OBSERVAÇÕES SOBRE a INDÚSTRIA FONOGRÁFICA DO SÉCULO XXI: RUPTURAS, CONTINUIDADES E ALGUMAS POSSIBILIDADES1 Daniel Ferreira Wainer (PPGAS/MN/UFRJ)
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OBSERVAÇÕES SOBRE A INDÚSTRIA FONOGRÁFICA DO SÉCULO XXI: RUPTURAS, CONTINUIDADES E ALGUMAS POSSIBILIDADES1 Daniel Ferreira Wainer (PPGAS/MN/UFRJ) Palavras-chave: Direitos Autorais ; Pirataria ; Produção Musical Objetivos e Metodologia O presente trabalho se propõe a investigar o funcionamento da indústria fonográfica a partir de meados dos anos 2000. Neste caminho, estarei mais especificamente atento à digitalização do mercado e à pirataria; às controvérsias em torno da questão dos direitos autorais; às relações entre grandes gravadoras e selos independentes; e ao papel desempenhado pelos produtores musicais e técnicos de som. A fim de contemplar estes objetivos sigo as considerações de alguns dos principais meios de comunicação impressa e digital, de autores que têm atentado para o assunto nos últimos anos e de alguns personagens – músicos, produtores, professores de música, empresários e arranjadores – entrevistados por mim em trabalho de campo realizado no Rio de Janeiro, entre julho de 2014 e junho de 2015. Acrescenta-se a esses elementos a “participação observante” no contexto dos estúdios de música, o que se deu em função de minha trajetória pessoal. Mudanças no mercado fonográfico Principio, então, lembrando de um caso contado a mim pelo músico e produtor Roberto Menescal. Ao explicitar o fio de mudanças ocorridas com a tecnologia ao longo da História, este personagem enfatizava que “as transformações foram muito grandes, só que a gente esquece delas”: [...] em 87, por diversas razões, eu acabei conhecendo um bruxo [...]. Conversando com ele, aproveitei e falei: ‘cara, o que vem por aí [...] de novo, em música [...]’? ‘Nada’. ‘Nada? Como’? ‘Roberto, nós estamos no final do século. Então novo não tem’. [...] ‘Pô, então eu estou perdido’! ‘Não, isso é outra coisa. Se você quer saber o que você deve fazer é uma coisa. O que vem de novo eu já te respondi’. ‘Tá. Então, o que eu devo fazer’? ‘Não faz. Refaz’. Nesse mesmo diálogo, o tal bruxo perguntaria para ele: “Como era a gravação em 1 Trabalho apresentado na 30ª Reunião Brasileira de Antropologia, realizada entre os dias 03 e 06 de agosto de 2016, João Pessoa/PB. 1 1950”? “[...] Era em acetato, o cara passava um negócio assim, gravava e não podia voltar atrás [...], não podia nem ouvir. Só ouvia depois de preparado. E era um canal de gravação, então você gravava uma orquestra inteira com o maestro aqui, [...] todo mundo junto. Não podia o cantor depois botar a voz [...]”. Tendo ouvido esta descrição, o bruxo sentenciaria: Eu se fosse você pegaria as músicas dali dos anos 45, 50, 60, 70, que foi onde a música cresceu e vieram várias formas de música no mundo inteiro. De rock, da bossa, dos baianos, de todo mundo, Jovem Guarda. Refaria essas músicas todas com a tecnologia de hoje [...] porque essas músicas foram testadas [...] e essa geração conhece, essa não conhece. Então você estaria colocando músicas novas pra geração, mas todas que já foram testadas, [...] foram bem aceitas. Menescal fez o que o bruxo indicou, ora mexendo nos catálogos das grandes companhias fonográficas, ora regravando músicas antigas com artistas menos badalados, e parece ter tido um bom retorno, segundo o próprio. Essa história ilustra um pouco da importância da tecnologia como mediadora dos processos de trabalho, das possibilidades dos músicos dentro do estúdio, no contexto fonográfico, e da criação de gostos no seio de toda uma geração2. Afinal, “a gente está falando que o século, na teoria, nos anos 50, define um pouco o que vai ser dali em diante. Depois tem que acabar certas coisas. Senão o bonde puxado por burrinhos estava aí até hoje”. De acordo com Menescal, em certo sentido, a passagem para o contexto digital tem interferido na produção fonográfica da virada do século, na medida em que toda uma estrutura gestada em meados dos anos de 1950 está se transformando em algo ainda indefinido. Nesta mesma linha, o músico Luiz Guilherme, ex-integrante da banda Inimigos do Rei, lembra que “a indústria cultural foi construída em cima de mitos. E esses mitos vieram muito nos anos 50, nos anos 60 [...]. É isso que está morrendo [...], se transformando”. Afinal, não se pode comparar, por exemplo, as gravadoras atuais com as que havia antigamente, o que se coaduna com as seguintes palavras, mais uma vez, de Roberto Menescal: “Está acabando [...], não dá pra pagar mais [...]. É um processo em decadência, [...] mais três anos, quatro e acabou o que era uma gravadora. O que vem eu não sei”. 2 Os relançamentos, com efeito, são extremamente comuns ainda no contexto atual. Um bom exemplo desta prática fonográfica pode ser encontrado na seguinte matéria: <http://odia.ig.com.br/diversao/2015-08- 16/discos-de-fabio-jr-sao-relancados-em-edicao-exclusivamente-digital.html>. Último acesso: 27/12/2015. Artistas como George Israel, em contrapartida, não crêem que as reedições de obras antigas rendam tanto assim para os artistas em si. Segundo ele: “Por exemplo, você tem um revival dos Novos Baianos. Eu não acho que os caras ganharam dinheiro pra caramba com isso. Eu não acho que teve um retorno. Os caras fazem show, mas não teve aquele retorno de: ‘caramba, voltou à moda. Vendem disco pra caramba, os caras ganharam a maior grana’ [...]. Você vê hoje em dia os caras lançarem uma reedição dos Novos Baianos que tenha vendido pra caramba? Não rola essa coisa”. 2 As considerações anteriores explicitam o fato de que as grandes companhias do mercado fonográfico parecem ter mudado sua forma de atuação com o passar dos anos, o que, no entanto, não impede que ainda tenham força significativa. Menescal deixa claro: “Não vou dizer que a Som Livre esteja falindo porque aproveita a coisa da Globo, mas está difícil [...]. Está debruçada em discos religiosos e, como se diz, em discos sertanejos, gospel, porque a cara do Brasil é isso”. Com efeito, é visível que a produção musical ingressa em um período de digitalização mais explícita a partir de meados dos anos 2000, sobretudo em virtude de algumas transformações de ordem tecnológica que modificam substantivamente o mercado fonográfico (WAINER, 2016). Autores como Dias (2010) e Herschmann (2010), por exemplo, colocam que o desenvolvimento dos aparelhos celulares e o deslanchar de suas vendas possuem especial relevância neste contexto, na medida em que oferecem novas possibilidades de consumo da música. A hipótese acima vai de encontro à fala de mais uma pessoa entrevistada por mim, a publicitária Gabriela Hermanny3. Segundo ela, o mercado fonográfico brasileiro tem se caracterizado, nos últimos anos, especialmente pelo consumo de música através de aparelhos de telefonia móvel. Nesta via, ela lembra que são comercializados, sobretudo, os chamados “ringback tones” – músicas de chamadas – em função de fatores bastante diversos. De acordo com a publicitária, o Brasil possui características únicas, pois tem pouca penetração de banda larga e baixo acesso à internet de qualidade, aliados a um cenário de ampla desigualdade social. Em virtude disso, a maioria dos celulares do mercado é pré-paga e não tem acesso a cartão de crédito e a cartões internacionais, o que contribui para que uma grande massa de gente acesse música pelo celular. Na realidade, a visão de mercado de Hermanny se coaduna com a de Menescal, na medida em que ela também enfatiza a preponderância das vendas ligadas aos segmentos sertanejo e gospel4. Referindo-se a um momento mais contemporâneo da indústria, localizado entre meados da década de 2000 e início de 2010, Hermanny observa uma grande distensão no meio fonográfico, pois ao mesmo tempo em que subsistem as vendas de mídias físicas, como CDs e LPs, cresce a comercialização virtual de música por meios piratas, bem como os downloads oficiais grátis disponibilizados pelas 3 Hermanny foi funcionária do Departamento de Marketing da Som Livre e, atualmente, trabalha na Vevo, joint venture responsável pela produção de vídeos musicais e outras formas de entretenimento digital. Ela trabalha na área de distribuição digital da empresa. 4 George Israel é outro a enfatizar que “o que é mais consumido disparado é sertanejo”. 3 companhias de distribuição digital. Com efeito, as grandes empresas já estão se reorganizando a fim de obter ganhos com este tipo de comércio: o mercado passa a identificar, afinal, que as “vendas físicas estão caindo” e que o “mercado digital está crescendo 30% em média”5 de modo concomitante à pirataria, a qual veio “quando começou a surgir a música digital”. Para a publicitária, enfim, “as pessoas só começaram a consumir quando os players (empresas) começaram a se estruturar”, já que, até este momento, os piratas haviam arrasado as grandes empresas, fazendo com que as músicas fossem ouvidas de forma gratuita por meio da troca de arquivos digitais e da internet. Assim, a referida estruturação tem a ver, sobretudo, com a percepção, por parte da indústria mais geral, de que se deve buscar uma forma de obrigar as pessoas a pagarem pelo conteúdo musical ouvido de forma digital. Em outras palavras, pode-se dizer que a reorganização do mercado fonográfico tem ido na direção de tentar impedir que a música possa ser consumida gratuitamente (WAINER, 2016) e, para isso, várias medidas têm sido tomadas. Compartilhamento em rede, comércio digital e direitos autorais A título de exemplo, elenco uma série de matérias publicadas recentemente, as quais enfatizam a contrariedade da indústria fonográfica em relação à veiculação de música gratuita na internet, especialmente por meio da pirataria – downloads –, naturalmente, e do streaming6. Enquanto uma delas mostra que os “serviços de música por streaming crescem e preocupam a indústria fonográfica”7, outra anuncia que a Apple está se unindo às gravadoras contra este tipo de comércio e veiculação musical8. Nesta mesma linha, uma terceira lembra que todas as principais gravadoras multinacionais – 5 Diversas matérias publicadas na mídia corroboram a fala acima.