36º Encontro Nacional da ANPOCS Águas de Lindóia (MG) – 22 a 25/10/2012

GT 14 - Forças Armadas, Estado e Sociedade

Os “Ideais Traídos” do general : as concepções políticas da “linha-dura” militar

Carlos S. Arturi Professor Associado do Departamento de Ciência Política da UFRGS Docente dos PPGs em Ciência Política e em Relações Internacionais da UFRGS Doutor pelo Institut d’Etudes Politiques de Paris (SciencesPo) Bolsista Produtividade nível 2 do CNPq

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O trabalho analisará as concepções políticas da corrente militar denominada “linha dura”, durante o regime autoritário (1964-1985).1 Metodologicamente, o estudo da visão política de um ator implica privilegiar na análise o processo de socialização dos membros deste grupo e suas interações com os outros, em detrimento de fatores estruturais e/ou dos atributos ligados à origem social dos indivíduos. No caso dos militares, importa menos sua origem de classe do que a socialização deles em uma instituição quase total (CASTRO, 1995, 24). O trabalho busca, portanto, a “compreensão do processo pelo qual os atores políticos e sociais estruturam suas crenças e representações a respeito da política (...) e seu impacto no processo de democratização” (BAQUERO, 2011). A premissa central do estudo é a de que as possibilidades de consolidação e aprofundamento do regime democrático atual dependem, entre outros fatores, da construção de uma ordem institucional onde a intervenção dos militares em assuntos políticos não seja plausível, nem desejada por nenhum ator relevante. Em relação às forças armadas, esta exigência traduz-se justamente na superação da visão de mundo e na cultura política2 esposada pela sua corrente “linha dura”, caracterizada historicamente por seu forte ativismo e autoritarismo político. A metodologia utilizada neste estudo adota um enfoque qualitativo, baseado na influência de um personagem histórico importante, e não em surveys. Com efeito, o livro de memórias do General Sylvio Frota, ex-ministro do Exército da presidência (1974-78), demitido em outubro de 1977, intitulado “Ideais Traídos”3, é uma obra cujo exame nos permite considerar seu autor como um representante exemplar de uma geração de militares conservadores formada nos anos 1920 e 1930. Este grupo se destacaria pelo ativismo anticomunista e por tentativas frequentes de intervenções na vida

1 Este trabalho foi publicado como capítulo do livro Cultura(s) Política(s) e democracia no Século XXI na América Latina (BAQUERO, 2011), sob o título A Cultura Política da Linha-Dura Militar: os “Ideais Traídos” do General Sylvio Frota (pp. 241-262). 2 Adota-se aqui a definição de cultura de Geertz (1989), retirada do livro “Os Militares e a República”, de Celso Castro: “estruturas de significado através das quais os homens dão forma à sua experiência” (CASTRO, 1995, 10). 3 FROTA, Sylvio. Ideais Traídos. Rio, Jorge Zahar Ed., 2006. 3

política do país, que culminaram no golpe militar de 31 de março de 1964, após as tentativas frustradas de 1954 e 1961. A abordagem escolhida está confortada por um precedente ilustre, lembrado por Celso Castro, ao referir-se à reconstituição da visão de mundo e dos objetivos de Benjamin Constant, feita por vários autores, de maneira quase que exclusiva, a partir de uma só biografia, a escrita por Teixeira Mendes (CASTRO, 1995, 14). O trabalho de Consuelo Cruz, que analisa como o discurso dos Caudilhos no período pós-colonial ajudou a formar culturas políticas diferentes na Costa Rica e Nicarágua4, ajuda-nos igualmente a compreender como a visão de mundo e a ação política do general Frota, em meados dos anos 1970, traduzia e reconstruía incessantemente a cultura política da “linha dura” na época.

O livro Ideais Traídos possui uma particularidade valiosíssima para a pesquisa histórica, pois foi escrito entre os anos de 1978 e 1981, logo após a exoneração do general Frota do ministério pelo presidente Geisel, e ficou inédita até 2006, por vontade de seu autor, que desejava sua publicação póstuma (Sylvio Frota faleceu em 1996). Ora, o resultado é um livro escrito rente à conjuntura, a quente, sem a racionalização retrospectiva e finalista das tentativas de reconstrução do passado, comum aos livros escritos muitos anos depois dos acontecimentos narrados (LINZ & STEPAN, 1995). Ademais, como o autor queria que a publicação fosse póstuma, o livro não foi escrito para influenciar a vida política de sua época, o que concede maior veracidade e recuo a suas posições (a dedicatória do livro é “à História”).

Os atores políticos agem, na realidade, quase sempre imersos na incerteza sobre o contexto de suas ações e sobre o efeito e reações que elas produzirão em outros atores, sobretudo nos processos de transição onde não podem contar com as referências políticas habituais e estáveis. O analista político deve, portanto, procurar compreender a avaliação, as escolhas e a ação dos atores como eles a viveram no momento de sua realização, o que evita o erro comum de reificar os processo políticos, isto é, considerar o Estado, as

4 CRUZ, Consuelo. Political Culture and Institutional Development in Costa Rica and Nicarágua. World Making in the Tropics. New York, Cambridge Univesity Press, 2005. 4

forças armadas, as classes sociais e os outros atores "como um só homem", na determinação de seus interesses e na sua atuação política. As memórias do general Sylvio Frota se prestam sobremaneira a este exercício compreensivo, dada a proximidade temporal entre os fatos evocados por Frota e seu registro por ele. A obra, a despeito do estilo um tanto vetusto, é bem escrita, seu autor demonstra sólida cultura geral, e comporta mais de seiscentas páginas, com vários anexos, alguns deles compostos por documentos classificados como “secreto” ou “confidencial”; possui, ainda, um bom acervo iconográfico, e foi escrita originalmente à mão, em pouco mais de dois anos. É igualmente importante salientar que, quando o autor escreve suas memórias, ainda não estava finda a luta entre os “castelistas” do regime, representados pelos presidentes Geisel e Figueiredo (1979-1985), e a “linha-dura” militar. Com efeito, foi o atentado do Riocentro, em abril de 1981, que demarcou o fim desta disputa, a favor do governo e da democratização do país. Todavia, não é nossa intenção estudar o processo de democratização, já o fizemos em outras oportunidades (ARTURI, 2000; 2001), nem sequer a de melhor esclarecer a conjuntura do embate entre Geisel e Frota, mas, isto sim, o de estudar as concepções políticas e a visão de mundo de uma corrente militar que desempenhou destacado papel político em quase todo o século passado, e cuja mentalidade, possivelmente, ainda seja compartilhada por muitos militares, e civis, até os dias de hoje. A pertinência de um estudo sobre os militares e suas correntes justifica-se pela história e pela cultura política do país, como pelos efeitos da transição sobre o recente processo de democratização. Os acordos da oposição democrática com os militares, que permitiram a passagem do poder sem maiores riscos, em 1985, foram centrados numa série de garantias quanto à não punição dos crimes cometidos pelos órgãos de segurança do antigo regime - o não revanchismo - e a manutenção de prerrogativas das forças armadas que lhes permitiram grande autonomia em relação às instituições políticas e influência sobre o processo de constituição da nova ordem democrática. De fato, as atuais prerrogativas constitucionais e o poder informal dos militares brasileiros são excessivamente amplas (MORAES, 1987; STEPAN, 1991; OLIVEIRA,1994; ZAVERUCHA, 1994, 2000; SOARES, D'ARAUJO, CASTRO, 5

1995). A tutela militar sobre o sistema político vigorou durante a presidência José Sarney (1985-1990), onde os ministros militares, sobretudo o do Exército, pressionaram fortemente o presidente e o Congresso constituinte no sentido de restringir as reformas sociais e políticas exigidas por setores do PMDB e da oposição de esquerda, bem como influir pela adoção do presidencialismo como forma de governo. Outros autores têm uma opinião mais nuançada a respeito do poder dos militares após a transição (HUNTER, 1997), pois embora reconheçam que as forças armadas mantiveram prerrogativas da época do regime autoritário e muito poder informal, destacam os avanços democratizantes que ocorreram nas relações civis-militares nos últimos anos, como a criação do Ministério da Defesa, e também o despreparo e o descaso das elites civis em relação aos assuntos militares e de defesa (OLIVEIRA, 2000; D'ARAÚJO & CASTRO, 2001). O apelo atual à participação das forças armadas no combate ao crime, na manutenção da lei e da ordem, no enfrentamento às denominadas novas ameaças (crimes transnacionais, narcotráfico, terrorismo, etc.), deve ser analisado à luz das lições do passado, sobretudo porque estamos imersos em uma cultura política caracterizada pela pouca adesão da população aos valores democráticos e às instituições políticas, mas onde as instituições militares contam com significativo prestígio. A preocupação normativa com o futuro da democracia e com a criação de uma cultura política condizente guia este trabalho.

1. A formação da linha-dura e a politização dos militares

Os militares nunca apresentaram unidade político-ideológica desde que estrearam sua intervenção política com a proclamação da República até o fim do regime militar. Sua pretensa unidade não existiu sequer no seio de suas correntes, em diferentes conjunturas (SVARTMAN, 2005). Houve períodos em que suas dissensões foram mais importantes, em outros aparentavam maior unidade. Todavia, as divisões e conflitos entre os militares permearam todo o período republicano, mormente durante o regime militar. Com efeito, já 6

encontramos na agitação política os “soldados-cidadãos”, no início da República; os “jovens-turcos”5 na década de 1910; os “tenentes”, ao longo das décadas de 1920 e de 1930. Em todas estas ocasiões, o conflito opunha as gerações mais jovens à alta hierarquia militar. Em 1930, a maior parte da hierarquia acabou apoiando Getúlio Vargas e depois seu regime, especialmente o Estado Novo. Foi o período da reconstrução de uma unidade institucional, pelo fim do conflito aberto entre facções militares, que havia se estendido até 1935, com a Intentona Comunista, passando pela Revolução Constitucionalista de 1932. Os generais que representaram e canalizaram a atuação política dos militares foram Eurico Gaspar Dutra, ministro da Guerra, e presidente eleito em 1946, e Góes Monteiro, intelectual e chefe do Estado-Maior durante a maior parte do governo Vargas. Foi atribuída ao General Góes a síntese da nova orientação dos militares para assegurar sua unidade e sua influência: “Não mais faremos a política no Exército, mas a política do Exército”. Todavia, entre 1945 e 1964, a divisão entre os militares torna-se profundamente ideológica com a Guerra Fria, e não mais geracional. A esquerda militar é alcunhada de “nacionalista” e a os conservadores de “antipopulistas”. A campanha pelo monopólio estatal do petróleo, as candidaturas presidenciais, o segundo governo Vargas (1951-54), a renúncia do presidente Jânio e a posse de Goulart, em 1961, tudo dividia as forças políticas e militares de então, mas foram as eleições para o Clube Militar o palco privilegiado do afrontamento entre correntes militares e seus aliados civis. O general Frota nos livra sua opinião sobre os debates no Clube Militar nos anos 1950: “O nosso Clube transformou-se em palco dos debates acirrados sobre assuntos de interesse político-ideológico. A campanha da nacionalização das jazidas de petróleo, mais conhecida sob o rótulo de “O petróleo é nosso”, teve ali seus momentos de maior excitação e histerismo. Era evidente, mesmo para o observador mais bronco, que os comunistas, infiltrados nesse grupo de liderança ‘nacionalista’, tinham habilmente escolhido o caminho certo para contaminar o Exército” (FROTA, 2006, 55).

5 Aqueles oficiais que receberam instrução militar alemã e propunham a modernização do exército, com a formação de estado-maior, etc. 7

Havia, sim, a infiltração comunista, mas a campanha nacionalista era muito mais ampla, basta dizer que o general Ernesto Geisel era a favor dela e desempenhou papel crucial na criação da Petrobrás, e, posteriormente, presidiu- a durante o governo Médici. Mais uma evidência da fluidez dos limites e da imprecisão das classificações das correntes militares. Geisel fazia parte de um grupo conservador, anticomunista, mas estatista e nacionalista, próximo do Vargas do Estado Novo, do PSD; já, Castelo, Figueiredo, Frota eram, por sua vez, liberais-conservadores, em matéria política e econômica; anticomunistas, mas também anti-Varguistas e mais próximos ideologicamente da UDN. Estes dois grupos juntaram-se turbulentamente em 1964 e compuseram o governo do general Castelo Branco (1964 – 1967). Os conflitos entre o presidente Castelo Branco e seu então ministro da Guerra, Costa e Silva, tiveram início com o começo do próprio governo. As origens da linha dura mesclam vários elementos, quais sejam, o ideário autoritário civil, positivista e outros mais tradicionais (há mais de uma referência a Oliveira Vianna no livro do Frota), a profunda reação que a Intentona de 1935 causou em boa parte da oficialidade, a aproximação com o exército norte-americano na II Guerra, o desenvolvimento da doutrina de segurança nacional na Escola Superior de Guerra (ESG), desde 1949, e a Guerra Fria, que se torna aguda no continente com a revolução Cubana, de 1959. Entretanto, outra clivagem se superpõe a estas: aquela entre, por um lado, os militares “intelectuais” (“científicos” na passagem do Império à República, “jovens-turcos” no início do século XX, “Sorbonne” para designar aqueles que cursariam a ESG, décadas mais tarde) e, de outro, os “troupiers”, mais ligados à carreira tradicional militar, que não passaram muito tempo em funções político-administrativas, mas com contato maior com a tropa. Frota se inclui entre estes últimos (p. 89) e traça sua percepção das correntes militares no final do governo Costa e Silva: “A esta altura dos acontecimentos, já se delineavam no seio da Revolução três grupos militares, de tendências e aspirações diferentes: o grupo castelista, de inclinações liberais centro-esquerdistas, em que se destacam os generais Cordeiro de Farias, Ernesto Geisel e Golbery, homens em geral ligados a Escola Superior de Guerra; o nacionalista, de fortes tinturas socialistas com 8

Alfonso de Albuquerque Lima, Euler Bentes Monteiro e outros generais; e, finalmente o grupo ortodoxo, conservador sem ser imobilista, fiel às teses do movimento de 1964 e que tinha na sua liderança a figura dominante de Costa e Silva” [grifo nosso] (p. 84). Como a leitura do trecho acima deixa transparecer, Frota se alinhava com grupo que alcunhava de ortodoxo, mais conhecido na literatura como “linha dura”. Os nacionalistas radicais de Albuquerque Lima foram afastados politicamente quando da sucessão de Costa e Silva, em 1969, onde o escolhido foi o general Emílio Médici, que compôs seu governo com representantes de todas as correntes. Neste sentido, a ordem dos dois primeiros generais- presidentes foi considerada inapropriada por Frota, pois deveria ter sido inversa. Em sua opinião, Costa e Silva, como o mais “duro” e intransigente dos dois, o troupier, deveria exercer o poder em primeiro lugar, no momento inicial da “revolução”, aquele da repressão e da purga política, por excelência. Castelo Branco, o intelectual da “Sorbonne”, o sucederia como presidente, já em um contexto político mais pacificado e estável. De todos os modos, boa parte da identidade coletiva e da cultura política de cada corrente era construída pelos conflitos, entrechoques e ressentimentos entre elas, durante muitos anos. Podemos, neste momento, avançar a definição de “linha-dura” desenvolvida por O’Donnell e Schmitter (1986) como sendo “aqueles que, contrariando o consenso deste período da história mundial, acreditam que a perpetuação do regime autoritário é possível e desejável, senão pela rejeição absoluta de todas as formas democráticas de governo. (...) Alguns adotam esta posição por oportunismo (...). Mas, o núcleo principal da linha dura é formado por aqueles que rejeitam visceralmente os ‘cânceres’ da democracia e que acreditam ter como missão a eliminação de todos os vestígios destas patologias da vida política” (O’DONNELL, SCHMITTER, 1986, 30). A leitura das memórias do general Frota se encaixa nesta descrição e, pelo seu cargo, representava a linha dura no governo Geisel. É impressionante como o autor não esboça nenhuma previsão para o término do regime militar, nem mesmo uma indicação quanto ao seu futuro institucional. A sensação de imobilismo político e de complacência com um regime autoritário-militar sem perspectiva para findar é uma constante durante toda a leitura do livro Ideais 9

Traídos, tão presente como seu anticomunismo visceral. Este sentimento aparece em muitos trechos da obra, muitas vezes de forma surpreendente. É o caso das múltiplas acusações que faz a Geisel e a seu grupo de serem esquerdistas, como nesta interpelação feita ao general Hugo Abreu, que acabara de se exonerar, em janeiro de 1978, quando soube por Geisel que Figueiredo seria o próximo presidente: “E por que você, Hugo, que sempre teve um pensamento revolucionário dos mais puros, foi unir-se ao grupo político em que predominavam os contra-revolucionários e cuja tendência é francamente marxista?” [grifo nosso] (p. 684).

2. O general Frota e o Governo Geisel

2.1. A transição “lenta, gradual e segura” da presidência Geisel (1974- 1979)

Um processo de democratização totalmente finalizado envolve genericamente três etapas: o início da dissolução do regime autoritário, a criação da democracia e a consolidação do novo regime (BERMEO, 1992, p. 273). A longa e gradual transição no Brasil permite distinguir com clareza estes períodos. O primeiro se estende de março de 1974 a março de 1985, e abrange os dois últimos governos militares, as presidências dos generais Ernesto Geisel (1974-1979) e João Figueiredo (1979-1985). A segunda etapa - a construção da democracia - desenvolve-se durante o governo civil de José Sarney (1985 - 1990), quando ocorre a Assembléia Constituinte democrática. Quanto ao processo de consolidação do novo regime democrático, uma espécie de segunda transição, ela inicia-se com a presidência de Fernando Collor de Mello em março de 1990, eleito por sufrágio universal em 1989, e afastado do poder por um processo de impeachment em dezembro de 1992 (ARTURI, 2000). No que diz respeito a este trabalho, é imperativo desenvolver uma análise mais acurada da primeira etapa, que corresponde ao período coberto pelas memórias do general Frota. 10

Uma particularidade importante a ser ressaltada que diferencia a autocracia brasileira de regimes similares na região foi o fato de que seus dirigentes sempre consideraram o autoritarismo como formato político transitório e mantiveram, praticamente durante todo o período, a existência de partidos políticos, um calendário eleitoral e o Congresso em funcionamento, embora com restrições políticas importantes. Esta ambiguidade institucional da ditadura no Brasil se revela no processo de democratização mais recente, pois ele apresenta como uma de suas características centrais o fato de ter se desenvolvido através de negociações sob forte controle dos dirigentes autoritários. Sob este aspecto, ele é similar ao caso espanhol, como ressaltam Share e Mainwaring (1988). No entanto, uma diferença notável entre os dois países foi a dominância militar no regime autoritário brasileiro e a iniciativa de seus dirigentes de liberalizá-lo, ao passo que na Espanha o regime franquista era bem menos militarizado e a transição foi conduzida pelas lideranças civis. Esta distinção entre os dois casos ajuda a compreender a centralidade do problema do controle do poder político democrático sobre as forças armadas como fundamental para a consolidação da democracia no Brasil (AGUERO, 1992).

O início da liberalização política acontece quando os dirigentes de um regime declaram a intenção de promover sua liberalização e são acreditados pelos principais atores políticos. No caso brasileiro, este momento ocorre no final de 1974, quando o governo Geisel aceita a ampla e inesperada vitória do partido da oposição (MDB) nas eleições de novembro daquele ano, para deputados das Assembleias estaduais, para a Câmara dos deputados federais e para o Senado. É bem verdade que, em seu célebre primeiro discurso para o ministério, em 19 de março de 1974, Geisel fez um apelo “à imaginação política criadora” para dar início a uma “distensão lenta, gradual e segura”. A recepção de seu discurso foi preponderantemente cética, pois todos os generais- presidentes anteriores também haviam prometido a democratização do regime quando iniciaram seus mandatos.

Para as eleições municipais de 1976, o regime restringiu fortemente a propaganda eleitoral através de modificações da legislação específica. Em abril 11

de 1977, o governo fecha o Congresso por poucos dias para promulgar uma série de medidas constitucionais que alteravam profundamente a legislação eleitoral e garantiam a maioria do Congresso para o partido do governo (ARENA) nas eleições de 1978. O denominado “Pacote de Abril” alterou também o Colégio Eleitoral, encarregado de escolher o próximo presidente da República no início de 1979, e adiou para 1982 as eleições diretas para governador dos estados, dentre outras medidas arbitrárias. Geisel consegue, assim, controlar firmemente o processo de liberalização ao golpear alternadamente a oposição, com reformas pragmáticas visando manter maioria governista no Congresso, e a "linha dura" militar, sobretudo quando demite o ministro do exército, general Sylvio Frota, em 12 de outubro de 1977, como examinaremos mais adiante. Ao final de 1978, Geisel extingue o principal instrumento jurídico e o símbolo maior da ditadura militar, o Ato Institucional n° 5. Em suma, durante sua presidência, no que concerne aos militares, Geisel conseguiu se impor como se fosse um presidente “civil” e não como o representante das forças armadas no governo (STEPAN, 1986), as quais ele afastou das principais decisões políticas.

Assim, Geisel lega a seu sucessor por ele escolhido, general João Figueiredo, a tarefa de aprofundar a liberalização do regime, a partir de 1979, e, como parte de sua estratégia de transição, passar o poder ao término de seu mandato, em 1985, a um político civil proveniente do partido do regime. Os caprichos da fortuna realizaram esta tarefa por vias tortas, pois com a morte de Tancredo Neves, em abril de 1985, assume o poder José Sarney, que havia sido um dos quadros civis mais proeminentes do regime autoritário. Portanto, apesar do governo Figueiredo ter perdido o controle do processo político nos últimos anos de seu governo, o resultado final da fase de liberalização política foi muito próximo daquilo havia sido projetado pelos mentores da transição "lenta, gradual e segura".

2.2. Frota, a linha-dura e a sucessão presidencial

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O general Ernesto Geisel assume a presidência da República, em março de 1974, com seus principais ministros próximos da corrente castelista, e traz consigo um projeto de liberalização do regime, cujo processo ele pretende manter sob controle dos dirigentes autoritários. Tal projeto não contava com o apoio majoritário dos oficiais à época e foi mantido quase secreto pelo novo governo até assumir o poder; governo, aliás, que não havia sido escolhido para capitanear uma iniciativa deste tipo. Geisel traça com prudência sua estratégia incremental de liberalização política que, no plano militar, implica o afastamento das forças armadas do centro de decisões políticas do regime. De todo modo, pretendia governar “como um civil” (STEPAN, 1986) e não como um delegado da Revolução. A “linha dura” opôs-se desde o início à abertura política iniciada pela presidência do general Ernesto Geisel, acentuando a repressão política entre o final de 1973 e 1976, quando a esquerda armada já se encontrava praticamente aniquilada. Na composição inicial do governo Geisel, o general de exército Sylvio Frota fora escolhido comandante do Estado Maior do Exército, cujo ministro era o general Dale Coutinho, próximo de Geisel. Entretanto, o general Coutinho veio a falecer em maio de 1974, dois meses apenas após sua posse como ministro, e o novo presidente designou Frota para substituí-lo no comando da força terrestre. No governo Médici, Frota havia sido comandante do I Exército, onde ficou conhecido por ser refratário a torturas e maus-tratos a presos políticos. O general Frota não fazia parte do grupo “castelista” no poder, pelo contrário, havia apoiado Costa e Silva para a sucessão de Castelo Branco (1964-67), contra a vontade deste último, de Geisel e Golbery. Considerou ainda Emílio Médici (1969-1974) como o melhor presidente do ciclo militar. Frota considerava-se herdeiro dos tenentes e jovens oficiais dos anos 1920 e 30 que sacudiram os alicerces da velha república liberal-oligárquica e alçaram Getúlio Vargas ao poder em 1930. É digno de nota que o general Frota recorra a um artigo da revista dos “jovens-turcos”, A Defesa Nacional, de outubro de 1913, cuja trecho selecionado pelo autor transcrevemos abaixo, para justificar, no seu entender, a necessidade de o Exército intervir, ao menos episodicamente, nos assuntos políticos do país: 13

“O Exército – única força verdadeiramente organizada no seio de uma tumultuada massa efervescente – vai às vezes um pouco além dos seus deveres profissionais para tornar-se, em dados momentos, um fator decisivo de transformação política ou de estabilização social. (...) Sem desejar, pois, de forma alguma, a incursão injustificada dos elementos militares nos negócios internos do país, o Exército precisa, entretanto, estar aparelhado para sua função conservadora e estabilizante dos elementos sociais em marcha - e preparado para corrigir as perturbações internas, tão comuns à vida tumultuada das sociedades que se formam”.

Nesta citação do início do século XX, pinçada por Frota (p. 57), já encontramos os principais elementos justificadores das intervenções políticas dos militares durante todo o século passado: o Exército como única instituição efetivamente nacional, a instabilidade congênita das jovens nações, a incapacidade das elites políticas regionais construírem um projeto para o Brasil, a massa tumultuada, a necessidade de estabilização e modernização do país. Inferem-se daqui os motivos principais alegados pelos militares para exercerem o “poder moderador”, da Proclamação da República ao Golpe de 1964 (Stepan, 1975). Sylvio Frota tomará parte de todos os movimentos políticos do exército a partir de 1930: lutou contra a Intentona Comunista de 1935; em 1945 e 1954, apoiou a destituição de Vargas, a quem considerava um “velho oligarca, criado na escola política de Júlio de Castilhos e Borges de Medeiros” (p. 50); esteve contra a posse de João Goulart em 1961 e, finalmente, conspirou em 1964, alinhado com o grupo do general Costa e Silva. Apesar de tudo, acreditava-se democrata, o que para ele significava ser anti-totalitário, portanto, anticomunista, pois, após a II Guerra, o fascismo já sumira como atração ideológica credível.

O general Frota denominava o grupo que circundava a presidência Geisel (o próprio presidente, Golbery, Figueiredo, Heitor de Aquino) de “corrente político-militar Castelo-Geisel” (FROTA, 451). Aqui, o qualificativo de “político- militar” imputado ao grupo “castelista” merece um comentário mais detalhado. No pensamento de Frota, e da “linha dura” em geral, haveria uma incompatibilidade total entre as virtudes militares e a qualidades requeridas para a atuação política. Este trecho de “Ideais Traídos”, que critica o grupo palaciano, 14

traduz bem esta concepção: “Não há dúvidas de que a política, com suas artimanhas e manobras, muitas vezes de objetivos inconfessáveis, é arte ou ciência para iluminados. Nós, os militares, formados na linha de rígidos princípios morais, víamos o sofisma como vizinho da velhacaria e a coerência como um dever de consciência. Não podia eu, por isso, entender como homens de farda, que viram na esteira de uma revolução que pregava a moralidade em todos os setores, agissem daquela forma (FROTA, 310)”. Em outra passagem, onde se diz contrário à participação dos militares na política, torna-se ainda mais clara a compreensão do general Frota de que os mundos militar e político são dificilmente compatíveis: “O político, educado para transgredir, no caminho do poder contemporiza, preferindo ceder em parte a perder em todo. Usa a acomodação como método (...). O militar, preparado de outra maneira, vê na acomodação uma transigência lesiva aos seus pontos de vista e autoridade. Age pela dominação, seu método favorito, intentando, por isso, impor suas soluções” (FROTA, 268). Se na citação do parágrafo anterior, podemos encontrar ecos da oposição milenar entre filósofos e sofistas, nesta última nos vem ao espírito a distinção entre a “ética da responsabilidade” e a “ética dos princípios”, de Weber. É justamente o apego a esta última que distingue a corrente “linha-dura”. Com efeito, esta talvez seja a principal contradição política deste grupo, a propensão à intervenção política e, simultaneamente, a ojeriza por suas práticas e atividades típicas. Cabe lembrar a frase atribuída ao marechal Castelo Branco, logo de seus primeiros atritos com a “linha dura”, representada por seu ministro do Exército, general Costa e Silva: “Sem os radicais não se faz uma revolução, mas com eles não se consegue governar”. Frota acrescentaria: “O político e o militar (...) têm, forçosamente, de usar técnicas de vida diferentes. (...) Todavia, é preciso que o político não se esqueça de que o poder que empunha, quando é legítimo, é assegurado pelo militar” (p. 479). A propósito, o general Frota se socorre de Oliveira Vianna para fazer um comentário revelador a respeito dos oficiais “políticos” – como é o caso de Dutra, Góes Monteiro, Eduardo Gomes, Cordeiro de Farias, Castelo Branco, Geisel, Golbery, entre outros - a maioria dos quais criticados por Frota por transigirem com o “espírito militar”: “Os militares, quando se transfiguram em políticos, só se 15

lembram do Exército nos momentos de suas dificuldades, para nele se escudarem. (...) A Revolução de 1930 trouxe-nos um exemplar perfeito dessa mentalidade no general e senador Pedro Aurélio de Góis Monteiro, para só citar o mais ilustre vulto do grupo adepto dessa esdrúxula doutrina” (pp. 279 e 280). O exemplo é, de fato, mais-que-perfeito, pois o general Góes Monteiro, juntamente com o general Dutra, foram os sustentáculos de Vargas, até derrubá-lo em 1945. Provavelmente, a primeira prevenção do ministro do Exército Sylvio Frota com o presidente Geisel foi a tentativa, que se revelou finalmente bem-sucedida, de governar como um presidente civil, afastando os militares, sobretudo o Alto Comando das Forças Armadas das decisões políticas estratégicas do regime (STEPAN, 1986)). Consequentemente, seus ministros militares seriam delegados de seu governo junta às Forças Armadas e não representantes destas no governo, como até então. Frota esposará uma visão radicalmente antogônica: “Acalentava a esperança de que o presidente, sendo um militar, em face daquelas provas de apreço, prestadas pelas forças singulares em conjunto, sentir-se-ia a elas mais ligado, auscultando-as nos momentos difíceis da vida nacional sobre as graves decisões a tomar. Na realidade e em rude franqueza, ele [Geisel] nada mais era do que um delegado das Forças Armadas, porquanto não fora eleito pelo povo” [grifo nosso] (p. 321).

Frota, na condição de ministro do Exército, irá se chocar com o presidente a respeito de várias questões que punham em jogo justamente as prerrogativas políticas das forças armadas em um regime militar, desde que assumiu o ministério. Os exemplos no livro abundam, mas destacam-se aqueles ligados a promoções de oficiais-generais, nomeações para postos de comando de tropa, punições à oposição e os assuntos de política externa. Em relação à política externa de Geisel, conhecida como pragmatismo responsável - onde houve o reconhecimento da independência de Angola, o reatamento das relações diplomáticas com a China, a ruptura do acordo militar com os Estados Unidos, o acordo nuclear com a Alemanha - a oposição de Frota foi frontal e seus argumentos são fortemente carregados de conteúdo ideológico, notadamente de 16

cunho anticomunista. Nas relações internacionais, este tipo de posição ideológica não é realista, salvo quando a política externa do país se alinha totalmente com outra potência, como foi o caso no governo Castelo Branco e seu alinhamento automático com os Estados Unidos. O conflito entre aqueles que se alinhavam com Geisel e os seus oponentes militares foi intenso até o último ano de seu mandato. O controle do governo sobre os órgãos de informações e segurança constituiu o objetivo mais difícil de alcançar, pois era fundamental para a credibilidade do projeto político do governo que cessassem os atos que atentavam contra os direitos humanos - a tortura e execuções de militantes da oposição - assim como subordinar o aparato dos "duros" à hierarquia militar formal. É importante salientar que o Serviço Nacional de Informações (SNI) foi utilizado pelo governo Geisel como um dos instrumentos principais para conduzir o processo de liberalização do regime, ao permitir que o presidente da República tivesse um canal de informações independente dos serviços similares das forças armadas (CIE, CISA, CENIMAR), possibilitando - lhe manter sob relativo controle as atividades repressivas realizadas principalmente pelos DOI-CODIs, que se reportavam diretamente ao ministro do Exército. O general João Figueiredo, ministro-chefe do SNI, era o candidato não declarado à sucessão de Geisel e utilizava o órgão que dirigia para fortalecer sua candidatura, enquanto Frota fazia o mesmo com o CIE (FROTA, p. 449). Esta situação remete-nos a definição de “partidos militares” de Rouquié, quando o autor refere-se ao profundo processo de politização das forças armadas em regimes autoritários, onde suas correntes e grupos tornam-se praticamente partidos políticos e aliciam as instituições e órgãos militares como aparelhos políticos (ROUQUIÉ, 1980). A primeira batalha desta "guerra" no seio do regime ficou conhecida como o "caso Herzog". A repressão política se intensificara desde a vitória eleitoral do MDB no final de 1974, principalmente em São Paulo, onde o II Exército estava sob o comando do general Ednardo D'Avila Mello. Em outubro de 1975, um jornalista bastante conhecido, Vladimir Herzog, morre muito possivelmente sob tortura, segundo todas as evidências, na sede do DOI-CODI na cidade de São Paulo, mas o comando militar emite uma nota declarando que ele se suicidara 17

por enforcamento no cárcere daquele órgão de repressão. Quando a notícia da morte de Herzog torna-se pública, ocorre uma comoção nos meios jornalístico e político do país, e uma grande missa ecumênica em memória do jornalista é realizada na catedral de São Paulo. Geisel vai a São Paulo no dia seguinte e, nesta ocasião, adverte pessoalmente o general Ednardo e o ministro do Exército, general Sylvio Frota, que não admitirá que outro caso como este se repita, pois já era o segundo do ano naquela dependência militar. Todavia, em janeiro de 1976, morre nas mesmas circunstâncias e local o militante sindical Manoel Fiel Filho. Desta vez, a reação de Geisel é rápida, pois ele demite o general Ednardo imediatamente, sem realizar nenhuma consulta a hierarquia militar, nem mesmo ao ministro Frota. Foi a primeira vez que um general de quatro estrelas, membro do Conselho de Segurança Nacional, é exonerado de maneira humilhante, o que causa grande consternação no seio das forças armadas. A conjuntura política tornou-se muito tensa após a demissão do general Ednardo e todos os atores - governo, oposição, "duros", igreja e movimentos sociais - passam a agir profundamente desconfiados da lealdade dos outros às regras do jogo, sujeitas a modificações arbitrárias e, até mesmo, a um recuo político irreversível se a extrema-direita tomasse o poder. De fato, durante todo o ano de 1976, sucedem-se prisões políticas e cassações de mandatos de parlamentares, com o governo tentando controlar o processo político sem ceder aos "duros", nem permitir que a oposição tomasse a iniciativa. O maior risco, no entanto, para a continuidade do processo de liberalização política neste período encontrava-se na campanha movida pelo general Frota visando tornar-se sucessor de Geisel, mesmo contra o desejo deste último. A partir de 1975, o ministro Frota procura colocar oficiais de sua confiança no comando das unidades militares estratégicas, ao mesmo tempo em que busca tornar-se o porta-voz da ala mais radical das forças armadas. Geisel, por sua vez, faz o mesmo jogo de colocar os generais em quem confia em postos- chave, com a vantagem que é ele que os designava por disposição constitucional. Para Frota, a escolha dos generais deveria se encerrar no Alto Comando, sem o envio de uma lista elaborada por este órgão para que o presidente da República escolha os generais para promoção. Desta forma, 18

segundo ele, se evitariam as promoções políticas e se premiaria o mérito militar (pp. 300 e 301), opinião que demonstra, mais uma vez, um certo primarismo político do autor, compartilhado por boa parte dos membros da linha-dura. A retórica anticomunista de Frota acirra-se e ele refere-se ao governo que serviu como “a cavilosa contra-revolução branca de Ernesto Geisel” (p. 460). Nitidamente, embora jamais assuma no livro que procurasse suceder Geisel, procura viabilizar sua candidatura nos moldes daquela bem-sucedida de Costa e Silva, durante o governo Castelo Branco, quando o primeiro conseguiu tornar-se o candidato dos "militares enquanto instituição" (Stepan, 1986), apoiado pelos "duros". Frota obteve apoio de um grupo de parlamentares, intitulado Grupo de Ação Solidária, que propugnava sua candidatura. O autor cita que o número de “frotistas” no Congresso alcançava cerca de 80 parlamentares. No início do segundo semestre de 1977, e após neutralizar a ascensão eleitoral MDB através do "Pacote de abril", Geisel resolve livrar-se de seu ministro militar mais poderoso. O episódio da demissão do ministro Frota no feriado de 12 de outubro de 1977, cuidadosamente planejado por Geisel e seus colaboradores mais próximos merece um capítulo do livro do general Frota. Ele narra com minúcias as manobras que duraram todo o dia para arrebanhar apoio militar para resistir a ordem de Geisel, sem sucesso. No fim, o ex-ministro do Exército está isolado e amargurado com seus generais que, com raras exceções, preferiram ficar ao lado do presidente da República. Os únicos militares que propuseram fazer algo – tomar o Palácio do Planalto – foram cerca de sessenta oficiais do CIE, demovidos desta intenção por Frota, que preferiu passar o posto ao general Belfort Bethlen no final da tarde deste dia. A partir de então, retirou-se completamente da vida pública e escreveu Ideais Traídos. A gravidade da dinâmica política durante a presidência Geisel e a pressão a qual o próprio presidente estava submetido podem ser avaliadas e resumidas, a partir de seu ponto de vista, por um discurso que ele pronuncia numa convenção da ARENA em dezembro de 1977, quando a conjuntura já estava desanuviada com a demissão de Frota em outubro : "Tenho enfrentado obstáculos de toda ordem. De um lado, revolucionários sinceros mas radicais, 19

de outro contestadores apaixonados, subversivos, desordeiros renitentes."6 A expressão “sinceros, mas radicais” entrou para a cultura política brasileira como sinônimo de “radicais”, embora Geisel se referisse à linha dura do regime.

2.3. A linha-dura pós-Frota e o governo Figueiredo

O general Figueiredo assume a presidência da República em março de 1979 designando a democracia como objetivo final da "abertura política", que promoveria durante seu governo. Entretanto, a ausência da principal legislação autoritária (AI-5), abolida meses antes de sua posse, a recessão econômica e o surgimento de movimentos sociais, como o "novo sindicalismo", vão acelerar fortemente o processo político, tornando a tentativa de sua condução pelo governo cada vez mais problemática. Apesar destes constrangimentos, o governo Figueiredo prossegue com a estratégia gradual das reformas políticas. Em agosto de 1979, o regime propõe e faz aprovar pelo Congresso uma anistia ampla e politicamente inteligente, pois seu alcance concernia tanto os prisioneiros e exilados de esquerda como, preventivamente, todos aqueles indivíduos ligados aos órgãos de segurança do regime que cometeram crimes durante as atividades repressivas. No que concerne à utilização do processo eleitoral para pautar a transição, este recurso praticamente se esgota com a última reforma institucional do regime autoritário: a extinção dos dois partidos existentes (ARENA e MDB) e a implementação do multipartidarismo, em 1979. A anistia e a reforma partidária se inscreviam na estratégia do regime de dividir a oposição para acabar com o caráter plebiscitário crescentemente desfavorável a este, das eleições bipartidárias. O inconformismo da "linha-dura" militar com o aprofundamento da liberalização do regime, sobretudo a partir da anistia, em agosto de 1979, assumiu uma feição terrorista desde janeiro de 1980 até 30 de abril de 1981, data da "implosão" do Riocentro. Muitos atentados visaram bancas de revistas que vendiam publicações de esquerda, redações de jornal, agressões a políticos da oposição, e explosão de bombas na Câmara de vereadores da cidade de São Paulo e na sede da OAB no , onde provocou uma vítima fatal, a secretária da entidade, em agosto de 1980. A dúvida dos observadores

6 Cf. O Estado de São Paulo, le 2/12/1977, p.4. 20

políticos da época consistia em saber até que ponto os órgãos de informação e repressão do regime estavam direta ou indiretamente envolvidos nestes atentados, principalmente seus comandantes, e quais eram seus objetivos estratégicos. O caso Riocentro foi o mais espetacular de todos os atos terroristas, pois desfez boa parte daquelas dúvidas e foi fundamental para a configuração do processo político até o fim da presidência Figueiredo. Com efeito, este "acidente de trabalho" pôs fim a uma candidatura poderosa à sucessão de Figueiredo, a do general Otávio Medeiros, chefe do SNI, e provocou a demissão do general do ministério da Casa civil, o que privou o governo de seu melhor estrategista político. Paradoxalmente, o compromisso intramuros do regime, que garantiu a impunidade dos autores do atentado do Riocentro em troca do fim dos atentados e da continuidade da liberalização política, reforçou o contingente de militares que gostariam de retirar as forças armadas da ribalta política, como forma de proteger a instituição do desgaste acelerado do regime ao longo do governo Figueiredo.

O pacto político, que certamente ocorreu, em 1984, entre o candidato oposicionista, Tancredo Neves, e os militares, para impedir qualquer turbulência política na reta final da liberalização, garantindo àqueles últimos prerrogativas e salvaguardas políticas, foi facilitado pelo gradualismo e pela longa duração daquele processo, o que permitiu o transformismo político de muito atores. Assim, nos últimos anos do governo Figueiredo, praticamente já não mais existiam nem os radicais da oposição, nem a "linha-dura" do regime, aos quais os moderados de ambos os lados deveriam teoricamente isolar para levar a bom termo a transição. O continuísmo e o excesso de "garantismo" tornaram-se as marcas da democratização brasileira, que legaram "resíduos autoritários", reforçaram práticas políticas tradicionais do país e problematizaram fortemente a fase seguinte de democratização, sob o governo civil de José Sarney.

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Considerações finais

A literatura especializada destacou a forte afinidade que existiria entre o tipo de regime anterior, o modo de transição e os constrangimentos à consolidação da democracia. As características do regime autoritário, a cultura política do país e o padrão institucional adotado configuram e delimitam o processo de transição. Por sua vez, embora não sejam imutáveis, os comportamentos políticos e o padrão institucional estabelecidos ou reafirmados durante estes processos são responsáveis por uma herança durável, que afeta o novo regime democrático e as chances de sua consolidação (MUNCK & LEFF, 1997). A adoção de uma determinada via institucional para conduzir a liberalização política - a competição eleitoral limitada pela legislação autoritária -, com grande afinidade com a cultura política do país, provocou gradativamente a autonomização deste processo e a "naturalização" de suas regras pelos principais atores políticos (ARTURI, 2001).

A possibilidade de modificações significativas na cultura política e no padrão institucional de um país dar-se-ia em certas "conjunturas críticas", como é o caso dos processos de transição de regime (HUNTER, 1997). Ora, a liberalização do regime autoritário no Brasil demonstra que naqueles processos de transição que se realizam de forma muito gradual e controlada, as mudanças de regime político podem ocorrer sem alterações importantes no padrão institucional e na cultura política tradicional. Assim, a opção dos atores mais relevantes neste período reforçou a cultura política brasileira de conciliação "pelo alto" das elites, a utilização da competição eleitoral para mensurar o poder dos dirigentes face a seus opositores e a presença dos militares como um dos atores centrais no sistema político. A participação popular, passada a efervescência da campanha por Eleições Diretas-Já, em 1984, foi relegada a segundo plano, o que certamente não é estranho à fraca adesão às instituições democráticas no país, mensuradas por várias instituições de pesquisa.

No que concerne à linha dura militar, tal qual é reconstruída pela leitura das memórias do general Sylvio Frota, ela se esvanece enquanto ator político com a redemocratização do país. Todavia, certamente persiste ainda em alguns 22

oficiais a cultura política desta corrente militar, que tão bem o general Frota representou: os valores militares como praticamente incompatíveis com a atividade política, embora os militares devessem intervir na vida política do país quando necessário; adoção, portanto, de critérios castrenses para a atuação política; forte sentimento anticomunista; presidente da República como delegado das Forças Armadas; ausência de projetos alternativos ao regime autoritário. A “linha dura” formou-se no debate e na luta política com outras correntes militares e o resultado deste confronto foi a politização das forças armadas, o moralismo na política e o dissenso na hierarquia militar.

Atualmente, vivemos em um regime institucionalmente democrático, mas que deve ser aperfeiçoado pela adoção de medidas e políticas públicas que reforcem a cultura política democrática, pois este é o pilar mais frágil da democracia no país. Estas providências, além de outras de caráter institucional, são as melhores garantias da não ressurgência de uma cultura política do tipo “linha dura”, seja ela de origem militar ou civil.

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