Fragrâncias visíveis: a materialidade das práticas culturais nas embalagens de do século XVIII aos anos 1920

Maureen Schaefer França* Marilda Lopes Pinheiro Queluz**

Resumo O objetivo deste artigo é pontuar historicamente algumas imbricações entre o design de embalagens de perfume, as relações sócio-culturais e a tecnologia, do século XVIII aos anos 1920. A delimitação deste período deve-se à tentativa de pensar a produção dos fragrantes a partir daquilo que Don Slater chama de início da sociedade de consumo, até o período do final da primeira guerra mundial, quando a indústria segue outros rumos. Buscou-se estudar os envoltórios, em sua materialidade, o modo como constituem e são constituídos por discursos sócio-culturais, questionando ou reproduzindo estereótipos, tradições, convenções sociais e relações de poder. cultura material medeia as atividades humanas, sendo capaz também de proporcionar uma herança cultural palpável às sociedades, contextualizada em determinado período e lugar. Palavras Chave: , design de embalagens, cultura material, história

Abstract The aim of this article is to point historically some imbrication between the perfume bottles design, culture and technology, from the XVIIIth to the 1920 decade. The delimitation of this period is the attempt to think the production of fragrant from what Don Slater calls the beginning of the consumer society until the end of World War I, when the industry follows a different course. We sought to study the perfume bottles on its materiality, the way how they dialog with socio-cultural discourse, questioning or reproducing stereotypes, traditions, social conventions and power relationships. Material culture mediates human activities, and may also provide a tangible cultural heritage to societies, contextualized in a given period and place. Keywords: perfume, packaging design, material culture, history

Os artefatos funcionam como índices das transformações sócio-culturais, políticas, econômicas e tecnológicas, podendo expressar valores simbólicos de um determinado período e lugar, construídos ao longo da história. A interpretação dos significados possíveis dos artefatos favorece não apenas a sua compreensão, mas também, a do contexto no qual estão inseridos e dos pensamentos que as pessoas têm sobre o mundo. O objetivo desta pesquisa é refletir sobre algumas imbricações constituídas historicamente entre o design de embalagens de perfume, as relações sócio-culturais e a tecnologia. Neste texto, procurou-se estudar especialmente os frascos de perfume projetados no Ocidente a partir do século XVIII, pois, de acordo com Slater (2002), foi neste contexto que se iniciou a cultura do consumo, que ligada à opção, ao individualismo e ao mercado foi capaz de modificar a relação entre os sujeitos sociais e os artigos de consumo. Os exemplos pontuados vão até os anos 1920, quando o

* Mestre em Tecnologia pelo Programa de Pós-Graduação em Tecnologia (PPGTE) da Universidade Tecnológica Federal do Paraná (UTFPR), [email protected] * * Doutora em Comunicação e Semiótica, professora do Departamento de Desenho Industrial e do Programa de Pós-Graduação em Tecnologia (PPGTE) da Universidade Tecnológica Federal do Paraná (UTFPR), [email protected] final da primeira guerra mundial traz novos rumos para a indústria e a organização do trabalho, novos contornos para a moda e o comportamento, marcando o início do modernismo. Os perfumes ganharam diversos usos ao longo dos anos, sendo utilizados em práticas culinárias e de higiene, rituais místicos e religiosos, tratamentos terapêuticos e medicinais e também como elementos de sedução e beleza. A vida social tornou-se menos cerimoniosa no espaço doméstico durante o século XVIII. Novos espaços de sociabilidade doméstica surgiram (STRICKLAND, 1999). Os sujeitos procuravam demonstrar sua posição social através de móveis, tecidos e objetos decorativos da moda, mas também viver e oferecer momentos prazerosos (BRUNT, 1982). A elite passou a preferir as linhas curvas do rococó, em vez da retangularidade do estilo regência, em voga até então. O rococó parece refletir as frivolidades e ociosidades das classes favorecidas e a sua busca por prazer, conforto e elegância que se refletem nas artes, na arquitetura, na moda e no design. O estilo passa ser visto como uma referência de luxo e delicadeza, ganhando forma através de linhas ondulantes, curvas em “c” e “s”, acabamentos dourados, cores pastéis e coloridas, tecidos estampados com temas da natureza como flores, pássaros, conchas e cenas graciosas da sociedade. A materialização do rococó em objetos do dia-a-dia, como o frasco de perfume, pode indicar não apenas a disseminação de uma moda, mas revelar o desejo da sociedade pelas coleções e por sistemas de artefatos que apresentem a mesma linguagem formal, conferindo harmonia e organização visual ao ambiente doméstico. Os envoltórios parecem funcionar como peças decorativas que se combinam com os mobiliários. Os frascos de perfume pareciam vasos em miniaturas, embora existissem exemplos de envoltórios figurativos, na maioria, antropomórficos ou zoomórficos. No século XVIII, há um boom de frascos figurativos, criados a partir de referências históricas e sócio-culturais, um fenômeno que Moles (1971) associou à manifestação do Kitsch. Eles são moldados a partir de formatos variados como gatos, pássaros, palhaços, frutas e flores. A manufatura de Meissen, na Alemanha, fundada em 1709, pelo grão-duque da Saxônia, deu grande acento à pesquisa e a experiência em utensílios de porcelana, tornando-se referência no continente europeu (MORAES, 1999). O gosto pelo exótico permeou a criação de muitos envoltórios de perfume, empregando referências descoladas do seu contexto original. O desenvolvimento do capital e da indústria atingiu uma escala significativa no final do século XVIII. As novas fábricas mudaram o cenário europeu, tornando-se uma das paisagens mais visitadas por viajantes e retratadas por artistas. Simultaneamente a este clima de progresso, aumentava a preferência dos consumidores pelas antiguidades clássicas. O interesse pelo progresso e pelo passado eram fenômenos relacionados. O desejo de ver princípios e designs clássicos aplicados à vida contemporânea vinha, em parte, da vontade de suprimir da consciência a imprevisibilidade da mudança trazida pelos avanços tecnológicos. Isto porque muitas pessoas relacionavam o período clássico a uma época de paz, estabilidade e harmonia, uma referência segura para tempos incertos. O gosto pelas peças clássicas fazia parte do movimento neoclássico, que se desenvolveu nas décadas de 1750 e 1760 e dominou parte da Europa no final do século XVIII e início do XIX. O neoclassicismo pretendia recuperar para a arte, o design e a moda, a pureza de forma e expressão que julgava faltar no estilo rococó. Segundo Forty (2007), não se tratava de reproduções servis da Antiguidade, pois os designers buscavam usar suas formas e imagens para camuflar os avanços, que poderiam causar dúvidas nos consumidores. A douração de produtos, usada na moda rococó, foi deixada de lado. O repertório do neoclassicismo era composto por poucas cores e, em especial, o branco, que lembrava a cor das estátuas clássicas genuínas. Usavam-se também relevos e silhuetas de imagens clássicas, além de adornos, frisos e materiais simulados, que buscavam dar uma aparência antiga convincente aos produtos. A demanda por objetos neoclássicos atingiu as fábricas de cerâmicas, que passaram a produzir uma nova gama de produtos, tais como urnas, vasos e camafeus, para compor coerentemente os ambientes neoclássicos (FORTY, 2007). O estilo neoclássico permeou, inclusive, as criações de frascos de perfume. Alguns destes foram fabricados em jaspe, um material com textura semelhante à do mármore desenvolvido por Josiah Wedgwood (1730-1795). Sob o governo de Luís XV (1710-1774), a indústria francesa de vidro se desenvolveu enormemente. Em 1767, a França parou de importar frascos de cristal da Boêmia, fundando a Verrerie de Saint Louis, precursora da Cristallerie de Bacarrat. Sob os auspícios do ministro Jean- Baptiste Colbert, a vidraria Bacarrat tornou-se famosa pelo seu trabalho de alta qualidade em cristal, inaugurando a fama que muitos frascos de perfume desfrutam até hoje. Mas, ainda assim, os perfumes continuavam acessíveis apenas às classes altas e médias (ASHCAR, 2001). O rol de fragrâncias aumentou com o passar das décadas. Alimentava-se o gosto por fragrâncias mais doces, florais e de frutas, mas também por fragrantes exóticos e fortes, para evocar luxo e prestígio. Grandes nomes foram lançados na perfumaria mundial: Jean-Louis Fargeon (1748- 1806), provedor oficial de perfumes para Maria Antonieta, e Jean-François Houbigant (1752-1807), que desenvolveu fragrâncias especiais para os Bonaparte (ASHCAR, 2001). Durante a Revolução Francesa, o mercado da perfumaria regrediu, mas com a ascensão de Napoleão ao poder, a indústria voltou a prosperar novamente. A aristocracia ganhou destinatários personalizados, ornados com símbolos da realeza e iniciais dos monarcas. Estojos de couro, madeira e pérola eram usados pela realeza para guardar frascos de perfume, sofisticando ainda mais o ato de se perfumar. Há um exemplar que pertenceu à Maria Antonieta (1755-1793), trazendo símbolos gravados em ouro referentes à rainha consorte da França . O estojo, feito de couro marrom, tinha o formato semelhante a de um livro. Para Napoleão Bonaparte (1769-1821) foi desenvolvido um frasco longo e estreito para ser levado dentro da bota durante os períodos de batalha. O imperador era apaixonado pela água de colônia, desenvolvida em 1714 pelo italiano Giovanni Feminis, acostumando-se a despejar uma boa quantidade do produto sobre a cabeça todos os dias (ASHCAR, 2001). O frasco comprido tinha coloração verde, trazendo um rótulo com a imagem de três brasões. Ainda no início do século XIX, os frascos neoclássicos, como aqueles criados pela fábrica de cerâmica Etrúria do inglês Josiah Wedgwood, continuaram na moda. De acordo com Ashcar (2001), os perfumes que antes eram feitos sob encomenda, passaram a ser vendidos nos balcões das lojas de perfumaria no final do século XIX. Os rótulos, a princípio, identificavam apenas o conteúdo da embalagem, mas na segunda metade do século XIX ocorreram mudanças no mercado de varejo que provavelmente se estenderam aos frascos de perfume. A ascensão das marcas como um meio de identificar os produtos nas mentes dos consumidores acabou por transcender o nome das mercadorias (SPARKE, 2004). Mas os perfumes ainda compartilhavam frascos genéricos com outros fragrantes, diferenciando-se apenas pelos rótulos. O cenário só mudou com o surgimento das lojas de departamento e com o crescimento do mercado global e da concorrência entre os fabricantes, que acabaram por incentivar a criação de um nome, de um frasco e de uma caixa próprios para cada perfume (CORNING MUSEUM OF GLASS, 2010). Enquanto se estimulava a produção de substâncias animais e vegetais, a indústria química europeia foi capaz de sintetizar, em 1868, cheiros naturais e combinações até então inexistentes a partir da pesquisa das estruturas moleculares. O pioneiro, obtido pelo inglês William Perkin, foi a cumarina, evocando feno fresco. Outros se seguiram: almíscar (1888), baunilha (1890), violeta (1893) e cânfora (1896). Foram sintetizados também os aromas de flores cujas fragrâncias não podiam ser obtidas por nenhum método de extração como lilás, lírio-do-vale e gardênia (ASHCAR, 2001). Entre os grandes perfumes do século XIX destacaram-se os sintéticos Fougère Royale, da Houbigant, e Jicky, da . Fougère Royale, de 1882, foi o primeiro fragrante conhecido a fazer da cumarina, dando início à perfumaria moderna. Para Ashcar (2010), o fragrante Fougère Royale da Houbigant está relacionado à divisão entre famílias olfativas femininas e masculinas, que ocorreu no final do século XIX. De acordo com Ashcar, Fougère Royale é o fragrante mais antigo de que se tem notícia a lançar uma tendência olfativa exclusivamente para o público masculino. O perfume, inclusive, acabou por emprestar seu nome à criação de uma nova família olfativa masculina: Fougère. Já o perfume Jicky, de 1889, apresentado em um elegante frasco de cristal Baccarat, acabou por conquistar as damas da época, embora fosse consumido amplamente pelo público masculino. Para o perfumista Jean-Claude Ellena, o fato pode estar atrelado à mudança das preferências das mulheres, que passaram a se interessar tanto pelas fragrâncias naturais quanto pelas sintéticas (PERFUME PROJECTS, 2010). Os eventos relacionados aos perfumes Jicky e Fougère Royale parecem indicar que as fragrâncias sintéticas, por serem consideradas mais modernas e científicas, foram destinadas inicialmente aos homens. Já os perfumes feitos com ingredientes naturais pareciam estar mais de acordo com o público feminino, associado historicamente, com os conceitos da natureza: a pureza e a sensibilidade das flores, a delicadeza dos pássaros, a fertilidade da terra. De acordo com Knibiehler (1991), tudo aquilo que traduzia ideias de sensibilidade, pureza e delicadeza das mulheres era bastante valorizado na Europa do século XIX: o uso de laços e fitas, cabelos encaracolados e pele clara. A valorização de tais conceitos através de imagens, corpos e gestos visava reforçar o lugar das mulheres na sociedade, fortalecendo ainda mais o poderio dos homens. É possível que os perfumes naturais e suaves também fizessem parte do sistema desse discurso sócio- cultural. O perfume tornou-se mais acessível para a população ao final do século XIX, com o desenvolvimento de novas tecnologias de produção, que possibilitaram métodos menos onerosos. A emergente classe média deu aos fabricantes de perfume um mercado novo e amplificado. Os perfumes europeus atravessaram continentes, tornando-se uma mercadoria internacional (CORNING MUSEUM OF GLASS, 2010). Em 1900, as pessoas respiravam outros ares, o mundo estava mudando, vivia-se uma época com novos desenvolvimentos científicos e tecnológicos: a chegada da luz elétrica, do telefone, do automóvel, do bonde, do cinema; avanços na medicina e o surgimento de novos campos da ciência. As mudanças acabaram por trazer grandes transformações aos cenários urbanos, influenciando o comportamento das gerações que viveram entre o final do século XIX e o início do XX (SEVCENKO, 1998). O poder da tecnologia no início do século XX superou as expectativas que qualquer outro século pode imaginar, suscitando otimismo e boas perspectivas para um futuro próximo, estimulando ainda mais as migrações de populações campesinas para os centros urbanos. O clima da Belle Époque agitou a arte, a moda e a perfumaria, que acabou por ganhar espaço na Exposição Universal de Paris de 1900. Estimulada pelos lançamentos de François Coty (1874- 1934), famoso perfumista francês, a perfumaria ganhou maior importância cultural: “Entendendo que o crescimento da perfumaria dependia de uma expansão para diferentes classes sociais, lançou mão de todos os recursos disponíveis para incrementar o setor como arte e como indústria” (ASHCAR, 2001, p. 146). No início do século XX, a garrafa em si se associou cada vez mais ao conteúdo, em grande parte devido ao trabalho conjunto de uma dupla francesa: o perfumista Coty e o designer René Lalique (1860-1945). A busca de Coty e de Lalique por envoltórios da mais alta qualidade para venda comercial revolucionou as ideias sobre o design de frascos de perfume, transformando-os em verdadeiras jóias de museus. O slogan de Coty, “O perfume é sua embalagem”, reflete a sua preocupação de chamar a atenção para os envoltórios (REVISTA CLASS, 2010).A fragrância L’Origan, de 1905, foi a primeira de muitas criações e se disseminou pela capital francesa, demonstrando que era possível criar um bom perfume a custos reduzidos tanto para as classes abastadas quanto para as menos favorecidas. Lalique passou a projetar embalagens de vidro, transformando garrafas padrões em esculturas. Os perfumes faziam parte de um amplo sistema de vendas composto pelo seu nome, marca do fabricante, rótulo, caixa e frascos feitos especialmente para eles (CORNING MUSEUM OF GLASS, 2010). Com a expansão do perfume para diferentes classes sociais, criou-se uma nova demanda para fabricação de vidros em massa. A primeira máquina semi-automática para produção de vidro foi criada pelo alemão Schiller, revolucionando o sistema de fabricação ao facilitar a produção de garrafas em série. A máquina é utilizada até hoje em pequenas fábricas manuais. Paralelamente, o americano Owens desenvolveu uma máquina totalmente automática, tornando possível, pela primeira vez, a estabilidade dimensional. Isso assegurou ao vidro o posto de principal matéria-prima para frascos de perfume. Ainda no início do século 20, a indústria do vidro inventou um equipamento chamado Feeder que possibilitou a automatização de todo o processo. Em 1925, Henry Ingle, engenheiro da Hartford Empire Company, desenvolveu nos Estados Unidos, a máquina conhecida como IS (Individual Section), que veio a se tornar o padrão de produção até os dias de hoje, sendo responsável por praticamente toda a produção mundial de frascos de vidro (ASHCAR, 2001). Outra invenção largamente empregada nos dias de hoje foi o atomizador – dispositivo usado em recipientes para pulverizar líquidos. De acordo com EHow (2010), ele foi desenvolvido pelo Dr. Allen DeVilbiss em Ohio, em 1887, para borrifar pequenas doses de remédio na boca de seus pacientes. No final do século 19 ou início do século 20, ele passou a ser usado em frascos de perfumes, regulando a quantidade do conteúdo a ser utilizado, a fim de minimizar seu desperdício. O perfume tornou-se parte da moda, configurando junto ao vestuário, padrões de comportamento, estilos de vida e fantasias. Paris, centro mundial da moda e da perfumaria na época, ditava as regras de elegância e comportamento, influenciando o modo de se vestir e de se portar das pessoas, como também o nome de muitas marcas deste período (ASHCAR, 2001). A conexão entre moda e perfume tornou-se mais visível depois que Poiret (1879-1943) lançou Rosine, em 1912, inaugurando o conceito “fragrância de estilista”. Dizia ele: “O vestido lhe cai perfeitamente, mas se você acrescentar uma gota do meu perfume, vai ficar deslumbrante” (ASHCAR, 2001, p. 148). O perfume passou a fazer parte da personalidade das roupas femininas, embora houvesse pouca abertura para o público masculino neste sentido. O frasco de vidro do perfume Rosine era pintado à mão por moças do Atelier Martine. Trazia motivos de rosas e listras em referência ao estilo Diretório, empregado pelo estilista na criação de seus vestidos (1000 FRAGRANCES, 2010). A apresentação visual dos perfumes cresceu em importância, tornando-se uma arte de embalar sonhos e desejos. Christie Mayer Lefkowith, expert em frascos de perfume antigos, considera a virada do século XX o apogeu do luxo engarrafado, quando o rótulo tradicional em garrafa anônima deixou de ser suficiente para seduzir o consumidor. Os invólucros tornaram-se cada vez mais ostentatórios, ganhando plumas, fitas e adereços de metal e baquelita - o primeiro plástico a entrar na moda. No final do século XIX e início do XX, muitos frascos apareceram com nova roupagem, influenciados pelo estilo Art Nouveau. O estilo iniciou-se em torno de 1880, quando designers e arquitetos procuravam moldar um futuro baseado no novo. A rejeição ao historicismo, o acolhimento da produção em massa e o foco no natural como fonte de inspiração constituem fatos chave deste estilo. Para Fiell e Fiell (2005), a razão que levou os designers da época a procurar inspiração na natureza estava relacionada às pesquisas científicas sobre o mundo natural - como o tratado de Darwin “Sobre a origem das espécies” de 1859, as ilustrações de botânica de Ernst Haeckel e os estudos fotográficos de flores de Karl Blossfeldt do final do século XIX. O estilo caracterizou-se, de modo geral, pelas formas orgânicas, linhas sinuosas, curvas chicote e motivos inspirados na natureza e na mulher, embora tenha se manifestado de maneiras diferentes em vários países. Muitos propunham materializá-lo em artefatos e sistemas industrializáveis através de materiais de fácil reprodução como vidro, ferro, bronze e etc., simbolizando o desenvolvimento industrial e o modo de vida dos centros urbanos (MORAES, 1999). Os designers de frascos de perfume usaram inicialmente o Art Nouveau na criação dos rótulos e nas caixas de perfume, investindo, em um segundo momento, na modelagem das garrafas (PERFUMES.COM, 2010). René Lalique desenvolveu diversos frascos de perfume não só para Coty, mas também para Worth, D'Orsay, Guerlain e Roger & Gallet. Muitas das suas embalagens foram inspiradas nos estilos Art Nouveau e Art Déco, produzidas pela fábrica de vidros Legras et Cie (FIELL e FIELL, 2005). A necessidade de reconstituir vidas e cidades após a Primeira Guerra Mundial (1914- 1918) estimulou uma era nova e moderna, que testemunhou o aumento de riquezas e da urbanização. A modernidade passou a fazer parte do cotidiano de uma grande parcela da população do mundo ocidental industrializado, sendo expressa através de mercadorias, revistas, filmes ou até mesmo pela maneira de fumar (RAIMES e BHASKARAN, 2007 e SPARKE, 2004). A modernidade se tornou especialmente evidente na moda feminina do pós-guerra, substituindo formas suaves e fluídas por uma silhueta mais linear. Com a mobilização das mulheres durante a Primeira Guerra Mundial, as roupas se tornaram mais práticas e confortáveis. Muitas mulheres buscaram inspiração na estética da máquina, a qual influenciou inclusive cortes de cabelos, que se tornaram aparentemente mais curtos (ASHCAR, 2001 e SPARKE, 2004). A vida nas cidades estava visualmente transformada, moças das camadas altas e médias, chamadas moças de família, “passaram a se aventurar sozinhas pelas ruas da cidade para abastecer a casa ou para tudo o que se fizesse necessário” (SEVCENKO, 1998). O aumento nas vendas de produtos de beleza pessoal – de vestidos a maquiagens – acabou por revelar os resultados de uma estratégia formulada pela indústria e pelos publicitários: a de que as mulheres deveriam definir tanto o seu status social quanto o da sua família através da compra de produtos (SPARKE, 2004). A utilização da linguagem modernista na criação de embalagens tornou-se muito importante para o comércio de produtos, pois trabalhava a ideia de que, através do seu consumo, o público poderia tornar-se mais moderno. Entretanto, o caminho para a modernidade não era o mesmo para todos; visto que as categorias culturais como gênero, classe, idade e etnia, afetam o modo pelo qual a modernidade é negociada. Muitos frascos de perfume passaram a ser modelados segundo a linguagem modernista do Art Déco, o estilo da moda que, segundo Bhaskaran (2005), surgiu na França por volta da década de 1910, tendo alcançado seu auge nos anos 30. O estilo foi nomeado a partir da Exposição de Artes Decorativas e Industriais Modernas, amostra internacional de artefatos de design contemporâneos, realizada em Paris, em 1925. Para Bhaskaran (2005), existem duas variações estilísticas dentro do Art Déco, cada qual com o seu repertório estético: o estilo Boudoir e o estilo Moderno. O primeiro, influenciado pelo descobrimento da tumba do faraó Tutancâmon em 1922, utiliza materiais luxuosos e referências orientais para criar um estilo exótico; busca inspiração nas pirâmides e nos obeliscos do Egito, na moda de Paul Poiret e nas cores brilhantes e fantasias dos balés russos de Diaghilev. Já o estilo Moderno é influenciado pelas linhas abstratas e formas simplificadas do construtivismo, cubismo e futurismo. Traz ainda a inspiração nas máquinas, adotando formas geometrizadas, cromados, motivos de faíscas (em referência à eletricidade), a perspectiva, cantos arredondados, a repetição e a sobreposição de formas, ziguezagues e cores vivas na celebração às viagens, à velocidade e ao luxo. As fontes tipográficas do Art Déco são bem variadas, algumas mais austeras e outras mais decoradas, mas de modo geral, são construídas a partir de padrões geométricos. Muitas palavras são escritas em caixa alta e com fontes com corpos bem pesados, mas também há exemplares de fontes sem serifa, bem delicadas e elegantes. O estilo passou das produções altamente decorativas do início da década de 1920 ao elegante funcionalismo dos anos 30 (BHASKARAN, 2005). O frasco do perfume , da Guerlain, lançado em 1925, tornou-se um dos ícones da década de 20. Modelado a partir do estilo Art Déco, alinha-se mais ao estilo Boudoir do que ao Moderno, embora compartilhe características plásticas do último. Inspirado nos Jardins de Shalimar, construído no século XVII pelo imperador indiano Sha Jahan em homenagem a sua esposa Mumtaz Mahal, o frasco tem visual exótico e luxuoso. A forma robusta do corpo do frasco se contrapõe ao pescoço e à estrutura que se apoia à base. Suas formas geométricas são trabalhadas a partir de repetições e de linhas semicirculares que lembram os arcos dos Jardins de Shalimar. A estilista Coco Chanel (1883-1971) também trabalhou nesta direção, apostando na geometrização e no bicolorido suave, que aparecem inclusive no desenho do frasco do perfume Chanel Nº 5 - fragrante criado por em 1921 (ASHCAR, 2001). A forma do frasco, escolhida pela estilista, representou uma ruptura com as linhas românticas prevalecentes da época, conquistando consumidoras com sua estética retilínea, que revelava certa modernidade e sobriedade (CHANEL, 2010). O fragrante Chanel N°5, que se tornou um dos grandes ícones da perfumaria do século XX, fez parte dos planos da estilista de aliar as fragrâncias à maneira de viver do público. Chanel buscava vender não apenas novas silhuetas e fragrâncias aos consumidores, mas antes disso, um estilo de vida permeado por suas criações. “A tendência lançada por Poiret antes da I Guerra Mundial expandiu-se rapidamente. Depois de Chanel, cada nome da alta-costura assinava pelo menos uma fragrância: Patou, Molyneux, Worth, Schiaparelli, Weil” (ASHCAR, 2001, p. 150). A embalagem empresta suas cores, materiais e texturas, procurando exteriorizar os significados da composição olfativa, além de conceder a primeira impressão do produto, antecipando os efeitos do fragrante. É possível perceber, através das transformações das aparências, das configurações e dos significados possíveis dos envoltórios, paralelos entre as inovações técnicas, os usos e os valores da sociedade. A “fisicidade” da cultura material é apenas uma de suas dimensões de expressão. O universo dos objetos não se situa fora do fenômeno social, mas, o compõe, compartilhando suas ideias e valores. “O mundo das coisas é realmente a cultura em sua forma objetiva, é a forma que os seres humanos deram ao mundo através de suas práticas mentais e materiais; ao mesmo tempo, as próprias necessidades humanas evoluem e tomam forma através dos tipos de coisas de que dispõem” (SLATER, 2002, p.104) Estudar as biografias dos produtos do cotidiano tem grande relevância, pois funcionam como testemunhas e mensagens da sociedade ao indivíduo. A capacidade do design de construir e representar ideias sobre uma série de categorias culturais, tais como classe, gênero, etnia, geração entre outras, oferece aos indivíduos pontos de ancoragem que balizam as construções de suas subjetividades.

Referências:

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