, . orla

M período de comemorações, o turbilhão das iniciativas e discursos dissolve muitas vezes o que de mais importante podem ter as referências públicas ao passado: o exercício da memória colectiva, indispensável à participação cidadã. O 25 de Abril faz 25 anos e Eocupará certamente muito espaço na comunicação social, nos discursos oficiais e em celebrações que se multiplicarão. As forças vivas da sociedade portuguesa têm um papel importante neste momento, ajudando a transformar a data simbólica num instrumento de compreensão da nossa história recente.

INICIATIVA de divulgar entre os estudantes uma publicação como a que tens nas mãos insere-se neste espírito. O derrube do fascismo em , comemorado neste vigésimo quinto aniversário, foi o resultado dos esforços persistentes de muitos cidadãos e cidadãs Aque durante décadas enfrentaram cada um, como pessoas, a prepotência e a brutalidade de um regime fechado sobre si próprio e dono da verdade. Homenagear essas coragens que souberam organizar-se colectivamente é o primeiro dos nossos objectivos.

SCOLHEMOS uma faceta concreta da resistência à ditadura como tema desta iniciativa. Os estudantes, nomeadamente os universitários, conheceram durante as décadas de Estado Novo um ensino que era o espelho do monolitismo do poder. "O estudante, estuda", Edizia Salazar, sintetizando as intensões de consolidação de uma elite bafienta, plenamente identificada com a ideologia oficial e alheada da cidadania. Só a custo de muita violência o regime derrotou o associativismo estudantil republicano dos primeiros anos da ditadura. A mesma receita policial seria aplicada sistematicamente a partir de meados da década de cinquenta, com o ressurgimento da contestação nas universidades, mas já sem o mesmo êxito. As sucessivas "crises académicas" transformaram os estudantes em definitivos adversários do regime, cujas vitórias seriam sempre transitórias.

STA história é a nossa história. Porque foi na adversidade do salazarismo que as gerações de universitários que nos antecederam perceberam a livre associação e a intervenção na vida académica como direitos dos estudantes. Foi contra os poderes instalados que Eimpuseram o reconhecimento de interesses comuns e unificadores, enfrentando uma visão dominante que atribuía ao associativismo uma função meramente lúdica e de serviços. Foi ultrapassando o paternalismo de Estado que os estudantes derrubaram os muros da universidade, alargando os seus horizontes às exigências de democracia política, justiça social e à busca de novos modos de vida, fora do redil "Deus, Pátria, Famílià'.

SCOLHEMOS então assinalar o aniversário da revolução de Abril lembrando o que nós, estudantes, também fizémos por ela. Para sabermos mais do que fomos e quisémos na Editadura e compreendermos melhor o que somos e exigimos à democracia.

MVSEV ACADÉMICO 3 §i m. (f; ~ cc: · ~Ei\:\

,,,= ~---=· Os tempos em volta O "REVIRALHO" 1927/28 1927

li@§ i§ mi estudantil 3 As tropas portuenses de "Caçadores 9" protagonizam a APRIMEIRA REPÚBLICA MORRIA ÀS MÃOS primeira revolta contra a ditadura militar. Éa guerra civil, de uma ditadura militar que se transformaria de curtíssima duração. 6 O café A Brasileira é encerrado depois em "Estado Novo". Poucos se davam por ser recinto de comícios conta do que estava para vir, mas muitos se revolucionários. 8 Uma nova revolta é alvo de dispunham a contrariá-lo. Entre os autores bombardeamento aéreo das zo­ nas de Lisboa controladas pelos das primeiras denúncias da ditadura militar oposicionistas. que tomara o poder em 28 de Maio de 1926 16 Jaime Cortesão e Raúl Proença, membros da Liga de estão os estudantes republicanos, cuja influência Defesa da República, são demitidos das direcções da vem crescendo nos três pólos universitários Biblioteca Nacional e dos seus do país, , Lisboa, . serviços técnicos, respectiva­ mente.

Em 1864, Antero de Quental e a sua disputa de influência nas 10 Sai em Coimbra a primeira Sociedade do Risco organizam o camadas universitárias, extravaza edição da "folha de arte e crítica" Presença . combóio de universitários de Coimbra em muito a reivindicação de uma que, quatro anos depois da inauguração política de educação progressista B!l 26 É assaltada e destruída a da ligação ferroviária ao Porto, aí se e de corte com o peso da igreja sede de A Batalha, diário deslocam, contra o duque de Loulé e o na universidade. Neste momento sindical de inspiração . anarquista, um dos principais seu ministro Rolim de Moura. O conturbado da história do país jornais de Lisboa. As instalações arcaísmo da universidade portuguesa e vamos encontrar os estudantes da Confederação Geral do a sua rigidez disciplinar cedo encontra­ republicanos na preparação e Trabalho, sua proprietária, são encerradas pela polícia em vam os seus adversários nos jovens que execução das tentativas de Novembro. contactavam com as novas ideias que derrube do regime pela força das circulavam na Europa. armas. 1928 Mais de sessenta anos depois desta No seguimento da derrota do primeira mobilização de estudantes movimento militar de 3 de 11 Decreto n°15354, art.6: contagiados por ideias republicanas e Fevereiro de 1927, é fundado em "[Em Moçambique) Não é socialistas, as correntes democráticas do Lisboa o Batalhão Académico Anti­ permitida a admissão de indígenas em espectáculos meio estudantil estavam na linha da Fascista. Aí se procurava estruturar cinematográficos em que se frente da luta política. O Centro uma força de estudantes que exponha algum crime de homicídio, roubo, furto ou fogo Republicano Académico de Coimbra e pudesse mobilizar-se ao lado das posto". os estudantes agrupados em Lisboa em investidas da oposição contra o Ji§®:rttl torno do grupo editor da Seara Nova novo regime. As características 22 O coronel Prata Dias é destacam-se no activismo contra os deste, que apenas se começavam a nomeado director geral dos novos governantes, tomando parte definir, eram já bem percebidas pela serviços de censura. activa nas conspirações "reviralhistas". geração de estudantes que haveria A intervenção dos republicanos, de protagonizar as lutas estudantis que se opõe à dos nacionalistas na até 1931.

A principal fonte para a elaboração deste texto sobre as mobilizações estudantis republicanas foi o artigo de Cristina Faria, 4 "Lutas Estudantis de 1927 a 1931 -A Contestação à Ditadura Militar", publicado pela revista História em Julho/ Agosto 1998. É no âmbito dessa busca de equilíbrio de contas que o governo decide o encerramento de uma série de faculdades e escolas superiores. Há três mil estudantes afectados pela medida. Demitem-se em bloco os professores da faculdade de Direito, uma das encerradas e as três universidades iniciam uma greve geral de estudantes. Nos seus manifestos clandestinos, os estudantes denunciam a violência dos confrontos com as forças policiais e as medidas repressivas sobre o movimento: a incorporação militar de estudantes, a ordem de expulsão do concelho de Lisboa dos grevistas chumbados por faltas, as escuras telefónicas e a apreensão de correspondência. A pressão estudantil arrancará algumas promessas ao novo ministro da instrução, Duarte Pacheco, mas a reabertura das faculdades encerradas em Coimbra e no Porto ficará por cumprir. Os protestos continuam, mas as reivindicações estudantis serão ofuscadas pelo envolvimento na conspiração reviralhista.

INSPIAA.ÇÃO ESPANHOLA As lojas maçónicas são o ponto de encontro de muitos destes estudantes. Na loja "Revolta" encontram-se estudantes do CRA e relacionados com Os estudantes têm a sua princi­ a "liga de Paris". A República das Porto, funeral do estudante pal referência política na Liga de Águias é sede de reuniões conspirativas João Martins Branco, Abril 1931 ARQ UNO FOTOG RÁFICO DO PCP Defesa da República, a "liga de alargadas a militares oposicionistas Paris", que reúne alguns intelectuais onde se planeia o fracassado assalto ao e políticos da República avessos à quartel de metralhadoras, em Julho de ditadura: Afonso Costa, Álvaro de 1928. São presos os dirigentes Castro, Jaime Cortesão, António estudantis e maçons Carlos e Silo Cal Sérgio. No seu nascimento, a LDR Brandão e a república é invadida pela elege como preocupação principal polícia de informações. o empréstimo a Portugal que o Por estes dias são vividos em Espanha ministro das finanças, Sinel de momentos de grande agitação en~re os Cordes, tentava negociar na estudantes: o regime de Primo de Rivera Sociedade das Nações. Para os acaba de legitimar os centros de educação republicanos, a pátria está à venda católicos para a atribuição de títulos em nome da resolução do universitários. A Federação Universitária "problema financeiro". de Estudantes decreta a greve geral e o

5 processo de luta no país vizinho é seguido o mesmo ao próprio presidente da atentamente do lado de cá. Mas, durante Federação. Fala-se da "dinâmica o ano de 1929, as mobilizações estudante da Revolução", reviralhistas e estudantis vão conhecer acentuam-se as críticas ao uma certa pacificação. No ano seguinte, clericalismo da instituição regressa a turbulência, com o universitária e à repressão, exigindo

agravamento da luta entre estudantes o fim das aulas que decorriam sob 21 Inicia-se em conferência a republicanos e nacionalistas. Estes, vigilância policial. Mas as reorganização do PCP na partidários da ditadura, destroem a sede reivindicações respeitantes ao clandestinidade. O secretário­ geral é Bento Gonçalves. do jornal estudantil Liberdade. Do universo escolar nunca perdem de lfl§fti@j encontro nacional de academias, em vista a aspiração por uma "sociedade i 2 O presidente da República Coimbra, resulta a prisão de numerosos novà' de bases socialistas. recebe os dois filhos de Musso­ activistas, entre os quais Carlos Cal lini de visita a Portugal. Brandão, que ficará preso quase meio GUERAA. CML -~1.@§,1@1 ano. A reacção não se faz esperar e o reitor A situação está de novo ao rubro 19 Q Novidades abre uma subscrição pública pafa a oferta da Universidade de Coimbra esfrega as em Espanha, já em 19 31, com de um automóvel ao novo mãos de contente à entrada da polícia sangrentos confrontos de rua e a cardeal patriarca de Lisboa, nas instalações universitárias onde suspensão das aulas em todas as Manuel Cerejeira. decorrem manifestações contra o regime. universidades. Também por cá o re­ 1930 A oposição estudantil republicana gime treme. Em Lisboa, durante os ll!lim!l primeiros dias de Abril, vive-se a 17 É despoletada uma escolhe os professores mais retrógrados conspiração envolvendo - alguns dos quais haveriam de se tornar guerra civil, com a tomada de parte militares e civis. Multiplicam-se altos quadros do salazarismo - como da cidade por militares reviralhistas presos e deportados. alvos preferenciais: o seu afastamento, solidários com a "República da Ma­ ll!llmJ 0 especialmente dos cursos de Direito e deirà'. Desde 4 de Abril de 1931 e 8 Em substituição do art quinto da Constituição é Letras, onde predominam, torna-se durante um mês, a revolta tomou aprovado o Acto Colonial. Mais "uma medida de higiene para o prestígio conta da ilha. O reviralhismo vive tarde, Salazar dirá: "a própria ideia de Império que e o engrandecimento da Democracia". uma inédita maré alta. escandalizou alguns( ... ) trouxe Um membro da direcção da académica Nas universidades, o regresso às aos espíritos uma noção de do Porto, presidida então por Emídio aulas é adiado uma semana, unidade e um sentimento optimista de grandeza". Guerreiro, é preso. Em Lisboa, acontece enquanto os estudantes celebram 30 É criada a -União Nacional, partido único da ditadura, "até se ultimarem as bases da reorganização de Portugal". "Colegas, ltl§j§ .. i#j As "praxes" originárias de Coimbra, seguidas e excedidas em Lisboa e 11 A Polícia de Informações Santarém, encontram-se naquela fase de gradual declínio que geralmente pre­ nega acusações de maus tratos cede a morte. Os seus adeptos, outrora contáveis à centenas, são agora em a presos políticos. número tão escasso e reduzido, que para manterem a todo o custo tão gloriosas 1931 tradições legadas por seus avós, se matriculam todos os anos na Faculdade li@§i§trtl com o fim único de maltratarem o novo aluno, dando assim largas aos seus 15 Surge o primeiro Avante!, ferozes instintos. (. .. ) órgão central, clandestino, do Colegas Republicanos de Lisboa, é necessário cumprirmos com o nosso PCP dever!. .. É preciso que este ano os nossos alunos, colegas e futuros amigos, sejam recebidos de braços abertos por todos nós; e que os amparemos· e ..4 Inicia-se a revolta da Madeira, guiemos como mais velhos e experientes nesta eterna estrada de desilusões liderada pelo general Sousa Dias. que é a vida. (... ) li§§ftl@j Tão dignos de censura e desprezo serão eles [os integralistas] exercendo a 16 Nasce a Comissão inter­ "Praxe", como nós consentindo que ela se pratique. sindicaL comunista, que disputará o campo sindical aos Abaixo a tradição." anarquistas da CGT. Panfleto de JOAQUIM COELHO FLÔR, da Liga de Estudantes Republicanos da Faculdade de Ciências. Lisboa, Outubro 1930.

6 Porto. Manifestação no 1° Maio de 19 31. ARourvo ForoGRÁnco no PCP publicamente a proclamação da seguintes. Aí nascerá o "26 de Agosto", República em Espanha e se sucedem plano revolucionário em que tomam as cargas policiais e as prisões. Ainda parte vários estudantes, como Vasco da se resistia no Funchal aos bombar­ Gama Fernandes e José Magalhães deamentos da marinha de guerra, Godinho. Mas o seu fracasso seria o quando a 29 de Abril, em Lisboa, os golpe final na grande conspiração estudantes de Direito invadem a sua republicana dos princípios da ditadura. faculdade numa greve destinada a Nos dias seguintes à revolução fazer crescer a agitação social em frustrada, multiplicaram-se as depor­ vésperas de um movimento tações e os exilios: centenas de militares revolucionário congeminado no seio e civis são embarcados para Timor, da loja maçónica "Revolta". As Açores, Cabo Verde, São Tomé e An­ outras faculdades não conseguem gola. A oposição está muito mais débil e seguir o exemplo de Direito e a vaga o regime muito mais forte, sobretudo repressiva conduz muitos estudan­ depois da reactivação da Polícia tes à prisão e à reprovação por faltas. Internacional Portuguesa (antecessora da No dia anterior, no Porto, uma PIDE), do reforço da censura e do assembleia de estudantes é saneamento da função pública dos interrompida pela polícia, do que elementos ligados à oposição. resultam vários feridos e um morto. O Estado Novo está para se consa­ O seu funeral será uma massiva grar com a Constituição corporativa de manifestação de repúdio pela 1933. A evolução (e a estagnação) dos ditadura, e o dia do trabalhador acontecimentos no país será seguida a decorre em clima insurreccional. partir de fora pelos principais Dezenas de estudantes que protagonistas da contestação estudantil preparavam uma revolta são presos. à ditadura militar. No regresso a Por­ Mantendo-se a agitação pública, é tugal ou à vida pública, a partir de Abril criado o forte de Peniche, onde o de 74, estes jovens serão já idosos, regime então nascente viria a chegando então alguns a ser eleitos "alojar" presos políticos nas décadas parlamentares.

7 EMÍDIO GUERREIRO, 99 anos de idade, foi dir:gente associativo no Porto numa época turbulenta. Aditadura militar perseguia as oposições no país onde se instalava "para ficar". Os estudantes criticavam o arcaísmo da universidade, mas sobretudo combatiam o regime. Influenciado pelas ideias socialistas e republicanas, Emídio Guerreiro conheceu muito cedo as prisões. Não deu tréguas ao fascismo e por isso passou em algumas trincheiras da história deste século. Arecompensa , ainda a conserva: uma boa memória. "NUNCA PENSEI FICAR EXILADO 42 ANOS"

A ligação dos estudantes à revolta de alguns militares havia um grande precipício. Em virtude das obras, do reviralho era quotidiana. Quando presidiu à tinham retirado uma escadaria que ligava os vários Associação Académica do Porto também estava no pisos. Não lhe restava nenhuma outra solução senão Tribunal Militar... tentar descer, porque atrás estava a polícia. Essa queda Estava a cumprir uma comissão de serviço no Tri­ provocou-lhe a morte. bunal Militar, por ser estudante, mas pertencia ao Batalhão de Caçadores 9. A participação dos estudantes O movimento também protagonizou alguns episódios na luta contra a ditadura militar aconteceu desde o divertidos. início. Em Fevereiro de 1927, participei na revolta do As nossas acções de revolta tinham muitas facetas. general Sousa Dias. Foi uma experiência muito dura. Lembro-me de uma vez termos roubado o busto do Ocupámos parte da cidade, com trincheiras na Praça ministro da Instrução da altura, Mendes de Magalhães, da Batalha. Mas a resposta da ditadura foi muito forte. que era um antigo republicano. Fui, com um colega, Fomos bombardeados e houve um grande número de Guedes Pinheiro, na altura estudante de Medicina, à mortos. Em virtude dessa revolta, os principais Faculdade de Ciências, e roubámos o busto, num dirigentes do 3 de Fevereiro (Jaime Cortesão, Jaime domingo. Como aquilo era muito pesado, tivémos que Morais) foram demitidos dos seus cargos. Mais tarde apanhar um táxi, até à sede da Associação Académica. haveríamos de nos encontrar no exílio espanhol... Deixámos lá o busto, como represália pela participação daquele republicano no governo infame da ditadura .. . Em 1931, já com Salazar no governo, há um novo levantamento estudantil. Na defensiva, o movimento Participou nos levantamentos contra a ditadura, o ganhou fôlego com a homenagem ao estudante morto chamado "reviralho", até 1932. O que forçou então o durante a greve académica de Abril desse ano ... seu exílio? O funeral do estudante de medicina, que morreu O meu exílio foi forçado pela minha evasão da prisão na sequência de confrontos com a polícia, foi um do Aljube. Depois de terminado o curso, ocupei uma grandioso acto de resistência. A morte do estudante vaga para assistente de Matemática, de onde fui expulso João Martins Branco desencadeou reacções de vários por razões políticas. Exilei-me em Espanha, que tinha quadrantes da sociedade portuense. A polícia tinha um governo republicano. De lá, pensavamos organizar, entrado na faculdade de Medicina para expulsar os em conjunto com um grupo muito numeroso de grevistas. Nessa altura a faculdade situava-se no Carmo. exilados portugueses, uma revolta contra a ditadura. Como o edifício estava em obras, algumas áreas eram Pensava então que a ditadura portuguesa iria durar muito perigosas. O estudante Branco estava a fugir a alguns anos. Mas nunca imaginei que fosse forçado a uma carga policial e ficou encurralado numa zona onde ficar exilado quarenta e dois anos ...

8 crise académica de 1962 O DIREITO A SER ESTUDANTE, COLECTIVAMENTE

EM 1962, O DIA DO ESTUDANTE FOI TOMADO ÀLETRA. em boca, tratava-se de uma ofensa às prerrogativas académicas, morra a As comemorações eram autorizadas pelo mesmo decreto opressão, etc. etc". que apertava os limites da vida associativa O decreto terá uma vigência sempre dos estudantes. Aos protestos, o regime responde ambígua, entre suspensões e debates parlamentares, mas para o governo isso com violência e represálias - sobre estudantes não é grave; antes pelo contrário: nesse e também sobre professores. Mas a vitória do regime vazio legal, todas as arbitrariedades do seria apenas a de uma batalha. ministério da educação (e das polícias às suas ordens) sobre o movimento estudantil se tornam legítimas. À sombra de legislação de­ Naqueles anos de 1956/57, a sactualizada e não cumprida, o Juventude Universitária Católica- onde movimento associativo vem cresce a influência dos sectores ganhando influência e autonomia. progressistas - e o Movimento de O poder procura regular-lhe os Unidade Democrática (MUD), em que passos e mantê-lo no esquema o Partido Comunista é já a principal corporativo do salazarismo: "as força política, apostam no reforço da associações de estudantes destinam­ organização associativa e na ampliação se a funcionar no âmbito da escola" dos debates entre estudantes. A e nem a academia de Coimbra é candidatura presidencial de Humberto excepção. O decreto-lei 40900, com Delgado entusiasma o oposicionismo. que o Estado Novo procura regular Surge então a Reunião lnter­ a vida das associações de estudantes Associações (RIA) , "informal" o é já de 1956. O diploma abre um suficiente para contornar a vigilância conflito entre estudantes e regime salazarista. que culminará na "crise académica'' de 1962. Por vir tarde, o célebre O TOQUE A REUNIR decreto encontra um caminho Em Novembro de 1961, nos difícil. Escreveu depois Marcelo quarenta anos da "tomada da Bastilha" Caetano: "os elementos de esquerda (invasão do Clube dos Lentes pelos deitaram-lhe a mão como a uma estudantes de Coimbra, onde bóia de salvação. O atentado con­ instalaram a sede da AAC), dirigentes tra as AAEE era apregoado de boca estudantis de Lisboa, Porto e Coimbra

9 Os tempos em volta 1958/62

1958 Campanha presidencial do gen­ eral Humberto Delgado. Afirmação da "corrente progressista" da JUC. Lisboa, 1962 . Vítor Wengorovious, dirigente da Juventude Universitária Católica, com Jorge Sampaio, secretário-geral da Reunião Inter-Associações. FOlUTECA oo PALÁCIO roz 1959 "Revolta da Sé", em Março, encontram-se e discutem uma proposta los, convidando-os para um jantar organizada por Manuel Serras e de alternativa ao 40900. O objectivo é que ficou famoso: no restaurante do apoiada por católicos também criar um secretariado Campo Grande é a polícia quem progressistas. organizador do I Encontro Nacional de Em Abril, o bispo do Porto, D. espera os comensa1s. António Ferreira Gomes, é Estudantes (ENE) e um jornal comum A partir desse momento impedido de entrar no país. É o às três academias. começam os avanços e recuos dos resultado de uma carta escrita meses antes a Salazar. Em Coimbra, é proibido o ENE, que reitores e a repressão contínua da se realiza apesar dos problemas com a polícia de choque. As acusações aos 1961 polícia. Os estudantes apresentam as estudantes são permanentes e na suas reivindicações: "urgente imprensa só elas passam: é a acção IDim 21 Assalto ao paquete Santa democratização do ensino; supressão de de uma minoria de infiltrados com Maria, na ilha de Curaçao, por uma discriminação económica injusta, ligações ao "comunismo internaci­ Henrique Galvão, então que atrofia a inteligência nacional; onal" que leva uma maioria de colaborador de Humberto Delgado. extensão do ensino universitário a todos ingénuos universitários a portar-se os estudantes portugueses, independen­ mal. O ministro percebe o que 1962 temente de considerações de ordem realmente está em curso e avisa que política, religiosa, rácica ou de qualquer nunca permitirá a sindicalização dos 3 Discurso de Salazar na outra espécie". A autonomia univer­ estudantes nem à escala nacional Assembleia Nacional sobre a sitária é a ideia-chave do discurso nem com ligações internacionais. O "invasão e ocupação de Goa pela União Indiana". estudantil, contra a transformação das que vale é o "corporativismo instâncias universitárias em correias de universitário, autêntico, de raíz e de 8 No Porto, a manifestação transmissão do regime. Em resposta destino genuinamente portu­ --comemorativa do Dia vem um processo disciplinar contra a gueses". Mas as associações cada vez Internacional dà Mulher é AAC, ordenado ao reitor pelo governo ... reprimida pela polícia, o que mais poem em causa a sua vocação causa vários feridos. Março é o mês em que rebenta a crise para a prestação de serviços e praxes, 12 Iniciam-se as emissões em académica. A comemoração dos 50 anos assumindo a defesa dos interesses ondas curtas da Rádio Portugal da Universidade de Lisboa não tem dos estudantes como grupo. Livre, a partir de Argel. Manter­ se-ão por doze anos. lugar: todas as reuniões de estudantes Depois de levantado o luto Emill estão proibidas. Cresce a agitação nas académico em Lisboa e Coimbra­ 4 É aprovado o regulamento do duas semanas até 24 de Março. O Dia greve às aulas, frequências e exames Imposto para a Defesa e do Estudante amanhece com a Cidade - ele regressa com a proibição, pelo Valorização do Ultramar. Universitária forrada a fardas da polícia ministério, do Dia do Estudante 6 Adesão de Portugal ao Acordo Geral sobre as Tarifas Aduaneira de choque, devidamente ornamentadas que fora adiado para 8 de Abril. e Comércio (GATT), em vigor com metralhadoras. O estádio Marcelo Caetano, que já o desde 1948. universitário acolhe os estudantes na autorizara como reitor em Lisboa, Silva Pais toma posse como di­ da PIDE. espera pelos resultados de negociações demite-se e é substituído por a que o ministro Lopes de Almeida falta. Gonçalves Rodrigues, um "duro" Marcelo Caetano, o reitor, tenta acalmá- do regime. O conflito já então em ~~ 10 JORGE SAMPAIO dirigia a Reunião Inter-Associações durante a crise de 1962. Oassociativismo estudantil pisava terreno novo. Apartir do dia do estudante, a 24 de Março, o regime deixou de poder cumprir as suas próprias leis. ''FAZER DAS FRAQUEZAS FORÇAS"

Na cri se de 1962 alguns professores tiveram um papel mu ito importante, que não se repetiria nas mobilizações estudantis seguintes. Como se processava essa solidariedade? Em 1962, o grau de degradação da ditadura escava ainda relativamente longe do seu clímax. A guerra co­ lonial encontrava-se no seu início e nem sequer era uma questão pacífica na sociedade porruguesa saber se os episódios de rebelião que começavam a manifestar­ se em Angola poderiam ou não ser milirarmenre reprimidos e anulados (independentemente do posicionamento de cada um sobre o colonialismo). Por outro lado, a inexistência de condições para A crise tem lugar num contexto histórico de grande conseguir uma greve significativa na Universidade - hegemonia do Partido Comunista nos meios onde obviamente só uma minoria é que era oposicionistas. Que tipo de referência era o PCP para politicamente acrivisra - impunha alguma caurela os estudantes? E o progessismo católico? rácrica: podíamos decerro ir um pouco mais longe Sem negar a sua afirmação da hegemonia do Partido relativamente às bandeiras e mérodos utilizados na crise Comunista, convém também relativizá-!'! um pouco. esrudanril significativa que imed iatamente nos Não estávamos em meios operários ou camponeses. A precedeu (1956), mas, sob pena de isolamenro e sociologia da Universidade, marcadamente classisra, fracasso, não podíamos ser maximalisras. traçava aí uma diferença imporranre. Mas concordo É, por isso, verdade (além de narural) que o que em termos organizados o PCP alargado a algumas envolvimento, desde a neurralidade simparizanre até à estruturas para "compagnons de roure" (como as Jun­ solidariedade incondicional para com os estudantes, tas Patrióticas), era maioritário no quadro da esquerda renha tido um leque de atitudes por parte de alguns activista. professores. Não vou designá-los, porque fatalmente Q uanto aos chamados católicos progressistas, o seu incorreira nalgum esquecimento injusto. Mas valha por crescenre afastamento do regime já vinha de antes de todos o mais indiscutÍvel dos exemplos: o caso do Pro­ 1962 e não parou de se acentuar e reforçar durante os fessor Lindley Cintra. Ele esteve connosco do princípio anos seguintes. Creio, no entanto, que se pode siruar aré ao fim . Ele não perdeu um plenário ou um comício. em 1962 o princípio de uma colaboração mais explícita Ele estava entre nós quando a polícia de choque carregou entre eles e uma esquerda não comunista, laica e e todos o recordamos ligeiramente cambaleante naquela inorgânica. A revista "O Tempo e o Modo" e a fundação sua postura de enorme dignidade, com a cara coberta do MAR (Movimento de Acção Revolucionária) são pelo sangue que lhe escorria da cabeça aberra à bastonada. talvez os dois marcos mais salientes com que o pós­ Ele foi um de nós, senão o melhor de nós. greve assinalou e consolidou essa tendência.

11 Num ambiente destes era preciso fazer das fraquezas forças. Partir de valores que até esta geme partilhava e ir avançando à medida que a adesão se afirmasse e que as circunstâncias o permitissem. Começámos por arvorar a bandeira institucional e consensual da autonomia universitária. Obrigámos um regime que dizia respeitá-la a violá-la flagrantemente até ao ponto de fazer a polícia invadir a Universidade. Mesmo para um conservador, isto era inaceitável. Por isso e em nome disso, o então reitor da Universidade de Lisboa, Marcelo Caetano, demitiu-se de uma forma claramente assumida como um protesto. Da formulação inicial "Luto estudantil" pudémos então encontrar condições para passar a falar em "greve estudantil". As classes dominantes tremeram nas suas convicções, porque afinal eram os seus filhos que estavama a ser espancados ou expulsos ou, no mínimo, em vias de perder o ano. Uma estratégia realista não é um "legalismo".

A brutalidade da repressão policial é uma das principais Qual a principal lição que tirou da sua participação caracteristicas da crise de 1962. Ela gerou uma certa como dirigente estudantil na crise de 1962? cultura libertária ou apenas consolidou uma antipatia Tirei várias, muitas lições. Mas, se me pergunta pela geral em relação às forças policiais? principal, eu direi que para mim foi esta: nunca nos Uma greve com a dimensão da de 1962 carece sentimos tão livres como a lutar pela liberdade. obviamente de um grande apoio de massas. Mas a sua condução não pode deixar de estar confiada a uma vanguarda cujo nível cultural, em maior ou menor grau, é um dado adquirido. Por outro lado, a brutalidade da repressão policial era conhecida da sociedade portuguesa e não foi privativa da greve de 1962. Não creio, por isso, que, por si só, esse factor tenha gerado uma cultura libertária ou outra. Ajudou, sim, ao êxito crescente da greve (lição em que a história sempre se repete e que os ditadores em regra não aprendem). O mais que, em rigor, se pode dizer é que a crise em si mesma foi um factor decisivo para a politização dos estudantes (e não só).

O discurso dos estudantes em 1962 era completamentamente legalista. Ofacto de não se porem em causa as estruturas do regime não é paradoxal (dada a pertença de muitos dirigentes estudantis a organizações clandestinas- como o PCP ou, no seu caso, o Movimento de Acção Revolucionária)? Não concordo com a expressão "completamente legalista'' e também não vejo o mencionado paradoxo. Como já disse, a Universidade era, naquela época, essencialmente classista. A tradição da maioria dos estudantes- apenas pontuada por excepções como 1956 - era de conformismo político. Os professores, numa regra com pouquíssimas excepções, eram reaccionários, ou conservadores, ou conformistas, ou cúmplices, ou protagonistas do salazarismo.

12 Um regime e a sua universidade "Depressa nos demos conta do significado da palavra obsoleto (. .. ) Cedo aprendemos o obscurantismo como o factor de dominação das consciências. Oprograma de Filosofia Moderna parava em Kant, na História de Portugal insistia-se nos primórdios da nacionalidade e na época das descobertas. Um livro de Sartre deveria ser prudentemente forrado de papel, de preferência opaco, os "Fundamentos" de Pullitzer eram uma relíquia que poderia dar prisão, a "História da Inquisição Portuguesa" tinha sido apreendida à saída da tipografia (. .. ) A primeira viagem espacial fôra efectuada por potência inimiga e falar em Gagarine ou em Sputnik era entendido como um perigoso sinal de desvio de comportamento. Sentados, por acaso, nos corredores, os jovens estudantes deveriam levantar-se à passagem de certos eminentes professores". MARIA ANTÓNIA FIADEIRO HCrise Académica de 62: memória na primeira pessoa H, Diário de Lisboa, 24/3/82

~~ curso entre os "liberais" pró- de facto pois os estudantes boicotam as europeus e os "ultras" fiéis às suas actividades e os dirigentes oligarquias rurais e coloniais, vitima substitutos nomeados pelo reitor Marcelo. Anos depois, quando o negam-se a assumir funções. A Queima capital industrial-financeiro tomar das Fitas de 1962 é suspensa. O minis­ a mó-de-cima da economia da tro anuncia as represálias - o regime de ditadura, o antigo reitor da faltas é para cumprir, os sumários das universidade de Lisboa será o aulas são para afixar, mesmo que estas substituto de Salazar. não tenham sido dadas. São agora muitos os professores que manifestam o seu desconten­ FOME NA CANTINA tamento com as ingerências nos A 10 de Maio, o Senado da assuntos da universidade. Aberta­ Universidade de Lisboa discute a greve mente solidários com os estudantes de fome de oitenta estudantes que desde estão desde a primeira hora alguns o dia anterior decorre na cantina importantes docentes da academia universitária e decide entregar a lisboeta, como Lindley Cintra, autoridade na escola ao ministério do Oliveira Marques e Veríssimo Interior. Às quatro da manhã são as Serrão. Pagarão o preço: Cintra será mais altas chefias policiais do país que hospitalizado na sequência de uma comandam a invasão da cantina. Cerca carga policial já em Maio. Marques de 1500 pessoas são presas. As noventa e Serrão verão suspenso o concurso mulheres levadas para o governo civil para professores extraordinários a recusam alimentos e à saída redigem que são candidatos. um comunicado descrevendo Em Coimbra o luto académico minuciosamente a degradação em que continua, à medida que se agravam se encontraram detidas. O texto marca as pressões: é suspensa a direcção da um dado novo trazido pela crise AAC, alterados os seus estatutos académica de 1962: o debate da para acabar com a Assembleia presença da mulher na vida pública e Magna e encerradas as suas instala­ política. Em Coimbra acabava de se ções, tantas vezes ocupadas pelos criar a Assembleia de universitárias e o estudantes como aquelas em que a conselho feminista da AAC. bastonada os expulsa de novo. As A partir de meados de Maio já não é comissões nomeadas não funcionam possível qualquer regresso à

13 Os tempos em volta 1 9 6 2

28 Manifestação em Ayustrel contra a prisão de quinze pessoas acusadas de actos subversivos. A luta é pela jornada de 8 horas no trabalho rural. A GNR mata duas pessoas e fere muitas outras.

1 Em Lisboa, milhares fazem frente à polícia no dia do trabalhador. Estêvão Giro, militante comunista, é morto a tiro. Manifestações e greves por todo o país. 8 Milhares de pessoas Lisboa, 1962. Manifestação na Cidade Universitária. comemoram nas ruas o aniversário da derrota do nazismo. Carga policial. 21 Lei atribui benefícios na frequência escolar a filhos de indivíduos falecidos, mutilados ou incapacitados ao serviço da Pátria. ll!mD 25 É criada a Frente de Libertação de Moçambique (Frelimo), presidida por Eduardo "normalidade". Depois de adiar o se solidariza publicamente com os Mondlane. Académica-Beira Mar, a que os de estudantes, é afastado sem direito a ll!lm!l 23 Agostinho Neto evade-se de Coimbra planeavam faltar, o governo reforma. Lisboa, onde lhe tinha sido joga o mais alto trunfo repressivo, Pela parte dos estudantes, a corda fixada residência. ilegalizando as associações de fôra já esticada ao máximo. l.t§J§,IItttl estudantes, a RIA, emitindo novas Aproximavam-se as férias quando 4 Ao abandonar a pasta da regras sobre a comparência às aulas e no Técnico se decide o Defesa Nacional, Oliveira Salazar profere o discurso "Defesa de apresentando o luto académico como levantamento do luto académico. O Angola - defesa da Europa". um atentado à liberdade dos que fascismo fecha, pela brutalidade, queriam seguir o lema de Salazar: "o este ciclo do movimento estudantil. estudante, estudà'. Mas essa mesma força empurra os Quando a PIDE rapta Eurico de estudantes a dar um passo de Figueiredo, à porta do café onde se gigante definitivo: o associativismo encontrava, este dirigente da pró• passa a conhecer os limites do re­ associação de Medicina passa a ser o gime e assim se politiza. Para o centro da exigência da libertação dos sindicalismo estudantil, as presos. Com o decreto 44357, o reivindicações de liberdade de Ministério da Educação tem plenos associação e autonomia poderes na punição de estudantes. universitária deixaram de ser Sucedem-se os anúncios de expulsões suficientes: o Estado Novo fez um da universidade e as prisões. O profes­ tmmtgo de que nunca mais se sor Vitorino Magalhães Godinho, que livrará.

14 ISABEL DO CARMO estava no último ano quando a revolta estalou. Desde 59 que participava nas estruturas quase clandestinas da pró-associação de Medicina e na secção cultural da RIA. No estádio universitário, fez uma intervenção 1 que ficou para a história: I. a primeira de uma mulher num plenário . .. UMA RUPTURA DOS COMPORTAMENTOS ..

Na crise de 62 alguns professores tiveram um papel acha que o partido era para os estudantes? importante que não se repetiria nas mobilizações Nos anos que precederam 62, o PCP era a seguintes. Como se processava essa solidariedade? organização mais radical, que corporizava as posições Naquela altura, estava-se num momento de viragem. mais generosas e o nosso desejo de transformar a Tinha começado a guerra colonial, embora não se sociedade. Era o partido que defendia a igualitarização, falasse disso, nem durante a crise académica. Mas estava a justiça social. Desse ponto de vista atraía os jovens subjacente, pelo menos como ameaça. Por outro lado, que tinham essas posições. Por outro lado era o único tínhamos saído daquela terrível monotonia, ausência e partido organizado, tudo o resto eram estruturas medocridade, que foram os anos 50, quer a nível dispersas. Foram as pessoas do PCP que organizaram, económico, quer no das relações com a Europa. O pelo menos inicialmente, a luta dos estudantes. Isto não movimento estudantil expressou essas coisas. quer dizer que fosse o PCP a manobrar os Começou a estar presente um opção anti-fascista, acontecimentos. Em 62 houve muitas adesões de sob as revindicações académicas. Os estudantes pessoas que não eram do PCP, e que chegaram a dirigir organizaram-se e os professores ficaram sensibilizados. o movimento, como O Jorge Sampaio, o Víctor O próprio reitor Marcelo Caetano se demitiu. E ele Wengorovious, e vários outros estudantes. vinha da organização ideológica do fascismo - a Mocidade Portuguesa. Na Faculdade de Medicina havia Também a participação das mulheres no movimento os que defendiam os estudantes, os que mostravam foi nova ... Como foi a sua experiência pessoal ? simpatia e os que se opunham. É incrível, hoje, a trinta e tal anos de distãncia, que Lembro-me de um professor de Patologia Geral, só uma mulher tenha falado nos plenários. Até parece J Fernando Nogueira, que tomou posição em relação à mentira. Calhou-me essa função ... Sete anos depois, tortura, a tortura do sono e os transtornos que em Coimbra, as mulheres tiveram uma posição muito provocava. Este caso mostra como a história pode ser mais activa. É curioso que, para além de ter sido a injusta: ele foi afastado depois do 25 de Abril, devido à primeira mulher a falar num plenário, eu era também controvéria que levantavam os seus métodos defensora de posições muito radicais. Os sectores mais pedagógicos (chumbava muitos estudantes). Tinha moderados ficaram cheios de medo. Perguntaram-me, deixado de haver memória, entre 61 e 74 ... Não fomos quando pedi a palvra, "o que é que vais dizer?". nós que protagonizámos esse saneamento, nem sequer Noutros locais, como Letras, onde a presença das demos por ele. mulheres era mais forte, havia muito maior participação. Nos convívios que organizávamos havia muitas mulheres A crise tem Lugar num contexto histórico de hegemonia na organização, o que aliás era muito criticado pelos do PCP nos meios oposicionistas. Como militante do defensores da moral e dos bons costumes ... Andar com Partido Comunista, na época, que tipo de referência os rapazes, sair à noite, essas coisas ...

15 Os tempos em volta COIMBRA, 1969 1965/67 Lutar para ganhar 1965 ''41§i§Mj 11 Humberto Delgado entra em Espanha, com passaporte falso. É visto pela última vez, em "ONDE SE FALA DO PATERNALISMO COMO EXPRESSÃO Badajoz, no dia 13. O cadáver será encontrado em Abril. do autoritarismo - saudações à contestação que lhe é feita 19 A Ordem dos Advogados pela autêntica universidade". José Cardoso Pires envia em 1969 transmite ao ministro da Justiça um relatório de denúncia das a sua solidariedade ao movimento estudantil. Numa dedicatória "ilegalidades inconstitucionais" da PIDE e da Polícia Judiciária. à Académica de Coimbra, em "Cartilha do Marialva", o escritor dá­ ll!DD se conta das diferentes perspectivas em confronto. A"universidade 25 O candidato único "da Nação e da União Nacional", Américo nova" dos estudantes e a agressividade do velho regime. Tomás, é eleito para mais um mandato de sete anos na Presidência da República.

É no rescaldo da repressão de 1965- de 1962. Vêm com indicações claras Uma delegação da ONU confirma a existência de regiões encerramento da AAC, prisão dos quanto à forma de agir no libertadas na Guiné. O governo dirigentes eleitos e nomeação movimento, ou seja, preparados português desmente a governamental de Comissões para as diferenças coimbrãs. A das existência daquelas áreas. Administrativas - que se vão formar os praxes, do associativismo fi§ §iii @I O VI Congresso do PCP, o quarto principais dirigentes estudantis de tradicionalista (dos coros ao ilegal deste partido, realiza-se Coimbra, em 69. O Governo, que Conselho de Repúblicas), da vida em território soviético. desde sempre encarara a contestação "bairrista" proporcionada pela estudantil como resolúvel através da pequena cidade dominada pela 1966 decapitação das suas estruturas, decide secular universidade. li@§l§ltfj encerrar a Associação Académica na Organizados na estrutura Tem lugar o I Encontro dos altura mais favorável: fraca ligação dos clandestina do PCP, um grupo Estudantes Portugueses no Estrangeiro, em Bruxelas. dirigentes à realidade académica, num constitUl-se na defesa das período de radicalização política mas orientações clássicas para a luta dos Elll É fundada a UNITA, em Angola. sem suporte reivindicativo na academia. estudantes- redução do carácter das Ao regime responderam os estudantes lutas e forte crítica à tradição. Os ll!IJD 19 Éestabelecido o pagamento com pequenas manifestações. O "Contestas", outra linha estudantil, de portagem na ponte sobre o Governo ganha. englobam activistas em divergência Tejo. A ponte será inaugurada a Na reorganização da resistência com o PCP. Influenciados pela cisão 6 de Agosto. l~t.N§ul@l estudantil antevê-se o debate académico trotskista, defendem a linha "rodo 12 - É revista a legislação nos anos seguintes. Em Coimbra estão o poder aos cursos", que se orgânica da Mocidade presentes as várias correntes que cerrarão desenvolverá com mais força e Portuguesa, criada em 1936. fileiras contra o regime nas lutas que se importância em Lisboa. preparam. Entre si concorrem na Do interior d as estruturas 1967 disputa pelo espaço privilegiado da tradicionais, com o Conselho de li@§i§Mj acção assoCiativa. Repúblicas na dianteira, outro 22 É criada a Área Ibero­ Estão em Coimbra alguns activistas grupo demarca-se da linha anti­ Atlântica da NATO, com sede em Portugal. expulsos da universidade lisboeta depois tradicionalista do PCP. Divergência

16 estratégica, mas também ideológica: não ultrapassa Lisboa e, para contornar desde finais da década de 50 que o a repressão, aparece camuflada em PCP já não é a única opção para o outros protestos - nomeadamente as combate organizado contra o re­ mariifestações contra a intervenção dos gime. Dizem-se "comunistas Estados Unidos no Vietname. Mas a críticos" ou "socialistas". Invocam guerra colonial portuguesa está longe a invasão da Checoslováquia pelos de ser um tópico lateral na vida tanques soviéticos, em 1958, o XX: o associativa. As comissões de serviço Congresso do Partido Comunista da militar são de 4 anos e o próprio URSS, Che Guevara, as críticas ao espectro da incorporação é uma ameaça estalinismo, os crimes então às expectativas de vida dos conhecidos. universitários. Coimbra em lUtO. FOTO: ARQUIVO DIÁRIO DE LISBOA A participação estudantil no auxílio POLITIZAÇÕES às vítimas das cheias da região de O termo "normalização", que até Lisboa, em Novembro de 1967, altera 1966 tinha sido gasto pelo regime o quadro em que se desenvolve a luta. ditatorial, passa para a boca dos A imprensa, alvo da censura do regime, estudantes. A "pacificação" da pode transmitir algumas notícias sobre universidade, por via da repressão o envolvimento do movimento sobre o movimento associativo, a associativo no socorro às vítimas da partir de agora significa, tão intempérie, quando até então se via somente, a reposição da "legalidade" forçada a difundir os comunicados das realizações estudantis. Contra a ofensivos que o governo dedicava aos intimidação vem a reorganização estudantes em luta. Mas para além do através do possível. contacto com a periferia de Lisboa, O quotidiano não deixa espaço marcada pela pobreza, há uma nova para dúvidas: assaltos nocturnos às dinâmica de funcionamento. instalações associativas, processos disciplinares, expulsões, prisões, AVERTIGEM DE COIMBAA. cargas policiais. Os anos de 66, 67 O trabalho associativo em Coimbra e 68 decorrem sob esta rotina. É está centrado na actividade dos núcleos hora de debater. Com o alastrar da da AAC. É a resistência às Comissões guerra colonial, a oposição Administrativas (CA) pró• estudantil é inevitável. No entanto, governamentais, em que colaboraram figuras da direita estudantil como José Miguel J údice e Francisco Lucas Pires. Futebol epolítica: uma história edificante A actividade cultural é a prioridade, No dia 22 de Junho de 69, data da final da Taça, mantinha-se o tendo em vista a exclusiva vocação "luto académico" decretado pela AAC e respeitado pelos jogadores da desportiva das CA. equipa principal. O regime tremia ao pensar numa possível É através do Conselho de manifestação na final, a que assistiriam não só os mais altos dirigentes Repúblicas, que se constituua uma da ditadura, mas o país inteiro, pela televisão. Fazem-se "contactos Comissão Pró Eleições (CPE), em informais" com dirigentes estudantis para "negociar" a calma. Sempre inícios de 1968. Com a comissão está rejeitando a "oferta", os estudantes preparam a final. São impressos a maioria dos núcleos autónomos da AAC, com excepção do Orfeão, bastião 35 mil panfletos. O estádio do Jamor enche-se de manifestantes con­ tra a ditadura. A Académica ganhava ao intervalo, mas o astro dos apoiantes do regime. benfiquista, Eusébio, com dois golos, acabou por tirar a vitória aos Paulatinamente, o cerco às autoridades estudantes. No final do jogo multiplicam-se os gestos de solidariedade: académicas vai-se apertando. até os adeptos benfiquistas se mostraram contrariados pelo resultado. Finalmente as eleições são autorizadas.

17 17 Assalto ao Banco de Por­ tugal da Figueira da Foz. São apreendidos cerca de 30 mil contos. Em Paris, Emídio Guerreiro, José Augusto Seabra e Fernando Echevarria, exilados, criam a Liga de Unidade e Acção Revolucionária (LUAR), que reivindica posteriormente a "operação".

Francisca Maria, operana corticeira, é q_ssassinada pela PIDE. fitl®i#il Coimbra, 1969. Seis mil estudantes decretam greve aos exames. AROUNO DIÁRIO DE LISBOA 22 É exonerado, a seu pedido, do cargo de ministro da Justiça, Antunes Varela, na sequência do escând,alo "ballets-rose". O Aproveitando a mobilização fala o senhor ministro das Obras ministro teria pretendido alcançada pela CPE e a vttona Públicas". Depois deste, falou o aprofundar a investigação sobre anunciada da marcação de eleições, ministro da Educação, Hermano o envolvimento de altos dirigentes. realiza-se mais uma comemoração da Saraiva, e, acto contínuo, o 'U·fl§ .. ttmJ Tomada da Bastilha, em Novembro. Da Presidente da República levanta-se, 25 Cheias causam 427 mortos reunião nacional que então se realiza, dando por terminada a na região de Lisboa sai um comunicado conjunto e um inauguração. A delegação oficial sai relançamento da luta estudantil. do anfiteatro, atrás dos agentes da 1968 As eleições decorrem em Fevereiro de PIDE, sob as vaias dos manifestan­ 'mmttêM 69, com uma percentagem de afluência tes: "fantoches", "palhaços". Manifestação de estudantes, no às urnas próxima dos 90%. A lista Às duas horas da madrugada, Porto, contra a guerra no Vietname. oriunda do Conselho de Repúblicas quando sai das instalações da AAC,

obteve 75% dos votos, enquanto que a Alberto Martins é preso. Um grupo Greve de cinco mil pescadores lista afecta ao regime, "Movimento de de estudantes dirige-se para a porta de Matosinhos. - • Renovação e Reformà', não ultrapassou da PIDE onde se verificam mm os 21 o/o. Em Março chega à direcção confrontos. Agredidos pela Polícia António de Spínola é nomeado eleita o convite da Presidência da de Choque, com cães e Governador e Comandante-Chefe das Forças Armadas na Guiné. República, para participar na cerimónia metralhadoras, cinco estudantes são de inauguração do edifício de feridos. Alberto Martins é libertado 19 José Hermano Saraiva é Matemáticas. A DG aceita e pede o uso no dia seguinte, mas está dado o nomeado ministro da Educação. da palavra no decorrer da cerimónia. sinal de que o futuro será muito Para o Interior, Gonçalves Rapazote. Como tinha sido combinado, complicado, tanto para os dirigentes ffl®tt!fl Alberto Martins dirige o pedido da associativos, como para o regime. 7 Salazar é operado a um palavra a Américo Tomás. Um ruidoso hematoma craniano na aplauso surge de toda a parte onde estão POR UMA sequência de uma queda durante as férias. No dia 27, após estudantes. A mesa, composta pelos UNIVERSIDADE NOVA quarenta anos- de governo, ministros, presidente e reitor da UC, As reivindicações passaram a Salazar é exonerado e Marcelo levanta-se. Tomás responde, incluir o âmbito pedagógico e a co­ Caetano é nomeado Presidente do Conselho. gesticulando: "Bem ... bem ... mas agora gestão da escola por estudantes e

18 professores. Mas o clima não ousados recorrem às metáforas ... Um propicia grandes mobilizações. A abaixo-assinado de 48 jornalistas direcção da AAC não está disposta portugueses lamenta que a censura a ceder ao ímpeto da confrontação impeça a divulgação dos permanente com as autoridades. Por acontecimentos de Coimbra. estranho que pareça, foram as A greve encara de frente a faceta mais autoridades a despoletar os repressiva do regime, contrariando a acontecimento: primeiro com a ideia difundida de uma "Primavera suspensão dos principais dirigentes marcelista". Sucedem-se os confrontos associativos: sucedem-se as de rua com a GNR, nos quais são assembleias estudantis e é decretado espancados estudantes e transeuntes. o "luto académico". Para piorar a São feitas prisões em massa, ao abrigo situação, José Hermano Saraiva, que do crime de "sedição". Estava para transitara do governo de Salazar para chegar o prato forte da contestação. o de Caetano, apresenta na TV a Nesse ano, a secção de futebol da AAC solução para o problema de chega à final da Taça de Portugal (v. Coimbra: "A ordem vai ser caixa). estabelecida"- a universidade foi A direita do regime, com os militares sitiada pela polícia e as aulas à cabeça, resolve exigir eficácia. Circula encerradas pelo ministério. Os um abaixo-assinado que pugna por estudantes resolvem suspender a "medidas imediatas de reforço da Queima das Fitas. As assembleias autoridade". Estão presos por "sedição" estudantis sucedem-se e 6 mil mais de cinquenta estudantes, estudantes decretam a greve aos enquanto outros, em igual número, exames. De pouco adianta ao respondem em processos disciplinares. ministro Hermano Saraiva a Durante as férias, a AAC é encerrada proibição das reuniões - elas pelo governo e os seus dirigentes ainda

Ironia estudantil sobre o discurso do ministro acontecem onde quer que seja, em liberdade são presos. Libertados no José Hermano Saraiva na televisão. mesmo sob a atenção da PIDE. final do mês, os associativos acabarão O boicote aos exames é massivo. por ser incorporados compulsivamente A dinâmica de vitória da luta de nas forças armadas. Na partida do Coimbra atrai já a atenção da comboio que os levará ao quartel, uma imprensa internacional. Em Portu­ grande manifestação entoa palavras de gal a imprensa limita-se aos ordem contra a guerr~ colonial. A comunicados oficiosos de Hermano polícia de choque, mais uma vez, tratará Saraiva, enquanto os jornais mais de repor a "normalidade".

Coimbra, 1969. Estudantes e regime medem forças. ARQUIVO DIÁRIO DE LISBOA

19 CELSO CRUZEIRO, estudante de direito e "repúblico", fez parte da direcção da Académica de Coimbra no ano de 69, responsável pelas actividades 1968 culturais. No vigésimo aniversário O PCP apoia a invasão de Praga da crise, publicou um livro pelas forças soviéticas, ocorrida em Agosto. A tentativa de onde faz o balanço desses anos democratização do regime checoslovaco, a célebre de intensa actividade política, "Primavera de Praga", era na oposição a Salazar liderada pelo partido comunista, cujo secretário-geral, Alexander e Caetano. Dubcek, será detido e passará a desempenhar as funções de guarda-florestal. O PCP foi o único partido comunista europeu a defender a União Soviética. 1969 iiifM 8 Primeira "conversa em família" "QUERÍAMOS VER OQUE ESTAVA NA GAVETA" de Marcelo Caetano, via TV. lt!1®!#tl 6 Em entrevista ao jornal francês Depois de um longo interregno, sem Como proposta política inovadora, para "L'Aurore", Salazar demonstra desconhecer que já não é eleições para a Académica de Coimbra, a a AAC, apresentavam uma ideia de Presidente do Conselho. Fala das direcção eleita em 1969, afecta ao Conselho sindicalismo estudantil ... "idas a despacho" de vários de Repúblicas foi uma novidade. O que Não era uma grande novidade à ministros e lamenta que Marcelo trazia de novo? escala europeia porque no Maio de 68, Caetano se recuse a entrar para o governo. A censura impede a A principal novidade foi não haver um em França, essa questão foi muito divulgação desta entrevista em enquadramento político-orgânico. A lista debatida na UNEF (União Nacional Portugal. surge dos organismos tradicionais mas, do dos Estudantes Franceses). Até 69, a 11(.!1§ul" ponto de vista político e ideológico, luta estudantil em Portugal era, umas 24 O Decreto Lei 49 401 representa uma conjunção de várias vezes mais, outras menos, um extingue a PIDE e cria, para o correntes políticas. Umas mais destacamento de vanguarda das seu lugar, a Direcção Geral de Segurança (DGS). O quadro da amadurecidas, outras mais embrionárias. necessidades, palavras de ordem e polícia política inclui 3 207 O que as uniu foi uma rejeição do metas imediatas do movimento de funcionários. Dentro do mesmo capitalismo, autoritário ou não, bem como oposição. Aí, como se sabe, o Partido espírito de "mudança", a União a rejeição dos sistemas autoritários do Leste Comunista era a força maior. As Nacional, partido único, é substituída pela Acção Nacional europeu, que se apelidavam de "socialistas". estratégias da luta estudantil em Por­ Popular, em Fevereiro de 70. Isso foi uma novidade, para a época. O tugal tinham uma autonomia limitada. 1970 ponto fundamental de referência é a invasão Era uma luta subsidiária das da Checoslováquia, pelas forças soviéticas. preocupações das forças políticas. Nós A partir de 68, alguns elementos mais tentamos definir uma estratégia O governo português é condenado, numa declaração da próximos das perspectivas comunistas autónoma. Daí o sindicalismo. Para Organização Internacional do tradicionais descolaram. A invasão de Praga criar uma base de apoio, contra o re­ Trabalho, OIT, pela violação de teve repercussões muito grandes, em rodo gime, havia que conceber a associação direitos sindicais. No ano ante­ o mundo. Havia também, já na altura, uma como defensora dos interesses dos rior havia sido condenada, pelo Conselho de Segurança da ONU, corrente socialista radical, dentro dos estudantes. E que fosse reconhecida a política colonial. quadros do marxismo, inspirada na "nova como tal pelos estudantes, entendidos IIII esquerda" europeia. como trabalhadores intelectuais na 1 Carga policial impede Universidade. comemorações do 1 • de Maio. São feitas várias prisões.

20 O carácter revolucionário e a divisão entre os sexos era total: as transformador estava, nessa linha, no mulheres viviam nos lares, a sexualidade facto de que, embora a trabalhar num era um tabu completo. Nas Repúblicas sector que não extravazava para uma falava-se muito, ainda, sobre a virgindade politização fora do seu âmbito. antes do casamento. Assisti, em seis anos, Lutávamos por reformas que nem o re­ à pulverização dessa questão. A prática gime, nem sequer o sistema capitalista, quotidiana, de 62 em diante, já aproximava eram capazes de suportar. O nosso muito os jovens. Mas a "revolução sexual" programa definia uma universidade surge no fim da década. que era a rejeição da velha universidade Também no plano da cultura, quisemos fascista, mas também rejeitava a "dar uma injecção" de tudo o que estava reforma tecnocrática que estava na forja na gaveta. Queríamos ver o cinema e que veio depois a ser implementada italiano, a literatura neo-realista, que trazia pelo ministro da Educação Veiga o conflito social para o palco das letras. Simão, no período final da ditadura. Nesse contexto politico e cultural, Coimbra Surgiu um discurso, novo até então, apresentava alguns pontos singulares. As sobre a sexualidade entre os jovens. O instituições "tradicionais" da academia, da ano de 69, em Portugal, marca a praxe à música, foi aproveitado para a agudização do conflito entre a prática contestação. dos jovens e o discurso moral Coimbra era uma cidade sui-generis, dominante? com o enorme peso da universidade. Num Sim. Tinha havido, nos finais da país pequeno, adquiriu uma mitologia: década de cinquenta, inícios de saíam de lá as grandes figuras - do Salazar sessenta, um grande debate sobre essa ao Cerejeira. Os debates culturais não eram questão, a propósito da célebre "Carta muito diferentes dos de Lisboa. A nossa a uma jovem portuguesa" do Marinha especificidade foi a utilização de de Campos. Era uma coisa instrumentos locais no movimento perfeitamente inocente, falava da estudantil. Agarrámos a praxe e a música, aproximação entre os jovens colegas, elementos meramente lúdicos e dpicos entre homens e mulheres. Tinha um dessa existência juvenil coimbrã, e apelo simbólico: "mulher salta o muro". trouxémo-los para a luta, com um Isso deu uma campanha nacional conteúdo novo. tremenda. Quando entrei em Coimbra

Coimbra, 17 Abril 1969. Celso Cruzeiro comunica os desenvolvimentos da inauguração do pavilhão de Matematicas. ARQUIVO DIÁRIO DE LISBOA

21 Os tempos , em volta ULTIMOS ANOS DA DITADURA 1970/72 Empurrar uma porta pesada ll!ml 1 O Papa Paulo VI recebe Os efeitos da crise não terminaram em Setembro, delegações dos movimentos africanos de libertação (MPLA, com a incorporação dos dirigentes associativos de Coimbra. FRELIMO e PAIGC). O governo Mesmo com a MC fechada e com a mobilização português protesta. ll!mll de largos efectivos policiais, a marca dos acontecimentos 27 Morre Salazar. É decretado está bastante presente. Realizam-se manifestações feriado e luto nacional. 1971 que exigem o regresso dos milicianos forçados. mil Aacademia está mais unida do que nunca. 6 O PCP completa 50 anos. Em Abril, a revista "Seara Nova" terá a mesma idade. 1111111 A primeira baixa no regime é José e o conhecido catedrático de Letras, 1 José Pedro Soares, militante do PCP, é preso. Estará dois Hermano Saraiva. O ministro que Paulo Quintela, símbolo da meses e meio em isolamento e conduziu a repressão contra os solidariedade de alguns professores), será submetido à tortura do estudantes cai em Dezembro de 69. Para e o presidente Américo Tomás, o sono durante 21 dias e noites. o seu lugar entra Veiga Simão, próximo principal "ofendido" nos ilifHu!@l da tendência tecnocrática, e, com ele, a acontecimentos da inauguração do Éassinado em Bruxelas o acordo entre Portugal e os Estados "reformà' universitária que a oligarquia edifício de Matemáticas. Os Unidos de cedência da base das financeira e industrial reclamava: maior estudantes regressam, sob a propa­ Lages, nos Açores. adequação das matérias às necessidades ganda triunfalista do regime, Inicia-se a publicação do jornal Política, de extrema-direita, do sector produtivo e a submissão da apresentados pela imprensa como dirigido por Jaime Nogueira produção intelectual a critérios da "arrependidos". Só a ultra-direita Pinto. Surge também a editora rentabilidade. Para melhor expressar as reage intempestivamente. Não era Cidadela, da mesma área política, dirigida por Cavaleiro suas intenções, Veiga Simão afirma que a única experiência desagradável Brandão, Lucas Pires e José a sua reforma "não constitui um que iriam enfrentar no seu regresso: Miguel Júdice. problema do mundo capitalista ou das a Universidade mudou e a 1972 concepções marxistas, mas um contestação massiva, em meio ano, IIII problema da mais forte aquidade que esfumara-se. Três jornalistas são condenados por "delito de opinião": deve ser tratado de forma científica". Fernando Rosas, Amadeu Lopes Desideologizar é a forma encontrada LISBOA A FERRO E FOGO Sabino e Sebastião Lima Rego. para tentar desarmar a crítica estudantil. A unidade estudantil já não é ll!lml Mas os estudantes já não acreditam em mais do que uma recordação. A A Direcção Geral de Informação reformas neutras. direcção do movimento de proíbe a pubUcação da referência à censura nos textos Mudanças também na hierarquia Coimbra é vista, pelos seus publicados por órgãos universitária. Para Reitor de Coimbra congéneres de Lisboa, como informativos. A censura passa a chamar-se "exame prévio". entra Gouveia Monteiro, que exige o derrotada e nas principais regresso à universidade dos estudantes associações de Lisboa, como o fP®" É encerrada a Associação castigados. A forma encontrada para Técnico e Económicas, dominam Académica de Moçambique resolver a situação é promover uma pequenos grupos da extrema­ devido a "actividades reunião de um grupo de professores, esquerda que então se organiza, irregulares". próximos das posições estudantis (en­ com predominância de maoístas e tre os quais se destacam o próprio Reitor afectos ao MRPP. As linhas da

22 Lisboa, 1971. No Instituto Superior Técnico, fractura estudantil fazem estudantes levam à cena subir de tom o programa e o tema da repressão. a acção da revolta. A confrontação com o regime é aberta e permanente. Os passos tímidos da reforma do novo ministro encontravam a sua principal oposição na esquerda estudantil. Feitas as leituras do Maio de 68, é claro para os estudantes que o novo I modelo de universidade em curso, que ocupa as pnnc1pa1s faculdades \ mais não é do que a tentativa de lisboetas. Em primeiro lugar, as mais implicar a escola no projecto de importantes para o sector produtivo: desenvolvimento do capitalismo Técnico e Económicas. Mas também português. A resistência entrava a onde quer que se manifeste a oposição, aplicação da reforma e o regime como as greves que, a um ritmo mensal, volta aos velhos métodos. preenchem o quotidiano universitário. As faculdades são agora espaços V árias AAEE são encerradas, os seus de uma intervenção de novo tipo. dirigentes presos. O director da Tornam-se diários os debates sobre faculdade de Direito, Soares Martinez, a guerra colonial, a discussão recorre com frequência aos vigilantes pedagógica, o questionamento da bem como às cargas da polícia de relação entre alunos e professores, o choque. Em Janeiro de 71, à saída de controlo pedagógico pelos um plenário, os estudantes sofrem nova estudantes. Para esses debates, carga, com cães e metralhadoras, e muitas vezes durante as próprias barricam-se na cantina da Cidade aulas, são chamados professores e a Universitária. A cantina é invadida pela população trabalhadora. Questiona­ polícia, são feridos trinta estudantes, se o papel da universidade e o entre os quais uma grávida, que aborta. privilégio da condição estudantil, Pouco tempo depois, o Técnico é mas também a falta de saídas encerrado por ordem dp director, profissionais e a situação da Fraústo da Silva. Em Coimbra, por juventude. No Técnico, a sala de solidariedade, os estudantes entram em convívio das mulheres é invadida, greve. Em Fevereiro de 71, a AAC volta reclama-se em grandes cartazes uma a ser encerrada. "revolução sexual". Esta é a fase mais dura da contestação estudantil. Em Nraio de 72 são poucas OS GORILAS DA REFORMA as AAEE em funcionamento. Sucedem­ Ironicamente, o maior aliado do se os ataques às reuniões estudantis, ministro reformista da Educação muitos estudantes são presos e passa a ser o seu congénere do Inte­ torturados, sobretudo em Caxias. Esta rior, Gonçalves Rapazote, um "ul­ vaga de repressão tem como corolário tra" do regime. Para acelerar a o assassinato, em 12 de Outubro, do implementação das medidas para a estudante de Direito José Ribeiro universidade, o governo cria os Santos. Durante uma reunião sobre a "vigilantes" - "gorilas", na gíria guerra colonial, em Económicas, um estudantil - , um corpo para-militar agente da PIDE dispara sobre Ribeiro

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Santos. No dia do funeral, comparecem radicalidade desenvolve-se do lado em volta cerca de 5 mil pessoas. A polícia de das organizações clandestinas, 1972/74 choque rouba o caixão. Aos gritos de principalmente através do PCP e "assassinos" responde a polícia com mais dos pequenos partidos de inspiração uma carga, prendendo trinta pessoas. marxista. Mas a derrota é mais É decretada uma greve geral da visível do lado da ditadura. Em ltlfJijul@j academia lisboeta. Fevereiro de 74, discursando no 16 Massacre de Wiriyamu, em Moçambique. Comandos O regime endurece ainda mais a sua congresso da Acção Nacional Popu­ portugueses assassinam 400 acção: institui multas pela distribuição lar (antiga União Nacional) , par­ civis moçambicanos, incluindo de imprensa estudantil (3 mil escudos) tido único, Marcelo Caetano crianças. 30 Ocupação da Capela do Rato, e legaliza os "gorilas", ao fim de dois atribui a culpa pelo estado das coisas para comemorar o Dia Mundial anos de prática, através do decreto-lei em Portugal aos "privilegiados". da Paz e tomar posição contra 18 /73. Até finais de 73, a repressão Entre eles estão, como não podia a guerra colonial. São presas cerca de 70 pessoas. aumenta desproprcionalmente. As deixar de se r, os estudantes. Dois cargas da polícia de choque passam a meses d epois, a ditadura 1973 incluir disparos frequentes e a tortura portuguesa, velha de quarenta e oito nas prisões aumenta. Estão presos todos anos, será derrubada. Entre as ié!§it!1 6 Primeiro número do "Ex­ os principais dirigentes associativos do multidões que na rua conhecem a presso". A censura proibiu 9 ensino superior de Lisboa. liberdade estão os resistentes das textos e cortou outros trinta, várias lutas estudantis que abalaram entre os quais uma entrevista O movimento está vencido nas ao ciclista Joaquim Agostinho. universidades. Agora o centro da o regtme. l@@ui!fl\1 1 Reunião de Óbidos do Movimento dos Capitães. É discutida a possibilidade de um golpe de Estado.

1974 li@M§tttl 14 O padre Mário de Oliveira é Omovimento estudantil o verdadeiro motor das reformas julgado e condenado a um mês é de prisão. Os seus direitos JOSÉ MARIANO GAGO, dirigente associativo do Instituto Superior Técnico na viragem políticos são suspensos por três da década de 60 para 70 representa a mudança de postura do movimento estudantil anos. num período marcado pelo Maio de 68 e pela guerra colonial. ..14 "Brigada do Reumático": Segue-se um curto excerto de uma entrevista recente à Vida Mundial. grupo de generais assegura a Mudar a universidade era o território de acção concreta. Muito mais interessante sua solidariedade a Marcelo do que o trabalho de renovação dos cursos e da organização escolar era, na altura, a Caetano, face aos rumores de abettura do movimento ao extetior. Foi o lançamento dos jornais de parede com notícias conspiração entre militares. dos movimentos grevistas nas associações de estudantes. No fundo , a ctiação de espaços 16 Levantamento militar nas Caldas da Rainha. São detidos de liber~de e afirmação, num país onde elas não existian1. Foi também o combate 33 oficiais das Forças Armadas. dentro do movimento associativo de Iisboa para que ele, explicitamente, assumisse posições contra a Guerra Colonial. Também a internacionalização e as mudanças de 11111 24 A Conferência Episcopal está valores e de sociedade: a afirmação das mulheres pela liberdade sexual, pela liberdade reunida em Fátima . de expressão. São esses os momentos que atravessan1 a minha memótia com mais 25 Uma das mais velhas força. ( ... ) ditaduras do mundo é Eu não acho que na altura pensasse que a universidade não era reformável... Mais derrubada. A senha para o início ainda quando penso no tempo que despendi a tentar reformá-la. Estive no Conselho das operações mi~tares é Consultivo da Universidade Técnica de Iisboa a reforn1ar, de facto , a Universidade. "Grândola, vila morena" de José Despendi muitas horas do meu tempo a ajudar na reforma dos cursos do IST. Não Afonso. pode haver manifestação mais prática da convicção na capacidade de reforma, para um líder de um movimento estudantil radical .. . Julgo que a tese que defendia na altura era que a instituição universitária não era reformável sem o movinlento estudantil. O movimento estudantil é o verdadeiro motor das reformas universitátias.

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ORGANIZAÇÃO: Associação Académica de Coimbra, Associação d@s Estudantes da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas e Federação Académica do Porto.

APOIO: AE da Faculdade de Ciências de Lisboa, AE do Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas, AE da Faculdade de Arquitectura da Universidade Técnica de Lisboa, AE da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, Associação Académica da Universidade da Beira Interior, Associação Académica da Universidade de Évora, Associação Académica da Universidade do Algarve.

TEXTOS E ENTREVISTAS: AGÊNCIA MIR - Montra de Ideias e Reportagens. Tel.jFax (01) 887.64.30

FOTOGRAFIAS de Celso Cruzeiro, Jorge Sampaio e Isabel do Carmo cedidas pelos próprios.

EDITOR GRÃFICO: Luís Branco - AGÊNCIA MIR

TIRAGEM: 50.000 exemplares. Acabou de imprimir-se em Lisboa em Março de 1999 .

FEDERAÇÃO I ArADEMirA DO PORTO 26 ASSOCIAÇÃO• ACADÉMICA DE COIMBRA

------da resistência à exigência

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