OBSERVAÇÕES SOBRE A INDÚSTRIA FONOGRÁFICA DO SÉCULO XXI: RUPTURAS, CONTINUIDADES E ALGUMAS POSSIBILIDADES1 Daniel Ferreira Wainer (PPGAS/MN/UFRJ)

Palavras-chave: Direitos Autorais ; Pirataria ; Produção Musical

Objetivos e Metodologia O presente trabalho se propõe a investigar o funcionamento da indústria fonográfica a partir de meados dos anos 2000. Neste caminho, estarei mais especificamente atento à digitalização do mercado e à pirataria; às controvérsias em torno da questão dos direitos autorais; às relações entre grandes gravadoras e selos independentes; e ao papel desempenhado pelos produtores musicais e técnicos de som. A fim de contemplar estes objetivos sigo as considerações de alguns dos principais meios de comunicação impressa e digital, de autores que têm atentado para o assunto nos últimos anos e de alguns personagens – músicos, produtores, professores de música, empresários e arranjadores – entrevistados por mim em trabalho de campo realizado no Rio de Janeiro, entre julho de 2014 e junho de 2015. Acrescenta-se a esses elementos a “participação observante” no contexto dos estúdios de música, o que se deu em função de minha trajetória pessoal.

Mudanças no mercado fonográfico Principio, então, lembrando de um caso contado a mim pelo músico e produtor Roberto Menescal. Ao explicitar o fio de mudanças ocorridas com a tecnologia ao longo da História, este personagem enfatizava que “as transformações foram muito grandes, só que a gente esquece delas”: [...] em 87, por diversas razões, eu acabei conhecendo um bruxo [...]. Conversando com ele, aproveitei e falei: ‘cara, o que vem por aí [...] de novo, em música [...]’? ‘Nada’. ‘Nada? Como’? ‘Roberto, nós estamos no final do século. Então novo não tem’. [...] ‘Pô, então eu estou perdido’! ‘Não, isso é outra coisa. Se você quer saber o que você deve fazer é uma coisa. O que vem de novo eu já te respondi’. ‘Tá. Então, o que eu devo fazer’? ‘Não faz. Refaz’.

Nesse mesmo diálogo, o tal bruxo perguntaria para ele: “Como era a gravação em

1 Trabalho apresentado na 30ª Reunião Brasileira de Antropologia, realizada entre os dias 03 e 06 de agosto de 2016, João Pessoa/PB.

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1950”? “[...] Era em acetato, o cara passava um negócio assim, gravava e não podia voltar atrás [...], não podia nem ouvir. Só ouvia depois de preparado. E era um canal de gravação, então você gravava uma orquestra inteira com o maestro aqui, [...] todo mundo junto. Não podia o cantor depois botar a voz [...]”. Tendo ouvido esta descrição, o bruxo sentenciaria: Eu se fosse você pegaria as músicas dali dos anos 45, 50, 60, 70, que foi onde a música cresceu e vieram várias formas de música no mundo inteiro. De rock, da bossa, dos baianos, de todo mundo, Jovem Guarda. Refaria essas músicas todas com a tecnologia de hoje [...] porque essas músicas foram testadas [...] e essa geração conhece, essa não conhece. Então você estaria colocando músicas novas pra geração, mas todas que já foram testadas, [...] foram bem aceitas.

Menescal fez o que o bruxo indicou, ora mexendo nos catálogos das grandes companhias fonográficas, ora regravando músicas antigas com artistas menos badalados, e parece ter tido um bom retorno, segundo o próprio. Essa história ilustra um pouco da importância da tecnologia como mediadora dos processos de trabalho, das possibilidades dos músicos dentro do estúdio, no contexto fonográfico, e da criação de gostos no seio de toda uma geração2. Afinal, “a gente está falando que o século, na teoria, nos anos 50, define um pouco o que vai ser dali em diante. Depois tem que acabar certas coisas. Senão o bonde puxado por burrinhos estava aí até hoje”. De acordo com Menescal, em certo sentido, a passagem para o contexto digital tem interferido na produção fonográfica da virada do século, na medida em que toda uma estrutura gestada em meados dos anos de 1950 está se transformando em algo ainda indefinido. Nesta mesma linha, o músico Luiz Guilherme, ex-integrante da banda Inimigos do Rei, lembra que “a indústria cultural foi construída em cima de mitos. E esses mitos vieram muito nos anos 50, nos anos 60 [...]. É isso que está morrendo [...], se transformando”. Afinal, não se pode comparar, por exemplo, as gravadoras atuais com as que havia antigamente, o que se coaduna com as seguintes palavras, mais uma vez, de Roberto Menescal: “Está acabando [...], não dá pra pagar mais [...]. É um processo em decadência, [...] mais três anos, quatro e acabou o que era uma gravadora. O que vem eu não sei”.

2 Os relançamentos, com efeito, são extremamente comuns ainda no contexto atual. Um bom exemplo desta prática fonográfica pode ser encontrado na seguinte matéria: . Último acesso: 27/12/2015. Artistas como George Israel, em contrapartida, não crêem que as reedições de obras antigas rendam tanto assim para os artistas em si. Segundo ele: “Por exemplo, você tem um revival dos Novos Baianos. Eu não acho que os caras ganharam dinheiro pra caramba com isso. Eu não acho que teve um retorno. Os caras fazem show, mas não teve aquele retorno de: ‘caramba, voltou à moda. Vendem disco pra caramba, os caras ganharam a maior grana’ [...]. Você vê hoje em dia os caras lançarem uma reedição dos Novos Baianos que tenha vendido pra caramba? Não rola essa coisa”.

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As considerações anteriores explicitam o fato de que as grandes companhias do mercado fonográfico parecem ter mudado sua forma de atuação com o passar dos anos, o que, no entanto, não impede que ainda tenham força significativa. Menescal deixa claro: “Não vou dizer que a Som Livre esteja falindo porque aproveita a coisa da Globo, mas está difícil [...]. Está debruçada em discos religiosos e, como se diz, em discos sertanejos, gospel, porque a cara do Brasil é isso”. Com efeito, é visível que a produção musical ingressa em um período de digitalização mais explícita a partir de meados dos anos 2000, sobretudo em virtude de algumas transformações de ordem tecnológica que modificam substantivamente o mercado fonográfico (WAINER, 2016). Autores como Dias (2010) e Herschmann (2010), por exemplo, colocam que o desenvolvimento dos aparelhos celulares e o deslanchar de suas vendas possuem especial relevância neste contexto, na medida em que oferecem novas possibilidades de consumo da música. A hipótese acima vai de encontro à fala de mais uma pessoa entrevistada por mim, a publicitária Gabriela Hermanny3. Segundo ela, o mercado fonográfico brasileiro tem se caracterizado, nos últimos anos, especialmente pelo consumo de música através de aparelhos de telefonia móvel. Nesta via, ela lembra que são comercializados, sobretudo, os chamados “ringback tones” – músicas de chamadas – em função de fatores bastante diversos. De acordo com a publicitária, o Brasil possui características únicas, pois tem pouca penetração de banda larga e baixo acesso à internet de qualidade, aliados a um cenário de ampla desigualdade social. Em virtude disso, a maioria dos celulares do mercado é pré-paga e não tem acesso a cartão de crédito e a cartões internacionais, o que contribui para que uma grande massa de gente acesse música pelo celular. Na realidade, a visão de mercado de Hermanny se coaduna com a de Menescal, na medida em que ela também enfatiza a preponderância das vendas ligadas aos segmentos sertanejo e gospel4. Referindo-se a um momento mais contemporâneo da indústria, localizado entre meados da década de 2000 e início de 2010, Hermanny observa uma grande distensão no meio fonográfico, pois ao mesmo tempo em que subsistem as vendas de mídias físicas, como CDs e LPs, cresce a comercialização virtual de música por meios piratas, bem como os downloads oficiais grátis disponibilizados pelas

3 Hermanny foi funcionária do Departamento de Marketing da Som Livre e, atualmente, trabalha na Vevo, joint venture responsável pela produção de vídeos musicais e outras formas de entretenimento digital. Ela trabalha na área de distribuição digital da empresa.

4 George Israel é outro a enfatizar que “o que é mais consumido disparado é sertanejo”.

3 companhias de distribuição digital. Com efeito, as grandes empresas já estão se reorganizando a fim de obter ganhos com este tipo de comércio: o mercado passa a identificar, afinal, que as “vendas físicas estão caindo” e que o “mercado digital está crescendo 30% em média”5 de modo concomitante à pirataria, a qual veio “quando começou a surgir a música digital”. Para a publicitária, enfim, “as pessoas só começaram a consumir quando os players (empresas) começaram a se estruturar”, já que, até este momento, os piratas haviam arrasado as grandes empresas, fazendo com que as músicas fossem ouvidas de forma gratuita por meio da troca de arquivos digitais e da internet. Assim, a referida estruturação tem a ver, sobretudo, com a percepção, por parte da indústria mais geral, de que se deve buscar uma forma de obrigar as pessoas a pagarem pelo conteúdo musical ouvido de forma digital. Em outras palavras, pode-se dizer que a reorganização do mercado fonográfico tem ido na direção de tentar impedir que a música possa ser consumida gratuitamente (WAINER, 2016) e, para isso, várias medidas têm sido tomadas.

Compartilhamento em rede, comércio digital e direitos autorais A título de exemplo, uma série de matérias publicadas recentemente, as quais enfatizam a contrariedade da indústria fonográfica em relação à veiculação de música gratuita na internet, especialmente por meio da pirataria – downloads –, naturalmente, e do streaming6. Enquanto uma delas mostra que os “serviços de música por streaming crescem e preocupam a indústria fonográfica”7, outra anuncia que a Apple está se unindo às gravadoras contra este tipo de comércio e veiculação musical8. Nesta mesma linha, uma terceira lembra que todas as principais gravadoras multinacionais –

5 Diversas matérias publicadas na mídia corroboram a fala acima. Dois exemplos de reportagens que expressam esta opinião podem ser encontrados em: , último acesso: 18/12/2015; e: , último acesso: 18/12/2015.

6 O streaming, também chamado de fluxo de mídia, é uma forma de transmissão de dados via internet. O Youtube é um dos principais sites que funcionam por meio deste método de reprodução.

7 Matéria publicada no dia 12/5/2015. Disponível em: . Último acesso em: 7/1/2016.

8 A referência se encontra em: . Último acesso em 18/12/2015.

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Universal, Warner e Sony – desejam que esses serviços gratuitos sejam limitados9. Há ainda uma quarta matéria, que sugere a possibilidade do streaming pago ao lembrar que o crescimento da venda de música por meio deste serviço fez com que a Associação Brasileira de Produtores de Discos (ABPD) afirmasse que o modelo é o que tem maior potencial de ascensão, com o crescimento das vendas digitais10. Todos os encaminhamentos acima vão de encontro à tentativa de cooptação de empresas que, na prática, acabam colaborando com a pirataria como, por exemplo, a BitTorrent, responsável por grande parte dos arquivos compartilhados em rede nos últimos anos11. Este movimento, encabeçado pela Recording Industry Association of America (RIAA), visa estabelecer uma parceria com essas organizações, a fim de impedir que as mesmas contribuam para o comércio gratuito de músicas através da internet12, desejo já apontado nas reportagens anteriores. Iluminando mais uma vez essa aspiração, uma reportagem publicada no site da “Globo.com” e reproduzida pelo “Observatório da Imprensa”, em 4/2/2014, sugere claramente a direção para a qual se encaminha a indústria fonográfica em seu título, ao estabelecer que “o futuro é o mercado de assinaturas”13. Na mesma linha, outra matéria publicada pelo jornal O Globo, em 14/4/2015, mostra, já em seu título, que as “assinaturas de streaming de música crescem 39% e já representam 23% do mercado digital global”14. De certa forma, é possível afirmar que este tipo de serviço tem contribuído para a diminuição da pirataria, uma vez que a popularização das plataformas que o oferecem colabora com o decréscimo do número de downloads ilegais. A existência de serviços de

9 A referência se encontra em: . Último acesso em: 18/12/2015.

10 A referência se encontra em: . Último acesso em: 18/12/2015.

11 Vale mencionar, nesta discussão, a importância do movimento de software livre, o qual objetiva garantir a liberdade de execução e modificação de softwares por parte de usuários, com vistas à distribuição dos mesmos pela rede de internet.

12 A referência está localizada no seguinte endereço: . Último acesso: 18/12/2015.

13 Reportagem disponível em: . Último acesso em:17/12/2015.

14 Disponível em: . Último acesso: 17/12/2015.

5 streaming totalmente gratuitos, por outro lado, prejudica a venda de produtos digitais, o que tem gerado muitas reclamações por parte das grandes empresas fonográficas, as principais beneficiárias das vendas15, mas também de artistas – os quais acabam ficando sem os royalties correspondentes à execução de suas músicas. Com efeito, a questão do streaming é tema de debate entre músicos, advogados e a indústria de forma mais geral, tanto em países como o Brasil16, quanto nos Estados Unidos. Lá, personagens como Joanna Newson, cantora, compositora, harpista e pianista, consideram o streaming gratuito um grande problema para o seu segmento, na medida em que o mesmo dificulta a possibilidade de um retorno em direitos autorais, tal como a indústria sempre fizera17. Dentro desta complexa equação e relativizando a opinião de Newson, enfatizo que talvez tanto o comércio pirata quanto as vendas digitais, tal como as vendas de discos de antigamente, nunca tenham dado um retorno tão grande diretamente para os artistas, como pode parecer a um olhar descuidado. A venda de registros fonográficos, de fato, tende a funcionar muito mais em termos de divulgação dos trabalhos dos mesmos, do que propriamente no sentido de uma contrapartida financeira. É o que colocam tanto Dias (2010) quanto vários dos personagens que entrevistei, os quais afirmam que os artistas, na realidade, costumam ganhar dinheiro sobretudo nos shows que realizam. A fim de justificar esta hipótese, relembro aqui a fala de um de meus interlocutores em trabalho de campo, o trombonista da banda Cidade Negra e do grupo que acompanha o cantor Diogo Nogueira, Fabiano Segalote. Quando perguntei a ele se o retorno financeiro vem, para a maioria dos músicos, através dos shows ou da venda de CDs, obtive a seguinte resposta: “Hoje em dia o artista não ganha mais dinheiro com venda de disco. A pirataria está aí, né? Há quanto tempo você não compra um CD”? Já Viviane

15 Informações retiradas de: . Matéria publicada em 29/10/2015. Último acesso em: 17/12/2015.

16 A referência está em: . Último acesso em: 18/12/2015.

17 A referência está em: . Último acesso em: 18/12/2015. Esta opinião se relaciona com algumas considerações do músico George Israel acerca da retribuição de direitos autorais. Na sua visão, “não era uma coisa do Brasil todo, mas você ia em uma universidade, com certeza a maioria absoluta comprava disco. Hoje não é assim: não compra disco e de repente não compra música na internet”. Segundo Israel, “você pode não estar comprando disco, mas você está consumindo, você está acessando. Agora vai muito pouco pras pessoas”, o que faz com que o músico sentencie: “Eu não sei qual é o retorno que tem, fora a história de ficar conhecido e fazer show”.

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Godoi, cantora que tive a oportunidade de entrevistar, colocaria da seguinte forma: “Acredito que os artistas mais antigos tinham um contrato maior com a gravadora e um percentual da vendagem dos discos. Royalties [...], que eram pouca coisa”. Nas palavras dela: O próprio Gil, Caetano, esse pessoal todo não ganhava dinheiro com disco. Quando o Gil gravou ‘Realce’, na década de 80, ele ganhava muito dinheiro com show, porque o percentual que a gravadora dava era muito pequeno. E esses mais antigos, lá pra Orlando Silva, Cartola, esse pessoal então não ganhava nada. (Viviane Godoi)

Esta afirmação foi feita com alguma segurança, pois Godoi trabalhou com durante a época de lançamento do álbum supracitado. Ela ainda sugeriria que “eles ganhavam, assim, tipo 2% do valor da vendagem do disco”, o que se relaciona diretamente com a fala de outro de meus “nativos”, o baixista Keko Calazans. Segundo ele, “na verdade, quem ganhava dinheiro com disco, mesmo, era a gravadora”, o que significa dizer que “o artista mais top que existe ganha 10% das vendas. Um Roberto Carlos, por exemplo”. Calazans lembraria de uma situação pessoal para exemplificar suas palavras: Quando a gente foi para o SuperStar18, as bandas – 40 bandas! – assinaram contrato com a Som Livre. A gente era contratado da Som Livre e eles tinham 1 ano para exercer o contrato [...]. Não podia aparecer na Record, não podia aparecer na TV sem avisar. No contrato a gente recebia 7% de cada disco19. (Keko Calazans)

Todas essas observações relacionadas à retribuição financeira recebida pelos músicos de variadas épocas mostram as mudanças de funcionamento de um mercado complexo e em constante transformação. Afinal, as grandes companhias de discos investem muito dinheiro – Viviane Godoi chegaria a conjecturar que “as gravadoras gastavam 500, um milhão de reais pra botar um disco na rua” – em alguns artistas na expectativa de receber um retorno em troca, o que nem sempre se consuma. Talvez em função disso possam ser justificadas as baixas porcentagens de direito autoral oferecidas

18 Programa, transmitido pela TV Globo, que se assemelha aos antigos festivais dos anos de 1960, pois se baseia em apresentações de bandas ao vivo e em avaliações por parte de um corpo de jurados. Atualmente, contudo, o público vota por meio de um aplicativo de smartphone nas suas bandas favoritas, concomitantemente às apresentações.

19 Um último exemplo relacionado à questão das porcentagens foi dado pelo músico Uirá Bueno, outro de meus entrevistados em trabalho de campo. Efetivamente, ele lembra “de ouvir falar que o Raimundos, na época que estava bombando, em 2000, ganhava uma porcentagem, cara [...]. Posso estar errado, mas eu acho que era 0,25 centavos por CD. E o CD era ridículo, era 20 reais”.

7 aos músicos pelas suas gravações, assim como o fato de o verdadeiro retorno financeiro tender a acontecer, na realidade, através dos shows realizados – se é que este caso corresponde realmente à maioria dos artistas.

O problema da divulgação: independentes e mainstream Por estar com seus ganhos abalados desde o final dos anos de 1990, a indústria fonográfica tem buscado, nos últimos anos, administrar as carreiras de alguns músicos e compositores “exigindo contratualmente participação nas rendas obtidas com os shows” (Dias, 2010, p. 10). Este seria, talvez, “mais um dos motivos da perda do interesse de alguns artistas em se manter numa major, negando aquilo que muitos durante décadas mais desejaram”20 (Dias, 2010, p. 10). É em função de fatores como este que, para os mais variados cantores, músicos e compositores, o caminho da independência se torna o único possível e a internet desponta como a principal vitrine de divulgação musical da indústria, mesmo com a dificuldade de recebimento de um retorno financeiro. Isso pode ser verificado em diversas declarações dadas nos últimos anos até mesmo por artistas já consagrados, como o músico e produtor Roberto Menescal. Segundo ele, “a internet promove, [...] o pessoal sabe. Então mudou isso. Tem que sair no jornal ‘O Globo’? Não tem não”. Ainda mais “pro tipo de coisa que a gente faz, pra um pessoal [...] que tem condição melhor [...]. Sei que não é a minha ida ao Faustão que vai fazer”21. Na realidade, “a criançada está ensinando os mais velhos, muda todo o

20 O baterista Uirá Bueno corrobora esta colocação da seguinte maneira: “Quando teve essa transição das gravadoras sabendo que não estava mais dando dinheiro para vender, elas começaram a se ligar que o lance era agenciar os artistas, virar meio que gravadora/agência. Então começaram além de bancar o disco todo, a vender o show. O artista tira uma porcentagem do que antes quem fazia era o produtor/empresário, à parte”. O músico Luiz Guilherme, por sua vez, é mais crítico: “Agora as gravadoras estão fazendo o que: ‘ah, vocês querem a minha ajuda? Eu vou querer uma porcentagem do seu show’ [...]. Uma máfia”!

21 Outro de meus entrevistados que fez interessantes observações acerca dos diferentes nichos de mercado e da popularização da indústria cultural foi Keko Calazans, baixista formado pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (Unirio). Segundo ele, “o popular tomou conta porque a maior parte da população é popular. Por exemplo, a bossa nova era um estilo de elite. E por que fez sucesso [...]? Quem tinha rádio? Era a elite [...]. As coisas se popularizaram [...]. Antigamente o rádio era restrito a uma classe média, média alta. A parte da população de baixa renda tinha umas rádios específicas: de forró, de brega, mas era específico, era minoria. Tinha a Fluminense, a Transamérica: era rock, a maioria. Porque quem consumia rádio era a classe média, média alta. As transformações econômicas que ocorreram principalmente depois do governo Lula popularizaram, determinaram o que passa na TV e no rádio. Possibilitaram que as pessoas tivessem acesso a bens que não possuíam antes. A TV também mudou, agora tem TV a cabo e TV aberta. Todo mundo hoje em dia tem TV a cabo. Aos poucos, vão tendo acesso a isso. O que passa na TV hoje também é muito mais popular do que antigamente. O que passa e que é mais requintado passa a noite, para um público específico, em um horário no qual o grosso da população não vai poder assistir. Público que não tem que acordar às 4 da manhã. Aquele produto é para uma classe muito específica, que possui um status específico”.

8 conceito”. Essas sinalizações levam à ideia de que o principal problema da indústria fonográfica contemporânea gira em torno da difusão e não da produção musical em si, pois, se antigamente artistas como Djavan ou faziam um disco por 500 mil dólares, de acordo com Menescal, “hoje você com R$30 mil faz um bom disco [...]. Aí vai se virar pra mostrar esse disco”. O caminho atual, em síntese, talvez não seja mesmo tão diferente do que já foi um dia. Roberto Menescal pergunta, retoricamente: “Quando você lançava o seu disco, você não trabalhava? Não ia a rádio, não ia a jornal etc? Tem que fazer a mesma coisa na internet. Tem que ir a todos os blogs, tem que divulgar”. Na sua opinião, aparentemente, “ainda não tem essa consciência de que é na internet que você vai divulgar [...]. Vai botar na internet e acabou? Vai trabalhar [...] ou põe gente trabalhando”22. Para Menescal, uma empresa que marca claramente os novos caminhos da indústria fonográfica é a Deckdisc, “a companhia mais bonita, estúdios bonitos. Um andar inteiro” no Shopping Downtown, localizado no bairro de São Conrado, no Rio de Janeiro. Lá, de fato, o funcionário “faz o seguinte: só ganha Youtube. Seis garotos trabalhando no Youtube” e falando: “Consegui fazer hoje 600 views”, todos “multiplicando essa coisa”. A empresa citada acima até possui, segundo o músico e produtor, uma “fábrica de vinil” utilizada para fazer discos basicamente para a “satisfação do músico” que os demanda. Entretanto, o grande negócio deles é mesmo o Youtube: “A coisa está aí pra acontecer [...]. Conheço pessoas que estão trabalhando o dia inteiro nisso pra se organizar”. A questão do retorno às mídias antigas como o vinil, por exemplo, não passaria de uma espécie de colecionismo, na medida em que se “tem um vazio aqui, aí você começa a reviver coisas [...]. Bicho, não tem volta. Até de casal”. Para a música ganhar novas formas, para se adaptar aos novos tempos, de fato, algo precisa acabar: [...] a coisa vai caindo e aqui vai aparecendo aos pouquinhos. O disco não vai mais ser disco, imagina? [...]. Eu estou falando da coisa da tecnologia. Tudo começa a cair, a cultura. E a tecnologia continua. Ela permite que a cultura venha novamente de outra forma. (Roberto Menescal)

O contexto fonográfico atual se caracteriza fortemente pelo surgimento de selos independentes como, por exemplo, o Albatroz, administrado por Menescal. Este selo foi

22 Talvez a principal diferença de funcionamento do mercado após o advento dos computadores resida no fato de que a divulgação de antigamente era facilitada por produtores, gravadora etc. Em outras palavras, por toda uma estrutura que já levava o músico para os caminhos certos. Atualmente, o artista pode distribuir seu produto de uma forma exclusivamente digital, não precisando necessariamente ir à rádio ou à TV. Afinal, o universo musical pode ser acessado nas mais diversas plataformas, como, por exemplo, o Facebook e o Youtube.

9 criado pelo músico, nas suas palavras, “porque não queriam alguns projetos, só por causa disso”. Neste sentido, ele define: “Não é que eu quisesse ter uma gravadora por distribuição, mas aquilo foi caindo [...], a coisa caindo no mundo inteiro [...]”. Segundo o artista, os próprios estúdios independentes já têm uma grande qualidade23, pois “a tecnologia permite isso”, o que mostra que esta última está mais distribuída e menos nas mãos exclusivas das grandes gravadoras: [...] quando eu era diretor da PolyGram, a última mesa de gravação que a gente comprou lá custou 600 mil dólares [...]. Seis caras com umas tiras de couro trazendo ela. Hoje você tem uma mesa desse tamanho, uns 50 centímetros assim, que faz mais do que aquela mesa e custa, sei lá, 5 mil dólares [...]. Facilitou muito, a tecnologia facilitou muito a obtenção de um som bom, de uma qualidade boa. (Roberto Menescal)

É possível dizer, dadas essas últimas palavras, que as transformações técnicas e estruturais da indústria fonográfica permitiram que o caminho independente, tanto dos músicos quanto dos pequenos selos e companhias, tenha se expandido. Estes últimos, por sinal, incrementaram suas atividades e atingiram um alto nível de profissionalização, estabelecendo parcerias inclusive com o circuito mainstream, o que tem se tornado cada vez mais comum. Visibiliza-se, portanto, a autonomia e a alta capacidade de organização de inúmeros grupos ligados à música e desvinculados das grandes gravadoras, sendo um bom exemplo nesta direção, no Rio de Janeiro, a Audio Rebel24 – casa de shows, estúdio de ensaios e gravação, selo musical. Este espaço, localizado no bairro de Botafogo, reúne diversos produtores, músicos, técnicos de som, entre outros, os quais atuam de forma terceirizada junto à mais variada gama de artistas. Dentre estes personagens se destaca Alexandre Kassin25, músico e produtor bem- sucedido no contexto atual que consegue estabelecer uma ponte entre o universo indie e o mainstream. Tendo trabalhado em álbuns de bandas e artistas como Caetano Veloso, Jorge Mautner, Adriana Calcanhotto, Vanessa da Matta, Marcelo Jeneci, Erasmo Carlos,

23 O músico , por exemplo, outro entrevistado por mim, destaca que adora os “estúdios pequenos [...]. Parece que você está mais em casa [...]. Desde que o som, logicamente, seja bom e renda muito”.

24 A “Rebel”, como é carinhosamente chamada por seus frequentadores, já foi tema de matéria publicada pelo jornal O Globo, em 30/9/2015: “Com palco e selo, Audio Rebel vive como um anti-Rock in Rio”. Disponível em: . Último acesso em: 17/12/2015. O jornal “O Globo” publicou ainda, em 17/10/2015, outra matéria a respeito deste espaço: “Audio Rebel celebra uma década de atividades”. Disponível em: . Último acesso em: 26/12/2015.

25 Vale lembrar que Kassin já foi entrevistado por Bacal (2010).

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Los Hermanos, entre outros, sua trajetória ilustra um pouco do trânsito que compreende o funcionamento da produção fonográfica contemporânea, caracterizada pela interligação entre estas diferentes esferas. Afinal, é possível afirmar que Kassin trabalha, tanto com músicos que decidem por conta própria realizar o seu disco, produzindo todas “as suas etapas sem vínculos contratuais com uma produtora, seja ela de que porte for” (DIAS, 2010, p. 12), quanto com os “dinossauros” supracitados. Outro exemplo empírico de artista e produtor que faz uma interface entre o universo mainstream e o independente é Marcos Valle, também entrevistado por mim em trabalho de campo. De acordo com ele, seu último disco, gravado com a cantora americana Stacey Kent, foi feito da seguinte forma: “Nós gravamos ele, nós pagamos. Não tinha a Sony por trás”. Foi somente em um segundo momento, depois de registrarem os shows no espaço Miranda, que Valle negociou com a Sony: “Ela comprou e lançou no mundo inteiro”. Além deste trabalho, o músico ainda lembrou do caso de mais um de seus discos, chamado “Estática”. Nas suas palavras, o álbum foi todo gravado “em um estúdio em Santa Teresa”, embora a mixagem tenha sido feita em parceria com produtores ingleses. O compositor e produtor explicita o processo da seguinte forma: “Os ingleses foram pra lá e ficamos trocando bola todo dia, tudo por computador”. Valle dizia: “o piano está fora, cara, leva o piano. Ficou isso”? Ao que eles respondiam: “Ficou, mas e esse metal aqui? O saxofone está mais alto, joga”. Para Valle, afinal, “mixar em uma semana é sensacional”, algo novo em comparação com outros tempos: “Foi como se eu tivesse entrado ao lado dos caras. E o resultado ali ficou perfeito, melhor do que eu imaginava [...]. Essa coisa de te permitir isso é maravilhoso”, uma característica singular do processo de produção fonográfica no contexto contemporâneo.

O papel dos produtores e engenheiros de som Para falar sobre a indústria de discos a partir do século XXI, seguindo algumas pistas já deixadas por Valle, é absolutamente necessário enfatizar a importância de certas figuras ligadas ao aparato técnico de produção, as quais são, muitas vezes, as principais responsáveis pelos movimentos criativos mais importantes dentro deste cenário26. Refiro- me, aqui, tanto aos engenheiros de som quanto aos produtores musicais, o que coloca as

26 Arrisco essa afirmação considerando o nível de espetacularização ao qual a maioria das produções – tanto shows quanto gravações e videoclipes – chegou. O “artista” em si tem a mesma importância do que tinha há algumas décadas? 11 próximas páginas na mesma trilha de alguns argumentos já propostos por Vicente (1996). Este autor assinala que “até o advento dos gravadores [em meados da década de 1950], aos engenheiros e técnicos cabia, durante a sessão de gravação, pouco mais do que posicionar os músicos, conectar cabos e apertar botões”27 (VICENTE, 1996, p. 23). Com o apoio destes aparelhos, no entanto, os engenheiros e técnicos passam a poder manipular o conteúdo gravado pelos artistas, o que faz com que a performance dentro dos estúdios vá deixando de ter o caráter de produto acabado para se transformar “na matéria-prima da atividade dos técnicos que irão trabalhar na mixagem e edição do disco” (VICENTE, 1996, p. 28). É neste momento, enfim, que a rudimentariedade e a artesanalidade dos processos dão lugar a mecanismos cada vez mais sofisticados, a técnicas específicas manejadas por estes profissionais, capazes de falar tanto a linguagem da maquinaria, quanto a dos músicos e compositores. Em um contexto mais etnográfico, já nos anos 2000, Bacal (2010) investigaria agentes artísticos que se autodenominam “produtores”. Através do convívio com estes personagens, ela pôde identificar que a autenticidade de suas criações é intermediada por tecnologias – já estamos aqui frente a um universo digital – que passam a fazer parte de seu processo criativo. Efetivamente, a autoclassificação destes agentes está intimamente associada às múltiplas formas de atuação dos mesmos, na medida em que há uma espécie de “vazio” na definição de sua personalidade social, em virtude das diferentes possibilidades de atuação. A autora está se referindo, com efeito, tanto a DJs quanto a técnicos de estúdio, produtores musicais, entre outros, o que torna possível a constatação de que a ambiguidade é assumida como potencialmente favorável pelos agentes em suas formas de atuação, produção e intermediação artística. Nota-se, assim, a importância que a categoria “digital” assume enquanto ferramenta de trabalho, plataforma de criação, estética ou fetiche dos produtores investigados, o que ilustra a associatividade que esta forma de atuar desenvolve com os meios técnicos. Um dos DJs entrevistados pela autora, por exemplo, explicita claramente essa forma de relação social mediada pelos objetos porquanto diz que não sabe nada de “teoria musical, de notas, de harmonia, de tom, [...] [ou se o acorde] mudou pra uma

27 Desta forma, “o trabalho dentro do estúdio resumia-se a reunir na sala de gravação todos os músicos participantes da sessão, posicioná-los a distâncias variáveis do microfone em função do volume relativo que cada instrumento deveria ter dentro do conjunto, abafá-los se fosse o caso e, depois de tudo pronto, gravar a música o número de vezes que fosse necessário até a obtenção de um registro considerado ideal. Não haviam recursos para a correção de erros eventuais ou para qualquer alteração posterior dos resultados sonoros obtidos” (VICENTE, 1996, p. 18). 12 quinta”, mas que entende de “coisas técnicas, de produção de música, de engenharia de som” (BACAL, 2010, p. 30). A fim de continuar desenvolvendo a questão da forma de atuação dos produtores, abro um espaço, também, para os depoimentos de meus entrevistados em trabalho de campo, os quais explicitam como a categoria “produtor” pode designar diferentes personagens e formas de mediação dentro de contextos ligados à música. Para Miguel Barcelar, por exemplo, produtor e empresário do ramo musical que trabalhou em grandes gravadoras como a PolyGram e com artistas como Gilberto Gil, Nara Leão, entre outros, sua profissão “agora é uma profissão montanha-russa. Sobe devagarzinho e despenca rápido, muito oscilante”. Se por um lado ele diz que “tem que correr atrás”, por outro, lembra: “Eu também sou procurado. As pessoas vêm e me procuram. Ontem eu estava aqui e me ligou um cara do interior de São Paulo, de Ourinhos, querendo um show, mais não sei o que. Aí a gente chega a um acordo”. Falando sobre sua forma de atuação, ele me diria ainda o seguinte: “Faço também produção de disco independente, [...] vejo toda a parte burocrática, marco estúdio, chamo os músicos, vejo com o produtor musical o que ele precisa, o que não precisa. Me dá um trabalho. Eu gosto mais da estrada, sempre gostei de viajar”. Já para o trombonista Fabiano Segalote, a atuação destes agentes acontece em via complementar: “Os produtores têm várias formas de trabalhar. Podem chamar arranjadores diferentes, aí você chega lá e está tudo escrito, é só você tocar”. Há uma diferença, no entanto, entre a parte de “produção do grupo e do disco”, a qual “se baseia mais na parte musical”, e a parte de produção realizada por “um produtor executivo, um empresário” que “corre atrás de fechar show, viagem”. Para o trombonista, “quando você produz, você fica muito envolvido com o trabalho. Quando o trabalho está pronto você já não aguenta mais ouvir. Quando você é só músico, você vai lá, grava a sua parte e tchau”. Afinal: Se você vai fazer um trabalho grande e cuidar de tudo, vai surtar. Você é músico, tem que cuidar da parte musical. No caso do produtor musical, ele funciona quando vai gravar o CD ou o DVD. Geralmente as bandas têm um diretor musical que é [...], na teoria, a ponte entre os músicos e o artista. Ele é responsável por fazer os arranjos ou passar os arranjos pra alguém fazer. É o cara que dá as contagens pra música começar. É o cara que está preocupado com o estilo que o cantor vai fazer, com a escolha do repertório. (Fabiano Segalote)

Embora existam funções diferenciadas, há uma certa fluidez no ramo, afinal, nas palavras de Segalote, “quem me chama pra gravar? Produtores, arregimentadores, os

13 próprios músicos, maestros”. Sua percepção do campo é interessante, pois ele atua tanto como músico contratado por outros artistas quanto como produtor de seus trabalhos mais autorais: “O músico hoje não pode só tocar. Você tem que ser produtor, tem que ser arranjador”. Ainda pensando a respeito do cenário vinculado à atuação dos produtores trago as opiniões de outra pessoa entrevistada por mim, a cantora Viviane Godoi. Segundo ela, “o produtor não tem só isso. Ele tem que escolher o maestro certo, ele tem que gostar dos arranjos, ele tem que gostar da mixagem, ele tem que acompanhar a mixagem, ele tem que acompanhar quando o artista vai botar a voz dele”. Na realidade, de acordo com sua experiência especificamente no contexto de gravação: O maestro e o produtor caminham juntos, o tempo todo. O maestro tem que estar ali, porque de repente, qualquer erro... Nem sempre o produtor é músico. Ele é produtor, mas às vezes pode passar desapercebido algum erro, entendeu? Até algum erro do músico no estúdio. Então o produtor tem que estar ligado. E o maestro principalmente. (Viviane Godoi)

Já para Gus Levy, um de meus entrevistados mais jovens, músico e compositor de bandas como Os Dentes e também produtor radicado no Rio de Janeiro, a função de um produtor pode ser resumida de maneira bem direta: “Produzir uma banda é tentar entender o que uma banda quer [...] e fazer o olhar de fora”. Neste sentido, “o produtor precisa de autonomia [...], justamente pra poder pegar o máximo que a pessoa tem”, afinal, seu objetivo principal é “dar um conceito pra parada”. Levy afirma que “começou a produzir informalmente”, de modo que “nem percebeu que estava produzindo”. Ele recorda: “No meu próprio CD [...] [solo], eu não sei nem se eu me considero produtor, eu fui fazendo”. Já “no caso dos Dentes eu não estava nem aí, esse lugar era do Vaz” (produtor musical do disco)28. Ainda de acordo com este interlocutor, “produzir banda é diferente de produzir qualquer outra coisa. O que eu achei genial do Vaz [...] é a sutileza de invasão dele no que a gente era”. De certa forma, é possível dizer, portanto, seguindo as palavras de Levy, que produzir tem a ver com “administrar os afetos”. Para outro de meus “nativos”, o baterista Uirá Bueno, o caso do compositor Cícero, com quem ele toca, é bastante interessante, já que ele “começou fazendo produção sozinho mesmo”. Bueno revela: “Ele e o Bruninho, que são coautores da maioria dos discos e coprodutores tanto de turnê quanto de coisas

28 Este depoimento é interessante, na medida em que mostra como a figura social de meu interlocutor muda de acordo com as circunstâncias envolvidas e com o meio social no qual ele se insere, o que se relaciona diretamente com a obra de Goffman (1985).

14 básicas, de ensaio, de marcação de ensaio [...], sempre correram muito atrás”29. Para o baterista, com efeito, “tem muita banda que vai bem assim como ele, se divulgando, vendendo o próprio disco, entrando em contato... O próprio Canastra é uma banda que não tem empresário e que se divulga Brasilzão afora”. Segundo Gus Levy, afinal, “qual é a fórmula de gravar um negócio”? Lembrando o processo de gravação de seu álbum solo, ele marca: “Foi absolutamente louco. Eu não estava pensando em fazer o meu primeiro CD. Eu estava só fazendo uma parada que eu precisava, sabe”? Assim, o músico gravou “nesse espírito, meio sem saber como ia ser, chamando a galera pra fazer”. Este percurso se aproxima bastante da forma com que Cícero, mencionado por Uirá Bueno, gravou o primeiro disco: “Não teve produtor, não teve estúdio, não teve ensaio e nem arranjo”, foi tudo feito em sua própria casa. Levy finaliza: “Eu duvido que o público geral vá ficar pensando se a qualidade do microfone captado está super foda, porque o que está passando é a música”. Uma matéria publicada recentemente na mídia conta o caso de Dr. Luke, um dos mais bem-sucedidos produtores da indústria fonográfica atual30. Sua “receita” para obter sucesso é relativamente simples: ele faz exatamente o que seu público-alvo deseja. A faixa de mercado dentro da qual atua é composta por jovens de 14 a 22 anos que começaram a consumir música numa era em que CDs já eram obsoletos. Assim, eles ouvem apenas “singles” e nunca discos inteiros – sobretudo em fones de ouvido – e têm uma capacidade de atenção mínima. É em virtude disso que as músicas produzidas por Dr. Luke precisam ter um hook – “gancho” – a cada sete ou oito segundos, bem como uma qualidade sonora capaz de soar grandiosa nestes aparelhos. Responsável por alguns dos principais sucessos das carreiras de Britney Spears, Shakira, Katy Perry, Miley Cyrus, Flo Rida, Rihanna, Kesha, Kelly Clarkson, Pink, entre outras, Dr. Luke não perde tempo até chegar ao refrão. A técnica quase matemática de composição e produção que o consagrou inclui a elaboração de tabelas com os intervalos entre versos e refrães, bem como uma maneira peculiar de escrever letras. Assim, estas não precisam, necessariamente, fazer sentido, embora todos os versos tenham que ter o

29 Ainda de acordo com Bueno, “o Cícero banca o CD todo dele, faz exatamente do jeito como ele quer, sem nenhuma interferência de produção musical por fora. Nenhum dinheiro por fora, inicialmente, também. Mas é bom porque ele pode fazer do jeito como ele quer. Se quiser gravar em casa ele grava, se quiser gravar em estúdio ele mesmo vai trilhando esse caminho”.

30 A reportagem está disponível em: . Último acesso: 22/12/2015.

15 mesmo número de sílabas e uma cadência idêntica. As músicas também não devem ter introduções longas e podem até mesmo abrir mão das mesmas e já começar com um vocal. A matéria coloca ainda que, para promover seus astros, este produtor comanda totalmente suas carreiras, de modo que, na realidade, são grandes estrelas como Kesha e Katy Perry que trabalham para ele e não o contrário. Afinal, foi Luke quem contratou as duas, o que faz com que ganhe um percentual sobre tudo o que elas faturam e tenha o direito de decidir o que elas vão gravar e como. Para terminar, eis o esquema de divulgação das produções de Dr. Luke: assim que termina de produzir uma faixa, ele manda um link da canção para seus artistas e pede que esses divulguem as músicas uns dos outros a partir de redes sociais como o Twitter. Deste modo, considerando que Katy Perry tem 68 milhões de seguidores nesta plataforma, Rihanna, 43 milhões, Britney, 41 milhões, Pink, 27 milhões, Kelly Clarkson, 17 milhões, Miley Cyrus, 20 milhões, entre outros, isso significa que a canção será ouvida, simultaneamente, por centenas de milhões de pessoas. A história do personagem citado acima remete à trajetória de um importante executivo da indústria fonográfica brasileira, o produtor musical André Midani. Responsável por alavancar a carreira de diversos artistas no mercado de música popular brasileiro desde a década de 1950, este influente empresário mostra que avaliar a qualidade de um produto musical é algo extremamente subjetivo31. Como definir se uma música é boa ou ruim? Isso, na realidade, não importa muito; a música está aí para trazer emoções às pessoas. Ilustrando este pensamento, trago o caso da música “Happy”, de autoria do cantor e produtor Pharell Williams, a qual foi rejeitada nove vezes antes de ser aceita na trilha sonora de um filme de grande sucesso comercial, o que permitiu, enfim, que ela se tornasse uma das mais tocadas do ano de 201432. Todos os depoimentos e reportagens mencionados, de fato, problematizam o valor atribuído às composições musicais e desmistificam, de certa maneira, os processos que ocorrem nos bastidores do universo fonográfico. A partir de breves considerações sobre

31 Esta reportagem está disponível no seguinte endereço: . Último acesso: 22/12/2015.

32 A matéria que fala sobre este assunto está disponível em: . Último acesso em: 22/12/2015.

16 a forma de atuação dos produtores no contexto da indústria de discos, torna-se possível questionar a construção de hits e a própria ideia de hit, em meio à cadeia de relações que compreende esta indústria. Pensando especificamente no contexto atual, lembro ainda uma última reportagem33, recentemente publicada na mídia, que visa mostrar como o streaming redefine a ideia de sucesso, já que desafia os processos tradicionais de lançamento dos chamados singles. Afinal, como tornar certas músicas populares ou não? Como fazer com que elas continuem sendo escutadas com o passar dos anos? Há algum tempo atrás a indústria fonográfica funcionava de modo a fazer com que CDs fossem comprados; hoje isso já não importa mais tanto. Se o objetivo desta indústria, há décadas, era fazer com que um single alcançasse números altos nas paradas de sucesso no momento de seu lançamento, a fim de atrair fãs e consumar vendas, hoje este cenário mudou um pouco, como tenho buscado explicitar. É claro que ainda importa estar no topo dos rankings; entretanto, não é mais por meio da venda de CDs, necessariamente, que isso está ocorrendo. Hennion (1981) é um dos poucos autores ligados ao campo da Antropologia que ficou conhecido por realizar uma etnografia em estúdios de música, na França do final dos anos de 1970. Seu trabalho foi destrinchado por autores como Bacal (2010) e se refere à atuação ainda incipiente dos engenheiros de som franceses como sendo um tipo de performance feita por “novos músicos”, na medida em que os mesmos deixaram de ser apenas parte de uma engrenagem mecânica exterior à criação artística. Com efeito, ao longo desse processo de mudança, estes agentes param de encarar o estúdio como um “aparelho de gravação” e passam a vê-lo como um instrumento em si (HENNION, 1981). Para melhor compreensão da conjuntura que estabelece esta nova visão, reporto- me a algumas considerações que, acredito, podem ser transplantadas para diversos contextos etnográficos. Segundo Abreu (2009), a proliferação de gravadores de múltiplas pistas e a popularização de técnicas de edição musical, mixagem e masterização, cada vez mais acessíveis para o aprendizado autodidata, permitiram que os técnicos e engenheiros de som conquistassem um lugar central na produção musical em detrimento dos próprios músicos. Isso mostra que os estúdios assumiram, afinal, o estatuto de dispositivos coletivos de composição e produção musical, o que se coaduna com a obra de Hennion

33 A reportagem a que faço referência pode ser encontrada em: . Último acesso em: 23/12/2015.

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(1981). É neste contexto, enfim, que os produtores constroem sua autoridade a partir do poder de mediação que assumem entre músicos, técnicos, dispositivos, editoras e públicos. Se esta atenção voltada para a “manipulação eletrônica” do som e para seus “efeitos artificiais” era qualificada antigamente como “técnica”, com o passar do tempo passa a ser vista como “criativa”. Consequentemente, o estúdio se torna local de produção e não apenas de reprodução, um lugar responsável não somente para deformar, mas também para formar34. Nessa perspectiva, tanto o artista quanto o produtor e o engenheiro de som são importantes mediadores, criadores de sentido e de significações musicais em suas pesquisas por novas sonoridades através dos aparelhos técnicos (BACAL, 2010 ; HENNION, 1981). Pude verificar a magia35 por detrás dessas práticas em minha experiência de campo com músicos na cidade do Rio de Janeiro, onde vi como o computador pode alterar significativamente um conteúdo musical pré-gravado. Na situação em questão, o músico, produtor e engenheiro de som Pedro Garcia, responsável pela mixagem do álbum que fiz com minha banda, Sararás Livres36, nos relatou que a sonoridade da bateria que havíamos gravado estava ruim. Apesar dos meios técnicos empregados não terem contribuído para uma boa qualidade, havia a possibilidade de “correção” por meio de plug-ins específicos que modificavam virtualmente o som do instrumento. Assim, eu e os outros companheiros de banda observamos, comparando o som da gravação original com o que foi manipulado pelo computador, como havia uma diferença gritante, e como a mediação destes plug-ins era capaz de transformar o conteúdo musical pré-gravado. Tenho buscado identificar como as limitações e potencialidades dos meios de produzir música se relacionam com técnicas e tecnologias, bem como diversas formas de sociabilidade características do contexto de produção fonográfica. Situar as condições de trabalho, os objetos, os materiais e os meios não-humanos conectados com a vida que pulsa através da produção de música popular parece ser, assim, uma solução interessante

34 Esta utilização da técnica dos estúdios em prol de movimentos criativos faz com que ocorra, segundo Vicente (1996, p. 26), “uma espécie de inversão de papéis, uma situação na qual as apresentações em show tendem, cada vez mais, a buscar reproduzir as performances em estúdio”, o que contribui para uma valorização da virtualização da produção.

35 Sobre as relações entre arte, magia e técnica, ver a obra de Alfred Gell (1988).

36 A produção dos Sararás Livres pode ser acessada em seu site oficial: . Também pode ser encontrada no Facebook: .

18 para se entender os limites impostos pelas tecnologias de cada época e as possibilidades trazidas pelas novidades tecnológicas37. Nesta discussão tendem a aparecer, frequentemente, as tensões entre uma produção racionalizada, de caráter industrial e voltada para o mercado, e a ideia do artista como um gênio ou criador individual, cada vez menos palpável no caso da música popular contemporânea. Em suma, acredito ser possível dizer – indo na contramão do que estabelecem alguns veículos da grande mídia38 – que a indústria fonográfica continua mais forte do que nunca, na medida em que os negócios envolvendo a música são ampliados a cada dia. O movimento realizado pela maioria das grandes empresas ligadas a este ramo é de busca por novas formas de adaptação, ou seja, de reinvenção em prol das exigências atuais do mercado fonográfico, sobretudo, em virtude da perda de centralidade de suportes materiais como o disco ou o CD. Se a forma de produzir música tem de se transformar, assim como toda a cadeia produtiva que comanda este processo (DIAS, 2010), não necessariamente a indústria fonográfica está em declínio, mas sim, em um importante processo de transformação. Seja por meio de plataformas como o Facebook, o Youtube, o Deezer, o Spotify, o Soundcloud, o Myspace, o extinto Grooveshark39, entre outras, seja através da própria internet, com os torrents e arquivos compactados, seja a partir de downloads oficiais e extraoficiais ou mesmo por meio do streaming, uma nova forma de veicular e comercializar a música está em jogo já há algum tempo. É neste percurso que a constatação de que a indústria de discos caminha rumo à digitalização (WAINER, 2016a, 2016b) se apresenta, o que traz desafios para grandes e pequenas empresas, artistas, produtores e toda uma cadeia de pessoas ligadas ao ramo. Espera-se, enfim, que essas páginas tenham problematizado algumas das principais nuances que perpassam o campo fonográfico no século XXI e, assim, trazido subsídios para uma reflexão mais aprofundada sobre o assunto.

37 Como coloca Vicente (1996, p. 19), “uma análise mais detalhada [...] da produção musical pode trazer diversos exemplos de como [...] as limitações impostas pelo aparato tecnológico [...] [exercem] pressões sobre o modo de trabalho e as concepções estéticas do artista”.

38 Por exemplo, ver matéria disponível em: . Último acesso: 19/12/2015.

39 Sobre o encerramento do Grooveshark, ver: . Último acesso: 18/12/2015. Na mesma linha, ver: . Última acesso: 18/12/2015. 19

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ABREU, Paula. A indústria fonográfica e o mercado da música gravada – histórias de um longo desentendimento. Revista Crítica de Ciências Sociais [online], nº 85, pp. 105- 129, 2009. DOI: 10.4000/rccs.356.

BACAL, Tatiana. O produtor como autor: o digital como ferramenta, fetiche e estética. Tese de doutorado defendida no Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (IFCS/UFRJ), 2010.

DIAS, Márcia Tosta. Indústria fonográfica: a reinvenção de um negócio. In: Bolaño, Golin e Brittos (orgs.). Economia da arte e da cultura. São Paulo : Itaú Cultural, 2010, pp.165-183.

GELL, Alfred. Technology and Magic. Anthropology Today, vol. 4, nº 2, pp. 6–9, 1988.

GOFFMAN, Erving. A representação do eu na vida cotidiana. Petrópolis : Editora Vozes, 1985 [trad. Maria Célia Santos Raposo].

HENNION, Antoine. Les professionnels du disque. Une sociologie des varietés. Paris : A.M. Métaillié, 1981.

HERSCHMANN, Micael. Indústria da música em transição. São Paulo : Estação das Letras e Cores, 2010.

VICENTE, Eduardo. A música popular e as novas tecnologias de produção musical. Dissertação de mestrado defendida no Departamento de Sociologia do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Estadual de Campinas (IFCH/UNICAMP), 1996.

WAINER, Daniel. Trajetórias da digitalização: músicos e materiais nas redes sociotécnicas da indústria fonográfica brasileira. Dissertação de Mestrado defendida no Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social do Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro (PPGAS/MN/UFRJ), Rio de Janeiro, 2016a.

______. Um olhar antropológico sobre as transformações da indústria fonográfica brasileira a partir de duas trajetórias artísticas. IS Working papers, Porto, 3ª Série, nº15, pp. 2-22, jan., 2016b. Disponível em: . Acesso em: 7/3/2016.

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