. RogérioDuprat: sonoridades múltiplas. São Paulo: UNESP, 2002. p.94. 87 A biografia e trajetória musical de Tom Zé pode ser consultada na obra autobiográfica: TOM ZÉ. Tropicalista lenta luta . São Paulo: Publifolha, 2003. Também nos documentários: GALLO, Carla (roteiro e direção). Tom Zé, ou quem irá colocar uma dinamite na cabeça do século? Documentário. São Paulo: Net Filmes/ Quanta, 2000. MATOS JÚNIOR, Décio (direção). Fabricando TomZé . Documentário. São Paulo: Goiabada Productions, Spectra Mídia, Muiraquitã Filmes e Primo Filmes, 2006. FARO, Fernando (direção). ProgramaEnsaio – Tom Zé. São Paulo: TV Cultura, 1991. Vale ainda acessar o site , além das obras que apresentam a Tropicália, citadas ao longo do texto. 67

Eu já tinha noção de como me aproximar do que queria, produzindo algo contável com outra matéria que excluísse e burlasse o Corpo-Cancional. Não era preciso propriamente “cantar”: era uma narrativa de versos crus, sem a retórica poética do referido Corpo-Cancional, para não dar ao ouvinte a impressão de que escutava um cantor. O assunto, o barro que usava, eram elementos presentes, que nos rodeavam: um espelho. [...] Cada trecho da cantiga obtido parecia não existir em substância. Como mostrar aquilo a alguém? Tinha medo de que o ouvinte não “ouvisse”. Não compartilhasse o encadeamento racional, ou quase racional. É difícil explicar convenientemente, mas quando tratava o espaço, esmagava o tempo. E se de tempo cuidava, vertia espaço. 88

A música representava o prazer, satisfazia o gosto pela criação, era uma forma de fugir do tédio da vida pacata de cidade pequena. A partir do processo de criação do novo “corpo-cancional”, fez sua estreia musical na televisão em 1960, num show de calouros denominado Escada para o Sucesso, apresentando a canção de sua autoria “Rampa para o Fracasso” . A estreia já evidenciava o seu comportamento irreverente e criativo, que “emprestaria” ao movimento tropicalista:

[...] - “Como é o nome de sua música”, perguntou o apresentador, logo depois de apresentar o calouro Antônio José. - “Rampa para o fracasso ...” - “O quê? Tá bulindo com o meu programa?”, duvidou ainda o apresentador, antes de cair na risada. O sucesso foi imediato. Além da provocação bem-humorada do título Tom Zé tinha começado a explorar uma nova forma de compor. Como não achava nenhuma de suas músicas muito apropriadas para aquela ocasião, resolveu fazer uma especial. Pegou todos os jornais daquela semana, espalhou-os pelo quarto e acabou compondo uma canção com as manchetes mais chamativas, unidas numa espécie de colagem. 89

A partir do sucesso obtido com a apresentação, Tom Zé tornou-se figura conhecida e passou a participar com frequência de programas de televisão na Bahia, durante a década de 1960. Nesse momento, aproximou-se do movimento estudantil, por intermédio do CPC da UNE, atuando na direção do Departamento de Música:

88 TOM ZÉ. Tropicalistalentaluta . São Paulo: Publifolha, 2003. p.25. 89 CALADO, Carlos. Tropicália: a história de uma revolução musical. São Paulo: Editora 34, 1997. p.38. 68

Graças a Nemésio Salles, fui contratado por trinta cruzeiros mensais para trabalhar com o poeta José Carlos Capinam e dirigir o Departamento de Música do CPC. (Os CPCs eram os Centros Populares de Cultura, núcleos de atividade artística organizados pela classe universitária de esquerda). Capinam, Emanoel Araújo, Geraldo Fidélis Sarno, eu e muitos amigos fazíamos uma pluralidade de tarefas: cantávamos nas escolas, nos sindicatos, nas festas da cidade de Salvador. Lembro-me de que numa greve dos bancários moramos no sindicato da classe por três semanas. Para motivar a vigília da paralisação, compusemos músicas com as reivindicações; eram cantadas nas passeatas. Fazíamos shows diários, à tarde e à noite. Com bonecos de Emanoel Araújo, FidélisSarno e Capinam escreveram uma peça de teatro de títeres que, musicada por mim, representávamos no sindicato e em qualquer lugar em o que o movimento atuasse. 90

Em razão das apresentações nos programas de televisão e da atuação no meio universitário, Tom Zé, no início dos anos 60, já era figura conhecida no cenário cultural de Salvador. Nesse contexto, conheceu Caetano Veloso, com quem desenvolveria o projeto de renovação musical, a partir de 1967.

Em 1962, foi classificado em primeiro lugar nos exames vestibulares e ingressou na Escola de Música da Universidade Federal da Bahia - UFBA, que oferecia um curso inovador, sendo marcante na trajetória musical de Tom Zé:

Na escola o estudo de cada estilo era exigido e observado com rigor. Mas quando nós, alunos, entregávamos a Koellreutter ou a Ernst Widmer um exercício de composição, eles pouco estavam se lixando se o trabalho era realizado em linguagem dodecafônica, contraponto clássico à Palestrina ou qualquer outra opção. O que lhes interessava era a linha assintótica entre técnica e imaginação. [...] Era como se dissessem: “Nós ensinamos técnicas. Mas não façam delas correntes e grilhões”. [...] Pode- se dizer que nossa escola era um experimento de desculturação. [...] Falo também em contracultura porque o prof. Koellreutter só aceitou ir para a Bahia com a liberdade de ignorar completamente o currículo oficial do ensino de música do Ministério da Educação, independência que praticou com cuidado e perseverança. Tanto que, quando os alcançamos, nossos diplomas oficialmente não valiam nada, mas todas as escolas do Brasil lutavam para nos contratar [...]. 91

90 CALADO, Carlos. Tropicália: a história de uma revolução musical. São Paulo: Editora 34, 1997. p.49. 91 TOM ZÉ. Tropicalistalentaluta . São Paulo: Publifolha, 2003. p.51. 69

Tom Zé vivenciou a denominada “Era Edgard Santos”, um período de intensa agitação cultural na Bahia, promovida pelas inovações implementadas pelo reitor, como a criação das escolas de Música, Teatro e Dança. Na Universidade realizou diversos cursos: História da Música, Violoncelo, Composição, Contraponto, Harmonia, Estruturação, Piano e Violão. E, em 1964, recebeu uma bolsa de estudos para o Curso Superior da Escola de Música da Universidade, como prêmio pelo primeiro lugar obtido nos exames finais do curso Intermediário.

No ano de 1965, em São Paulo, participou, juntamente com Caetano Veloso, Gilberto Gil e Gal Costa, do espetáculo Arena Canta Bahia , dirigido por Augusto Boal:

Foi em 65, quando Boal compunha com Caetano e Gil Arena Canta Bahia . Augusto Boal passara seis meses no sertão da Bahia com Roberto Santana, recolhendo material folclórico. Usando-o na composição, os três primeiros armavam pequenos quadros de costumes nordestinos e o enredo de uma sucinta biografia de Lampião. De vez em quando, no costurar do tecido, faltava uma ligação para unir dois blocos daquela colcha de retalhos. “Que pena! Puxa vida! Estava ficando tão bom... Mas não dá” etc. Eu intervinha: “Creio que conheço uma estrofe de cantiga de roda que faria bem essa ligação. Vou ver se me lembro”. Ia pra casa, fazia a “cantiga de folclore”, no outro dia chegava no ensaio e dizia, bem casual: “Ah, sabe aquela ligação? Me lembrei dos versos”. A estrofe dava certinha no elo faltante. Todo mundo comemorava e eu dizia: “Puxa, é mesmo, dá na medida!” Eles nunca desconfiaram que aquele “folclore baiano” fora feito no quarto do hotel em São Paulo. Pelo menos nunca deixaram transparecer. Naturalmente, eu tinha dez anos na prática de parecer ausente de minhas composições. 92

Em 1966, ajudou a fundar o Grupo de Compositores da Bahia, de música erudita, e com este participou do concerto realizado pela Orquestra Sinfônica da UFBA. Em 1967, prestou os exames finais para o exercício do Magistério; aprovado, ensinou contraponto e harmonia na Escola de Música da UFBA. Participou ainda como violoncelista da Orquestra Sinfônica e da Orquestra de Estudantes da mesma

92 TOM ZÉ. Tropicalistalentaluta . São Paulo: Publifolha, 2003. p.31. 70

Universidade. Mas, apesar do envolvimento com tais projetos, percebia que para consolidar sua carreira seria preciso percorrer o caminho que alguns de seus amigos já haviam trilhado. Seria preciso deixar a Bahia e ampliar os contatos e, consequentemente, as oportunidades:

[...] “Tom Zé, aqui você só fica se aborrecendo. Em São Paulo, você também pode se aborrecer, mas pelo menos pode acontecer alguma coisa com você”. Foi um argumento decisivo. Num encontro casual com Tom Zé, em Salvador, Caetano conseguiu finalmente convencer o amigo a pensar na possibilidade de tentar a sorte em São Paulo. Desgostoso, enfrentando desentendimentos na Escola de Música da Bahia, Tom Zé resolveu acompanhar Caetano, para sentir melhor o ambiente da metrópole paulista, antes de decidir. Além disso, teria também a chance de acompanhar pessoalmente Moreninha, uma antiga canção que inscrevera no festival da TV Record, seguindo um conselho de Gilberto Gil, e que fora classificada para a eliminatória. 93

Já em São Paulo, em 1967, participou do III Festival de Música Brasileira da TV Record, com a canção “A Moreninha” . Apesar das expectativas, a experiência em São Paulo o fez pensar em dedicar-se apenas à música erudita, pois percebia como suas canções eram distintas das demais. Mas foi convencido a mudar de ideia pelo empresário Guilherme Araújo.

Em 9 de dezembro de 1968, apresentou no IV Festival de Música Popular Brasileira da TV Record a canção “ São, São Paulo, meu amor ”, acompanhado pelo grupo de rock Os Brazões e pelo quarteto de vocalistas Canta Quatro , obtendo os seguintes prêmios: “Viola de Ouro” e “Sabiá de Prata”. A canção foi vencedora na votação do júri especial e quinta colocada na votação popular. No mesmo festival, classificou em 4º lugar a canção “ 2001 ”, composta em parceria com Rita Lee e interpretada pel’Os Mutantes.

93 TOM ZÉ. Tropicalistalentaluta . São Paulo: Publifolha, 2003. p.138. 71

Figura6TomZé“São,SãoPaulo,MeuAmor”.94

Apesar do sucesso, a vitória no festival não projetou Tom Zé como um novo ídolo da música popular brasileira. Mesmo com destaque na imprensa, era apresentado como um jovem humilde, de hábitos simples e assustado com a fama repentina:

Se deixassem por conta dele, ficaria a vida inteira com a mesma roupa. Com os sapatos esporte pretos, por exemplo que ele tira e põe sem parar durante uma conversa. As solas já estão gastas e há uma ameaça de furo no pé direito. Calça, também, só tem esta que está usando agora. A mesma calça cinza de mescla, com frisos laterais, que usou em todos os programas de televisão, em todos os festivais, em todas as visitas. O resto, Caetano empresta ou Guilherme Araújo, seu empresário, arranja na última hora. [...] A cidade está apaixonada por esse baiano de 29 anos de idade, nem alto, nem baixo, nem magro, nem gordo, nem bonito, nem feio. Um baiano pequeno, franzino, asmático e sumido como personagem dos romances de Marcel Proust , o escritor francês. 95

94 Tom Zé na comemoração pela vitória da canção “ São, São Paulo, Meu Amor ”, no IV Festival da Música Popular Brasileira, da TV Record, em São Paulo, em 1968. JORNAL DA TARDE. São Paulo, 10 dez. 1968. p.30. 95 MÁRCIO, Flávio . A história de um novo ídolo - Tom Zé. JornaldaTarde . São Paulo, 21 dez. 1968. p.4. Matéria de página inteira sobre Tom Zé, após vencer o festival da TV Record, com a canção “São, São Paulo, Meu Amor ”. p.4. 72

Na reportagem de página inteira do Jornal da Tarde, Tom Zé evidenciava a heterogeneidade do grupo tropicalista:

Com os tropicalistas, tenho em comum surpreender a realidade quando ela se contradiz. Mas tanto o processo de chegar a isso, quanto à forma e à linguagem de dizer isso, são secularmente diferentes. Porque eu sou uma coisa que em artes plásticas se poderia chamar de primitivista – de direito, de intuitivo – enquanto Caetano é chocante e Gil é sutil, embora essas três palavras não definam definitivamente os caminhos de cada um de nós. 96

Se a premiação no IV Festival da TV Record não tornou Tom Zé um “ídolo musical”, também não mudou sua situação financeira. Na mesma reportagem, era descrito como um jovem pobre que enfrentava dificuldades para se sustentar em São Paulo e sobreviver da música:

Mora em um quarto de pensão na Bela Cintra. A pensão do Sr. Curtiss, um alemão. Um quarto de fundos, com entrada independente: melhor, assim não precisa andar nas pontas dos pés à noite, quando chega. Móveis escuros e velhos, no mau sentido. A estante, a mesinha, uma cômoda, a cima – dentro do guarda-roupa, nenhuma calça. [...] Paga NCr$ 240,00 de pensão por mês, com direito a almoço – e está sempre lá, na mesma hora, pra não perder. Sem exagero: podia faltar dinheiro mesmo e ele ficar sem comida. 97

A reportagem, apesar de enfatizar a vitória e seus desdobramentos profissionais, ressaltava a “surpresa” da premiação:

Tomzé [ sic ] cresceu demais, de uma hora para outra. Agora tem até esse primeiro lugar no festival, esse show no Teatro de Arena, todo esse amor da cidade. Tem auditórios que o aplaudem de pé, pessoas que o reconhecem e gritam seu nome na rua, convites que enchem de dinheiro o bolso da única calça, críticos que chamam seus versos de obras-primas, jornais que publicam uma página inteira sobre ele. Tem até

96 MÁRCIO, Flávio . A história de um novo ídolo - Tom Zé. JornaldaTarde . São Paulo, 21 dez. 1968. p.4 (comentário de Tom Zé). 97 Ibidem. p.4. 73

mesmo a esperança de trazer logo Ieda e Ewerton [respectivamente esposa e filho] para São Paulo. Mas o rosto é o de um homem assustado, como se ele tivesse sido acordado por uma explosão no meio do sono e ainda não soubesse o que fazer para escapar. Por enquanto, está aqui no seu quarto de fundos, abraçado ao violão. 98

No álbum “ Tropicália ou Panis et Circencis” , a participação foi limitada, com a inclusão de sua canção “ Parque Industrial ”, interpretada por Gilberto Gil, Gal Costa, Caetano Veloso e Os Mutantes.

Em 1969, estreou o espetáculo O Som Livre , de Tom Zé e Gal Costa, no Teatro de Arena de São Paulo e no Teatro de Bolso do Rio de Janeiro. Em 1970, gravou o seu segundo LP,“ Tom Zé ”, produzido pela gravadora RGE Discos:

Tom Zé não tinha apelo de massa no início dos anos 70, mas continuou a conquistar a aprovação de outros artistas e críticos no Brasil. Ele exerceu um impacto sobre jovens músicos como Itamar Assumpção, Arrigo Barnabé e Walter Franco, que se identificavam com uma vanguarda paulista nos anos 70 e 80. 99

Durante a década de 1970, manteve-se ativo no cenário musical. Em 1971, fundou em São Paulo a Escola Popular “ Sofisti - Balacobaco - muito som e pouco papo” , que mantinha uma diversidade de cursos. Entre 1972 e 1973, gravou mais dois LP´s: “ Tom Zé ” e “ Tom Zé - Todos os Olhos ”, ambos produzidos pela gravadora Continental. Em 1974, estreou o show com Grupo Capote, no Teatro de Arena, em São Paulo. No ano seguinte, participou como ator e cantor da peça musical Rocky Horror Show , dirigida por Rubens Correia, no Teatro da Praia, no Rio de Janeiro.

Em 1976, gravou o LP “ Estudando o samba ”, pela gravadora Continental. E estreou, com Vicente Barreto, o show com o mesmo título, no , que foi levado também para diversas faculdades de São Paulo e de outras cidades. Em 1977, trabalhou na DPZ, agência de publicidade, ao lado de Washington Olivetto. Em 1978, gravou o LP “ Correio da Estação do Brás ”, pela Continental, e estreou o show homônimo, no Teatro da Fundação Getúlio Vargas, no qual apresentou seus

98 MÁRCIO, Flávio . A história de um novo ídolo - Tom Zé. JornaldaTarde . São Paulo, 21 dez. 1968. p.4. 99 DUNN, Christopher. Brutalidade Jardim : a Tropicália e o surgimento da contracultura brasileira. São Paulo: Editora da UNESP, 2009. p.225. 74

instrumentos experimentais, os quais idealizara e confeccionara sozinho, incorporando eletrodomésticos, além de instrumentos como serrotes:

Tom Zé realizou uma significativa contribuição para dissolver as barreiras entre a música erudita e popular. Tal qual o instrumentista brasileiro , Tom Zé é um inventor de sons que experimentou incansavelmente e muitas vezes de forma lúdica com uma ampla variedade de materiais naturais e mecânicos da vida cotidiana. Recorrendo ao que aprendeu na Universidade da Bahia com o músico e inventor suíço , ele começou a criar os próprios instrumentos nos anos 70. [...] Um desses instrumentos, o HertZé, era uma versão primitiva e análoga do que mais tarde viria a ser chamado de sampler. Envolvia uma série de gravações de diferentes freqüências de rádio conectadas a um painel de botões. Cada botão acessava uma gravação diferente, permitindo que o instrumentalista produzisse breves explosões de sons aleatórios de várias gravações.[...] O equipamento foi acidentalmente destruído no final dos anos 70, mas reconstruído no final da década de 1990. 100

Também em 1978, apresentou-se no Teatro Municipal com os instrumentos experimentais. O espetáculo foi gravado pela TV Cultura de São Paulo. A partir desse momento, passou por um período de “silêncio”. Deixou de produzir, passando a ser literalmente “figura ausente” no cenário musical. Tom Zé atribuiu a situação vivida às suas experiências musicais, não compreendidas pelo público e, portanto, não interessantes ao mercado fonográfico. Ressaltando a definição de “ eterno tropicalista ”, afirmou:

[...] percebo hoje que fiquei no ostracismo por conta própria, eu solapei a mim mesmo. Não foi culpa de Caetano nem de Gil. Eles seguiram um caminho e eu me mantive na minha teimosia. Continuei fazendo a mesma coisa depois que o Tropicalismo foi embora. 101

100 DUNN, Christopher. BrutalidadeJardim : a Tropicália e o surgimento da contracultura brasileira. São Paulo: Editora da UNESP, 2009. p.226. 101 Depoimento de Tom Zé, em entrevista concedida a Luiz Antonio Giron. Cf.: GAZETA MERCANTIL. 22 dez. 2000. Apud: BEZERRA FILHO, Feliciano José. AescrituradeTorquatoNeto . São Paulo: Publisher Brasil, 2004. p.122. 75

Entre os letristas do movimento musical tropicalista, destacou-se também José Carlos Capinam 102 . Nascido em 1941, na cidade de Esplanada, no interior da Bahia. Poeta desde a adolescência, filho da classe média, ingressou nos cursos de Direito e Teatro da UFBA, na década de 1960, quando conheceu Caetano Veloso e Gilberto Gil.

Considerado politizado e envolvido com o movimento estudantil, participou ativamente das atividades do CPC, junto com Tom Zé. E, em 1963, estreou sua primeira peça: “ Bumba meu boi ”. Mudou-se para São Paulo em 1964, empregando- se como redator publicitário na agência Alcântara Machado, onde conheceu Geraldo Vandré, com quem firmou parcerias, além de Gianfrancesco Guarnieri e Augusto Boal.

Em 1967 venceu o III Festival da Música Popular Brasileira da TV Record, com a canção “ Ponteio ”, composta em parceria com Edu Lobo. No ano seguinte, participou do disco-manifesto “ Tropicália ou Panis et Circencis ”, com a canção “Miserere Nobis ”, em parceria com Gilberto Gil. No mesmo ano, participou ainda do disco de Caetano Veloso, com as canções “ Clarice ”, em parceria com Caetano, e “Soy loco por ti América”, em parceira com Gilberto Gil.

A partir da década de 1970, seus principais parceiros musicais foram Jards Macalé, Geraldo Azevedo, Moraes Moreira e Tom Zé. Foi coeditor da revista Anima e, em 1976, publicou seus poemas na Antologia “ 26 poetas hoje ”, além do livro “Ciclo de Navegação Bahia e gente ”. 103

Como intérprete do movimento tropicalista, destacou-se ainda Nara Lofego Leão, a Nara Leão 104 . Nascida em 19 de janeiro de 1942, em Vitória, no Espírito Santos. Filha caçula de Jairo Leão e Altina Lofego Leão. Mudou-se para o Rio de Janeiro com apenas um ano de idade, em 1943. Desde a infância teve aulas de

102 Figura ainda pouco estudada nos meios acadêmicos, falta bibliografia que amplie a análise sobre sua biografia e participação no movimento tropicalista. As referências são encontradas apenas nas obras que tratam do movimento tropicalista, porém com pouca ênfase. Sua biografia – bastante limitada – pode ser consultada em: ALBIN, Ricardo Cravo (criação e supervisão geral). Dicionário HouaissIlustrado - Música Popular Brasileira. Rio de Janeiro: Paracatu, 2006. 103 Cf.: COELHO, Frederico. Biografias: artistas da Tropicália. In: BASUALDO, Carlos (Org.). Tropicália: uma revolução na cultura brasileira. São Paulo: Cosac Naify, 2007. p.321-2. 104 A biografia de Nara Leão consta nas seguintes obras: CABRAL, Sérgio. NaraLeão: uma biografia. Rio de Janeiro: Companhia Editora Nacional, 2008. CASTRO, Ruy. Chegadesaudade: História e Histórias da Bossa Nova. São Paulo: Companhia das Letras, 2001. DOMENICO, Guga. Breve HistóriadaBossaNova . Rio de Janeiro: Saber de Tudo, 2008. MELLO, Zuza Homem de. Eisaqui osBossaNova . Rio de Janeiro: WMF, 2008. 76

violão. Aos catorze anos, em 1956, resolveu estudar violão na Academia de Carlos Lyra e Roberto Menescal, onde mais tarde lecionou.

Em seu apartamento em Copacabana, no Rio de Janeiro, reuniam-se diversos músicos, compositores, jornalistas e intelectuais. Foi durante essas reuniões que nasceu a Bossa Nova, no final dos anos 50: “[...] Foi muito bom ver que aquela nossa brincadeirinha na casa da Nara – porque a Bossa Nova começou na casa da Nara mesmo, e não tivesse a casa da Nara não teria havido essa junção de tanta gente talentosa.” 105

Durante a década de 1960, reaproximou-se de Carlos Lyra e, já afastada do movimento Bossa Nova, passou a interessar-se pelo samba de morro. Sobre a mudança, argumentou-se que o afastamento teria ocorrido por motivos “prosaicos”. Fato ou não, o importante é destacar que a aproximação de Nara Leão de compositores como: Cartola, Zé Kéti e Nélson Cavaquinho deu início a uma nova fase na produção da Bossa Nova:

A Nara largou a Bossa Nova porque ela brigou com o Ronaldo Bôscoli, o namorado dela, e o Ronaldo sintetiza o movimento da Bossa Nova, era uma coisa pela qual ele lutava. Então a primeira coisa que ela fez para se vingar do Ronaldo foi mudar de turma. E é engraçado que ela achou essa turma e trouxe essa mudança a partir de uma briga com o namorado. Ela descobriu uma outra faceta da Música Popular Brasileira – ou criou, ajudou a criar essa faceta. 106

Sua estreia profissional ocorreu em 1963, com Vinícius de Moraes e Carlos Lyra, protagonizando o espetáculo “ Pobre menina rica ”. E, em 1964, gravou seu primeiro LP, “ Nara ”107 , que já indicava a “fusão” dos elementos bossanovistas com o “samba de morro”:

105 MENESCAL, Roberto. A renovação estética da Bossa Nova. In: DUARTE , Paulo Sérgio; NAVES, Santuza Cambraia (Orgs.). Do sambacanção à Tropicália . Rio de Janeiro: RelumeDumará/ FAPERJ, 2003. p.62. 106 Ibidem. p.56. 107 Seu LP de estreia, produzido em 1964 por Aloysio de Oliveira para o selo Elenco, misturava canções de autores ligados à bossa nova com como “Diz que fui por aí” (Zé Kéti e H. Rocha), “O sol nascerá” (Cartola e Elton Medeiros) e “Luz negra” ( e Irahy Barros). Os arranjos orquestrais são todos do maestro Lindolfo Gaya – com exceção do que o maestro Moacyr Santos fez para “Nanã” (M. Santos e ) –, um disco que capta com clareza o período de transição na MPB. Cf.: MIGUEL, Antonio Carlos. GuiadeMPBemCD: uma discoteca básica da Música Popular Brasileira. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2000. p.208. 77

Curiosamente, o primeiro disco de Nara foi muito criticado pelo pessoal da bossa nova, como se ela tivesse tomado uma posição contrária à bossa nova. Ela, que havia sido chamada a musa da bossa nova (informação que ela repelia com veemência), fez um disco com músicas de Cartola, Nelson Cavaquinho e Zé Kéti, que nada tinham a ver com a Bossa Nova. Segundo esses críticos, ela teria preferido o outro lado. Hoje, ouvindo o disco e analisando a participação da Nara, a gente vê que não foi nada disso. Nara realmente estava dando um passo adiante, escrevendo o capítulo seguinte à bossa nova. 108

Apesar das críticas, ainda em 1964, lançou seu segundo LP, “ Opinião de Nara ”, que inspirou o espetáculo “ Opinião ”, que estreou em 11 de dezembro de 1964, no Rio de Janeiro. O show era protagonizado por Nara, Zé Keti e João do Vale. Considerado marco da produção cultural pós-64, o espetáculo reunia música, dramaturgia e “protesto”, evidenciando ainda as influências do Manifesto do CPC da UNE e o clima de mobilização de artistas e intelectuais. A proposta era utilizar a arte para fazer denúncia, provocar reflexão e a tomada de consciência. Apesar da intenção, o público atingido pelo espetáculo era restrito – estudantes, artistas e intelectuais:

[...] Voz – Você vai fazer um disco cantando baião, Nara? Nara Leão – Vou. Voz – Baião, Nara? Nara Leão – (Começa de novo a aprender com João. Um tempo). É. Voz – Nara, Baião? Nara Leão – É. Baião. Voz – Nara! Nara Leão – Por quê? A constituição não permite cantar baião? Voz – Nara. Você é bossa nova. Tem voz de Copacabana, jeito de Copacabana. [...] Voz – O dinheiro do disco você vai distribuir entre os pobres, é? Nara Leão – Ah, não me picota a paciência. Voz – Você pensa que música é Cruz Vermelha, é? Nara Leão – Não. Música é pra cantar. Cantar o que a gente acha que deve cantar. Com o jeito que tiver, com a letra que for. Aquilo que a gente sente, canta.

108 CABRAL, Sérgio. A figura de Nara Leão. In: DUARTE, Paulo Sérgio; NAVES, Santuza Cambraia (Orgs.). DosambacançãoàTropicália . Rio de Janeiro: RelumeDumará/ FAPERJ, 2003. p.63. 78

Voz – Você não sente nada disso, Nara, deixa de frescura. Você tem uma mesa de cabeceira de mármore que custou 180 contos, Nara. Você já viu um lavrador, Nara? [...] 109

Intérprete requisitada, participou dos festivais de música. Em 1966, interpretou a canção “ A Banda ”, de Chico Buarque, no II Festival da Música Popular Brasileira, da TV Record, dividindo o primeiro prêmio com “ Disparada” , de Geraldo Vandré e Théo de Barros, interpretada por . Em 1967, interpretou a canção “ A Estrada e o Violeiro ”, juntamente com o autor, Sidney Miller, no III Festival de Música Popular Brasileira, da TV Record. A canção recebeu o prêmio de melhor letra do festival:

A Nara continuou inovando sempre. Se vocês pegarem um por um os discos dela, verão que ela está lançando gente o tempo todo. Ela foi o primeiro nome conhecido a reconhecer Chico Buarque de Holanda, lançou, praticamente consagrou Sidnei Miller, que foi extraordinário compositor. E a Nara tinha uma sensibilidade para ver as coisas. 110

No final da década de 60, aderiu ao movimento tropicalista. Participou do disco-manifesto “ Tropicália ou Panis et Circencis” , interpretando a canção “Lindonéia ”, de Caetano Veloso.

Foi casada duas vezes, primeiro com e depois com Cacá Diegues, com quem teve dois filhos – Isabel e Francisco. No final da década de 1960, mudou-se para Paris, onde permaneceu por dois anos. Quando retornou ao Brasil, no início dos anos 70, foi estudar Psicologia na Pontifícia Universidade Católica - PUC do Rio de Janeiro, fase marcada pela desaceleração da atividade musical. No final da década, descobriu um tumor cerebral inoperável. Conviveu com a doença até 1989, quando faleceu, em 7 de junho, aos 47 anos.

Na análise da trajetória dos participantes do movimento tropicalista, percebe- se que eram representantes da classe média, moradores dos centros urbanos, com exceção de Caetano Veloso, Gilberto Gil, Capinam e Tom Zé, que passaram a infância em cidades interioranas, porém, já na adolescência transferiram-se para a

109 COSTA, Iná Camargo. AhoradoteatroépiconoBrasil . São Paulo: Graal, 1996. p.104. 110 CABRAL, Sérgio. A figura de Nara Leão. In: DUARTE, Paulo Sérgio; NAVES, Santuza Cambraia (Orgs.). DosambacançãoàTropicália . Rio de Janeiro: RelumeDumará/ FAPERJ, 2003. p.66. 79

capital – Salvador. O grupo, originalmente denominado “baiano”, pela presença de Caetano, Gil, Gal Costa, Tom Zé e Capinam, desfrutou a efervescência cultural na Bahia, no final dos anos 50 e início dos anos 60.

Grupo eclético no que se refere às influências musicais, todos os participantes tiveram como referência a Bossa Nova, entre outros gêneros, mas reuniram o folclore do cancioneiro popular, a música erudita e o rock internacional. Compartilhavam o interesse pela renovação do cenário musical, embora com propostas distintas. Coube a Caetano Veloso desempenhar o papel de “teórico” do movimento, justificando e explicando a proposta tropicalista, por meio de inúmeras entrevistas e debates promovidos na época e mesmo depois. A busca do “som universal”, mediante a pesquisa e a mistura de vários gêneros musicais, coube a Gilberto Gil. O desenvolvimento de uma nova sonoridade e o experimentalismo coube, respectivamente, ao maestro Rogério Duprat, Os Mutantes e Tom Zé. E entre os intérpretes do movimento destacam-se Gal Costa – a principal intérprete – e Nara Leão.

O movimento tropicalista retomou os propósitos modernistas, ao propor a reinterpretação da cultura brasileira. Inseridos na indústria cultural, não recusavam o apelo comercial, pelo contrário, propunham utilizar os avanços tecnológicos e os meios de comunicação disponíveis, principalmente a televisão, para deflagrar e divulgar o movimento. Utilizavam o marketing e a imagem, lançando mão de performances e vestuário específicos para “explicar” suas propostas.

Embora não homogêneo, o grupo tropicalista, sintonizado com seu próprio tempo, assumiu a postura de vanguarda ao defender a retomada da “linha evolutiva”, comprometendo-se a reelaborar as tradições sem propor rupturas, mas sim a atualização e a reinvenção do cenário musical. Propôs a discussão sobre o Brasil e a brasilidade e o desafio da construção da identidade brasileira, assumindo o subdesenvolvimento, mas rejeitando a condição de inferioridade, inclusive cultural. Rejeitou ainda o autoritarismo e o “patrulhamento” da produção cultural. Contribuiu para ampliar o debate sobre o papel da arte e do artista na sociedade brasileira e as posições ideológicas – tanto de esquerda como de direita –, favorecendo, portanto, a reflexão sobre o Brasil. Por meio da “cena tropicalista”, buscava “escandalizar e chocar” a plateia. Objetivo atingido e que será apresentado a seguir.

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1.3 - CENA TROPICALISTA: AS APRESENTAÇÕES

Em meio às discussões provocadas pela proposta do CPC da UNE acerca da valorização dos temas sociais, defesa da tradição, busca da identidade brasileira e repúdio às influências estrangeiras, a Tropicália, identificada com a música denominada “universal”, adotou a estratégia do choque e provocou polêmica para ampliar o debate sobre os caminhos da Música Popular Brasileira. A atitude provocativa estava incorporada ao movimento como um dos seus elementos básicos, representada nas letras das canções, nos arranjos musicais e, principalmente, nas performances, no vestuário e no gestual exibidos nos palcos.

As apresentações “misturavam” instrumentos tradicionais e nacionais, como o berimbau, presente na canção “ Domingo no Parque” , com instrumentos elétricos, como a guitarra e o contrabaixo, característicos d’Os Mutantes. Antes mesmo da estreia no III Festival de Música Popular Brasileira, da TV Record, em 1967:

[...] Domingo no Parque vai ser acompanhada, hoje, pelos Mutantes, conjunto de iê-iê-iê, e seu autor, justifica o fato afirmando que qualquer ritmo é válido. Não posso ter preconceito contra as coisas que representam a realidade do mundo em que vivo. [...] Daí, se explica, talvez porque acho que cabe uma guitarra elétrica na minha música, da mesma forma que caberia um cello ou uma trompa. 111

[...] Baseando-se ainda na teoria do arrepio, “Domingo no Parque” é outro acontecimento no festival. Esta, sim, um música mais inovadora, e lindíssima. É claro que com “Domingo no Parque” não é um amor à primeira vista: é preciso ouvir a música mais de uma vez para se gostar dela. Gilberto Gil e Rogério Duprat (o arranjador) foram muito rebuscados, quase preciosistas; e não se pode esquecer que estamos num festival de música popular, onde se conta muito o elemento comunicabilidade. Mas depois de ouvir a música algumas vezes, a gente realmente se apaixona por ela. [...] 112

Concorrendo no mesmo festival, a canção “ Alegria, alegria ”, de Caetano Veloso, apresentada por ele, acompanhado pelo grupo argentino de iê-iê-iê Beat

111 FOLHA DE SÃO PAULO. 2º Caderno, p. 3. São Paulo, 6 out. 1967. 112 FOLHA DE SÃO PAULO. 2º Caderno, p. 3. São Paulo, 20 out. 1967. 81

Boys, também provocou polêmica, inaugurando um período de inúmeras discussões no cenário musical:

“Alegria, alegria”, de Caetano Veloso, vai ser apresentada com os Beat Boys. A música só poderia ser interpretada por eles ou por outro conjunto de iê-iê-iê. Sem preconceitos, “sem lenço e sem documentos”, como Caetano diz na sua “Alegria”. Caminhando pelas ruas, pelo Brasil, pelo mundo. Daí as guitarras elétricas, os cabeludos. É o mesmo som da música universal, de todo o mundo. 113

Com a proposta deliberada de polemizar e acirrar o debate sobre a produção musical brasileira, as apresentações de Caetano Veloso e Gilberto Gil buscavam desafiar as posições consideradas mais conservadoras e romper com os “limites” impostos para a criação artística. Elas inseriram no cenário musical os elementos que seriam caracterizados – principalmente pela imprensa – como tropicalistas, a partir de 1967, com novos temas, instrumentos e performances:

Caetano, que acredita no sucesso da sua música, disse que espera muitas vaias da “linha-dura”. “Mas quem não leva vaia não respondeu presente no festival” – afirmou o compositor – sua música vai ser também acompanhada por um conjunto de cabeludos – os Beat Boys, rapazes que tocam de maneira estranha: não se movimentam nem um segundo durante a apresentação, apesar da música ser bem ritmada. Além disso vão se apresentar com túnicas roxas. O órgão elétrico que o conjunto vai usar foi emprestado por Erasmo Carlos.114

A repercussão das apresentações foi imediata. Com espaço amplo na imprensa, que se ocupou com a proposta tropicalista desde as primeiras exibições, em 1967, destacava a influência estrangeira, a partir da incorporação dos instrumentos elétricos, e chamava a atenção para uma nova fase da Música Popular Brasileira. O tropicalismo inaugurava o “ pop ” no cenário nacional.

113 Guilherme Araújo, empresário dos Tropicalistas”. Cf.: FOLHA DE SÃO PAULO. 2º Caderno, p. 3. São Paulo, 12. out. 1967. 114 FOLHA DE SÃO PAULO. 2º Caderno, p. 3. São Paulo, 14 out. 1967. 82

Apesar do amplo destaque na imprensa, as opiniões dividiam-se em favoráveis e contrárias ao movimento. Enaltecendo a canção “ Domingo no Parque ”, parte da imprensa ressaltava a renovação e importância para o cenário musical que as composições de Gil e Caetano representavam:

De repente, em outubro do ano passado, a música popular brasileira abandonou a fossa e o folclore, e começou, como queria Oswald de Andrade, a “ver com olhos livres”. Era “Alegria, alegria”, de Caetano Veloso com o seu mundo de bancas de revistas: crimes, espaçonaves, guerrilhas, Cardinales, caras de presidentes, beijos, pernas, bandeiras, bomba ou Brigitte Bardot. Reconhecendo as afinidades entre sua poesia e esses “substantivos-estilhaços da implosão informativa moderna”, o poeta Augusto de Campos passou a saudar Caetano, Gil e Cia., como irmãos de todos os concretos, numa série de artigos pelos jornais e num livro recente, “Balanço da Bossa”. 115

Considerada por alguns como canção sintonizada com os “novos tempos”, a proposta tropicalista também foi adjetivada como atual, “universal”. Parte da imprensa demonstrou bastante simpatia pelo movimento, apresentando-o como inovador e defendendo a nova proposta:

O lirismo do século XX é eletrônico. O realejo e os cantadores – coitados, tão bonitos – ficam de presente para a história, sem lugar num festival descontraído de pretensões piegas, onde garotos eletricistas fazem poesia do futuro, mascando chiclete e com jeito de que não quer nada, rindo da vida e para a vida. Exatamente um ano depois que escandalizaram, no mesmo festival da Record, os seríssimos seguidores da canção de protesto e da “brasilidade” da música popular, com Domingo no Parque e Alegria, alegria, os baianos e os garotos mutantes têm sua maior vitória. 116

A influência estrangeira, evidente nas canções tropicalistas, promovia a atualização do campo musical, mas as críticas contrárias eram também contundentes. Em pleno contexto das discussões sobre a expansão da influência norte-americana e combate ao imperialismo, a proposta tropicalista foi considerada

115 VEJA. 13 nov. 1968. p.54. 116 VEJA. 20 nov. 1968. p.56. 83

por muitos como “alienada” e até mesmo “entreguista”. Criticada por fazer “propaganda” dos elementos da cultura norte-americana e, portanto, da dominação imperialista, a canção “ Alegria, alegria ” foi motivo do seguinte comentário:

[...] - Não compreendo como um jovem como Caetano Veloso se põe a estimular o povo brasileiro a tomar Coca-cola num momento em que 200 mil jovens americanos se dispõem às últimas conseqüências para protestar contra a guerra no Vietnã. E não venham me falar de pesquisa, de novas soluções musicais. Se eu estivesse no júri daria nota zero para Alegria, Alegria. [...] 117

As reações da plateia às apresentações tropicalistas eram, em geral, hostis, pois os espectadores, em sua maioria jovens universitários contrários à inovação pretendida pelos tropicalistas, viam no movimento a "alienação" e "americanização" da Música Popular Brasileira. Entretanto, havia também manifestações de apoio e incentivo, por meio da exibição de cartazes com as frases: “Proibido, Proibir”, “Tropicalismo é crítica”, “Tropicalismo é liberdade” e “Baianos”.

Além de provocar polêmica com os temas das canções e o uso de instrumentos elétricos, as apresentações tropicalistas eram criticadas também pela utilização de um vestuário diferente dos demais. Enquanto a maioria utilizava smoking , os tropicalistas adotavam roupas de plástico coloridas, ou no estilo hippie , com seus cabelos compridos e acessórios como colares de dentes de animais, pois o figurino era parte da cena:

Como fazemos uma música que quebra os padrões tradicionais, nossa roupa também terá que representar uma ruptura. Em nós cola. Se acham que não imaginem só o Agnaldo Rayol entrando no palco vestido de toureiro, ou a Ângela Maria vestida de noiva. 118

117 Mário Lago (ator e compositor, autor da letra Anda que te anda, concorrente do III Festival Internacional da Canção, da TV Globo, em 1967, e membro do júri no II Festival da TV Record, de 1966). JORNAL DA TARDE. São Paulo, 23 out. 1967. p.13. 118 Depoimento de Rita Lee. Cf.: VEJA. 13 nov. 1968. p.55. 84

O vestuário contribuía também para a reação contrária da plateia, que, imediatamente após a aparição no palco, antes mesmo da apresentação das canções, já reagia com vaias, pois enxergava "agressão" na "imagem tropicalista" e reagia agressivamente.

Para a platéia comum, eles cantariam melhor se usassem roupas menos berrantes. Para os colegas músicos que se apresentam de terno e gravata eles são “exibicionistas”. O próprio acha que eles exageram muito, podiam ser mais discretos. Para os tropicalistas, a roupa faz parte do espetáculo: se a canção se chama Dom Quixote, Os Mutantes cantarão com trajes medievais; em 2001, modinha caipira sobre a era espacial, os intérpretes vestem alternadamente macacões de astronautas e roupas de caipira. 119

Se as primeiras apresentações, ocorridas em 1967, no festival da TV Record inquietaram a plateia, os demais participantes e a imprensa, foi na participação do III Festival Internacional da Canção - FIC, da TV Globo, em setembro de 1968, que a polêmica sobre a proposta tropicalista atingiu o auge. Promovendo um verdadeiro escândalo, as exibições de Caetano Veloso e Gilberto Gil provocaram reação violenta dos espectadores presentes na eliminatória paulista do festival, realizada no Teatro da Universidade Católica - TUCA.

Na ocasião, Caetano apresentou a canção “ É Proibido Proibir”. Vários detalhes da performance foram elaborados para provocar escândalo. Com figurino escolhido por Regina Boni – estilista responsável pelo vestuário tropicalista –, Caetano apresentou-se com roupas de plástico, camisa verde e calça preta, colares de dentes de animais e tomadas elétricas. Acompanhado pel’Os Mutantes, a performance também incluía a participação de um jovem norte-americano no palco, que deveria rolar, gritar e “grunhir” durante a exibição da canção.

119 VEJA. 13 nov. 1968. p.55. 85

Figura7JohnnyDandurand“ÉProibidoProibir”.120

A reação da plateia foi imediata e violenta; as vaias iniciaram-se imediatamente à aparição no palco. Tomates, ovos, bolas de papel e até pedaços de madeira foram arremessados.

Figura8CaetanoeOsMutantes“ÉProibidoProibir”.121

120 Johnny Dandurand – jovem norte-americano que participou da apresentação da canção “ É Proibido proibir ” com Caetano Veloso na eliminatória do III FIC da TV Globo, em 15 de setembro de 1968, realizado no Teatro TUCA, em São Paulo. Participou também das apresentações tropicalistas na boate Sucata. VEJA . Editora Abril, 23 out. 1968. p.61. 121 Caetano Veloso e Os Mutantes (Rita Lee e Arnaldo Baptista de costas para o público) na apresentação da canção “ É Proibido, Proibir ”, no III Festival Internacional da Canção, da TV Globo, em 1698. JORNAL DA TARDE. São Paulo, 16 set. 1968. p.23. 86

O público, em sinal de protesto, virou-se de costas, gesto que foi imitado pel’Os Mutantes, que não pararam de tocar, mesmo sob intensas vaias. Impossibilitado de apresentar sua canção, Caetano Veloso discursou para os espectadores, em tom furioso:

Mais é isso que é a juventude que diz que quer tomar o poder? Vocês tem coragem de aplaudir esse ano uma música, um tipo de música que vocês não teriam coragem de aplaudir no ano passado. São a mesma juventude, que vão sempre, sempre, matar amanhã o velhote inimigo que morreu ontem? Vocês não estão entendendo nada, nada, nada! Absolutamente nada! Hoje não tem Fernando Pessoa! Eu vim dizer aqui, que quem teve a coragem de assumir a estrutura de festival, não com medo do que o Sr. Chico de Assis pediu, mas com a coragem, quem teve essa coragem de assumir essa estrutura e fazê-la explodir, foi Gilberto Gil e fui eu, não foi ninguém, foi Gilberto Gil e fui eu! Vocês estão por fora. Vocês – não dão para entender... Mas, que juventude é essa? Que juventude é essa? Vocês jamais conterão ninguém! Vocês são iguais sabe a quem? Vocês são iguais sabe a quem? Tem som no microfone? Àqueles que foram no Roda Viva e espancaram os atores. Vocês não diferem em nada deles! [...] 122

Figura9Reaçãodaplateia“ÉProibidoProibir”.123

122 Discurso de Caetano Veloso no Teatro TUCA, em São Paulo, na eliminatória do III FIC - 1968, promovido pela TV Globo. A GAZETA. 16 set. 1968. p.2. 123 Público vaiando a apresentação de Caetano Veloso. VEJA. Editora Abril, 25 set. 1968. p.68. 87

A apresentação e a reação da plateia tiveram amplo destaque na imprensa, que explorava todos os detalhes da performance tropicalista e contribuía para ampliar as discussões:

Gal Costa estava sentada na platéia com uma máquina, brincando de tirar fotos de Gilberto Gil que estava ao lado. Depois, Gal ficou de pé e chorou muito olhando Caetano no palco recebendo vaias, tomates, ovos e bolas de papel. Ele tinha parado de cantar e falava para o público que lotava o auditório do TUCA. [...] Caetano continuou a ser vaiado. Na frente, os que aplaudiram viravam-se para trás e mostravam os cartazes coloridos com os nomes de Caetano, Mutantes, Tropicália. Mas a maioria, xingava Caetano. Gritava bem alto e não deixava ninguém ouvi-lo cantar É Proibido Proibir. [...] Gilberto Gil subiu ao palco e ficou com Caetano. Os dois se abraçaram muito, enquanto os Mutantes continuavam a tocar a música. Gil olhava para o público e ria. Pegou um dos tomates deu uma mordida e devolveu para a platéia. Caetano parou de falar, gritou “Chega” e saiu do palco. Os Mutantes abraçaram Gil, e saíram juntos do palco, rindo.

Explorando a reação do público presente no TUCA, a imprensa apontava as posições contrárias, que identificavam os tropicalistas como "alienados", "esquerda festiva", denominação muito usada na época para aqueles considerados descompromissados, irresponsáveis e antirrevolucionários. E também apontava as opiniões favoráveis ao movimento:

Carlos, um estudante de Comunicações Culturais, disse que vaiava Caetano porque ele era ridículo: - É uma simples cópia de Roda Viva. Ele se faz de palhaço e a nós também na platéia. Se ele fizer isso num teatro com coreografia e cenários, eu falarei bem dele. Wânia, estudante de Ciências Sociais, chorou por causa de Caetano. “Ele é a coisa mais importante atualmente em matéria de música. O que ele faz é tão verdadeiro que choca o público. As pessoas não aceitam e só sabem agredi-lo”. [...]124

No mesmo festival, a apresentação de Gilberto Gil também provocou enorme reação do público presente no TUCA, em São Paulo. Acompanhado dos

124 JORNAL DA TARDE. São Paulo, 16 set. 1968. p.23 (“As vaias não deixaram Caetano cantar vitória”). 88

Beat Boys, Gilberto Gil concorria com a canção “ Questão de Ordem ”. Com vestuário igualmente provocativo – vestia uma bata hippie, cabelo no estilo Black power , barba e bigodes –, buscava “chocar” a plateia. Interpretando a canção aos berros, com acompanhamento dissonante das guitarras dos Beat Boys, que visavam a provocar estridência, Gil incluiu na performance a simulação de golpes de karatê e ruídos que imitavam engasgo e sufocamento.

Diante da polêmica apresentação, considerada mais ousada e agressiva que a performance de Caetano, Gil não só despertou a reação agressiva dos espectadores, como foi desclassificado do festival. Sobre o episódio, comentou-se:

Se na 5ª feira a loucura de Caetano Veloso funcionou, porque detrás dela havia uma música de qualidade com melodia e letra avançadas e de acordo com o trabalho que ele vem fazendo, isso não aconteceu com Gil no sábado. Não porque Gil se apresentou com uma roupa vistosa, nem porque tocou guitarra elétrica, muito menos pelo péssimo som do TUCA. A verdade é uma só: ele se expôs ao ridículo. Questão de Ordem é um “rock” dos tempos de Bill Haley e seus cometas, e de Elvis Presley. É uma pena que Gil – um de nossos melhores compositores – se perdesse em uma música inconseqüente que não tem nada a ver com aquelas que mostrou no elepê “Tropicália”. A sua desclassificação foi justa, embora o júri precisasse ouvir a música de novo para, em última instância, não ferir os interesses comerciais do festival. Mas estava claro demais: a música de Gil só entraria por combinação especial entre o júri e a direção da Globo. 125

A cena tropicalista continuava em evidência na imprensa, que enfatizava inclusive as rivalidades no cenário musical:

Fora do teatro, no estacionamento, duas pessoas gritavam quase no escuro. Eram Gil e Vandré pondo em choque suas ideologias musicais. O clima era muito nervoso e de troca de insultos, como os de Vandré: - Sim, sou burguês, pois não me visto de plástico para chamar a atenção. Isso para mim é querer combater a alienação com alienação. Vocês querem aparecer pelo happening e não é este tipo de extravagância que o público vai cantar. O erro é

125 JORNAL DA TARDE. São Paulo, 16 set. 1968. p.23 (texto de João Magalhães). 89

querer pensar que a cultura se faz em laboratório de propaganda. Isso pra mim é pilantragem. Gil, arrastado por amigos, dizia que aquilo não ia ficar assim: - Nós ainda vamos voltar a falar sobre isso. - Quando você quiser. Mas não venha de plástico, pois a vida pra mim já é uma fantasia. Você se queixa da reação do público, mas é isso exatamente o que vocês queriam. E a TV também, com certeza, disse Vandré. 126

Provocar a plateia e escandalizar eram objetivos das apresentações tropicalistas. Porém, a reação violenta não era esperada e, amedrontados, Caetano Veloso e Gilberto Gil deixaram o teatro, escoltados pela polícia. Nos dias seguintes à polêmica, os insultos e a troca de acusações entre os tropicalistas e Vandré continuavam por intermédio da imprensa. Em entrevista, Caetano Veloso acusava e defendia-se:

- O Vandré despojado que apareceu no festival foi um golpe. Com um número simples, ele queria um escândalo. [...] Geraldo Vandré, dizia no Teatro da Universidade Católica, que a música de Caetano Veloso tinha sido classificada “porque isso interessa ao Governo”, Caetano achou muito engraçada a frase de Vandré: - Ele que está autorizado a falar em nome do Governo deve saber o que disse. Apenas posso dizer, que não estou interessado em fazer a música que o Governo quer ou não quer. 127

Além das performances de Caetano Veloso e Gilberto Gil, a apresentação d’Os Mutantes também era destaque na imprensa. Reconhecido pela irreverência, evidenciada no uso de fantasias e na atuação “anárquica”, o grupo de jovens impressionava pelo talento musical:

A melhor música apresentada ontem: Caminhante Noturno, dos Mutantes. Quando eles apareceram no palco – Rita com um vestido comprido rosa, Arnaldo e Sérgio com roupas que lembravam índios norte-americanos – que o público reagiu com vaias.

126 A GAZETA. 16 set. 1968. p.2. 127 JORNAL DA TARDE. São Paulo, 17 set. 1968. p.14. 90

Mas o arranjo do maestro Rogério Duprat, o sorriso dos músicos da orquestra da TV Globo e a atenção com que alguns jurados ouviram a música, isso foi suficiente para que Os Mutantes mostrassem todo o seu talento. Eles foram a grande surpresa, o grande sucesso da primeira noite do festival. Quando acabaram de cantar as vaias se perderam nos aplausos do público – que ficou de pé – e chegou até a pedir bis. 128

Figura10OsMutantes“CaminhanteNoturno”.129

As fantasias, a performance e o uso de instrumentos elétricos eram parte indissociável da proposta tropicalista. Revelando entender a comunicação televisiva, expressavam-se não apenas pelas suas canções, mas também pela imagem, que se tornava elemento fundamental nas apresentações. E, apesar da polêmica, a “cena tropicalista” era rapidamente imitada, revelando que a estratégia atingira seu propósito – estava inaugurada uma nova fase no cenário musical brasileiro:

“Foi um concurso de fantasias”, dizia um espectador no Teatro Paramount. “Se houvesse classificação eu daria o primeiro lugar aos “Mutantes”. [...] Depois das 18 canções, o comentário de Telé, uma moça que vai a todos os festivais: “Foi uma fabricação em massa de tropicalismo. Ninguém quis reconhecer as inovações dos baianos, e agora todos procuram

128 JORNAL DA TARDE. São Paulo, 27 set. 1968. p.15. 129 Os Mutantes, na apresentação da canção “ Caminhante Noturno ”, no II FIC, da TV Globo, em 1968. JORNAL DA TARDE. São Paulo, 27 set. 1968. p.15. 91

imitá-los: nas roupas, nos sons, nas palavras. Mas, imitam mal”. 130

No final de 1968, o movimento tropicalista foi “oficialmente” declarado “encerrado” por seus participantes. Como no início o movimento foi “deflagrado” pela televisão, seu “fim” também seria. Os tropicalistas resolveram utilizar o programa de TV Divino Maravilhoso, que seria promovido pela TV Tupi, em São Paulo, para comunicar a decisão.

O programa estreou no dia 28 de outubro de 1968 e a “cena tropicalista” apresentava-se cada vez mais ousada e criativa. A provocação da plateia e espectadores era experimentada ao limite. O cenário escolhido já evidenciava o clima “anárquico” do programa:

Com um cenário simples: colagens de TomosigoKusuno – portas, bustos, motor de carro, mãos e uma enorme boca cheia de taças, pequenos aparelhos de tevê, barquinhos e palavras soltas. Com um bom público, na sua maioria de jovens. Assim estreou ontem o programa Divino Maravilhoso na TV Tupi, canal 4. Um programa semanal de Gil e Caetano, principalmente. 131

O figurino e as performances nas apresentações completavam o “escândalo” que buscavam causar:

Quando Caetano entrou, de calça verde justa, apenas um paletó preto, aberto, sem camisa, algumas pessoas se espantaram: ele estava bem penteado, o cabelo repartido ao meio. E começou a cantar. Uma música que fazia referência à bossa nova, a João Gilberto. Àquilo que ele, Gil e os outros tinham aprendido com o João. O último verso: “E chega de saudade”. Então Caetano se despenteou, o som das guitarras de Sérgio e Arnaldo dos Mutantes se confundiram com sua voz, e ele anunciou: - “Vamos mostrar o trabalho que temos feito. Uma tentativa de conseguir o maior som livre do Brasil. E som livre são os Mutantes: um som que não pode parar”.

130 JORNAL DA TARDE. São Paulo, 14 nov. 1968. p.14. 131 JORNAL DA TARDE. São Paulo, 29 out. 1968. p.15. 92

Depois, sem nenhuma preocupação, Caetano, Gil, Os Mutantes, Jorge Ben e Gal Costa cantaram seus mais recentes sucessos, alguns deles com muitas improvisações. As de Gil lembravam – e isso ele mesmo fez questão de dizer, a música tradicional negra pop. - “Essa é a música que quero fazer agora. A fase do chamado tropicalismo já passou”. [...] 132

O programa de estreia foi encerrado com a apresentação da canção “ É Proibido, Proibir”, por Caetano Veloso, que anunciou: “Precisamos encontrar gente nova. Dentro de um ano tudo isso aqui será uma besteira.” 133

O programa repercutiu no acirramento da polêmica sobre a proposta tropicalista. Muitos espectadores, escandalizados e indignados com as apresentações, encaminhavam à emissora (TV Tupi) abaixo-assinados para a suspensão do programa, que, apesar, ou principalmente por conta, dos protestos – pois aumentava os índices de audiência –, permaneceu no ar até dezembro de 1968, com a ampliação das provocações tropicalistas:

Tínhamos um programa já escrito para ser exibido na semana do Natal. Eu próprio, numa homenagem ao grande compositor suicida Assis Valente, e numa desmistificação das róseas sentimentalidades natalinas, cantaria a linda e triste canção “Boas festas” daquele autor (“...eu pensei que todo mundo fosse filho de Papai Noel...”) apontando um revólver para minha própria têmpora. E assim fiz. [....] O resultado (que ainda vi no vídeo) era assustador. Fiquei orgulhoso porque considerei que ali havia densidade “poética”, mas intimamente arrependido por crer ter talvez – mais uma vez – ido longe demais. 134

Paralelamente à sua atuação polêmica no programa semanal Divino Maravilhoso , em São Paulo, os tropicalistas estrearam um espetáculo, em cartaz entre 4 e 13 de novembro de 1968, na boate Sucata. Embora também fosse “anárquica” e com objetivo de escandalizar, a provocação atingia um público mais restrito: estudantes, artistas e intelectuais:

132 JORNAL DA TARDE. São Paulo, 29 out. 1968. p.15. 133 JORNAL DA TARDE. São Paulo, 29 out. 1968. p.15. 134 VELOSO, Caetano. VerdadeTropical . São Paulo: Companhia das Letras, 1997. p.343. 93

Muitas loucuras aconteceram durante a temporada tropicalista na boate da Avenida Borges de Medeiros. O espetáculo começava tarde, já por volta da 1h30 da madrugada. No pequeno palco, como cenário, o norte-americano David Drew Zingg instalou duas bandeiras com as inscrições “Yes, nós temos bananas” e “Seja Marginal, Seja Herói”. 135

Figura11EstandartedeHélioOiticica.136

A “cena tropicalista” era, portanto, encerrada da forma mais provocativa e ousada possível. Depois das apresentações tropicalistas – no palco dos festivais, nos programas de TV ou nos espetáculos na boate Sucata –, marcadas pela performance irreverente, anárquica e polêmica, apesar das críticas e protestos, o cenário musical brasileiro nunca mais seria o mesmo. O movimento estava “encerrado”. Em 27 de dezembro de 1968, Caetano Veloso e Gilberto Gil foram presos, fato que contribuiu para a “dispersão” do grupo. O movimento tropicalista tinha “cumprido” seu objetivo – renovar a cena musical brasileira.

A análise do movimento tropicalista revela que o objetivo era discutir as contradições da realidade brasileira, “inventariar” as tradições da nossa cultura, ações que até poderiam suscitar mudanças em longo prazo, porém, a “transformação social” não era preocupação imediata. Os tropicalistas propunham a reflexão sobre o Brasil focalizando a cultura – no sentido antropológico – e o debate

135 CALADO, Carlos. Tropicália: a história de uma revolução musical. São Paulo: Editora 34, 1997. p.229. 136 Estandarte criado por Hélio Oiticica, em 1967, em homenagem ao bandido Cara de Cavalo – utilizado no cenário do espetáculo Tropicalista, na boate Sucata. Cf.: TROPICALISTA. Disponível em: . Projeto de Ana de Oliveira. Acesso em: 24 nov. 2010. 94

estético muito mais que uma análise política da realidade brasileira. Daí a relação conflituosa que estabeleceram com os artistas e intelectuais que assumiram na década de 60 uma proposta de engajamento para a transformação social brasileira.

Enquanto a proposta nacional-popular, herdeira do CPC da UNE, representada no cenário musical principalmente por Geraldo Vandré, sugeria um debate político – que questionava as desigualdades e injustiças sociais e a dependência econômica, numa perspectiva evidente de colaborar para a mudança, assumindo o compromisso “revolucionário” –, os tropicalistas estavam mais interessados em refletir sobre a brasilidade, discutir a identidade cultural brasileira. A preocupação central não era questionar os dilemas sociais, embora suas canções também incorporassem tais temas; portanto, não se apresentavam “esvaziadas” do discurso político, mas este não era prioritário.

Do ponto de vista político, é difícil afirmar qual posicionamento seus participantes assumiam, em razão da imprecisão de seus discursos, motivo pelo qual foram imediatamente identificados como “alienados”.

Enfim, a análise da proposta tropicalista revela que as críticas e a reflexão sobre os dilemas brasileiros estavam em outro plano. Questionavam-se, fundamentalmente, os valores e o comportamento – principalmente da juventude brasileira –, bem como a estética. O discurso tropicalista desafiava o movimento estudantil, como se dissesse aos universitários presentes na plateia dos festivais: “Vocês querem tomar o poder, mas não conhecem o Brasil” . As propostas eram distintas - embora não inconciliáveis -, mas eram discutidas no mesmo plano, em razão do contexto vivido, o que inviabilizava o diálogo, resultando, inevitavelmente, em conflito, mas sem “solução”. O debate entre “linha evolutiva” ou “vanguardismo” e “tradição” ou “nacional-popular” será apresentado no capítulo III.

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CAPÍTULOIITORQUATONETO:“ EU SOU COMO EU SOU ”

Eu sou como eu sou pronome pessoa intransferível do homem que iniciei na medida do impossível Eu sou como eu sou agora sem grandes segredos dantes sem novos secretos dentes nesta hora Eu sou como eu sou presente desferrolhado indecente feito um pedaço de mim Eu sou como eu sou vidente e vivo tranquilamente todas as horas do fim Cogito

Torquato Neto

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Neste capítulo analisa-se a trajetória pessoal e profissional de Torquato Neto contextualizada na década de 1960 e início dos anos 70. O capítulo encontra-se dividido em três partes. Na primeira parte, “ Torquato Neto: ‘do lado de dentro’ ”, apresenta-se a mudança do Piauí para a Bahia e a aproximação com Caetano Veloso e Gilberto Gil. Os estudos secundários, o ingresso na faculdade de Jornalismo no Rio de Janeiro, o autoexílio, o retorno ao Brasil, a experiência como colunista - Jornal dos Sports e Última Hora -, as internações em sanatórios, consequências do uso de álcool e drogas, os projetos idealizados - a revista Navilouca , o cinema Super-8 - e, por fim, as influências teóricas, os dilemas, as angústias e a depressão que o levou ao suicídio aos 28 anos de idade.

Na segunda parte, “‘ Roteirista’ da Tropicália ”, discute-se a participação de Torquato Neto no movimento musical, especificamente na Tropicália, por meio da idealização, junto com Capinam, do roteiro para o programa de TV “Vida paixão e banana do tropicalismo”. De caráter anárquico, o roteiro esboçava a proposta radical de Torquato Neto para explicar, deflagrar e encerrar o movimento tropicalista.

E na terceira parte, “ ‘Meu caro amigo’: correspondências ”, analisam-se as correspondências trocadas por Torquato Neto e Hélio Oiticica no período de 1971 e 1972, quando este retornou ao Brasil, mas manteve contato permanente com o amigo que estava em Nova York. Por intermédio das cartas, com foco na discussão sobre a produção cultural brasileira, encontra-se, além da troca de confidências, o esboço dos projetos desenvolvidos por ambos e a reflexão sobre o panorama cultural, com as dificuldades impostas pela ampliação do autoritarismo.

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2.1 - TORQUATO NETO: “ DO LADO DE DENTRO ”

Figura12TorquatoNeto.137

Torquato Pereira de Araújo Neto nasceu em 9 de novembro de 1944, em Teresina, Piauí. Pertencente a uma família de classe média, filho único do promotor público Heli Rocha Nunes e da professora primária Maria Salomé da Cunha Araújo. Ainda adolescente, revelava o desejo de deixar a casa dos pais, em busca de um ambiente mais “agitado” para viver novas experiências:

[...] Sufocado pelo ambiente de Teresina, para ele sinônimo de opressão, Torquato faz de tudo para estudar fora, provoca diversas formas sua saída da cidade. Para agradar a mãe, inscreve-se em concurso para a Marinha Mercante, mas entrega a prova em branco. 138

137 Torquato Neto, no Rio de Janeiro, em agosto de 1972. Cf.: DUARTE, Ana Maria S. de Araújo; SALOMÃO, Waly (Org.). Osúltimosdiasdepaupéria (do lado de dentro) Torquato Neto. 2ª ed. São Paulo: Max Limonad, 1982. p.381. 138 PIRES, Paulo Roberto (Org.). Torquato Neto: Torquatália - do lado de dentro. Rio de Janeiro: Rocco, 2004. p.342-3. 98

Após convencer os pais, vencendo principalmente a resistência materna, mudou-se para a Bahia, no início da década de 1960, a fim de continuar o ensino secundário, como interno no Colégio Nossa Senhora da Vitória, em Salvador. Na Bahia, encontrou um ambiente cultural bastante fértil, a denominada “Era Edgard Santos”:

[...] a cidade que desfrutava, naquele momento, de seu renascimento cultural. Um período especialmente rico para os artistas e intelectuais da Bahia, que pode ser chamado de Era Edgard Santos. Reitor da Universidade Federal da Bahia, entre os anos de 1946 e 1962, o audacioso Edgard Santos investiu pesado no avanço cultural da instituição e da cidade. [...] Idealizou uma espécie de choque intelectual, tentando reverter a marginalização cultural da Bahia dos anos 40. Em sua concepção, a Universidade – necessariamente livre para criar e refletir – deveria desempenhar a função de ponta-de-lança da sociedade. 139

A Universidade da Bahia foi fundada em 1946 sob a direção de Edgard Santos, que atuou como reitor até 1961. Um humanista tradicional comprometido com o desenvolvimento nacional e regional, Santos acreditava que a universidade deveria assumir um papel de liderança na modernização da Bahia, tanto no desenvolvimento urbano-industrial quanto na “desprovincialização cultural” do Estado. 140

Tal efervescência cultural influenciou diretamente aqueles que formariam, a partir de 1967, o grupo denominado de tropicalistas:

[...] Em resumo, durante a década de 1950 e início da de 1960, Salvador usufruía uma vida cultural extraordinariamente ativa e produzia alguns dos artistas e intelectuais mais importantes daquela geração. 141

139 CALADO, Carlos. Tropicália: a história de uma revolução musical. Coleção Ouvido Musical. São Paulo: Editora 34, 1997. p.34-5. 140 RISÉRIO, Antonio, 1995, p.35. Apud: DUNN, Christopher. BrutalidadeJardim: a Tropicália e o surgimento da contracultura brasileira. São Paulo: UNESP, 2009. p.71. 141 DUNN, Christopher. BrutalidadeJardim: a Tropicália e o surgimento da contracultura brasileira. São Paulo: UNESP, 2009. p.72. 99

Em janeiro de 1962, Torquato, com 17 anos, mudou-se para o Rio de Janeiro, onde concluiu o ensino secundário e ingressou, em 1963, na Faculdade Nacional de Filosofia da Universidade do Brasil (hoje UFRJ), no curso de Jornalismo, que, contudo, abandonou dois anos mais tarde. No Rio de Janeiro, ainda como estudante secundarista, aproximou-se do movimento estudantil, frequentando a sede da UNE:

[...] Embora pudesse contar, eventualmente, com um quartinho no apartamento de Macalé, em Ipanema, a casa de Torquato, efetivamente, passou a ser a UNE, onde costumava dormir no velho sofá do andar superior. 142

Frequentador dos espetáculos promovidos pelo Centro Popular de Cultura - CPC, foi na inauguração do Teatro da UNE, em 1963, que Torquato conheceu Ana Maria, com quem se casou em 1967.

No dia 31 de março de 1964, tropas militares, sob o comando do General Olímpio Mourão, deslocaram-se de Juiz de Fora - MG para depor o presidente João Goulart. O presidente estava no Rio de Janeiro quando foi comunicado sobre o golpe. Sem apoio para resistir, constatado após contatos com o comando do II Exército (SP) e III Exército (RS), o presidente dirigiu-se a Porto Alegre e, depois, seguiu para o exílio no Uruguai.

Declarada vaga a presidência, no dia 2 de abril, o poder executivo foi assumido pelo presidente da Câmara dos Deputados – Ranieri Mazzili. 143 O Alto Comando da Revolução, sob a liderança do General Arthur da Costa e Silva, iniciou a chamada “Operação Limpeza” 144 , promovendo diversas prisões e cassações de direitos políticos. A sede da UNE foi incendiada em 1º de abril de 1964:

142 VAZ, Toninho. Pramim chega: a biografia de Torquato Neto. São Paulo: Casa Amarela, 2005. p.47. 143 Na realidade, o Deputado Ranieri Mazzili funcionava como testa-de-ferro, estando o poder de fato nas mãos do Alto Comando da Revolução, integrado pelo General Arthur da Costa e Silva, o Almirante Augusto Rademaker e o Brigadeiro Correia de Mello. Cf.: ALVES, Maria Helena Moreira. EstadoeOposiçãonoBrasil . Bauru - SP: EDUSC, 2005. p.63. 144 Cf.: Ibidem. “A Operação Limpeza refere-se a um conjunto de medidas que os militares denominaram para ativar as forças repressivas e dar ao Estado controle sobre áreas política, militares e psicossociais. A contra-ofensiva geral da Grande Estratégia foi levada a efeito, basicamente, no quadro institucional dos chamados Inquéritos Policial-Militares (IPMS). Comissões especiais de inquérito foram criadas em todos os níveis de governo, em todos os ministérios, órgãos governamentais, empresas estatais, universidades federais e outras organizações vinculadas ao 100

Logo após o golpe militar, uma vasta campanha de busca e detenção foi desencadeada em todo o país. O Exército, a Marinha e a Aeronáutica foram mobilizados, segundo técnicas predeterminadas de contra-ofensivas, para levar a efeito operações em larga escala de “varredura com pente-fino”. Ruas inteiras eram bloqueadas e cada casa era submetida a busca para detenção de pessoas cujos nomes constavam de listas previamente preparadas. O objetivo era “varrer” todos os que estiveram ligados ao governo anterior, a partidos políticos considerados comunistas ou altamente infiltrados por comunistas e a movimentos sociais do período anterior a 1964. Especialmente visados eram líderes sindicais e estudantis, intelectuais, professores, estudantes e organizadores leigos dos movimentos católicos nas universidades e no campo. 145

Nesse momento, Torquato Neto voltou para Teresina, atendendo ao pedido dos pais, que revelavam preocupação com a situação vivida no Rio de Janeiro, marcada por agitações e protestos.

Em 9 de abril de 1964, a Junta Militar, representada pelo Exército, Marinha e Aeronáutica, assinou o Ato Institucional - AI-1, que ampliou os poderes do Executivo e marcou eleição indireta para a presidência da República. Denominando o golpe como “Revolução”, os militares sustentavam o argumento de assumir o poder para combater a inflação, a corrupção e a subversão comunista no país:

O Ato Institucional que é hoje editado pelos Comandantes em Chefe do Exército, da Marinha e da Aeronáutica, em nome da revolução que se tornou vitoriosa com o apoio da Nação em sua quase totalidade, se destina a assegurar, ao novo governo a ser instituído, os meios indispensáveis à obra de reconstrução econômica, financeira, política e moral do Brasil [...] A revolução vitoriosa necessita de se institucionalizar. [...] Para demonstrar que não pretendemos radicalizar o processo revolucionário, decidimos manter a Constituição de 1946, limitando-nos a modificá-la, apenas, na parte relativa aos poderes do Presidente da República [...] Para reduzir ainda mais os plenos poderes de que se acha investida a revolução vitoriosa, resolvemos, igualmente, manter o Congresso Nacional, com as reservas relativas aos seus poderes constantes do presente Ato Institucional. Fica assim, bem claro que a revolução não procura legitimar-se através do governo federal. Os inquéritos policial-militares deveriam investigar as atividades de funcionários civis e militares, de níveis municipal, estadual e federal, para identificar os que estavam comprometidos com atividades ‘subversivas’. [...] A ‘ Operação Limpeza ’ não se limitou a expurgos em organismos políticos e burocráticos. Desde o início cresceram em círculos militares as pressões para uma repressão mais direta da população.” p.68-70. 145 ALVES, Maria Helena Moreira. EstadoeOposiçãonoBrasil . Bauru - SP: EDUSC, 2005. p.72. 101

Congresso. Este é que recebe deste Ato Institucional, resultante do exercício do Poder Constituinte, inerente a todas as revoluções, a sua legitimação. 146

Em 11 de abril, o Congresso elegeu o novo presidente, o General Humberto de Alencar Castelo Branco, que tomou posse no dia 15, juntamente com o vice, José Maria Alkmin. O governo Castelo Branco manteve o Congresso aberto e o calendário eleitoral para a sucessão nos Estados e Municípios, afirmando, dessa forma, que o país mantinha o processo democrático. Porém, após a oficialização do resultado eleitoral, com vitória de representantes da oposição ao governo, o General Castelo Branco editou o AI-2, em 17 de outubro de 1965, extinguindo todos os partidos políticos e determinando eleição indireta para a presidência da República:

O Ato Institucional nº 2 fixou consideráveis restrições à representação política. Estabelecia o Artigo 9º que o Presidente e o vice-Presidente da República não mais seriam escolhidos por voto popular direto, mas eleitos indiretamente por um Colégio Eleitoral composto de maioria absoluta de membros do Congresso Nacional. Além disso, o processo eleitoral seria realizado em sessão pública com votação nominal – o que suprimia o voto secreto e ampliava a margem de controle militar sobre os delegados que escolheriam o Presidente. [...] Finalmente, em seu Artigo 18, o Ato Institucional extinguia todos os partidos políticos então existentes. Novos partidos seriam constituídos segundo as rígidas condições fixadas no Estatuto dos Partidos de 15 de junho de 1965 (Lei nº 4.470), sendo regulamentadas por novos Atos Complementares.147

A estreia de Torquato Neto como letrista – como se autodefinia – ocorreu em 1965, quando compôs duas canções em parceira com Gilberto Gil, “ Louvação ”, que foi gravada com muito sucesso por Elis Regina, e “ Meu choro para você ”.

No período de 1965 e 1966, Torquato já se destacava como letrista. Compôs com Edu Lobo “ Pra dizer Adeus ”, “ Lua Nova ” e “ Veleiro” . E, ainda, em 1966, compôs em parceira com Gilberto Gil as canções “ A rua ”, “ Vento de Maio ”, “ Zabelê ” e “ Minha Senhora ”. As canções foram gravadas no mesmo ano, notabilizando-o:

146 DIÁRIO OFICIAL DA UNIÃO, 9 e 11 de abril de 1964. Apud: ALVES, Maria Helena Moreira. EstadoeOposiçãonoBrasil . Bauru - SP: EDUSC, 2005. p.65. 147 ALVES, Maria Helena Moreira. EstadoeOposiçãonoBrasil . Bauru - SP: EDUSC, 2005. p.112- 5. 102

O disco Edu & Bethânia, lançado traz o compositor e a cantora que fora revelada no ano anterior cantando “Lua Nova”, “Pra dizer Adeus” e “Veleiro”. As duas últimas também foram gravadas neste ano pela anfitriã do Fino da Bossa no álbum Elis. 148

Após a edição do AI-2, os movimentos de oposição ampliaram-se, inclusive com a participação de antigos aliados e apoiadores do golpe militar, entre eles o jornalista Carlos Lacerda, que articulou a formação da Frente Ampla – uma aliança para depor o governo Castelo Branco e possibilitar a retomada do processo democrático, com a realização de eleição direta para presidente da República.

Os planos da Frente Ampla fracassaram e, em 5 de fevereiro de 1966, foi promulgado o AI-3, instituindo eleição indireta para o governo dos Estados e determinando que os prefeitos de todas as capitais seriam nomeados pelos governadores; os demais poderiam ser eleitos por voto popular secreto:

Do ponto de vista do Estado, o Ato Institucional nº 3 era necessário para o controle dos estados maiores e mais importantes da federação. As eleições de 1965 haviam demonstrado que a coalizão no poder podia controlar os estados rurais, especialmente do Nordeste, valendo-se eficazmente das relações clientelísticas. Tais controles não se aplicavam, entretanto, nos estados industrialmente avançados, com maior velocidade de informação e mais altos níveis de educação e politização. 149

Em 7 dezembro de 1966, com a edição do AI-4, o Congresso Nacional, após um breve período de recesso, foi convocado a ratificar a nova Constituição, promulgada em janeiro de 1967:

A Constituição de 1967 legalizava muitas das medidas excepcionais decretadas nos atos institucionais e complementares. Modificada em 1969, ela fornecia ao Estado de Segurança Nacional os fundamentos de uma ordem política institucionalizada. Em algumas de suas seções mais importantes a Constituição de 1967 regulamentava a separação de poderes e os direitos dos estados na federação,

148 PIRES, Paulo Roberto (Org.). Torquato Neto: Torquatália - do lado de dentro. Rio de Janeiro: Rocco, 2004. p.348. 149 ALVES, Maria Helena Moreira. EstadoeOposiçãonoBrasil . Bauru: EDUSC, 2005. p.121-2. 103

definia o conceito de Segurança Nacional, caracterizava os direitos políticos e individuais e institucionalizava o modelo econômico. 150

Em 11 de janeiro de 1967, Torquato casou-se com Ana Maria, sua namorada desde 1963, na igreja de São Pedro Apóstolo, no Rio de Janeiro. Contudo,

[...] três anos depois descobriram que o casamento não era válido, pois haviam esquecido de registrá-lo em cartório. Ao noticiar o casamento de Torquato com Ana Maria – com saborosos detalhes de como o padre não permitiu que se cantasse “Louvação” na igreja –, os jornais se referem a ele como “o mais ativo letrista do grupo baiano”. 151

Figura13TorquatoNetoeAnaDuartenacerimôniadecasamento.152

A sucessão presidencial ocorreu em 15 de março de 1967, com a posse do General Arthur da Costa e Silva, escolhido pelo colégio eleitoral a 3 de outubro de 1966. E a partir de 1967 as manifestações de oposição ao governo intensificam-se,

150 ALVES, Maria Helena Moreira. EstadoeOposiçãonoBrasil . Bauru: EDUSC, 2005. p.128. 151 PIRES, Paulo Roberto (Org.). Torquato Neto: Torquatália - do lado de dentro. Rio de Janeiro: Rocco, 2004. p.350-1. 152 Cf.: TROPICÁLIA. Disponível em: . Projeto de Ana de Oliveira. Acesso em: 24 nov. 2010. 104

com destaque para o movimento estudantil, que promoveu greves e diversas passeatas, especialmente contra os acordos MEC-USAID:

O movimento estudantil ganhou impulso na resistência às demissões arbitrárias de professores e às restrições impostas à autonomia universitária e sua própria organização. Estas eram particularmente simbolizadas na extinção da União Nacional dos Estudantes (UNE). Em 1967-1968 os estudantes universitários protestavam contra a ampla reforma universitária promovida segundo acordo entre o Ministério da Educação e a United Agency for International Development (USAID). Os estudantes lograram organizar estruturas representativas em nível nacional, estadual e local, apesar da extinção da UNE. Em 1967 a UNE realizou secretamente em São Paulo o 29º Congresso Nacional dos Estudantes, que elegeu novos dirigentes para a organização e debateu um programa. 153

O governo Costa e Silva pôs em prática uma série de medidas na tentativa de controlar o movimento estudantil, como o Decreto dos 180 dias, que previa a reprovação do aluno que não cumprisse efetivamente 180 dias letivos, independentemente de período de greves e paralisações, além da ampliação da repressão militar, com o aumento do número de prisões e a prática da tortura. Contudo, à medida que a repressão era ampliada, as manifestações da oposição intensificavam-se. O auge da mobilização contra o governo ocorreu no ano de 1968.

Em 28 de março de 1968, o estudante secundarista Edson Luís foi morto no restaurante Calabouço, no Rio de Janeiro. Localizado no centro da cidade, o restaurante era local de concentração do movimento estudantil e oferecia refeições a preços populares:

Uma das campanhas pretendia melhorar a qualidade da alimentação fornecida a estudantes pobres no restaurante do Calabouço, no Rio de Janeiro. O governo retirara os subsídios ao restaurante, que passou a ser gerido como empresa privada. Com a deterioração da qualidade da comida e o aumento dos preços, os estudantes começaram a protestar. Tentaram negociar melhorias no restaurante, solicitando audiência às autoridades. Um pequeno grupo organizou em frente ao restaurante uma dramatização de suas queixas. No dia 28 de março de 1968, durante uma outra demonstração,

153 ALVES, Maria Helena Moreira. EstadoeOposiçãonoBrasil . Bauru - SP: EDUSC, 2005. p.142. 105

um batalhão da Polícia Militar chegou ao local e disparou tiros de metralhadora sobre os estudantes. Edson Luís, secundarista pobre de 16 anos, morreu instantaneamente. 154

A morte do estudante Edson Luís contribuiu para a ampliação das manifestações da oposição, atraindo a participação principalmente de setores da classe média: artistas, jornalistas, advogados, intelectuais, além do clero. Entre as manifestações destaca-se a “Passeata dos Cem Mil”:

Os estudantes programaram voltar às ruas no dia 26 de junho, quarta-feira, exigindo libertação dos colegas presos e protestando contra a repressão policial. Afirmam também ter informações sobre o “plano de infiltração de elementos do Movimento Anticomunista (MAC)” e do próprio governo na próxima manifestação estudantil com o intuito de quebrar vitrinas e agredir populares, para que a opinião pública volte a tomar o lado da política [...] Convocando a população a participar da passeata por meio de “comícios relâmpagos”, os estudantes recebem a declaração de solidariedade de vários setores da sociedade civil – mães de alunos, artistas, professores, jornalistas, servidores, populares, advogados pela OAB, clero –, alguns deles confirmando presença em manifestos dirigidos ao povo brasileiro e divulgados pela imprensa [...]. 155

No ano de 1968, o Tropicalismo chegava ao auge, com o lançamento do disco-manifesto “ Tropicália ou Panis et Circencis ”, que reúne na capa os representantes do movimento: Capinam, Nara Leão, Caetano Veloso, Gilberto Gil, Rogério Duprat, Os Mutantes, Tom Zé, Gal Costa e Torquato Neto.

Apesar do sucesso do movimento, Torquato Neto já revelava suas crises de depressão. Naquele momento (1968), ingeriu um frasco de comprimidos do medicamento Valium, tentando, pela primeira vez, o suicídio, o que resultou em internação hospitalar:

Sua vida, subitamente, tornara-se muito agitada, sempre acompanhada de grandes noitadas e trazendo novas confusões amorosas. Não raro ele sumia, ficava um, dois dias

154 ALVES, Maria Helena Moreira. EstadoeOposiçãonoBrasil . Bauru - SP: EDUSC, 2005. p.143. 155 VALLE, Maria Ribeiro do. 1968: O diálogo é a violência. Movimento estudantil e ditadura militar no Brasil. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 1999. p.111. 106

sem aparecer. Aliás, há evidências de que foi o resultado de uma paixão interrompida que levou Torquato a praticar, em São Paulo, uma das tentativas de suicídio que lhe seriam atribuídas a partir de agora. 156

A repressão promovida pelo governo militar era ampliada à medida que as manifestações da oposição intensificavam-se. Em setembro, o discurso no Congresso feito pelo deputado Márcio Moreira Alves, do MDB, foi considerado extremamente ofensivo às Forças Armadas, resultando no encaminhamento ao Congresso do pedido de cassação de seu mandato:

[...] o Deputado Márcio Moreira Alves, eleito pelo MDB na Guanabara, instou a população a boicotar a parada militar de 7 de setembro e sugeriu às mulheres brasileiras que resistissem ao governo militar, recusando-se a namorar oficiais que silenciassem diante da repressão ou participassem ativamente de violências cometidas pelo Estado. Embora o discurso passasse desapercebido na imprensa, os militares escolheram- no como pretexto para provocar uma grande crise política. 157

O pedido de cassação foi votado pelo Congresso em dezembro e os parlamentares, surpreendentemente, rejeitaram o pedido da presidência da República de cassar o mandato do deputado:

Em agitada sessão conjunta, com mil espectadores nas galerias, os membros das duas Casas procederam à votação por chamada nominal. O resultado surpreendeu o Executivo: 226 contra a suspensão da imunidade parlamentar, e apenas 141 a favor. A diferença de 75 votos constituía vitória significativa para os que se opunham; significativa também que muitos membros da ARENA haviam se associado ao MDB na defesa de um interesse comum, arriscando seus próprios mandatos ao desafiar a norma da fidelidade partidária, segundo a qual qualquer parlamentar que desobedecesse às determinações de seu partido numa votação perderia automaticamente o mandato. Todos os parlamentares e espectadores das galerias irromperam em aplausos, e muitos choraram. Uma voz começou a entoar o Hino Nacional e

156 VAZ, Toninho. Pramim chega: a biografia de Torquato Neto. São Paulo: Casa Amarela, 2005. p.113. 157 ALVES, Maria Helena Moreira. EstadoeOposiçãonoBrasil . Bauru - SP: EDUSC, 2005. p.158. 107

arrastou outras, numa triunfante afirmação da força civil; parecia um momento de vitória, um momento de glória. 158

Contudo, a vitória do Congresso Nacional e da oposição ao governo foi efêmera, pois, após a decisão do Legislativo, o Congresso Nacional foi fechado e o General Costa e Silva, depois de consultar o vice-presidente – Pedro Aleixo – e todos os ministros, reunidos no Conselho de Segurança Nacional, decidiu pela edição do AI-5, em 13 de dezembro de 1968:

Menos de 24 horas depois da votação do Congresso Nacional o texto do Ato Institucional nº 5 foi publicado na imprensa e reiteradamente lido na televisão e no rádio. Fechava-se o Congresso por tempo indeterminado. Suspendiam-se todas as garantias constitucionais e individuais. Em todo o país o Exército procedeu a manobras que representavam verdadeira ocupação. Opositores de todos os matizes ideológicos foram presos aos milhares. 159

Em clima de tensões políticas, acentuadas pela edição do AI-5, censura, tortura, polêmicas e críticas feitas à Tropicália, ocorreu a fragmentação do grupo e o encerramento do movimento em 1968.

Torquato Neto se afastou num autoexílio. Em 3 de dezembro de 1968, embarcou para Londres com Hélio Oiticica – que faria uma exposição retrospectiva de sua obra na galeria Whitechapell –, e foi a bordo do navio que recebeu a notícia da edição do AI-5.

O ano não terminara bem para Torquato. Em São Paulo, tinha passado pela primeira das quatro internações a que se submeteria pelos excessos de álcool. Rompido com os tropicalistas e deprimido, ele embarca com Hélio Oiticica para a Europa uma semana antes do AI-5 e fica sabendo a decretação do ato na Holanda. 160

158 ALVES, Maria Helena Moreira. EstadoeOposiçãonoBrasil . Bauru - SP: EDUSC, 2005. p.159. 159 Ibidem. p.160. 160 PIRES, Paulo Roberto (Org.). Torquato Neto: Torquatália - do lado de dentro. Rio de Janeiro: Rocco, 2004. p.354. 108

No exílio, manteve-se atento à situação política vivida no Brasil, que, após o AI-5, ampliava a repressão a todos aqueles que fizessem oposição ao governo e fossem considerados subversivos. Nesse momento, recebeu a notícia da prisão de Caetano Veloso, Gilberto Gil e Rogério Duarte – considerado um dos intelectuais do movimento tropicalista.

Em 1969, ainda em Londres, Torquato continuava preocupado com a conjuntura no país e a mudança de cenário não alterara seu ânimo. Continuava deprimido, como registrou em seu diário:

[...] e eu estou escrevendo porque é a única coisa que posso fazer agora e porque me apraz. Estou muito cansado e não tenho nenhuma pergunta a fazer nem tenho uma única resposta diferente. Flávio ouviu no rádio e Ana me contou que no Brasil o presidente está paralítico, o vice-presidente não assumiu e uma junta militar tomou a presidência. Mas é provisório, Torquato Neto. E eles vão qualquer dia arrumar outra solução, brasileira, mulata e sentimental. Por isso não posso pensar em escrever meu filme (que talvez nunca faça porque estou mais velho do que me imagino e porque estou condenado à grande morte) e (mais), devo continuar observando o escuro. De qualquer modo penso, e estou vivo. Ana deve pensar que não, que morri definitivamente mas ela não terá coragem de acreditar, porque é mentira, ela sabe que eu vim ao mundo e que é diferente, porque ainda faltam certos acabamentos que estou aqui para providenciar. Isto me deixa perplexo na medida em que eu vou indo mas não tenho clareza nenhuma sobre como e porquê. Ana ainda acredita. [...] 161

Diante da situação política no Brasil, Torquato Neto revelava sua preocupação com o destino de sua esposa (Ana). Temia por sua prisão, o que já havia ocorrido com alguns de seus companheiros, e planejava sua transferência para Londres. Em correspondência enviada ao cunhado Hélio Silva, relatou:

[...] está tudo uma confusão dos infernos: remeti ontem uma passagem para Ana embarcar assim que possível para Londres, mas hoje fui informado pela companhia que todas as estações de telex e correio e telefone internacional entraram em greve na Inglaterra até, no mínimo, dia 28. Ou seja: possivelmente essa ordem não chegará por aí antes disso, o

161 Anotações de Torquato Neto em Paris, 1969. Apud: PIRES, Paulo Roberto (Org.). TorquatoNeto: Torquatália - do lado de dentro. Rio de Janeiro: Rocco, 2004. p.297. 109

que vai me atrasar bastante todos os planos. [...] Caetano e Gil estão realmente em cana, soube que cortaram o cabelo de Caetano e a barba de Gil. Informação segura: Guilherme está em paris e me contou pelo telefone. Estão presos há pouco mais de um mês e não se sabe quando serão postos a passear novamente. É incrível, o Brasil está cada vez mais ridículo, como te falei na outra carta, vou ficar por aqui, no mínimo, até o fim do ano. É imbecialidade pura voltar por aí antes disso e eu não sou otário. 162

Ana chegou a Londres em fevereiro de 1969, quando alugaram um apartamento e fixaram-se na cidade. Ambos auxiliaram Oiticica na montagem da exposição e, durante sua permanência na cidade, puderam se aproximar de artistas e intelectuais que agitavam a cena cultural inglesa. Torquato Neto mostrava-se bastante atento, principalmente à produção de cinema, que acompanhava com interesse. Em carta destinada ao cunhado Hélio, qualificava o filme “ Teorema ”, de Pier Paolo Pasolini:

[...] realmente, meu filho, fiquei viciado em “Teorema”. Não li os críticos de Paris, nem os de Londres e muito menos os bestas do Jornal do Brasil, mas garanto que tá todo mundo por fora. Não é filme pra crítico, sabe? E o tal “conteúdo místico” é só um detalhe pra gente pensar, dentro de uma tese muito mais ao meu gosto, linda, sobre a moral burguesa, aquela estória que eu vivo falando, sabe? Envenena a moral dessa turma que o negócio apodrece. Talvez eu esteja apenas puxando demais a farofa pro meu capão, mas isso é o que eu acho maravilhoso em “Teorema” e em Pasolini. Você verá (se não cortarem demais) e dirá se estou dizendo imbecilidades. De qualquer maneira, continuarei achando o filme fantástico, inteligentíssimo e inteiramente por dentro. 163

Em maio de 1969, Torquato mudou-se para Paris, instalando-se inicialmente no hotel Excelsior e depois no hotel Stella, próximo à Sorbonne. Mesmo com dificuldades financeiras, registradas nas cartas e diários, aproveitava os eventos culturais, principalmente o cinema, acompanhando inclusive a produção brasileira. Em mais uma carta para o cunhado Hélio, comentou:

162 Torquato Neto em Londres, 22 jan. 1969. Apud: VAZ, Toninho. Pra mim chega: a biografia de Torquato Neto. São Paulo: Casa Amarela, 2005. p.127. 163 Torquato Neto em Paris, 2 mai. 1969. Apud: Ibidem. p.127. 110

[...] estou irritadíssimo. Imagine que ontem à noite me entusiasmei um pouco além da conta e fui assistir “Vida provisória”, aquele filme nojentíssimo do Maurício Gomes Leite. Puta que pariu! Ainda não me recuperei da porrada, não entendo mais nada, acho que não sei mais de coisa alguma, nunca vi nada igual. Ainda bem que o filme do Glauber passa na semana que vem. 164

Na mesma carta, comentava sobre a cena musical brasileira, que, de acordo com Torquato, retrocedia no processo criativo em razão da ausência de muitos artistas, consequência do clima de violência e repressão que o país vivia. Consciente do clima de censura ampliado no Brasil, deixou recado para um possível censor:

[...] eu juro por Deus como aquela história da volta da canção romântica, reedição compacta de velhos ídolos e canções eu já sabia que aconteceria. [...] e te digo mais: esperanças de que os próximos festivais clareiem as coisas é bobagem. Não vai clarear nada, mesmo que os grandes medalhões que estão fora voltem para concorrer. Só quem podia continuar clareando um pouco éramos nós: Edu, Chico, Marcos Valle etc., você sabe, não iriam mais clarear porra nenhuma. Depois, eu conheço os compositores que ficaram aí. Você verá, nos próximos festivais, enxurradas de canções ou iê-iê-iês românticos e não os que andaram macaqueando a tropicália recentemente já não terá, coragem de continuar. Vai ser chatíssimo. Ângela Maria (que eu adoro) voltará em grande estilo e Sílvio Caldas (enjoadíssimo) defenderá a canção vencedora. Qualquer coisa assim. Essa história de censura censurando cartas é o fim da picada. Por favor, senhor censor, pare aqui, tenha vergonha, a carta não é para o senhor, vá tomar na bunda. 165

Apesar da agitação cultural que enriquecia os projetos de Torquato Neto, as dificuldades financeiras agravavam-se e o desejo de retornar ao Brasil acentuava- se. Porém, sentia-se inseguro com o cenário político brasileiro, que, mesmo distante, acompanhava atentamente. Em junho de 1969, comentava em carta para o cunhado a situação enfrentada por ele e por diversos exilados naquele momento:

164 Torquato Neto em Paris, 31 mai. 1969. Apud: VAZ, Toninho. Pra mim chega: a biografia de Torquato Neto. São Paulo: Casa Amarela, 2005. p.140. 165 Torquato Neto em Paris, 31 mai. 1969. Apud: Ibidem. p.140. 111

[...] minha situação vai ficando embaraçosa e eu já não sei mais o que pensar. Gostaria de voltar ao Brasil apenas depois que Caetano e Gil fossem liberados e pudessem me contar exatamente o que esses caras sabem e querem. Mas ao mesmo tempo começo a me chatear, não sou daqui, não quero viver aqui e gostaria muito de voltar pra casa no fim do ano. E tenho medo, não sei precisamente de que, tenho a impressão de que não seria preso, mas tenho e sustento o palpite de que eles me guardariam o passaporte e eu não conseguiria sair do Brasil tão cedo. 166

O contexto político no Brasil, marcado pela repressão e violência, tornava-se cada vez mais difícil para aqueles que se opunham ao governo. Após a situação implantada pelo governo Costa e Silva, com a edição do AI-5, que praticamente impedia qualquer manifestação de oposição, uma parcela optou pelo enfrentamento direto, na tentativa de derrubar o governo, por meio da luta armada:

[...] a ilimitada violência associada ao AI-5 convenceu muitas pessoas de que a ditadura estava àquela altura tão firmemente implantada que só poderia ser derrubada pela força das armas. Este foi o argumento final para a adesão de muitos membros da classe média à luta armada. Embora a Igreja Católica permanecesse comprometida com a não-violência e a organização de base entre trabalhadores e camponeses, um grupo originado dos movimentos sociais católicos, a Ação Popular, já endossara a luta armada e o foquismo num congresso clandestino realizado no Uruguai em 1966. A AP era particularmente forte no movimento estudantil: depois de 1964 conquistara muitas das posições eleitorais importantes na UNE e nas organizações estaduais. 167

Em agosto de 1969, após um ataque cardíaco, o General Costa e Silva foi afastado da presidência. A Junta Militar, nesse ínterim, impediu a posse do vice, Pedro Aleixo. Então, a sucessão presidencial foi feita com a escolha do General Emílio Garrastazu Médici.

O governo Médici adotou uma série de medidas para desarticular as manifestações de oposição, como a ampliação da violência, e, ao mesmo tempo,

166 Torquato Neto em Paris, 3 jun. 1969. Apud: VAZ, Toninho. Pra mim chega: a biografia de Torquato Neto. São Paulo: Casa Amarela, 2005. p.141. 167 ALVES, Maria Helena Moreira. EstadoeOposiçãonoBrasil . Bauru - SP: EDUSC, 2005. p.174. 112

utilizou a propaganda ufanista e o “milagre econômico” para obter apoio popular e, sobretudo, da classe média:

As forças de repressão dizimaram as fileiras das organizações clandestinas pelo uso generalizado da tortura, para obter informações que pudessem levar à prisão de outros e ao desmantelamento das redes de apoio dos grupos de guerrilha. Os grupos clandestinos reagiram, seqüestrando mais três diplomatas para conseguir a libertação de militantes importantes. [...] A campanha de repressão consistia não só na institucionalização da tortura, como na técnica de interrogatório e controle político, no desenvolvimento de programas de pacificação e blitz, e na implantação de uma vasta rede policial para levar a cabo, os programas do Aparato Repressivo. 168

Contudo, Torquato Neto, apesar dos receios sobre seu retorno ao Brasil, preparou sua volta, após uma viagem para Espanha e Portugal. Em dezembro de 1969, embarcou para o Brasil, com sua esposa grávida de seis meses.

No retorno ao Brasil, Torquato Neto evidenciava mudanças. Já na aparência revelava a transformação que sofrera no período de autoexílio – adotara o estilo hippie –, com cabelos compridos (no estilo Black Power ) e barba longa. No Brasil, os cenários político e cultural também haviam mudado. O período era de acirramento do clima de repressão e, consequentemente, de “esvaziamento” dos movimentos sociais de oposição. Mas, ao mesmo tempo, novos projetos eram desenvolvidos. Começava no Brasil a expansão da “contracultura” ou cultura marginal, movimento do qual Torquato se aproximou e no qual encontrou artistas e intelectuais com que travaria intenso diálogo:

No Brasil, a contracultura foi um movimento social que procurou romper com a modernização da sociedade brasileira posta em prática de forma autoritária pela ditadura militar, estabelecida no país com o golpe de 1964. [...] No período de 1969 a 1974, apenas a luta armada – além da contracultura – procurava combater a sociedade vigente. Mas, ao contrário da luta armada, que priorizava o combate ao aparato repressivo do Estado, a contracultura dirigia-se para o que, de acordo com a sua visão de mundo, seria o fundamento do autoritarismo: a racionalização da vida social. O questionamento contracultural da racionalidade incidia nas mais diferentes dimensões da vida

168 ALVES, Maria Helena Moreira. EstadoeOposiçãonoBrasil . Bauru - SP: EDUSC, 2005. p.193. 113

cotidiana. [...] suas principais características: a ênfase na subjetividade em oposição ao caráter objetivo/racional do mundo exterior, a aproximação com a “loucura” e a marginalidade, a construção de comunidades alternativas. 169

Os “anos rebeldes”, que marcaram a década de 1960, haviam passado, mas, no Brasil e no mundo, as diversas reivindicações da juventude não foram atendidas. Ao invés de liberdade, viu-se a ampliação do autoritarismo; o uso intensivo da repressão e censura desmobilizava os manifestantes. O período das passeatas, comícios e greves estudantis terminara. Porém, a juventude, principalmente a da classe média, encontrava uma nova forma de contestação social: criticava mediante o comportamento, as atitudes e as novas manifestações culturais o status quo . Rejeitava os valores estabelecidos e buscava construir uma alternativa para o desenvolvimento de seus projetos e ações em face da realidade autoritária vigente.

O movimento da contracultura foi caracterizado por alguns autores como “alienação” ou “desbunde”. Segundo tais autores, tratava-se de um movimento de jovens que rejeitavam a política, a racionalidade, o debate e a mobilização e optavam pelo misticismo, irracionalismo e consumo de drogas como “válvula de escape” para suportar o período de autoritarismo. Tal atitude, de acordo com alguns autores, resultou num período de conformismo e passividade.

Sobre a produção cultural nesse momento, destaca-se a seguinte análise:

Cultura de depressão com variações no irracionalismo, no misticismo, no escapismo, e sob o signo da ameaça, eis os traços essenciais que acompanham alguns setores da produção cultural brasileira a partir de 1969. Suas características apresentam espantosa convergência ideológica: enterra-se arbitrariamente a noção de mimese com base numa concepção reificada da linguagem, declara-se espúria ou careta a esfera do político e, através de um argumento equivocado do perigo da recuperação via indústria cultural ou pelo establishment , faz-se a profissão de fé do silêncio teórico, isto é, a recusa apologética do discurso conceptualizado sobre a produção artística, sobretudo a musical. Isto tudo mesclado a

169 COELHO, Cláudio Novaes Pinto. A Contracultura: o outro lado da modernização autoritária. In: RISÉRIO, Antônio [et. al.]. Anos70: trajetórias. São Paulo: Iluminuras/ Itaú Cultural, 2005. p.39. 114

um culto modernoso do nonsense , a um repúdio à pontilhação racional do discurso. 170

Apesar do inegável aumento do consumo de drogas entre os jovens na década de 70 e da ampliação das discussões “místicas”, muitas vezes ligadas aos efeitos das drogas, o novo comportamento dos jovens que resultou no movimento da contracultura não pode ser considerado “alienado” e muito menos homogêneo. No presente estudo acredita-se que a análise que desqualifica o movimento de contracultura é feita a partir da supervalorização das ações da juventude na década de 1960, considerada mais politizada e engajada, servindo, assim, como referência, um modelo.

Os movimentos de contracultura não podem ser definidos como “esvaziados” politicamente. As ações, os comportamentos, os posicionamentos e as expressões artísticas eram politizados; porém, as estratégias de resistência, de oposição aos autoritarismos eram distintas daquelas vistas na década anterior, mas não menos importantes nem descompromissadas.

Na década de 1970, após a derrota das reivindicações feitas nos “anos rebeldes” e a ampliação do autoritarismo, a postura assumida por muitos jovens pode ser considerada anárquica. A organização de comícios, passeatas, greves e outras manifestações coletivas foi rejeitada. A ação era mais individual do que coletiva, sem dúvida, mas isso não significa conformismo ou passividade, pelo contrário, estes eram rejeitados e combatidos pelos movimentos de contracultura. Por meio de suas atitudes e manifestações – principalmente artísticas –, o protesto, as reivindicações, o debate, a reflexão, a resistência ao autoritarismo e o combate dos preconceitos foram evidenciados, a partir da reinvenção da ação política, ampliada e transformada.

Nesse período, muitos jovens perceberam que a política está contida em todas as dimensões da vida em sociedade, e não apenas nas formas institucionalizadas. A ação política estava no cotidiano e, mediante os

170 VASCONCELOS, Gilberto. MúsicaPopular: de olho na fresta. São Paulo: Graal, 1977. p.66-7. 115

comportamentos mais corriqueiros, muitos jovens continuavam a reivindicar a liberdade, demonstrando que a oposição ainda era possível, necessária e viável. 171

Inconformado com o cenário político e cultural do país nos anos 70, Torquato Neto desenvolveu parcerias e projetos com Hélio Oiticica – o principal interlocutor, que, mesmo morando em Nova York até 1978, manteve o diálogo frequente por meio de correspondências –, Ivan Cardoso, Júlio Bressane, Rogério Sganzerla, Luciano Figueiredo, Oscar Ramos, Péricles Cavalcanti, Rogério Duarte, , Neville Duarte de Almeida, Waly Salomão, Carlos Vergara, Reynaldo Jardim, José Simão, Duda Machado, , Jards Macalé, Zé Português, Carlos Pinto, Lygia Clark e Lygia Pape. Eram artistas plásticos, fotógrafos, cineastas, compositores, músicos, poetas, artistas gráficos, escritores e jornalistas que compartilhavam o discurso contestador e a postura anárquica. Buscavam e recriavam os espaços para a divulgação de suas produções e, por meio da pesquisa e do experimentalismo, propunham uma nova estética, contrária ao status quo cultural vigente, todos alinhados ao movimento da contracultura.

As referências intelectuais marcantes no movimento de contracultura foram: Sigmund Freud, Jean-Paul Sartre e Herbert Marcuse, entre outros. Na produção de Torquato Neto, percebe-se a influência de tais pensadores, como a discussão sobre o existencialismo proposto por Sartre, principalmente as reflexões publicadas na obra O Ser e o Nada, de 1943, sobre a busca filosófica da consciência sobre si e da autocerteza, fundamentada no cogito 172 – consciência de si mesmo –, na necessidade de explicar, racionalizar sua realidade, sua essência.

Segundo a tese de Sartre, o homem é um ser livre. Por isso, escolhemos, definimos e construímos nossa vivência no mundo a partir de nossas escolhas. Tal liberdade torna os homens, portanto, totalmente responsáveis pela sua existência. Assim, a responsabilidade apresenta-se como um encargo, gerando angústia, que, ao mesmo tempo, revela nossa total liberdade. Sartre entende a liberdade como

171 Para uma análise aprofundada da contracultura no Brasil, conferir o estudo de: COELHO, Frederico. Eu, brasileiro, confesso minha culpa e meu pecado: cultura marginal no Brasil das décadas de 1960 e 1970. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010. O tema da contracultura será retomado no capítulo IV deste estudo. 172 Elaboração inicialmente proposta pelo filósofo Descartes, o cogito designa primeira verdade que resiste, graças à sua evidência, à dúvida metódica. Sinônimo da consciência de si mesmo do sujeito pensante, conforme: RUSS, Jacqueline. DicionáriodeFilosofia . São Paulo: Scipione, 1994. p.40. 116

estritamente individual, tal como a decisão e as escolhas. Dessa forma, conclui que o homem é o que faz com suas escolhas.

As reflexões sobre a tese de Sartre aparecem no poema intitulado “Cogito”, apresentado na epígrafe deste capítulo, no qual Torquato Neto descreve a si mesmo, num exercício de autorreflexão.

Os pensamentos de Sartre sobre a existência e a liberdade foram discutidos e criticados por Herbert Marcuse, que considerou a obra O Ser e o Nada como um retorno à tradição do racionalismo alemão e profundamente idealista:

Sartre define o existencialismo como uma doutrina segundo a qual a “existência precede e perpetuamente cria a essência”. Em sua filosofia, no entanto, a existência humana, ao criar sua essência, é ela mesma determinada pela estrutura ontológica perpetuamente idêntica do homem, e as diversas formas concretas da existência humana servem somente como exemplo dessa estrutura. A análise existencial de Sartre é estritamente filosófica na medida em que prescinde dos fatores históricos, constitutivos da concretude empírica: esta meramente ilustra as concepções metafísicas e meta-históricas de Sartre. [...] O existencialismo torna-se, assim, uma parte da ideologia que ataca, e seu racionalismo é ilusório. [...] Atrás da linguagem niilista do existencialismo oculta-se a ideologia da livre concorrência, da livre iniciativa e da igualdade de oportunidades. 173

Das leituras de Marcuse, Torquato Neto incorporou as reflexões sobre a sociedade industrial, o consumismo, a indústria cultural, a liberdade, a sexualidade, a mobilização social e a revolução. As discussões apresentadas pelo filósofo, principalmente aquelas presentes na obra “ Eros e a Civilização ”, circularam no mundo inteiro e causaram impacto e influência na metade da década de 1960, sobretudo entre a juventude de classe média – universitários que tinham acesso a tal leitura –, favorecendo o surgimento de uma nova forma de organização e contestação social: os movimentos de contracultura.

173 MARCUSE, Herbert. O existencialismo: comentários a O Ser e o Nada. In: MARCUSE, Herbert. CulturaeSociedade . Vol.2. Tradução de Wolfgang Leo Marr, Isabel Maria Loureiro e Robespierre de Oliveira. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2010. p.53, 54 e 66. 117

Na medida em que o trabalhismo, a mão-de-obra sindicalizada, atua em defesa do status quo , e na medida em que a quota- parte de trabalho humano no processo material de produção declina, as aptidões e capacidades intelectuais tornam-se fatores sociais e econômicos. Hoje, a recusa organizada dos cientistas, matemáticos, técnicos, psicólogos industriais e pesquisadores de opinião pública poderá muito bem consumar o que uma greve, mesmo uma greve em grande escala, já não pode conseguir, mas conseguia noutros tempo, isto é, o começo da reversão, a preparação do terreno para a ação política. [...] Hoje, a luta pela vida, a luta por Eros, e a luta política. 174

Foi nesse contexto de debates, ampliação do autoritarismo e movimentos de contracultura que, em 27 de março de 1970, nasceu o filho de Ana Maria e Torquato Neto, Thiago Silva de Araújo Nunes. Dois meses depois, cada vez mais deprimido, Torquato se submeteu a duas internações: primeiro no Sanatório de Botafogo e depois no Hospital Psiquiátrico Pedro II, ambos no Rio de Janeiro.

A internação em sanatórios ou “hospícios” era recorrente no Brasil, na década de 1970, especialmente entre os jovens envolvidos nos movimentos de contracultura, inclusive como prática repressiva:

Ao assumir o rompimento com a racionalidade como uma forma de dissidência social, a contracultura expunha-se à ação repressiva da modernização autoritária. A repressão às práticas sociais contraculturais não se deu apenas pela prisão dos hippies, mas também pelo internamento dos “loucos” – um dos modos pelos quais os contraculturais se denominavam – nos hospitais psiquiátricos: a “loucura” contracultural era, simultaneamente, uma condição assumida pelos hippies e um estigma a eles atribuído pelos “caretas” (os normais). 175

Naquele momento, mesmo tendo firmado novas parcerias musicais – Carlos Pinto, Geraldo Azevedo, Jards Macalé e Luiz Melodia – e continuado a compor, sua prioridade deixava de ser a música e, cada vez mais, passava a ser o cinema. Aproximou-se do projeto Super-8, um novo formato cinematográfico comercializado a partir de 1965 pela Kodak. Proposto inicialmente apenas para uso amador, o baixo

174 MARCUSE, Herbert. Erose Civilização: uma interpretação filosófica do pensamento de Freud. 8ªed. Tradução de Álvaro Cabral. Rio de Janeiro: LTC, 2009. p.23. 175 COELHO, Frederico. Eu,brasileiro,confessominhaculpaemeupecado: cultura marginal no Brasil das décadas de 1960 e 1970. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010. p.42. 118

custo e a qualidade tornaram o Super-8 extremamente popular entre estudantes e cineastas iniciantes. Na década de 1970, o novo formato passou a ser o preferido para o desenvolvimento do cinema experimental. Torquato tornou-se seu principal divulgador – por meio da coluna Geléia Geral , no jornal Última Hora – e defensor intransigente, fato que resultou em enorme e acirrada polêmica com os representantes do Cinema Novo, questão que será abordada no capítulo IV deste estudo.

De volta ao Brasil, em 1971, durante o mês de junho, assinou a coluna Plug , no jornal Correio da Manhã. O convite foi feito por Reynaldo Jardim, o responsável pelo antigo suplemento O Sol, no Jornal dos Sports :

Àquela altura, o Correio da Manhã era outro, bem diverso dos tempos de heróica resistência política. Pressionada pelo lento sufocamento financeiro do jornal, a diretora Niomar Bittencourt arrenda a empresa dando início a um processo de galopante descaracterização e despolitização. Neste vácuo de identidade editorial do Jornal do Brasil e também pela experiência de O Sol , decidiu criar um suplemento musical semanal, o Plug . Editado por Luís Carlos Sá, também compositor, o suplemento circulou entre janeiro e junho de 1971. Só em seus quatro últimos números, transformado em tablóide, teve a participação de Torquato, que era o “editor de cinema” e, ao lado de Waly Salomão, iniciava ali uma campanha sistemática e violenta contra o Cinema Novo – e a favor do Super 8 – que chegaria ao auge na Geléia Geral. 176

O suplemento Plug, editado pelo compositor Luís Carlos Sá, era semanal e circulou entre janeiro e junho de 1971, embora Torquato Neto só tenha colaborado no mês de junho, em parceria com Waly Salomão. Nessa coluna efêmera o tema central foi a produção do cinema nacional, também marcada pela polêmica:

Em meio à arrancada geral , muito vivo, também se arrancou – mesmo quando veio já havia se arrancado. Agora já foi. Pode transar à vontade por aí. Pode até voltar: já não será mais a velha sopa de colher para os meninos. Ou será, ou não será – não interessa mais. Glauber foi o cineasta máximo da consciência brasileira em transe e isso já passou, bonecos. Agora respondam: quem será, onde se esconde o

176 COELHO, Frederico. Eu,brasileiro,confessominhaculpaemeupecado: cultura marginal no Brasil das décadas de 1960 e 1970. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010. p.17. 119

cineasta bem furnido do desenvolvimento nacional? As inscrições estão abertas. Na Embrafilmes. E é pra já. 177

A participação de Torquato Neto na coluna Plug revelava sua afinidade com a cultura pop , da qual se aproximou no período em que esteve na Europa. A proposta de Torquato e Waly Salomão era radicalizar a programação do caderno, mediante uma diagramação “psicodélica”, que seria retomada na elaboração da revista Navilouca .

Na coluna, além da forma, Torquato Neto também radicalizava nos textos, mesmo que de forma ainda incipiente. O coloquialismo utilizado já iniciava o processo para romper com a forma tradicional de produção dos periódicos. Torquato Neto apresentava uma linguagem própria da imprensa alternativa:

[...] Mais uma vez, o jornalismo vai ser uma tribuna para Torquato Neto. [...] O elogio do Super-8 e das referências ligadas à cultura underground – ou udigrudi - não são tópicos de uma nova agenda ou movimento, mas, ao contrário, elementos que se pretendem diluidores de todos os movimentos organizados. 178

Após a breve passagem pelo Correio da Manhã, Torquato Neto foi responsável pela coluna diária Geléia Geral , do jornal Última Hora , no período de agosto de 1971 a março de 1972. O assunto abordado era a produção cultural vigente: música, cinema e teatro. Na coluna, Torquato Neto manteve a ideia, já anunciada para a coluna Plug , da seção Do lado de fora – comentando a produção cultural estrangeira, que conhecia, sobretudo, por meio das correspondências trocadas com o amigo Hélio Oiticica:

Na Geléia Geral, a coluna que estou fazendo em UH, tenho publicado quase tudo o que fico sabendo daí (vou mandar alguns xeroxes pra você). Quando soube do boato da tal exposição em São Paulo, arrisquei e dei uma nota por minha conta afirmando que você não iria fazer exposição nenhuma, nem capas para Veja. Agora, depois que chegou seu texto

177 TORQUATO NETO. Plug. CorreiodaManhã . 12 jun. 1971. 178 PIRES, Paulo Roberto (Org.). TorquatoNeto: Torquatália – Geléia geral. Rio de Janeiro: Rocco, 2004. p.17-8. 120

sobre o assunto, publiquei por lá também porque acho esse assunto urgente e ficar esperando que esses jornais saiam é perder tempo. 179

Na coluna Geléia Geral , Torquato Neto rompeu de vez com a forma tradicional de produção textual. Utilizava uma linguagem mais do que coloquial, muitas vezes, indecifrável. A coluna era um canal de comunicação com os amigos, tanto os que estavam no Brasil como aqueles que estavam do “ lado de fora ”, como Hélio Oiticica, com quem mais dialogou. Na seção Pop Pop , divulgava notas sobre as estreias teatrais e musicais, comentava os lançamentos dos discos e anunciava os projetos da imprensa alternativa: como Flor do Mal , Presença, Rolling Stones e Verbo Encantado .

Como colunista, Torquato Neto garantia sua sobrevivência, mas sobretudo discutia os temas que julgava importantes na produção cultural, utilizando esses espaços para opinar, sugerir mudanças necessárias no cenário da cultura e política brasileira e denunciar toda forma de autoritarismo:

Lidos em conjunto, os textos reunidos formam uma crônica apaixonada – e por isso mesmo fiel – de uma época movida a rupturas, fossem elas provocadas por revolução ou repressão. Do espírito coletivista e esperançoso de Música Popular Brasileira ao individualismo cético de Geléia Geral, Torquato Neto jornalista fez cumprir de forma sempre surpreendente uma exigência básica desta atividade que ele exerceu de forma saudavelmente amadorística: tornou seu presente mais inteligível para si mesmo e, sobretudo, para as gerações seguintes. 180

Por meio da análise das colunas de Torquato Neto, percebe-se que eram para ele espaços de militância. Utilizava-as para anunciar todas as formas de resistência em andamento no país. Seus comentários, entrevistas e notas não eram feitos apenas para informar o público sobre a programação cultural, mas para explicitar que, mesmo sob a severa censura, havia resistência, mediante a produção

179 Torquato Neto, Rio, 16 jul. 1971. Apud: PIRES, Paulo Roberto (Org.). TorquatoNeto: Torquatália - do lado de dentro. Rio de Janeiro: Rocco, 2004. p.248. 180 PIRES, Paulo Roberto (Org.). TorquatoNeto: Torquatália – Geléia Geral. Rio de Janeiro: Rocco, 2004. p.23. 121

artística. Dessa forma, procurava não apenas criticar o autoritarismo, mas provocar mudanças. Afirmou: “As palavras, eu aprendi novamente, não são armas inúteis.” 181

A militância de Torquato Neto era a forma característica de engajamento nos anos 70, pois, “diferentemente dos anos 60, em geral, esse engajamento significou um apoio às causas de esquerda a título individual, do artista como cidadão – ou incluindo em seu trabalho veiculado pela indústria cultural alguma mensagem política”. 182

Em carta enviada ao jornalista Almir Muniz (provavelmente redigida no período de 1971 a 1972, pois, apesar de não ter sido datada, o texto revela que Torquato Neto ainda estava à frente da coluna Geléia Geral , no jornal Última Hora ), expressou a importância de “ocupar espaços” e resistir:

Almir, Rasgue em seguida, please, no documents. Não estou encontrando outro jeito de falar normalmente com você. Há muito confete no ar. Na verdade mesmo eu só quero é que você compreenda e pronto, sem precisar tomar qualquer “providência”. Escute: não está na hora de transar derrotas. Eu digo na porra da geléia: ocupar espaço, amigo, estou sabendo, como você, que não está podendo haver jornalismo no Brasil e que – já que não deixam – o jeito é tentar, não tem outro que não seja desistir. E eu sinceramente acredito que não está na hora de desistir: ou a gente ocupa e mantém a porra do espaço, pra utilizá-lo, pra transar, ou a gente desiste. Eu prefiro o “sacrifício”. 183

Na carta de Torquato Neto, nota-se a preocupação com a censura, o receio do que poderia ocorrer caso a carta fosse lida; por isso, recomendava a sua destruição, logo após a leitura. Observa-se também o tom de “urgência”. Torquato Neto revelava sua preocupação com a possível decisão do jornalista Almir Muniz de desistir de seus projetos, em razão da intensificação dos mecanismos de repressão.

181 TORQUATO NETO. ÚltimaHora . 3 nov. 1971. 182 RIDENTI, Marcelo. Embuscadopovobrasileiro: artistas, da revolução, do CPC à era da T. Rio de Janeiro: Record, 2000. p.335. 183 Torquato Neto, em correspondência enviada a Almir Muniz, sem data. Apud: PIRES, Paulo Roberto (Org.). TorquatoNeto: Torquatália - do lado de dentro. Rio de Janeiro: Rocco, 2004. p.286. 122

Percebe-se no trecho apresentado a proposta e clareza que Torquato Neto tinha de sua atividade: a coluna Geléia Geral , no jornal Última Hora , era uma estratégia de resistência, ou seja, diante da ampliação dos mecanismos de cerceamento das liberdades, a alternativa para aqueles que insistiam na oposição, decidindo pela resistência, seria ocupar todos os espaços disponíveis e “driblar” a censura.

Em outro trecho da carta, Torquato Neto revelou sua estratégia de resistência, explicando que não se tratava de “adesismo” ou “conformismo” a decisão de ocupar os meios de comunicação de massa, pelo contrário. Defendia que esses espaços deveriam ser utilizados para fazer a oposição:

[...] esse Ari de Carvalho é um homem perigoso, mas você não me diga que – seja o que for – não há bastante malandragem na jogada. Por enquanto, esse imbecil está deixando (explico já) a gente utilizar um espaço que está sendo cogitadíssimo: não é jogo de inimigo, é porque não está pintando outra: eu ou você podíamos muito bem optar (desculpe) pelo copidesque do globo, que é simples, bem pago e tal, cômodo e cretino, do ponto de vista mesmo profissional, afasto de mim esse cálice: o Ari de Carvalho, eu não faço a mínima idéia por que, está garantindo não o empreguinho da gente, que é uma merda, mas isso que eu não chamo espaço e não quero que me ocupem. Eu digo: brechas [...]. 184

No trecho citado, Torquato Neto expôs a situação vivida no país. E, embora os espaços para oposição estivessem reduzidos, em face da ampliação da censura, ainda visualizava possibilidades de resistência. As “brechas” existiam e deveriam ser ocupadas. Evidenciou também que a atividade profissional não era fundamental para ele. Dizia, explicitamente, não estar satisfeito com o emprego que tinha, mas enxergava na coluna do jornal Última Hora um canal de comunicação importante para manifestar-se contra a situação vivida. Na carta, extensa, reiterava sua posição e solicitava, desesperadamente, ao amigo que entendesse sua proposta:

184 Torquato Neto, em correspondência enviada a Almir Muniz, sem data. Apud: PIRES, Paulo Roberto (Org.). TorquatoNeto: Torquatália - do lado de dentro. Rio de Janeiro: Rocco, 2004. p.286. 123

[...] eu digo brechas. É por elas, amigo. Essa bosta do última hora é uma brecha que está pintando. Eu não tenho que agradecer a nada nem muito menos de derrubar a permissividade. Eu só quero é o poder, sabe? Política. A última hora tem que avisar solenemente ou não à empresa que pensar que nós faríamos o correio, caso fechasse, seria o cúmulo do desrespeito. Essas palavras funcionam por lá, amigo, confundir a porra do inimigo. Eu acho, sinceramente, que a última hora não deve parar numa hora dessas, entregação, dar de presente para a agência nacional, por exemplinho? Eu quero manter esse estado crescente, porque eu acredito firme que sem malandragem não há salvação. Isso é perigoso de dizer, mas assim mesmo eu corro o risco porque você é você: abaixo esse bomgostinho [ sic ] da gente, abaixo concordar com esse palavreado. Devemos resistir, na marra e quebrando a cara. Você pensa que eu faço aqueles títulos do João Ribeiro de brincadeira? Não é, é a sério mesmo. Cordel, notícias, gb é dor e neurose de pavor. 185

Nesse excerto, Torquato Neto revelou suas formas de “driblar” a censura – mediante a “malandragem”, ou seja, era preciso utilizar toda a criatividade para “despistar” os censores e comunicar a mensagem. Embora reconhecesse o risco da iniciativa, decidira seguir a estratégia, pelo menos enquanto houvesse “brechas”. Encerrou a carta reiterando a necessidade de seguir resistindo, “ocupando todos os espaços possíveis”, pois ainda era possível. Do contrário, teria de se submeter, se acomodar:

[...] eu lhe garanto que na geléia geral brasileira, aqui e agora, o demônio está vencendo, mas eu não posso é desistir. Escrevi lá: abaixo a geléia geral. Três vezes, as pessoas pensaram que era a coluna. Tradução: não sabem onde é que vivem e a alienação grassa. Como os jornais são péssimos eu não leio dos jornais – claro, você quer entregar essa possibilidade para os caras e por questões emocionais. Não pode, Almir: não vamos prestigiar Ari de Carvalho, mas vamos ludibriar Ari de Carvalho. Ou é assim ou não acredita nas transas. Pintemos onde? Onde pudermos. Pintemos nos jornais, por exemplo: só se publica o que é possível, mas se redige como quer. Não vamos desistir: entregar é agora ali dentro e naquele papo, transar derrotas satisfeitas. Isso não é possível, aqui, agora. A morte só é vingança quando é a morte do inimigo, a minha não. Quer dizer: eu não sei como é que se explica e sou contra explicações convincentes. Vamos deixar o barato das emoções e vamos roer essa parede. Esse papo é pra informar que serei

185 Torquato Neto, em correspondência enviada a Almir Muniz, sem data. Apud: PIRES, Paulo Roberto (Org.). TorquatoNeto: Torquatália - do lado de dentro. Rio de Janeiro: Rocco, 2004. p.287. 124

até democrático, porque tenho medo das línguas do Brasil, mas sou totalmente contra parar o outro jornal, o nosso. Como é o nome disso? 186

Embora reiterasse a necessidade de seguir resistindo, a situação política enfrentada fazia com que Torquato Neto planejasse retornar brevemente para a Europa. Mas as dificuldades financeiras o forçavam a adiar sua saída do país. Enquanto aguardava reunir recursos necessários para a viagem, mantinha-se ocupado. Esboçava projetos, entre eles a publicação de um livro, uma espécie de autobiografia:

Ninguém sabe o que fazer, porque a sufocação só deixa pensar em dar no pé, mas também nenhum de nós está podendo. Uma droga. José Álvaro editor quer lançar uma coleção chamada na corda bamba, com transas de “underground” etc. Capinam transou muito bem e Waly mais eu, se continuarmos andando e podendo, também publicaremos um livro logo de saída. O de Waly é aquele mesmo, modificado por questões de custo. O meu, estou tentando organizar agora, chama-se do lado de dentro e a base é mesmo a geléia geral, mais coisas antigas, coisas do sanatório e muito pouca coisa escrita só para o livro, mas mesmo assim, alguma. Vamos ver. 187

A obra de Waly Salomão, mencionada na carta por Torquato, trata-se do livro intitulado “ Me segura qu’eu vou dar um troço ”, que foi publicado em 1972. O título “ Me segura ” ironiza os slogans oficiais propagados pela campanha ufanista do governo Médici: “ Ninguém segura este país ”. Sobre a publicação do livro, Waly comentou: “[...] Esse livro pouco significa para mim se não representar uma energia propulsora, se não apontar para a superação da asfixia do quadro circense em que nós estamos balançando na própria corda bamba.” 188

186 Torquato Neto, em correspondência enviada a Almir Muniz, sem data. Apud: PIRES, Paulo Roberto (Org.). TorquatoNeto: Torquatália - do lado de dentro. Rio de Janeiro: Rocco, 2004. p.289. 187 Comentário de Torquato Neto. Apud: Ibidem. p.264-5. 188 Comentário de Waly Salomão. Apud: HOLLANDA, Heloisa Buarque de; GONÇALVES, Marcos Augusto. A ficção da realidade brasileira. In: NOVAES, Adauto (Org.). Anos 70: ainda sob a tempestade. Rio de Janeiro: Aeroplano/ SENAC, 2005. p.105. 125

Porém, Torquato, mesmo motivado com seus projetos, apresentava comportamento cada vez mais introspectivo, melancólico e depressivo, levando-o a nova internação:

No dia 7 de outubro, depois de uma seqüência de excessos e longas noites de depressão, Torquato decidira se internar numa clínica de repouso – ou sanatório para doentes psíquicos, como dizia o Serviço Nacional de Doenças Mentais. Escolheu o Hospital Odilon Galotti, no bairro Engenho de Dentro [...]. Em sua ficha, construída a partir da primeira entrevista com o médico Oswaldo dos Santos, diretor do hospital, está escrito: Idade, 24 anos. Faz uso de bebidas alcoólicas. História de tentativas de suicídio. Começou a ficar doente a partir de 1968... Deu entrada com tristeza e estado de ânimo muito abalado. Estado psíquico: lúcido e coerente. 189

Naquela altura, Torquato já havia se submetido a três internações. O principal agravante da depressão era o álcool, consumido desde sempre em quantidades industriais. Em sua viagem, as drogas ocupavam um papel menos importante do que na maioria de seus companheiros de geração: a maconha era usada aqui e ali e sua atenção maior era para o LSD – em 1971 passou um mês consumindo ácido diariamente e anotando suas reações. A ligação com a bebida e o ácido não nublava, no entanto, o rigor que ele mesmo se impunha. 190

Apesar do tratamento, as crises depressivas persistiam, debilitando ainda mais sua saúde física e psíquica:

O poeta, antes polêmico, possuidor de uma verve crítica na fase do tropicalismo ou que acreditava no poder criativo e transformador da palavra, vai dando lugar a um ser fragilizado e desencantado com o mundo. O anti-herói rebelde, romântico e solitário, vai perdendo o poder de resistir e demonstra um niilismo profundo, descrente do poder da linguagem.191

189 VAZ, Toninho. Pramim chega: a biografia de Torquato Neto. São Paulo: Casa Amarela, 2005. p.158. 190 PIRES, Paulo Roberto (Org.). Torquato Neto: Torquatália - do lado de dentro. Rio de Janeiro: Rocco, 2004. p.23. 191 ANDRADE, Paulo. TorquatoNeto: uma poética em estilhaços. São Paulo: Annablume/ FAPESP, 2002. p.142. 126

A fragilidade e o desencanto foram evidenciados por Torquato Neto também por meio da poesia:

Agora não se fala mais toda palavra guarda uma cilada e qualquer gesto é o fim do seu início; agora não se fala nada e tudo é transparente em cada forma qualquer palavra é um gesto e em sua orla os pássaros de sempre cantam assim, do precipício; a guerra acabou quem perdeu agradeça a quem ganhou não se fala. Não é permitido mudar de idéia. É proibido não se permite nunca mais olhares tensões de cismas crises e outros tempos está vetado qualquer movimento do corpo ou onde que alhures toda palavra envolve o precipício e os literatos foram todos para o hospício e não se sabe nunca mais do fim. Agora o nunca. Agora não se fala nada, sim, fim, a guerra Acabou E quem perdeu agradeça a quem ganhou 192

No poema, podem-se observar os destaques: “ agora não se fala nada ”, “ a guerra acabou ”, “ não é permitido mudar de idéia ”, “ É proibido ”, “ está vetado qualquer movimento ”. Tais fragmentos evidenciam a descrença do autor diante do contexto repressivo que o país vivia:

[...] poema que vem reafirmar o modo como as relações de poder, ou seja, a repressão na sociedade, vai aniquilando o indivíduo e levando-o à recusa da linguagem e ao silêncio. Este é um poema que revela o esgotamento de saídas e o recrudescimento da violência. 193

192 Poema Literato Cantabile , de Torquato Neto. Apud: PIRES, Paulo Roberto (Org.). TorquatoNeto: Torquatália - do lado de dentro. Rio de Janeiro: Rocco, 2004. p.169. 193 ANDRADE, Paulo. TorquatoNeto: uma poética em estilhaços. São Paulo: Annablume/ FAPESP, 2002. p.143. 127

Escritor compulsivo, Torquato Neto também registrou suas passagens pelos sanatórios. No diário produzido no Hospital Psiquiátrico Pedro II revelou seu estado de espírito, suas angústias e dilemas:

[...] estou fazendo tempo enquanto os remédios que tomei fazem efeito e vou dormir. Este sanatório é diferente dos outros por onde andei – talvez seja o melhor de todos, o único que talvez possa me dar condições de não procurar mais o fim da minha vida. Soube hoje que o Rogério esteve aqui, antes. Preciso muito conseguir explicar ao médico tudo o que é necessário. Se eu não escapar desta vez – estou absolutamente certo de que jamais conseguirei outra. Ainda hoje, no entanto, sentado aqui, escrevendo, paro e vejo bem lá dentro de mim, acesa, a luz que me guia para a destruição. Não tenho vontade de viver, mas quero. Não sei por que continuar, mas quero. Alguém vai ter que me explicar alguma coisa e é por isso que vou ficar aqui, até que Deus dê bom tempo. Não sei de nada. Não quero viver, mas preciso. Preciso aprender e talvez aprenda aqui, com os médicos daqui e em companhia dessa gente com quem aprenderei a conversar, conviver e aprender. 194

No trecho supracitado, Torquato mostrava seu estado depressivo acentuado, ressaltava a internação como sendo sua última chance de recuperação. Afirmava não ter vontade de viver, mas ainda resistiria, afirmando “quero”. Demonstrava estar disposto a tentar superar a crise e continuar vivendo. Porém, nas anotações feitas em 9 de outubro, revelava acentuado pessimismo com relação ao tratamento e demonstrava sentir “profunda solidão”:

[...] aqui dentro – e é óbvio – os piores dias são sábados e os domingos. Eu não sei como acreditar mais em tudo isso – hoje é sábado, amanhã é domingo, depois é segunda etc. Aqui dentro é mais fácil. Mas a volta ao lar, ao útero, o encontro com Deus – esta pode ser a tentação do demônio. Mas não é não. Deus está solto e foi Caetano quem gritou primeiro. Posso reconhecê-lo em seus disfarces e vou ao seu encontro como – exatamente – sei que vou morrer. Lá fora, os piores dias são todos, principalmente quando me custam vinte e quatro horas de medo, de solidão e monólogos. Por isso é difícil participar da contagem regressiva e esperar por domingo, segunda, terça, etc.: a ilusão dos que não compreendem que o número

194 Torquato Neto, 7 out. 1971. Apud: PIRES, Paulo Roberto (Org.). TorquatoNeto: Torquatália - do lado de dentro. Rio de Janeiro: Rocco, 2004. p.321. 128

zero é o princípio e o fim de tudo e que a vida é um processo linear que ao mesmo tempo em que vai, está voltando. 195

O consumo de álcool era o principal problema enfrentado por Torquato, o que agravava seu estado depressivo. Em outra anotação feita em seu diário, ratificava o compromisso de resistir e superar-se. Aconselhando a si mesmo, escreveu:

É preciso não beber mais. Não é preciso sentir vontade de beber e não beber: é preciso não sentir vontade de beber. É preciso não dar de comer aos urubus. É preciso fechar para balanço e reabrir. É preciso não dar de comer aos urubus. Nem esperanças aos urubus. É preciso sacudir a poeira. É preciso poder beber sem se oferecer em holocausto. É preciso. É preciso não morrer por enquanto. É preciso sobreviver para verificar. Não pensar mais, na solidão de Rogério, e deixá-lo. É preciso não dar de comer aos urubus. É preciso enquanto é tempo não morrer na via pública. 196

Torquato Neto recebeu alta em 12 de novembro de 1971 e registrou em seu diário suas expectativas. Sem revelar otimismo, mostrava que não se sentia recuperado:

[...] anoto que saí hoje do hospital, todo esse tempo depois. É tudo como é: aqui estar, de volta como sempre, mais uma vez. Não sei direito, hoje, o que pode surgir disso tudo, sei o que isso significa e quanto pesa a mais para a adição (paralela à contagem regressiva?) [...] como todo dia é dia D, e disso estou certo, concluo com este “cinismo” lógico: daqui pra frente, podem crer, posso crer, tudo vai ser diferente. Torquato rides again! upa, upa! 197

[...] tudo continua. Continua parado no centro de minhas especulações, e não sei dizer se já consegui me desfazer de qualquer uma delas. Estou morrendo, mais uma vez eu morro soterrado em minhas perplexidades – não sei para o quê estou – e deixo andar. É preciso que eu adquira condições que me permitam sobreviver. O que é sobreviver? Tenho conseguido sobreviver até aqui, mas... o que vivo, o que consigo escrever, o que posso ir sendo são meus bens. Não disponho de outros. O que não sou me mata: assim, assado, sempre: tudo continua

195 Torquato Neto, 9 out. 1971. Apud: PIRES, Paulo Roberto (Org.). TorquatoNeto: Torquatália - do lado de dentro. Rio de Janeiro: Rocco, 2004. p.322. 196 Torquato Neto, 20 out. 1971. Apud: Ibidem. p.326. 197 Torquato Neto, 12 nov. 1971. Apud: Ibidem. p.326. 129

como sempre, o mesmo esquema para o fim, a mesma vida de cocô melado, a mesma merda. Só Deus pode me salvar, mas eu não conheço Deus nem sei onde procurá-lo. Disse que estou morrendo – uma vez mais – vivo só pra isso. 198

Em 1972, após a frustração vivida com o cancelamento da coluna Plug , do jornal Correio da Manhã , motivou-se com um novo projeto idealizado com Waly Salomão: a revista Navilouca. Mas, apesar do empenho e das expectativas de Torquato, a revista foi publicada somente em 1974, dois anos após a sua morte.

No cinema, participou como ator dos filmes “ Nofestratu do Brasil ”, “ A múmia volta a atacar ”, ambos dirigidos por Ivan Cardoso, “ Helô e Dirce ”, de Luiz Otávio Pimentel, e “ Adão e Eva no paraíso de consumo ”, do qual foi protagonista, dirigido por Carlos Galvão, filmado em Teresina. Ainda dirigiu o filme “ O Terror da Vermelha ”, que também se passa em Teresina:

[...] com esse filme, Torquato procurou pôr em prática experimentos com a linguagem cinematográfica. O filme apresenta uma ágil composição dos planos, uma câmera segura e bem desenvolvida. De força surpreendente, o filme é uma espécie de ajuste de contas geral de Torquato com sua memória: as sequências em ruas, praças, estações e quintais de Teresina apontam para isso, mas sem cair em clima nostálgico. O protagonista do filme é um serial killer desengonçado que sai estrangulando e apunhalando a todos, como se rompesse com os elos afetivos e do passado, um personagem carregado de pistas biográficas do próprio Torquato. 199

Tudo se passa com a chegada em Teresina (Vermelha é um bairro da cidade) de um jovem, declarado alter-ego de Torquato (vivido por Edmar Oliveira), que esfrega a boca sem parar, parodiando Jean-Paul Belmondo em Acossado . Ele caminha pelas ruas vazias e passa a assassinar sistematicamente todos os amigos (até o próprio Torquato), poupando apenas os pais (vividos efetivamente por Heli e Salomé, pais do diretor). 200

198 Torquato Neto, 9 dez. 1971. Apud: PIRES, Paulo Roberto (Org.). TorquatoNeto: Torquatália - do lado de dentro. Rio de Janeiro: Rocco, 2004. p.327-8. 199 BEZERRA FILHO, Feliciano José. A escritura de Torquato Neto . São Paulo: Publisher Brasil, 2004. p.65-6. 200 PIRES, op. cit., p.190. 130

Apesar dos projetos, Torquato revelava que se “sentia esgotado”. Dessa forma, decidiu-se pela morte na madrugada de 10 de outubro de 1972, após ter comemorado seu aniversário de 28 anos. Suicidou-se em seu apartamento, sufocado pelo gás aberto no banheiro. Ao lado de seu corpo foi encontrado um bilhete, seu último manifesto:

Atesto q FICO. Não consigo acompanhar o progresso de minha mulher ou sou uma grande múmia que só pensa em múmias mesmo vivas e lindas feito a minha mulher em sua louca disparada para o progresso. Tenho saudades como os cariocas do tempo em que me sentia e achava que era um guia de cegos. Depois começaram a ver e enquanto me contorcia de dores o cacho de banana caía. De modo q FICO sossegado por aqui mesmo enquanto dure. Ana é uma SANTA de véu e grinalda com um palhaço empacotado ao lado. Não acredito em amor de múmias e é por isso que eu FICO. E vou ficando por causa de este AMOR. Pra mim, chega. Vocês aí, peço o favor de não sacudirem demais o Thiago. Ele pode acordar. 201

Torquato Neto já estava afastado do grupo tropicalista desde 1968, embora tenha continuado a produzir músicas. Ele escreveu letras de canções e poemas até o ano de sua morte (1972), elaborou roteiros, dirigiu e produziu filmes em Super-8. Todavia, revelou, mediante o texto deixado ao lado de seu corpo, descrença na possibilidade de continuar inovando e criando. No bilhete evidenciou sua angústia pela falta de capacidade intelectual-artística. Dessa forma, revelava-se derrotado e assim:

[...] a “solução” encontrada por Torquato Neto para o círculo vicioso que o colocava entre a loucura e a racionalização autoritária foi a de encontrar um “lado de fora” saindo da vida. Uma resposta que é sintomática da inviabilidade naquele momento, de uma racionalidade alternativa, em virtude da derrota sofrida em 1968 pela luta em prol da democratização da sociedade brasileira. 202

201 VAZ, Toninho. Pramim chega: a biografia de Torquato Neto. São Paulo: Casa Amarela, 2005. p.200. 202 COELHO, Cláudio Novaes Pinto. A Contracultura: o outro lado da modernização autoritária. In: RISÉRIO, Antônio [et. al.]. Anos70: trajetórias. São Paulo: Iluminuras/ Itaú Cultural, 2005. p.44. 131

Seu corpo foi enviado ao Piauí, onde sua família o sepultou, no Cemitério Municipal de Teresina, sem a presença da esposa, Ana, que, embora tenha acompanhado o corpo, não quis participar da missa fúnebre nem do enterro – e também não participaram da despedida os seus antigos parceiros tropicalistas.

Um texto de despedida foi produzido e publicado, ainda em novembro de 1972, por Augusto de Campos, intitulado “ Como é Torquato ”:

Você também se foi “desafinando o coro dos contentes do seu tempo” como eu dizia nos bons tempos de 68 sousândrade no ouvido (estrofe 61 do inferno de Wall Street) mas logo agora alguns dias depois que o velho Pound se foi deformado e difamado na cozinha lítero-funerária dos jornais por um erro entre tantos acertos neste deserto com tantos lite-ratos dando sopa se vendendo por um lugar ao sol você deu as costas ao lugar e ao sol proclamo mas reclamo a morte nos fez mais uma falseta mas não pensem que isto é um poema só porque estou cortando as linhas como faziam os poetas isto é apenas uma conversa no deserto parte da conversa que a gente não teve em 4 anos [...] 203

Após sua morte, sua esposa, Ana Maria, e o poeta Waly Salomão reuniram a produção de Torquato Neto: cartas, anotações, letras de canções e poemas, publicadas então sob o título “ Os últimos dias de paupéria ”, em 1973, pela editora Eldorado.

O livrinho de 116 páginas, que vinha acompanhado por um compacto simples com “Todo dia é dia D” e “Três da madrugada”, cantadas por Gal Costa, trazia a marca da urgência: de prantear um amor e um amigo, de garantir a sobrevivência de uma obra dispersa, de fazer circular um pensamento tão radical quanto as ditaduras (do gosto, da

203 CAMPOS, Augusto de. BalançodaBossaeOutrasBossas . 5ªed. São Paulo: Perspectiva, 1993. p.307-8. 132

esquerda, da direita, dos cânones) contra as quais ele se insurgia. Em Teresina, a família de Torquato chegou a tentar recolher o livro que expunha verdades indesejáveis para a imagem de um “filho ilustre” da cidade. 204

Sobre o projeto de reunir e divulgar a obra de Torquato, Waly Salomão explicou:

Ana e eu fizemos Os últimos dias de paupéria, pegamos o rescaldo do incêndio, as folhas chamuscadas, o que tinha sobrado do incêndio, e fizemos o livro de Torquato com o pensamento nas novas gerações. Uma idéia utópica, uma forma boba e ingênua de crendice, mas que fez com que a obra que ele tinha realizado e renegado passasse para as novas gerações. 205

Mesmo enfatizando a importância de legar às novas gerações a obra, Waly Salomão alertava sobre o risco de heroicização e considerava o suicídio uma atitude incoerente de Torquato Neto:

[...] alguns mortos são heroicizados, são ungidos com uma certa heroicidade, como Torquato, por exemplo. Para mim não, porque vejo também que não se pode falar mal de um morto, principalmente de um suicidado [...] depois de morto se lê tudo como prefiguração do ato da morte, mas é estranhíssimo se a gente quiser que seja interessante. [...] Morrer é diferente. No caso, Torquato ligou o gás e achou que era bastante e não queria mais viver. Mas se a gente quiser ser inteligente e não ficar hipnotizado pela morte de Torquato, quiser que esse ato seja impulsionador, propulsor, a gente tem de encarar uma terrível contradição. Na própria exposição do Itaú Cultural, a gente sobe a escada e dá de cara com uma frase do Torquato sobre ocupar espaço e a frase termina assim: brechas e ocupar espaço, a mesma frase fala antes em não aceitar derrotas, mas depois é a mesmíssima pessoa que enfia a cabeça em um forno, que tosa o cabelão com máquina zero, o cabelo era um dos sinais emblemáticos daquela época, Torquato tosa o cabelo, parecendo um carneirinho marchando para o matadouro. Quando chegou para mim com aquele cabelo

204 PIRES, Paulo Roberto (Org.). Torquato Neto: Torquatália – do lado de dentro. Rio de Janeiro: Rocco, 2004. p.7. 205 SALOMÃO, Waly. Contradiscurso: do cultivo de uma dicção da diferença. In: RISÉRIO, Antônio [et. al.]. Anos70: trajetórias. São Paulo: Iluminuras/ Itaú Cultural, 2005. p.82. 133

inteiramente tosado à máquina zero, tive a premonição do que ia acontecer. 206

Além de rejeitar a análise “heroicizante” de Torquato Neto, é preciso também evitar a leitura de sua obra tomando-se como ponto de partida o suicídio, pois tal procedimento simplifica a sua produção e reduz a análise. Para se compreender criticamente sua produção é preciso considerar sua trajetória – experiências pessoais e profissionais, o contexto histórico no qual sua produção está inserida e as influências recebidas. O suicídio não pode ser o eixo norteador da reflexão, ou seja, sua obra deve ser lida historicamente. Conforme observou o amigo Rogério Duarte:

[...] Torquato poderia estar vivo entre nós. Todos nós somos suicidas em potencial. [...] Embora ele tivesse uma tendência para a depressão, eu não vou negar, e suas letras falem de morte ou de fim, isto não quer dizer nada. Eu e muitos outros já escrevemos letras mais negras do que as dele e estamos aí, vivões. Não é por aí. Esta é uma pista óbvia demais. Pode ser falsa. Fundamentalmente, o que faltou a Torquato no momento mais crítico, num momento de grande dificuldade no país, foram exatamente as referências e os apoios mais sólidos. Ele se sentia sozinho. Ele não era Nosferatu. Ele era um grande poeta lírico, uma pessoa de grande delicadeza. Minha autoridade para falar sobre isso é conferida historicamente porque quando Torquato, Glauber e Hélio Oiticica se referiam a mim era sempre falando de amizade. Era sempre uma coisa amorosa. Essa autoridade é uma questão de dever, uma coisa meio trágica. É um dever meio hamletiano para com os mortos. 207

A obra foi ampliada e publicada novamente em 1982 pela editora Max Limonad. Em 2004 o jornalista Paulo Roberto Pires organizou, ampliou e apresentou a terceira edição da obra. E em 2005 o jornalista Toninho Vaz publicou uma biografia de Torquato Neto. Todas essas publicações revelam a importância e o interesse em continuar refletindo sobre sua obra, na busca de “decifrá-la”.

Após a análise dos textos produzidos por Torquato Neto – colunas, cartas, diários, poemas –, pode-se defini-lo de muitas formas: extremamente sensível,

206 SALOMÃO, Waly. Contradiscurso: do cultivo de uma dicção da diferença. In: RISÉRIO, Antônio [et. al.]. Anos70: trajetórias. São Paulo: Iluminuras/ Itaú Cultural, 2005. p.81-2. 207 DUARTE, Rogério. Tropicaos . Rio de Janeiro: Azouge Editorial, 2003. p.137. 134

crítico, politizado, inconformado, rebelde, anárquico, marginal, sarcástico, afetuoso, melancólico, introspectivo, consciente da realidade do país e de si mesmo – sua condição de alcoólatra, sua doença, seus medos e frustrações.

Viveu em dificuldades financeiras, pois se observa que para ele o trabalho era sim um meio de sobrevivência, embora fosse mais um meio de realizar seus projetos. Suas colunas eram espaços para colocar em debate suas teorias e propor algo novo. Suas ideias, defendidas de forma intransigente, no entanto, fizeram dele um marginal, pois discordava da ordem estabelecida – tanto no plano político como no cultural.

Atormentado, viveu a contradição de ser lúcido e “louco” ao mesmo tempo. Revelou que tinha clareza de seus problemas, mas não via saída. Em suas anotações, cartas e colunas, demonstrou ter consciência de que seu comportamento e sofrimento faziam aqueles que amava sofrer, e por isso sofria por eles também. Com o suicídio, Torquato Neto evidenciou seu comportamento radical, com um gesto dramático e desesperado. Quando não acreditou mais na possibilidade de resistir, de ocupar espaços, as brechas, quando não conseguiu mais criar, despediu- se, registrando em um bilhete o sentimento de esgotamento: “ Pra mim chega! ”

135

2.2 - “ROTEIRISTA” DA TROPICÁLIA

No movimento musical Tropicália, Torquato Neto foi participante ativo. Além da composição de letras de canções, no auge do movimento, em 1968, também idealizou com Capinam o roteiro para o programa de TV “Vida, paixão e banana do tropicalismo” 208 , que seria exibido na TV Globo. Porém, o programa não foi ao ar em virtude de desentendimentos com o patrocinador, a Rhodia, que não o aprovou:

[...] Vida Paixão e Banana do Tropicalismo (1967/1968), projeto de um programa escrito para a Rede Globo de Televisão, quis, em síntese, registrar a efemeridade do movimento. [...] Vetado pela emissora e pelo patrocinador (a Rhodia, uma multinacional), o programa não chega a ser apresentado ao público. Como roteiro da festa, foi publicado no livro de Torquato Neto – Os últimos dias de paupéria – e, através da sua leitura, podemos recuperar a intenção “desconstrutora” do grupo. 209

O roteiro criativo e debochado definia que o local da apresentação deveria ser decorado com bananeiras, doceiras, macacos, leões, domadores, personalidades, além de faixas com os dizeres: “ Só me interessa o que é meu ”, “ Vai que é mole ”, “ Quem te viu, quem te vê ”, “ O petróleo é nosso ”, “ E agora, José ”, “Ordem e Progresso ” e “ A teoria na prática não dá certo ”, entre outros. Os anfitriões seriam e Norma Benguell ou Danuza Leão.

Quanto ao elenco, seria composto por diversas personalidades do cenário cultural brasileiro: Renato Borghi, Othon Bastos, Etty Fraser, Ítala Nandi, Emilinha Borba, Vicente Celestino, Linda Batista, Jorge Ben, Aracy de Almeida, Nara Leão, Nana Caymmi, Marlene, Maria Bethânia, José Celso, Glauber Rocha, Flávio de Carvalho, Gilberto Freyre, Chacrinha, , Luiz Jatobá, Grande Otelo e Luiz Gonzaga. Entre os representantes da Tropicália foram citados apenas Caetano Veloso, Gal Costa, Gilberto Gil, Os Mutantes e o maestro Rogério Duprat.

208 Roteiro do programa de TV “Vida, paixão e banana do tropicalismo” (1967-1968), de José Carlos Capinam e Torquato Neto. Apud: PIRES, Paulo Roberto (Org.). TorquatoNeto: Torquatália - do lado de dentro. Rio de Janeiro: Rocco, 2004. p.65. 209 ALMEIDA, Laura Beatriz Fonseca de. Um poeta na medida do impossível - trajetória de Torquato Neto. Tese (Doutorado em Teoria Literária e Literatura Comparada), FFLCH-USP, São Paulo, 1993. p.36. 136

Os convidados seriam Academia Brasileira de Letras, misses com faixas, Banda de Ipanema com , escola de samba vencedora do carnaval, colégios de aplicação, conservatórios, banda do Colégio Pedro II, Pedro das Flores, Menino das Garrafas, torcidas uniformizadas, deputados e senadores, Ibrahim Sued, Jacinto de Thormes, Carlinhos de Oliveira, , índios e protetores de índios, travestis, fã-clube da Marlene e Emilinha, as dez mais elegantes, turistas americanos, corpos de paz e circo: “[...] O programa de 1968 – Vida e Paixão e Banana do Tropicalismo – pretendeu, mais que ultrapassar idéias, dessacralizar o sistema de produção cultural, revendo a ruptura na contaminação das diferenças.” 210

O programa foi idealizado em duas partes: a primeira parte seria dedicada à apresentação da proposta tropicalista; e a segunda parte, ao encerramento do movimento. A abertura do programa seria feita com a exibição de um filme que explicitaria a proposta de apresentar e, ao mesmo tempo, encerrar o movimento:

FILME I – Sob clima de tensão criado por tambores, a câmara se aproxima de um mapa do Hemisfério Sul. Lento zoom in vai aproximando até enquadrar o Brasil que está pulsando. Em certo momento o Brasil começa a pegar fogo. Sobre esta imagem sobrepõem-se os letreiros: “Vida, paixão e banana do tropicalismo” (1967/1968). Tropicalismo, nome dado pelo colunismo oficial a uma série de manifestações culturais espontâneas surgidas durante o ano de 67 e portanto logo destinadas à deturpação e à morte. 211

[...] O happening Vida Paixão e Banana do Tropicalismo é um exercício experimental que propõe, através da deglutição intersemiótica – do efeito da mistura –, uma leitura crítica da vida cultural dos anos sessenta. Dois momentos compõem a montagem do programa: no primeiro, há a dessacralização do movimento, anunciada pelo rito da devoração; no segundo, o Tropicalismo é revisto e transcodificado, através de um rito propiciatório, para que a Tropicália se anuncie e o ritual de purificação seja cumprido [...]. 212

210 ALMEIDA, Laura Beatriz Fonseca de. Um poeta na medida do impossível - trajetória de Torquato Neto. Tese (Doutorado em Teoria Literária e Literatura Comparada), FFLCH-USP, São Paulo, 1993. p.37. 211 Roteiro do programa de TV “Vida, paixão e banana do tropicalismo” (1967-1968), de José Carlos Capinam e Torquato Neto. Apud: PIRES, Paulo Roberto (Org.). TorquatoNeto: Torquatália - do lado de dentro. Rio de Janeiro: Rocco, 2004. p.66. 212 ALMEIDA, op. cit., p.39. 137

Após a exibição do filme de abertura, a câmera deveria destacar imagens do hall de entrada do teatro e a chegada dos convidados. Em seguida, um texto- manifesto seria apresentado nas vozes de Caetano Veloso e Gilberto Gil em off:

Somos compositores. Estamos aqui para realizar a primeira e última manifestação conjunta de tudo que no ano de 67 e até hoje recebeu o nome de Tropicalismo foi uma tentativa crítica da cultura brasileira através da utilização, como matéria de todas as tendências e expressão dessa cultura. Para demonstrar a necessidade de criação de uma cultura absolutamente nova. Por isso o tropicalismo é uma fase crítica que se esgota quando cumpre o seu papel. Este programa pretende mostrar por que sentimos essa necessidade, quando ela nos surgiu e de que modo daremos por concluída uma boa parte do nosso trabalho. O Tropicalismo está no fim. E apenas demos os primeiros passos de uma longa travessia. 213

Ainda na fase de apresentação do movimento tropicalista, outro texto- manifesto seria lido por um locutor:

O Tropicalismo é uma forma antropofágica de relação com a cultura, senhores e senhoras. Devoramos a cultura que nos foi dada para exprimirmos nossos valores culturais. [...] A estrutura desse programa se assemelha a um ritual de purificação e modificação. E utiliza, para isso, as formas mais fortes de comunicação de massa, tais como: missa, carnaval, dramalhão, candomblé, teatro, cinema, sessão espírita, poesia popular, Chacrinha, inauguração, discurso, demagogia, sermão, orações, ufanismo, revolução, transplante, saudosismo, regionalismo, bossa, americanismo, turismo, getulismo, construção e destruição tipo Judas em sábado de aleluia. Pedimos a presença no teatro de todos os tropicalistas assim denominados. O teatro, como os telespectadores vêem, está decorado com citações do grande patrono do tropicalismo inesquecível e soberbo escritor Oswald de Andrade e a filosofia espontaneamente tropicalista do pára-choque de caminhão nacional. 214

213 Roteiro do programa de TV “Vida, paixão e banana do tropicalismo” (1967-1968), de José Carlos Capinam e Torquato Neto. Apud: PIRES, Paulo Roberto (Org.). TorquatoNeto: Torquatália - do lado de dentro. Rio de Janeiro: Rocco, 2004. p.66. 214 Cf.: Ibidem. p.68. 138

Após a exibição de filmes, entrevistas com Caetano Veloso e Gilberto Gil e depoimentos de personalidades como Chacrinha, Flávio de Carvalho, Nelson Motta e Gilberto Freyre, destaque para o maestro Rogério Duprat regendo a orquestra:

Corta para o maestro Rogério Duprat. Este entra colocando uma vasta peruca. Sobe ao Pão de Açúcar, de onde regerá a orquestra. Câmara detalha a mão do maestro, que dá a batidinha de atenção com a batuta. Câmara corta para Caetano e Gil, que se benzem aguardando o momento de entrar em cena. Detalhe do pé direito etc. etc. etc. O maestro ataca grande abertura com montagem de Chiquita Bacana, , Hino do carnaval brasileiro e Tropicália. [...] No palco estão um coral e Chacrinha. O coral deverá ser, se possível, de presidiários. Desce um telão com reprodução do quadro “A primeira missa no Brasil” de Victor Meirelles. Slide em sobreposição com nome da obra e do autor [...]. 215

O programa seguiria com a apresentação de entrevistas, declarações de personalidades – Othon Bastos, Renato Borghi, Ítala Nandi, Chacrinha, Glauber Rocha –, exibição de filmes e slides e apresentações musicais – Caetano Veloso apresentaria “ Tropicália ”, Gilberto Gil cantaria “ Marginália ” e Gal Costa deveria apresentar “ Bachianas brasileiras nº 5 ”.

Na sequência, mais um texto seria apresentado, dessa vez lido por Etty Fraser, enquanto a orquestra tocaria a introdução de “ Descobrimento do Brasil ”, de Villa-Lobos:

O Brasil é um continente maravilhoso, com o amarelo do ouro, o verde das florestas, o azul do céu, a força do mar, o paladar do feijão, a nutrição do arroz, a beleza das tradições. Rui Barbosa foi o Águia de Haia que respondeu em todas as línguas aos analfabetos da Europa. O nosso futebol é o melhor do mundo. Só perdemos a última copa por sabotagem. As nossas mulheres são as melhores mulheres e cozinheiras do universo, a nossa música é a mais inspirada e o nosso cinema já ganhou Palma de Ouro. No plano das riquezas naturais, tivemos os maiores ciclos econômicos do mundo, como o ciclo do açúcar, o do cacau, o do café, o do ouro, o da borracha, e agora estamos tendo o ciclo do petróleo. Todos estes ciclos deixaram belíssimas ruínas arquitetônicas e só faliram por causa da bondade nacional, que não quis discutir muito com

215 Cf.: PIRES, Paulo Roberto (Org.). TorquatoNeto: Torquatália - do lado de dentro. Rio de Janeiro: Rocco, 2004. p.70. 139

seus civilizados fregueses. O nosso regime político é dos mais perfeitos da história. Aqui vigora uma perfeita democracia. No campo do folclore, encontramos uma plebe que não tem complexos e conta todo dia com sambas e macumbas. Sua ventura de habitar em tão bela terra. Nossos índios são os melhores mesmos, maravilhosos tarzãs do grande José de Alencar, e vivem num paraíso terrestre. Para mim o Brasil é o país do amor, do improviso, do jeitinho, onde qualquer um dorme burro e acorda gênio, onde o esquerdista de hoje é o direitista de amanhã, onde o direitista de hoje é o chinês de amanhã. Amo minha terra, dádiva de Deus. Morrerei por ela em qualquer guerra onde for preciso salvar as tradições e a democracia. 216

A primeira parte do programa seria encerrada com a apresentação de Emilinha Borba, que cantaria “ Escandalosa ”, “ Chiquita Bacana ” e “ Três Caravelas ”, sendo que nesta última canção deveria ser acompanhada por Caetano Veloso, Gilberto Gil e um balé de rumbeiras, quando um grande cartaz apareceria no teatro com a seguinte frase: “O século XXI será dos trópicos”.

A segunda parte do programa deveria ser iniciada ao som de toques de macumba, enquanto as luzes fossem acesas. Caetano Veloso e Gilberto Gil entrariam no palco acompanhados do elenco para apresentar mais um texto- manifesto, anunciando o fim do movimento tropicalista:

GIL – Há um monumento na encruzilhada da Vereda Tropical. Nós e nossos antepassados fomos arquitetos. Nós o construímos. Nós o destruímos. CAETANO – Vamos regredir no tempo, em busca de sua pedra fundamental. Daqueles que o construíram e se deram em risos quando ele balançava. O elenco sacode o monumento com violência, com coreografia, A orquestra responde como no velho programa de rádio: Balança... ORQUESTRA (toca) – Balança/Balança/Mais não cai. O elenco volta e o texto seguinte será distribuído entre coro, atores, Caetano e Gil. TEXTO – Vamos regredir no tempo. Em busca daqueles que o construíram com seu pranto, quando ele entrava seus sonhos mais imediatos.

216 Cf.: PIRES, Paulo Roberto (Org.). TorquatoNeto: Torquatália - do lado de dentro. Rio de Janeiro: Rocco, 2004. p.74. 140

- E daqueles que se ofereceram em holocausto, por temerem o esforço maior de destruí-lo. - Vamos expor o que encerram seu peito e suas entranhas. - Rasguem o peito do boneco. Os tambores crescem e continuam. - Um coração que bate... - Um estômago vazio... O elenco forma uma corrente e se concentra em transe . [...] 217

A sequência se daria com a inserção de filmes – imagens de multidões, futebol, Carmem Miranda, Getúlio Vargas e seu enterro, apresentação musical de Dalva de Oliveira, Vicente Celestino, Linda Batista, Marlene, Nara Leão, Luiz Gonzaga e Maria Bethânia, além da orquestra regida pelo maestro Rogério Duprat e d’Os Mutantes.

Finalizando a segunda parte, outro texto-manifesto seria apresentado por Caetano Veloso:

- Alô, alô pesquisadores do mundo particular do som, alô, alô pescadores do som puro, como vai a minhoca? Alô, alô, o som pelo som, não serve à música popular brasileira nem ao homem. O som tem alternativas infinitas e eu escolho o que melhor serve para ferir, saturar, finalizar, sorrir, comover, destruir. Eu escolho a tropicalista, que é mais pornográfica, livre e abrangente de todas. O som é só para se conseguir as coisas, não é Gil? 218

Em seguida, seria executada a “ Marcha Fúnebre” e Gilberto Gil apresentaria mais um texto-manifesto:

- O Tropicalismo está quase morto. Perto das seduções da moda, dos artifícios do tempo, da veleidade de ser o que não somos, ele morre. Mas antes de velarmos este cadáver tropical, vamos prestar o hino a todos os queridos tropicalistas de ontem, de hoje, de amanhã e sempre, que são eles, vocês e nós. Maestro: “Aquarela do Brasil”. 219

217 PIRES, Paulo Roberto (Org.). Torquato Neto: Torquatália - do lado de dentro. Rio de Janeiro: Rocco, 2004. p.77. 218 Ibidem. p.83. 219 Ibidem. 141

O programa seguiria com a orquestra apresentando “ Aquarela do Brasil ”, cantada por todos os participantes. Os atores deveriam exibir tabuletas com os slogans: “ Vai que é mole ”, “ Amo com fé e orgulho ”, “ Sem ordem cadê progresso ”, “Criança, não verei ” e “ Reina a mais perfeita ordem ”. Ao final, ao som de tambores e música eletrônica, o locutor anunciaria a morte da Tropicália:

- Estamos assistindo neste momento ao transplante do coração do monumento da Tropicália, que vai falecer. O momento é de enorme tensão coletiva. A Tropicália é o doador. Até o presente momento não podemos informar quem será o receptor do coração tropicalista. Há notícias de que será o PODER JOVEM. Mas por enquanto o coração restará entregue a si mesmo, conservado numa solução de sangue, suor e lágrimas. 220

O coração seria colocado ritualmente no mapa da América do Sul ao som de percussão, quando Caetano Veloso e Gilberto Gil surgiriam no palco com roupas comuns. Um canhão deveria entrar em cena, a orquestra tocaria a introdução do “Misere ” e Gilberto Gil cantaria “ Misere nobis ”. O canhão seria disparado e o monumento deveria cair. Por fim, Caetano Veloso cantaria “ Proibido Proibir ” e comandaria com Othon Bastos, vestido de místico e sobre uma escada Magirus , a destruição do teatro, ao mesmo tempo que Gilberto Gil e Os Mutantes apresentariam “ Bat macumba ”. Enquanto a decoração estivesse sendo totalmente destruída, uma revoada de pombos negros e uma bolha surgiriam no palco expulsando todos para o auditório.

Finalmente, o programa seria encerrado com a projeção de imagens do teatro após a destruição e Caetano Veloso, Gilberto Gil, Capinam, Torquato Neto, Roberto Palmari, Rogério Duprat, Cyro del Nero e Geraldo Casé trabalhando, enquanto uma voz em off anunciaria :

220 PIRES, Paulo Roberto (Org.). Torquato Neto: Torquatália - do lado de dentro. Rio de Janeiro: Rocco, 2004. p.83-4. 142

Somos compositores. Este programa foi escrito por nossos parceiros Capinam e Torquato Neto, que também dirigiu. A produção foi de Roberto Palmari e a direção musical do Rogério Duprat. Foi editado por Geraldo Casé. Os cenários foram de Cyro del Nero. O programa foi Vida, paixão e bananas do tropicalismo. Vocês viram no que deu... Porque queríamos fazer música brasileira, sem preconceitos... Latino- americana. Quem está perdendo, a saúva ou o Brasil? Recebi com afeto que se encerra em nosso peito a contribuição inflacionária de todos os nossos generosos erros. Um baiano, um coco. Dois baianos, uma cocada. Somos vários. Viva a Tropicália! Abaixo a Tropicália 221

Após o texto, a seguinte frase deveria ser projetada: “ Cada geração deve, numa opacidade relativa, descobrir sua missão. E cumpri-la ou traí-la ”.

O roteiro revela os elementos característicos da Tropicália: a crítica feita por meio do deboche, do escracho e da provocação. Porém, o roteiro idealizado por Torquato e Capinam apresenta uma proposta radical: o escândalo deveria ser levado às últimas consequências.

A semelhança do roteiro com a Semana de Arte Moderna de 1922 é evidente. Conforme Graça Aranha anunciou na conferência de abertura, em 13 de fevereiro de 1922, o evento buscava o choque, uma nova estética e a liberdade de criação artística:

Para muitos de vós a curiosa e sugestiva exposição é uma aglomeração de horrores. Não está terminado o vosso espanto. Outros “horrores” vos esperam. Daqui a pouco, juntando-se a esta coleção de disparates, uma poesia liberta, uma música extravagante, virão revoltar aqueles que reagem movidos pela força do passado. [...] Cada homem é um pensamento independente, cada artista exprimirá livremente, sem compromissos, a sua interpretação da vida. A regra e a lei são substituídos pela liberdade absoluta. Arte libertada. [...] O que fixamos não é a renascença da arte que não existe, mas o próprio nascimento da arte no Brasil. 222

221 PIRES, Paulo Roberto (Org.). Torquato Neto: Torquatália - do lado de dentro. Rio de Janeiro: Rocco, 2004. p.85. 222 Manifesto “ A Emoção Estética na Arte Moderna ”, apresentado na Conferência de Abertura da Semana de Arte Moderna em 13 de fevereiro de 1922, no Teatro Municipal de São Paulo. Apud: TELES, Gilberto Mendonça. Vanguarda Européia e Modernismo Brasileiro: apresentação dos principais poemas, manifestos, prefácios e conferências vanguardistas, de 1897 até hoje. 6ªed. Petrópolis - RJ: Vozes, 1982. p.287-93. 143

O roteiro tropicalista visava a anunciar um “marco” na produção da música brasileira. Propunha, de forma radical, inaugurar e ao mesmo tempo encerrar um novo período de criação:

Para comemorar o fim de uma fase crítica que cumpriria seu papel, os poetas experimentais, Torquato Neto e J. Capinam, roteirizam um happening – Vida e Morte do Tropicalismo. Parodiando a Semana de 22, marco dos movimentos modernos no Brasil do século XX, os tropicalistas encenam sua linguagem como um “des-movimento”, ou melhor, como alegoria do próprio ismo, invertendo, assim, a proposta do acontecimento modernista. 223

Na análise do roteiro percebe-se que a proposta de inovação da Música Popular Brasileira idealizada por Torquato Neto deveria ser mais profunda e radical, o que incomodava e gerava conflitos internos no grupo, conforme afirmou Caetano Veloso:

[...] Torquato já tinha aderido ao ideário transformador: Os Beatles , Roberto Carlos, o programa do Chacrinha, o contato direto com as formas cruas de expressão rural do Nordeste – tudo isso Torquato já tinha digerido e metabolizado com espontaneidade suficiente para deixar entrever sua apreensão da totalidade do corpo de idéias que defendíamos. Ele superava as resistências iniciais por possuir uma inteligência desimpedida. A partir de então, sua concordância com o projeto passou a ser orgânica, e se algo podia parecer preocupante era justamente sua tendência a aferrar-se aos novos princípios como dogmas e a desprezar antigos modelos com demasia ferocidade. Enquanto Capinam parecia ocultar no fundo da alma o que sempre restaria de resistência aos riscos antinacionalistas, antipopulistas e até vulgarizantes de nossa empreitada, Torquato, demonstrando entender de fato o sentido de se assumirem esses riscos, mostrava-se pronto para se tornar um arauto algo intransigente. 224

Enfim, o roteiro polêmico, que nunca foi produzido, propunha a subversão dos padrões estéticos. Com o programa idealizado por Torquato e Capinam, a Tropicália deveria assumir, de forma radical, todos os riscos para promover a

223 ALMEIDA, Laura Beatriz Fonseca de. Um poeta na medida do impossível - trajetória de Torquato Neto. Tese (Doutorado em Teoria Literária e Literatura Comparada), FFLCH-USP, São Paulo, 1993. p.39. 224 VELOSO, Caetano. VerdadeTropical . São Paulo: Companhia das Letras, 1997. p.141-2. 144

inovação na Música Popular Brasileira, sem, contudo, fundar uma nova “fórmula” para a criação artística. Semelhante aos modernistas da década de 1920, a proposta era criticar a produção artística vigente, romper com os paradigmas criativos, propor a reflexão sobre a arte e a identidade nacional, sintonizar-se internacionalmente e, assim, continuar o processo criativo por meio da pesquisa e da atualização.

145

2.3 - “MEU CARO AMIGO”: CORRESPONDÊNCIAS

Meu caro amigo me perdoe, por favor Se eu não lhe faço uma visita Mas como agora apareceu um portador Mando notícias nessa fita Aqui na terra tão jogando futebol Tem muito samba, muito choro e rock’n’roll Uns dias chove, noutros dias bate sol Mas o que eu quero é lhe dizer que a coisa aqui tá preta [...]

Meucaroamigo

Francis Hime & Chico Buarque

Como já foi dito, após o período de autoexílio (1968-970), Torquato Neto manteve contato permanente, por meio de correspondências, com Hélio Oiticica, que estava em Nova York. As cartas foram organizadas e publicadas pelo jornalista Paulo Roberto Pires, que explicou:

[...] todas foram escritas entre 1971 e 1972 e refletem com perfeição uma época particularmente crítica para Torquato e, também, para o Brasil. [...] A recuperação desse diálogo se deve, acima de tudo, à verdadeira obsessão arquivística de Hélio Oiticica, que documentava minuciosamente tanto seus projetos quanto a correspondência – ele sempre arquivava cópias das cartas que enviava junto com a resposta do destinatário. No extremo oposto, Torquato chegou a queimar boa parte de seus papéis antes do suicídio. Por isso, das 18 cartas que se seguem, 12 são assinadas por Torquato e fazem parte do acervo do Projeto HO, instalado no centro de Artes Hélio Oiticica, no Rio de Janeiro. 225

As cartas escritas por Torquato Neto, com textos extensos – páginas e páginas numa única correspondência –, revelam a ansiedade de comunicar de uma só vez o máximo possível dos acontecimentos, projetos e situação vivida. O foco era a produção cultural, de maneira que os escritos traduzem o contexto político e cultural vivido no Rio de Janeiro no início da década de 1970. A vida familiar está quase ausente, aparecendo apenas em “notas”. Constituem documentos

225 VELOSO, Caetano. VerdadeTropical . São Paulo: Companhia das Letras, 1997. p.209. 146

importantes para a presente pesquisa, pois contribuem para a compreensão de seus projetos, suas ideias e suas angústias. Nas cartas, Torquato expôs em detalhes suas dúvidas, pensamentos e dilemas.

As correspondências devem ser entendidas dentro do contexto político – momento pós-AI-5 –, com a ampliação da censura, prisões, exílio e autoexílio daqueles que se opunham à ditadura militar. Nos textos há referências a diversas figuras do cenário cultural brasileiro que estavam no exterior – algumas por vontade própria, outras obrigadas, como Caetano Veloso e Gilberto Gil, exilados em Londres.

De Nova York, Hélio Oiticica informava sobre os acontecimentos internacionais – música, artes plásticas e, principalmente, cinema, além de opinar sobre a produção nacional. Mandava notícias sobre a presença de brasileiros hospedados em seu apartamento, que se tornou ponto de encontro de um grupo bastante atuante no cenário cultural, e colaborava diretamente nos projetos de Torquato Neto, mediante o envio de revistas, artigos, entrevistas e cartazes de filmes para serem utilizados em sua coluna. Ainda opinava sobre os projetos e servia de conselheiro e confidente:

[...] Torquato, meu amor; adorei, nada me deu mais alegria que sua carta com as publicações e tudo; isto aqui ainda não é uma resposta à carta; apenas um bilhete rápido; tudo parece estar mais ou menos com meses de atraso aqui; não consigo nem dormir tal o excitamento; quilos de coisas para ler-fazer etc.; babilônia, você sabe. Esta carta segue separado de média que vou lhe enviar; coisa sobre cinema, Village Voices (cujos artigos caretas, mas quase sempre ótimos; é só procurar; tem Jonas Mekas em cinema; cartazes do dia etc., o que evita explicações minhas, que nunca seriam suficientes para cobrir tudo); vou comprar daqui a pouco e ver o que serve; em geral Village Voices tenho sempre dois e já coloquei no pacote o da semana passada. 226

O diálogo mantido com Hélio Oiticica era importante para Torquato Neto manter-se atualizado sobre o que ocorria “do lado de fora” – subtítulo utilizado em sua coluna no jornal Última Hora para divulgar a produção cultural internacional –, mas principalmente para discutir os acontecimentos da cena cultural brasileira.

226 Hélio Oiticica, Nova York, 18 de junho de 1971. Apud: PIRES, Paulo Roberto (Org.). Torquato Neto: Torquatália - do lado de dentro. Rio de Janeiro: Rocco, 2004. p.216. 147

Analisando-se as correspondências, percebe-se o afeto e a cumplicidade entre ambos. Os textos fornecem “pistas” que ajudam a revelar o pensamento de cada um e a postura de vanguarda que assumiam, à medida que comentam sobre a produção e os personagens artísticos e intelectuais do início dos anos 70:

Adorei seu texto sobre Glauber; você é mesmo demais, para pegar tudo de dentro assim; sei disso porque conversei muito com Glauber e é tudo o que você escreveu; aliás você leu as dicas que Glauber anda dando no Pasquim? Meu filho, nunca vi tanta bobagem na minha vida e mau caráter; adoro Glauber mesmo assim, mas estou curioso em saber que merda é essa e quem são a vanguarda direitista de que fala! É louco; não conheço nem sei o que diz. 227

No ano de 1971, enquanto Hélio Oiticica mostrava-se eufórico com a agitação vivida em Nova York, os contatos estabelecidos e os novos projetos em andamento, Torquato revelava as dificuldades enfrentadas no retorno ao Rio de Janeiro para conseguir trabalho e dinheiro:

Hélio, querido, Salve. Já faz tempo que eu precisava te escrever – pelo menos desde que recebi o teu cartão. Mas naquela época eu estava no Piauí esfriando a minha cabecinha, balançando numa rede e botando o pensamento em ordem. Depois que cheguei no Rio (em início de abril), tive de sair por aí feito um maluco atrás de alguma coisa pra fazer, e logo em seguida tive de fazer essas coisas: produção de discos de novela pra Globo, música pra novela, músicas pra vender e garantir qualquer dinheiro – enfim, um negócio chato e cansativíssimo que eu tinha de fazer, fosse como fosse, pra começar a criar condições que eu agora preciso ter à disposição: um dia depois do outro cheguei ao tal Plug, sobre o qual te falo mais adiante. 228

Na mesma carta, Torquato denotava suas angústias, demonstrando como o estado depressivo acentuava-se, o que o obrigou a retornar a Teresina e submeter- se a mais uma internação:

227 Hélio Oiticica, Nova York, 18 de junho de 1971. Apud: Ibidem. p.217. 228 Torquato Neto, Rio, 13 de junho de 1971. Apud: PIRES, Paulo Roberto (Org.). Torquato Neto: Torquatália - do lado de dentro. Rio de Janeiro: Rocco, 2004. p.211. 148

Essa minha ida ao Piauí foi muito importante pra que eu reiniciasse quase tudo depois do verdadeiro inferno que foram esses dois últimos anos, um na Europa e outro neste gueto horrível do Brasil. Era tudo incrível. O menor barulho soava como todas as trombetas do após calypso [ sic ] e teve uma hora em que eu quase me vi perdido. Era tudo ou onda, desbunde, chateação. Na véspera da tua viagem eu estava louquíssimo curtindo uma viagem inacreditável que ninguém sabia – e quando saí da tua casa eu estava realmente louco de ódio, eu pensava: vai o Hélio embora e eu quase não estive com ele esse tempo todo, o que é um verdadeiro absurdo. Tudo foi ficando tão insuportável que até as pessoas (pouquíssimas) a quem amo no duro entraram no bolo. Você via. Não ter podido acabar o filme do orgamurbana e, depois não ter conseguido obrigar Naná a fazer o disco que eu havia planejado pra ele (e que seria fantástico se ele tivesse juntado coragem para fazê- lo) acabaram de encher o saco. Tomei um vasto pileque de despedida e encerrei o papo de beber; fui ao Piauí sem Ana nem Thiago, balancei na rede, balancei e depois achei que estava legal. Voltei para o Rio e uma das primeiras pessoas que procurei foi Waly. 229

A análise da correspondência permite notar a formação de um grupo que atuaria em espaços importantes do cenário da contracultura brasileira. Os projetos eram discutidos por meio das cartas, e Hélio Oiticica, além de interlocutor, amigo e confidente, era o importante agente de criação. Torquato expunha nos textos suas ideias e solicitava a opinião, orientação e colaboração do amigo. Em julho de 1971, Torquato noticiava seu novo projeto: a revista Soma .

[...] Soma foi a solução que eu bolei para completar o trabalho que não posso fazer na Última Hora por não caber mesmo na Última Hora. Uma parte do Plug com outra parte que não estava no Plug nem está na Última Hora. Eu pensei em fazer uma revista: Soma. Som, imagem, disco, cinema, babados. Eu bolei uma revista muito barata (das que você me mandou, take one é a que chega mais perto do que estou tramando) e já estou transando bem direitinho um background empresarial para poder dar certo. Não quero explicar isso tudo agora porque prefiro esperar que as coisas estejam mais adiantadas. Mas estou bolando tudo já de acordo com uma Editora e, há três dias, chamei Waly pra organizar a revista comigo. Pretendo que tudo esteja andando de modo que esteja nas bancas em setembro. Revista mensal. Espere, que na próxima carta eu te darei detalhes maiores. Estou muito animado porque sinto que vai dar certo. Agora, Hélio, eu sei como são

229 Torquato Neto, Rio, 13 de junho de 1971. Apud: PIRES, Paulo Roberto (Org.). Torquato Neto: Torquatália - do lado de dentro. Rio de Janeiro: Rocco, 2004. 149

as coisas por aí, mas seria importantíssimo para nós se você pudesse mandar mais algumas revistas daquelas de vez em quando. Olhei os preços nas capas e vi que não são muito baratas, de maneira que não tenho coragem de pedir que você as compre pra mim. Mas pode mandar, mesmo, no duro, as que você já houver lido, mesmo que não sejam recentíssimas, certo? 230

Em resposta, Oiticica aprovava a ideia da revista, incentivava o desenvolvimento do projeto e confirmava a colaboração, sugerindo que o círculo formado pelos amigos configurava-se como um grupo de ajuda mútua para a implementação dos projetos e sua inserção na cena cultural brasileira:

Vou procurar o que há de bom para lhe enviar; mais bem escolhido do que antes; essas revistas de cinema estão terríveis, a meu ver; take one é mesmo a melhor; mas sei que estão sendo úteis, claro, para você; o que farei é o seguinte: vou juntando e envio por um portador de confiança; nunca vi tanto brasileiro aparecendo aqui; uma loucura. 231

Apesar do apoio recebido, a situação não era favorável para Torquato Neto, que enfrentava dificuldades financeiras, e também devido ao acirramento do clima repressivo no Brasil. Em setembro de 1971, ele revelava a Oiticica sua frustração pelo fracasso do projeto da revista Soma e o clima de censura e dispersão de artistas e intelectuais:

Hélio: Salve. Isso aqui ainda está muito confuso (ultimamente não tem estado fácil ninguém encontra ninguém e as coisas todas se arrastando enquanto as pessoas vão perdendo aos poucos a paciência e aos poucos desertando das bocas e das promessas). O que se transa não é normal. O que termina acontecendo, no duro, ninguém pode prever. Quebração de cara geral – e eu, que já estou cansado de quebrar a minha, terminando achando a coisa até meio natural: não me espanto mais, mas também não desisto. Soma, a tal revista que eu pretendia botar na rua, parou completamente. A certa altura, a coisa ficou impossível de ser produzida aqui no Rio, e em São Paulo, onde acabou surgindo uma brecha, eu mesmo não

230 Torquato Neto, Rio, 16 de julho de 1971. Apud: PIRES, Paulo Roberto (Org.). Torquato Neto: Torquatália - do lado de dentro. Rio de Janeiro: Rocco, 2004. p.232. 231 Hélio Oiticica, Nova York, 10 de agosto de 1971. Apud: Ibidem. p.240. 150

tenho condições: não há como sair do Rio agora, nem eu estou a fim. 232

Porém, conforme citado no excerto apresentado, apesar da frustração e das dificuldades enfrentadas, Torquato ainda resistia. Sem publicar a revista Soma , já preparava sua participação no jornal alternativo Presença e começava a idealizar uma nova revista: a Navilouca . No trecho a seguir observam-se os detalhes do projeto:

[...] está dando um trabalho dos diabos e ainda não está nem na gráfica. Parece que Haroldo conversou com você sobre isso, não? Pelo menos a julgar por correspondência sua, recebida por Ivan (via Ana Letícia, ou Ione Saldanha?), ontem. Ele me telefonou e mais tarde nos encontramos na casa de Luciano, onde a Navilouca está sendo preparada lenta e muito cuidadosamente, conseguimos (eu e Waly, que transamos juntos esse almanaque), conseguimos reunir um material de primeiríssima ordem. Foi uma luta, primeiro driblar, recusar etc colaborações não requisitadas; segundo para fazer chegar as nossas mãos todas as matérias pedidas à “equipe” que selecionamos para a revista – acho que você faz idéia das pessoas, mais ou menos entre você, Waly, eu, Otávio, Ivan, Luciano e Óscar, Décio, Haroldo, Augusto, Julinho, Jorge, Duda, Rogério, Chacal etc., muito pouca gente mais. Basta, não? Mas esse trabalho todo lento e tal está valendo a pena, porque a revista está ficando uma coisa incrível. Acho, seguramente, que será o acontecimento, no gênero, mais importante aqui dentro por esse tempo todo. Matérias fantásticas, absolutamente incríveis, tudo. 233

O projeto da nova revista entusiasmava Torquato, que destacava a importância que teria no cenário brasileiro, ressaltando o seu caráter antológico:

A Navilouca (você já sabe) é uma revista em número único, primeiro e único, como o rei momo. A idéia é essa. Se pintar outra, pintará com outro nome, outra transação, outra coisa bem diferente. Espécie de antologia, almanaque, revista indefinida, qualquer coisa assim. 234

232 Torquato Neto, Rio, 16 de julho de 1971. Apud: PIRES, Paulo Roberto (Org.). Torquato Neto: Torquatália - do lado de dentro. Rio de Janeiro: Rocco, 2004. p.247. 233 Torquato Neto, Rio, 13 de junho de 1971. Apud: Ibidem. p.211. 234 Torquato Neto. Apud: Ibidem. p.280. 151

Por meio das cartas, Torquato continuava a evidenciar seu entusiasmo com a revista e a expectativa pela publicação:

Quero ver se a revista está nas bancas até o final de junho, antes das férias de julho. A capa e contracapa serão coloridíssimas: na capa essas fotos de nós todos (menos os paulistas, convidados especiais) e na contracapa aquele prato sangrando do início de nosferato. Essa revista vai ficar a coisa mais bonita, mais violenta e mais incrível que você possa imaginar. Deixe com a gente. 235

Não obstante o entusiasmo e envolvimento com o novo projeto, Torquato ainda encontrava muitos obstáculos para pôr em andamento suas ideias e planos. O clima de repressão e a ampliação da censura atingiam todos os setores culturais. A imprensa era cada vez mais censurada, embora ainda fosse possível protestar e resistir:

[...] sobre Gil: vamos namorar? Bom: seu poema para a Flor do Mal foi inteiramente censurado pelo general. O Jaguar, como sempre faz, perguntou o motivo da censura e o general explicou que não havia entendido nada e que não poderia liberar, claro um treco que ele não entende; a página censurada, com um puta Xis de lado a lado, impressa e tal, mas com o risco vermelho por cima, feita pelo general, está comigo para você. É também uma espécie de troféu ... Continuo segurando minha coluna em UH [Última Hora]. Faço uma força do diabo e vou agüentando. Tem dado pé, principalmente porque, de repente, virou a única coisa assim diária na imprensa do Rio. Um sucesso, meu amor, que eu mesmo não quero (por vários motivos) acreditar. [...] 236

De Nova York, Oiticica continuava a incentivar, opinar e organizar os projetos. Era a figura-chave no grupo de artistas e intelectuais participantes da contracultura brasileira. A discussão sobre a produção do cinema nacional continuava em evidência, e do exterior Oiticica não apenas mantinha-se informado, como também coordenava as ações dos representantes do cinema Super-8:

235 Torquato Neto. Apud: PIRES, Paulo Roberto (Org.). Torquato Neto: Torquatália - do lado de dentro. Rio de Janeiro: Rocco, 2004. p.280. 236 Torquato Neto, Rio, 9 de novembro de 1971. Apud: Ibidem. p.256-7. 152

Tenho recebido muito suas colunas; estão dinâmicas e você ousado, o que é ótimo, nesse meio de água-morna da imprensa carioca; tenho loucura pra ver o tal domingo ilustrado com o que teria saído, por Jabor; Teresa Simões tem me contado muitas coisas sobre as cartas dele; estão todos confusos e loucos, por ignorância de muita coisa, mais do que por burrice mesmo (se bem que essa também exista): estão fascinados pelo que não conhecem, muito provinciano sem dúvida; querem encontrar saída onde não existe. [...] Olhe: as revistas me deram vontade de fazer coisas; achei porreta; acho que devem ter melhor revisão (aquela lista de livros essenciais de underground está loucamente mutilada; são erros graves); please, mande uns dois exemplares quando sair o de Mario Montez, pois devo dar um a ele. 237

No final de 1971, Torquato Neto informava que a situação vivida no Brasil era a pior possível. A ampliação da censura atingia cada vez mais a produção cultural, resultando inclusive no fechamento de algumas revistas alternativas, como a Flor do Mal . E, ainda nesse clima, a polêmica e troca de acusações e críticas contundentes sobre o cinema nacional “fervia”:

[...] a presença , eu já não sei mais: começou a feder e eu saí de baixo. Quero ver agora como vai pintar. Me garantiram e eu não estou dando tréguas: quero que me paguem os teus artigos. Vamos ver. [...] a sessão de Ivan, nos salões dos Taborda, foi uma ação espetacular, pode crer. As pessoas todas caíram fulminadas: tirante quem estava bem por dentro (vergara inclusive), o resto caiu do cavalo. Nelsinho Motta, por exemplo, achou os filmes porcos e assim por diante. Foi fantástico. Falar nisso: Jabor deu entrevista para a revista Pomba (conhece? é uma merda), dizendo textualmente: todo filme brasileiro que não foi feito por pessoa que pertença ou tenha pertencido ao cinema novo não passa de um monte de lixo. pt. saudações, pode? 238

Em 1972, apesar do envolvimento em vários projetos, o estado depressivo, associado aos excessos no consumo de álcool, obrigou Torquato a se afastar do projeto da revista Navilouca e retornar a Teresina, mais uma vez, conforme escreveu:

237 Hélio Oiticica, Nova York, 24 de novembro de 1971. Apud: PIRES, Paulo Roberto (Org.). Torquato Neto: Torquatália - do lado de dentro. Rio de Janeiro: Rocco, 2004. p.260-1. 238 Torquato Neto, 21 de dezembro de 1971. Apud: Ibidem. p.266. 153

Hélio, querido: aqui é a voz do sertão. Foi de repente que eu tive de sair do Rio para um repouso necessário e compulsório no Piauí: você deve ter recebido a carta que mandei poucos dias antes de vir e, se já respondeu, Ana manda logo sua resposta aqui pra mim. Não sei bem, mas como estou precisando mesmo de uma espécie de repouso bem completo acredito que termino ficando em Teresina até o fim de julho. Deixei a Navilouca andando, agora entregue a Waly e Luciano + Oscar: estou esperando notícia deles e acho que, se tudo correr como deixei encaminhado, a revista estará pronta pra ser distribuída aí pelo início de julho. Mas acho que somente em agosto ela sai mesmo, porque julho tem férias e a dispersão é total. Não seria um bom momento: Navilouca , acredite será qualquer coisa de definitivamente forte e rigoroso. Como te falei na outra carta: um escândalo, dadas as condições existentes. E tem dado muito trabalho, como é natural, por isso mesmo está demorando tanto. Mas vai sair a tempo, saia quando sair, você não calcula como tramar uma revista (com Waly) tem me deixado aceso: quando ela pintar você vai compreender direitinho por quê. 239

Enfim, as correspondências trocadas entre Torquato Neto e Hélio Oiticica evidenciam a análise crítica de ambos sobre a produção cultural do momento e seus representantes. Percebe-se, por intermédio da leitura dos textos, que ambos valorizavam a criação artística em busca da autenticidade, ou seja, da originalidade buscada pelo artista.

Nas cartas, Hélio Oiticica revelava o processo de aprendizagem, o contato com novos parceiros e suas contribuições para o desenvolvimento de seu processo criativo. Denotava a importância de sua permanência nos EUA naquele momento, não apenas pelo enriquecimento cultural que adquiria, pela aproximação com a arte pop, mas também pelas dificuldades para a criação no Brasil, no momento de acirramento da repressão e da censura.

Já Torquato Neto revelava que, embora tivesse um grupo de parceiros para compartilhar seus projetos, se sentia cada vez mais isolado e solitário. Respondia às cartas de Oiticica prontamente, demonstrando ansiedade em discutir com alguém com ideias comuns e que respeitava suas opiniões. No entanto, as cartas de Oiticica talvez ampliassem o sentimento de frustração de Torquato, pois, enquanto o amigo relatava seus projetos de sucesso e esboçava toda a agitação de Nova York, ele

239 Torquato Neto, Rio, 7 de junho de 1972. Apud: PIRES, Paulo Roberto (Org.). Torquato Neto: Torquatália - do lado de dentro. Rio de Janeiro: Rocco, 2004. p.283. 154

versava sobre planos que muitas vezes fracassavam e descrevia um ambiente cada vez mais difícil para aqueles que se opunham à ditadura militar.

E, finalmente, percebe-se nas correspondências trocadas que ambos compartilhavam a ideia de que a informação era o elemento-chave para a criação artística. Para criar, o artista deveria estar atualizado. E era exatamente essa atualização sobre os fatos e a produção cultural que ambos buscavam.

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CAPÍTULOIIIAMÚSICAPOPULARBRASILEIRAEMDEBATE

Eu quis cantar minha canção iluminada de sol soltei os panos sobre os mastros no ar soltei os tigres e os leões nos quintais mas as pessoas na sala de jantar são ocupadas em nascer e morrer [...]

PanisetCircenses

Caetano & Gilberto Gil

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Neste capítulo analisa-se o debate sobre a Música Popular Brasileira por meio da coluna publicada por Torquato Neto no Jornal dos Sports , intitulada Música Popular . O texto divide-se em três partes. Na primeira parte, “Música Popular: o debate sobre o nacional e o universal” , apresenta-se a discussão sobre a produção musical brasileira e a construção de sua “identidade”, debate que emergiu a partir da década de 1920, com os modernistas, e as discussões feitas na década de 1960 mediante a supracitada coluna, publicada diariamente no período de março a setembro de 1967.

Nos textos, de escrita informal, observa-se o debate sobre a produção musical no final da década de 1960, a partir da avaliação dos discos lançados na época, da divulgação dos espetáculos musicais e de entrevistas com compositores e intérpretes da música popular. Assim, a coluna “ Música Popular ” representa documento relevante para a análise da cena musical, constituindo um espaço importante da divulgação da Música Popular Brasileira e da instauração do debate sobre os rumos da produção musical nacional.

Na segunda parte do texto, “ Jovem Guarda: polêmica sobre o “iê-iê-iê” ”, apresentam-se as reflexões de Torquato Neto sobre o movimento musical que provocou tanta polêmica na década de 1960. Protagonizado por Roberto Carlos, Erasmo Carlos e Wanderléa e marcado pela influência do iê-iê-iê, foi um fenômeno musical, com ampla vendagem de discos e produtos – roupas e acessórios – direcionados para a juventude de classe média no Brasil.

Por fim, a última parte deste capítulo, “ Novos rumos para a MPB: Tropicália ”, será dedicada às reflexões sobre o movimento musical – Tropicália . Torquato Neto foi ativo participante da Tropicália, trabalhando não apenas na elaboração do roteiro para o programa de TV, conforme discutido no capítulo anterior, mas também na composição de canções – que serão discutidas no último capítulo da tese – e principalmente na divulgação do movimento mediante sua coluna no Jornal dos Sports .

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3.1 - MÚSICA POPULAR: O DEBATE SOBRE O NACIONAL E O UNIVERSAL

Em meio às discussões sobre os rumos da MPB, conforme discutido no capítulo I, Torquato Neto assinou a coluna Música Popular, no período de março a setembro de 1967, no tradicional diário de notícias esportivas, o Jornal dos Sports , especificamente no suplemento O Sol , dedicado à produção cultural. A coluna revela a importância que o debate sobre a música brasileira alcançava.

O texto da coluna Música Popular apresentava-se dividido em duas partes: a primeira parte, identificada com o título, destacava o assunto principal; e a segunda parte, intitulada “ Várias ”, exibia notas sobre o lançamento de discos, estreias e recados sobre a produção cultural, com ênfase para a música. Na coluna Torquato polemizou sobre a Música Popular Brasileira, debatendo temas como o papel das gravadoras, a influência dos produtores, a postura dos intérpretes, compositores e músicos num momento de grande discussão sobre os rumos da música brasileira. No texto de estreia explicou:

O assunto é música popular: discos, movimento de gente mais ou menos popular no ambiente de música idem. Possíveis entrevistas com alguns figurões da música brasileira etc. etc. De vez em quando, muito etcetera . Os discos serão comentados regularmente e, para não escapar à regra geral, receberão cotações variáveis entre uma e três estrelinhas: mau, bom, excelente. Com isto pretende-se oferecer ao leitor uma orientação que pode ou não ser tomada a sério. 240

As discussões sobre os caminhos que a música popular deveria e poderia assumir, conforme já abordado no capítulo I, não se constituíam uma novidade na década de 1960, pois as discussões sobre o “nacional-popular”, a influência estrangeira e a identidade nacional da canção estiveram em pauta em vários momentos: na década de 1920, com o debate proposto pelos modernistas, como o projeto nacionalista, defendido por Mário de Andrade, que antecipava a polêmica sobre o caráter nacional e a “universalização” da canção, que se estenderia até os anos 60:

240 TORQUATO NETO. Música Popular. JornaldosSports . Suplemento “O Sol”. Rio de Janeiro, 7 mar. 1967. 158

A arte musical brasileira, se a tivermos um dia, de maneira a poder chamar-se escola, terá inevitavelmente de auscultar as palpitações rítmicas e ouvir os suspiros melódicos do povo para ser nacional, e por conseqüência ter direito de vida independente no universo. Porque o direito de vida universal só se adquire partindo do particular para o geral, da raça para a humanidade, conservando aquelas suas características próprias, que são o contingente que enriquece a consciência humana. O querer ser universal desgraçadamente é uma utopia. A razão está com aquele que pretende contribuir para o universal com os meios que lhe são próprios e que lhe vieram tradicionalmente da evolução do seu povo. 241

O debate sobre os caminhos da canção brasileira percorreu as décadas seguintes. Nos anos 30, as discussões foram ampliadas com a “modernização das técnicas de gravação, assim como o surgimento do rádio e do microfone, que seriam fatores responsáveis pelas transformações operadas nos gêneros populares” 242 . Nesse momento o samba tornou-se um “símbolo nacional”, sendo inclusive utilizado pela propaganda do governo Vargas como elemento da “identidade e unidade” nacional.

Na década de 1940, o grupo “ Música Viva ” deu continuidade às discussões sobre a produção musical brasileira e propôs caminhos para a renovação. As considerações do grupo foram publicadas por meio de manifesto em 1946, com a assinatura de vários compositores eruditos, entre eles: Hans Joachim Koellreuter, Cláudio Santoro, Eunice Catunda, Edino Krieger e Guerra Peixe. O documento foi apontado como “a primeira ruptura oficial contra-nacionalismo que dominou boa parte dos últimos 60 anos da música brasileira”. 243

A partir da divulgação do manifesto, o debate sobre o nacional e a influência estrangeira na música brasileira acirrou-se. Enquanto o grupo “ Música Viva ” defendia a incondicional “universalização” da música, o grupo “nacionalista”, entre os seus defensores destaque para Camargo Guarnieri, reivindicava a defesa dos valores brasileiros e, consequentemente, repudiava a influência estrangeira. Porém, com o contexto histórico marcado pela Guerra Fria, a defesa do nacionalismo ganhava importância. Dessa forma:

241 Mário de Andrade, em artigo escrito em 1924. Apud: NAVES, Santuza Cambraia. Oviolãoazul: modernismo e música popular. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 1998. p.31. 242 NAVES, op. cit., p.16. 243 SQUEFF, Enio; WISNIK, José Miguel. Música: o nacional e o popular na cultura brasileira. 2ªed. São Paulo: Brasiliense, 1983. p.73. 159

[...] vários membros do “Grupo Música Viva” ligados ao Partido Comunista Brasileiro recebiam ordem expressa colocada a nível de decisão para que aderissem à música nacional. O PCB, solidário com a luta da URSS contra os EUA na guerra fria que se iniciava, passava a defender os valores nacionais na medida em que a América do Norte iniciava sua longa mas sistemática invasão por toda a América Latina. 244

Assim, a defesa do nacionalismo era resposta e “arma” contra o imperialismo norte-americano. Percebe-se também que as questões ideológicas sempre estiveram presentes no debate e avançariam nas décadas seguintes.

A partir de 1950, com a expansão da industrialização, a ampliação do mercado consumidor e a crescente influência estrangeira, principalmente norte- americana, um novo grupo organizava-se e polemizava sobre o nacional, a tradição e a inovação musical, o grupo da “ Música Nova ”, formado por: Damiano Cozzella, Rogério Duprat, Régis Duprat, Sandino Hohagen, Júlio Medaglia, Gilberto Mendes, Willy Correia de Oliveira e Alexandre Pascoal. Semelhante ao grupo “ Música Viva ”, os integrantes do novo grupo estavam ligados à produção musical erudita. Combatiam o que denominavam de “estagnação no campo musical” e propunham a “atualização”, ou seja, acreditavam que a produção deveria estar sintonizada com a realidade vivida. Suas reflexões foram publicadas por meio de manifesto em março de 1963:

música nova: compromisso total com o mundo contemporâneo: desenvolvimento interno da linguagem musical (impressio- nismo, politonalismo, atonalismo, músicas experimentais, serialismo, processos fono-mecânicos e eletro-acústicos em geral), com a contribuição de Debussy, Ravel, Stravinsky, choenberg, webern, varèse, messiaen, schaeffer, cage, boulez, stockhausen. [...] reavaliação dos meios de informação: importância do cinema, do desenho industrial, das telecomunicações, da máquina como instrumento e como objeto: cibernética (estudo global do sistema por seu comportamento). Comunicação: mister da psico-fisiologia da percepção auxiliada pelas outras ciências, e mais recentemente, pela teoria da informação [...] 245

244 SQUEFF, Enio; WISNIK, José Miguel. Música: o nacional e o popular na cultura brasileira. 2ªed. São Paulo: Brasiliense, 1983. p.74. 245 Manifesto Música Nova, publicado na Revista Invenção , n.3, 1963. p.28. Apud: GAÚNA, Regina. RogérioDuprat: sonoridades múltiplas. São Paulo: UNESP, 2002. p.88. 160

Em outro trecho do manifesto, observa-se a defesa da releitura do passado, da incorporação das novas técnicas e, consequentemente, da proposta de um novo conceito de estética, de criação artística. Defendendo a arte “atualizada” com o seu tempo histórico, o manifesto ressalta inclusive a necessidade de considerar o consumo. Termo que acirrava o debate, mas que provocaria maior polêmica na década seguinte (1960), em virtude da expansão da indústria cultural:

[...] exata colocação do realismo: real = homem global; alienação está na contradição entre o estágio do homem total e seu próprio conhecimento do mundo. Música não pode abandonar suas próprias conquistas para se colocar ao nível dessa alienação, que deve ser resolvida, mas é um problema psicosócio-político-cultural. [...] como conseqüência do novo conceito de execução-criação coletiva, resultado de uma programação (o projeto, ou plano escrito): transformação das relações na prática musical pela anulação dos resíduos românticos nas atribuições individuais e nas formas exteriores da criação, que se cristalizaram numa visão idealista e superada do mundo e do homem (elementos extra-musicais: “sedução” dos regentes, solistas e compositores, suas carreiras e seus públicos – o mito da personalidade, enfim). A redução a esquemas racionais – logo, técnicos – de toda comunicação entre músicos. Música: arte coletiva por excelência, já na produção, já no consumo. 246

O manifesto também trazia a defesa de um novo processo de formação de músicos. Preocupados com o ensino da música, os integrantes do grupo antecipavam a defesa da “pesquisa” como elemento fundamental para a inovação da arte, ou seja, da investigação e da construção de conhecimento novo. Questão que foi amplamente discutida durante a década de 1960 e defendida por Torquato Neto em sua coluna.

[...] educação musical: colocação do estudante no atual estágio da linguagem musical; liquidação dos processos prelecionais e levantamento dos métodos científicos da pedagogia e da didática, educação não como transmissão de conhecimentos mas como integração na pesquisa. 247

246 Manifesto Música Nova, publicado na Revista Invenção , n.3, 1963. p.28. Apud: GAÚNA, Regina. RogérioDuprat: sonoridades múltiplas. São Paulo: UNESP, 2002. p.88. 247 Ibidem. p.89. 161

Por fim, por meio da defesa da atualização, o grupo afirmava a necessidade de “revolucionar” a produção musical. Revelando-se comprometidos e críticos da realidade nacional, esses sujeitos esboçavam as discussões sobre a condição de subdesenvolvimento do país e a necessidade de superação, não só no plano político-econômico, mas também no artístico:

[...] cultura brasileira: tradição de atualização internacionalista (p.ex., atual estado das artes plásticas, da arquitetura, da poesia), apesar do subdesenvolvimento econômico, estrutura agrária retrógrada e condição de subordinação semi-colonial, participar significa libertar a cultura desses entraves (infra- estruturais) e das super-estruturas ideológico-culturais que cristalizaram um passado cultural imediato alheio à realidade global (logo, provinciano) e insensível ao domínio da natureza atingido pelo homem. maiacóvski [ sic ]: sem forma revolucionária não há arte revolucionária. 248

Em meio às discussões sobre os caminhos da música brasileira e as transformações nos cenários político, econômico e cultural, na década de 1950 a proposta de inovação no campo musical foi retomada com o surgimento da Bossa Nova, movimento musical que, de acordo com o pesquisador Marcos Napolitano, não deve ser tomado como realizado no “vazio histórico” e como ruptura, mas como continuidade:

[...] o peso da tradição na música popular brasileira era considerável e se algumas vertentes do samba-canção eram questionadas, o samba urbano carioca não era totalmente descartado, por mais “quadrado” que fosse o seu ritmo. Mesmo os músicos mais identificados com a bossa nova, que apontavam para um afastamento em relação aos parâmetros expressivos e ao público tradicional da música popular, não rejeitaram o samba como gênero-matriz da música urbana brasileira. [...] Nem a bossa nova apagou do cenário musical o samba tradicional e o samba bolerizado, comercialmente fortes nos anos 50, nem se constituiu sem dialogar com estes estilos. 249

248 Manifesto Música Nova, publicado na Revista Invenção , n.3, 1963. p.28. Apud: GAÚNA, Regina. RogérioDuprat: sonoridades múltiplas. São Paulo: UNESP, 2002. p.89. 249 NAPOLITANO, Marcos. Seguindo a canção: engajamento político e indústria cultural na MPB (1959-1969). São Paulo: Annablume/ FAPESP, 2001. p.25-7. 162

Os debates sobre os caminhos da produção musical brasileira chegaram à década de 1960, quando as argumentações sobre a “renovação” musical tornaram- se ainda mais polêmicas, em razão do desenvolvimento da indústria cultural e da discussão promovida pelos intelectuais, artistas e universitários sobre a importância e o papel da arte na sociedade brasileira. Nesse cenário, a música brasileira estava diante de um desafio: como afirmar o caráter nacional diante da crescente comercialização da música?

A resposta de muitos artistas, incluindo Torquato Neto, para tal desafio seria utilizar os meios de comunicação, a indústria cultural para divulgar a canção nacional, mas sem “sucumbir” ao mercado. Em outras palavras, o artista manteria sua autonomia para criar e o mercado seria meio, e não fim; deveria o artista disputar o mercado sem perder a identidade.

Observa-se que a coluna Música Popular estava inserida num contexto de amplo debate sobre a produção da música brasileira, pois:

[...] o ano de 1967 foi decisivo na reorganização radical do panorama musical brasileiro, iniciando o ciclo final de institucionalização da MPB renovada. Com o esgotamento do ciclo dos programas musicais seriados, não só a carreira de muitos astros foi abalada, mas novos hábitos de consumo musicais foram consolidados, tendo um lastro comum: a massificação, no sentido quantitativo do termo, do público consumidor de música popular de tipo renovado, entre os quais as referências à bossa nova se cruzavam com parâmetros musicais anteriores a ela, em meio a um contexto político e ideológico cada vez mais radicalizado. 250

Torquato Neto, em sua coluna, analisou a produção da música brasileira do final da década de 1960, discutiu o papel das gravadoras, dos produtores, intérpretes, compositores e músicos, os programas musicais da TV, como os festivais, atento à produção e revelando interesse pela “inovação” no campo musical. Suas opiniões provocavam polêmicas, como a crítica feita em 19 de março de 1967, sobre o disco “ Eternamente Samba ”, de Ataulfo Alves, que rendeu

250 NAPOLITANO, Marcos. Seguindo a canção: engajamento político e indústria cultural na MPB (1959-1969). São Paulo: Annablume/ FAPESP, 2001. p.104. 163

discussões por dias seguidos. Sua avaliação foi publicada com os seguintes comentários:

Tem muita coisa ruim neste último LP de Ataulfo Alves. Primeiro, o repertório, de que escapam no máximo cinco sambas e nenhum deles novo. [...] Mas o disco desagrada também por outros (vários) motivos. O acompanhamento a cargo do regional Caçulinha é um deles. Aqui encampo a opinião de Sílvio Túlio Cardoso e afirmo que não dá pé, é feio e despropositado acompanhar samba com acordeom. [...] No entanto, o LP Eternamente Samba tem mais defeitos. Ataulfo Alves Júnior é outro. Não adianta ser filho de peixe: o rapaz é, mesmo, péssimo sambista, compositor sem nenhuma inspiração e cantor pior ainda. Não sei o que pretendia Ataulfo ao deixar que seu filho gravasse com ele. Ou o que pensaram os produtores da Poyldor ao concordar com a idéia. Os sambas do rapaz são muito ruins, e ele não sabe cantar. O disco é, por inteiro, malfeito, descuidado. 251

As críticas resultaram, inclusive, em discussões internas na redação do Jornal dos Sports. O colunista Mister Eco rebateu as críticas de Torquato Neto, por intermédio da coluna “ Parque de Diversões ”. Considerando que houve excessos e, sobretudo, falta de respeito com o famoso compositor, argumentou:

Por ser quem é, um excelente compositor, Ataulfo Alves não está salvo de críticas desfavoráveis. Nem todo dia se pode ser genial. Altos e baixos todos temos em nossas profissões, mas há também um passado construído pelos que têm alguma coisa a dar e a legar à posteridade. E esse passado merece respeito. O direito à crítica, assim, se inalienável, deve revestir- se, também, de respeitabilidade. Ataulfo Alves – Sua Excia., o Ministro do Samba – quer a opinião de outros críticos para chegar a uma conclusão. Em sendo judiciosa as afirmativas do recorte, promete reformular a sua obra musical. Não pretende ser retrógado ou um estacionado no tempo e no espaço. Os jovens compositores, afirma Ataulfo Alves, sem resquícios hipócritas, estão realizando um trabalho de maior importância para a música popular brasileira. 252

251 TORQUATO NETO. Música Popular. JornaldosSports . Suplemento “O Sol”. Rio de Janeiro, 19 mar. 1967. 252 MISTER ECO. Parque de Diversões. JornaldosSports . Rio de Janeiro, 23 mar. 1967. 164

Em virtude da repercussão das críticas feitas por Torquato Neto, o tema voltou a ser assunto na coluna, no dia 29 de março, com o título “ Ataulfo, novamente ”:

Volto a falar de Ataulfo Alves. Novamente Ataulfo, para explicar melhor a certas pessoas, firmas e entidades o meu ponto de vista a respeito desse sambista que, sempre, considerei um dos mais importantes da história da Música Popular Brasileira. Escrever uma crítica ao seu último disco já me causou algumas dores de cabeça e, principalmente motivou uma ondinha muito chata sobre o nome, a idade, a educação, a profissão e outras bossas de quem assina estas notas. O que eu disse lá, e repito, é que não acho bom o LP Eternamente samba . Mas por exemplo Mister Eco, aí ao lado, se lesse novamente meu artigo, veria que longe de ser um “candente pronunciamento” contra Ataulfo e sua música, longe de pretender falar de Ataulfo Alves em qualquer coisa parente ou aderente ao desprezo, irreverência – sei lá o que pensaram -, quis apenas dizer que Eternamente samba não um disco à altura da vasta, rica e importantíssima obra do sambista. [...] P.S. – O mais engraçado de tudo é que, realmente, essa história me dá dores de cabeça. E ainda está dando. Apesar de ter “encerrado o assunto”, tenho a impressão de que voltarei a ele, para contar uma história muito interessante. 253

Conforme se observa no texto de Torquato Neto, sua opinião sobre o disco, mesmo após as críticas que recebeu e a polêmica que suscitou, não mudou. Reiterava, de forma veemente, que o disco era “ruim ”. Tal postura revela o compromisso firmado, conforme anunciou na coluna de estreia: “faremos um serviço útil, sem o menor compromisso com a doce tentação da fofoca”.

A polêmica foi encerrada de forma inusitada. Ataulfo Alves respondeu às críticas compondo um samba com o sugestivo título “Não cole cartaz em mim ”. Torquato também respondeu: “Trata-se de uma colher de chá que eu não esperava nem mereço, mas agradeço bastante comovido. Nunca pensei... Enfim, obrigado mestre.” 254

Em março de 1967, entrevistou José Carlos Capinam, quando discutiram o panorama musical e a polêmica influência estrangeira na canção nacional:

253 TORQUATO NETO. Música Popular. JornaldosSports . Suplemento “O Sol”. Rio de Janeiro, 29 mar. 1967. 254 PIRES, Paulo Roberto (Org.). TorquatoNeto: Torquatália – Geléia Geral. Rio de Janeiro: Rocco, 2004. p.13. 165

Cantar e aceitar o iê-iê-iê pode ser uma tendência explicável mas nunca deixará de ser um comportamento próprio de cultura subdesenvolvida. Nunca deixará de refletir a existência de uma poderosa máquina internacional, que padroniza e empobrece o gosto musical. E nunca deixará de conter a necessidade de afirmação de uma cultura nacional própria autêntica, assim como no mesmo plano necessitou o cinema novo ou, para ser mais claro, necessita a política externa do país. Graças a Deus e à gente, toda tendência contém correspondente resistência a seus resultados negativos, e em música a forma de resistir e a de criar muito é pesquisar. 255

Na opinião de Capinam, compartilhada naquele momento por Torquato Neto, a Música Popular Brasileira buscava afirmar uma identidade que representasse “a cultura nacional – própria e autêntica”. Tal defesa ou afirmação resultava da influência, ainda bastante marcante naquele período, da proposta elaborada no início da década de 1960 pelo CPC, da UNE, que valorizava na produção cultural a tradição, os temas sociais e a conscientização das massas, conforme discutido no capítulo I.

A partir da metade da década de 1960, com a ampliação da influência estrangeira, principalmente em razão da difusão do rock internacional, o iê-iê-iê e sua incorporação por compositores e intérpretes brasileiros, o debate sobre o caráter nacional e a identidade da Música Popular Brasileira ampliava-se e dividia as opiniões.

Por intermédio da coluna Música Popular, Torquato Neto não apenas ampliava o debate, mas se posicionava claramente a favor da tradição, do samba e do combate à influência estrangeira – leia-se o iê-iê-iê. Na entrevista com Capinam, procurava identificar os “autênticos” representantes da musica brasileira:

[...] [TN] - Quem faz música atualmente no Brasil? [JC] - Há muita gente. E ótima. Podemos começar por Gil, Caetano e melhor conjunto de composições que há por aí, e com Caetano, sua linguagem lírica e seu domínio do sensível, a mais bem acabada das composições que por último surgiram “De manhã”. Depois, Chico Buarque, Sidney Miller e Edu Lobo. Com Chico, nosso melhor sentimento urbano, ingênuo e também saudoso, usando os objetos e a emoção simples do

255 Entrevista concedida por José Capinam. TORQUATO NETO. Música Popular. JornaldosSports . Suplemento “O Sol”. Rio de Janeiro, 18 mar. 1967. 166

cotidiano brasileiro. Na mesma linha, Sidney Miller. Com Edu, uma resignada paixão musical e uma dúvida bem resolvida entre o compositor culto e o popular. Anote-se entre outros afluentes a constante busca de renovação de Sérgio Ricardo. Anote-se o trio de intérpretes Nara, Bethânia e Elis Regina. E por último, um dos melhores entre os autores que refletem o momento em que a música do morro e a do apartamento se aproximam, brigam e solucionam-se: Paulinho da Viola, que considero um dos mais felizes poetas do amor. 256

E, em agosto de 1967, discutia com Reginaldo Bessa a definição para Música Popular Brasileira e o papel do compositor brasileiro:

[...] [TN] - Música Popular Brasileira. Para você, compositor, o que vem exatamente a ser isto – e como você encara seu trabalho atual? [RB] – Música Popular Brasileira é uma forma de mostrar, através de notas musicais e de versos, a maneira de ser do nosso povo. Toda música para ser realmente popular tem de possuir uma capacidade de penetrar no riso, na alegria, na sensibilidade autêntica de uma coletividade. Música popular tem de chegar ao assovio da rua, senão não é. Quero dizer: precisa ser aquele tipo de música que o sujeito da rua escuta e pensa que poderia tê-la composto. Melodia simples, também. Há anos que persigo esta simplicidade e com o tempo aprendi que é preciso estudar e observar e experimentar muito para chegar até ela. 257

Revelando que estava atento ao debate sobre os rumos da música brasileira, evidenciava em sua coluna preocupação com a produção nacional, cada vez mais influenciada pelo mercado consumidor e estratégias de marketing:

Ouçam o compacto de Simonal com “A Banda”’ e “Disparada”. Pode? Não pode. E no entanto Simonal grava e faz sucesso. Temos um “selo”, um nome para essas bobagens: o famoso “samba-jovem”, tolice publicitária e musical, barulheira desagradável, mistura cafajeste de samba e iê-iê-iê.258

256 Entrevista concedida por José Capina. TORQUATO NETO. Música Popular. JornaldosSports . Suplemento “O Sol”. Rio de Janeiro, 18 mar. 1967. 257 Entrevista de Reginaldo Bessa (compositor). TORQUATO NETO. Música Popular. Jornal dos Sports . Suplemento “O Sol”. Rio de Janeiro, 24 ago. 1967. 258 TORQUATO NETO. Música Popular .JornaldosSports . Suplemento “O Sol”. Rio de Janeiro, 10 mar. 1967. 167

A crítica explícita ao intérprete Wilson Simonal apontava o apelo “publicitário” da canção, ou seja, o que incomodava Torquato Neto não era a influência estrangeira na música, mas a forma como esta era utilizada. Não envolvia pesquisa – defendida pelo autor, necessária para a “atualização” da música brasileira –, mas mero recurso mercadológico, ou seja, a intenção era, acreditava o colunista, sintonizar a música internacionalmente apenas para vender discos.

Nota-se na coluna de Torquato uma preocupação crescente com a influência da indústria cultural na composição das canções brasileiras. De forma bastante crítica, as gravadoras foram apontadas como influência danosa para a criação artística:

[...] Catulo está com um bocado de músicas, todas lindas, e não consegue gravar. Pois é isto que eu não entendo. Não consegue por quê? Então a mentalidade é ainda a mesma, as gravadoras continuam “por fora” como sempre, cheias de preconceitos burros que não acreditam na possibilidade de que Catulo possa vender discos [...] 259

No período em que Torquato Neto escreveu sua coluna, a discussão sobre a dicotomia tradição versus modernidade era acirrada e ocupava amplo espaço na imprensa. Apesar das divergências de opinião sobre os caminhos da Música Popular Brasileira, o debate estava marcado pela “linha evolutiva”, principalmente a partir da defesa feita por Caetano Veloso, sendo muitas vezes considerado o autor do termo. Porém,

[...] sem desmerecer o pioneirismo intelectual do compositor baiano, é necessário reconhecer que o problema da linha evolutiva estava presente, ainda que revestido de outros significados estéticos e ideológicos, no conjunto de debates intelectuais e criações artísticas que emergiram após a bossa nova [...]. 260

259 TORQUATO NETO. Música Popular .JornaldosSports . Suplemento “O Sol”. Rio de Janeiro, 15 mar. 1967 . 260 NAPOLITANO, Marcos. Seguindo a canção: engajamento político e indústria cultural na MPB (1959-1969). São Paulo: Annablume/ FAPESP, 2001. p.125. 168

Em 1966, em entrevista concedida a Augusto de Campos, publicada na revista Civilização Brasileira, Caetano Veloso afirmou:

Só a retomada da linha evolutiva pode nos dar uma organicidade para selecionar e ter um julgamento de criação. Dizer que samba só se faz com frigideira, tamborim e um violão sem sétimas e nonas não resolve o problema. Paulinho da Viola me falou, há alguns dias, da sua necessidade de incluir contrabaixo e bateria em seus discos. Tenho certeza de que, se puder levar essa necessidade ao fato, ele terá contrabaixo e terá samba, assim como João Gilberto tem contrabaixo, violino, trompa, sétimas, nonas e tem samba. Aliás, João Gilberto, para mim, é exatamente o momento em que isto aconteceu: a informação da modernidade musical utilizada na recriação, na renovação, no dar-um-passo-à-frente, da música popular brasileira. Creio mesmo que a retomada da tradição da música brasileira deverá ser feita na medida em que João Gilberto fez. Apesar de artistas como Edu Lobo, Chico Buarque, Gilberto Gil, Maria Bethânia, Maria da Graça (que pouca gente conhece) sugerirem esta retomada, em nenhum deles ela chega a ser inteira, integral. 261

Ao publicar a entrevista, Augusto de Campos exaltava a defesa feita pelo compositor e intérprete baiano. Reiterando os comentários sobre a renovação da música brasileira e o encaminhamento para a modernidade musical, afirmava a necessidade da continuidade do projeto inaugurado pela Bossa Nova, não como uma retomada, mas sim como um processo de atualização e ampliação da criatividade, pois, de acordo com Campos, a partir da Bossa Nova, o cenário musical brasileiro havia chegado à maioridade. Estava, portanto, independente e, em razão das inovações, havia ampliado e conquistado o mercado interno e externo. Assim, o momento era de expansão não apenas das fronteiras musicais, mas principalmente da inovação, da criatividade.

Argumentava ainda que o processo inaugurado pela Bossa Nova era irreversível e, portanto, em vez de discutir sobre qual caminho a música brasileira deveria seguir, os críticos, compositores e intérpretes deveriam compreender o momento musical. Ainda sobre o termo “linha evolutiva”, observa-se a seguinte explicação:

261 Entrevista concedida por Caetano Veloso a Augusto de Campos. RevistaCivilizaçãoBrasileira . n..7, mai 1966. p.63 . 169

[...] a linha evolutiva a que se referia Caetano era a que vinha do samba à bossa nova, linha que, em princípio, poderia estender-se até o tropicalismo. Na realidade, não poderia haver tal linha. Se o que venho afirmando está correto, a transição do samba à bossa nova foi antes um acontecimento singular, sem prolongamentos. Nesse sentido, Caetano estava errado ao falar de “linha evolutiva”; mas, como eu já disse, a sua declaração não tinha pretensões teóricas e, se a lermos com cuidado, veremos que, desde o princípio, o que realmente lhe interessava era manter viva a possibilidade, aberta pela bossa nova, de utilizar a informação da modernidade musical na recriação, na renovação, no dar-um-passo-à-frente da música popular brasileira . Ao afirmar a “linha evolutiva”, ele estava simplesmente se opondo àqueles que combatiam qualquer inovação na música popular. 262

A defesa tropicalista para os rumos da Música Popular Brasileira seria “manter viva a possibilidade, aberta pela bossa nova, de utilizar a informação da modernidade musical na recriação, na renovação”. No mesmo sentido, nota-se a definição da “linha evolutiva” como “atualização” da Música Popular Brasileira, sem a pretensão de abandonar a tradição, mas de incorporá-la ao novo cenário musical:

Menos do que propriamente um conceito, a “linha evolutiva” tornou-se uma “idéia-força” que vem orientando a vontade de “atualização” da música popular, sem no entanto, negar a presença da tradição, expressa sobretudo no samba urbano que emergiu nos anos 30. [...] A formulação da idéia da “linha evolutiva” da MPB inseriu-se no amplo debate que tomou conta dos músicos engajados, preocupados tanto com o “avanço” da jovem guarda no mercado musical, quanto com os efeitos do novo circuito comercial da canção engajada e nacionalista. [...] No seio desse debate, os artistas e intelectuais começaram a assumir e pensar, politicamente, o paradoxo básico da MPB, uma corrente musical com ampla penetração comercial e intenções ideológicas. 263

Torquato Neto, mediante a coluna Música Popular , assumiu “o paradoxo básico da MPB”, defensor da denominada “linha evolutiva” da música popular, característica que contribuiu para sua aproximação com o movimento tropicalista.

262 CÍCERO, Antonio. O Tropicalismo e a MPB. In: DUARTE, Paulo Sérgio; NAVES, Santuza Cambraia (Orgs.). DoSambaCançãoàTropicália . Rio de Janeiro: Relume Dumará/ FAPERJ, 2003. p.208. 263 NAPOLITANO, Marcos. Seguindo a canção: engajamento político e indústria cultural na MPB (1959-1969). São Paulo: Annablume/ FAPESP, 2001. p.123-25. 170

Destacava em sua coluna a pesquisa como elemento fundamental para a renovação e atualização musical:

Há pouco tempo, escrevi para um jornal universitário de São Paulo um artigo que resumia a minha opinião a respeito deste assunto vastíssimo e muito empolgante; que deve ser feito agora em Música Popular Brasileira. Foi algum tempo após o estouro de “A Banda”, de Chico Buarque, e de “Disparada”, de Geraldo Vandré. E eu pensava ainda que o assunto pudesse ser resumido em poucas laudas de considerações rápidas. É verdade que algumas das minhas previsões (as mais pessimistas, diga-se) estão sendo confirmadas. Disse que não adiantaria apelar, não daria em coisa alguma fazer “O coreto”, porque Chico fizera “A Banda”, nem “O estouro da boiada” porque Vandré conseguira êxito com sua esplêndida “Disparada”. Disse em vão, e não poderia supor que estava escrevendo qualquer coisa, para ser objetivamente tomada a sério, principalmente por quem faz música popular no Brasil, esta classe desunida e baratinada que ainda não atravessou o tempo do amadorismo. Mas isto é outra história. O que interessa é que “A Banda” fez escola, e bem ruinzinha. O que interessa é que a maior parte dos compositores preferiu sair na onda, e jogar para o lado aquele preceito tão saudável da pesquisa como elemento decisivo na evolução de um processo cultural qualquer. E, de repente, depois de “A Banda”, de “Disparada”, de “Procissão” e do “Ensaio Geral”, uma nova crise já se desenha [...] 264

Nota-se, no trecho citado, a crítica à repetição de modelos e à falta de criatividade no cenário musical, bem como a defesa da inovação, por meio da pesquisa, que deveria nortear a produção artística e colaborar para a construção da “identidade” da Música Popular Brasileira. Na opinião de Torquato Neto, esboçada na coluna, a pesquisa necessária para a renovação da música popular seria uma exigência do próprio público. Nesse caso, ele ressaltava que os universitários exigiriam tal mudança, “forçando” assim os compositores e intérpretes a posicionarem-se, ou movidos pelo projeto de renovação ou pelas demandas do mercado:

264 TORQUATO NETO. Música Popular. JornaldosSports . Suplemento “O Sol”. Rio de Janeiro, 13 jun. 1967. 171

[...] A isso – estou cansado de dizer aqui que o público sabe reagir. Quero dizer mais: a pequena história de nossa música popular cheinha de exemplos que podem esclarecer a quem se preocupar seriamente com o problema. Enquanto não se renovar completamente, institucionalizando esta renovação e mantendo um nível de criação à altura, pelo menos, dos anteriores, a famosa crise continuará, e aos poucos irá se agravando [...]. 265

O debate sobre a “linha evolutiva” propunha a reflexão sobre a identidade da Música Popular Brasileira e sua inserção no mercado:

O debate tangenciava o problema que passou a ser o ponto central da crise da canção nos dois anos posteriores: qual deveria ser o estatuto da MPB para efetivar uma ocupação do mercado, sem perder os elos com a “identidade nacional”? Como se inserir numa tradição de consumo marcada pela busca das novidades e pela diversidade de gêneros musicais sem a necessária organicidade requerida por um projeto cultural sério? Qual o “povo” a ser atingido, via mercado? 266

Na coluna Música Popular , Torquato Neto teceu comentários sobre a influência cada vez mais ampliada do mercado na produção musical. Criticando a indústria cultural, afirmava:

[...] São de encabular. Primeiro, por causa dos “sucessos” propriamente ditos... A gente dá uma espiada e é muito difícil juntar coragem para enfrentar – pelo menos – duas músicas seguidas: “Tijolinho”, por exemplo, que andou encabeçando paradas durante semanas, é um iê-iê-iê ruim, mas tão ruim que a gente não pode crer que tenha sido feito, gravado e lançado a sério. No entanto, isto é o de menos. Muito mais gozado é ver-se, numa só semana, em – digamos – quatro revistas especializadas, quatro listas completamente diferentes de “maiores sucessos” do mês, da semana ou do ano, não importa. [...] Pois bem. Isso acontece nas revistas, jornais e – talvez seja mais grave aqui – nas estações de rádio e televisão. Através dessa “brincadeira de empurra-empurra”, de “vamos ver quem dá mais”, órgãos de imprensa desinformam ou impõem ao público uma realidade bem diferente. Anuncia-se com maior vigor o que está mais carente de promoção. [...] Daí,

265 TORQUATO NETO. Música Popular. JornaldosSports . Suplemento “O Sol”. Rio de Janeiro, 13 jun. 1967. 266 NAPOLITANO, Marcos. Seguindo a canção: engajamento político e indústria cultural na MPB (1959-1969). São Paulo: Annablume/ FAPESP, 2001. p.130. 172

as revistas, os jornais, as TVs e as rádios ajudando a vender produtos de baixa qualidade que, no entanto, foram produzidos e precisam de um mercado para pronta-entrega. 267

Assumindo a defesa da “linha evolutiva”, Torquato reiterava em sua coluna a ideia de que a renovação musical não poderia ser feita abandonando a tradição. Enfatizava, portanto, que o caminho a ser seguido deveria ser de continuidade, não de ruptura. Ressaltava ainda que, em razão do debate, da polêmica e dos projetos apresentados, era momento de os compositores e intérpretes posicionarem-se, ou seja, deveriam decidir e assumir qual caminho seguir:

Não se pode dar nomes aos bois, por enquanto. Ou não se deve: ninguém sabe ao certo o que pode acontecer daqui para a frente. Falei ontem de compositores, lembrando-me da noite de sexta-feira no Teatro República, quando um público de cerca de dois mil universitários aplaudiu com entusiasmo a seis deles, que apresentavam músicas suas, e brasileiras. Conheço, por outro lado, parte das “teorias” que se vem tecendo a respeito do assunto MPM + iê-iê-iê. E imagino que muita gente, de riso afiado, estará pensando que tudo isso são asneiras de colunistas sem assunto... Mas não é bem assim. É verdade que me preocupo com o assunto e me preocupo demais, a ponto de ter, inclusive, um certo receio de que as coisas que estou prevendo aconteçam de fato. Falei ontem em “trair” e repito: nenhum compositor de música brasileira tem direito de jogar por terra, e de graça, uma admiração que seu público tem pelo trabalho de cada um. Para dizer com ênfase maior: não se pode servir a Deus e ao Diabo. 268

Sustentando a discussão sobre os caminhos a seguir na produção musical brasileira, Torquato mantinha a polêmica. Diferenciando música brasileira – identificada com a tradição, o samba – e a “música jovem”, marcada pela influência estrangeira, explicitada mediante os comentários sobre a produção de Chico Buarque, faz a defesa do samba, que, na opinião de Torquato Neto, além de representar “nossas raízes”, também tinha mercado consumidor, portanto, poderia disputar espaço com o iê-iê-iê.

267 TORQUATO NETO. Música Popular. JornaldosSports . Suplemento “O Sol”. Rio de Janeiro, 28 mar. 1967. 268 TORQUATO NETO. Música Popular. JornaldosSports . Suplemento “O Sol”. Rio de Janeiro, 26 abr. 1967. 173

Contudo, fica evidente nos argumentos de Torquato Neto que, apesar das críticas feitas à indústria cultural, ele incorporou a “lógica do mercado” em sua análise, pois utilizava o consumo – vendagem de discos – como categoria para definir o “popular”:

[...] existem vários excelentes competidores de música popular brasileira atuando no momento, mas, entre todos eles, Chico [Buarque] é o mais popular. Popular, entenda-se, o que consegue maior penetração e êxito entre as diversas camadas de público, do universitário (fiel como sempre a qualquer manifestação de cultura nacional) aos mais exaltados e frenéticos e ardorosos entusiastas da chamada “música jovem”. Isso é importante, porque vem demonstrar aos mais céticos que o termo “música jovem” compreendido como música de ritmo alienígena, atualmente importado em massa para consumo interno, deve – sempre – ser colocado entre aspas. Ou seja: a música de Chico Buarque, fortemente enraizada em nossas tradições mais populares, tem provado que o samba pode ser – e é – também música para consumo do público jovem. 269

Na mesma coluna, defendia a “linha evolutiva”, destacando que nas composições de Chico Buarque o samba era “matéria-prima” para a criação, porém de forma inovadora. Novamente, no texto de Torquato a pesquisa e a atualização musical eram indicadas como caminho a seguir na produção da Música Popular Brasileira:

Não conheço tolice maior do que se dizer a respeito de Chico [Buarque] (elogiando-o!) que sua música é pura e simplesmente o renascimento do samba tradicional. Tendo como fonte básica de sua inspiração as mais antigas tradições do samba (leia-se: Música Popular Brasileira), ele, a meu ver, como que o reinventou. E reinventando-o, compôs à sua defesa (do samba) e colocou na ordem do dia uma tradição autêntica. A obra de Chico Buarque reflete sem dúvida certas influências de compositores como Noel Rosa, ou Ataulfo Alves. Reflete certas influências, não repete nada. O samba de Chico é moderno, é atual; e se propõe algum

269 TORQUATO NETO. Música Popular. JornaldosSports . Suplemento “O Sol”. Rio de Janeiro, 22 jul. 1967. 174

“saudosismo”, não se rebela contra suas mais recentes (as boas) tendências. Pelo contrário, utiliza sempre muitas delas. 270

A defesa do samba – renovado – e a crítica à influência estrangeira foram temas recorrentes na coluna Música Popular . Questionando a “decadência do samba”, Torquato saudava a “resistência” de muitos compositores que seguiam produzindo e divulgando o samba, contrapondo-se à “nova onda musical” do rock estrangeiro:

[...] Chiquinho Enói me disse há pouco, no telefone, que Vinicius gostou muito de um sambinha que fizemos há dias, entre um uísque e outro, lá em casa. Isso é bacana, anima a gente e dá uma vontade séria de fazer mais. Mas pra quê? Se não se fala noutra coisa senão na decadência do samba? Os Beatles estão aí mesmo, ensinando o seu “Liverpoll Beat” para quem quiser aprender. E o samba – tenho ouvido dizer – é primitivo demais, não dá para ser tocado daquela maneira, com aqueles instrumentos pitorescos, que o George Harrison vai buscar na Índia, e outros truques que os rapazes usam. E vamos ficar sabendo que não há solução, que devemos aderir, que devemos “nos atualizar”, porque o tempo é este, uma pessoa com quem o samba parece muito (no entender de muita gente), com uma mocinha linda que sai na rua de vestido abaixo dos joelhos. Completamente por fora. Mesmo assim, o Chico [Buarque], o Sidney [Miller], o Paulinho da Viola, o Baden [Powell] e tantos outros continuam acreditando. No samba. Daqui eu aplaudo, e me comovo. 271

Por fim, observa-se que a coluna esboçava os questionamentos mais frequentes no cenário da década de 1960. Em setembro de 1967, retomava a discussão: “Que caminhos seguir na produção musical?”

Foi em 1917 que apareceu em disco, pela primeira vez a palavra “samba”. Durante muito tempo, esse ritmo foi sinônimo de Música Popular Brasileira. Agora talvez não seja mais: os novos compositores parecem dispostos a tomar outros caminhos e uma reação já se organiza para combatê-los. Que

270 TORQUATO NETO. Música Popular. JornaldosSports . Suplemento “O Sol”. Rio de Janeiro, 22 jul. 1967. 271 Ibidem. 175

caminhos serão esses? E por que tem tanta gente contra? Será que o samba acabou? 272

As respostas para tal indagação foram pensadas na coluna de Torquato Neto, resultando em duras críticas àqueles compositores e intérpretes que aderiram ao iê-iê-iê, principalmente por razões mercadológicas – o alvo principal foi a Jovem Guarda –, e também na defesa da renovação musical, proposta polêmica, assumida pelo movimento tropicalista, conforme as discussões apresentadas nos itens a seguir.

272 TORQUATO NETO. Música Popular. JornaldosSports . Suplemento “O Sol”. Rio de Janeiro, 27 set. 1967. 176

3.2 - JOVEM GUARDA: POLÊMICA SOBRE O “IÊ-IÊ-IÊ”

Já se sabe que no final da década de 1950 a influência da música estrangeira, sobretudo do rock internacional, era evidente. Isso graças à ampliação da classe média e ao aumento do consumo, em virtude das transformações ocorridas no governo Juscelino Kubitschek, que adotou uma política de desenvolvimento econômico que combinava capital interno e externo, captado por meio de investimentos nacionais e estrangeiros e empréstimos.

O governo JK promoveu uma ampla atividade do Estado, tanto no setor de infraestrutura como no incentivo direto à industrialização, com destaque para a indústria automobilística, os transportes aéreos, estradas de ferro, eletricidade e aço. Os resultados foram impressionantes, sobretudo no setor industrial.

A abertura econômica ao capital estrangeiro verificada durante o governo de JK, além da crescente influência norte-americana ocorrida no período pós-Segunda Guerra Mundial e início da Guerra Fria, trouxe para o Brasil, por meio das rádios, de filmes e discos, a produção cultural internacional:

O rock chegou ao Brasil mais rapidamente do que as notícias da Guerra Fria, que o fariam ficar por tanto tempo banido do lado de lá da Cortina de Ferro. O boogie-woogie de Glenn Miller em “In The Mood” já vinha animando os bailes, abrindo caminho para que o rock de Bill Haley conquistasse o planeta pós-guerra. Quando “Rock Around The Clock” estourou mundialmente com as guitarras de Haley e de seu grupo, The Comets, o mundo já estava contagiado pela rebeldia sem causa dos personagens cinematográficos de James Dean e Marlon Brando [...]. 273

A presença do rock no cenário musical brasileiro ocorreu num momento em que as condições sociais eram propícias à eclosão de novas expressões:

No momento em que essa assimilação peculiarmente brasileira do rock vai ganhando ouvidos, a periferia das grandes cidades passa a ganhar corpo, e, em consequência, o público

273 FRÓES, Marcelo. JovemGuarda: em ritmo de aventura. São Paulo: Editora 34, 2000. p.17. 177

suburbano passa a se afirmar, marcando presença e se expressando. Em outras palavras, na esteira da euforia desenvolvimentista, o crescimento urbano preparou um espaço de disponibilidade para novas práticas e atitudes. E é por essa esteira que rolarão algumas das vozes mais fortes do subúrbio. 274

Assim, a partir de 1956, as lojas dos principais centros urbanos passaram a disponibilizar discos dos fenômenos musicais internacionais, como Bill Haley, Chuck Berry, Elvis Presley e Little Richard, e o cinema também contribuía para a divulgação do sucesso dos astros musicais, com a exibição dos filmes “ Rock Around The Clock ” e “ The Blackboard Jungle ”.

Diante do sucesso do rock internacional, constatado mediante as rádios e a venda de discos nas lojas brasileiras, muitos grupos nacionais especializaram-se em fazer cover de artistas estrangeiros, entre eles The Fellows , The Jordans , The Jet Black’s e The Avalons , embora muitos não tenham sobrevivido até a década de 1960. As gravadoras, rapidamente, lançavam artistas nacionais com nomes estrangeiros para aproveitar o momento:

A Odeon, que pouco antes começara a lançar discos de Little Richard, Chuck Berry, Fats Domino e Gene Vicente, contratava os irmãos Sérgio e Célia Benelli – de Taubaté (SP) – para gravarem versões de rock. Sérgio, que começara com grupos de baile em sua cidade, vinha acompanhando o conjunto de Mário Gennari Filho em algumas gravações, mas com a chegada de sua irmã à gravadora, viu seus nomes mudados para Tony e Cely Campello. 275

O sucesso do rock também era notado na programação das rádios e das emissoras de TV. Vários programas musicais surgiram, ainda sob o impacto da “novidade musical”, como os programas “ Hoje é Dia de Rock ”, da TV Rio, e “ Alô Brotos ”, da TV Tupi. A influência do rock internacional avançou a década de 1960, quando o lançamento, em 1962, do primeiro compacto dos Beatles consolidou o ritmo entre parte da juventude brasileira:

274 MEDEIROS, Paulo de Tarso C. A aventura da Jovem Guarda . São Paulo: Brasiliense, 1984. p.20. 275 FRÓES, Marcelo. JovemGuarda: em ritmo de aventura. São Paulo: Editora 34, 2000. p.20. 178

[...] a euforia multiplicou-se mil vezes mais quando os Beatles chegaram às rádios, ano de 1962. Nas garagens, nas esquinas dos subúrbios das grandes cidades, dentro do quarto, invadindo a sala de jantar, o velho rádio irradiava sem parar as avassaladoras She Loves You e I Wana Hold Your Hand . Exalando uma incontida energia pelos poros, as canções dos Beatles aceleravam o ímpeto dos instintos com sua impulsividade agressiva e suas harmonias estranhamente líricas. 276

Inspirado no iê-iê-iê, o rock brasileiro combinava nas letras de suas canções romantismo, ingenuidade e certa rebeldia, conforme se observa:

Fui à praia me bronzear Me queimei, escureci Mamãe brigou, nada de sol Hoje só quero A luz do luar... Tomo um banho de lua Fico branca como a neve Se o luar é meu amigo Censurar ninguém se atreve É tão bom sonhar contigo Ó luar tão cândido [...] 277

[...] Subi a rua Augusta a 120 por hora Joguei a turma toda do passeio pra fora Fiz a curva em duas rodas Sem usar a buzina Parei a quatro dedos da vitrina (legal) Ai, ai, Johnny Ai, ai, Alfredo Quem é da nossa gangue Não tem medo [...] 278

O novo gênero musical, conhecido no Brasil como rock’n’roll, deu origem a vários segmentos, como twist , hully-gully, surf music e o iê-iê-iê . Ritmos associados à juventude brasileira, suas influências deram origem a um “fenômeno musical” denominado Jovem Guarda :

276 MEDEIROS, Paulo de Tarso C. A aventura da Jovem Guarda . São Paulo: Brasiliense, 1984. p.20. 277 Canção Banho de Lua , sucesso de Celly Campello de 1960, versão da canção original Tintarella di lun, da cantora italiana Mina, gravada em 1959. 278 Canção Rua Augusta , sucesso de Hervé Cordovil de 1964, interpretada por seu filho, Ronnie Cord (Ronaldo Cordovil). 179

A expressão “Jovem Guarda” é utilizada pela primeira vez num artigo da imprensa especializada, quando uma revista de televisão e rádio da Editora Abril, a Intervalo, em 12 de janeiro [1963] faz uma matéria sobre o restaurante San Quentin, de São Paulo: “The Clevers superlotam as madrugadas do restaurante que tem nome de prisão, escolhido pela jovem guarda para as reesticadas de depois das quatro, em São Paulo”. 279

Sob a influência do iê-iê-iê dos Beatles , a TV Record, em São Paulo, estreou em 22 de agosto de 1965, em caráter experimental, o programa Jovem Guarda , com grande sucesso de público. Na estreia do programa apresentaram-se Os Incríveis, Tony Campello, Wanderléa, Rosemary, Ronnie Cord , The Jet Black’s , Erasmo Carlos, Roberto Carlos e Prini Lorez.

Sobre o programa que tanta polêmica suscitou, conclui-se que:

[...] nasceu da conjunção de três fatores: a necessidade da TV Record de preencher suas tardes de domingo, esvaziadas em agosto de 1965 pela proibição das transmissões ao vivo das partidas de futebol; a decisão do publicitário Carlito Maia, sócio da agência Magaldi, Maia & Prosperi (MM&P), de criar e explorar ídolos populares de consumo; e a disponibilidade na praça de um jovem cantor, talentoso e ambicioso, com a carreira em ascensão [Roberto Carlos] [...]. 280

O programa rapidamente tornou-se sucesso de audiência, chegando ao auge em 1966. Entre os representantes, destacaram-se Roberto Carlos, Erasmo Carlos e Wanderléa, apresentadores do programa, além de Ronnie Von, Rosemary, Demétrius, Silvinha, Wanderley Cardoso, Jerry Adriani, Martinha, Eduardo Araújo, Leno e Lilian, Deny e Dino, Sérgio Reis, Bobby Di Carlo e os grupos Os Vips, Renato e seus Blue Caps, Os Incríveis, Os Golden Boys e o Trio Esperança.

O sucesso também pôde ser observado no mercado fonográfico. Apresentador e protagonista do programa da TV Record, em fins de novembro de 1965, Roberto Carlos lançou o LP “ Jovem Guarda ”, vendendo 200 mil cópias em um ano, tornando-se grande ídolo da música nacional e internacional:

279 FRÓES, Marcelo. JovemGuarda: em ritmo de aventura. São Paulo: Editora 34, 2000. p.43. 280 SEVERIANO, Jairo. Uma história da música popular brasileira: das origens à modernidade. São Paulo: Editora 34, 2008. p.399. 180

Com o sucesso de seu programa, Roberto estoura nacionalmente ao gravar “Quero Que Vá Tudo Pro Inferno” e passa a ser requisitado para palcos de emissoras de TV não só de São Paulo e do Rio, mas também de Curitiba e Porto Alegre. O cantor anuncia então que irá a Portugal e a outros países da Europa no primeiro semestre de 1966, depois de cantar na Argentina, no Uruguai e no Paraguai – onde “O Calhambeque” continuava seu sucesso em castelhano. A música também foi lançada em Portugal, atingindo o segundo lugar da parada em sua versão original em português. A CBS francesa também lança o compacto em português e a gravação faz um certo sucesso em Paris. 281

Em sua coluna no Jornal dos Sports , Torquato Neto referia-se às várias tendências na produção musical brasileira da década de 1960, em especial o “fenômeno musical” Jovem Guarda, que agitava o cenário musical e provocava muita polêmica:

No começo de 1966, os músicos e aficcionados da MPB se deram conta do “fenômeno Roberto Carlos”, líder da jovem guarda. A partir de então, instaurou-se um novo conjunto de impasses, dessa vez tendo como centro as contradições e os limites da realização do nacional-popular dentro da indústria cultural, que começava a ser percebida como um sistema de regras próprias, e não como um veículo neutro para chegar ao “povo”. A euforia pelo espaço conquistado pela MPB nas emissoras de TV se desvanecia, dado o avanço da jovem guarda, vista pelos nacionalistas como a expressão, no campo da cultura, da “modernização conservadora” proporcionada pelo discurso do regime militar. Vista como uma espécie de trilha sonora das estratégias de alienação e despolitização da juventude, a jovem guarda passou a ser percebida como ameaça à MPB na virada de 1965 para 1966. 282

Torquato Neto utilizou sua coluna para apresentar críticas à Jovem Guarda, tema de discussão inclusive nas entrevistas. Em abril de 1967, questionava Sidney Miller:

281 SEVERIANO, Jairo. Uma história da música popular brasileira: das origens à modernidade. São Paulo: Editora 34, 2008. p.83. 282 NAPOLITANO, Marcos. A síncope das idéias: a questão da tradição na música popular brasileira. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2007. p.95. 181

[TN] - Iê-iê-iê é problema para a música popular brasileira? [SM] - Se pensarmos em termos de concorrência no mercado de discos ou no sistema de divulgação musical, o problema existe. No entanto, devemos encará-lo apenas como uma realidade inevitável, fruto de um óbvio e remanescente mimetismo colonialista dos países subdesenvolvidos, visto que o iê-iê-iê, assim como tantas outras modalidades de música estrangeira que nos têm chegado constantemente, não representa mais do que uma simples decadência cultural ingenuamente importada pelo nosso país e divulgada, em princípio por interesses exclusivamente comerciais. É um gênero tão pouco significativo que não chega a interferir diretamente na nossa imensa riqueza musical. 283

Sobre as contundentes críticas dirigidas à Jovem Guarda, alguns simpatizantes saíram em defesa do movimento, discordando, dessa forma, de Torquato Neto:

Não é segredo para ninguém que a “brasa” da jovem guarda provocou um curto-circuito na música popular brasileira, deixando momentaneamente desnorteados os articuladores do movimento de renovação, iniciado com a bossa-nova. Da perplexidade inicial, partiram alguns para uma infrutífera “guerra santa” ao iê-iê-iê, sem perceberem a lição que esse fato novo musical estava, está dando, de graça, até para o bem da música popular brasileira. 284

A opinião de Torquato Neto sobre a Jovem Guarda era compartilhada por outros artistas e intelectuais:

A jovem guarda tinha sua qualidade questionada e suas “intenções” colocadas em xeque pelos artistas e intelectuais de esquerda. Sua pobreza formal e de conteúdo e a “alienação” diante dos dilemas enfrentados pela nação eram vistas como a antítese da MPB, elementos constantemente denunciados pelos artistas engajados. A incorporação, ainda que tímida, de timbres eletrônicos nos arranjos, à base de teclados e guitarras, também não era bem-vista, pois a MPB deveria se

283 Entrevista concedida por Sidney Miller. TORQUATO NETO. Música Popular. JornaldosSports . Suplemento “O Sol”. Rio de Janeiro, 09 abr. 1967. 284 Entrevista concedida por Caetano Veloso a Augusto de Campos. RevistaCivilizaçãoBrasileira . n..7, mai 1966. p.59. 182

manter fiel ao violão e aos instrumentos de percussão ligados ao samba e outros gêneros “autênticos”. 285

Os comentários apresentados na coluna provocaram polêmica, em virtude da popularidade e do grande número de fãs desse gênero, os quais exigiram que o autor respondesse às reclamações que chegavam à redação:

Uma explicação para leitores que me escrevem sobre o assunto, tenho má vontade, mesmo, com o iê-iê-iê que se faz no Brasil. E tenho porque é de baixa qualidade. Excluí Roberto Carlos, que é o único que sabe cantar e, de vez em quando, aparece com músicas bonitinhas. Quanto ao resto, na modestíssima opinião deste colunista, é uma droga. E até que apareça alguma boa novidade (difícil, hein?) vou continuar com tal má vontade. 286

Conforme se observa no discurso de Torquato, sua “má vontade” com a Jovem Guarda não se referia à influência estrangeira – explícita na produção musical desse gênero –, mas sim à falta de qualidade. Ou seja, se referia à falta de pesquisa, de originalidade na composição das canções, uma vez que eram em sua maioria versões:

Tem sido das mais engraçadas a correspondência que tenho recebido de leitores desta coluna. Algumas cartas, agressivíssimas, trazem palavrões ao meu conhecimento, reclamantes da má vontade deste colunista para com o iê-iê-iê que se faz no Brasil. Já escrevi a respeito, mas o fato é tão engraçado que merece uma outra breve referência. Expliquei aqui, há coisa de uma semana, que essa “má vontade” existe realmente. Existe na medida em que o iê-iê-iê brasileiro é quase totalmente débil mental, pobre e burro. Há muito tempo que ouço e gosto dos Beatles; The Mamas and Papas é outro conjunto que tenho ouvido sempre e com prazer. Mas daí aos Brazilian Bitles ou a Renato e seus Blue Caps vai uma distância que eu não percorro. De Chris Montez à imbecilidade de Erasmo Carlos ou à banalidade de um Bobby de Carlo vai outra distância que eu não ando. Impossível aceitar a “ternurinha” analfabeta de Vanderléa ou de sua congênere subdesenvolvida, Maritza Fabiane. Certo, os cabelos de

285 NAPOLITANO, Marcos. A síncope das idéias: a questão da tradição na música popular brasileira. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2007. p.96. 286 TORQUATO NETO. Música Popular. JornaldosSports . Suplemento “O Sol”. Rio de Janeiro, 11 abr. 1967. 183

Ronnie Von são bacaninhas, mas que o rapaz não sabe cantar, não sabe mesmo. [...] E até que apareça algo melhor, fico com minha opinião. Sobre o assunto, é a única que respeito. 287

As críticas feitas à Jovem Guarda não ficaram sem respostas. Em entrevista Erasmo Carlos reagiu:

Em primeiro lugar, se a Bossa Nova continuar esnobe e tão afastada do povo, vai pifar. Eles são sistematicamente contra nós, mas deviam era atiçar fogo numa panelinha que já está esfriando. Como é que têm coragem de nos acusar de cantar versões e músicas estrangeiras, se eles enfiaram o na sua musiquinha nacional?

Torquato Neto continuava demonstrando sua “má vontade” em relação à Jovem Guarda. Com texto explícito e polêmico, desqualificou os fãs desse gênero, acirrando ainda mais o debate:

Um disco dos Brazilian Bitles, de Renato e seus Blue Caps, Ronnie Von, de Vanderléa (ufa!) precisa de textos na contracapa? Se o público dessa gente às vezes nem sabe ler... E, quando acerta, não se interessa, prefere outra foto de seus “ídolos”? Por outro lado, um disco de Nara Leão, de Maria Bethânia, do Tamba Trio, de Chico Buarque de Holanda, de Gilberto Gil precisa de um texto. E precisa porque o público dessa gente é outro e – perdão – muito melhor, muito mais “alfabetizado”, interessado em detalhes que passam despercebidos ao pessoal do iê-iê-iê. Aí sim: uma contracapa bem feita vem a calhar. 288

Nota-se que o autor divide o público dos gêneros musicais. O público da MPB seria formado pela classe média, de jovens universitários, enquanto a Jovem Guarda tinha como público a população mais pobre e considerada por Torquato “analfabeta”. Evidenciava assim um discurso elitista, considerando a produção musical feita por e para universitários superior àquela produzida pela e para a camada popular. Diante das críticas, Erasmo Carlos se posicionaria mais tarde:

287 TORQUATO NETO. Música Popular. JornaldosSports . Suplemento “O Sol”. Rio de Janeiro, 18 abr. 1967. 288 TORQUATO NETO. Música Popular. JornaldosSports . Suplemento “O Sol”. Rio de Janeiro, 11 mai. 1967. 184

A gente não tinha pretensões. Hoje eu vejo... era simples, não é? Muito ingênuo, mas a gente falava das nossas coisas, mesmo. A gente não era universitário, não. Não sabia falar de outras coisas. Eram os nossos problemas, garotas, carros... Eu só tinha o ginásio, vinha da Zona Norte, a Wanderléa parece que não tinha nem o ginásio. Que é que a gente podia dizer? E o grosso da nossa platéia era assim também, era feito a gente, se identificava conosco. A gente veio do povo mesmo. Olha, não me lembro de outro movimento que tenha vindo do povo e subido tão alto... bom, não muito alto, mas alto, enfim. 289

A Jovem Guarda e seus representantes foram temas recorrentes na coluna. Com tom de crítica bastante ácido, o autor apresentou sua indignação em relação ao movimento:

[...] Eduardo Araújo. Este moço é atualmente uma das coqueluches do iê-iê-iê indígena. Seu carro-chefe é a primeira faixa do elepê “Vem quente que eu estou fervendo”, do famigerado senhor Carlos Imperial. Mas o disco tem ainda, entre outros absurdos, gravações de “Meu limão meu limoeiro” e “Peguei um ita no Norte”. É um pouco demais... Não ouvi e não gostei. Juro. 290

E, à medida que a Jovem Guarda atingia mais sucesso, as críticas ocupavam ainda mais espaço. Na TV o apresentador Flávio Cavalcanti opinava: “Não consigo entender, como a mocidade de hoje prefere ouvir as Wanderléas que surgem por aí, sem nem mesmo lembrar de cantoras como Dolores Duran e Maysa. Acho que estamos caminhando para o caos.” 291

É pertinente ressaltar que, durante a década de 1960, a TV brasileira mantinha em sua programação uma série de programas musicais. Entre as emissoras, a TV Record, de São Paulo, liderava. Além do programa Jovem Guarda , apresentava também O Fino da Bossa , Show em Si... Monal, Esta noite se improvisa, Bossaudade, Astros do Disco e Show do dia 7 . Em meio às rivalidades pela audiência, as polêmicas em torno da Jovem Guarda acirravam-se, e no ano de

289 Depoimento de Erasmo Carlos. Apud: MEDEIROS, Paulo de Tarso C. A aventura da Jovem Guarda . São Paulo: Brasiliense, 1984. p.67-8. 290 TORQUATO NETO. Música Popular. JornaldosSports . Suplemento “O Sol”. Rio de Janeiro, 23 abr. 1967. 291 FRÓES, Marcelo. JovemGuarda: em ritmo de aventura. São Paulo: Editora 34, 2000. p.180. 185

1967, durante o programa da TV Record “ Show do dia 7 ”, Elis Regina anunciava: “Quem estiver do nosso lado, muito bem, quem não estiver que se cuide.” 292

A queda de audiência e o cancelamento do programa O Fino da Bossa , apresentado por Elis Regina e Jair Rodrigues, resultaram em uma manifestação, promovida pela própria TV Record, numa estratégia de marketing para promover o novo programa protagonizado por Elis – Noite da Música Popular Brasileira , dirigido por Ronaldo Boscôli. Tal manifestação ficou conhecida como a “passeata pela MPB contra as guitarras elétricas”:

No dia 18/07/1967, a “passeata” pela MPB, “contra as guitarras elétricas”, saiu do Largo São Francisco, no centro de São Paulo, e seguiu até o “templo da bossa”, o Teatro Paramount. Tendo à frente Elis Regina, Gilberto Gil, Jair Rodrigues, Edu Lobo e o conjunto MPB-4, a “passeata” na verdade visava promover o lançamento do novo programa da TV Record, Noite da MPB , que deveria suceder O fino da bossa . Porém, a passeata acabou sendo vista como uma manifestação “ideológica” contra o iê-iê-iê. 293

A manifestação suscitou mais polêmica, o que era interessante para a TV Record, pois a ampliação do debate provocava também o aumento dos índices de audiência. Os representantes da Jovem Guarda publicaram então o provocativo “Manifesto do iê-iê-iê contra a onda de inveja ”:

Somos conscientes de que temos feito muito pelos que necessitam da nossa ajuda. Não choramos nas nossas canções, não usamos protesto para impressionar. Se nós decidimos ajudar, fazemo-lo com ação. A prova disso é um sem-número de shows que temos dado em benefício de instituições várias. Fazer música reclamando da vida do pobre e viver distante dele não é o nosso caso. Preferimos cantar para ajudá-lo a sorrir e, na hora da necessidade, oferecer-lhe uma ajuda mais substancial. [...] Trata-se de um movimento otimista, não há lugar para derrotados. Observe que os cabeludos são rapazes alegres. Não falamos jamais, nas nossas canções, de tristeza, de dor-de-cotovelo, de desespero, de fome, de seca, de guerra [...]. Um dos erros principais destes festivais é o critério usado pela comissão julgadora, que

292 FRÓES, Marcelo. JovemGuarda: em ritmo de aventura. São Paulo: Editora 34, 2000. p.181. 293 NAPOLITANO, Marcos. Seguindo a canção: engajamento político e indústria cultural na MPB (1959-1969). São Paulo: Annablume/ FAPESP, 2001. p.184. 186

sempre prefere temas de tristeza, nordestinos, alguns até classificados com boas colocações e dos quais o povo não tomou conhecimento. Decidimos pedir aos organizadores um júri autenticamente popular e não erudito em música. Não queremos ganhar festivais nem ser chamados de geniais. Queremos que o povo cante conosco. 294

A leitura da coluna de Torquato Neto permite observar as várias tendências da Música Popular Brasileira na década de 1960, bem como as rivalidades existentes entre seus representantes. Ainda sobre a Jovem Guarda, cumpre notar que o autor se referia ao movimento chamando-o de “música jovem”, contrapondo-o à Música Popular Brasileira, que explicitamente exaltava:

Enquanto a “jovem guarda” comemorava, sexta-feira última, o aniversário de seu “rei”, num programa de TV transmitido diretamente de um clube da Zona Norte – e exatamente na mesma hora –, uma outra multidão lotava o Teatro República e para ver coisa bem diferente. Era a nova geração do samba que se apresentava para o público universitário numa das noites mais memoráveis de nossa música popular. Era Gilberto Gil, Caetano Veloso, Sérgio Ricardo, Sidney Miller, Edu Lobo e outros compositores novos que lançavam para o seu público todas as suas mais recentes composições. Quem estava lá viu bem o quanto foram aplaudidos, o quanto esse público ainda prefere ouvir, como tenho dito, o som bonito de nossa música em lugar das guitarras barulhentas da chamada “música jovem”. 295

O comentário de Torquato Neto não apenas deixava claro sua preferência pela denominada “música popular”, como também fazia oposição à utilização de guitarras elétricas, opinião que foi alterada a partir de sua adesão ao movimento tropicalista. Nos comentários, caracterizava ainda a diferença de público entre os gêneros, ressaltando e valorizando o público da “música popular”, que, sendo universitários, eram, consequentemente, mais informados, mais seletivos e, portanto, mais exigentes.

O trecho citado evidencia a heterogeneidade do movimento tropicalista. Enquanto Torquato, em sua coluna, tecia críticas à introdução das guitarras

294 Cf.: PAIANO, Enor. O berimbau e o som universal: lutas culturais e indústria cultura na MPB (1959-1969). Apud: Ibidem. p.98. 295 TORQUATO NETO. Música Popular. JornaldosSports . Suplemento “O Sol”. Rio de Janeiro, 25 abr. 1967. 187

elétricas, que, segundo sua crítica, provocavam “barulheira”, em vez de exaltar o som “bonito” de nossa música popular, como no samba, outros integrantes, como Gilberto Gil e Caetano Veloso, ambos citados na coluna como pertencentes à “nova geração de sambistas”, fizeram uso das guitarras elétricas em suas apresentações e propuseram a aproximação entre a música popular e o “som universal”, ou seja, o rock internacional, revelando, dessa forma, outra proposta para a Música Popular Brasileira.

Ainda sobre a dicotomia entre música popular e “música jovem”, Torquato, na mesma coluna, afirmou:

O fato desse espetáculo haver sido realizado – por coincidência – exatamente no mesmo dia em que Roberto Carlos também lotava outro teatro é bem interessante. Deixa claro que há atualmente no Brasil (principalmente no Rio e em São Paulo) lugar de sobra para as duas coisas. Há público para iê-iê-iê e para música brasileira, o que a meu ver é ótimo e pode esclarecer os “caminhos” de muita gente. Refiro-me aos “pessimistas” quase adesistas, refiro-me aos compositores com medo que andam por aí à procura de um som híbrido, meio iê- iê-iê, meio samba (como se fosse possível), querendo agradar gregos e troianos, como se diz, e caminhando assim, para a chamada “sombra”. 296

No trecho citado, o autor questionava os caminhos da Música Popular Brasileira, bem como “exigia” posicionamento dos compositores, defendendo explicitamente o que denominava de música brasileira e condenando o “som híbrido”, que para ele seria a opção dos “pessimistas” e “covardes” que, por razões mercadológicas – “agradar gregos e troianos” –, deixariam de pesquisar e criar e ficariam “à sombra”, isto é, repetiriam as “fórmulas” de sucesso musical.

Assim, no discurso supracitado, Torquato tece críticas também ao “som híbrido”, ou seja, à mistura do tradicional – o samba – com os ritmos estrangeiros – o iê-iê-iê. Ressalta-se que o comentário foi feito em abril de 1967, momento em que ainda se nota sua contrariedade em relação a tal iniciativa. Porém, sua posição se alteraria. Em setembro do mesmo ano, Torquato utilizava sua coluna para destacar

296 TORQUATO NETO. Música Popular. JornaldosSports . Suplemento “O Sol”. Rio de Janeiro, 25 abr. 1967. 188

o movimento tropicalista, do qual era participante ativo, embora sua proposta fosse exatamente a mistura, ou seja, a busca do “som universal”, a hibridação.

Em meio às polêmicas, o programa Jovem Guarda sofreu uma grande mudança, no ano de 1968, quando o ídolo Roberto Carlos anunciou sua saída da atração, que passou a ser apresentada apenas por Erasmo Carlos e Wanderléa. Com a saída de Roberto Carlos e a saturação do gênero, os índices de audiência caíram e, em junho de 1968, a TV Record anunciou a suspensão de sua exibição. Sobre o término do programa, Erasmo Carlos concluiu:

A Jovem Guarda estava um pouco saturada, o Tropicalismo já tinha surgido. A juventude começou a seguir as propostas de novos artistas. A menina que gostava da ingenuidade da Jovem Guarda já tinha crescido e estava interessada em novas coisas [...]. 297

O centro da polêmica no cenário musical naquele momento era a Tropicália. Os debates em torno do movimento musical serão apresentados no item a seguir.

297 FRÓES, Marcelo. JovemGuarda: em ritmo de aventura. São Paulo: Editora 34, 2000. p.207. 189

3.3 - NOVOS RUMOS PARA A MPB: TROPICÁLIA

Durante a década de 1960, além da "guerra declarada" contra o iê-iê-iê – a Jovem Guarda de Roberto Carlos –, outro grupo que iniciava a divulgação de seu movimento, os tropicalistas, formado por Caetano Veloso, Gilberto Gil, Gal Costa, Tom Zé, Capinam, Torquato Neto, Rogério Duprat, Os Mutantes (Arnaldo Baptista, Sérgio Dias e Rita Lee) e Nara Leão, também foi alvo de inúmeras críticas, talvez ainda maiores do que as sofridas pela Jovem Guarda.

A estreia do “movimento” ocorreu em outubro de 1967, no III Festival da Música Popular Brasileira, da TV Record, de São Paulo, com as apresentações de “Alegria, alegria”, de Caetano Veloso, e “Domingo no Parque”, de Gilberto Gil.

Torquato Neto utilizou sua coluna para anunciar a organização do movimento, que se tornaria conhecido a partir da apresentação no Festival da Record:

Gilberto Gil chegou de Recife com grandes planos. Pretende apresentar-se em várias outras cidades do país, principalmente no Nordeste onde sua temporada de 20 dias – como já noticiei aqui – obteve enorme sucesso. Gil se reúne este fim de semana com vários compositores e intérpretes para expor seus planos que, segundo ele, somente serão possíveis através de um trabalho de equipe entre o pessoal mais novo de Música Brasileira. Tomara! 298

Enfatizando a necessidade de reunir diversos artistas interessados na inovação da Música Popular Brasileira, o projeto de Gilberto Gil, contudo, não foi bem recebido, atraindo apenas um seleto grupo, cujos integrantes, a partir de 1967, passariam a ser chamados de tropicalistas.

Torquato Neto, mediante sua coluna, dava ênfase aos planos que começavam a aglutinar os interessados na “ linha evolutiva ” da Música Popular Brasileira, ressaltando que para isso seria necessária a institucionalização de um novo movimento:

298 TORQUATO NETO. Música Popular. JornaldosSports . Suplemento “O Sol”. Rio de Janeiro, 20 mai. 1967. 190

[...] Opinião de Gil: “É necessária a imediata institucionalização de um novo movimento da música brasileira, a exemplo do que foi feito com a bossa nova”. E não transcrevo mais porque a importantíssima entrevista de Gilberto Gil, na qual ele desenvolve esse tema aí de cima, foi publicada aqui mesmo no JS, há dois dias. 299

Na mesma coluna, Torquato posicionava-se como um dos participantes do novo movimento, que ensaiava sua organização, bem como apresentava suas intenções:

Vale, no entanto, comentar as declarações do baiano. Estou envolvido também nesse movimento e não digo isso para me dar importância, mas porque o fato me coloca mais ou menos por dentro do assunto. Desse assunto um problema aliás, que se resolvido poderá trazer condições profissionais inteiramente novas para o compositor e para o intérprete da música popular moderna. Gil fala numa institucionalização: ou seja, a partir de uma identificação de interesse e dúvidas e certezas e problemas, os compositores chegaram ao momento grave de definição. Definidos, passam agora à chamada fase principal, de organização do trabalho em planos de verdadeira luta. 300

Torquato Neto explicava que uma das intenções do movimento iniciado por Gilberto Gil era definir uma identidade para a música brasileira, necessária, de acordo com o autor. Dessa forma, o movimento, que se materializaria como Tropicália, propunha a reunião de todos os compositores e intérpretes que desejassem engajar-se na construção do projeto de inovação da Música Popular Brasileira, já assumindo o caráter de luta que tal iniciativa exigia:

E não me venham pensando que se trata de tolices do tipo luta contra iê-iê-iê ou congêneres. É muito mais grave uma luta a favor, contra coisa nenhuma. Uma tomada de posição frente a um público que, de repente, precisa e exige definições de seus artistas; precisa e exige maior atenção. Esta atenção, na opinião de Gil e na opinião de todos nós, somente poderá ser dispensada através da institucionalização de um verdadeiro movimento. Isso, Gilberto está tentando organizar. E porque conheço o baiano e conheço o pessoal disposto a trabalhar,

299 TORQUATO NETO. Música Popular. JornaldosSports . Suplemento “O Sol”. Rio de Janeiro, 23 mai. 1967. 300 Ibidem. 191

acredito com firmeza no êxito da iniciativa. Aguardem. Divulgarei daqui tudo o que for acontecendo. 301

No trecho citado, Torquato Neto refere-se ao movimento tropicalista como um necessário posicionamento exigido dos artistas por determinado público – o público jovem e universitário. Ressaltava no texto ainda a crença no êxito da empreitada iniciada por Gilberto Gil. No entanto, o que ocorreria no decorrer do movimento tropicalista seria um enfrentamento de seus integrantes com o público universitário, que resistiu à proposta, o que resultou em vários protestos e polêmicas.

As apresentações das canções “ Alegria, alegria ” e “ Domingo no Parque ” ocorridas no III Festival de MPB da TV Record, em 1967, já suscitaram polêmica e acirraram o debate sobre os rumos da Música Popular Brasileira. As canções destoavam de todas as outras, na sua maioria identificadas com a música engajada ou de protesto, e rapidamente as canções tropicalistas foram tachadas de “alienadas”, conforme já discutido no capítulo I.

Contudo, o propósito tropicalista logrou êxito na apresentação das canções, pois estas, mesmo que os compositores ainda não fossem “porta-vozes” do movimento, com a inovação na letra e no arranjo, causaram estranhamento e provocaram a plateia. As canções “ Alegria, alegria ” e “Domingo no Parque” antecipavam a proposta que seria denominada tropicalista: além da reflexão sobre o papel da canção no Brasil, a desconstrução e crítica da tradição brasileira, por meio da releitura da realidade nacional a partir de suas contradições, e a “invenção” de uma identidade. Tratava-se de um projeto não apenas estético-musical, mas também político:

Rearticulando uma linha de tradição artística abandonada desde o início da década, retomando pesquisas do modernismo, principalmente a antropofagia oswaldiana, rompeu com o discurso explicitamente político, para concentrar-se uma atitude “primitiva”, que, pondo de lado a “realidade nacional”, visse o Brasil com olhos novos. Confundindo o nível em que se situavam as discussões

301 TORQUATO NETO. Música Popular. JornaldosSports . Suplemento “O Sol”. Rio de Janeiro, 23 mai. 1967. 192

culturais, o tropicalismo deu uma resposta desconcertante à questão das relações entre arte e política. 302

Em razão da novidade apresentada, e especialmente pela forma escolhida pelos tropicalistas para “deflagrar” o movimento, por meio do lúdico, do deboche e da sátira, foram logo identificados como "alienados", "esquerda festiva", denominação muito usada na época para os considerados descompromissados, irresponsáveis e antirrevolucionários.

A “eclosão” do movimento tropicalista passou a ser um ponto de debate de amplos setores, na década de 1960, pois:

[...] a intervenção histórica operada, sobretudo pelo Tropicalismo musical, foi tão contundente que mesmo aqueles que, na época, não se identificaram com seus pressupostos, não lhe negaram a radicalidade e a abertura para uma nova expressão estético-comportamental. 303

Entre os críticos da Tropicália destacou-se o compositor e intérprete Geraldo Vandré, representante do grupo ligado à chamada “canção de protesto”. Vandré iniciou sua oposição ao movimento desde as primeiras apresentações tropicalistas:

Dizendo que a música universal proposta no III Festival de Música Popular Brasileira, realizado pela Record é uma piada, e que lamenta que a música popular do Brasil tenha perdido dois grandes poetas como Gilberto Gil e Caetano Veloso. Geraldo Vandré pronunciou conferência na Câmara de Vereadores de São Bernardo do Campo, iniciando, assim, a série que contará com a presença de muitos artistas e personalidades da vida nacional. 304

Geraldo Vandré considerava que a tentativa de “universalização” da Música Popular Brasileira, proposta pela Tropicália, levaria à descaracterização da nossa

302 FAVARETTO, Celso. Tropicália: Alegoria, alegria. 3ª ed. São Paulo: Ateliê Editorial 2000, p. 30. 303 NAPOLITANO, Marcos; VILLAÇA, Mariana. Tropicalismo: as relíquias do Brasil em debate. RevistaBrasileiradeHistória . Vol.18, n.35. São Paulo, 1998. p.54. 304 FOLHA DE SÃO PAULO. Folha Ilustrada. São Paulo, 25 nov. 1967. p.1. 193

música, e reivindicava a realidade nacional como elemento para a produção da música brasileira:

Quanto àqueles que propõem o enriquecimento da canção popular brasileira com tentativas de universalizá-la, o autor de Ventania foi duro: Caetano Veloso, na realidade, faz canção de vaqueiro americano que contém os valores culturais da realidade que representa, diz ele. Nos EUA – acrescenta – esta tentativa de universalização da música tem sido proposta por Joan Baez e Bob Dylan, que fazem o que Gilberto Gil fazia antes do festival de Música Popular Brasileira. 305

O crítico da Tropicália reivindicava, em nome da defesa da Música Popular Brasileira, a elaboração de legislação que impedisse a sua “universalização”, acirrando assim ainda mais o debate em torno do rumo da produção musical no país:

Ao final da conferência, Geraldo Vandré disse que a Câmara Municipal de São Bernardo podia fazer muito pela música brasileira, como órgão de responsabilidade política que é. Sugeriu aos vereadores que dessem ao país a primeira legislação, protegendo a nossa música contra tentativas de universalização e contra a ocupação do mercado com o iê-iê-iê ou canção de vaqueiro americano. 306

Os tropicalistas encontraram maior resistência em São Paulo, naquele período considerado o epicentro da MPB e, segundo os críticos, o reduto conservador da música brasileira – representado por universitários. Foram também os tropicalistas que enfrentaram as maiores manifestações contrárias da plateia dos festivais. Basta lembrar o episódio ocorrido em 1968, no TUCA, em São Paulo, na eliminatória da fase nacional do III FIC, promovido pela TV Globo, quando, após a desclassificação de Gilberto Gil, com a canção " Questão de Ordem ", Caetano Veloso foi impossibilitado de apresentar sua canção " É proibido proibir ", diante das vaias e do protesto da plateia, provocando o discurso agressivo de Caetano:

305 FOLHA DE SÃO PAULO. Folha Ilustrada. São Paulo, 25 nov. 1967. p.1. 306 Ibidem. 194

A vaia que recebi foi dada por um grupo que quis repudiar o que consideravam uma agressão à música popular brasileira. Infelizmente foi uma atitude bastante reacionária. Entrei no festival para destruir a idéia que o público universitário “ soi disant ” de esquerda faz dele. Eles pensam que o festival é uma arma defensiva da tradição da música popular brasileira. Mas a verdade é que o festival é um meio lucrativo que as televisões descobriram. 307

Porém, a polêmica em torno da proposta tropicalista ampliou-se à medida que a proposta e seus representantes adequaram-se às “regras” impostas pela indústria cultural:

O Tropicalismo, logo depois de sua “explosão” inicial, transformou-se num termo corrente da indústria cultural e da mídia. Em que pesem as polêmicas geradas inicialmente (e não foram poucas), o Tropicalismo acabou consagrado como ponto de clivagem ou ruptura, em diversos níveis: comportamental, político-ideológico, estético. Ora apresentado como a face brasileira da contracultura, ora apresentado como o ponto de convergência das vanguardas artísticas mais radicais, o Tropicalismo, seus heróis e “eventos fundadores” passaram a ser amados ou odiados com a mesma intensidade. 308

Ainda sobre o contexto musical em que se insere a Tropicália, destaca-se que:

A tropicália havia surgido num momento em que a esquerda brasileira adotava palavras de ordem patrióticas, identificando a causa nacional com a redenção das massas. Havia no ar um certo ufanismo de esquerda, nacionalista e triunfalista, popularizado pelos CPCs. Era o momento do teatro agitpro à Brecht, dos filmes politizados do Cinema Novo e da guinada engajada da MPB que teve em Nara Leão uma das figuras centrais. A tropicália soube apossar-se desse vocabulário e dessa temática, acrescentando-lhe diversos outros ingredientes, entre eles elementos da linguagem musical do

307 Depoimento de Caetano Veloso. Apud: SANTAELLA, Lúcia. Convergências: Poesia Concreta e Tropicalismo. São Paulo: Nobel, 1986. p.105. 308 NAPOLITANO, Marcos; VILLAÇA, Mariana. Tropicalismo: as relíquias do Brasil em debate. RevistaBrasileiradeHistória . Vol.18, n.35. São Paulo, 1998. p.54. 195

rock e uma atitude em relação à realidade brasileira bem diferente da adotada pela música engajada. 309

No que diz respeito aos artistas dispostos a engajar-se no movimento liderado por Gilberto Gil, Torquato antecipava a participação de alguns deles, ressaltando sua presença no cenário musical:

Muita gente me fala, me pergunta sobre José Carlos Capinam. Há dois meses, mais ou menos, o poeta declarou aqui mesmo, numa entrevista: “Ser letrista, hoje, é correspondente a uma exigência fundamental: a pesquisa. O letrista tem de enfrentar o esvaziamento que facilita a inautenticidade, acompanhando e reportando o cotidiano popular, exercendo função crítica e esclarecedora, seja em nível lírico, épico ou lá o que Deus queira”. [...] Interessaria examinar essa pequena parte de sua obra, esse todo ainda muito pequeno em vista da imensa capacidade criativa que Capinam apenas começa a exercer. Interessaria verificar com atenção a sua poesia que é hoje, ao lado da música de Gilberto Gil, Caetano e mais uns poucos (não necessariamente baianos ou ligados ao que a imprensa convencionou chamar “grupo baiano”), a grande força que está modificando e atualizando nossa Música Popular ao nível deste tempo. 310

Em sua coluna o autor pôde dar ênfase ao movimento que se iniciava, bem como à participação de seus representantes, que já começavam a ser identificados pela imprensa como o grupo “baiano”, em virtude das figuras evidentes de Gil e Caetano. Torquato ainda se referia às características que o aproximavam às figuras do grupo: a pesquisa e a busca de identidade para a música brasileira.

Nas vésperas da “estreia” do movimento, aproveitou para expor as ideias de seus representantes, Gilberto Gil e Caetano Veloso, publicando entrevistas concedidas por ambos:

309 BRITTO Paulo Henriques. A temática noturna do rock pós-tropicalista. In: DUARTE, Paulo Sérgio; NAVES, Santuza Cambraia (Orgs.). Do SambaCanção à Tropicália . Rio de Janeiro: Relume Dumára/ FAPERJ, 2003. p.192-3. 310 TORQUATO NETO. Música Popular. JornaldosSports . Suplemento “O Sol”. Rio de Janeiro, 1º de junho de 1967. 196

O samba acabou? Gilberto Gil acha que não. E explica: Mudou, evoluiu. Eu, por exemplo, que comecei a compor depois que a bossa nova já havia renovado muita coisa, sinto necessidade de me atualizar ainda mais. Estamos em 1967, é preciso que as pessoas não esqueçam disso. Pretendo utilizar instrumentos eletrônicos nos arranjos de minhas músicas, daqui para frente. E não acho com isso que esteja “aderindo” à coisa nenhuma como muita gente anda sugerindo. Pelos menos não estou aderindo ao que eles pensam: o iê-iê-iê, que é indiscutivelmente a música desse tempo, não me interessa como uma forma em si (muito forte, aliás). Não vou passar a compor iê-iê-iê, mas quero utilizar em minha música algumas de suas vantagens. Assim, “Domingo no parque” e “Bom Dia” serão executadas também com guitarras elétrica, no próximo festival da Record. É uma experiência pela qual assumo os riscos. Acho que vai ficar bonito. 311

Influenciado pela Bossa Nova, Gilberto Gil reiterava na entrevista a continuidade do projeto de renovação musical, iniciado no final dos anos 50. Revelando interesse pela experiência e “atualização”, ou seja, sintonizar a produção musical com o contexto vivido, incorporar as tecnologias e as influências – nacionais e internacionais – disponíveis, antecipava o uso das guitarras elétricas e incorporação do rock internacional à Música Popular Brasileira, dando início à polêmica que marcaria os anos 60.

Na mesma coluna outro representante da Tropicália teve espaço para explicar a proposta de renovação musical: Caetano Veloso.

É bobagem insistirem em fazer do samba uma forma para museus, morto. O samba não morreu: está crescendo. É isso que me interessa. “Alegria, alegria” é uma marcha, mas não é uma marcha como as de Chiquinha Gonzaga ou mesmo Lamartine Babo faziam tempos atrás. Naturalmente, sem o que foi feito antes eu não poderia fazer o que faço agora: basicamente parto da tradição. Mas não quero ficar “tradicional” a vida inteira. Tanto em harmonia como em letra (principalmente nessas duas), pretendo estar atualizado. Pretendo, pelo menos, pesquisar uma atualização e responder pelo que faço. Guitarra elétrica é um instrumento muito bonito. E desde que existe que é utilizada no samba. Cresci ouvindo os trios elétricos da Bahia, que ainda hoje animam o carnaval de lá: e nunca ninguém pensou em dizer que os trios elétricos tocam iê-iê-iê.é que esses músicos não estão cheios de

311 TORQUATO NETO. Música Popular. JornaldosSports . Suplemento “O Sol”. Rio de Janeiro, 27 set. 1967. 197

preconceitos tolos, nem de medo: eles apenas encontraram uma forma excelente de animar uma festa. 312

Dessa forma, a coluna de Torquato apresentava com antecedência a polêmica que se estabeleceria a partir das apresentações de Gilberto Gil e Caetano Veloso no III Festival da Record, em 1967. Como Gilberto Gil, Caetano Veloso também antecipava o uso das guitarras elétricas nos arranjos das canções, preparando o público para a apresentação, e se justificava afirmando que tal proposta era parte da renovação da música brasileira. Argumentava ainda que não se tratava de abandonar a “tradição”, mas, a partir dela, renovar a forma e o conteúdo de nossa música (letra e harmonia). No trecho da entrevista percebe-se ainda a defesa do posicionamento do artista, uma das ênfases que o Tropicalismo traria em seu movimento.

O movimento tropicalista apresentava-se como proposta de renovação para a Música Popular Brasileira e antecipava-se às polêmicas e protestos. O debate sobre os caminhos da produção musical estava aberto e Torquato Neto adiantava o clima de “guerra” vivido nos festivais:

E está iniciada a guerra. Somente no próximo dia 23 conheceremos os vencedores. Vamos ver um bocado de coisas, inclusive como o público reagirá à canção de Caetano Veloso, que ele defenderá acompanhado por guitarras elétricas. Gilberto Gil também vai usar guitarra. E Geraldo Vandré e os “Dragões da Independência do Samba” (também chamados de “os precursores do passado”) são contra. Mas isso é outra guerra. 313

Nota-se no trecho citado que a Música Popular Brasileira, durante a década de 1960, foi produzida em meio às discussões sobre os rumos que a produção musical deveria trilhar, com ênfase na imprensa:

312 TORQUATO NETO. Música Popular. JornaldosSports . Suplemento “O Sol”. Rio de Janeiro, 27 set. 1967. 313 TORQUATO NETO. Música Popular. JornaldosSports . Suplemento “O Sol”. Rio de Janeiro, 1º out. 1967. 198

Agora que o público está mais calmo e os cantores e compositores já botaram a viola no saco, seria bom fazermos uma tentativa de responder algumas perguntas que - com certeza – estão na cabeça de muita gente. Por exemplo: que importância teve, para a música brasileira, o Festival da Record? Como continuará a experiência de Veloso e Gilberto Gil, ou ainda, se as vaias expressaram uma consciente manifestação de desagrado? E várias outras questões que serão discutidas daqui para a frente e que tiveram origem no festival que terminou sábado. Evidentemente este festival trouxe à tona vários problmeas que vinham sendo discutidos em rodinhas de cantores, compositores e gente ligada à Música Popular. Um deles – e talvez o mais importante – era saber como tornar o ritmo de raízes brasileiras, tão rico em gêneros (samba, marcha, baião, xote, etc) mais próximo à nova geração (mais da metade da população do país é composta por jovens até 30 anos), que sucumbiu diante da inflação do iê- iê-iê. 314

Os tropicalistas, no entanto, deixaram claro sua proposta de inovação, assumindo o desafio de associar a Música Popular Brasileira ao denominado “som universal”, ou seja, sintonizá-la com as influências estrangeiras:

Muitas vozes tornaram a se levantar, em fins da década de 60, contra o Tropicalismo, inclusive a esquerda tradicional, porque escorados, entre outros, pela usina sonora do maestro Rogério Duprta e do guitarrista Lanny Gordin – Caetano Veloso, Gilberto Gil, Torquato Neto, Capinan, Gal Costa e outros mais ousaram revolucionar a poética cantada e os modelos musicais vigente. Absorvendo influências do rock, eles promoveram a eletrificação da MPB com a estridência das guitarras que aturdia os tímpanos conservadores. Isso seria uma conspiração contra “as nossas tradições”. 315

Nesse contexto, em meio às agitações estudantis, a TV Record (São Paulo) promoveu o III Festival da Música Popular Brasileira (1967), ocasião do lançamento “oficial” do movimento tropicalista. Pode-se observar que Torquato Neto considerava

314 FOLHA DE SÃO PAULO. 25 nov. 1967. 2º Caderno, p.3. Texto de Isaías Almada [ Ator, escritor, roterista, diretor de teatro, iniciou a carreira como assistente de encenação de Augusto Boal no musical Opinião. Foi militante da Vanguarda Popular Revolucionária – VPR, preso, permaneceu de 1969 a 1971 no presídio Tiradentes. Seu primeiro livro “A metade arrancada de mim”, ganhou o prêmio de revelação literária da APCA, em 1989]. 315 PARANHOS, Adalberto. Novas bossas e velhos argumentos (Tradição e contemporaneidade na MPB) . HistóriaePerspectiva , Uberlândia: 3, jul./dez., 1990, p. 15. 199

que, para dar continuidade ao movimento, seria preciso marcar terreno pela radicalização:

Perfilando-se imediatamente com palavras e ações na linha de combate – e embalado pelas influências da nova poética –, ele escreveria a quilométrica letra de Geléia Geral, que seria transformada numa espécie de hino das causas tropicalistas. 316

Ao discutir o Tropicalismo, no entanto, é necessário ressaltar a heterogeneidade do movimento:

Uma tese inicial que gostaríamos de sugerir é que não devemos partir da idéia de que existiu um movimento artístico- ideológico coeso, que se abrigou sob o leque tropicalista, nem de um significado técnico-semântico unívoco para a palavra. A rigor, esta não é uma tese nova. O caráter de movimento tem sido ora negado, ora afirmado pelos próprios protagonistas, nas suas constantes entrevistas. 317

Confirmando a tese da heterogeneidade do movimento tropicalista, observa- se a tentativa de Torquato Neto de explicar sua proposta, em 1968:

A tropicália é o que for preciso. Alguém o fará, o assobio não me interessa; a canção que o povo canta, é pouca e frouxa e não importa: a mãe da virgem diz que não e não. [...] na geléia geral brasileira, a repressão é um fenômeno muito mais amplo do que geralmente se vê. na música popular brasileira (1968), a repressão é absolutamente evidente: ninguém, a bem da verdade, esconde o seu jogo. Estamos todos ao redor da mesa, a mesma mesa, e somos vistos. Pois é: é preciso virar a mesa (Hélio Oiticica) [...] escolho a tropicália porque não é liberal mas porque é libertina. a anti-fórmula super-abrangente: o tropicalismo está morto, viva a tropicália. todas as propostas serão aceitas, menos as conformistas, (seja marginal), todos os

316 VAZ, Toninho. Pramim chega: a biografia de Torquato Neto. São Paulo: Casa Amarela, 2005. p.95. 317 NAPOLITANO, Marcos; VILLAÇA, Mariana. Tropicalismo: as relíquias do Brasil em debate. RevistaBrasileiradeHistória . Vol.18, n.35. São Paulo, 1998. p.60. 200

papos, menos os repressivos (seja herói). e a voz de ouro do brasil canta para você. 318

No texto Torquato Neto expunha o clima vivenciado na produção cultural, em decorrência da censura imposta pelo governo autoritário e pelas gravadoras. Defendia a necessidade de “virar a mesa” e realizar mudanças no cenário cultural e, pode-se considerar, também no político. Definia a Tropicália como a “anti-fórmula”, ou seja, a proposta de inovação, o combate ao comodismo, notado na repetição das “fórmulas de sucesso”. Ao contrário disso, a aposta era o experimentalismo e a pesquisa para criação do novo. Liberdade foi o que defendeu quando afirmou que “todos os papos serão aceitos, menos os repressivos”. Contudo, é necessário questionar o que Torquato Neto considerava como repressivo.

Conforme se observa, durante a década de 1960, os tropicalistas foram alvo de inúmeras críticas e evolveram-se em diversas polêmicas, sobretudo com os representantes da chamada música engajada ou de protesto, como Geraldo Vandré, que por inúmeras vezes explicitou sua indignação frente à proposta da Tropicália. Acusaram os críticos do movimento de “policiarem a música brasileira”. No entanto, Torquato Neto, um representante ativo da Tropicália, foi um dos maiores críticos da Jovem Guarda, e as duras críticas feitas ao gênero denominado no Brasil de iê-iê-iê não eram consideradas por ele como repressivas, evidenciando os limites de sua defesa libertária. Considerando repressivo apenas o que “feria” a sua própria proposta de inovação e de criação, conclui-se que a liberdade que reivindicava não era para todos, mas apenas para seu próprio grupo.

318 Texto de Torquato Neto publicado no jornal “O Estudo”, de Ivan Cardoso - Colégio São Fernando, 1968. Apud: DUARTE, Ana Maria S. de Araújo; SALOMÃO, Waly. OsÚltimosdiasdePaupéria . 2ªed. São Paulo: Max Limonad, 1982. p.291. 201

CAPÍTULOIVGELÉIAGERAL:APRODUÇÃOCULTURALEMDEBATE

[...] um poeta desfolha a bandeira e a manhã tropical se inicia resplandente candente fagueira num calor girassol com alegria na geléia geral brasileira que o jornal do Brasil anuncia [...]

GeléiaGeral

Gil & Torquato Neto

202

Neste capítulo apresenta-se a análise de Torquato Neto sobre a produção cultural no Brasil, durante o final da década de 1960 e início de 1970, e as principais polêmicas enfrentadas pelo autor. O texto encontra-se dividido em três partes. Na primeira parte – “Criar é Resistir: entre a indústria cultural e a censura ” – a investigação focaliza a produção cultural na década de 1970, o papel da censura, a expansão da indústria cultural e a movimentação da contracultura no Brasil, a partir da análise feita por Torquato Neto mediante a coluna Geléia Geral, publicada no jornal Última Hora .

Na segunda parte do texto – “Cinema Novo e ‘udigrudi’ em debate ” – o objeto de estudo é o panorama do cinema nacional no início dos anos 70. Por meio da análise da coluna Geléia Geral e das correspondências trocadas entre Torquato Neto e Hélio Oiticica, verifica-se o cenário do embate entre o Cinema Novo e o Cinema Super-8, também denominado como Marginal, underground ou “ udigrudi ”, como era definido por Torquato.

Por fim, na terceira parte – “A defesa dos direitos autorais ” – examinam-se as discussões promovidas por Torquato Neto nas colunas Música Popular , do Jornal dos Sports , e, posteriormente, Geléia Geral , do Última Hora . Entre os temas de maior evidência nas suas colunas, a questão dos direitos autorais foi destaque. Nesse item, apresenta-se uma breve trajetória da legislação sobre os direitos autorais, a organização das sociedades arrecadadoras, as denúncias apresentadas por Torquato.

203

4.1 - CRIAR É RESISTIR: ENTRE A INDÚSTRIA CULTURAL E A CENSURA

Para analisar a produção cultural durante a década de 1970, é preciso considerar que no Brasil, ao mesmo tempo que ocorria a ampliação dos mecanismos de repressão e cerceamento das liberdades, com o combate ostensivo aos movimentos de oposição, como os grupos de guerrilha, que optaram pela luta armada, acontecia também a consolidação do mercado de bens culturais. Nessa década a indústria cultural firmou-se e ampliou sua influência sobre a arte produzida, sendo que tal expansão deve ser observada dentro do contexto de desenvolvimento do sistema capitalista, impulsionado pelas medidas adotadas pelos governos militares a partir de 1964:

[...] o Estado militar aprofunda medidas econômicas tomadas no governo Juscelino, às quais os economistas se referem como “a segunda revolução industrial” no Brasil. Certamente os militares não inventaram o capitalismo, mas 64 é um momento de reorganização da economia brasileira que cada vez mais se insere no processo de internacionalização do capital; o Estado autoritário permite consolidar no Brasil “o capitalismo tardio”. 319

De acordo com a Doutrina de Segurança Nacional e Desenvolvimento, formulada pela Escola Superior de Guerra - ESG, com a colaboração do Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais - IPES e do Instituto Brasileiro de Ação Democrática - IBAD, a segurança nacional estava integrada ao desenvolvimento econômico. Portanto, o modelo econômico da Doutrina defendia o avanço da industrialização e o aperfeiçoamento da infraestrutura, incluindo a ampliação de redes de comunicações – rodovias, ferrovias e telecomunicações – para a integração do território nacional, sendo que tal desenvolvimento deveria ser alcançado a partir de forte interferência do Estado.

O período de 1969 e 1973, durante o governo Médici, foi marcado pela expansão econômica – “milagre econômico” –, propaganda ufanista, repressão, uso generalizado da tortura e rígida censura, sendo caracterizado como “os anos de

319 ORTIZ, Renato. Amodernatradiçãobrasileira: cultura brasileira e indústria cultural. 5ªed. São Paulo: Brasiliense, 1994. p.114. 204

chumbo”. Período marcado pela “cultura do medo” 320 , que impossibilitava as manifestações públicas de protesto contra o autoritarismo implantado, configurando, dessa forma, uma fase de silêncio, isolamento e retraimento da oposição.

Nesse contexto, sob a vigência da “cultura do medo”, setores que se opunham à ditadura militar tiveram de reinventar as formas de protesto, manifestação e denúncia. Buscando uma via alternativa, desenvolveram-se nesse período os movimentos de contracultura e a luta armada. Conforme já observado no capítulo II, durante os anos 70, diversos jovens, principalmente da classe média, inconformados com a situação política, mas ao mesmo tempo sentindo-se frustrados e derrotados diante das reivindicações e mobilizações dos anos 60, seguiram caminhos diversos: alguns optaram pelo enfrentamento armado e muitas vezes direto com os militares. Organizados em diversos grupos, das mais diferentes tendências ideológicas, radicalizavam sua luta contra a ditadura militar.

Por outro lado, alguns jovens também radicalizavam sua postura frente ao autoritarismo vigente, mas, ao invés do enfrentamento, optaram pela via pacífica e escolheram a “marginalidade”, entendida como recusa ao sistema, ou seja, preferiram o distanciamento:

[...] o que não interessava era o pensamento acadêmico, a estrada sinalizada, o intelectual tradicional. O fascínio pelo “lúmpem”, fundamentado pelo marcusianismo dos mais letrados, era contrapartida lógica da recusa, nem sempre meramente conceitual, do modo de vida burguês, “careta”. Drop out – cair fora do “sistema”, como então se dizia – era a palavra de ordem da contraculturalista. 321

O termo “contracultura” foi criado pela imprensa norte-americana, ainda na década de 1960, para classificar as novas manifestações culturais nos Estados Unidos e Europa. Os termos “marginal” e “ underground ” também foram utilizados para definir o novo comportamento de parte da juventude.

320 Termo utilizado por: ALVES, Maria Helena Moreira. EstadoeOposiçãonoBrasil . Bauru - SP: EDUSC, 2005. p.205. 321 RISÉRIO, Antonio. Duas ou três coisas sobre a contracultura no Brasil. In: RISÉRIO, Antônio [et. al.]. Anos70: trajetórias. São Paulo: Iluminuras/ Itaú Cultural, 2005. p.25. 205

Esses jovens, conhecidos ainda como “hippies”, buscavam, a partir da reinvenção do seu modo de vida, a transformação social, a partir da mudança dos valores, da moral, dos costumes, ou seja, propunham construir uma nova cultura – um novo modo de vida. Apesar da ênfase à ação individual, identificada nos movimentos de contracultura, o caráter coletivo não havia sido abandonado. Era o tempo das “comunidades alternativas”, da vida comunitária nas moradias coletivas.

Criticando o mundo industrial e a sociedade de consumo, esses indivíduos valorizavam o retorno à natureza, a economia de subsistência e o artesanato. Aderiram às dietas macrobióticas, mudaram o visual – cabelos compridos, adotados por homens e mulheres –, exploraram o misticismo, as drogas alucinógenas, principalmente, e novas práticas sexuais:

Antes que alterar o sistema de poder, ele [o jovem - hippie] pretendia, pela transformação interior e da conduta cotidiano, “mudar a vida”, quem sabe construindo-se como novo ser de uma Nova Era, espécie de amostra grátis do Futuro. [...] Luiz Carlos Maciel morou numa comunidade, Rogério Duarte foi monge budista, Roberto Pinho montou a Guariroba, a “refazenda” da canção de Gilberto Gil, prevendo desde uma economia de subsistência até contato com extraterrestres. 322

Cabe ressaltar que a contracultura não deve ser entendida como uma resposta à ditadura militar brasileira. Pois, conforme destaca Risério, o movimento era internacional, com ramificações no Brasil e existiu “não por causa , mas apesar da ditadura”. 323

Na coluna Geléia Geral , Torquato Neto foi porta-voz do movimento da contracultura. Divulgava as atividades e os locais de encontro do grupo e com ele tratava diálogos, desenvolvia projetos e parcerias. Utilizava nos textos as gírias e expunha o comportamento e as atitudes, que, consideradas subversivas, escandalizavam parte da sociedade:

322 RISÉRIO, Antonio. Duas ou três coisas sobre a contracultura no Brasil. In: RISÉRIO, Antônio [et. al.]. Anos70: trajetórias. São Paulo: Iluminuras/ Itaú Cultural, 2005. p.25. 323 Ibidem. p.26 . 206

Pois eu vou contar uma história. Sem pé nem cabeça: você sabe com quem está falando? Eu respondi que não e a autoridade mostrou-se ofendidíssima. Foi por isso que explicou assim: - Polícia. Ora, eu agradeci, mostrei meus documentos, o cara conferiu que tudo era legal e estava em ordem e em seguida iluminou- se: - Ora, bicho, esse teu cabelo está muito grande [...] 324

Evidenciando o preconceito sofrido em razão da aparência hippie – vestuário, cabelos compridos e barbas longas –, comentou na mesma coluna:

Aí eu fui alugar um apartamento para morar. Quem não precisa de um? Quando a gente mora só e tem quem convide, a gente aceita e evita o vexame. Mas quando a gente tem família, o jeito é aquele mesmo: primeiro enfrentar os porteiros olhando desconfiadíssimos para minha cara enquanto entrega as chaves. Vai a descarta: - Acho que nem adianta olhar. Parece que já está alugado. Pelo telefone os caras não me vêem, de modo que a informação é batata. - É conversa do porteiro. - Aí eu fui lá, acertar a transa, assinar os papéis e tal. Aí o cara olhou para a minha. - Aí ele conferiu muito e aí ele decidiu: - Tem gente na frente. 325

Conforme se observa na coluna, o visual ostentado não era mero modismo, era também atitude, posicionamento e tinha a intenção de provocar e escandalizar a sociedade, que reagia ora com olhares desaprovadores, ora com agressões verbais ou físicas:

Aí eu saí na rua. Primeiro na Tijuca, onde as pessoas se divertem olhando. Depois na cidade [centro], onde as pessoas me cercaram na Rua da Assembléia e gritavam “cortam o cabelo dele” e tal. A gente pensa: vou tomar muita pancada dessa gente. Eles olham com ódio para o meu troféu. Meu cabelo grande e bonito espanta, espanta não, agride (a tal palavra) e eu me garanto que eu não corto. 326

324 TORQUATO NETO. Geléia Geral. ÚltimaHora . Rio de Janeiro, 13 dez. 1971. 325 Ibidem. 326 Ibidem. 207

A contestação, a transgressão dos costumes e valores assumida pelo movimento da contracultura encontrava também resistência e contestação de parte da sociedade, considerada pelo movimento hippie “conservadora” e “careta”. Os estranhamentos e embates foram evidenciados por Torquato Neto, que, na descrição dos transeuntes, explicitou a crítica à “sociedade burguesa” e aos valores tradicionais – família, classe média, emprego, consumo, carro –, conforme comentou:

História de cabelos... Um cara suado e de gravata, cara de ódio, passa por mim na Conde Bonfim, cara de uns quarenta anos, cara de pai de família classe média típico nacional, passa no seu fusquinhazinho e quando me vê dá um berro: - Cachorro cabeludo. Inteiramente maluco, o cara. Doido de pedra. Ou não? Desci do ônibus e saí andando pela Gomes Freire. Vinha uma senhora gorda fazendo compras com um garoto pequeno e um tipo – filho com jeitão de funcionário sei lá de quê. De longe, enquanto eu vinha, eles já sorriam e cochichavam tramando, Eu vi. Bem na minha frente os três pararam e a vanguarda do movimento adiantou-se – era o garotinho. - É homem ou mulher? Eu respondi. - Mulher. O rapazinho, o outro, Atenção: gritou . - Cala a boca, cabeludo desgraçado. A mulher deu uma gargalhada e eu passei. Inteiramente malucos, doidos varridos, doidos de pedra. Ou não? [...] São uns totalitaristas: cabeludo não entra. São uns chatos, são loucos, totalmente loucos, e perigosos. É assim que eles estão: doidos, malucos, loucos e perigosos. Ou não? 327

Durante a década de 1970, além das manifestações culturais da contracultura, outros setores também seguiam produzindo, mantendo a produção cultural não apenas ativa, mas em expansão. Houve crescimento da produção editorial, musical, teatral e, principalmente, cinematográfica. Obviamente, dentro dos limites impostos pelo Estado – que exercia controle e vigilância –, limites esses que, no entanto, não inviabilizaram a produção cultural, haja vista que a censura atingia as obras especificamente, ou seja, os produtos – matérias jornalísticas, peças,

327 TORQUATO NETO. Geléia Geral. ÚltimaHora . Rio de Janeiro, 13 dez. 1971. 208

filmes, livros, músicas –, mas não os setores da produção – jornais, teatros, cinemas, editoras e as indústrias fonográfica e cinematográfica.

Sobre os mecanismos da censura, identificou-se duas faces: a “repressiva”, que vetava e impossibilitava a expressão, considerada por ele como “negativa”; e a “disciplinadora”, considerada mais complexa, que afirmava e incentivava a produção mediante orientação do próprio Estado, sendo, portanto, ao mesmo tempo, repressora e incentivadora das atividades culturais. 328

Todavia, é preciso ressaltar que, apesar das diferenças apontadas pelo pesquisador, as duas faces da censura, se não configuraram entraves para o desenvolvimento econômico – embora a censura aos produtos culturais tenha representado prejuízos aos empresários –, foram extremamente prejudiciais à produção cultural, pois ambas promoveram o cerceamento da liberdade de expressão, uma vez que houve:

[...] rigorosa censura de todos os veículos de informação e o fechamento de alguns destes. As universidades eram controladas, e o teatro, o cinema, a música, a literatura, as artes e a cultura em geral deviam submeter-se à censura para obter dos militares autorização para chegar ao público. Com os censores fisicamente presentes nos estúdios e redações, e dispositivos de censura rigidamente aplicados, os veículos de comunicação foram silenciados, impedindo-se a divulgação ou discussão das conseqüências das políticas econômicas ou repressivas do governo. 329

Sobre a censura nos principais meios de comunicação de massa – o rádio e a televisão –, observou-se que a interferência foi relativa, pois as emissoras de rádio e TV já tinham esquemas de autocensura que atendiam a seus interesses econômicos, uma vez que os anunciantes se afastariam de qualquer projeto que pudesse causar problemas com a ditadura militar. Na prática, foram o rádio e, especialmente, a TV os instrumentos mais utilizados pelo regime militar para propagar o discurso oficial. Não foi por acaso que nesse período o governo ampliou os investimentos para a expansão do setor das telecomunicações, por intermédio da

328 ORTIZ, Renato. Amodernatradiçãobrasileira: cultura brasileira e indústria cultural. 5ªed. São Paulo: Brasiliense, 1994. p.114. 329 ALVES, Maria Helena Moreira. EstadoeOposiçãonoBrasil . Bauru - SP: EDUSC, 2005. p.205. 209

Empresa Brasileira de Telecomunicações - EMBRATEL, bem como incentivou o programa de crédito para a ampliação do consumo de aparelhos de televisão, que “saltou de 2 mil, em 1950, para 4,9 milhões em 1970”. 330

A coluna Geléia Geral estreou na quinta-feira dia 19 de agosto de 1971, com a repetição do título “ Cordiais Saudações ”, já utilizado antes na coluna Música Popular , do Jornal dos Sports :

Ligue o rádio, ponha discos, veja a paisagem, sinta o drama: você pode chamar isso tudo como bem quiser. Há muitos nomes à disposição de quem queira dar nomes ao fogo, no meio do redemoinho, entre os becos da tristíssima cidade, nos sons de um apartamento apertado no meio de apartamentos. Você pode sofrer, mas não pode deixar de prestar atenção. Enquanto eu estiver atento, nada me acontecerá. Enquanto batiza a fogueira – tempo de espera? Pode ser – o mundo de sempre gira e o fogo rende. O pior é esperar apenas. O lado de fora é frio. O lado de fora é fogo, igual ao lado de dentro. Estar bem vivo no meio das coisas é passar por referência, continuar passando. Isso aí eu li uma vez no Pasquim [...]. 331

Os textos de Torquato Neto trazem referências a um “esvaziamento criativo”, provocado pelo exílio de diversos artistas e intelectuais, mas ao mesmo tempo o autor enfatizava a resistência e exaltava as estratégias utilizadas por muitos artistas para “driblar” os censores. Em novembro de 1971, descreveu em sua coluna o cenário musical brasileiro, destacando os artistas que, resistindo aos obstáculos impostos, não apenas pelo contexto político, mas também pelas dificuldades técnicas e de mercado, seguiam produzindo, além de informar sobre a movimentação da “cultura marginal”, que, encontrando “brechas”, ocupava espaços e desenvolvia novas formas para divulgar sua produção e, portanto, resistir:

Lutando, Paulinho da Viola não interrompeu seus movimentos e segue furando, na dele; tem dificuldades com sua gravadora, no momento, mas superáveis pelo seu próprio (dele) trabalho; Caetano e Gil continuam enviando recados da Europa e, agora, dos Estados Unidos; Chico Buarque acaba de gravar seu novo elepê, que deve pintar por

330 SILVA, Alberto Moby Ribeiro da . Sinalfechado: a música popular brasileira sob censura (1934-45 / 1969-78). 2ªed. Rio de Janeiro: Apicuri, 2008. p.97. 331 TORQUATO NETO. Geléia Geral. ÚltimaHora . Rio de Janeiro, 19 ago. 1971. 210

aí até o fim do ano; os Novos Baianos tiveram um trabalho recente (compacto duplo) inteiramente prejudicado por questões de péssimas mixagens e prensagem (já foi recolhido, pela CBD) e preparam agora, com muito cuidado, seu próximo disco; Waly Sailormoon segue transando com seus parceiros e seus passeios e disso aí têm surgido as letras (as canções) mais contundentes, atuais e dramáticas da necessidade presente; uns caras novos e ousados começam a pintar, fora, evidentemente, dos meios oficiais de divulgação, mas de qualquer maneira furando o bloqueio no meio de shows gravados ao vivo, concertos esporádicos por aí etc. E etc. etc. etc. 332

De forma implícita, Torquato Neto se referiu não apenas aos seus próprios sentimentos, mas também ao contexto vivido no Brasil. No texto, mencionou o antigo companheiro do movimento tropicalista, Caetano Veloso, que ainda estava exilado:

[...] Caetano Veloso, Emanuel Viana Telles, é um que não está esperando por nada – ele deve saber, com certeza, que o princípio está sempre no fim, isso que ele deixa sangrar, do lado de fora, do lado de dentro. Está vivo, novamente passando entre as coisas e sabendo que tudo só é meio do fogo – e cai no fogo sabendo que vai se queimar. [...] Caetano veio aqui fazer um programa de televisão e ninguém, do que me conste, parece ter compreendido o sentido profundo dessa viagem desse programa. É apenas uma viagem e um programa, e é fantástico demais. Eu li nos jornais, e alguns amigos me informaram, que Caetano “está mudado”. Prefiro compreender que Caetano está novamente dançando no palco da televisão. E prefiro, continuar compreendendo, que Caetano dança muito bem no palco da televisão. A mesma platéia que vaiava aplaude agora, e isso é o que já não tem mais tanta importância: Caetano Veloso é um ídolo do Brasil, hoje. 333

No texto supracitado, Torquato Neto se reporta à presença de Caetano Veloso no programa “ Som Livre, Exportação ”, na TV Globo. Sua participação ocorreu durante sua visita aos familiares em Salvador - BA, permitida pelos militares, por ocasião dos 40 anos de casamento de seus pais. Sobre essa experiência, o próprio Caetano relataria:

332 TORQUATO NETO. Geléia Geral. ÚltimaHora . Rio de Janeiro, 6 nov. 1971. 333 Ibidem. 211

Ao desembarcar no Rio, fui separado de Dedé por três homens que saíram de um fusca estacionado junto à escada do avião. Eram militares à paisana. Eles me levaram para um apartamento na avenida Presidente Vargas e ali me interrogaram e ameaçaram por seis horas. Tive muito medo, muita angústia. Diante de um gravador de rolo ligado (onde terão ido parar essas fitas?), os homens que me levaram – mais os que estavam à minha espera (todos se identificaram como oficiais, mas usavam roupas civis) – exigiram que eu compusesse uma canção de propaganda da Transamazônica, a estrada que o governo militar começava a construir e que era um dos símbolos do “Brasil Grande”, declinaram a lista dos artistas meus colegas que estavam colaborando com eles (inclusive, segundo eles, como denunciantes de subversivos), pediram esclarecimentos sobre minhas relações com Violeta Gervaiseau e os Arraes no exílio e, quando eu já tinha conseguido me desobrigar de compor sobre a Transamazônica, impuseram as condições de minha estada de um mês: eu teria que seguir logo para Salvador, onde devia permanecer (e de onde não podia sair) até a volta para Londres; estava proibido de cortar o cabelo ou fazer a barba enquanto estivesse em território nacional (temiam que parecesse obra deles); não podia recusar entrevistas com a imprensa, mas teria que dá-las por escrito e submetê-las a leitura prévia por parte de agentes federais que me vigiariam durante toda a estadia; finalmente, era obrigado a fazer duas apresentações na TV, uma no programa do Chacrinha e outra no Som Livre, Exportação , o novo musical da TV Globo, para que “tudo parecesse normal”. 334

No texto de estreia da coluna, Torquato expôs o clima vivido no país, a partir da participação de Caetano no programa da TV Globo. Nas entrelinhas, enfatizava a censura, a intensificação do policiamento, a ampliação da repressão aos opositores e exaltava a atitude de resistência dos artistas, como no caso de Caetano Veloso:

É que, enquanto você curte lá o seu tempo de espera, enquanto você espera um dilúvio que apague o fogo, seu ídolo, nosso ídolo, vem reafirmar tranquilamente, para o Brasil inteiro, que estar vivo significa estar tentando sempre, estar caminhando entre as dificuldades, estar fazendo as coisas, e sem a menor inocência. Os inocentes estão esperando enquanto aproveitam para curtir bastante conformismo disfarçado em lamúrias, ataques apocalípticos e desespero sem fim [...]. 335

334 VELOSO, Caetano. VerdadeTropical . São Paulo: Companhia das Letras, 1997. p.452-3. 335 TORQUATO NETO. Geléia Geral. ÚltimaHora . Rio de Janeiro, 19 ago. 1971. 212

Ressaltou também o compromisso assumido pelos tropicalistas, anunciado em 1967, de inovação da Música Popular Brasileira, bem como a postura crítica e ativa do ex-companheiro de movimento:

[...] Caetano vem, encontra João e Gal, reafirma com esse encontro na televisão tudo o que fez, pregou e provou sobre música popular brasileira e, muito além disso, para nós todos aqui do lado de dentro, deixa claro que não está esperando nada. Está na batalha. Não está nessa aí de esperar sentado, chorando, curtindo à moda conformista como fazem os inocentes (inocentes é sempre útil) do meu país. Caetano está mandando ver, como sempre. E, por falar nisso, vocês ouviram direito “De noite na cama” e “Você não entende nada?” Bom, não é? Cordiais Saudações. 336

O cenário de repressão que o país vivia foi muitas vezes enfatizado:

Tu, cidade estrepitosa, que estavas cheia de aclamações, cidade alegre! Os teus mortos não foram mortos à espada, nem morreram na guerra. Todos os teus príncipes fogem a uma, e são presos sem que se use o arco; todos os teus que foram encontrados são presos, sem embargo de já estarem longe na fuga. Porque dia de alvoroço, de atropelamento e confusão é este da parte do SENHOR no Vale da Visão: um derribar de muros, e clamor que vai até os montes. Porém é só gozo e alegria que se vê? Matam-se os bois, degolam-se ovelhas, come-se carne, bebe-se vinho e diz: Comamos e bebamos porque amanhã morreremos – ISAÍAS, Profecia contra Jerusalém, versículos 2, 3, 5 e 13. 337

O clima de cerceamento, com a censura instaurada no país, foi destacado por Torquato Neto, que discutia não só a censura imposta pelo Estado, mas também a estabelecida pela indústria fonográfica:

Quem é o asfixiador? Eis o que estou sabendo: a música popular brasileira continua sem ar – e é claro, otário, que mesmo assim alguma coisa ainda pinta, e quase sempre em quase todos os suplementos. Pintam Caetano Veloso, Paulinho

336 TORQUATO NETO. Geléia Geral. ÚltimaHora . Rio de Janeiro, 19 ago. 1971. 337 TORQUATO NETO. Geléia Geral. ÚltimaHora . Rio de Janeiro, 18 set. 1971. 213

da Viola, Gilberto Gil, Gal e mais alguns. Pintam, mas a falta de ar continua. Quem asfixia a Música Popular Brasileira? 338

Apesar do clima de “asfixia”, afirmado por Torquato, clima esse que comprometia a produção musical, o colunista ressaltava a continuidade dos projetos de inovação da Música Popular Brasileira:

E já que o tom é esse mesmo, continuo perguntando: o que é que asfixia a música popular brasileira, além da indústria fonográfica obedientíssima, além do medo? O clima. Pode chamar: o clima tropical desta paisagem a toque de caixa. Mas o que é que é isso? Liguem o rádio e escutem o que está sendo estimulado: vôos rasteiros, repetição e retardamento geral, mediocridade e medo de criar. [...] Não pintou outra coisa: Lucianas, conformismo, alegorias, marchas-rancho, meninas das ladeiras, império de Wilson Simonal etc. E mais Don e Ravel, principalmente Don e Ravel, e o oportunismo total e ainda por cima, com calma: nenhum outro exemplo pode ser mais típico do que essa dupla de estrondoso sucesso nacional. O sucesso dessa gente asfixia, toma o espaço da melhor música popular brasileira, com a ajuda geral e da geral. E no entanto acredite: quase morreu, mas continua vivendo, embora quase sem ar, sem ir ao ar, e indo mesmo assim. [...] Aos trancos e barrancos a música popular brasileira se põe de pé, depois da rasteira, e avança: recomeça a tomada de espaços. Uns e outros pintam aqui e ali: um show, outros show, vários elepês mais ou menos recentes, e até, de repente, um furo qualquer nas paradas. Só que a regra geral da asfixia continua firme nas rádios e nas gravadoras, na divulgação da transa [...]. 339

Mediante sua coluna, Torquato seguia lamentando e denunciando a situação vivida no país. A ampliação da censura, ao mesmo tempo que dificultava a produção, também contribuía para o que Torquato considerava o “empobrecimento” da criação artística – a repetição, o comodismo, a falta de criatividade. Contudo, destacava a resistência de muitos artistas, mesmo que tal produção atingisse um público cada vez mais restrito.

Durante a década de 1970, um dos setores da produção cultural que mais se desenvolveu foi o mercado fonográfico, associado ao crescimento do mercado de aparelhos sonoros e ao incremento da indústria mecânica, elétrica e eletrônica.

338 TORQUATO NETO. Geléia Geral. ÚltimaHora . Rio de Janeiro, 05 nov. 1971. 339 Ibidem. 214

“Entre 1967 e 1980, a venda de toca-discos cresce em 813%. Isto explica porque o faturamento das empresas fonográficas cresce entre 1970 e 1976 em 1375%.” 340 Cabe notar ainda que o mercado de discos elaborava novas estratégias para ampliar o consumo das classes mais pobres, como o lançamento dos “álbuns compilados”, discos ou fitas cassetes com seleção de músicas de diferentes gravadoras:

A Som Livre , vinculada à Rede Globo de Televisão, se especializou no ramo das músicas de novela, deslocando do mercado inclusive as multinacionais. Iniciando suas atividades em 1970 com o compilado da trilha sonora da novela O cafona , já em 1976 se torna líder do mercado fonográfico, e em 1982 detém 25% do seu faturamento. 341

Vale observar que, embora a televisão brasileira tenha, naquele momento, reduzido o espaço dedicado aos musicais em sua programação, esse meio de comunicação continuava a ser determinante para o crescimento do mercado brasileiro de discos, mediante a edição discográfica de trilhas sonoras de novelas. A importância da televisão no desenvolvimento da indústria fonográfica brasileira revela que:

[...] o crescimento do mercado de discos no Brasil pode ser avaliado indiretamente através de dados relativos à crescente participação da gravadora Sigla, da TV Globo, nesse mesmo mercado, durante os anos iniciais da década: lançada em 1971, a etiqueta Som Livre já detinha, em 1974, 38% do chamado mercado de sucesso, isto é, 38% dos discos mais vendidos pertenciam a essa marca. 342

Sobre a importância da televisão para o desenvolvimento da indústria fonográfica e a criação da Sigla, de propriedade da TV Globo, Torquato Neto comentou:

340 ORTIZ, Renato. Amodernatradiçãobrasileira: cultura brasileira e indústria cultural. 5ªed. São Paulo: Brasiliense, 1994. p.127. 341 Ibidem. p.128. 342 Ibidem. p.90. 215

Estendendo a mão querida à palmatória: duvidei do Poder Globo. Como, amizade? Eu disse aqui que os discos da Sigla , seleções do defunto Festival da Canção, não conseguiriam badalar pelas paradas de sucesso. E vejo agora, divertido, que ambos, nacional e internacional, estão pintando firmes na transa semanal do Ibope. Aquelas relações, vocês sabem. E daí que não acreditei na eficiência da força bruta de uma gravadora ligada a um superesquema de divulgação na marra: são vinte e tantas estações de rádio, mais toda a Rede Globo de Televisão trabalhando para a divulgação dos discos da Sigla: o festival deu muito Ibope nos vídeos do Brasil inteiro e embora tenha sido o embuste que se sabe, em termos de música brasileira e internacional, contou com o Poder Globo para forçar a barra na venda de seu principal produto: os discos da Sigla. A Sigla da TV Globo. [...] De tal modo que mesmo os discos do festival supercomercial da nacional e internacional estão estourados. Haja picaretagem: podem levar para a Sigla que a Globo vende. Reclamar disso é como achar o Programa do Sílvio Santos imoral simplesmente pelo sucesso que faz. Ou seja: não compreender por que esses esquemas servem (formando) o tal gosto médio, público, burro brasileiro. É o que interessa por lá. E eu, duvidando... Pode? 343

Em sua coluna destacou também a estratégia utilizada para alcançar o crescimento rápido – a utilização intensiva da própria TV Globo para a divulgação dos produtos da Sigla:

No caso da TV, essa divulgação se dava não apenas através dos capítulos diários das novelas mas também através de chamadas comerciais convencionais – que chegaram a ocupar a maior parte do espaço publicitário da TV em São Paulo nos primeiros meses de 1978, por exemplo, quando a Sigla dedicou aos anúncios uma verba duas vezes maior do que a verba destinada ao mesmo veículo pela Souza Cruz e quatro vezes maior do que a verba destinada para o mesmo fim pela Coca-Cola. Conforme se denunciou na época, nenhuma empresa do setor fonográfico teria condições financeiras de bancar essa divulgação, dados os altos preços dos espaços publicitários televisivos – de onde se concluía que a Sigla gozava de privilégios especiais por ser ligada à TV Globo e que esta fazia uso indevido do serviço público que lhe fora concedido explorar. 344

343 TORQUATO NETO. Geléia Geral. ÚltimaHora . Rio de Janeiro, 10 nov. 1971. 344 MORELLI, Rita de Cássia Lahoz. Arrogantes,anônimos,subversivos: interpretando o acordo e a discórdia na tradição autoral brasileira. Campinas - SP: Mercado das Letras, 2000. p.91. 216

Inconformado com o contexto político e cultural, Torquato Neto denunciava por meio de sua coluna. De forma bastante irônica e provocativa, salientava a necessidade de alteração no cenário musical e cobrava posicionamento e ação dos artistas, que deveriam inclusive “tirar proveito” do crescimento da indústria fonográfica para ampliar a difusão de suas produções:

Deixa eu completar idiotas: enquanto a indústria fonográfica espera que tudo fique trancado nas mãos dela, o que é que a gente faz? Não há cassetes pra vender por aí? Não há discos nas importadoras, que as gravadoras daqui não lançam? Não há toca-discos, gravadores e o escambal? O que diabo estais a esperar? Solta isso, vamos lá, dá o maior pé. E está fazendo falta. Discos, jornais, estações de rádio, vocês sabem. Pinta por aí tudo. E aqui? 345

O apelo de Torquato Neto explicita a estratégia defendida por ele, enfaticamente, por meio de sua coluna, de “encontrar brechas”, “ocupar os espaços” disponíveis ou não. Com texto irônico e debochado, mas evidenciando criticidade e mobilização, manteve em sua coluna o “receituário” da ação política dos movimentos de contracultura:

Pílulas do tipo deixa-o-pau-rolar. Na mesma base: deixa. Primeiro passo é tomar conta do espaço. Tem espaço à beça e só você sabe o que pode fazer do seu. Antes, ocupe. Depois se vire. Não se esqueça de que você está cercado, olhe em volta e dê um rolê. Cuidado com as imitações. Imagine o verão em chamas e fique sabendo que é por isso mesmo. A hora do crime precede a hora da vingança, e o espetáculo continua. Cada um na sua, silêncio. Acredite na realidade e procure as brechas que ela sempre deixa. Leia o jornal, não tenha medo de mim, fique sabendo: drenagem, dragas e tratores pelo pântano. Acredite. [...] 346

No texto extenso da coluna percebe-se que o autor alterna reflexões sobre o clima vivido no país e sobre suas experiências pessoais. Fica evidente na leitura a exposição de seus sentimentos e angústias, expressados inclusive mediante poesia:

345 TORQUATO NETO. Geléia Geral. ÚltimaHora . Rio de Janeiro, 15 nov. 1971. 346 TORQUATO NETO. Geléia Geral. ÚltimaHora . Rio de Janeiro, 16 nov. 1971. 217

Apareça como a luz do sol e não desapareça mais sutil, mas é o próprio. Se for por mim não duvide do bem nem do mal e fique sempre na escuta, plantão permanente, negra solidão. Deus nos livre de ter medo agora, logo agora que chegou na frente o fundo da questão: Deus não está de qualquer lado e embora esteja em todos continua nos mandando palavras. Acredite. Poesia. Acredite na poesia e viva. E viva ela. Morra por ela e você se liga, mas, por favor, não traia. O poeta que trai sua poesia é um infeliz completo e morto. Resista, criatura. Quando eu nasci, um anjo louco, morto, curto, torto veio ler a minha mão. Não era um anjo barroco: era um anjo muito pouco, louco, solto em suas asas de avião. E eis que o anjo me disse, apertando a minha mão entre um sorriso de dentes: vai, bicho, desafinar o coro dos contentes. Macalé botou música clássica e a transa ficou condenada: Let´s play that? 347

Torquato chamava a atenção para a necessidade de permanente vigilância, mas defendia a ação. As atitudes sustentadas reafirmam a postura politizada e o inconformismo presente nos movimentos de contracultura, contrariando, portanto, a tese que generaliza a experiência dos jovens no que diz respeito ao contexto político e cultural na década de 1970, afirmando o predomínio do conformismo e da passividade.

A partir do final de 1971, os textos publicados na coluna ficaram cada vez mais “cifrados”, ou seja, o autor passou a utilizar mensagens cada vez mais implícitas, parecendo falar para si, o que dificulta o entendimento de suas ideias. Mas, ao mesmo tempo, revelava seu estado emocional, explicitando a angústia e o sentimento de frustração. Sinalizava a despedida, demonstrando que começava a desistir:

O dia seguinte de repente antes do sim. Não faço a menor questão de fazer sentido. Basta o meu amor redivivo. [...] Escutem antes que todos se calem. Não prestem a mínima atenção ao que eu diga. Mas, por favor, não me esqueça. Não se esqueça de mim, não desapareça. Deixa que eu conto: três, dois, um, zero. [...] Por hoje é tudo assim mesmo. Você sabe que isso aqui não tem mais sentido. A geléia geral não deixa de liquidificar, mas pelo menos vamos encerrar em paz. Me deixe de lado. Você, meu amor, não quer saber de compreender. Você quer é julgar. Que juiz é esse? Levando a sério: chega. Levando a sério: acabou. Levando a sério: recomecemos. Um dia depois do outro [...]. 348

347 TORQUATO NETO. Geléia Geral. ÚltimaHora . Rio de Janeiro, 16 nov. 1971. 348 TORQUATO NETO. Geléia Geral. ÚltimaHora . Rio de Janeiro, 17 nov. 1971. 218

Embora tenha continuado a escrever por mais alguns meses, até março de 1972, Torquato Neto deixava claro no texto que não tinha mais interesse em manter a coluna e revelava um estado emocional melancólico e depressivo. Afirmava não suportar mais a companhia dos leitores e aconselhava o próprio filho – Thiago – a se afastar dele durante os “momentos de crise”:

[...] Eu, pessoalmente, não suporto mais a vossa companhia, prezados leitores. Pode? E nem chega a ser charme, mas podem ficar sabendo: tem gente viva pelas redondezas. Ontem, hoje, sempre: brasas, fogo, purgatório, inferno tropical. Deus me fez e me juntou a mim minha medula. É osso. Quando estiver assim, não me apareça. Cresça e desapareça da minha frente, Thiago, meu filho. Me evite, de preferência: eu tenho a minha culpa. Adeus. Apareça. Viva. [...] Espero ter acabado por hoje. É melhor conversarmos calados, em voz alta, eu, amizade? Abaixo a Geléia Geral. Abaixo a Geléia Geral. Mal, mal, mal, mal, mal, Findou. 349

Embora o tom depressivo e melancólico continuasse a pontuar os textos, contraditoriamente, Torquato Neto incentivava os leitores a superarem o clima “baixo astral”. Afirmava que, mesmo dentro daquele contexto, havia alternativas; exemplificava que a produção artística não desaparecera e muitos continuavam resistindo. Enfatizava que ainda havia motivos para acreditar que o clima de cerceamento das liberdades seria passageiro e, principalmente, que a situação poderia ser revertida, desde que houvesse ação:

Baixo, muito baixo, baixíssimo. Caindo na cabeça das pessoas e as pessoas na rua, basta olhar, correndo como malucos de hospício, arrastação [ sic ]. Enfim, na Geléia Geral Brasileira o impossível acontece: acontece, sim, senhor, o impossível continua acontecendo. Afastar o baixo astral com uma única palavra: SIM. Sim – Na comunidade em que vivem com muita paz, em Botafogo, os Novos Baianos curtem a presença de João, curtem o filme que está sendo feito e que veremos (veremos), curtem o som maneiro que é preciso, a companhia dos amigos, a graça de Baby, a paz de Deus. Basta ficar sabendo disso. 350

349 TORQUATO NETO. Geléia Geral. ÚltimaHora . Rio de Janeiro, 17 nov. 1971. 350 TORQUATO NETO. Geléia Geral. ÚltimaHora . Rio de Janeiro, 24 nov. 1971. 219

Na mesma coluna, o autor continuava divulgando a produção cultural dos movimentos de contracultura no Brasil:

O poeta Waly Sailormoon, numa de absoluta concentração, transa Alfa-Alfavela-Vila, enquanto seu roteiro do Rio poundiano continua sendo publicado em folhetim pela Flor do Mal . Graças a Deus. SIM – Ivan Cardoso monta dois filmes ao mesmo tempo e sem a menor atrapalhação e muito inteiramente à vontade, enquanto Vergara se entusiasma com o que vê e providencia maneiras de ver melhor ainda, e mais. Os dois filmes de Ivan serão ampliados nos States e quem estiver ligado nessa verá. Believe me. 351

Apesar de ressaltar que a produção cultural continuava ativa, o autor denunciava as dificuldades impostas pela censura ao processo criativo. Ressaltava que, sem a possibilidade de atualização, não seria possível a renovação. No trecho observava que a influência estrangeira não era problema para a criação:

É isso. Enquanto o cinema também enlouquece do lado de fora, aqui do lado de dentro a “psiquiatria” da censura não permite, ao menos, que uma organização estritamente cultural (eu disse organização? Então fica, deixa), como a cinemateca do Museu de Arte Moderna, cumpra sua missão de informar essa transformação ao pequeno grupo de pessoas, os especializados, cineastas etc. que têm necessidade e obrigação de saber o que acontece com a linguagem com que transam. É isso. Não adianta culpar a cinemateca pelo que ela não pode fazer. A gente se queixa, porque sente nas telas da cidade o horror de se saber por fora. A gente vai lá e revê os filmes dos bons tempos. Depois trata de arrumar uma passagem e se arrancar para os States ou para a Europa, investindo, como é preciso, em in-for-ma-ção. 352

Torquato fez de sua coluna um “ front ” de resistência. Invariavelmente, reiterava, quase que cotidianamente, o discurso da “ocupação dos espaços”, da invenção, da elaboração de projetos, da busca de alternativas para suportar e superar a situação vivida no país:

351 TORQUATO NETO. Geléia Geral. ÚltimaHora . Rio de Janeiro, 24 nov. 1971. 352 TORQUATO NETO. Geléia Geral. ÚltimaHora . Rio de Janeiro, 26 nov. 1971. 220

Ocupar espaço, criar situações. Ocupa-se um espaço vago como também se ocupa um lugar ocupado: everywhere . E agüentar as pontas, segurar, manter. Ou como em Teorema, aplicar e sair do filme. Tiro um sarro: vampiro. O nome do inimigo é medo. Meu nome ninguém conhece. Moro do lado de dentro e nasci na Chapada do Corisco – carrego isso. Plano geral na parede: numa encruzilhada vista do alto as pessoas se movem e correm atrás de algo. Não sei se é uma pelada, não sei se é outra coisa. Corta e lemos a palavra: DESÇA. Fim do cinema, início do cinema. O espaço desocupado, ocupação do espaço. Filmes. Sem começo e sem fim, mas mesmo assim: pelas brechas, pelas rachas. Buraco também se cava e a cara também se quebra. Mas cuidado com o psiquiatra. Se pintar um grilo, ponha-o para fora você mesmo e com fé em Deus. Querem ocupar o espaço da tua mente – se assim você me entende. Estão a fim de te curar, acredite neles. Cuide de sua sanidade. Aqui na terra do Sol, não tenha medo da Lua. Ocupar espaço, espantar a caretice, tomar o lugar, manter o arco, os pés no chão, um dia depois do outro. 353

No trecho citado, nota-se que o autor utilizava a linguagem cinematográfica, com uma escrita criativa, lançando mão de títulos de filmes – Teorema e Terra do Sol (referências aos filmes de Pasolini e Glauber Rocha, respectivamente) –, como se descrevesse um roteiro, para enfatizar a necessidade de resistir em meio ao clima de repressão e censura. Assim o colunista se referia não apenas à ação do governo militar, mas também à indústria cultural. Endereçava seu recado aos diretores, roteiristas e produtores de cinema no Brasil, de maneira bastante cifrada, ou seja, nas entrelinhas do texto.

Embora a ênfase sobre a necessidade da resistência tenha sido recorrente na coluna, Torquato também reconhecia que resistir tornava-se tarefa cada vez mais difícil e convidava o leitor a refletir sobre o contexto político e cultural:

Corra. Pense nisso: é do lado de dentro, é do lado de fora. Se informe, pense em ver os filmes que não vão passar aqui, os espetáculos que não vão poder acontecer aqui por causa disso tudo, das dificuldades que a gente conhece; saia um pouco, pense nisso: vá lá, do lado de fora, invista em informação, fure a barreira e se lance no mundo, bote os pés do lado de fora e sinta o drama, faça das suas, ande por aí, “considere a possibilidade de ir para o Japão num cargueiro do Loyd lavando o porão”, ache um meio, se arranque e fique sabendo das coisas. Por aqui, menino, continua tudo confuso apesar do

353 TORQUATO NETO. Geléia Geral. ÚltimaHora . Rio de Janeiro, 30 nov. 1971. 221

verão que não me engana. Pense nisso, naquilo. Vá e compare: em Nova York, por exemplo, tudo ferve. Vá quente. Se mande. Faça das suas. Ou fique e cumpra firme a pândega. Hum? É bonito isso? Pode ser, pode crer. Mas é uma loucura. 354

O autor sugeria o autoexílio como forma de escapar do contexto de endurecimento da ditadura militar e ressaltava que do “ lado de fora ”, ou seja, no exterior seria possível entender de forma mais clara as dificuldades vividas no país. Então, propunha a comparação: “Vá e compare: em Nova York, por exemplo, tudo ferve.” E para aqueles que estavam no “lado de dentro”, ou seja, no país, a sugestão continuava a ser a inovação, entendida não como repetição das fórmulas já testadas. Inovar era, para o autor, sobretudo, reinventar, conforme destacou na coluna: “Se não tem forma nova não tem nada de novo, não requente coisa alguma, veja de novo, faça outra vez, invente a diferença.”355

Em 10 de março de 1972, com título sugestivo, “Na corda bamba”, já anunciava o encerramento da coluna Geléia Geral , no jornal Última Hora , com o seguinte texto:

É como se fosse uma história. Começa quando? Ontem: o anjo do bem & do mal, caído estirado escutando pragas. Ele me contou: sabe que está caído e sabe de todo o resto, sabe que morre sozinho conforme plantou, planejou e tenta. Sabe por quê. [...] Foi ontem. E, como se diz, me despedi do bicho e vim pro rumo do centro da cidade. Pensei muito no cara. Depois encontrei uma amiga e fui dormir num hotel da Lapa. É isso aí. 356

O tom depressivo, evidente desde o final de 1971, continuava a pontuar o texto. Torquato Neto encerrou sua coluna considerando-se “vencido”. O sentimento que esboçava era de derrota: “[...] o anjo do bem & do mal, caído estirado escutando pragas.” Consciente dos dilemas vividos, mas sem ter condições de mudar os acontecimentos, de reverter a situação vigente, abandonou a cena e oito meses depois se suicidou, em 1972.

354 TORQUATO NETO. Geléia Geral. ÚltimaHora . Rio de Janeiro, 20 jan. 1972. 355 Ibidem. 356 TORQUATO NETO. Geléia Geral. ÚltimaHora . Rio de Janeiro, 10 mar. 1972. 222

Porém, observa-se que, apesar da descrença de Torquato Neto sobre as mudanças no cenário político e cultural brasileiro, diversos movimentos sociais, artísticos e intelectuais resistiram e sobreviveram aos “anos de chumbo”. O crescimento da indústria fonográfica demonstra que a produção musical continuava em andamento, embora o pessimismo de Torquato Neto fosse compartilhado por outros, como Francis Hime, que, em 1973, revelava um estado de estagnação cultural:

Não acho que esteja acontecendo nada marcadamente novo. A música brasileira teve uma fase evolutiva importante até 1968. De uma certa forma, de lá para cá, ela estagnou. Os valores continuam produzindo, mas dentro do que houve antes: a Bossa Nova, que começou com Tom, e depois o Tropicalismo de Caetano. Acho muito difícil haver mudanças significativas em tão curtos períodos. 357

O crescimento da indústria fonográfica denota que, apesar do contexto de intensa repressão e aumento da influência estrangeira, que ampliava a concorrência, a produção cultural nacional e diversos compositores e intérpretes marcavam o cenário musical brasileiro, como , Luiz Gonzaga Jr. (Gonzaguinha), Alceu Valença, Belchior, Luiz Melodia e Jards Macalé. Estes últimos foram parceiros de Torquato Neto e tiveram destaque em sua coluna:

[...] em quem já saiba: Luiz Melodia é um dos compositores novos mais IMPORTANTES que estão pintando (estão pintando já) por aqui. Para quem não sabe nem disso: Luiz Melodia é autor de “Pérola Negra”, Estácio Fox fantástico gravado por Gal. Luiz Melodia mais Rúbia, vocês vão saber disso: daqui a pouco. Aguardem show de Melô e Rúbia, também no Teresão, pelo fim do mês. Quero ver quem não se liga. 358

Macalé foi para a Europa num momento decisivo de sua carreira. Recapitulemos: tocou violão por aí, profissional e atuante, durante muito tempo. Mas agia no manso até que foi preciso berrar. Gotham City. Aí a Tropicarte de Capinam – show com Gal, parceria com Duda, Capinam e, logo depois,

357 Declaração de Francis Hime para a revista Visão , em 11 jun. 1973. Apud: MORELLI, Rita de Cássia Lahoz. Arrogantes, anônimos, subversivos: interpretando o acordo e a discórdia na tradição autoral brasileira. Campinas - SP: Mercado das Letras, 2000. p.78. 358 TORQUATO NETO. Geléia Geral. ÚltimaHora . Rio de Janeiro, 08 mar. 1972. 223

Waly Sailormoon. O trabalho de Macalé rendia muito, seguia firme e havia quem escutasse. 359

Dessa forma, considerar a década de 1970 como um período de falta de criatividade e “silêncio” consiste em uma visão equivocada sobre esse tempo. Entre as várias formas de resistir à censura e continuar a produção cultural, destaca-se a estratégia de Chico Buarque de Holanda, que estava cada vez mais “vigiado”, após o sucesso de “ Apesar de você ”, de 1970. Sendo intimado com frequência para depor no DOPS e Exército, em decorrência de sua produção – músicas e peças, sendo obrigatoriamente submetidas à Polícia Federal –, e após vários problemas com a censura, decidiu utilizar um pseudônimo. Nascia então “Julinho da Adelaide”, com direito a “entrevista” ao teatrólogo Mário Prata e ao jornalista Melchíades Cunha Jr., para o jornal Última Hora, em setembro de 1974:

[...] era filho de uma favelada, Adelaide de Oliveira, que entre sucessivos maridos teve um alemão, de sobrenome Kuntz – motivo pelo qual o sambista podia orgulhar-se de um meio- irmão louro, o Leonel. Esse irmão o explora (aparece como seu parceiro em Acorda, amor ), mas ele, ingênuo, o considera seu guia e protetor. O talentoso filho de Adelaide, na entrevista, fala de suas músicas, algumas das quais, informa, já estavam sendo interpretadas por cantores famosos, como Chico Buarque. Julinho expõe também uma invenção sua: o “samba duplex”, aquele que pode mudar de sentido se for necessário. O samba Formosa, por exemplo, pode transformar-se em China nacionalista, para afastar eventuais suspeitas de comunismo. 360

A estratégia de Chico Buarque para driblar a censura foi marcada pelo humor, ironia e sarcasmo, pois cada resposta era detalhadamente elaborada para esclarecer as curiosidades e dúvidas sobre o “novo compositor popular”. Quanto às suspeitas acerca da real existência de Julinho de Adelaide e ao fato de ele nunca ter sido visto, Chico Buarque explicava que

359 TORQUATO NETO. Geléia Geral. ÚltimaHora . Rio de Janeiro, 04 nov. 1971. 360 HOLLANDA, Chico Buarque. Letra e música . 2ªed. São Paulo: Companhia das Letras, 1997. p.136. 224

[...] não se deixava fotografar por ter duas profundas cicatrizes causadas por pedaços do violão que o cantor e compositor Sérgio Ricardo quebrara e jogara na platéia durante sua apresentação da canção Beto bom de bola no festival da TV Record de São Paulo, em 1967, que Julinho viera do Rio de Janeiro para assistir, tendo assim, ficado “marcado pela música popular brasileira”. 361

Vale observar que a estratégia de Chico Buarque na criação de “Julinho de Adelaide” exemplifica as dificuldades no cenário musical enfrentadas durante esse período de intensificação da censura. Muitos compositores se viam obrigados a elaborar meios cada vez mais criativos para divulgar sua produção, exigindo, portanto, um público mais atento para “decifrar” as mensagens.

As dificuldades nesse período prejudicaram, sem dúvida, o processo criativo, que, no entanto, quando interferia no processo de expansão da indústria fonográfica, gerava ações do Estado. No final de 1974, nota-se a “preocupação” do Ministro da Educação e Cultura, Ney Braga, com a produção cultural, quando solicitou ao Departamento de Assuntos Culturais que iniciasse uma investigação sobre a “aparente decadência da música popular brasileira e se possível uma proposta para saná-la”. 362

Enfim, a análise da produção cultural brasileira na década de 1970 permite perceber que, apesar da intensa censura, em especial nos anos de 1973 e 1974, os artistas e intelectuais encontraram “brechas” e “ocuparam o espaço”, conforme solicitava Torquato Neto em sua coluna. Continuaram a produzir, mesmo nos “anos de chumbo”, criando “situações” e “segurando as pontas”. E, dessa forma, confirmaram a afirmativa de Torquato: “ Criar é resistir ”.

361 HOLLANDA, Chico Buarque. Letra e música . 2ªed. São Paulo: Companhia das Letras, 1997. p.126. 362 MORELLI, Rita de Cássia Lahoz. Arrogantes,anônimos,subversivos: interpretando o acordo e a discórdia na tradição autoral brasileira. Campinas - SP: Mercado das Letras, 2000. p.159. 225

4.2 - CINEMA NOVO E “ UDIGRUDI ” EM DEBATE

A partir dos anos 50 o cinema brasileiro tornou-se alvo de amplo debate. Cineastas, produtores e diretores discutiam os rumos da produção nacional, a falta de investimentos e a concorrência estrangeira – fatores identificados como as principais dificuldades do setor. Dos debates em mesas-redondas, seminários e congressos surgiu a proposta de um novo modelo de produção, com pequenos orçamentos e prazos curtos, com prioridade para o conteúdo – principalmente os temas sociais – e a qualidade técnica, denominado de “ Cinema Independente ”. Um dos primeiros filmes representante da nova proposta foi “ Rio 40 graus ”363 , produzido em 1953, mas só liberado pela censura em 1955, considerado referência para o cinema brasileiro, por abordar as favelas sem a perspectiva folclórica, mas denunciando e propondo a reflexão sobre as causas determinantes da miséria de seus moradores.

Durante a década de 1960 as discussões se ampliaram e as propostas para a produção cinematográfica brasileira foram múltiplas, com destaque para o jovem diretor baiano Glauber Rocha, que, após as experiências com curtas-metragens, lançou, em 1961 o longa “ Barravento ”364 . Nesse momento, a nova proposta para o cinema brasileiro, denominada inicialmente de “ independente ”, passava a ser identificada como “ Cinema Novo ”, termo que abrigava cineastas de várias tendências e que não configurava, ainda, um movimento especificamente.

363 Com roteiro, direção e produção de Nélson Pereira dos Santos. Sinopse: Num domingo carioca, a vida é retratada por meio de cinco pequenos vendedores de amendoim. Em Copacabana, Pão de Açúcar, Corcovado, Quinta da Boa Vista e Estádio do Maracanã, pontos turísticos da cidade, eles procuram compradores para seus produtos. O calor escaldante de 40 graus acaba por unir as aflições dos moradores humildes, que buscam algo de melhor para suas vidas. Depois de mais um dia atribulado, a alegria de viver toma conta de suas vidas, quando participam do ensaio geral das Escolas de Samba. Cf.: SILVA NETO, Antônio Leão da. Dicionáriodefilmesbrasileiros . São Paulo, 2002. p.703. 364 Produzido por Rex Schindler, Braga Neto e David Singer, com direção, roteiro e argumento de Glauber Rocha, baseado na ideia original de Luiz Paulinho dos Santos. Sinopse: Grupo de pescadores habita uma região pobre da Bahia. Um deles, Firmino, já tendo vivido na cidade, esforça- se para livrá-los de suas velhas crenças e de sua escravidão, usando para isso os meios mais diabólicos. A presença do mar, considerado uma divindade, a música, a dança, as cerimônias e os sacrifícios rituais são os elementos essenciais da história. Ao retornar da cidade a sua aldeia natal de pescadores negros, portanto, um discurso contra a exploração econômica, Firmino provoca conflitos pessoais e se indispõe contra os valores culturais representados pelo candomblé africano. Cf.: Ibidem. p.109. 226

Porém, a partir de setembro de 1962, com a proposta explicitada por Glauber Rocha de “romper com a estética colonial”, ou seja, não apenas explorar a temática da miséria social, mas, por meio da criação de uma nova linguagem estética, contribuir para a reflexão sobre os problemas brasileiros e para a modificação da realidade, os cineastas que o seguiram passaram a configurar um grupo – não homogêneo, mas com membros identificados com a mesma ideia, ou seja, representantes de uma unidade estética –, que assumia o termo “ Cinema Novo ” e diferenciava-se das demais propostas, pois:

[...] procuram produzir cinema de forma independente, sem preocupações com os acabamentos formais que caracterizavam a produção do tipo industrial. [...] Ao mesmo tempo, criticavam também as produções de comédias e musicais populares, conhecidos como chanchadas, características de produtores localizados no Rio de Janeiro. [...] Propunham a inovação estética, afinada com as novidades oriundas dos grandes centros cinematográficos europeus, mas também inseriam o debate político sobre a função social da produção cinematográfica. 365

Foram destaques nesse momento os filmes “ Vidas Secas ”, de Nélson Pereira dos Santos, e “ Deus e o diabo na terra do sol ”, de Glauber Rocha, filme considerado por alguns como um dos mais representativos do Cinema Novo e um clássico do cinema nacional, alcançando reconhecimento internacional. Ambos exploravam a temática do universo agrário brasileiro – a estrutura fundiária, a miséria do trabalhador rural – e discutiam as alternativas ou propostas de superação – migração, principalmente em “ Vidas Secas ”, cangaço e fanatismo religioso –, sem propor respostas prontas; a solução fica em “aberto”, chamando o espectador à reflexão. A crítica ao sistema agrário alinhava-se à proposta do nacional- desenvolvimento.

Identificados com a ideologia do Instituto Superior de Estudos Brasileiros - ISEB, observa-se que no Cinema Novo, até 1964:

365 MALAFAIA, Wolney Vianna. O mal-estar na modernidade: O Cinema Novo diante da modernização autoritária (1964-1984). In: NÓVOA, Jorge; BARROS, José D´Assunção (Orgs.). CinemaHistória: teoria e representações sociais no cinema. 2ªed. Rio de Janeiro: Apicuri, 2008. p.204. 227

[...] os personagens são os do mundo agrário. É como se houvesse um pacto tácito, certamente nunca formulado nem mesmo conscientizado, entre esse movimento cinematográfico e a burguesia ligada à industrialização, no sentido de ela não ser questionada. E também no sentido de não se valorizar, no campo, os movimentos que estavam então se desenvolvendo, como as Ligas Camponesas, mas dando ao nordeste uma imagem estilo “feudal”. 366

Ao mesmo tempo, um grupo de jovens também discutia e apresentava suas propostas para a produção cinematográfica brasileira, dando origem à produção do “Cinema Marginal” ou “ udigrudi ”, que priorizava a filmagem no formato Super-8, tecnologia disponível a partir da década de 1960, pela Kodak, conforme já verificado no capítulo II. Em virtude da qualidade e do preço acessível, a proposta tornou-se bastante popular durante a década de 1970, principalmente entre estudantes e amadores. Os filmes tinham como característica a experiência e visavam a romper não apenas com a estética do “cinema industrial”, pautado pelo modelo hollywoodiano, mas também com o realismo do Cinema Novo.

Explorando temas polêmicos como sexo, homossexualismo, violência, banditismo e o terror – vampiros e múmias –, com linguagem experimental, os roteiros evidenciavam a produção da contracultura brasileira e, não por acaso, foram rotulados de “alienados”, ou representantes da fase do “desbunde”. Entre os produtores, roteiristas e diretores dos filmes em Super-8, destacaram-se Rogério Sganzerla, Ivan Cardoso, Júlio Bressane, Luiz Otávio Pimentel, Neville Duarte d’Almeida, José Mojica Marins – mais, conhecido como “Zé do Caixão” – e Torquato Neto, entre outros.

O novo projeto resultava das críticas dirigidas ao Cinema Novo, considerado “pequeno-burguês” e até mesmo ingênuo. Assim, os contestadores propunham uma nova postura, marcada pelo experimentalismo em busca de nova linguagem:

As infindáveis discussões sobre o Cinema Novo, acompanhando o movimento em processo, permitiram aos representantes do cinema marginal atitudes mais precisas diante do seu projeto. De imediato, o que se verifica desde as primeiras manifestações mais indicativas da virada de mesa em

366 BERNARDET, Jean-Claude. Cinema brasileiro: propostas para uma história. 2ªed. São Paulo: Companhia das Letras, 2009. p.70-1. 228

relação ao cinema que vinha se fazendo é a diferença de postura do autor em relação a seu filme, pela recusa de certo didatismo populista que elas próprias denunciam. Uma das acusações mais freqüentes ao Cinema Novo calcava-se no intelectualismo pequeno-burguês que teriam assumido seus cineastas, às vezes ingenuamente, discutindo uma realidade popular que lhes era estranha, ainda que conhecida. [...] A novidade apresentada – e que hoje pode detectar facilmente como contribuição – foi o desnudamento maior da autoria, isto é: uma coragem praticamente inédita no oferecer-se ao público como artista-indivíduo, enfocando os problemas levantados de modo mais sincero e menos professoral. 367

Em meio às discussões sobre a produção do cinema nacional, ainda no final da década de 1960, dois filmes evidenciaram o debate e o momento criativo do cenário cinematográfico brasileiro. Em 1967, Glauber Rocha apresentava o filme “Terra em Transe ”368 , inicialmente proibido pela censura, mas posteriormente liberado.

Considerado filme-chave da moderna cultura brasileira, traz uma análise sobre os principais problemas enfrentados não só no Brasil, mas em toda a América Latina. Apesar das inúmeras críticas recebidas, influenciou a produção de peças teatrais, canções e movimentos musicais – como a Tropicália – e filmes.

Terra em Transe articula ao mesmo tempo análise política e delírio pessoal, inaugurando o Tropicalismo como método de abordagem da realidade brasileira. Para falar desse filme, misterioso, inspirado, revolucionário, é preciso lembrar a um só tempo James Joyce e Vila-Lobos, Jorge Lima e Buñuel, desintegração e construção, forma e anarquia [...].369

367 BERNARDET, Jean-Claude. Cinema brasileiro: propostas para uma história. 2ªed. São Paulo: Companhia das Letras, 2009. p.394-5. 368 Produção executiva de Zelito Vianna, produção artística de Luiz Carlos Barreto, , Raimundo Wanderley e Glauber Rocha, responsável também pelo argumento, roteiro e direção. Sinopse: Porfírio Diaz, senador, odiando o povo, pretende coroar-se imperador de um país fictício chamado Eldorado, para impor aos sub-homens eldoradenses sua toda-poderosa vontade de super- homem. Mas existem outros candidatos: Vieira, governador de Alecrim, província de Eldorado, é um demagogo populista que se elege à custa do voto dos camponeses e operários para depois, no poder, fuzilar seus líderes, e Don Júlio Fuentes, a expressão máxima da burguesia progressista em Eldorado. Dono de tudo: minério, petróleo, siderurgia, imprensa e televisão. Paulo Martins é o poeta e jornalista, a consciência em transe em Eldorado, o homem que vai lutar contra os tiranos de Eldorado. Cf.: SILVA NETO, Antônio Leão da. Dicionáriodefilmesbrasileiros . São Paulo, 2002. p.789. 369 DIEGUES, Carlos. Cinema brasileiro: idéias e imagens. 2ªed. Série Síntese Universitária - 6. Porto Alegre: UFRGS/ MEC/ SESu/ PROED, 1999. p.21. 229

Ainda naquele ano (1967), foi criado o novo Instituto Nacional do Cinema - INC, anunciando o processo de transformação e a maior interferência estatal no setor.

No ano seguinte, em 1968, Rogério Sganzerla lançava “ O bandido da luz vermelha ”370 , outro marco na produção do cinema nacional. Inspirado na trajetória do assaltante João Acácio Pereira da Costa, o filme foi aclamado pela crítica, considerado inovador e talvez o mais representativo do Cinema Marginal. Diz Sganzerla:

Meu filme é um far-west sobre o III Mundo. Isto é, fusão e mixagem de vários gêneros. Fiz um filme-soma; um far-west mas também musical, documentário, policial, comédia (ou chanchada?) e ficção científica. Do documentário, a sinceridade (Rossellini); do policial, a violência (Fuller); da comédia, o ritmo anárquico (Sennet, Keaton); do western , a simplificação brutal dos conflitos (Mann). Bandido da Luz Vermelha persegue, ele, a polícia, enquanto os tiras fazem reflexões metafísicas, meditando sobre a solidão e a incomunicabilidade. Quando um personagem não pode fazer nada, ele avacalha. Orson Wells me ensinou a não separar a política do crime. Jean-Luc Godard me ensinou a filmar tudo pela metade do preço. Em Glauber Rocha conheci o cinema de guerrilha feito à base de planos gerais. Fuller foi quem me mostrou como desmontar o cinema tradicional através da montagem. Cineasta do excesso e do crime, José Mojica Marins e apontou a poesia furiosa dos atores do Brás, das cortinas e ruínas cafajestes e dos seus diálogos aparentemente banais. Mojica e o cinema japonês me ensinaram a saber ser livre e – ao mesmo tempo – acadêmico. [...] 371

Em meio às discussões que ambos os filmes provocavam e diante das mudanças ocorridas no cenário político e cultural, a dispersão do grupo do Cinema

370 Com produção de José da Costa Cordeiro, José Alberto dos Reis e Rogério Sganzerla, que também dirigiu, desenvolveu o argumento e roteiro. Sinopse: O enigmático assaltante de residências de São Paulo Jorge, apelidado pela imprensa de O bandido da luz vermelha , desconcerta a polícia, comandada pelo delegado Cabeção, devido à sua ousadia e, principalmente, por suas técnicas inusitadas de ação. Ele sempre conduz uma lanterna dessa cor e possui suas vítimas. A despeito dos esforços da polícia, ele circula sem problemas, gastando o fruto dos roubos. Na cidade de Santos ele conhece outros assaltantes, inclusive o rei da boca do lixo, e se apaixona pela musa marginal Janete Jane e é esse romance que o leva a perder o controle da situação, já bastante confusa graças ao seu obscuro envolvimento com o político populista JB e com a organização criminosa Mão Negra. Traído por um dos bandidos, é perseguido, mata a amante e se suicida. Cf.: SILVA NETO, Antônio Leão da. Dicionáriodefilmesbrasileiros . São Paulo, 2002. p.105. 371 Apud: BASUALDO, Carlos (Org.). Tropicália: uma revolução na cultura brasileira. São Paulo: Cosac Naify, 2007. p.254-5. 230

Novo ampliava-se e, a partir de 1969, alguns de seus representantes, como Glauber Rocha, Cacá Diegues, Gustavo Dahl e Ruy Guerra, já anunciavam o fim do movimento.

Nos anos 70, o cinema nacional foi marcado pela produção das “neochanchadas”, comédias musicais, pelas “pornochanchadas”, com conteúdo erótico, e pelas produções históricas, com destaque para os filmes: “ Os inconfidentes ”, de Joaquim Pedro de Andrade, “ Independência ou morte ”, de Carlos Coimbra, ambos de 1972, e “ Xica da Silva ”, de Cacá Diegues e João Felício dos Santos, de 1978. Produções que atendiam aos propósitos governamentais, pois atraíam o interesse do grande público, mas, ao mesmo tempo, receberam duras críticas, que resultaram na concepção de “decadência” do cinema brasileiro, argumento utilizado principalmente pelo grupo identificado com a produção marginal .

Contudo, apesar das severas críticas, durante a década de 1970, o setor mais produtivo do mercado de bens culturais foi o cinema, resultado, inclusive, dos investimentos do Estado, por meio da criação de órgãos que deveriam orientar e incentivar a produção. Em outras palavras, deveriam controlar a produção cinematográfica brasileira, caso da EMBRAFILME, criada em 1973.

Enquanto alguns representantes do Cinema Novo aproximaram-se e até defenderam a interferência do Estado na política cinematográfica, vista como possibilidade de enfrentar a concorrência estrangeira e a falta de investimentos, alinhando-se à política cultural estatal, o grupo do cinema “ udigrudi ”, por representar a contracultura, não só afastava-se como repudiava de forma contumaz a atitude e posicionamento dos representantes cinemanovistas.

Representando o Cinema Marginal, Torquato Neto protagonizou, atuou, dirigiu e produziu. Em carta destinada a Hélio Oiticica em 29 de setembro de 1971, revelava seu entusiasmo:

[...] Nosferato do Brasil ainda está sendo filmado. Semana passada vimos os três primeiros rolos e vários slides, tudo fantástico. Ivan Cardoso é outro cara que eu estou namorando agora: filmes de vampiro, transas por aí, você acha que eu ia perder uma maravilha dessas? Quando você puder ver essas coisas vai dar pulos. O filme está incrível e as caras que providenciei para mim são inacreditáveis. Tomei um susto quando vi. Fantástico! Quero fazer filmes com Ivan e mais 231

alguns. O que você acha? Ivan me disse que ia mandar pra você alguns stills do filme, mandou? Gostou? 372

Em 1971, o cineasta Ivan Cardoso lançou o filme em super-8 Nosferato no Brasil, uma paródia ao velho personagem das histórias de vampiro, que desde Murnau sempre reaparecera no cinema. Torquato interpretou o vampiro, e essa atuação ficou muito colada à figura de Torquato, a ponto de tornar-se emblemática. 373

Em sua coluna, Torquato Neto divulgava de forma entusiástica a produção em Super-8. Destacava os filmes, desde a fase inicial das produções, elaboração do roteiro, seleção de atores, locações até a apresentação, em salas de acesso restrito, como a Cinemateca ou, até mesmo, na residência de seus produtores e diretores:

[...] Superoito é moda? É. E é também cinema. Tem gente que já está nessa firme e não está exatamente só brincando. Em minha opinião, está fazendo o possível, quando é possível. Aqui, então, nem se fala: superoito está nas bocas e Ivan Cardoso, por exemplo, vai experimentando. Bom e barato. Bom. O olho guardando: aperte da janela do ônibus, como sugeriu Luiz Otávio Pimentel, e depois veja. É bonito isso? Descubra: aperte e depois repare. As aventuras de superoito, herói sem som – e se quiser falar também tem: em Manaus, nos Estados Unidos, na Europa, mas boas lojas. Nas importadoras. [...] Planos gerais, panorâmicas, detalhes. Se eu compreendi direito, nada melhor do que curtir de superoito, vampiresco, fresco, mudo. Cinema é um projetor em funcionamento projetando imagens em movimento sobre uma superfície qualquer. É muito chato. O quente é filmar. 374

Diante de propostas e posições tão distintas, os representantes de cada tendência travaram, por intermédio da imprensa, amplo e polêmico debate sobre o cinema brasileiro na década de 1970. Com discurso agressivo, troca de ofensas, inclusive pessoais, a discussão evidencia a produção cinematográfica brasileira e a pluralidade de propostas e encaminhamentos. Entre os protagonistas do debate, defendendo o projeto do Cinema Novo, destacaram-se Glauber Rocha, Antonio

372 Apud: PIRES, Paulo Roberto. Torquato Neto: Torquatália – do lado de dentro. Rio de Janeiro: Rocco, 2004. p.249. 373 BEZERRA FILHO, Feliciano José. A escritura de Torquato Neto . São Paulo: Publisher Brasil, 2004. p.64. 374 TORQUATO NETO. Geléia Geral. ÚltimaHora . Rio de Janeiro, 29 ago. 1971. 232

Calmon, Cáca Diegues e Gustavo Dahl; e, por outro lado, posicionaram-se Torquato Neto, Hélio Oiticica, Waly Salomão, Júlio Bressane e Ivan Cardoso em defesa do Cinema Marginal.

Mediante a leitura e análise das colunas Plug e Geléia Geral , respectivamente publicadas pelos jornais Correio da Manhã e Última Hora , é possível acompanhar a enorme polêmica que marcou o início da década de 1970. Nos textos, Torquato Neto apresentava severas críticas ao Cinema Novo. Em tom provocativo e ácido, características de seus escritos, comentava o panorama do cinema nacional:

[...] Ah, eu vi. E foi tudo por aqui mesmo, enquanto as cucas fundiam e o cinema novo se desfazia em transas com a indústria barra-pesada, em transas com a história mal contada (e por que contá-la?) dos herdeiros de uma massa falida, em transas pela marginalia da grande cidade, em transas com o novo lixo do curtume nacional, em transas, transas, transas. Um barato. [...] Entre os restos de uns e glória de outros o cinema brasileiro segue o curso normal do cinema: cresce e brilha, aparecerá. E o cinema novo (alguma novidade?) caiu do galho e foi ao chão. Como se diz: já era... [...] 375

Entre as críticas dirigidas ao Cinema Novo sobressaía-se a aproximação com a estrutura estatal e o caráter comercial das produções, o que, de acordo com a lógica do Cinema Marginal, limitava a capacidade criativa, o experimento, ou seja, a busca de uma nova linguagem e, portanto, sua renovação.

Obviamente, a discussão entre os grupos era acirrada e polêmica. Porém, a entrevista concedida por Antônio Calmon, publicada por Torquato Neto na coluna Plug , em 19 de junho de 1971, deflagrou um enorme embate entre os dois grupos, resultando em troca de acusações e, consequentemente, na ampliação da polêmica. Questionado sobre o “fim” do Cinema Novo, Calmon respondeu:

[...] quando tudo começou, bossa nova, cinema novo, havia uma perspectiva de conjunto e a batalha de todos era mais ou menos a mesma. Agora é impossível porque a nova ordem gerou uma dispersão geral. E tem mais: a partir de certo momento o cinema novo passou a se ocupar de coisas mortas.

375 TORQUATO NETO. Plug. CorreiodaManhã . Rio de Janeiro, 12 jun. 1971. 233

A estrutura latifundiária de Nordeste já era. Cangaço já era. Candomblé também já era. O cinema novo morreu registrando coisas acabada [...]. 376

Na entrevista, Antônio Calmon apresentou seu filme “ Capitão Bandeira ”377 , na época, em exibição, descrito por ele como uma tentativa de mesclar as linguagens do Cinema Novo e comercial. Buscava com a produção alcançar um público mais amplo, ou seja, “adaptar-se” à nova fase – caracterizada pelo crescente processo de industrialização dos bens culturais. Sobre o filme comentou:

Então, na verdade, O Capitão Bandeira é um filme meio misturado – quer dizer: tem todo um lado que vem da profissionalização, cinema, cinema novo, linguagem de cinema e tal. E tem um lado pelo qual eu me ligo à minha geração, porque é um filme do “plá”, mesmo, filme de curtição, um filme livre, sem literatices e com toda a armação industrial que os caras estão pedindo agora. Eles querem? A gente faz. 378

Na entrevista, Calmon ainda versou sobre as dificuldades enfrentadas para a produção cinematográfica brasileira, apontando os limites impostos pela censura e indústria cultural, além de tecer críticas ao Cinema Marginal, produzido e acessível para um público restrito. Nos comentários, percebe-se a valorização da “identidade do povo brasileiro”. Contudo, a busca e valorização do “povo” não resultavam mais das discussões sobre o nacional-popular, que marcara a década de 1960. A lógica de mercado favorecia outro debate, de forma que naquele momento o popular passava a ser definido pelo consumo:

376 Entrevista de Antônio Calmon. Cf.: TORQUATO NETO. Plug. CorreiodaManhã . Rio de Janeiro, 19 jun. 1971. 377 O filme O Capitão Bandeira contra o Doutor Moura Brasil , de 1971, foi produzido por Antônio Calmon, Hugo Carvana e Cláudio Marzo, com direção e roteiro de Antônio Calmon. Classificado como gênero: comédia. Sinopse: Cláudio Bandeira é um empresário riquíssimo, famoso, que tem tudo para ser feliz. No auge de sua carreira, resolve abandonar tudo, devido à perseguição movida pelo misterioso e temível Dr. Moura Brasil, que lhe envia, por intermédio de uma estranha mulher, avisos de suas intenções enigmáticas. Ele terá de cumprir um pacto secreto ou morrerá à beira de um esgotamento nervoso. Bandeira interna-se num hospital para se recuperar. O mistério, todavia, permanece. Bandeira, então, decide enfrentar o problema e, tendo encontrado a mulher ideal, encontra-se a si mesmo, única forma de ser feliz. Agora as terríveis investidas do Dr. Moura Brasil contra o capitão Bandeira são rebatidas à altura. Cf.: SILVA NETO, Antônio Leão da. Dicionáriode filmesbrasileiros . São Paulo, 2002. p.158-9. 378 Entrevista de Antônio Calmon. Cf.: TORQUATO NETO. Plug. CorreiodaManhã . Rio de Janeiro, 19 jun. 1971. 234

De qualquer maneira posso garantir que meus filmes não serão exibidos apenas na cinemateca. Isso é um negócio fechado, é uma fossa que não me interessa. Hoje em dia, no Brasil, se você não faz um filme em cor você não distribui. Se você se liberta e manda brasa você não passa na censura. O cinema marginal não me satisfaz, parece o ritual de um grupo sempre as mesmas pessoas, o mesmo interesse, o mesmo tipo de curtição. Precisamos de uma disciplina de humildade que corte essa onda e nos faça reencontrar o povo brasileiro, do qual andamos muito afastados. É preciso redescobrir formas de contato com o público, o que eu acho um exercício intelectual da maior importância. 379

Por fim, Calmon apresentou sua interpretação do panorama do cinema brasileiro, reiterando as duras críticas ao Cinema Marginal. Diante da nova realidade política e cultural, sugeria a produção de filmes que pudessem ser aprovados pela censura e pelo público mais amplo. Encerrava sua entrevista, portanto, ratificando a necessidade de adaptação aos novos tempos:

Eu, pessoalmente, não curto Godard. Nunca vi o cinema como exposição de problemas. Isso é uma curtição européia que predominou aqui e já era. O que temos hoje? Os últimos berros de cinema novo, já bastante sufocados, o irracionalismo doente, louco, desvairado e também colonizado do cinema marginal e um cinema comercial feito para débeis mentais. O Capitão Bandeira foi feito para preencher uma lacuna: a do filme brasileiro comercial e adulto. 380

Torquato Neto justificou a publicação da entrevista com Calmon, de quem discordava totalmente, argumentando a possibilidade de ampliar o debate sobre a produção do cinema nacional. Real motivo ou não, o fato é que a entrevista teve repercussão imediata e foi amplamente discutida na imprensa, suscitando comentários dos representantes do Cinema Novo e do Cinema Marginal – os destes últimos observados na coluna Geléia Geral –, o que possibilita a reflexão sobre o cenário cultural da época.

379 Entrevista de Antônio Calmon. Cf.: TORQUATO NETO. Plug. CorreiodaManhã . Rio de Janeiro, 19 jun. 1971. 380 Entrevista de Antônio Calmon. Cf.: Ibidem. 235

Em 21 de julho de 1971, em correspondência enviada a Hélio Oiticica, Torquato já evidenciava a discussão que se estenderia por vários anos:

Você não calcula como eu ainda me espanto com esse povo na beira da praia aqui do Rio. É realmente incrível. Vergara te falou que eu teria tido problemas por causa daquela entrevista idiota do Antônio Calmon. Imagine! Problema de quê, meu Deus? Antes da estréia do Capitão Bandeira eu já havia resolvido promover o filme no Plug. Calcule: eu pensava, porque as pessoas me diziam que era assim, que Calmon houvesse tido coragem de fazer um filme comercial limpo, pra ganhar realmente muito dinheiro num esquema que – você sabe muito bem – não me interessa pessoalmente em absolutamente nada; mas que poderia ser o primeiro passo, ou primeira palavra na abertura de uma discussão muito mais ampla sobre cinema brasileiro – que eu estava a fim de incentivar no Plug. Eu nem sequer conhecia Calmon pessoalmente. Fui lá todo feliz fazer a tal entrevista, liguei o gravador e deixei o boneco falar. Waly ouviu a fita inteira. Era inacreditável, Hélio. Se você leu o que eu publiquei e ficou espantado – eu queria ver tua cara escutando o monte de babaquice, maucaratice [ sic ] e estupidez que ele declarou no microfone. Livrei muito a cara dele, deixando de publicar declarações tais como: essa turma do cinema marginal vai de ácido, vai de tudo quanto é droga e no entanto só fazem filmes fossudos e doentes, ao contrário do que se espera de quem usa drogas etc, por aí. Eu sou um cara tão legal que guardei a entrevista uma semana, esperando que o filme passasse para que eu pudesse ver. 381

Os debates sobre a produção do cinema nacional revelam os projetos distintos que separavam o Cinema Novo do Cinema Super-8. Sobre o filme “ Capitão Bandeira ”, de Antônio Calmon, Torquato opinou, na mesma carta:

Fui e vi – sinceramente – não pode ser pior. Calmon, pelo filme, parece uma garota do Sion que andou puxando fumo e desbundou à la mode. Minha opinião sobre o filme vai num Plug – o último que saiu conosco – que te remeto ou com esta carta ou logo depois, com as encomendas. 382

381 Cf.: PIRES, Paulo Roberto. Torquato Neto: Torquatália – do lado de dentro. Rio de Janeiro: Rocco, 2004. p.234-5. 382 Cf.: Ibidem. 236

Utilizando a mesma estratégia – colocar o cinema nacional em debate e expor as ideias do grupo adversário –, os representantes do Cinema Novo, entre eles Arnaldo Jabor, Paulo César Saraceni e outros, convidaram Ivan Cardoso, Luciano Figueiredo, Torquato Neto e Waly Salomão para conceder uma entrevista ao Jornal Nacional – coluna Domingo Ilustrado. O debate polêmico era acirrado entre as duas tendências e continuava em evidência nos textos de Torquato. Na carta de 9 de novembro de 1971, dizia a Hélio Oiticica:

Eu quero saber onde vamos: os caras do Cinema Novo chamaram Waly e eu, além de Ivanzinho e Luciano, para uma entrevista sobre o underground brasileiro. Foi uma verdadeira loucura, Hélio: Jabor, Mário Carneiro, Paulo César Sarraceni e Fontoura querendo saber das transas: foi uma loucura essa entrevista (para o Domingo Ilustrado) e estou certo que nem Jabor terá coragem de publicar nada do que dissemos pra eles; uma verdadeira batalha; Waly brilhou e eu saí esculhambando os caras durante a entrevista inteira: de onze da noite às quatro da manhã, com gravador e tudo. Um verdadeiro ninho de ratos, ratinhos, covardia e falta de caráter até por lá, geral. Você vai ouvir falar desse papo, sim. 383

As críticas feitas por Torquato Neto durante a entrevista foram rebatidas por Antônio Calmon. Publicada com o provocativo título “ Pau no burro ”, revela o clima polêmico e os ânimos exaltados:

Passei cinco meses na Bahia e quando voltei encontrei muita coisa mudada no Rio de Janeiro. A vida é isso mesmo, mudança constante. E na mudança as máscaras caem, os santos viram picaretas, os mendigos iluminados resolvem faturar. Chega de mistificação, esse ripismo [ sic ] de butique não engana mais ninguém. Tá na hora de dar nome aos bois, e aos burros também. Não dá mais pé aturar nigrinhagem e baixo nível. 384

383 Cf.: PIRES, Paulo Roberto. Torquato Neto: Torquatália – do lado de dentro. Rio de Janeiro: Rocco, 2004. p.258. 384 CALMON, Antônio. Pau no burro. Jornal Nacional . Domingo Ilustrado. Rio de Janeiro, 30 de janeiro de 1972. Apud: PEREIRA, Carlos Alberto M.; HOLLANDA, Heloísa Buarque de. Patrulhas ideológicas: arte e engajamento em debate. São Paulo: Brasiliense, 1980. p.146. 237

Em resposta às críticas, Antônio Calmon ainda avaliava e depreciava a coluna de Torquato Neto:

E tá na hora de denunciar os picaretas. O Sr. Geléia Geral, por exemplo, medíocre e recalcado, me convocou para uma entrevista para depois deturpá-la, omitindo conceitos que talvez ele não tivesse coragem de publicar. E quando gente recalcada obtém uma coluna de jornal descobre a melhor maneira de descontar os filmes, livros, peças etc., que não teve capacidade de fazer. 385

Sobre os projetos para o cinema brasileiro e a polêmica entre o Cinema Novo e o Marginal, Calmon também se posicionou:

Não me venha falar de Júlio Bressane e Rogério Sganzerla. Os dois devem muito ao cinema novo. Júlio estreou com o filme mais cinemanovista que já vi, se ele esqueceu o nome eu lembro: Cara a Cara . O Anjo nasceu é legal, o resto é lixo. E tem mais, amizade: nós do cinema brasileiro que ficamos e compramos a barra tamos aqui no meio da lama, não tamos em Londres curtindo uma de subdesenvolvido deslumbrado. [...] E não me venha de Dziga Vertov e Mojica Marins. Isso a gente curtiu nos anos 60, é vestibular de cinema. Quanto a seus filmes subterrâneos que você cita tanto, já vi todos. Você não é o primeiro sub-Sganzerla que anda pintando por aí a fim de se promover. O resto já se mandou pra Londres e adjacências, o que é que você está esperando? Sganzerla tem talento e viu filmes paca. E é exatamente isso que eu não suporto nos filmes dele, não suporto colagens de cinéfilo. King Vidor, Welles, esses caras já deram o recado deles e pronto. Eu tô a fim do novo, gente boa, o cinema e a poesia que vieram antes não me interessam. E quanto à jogada de Rogério, não entre nela não que sempre foi muito pessoal. Rogério Sganzerla é seu teórico? Há, há. [...] Não confunda Capitão Bandeira com Os Deuses e os Mortos e principalmente com Barão Otelo . Não confunda Calmon com Simonal nem com Vera Cruz. Não dê essa bandeira de burrice amizade, depois você vai se arrepender. Pode confundir Gustavo Dahl com Antônio Calmon sim, é elogio. E fique no seu açougue, talvez você um dia chegue a Mondrian. Esses concretistas são uns gozadores. 386

385 CALMON, Antônio. Pau no burro. Jornal Nacional . Domingo Ilustrado. Rio de Janeiro, 30 de janeiro de 1972. Apud: PEREIRA, Carlos Alberto M.; HOLLANDA, Heloísa Buarque de. Patrulhas ideológicas: arte e engajamento em debate. São Paulo: Brasiliense, 1980. p.147. 386 Cf.: Ibidem. p.147. 238

O conflito entre os representantes do cinema nacional acentuava-se e o discurso ficava cada vez mais agressivo. O debate continuou a ser explorado na coluna de Torquato Neto, que não apenas utilizava-a para responder às críticas, mas também para ceder espaço para os demais defensores do Cinema Marginal posicionarem-se, como Ivan Cardoso, que respondeu diretamente às críticas de Calmon, no mesmo tom:

[...] Capitão Bandeira, Os deuses e os mortos, Barões Otelos, Calmons, Simonais, Gustavos, Vera Cruz , índios, carneiros, bodes, ah ah ah ah ah ah ah ah ah, estou acendendo as velas para ver o desfile de fracassos. Eis umas verdades: nenhum desses filmes dará dinheiro. Nenhum desses filmes deu dinheiro. Nenhum desses filmes presta. Todos esses filmes dão sono. Nenhum desses diretores fará bons filmes. Rogério, amizade, está muito mais vivo que esses fantasmas que circulam por Ipanema. Espere, ainda para esse mês: Sentença de Deus . Não tenho medo de ser forte culturalmente. (Caetano Veloso). 387

Torquato manteve o debate acirrado em sua coluna até o encerramento desta, em março de 1972. Com discurso menos agressivo e mais irônico, provocava explicitamente:

[...] Alô, Antônio Calmon, bom dia: já está mais calminho? Então vá fazer filmes e deixe de frescuras. Ora. Ou será que também os filmes já foram curtidos nos anos sessenta? Hum? [...] E até logo, Antônio Calmon. Vá fazer filmes em cinemascope, já que é assim que você pode. Mas essa história de fazer cinema PRU futuro... Me diga: é um gênio incompreendido ou também já curtiu o presente nos anos sessenta? 388

Porém, mesmo com o encerramento da coluna de Torquato Neto, o debate, a polêmica e a troca de acusações e ofensas permaneceram durante a década de 1970.

387 Declaração de Ivan Cardoso. Cf.: TORQUATO NETO. Geléia Geral. ÚltimaHora . Rio de Janeiro, 11 jan. 1972. 388 TORQUATO NETO. Geléia Geral. ÚltimaHora . Rio de Janeiro, 26 jan. 1972. 239

Em agosto de 1978, o cineasta Cacá Diegues dizia que tal disputa não era produtiva e não teria vencedores. Rebatendo as críticas sobre a “comercialização” do cinema em busca de maior público, argumentou: “Assim como não há democracia sem povo, não pode existir cinema democrático sem público.” 389 Acusando os representantes do Cinema Marginal de autoritários e preconceituosos, defendeu a liberdade de criação como única possibilidade para o desenvolvimento do cinema nacional. Criticou também a situação política do país, que impunha limites à produção, repudiando a censura, que, de acordo com sua análise, era imposta pelos representantes do “ udigrudi ”, considerados por ele intransigentes.

Defendendo a liberdade, tanto política como de criação, a pluralidade de projetos e sua coexistência, afirmou:

Quero, para o Brasil, um cinema livre de preconceitos. Que não precise ser um fenômeno de bilheteria, mas que tenha existência social. Ou seja, que encontre seu público, seja ele qual for, e sirva para fazer alguém feliz, posto que o bode é a manifestação mais vulgar do conformismo conservador que pretende nos fazer amar a morte. Quero, para o Brasil, um cinema que absorva de Glauber Rocha a Arnaldo Jabor, de Bruno Barreto a Júlio Bressane, todas essas manifestações que servem ao Outro a que foram apaixonadamente dirigidas. Quero, para o Brasil, um cinema em que nada seja proibido, já que a liberdade é o único instrumento viável para a construção da felicidade, no novo e grande barbarismo brasileiro que o professor profetizou genialmente. Quero, para o Brasil, um cinema em que tudo, mas TUDO mesmo, possa pintar. 390

Enfim, o debate sobre os rumos do cinema nacional, travado desde o final da década de 1950, marcando as décadas posteriores, nas quais houve o acirramento da polêmica entre o Cinema Novo e o “udigrudi”, revela a intensa atividade e o momento criativo que a produção nacional conheceu naquele período. As diversas propostas, mesmo que contrárias e em disputa, denotam que a década de 70 não pode ser entendida como a fase do “vazio cultural”, pois, mesmo que a discurso explicitamente político tenha sido esvaziado em decorrência dos limites impostos pelo autoritarismo, a reflexão e a crítica continuaram a pontuar parte da

389 DIEGUES, Carlos. Cinema brasileiro: idéias e imagens. 2ªed. Série Síntese Universitária - 6. Porto Alegre: UFRGS/ MEC/ SESu/ PROED, 1999. p.28. 390 Ibidem. p.28-9. 240

produção cinematográfica. Com linguagem estética comercial ou transgressora, o cinema nacional brasileiro se desenvolvia, reiterando a afirmação de que “ Criar é resistir ”.

241

4.3 - A DEFESA DOS DIREITOS AUTORAIS

O direito autoral assegura o direito de propriedade intelectual, sendo que o “autor é pessoa física criadora da obra literária, artística ou científica” 391 :

O direito autoral apresenta fundamentalmente dois aspectos: o moral – que garante ao criador o controle à menção de seu nome na divulgação de sua obra e o respeito à sua integridade, além dos direitos de modificá-la, ou de retirá-la de circulação; e o patrimonial – que visa regular as relações jurídicas da utilização econômica das obras intelectuais. 392

A regulamentação dos direitos de propriedade intelectual foi definida em 9 de setembro de 1886, por meio da Convenção de Berna. As disposições sobre os direitos autorais foram revistas por intermédio de tratados internacionais, a saber: a Convenção de Roma, em 26 de outubro de 1961; a Convenção Universal, em 24 de julho de 1971; e a Convenção de Genebra, em 29 de outubro de 1971.

No caso específico da obra musical, são considerados autores e portadores de direitos autorais os compositores da música e da letra e o arranjador:

A criação de obras musicais originárias está afeta, normalmente, a um ou dois titulares originários (criação individual ou criação em colaboração ou co-autoria, reunindo o compositor da música com o da letra). No primeiro caso, a titularidade originária integral caberá ao compositor da obra, em sua acepção moral e patrimonial. No segundo, a titularidade originária, em relação aos direitos patrimoniais, será dividida, em partes iguais, na utilização econômica da obra como um todo, e, em relação aos direitos morais, cada qual será detentor da íntegra de suas respectivas obras (divididas em música e letra), podendo utilizá-las separadamente. 393

391 Cf.: SOUZA, Carlos Fernando Mathias de. Direito Autoral: legislação básica. Brasília - DF: Livraria e Editora Brasília Jurídica, 1998. p.21. 392 GANDELMAN, Henrique. Noções básicas de direitos autorais. In: ARAÚJO, Samuel; PAZ, Gaspar; CAMBRIA, Vincenzo (Orgs.). Música em debate: perspectivas interdisciplinares. Rio de Janeiro: Mauad/ FAPERJ, 2008. p.108. 393 COSTA NETTO, José Carlos. Direito autoral no Brasil . Coleção Juristas da atualidade - Coordenação Hélio Bicudo. São Paulo: FTD, 1998. p.106. 242

A “organização autoral musical no Brasil tratou de concretizar, mediante um trabalho específico de cobrança aos usuários e de pagamentos aos autores associados, a participação legal nos proventos financeiros gerados pela utilização de suas obras”. 394

No Brasil, entre as principais entidades organizadas para o trabalho de arrecadação dos direitos autorais destacaram-se: Sociedade Brasileira de Autores, Compositores e Editores de Música - Sbacem; Sociedade Brasileira de Autores Teatrais - Sbat; Sociedade Arrecadadora de Direitos de Execução Musical no Brasil - Sadembra; o Serviço de Defesa do Direito Autoral - SDDA; a União Brasileira de Compositores - UBC; Sociedade de Intérpretes e Produtores Fonográficos - Socinpro; Sociedade Independente de Compositores e Autores Musicais - Sicam; Sociedade Musical Brasileira - Sombras; e o Escritório Central de Arrecadação e Distribuição - Ecad.

A discussão sobre os direitos autorais deve considerar as relações entre o campo autoral e o mercado musical, pois “o que as entidades fazem é cobrar dos usuários de música os direitos dos autores das obras utilizadas”. 395 Contudo, observa-se que:

[...] as relações entre o campo autoral e o mercado mostram-se problemáticas na prática: de um lado, os usuários não compreendiam a necessidade de pagar pela utilização de coisas tão incorpóreas como a música; de outro, as entidades pioneiras, amparadas no preceito legal de que somente ao autor é dado o direito de fixar o preço de sua obra, impunham a esses usuários tabelas incompatíveis com os preços de mercado. 396

A partir da década de 1950, com a modernização da indústria fonográfica, intensificaram-se as reclamações e o inconformismo em relação à arrecadação de direitos autorais, sobretudo no que se refere aos valores pagos aos autores, resultando em uma série de debates, polêmicas e na criação de novas sociedades

394 MORELLI, Rita de Cássia Lahoz. Arrogantes,anônimos,subversivos: interpretando o acordo e a discórdia na tradição autoral brasileira. Campinas - SP: Mercado das Letras, 2000. p.35. 395 Ibidem. p.117. 396 Ibidem. p.117. 243

arrecadadoras, na tentativa de mudar o sistema de arrecadação e distribuição dos valores.

Com a difusão cada vez maior da produção musical no Brasil, graças à ampliação do consumo e ao desenvolvimento dos meios de divulgação das obras (discos, rádio, cinema e TV), as reclamações e o debate marcaram as décadas posteriores. Em 1964, Marino Pinto, presidente da Sbacem, redigiu uma resposta indignada ao jornalista da Tribuna da Imprensa sobre a penúria em que estaria vivendo Ary Barroso, “presidente de honra” da entidade:

Procure saber quanto as nossas grandes emissoras de rádio e TV pagam mensalmente de direito autoral [...]. Indague, também, os seus débitos para com as sociedades arrecadadoras [...] Faça a mesma indagação a respeito dos grandes clubes [...] e V. terá elementos para uma reportagem realmente estarrecedora. Isso sem falar na irrisória taxa paga pelo exibidor cinematográfico. Quando paga! [...] A quem culpar? A quem recorrer? Por que V. na sua coluna e a imprensa, de um modo geral, silenciam em torno do assunto? 397

Após o golpe militar, em 1964, o governo militar interferiu também na legislação sobre os direitos autorais. O General Humberto de Alencar Castelo Branco assinou a Lei nº 4.480, em 14 de novembro, que tornou os direitos autorais tributáveis pelo Imposto de Renda. Além disso,

[...] por outro lado, desejoso de adaptar a legislação autoral brasileira aos novos tempos, o ministro da Justiça de Castelo Branco, Mem de Sá, encarregou o desembargador Milton Sebastião Barbosa, ex-advogado da Associação Profissional dos Compositores, de elaborar o anteprojeto de um Código do Direito do Autor, o que certamente abriu algum canal de comunicação entre o Estado e os dirigentes autorais pioneiros. 398

397 Cf.: MORELLI, Rita de Cássia Lahoz. Arrogantes, anônimos, subversivos: interpretando o acordo e a discórdia na tradição autoral brasileira. Campinas - SP: Mercado das Letras, 2000. p.209. 398 Ibidem. p.215. 244

E, em 1967, o general Costa e Silva recebeu uma comitiva de dirigentes do Serviço de Defesa do Direito Autoral - SDDA, composta por Emílio Vitale, , João de Barro, Joubert de Carvalho, Mário Rossi, Carlos Galhardo e João Dias, que reivindicavam que a Censura Federal convocasse um representante do SDDA para acompanhar e fiscalizar o trabalho das autoridades policiais nos estados, bem como que, no tocante à modificação da legislação autoral, o presidente não desse seu apoio a “grupos de trabalho” nos quais as entidades integrantes do SDDA não estivessem representadas. Tal atitude explicita as disputas internas das sociedades arrecadadoras, evidenciando o posicionamento frente ao governo militar. O encontro terminou com êxito, pois o presidente Costa e Silva prometeu atender às duas reivindicações.

Foi nesse cenário que Torquato utilizou sua seção Música Popular , publicada pelo Jornal dos Sports , também para trazer à tona um importante debate e iniciar mais uma polêmica: os direitos autorais . Nélson Motta, em entrevista publicada na coluna de Torquato, afirmou:

Enquanto nossa geração trabalha e produz com esforço e honestidade tanta coisa boa, vejo por outro lado e com a maior revolta, a atitude das Sociedades Arrecadadoras de Direitos Autorais em relação a nós. É uma situação que precisa acabar. Um país onde um compositor como Roberto Menescal, de incontáveis sucessos, recebe NCr$ 8,00 por mês, como direito autoral, é uma coisa muito séria. Enquanto isto, os velhos (não velhos fisicamente, mas velhos de velhice moral) e superadíssimos compositores que chefiam as Sociedades Arrecadadoras se enchem de dinheiro e glória alheias, conseguidas com muito esforço do que eles fazem para roubar. 399

No trecho citado, observa-se a crítica às sociedades arrecadadoras dos direitos autorais, sendo que a acusação de “roubo” é explícita na entrevista. Verifica- se que, além da discordância sobre a remuneração concedida ao compositor, havia também um conflito geracional, pois no excerto apresentado Nélson Motta se referia aos representantes das sociedades arrecadadoras como “velhos”, e explicava o rótulo especificando que a “velhice” seria “moral”.

399 Entrevista com Nélson Motta. TORQUATO NETO. Música Popular. Jornal dos Sports . Suplemento “O Sol”. Rio de Janeiro, 24 mar. 1967. 245

Nota-se, portanto, não apenas o embate na categoria de compositores na defesa dos direitos autorais, mas também o embate entre gerações – os “novos” defendiam a necessidade de mudanças, não apenas nos procedimentos de arrecadação, mas também na renovação do grupo que compunha as sociedades arrecadadoras:

Torquato teceu críticas contundentes à política dos direitos autorais no Brasil e fez sérias denúncias à asfixia imposta à música popular brasileira pelas gravadoras, que não permitiam ao artista ter liberdade e autonomia pra exercer sua criatividade. Dominado pelos empresários, o artista era forçado a fazer concessões comerciais para conseguir espaço nas rádios e gravadoras, se quisesse sobreviver por meio da música. 400

A polêmica sobre os direitos autorais se dava num contexto de mudanças no cenário musical brasileiro. A partir de meados da década de 1960 haviam surgido muitos artistas jovens, alguns dos quais viriam a se tornar grandes destaques da MPB. Vindos de vários lugares do país, eles iniciavam suas carreiras em São Paulo, por intermédio da televisão, contribuindo também para que o mercado produtor de música se modernizasse. 401

Esses jovens compositores criticavam os dirigentes das sociedades arrecadadoras e reivindicavam mudanças. O tema teve ênfase na coluna de Torquato Neto, e o debate era acirrado:

Vivemos ainda numa época em que é fácil, facílimo, que três ou quatro sujeitinhos desonestos possam controlar por completo o direito de arrecadar dinheiro dos outros – e ficar com ele. Os compositores jovens não recebem nada, apesar de suas músicas serem as músicas mais executadas hoje em dia. Ou recebem: Adilson Godói, por exemplo, autor de “Dá- me”, um sucesso de meses em São Paulo, no Rio e no Brasil inteiro, recebe por toda a sua obra, em fins de 1968, a quantia de NCr$ 1,00 ou, em moeda “antiga”, um mil cruzeiros. Dessa forma, e informados a respeito dessas bandalheiras, os compositores novos vêm tomando uma posição, explicada por

400 ANDRADE, Paulo. TorquatoNeto: uma poética de estilhaços. São Paulo: Annablume/ FAPESP, 2002. p.160. 401 MORELLI, Rita de Cássia Lahoz. Arrogantes,anônimos,subversivos: interpretando o acordo e a discórdia na tradição autoral brasileira. Campinas - SP: Mercado das Letras, 2000. p.248. 246

Nélson Motta, que em última análise quer dizer: melhor não receber nada do que ser roubado [...]. 402

Torquato Neto expôs na seção Música Popular a situação dos direitos autorais no Brasil na década de 60, e corroborou a afirmação de Nélson Motta, acusando as sociedades arrecadadoras dos direitos autorais de explorarem os compositores. O adjetivo “jovem” volta à tona, enfatizando a dicotomia “velhos” e “jovens” na disputa pelos direitos autorais, sendo estes últimos vistos na posição de vítimas do “monopólio” dos “velhos” compositores.

Diante desse cenário, conforme revela o trecho supracitado, muitos “jovens” compositores preferiam não se filiar a nenhuma sociedade arrecadadora já estabelecida, ou como alternativa pensavam na fundação de uma nova sociedade, o que também foi discutido pelo autor:

Alguma coisa andou acontecendo, no entanto. Em reunião com Vinicius, vários deles chegaram a propor a idéia de fundar uma outra sociedade para arrecadação dos direitos de execução pública. Essas coisas que as pessoas chegam a pensar, sonhar e depois não dá em nada, simplesmente porque é impossível. Quem pode lutar com as mesmas armas da UBC, da Sadembra, da SBACEM? Armas que envolvem, principalmente, milhões de cruzeiros e propinas para deputados etc. etc? E ficou-se na mesma. 403

Para Torquato Neto, a iniciativa dos compositores seria inviável, não só pela falta de mobilização – “essas coisas que as pessoas chegam a pensar, sonhar e depois não dá em nada” –, mas em virtude do empreendimento financeiro que a iniciativa exigia.

Enquanto os compositores não encontravam saída para a situação, em maio de 1967, o General-Presidente Costa e Silva incumbiu ao Ministro da Justiça Luís Antonio da Gama e Silva e aos juristas Antonio Chaves, Cândido Mota Filho e Milton Sebastião Barbosa a revisão do anteprojeto de Código do Direito de Autor e Conexos.

402 TORQUATO NETO. Música Popular. JornaldosSports . Suplemento “O Sol”. Rio de Janeiro, 30 mar. 1967. 403 Ibidem. 247

E, apesar da descrença, uma nova sociedade arrecadadora foi fundada, como afirmado ainda no texto de sua coluna, à qual o próprio Torquato se filiou: a Sociedade Independente dos Compositores e Autores Musicais - Sicam.

[...] Gilberto Gil, Chico Buarque de Holanda, Caetano Veloso, J. C. Capinam, Adilson Godói, Geraldo Vandré e mais alguns compositores filiaram-se a uma sociedade nova que – quem sabe? – pode ser a solução mais razoável para o impasse. É nova, chama-se Sicam e tem sede em São Paulo. Mas que ninguém pense que estou escrevendo apenas para fazer publicidade da Sicam. Estou, eu mesmo, filiado a ela, e na escuta: vamos ver o que acontece [...] 404

A década de 1960 registrou a fundação de duas novas entidades de direitos autorais: a Sicam e a Socimpro - Sociedade de Intérpretes e Produtores Fonográficos. A Sicam foi a primeira entidade autoral brasileira a ser fundada fora do Rio de Janeiro e diferenciava-se das demais por ter entre seus fundadores não os “grandes nomes da MPB” , mas “humildes” compositores paulistanos de músicas de carnaval. 405

Prometendo “ ficar na escuta ”, Torquato Neto utilizou sua coluna para dar continuidade ao assunto. O tema dos direitos autorais continuava em debate, tendo no autor um crítico polêmico, defensor das mudanças nesse setor:

E no mais é que as famosas Sociedades Arrecadadoras continuam arrecadando e não pagando. E quase ninguém procura fazer nada para acabar com a ladroeira. E ninguém – ou quase ninguém – se convence que é preciso enfrentar a situação, o que só poderá ser feito com a união dos compositores pelo menos em torno disso. Continuamos simples amadores... Até amanhã. 406

404 TORQUATO NETO. Música Popular. JornaldosSports . Suplemento “O Sol”. Rio de Janeiro, 30 mar. 1967. 405 MORELLI, Rita de Cássia Lahoz. Arrogantes,anônimos,subversivos: interpretando o acordo e a discórdia na tradição autoral brasileira. Campinas - SP: Mercado das Letras, 2000. 406 TORQUATO NETO. Música Popular. JornaldosSports . Suplemento “O Sol”. Rio de Janeiro, 10 jun. 1967. 248

A defesa da mobilização e engajamento dos artistas, sobretudo do cenário musical, foi recorrente na coluna de Torquato, na tentativa de provocar mudanças não só nos direitos autorais, mas também nos rumos da produção da música brasileira.

Nota-se que, apesar do apelo para a organização e posicionamento, Torquato Neto mostrava certa incredulidade e pessimismo, afirmando tratar-se de uma categoria bastante desunida, fato que o autor constantemente lamentava.

A fundação de novas sociedades arrecadadoras provocou na década de 1960 novas práticas e posicionamentos dos antigos dirigentes, acentuando ainda mais o debate:

Ao serem confrontados com a realidade da existência das novas entidades, os dirigentes pioneiros, que desde 1966 encontravam-se congregados no SDDA - Serviço de Defesa do Direito Autoral, adotaram posições diferentes em relação a cada uma delas. A Sicam tornou-se a “outra” que nos velhos tempos a Sbacem havia sido para a UBC, e a UBC havia sido para a Sbacem, embora a concorrência com a entidade paulista tenha sido sempre expressa nos termos de uma disputa meramente comercial, e não simbólica, dado que os dirigentes sicamistas nunca foram reconhecidos pelos dirigentes pioneiros como pares no campo artístico [...]. 407

A nova sociedade arrecadadora – Sicam – foi apresentada por Torquato Neto com entusiasmo:

Guardem bem esta sigla: SICAM. [...] É uma sociedade relativamente nova, com sede em São Paulo. E, devagar e em silêncio, está promovendo com honestidade a redenção do compositor brasileiro, até aqui vergonhosamente explorado por organizações como a UBC, SBACEM, Sadembra e outras. A Sicam vai longe, se Deus quiser. E os compositores da nova geração estão sabendo disso. Lá não tem Vitale nem Oswaldo Santiago. Portanto... [...] 408

407 MORELLI, Rita de Cássia Lahoz. Arrogantes,anônimos,subversivos: interpretando o acordo e a discórdia na tradição autoral brasileira. Campinas - SP: Mercado das Letras, 2000. p.260. 408 TORQUATO NETO. Música Popular. JornaldosSports . Suplemento “O Sol”. Rio de Janeiro, 08 set. 1967. 249

O evidente entusiasmo de Torquato Neto com a nova sociedade arrecadadora devia-se ao fato de que a entidade apresentava-se, desde o início, oposta às entidades pioneiras. A Sicam implantou uma nova dinâmica de distribuição do dinheiro, e ainda se posicionou a favor do fim dos contratos de edição com cessão de direitos autorais, questão das mais polêmicas sobre o tema:

O discurso e a prática dos dirigentes sicamistas articulavam-se em torno de uma referência ao mercado, mas de uma referência moderna, por meio da qual o mercado deixava de ser visto como pólo oposto da arte ou como pretexto para demandas protecionistas dirigidas aos governantes para se tornar a base teórica abrangente das distribuições internas de dinheiro e de poder, das posições externas de independência em relação ao Estado e da própria independência da entidade em relação ao restante do campo autoral que se agrupara no SDDA. Coincidência ou não, muito novos grandes nomes da MPB que aderiram à entidade paulista também praticavam uma arte que não se pretendia oposta ao mercado, mas que almejava inserir-se crítica e antropofagicamente nele. 409

Assim, nota-se que a proposta da sociedade atraiu grande parcela dos novos compositores brasileiros, interessados em provocar mudanças não apenas no cenário musical, mas também no sistema de arrecadação dos direitos autorais. Tais compositores efetivaram sua participação como sócios e também como dirigentes. Em 1968, Gilberto Gil ocupava o cargo de vice-presidente da Sicam.

Apesar da fundação da nova sociedade arrecadadora, os problemas e a polêmica sobre a arrecadação e o repasse dos direitos autorais permaneciam, e Torquato Neto utilizou sua coluna para contextualizar o cenário de disputas:

Nessa história (melhor, nessa bagunça) em que já se transformou aqui entre nós o problema autor versus sociedade arrecadadora versus autor , a opinião deste colunista é de que quanto mais o assunto for badalado, melhor. Melhor pra todo mundo: ninguém pode se queixar de falta de publicidade e há poucos dias, aqui mesmo nesta página, Mister Eco publicava correspondência de uma delas (a famigerada UBC). É correspondência de defesa, em que os dirigentes daquela famosa sociedade aproveitaram para sugerir sanções contra a

409 MORELLI, Rita de Cássia Lahoz. Arrogantes,anônimos,subversivos: interpretando o acordo e a discórdia na tradição autoral brasileira. Campinas - SP: Mercado das Letras, 2000. p.269. 250

Sicam, uma organização nova e ainda respeitável que funciona em São Paulo. 410

Dessa forma, percebe-se que Torquato propunha uma discussão ampla sobre o tema, garantindo espaço para as opiniões de compositores e representantes das sociedades arrecadadoras, a fim de possibilitar, por meio do debate, uma “solução” para o dilema vivido pelos compositores brasileiros, que estava distante de ser solucionado.

Porém, as polêmicas em torno do direito autoral no Brasil acirravam-se e, em 1968, o Congresso Nacional instituiu uma Comissão Parlamentar de Inquérito - CPI para investigar a veracidade de denúncias que se multiplicavam na imprensa contra as sociedades arrecadadoras:

Alguns dos novos nomes da MPB foram ouvidos por essa CPI e puderam dar seu próprio tom ao coro dos descontentes. Nélson Motta, por exemplo, em seu depoimento, condenou os contratos de edição com cessão de direitos e a presença de editores na direção das entidades autorais, mencionou o fato de que nem todos os autores tinham direito a voto nessas entidades e lamentou que elas fossem dirigidas por “gente que não faz música há mais de dez anos”. 411

Todavia, a CPI não resultou em nenhuma mudança. E, com a edição do AI- 5, em dezembro de 1968, as atividades do Congresso Nacional foram desarticuladas de tal forma que o prazo regimental para a apresentação das conclusões esgotou-se sem ser cumprido, fato que favoreceu os dirigentes das sociedades arrecadadoras:

O relatório final não chegou a ser submetido à apreciação do Plenário da Câmara e só foi publicado no Diário do Congresso Nacional em julho de 1970, o que não deixou de ser benéfico para os dirigentes autorais, muito embora o desgaste moral fosse irreversível. Por outro lado, o próprio advento do AI-5, que indiretamente livrou o campo autoral das eventuais conseqüências jurídicas da CPI, pode ser tomado como um

410 TORQUATO NETO. Música Popular. JornaldosSports . Suplemento “O Sol”. Rio de Janeiro, 0 2 ago. 1967. 411 ÚLTIMA HORA. Rio de Janeiro, 22 mai. 1968. Apud: MORELLI, Rita de Cássia Lahoz. Arrogantes, anônimos, subversivos: interpretando o acordo e a discórdia na tradição autoral brasileira. Campinas - SP: Mercado das Letras, 2000. p.221. 251

marco a partir do qual o distanciamento do Estado em relação aos dirigentes pioneiros só fez crescer. 412

Durante o governo do General Garrastazu Médici, os dirigentes das sociedades arrecadadoras voltaram a solicitar apoio do governo para regulamentar o direito autoral. Em outubro de 1970, três meses após a publicação do relatório da CPI no Diário do Congresso Nacional, um grupo de dirigentes visitou o Palácio das Laranjeiras para uma audiência com o Presidente Médici. A resposta do General, no entanto, não esclarecia quais medidas seriam adotadas: “Mais uma vez com os senhores farei o jogo da verdade. Mas, se os senhores estiverem com a verdade, serão contemplados”. 413

Assim, sem obter sucesso em suas reivindicações, o debate e as polêmicas sobre os direitos autorais marcaram as décadas seguintes. Em 1971, Torquato Neto retomava a discussão e ampliava o espaço para as denúncias e reivindicações dos compositores por meio da coluna “ Geléia Geral ”, publicada no jornal Última Hora.

Alertando sobre as dificuldades vividas pelos compositores no Brasil, questionava a quantidade de sociedades arrecadadoras, bem como a forma de arrecadação e distribuição dos direitos autorais:

O direito autoral no Brasil vem-se constituindo num grave problema, que afeta diretamente (economicamente) toda uma classe profissional, a dos compositores. O sistema de arrecadação dos direitos autorais é deficiente. Dirigentes das sociedades existentes (quatro: só no Brasil existem tantas) são os primeiros a reconhecer o problema. A existência de quatro sociedades aumenta excessivamente os gastos e descontos que se refletem na distribuição do direito do autor. 414

Na mesma coluna, o autor demonstrava que suas críticas direcionadas às sociedades arrecadadoras provocavam questionamentos dessas entidades e ampliavam a polêmica:

412 ÚLTIMA HORA. Rio de Janeiro, 22 mai. 1968. Apud: MORELLI, Rita de Cássia Lahoz. Arrogantes, anônimos, subversivos: interpretando o acordo e a discórdia na tradição autoral brasileira. Campinas - SP: Mercado das Letras, 2000. p.222. 413 ÚLTIMA HORA. Rio de Janeiro, 22 mai. 1968. Apud: Ibidem. p.224. 414 TORQUATO NETO. Geléia Geral. ÚltimaHora . Rio de Janeiro, 26 ago. 1971. 252

A Sicam, sociedade a que pertenço, quer saber se tenho algo contra ela. Recebi correspondência perguntando. Resposta: Sicam quer dizer: Sociedade Independente de Compositores e Autores Musicais. Era independente. Pelo que sei, transa atualmente com três “grandes” (UBC, SBACEM, Sadembra), para ingresso, talvez imediato, no SDDA. Por que será, se a Sicam sempre, até bem pouco tempo, combatia abertamente o SDDA? O que está acontecendo? Quero saber. E aviso: a Sicam pode, com a publicação dessa nota, encontrar um macete estatutário qualquer para me afastar do seu quadro de sócios. Ou pode tomar providências mais sutis, como – por exemplo – pontuar meus direitos de modo que eu passe a receber uma micharia qualquer. Se acontecer isso, aviso daqui. Isso tem nome e devo dizer: não só a Sicam, mas todas as sociedades costumam tomar esse tipo de “providência” contra os que ousam abrir a boca para reclamar. 415

Denunciando a pressão que sofria em virtude das críticas feitas abertamente à sociedade arrecadadora à qual pertencia, Torquato Neto, além de revelar as dificuldades enfrentadas pelos compositores, também antecipava as possíveis ações que a sociedade levaria a efeito em represália às suas reclamações, segundo ele, uma prática comum entre as sociedades arrecadadoras.

Demonstrando conhecer profundamente o sistema de arrecadação dos direitos autorais, mesmo sofrendo pressões, o autor não amenizava o discurso; muito pelo contrário, as críticas continuavam, como no trecho da mesma coluna em que seguia questionando:

As sociedades (todas) se dizem “rivais” e fazem uma política “externa” de rivalidade. Criticam-se e acusam-se mutuamente. Mas estão unidas agora através do que é chamado “Comissão Intersocietária” (SBAT também). O que será a Comissão Intersocietária ? Pretendem passar por cima do código, atribuindo ao bureau (SDDA) a função fiscalizadora que seria do CONDAC? Isso pode ser bom, mas é preciso que seja feito às claras, com a fiscalização dos compositores. E a função distribuidora, pagadora, fica com quem? Com o SDDA? Com cada sociedade como vem sendo feito até agora? Com o CONDAC? Explicações necessárias. [...] Como são feitas as eleições para a diretoria e conselho fiscal das sociedades? Todos os sócios efetivos, com direito a voto, são avisados a tempo da data das eleições? Perguntem a eles. 416

415 TORQUATO NETO. Geléia Geral. ÚltimaHora . Rio de Janeiro, 26 ago. 1971. 416 Ibidem. 253

Por questionar abertamente o sistema de arrecadação dos direitos autorais e as práticas das sociedades arrecadadoras, exigindo transparência no processo, inclusive de constituição da diretoria e do conselho, por meio de eleições, Torquato Neto foi expulso da Sicam, como já previra em sua coluna do dia 26 de agosto de 1971. A confirmação da expulsão foi anunciada da seguinte forma:

Não me sinto feliz por ter recebido a notícia de minha expulsão da Sicam, sociedade arrecadadora e distribuidora de direitos autorais a que sempre pertenci. Menos feliz ainda em ter sido expulso por engano: nunca me referi à Sicam de maneira “desairosa”, nem que pudesse comprometer a segurança de nenhum dos seus (até poucos meus ) cartolas. Mas andei escrevendo, aqui mesmo em UH, vários comentários rápidos sobre um problema que todos os compositores conhecem bem, pensam em combater e terminam sempre contemporizando com uns e outros e entre eles mesmos. O problema do cartolismo no direito autoral é primo legítimo do outro, mais popular. E precisa ser combatido para que as coisas fiquem mais tranqüilas, não somente lá pras bandas deles. 417

O autor revelava seu desapontamento, embora a expulsão não fosse surpresa, uma vez que já esperava tal atitude da sociedade arrecadadora. Demonstrava ainda a falta de mobilização conjunta dos compositores.

Mesmo após a expulsão da Sicam, Torquato não encerrou o debate em sua coluna sobre os direitos autorais. O tema de interesse e preocupação do autor continuava em discussão e agora de forma “livre”, uma vez que fora afastado da sociedade. Anunciava que as críticas e os questionamentos quanto ao sistema de arrecadação continuariam de forma ainda mais efetiva:

Nunca me referi diretamente à Sicam, cujos mistérios tenho fingido ignorar: o mistério do álbum de carnaval, por exemplo. Esse e outros. Mas avisei daqui mesmo, nesta Geléia, que a Sicam trataria de encontrar um macete estatutário qualquer onde me enquadrar para efeitos de punição. Punição. Só que eu não devo satisfações à Sicam, como a Sicam me pediu (por carta) antes de me expulsar oficialmente (por carta). Aqui – e o pior é ter que dizer isto – eu sou jornalista que, por acaso, pertencia ao quadro de sócios compositores da Sicam. E um colunista meu amigo aqui de perto já havia tomado a palavra

417 TORQUATO NETO. Geléia Geral. ÚltimaHora . Rio de Janeiro, 26 ago. 1971. 254

pra contar que eu não sou compositor. Agora, oficialmente: não estou mais “pertencendo” a nenhuma sociedade brasileira – nem mesmo à Sicam, que é a mais “simpática” delas. Era . Livre e somente jornalista, vou começar a fazer perguntas. O Álbum de Carnaval: quem é quem ali dentro? Quanto rende para a diretoria e “conselho fiscal”, autores de quase todas as músicas? E como são feitas as eleições para a diretoria e “conselho fiscal” da Sicam? E em que nível funciona esse “conselho”? E esses “conselheiros”, como chegaram lá? Ah, ó presidente do “conselho”! Isso não é nada. As perguntas são interessantes, mas o quente são as respostas. E essa história de cartolas, amigo, vai render. 418

Conforme anunciara, Torquato Neto manteve a polêmica em torno dos direitos autorais no Brasil e ampliou o debate:

Tá certo, baby, eu não entendo nada de direito autoral; o que eu sei, todos compositores fora das diversas (quatro) panelonas estão cansados de saber: a bagunça é geral e o cartolismo impera. Aliás: o mistério comanda as operações. Ninguém chega a “saber” de nada, efetivamente. Nada além disso: a patota, a máfia, os cartola são quem sabe de tudo. Eu, não. 419

Com críticas mais severas, o autor continuava a explorar a questão da falta de transparência no sistema de arrecadação dos direitos autorais e a questionar seus mecanismos. Além das críticas sobre o sistema de arrecadação, insistia na organização dos próprios compositores, que, de acordo com o autor, estavam se mobilizando, porém com uma sugestão que, na opinião dele, seria prejudicial – alguns compositores estavam sugerindo a extinção das sociedades. Sobre essa possibilidade, Torquato argumentava:

Por não saber e ficar perguntando fui expulso da sociedade a que pertencia. Dou graças a Deus, embora alguém ainda me deva explicar quem vai pagar o meu repertoriozinho mixuruca que ainda está por lá, e que toca de vez em quando por aí. Mas isso não interessa agora. Interessa é o seguinte: se os compositores estão a fim de algum movimento em torno da questão – e eu li sobre isso aqui mesmo em UH, um dia desses –, a solução que os mais apressadinhos estão transando não

418 TORQUATO NETO. Geléia Geral. ÚltimaHora . Rio de Janeiro, 26 ago. 1971. 419 TORQUATO NETO. Geléia Geral. ÚltimaHora . Rio de Janeiro, 25 nov. 1971. 255

poderia ser pior. Já pensou, Carlos Lyra, em que nível a censura poderia funcionar caso as sociedades fossem dissolvidas para se transformarem num espécie de autarquia? Já pensou Dori? Já pensaram, crianças? 420

Para Torquato, a mudança no sistema de arrecadação de direitos autorais só seria positiva quando os próprios compositores fossem os responsáveis:

É preciso lutar contra a máfia que domina o negócio (transformou-se num tremendo negócio, sim), mas é preciso que os próprios compositores tomem conta dos seus direitos, como acontece em toda parte – menos, compreensivelmente, nos países socialistas. O cartolismo no direito autoral deste lugar é uma praga. A primeira providência lógica seria denunciá-la através da imprensa e adjacências, sem medo de “ofender” estatutos cheios de armadilhas. Sabendo: como toda máfia, é perigosa; mas como todo cartolismo, é corrupto. A missão é desmoralizar os focos da corrupção, e não entregar o assunto às autoridades sugerindo encampações e transformações em autarquias ou outros bichos do gênero burocrático oficial. Aí, amigo... Aí, crianças, o tiro sai pela culatra. E como se não bastasse o que já está acontecendo, a transa ia acontecer mesmo na área econômica, ou, para os “profissionais”, na jogada do tutu. A música popular brasileira anda realmente tão sem caráter que mereça mesmo um presentinho desses? 421

Torquato afirmava que o sistema de arrecadação não poderia continuar a ser comercial e que as denúncias contra as sociedades deveriam favorecer as mudanças necessárias: o combate às práticas corruptas, a moralização do sistema de arrecadação e, consequentemente, a valorização da Música Popular Brasileira.

Durante a década de 1970, as denúncias continuaram a ser feitas e o debate sobre as medidas para regulamentar o sistema de arrecadação prosseguiu. No governo Médici, a comissão organizada no governo Costa e Silva foi encerrada, quando o ministro Cândido Mota Filho apresentou um anteprojeto e o desembargador Milton Sebastião Barbosa e o professor Antonio Chaves apresentaram outro. Diante do impasse, o Presidente Médici encarregou o

420 TORQUATO NETO. Geléia Geral. ÚltimaHora . Rio de Janeiro, 25 nov. 1971. 421 Ibidem. 256

Procurador-geral da República, José Carlos Moreira Alves, de elaborar um novo projeto de lei. 422

O projeto de lei foi aprovado em 14 de dezembro de 1973 pelo Congresso Nacional sob a Lei nº 5.988, beneficiando não os compositores, mas a indústria fonográfica:

[...] foi a grande realização modernizadora dos governos militares no campo autoral, bem como sua intervenção mais autoritária, dado que muitas emendas apresentadas por parlamentares não chegaram a ser apreciadas em razão do curto prazo de sua tramitação, enquanto emendas propostas pelas próprias entidades autorais não parecem ter sequer existido. Mais do que isso, ao sancioná-la, o presidente vetou um artigo que tinha sido incluso pelo deputado oposicionista Franco Montoro por meio de uma das poucas emendas que o Congresso lograva aprovar: atendendo aos pedidos que lhe haviam sido encaminhados neste sentido pela ABPD (Associação Brasileira de Produtores de Disco), Garrastazu Médici deixou assim de instituir a numeração de discos no país, medida que interessava de perto aos autores por implicar algum controle sobre a vendagem dos fonogramas de suas obras e consequentemente sobre o pagamento de seus direitos fonomecânicos pelas gravadoras. 423

A nova lei centralizava a arrecadação e a distribuição de direitos autorais no Escritório Central de Arrecadação e Distribuição - Ecad, a partir de nova tabela de valores, instituindo a cobrança percentual sobre o faturamento das empresas usuárias de música, resultando em mudanças na distribuição dos valores. Além disso, criava o Conselho Nacional de Direito Autoral - CNDA, que normatizaria a atividade autoral no Brasil. Dessa forma, a legislação interferia na distribuição dos valores arrecadados e na organização interna das sociedades arrecadadoras.

Durante a década de 1970, muitos compositores defenderam a proposta de estatização das entidades arrecadadoras como solução para os problemas e as inúmeras discussões sobre os direitos autorais. Contudo, o projeto de estatização era também motivo de polêmica, pois muitos compositores discordavam da aproximação com o governo autoritário.

422 Cf.: MORELLI, Rita de Cássia Lahoz. Arrogantes, anônimos, subversivos: interpretando o acordo e a discórdia na tradição autoral brasileira. Campinas - SP: Mercado das Letras, 2000. p.225 . 423 Ibidem. p.226. 257

Apesar das divergências sobre o tema da estatização, muitos compositores se sentiram encorajados com a transição presidencial e a posse do General Ernesto Geisel. Confiando no processo de abertura política anunciado pelo novo Presidente, diversos representantes da MPB aproximaram-se do governo com o projeto de estatização e foram ouvidos pelo Ministro da Educação, Ney Braga:

[...] o novo ministro interpelou alguns deles como interlocutores privilegiados do governo nessa área. Depois de haver enviado assessores para conversar com Eduardo Gudin e Tereza Souza em São Paulo, chamou Chico Buarque, Gutemberg Guarabira, Hermínio Bello de Carvalho, Jards Macalé, Sérgio Ricardo e outros para ter com ele em Brasília. 424

Nesse contexto, os defensores da estatização da arrecadação dos direitos autorais fundaram, em 1975, uma nova sociedade arrecadadora: a Sociedade Musical Brasileira - Sombras, sob a presidência de Sérgio Ricardo e vice-presidência de Hermínio Bello de Carvalho. Entre os associados estavam: Antonio Carlos Jobim, Luiz Gonzaga Jr., Victor Martins, Aldir Blanc, Jards Macalé, Gutemberg Guarabira, Maurício Tapajós, Caetano Veloso, Claúdio Guimarães, Ivan Lins, Paulinho da Viola, Milton Nascimento, Joyce, Antonio Carlos Moraes, Geraldo Carneiro, Sueli Costa, Ruy Maurity, Jorge Amiden, Vital Farias, José Carlos Capinam, Gilberto Gil e Chico Buarque de Holanda.

A nova sociedade arrecadadora – Sombras – tinha como propósito agrupar independentemente autores, criadores e intérpretes de música ou letra. Constituída como sociedade civil sem fins lucrativos, seu princípio fundamental era preservar, estudar e divulgar a música brasileira e defender os direitos por ela gerados. 425

A fundação da nova sociedade não só revela as divergências entre os compositores brasileiros, como a continuidade do projeto de mudanças na arrecadação dos direitos autorais, que permanecia em amplo debate. A reação das demais sociedades à criação da Sombras acirrava a polêmica, pois a maioria dos associados da nova entidade havia rompido com a Sicam e exigia judicialmente

424 MORELLI, Rita de Cássia Lahoz. Arrogantes,anônimos,subversivos: interpretando o acordo e a discórdia na tradição autoral brasileira. Campinas - SP: Mercado das Letras, 2000. p.312. 425 AUTRAN, Margarida. O Estado e o músico popular: de marginal a instrumento. In: NOVAES, Adauto (Org.). Anos70: ainda sob a tempestade. Rio de Janeiro: Aeroplano/ SENAC, 2005. p.91. 258

prestação de contas da sociedade. Por essa razão, passaram a ser denominados de “subversivos”.

Reagindo às críticas feitas pela Sicam à fundação da nova sociedade, e negando o seu caráter “subversivo”, Gilberto Gil respondeu:

O que estamos fazendo nada tem a ver com fatos de alguns anos atrás. Hoje somos todos homens maduros, com 30 anos, eu, Chico, Jorge Ben, Jair Rodrigues, Elis, Caetano, Tom. Todos adultos, pais de filhos, responsáveis, cidadãos que se relacionam em vários níveis com a sociedade, com as instituições, que pagam imposto de renda, têm seus documentos em dia, têm passaporte. Está tudo certo.426

Ainda negando o caráter “subversivo” e respondendo às críticas sobre a aproximação com o Estado autoritário, que na década de 1960 seus associados combatiam, o presidente da Sombras, Sérgio Ricardo, afirmou:

O Governo está praticamente propondo um diálogo. Precisaríamos nos organizar para dialogar no mesmo nível e para sabermos exatamente, concretamente, com a maior representatividade possível, o que é que nós realmente queremos. Ou será desta vez ou então sabe-se lá quando. Talvez nossos filhos, com outra visão, outra cultura, rindo da nossa burrice. 427

Contudo, a aproximação da Sombras com o governo, criticada por muitos , não foi suficiente para resolver os problemas de arrecadação dos direitos autorais, pois a nova sociedade não obteve o apoio do Estado em razão da aliança do governo com os grandes e modernos meios de comunicação. A nova sociedade foi desativada e um incêndio na sua sede – o MAM – queimou toda a sua documentação e arquivos.

426 Declaração de Gilberto Gil publicada no Jornal da Tarde , 06 fev. 1975. Apud: MORELLI, Rita de Cássia Lahoz. Arrogantes, anônimos, subversivos: interpretando o acordo e a discórdia na tradição autoral brasileira. Campinas - SP: Mercado das Letras, 2000. p.315. 427 Declaração de Sérgio Ricardo publicada no Jornal Folha de São Paulo , 1º jan. 1975. Apud: Ibidem. p.317. 259

Apesar do fracasso, a Sombras contribuiu para o processo de mobilização e conscientização dos compositores e intérpretes. O “projeto ” foi resultado desse processo:

O projeto surgiu de uma idéia de Hermínio Bello de Carvalho, baseado no sucesso da série de shows Seis e meia , levada ao palco do Teatro João Caetano, no Rio, entre 1976 e 78. Em dois anos (1978/79), o Projeto realizou 1.468 espetáculos, levados a diversas capitais do país, onde foram vistos por mais de um milhão de pessoas. 428

Não obstante as iniciativas dos compositores e intérpretes brasileiros, os interesses da indústria fonográfica foram atendidos, novamente, durante o governo Figueiredo, que, ao sancionar a Lei nº 6.800, em 1980, reintroduziu o capítulo relativo à utilização de fonogramas, vetado anteriormente pelo governo Médici. Mas não o fez para instituir a numeração de discos, e sim para criar um selo de proteção dos fonogramas contra a pirataria:

A proteção dos interesses dos produtores de fonogramas contra a cópia ilegal de seus produtos seria ampliada ainda uma vez pelo presidente Figueiredo em 1980, com a assinatura do Decreto nº 6.895, que alterava artigos do Código Penal para neles incluir a pirataria como crime. 429

Enfim, nota-se que as medidas adotadas pelos governos militares não atendiam às reivindicações dos autores musicais. As iniciativas surgidas desde o governo Castelo Branco até a presidência de João Baptista Figueiredo revelaram que os militares não estavam dispostos a provocar mudanças significativas no sistema de arrecadação dos direitos autorais. Dessa forma, as reclamações, divulgadas amplamente nos colunas de Torquato Neto, não atendidas – entre elas, o controle na importação de matrizes estrangeiras, o apoio à indústria nacional, a observância do decreto que estipulava a percentagem de execução obrigatória de música brasileira, a isenção de taxas para importação de instrumentos por músicos

428 AUTRAN, Margarida. O Estado e o músico popular: de marginal a instrumento. In: NOVAES, Adauto (Org.). Anos70: ainda sob a tempestade. Rio de Janeiro: Aeroplano/ SENAC, 2005. p.92. 429 Cf.: NOVAES, Adauto (Org.). Anos 70: ainda sob a tempestade. Rio de Janeiro: Aeroplano/ SENAC, 2005. p.227. 260

profissionais e estudantes de música, a inclusão do ensino de música popular nas escolas da Educação Básica e, principalmente, a liberdade de expressão 430 – continuariam a ser feitas pelas décadas seguintes.

430 AUTRAN, Margarida. O Estado e o músico popular: de marginal a instrumento. In: NOVAES, Adauto (Org.). Anos70: ainda sob a tempestade. Rio de Janeiro: Aeroplano/ SENAC, 2005. 261

CAPÍTULOV“DESAFINANDO O CORO DOS CONTENTES”

Quando eu nasci um anjo louco muito louco veio ler a minha mão não era um anjo barroco era um anjo muito louco, torto com asas de avião eis que esse anjo me disse apertando a minha mão com um sorriso entre dentes vai bicho desafinar o coro dos contentes vai bicho desafinar o coro dos contentes let’s play that

Let’splaythat

Torquato Neto & Jards Macalé

262

Neste capítulo analisa-se a produção musical de Torquato Neto. Embora tenha sido um participante ativo do movimento tropicalista, Torquato não foi a figura mais reconhecida do grupo, pois não era intérprete, nem músico; limitava-se a escrever letras de canções, definia-se como “letrista”. Para a análise, após a seleção, as letras foram divididas por temas, que serviram de critério para a estruturação do capítulo. Vale ressaltar que, em razão do caráter polissêmico, o documento musical possibilita uma série de interpretações e significados. Portanto, a análise das letras apresentada neste capítulo refere-se a uma possibilidade de leitura entre os múltiplos sentidos presentes na produção de Torquato Neto.

O texto está dividido em três itens. No primeiro, intitulado “ Tropical Melancolia ”, examina-se a temática do amor, o discurso melancólico e depressivo observado nas letras de Torquato, temática mais evidente em sua produção.

No segundo item “ O dia-que-virá ”, o foco está nas letras que revelam características da “canção de protesto”. Nesse item procura-se identificar as semelhanças e diferenças entre a produção de Torquato e os compositores Edu Lobo e Geraldo Vandré, considerados representantes da canção “engajada”.

E, por fim, no último item, “ A alegria é a prova dos nove ”, estuda-se a produção “tropicalista” de Torquato Neto, autor de letras de relevo do movimento, com destaque para: “ Geléia Geral” , considerada “hino-manifesto” do grupo, “Marginália II” , “ Mamãe Coragem ” e “ Deus vos salve esta casa santa” , interpretadas por Gilberto Gil e Caetano Veloso.

263

5.1 - TROPICAL MELANCOLIA

Apesar da notável ampliação dos estudos históricos que adotam a canção como documento – principalmente a partir dos anos 90 –, as dificuldades enfrentadas no procedimento metodológico para análise desse tipo de fonte são evidentes e alvo de discussões. Por tratar-se de documentos apenas recentemente incorporados aos estudos, faltam trabalhos que explicitem “ como” inserir as músicas ou letras na análise histórica. Explicitando as dificuldades enfrentadas por muitos estudiosos e, ao mesmo tempo, indicando particularidades metodológicas para a análise da canção, observou-se que:

Quase sempre, ao menos na área de humanidades (sobretudo história), o pesquisador opta por analisar a “letra” da canção, priorizando esta instância como a sua base de leitura crítica. Este recorte, por mais justificado que seja traz em si alguns problemas: além de reduzir o sentido-global da canção, desconsidera aspectos estruturais fundamentais da composição deste sentido, como o arranjo, a melodia, o ritmo e o gênero. Muitas vezes o impacto e a importância social da canção estão na forma como ela articula a mensagem verbal explícita à estrutura poético-musical como um todo.431

Há ainda várias outras formas de analisar a canção como fonte no ofício do historiador, entre elas a análise semiótica, que busca seus significados simbólicos, e a análise musical propriamente dita, ou seja, a leitura da partitura ou das notas musicais, examinando-se a composição musical, literalmente. Porém, a metodologia de análise das canções por esse aspecto requer a formação musical do pesquisador.

Admitindo a canção como um todo, com sentido expresso no conjunto – letra, arranjo, melodia, ritmo, gênero e interpretação –, tornar-se-ia difícil analisar a produção de Torquato Neto, uma vez que produziu apenas letras, sem musicá-las ou interpretá-las. Portanto, mesmo reconhecendo a necessidade de empregar os procedimentos metodológicos que consideram a canção – conjunto de sentidos –, o

431 NAPOLITANO, Marcos. História & Música: História cultural da música popular. 2ªed. Belo Horizonte: Autêntica, 2005. p.96. 264

estudo das fontes selecionadas privilegia a “letra”, reconhecendo a redução de seu “sentido-global” na análise.

A produção musical de Torquato foi significativa, pois se observa que, entre 1965 a 1972, compôs 38 canções, com parcerias variadas, tanto de representantes do Tropicalismo como de outras tendências musicais. Os parceiros mais notáveis foram: Gilberto Gil – principal parceiro e quem mais gravou suas letras –, Caetano Veloso, Edu Lobo, Geraldo Vandré, João Bosco, Chico Enói, Carlos Monteiro de Souza, Geraldo Azevedo, Carlos Pinto, Roberto Menescal, Carlos Galvão e Jards Macalé.

Muitos textos de Torquato Neto não foram produzidos para serem lidos, mas para serem cantados. É o caso dos que apresentam uma especificidade da letra de música, pela tendência à oralidade e pelo seu caráter de dependência da música. Os refrões, as repetições, os paralelismos, a linguagem direta e simples e a carência de recursos gráficos significativos confirmam os traços característicos de letras de música. 432

A temática mais recorrente na produção musical de Torquato Neto foi o amor, totalizando 19 canções com esse tema. Suas letras apresentam as “dores de amor”: amores não correspondidos, perdidos, desilusão, solidão e a eterna busca do ser amado.

Além da constelação de traços que marcam a poética torquatiana: a nostalgia, o pessimismo, a dor, a presença da figura feminina – da companheira – assume o espaço de cumplicidade ao compartilhar dos sabores e dissabores da viagem por caminhos tortuosos da resistência. 433

Semelhante à produção dos anos 50, do período pré-Bossa Nova, o tom é sempre melancólico, triste e frustrado nas letras de Torquato Neto que enfatizam o

432 ANDRADE, Paulo. TorquatoNeto: uma poética de estilhaços. São Paulo: Annablume/ FAPESP, 2002. p.48. 433 Ibidem. p.97. 265

amor. Conta apenas as amarguras dos relacionamentos malsucedidos, como no “samba-canção” 434 :

Esses sambas falavam de amores impossíveis, paixões proibidas, infidelidades e esperas sem fim. Muitos outros compositores desse estilo, como Lupicínio Rodrigues, Herivelto Martins e Antonio Maria, também cantaram incontáveis vezes o tema da dor de amor, do amor vencido pelas barreiras de toda sorte, mas Dolores Duran foi uma porta-voz especial e sensível das inquietações e frustrações amorosas de seu tempo e lugar. 435

A primeira letra escrita por Torquato já evidencia a temática do “amor e dor”:

MEUCHOROPRAVOCÊ1965 (Torquato Neto e Gilberto Gil) Há quanto tempo já não tenho mais Ninguém pra mim para me dar tanto amor Como o amor que perdi tanto tempo perdi Procurando encontrar outro alguém por aí Por onde andei cansei de procurar Vê, não encontrei você Não encontrei Mas ninguém que amou demais Nunca mais vai poder amar O amor que a gente perde um dia Nunca mais na vida de novo se tem Ah! Escute bem e saiba logo de uma vez Que nunca ninguém nesse mundo Me fará feliz como você me fez Que nunca ninguém nesse mundo Me fará feliz como você me fez Aí meu amor

434 Para uma análise sobre o “samba-canção”, consultar: SEVERIANO, Jairo. Uma história da Música Popular Brasileira: das origens à modernidade. São Paulo: Editora 34, 2008. p.288- 301. CASTRO, Ruy. Samba-canção, uísque e Copacabana. In: DUARTE, Paulo Sérgio; NAVES, Santuza Cambraia (Orgs.). DosambacançãoàTropicália . Rio de Janeiro: Relume Dumará/ FAPERJ, 2003. p.15-24. TINHORÃO, José Ramos. MúsicaPopular: um tema em debate. 3ªed. São Paulo: Editora 34, 1997. p.51-5. 435 MATOS, Maria Izilda Santos de. DoloresDuran: experiências boêmias em Copacabana nos anos 50. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1997. p.79. 266

A letra de Torquato Neto feita em parceira com Gilberto Gil relata as angústias vividas por quem “amou demais” e perdeu o amor: “há quanto tempo já não tenho mais/ ninguém pra mim pra me dar tanto amor/ como o amor que perdi tanto tempo perdi/ procurando encontrar outro alguém por aí/ por onde andei cansei de procurar”. O tom é saudosista e desiludido, o amor perdido não volta e nunca mais será revivido: “não encontrei você/ mas ninguém que amou demais/ nunca mais vai poder amar/ o amor que a gente perde um dia/ nunca mais na vida de novo se tem”.

O discurso da espera do ser amado foi temática de outra letra:

MINHASENHORA1966

Minha senhora Onde é que você mora Em que parte desse mundo Em que cidade escondida Dizei-me que sem demora Lá também quero morar Onde fica essa morada Em que reino, qual parada Dizei-me por qual estrada É que devo caminhar Minha senhora Onde é que você mora Venho da beira da praia Quantas prendas que eu lhe trago Pulseira, sandália, e saia Sem saber como entregar Quer chegar sem demora Nessa cidade encantada Dizei-me logo senhora Que essa chegança me agrada

Musicada por Gilberto Gil, na letra a mulher amada – Minha Senhora – é idealizada: “onde é que você mora/ em que parte desse mundo/ em que cidade escondida/ dizei-me que sem demora/ lá também quero morar”. A mulher que ele espera ainda não é conhecida, precisa revelar-se, pois ele não sabe onde procurá- la: “dizei-me por qual estrada/ é que devo caminhar” . Assim,

267

A amada torna-se o mote da procura do poeta. Se o amor e, especialmente a paixão, é uma aventura, uma viagem para a descoberta do inesperado, rumo a novos caminhos do conhecimento e da sensibilidade, é também uma transgressão, pois foge aos limites da razão e desafia a ordem estabelecida. Separado, pelo espaço e tempo, da musa, que mora numa “cidade encantada”, o poeta clama pela sua presença para que, juntos, possam vivenciar os mesmos ideais. 436

Outra letra que traz essa temática e refere-se à mulher de forma idealizada é “Zabelê ”, também musicada por Gilberto Gil: “A essência do discurso romântico de ‘Minha Senhora ’ ressoa e permanece em ‘ Zabelê ’, cuja letra é uma composição lírica que difere em ritmo e estilo da primeira, embora revele um amor puro e ingênuo.” 437

ZABELÊ1966 Minha sabiá Minha zabelê Toda meia-noite Eu sonho com você Se você duvida Eu vou sonhar pra você ver Minha sabiá Vem me dizendo por favor O quanto eu devo amar Pra nunca morrer de amor Minha zabelê Vem correndo me dizer Porque eu sonho toda noite E sonho só com você Se você não acredita Vem pra cá Vou lhe mostrar Que riso largo é o meu sonho Quando eu sonho Com você Mas anda logo Vem que a noite já não tarda a chegar Vem correndo Pro meu sonho escutar Que sonho falando alto Com você no meu sonhar

436 ANDRADE, Paulo. TorquatoNeto: uma poética de estilhaços. São Paulo: Annablume/ FAPESP, 2002. p.48. 437 Ibidem. p.99. 268

Notam-se semelhanças entre as canções “ Minha Senhora ” e “ Zabelê ”. Nas letras de ambas “a musa é difusa, sonhada e inalcançável, e o poeta é puramente romântico, sempre aguardando o momento do encontro que levaria à revelação e ao repouso” 438 .

Também no ano de 1996, em parceria com Edu Lobo, Torquato Neto referia- se novamente à busca e espera do amor:

LUANOVA1966 (Torquato Neto e Edu Lobo)

É lua nova É noite derradeira Vou passar a vida inteira Esperando por você Andei perdido Nas veredas da saudade Veio o dia, veio a tarde Veio a noite e me cobriu É lua nova Nessa noite derradeira Vou-me embora dentro dela Perguntar por quem te viu É lua nova É noite derradeira Vou passar a vida inteira Esperando por você Essa noite é que é meu dia Essa lua é quem me guia E você é meu amor Vou pela estrada tão comprida Que me diz não ser perdida Essa viagem em que eu vou É lua nova É noite derradeira Vou passar a vida inteira Esperando por você

Na letra aparece a figura do ser solitário que espera o ser amado. Uma espera árdua, longa, que talvez não termine: “vou pela estrada tão comprida/ [...] vou passar a vida inteira/ esperando por você ”.

438 BUENO, André. Pássarodefogonoterceiromundo . O poeta Torquato Neto e sua época. Rio de Janeiro: 7Letras, 2005. p.147. 269

A escolha de seguir sozinho pela estrada solitária, da morte, palavra que novamente aparece velada, se repete em “Lua Nova”, agora de modo explícito, quando o poeta se despede da amada para ir embora, dentro da “noite derradeira”.439

As angústias do viver na solidão, do amor que se viveu, mas se perdeu, também aparecem na letra da seguinte canção:

PRADIZERADEUS1966 Adeus Vou pra não voltar E aonde quer que eu vá Sei que vou sozinho Tão sozinho amor Nem é bom pensar Que eu não volto mais Desse meu caminho Ah, pena eu não saber Como te contar Que o amor foi tanto E no entanto eu queria dizer Vem Eu só sei dizer Vem Nem que seja só Pra dizer adeus

Nessa composição, o “sentido-global” torna-se fundamental para a leitura, evidenciando a redução da análise quando se considera apenas a letra:

[...] um clássico da Bossa Nova. [...] Lida a letra dessa canção é de uma enorme simplicidade, pode-se dizer que é mesmo quase banal. Cantada, como aliás todos a conhecem ganha outro sentido. A força de Pra dizer adeus não está propriamente no tema da separação dos amantes, comum e muito explorado, mas sim no clímax, nos versos que fecham a segunda estrofe, que marcam o supremo paradoxo da separação dos amantes, em que a presença de quem já foi perdido é desejada, uma vez ainda, nem que seja só pra dizer adeus .440

439 ANDRADE, Paulo. TorquatoNeto: uma poética de estilhaços. São Paulo: Annablume/ FAPESP, 2002. p.108. 440 BUENO, André. Pássarodefogonoterceiromundo . O poeta Torquato Neto e sua época. Rio de Janeiro: 7Letras, 2005. p.147. 270

O autor lamenta também o amor não correspondido, mas continua esperançoso na busca do verdadeiro amor. Porém, impõe condições: pode entrar se for de paz e de amor, mas se também trouxer tristezas, então é melhor que siga seu caminho, pois está cansado de sofrer - “que de triste neste mundo, já me basto a mim sozinho”.

RANCHODABOAVINDA1966 Quem vem lá, faça o favor De dizer por que é que vem Se é de paz e se é de amor Pode entrar, que eu sou também Se a tristeza já deixou Bem pra lá do meu portão Pode entrar, pode dispor Faça o rancho do meu coração Tanto amor tenho pra dar Só que não achei pra quem Se você vem pra passar E traz tristezas também Melhor então nem entrar Melhor seguir seu caminho Que de triste neste mundo Já me basto a mim sozinho Quem vem lá faça o favor De dizer por que é que vem Se é de paz e se é de maior Pode entrar que eu sou também Se a tristeza já deixou Bem lá do meu portão Pode entrar, pode dispor Faço o rancho do meu coração Faço o rancho do meu coração Faça o rancho do meu coração!

NENHUMADOR1967 (Torquato Neto e Caetano Veloso)

Minha namorada tem segredos Tem nos olhos mil brinquedos De magoar o meu amor Minha namorada muito amada Não entende quase nada Nunca vem de madrugada Procurar por onde estou É preciso ó doce namorada Seguirmos firmes na estrada Que leva a nenhuma dor Minha doce e triste namorada 271

Minha amada idolatrada Salve Salve O nosso amor

Na letra de “ Nenhuma dor ”, de 1967, Torquato Neto, em parceria com Caetano Veloso, além de explorar a temática do amor malsucedido, já evidencia a “marca” tropicalista da paródia: “amada idolatrada/ salve/ salve” , fazendo referência ao hino nacional - “pátria amada/ idolatrada/ salve/ salve ”.

Mesmo em meio ao clima eufórico da festa tropicalista, as letras de música de Torquato deixam transparecer um desencanto em relação ao mundo e ao seu país. Na produção como letrista da época, a tristeza é incorporada ao humor e à ironia, transformando a voz pessimista do poeta em tom sarcástico. 441

Mantendo a temática do amor perdido, Torquato, em parceria com João Bosco e Chico Enói, em 1967, explorou as dores da separação, após o desentendimento e a tentativa de reconciliação, porém, sem sucesso:

FIQUESABENDO1967 (Torquato Neto, João Bosco e Chico Enói)

Você Sabe bem que o nosso amor Já fez tempo se acabou E mesmo assim Você Faz questão de reviver Esse tempo tão ruim Pra você, também pra mim Ah, você Se esqueceu de compreender Que é preciso ser feliz E vem dizer Que eu nunca quis perdoar Quem é você pra duvidar Já me cansei de explicar Não tem mais jeito não Me tranqüiliza o coração

441 ANDRADE, Paulo. TorquatoNeto: uma poética de estilhaços. São Paulo: Annablume/ FAPESP, 2002. p.82. 272

Nessa letra percebe-se a mudança do discurso: a mensagem é de superação. Após considerar que “ não tem mais jeito não” , o autor afirma: “é preciso ser feliz” . Na busca da felicidade, o encontro com o ser amado seria fruto do acaso, ou seja, da sorte. Pois o encontro seria inesperado.

COISAMAISLINDAQUEEXISTE1968

Coisa mais linda nesse mundo É sair por um segundo E te encontrar por aí E ficar sem compromisso Pra fazer festa ou comício Com você perto de mim Na cidade em que me perco Na praça em que me resolvo Na noite da noite escura É lindo ter junto ao corpo Ternura de um corpo manso Na noite da noite escura A coisa mais linda que existe É ter você perto de mim O apartamento, o jornal O pensamento, a navalha A sorte que o vento espalha Essa alegria, o perigo Eu quero tudo contigo Com você perto de mim Coisa mais linda nesse mundo É sair por um segundo E te encontrar por aí Pra fazer festa ou comício A coisa mais linda que existe É ter você perto de mim

Na letra, destaca-se a cidade – “em que me perco ” –, a realidade dos centros urbanos, marcados pela aglomeração e pelo movimento intenso, e os hábitos cotidianos de seus moradores: a leitura do jornal feita nos apartamentos. A praça – “em que me resolvo ” – aparece como ponto de encontro, de reunião, da vivência no espaço público e coletivo. Também uma referência à movimentação do início dos anos 60 – as passeatas, os protestos e os espetáculos realizados nas praças das capitais brasileiras. A análise da letra também sugere que “o clima da 273

canção é inseparável de um sentimento de que tudo era possível – fazer festa ou comício” 442 .

Percebe-se ainda no discurso de Torquato que mesmo o encontro com o ser amado não faria cessar as angústias, a dor e o sofrimento. O tom de seu discurso é sempre nostálgico e melancólico, pois existe o medo da perda.

CANTIGA1968

Sabe amor eu te amo tanto, tanto Que esta minha vida Sem você Seria para sempre triste E eu nem sei se existe Vida assim que alguém possa viver Meu bem eu te amo tanto Que vou dizer Daria minha vida Pra não te perder QUASEADEUS1970 (Torquato Neto e Carlos Monteiro de Souza)

Quase adeus Pra quem vai ficar Quase adeus Quase adeus Quase chorar Volto a ver Um novo amanhecer Como se o amanhecer Fosse acabar Volto a ouvir a voz De quem não fala mais Se um tempo que passou e não valeu Ah, tudo com está Quase terminar Quase adeus

Em todas as letras em que Torquato Neto descreveu o amor, este foi associado à dor, causada pela perda do ser amado, solidão, ressentimento, espera, busca e frustração. O discurso é sempre triste, pois a busca não termina e o ser amado não é encontrado. O sentimento de solidão fica evidente.

442 BUENO, André. Pássarodefogonoterceiromundo . O poeta Torquato Neto e sua época. Rio de Janeiro: 7Letras, 2005. p.156. 274

Outra temática que aparece nas suas letras refere-se à cidade. Torquato faz o registro da paisagem urbana por onde o transeunte circula. É preciso considerar que o autor era um migrante e emigrante. Deixou Teresina, no Piauí, e mudou-se, primeiro para Salvador, em 1962, de onde se transferiu para o Rio de Janeiro. No final da década de 1960, deixou o Brasil num autoexílio, permanecendo por dois anos na Europa, primeiro em Londres e depois Paris.

Portanto, é preciso levar em conta seu olhar “estrangeiro” acerca das cidades onde morou. A paisagem urbana é “captada” primeiro pelo migrante nordestino, que deixa uma região “provinciana” para encontrar os grandes centros urbanos. A estranheza e, ao mesmo tempo, o sentimento de “não pertencimento” devem ser considerados na leitura.

Vagando pelo mundo, Torquato traz na bagagem a “malamágica” em que os “fios da viagem” e os “fios da linguagem” se entrecruzam tecendo a margem da margem de um caminho. Conquistar a cidade grande – o Rio de Janeiro – é para o poeta destrancar-se do “lado de dentro” para ver, ouvir e cantar o “lado de fora”. Fotografando a paisagem, registrando imagens, o poeta está compondo um roteiro da vida. No espaço coletivo da cidade, no silêncio da sua interação com a ordem da “geléia geral”, Torquato está à procura do sentido mais profundo da vida, ou seja, está em busca de um lugar para si no mundo. [...] Pelo labirinto das ruas do Rio de Janeiro o poeta “viaja” sozinho, construindo uma passagem individual entre o “lado de dentro” e o “lado de fora”, para viver a aventura limiar entre a vida e a morte. 443 ARUA1966 Toda rua tem seu curso Tem seu leito de água clara Por onde passa a memória Lembrando histórias de um tempo Que não acaba De uma rua de uma rua Eu lembro agora Que o tempo ninguém mais Ninguém mais canta Muito embora de cirandas

443 ALMEIDA, Laura Beatriz Fonseca de. Um poeta na medida do impossível – trajetória de Torquato Neto. Tese (Doutorado em Teoria Literária e Literatura Comparada), FFLCH-USP, São Paulo, 1993. p.59, 62. 275

(oi de cirandas) e de meninos correndo Atrás de bandas Atrás de bandas que passavam Como o rio Parnaíba Rio manso Passava no fim da rua E molhava seus lajedos Onde a noite refletia O brilho manso O tempo claro da lua Ê São João ê Pacatuba Ê rua do Barrocão Ê Parnaíba passando Separando a minha rua Das outras, do Maranhão De longe pensando nela Meu coração de menino Bate forte como um sino Que anuncia procissão Ê minha rua meu povo Ê gente que mal nasceu Das dores que morreu cedo Luzia que se perdeu Macapreto Zé Velhinho Esse menino crescido Que tem o peito ferido Anda vivo, não morreu Ê Pacatuba Meu tempo de brincar Já foi-se embora Ê Parnaíba Passando pela rua Até agora Agora por aqui estou Com vontade E eu volto pra matar Essa saudade Ê São João, ê Pacatuba Ê rua do Barrocão

Na extensa composição o autor rememora o tempo vivido evocando a paisagem urbana. Na letra a cidade é lugar de memória. O tom é saudosista, pois lamenta um tempo – passado – que não existe mais: “meu tempo de brincar/ já foi- se embora” . Denota saudades de casa, do menino que deixou a cidade natal em busca da cidade grande, do centro urbano, que retornou crescido e com o peito ferido, e observa o que mudou. Faz referências aos habitantes – personagens: “Luzia que se perdeu”. 276

Pode ser situado, como parte da boa tradição poética brasileira, que vem do romantismo e do modernismo, dedicada à memória, à idade natal, à infância perdida. [...] A rua da infância é a rua da memória. [...] Teresina, ainda, é uma memória feliz. 444

A paisagem urbana ressurge como tema em outra letra produzida por Torquato Neto:

DOMINGOU1967

São três horas da tarde É domingo Da janela a cidade se ilumina Como nunca jamais se iluminou São três horas da tarde É domingo Na cidade, no Cristo Redentor - ê, ê É domingo no trole do parque É domingo na moça e na praça É domingo, ê, ê, Domingou, meu amor Hoje é dia de feira É domingo Quanto custa hoje em dia o feijão São três horas da tarde É domingo Em Ipanema e no meu coração - ê, ê É domingo no Vietnã Na Austrália, em Itapuã É domingo, ê, ê, Domingou, meu amor Quem tiver coração mais aflito Quem quiser encontrar seu amor Dê uma volta na praça do Lido Ê esquindô, ê esquindô, ô esquindô - lê-lê Quem quiser procurar residência Quem está noivo, já pensa em casar Pode olhar o jornal, paciência Tra-lá-lá, tra-lá-lá, ê, ê O jornal de manhã chega cedo Mas não traz o que eu quero saber As notícias que leio conheço Já sabia antes mesmo de ler - ê, ê Qual o filme que você quer ver - ê, ê Que saudade, preciso esquecer - ê, ê É domingo, ê, ê,

444 BUENO, André. Pássarodefogonoterceiromundo . O poeta Torquato Neto e sua época. Rio de Janeiro: 7Letras, 2005. p.148-9. 277

Domingou, meu amor Tanta gente que vai e que vem São três horas da tarde, É domingo Vamos dar um passeio também - ê, ê O bondinho viaja tão lento Olha o tempo passando Olha o tempo É domingo, outra vez Domingou, meu amor É domingo, outra vez Domingou, meu amor É domingo, outra vez Domingou, meu amor

Em “ Domingou ” o autor enumera alguns pontos turísticos do Rio de Janeiro, como a estátua do Cristo Redentor, Ipanema e o bondinho do Pão de Açúcar. Além de fazer referências a outros lugares como Itapuã, na Bahia, Vietnã e Austrália. A letra assemelha-se com a canção de Caetano Veloso, também de 1967, “ Alegria, Alegria ”, que retrata um transeunte circulando pela cidade e os detalhes daquilo que vê.

O poeta tem a alma ferida pela palavra que foi calada. Longe das ruas assiste à força da natureza anunciar, indiferente à sua dor, uma tarde ensolarada de domingo. A harmonia da paisagem do “lado de fora” invade sua privacidade e mexe com o seu coração. Lá fora é domingo, mas a alma do poeta apenas “domingou”. 445

A temática do transeunte que vagueia pela cidade foi referência também para a letra da seguinte canção:

AIDEMIM,COPACABANA1968

Um dia depois do outro Numa casa abandonada Numa avenida Pelas três da madrugada Num barco sem vela aberta Nesse mar

445 ALMEIDA, Laura Beatriz Fonseca de. Um poeta na medida do impossível – trajetória de Torquato Neto. Tese (Doutorado em Teoria Literária e Literatura Comparada), FFLCH-USP, São Paulo, 1993. p.64. 278

Nem mar sem rumo certo Longe de ti Ou bem perto É indiferente, meu bem Um dia depois do outro Ao teu lado ou sem ninguém No mês que vem Neste país que me engana Ai de mim, Copacabana Ai de mim: quero Voar no concorde Tomar o vento de assalto Numa viagem num salto (você olha nos meus olhos E não vê nada - É assim mesmo Que eu quero ser olhado). Um dia depois do outro Talvez no ano passado É indiferente Minha vida tua vida Meu sonho desesperado Nossos filhos nosso fusca Nossa butique na augusta O ford galaxie, o medo De não ter um Ford galaxie O táxi, o bonde a rua Meu amor, é indiferente Minha mãe, teu pai, a lua Nesse país que me engana Ai de mim, Copacabana Ai de mim, Copacabana Ai de mim, Copacabana Ai de mim

Na letra de “ Ai de mim, Copacabana ” observa-se um recurso “tropicalista”: a paródia do poema “ Ai de Ti, Copacabana ”. 446 Na paisagem urbana, no famoso bairro de Copacabana, Rio de Janeiro, um transeunte “perambula” às três horas da manhã, sem destino: “num barco sem vela aberta/ nesse mar/ nem mar sem rumo certo ”. Notam-se também as referências ao modo de vida da classe média. Percebe-se inclusive o tom de crítica do autor: a preocupação com os filhos, a monotonia e o consumo – fusca, butique da Augusta, o ford galaxie e o medo de não ter um ford galaxie.

446 Consultar: BRAGA, Rubem. AideTi,Copacabana . Rio de Janeiro: Record, 2004. 279

Torquato questiona os valores “burgueses”, a busca pela ascensão social e o “ status ” obtido pelo acúmulo de bens materiais. Solitário e incompreendido – “você olha nos meus olhos/ e não vê nada ” –, sai pela cidade em busca de “sentido” em meio ao “caos urbano”. A vida nos centros urbanos oprime o indivíduo.

Nos versos da canção, de novo a solidão do poeta. [...] A vida urbana que se apresenta como navegação incerta. Não como um convite à viagem, um partir sempre, rumo ao infinito. [...] Como se o poeta sentisse a si mesmo, a cidade, e o país, como uma clausura, da qual era preciso escapar. 447 TRÊSDAMADRUGADA1971 Três da madrugada Quase nada Na cidade abandonada Nessa rua que não tem mais fim Três da madrugada Tudo e nada A cidade abandonada E essa rua não tem mais Nada de mim Nada Noite alta madrugada Na cidade que me guarda E esta cidade me mata De saudade É sempre assim Triste madrugada Tudo é nada Minha alegria cansada E a mão fira mão gelada Toca bem de leve em mim Saiba Meu pobre coração não vale nada Pelas três da madrugada Toda palavra calada Nesta rua da cidade Que não tem mais fim Que não tem mais fim

447 BUENO, André. Pássarodefogonoterceiromundo . O poeta Torquato Neto e sua época. Rio de Janeiro: 7Letras, 2005. p.160-1. 280

Em “ Três da madrugada ” quem circula pela cidade é o solitário, insone, angustiado e oprimido por ela: “a cidade me mata”. O sentimento é de desespero – “rua que não tem mais fim” –, não percebe saída, está num caminho sem volta:

A paisagem urbana “embriaga” o poeta em sua procura por um espaço-tempo (o aqui e agora). Pelas ruas é um anônimo passageiro a participar de encontros e desencontros. O itinerário de Torquato confunde-se com o traçado da multidão. No movimento das ruas, o poeta encontra o corpo manso e terno que, solidário, lhe estende as mãos. 448

O sentimento de profunda solidão também foi tema da letra de:

TOMENOTA1972

Por todas as ruas Onde ando sozinho Eu ando sozinho Com você E você Se é que se lembra Se lembra Olha assim pra mim Como capa de revista Pelo rabo-do-olho De artista e sorri Eu acho tudo muito legal Mas a verdade É que o nome normal disso aí É Saudade Pois bem Sei que vou sozinho Sei que vou também sozinho Mas acontece Que parece Que você É como se é que fosse O próprio caminho

448 ALMEIDA, Laura Beatriz Fonseca de. Um poeta na medida do impossível – trajetória de Torquato Neto. Tese (Doutorado em Teoria Literária e Literatura Comparada), FFLCH-USP, São Paulo, 1993. p.64. 281

O autor menciona a situação do solitário, que, mesmo acompanhado, sente- se “só”. A angústia existe não apenas por viver na solidão, mas por ter imaginado que a companheira mudaria aquela situação. O tom melancólico e de decepção resulta em frustração.

A leitura e análise das letras que enfatizam o amor permitem observar o discurso de alguém que sofre. Apesar de sua produção musical ter sido iniciada no período pós-Bossa Nova, nota-se a influência da fase anterior, aproximando-se sua composição do “samba-canção”, que já considerava que “amar é sofrer”.

A partir de 1970, depois de retornar ao Brasil, a produção musical de Torquato evidenciava cada vez mais seu estado de espírito melancólico e depressivo, e seu discurso ficava cada vez mais enigmático:

Seja num estilo mais incisivo e agressivo como na época do tropicalismo e no pós-tropicalismo, seja num tom mais lírico, como letrista, a poética de Torquato se inscreve sobre o mesmo fio condutor, que transparece como tristeza, solidão, melancolia, chegando a momentos de atroz pessimismo. 449 COROMISTOFOTOGÊNICO1970

Vocês não têm outro rosto Vocês conhecem o melhor caminho do poço E compram pelo reembolso A mão que afaga E a mão que mata Vocês não têm outro rosto Você não tem nenhum medo Porque não sabe o segredo Que eu não posso lhe contar E ninguém vai lhe contar Porque é sempre muito tarde Porque está fora de hora E porque quem samba fica Que não samba vai-se embora Vocês não têm outro rosto Você não sabe a paisagem E anda atrás de close-ups Você não fez a viagem Nem pesquisou o mistério Da contagem regressiva

449 ALMEIDA, Laura Beatriz Fonseca de. Um poeta na medida do impossível – trajetória de Torquato Neto. Tese (Doutorado em Teoria Literária e Literatura Comparada), FFLCH-USP, São Paulo, 1993. p.107. 282

Você anda muito viva Então viva, viva muito Com o rosto de todo mundo E quando muito até quando

A letra traz várias referências, como a traição - “a mão que afaga é a mão que mata” ; e o mistério, denotando um segredo guardado que não pode ser revelado, o que ocasiona medo e angústia - “você não tem nenhum medo/ porque não sabe o segredo/ que eu não posso lhe contar”. E a angústia segue, pois não há mais tempo para revelações; o sujeito está “condenado” a viver com esse segredo: “e ninguém vai lhe contar/ porque é sempre muito tarde/ porque está fora de hora”.

O tom de tristeza e melancolia também aparece na seguinte letra:

TODODIAÉDIAD1971 (Torquato Neto e Carlos Pinto)

Desde que saí de casa Trouxe a viagem de volta Gravada na minha mão Enterrada no umbigo Dentro e fora assim comigo Minha própria condução Todo dia é o dia dela Pode não ser pode ser Abro a porta e a janela Todo dia é dia D Há urubus no telhado E a carne-seca é servida Um escorpião encravado Na sua própria ferida Não escapa, só escapo Pela porta da saída Todo dia é o mesmo dia De amar-te, a morte, morrer Todo dia menos dia Mais dia é dia D

A composição sugere explicitamente o sentimento de derrota e o desejo de morte. Impossível não associar o discurso com a própria experiência de Torquato, que nesse momento já havia se submetido a várias internações em sanatórios, na tentativa de superar os problemas de saúde – principalmente mental –, evidenciados na profunda depressão: 283

Não havia uma data para a viagem de volta, mas todo o dia era dia D “todo dia é dia dela”, dizia o poeta. Enquanto foi possível, Torquato sobreviveu aos “últimos dias de paupéria”, registrando através de seus escritos a certeza de que o encontro fatal era inevitável, já que “não se vive intensamente sem punição; não se experimenta o perigo sem algo mais do que o simples risco. A viagem anunciada pelo anjo em acordes dissonantes era o destino de quem tinha a morte como própria condução. 450 OHOMEMQUEDEVEMORRER1971

Mais dia menos dia A vida tem pressa Mais noite menos noite A morte te alcança Num clarão, mais que o sol Num clarão, no mistério da luz A promessa é viver Glória, glória, glória, aleluia Glória, glória, glória, aleluia Glória ao homem que deve morrer Mais tempo menos tempo O dia amanhece Mais tarde menos tarde Um homem aparece Num clarão, outro sol Num clarão da promessa de luz Um olhar salvador Glória, glória, glória, aleluia Glória, glória, glória, aleluia Glória ao homem que deve morrer

Torquato Neto marcou sua produção musical na década de 1970 com referências à morte e à sua própria condição. Na letra de “ Let´s play that ”, escrita no sanatório e depois musicada e interpretada por Jards Macalé, o discurso também traz elemento “tropicalista”, recorrente na produção de Torquato, na parodia do “Poema de setes faces ”, de Carlos Drummond de Andrade, e “ Guesa ”, de Joaquim de Sousa Andrade, ou Sousândrade. 451

450 ALMEIDA, Laura Beatriz Fonseca de. Um poeta na medida do impossível – trajetória de Torquato Neto. Tese (Doutorado em Teoria Literária e Literatura Comparada), FFLCH-USP, São Paulo, 1993. p.76. 451 Consultar: ANDRADE, Carlos Drummond de. Alguma poesia . Rio de Janeiro: Record, 2001. CAMPOS, Haroldo de; CAMPOS, Augusto de. ReVisãodeSousândrade . Coleção Signos - 34. São Paulo: Perspectiva, 2002. ESPINOLA, Adriano. Melhores poemas de Sousândrade . São Paulo: Global Editora, 2009; LOBO, Luiza. Épica e modernidade em Sousândrade . Rio de Janeiro: 7Letras, 2006. SOUSÂNDRADE, Joaquim de. OGuesa . Rio de Janeiro: Demônio Negro, 2009. 284

LET´SPLAYTHAT1972 (Torquato Neto e Jards Macalé)

Quando eu nasci Um anjo louco muito louco Veio ler a minha mão Não era um anjo barroco Era um anjo muito louco, torto Com asas de avião Eis que esse anjo me disse Apertando minha mão Com um sorriso entre dentes Vai bicho desafinar O coro dos contentes Vai bicho desafinar O coro dos contentes Let's play that

Na supracitada composição Torquato mostrava sua condição de “rebelde”, que tinha como destino “desafinar o coro dos contentes”. A “pré-destinação” também está na letra de “ Destino ”:

DESTINO1972

O destino do poeta é coisa dele Preste atenção que eu te amo é nele Nele meu amor é muito grande Vive crescendo enquanto a gente aprende Que o destino do poeta é grande Cabe inclusive de frente Preste atenção quem ama não é você Seria uma espécie de Se, um C Ceci Peri Si ici See that kind of sea, deep blue sea

Nota-se o discurso melancólico em quase toda a produção musical de Torquato Neto. Suas angústias, medos, frustrações foram evidenciados em várias letras, mas, no período próximo à sua morte, a mensagem tornou-se ainda mais angustiada, mais triste, revelando o estado de espírito do autor:

285

COMEÇARPELORECOMEÇO–1972 (Torquato Neto e Luiz Melodia)

Não vou lamentar Lamento muito, mas agora não dá Não me lembro mais do tal momento Que você me deu, que você me deu Doeu, meu bem, doeu Mas não vou lamentar O que nem sequer aconteceu Agradeço mas prefiro recomeçar Pelo recomeço Agradeço o seu preço E pelo seu endereço Peço perdão, de coração Peço perdão

Na letra de “ Começar pelo recomeço ” há mágoa, ressentimento e frustração. Embora o autor diga “ não vou lamentar ”, o lamento pelo que não viveu está contido no discurso. Torquato afirma ter decidido recomeçar, e ainda revela o sentimento de culpa que carrega: “peço perdão, de coração/ peço perdão ”.

O desejo de morte, a angústia, a dor e o estado introspectivo foram evidenciados também em:

QUETAL1972

Quero morrer no Carnaval Curtindo a sensacional desgraça Dessa praça completamente igual Ao resto que conheço em beira de estrada Quero morrer no Carnaval Encalhado na monumental bagunça tropical Que por obra e graça dessa mesma praça Danço, danço feito um mais Que se salva Uma corrente é uma corrente Assim como uma rosa é uma certa rosa Quente, superquente, distante diante da frente Dessa praça completamente igual Que eu conheço Trivial variado É o lado de dentro Trancado, trancado Que tal 286

Sentindo-se “encalhado na monumental bagunça tropical” , do “lado de dentro, trancado”, ou seja, sem perceber saída para sua crise existencial e sem enxergar perspectivas, inclusive para o país, Torquato Neto despediu-se com o suicidou, deixando num bilhete a explicação para seu ato de desespero: “ Pra mim chega !”

287

5.2 - O DIA-QUE-VIRÁ

Na década de 1960, entre os vários gêneros musicais, destacava-se a “canção de protesto” ou “engajada”. Canções com letras que privilegiavam a temática social. Buscava-se por meio da música discutir, problematizar e conscientizar o “povo brasileiro” dos dilemas sociais existentes.

A produção da “canção de protesto” foi identificada com os ideais do manifesto do CPC da UNE, valorizando o “conteúdo”, a mensagem em detrimento da “forma”, da estética, conforme discutido no capítulo I.

A meta principal desta estratégia era articular a expressão de uma consciência nacional, politicamente orientada para a emancipação da nação, cujo sujeito político difuso – o povo – seria carente de expressão cultural e ideológica (e não de representação política, propriamente dita). Os artistas- intelectuais nacionalistas e de esquerda, mesmo aqueles não ligados organicamente ao Partido Comunista, incorporaram a tarefa de articular esta consciência. A ela convergiram demandas nem sempre harmonizadas entre si, como por exemplo: a formulação poético-musical da identidade popular, a exortação de ações emancipatórias e a demanda por entretenimento, inseridos dentro de um mercado cultural crescente. 452

Apesar da valorização da temática social e da identificação de alguns compositores com os ideais do CPC, conforme já verificado no capítulo I, a “canção de protesto” não pode ser considerada de forma homogênea e sua análise não deve ser feita a partir da dicotomia “forma” e “conteúdo”. Como já enfatizado, a produção musical “engajada” foi pouco influenciada pelo manifesto do CPC da UNE, e seus “representantes” apresentavam propostas distintas – basta comparar as produções de Edu Lobo, Sérgio Ricardo e Geraldo Vandré para observar as diferenças.

Na leitura da produção musical de Torquato Neto, observa-se também, em algumas letras, as características da “canção de protesto” ou “engajada”. Nessas composições a influência dos parceiros – Edu Lobo e Geraldo Vandré – é notável. Torquato Neto não participou diretamente do movimento estudantil, nem se filiou ao

452 NAPOLITANO, Marcos. Seguindo a canção: engajamento político indústria cultural na MPB (1959-1969). São Paulo: Annablume/ FAPESP, 2001. p.13. 288

Partido Comunista Brasileiro, nem a nenhum outro partido. Mas, quando chegou ao Rio de Janeiro, em 1962, a cidade tinha grande movimentação de estudantes, artistas e intelectuais, além da produção cultural marcada pela proposta do Centro Popular de Cultura da UNE, cujos espetáculos ele frequentava:

A obra de Torquato Neto sintetiza essa pluralidade de manifestações poéticas ocorridas durante a década de 60 – sejam experimentais ou engajadas. Antes do surgimento do tropicalismo, Torquato chega a aderir ao grupo que acreditava na palavra como instrumento de luta, como força mobilizadora. 453

A letra de “ Louvação ”, de Torquato Neto e Gilberto Gil, gravada por Elis Regina em 1966, revela a crença de que por meio da arte seria possível conscientizar e mobilizar as camadas populares, de acordo, portanto, com os ideais cepecistas.

LOUVAÇÃO1966 (Torquato Neto e Gilberto Gil) Vou fazer a louvação, louvação, louvação Do que deve ser louvado, ser louvado, ser louvado Meu povo, preste atenção, atenção, atenção Repare se estou errado Louvando o que bem merece Deixo o que é ruim de lado E louvo, pra começar Da vida o que é bem maior Louvo a esperança da gente Na vida, pra ser melhor Quem espera sempre alcança Três vêis salve a esperança! Louvo quem espera sabendo Que pra melhor esperar Procede bem quem não pára De sempre e mais trabalhar Pois só espera sentado Quem se acha conformado Vou fazer a louvação, louvação, louvação Do que deve ser louvado, ser louvado, ser louvado Meu povo, preste atenção, atenção, atenção Repare se estou errado

453 ALMEIDA, Laura Beatriz Fonseca de. Um poeta na medida do impossível – trajetória de Torquato Neto. Tese (Doutorado em Teoria Literária e Literatura Comparada), FFLCH-USP, São Paulo, 1993. p.101. 289

Louvando o que bem merece Deixo o que é ruim de lado Louvo agora e louvo sempre O que grande sempre é Louvo a força do homem E a beleza da mulher Louvo a paz pra haver na terra Louvo o amor que espanta a guerra Louvo a amizade do amigo Que comigo há de morrer Louvo a vida merecida De quem morre pra viver Louvo a luta repetida Da vida, pra não morrer Estou fazendo a louvação, louvação, louvação Do que deve ser louvado, ser louvado, ser louvado De todos peço atenção, atenção, atenção Falo de peito lavado Louvando o que bem mercê Deixo o que é ruim de lado Louvo a casa onde se mora De junto da companheira Louvo o jardim que se planta Pra ver crescer a roseira Louvo a canção que se canta Pra chamar a primavera Louvo quem canta e não canta Porque não sabe cantar Mas que cantará na certa Quando, enfim, se apresentar O dia certo e preciso De toda a gente cantar E assim fiz a louvação, louvação, louvação Do que vi pra ser louvado, ser louvado, ser louvado Se me ouviram com atenção, atenção, atenção Saberão se estive errado Louvando o que bem merece Deixando o ruim de lado

Semelhante à produção das canções de “protesto”, a letra explora a “crença no canto coletivo” e traz as seguintes características:

O tema é simples e direto. [...] O destinatário da mensagem: “meu povo”, ao qual o poeta se sente ligado. O poeta é participante , no exato sentido de participar com seus versos de uma esperança. [...] Mas não se trata de uma esperança passiva, conformada e atávica, como se fosse um destino 290

religioso, sim de esperar trabalhando , em oposição ao esperar sentado conformista .454

A diferença do discurso de “ Louvação ” em relação às letras das canções “engajadas” está na inclusão dos elementos “tropicalistas”, embora tenha sido escrita e musicada em 1966, antes, portanto, da “eclosão do movimento”.

[...] vale enfatizar que, mesmo trazendo na estrutura e no tom didático popular um discurso compromissado com a ordem social, voltado para a mobilização revolucionária do povo, “Louvação”, apresenta, ao mesmo tempo, pelo clima festivo, um discurso que já de distancia da retórica engajada com as propostas de emancipação popular. 455

O “ dia que virá ”456 , característico dos discursos da canção de “protesto”, foi evidenciado em “ Vento de Maio ”. A letra explora a mudança aguardada com expectativa, mas, ao mesmo tempo, com a certeza de que virá: “oi meu irmão fique certo/ não demora e vai chegar”. No discurso, o autor afirma que o momento da mudança está próximo: “que eu lhe dou garantia/ a certeza mais segura/ que mais dia, menos dia/ no peito de todo mudo/ vai bater a alegria ”.

VENTODEMAIO1966

Oi você que vem de longe Caminhando há tanto tempo Que vem de vida cansada Carregada pelo vento Oi você que vem chegando Vá entrando e tome assento Desapeie dessa tristeza Que eu lhe dou de garantia A certeza mais segura

454 BUENO, André. Pássarodefogonoterceiromundo . O poeta Torquato Neto e sua época. Rio de Janeiro: 7Letras, 2005. p.155. 455 ALMEIDA, Laura Beatriz Fonseca de. Um poeta na medida do impossível – trajetória de Torquato Neto. Tese (Doutorado em Teoria Literária e Literatura Comparada), FFLCH-USP, São Paulo, 1993. p.103. 456 Conforme Marcos Napolitano explicou, a expressão “dia-que-virá” foi cunhada por Walnice Galvão, em 1968, para qualificar uma das figuras poéticas recorrentes na MPB engajada. Naquele contexto, a MPB foi duramente criticada pela autora, acusada de não romper com os padrões escapistas das canções tradicionais, apesar de todas as intenções críticas dos músicos. NAPOLITANO, Marcos. Seguindo a canção: engajamento político indústria cultural na MPB (1959-1969). São Paulo: Annablume/ FAPESP, 2001. p.151. 291

Que mais dia, menos dia No peito de todo mundo Vai bater a alegria Ô ô ô ô ô ô Oi meu irmão fique certo Não demora e vai chegar Aquele vento mais brando E aquele claro luar Que por dentro desta noite Te ajudarão a voltar Monte em seu cavalo baio Que o vento já vai soprar Vai romper o mês de maio Não é hora de parar Galopando na firmeza Mais depressa vais chegar

O vento é sinal de mudança, anúncio de transformação. A esperança do “novo dia” se expressa no vento e “claro luar”, que “ por dentro da noite te ajudarão a voltar ”.

Revelando a certeza de onde quer chegar, o eu lírico guia um veleiro com o “braço forte”, convicto do seu destino. O vento, que impulsiona o veleiro para o rumo certo, traz os novos tempos, que estão por vir com a tomada do poder pela via revolucionária. [...] em “Vento de Maio” Torquato explora de forma ainda mais significativa a metáfora do vento.457

Como nas canções de “protesto”, a mensagem é de resistência, de chamado para a luta: “monte em seu cavalo baio/ que o vento já vai soprar/ vai romper o mês de maio/ não é hora de parar/ galopando na firmeza/ mais depressa vais chegar”. Na letra notam-se semelhanças com outras canções denominadas “engajadas”, com o discurso da “certeza na frente e a história na mão” , como no trecho de “ Pra não dizer que não falei das flores ”, de Geraldo Vandré, de 1968, porém, a letra “foge do tom explicitamente panfletário”:

Ao utilizar elementos da natureza como símbolos de prosperidade e esperança, atribuindo ao vento a força transformadora que levará as nuvens cinzentas e trará

457 NAPOLITANO, Marcos. Seguindo a canção: engajamento político indústria cultural na MPB (1959-1969). São Paulo: Annablume/ FAPESP, 2001. p.105. 292

renovação, Torquato universaliza a luta do homem [...] A voz da intérprete Nara Leão reforça a suavidade da melodia, transmitindo uma mensagem plena de positividade, de coragem e fé, como se a mudança fosse uma certeza. Com seu canto positivo, o poeta incita o povo à bravura e à firmeza, insuflando-lhe o ânimo, como a certeza da conquista. 458

Em outra composição, Torquato Neto também se aproximou do discurso engajado das canções de “protesto”, anunciando o momento da mudança:

VELEIRO1966

Eh, ô Tá na hora e no tempo Vamos lá que esse vento Traz recado de partir Beira da praia Não faz mal que se deixe Se o caminho da gente Vai pro mar Eu, vou Tanta praia deixando Sem saber até quando eu vou Quando eu vou, quando eu vou Voltar Eh, ô Vou pra terra distante Não tem mar que me espante Não tem, não Anda, vem comigo que é tempo Vem depressa que eu tenho O braço forte e o rumo certo Ah, que o dia está perto E é preciso ir embora Ah, vem comigo Nesse veleiro Eh, ô Tá na hora e no tempo Vou-me embora no vento

“Veleiro ”, que também anuncia o momento da mudança, faz ainda referência ao momento de partida: “tá na hora e no tempo/ vamos lá que esse vento/ traz recado de partir”. E traz o discurso do exílio: “eu vou/ tanta praia deixando/ sem saber até quando eu vou/ quando eu vou, quando eu vou/ voltar”. Novamente, a letra

458 NAPOLITANO, Marcos. Seguindo a canção: engajamento político indústria cultural na MPB (1959-1969). São Paulo: Annablume/ FAPESP, 2001. p.105-6. 293

aproxima-se do discurso engajado – “vem depressa que eu tenho/ o braço forte e o rumo certo” –, se assemelhando às canções de Geraldo Vandré, como em “Disparada ”: “laço firme, braço forte” . Ou seja, o homem é visto como sujeito histórico, capaz de mudar sua própria realidade, desde que consciente de sua situação.

A aproximação com Geraldo Vandré fica evidente na parceria que possibilitou a composição da letra “ Rancho da Rosa Encarnada ”. “É uma parceria original, juntando Torquato e Geraldo Vandré, mostrando que havia proximidade entre os futuros tropicalistas e o autor das canções de protesto mais agudo da época”. 459

RANCHODAROSAENCARNADA1966 (Torquato Neto e Geraldo Vandré)

Vejam quantas coisas novas vamos contar Nas cantigas mais antigas Que o meu Rancho da Rosa Encarnada escolheu pra cantar Pelas calçadas enfeitadas se vê Tanta gente pra nos receber Somos cantores Cantamos as flores Cantamos amores Trazemos também A notícia da grande alegria que vem Pra durar mais que um dia E ficar como antigas cantigas Que não morrem Que não passam jamais Como passam sempre os carnavais

Nessa composição também é anunciado “ o dia que virá ” para mudar a realidade vivida. E a canção é porta-voz das mudanças, ou seja, mostra a ideia de que o artista tem um compromisso com a mudança, mediante o discurso, a mensagem contida na canção – “somos cantores/ cantamos flores/ cantamos amores/ trazemos também/ a notícia da grande alegria que vem” –, a tese da canção engajada – a arte deveria conscientizar.

459 BUENO, André. Pássarodefogonoterceiromundo . O poeta Torquato Neto e sua época. Rio de Janeiro: 7Letras, 2005. p.153. 294

5.3 - A ALEGRIA É A PROVA DOS NOVE

Conforme já discutido no capítulo I deste estudo, a proposta tropicalista causou impacto e estranheza no cenário musical ao apresentar “novas formas e conteúdo” para a produção da Música Popular Brasileira, além de propor a reflexão sobre o papel da canção. As canções marcadas pela complexidade, ambiguidade, desafiavam os ouvintes a “decifrar” seus significados. Sobre a importância da produção musical tropicalista, cabe notar que:

O tropicalismo elaborou uma nova linguagem da canção, exigindo que se reformulassem os critérios de sua apreciação, até então determinados pelo enfoque da crítica literária. Pode- se dizer que o tropicalismo realizou no Brasil a autonomia da canção, estabelecendo-a como um objeto enfim reconhecível como verdadeiramente artístico. 460

Entre as letras produzidas por Torquato Neto destacam-se algumas das mais importantes do movimento tropicalista, como aquela que foi denominada de “hino-manifesto”:

GELÉIAGERAL1967

Um poeta desfolha a bandeira E a manhã tropical se inicia Resplandente, cadente, fagueira Num calor girassol com alegria Na geléia geral brasileira Que o "Jornal do Brasil" anuncia Ê, bumba-yê-yê-boi Ano que vem, mês que foi Ê, bumba-yê-yê-yê É a mesma dança, meu boi A alegria é a prova dos nove E a tristeza é teu porto seguro Minha terra é onde o sol é mais limpo E Mangueira é onde o samba é mais puro Tumbadora na selva-selvagem Pindorama, país do futuro Ê, bumba-yê-yê-boi Ano que vem, mês que foi Ê, bumba-yê-yê-yê

460 FAVARETTO, Celso. TropicáliaAlegoria,Alegria . 3ªed. São Paulo: Ateliê Editorial, 2000. p.32. 295

É a mesma dança, meu boi É a mesma dança na sala No Canecão, na TV E quem não dança não fala Assiste a tudo e se cala Não vê no meio da sala As relíquias do Brasil: Doce mulata malvada Um LP de Sinatra Maracujá, mês de abril Santo barroco baiano Superpoder de paisano Formiplac e céu de anil Três destaques da Carne-seca na janela Alguém que chora por mim Um carnaval de verdade Hospitaleira amizade Brutalidade jardim Ê, bumba-yê-yê-boi Ano que vem, mês que foi Ê, bumba-yê-yê-yê É a mesma dança, meu boi Plurialva, contente e brejeira Miss linda Brasil diz "bom dia" E outra moça também Carolina Da janela examina a folia Salve o lindo pendão dos seus olhos E a saúde que o olhar irradia Ê, bumba-yê-yê-boi Ano que vem, mês que foi Ê, bumba-yê-yê-yê É a mesma dança, meu boi Um poeta desfolha a bandeira E eu me sinto melhor colorido Pego um jato, viajo, arrebento Com o roteiro do sexto sentido Voz do morro, pilão de concreto Tropicália, bananas ao vento Ê, bumba-yê-yê-boi Ano que vem, mês que foi Ê, bumba-yê-yê-yê É a mesma dança, meu boi

As referências ao Tropicalismo são evidentes, com menção à “explosão do movimento” – “um poeta desfolha a bandeira/ e a manhã tropical se inicia ”. Além da citação aos desdobramentos da canção “ Alegria, alegria ”, de Caetano Veloso, apresentada no festival da TV Record (1967): “ num calor girassol com alegria/ na geléia geral brasileira/ que o jornal do Brasil anuncia ”. 296

A canção referenda a proposta “antropofágica”, misturando a tradição popular e a repudiada influência estrangeira no refrão: “ ê, bumba-yê-yê-boi ”. Fica evidente a menção à fusão nacional/popular – bumba meu boi – com o rock internacional – iê-iê-iê, na letra yê-yê-yê. A questão “antropofágica” também aparece na frase de Oswald de Andrade: “A alegria é prova dos nove”. 461

A letra segue cruzando referências: nacional/popular, natureza/cultura e tradição/modernidade – “santo barroco baiano/ superpoder de paisano/ formiplac e céu de anil/ três destaques da Portela/ carne-seca na janela ”. Assim, conciliando fragmentos históricos, de estilos, de ditos, usos e costumes transportados com humor e utilizando-se da sátira, buscavam inquietar o ouvinte:

O poeta-letrista sintetiza, como poucos, os “princípios filosóficos” do tropicalismo, reinterpretando os mitos primitivos da cultura urbana industrial, ao misturar elementos diversos da cultura nacional. A letra-manifesto, ao desnudar as contradições de um Brasil arcaico/moderno, explora as ambigüidades implícitas no processo de modernização do terceiro mundo. A polifonia de vozes ilumina o pensamento tropicalista, que evita qualquer tentativa de conciliação ou unificação das diferenças, adotando as contradições e as ambigüidades como elementos essenciais da própria construção da estética do grupo. 462

Na composição todas as contradições do Brasil estão expostas e o discurso nacional está sob crítica, feita por meio do deboche, uma das principais marcas das canções tropicalistas:

Pode ser considerada o ponto mais alto do trabalho de Torquato Neto como poeta da canção popular, quer se pense nela como letra de música, poema ou manifesto tropicalista. [...] Valendo lembrar que o jogo antiufanista que se lê em Geléia Geral, afora o processo de montagem alegórica, também pega imagens ideologizadas e faz um jogo que desmonta, pela via do humor, como paródia das imagens conservadoras. [...] A imagem da Geléia Geral pode ser entendida como referência

461 Consultar as obras de Oswald de Andrade nas publicações: ANDRADE, Oswald de. Paubrasil . Rio de Janeiro: Globo, 1990. Idem. Estéticae Política . Rio de Janeiro: Globo, 1992. Idem. Marco ZeroI . Rio de Janeiro: Globo, 2008. Idem. MarcoZeroII . Rio de Janeiro: Globo, 2008. 462 ANDRADE, Paulo. TorquatoNeto: uma poética de estilhaços. São Paulo: Annablume/ FAPESP, 2002. p.53. 297

ao Brasil cheio de mazelas, jeitinhos oportunismos e carreiras garantindo a boa ascensão social. 463

Já em “ Marginália II ”, a irreverência e o deboche dão lugar à melancolia, pois a letra expõe a visão triste e amarga do subdesenvolvimento:

MARGINÁLIAII1967

Eu, brasileiro, confesso Minha culpa, meu pecado Meu sonho desesperado Meu bem guardado segredo Minha aflição Eu, brasileiro, confesso Minha culpa, meu degredo Pão seco de cada dia Tropical melancolia Negra solidão Aqui é o fim do mundo Aqui é o fim do mundo Ou lá Aqui, o Terceiro Mundo Pede a bênção e vai dormir Entre cascatas, palmeiras Araçás e bananeiras Ao canto da juriti Aqui, meu pânico e glória Aqui, meu laço e cadeia Conheço bem minha história Começa na lua cheia E termina antes do fim Aqui é o fim do mundo Aqui é o fim do mundo Ou lá Minha terra tem palmeiras Onde sopra o vento forte Da fome, do medo e muito Principalmente da morte Oh lelê, lalá A bomba explode lá fora E agora, o que vou temer? Oh, yes, nós temos banana Até pra dar, E vender Aqui é o fim do mundo Aqui é o fim do mundo Ou lá

463 BUENO, André. Pássarodefogonoterceiromundo . O poeta Torquato Neto e sua época. Rio de Janeiro: 7Letras, 2005. p.167-70. 298

Torquato expõe o Brasil “absurdo”, ou seja, contraditório, explorando as referências literárias, a cultura popular e a religiosa:

Se o humor e o deboche pincelamos tons da “Geléia Geral”, nas imagens tropicais de “Marginália II” revela-se uma visão das mais tristes e amargas sobre o terceiro mundo. Dando continuidade ao seu projeto de explicitar as contradições de um país subdesenvolvido, que pretende inserir-se no contexto internacional, em “Marginália II”, o poeta expõe a condição marginalizada do país e, em tom de meã culpa, confessa problemas cruciais, como a fome e a pobreza do Brasil. 464

Outra letra de Torquato Neto, com parceira de Caetano Veloso, que merece destaque na produção do movimento tropicalista é “ Mamãe Coragem ”, considerada a letra mais sarcástica e, ao mesmo tempo, melancólica do Tropicalismo:

MAMÃE,CORAGEM1968 (Torquato Neto e Caetano Veloso)

Mamãe, mamãe não chore A vida é assim mesmo eu fui embora Mamãe, mamãe não chore Eu nunca mais vou voltar por aí Mamãe, mamãe não chore A vida é assim mesmo eu quero mesmo é isto aqui Mamãe, mamãe não chore Pegue uns panos pra lavar, leia um romance Veja as contas do mercado, pague as prestações Ser mãe é desdobrar fibra por fibra os corações dos filhos Seja feliz, seja feliz Mamãe, mamãe não chore Eu quero, eu posso, eu quis, eu fiz, Mamãe, seja feliz Mamãe, mamãe não chore Não chore nunca mais, não adianta eu tenho um beijo preso na garganta Eu tenho um jeito de quem não se espanta (Braço de ouro vale 10 milhões) Eu tenho corações fora peito Mamãe, não chore, não tem jeito Pegue uns panos pra lavar leia um romance

464 ANDRADE, Paulo. TorquatoNeto: uma poética de estilhaços. São Paulo: Annablume/ FAPESP, 2002. p.57. 299

Leia "Elzira, a morta virgem", "O Grande Industrial" Eu por aqui vou indo muito bem , de vez em quando brinco Carnaval E vou vivendo assim: felicidade na cidade que eu plantei pra mim E que não tem mais fim, não tem mais fim, não tem mais fim

Interpretada por Gal Costa, a canção, cujo título faz menção à peça de teatro de Bertold Brecht, “ Mãe Coragem ”, se inicia com um apito de fábrica, evocando a cidade, o ambiente urbano, já que a mistura de referências é característica da Tropicália: campo/cidade, arcaico/moderno, regional/universal.

A canção discute a ruptura dos jovens corajosos e decididos que negam a estabilidade, a tranqüilidade e o conforto do lar de classe média (espaço fechado) a fim de conquistar a própria liberdade num espaço aberto e perigoso da grande cidade. 465

O som do apito da fábrica sugere também a ideia da migração dos nordestinos, que deixavam seus lares para empregarem-se nas fábricas do sudeste brasileiro. Centrada numa situação de despedida de um filho, pode ser considerada autobiográfica, memória da partida de Teresina para a Bahia nos anos 60, que encontrou resistência por parte de sua mãe – D. Maria Salomé:

[...] Waly Salomão revela que Torquato tinha uma relação problemática com a mãe, Maria Salomé da Cunha Araújo, tida como uma figura autoritária e severa. Apesar da distância geográfica, Torquato continuava ligado a ela, preocupado com o seu julgamento, buscando a sua aprovação. 466

Na composição o filho “cruel” abandona a mãe e afirma que a separação é definitiva – “eu nunca mais vou voltar por aí ”. Recomenda então que a mãe se ocupe de tarefas domésticas, se distraia lendo um romance para suportar a ausência do filho – “pegue uns panos pra lavar, leia um romance/ veja as contas do mercado, pague as prestações ”.

465 ANDRADE, Paulo. TorquatoNeto: uma poética de estilhaços. São Paulo: Annablume/ FAPESP, 2002. p.63. 466 Ibidem. p.65. 300

Cabe observar o desejo da partida, revelando implicitamente a busca pela autonomia e emancipação: “ eu quero, eu posso, eu quis, eu fiz/ [...] eu vou vivendo assim: felicidade na cidade que plantei pra mim ”. A canção também faz menção à liberdade sexual – “eu tenho um beijo preso na garganta/ eu tenho um jeito de quem não se espanta ”.

Em “ Deus vos salve a casa santa ” o tema “família” foi explorado:

DEUSVOSSALVEACASASANTA1968 (Torquato Neto e Caetano Veloso)

Um bom menino perdeu-se um dia Entre a cozinha e o corredor O pai deu ordem a toda família Que o procurasse e ninguém achou A mãe deu ordem a toda polícia Que o perseguisse e ninguém achou Ó Deus vos salve esta casa santa Onde a gente janta com nossos pais Ó Deus vos salve essa mesa farta Feijão verdura ternura e paz No apartamento vizinho ao meu Que fica em frente ao elevador Mora uma gente que não se entende Que não entende o que se passou Maria Amélia, filha da casa, Passou da idade e não se casou Ó Deus vos salve esta casa santa Onde a gente janta com nossos pais Ó Deus vos salve essa mesa farta Feijão verdura ternura e paz Um trem de ferro sobre o colchão A porta aberta pra escuridão A luz mortiça ilumina a mesa E a brasa acesa queima o porão Os pais conversam na sala e a moça Olha em silêncio pro seu irmão Ó Deus vos salve esta casa santa Onde a gente janta com nossos pais Ó Deus vos salve essa mesa farta Feijão verdura ternura e paz

Podem-se notar as referências ao cotidiano familiar, a crítica aos valores e comportamentos “burgueses” e a trangressão – “o bom menino que se perdeu”. A família, representada pelo pai, mãe e filho, reúne também agregados – “Maria Amélia, filha da casa [solteirona]/ passou da idade e não se casou ”. A “casa santa” 301

abriga a família tradicional, é marcada pela “paz” e “ternura”, é o lugar do “aconchego”, do “refúgio”, contrapondo-se ao apartamento do vizinho, onde “ mora uma gente que não se entende ”.

Todavia, no “lar” tranquilo e feliz, marcado pela ordem, sob o controle do pai, há “segredos” e “desejos” que ameaçam a ordem estabelecida. Com discurso erotizado, a letra faz referências à sexualidade, utilizando figuras “fálicas” – “um trem de ferro sobre o colchão ” –, havendo mesmo uma sugestão de “desejo incestuoso” – “os pais conversam na sala e a moça/ olha em silêncio pro seu irmão ”.

O alvo é a família. O centro, a solidão. [...] Pode-se, e na verdade é por demais tentador para ser evitado, associar os versos dessa canção com a vidade do poeta Torquato Neto, ao menos sob certos aspectos. Em resumo, o rebelde romântico que rompe com a família do Piauí, junta-se à “família baiana”, para juntar-se no final, a uma precária “família da margem”, sem nunca ter, de fato, rompido e resolvido seus vínculos emocionais com nenhuma. 467

Enfim, observa-se na análise da produção musical de Torquato que suas letras propunham ao ouvinte estranheza e uma experiência de participação, exigindo certa decodificação, uma reação, na justaposição de elementos díspares que expressavam política num sentido libertário.

467 BUENO, André. Pássarodefogonoterceiromundo . O poeta Torquato Neto e sua época. Rio de Janeiro: 7Letras, 2005. p.163. 302

CONSIDERAÇÕESFINAIS

Durante o final dos anos 50 e início dos anos 70, o Brasil vivenciou uma série de transformações. No cenário político, o fim do período democrático, a partir do golpe militar de 1964, e a implantação da Ditadura Militar. Na área econômica, a adoção da política desenvolvimentista iniciada no governo Juscelino Kubitschek e ampliada pelos militares, resultando no “Milagre Econômico”. Tais transformações foram amplamente discutidas, analisadas e questionadas em diversos setores da sociedade brasileira, em especial pelos estudantes, artistas e intelectuais. Influenciados pelo discurso das esquerdas, militantes ou não do Partido Comunista Brasileiro, muitos se engajaram no projeto de transformação social, a partir do combate ao imperialismo norte-americano e da necessidade de ampliar a conscientização das massas.

Dessa proposta, por iniciativa do movimento estudantil, representado na UNE, surgiu o Centro Popular de Cultura, com o objetivo de ampliar o debate sobre os dilemas brasileiros e a necessidade de mudança por meio da arte: música, cinema, teatro e literatura. Proposta polêmica que resultou em amplo debate – principalmente durante a década de 60 – sobre a arte, a linguagem estética e a função social do artista. Se alguns artistas e intelectuais defenderam e posicionaram-se a favor da proposta cepecista, por outro lado, muitos a rejeitaram, considerando-a “autoritária” e “limitadora” do processo criativo.

Em meio às discussões, arte e política se confundiam. Novas polêmicas emergiram com o surgimento da Jovem Guarda – sucesso imediato, constatado na venda de discos e na audiência do programa exibido pela TV Record. O novo movimento musical foi considerado por muitos como “alienado” e “alienante”, caracterizado como “apenas um produto comercial”. O debate era ampliado pelo crescente desenvolvimento e consolidação da indústria cultural.

No cenário musical, as polêmicas desenvolveram-se nos palcos dos festivais de música promovidos pelas emissoras de TV, espaço privilegiado para as discussões e defesa das diversas propostas sobre os rumos da Música Popular Brasileira. Marca da movimentação cultural da década de 1960, os festivais mais importantes ocorreram entre 1967 e 1968, promovidos pela TV Record e TV Globo. 303

Nesse período ocorreu a “explosão tropicalista”, que ampliou significativamente o debate no cenário musical.

A renovação proposta pelo movimento foi e ainda tem sido alvo de inúmeras discussões. Questionando os padrões estabelecidos pela proposta denominada “engajada”, herdeira dos ideais do manifesto do CPC da UNE, propondo a reflexão sobre a tradição e cultura brasileira, assumindo o desafio de elaborar o “som universal”, mediante a fusão dos elementos da cultura nacional e internacional, inclusive com a incorporação dos instrumentos elétricos, os tropicalistas desenvolveram uma nova linguagem estética, reunindo de forma indissociável som e imagem, a canção e a performance – por meio do vestuário, gestual, fundamentais no processo criativo do Tropicalismo musical. Sintonizados com os meios de comunicação, principalmente a TV, modernizaram a Música Popular Brasileira, que, a partir das primeiras apresentações tropicalistas, nunca mais foi a mesma.

Em meio às transformações políticas, econômicas e culturais, os escritos de Torquato Neto – diários, cartas, colunas e canções – revelam-se documentos importantes para a análise desse período. Por meio de seus textos, com linguagem informal, criativa e irônica, tornou-se “cronista” de sua época, registrando suas observações, análises e críticas, no período de efervescência da produção cultural brasileira.

Foi participante ativo de movimentos que repercutiram, e ainda repercutem, polêmicas: Tropicália, Contracultura, Cinema Super-8. Atuou na grande imprensa – Correio da Manhã, Jornal dos Sports e Última Hora – e na imprensa alternativa – Presença e Navilouca. Com seu discurso, defendeu o samba, a tradição, a “linha evolutiva”, os direitos autorais e os filmes em Super-8. Criticou, de forma intransigente e agressiva, o Cinema Novo e a Jovem Guarda. Em seus comentários, depreciava o “fenômeno musical”, enfatizando que faltava aos seus representantes a criação propriamente dita, ou seja originalidade e pesquisa. Acusava o movimento de copiar, simplesmente, o rock internacional e de ter preocupação meramente mercadológica. Condenou a imitação, a passividade e o conformismo, propondo como estratégia de resistência a atualização, por intermédio da pesquisa e da renovação do processo criativo.

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Torquato Neto não estava interessado em produzir para “conscientizar as massas”. Não defendia a “arte revolucionária” nos moldes do CPC da UNE. Sua produção tinha como “público-alvo” a classe média urbana. Mas acreditava que, mediante a arte, era possível “quebrar preconceitos”. Sua produção questionava principalmente os valores “burgueses”, grupo com que dialogava. Diferentemente de Hélio Oiticica e Waly Salomão, com quem desenvolveu parcerias e projetos, Torquato Neto não “subiu o morro”, não se aproximou das camadas mais pobres. Portanto, não estava atento às manifestações populares. Seus textos – colunas – divulgavam e discutiam a produção cultural de um universo mais “restrito”, exclusivo de uma minoria – seus leitores eram predominantemente universitários. Seu discurso pode ser classificado como “libertário” e “anárquico”, mas não preocupado com as mudanças estruturais da sociedade.

Ao longo da pesquisa buscou-se analisar a produção cultural durante a vigência da Ditadura Militar no Brasil. Pretendeu-se discutir as propostas e comportamento assumido por artistas e intelectuais na resistência. O desenvolvimento da pesquisa revelou que, mesmo após a edição do AI-5, em dezembro de 1968, quando a repressão e a censura foram ampliadas no Brasil, muitos artistas e intelectuais protestaram contra a ordem estabelecida, a partir da criação, defendendo que “ Criar é resistir ”. Produziram à margem, buscaram espaços alternativos, criaram uma nova linguagem estética. Reivindicaram liberdade, em todos os sentidos, e Torquato Neto foi “porta-voz” dessa defesa.

As décadas de 1960 e 70 foram marcadas pelo “excesso” de discussões, debates, protestos, manifestações, criações e violências. E, em meio aos excessos, inseriu-se a produção cultural de Torquato Neto, realizada durante 10 anos, entre 1962, quando saiu de Teresina, no Piauí, mudando-se primeiro para Salvador e depois para o Rio de Janeiro, onde faleceu em 1972. Ao longo desse período produziu canções, poemas, colunas e filmes, além das cartas que trocou com amigos e familiares e anotações em cadernos e diários.

Sua produção, marcada pelo contexto vivido, revela a intensa movimentação dos anos 60 e 70 – “anos rebeldes” e de “chumbo” –, denotando as mudanças políticas, econômicas e culturais que agitavam o Brasil e o mundo. Período de crescente autoritarismo e censura, tanto na política como nas artes, mas também tempo de resistência, demonstrada de várias formas, as quais Torquato Neto, atento 305

às questões internas e externas, registrava para divulgar, denunciar, protestar e exaltar aqueles que continuavam produzindo, mesmo diante do cerceamento das liberdades.

Torquato ocupou os espaços, disponíveis ou não, agindo de forma coerente com seu discurso – “ocupar os espaços, as brechas ” –, e fez de suas colunas, publicadas tanto na grande imprensa como nas publicações “alternativas”, lugar de resistência. Comentou as principais atividades do cenário cultural brasileiro do final da década de 1960 e início dos anos 70, com análise crítica e passional. Elogiou e promoveu as atividades dos amigos e parceiros, na música, no cinema e no teatro. Julgou, acusou, depreciou, evidenciou a produção que considerava “ruim”, “careta” ou apenas “comercial”.

Envolveu-se em diversas polêmicas: com as sociedades arrecadadoras, ao militar pela mudança no sistema de arrecadação e distribuição dos direitos autorais; com os representantes da Jovem Guarda e o Cinema Novo. Promoveu e defendeu a proposta tropicalista, mesmo quando já estava afastado do grupo. Incentivou a produção da imprensa “alternativa” e o Cinema Marginal (Super-8). Indignou-se com o acelerado desenvolvimento da indústria cultural e sua interferência na produção artística. Questionou valores e comportamentos conservadores. Repudiou o conformismo e a acomodação diante do autoritarismo, da censura e da violência. Valorizou as liberdades: política, criativa, mas principalmente a individual.

Com amigos desenvolveu projetos e parcerias. Trocou correspondências para manter-se atualizado sobre os acontecimentos do “lado de dentro” e de “fora”, pois a informação e atualização eram, de acordo com Torquato Neto, fundamentais para o processo criativo.

Consumiu, excessivamente, drogas e álcool, que contribuíram para agravar seus problemas de saúde – física e mental. Seu estado depressivo e melancólico destoava de muitos “entusiasmados” com o “milagre econômico”. Na contramão, “desafinou o coro dos contentes”. Dissidente, polêmico e anárquico, questionou a ordem e os padrões estabelecidos. Descrente, sem alternativa para promover a mudança, sentiu-se irremediavelmente derrotado e sucumbiu, incapaz de suportar a realidade vigente. Esgotado, despediu-se com um bilhete: “ Pra mim chega! ” 306

Da mesma forma que seu suicídio, aos 28 anos, não pode ser tomado como ponto de partida para a análise de sua produção, também não é possível analisá-la sem considerar tal episódio. Porém, o gesto dramático e radical não pode ser identificado como “ato heróico”, que serviria para “mitificá-lo”. O suicídio de Torquato Neto é sinal de derrota de quem não suportou as pressões, inclusive políticas. Tal atitude pode ser entendida como inconformismo, mas principalmente consequência do medo, do desespero e da descrença. O artista – letrista, poeta, ator e diretor de cinema – tinha perdido a capacidade de criar, não tinha projeto para o futuro. Sem saída, assumiu a derrota, pois, conforme afirmou, “a morte só é vingança quando é a morte do inimigo, a minha não ”. 468

Ao longo da pesquisa, muitos temas surgiram, em razão da complexidade e riqueza do tema. Diante da impossibilidade de abordar todas as discussões neste estudo, fica a sugestão para o desdobramento de novas pesquisas: a participação de Tom Zé, Gal Costa, Os Mutantes e Capinam no movimento tropicalista, a análise sobre o cinema “independente” – Super-8 – e a contribuição de Hélio Oiticica e Lygia Clark para a produção cultural dos anos 70.

Por fim, espera-se que este estudo possa contribuir para as discussões sobre o período de vigência da Ditadura Militar no Brasil e a produção cultural, pois, mesmo sendo temática de vários e profundos estudos, há muito ainda que discutir sobre esse período da história brasileira, considerado “recente”, mas, infelizmente, ainda pouco conhecido.

468 Carta de Torquato Neto endereçada a Almir Muniz, sem data. Apud: PIRES, Paulo Roberto. TorquatoNeto: Torquatália – do lado de dentro. Rio de Janeiro: Rocco, 2004. p.288-9. 307

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→FOLHADE SÃO PAULO 1967 26 set., 2º Caderno, p. 5 – Festival da Record: faltam 4 dias. 30 set., 2º Caderno, p. 5 – Todos cantam, começa o Festival. 3 out., 2º Caderno, p. 3 – “O Combatente” na voz do povo. 4 out., 2º Caderno p. 3 – Linha dura ameaça o Festival. 6 out., 2º Caderno, p. 3. – Festival: hoje é dia de surpresa. 12 out., 2º Caderno, p. 3 – Festival cria “som universal”. 14 out., 2º Caderno, p. 3 – Hoje no Festival: uma noite de contraste. 20 out., 2º Caderno, p. 3 – Festival: amanhã os vencedores. 21 out., 2º Caderno, p. 3 – Hoje: fim do Festival em SP. 24 out., 2º Caderno, p. 3 – Rio: “Margarida” vence no Festival da Canção. 25 out., 2º Caderno, p. 3 – Rio: amanhã o início do Festival Internacional. 27 out., 2º Caderno, p. 3 – Internacionais cantam no Rio. 28 out., 2º Caderno, p. 3 – Festival entrega Violas e Sabiás. 25 nov. , Folha Ilustrada, p. 1 – Vandré: música deve representar o povo.

→JORNALDA TARDE 1967 9 set., p. 13 – Compor, cantar e vencer, é o festival. 30 set., p. 8-9 – O ultimo ensaio, agora o festival. 2 out., p. 24 – O mau começo de Jair e do festival. 4 out., p. 8 – Gil espera tranqüilo outra vaia. 6 out., p. 10 – Hoje é dia de briga no festival. 7 out., p.14 – Queriam por fogo nos jurados. 9 out., p. 16 - Festival tem mais pra mostrar. Entre Ponteio e a viola há um domingo. 10 out., p. 10 – Os Mutantes, ié, ié, ié em missão de paz. 13 out., p. 13 – Festival é mais que viola. 323

16 out. p. 24 – Por merecimento a Villa, deve ser de Gilberto Gil. 17 out., p. 18 – O festival vai mudar por causas das vaias. 20 out., p. 8 – A música é Gil, é pop, a música é pop, é Veloso. 21 out., p. 16 – É apenas o ensaio de uma grande noite. 23 out., p. 13 – Êles já tem uma viola para mostrar.

1968 13 set., p. 14 – Tomates contra a vitória de Caetano. 16 set., p. 23 – As vaias não deixaram Caetano cantar vitória. 17 set., p. 14 – Brigas, festivais, música. A crítica de Caetano. 23 set., p. 24 - Chegou a hora da viola de ouro. 27 set., p. 15 – No Rio, a primeira noite foi dos paulistas. 22 out. p. 15 – E deste nôvo festival, o que vai ficar? 29 out., 1968, p. 15 – Foi de Caetano a estréia do Divino Maravilhoso. 14 nov., p. 14 – Música? Foi um festival de fantasias. 15 nov., p. 10 – Vai ser um festival sem vaias? 10 dez., p. 29-30 – Depois da vitória, duas festas na Augusta 21 dez., p. 4 – A história de um novo ídolo: Tom Zé. 29 dez., p. 42-43 – Dezoito músicas, uma guerra.

→OESTADODE SÃO PAULO 8 abr. 2010. Caderno 2 – D3. “Uma noite em 67” (documentário) 21 jul. de 2010. Caderno 2 – D 5. “Uma noite em 67” (documentário)

→REVISTA VEJA 25 set., 1968, p. 68-69 – Um festival de protestos. 9 out., 1968, p. 54-56 – As combatidas flores de Geraldo Vandré. 16 out. 1968, p. 58-60 – Com eles, briga na certa. 23 out. 1968, p. 60-61 – Viola repartida. 13 nov.1968, p. 54-55 – Existe algo de concreto nos baianos. 20 nov.1968, p. 54-56 – Um Festival ligado na tomada. 27 nov. 1968, (capa) p. 64-67 – Música Popular: O protesto de ontem e hoje. 11 dez.1968, p.58-60 – A festa acabou. 25 dez.1968, p. 56 – A Bossa é nossa, mas leva quem paga mais. 324

08 jan.1969, p. 62-63 – “Robertus Carolus I ” Marido e pai, com um novo LP nas paradas de sucesso, o Rei tem mais um título: o Inimitável.

→CORREIODA MANHÃ PIRES, Paulo Roberto (Org.). TorquatoNeto: Torquatália – Geléia Geral. Rio de Janeiro: Rocco, 2004. p.185-95. ColunaPlug 12 jun. 1971 – Cinemateca. Cruz (câmera) 19 jun. 1971 – O cinema falado. O capitão bandeira é o filme do plá (Calmon bate papo com Torquato).

→JORNALDOS SPORTS PIRES, Paulo Roberto (Org.). TorquatoNeto: Torquatália – Geléia Geral. Rio de Janeiro: Rocco, 2004. p.25-183. ColunaMúsicaPopular 7 mar. 1967 – Cordiais Saudações ... 10 mar.1967 – A propósito de um cantor de rock 15 mar.1967 - Catulo 18 mar. 1967 – Capinam – dá as cartas 19 mar. 1967 – O pior disco de Ataulfo 23 mar. 1967- Vamos ao zum-zum 24 mar. 1967 – (sem título) Entrevista com Nélson Motta 28 mar. 1967 – (sem título) 29 mar. 1967 – Ataulfo, novamente 30 mar. 1967 - (sem título) 9 abr. 1967 – Opinião de Sidney (Entrevista com Sidney Miller) 11 abr. 1967 - Discos 18 abr. 1967 - Da correspondência 23 abr. 1967 – Caymmi, graças a Deus e Da odeon 25 abr. 1967 – Uma noite edificante 26 abr.1967 – Uma noite edificante (2) 11 mai. 1967 – Capa & contracapa (fim) 20 mai. 1967 – Pra quem não gosta de Chico e Várias. 23 mai. 1967 – Três tópicos: I – Festivais; 2 – Opinião de Gil e 3 – A noite. 1º de junho de 1967 – Capinam, poeta 325

10 jun. 1967 – Paradas, discos e bureau e Várias. 13 jun. 1967 – Vai fazer um ano! 22 jul.1967 – Chico, volume dois e Geral 2 ago. 1967 – Compositores e urubus 22 ago.1967 – O artigo do dia e Geral 24 ago. 1967 – Reginaldo dá as cartas (Entrevista com Reginaldo Bessa) 26 ago. 1967 – Geral & geral 8 set.1967 – Da discoteca 27 set. 1967 – Compositores e críticos (Trecho com comentários de Gilberto Gil e Caetano Veloso)

→ÚLTIMA HORA PIRES, Paulo Roberto (Org.). TorquatoNeto: Torquatália – Geléia Geral. Rio de Janeiro: Rocco, 2004. p.197-381. ColunaGeléiaGeral 19 ago. 1971 – Cordiais saudações 26 ago. 1971 - Problemão 29 ago. 1971 - As travessuras de superoito 18 set. 1971 – Em tudo quanto é boca e Porque hoje é sábado 1º out. 1967 – Mais desfrute, curta e Frutas na feira 16 out. 1971 – A todo vapor e Os transeiros 4 nov. 1971 – Saudades de Macau [Jards Macalé] 5 nov. 1971 – Mal iniciado, mas iniciado e Asfixia 6 nov. 1971 – Mastigando um sapo e inhos demais 10 nov. 1971 – Ondas musicais 15 nov. 1971 – Transas, transas, transas 16 nov. 1971 – Literato cantabile 17 nov. 1971 – Por hoje, acabaou 24 nov. 1971 – Baixo astral 25 nov. 1971 – Esse tiro vai sair pela culatra e Olha aí 26 nov. 1971 – Em material de proforice e Experiência 30 nov. 1971 - Filmes 13 dez. 1971 – Na segunda se volta ao trabalho 11 jan 1972 – Mixagem alta não salva burrice 326

20 jan. 1972 – Baião de sempre 26 jan 1972 – O tal trivial 8 mar. 1972 – Luiz Gonzaga volta pra curtir e Fique sabendo 10 mar. 1972 – Na corda bamba

→ROTEIRODE TV PIRES, Paulo Roberto (Org.). TorquatoNeto: Torquatália – do lado de dentro. Rio de Janeiro: Rocco, 2004. p.65-85. “Vida, paixão e banana do tropicalismo” (1967-1968), de José Carlos Capinam e Torquato Neto.

→CORRESPONDÊNCIAS PIRES, Paulo Roberto (Org.). TorquatoNeto: Torquatália – do lado de dentro. Rio de Janeiro: Rocco, 2004. p.209-89. HÉLIO OITICICA Nova York, 18 de junho de 1971 Nova York, 10 de agosto de 1971 Nova York, 24 de novembro de 1971

TORQUATO NETO Rio, 13 de junho de 1971 Rio, 16 de julho de 1971 Rio, 16 de julho de 1971 Rio, 9 de novembro de 1971 Rio, 21 de dezembro de 1971 Rio, 7 de junho de 1972

→CANÇÕESDE TORQUATO NETO PIRES, Paulo Roberto (Org.). Torquato Neto: Torquatália – do lado de dentro. Rio de Janeiro: Rocco, 2004. p.87-149. 1965 MEU CHORO PRA VOCÊ (com Gilberto Gil). Inédita em disco.

1966 A RUA. Gravação: Gilberto Gil em Louvação (1967). 327

LOUVAÇÃO (com Gilberto Gil) Gravação: Elis Regina e Jair Rodrigues em Dois na Bossa número 2 (1966); Gilberto Gil em Louvação (1967). LUA NOVA (com Edu Lobo). Gravação: Edu Lobo e Maria Bethânia em Edu e Bethânia (1966). MINHA SENHORA. Gravação: Caetano Veloso e Gal Costa em Domingo (1967); Gilberto Gil em Louvação (1967). PRA DIZER ADEUS. Gravação: Elis Regina em Elis (1966); Edu Lobo e Maria Bethânia em Edu e Bethânia (1966); Edu Lobo (versão em inglês “To say goodbye”) em Sérgio Mendes presents Lobo (1970); Edu Lobo e Tom Jobim em Tom & Edu (1981); Nouvelle Cuisine em Free Bossa (2000). RANCHO DA BOA VINDA. Inédita em disco. RANCHO DA ROSA ENCARNADA. (com Geraldo Vandré).Gravação: Gilberto Gil em Louvação (1967) e Geraldo Vandré, em compacto simples (1966). VELEIRO. Gravação: Edu Lobo e Maria Bethânia em Edu e Bethânia (1966); Elis Regina em Elis (1966). VENTO DE MAIO. Gravação: Wilson Simonal em Vou deixar cair (1966). ZABELÊ. Gravação: Caetano Veloso e Gal Costa em Domingo (1967); Olivia Hime em Segredo do meu coração (1982).

1967 DOMINGOU. Gravação: Gilberto Gil em Gilberto Gil (1968). ESTOU SERENO, ESTOU TRANQUILO. Inédita em disco. FIQUE SABENDO ( com João Bosco e Chico Enói). Inédita em disco. MARGINÁLIA II. Gravação: Gilberto Gil em Gilberto Gil (1968); Maria Bethânia em Recital na boate Barroco – ao vivo (1968). NENHUMA DOR ( com Caetano Veloso). Gravação: Caetano Veloso e Gal Costa em Domingo , álbum da Phillips (1967). Reedição (remasterizado em CD pela Universal Music em 2006).

1968 AI DE MIM, COPACABANA. Gravação: Caetano Veloso em compacto simples (1967). Reedição: LP compilação Um poeta desfolha a bandeira e a manhã tropical se inicia (1985). Também parte integrante da caixa Todo Caetano . CANTIGA. Gravação: Nana Caymmi em Resposta ao Tempo (1998). 328

CAPITÃO LAMPIÃO. Inédita em disco. COISA MAIS LINDA QUE EXISTE. Gravação: Gal Costa em Gal Costa (1969). DEUS VOS SALVE A CASA SANTA. Gravação: Nara Leão em Nara Leão (1968). GELÉIA GERAL. Gravação: Gilberto Gil em Tropicália ou Panis et Circencis (1968), álbum da Philips e Daniela Mercury, em Daniela Mercury (1991). MAMÃE, CORAGEM. Gravação: Gal Costa em Tropicália ou Panis et Circencis (1968), álbum da Philips.

1970 CORO MISTO FOTOGÊNICO. Inédita em disco. O NOME DO MISTÉRIO (com Geraldo Azevedo). Gravação: Geraldo Azevedo no CD O Brasil que existe em mim (2004). QUASE ADEUS (com Carlos Monteiro de Souza) Inédita em disco.

1971 O BEM, O MAL. Gravação: Sérgio Brito em A minha cara (2000). O HOMEM QUE DEVE MORRER. Inédita em disco. QUE PELÍCULA. Inédita em disco. TODO DIA É DIA D. (com Carlos Pinto). Gravação: Gilberto Gil no compacto gravado para a primeira edição de Os últimos dias de Paupéria e em Cidade do Salvador , disco inédito de 1973, lançado em CD, em 1999. TRÊS DA MADRUGADA. Gravação: Gal Costa no compacto para a primeira edição de Os últimos dias de paupéria e reeditada em 2002 na coletânea Todo dia é dia D (Dubas); Verônica Sabino em Verônica (1993); Nouvelle Cuisine em Novelhonovo (1995). TUDO MUITO AZUL (com Roberto Menescal). Gravação: Angela e Paulo Sérgio Valle na trilha sonora da novela Minha Linda Namorada (1971).

1972 COMEÇAR PELO RECOMEÇO. Gravação: Luiz Melodia em 14 quilates (1997), reproduzida na coletânea Todo dia é dia D (2002). CONSOLAÇÃO. Inédita em disco. DENTE NO DENTE. Gravação: Jards Macalé em O que faço é musica (1998) DESTINO. Gravação: Jards Macalé em O que faço é musica (1998) JARDIM DA NOITE ( com Carlos Galvão). Inédita em disco. 329

LET´S PLAY THAT (com– Jards Macalé). Gravação: Jards Macalé em Jards Macalé (1972) e Let´s Play that (1994). QUE TAL. Inédita em disco. TOME NOTA. Inédita em disco. UM DIA DEPOIS DO OUTRO. Inédita em disco.

→FILMES /DOCUMENTÁRIOSCONSULTADOS

Fabricando Tom Zé. São Paulo. Direção: Décio Mattos Jr. São Paulo: Goiabada Productions, Spectra Mídia, Muiraquitã Filmes e Primo Filmes, 2006.

Jards Macalé: um morcego na porta principal. Direção: Marco Abujamra. Rio de Janeiro: Canal Brasil, 2008 (Coleção Canal Brasil).

Lóki – Arnaldo Baptista. Direção: Paulo Henrique Fontenelle. São Paulo: MZA, 2008.

Uma noite em 67. Direção: Renato Terra e Ricardo Calil. Rio de Janeiro: Vídeo Filmes, 2010.

O sol: caminhando contra o vento. Direção: Tetê Moraes e Martha Alencar. Rio de Janeiro: Vídeo Filmes, 2006.

Programa Ensaio – Tom Zé. Direção: Fernando Faro. São Paulo: TV Cultura, 1991.

Programa Roda Viva – Tom Zé. São Paulo: TV Cultura, 2005.

Tom Zé, ou Quem irá colocar uma dinamite na cabeça do século? Roteiro e Direção: Carla Gallo. São Paulo: Net Filmes/ Quanta, 2000.

Waly Salomão em Pan-cinema permanente. Direção: Carlos Nader, Rio de Janeiro: Vídeo Filmes, 2009 (Coleção Vídeo Filmes, 27).