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Pela voz de Luandino Vieira

Rita Chaves e 1 Jacqueline Kaczorowski*

Nas histórias das literaturas há escritores que pela dimensão de sua obra tornam-se figuras fundamentais. Há também outros que, pela força do que viveram, convertem-se, eles próprios, em grandes personagens, impondo-se aos nossos olhos como passageiros de travessias incomuns. Nas Literaturas Africanas de Língua Portuguesa, cujos repertórios foram produzidos em espaços de exceção – o exílio, a clandestinidade, os maquis e/ou a prisão –, deparamo-nos com percursos que nos conduzem para além dos limites dos textos e a eles nos fazem regressar para novas leituras. O aspecto extraordinário de certas trajetórias explica a importância de ouvir alguns escritores, não para encontrar em suas vozes a melhor explicação de suas obras, mas porque elas nos trazem um conjunto de referências que não estão consolidadas em nosso universo cultural e a História ainda não pôde configurar. Em se tratando de e seu convulsionado processo histórico, não há dúvida acerca da relevância de certos depoimentos. É claro que 40 anos na vida de um país é muito pouco para avaliações decisivas. E a falta de paciência histórica que tinge o nosso olhar nos leva, tantas vezes, ao equívoco. Mas há certezas inscritas na pedra do tempo. Entre elas destacam-se a importância de um escritor e a sua capacidade de iluminar o itinerário de uma literatura, a do seu pais, do país que ele, de diversos modos, ajudou a forjar. Em 2015 contamos quatro décadas da independência de Angola e, a despeito de tudo, podemos celebrar uma grande virada na história do colonialismo. Mas é válido recordar que dez anos antes um autor e um livro estiveram no centro de um forte golpe à opressão colonial: José Luandino Vieira e Luuanda ultrapassariam os domínios do literário e se colocariam como peças de um contexto político sem volta. Escritas na prisão e dela escapando por caminhos inusitados, as estórias de Luuanda conquistaram um prêmio, o de Novelística da Sociedade Portuguesa de Escritores, e provocaram um notável abalo na atmosfera que envolvia a colônia e a

* Universidade de São Paulo - USP SCRIPTA, Belo Horizonte, v. 19, n. 37, p. 177-198, 2º sem. 2015 177 Rita Chaves e Jacqueline Kaczorowski metrópole. De tão significativos, o livro e os episódios desencadeados mereceram dois volumes organizados pelo pesquisador Francisco Topa: Luuanda há 50 anos: críticas, prémios, protestos e silenciamentos1 e Luandino por (re)conhecer: uma entrevista, histórias dispersas, bibliografia2. O material ali reunido atesta a importância do fato histórico, oferecendo dados preciosos para a compreensão do contexto, e aponta para a relevância da obra. A publicação em de uma edição especial da coletânea, com base numa edição apócrifa e com emendas do autor, reafirma a inesgotável energia de um texto que permanece conquistando e inquietando leitores. Vale a pena, portanto, fazermos desses cinquenta anos também um pretexto para ouvirmos uma vez mais a voz de José Luandino Vieira, o autor desse livro que se tornou um marco decisivo na história externa e interna da Literatura Angolana. Nas páginas seguintes, Luandino abre-nos alguns roteiros de sua vivência, dá-nos pistas da sua formação literária, partilha angústias e leituras do presente, dividindo, com leveza e profundidade, algumas das perplexidades que o presente angolano acorda. E , obviamente, de , essa cidade em que ele viveu e foi por ele reinventada nas narrativas de uma nacionalidade dolorosamente construída.

1 TOPA, Francisco (Org). Luuanda há 50 anos: críticas, prémios, protestos e silenciamentos. Porto: Sombra pela Cintura, 2015. 2 Topa, Francisco J. J. Luandino por (re)conhecer: uma entrevista, estórias dispersas, bibliografia. Porto: Sombra pela cintura, 2014. V. 1. 178 SCRIPTA, Belo Horizonte, v. 19, n. 37, p. 177-198, 2º sem. 2015 Entrevista: Pela voz de Luandino Vieira RC-JK: O que conduziu o escritor Jacinto, que era mais velho que nós aí ao seu ofício? Teria sido mesmo a uns 10, 11 anos, nos obrigava todos os experiência da infância que em sua anos a fazer uma espécie de jogos florais obra tem uma dimensão tão marcante? e classificava essas nossas redações, LV: O que me conduziu à Literatura... que nós chamávamos pomposamente Como autor? Agora eu sou capaz de “contos”, com prêmios. E eu lembro que me lembrar dessa parte muito antiga uma vez eu escrevi um desses contos da minha infância, quando eu aprendi que se situava na cidade do Porto, onde a ler. Naquele tempo, aprendia-se a ler eu nunca tinha estado, e que falava exatamente no momento em que se também de uma figura que eu também entrava para a escola, por volta dos 7 nunca tinha visto – um mendigo. Em anos de idade. Até os 7 anos de idade, a Luanda naquele tempo não havia gente era feliz, brincava... Penso que o mendigos, não havia gente a pedir que me conduziu à Literatura foi o facto esmolas. Então por que um mendigo? de ter sido um leitor muito persistente e Devo ter sido influenciado pelos contos apaixonado. Não havia muitos livros lá de Eça de Queirós, que foram os contos em casa, mas aqueles que havia eu li; que mais me agradaram quando eu li e reli. Depois, na escola, também lia. andava no Liceu, portanto por volta Eu lembro-me que ganhei o hábito de dos meus 15, 16 anos; Eça de Queirós ler tudo quanto estava escrito e que às e Fialho de Almeida. Então ele chamou- vezes a minha mãe se irritava; ela ficava me a atenção e disse “Bom, não ganhas; envergonhada por eu ler em voz alta a não te dou o prêmio porque tu vives publicidade interior no machimbombo. aqui, há tanta coisa à tua volta, e estás a Portanto, o interesse pela Literatura escrever sobre coisas que tu não sabes, veio da leitura. Depois, no Liceu, veio não vistes, em terras onde nunca foste, do facto de haver um jornal, que era O quando basta olhar à volta. Portanto, Estudante. no próximo ano, tu vais continuar a escrever e toma lá este livro para ler”. E RC-JK: E chegou a colaborar nesse deu-me As vinhas da ira, de Steinbeck. jornal? Pronto, então eu passei a ler cada vez LV: Depois que saí do Liceu, com os mais e cada vez melhor, porque Jacinto meus 14 ou 15 anos. Eu penso que me ia abrindo outros horizontes. E com publiquei aí um conto, produto de António Cardoso e Antônio Carpinteiro, pequenos textos que eu escrevia por que era meu primo, fazíamos um influência do Antônio Jacinto. Antônio pequeno jornal manuscrito no bairro.

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RC-JK: Qual era o bairro? RC-JK: A biblioteca era, portanto, um LV: O bairro era o Braga, onde hoje é a lugar procurado por você? Sagrada Família, em Luanda. Fazíamos LV: No Liceu, não frequentava muito aquilo em papel de 50 linhas e exemplar a biblioteca porque havia muitas coisas único e eu, como tinha boa caligrafia, é a fazer: futebol, basquetebol, voleibol, que escrevia os artigos. E como tinha as miúdas, passear pela cidade, às jeito para o desenho, também fazia vezes no autocarro a acompanhar A, os desenhos. Foram esses desenhos acompanhar B, no machimbombo, que eu comecei primeiro por assinar ia para os Coqueiros, depois ia com o nome de Luandino. Porque acompanhar outro colega que ia para nós usávamos muitos pseudônimos, São Paulo. E tínhamos também, à como para dizer que tínhamos muitos noite, o hábito de no fim do jantar nos colaboradores. Além disso, quando eu reunirmos para tomar um café e depois tinha 14, 15 anos, fazíamos também saíamos a andar pelas ruas de Luanda um jornalzito de banda desenhada, no em travessias, que iam desde o Bairro do Liceu Salvador Correia de Sá, que se Café, na volta por São Paulo, descendo chamava O Gaiato. Tudo isso me deu a marginal, subindo pra Fortaleza vindo interesse pelas letras, pela Literatura. Eu pra Cidade Alta e voltando à casa, por lia muito. Jacinto emprestava-me tudo; volta da meia-noite, uma da manhã. desde Górki, Ponson du Terrail, depois Aí, nessas viagens, com o António Max du Veuzit, depois Turgueniev, era Cardoso e o Helder Neto e outros, nós assim uma misturada; tudo o que eu discutíamos tudo. Queríamos virar o queria era que houvesse letra impressa. mundo do avesso, fazer outro mundo. As conversas de política eram sempre RC-JK: E a escola favorecia esse nesses passeios, porque, sentados num interesse? café, havia sempre toda espécie de LV: Como era para produzir o uso informadores. E muita literatura! obrigatório da Língua Portuguesa, sobretudo para a gente, era muito RC-JK: Quais são as suas lembranças centrado na Literatura, nos autores. E dessa iniciação literária? calharam alguns bons professores de LV: Se bem me lembro, o primeiro Português, que era o nome da disciplina conto que eu escrevi era uma história naquele tempo. passada na Idade Média. Eu mesmo fiz um livrinho... Eu devia ter uns 14 anos, não sei onde isso foi parar. Mas depois

180 SCRIPTA, Belo Horizonte, v. 19, n. 37, p. 177-198, 2º sem. 2015 Entrevista: Pela voz de Luandino Vieira lembro-me dum conto, “O Cartaz”, para os outros, porque estavam todos que foi publicado no O Estudante, o espalhados: no Namibe, em , jornal do Liceu. Pronto! E depois fui não sei se alguém no Uíge, e em escrevendo já as coisas que vinham da Luanda... minha memória. Eu ainda não tinha 20 anos, penso eu, e já escrevia coisas a RC-JK: Em síntese, o leitor foi o pai partir da memória de um tempo a que do escritor. Mas como nasce o escritor? eu tinha assistido e que estava em vias LV: Mais tarde, o que me movia para de extinção. Um tempo que está em isso, penso que foi assim uma espécie alguns contos e que mais tarde veio a de vaidade, uma coisa assim. O que eu queria também era ver o meu nome na dar o Nosso musseque, que também foi capa de um livro. Isto porque lembro tirado da experiência desta época. Com que, quando peguei esse conto e fiz eu esta resposta toda, atrapalhei tudo, mas mesmo um livro, dobrei e colei e pus está aí; foi por ter começado a ler, foi por meu nome na capa, o que eu estava a ter lido muito. Na biblioteca do Liceu querer era ser escritor, no sentido de ter Nacional Salvador Correia de Sá eu li um livro publicado com o meu nome o Fernão Lopes, e depois um pouco de na capa. Lá o conteúdo, a qualidade Fernão Mendes Pinto, e depois li todos literária... não me lembro de estar aqueles livros que eram obrigatórios; preocupado com isso; agora, o que se Júlio Diniz, o Luís de Camões... revela, é que eu queria ser escritor. Era uma espécie de notoriedade, talvez. RC-JK: E a literatura que não era Não sei porque eu buscava isso; eu obrigatória, como chegava a você? jogava basquete, eu jogava futebol; era uma criança, um jovem perfeitamente LV: O Jacinto é que nos dava. Ele adaptado, normal, que fazia o que toda é que me deu a parte da literatura gente fazia... ainda hoje procuro saber internacional e também algumas coisas porque é que eu queria pôr o meu nome que eles já iam fazendo lá – coisas na capa dos livros! do grupo dos “Novos Intelectuais de Angola”. Era assim que se chamavam: RC-JK: Nessa altura você ainda não o “Movimento dos Novos Intelectuais tinha lido nem o Assis Junior, nem de Angola”. Eu lembro-me de ter o Castro Soromenho, cujos sinais visto uma folha de papel timbrado, sentimos em seus textos? “fulano de tal” (não digo o nome), e LV: Não, o que eu tinha lido naquela embaixo: “Poeta do Movimento”. E era altura era Oiro Africano, de Julião assim que eles escreviam as cartas uns Quintinha; eu tinha lido 4 ou 5 SCRIPTA, Belo Horizonte, v. 19, n. 37, p. 177-198, 2º sem. 2015 181 Rita Chaves e Jacqueline Kaczorowski romances da chamada Literatura E foi assim que eu aprendi a falar mal Colonial que meu pai tinha. Além da o inglês, com sotaque do Texas, pois Bíblia, que eu lia, e desses romances, só via filmes de cowboys) e Jacinto eu não me lembro de outros livros. dava-me, às vezes para traduzir. Lembro-me perfeitamente desse Oiro “Traduz este poema e leia este livro”. E Africano. E depois li, mais tarde, uns lembro-me que me deu alguns livros da contos do Henrique Galvão; mas nem Renascença Negra do Harlem, Claude Assis Junior, nem Soromenho. Só McKay, Langston Hughes, todos mais tarde, isso foi já depois de estar aqueles. Era um pequeno volume, não no serviço militar, portanto 21 anos, sei se era da Modern Library, de Nova então sim: Soromenho, o Assis Junior, Iorque, já não me recordo. Sei que foi mas, sobretudo, Óscar Ribas, o Uanga outro componente na minha formação do Ribas. A entrada nessa parte da literária. Literatura Angolana foi mais tarde, portanto, quando a Mensagem já tinha RC-JK: Com a atividade literária desaparecido e quando o “Movimento começam também os problemas com a dos Novos Intelectuais de Angola” repressão? também já estava totalmente disperso, LV: Eu fui escrevendo aqueles contos porque Agostinho Neto tinha vindo de A Cidade e a Infância. Depois, estudar, Humberto da Sylvan não sei por volta de 1957, eu tinha aqueles onde parava e os outros também não. contozinhos que Jacinto já tinha lido. Só o Jacinto é que mantinha um pouco Eu ainda estava no serviço militar, viva essa chama entre nós, já por volta em 58 trabalhava no quartel general de 58, 59. e resolvi editar um caderninho com 4 histórias daquelas que posteriormente RC-JK: Os romances em outras línguas apareceram na A Cidade e a Infância. eram lidos no original? O caderno foi feito e já estava pronto, LV: Eu sabia inglês (eu trabalhava numa eu paguei, só faltava pegar... Eu paguei empresa com a companhia marítima em quatro prestações; passava lá todos e exatamente arranjei esse emprego os dias para ver as provas e em um porque sabia inglês. Tinha aprendido fim de tarde, eu saí do quartel general, inglês vendo os filmes; eu via muito que era lá em cima, na Cidade Alta, cinema, então eu via os filmes abaixado, subi a calçada do Liceu – a tipografia de tal maneira que não pudesse ler as era mesmo na calçada em frente ao legendas, para ouvir a língua inglesa. Liceu, naquele largo; tipografia Globo,

182 SCRIPTA, Belo Horizonte, v. 19, n. 37, p. 177-198, 2º sem. 2015 Entrevista: Pela voz de Luandino Vieira penso que se chamava assim... Fui LV: Eu guardei o título, tinha feito lá e disseram “Ah, amanhã está tudo o desenho da capa também e depois, pronto, só falta coser a arame, mas se quando a Casa dos Estudantes do quiser leve já dois ou três”. E eu levei, Império começou com a Coleção dos penso que trouxe 4, e nessa noite dei um Autores Ultramarinos, eu tinha ido à a António Cardoso e guardei um, eram Lisboa, depois da primeira prisão, se três, e meti um no correio para Antônio não me engano, em 59. Fui ainda para Simões Junior, que era um português ver se participava de um congresso de que estava exilado em Avellaneda, perto cineclubes que o Salazar não autorizou. de Buenos Aires, com quem eu tinha Não houve congresso, mas eu já tinha correspondência não muito regular, viajado, aproveitei para conhecer as mas umas cartitas. Enviava-lhe um minhas avós e deixei os contos, de livro ou outro e ele nos enviava sempre maneira que não sei se foi o primeiro, tudo. Eu ainda hoje tenho esses livros; o número 1, ou se foi o número 2, da o Guillén, aquela coleção da editorial Coleção de Autores Ultramarinos Losada... Então lembro-me que fiz uma da Casa dos Estudantes do Império dedicatória, mandei pelo correio, penso A Cidade e Infância; um livrinho que recebeu e que guardou. No dia pequenino, com umas letras azuis e uns seguinte de manhã, quando passei pela desenhos, aí já reproduzidos por João tipografia, disseram-me que tinham Moraes, que era um amigo com quem estado as autoridades e que tinham eu partilhava um apartamento mesmo apreendido a edição toda. O próprio no bairro do Braga, musseque Braga, administrador do Conselho de Luanda como se chamava no tempo, onde tinha ido lá, com não sei o quê, fez um agora é a Sagrada Família, aquela zona auto e levou tudo. Eu reclamei, pedi que também depois pomposamente se audiência já não me lembro a quem chamou Alvalade, que eram as barrocas lá no governo e disseram-me “Não, onde nós brincávamos. Foi assim não; não é por nada, é porque o senhor que comecei a escrever e a publicar. está no serviço militar e publicou Tentei fazer uma edição do autor, deu um livro sem autorização do general o resultado que deu... e depois com o comandante”. mesmo título, mas com outros contos, o livro saiu na Coleção “Autores RC-JK: E como foi o percurso até Ultramarinos” e pronto. a edição da Casa dos Estudantes do Império?

SCRIPTA, Belo Horizonte, v. 19, n. 37, p. 177-198, 2º sem. 2015 183 Rita Chaves e Jacqueline Kaczorowski

RC-JK: Como você vê esse livro hoje? RC-JK: Sim, era uma editora ligada ao LV: A Cidade e a Infância, pronto, Partido Comunista. é um livro que... as versões que estão LV: Bom, e esses livros o Jacinto dava- publicadas aparecem já com data, mas nos para lermos. Começamos com os eu escrevi aquilo quando tinha uns 17, romancistas do Nordeste: Jorge Amado, 18 anos, e às vezes fico a olhar para o obviamente, depois José Lins do Rego, livro e digo: “Não devia ter publicado Rachel de Queiroz e Graciliano. obviamente aquilo”. Mas eu penso Graciliano, As Memórias do Cárcere que... fui eu que escrevi, escrevi naquela – tudo estava sempre relacionado em altura, era aquilo e devo manter o livro primeiro lugar à questão política; e foi publicado. Porque às vezes chega uma assim que fui ficando também com a tentação de tirar tudo e ficar só um leitura da literatura portuguesa, porque livro. de Coimbra e Lisboa recebíamos dos escritores neo-realistas: “Sob o signo RC-JK: Naquela altura, você já tinha do galo”, aquelas coleções de poesias, lido os escritores brasileiros também? os livros traduzidos da Editorial LV: Ah, naquela altura, o António Gleba... alguns desses livros eu ainda Jacinto dava-nos o Cruzeiro e a tenho, mas como eu não guardo muitos Manchete, nós líamos; líamos aquelas livros, dou quando gosto, distribuo crônicas, não sei se era no Cruzeiro ou para outros lerem, já não sou capaz se era na Manchete, na última página, de dizer exatamente... Alves Redol, que era da Rachel de Queiroz. E eu Carlos de Oliveira, Fernando Namora e o Jacinto, que se correspondia não regularmente líamos; e do Brasil, eram sei com quem no Brasil, mais tarde sobretudo esses do Nordeste. Lembro recebemos muitos livros pela mão de que, por vezes, eu tinha discussões com um marinheiro do Custódio de Melo, o Cardoso por causa do Jorge Amado que fazia a volta para dar instrução e Érico Veríssimo. E quando Jacinto aos cadetes da marinha brasileira, e entrava na discussão, era Jorge Amado, que parava em e Luanda. Érico Veríssimo e Graciliano, porque Nessa paragem Jacinto recebeu muita Jacinto era um gracilianista... para ele, coisa, recebeu inclusive os Estatutos o velho Graça é que era!... e pronto, do Partido Comunista Brasileiro, uma foi assim que fiz a minha aprendizagem série de literatura marxista, manual do literária. materialismo dialético, sei lá, e romances da... Editorial Vitória, pode ser?

184 SCRIPTA, Belo Horizonte, v. 19, n. 37, p. 177-198, 2º sem. 2015 Entrevista: Pela voz de Luandino Vieira RC-JK: Em 59 você já tinha sido assim, assim; mantém essa versão”. E a preso. Qual era a acusação? minha versão era de que eu não sabia o LV: Eu fui preso em julho. A acusação que eram aqueles panfletos, na verdade era a mesma; eu fui preso no âmbito do me tinham dado por debaixo das portas, Processo dos 50; foi presa toda a gente, nas caixas de correio e em tudo quanto do MIA, do MINA, do MNL... enfim, era lugar. Como coincidiu com as aqueles grupos. Todos tinham a mesma eleições portuguesas, “eu pensava que intenção, todos tinham o mesmo eram panfletos de Humberto Delgado”, objetivo, e cada um, de dois, três, quatro, porque todas essas pessoas visivelmente cinco pessoas do seu lado faziam um participavam da campanha para a grupo, faziam panfletos, distribuíam eleição do General Delgado. “Não, mas panfletos, era uma agitação muito o que é que pensas da independência? grande. Eu fui preso quando a PIDE Não senhor, são panfletos estes a pedir desencadeou a primeira grande ação e a independência”, “Sei lá, nunca ouvi começou a prender toda a gente desses falar disso”. Fiz-me de ingênuo e, grupos. Prendeu também um grupo que quando fomos ao juiz para confirmar estava ligado à Sociedade Cultural de os autos da PIDE, mantive a versão e o Angola, Maria Julieta Gandra... Uns juiz despronunciou. O juiz pronunciou eram portugueses progressistas que só aqueles cerca de 50, mas eram muito estavam ou desterrados em Luanda, mais... ou tinham vindo trabalhar porque não conseguiam trabalhar em Portugal, e RC-JK: Você tinha saído da tropa fazia alguns indivíduos brancos angolanos pouco tempo? que se juntavam ali à volta da Sociedade LV: Não, eu tinha saído da tropa em 56, Cultural de Angola. Eles foram presos, 57. Então o que é que sucedeu depois? atrás de uns foram outros e, chegou a Eu saí e disse “pronto, vou viajar”. Com minha vez também. aquela prisão, tinha perdido aquele emprego; trabalhava na Volvo. “Vou à RC-JK: E foram todos condenados? Portugal”, e como estava programado LV: Eu fui preso, o processo foi para o um congresso dos cineclubes, e eu tribunal, mas o juiz não se pronunciou, pertencia ao cineclube de Luanda, fui. quer dizer, não encontrou material de Claro, estive em Portugal, contactei culpa. Eu fui um dos últimos e quando com a gente da Casa dos Estudantes fui preso já o engenheiro Calazans do Império, fiquei a conhecer melhor Duarte tinha avisado “Só sabem isto, aquilo, voltei, arranjei um emprego

SCRIPTA, Belo Horizonte, v. 19, n. 37, p. 177-198, 2º sem. 2015 185 Rita Chaves e Jacqueline Kaczorowski numa empresa que se tinha instalado para o sul” ou “vai para São Tomé” para ajudar a construir a barragem de ou “vai para a rua”. E uma vez eu vi . E casei em 1960, e depois entrar aquele grupo; um aleijado com em 61 fui preso, quando já tinha tudo um pato, sim. Como nós éramos os três preparado para sair para o estrangeiro. políticos, estávamos numa outra cela Porque já tinha começado a luta armada aparte. Uma cela terrível, em que um de em 61. Eu ia para Londres e de Londres nós tinha que ficar sempre de noite de ia para o Gana; e, no Gana, eu ia ter guarda porque saíam aquelas ratazanas com o MPLA. da marginal e vinham...

RC-JK: E os livros seguintes, onde RC-JK: Com quem você dividia a foram escritos ? cela? LV: A vida verdadeira... foi terminada LV: Com o Jacinto e o António de escrever em Lisboa, em 61. Penso Cardoso. Fazíamos turnos para vigiar que acabei em novembro ou dezembro por causa dos ratos, pois os ratos roíam- de 61; terminei, uns dias antes de ser nos os dedos. E essa cadeia era mesmo preso, A vida verdadeira de Domingos uma “boa cadeia”. Era isso, durante o Xavier, e deixei o manuscrito. E depois, dia a porta de grades dava para uma na cadeia, escrevi as Vidas Novas. oficina de pintura dos automóveis da E depois, penso que ainda na cadeia própria polícia; estavam a pintar com de São Paulo, escrevi a “Vavó Xíxi e aquelas máscaras e nós dentro da sala. seu neto Zeca Santos”, mas levei para Ainda esta coisa... esta dificuldade a primeira esquadra, na Baixa, onde é que eu tenho ainda com a minha agora o comando da polícia – aquele garganta vem daí. Tivemos lá o que... prédio azul muito antigo, está mesmo seis meses, sete meses ... em 1963. E na marginal – e aí escrevi a “Estória da então quando vi aqueles desgraçados, galinha e do ovo”. Estávamos em uma inventei a história... “o que é que leva daquelas cadeias que às sextas, sábados este tipo a roubar patos”? E saiu a e domingos se enchiam e ficavam 80 “Estória do ladrão e do papagaio”; eu pessoas num lugar de 12, uma coisa já tinha escrito a “Estória da galinha e assim. Eram as grandes rusgas que do ovo” porque me lembrava daquelas faziam para depois, na segunda-feira, pequenas discussões entre a minha mãe presumivelmente, irem ao juiz e o juiz e as vizinhas e as vizinhas entre si por atribuía uma sentença administrativa causa das galinhas e dos ovos; aquela “vai trabalhar para a pesca” ou “vai confusão. E a “Estória da galinha e do

186 SCRIPTA, Belo Horizonte, v. 19, n. 37, p. 177-198, 2º sem. 2015 Entrevista: Pela voz de Luandino Vieira ovo” foi escrita mesmo com o sentido estórias... tinha as escrito e eu recebia deliberadamente político. visitas. E uma vez o doutor Eugênio Ferreira foi nos visitar, como advogado RC-JK: Diferentemente das outras e tal... e depois, na visita seguinte, estórias? falávamos do que estávamos a ler, eu LV: Enquanto o “o ladrão de patos” andava a ler José Lins do Rego, penso era quase um divertimento, a “Estória que o Menino de Engenho... Nós da galinha e do ovo” não, foi escrita já tínhamos sido, como eles diziam, mesmo a partir dum episódio que eu vi investigados, “não faz mal nenhum, várias vezes, não com aquela sequência leiam lá o que vocês quiserem”. Claro quase cênica, entra personagem sai que não iam livros marxistas. E a minha personagem, mas eu vi muitas vezes mulher chegou para visita e trouxe um aquela discussão à volta da galinha, livro e disse, “olhe, o Eugênio disse que a quem pertence um ovo de uma vocês andam aí a ler o José Lins e o galinha que é alimentada: ao dono da Jorge Amado e não sei quê, e o Eugênio galinha? Então eu disse, pois é, isto é manda-te este livro”. E era um livro como nós, a nossa terra. Pronto, e o fim assim grande, Livraria José Olympio, que eu encontrei foi realmente pôr as capa amarela, e tinha um título que eu crianças a resolver o problema, porque olhei para aquilo e disse “que raio de o problema até ali estava insolúvel. Há coisa é essa, ‘Sagarana’?”, e pus de duas coisas que precipitam o desfecho lado. que é, por um lado o aumento da repressão – quando os polícias já não RC-JK: Essa leitura provocou grandes querem só o ovo, querem a galinha mudanças na sua concepção literária? toda – por outro lado, a resposta das LV: Os contos estavam escritos, mas crianças, o futuro, respondendo de uma eu, nos diálogos, em tudo quanto maneira engenhosa: “bom, como é que era diálogo, ou reflexões, portanto a gente vai tirar a galinha?”. E recorrem diálogos indiretos, eu já tinha utilizado ao que é tradicional, aquelas cantigas a linguagem popular. Se não, não era de imitar o canto das aves; uma espécie possível escrever aquilo, “Kam’tuta” de parábola, uma coisa assim. e “sô Zuzé”. Mas eu andava a debater comigo próprio, lia aquilo e soava-me RC-JK: Foi nessa prisão que você leu falso, porque, muito embora escrevesse o Guimarães Rosa? com a prosódia que era da minha LV: Pronto, eu tinha escrito essas três fala, portanto luandense, havia uma

SCRIPTA, Belo Horizonte, v. 19, n. 37, p. 177-198, 2º sem. 2015 187 Rita Chaves e Jacqueline Kaczorowski diferença entre aquilo que eu escrevia leitura e a sua experiência com tantas e depois o que diziam os personagens. personagens com quem conviveu? E era assunto que eu sempre discutia LV: Inclusive na prisão. Eu falei com o Jacinto; ainda nos anos 70, no com eles por um tempo, “o que é que Campo de Concentração do Tarrafal vocês roubaram?, não sei quê...” e sempre discutíamos isso. Porque, cada um contava uma história mais muito embora Jacinto tenha escrito o mirabolante... e eu percebi que era “Vovô Bartolomeu” e eu lembro-me legítimo tentar fazer uma linguagem que o que me fazia pensar muito nisso literária a partir daqueles mesmos era um conto cujo título era “Aiué”, de pressupostos com que, nas camadas Cochat Osório. E esse conto, “Vovô populares, se usava a língua portuguesa, Bartolomeu”, do Jacinto, que eu tinha que eram (e isso eu já tinha percebido lido datilografado, por ele, o original a ler os Missosso do Óscar Ribas. Aí já assinado “AJAM”, Antônio Jacinto tinha lido O Segredo da Morta, já tinha do Amaral Martins. E andava eu a lido isso tudo) aquelas alterações na discutir aquilo quando, faço não faço, língua portuguesa sobretudo devidas ao bom, parei e guardei. Guardei e disse facto de preencherem, com vocábulos “pronto, agora vou ler” e peguei e disse da língua portuguesa ou da linguagem “pá, vamos lá ler esta coisa, ‘Sagarana’, corrente, estruturas que eram de que raio de palavra é essa; o que é que outra língua na cabeça dos falantes e, isto quer dizer?”. E comecei a ler “O portanto, davam aqueles resultados: Burrinho Pedrês”, que é o primeiro. num caso cômico, em outro caso, Eu li uma página, duas páginas... E quase a dizerem o contrário daquilo pá, disse “ah pronto, já percebi!”. E que parece que estão a dizer... E disse voltei e, não sei, não mexi em nada; “pronto”; então foi por aí que comecei a única coisa que eu fiz nos contos a construir essa linguagem literária, foi forçar um pouco mais, no sentido que depois fui utilizando ao longo dos literário, a linguagem popular que eu livros todos e que nunca mudei... nunca já tinha registrado, por ter vivido, por desisti dessa linha, porque fui estudando ter ouvido, por continuar a ouvir, por cada vez mais a língua portuguesa. Eu ser dos personagens – inclusive dos li tudo quanto era clássico: li os frades ladrões que estiveram ali na cadeia. todos. Eu gosto muito do Padre Antônio Vieira. Fui estudando, aprendi outras RC-JK: A linguagem utilizada por línguas, e, sobretudo, percebi que tinha você resultou da combinação entre a que regressar a uma língua da minha

188 SCRIPTA, Belo Horizonte, v. 19, n. 37, p. 177-198, 2º sem. 2015 Entrevista: Pela voz de Luandino Vieira infância, a minha segunda língua, o 80 e tal, que se chamam a si próprios kimbundu. E fui aprofundando os de “Geração das incertezas” – mas conhecimentos do kimbundu, chegando eram todos muitos certinhos, os das ao kimbundu literário. E com os meus incertezas – fiquei a pensar que a base colegas, naqueles largos anos do Campo era essa, esse era o material, e que de Concentração, o Mendes Carvalho e isso era uma tendência, sei lá, era uma os mais velhos, percebi que era, continuo linha de desenvolvimento da literatura a pensar assim, uma linha correta do nacional angolana. E o que me cabia desenvolvimento de uma linguagem era ficar tranquilo quanto a isso e literária angolana e que o que eu tinha preocupar-me apenas com o aspecto que fazer era assumir isso e fazer isso já estético, literário desta questão; não com o máximo de conhecimento que eu estar mais preocupado com questões pudesse obter e assumindo o máximo linguísticas, ou histórico-linguísticas da responsabilidade pelo que está feito, ou histórico-sociológicas. E quando que eu assumo totalmente. Depois, deu cheguei a essa conclusão comecei a uma certa tranquilidade ver escritores escrever o que eu queria escrever, que que faziam isso sem ser pela via erudita, era O livro dos rios... que é, da maneira como o Uanhenga Xitu (o Uanhenga como deliberadamente comecei, a Xitu é aquilo mesmo); e ainda outros mesma coisa, mas escrita de outro escritores que, sendo de língua materna modo, sem já me preocupar com nada, kimbundu, seguiram a mesma via, o nem com ninguém, nem se está certo, Jofre Rocha, o Boaventura Cardoso se está errado. Portanto, a linguagem e outros. E disse: pronto, não é um literária já noutro nível. equívoco meu; pode ser um equívoco total de uma geração, de um grupo, de RC-JK: Vamos voltar ao Luuanda, um momento histórico, pode ser, não esse livro que marca o itinerário da sei, mas sinto-me pacificado quanto a literatura em Angola. Você não escreve isso. na ordem que aparece no livro. Quem deu a ordem foi você? Depois? RC-JK: Essa convicção se mantém? LV: Fui eu quem deu a ordem, porque LV: Depois, da experiência de 1975 o livro não se chamava, não era para até 1992 e sobretudo quando, depois se chamar Luuanda. O livro era de 92 até 96, 97, com o agonizar da umas sete histórias, depois outras Guerra Civil, e com tudo quanto se foi foram reescritas, como a “Estória da publicando naquela geração dos anos menina Santa”, depois “Muadié Gil, o

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Sobral e o barril”, que está no Velhas Porque o Xexe tinha 3 ou 4 meses; ia estórias, mais uns contos que estão visitar-me e, uma das maneiras para em A Cidade e a Infância, como afastar o guarda, que estava ali ao lado “Bebiana”... Uns contozinhos... Era nas visitas, era trocar a fralda da criança. para juntar isso tudo em um caderno O guarda afastava-se, porque não queria que se chamava Vadiagem. Naquele ver o que estava a ver, e então eu levava tempo pensávamos em termos de já 4 ou 5 folhas dobradas já do tamanho cadernos. Era um caderno. de bolacha, aquelas bolachas. Uma vez Depois fiz aquela divisão porque, foi assim que eu as fiz sair... eles faziam depois de Domingos Xavier, percebi a vistoria de tudo o que vinha de casa que não valia a pena juntar mais nada. e abriam, então o pacote de bolachas já Domingos Xavier já é a entrada dessa vinha fechado no celofane, tudo, e não linguagem. Vidas Novas também mexiam. De maneira que eu disse “Bom, foi escrito deliberadamente, aquelas eu vou pôr isto lá dentro e vou buscar histórias todas, para mostrar qualquer a roupa suja”, que era para depois eles coisa de novo que estava a passar. Com verem a roupa; se saía também qualquer Luuanda, o material já era muito mais coisa da cadeia para a família. A Linda encorpado, mais grosso, mais social, foi tirando umas folhas, de uma maneira sociológico, histórico etc. ou de outra, e tinha o original com ela. Quando fomos lá para baixo, para a RC-JK: O título e a capa foram 4ª esquadra, na Baixa, onde escrevi a escolhidos por você? “Estória do ladrão e do papagaio” e LV: O título Luuanda, sim, eu escolhi completei, portanto, as três estórias, aquele título e fiz o desenho. O desenho fiz o trabalho todo e depois entreguei era de uma cubata a escorrer, como se na visita lá embaixo; já não estávamos fosse uma pixagem numa parede, fui sob a alçada da PIDE e as versões já eu que fiz, e o título Luuanda também trabalhadas... escolhi eu. RC-JK: E a publicação? RC-JK: O livro foi escrito na prisão. E LV: Ela mostrou a uns amigos que como os originais saíram de lá? trabalhavam ou escreviam para o LV: E saíram essas estórias, saíram jornal ABC, e decidiram: “ah, vamos nas... não sei muito bem como é que publicar”. Então fizeram a edição do saíram, sei que as fichas saíram, na suas Luuanda, aquela pequenina edição, que versões originais, nas fraldas do Xexe. saiu e foi-me atribuído o Prêmio Maria

190 SCRIPTA, Belo Horizonte, v. 19, n. 37, p. 177-198, 2º sem. 2015 Entrevista: Pela voz de Luandino Vieira José Mota Veiga, que a Linda foi receber ganharam bastante dinheiro com aquilo. das mãos do governador da Província de O meu advogado resolveu meter um Luanda. processo em tribunal e isso gerou uma outra história. Até pelo tipo de papel era RC-JK: E como o livro desembarcou fácil identificar a tipografia, mas perdi em Portugal? o processo, porque não se conseguiu LV: Então, depois disso, a Rute provar nada – embora tudo fosse Magalhães tinha ido a Luanda, ou evidente. E ainda fiquei com as custas mandaram os livros para a Rute, em do processo. Portugal, e ela entregou na Casa dos Estudantes do Império, em Lisboa, e RC-JK: Você escrevia tudo a mão? depois também em Coimbra. E fizeram LV: Eu escrevia tudo a mão; aqueles a distribuição pelo Urbano, o Alexandre contos, quem datilografou não fui eu; Pinheiro Torres e outros... o João Gaspar deve ter sido a Linda, porque eu mandei Simões, o Abelaira... e eles fizeram suas tudo escrito a mão. Naquele tempo críticas nos jornais e as críticas da época, eu não tinha máquina de escrever, só e o livro foi distinguido pela Sociedade depois, mais tarde, deixaram entrar a Portuguesa de Escritores com o prêmio. minha pequena Hermes Baby, que me E deu aquele rebuliço todo, mas eu acompanhou. Quando eu cheguei ao estava no Campo de Concentração; isso Campo ainda ficou apreendida, depois já foi em 64, 65. deram-me de novo, mas eu continuei a escrever a mão. Tudo quanto eu escrevia RC-JK: Mas a complicada trajetória do para o Luuanda era escrito a mão. livro não termina aí. Há ainda o episódio Depois, os originais de No antigamente, daquela falsa edição. na vida, eu próprio passei à máquina, LV: Essa é mais uma história. A capa naquela máquina; e... não sei, dei. E referia uma gráfica de Belo Horizonte, noutro dia tive a surpresa de encontrar como se a edição viesse de lá. Mas a “Lá, em Tetembuatubia”, o original verdade é que essa edição foi feita à datilografado, com o meu compadre minha revelia. Com o escândalo à volta Arnaldo Santos; “Como é que isso veio do Prêmio, que envolveu a destruição aqui parar?”, não sei, coisas que eu dava. da Sociedade Portuguesa de Escritores, Quando não tinha mais nada que mandar o livro tornou-se muito procurado. E aos amigos, fazia um postal, ou dava dois agentes da PIDE fizeram o livro, na alguma coisa. tipografia Pax, em Braga, distribuíram e

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RC-JK: E os originais de Luanda, a senhora a catar os caixotes de lixo. onde estão? Era para retomar aquele dado sócio- histórico da burguesia do fim do século LV: O original de Luuanda existia, XIX, que foi destruída e cujos restos e eu ofereci. Depois do 25 de abril, o eu conheci no bairro dos Coqueiros, Arménio Ferreira – Doutor Arménio na Ingombota e que foram cada vez Ferreira, que era o coordenador do mais afastadas da parte dita urbana da Comitê 4 de Fevereiro do MPLA em cidade, mas que nós encontrávamos em Lisboa, que era o meu coordenador – todo lado. E isso eu via nos Coqueiros. naquela altura, quando saíram os presos políticos das cadeias, fizeram-se vários RC-JK: Esse era um bairro especial? leilões e venda de quadros e livros, e LV: O bairro dos Coqueiros ficou eu dei o original de Luuanda, que foi preservado ali, encravado, e como eu vendido, não sei como, não sei a quem, jogava no Atlético – o Atlético era ali no nem sei aonde; sei que foi vendido para bairro dos Coqueiros –, nós tínhamos angariar fundos para as famílias dos aquela vivência no Atlético. Era como presos políticos que saíram depois do se vivêssemos num bairro dos anos 25 de abril. do fim do século, nos anos 50, 1950. Era assim um gueto; não era um gueto RC-JK: Quando lemos o livro, porque tudo aquilo se misturava muito percebemos uma unidade naquela com a cidade Baixa, mas era um tempo organização. Temos o “Vavó Xíxi...”, fora daquele tempo. Já à volta havia que é uma evocação, depois temos a aqueles prédios, havia aquilo tudo e “Estória do ladrão...”, que é o presente, o Clube Atlético, naquele bairro dos e temos a “Estória da galinha e do Coqueiros, persistia, subsistia. Portanto ovo”. Isso foi pensado por você quando as histórias não foram deliberadamente organizou? arrumadas... se calhar, foi mesmo o LV: Não, não. Achei que sim, que devia próprio tema que as obrigou a ficar fechar com a “Estória da galinha e do assim. Às vezes perguntam-me qual é a ovo”, porque é a que fica aberta, as que eu gosto mais; eu continuo a dizer outras ficam fechadas... Na primeira, que a que eu gosto mais é a de Vavó sim, um dos motivos do “Vavó Xíxi” Xíxi e de seu neto, por ser a história da era a própria personagem. Eu vi aquela fome. personagem na marginal. Eu morava na rua Mota Feo, eu via todos os dias

192 SCRIPTA, Belo Horizonte, v. 19, n. 37, p. 177-198, 2º sem. 2015 Entrevista: Pela voz de Luandino Vieira RC-JK: Numa entrevista à Margarida de admitir. E nas reuniões da Liga e da Calafate Ribeiro, em 2005, você define Anangola diziam, “bah, esses miúdos Luuanda como um contra-mapa da comunistas, vêm com essas leituras; cidade. não é nada disso”. Digo contra-mapa LV: Um contra-mapa em que sentido? neste sentido: aquela era a cidade que realmente era a cidade de Luanda e que RC-JK: A expressão é sua. Você fala existia por baixo de uma outra que era a mesmo que pretendeu escrever um que aparecia, já naquele tempo, 59, 60. contra-mapa, e a expressão é ótima! LV: A ideia que se tinha de Luanda não RC-JK: Estaria aí a dimensão tem nada a ver com aquilo, por isso é subversiva do livro? que eu grafei com dois “us”; porque LV: Já não me lembro muito bem em aquela é a cidade de Luuanda, era... As qual contexto é que eu disse isso, desse pessoas podem dizer, “Sim, sim, essas contra-mapa... Mas penso também nos coisas, se calhar, passaram-se, eu vi”. espaços que lá estão definidos. Essa Mas ninguém dava conta daquilo, nem história se passou no Sambizanga, os sítios, nem os personagens, nem as aquelas coisas que, ao tempo, eu próprio, ações; nada daquilo ... Como se aquela enquanto fui crescendo, eram também realidade não fosse visível e, assim, referência para nós da Ingombota, aquilo não era a realidade, a realidade Maianga... Nós tínhamos a percepção era outra, a Luanda dos colonos e dos mais ou menos certa do que era. Mas colonizados mais próximos das ruas de dali para cima... Aos sábados, a gente ia alcatrão. todos divertir-se nos clubes, com alguns colegas que participavam conosco ou no RC-JK: E como foi a recepção? desporto, ou no Liceu e noutras coisas. LV: A história da Vavó Xíxi e do seu Era a minha própria descoberta daquela neto foi uma história muito incômoda... cidade e estava a devolver essa imagem, As pessoas não gostaram muito daquela que não era a imagem de Luanda; por história. Porque os leitores, quem sabia isso é que o livro foi ou era considerado ler e quem leu era gente que estava subversivo. “Luanda não era nada habituada a ler, e estava formada também disso”. numa outra imagem de si próprio, da sua classe, ou de seu grupo social... E aquilo RC-JK: A expressão contra-mapa é vinha colocar uma outra perspectiva; excelente, do ponto de vista espacial, uma perspectiva que eles não gostavam do universo que você capta, e, também,

SCRIPTA, Belo Horizonte, v. 19, n. 37, p. 177-198, 2º sem. 2015 193 Rita Chaves e Jacqueline Kaczorowski no plano da linguagem. Você chega a RC-JK: Você identifica pontos de dizer: “Eu queria que o português lesse contato entre Luuanda e O livro dos e soubesse...” rios... LV: Sim; liam, diziam “isto é português”, LV: Sim, em termos de linguagem. mas há qualquer coisa que escapa, que Porque a temática é sempre a mesma. não é. É nesse sentido, a intenção foi essa. Que mesmo escrevendo na língua do RC-JK: E assim é possível, também, colonizador, o colonizador lê e percebe interpretar agora O livro dos rios e que “É minha língua, mas não é minha O livro dos guerrilheiros como um língua”. E isso era o argumento que nós contra-mapa da Angola... tínhamos para essa diferença cultural, LV: Ah, isso é! Depois de 92 eu nos próprios termos culturais que eles percebi que os termos já não podem nos impuseram. Dava-nos legitimidade ser os mesmos, porque tudo se passa para a autonomia ou a independência, ou noutra época; a época histórica é o que fosse: havia uma diferença. E eles outra, o contexto histórico-cultural não podiam rasurar essa diferença. E, também é outro. A independência sobretudo, nós estávamos legitimados a é um facto radical, quer tenha dado pedir um outro tipo de relação, porque já certo, quer não tenha dado, quer seja tínhamos uma diferença que era cultural, uma independência só política... e não era uma questão só de haver o essas questões são questões menores, Movimento dos Intelectuais de Angola, perante o facto. Angola foi colônia não! O que eu depois percebi é que, até aquele dia. A partir dali, é um país fazendo aquilo, era mais do que uma soberano, acabou. Que isso se misture intenção literária; havia um substrato com toda espécie de outras datas, cultural que justificava esta intenção. E não interessa. Portanto, o problema se havia substrato cultural é porque foi é essa perplexidade literária. Como formado durante muito tempo, muitas é que agora, nessas novas condições décadas, ou séculos, sei lá quanto foi. históricas, histórico-sociais, histórico- E que essa diferença nos dava razão. literárias, nós vamos continuar? Os Penso que era assim que eu queria dizer. escritores vão continuar a ser aquilo Pois era a cidade que, na verdade, não que sempre foram? A voz crítica da existia para ninguém, afinal, era aquela intervenção cívica. Não é política, é que existia e essa é que era a verdadeira cívica, que é uma tradição, que foram cidade de Luanda para nós. Não era a buscar às origens, aos textos, no século outra. XIX. Pronto, está mais do que claro;

194 SCRIPTA, Belo Horizonte, v. 19, n. 37, p. 177-198, 2º sem. 2015 Entrevista: Pela voz de Luandino Vieira mas, se quiser recuar até onde há onde é que está? Eu não quero acreditar coisas escritas, o poema do “Capitão no que eu vejo, no que eu oiço; porque de Cavalos”, o Antônio Macedo, lá no isso é o que eu já via, já ouvia, não século XVII, um mulato, se não me quero acreditar que seja só isso, que engano, ele é quem faz aquele poema seja o que é significativo na realidade a criticar o Triunvirato, os três que de hoje. A realidade de hoje é outra são um; já é um poema de intervenção coisa. sobre a realidade daquele tempo: “Como é que aqui três capitães é que RC-JK: Como essa realidade são o governo, não há um capitão?...”. é representada na literatura Pronto, é essa tradição cívica. contemporânea? LV: E é isso que eu vou procurar na RC-JK: Você há anos vive fisicamente literatura atual, e na verdade encontro, longe de Angola. E quais são as suas mas é, assim, alguma porta lateral: sensações diante da Luanda de hoje? é o erotismo, a ironia, é o gozo, é a LV: Vou a Luanda, vejo, passeio, ando, formulação erudita, que são traços oiço, e só oiço o que eu já sei... e por isso novos, e que estão lá, mas eu digo: dizem... falam, converso, entro logo no “E Luuanda...?”. Que é isso o que tipo de linguagem, no comportamento, se pede à literatura de um país que nos problemas, nada me é estranho. E, já é independente. Continua a ter o ao mesmo tempo, eu não sou capaz de pendor que tem, que sempre teve, de passar daquilo. Entro no candongueiro intervenção, mas isso já pode ser feito e nada me é estranho, mas ao mesmo com outro tipo de trabalho literário, tempo é... O povo (claro, os jipes, os porque o país é independente. Já há carros e não sei o quê; essa parte sempre uma literatura nacional, que é muito houve e é outra coisa), agora, o povo de antiga, é muito estudada... não quero Luanda move-se com aquele sistema ser injusto com outras Literaturas de transporte que se criou durante os Africanas. Ainda que o corpus possa ser primeiros anos da independência e que do mesmo valor etc., há uma diferença se mantém. Não há maneira de dar a de tom na Literatura Angolana, que volta àquilo e a Luanda de hoje é uma mostra que é uma literatura muito Luanda informal. A que nós vemos é mais antiga, muito mais trabalhada, a Luanda formal, estamos a ver uma com muito mais aportes e muito mais Luanda, entre aspas, como se fosse a enraizada numa cultura nacional, que Luanda do colono. Agora a Luuanda não é só uma das culturas originárias,

SCRIPTA, Belo Horizonte, v. 19, n. 37, p. 177-198, 2º sem. 2015 195 Rita Chaves e Jacqueline Kaczorowski das culturas nativas; não, é outra coisa. que tem mais importância O livro dos Mas posso ser eu que estou aqui a rios, na Literatura Angolana, do que divagar; que sempre dizem “ah, vocês o Luuanda. Só que o que hoje tem têm a mania, os angolanos...”. É fácil importância na realidade não assinalei. descambar a autoestima em orgulho São tantas coisas, e tão grandes, e e o orgulho em arrogância, é fácil! passam-se tantas coisas... mais livro, Concedo, estou a ser arrogante; mas menos livro... Eu, em certa altura, não é desmerecer o quer que seja... é dizia que eu gostava de escrever agora apenas uma das literaturas de língua um livro que fosse para o momento portuguesa... atual, que tivesse o impacto que teve o Luuanda, e aparentemente não escrevi. RC-JK: E a Angola que há para além Não tem; já nenhum livro pode ter mais de Luanda? o impacto que tinha a literatura naquele LV: Acho que a realidade de hoje tempo. Não é o Luuanda, ou O grande também não conheço... estive no desafio, do Jacinto, ou a Sagrada , estive no Huambo, vi outras esperança. A não ser (e ninguém lê o coisas, mas não conheço bem. Nunca futuro), que as coisas evoluam de tal nenhum de nós conheceu bem a maneira que, de repente, um livro faz realidade de Angola. de novo mexer tudo; agora já não faz mexer nada. Nem os leitores, nem as RC-JK: Como você vê a relação de livrarias. Mas eu estou tranquilo quanto seus últimos livros com o projeto ao o que escrevi. literário angolano? LV: O livro dos guerrilheiros e O RC-JK: Uma das marcas fortes de livro dos rios, se fossem escritos na Luuanda não estaria efetivamente num altura em que escrevi Luuanda, se pacto entre a literatura e o espaço de calhar, tinha havido a apreciação de exclusão, por exemplo, que é um pacto que era também um corte; eu tê-los- radical? ia escrito de uma maneira que o corte LV: Não tem ambiguidades. Nós era perceptível. Escrito já depois de estamos daquele lado. uns anos, como está escrito agora, acho que não se nota que é um corte. RC-JK: Você não acha que, depois, no Mas, eu sinto esse livro, esse trabalho a final dos anos 70, começo dos anos 80, partir do O livro dos rios, sinto como há um pacto entre a literatura e o país um corte em relação ao anterior e acho novo. Há um desejo. Está tudo bem

196 SCRIPTA, Belo Horizonte, v. 19, n. 37, p. 177-198, 2º sem. 2015 Entrevista: Pela voz de Luandino Vieira ou, aquilo que está mal começa a ser RC-JK: Mesmo se saímos da esfera visto. Em O cão e os caluandas e em dos escritores, sente-se uma certa Quem me dera ser onda, dois livros impaciência com os pobres. Nas muito bons, há uma desconfiança, que ruas, muitas vezes, a resposta a um é tratada ali ... mutilado que pede ajuda é “Vá pedir LV: Com o humor de quem sabe ou ao Zé Eduardo”. Vamos colocar nesses pensa que “Isso vai passar, vai passar. termos: há uma incomunicabilidade Isso é ilusão de uma camada egoísta; com a Luanda miserável, que incomoda. amanhã já não é assim”. É um bocado E há uma incompreensão com essa lúdico, ambos os livros são lúdicos. As Luanda informal a que você se referiu. leituras que se fazem agora já podem LV: Sim... E eu acho que é também um ser vistas de outro modo, mas acho que pouco de má consciência, que faz com eles escreveram deste ponto de vista. que digam “Ah, isso não é comigo. Vai procurar outro”. Porque sabe que é com RC-JK: Ali o pacto ainda aparece. ele. Porque esses, que hoje têm essa O que nós, leitores, sentimos hoje, atitude, são os que, em 75, receberam sobretudo os leitores mais velhos, é o país. E é, se calhar, é um sentimento que há uma dificuldade de identificar de “Caramba, não fomos capazes, eu esse pacto. Talvez esteja na base de também! E agora? Não vou... mas não uma certa ambiguidade, por exemplo, admito que esse problema... isso não a opacidade de Luanda. Luanda é problema meu. O que eu fiz foi isto; tornou-se uma cidade opaca para esses fizemos um governo, saiu um país, saiu habitantes? tudo, portanto não venha ter comigo”. LV: A cidade desenvolveu-se também E eu penso o contrário; é que está aí em múltiplas direções e camadas. O um governo, está aí um país. E como caldo está muito mais engrossado, eu participei a fazer esse país, esse por estes anos todos. E o escritor governo, tudo quanto está hoje, então, já não tem, ou a capacidade, ou a é comigo mesmo. Não é com os outros oportunidade de participar de tudo; e que entraram. Podemos dizer: “Não já não tem, se calhar, a necessidade de foi nada disto que combinamos”. Mas ter a paciência para perceber aquilo em claro que não foi, e agora? que não participa, ou não tem interesse em perceber. RC-JK: Diante desse quadro tão surpreendente, como a literatura pode responder?

SCRIPTA, Belo Horizonte, v. 19, n. 37, p. 177-198, 2º sem. 2015 197 Rita Chaves e Jacqueline Kaczorowski LV: O problema, em termos literários, é: não foi isto que combinamos; como é que eu vou mostrar que não foi nada disto que combinamos? Já num novo contexto, já com novos protagonistas, e, portanto, os perigos são outros. Não sei se são maiores, se são menores, se são mais legítimos, menos legítimos. Essa é a perplexidade dos escritores angolanos, hoje. Talvez seja também porque já não é possível falar de um escritor luandense; quer dizer, a cidade já não cabe num escritor.

Submetido em: 15 de junho de 2015. Aceito para publicação em: 09 de outubro de 2015.

198 SCRIPTA, Belo Horizonte, v. 19, n. 37, p. 177-198, 2º sem. 2015 OUTRAS VOZES