33O ENCONTRO ANUAL DA ANPOCS

MESA-REDONDA NO 12: MÍDIA, MÚSICA E SOCIEDADE: DIVERSOS LUGARES, DIVERSOS TEMPOS, DIVERSOS OLHARES

TÍTULO DO TRABALHO: MÚSICA NA TELEVISÃO DE SÃO PAULO: DISTINÇÃO, IDENTIDADE E PERFORMANCE NA DÉCADA DE 1950

AUTORA: RITA DE CÁSSIA LAHOZ MORELLI

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Nesta comunicação pretendo compartilhar dados obtidos em uma pesquisa que, graças a um Auxílio Pesquisa da Fapesp, venho desenvolvendo desde janeiro deste ano de 2009. O título da pesquisa é “Músicas e músicos na TV de São Paulo: trabalho, distinção e identidade (1954-1969)”. Para dar conta dessa tarefa, dividirei esta comunicação em três partes. Na primeira, farei uma rápida apresentação do projeto; na segunda, apresentarei os dados obtidos até agora sobre a programação musical da TV Tupi e da TV Record na década de 1950; na terceira, apresentarei algumas reflexões sobre esses dados. O principal objetivo de minha pesquisa é descobrir qual o conteúdo exato da programação musical da TV de São Paulo no período pioneiro, se havia predomínio da chamada música erudita ou da chamada música popular, se havia predomínio de algum ritmo popular sobre os outros, se havia investimentos estatutários em música, isto é, se os diversos tipos de música (erudita ou popular) e/ou os diversos ritmos populares eram hierarquizados, e com base em que critérios, e se havia investimentos identitários em música, e de que tipo (nacional, étnico, etário ou outros), seja por parte dos produtores dos programas, da crítica especializada ou dos próprios realizadores artísticos. Um segundo objetivo será descobrir quais eram as relações de trabalho vigentes no período entre os músicos e as emissoras de televisão – entendendo por músicos os cantores, os instrumentistas (solistas e/ou membros de conjuntos orquestrais) e os maestros arranjadores e/ou regentes –, bem como os eventuais impactos da existência da televisão, tal como se apresentava naquele momento, sobre o mercado de trabalho, a organização trabalhista e a constituição de uma identidade profissional de músico na cidade de São Paulo. Mas este segundo objetivo só será sistematicamente perseguido em uma segunda etapa da pesquisa, e com base em um outro tipo de material. A importância quantitativa da programação musical da televisão tinha-me sido revelada por dados sistematizados pelo Centro de Estudos de Opinião Pública (CESOP), da UNICAMP, no âmbito do projeto Mídia, Sociedade e Política: TV e Padrões de Comportamento Social e Político da década de 1950 ao ano 2000, coordenado pela Profa. Dra. Rachel Meneguello e financiado pelo CNPq. Tendo por fonte principal os relatórios de audiência produzidos pelo IBOPE a partir de 1954, guardados no Arquivo Edgard Leuenroth, do IFCH da Unicamp, a pesquisa do CESOP incluiu fontes alternativas como as revistas Intervalo, Revista do Rádio e TV, São Paulo na TV e Sete Dias na TV no intuito de identificar a natureza de cada um dos 6.808 programas 3

mencionados nos relatórios do IBOPE entre 1954 e 1979, tendo obtido sucesso no caso de 4.078 deles, que foram classificados em 26 categorias temáticas. Ora, simplesmente 1.068 (ou 26,2%) dos programas identificados foram classificados na categoria “musical/arte”. Nem é preciso somar os 78 programas classificados como “musical/humorístico” (1,9%) e os 75 classificados como “desfile de carnaval” (1,8%) para que se trate da maior participação por categoria temática na programação das emissoras, seguida de muito longe por “telenovelas” (308, ou 7,6%), “esporte” (297, ou 7,3%), “humor” (281, ou 6,9%), “filme” (264, ou 6,5%), “infantil” (253, ou 6,2%), “série” (227, ou 5,6%) e as demais categorias, todas com ocorrência inferior a 100. Por outro lado, a importância de estudar essa programação – e, sobretudo, aquela datada dos anos de 1950, sobre a qual lhes falarei nesta comunicação – salta aos olhos quando constatamos que, seja do lado dos estudiosos da música popular brasileira, seja do lado dos estudiosos da televisão no Brasil, ela tem sido preterida em favor de outros objetos de interesse. Aos primeiros a televisão paulistana parece ter-se tornado interessante apenas porque foi nela que ocorreram os Festivais de Música Popular Brasileira que, em meados da década de 1960, representaram um marco na consolidação da chamada MPB como um campo autônomo em relação ao campo erudito, e de circulação restrita em relação ao mercado. Aos segundos, nem mesmo esses Festivais tornaram suficientemente interessante a programação musical como objeto de estudo, de tal forma que tem sido mantido ao longo do tempo um foco quase exclusivo na programação dramatúrgica, sobretudo nas telenovelas, tanto nos estudos de conteúdo quanto nos estudos de recepção. A única exceção, como não poderia deixar de ser, é o trabalho de José Ramos Tinhorão intitulado Do gramofone ao rádio e TV, uma vez que, sendo ele um estudioso da música popular, as mídias lhe interessam justamente como veículos de circulação dela. Entretanto, mesmo Tinhorão parece ter-se atido apenas à programação musical da televisão carioca, e não realizou, de fato, um levantamento minucioso dela, e sim uma análise geral de suas implicações sociológicas. De qualquer maneira, as questões que formulo em meu projeto tornam-se relevantes justamente porque dão prosseguimento a reflexões iniciadas por outros, tanto no campo dos estudos da música popular brasileira quanto no campo dos estudos de televisão no Brasil. Em relação a este segundo campo, creio que minhas questões sobre conteúdo podem ajudar a esclarecer, de modo empírico-indutivo, as divergências existentes acerca do 4

caráter elitista ou popular da programação geral da televisão no período pioneiro. O alto custo dos aparelhos receptores, ainda importados nos anos de 1950, reduzia a audiência a uma elite econômica e cultural, o que levou autores como Sérgio Caparelli e Muniz Sodré a concluir que a programação também era elitizada; por outro lado, observando a transferência em massa de programadores e de programações do rádio para a televisão, ocorrida no momento inicial de sua implantação no país sobretudo na área musical, José Ramos Tinhorão concluiu por seu caráter popular. Em relação a este campo, ainda, creio que minhas questões sobre investimentos estatutários ou identitários não deixam de representar desenvolvimento de preocupações inauguradas por outros dois autores. De fato, foi Sérgio Miceli quem trouxe para os estudos pioneiros de televisão no Brasil a inspiração do modelo da distinção de Pierre Bourdieu, ainda que para diagnosticar, com base nele, a diversidade das manifestações simbólicas que tinham tido guarida na programação televisiva até o início dos anos de 1970, quando ele escrevia seu clássico A Noite da Madrinha, e a concorrência existente naquele momento entre diferentes projetos de unificação e hierarquização simbólica que se abrigavam no âmbito do Estado Nacional. Renato Ortiz, por outro lado, trouxe para os estudos da indústria cultural no Brasil o conceito de internacional-popular, com o qual pôde diagnosticar a transição histórica da insipiência para a modernidade não apenas como sistematização e como diferenciação de esferas de circulação restrita e ampliada, mas também como transformação do sentido de cada um dos termos do conceito de nacional-popular que configurava grande parte da produção cultural industrializada do período insipiente. Em relação a essas preocupações, torna-se relevante o próprio período delimitado em minha pesquisa, uma vez que grande parte dele transcorre durante o interregno democrático ocorrido entre a queda do Estado Novo e o Golpe Militar, quando a diversidade de projetos políticos de hierarquização do campo simbólico com alguma visibilidade e alguma condição de possibilidade pode ter sido ainda mais acentuada do que durante a vigência desses dois períodos de exceção, e quando, dado o refluxo dos investimentos identitários em música por parte do Estado Nacional, pode ser que a televisão pioneira tenha sido o lugar da expressão musical de investimentos identitários outros, tanto mercadológicos quanto artísticos, a despeito de sua insipiência técnica. Em relação ao campo dos estudos de música popular brasileira, meu projeto desenvolve justamente preocupações de autores que se inspiram em Bourdieu e/ou que se preocupam com a questão da nacionalização ou internacionalização da música industrializada. Enor 5

Paiano, José Roberto Zan e Eduardo Vicente, aqui mencionados na ordem cronológica da defesa de suas respectivas teses, identificam sinais de constituição de um campo da música popular brasileira, ou pelo menos de uma esfera de circulação restrita de obras musicais populares, ao longo da história. Para Paiano, os festivais universitários da televisão paulistana da década de 1960 representaram a instância de consagração própria que faltava a esse campo para desvencilhar-se dos critérios de julgamento estético que tinham por modelo a música erudita, substituindo-os pelo engajamento político. Seguindo uma trilha aberta por Tinhorão, Zan busca as origens dessa clivagem social na música popular no próprio refinamento instrumental a que o samba carioca foi submetido nos anos de 1930 e 1940 para diferenciar-se de suas expressões mais populares, e afirma que foi nesse momento que artistas e críticos começaram a estabelecer critérios de distinção entre a música popular de “boa” qualidade e a música popular de “má” qualidade. Segundo ele, essa clivagem se acirra depois da Segunda Guerra, quando começa a se delinear no uma linha de música popular mais refinada, de consumo mais restrito a bares e casas noturnas, que culminaria na Bossa Nova e que se opunha à música popular de consumo massificado via rádio. Do ponto de vista de Tinhorão, desde o Pós-Guerra essa clivagem se fez acompanhar de uma internacionalização da linha de prestígio. Sendo assim, teria havido uma ruptura na relação automática que se traçava antes entre a música popular de “boa” qualidade e a música popular “nacional”. Para ele, os festivais foram palco de uma disputa entre artistas reconciliados com suas raízes nacionais e populares e artistas representantes de projetos de internacionalização, que acabou se resolvendo fora deles, já que o AI-5 encerrou autoritariamente a conversa e levou à imposição definitiva de um modelo de desenvolvimento antipopular e antinacional. Há indícios, entretanto, de que o projeto nacional-popular continuou hegemônico no circuito de prestígio da música popular brasileira por muito tempo depois disso – e eu, particularmente, acabo de escrever um texto que de alguma forma explora positivamente esses indícios. Por outro lado, Marcos Napolitano destaca esforços envidados já em meados dos anos de 1950, por Almirante e Lúcio Rangel, para manter a hegemonia da antiga associação entre “boa” música e música “nacional” e “popular”, esforços esses que o autor identifica como os germens de um processo que ele prefere chamar de “institucionalização” da MPB, isto é, de criação simbólica de uma tradição por meio do estabelecimento de uma linha de continuidade entre o presente e o passado musical, com pretensões legislativas sobre o futuro. 6

Essa também é uma questão para cuja elucidação minha pesquisa pode contribuir. Foi, por exemplo, em São Paulo, e na Rádio Record, que Almirante tomou uma das iniciativas mais importantes do projeto mencionado por Napolitano, organizando o I Festival da Velha Guarda, em 1954, e repetindo-o no ano seguinte, já com transmissão simultânea pela TV Record. Por outro lado, o grau de internacionalização da programação musical atingido pela TV Record no final da década de 1950 foi extraordinário, considerando-se que, em razão dos limites técnicos, ela dependia sobretudo de trazer pessoalmente os artistas estrangeiros para cantar ao vivo diante das câmeras. Por outro lado ainda, enquanto Almirante organizava o I Festival da Velha Guarda, a TV Tupi se esmerava na apresentação de uma programação musical de qualidade no velho sentido, com árias de óperas clássicas às terças-feiras e operetas completas aos domingos, sendo interessante observar também que essa qualidade no velho sentido era um pressuposto quase generalizado das apresentações musicais da televisão no período, pois era corriqueiro que mesmo os cantores mais populares se fizessem acompanhar por grandes orquestras. Ou seja, mergulhando em alguns poucos dados dos anos de 1950 foi possível trazer à tona uma diversidade enorme de experiências artísticas e mercadológicas concretas que, por enquanto, é mais prudente que falem por si, ainda que seja para apenas reiterarem a prevalência do caos da realidade empírica sobre a ordem de todas as construções intelectuais, minhas e alheias, aqui mencionadas. Vamos a elas. Dado que a programação musical das emissoras paulistanas de TV nos anos de 1950 é anterior ao uso do videoteipe, tentei inicialmente recuperá-la, bem como aos sentidos a ela atribuídos à época, em revistas especializadas e em colunas especializadas da grande imprensa. Em uma próxima etapa entrevistarei os produtores empresariais e os realizadores artísticos dos programas e buscarei por documentos antigos nos quais os pontos de vistas deles mesmos sobre o que faziam se tornem apreensíveis. Para encontrar colunas especializadas em televisão na grande imprensa, passei a frequentar assiduamente um arquivo público, o Arquivo do Estado de São Paulo, localizado na capital paulista. Iniciei então um périplo por todos os jornais ali arquivados cujas coleções continham exemplares dos anos iniciais da década de 1950, alternando-os ano a ano: Folha da Tarde, 1953; Diário Popular, 1954; O Estado de S.Paulo, 1955; Diário Popular (outra vez), 1956; Correio Paulistano, 1955; O Dia, 1956; Folha da Tarde (outra vez), 1957; Diário Popular (outra vez), 1958. Somente no Correio Paulistano de 1955 e em O Dia de 1956 encontrei a coluna que procurava, e com nomes 7

muito parecidos, que evocam sua condição comum de colunas mistas de rádio e televisão, com destaque maior para o rádio, nos primeiros tempos: “Ouça e Veja”, assinada por Darcy Carlos, no primeiro; e “Vendo e Ouvindo”, assinada por Newton Mendonça, no segundo. Mas encontrei publicada na Folha da Tarde e no Diário Popular a programação diária das TVs de São Paulo. E confundi com uma coluna o que não passava de uma página opinativa, alusiva às grandes realizações do rádio de 1954, publicada em O Estado de S.Paulo no dia 1o de janeiro de 1955, e que repercutia positivamente o I Festival da Velha Guarda. Essa confusão me levou às edições de O Estado de S.Paulo de 1954, em busca do início da publicação da suposta coluna, mas nelas só encontrei a programação diária da TV Record, em forma de anúncio comercial. A primeira lição da pesquisa foi, portanto, muito clara: televisão ainda não era assunto nacional naquele momento, e os primeiros órgãos de imprensa que a repercutiram mais sistematicamente foram aqueles de circulação tão local quanto o raio de alcance de suas emissões: o Correio Paulistano e O Dia. Decidi enfrentar a coleção de O Dia, em papel, e descobri que a coluna “Vendo e Ouvindo” tinha começado a ser publicada no dia 12 de maio de 1954, sendo inicialmente assinada por um compositor popular paulista, Denis Brean, a quem eu já conhecia de minha última pesquisa, descrita no livro Arrogantes, anônimos, subversivos – Interpretando o acordo e a discórdia na tradição autoral brasileira. Encontrar justamente um músico depois de haver chegado a acreditar que não encontraria sequer uma coluna sobre TV foi como chegar em casa depois de uma guerra, e aquele foi um dos dias mais felizes da minha pesquisa. A maior parte dos dados aos quais farei referência aqui foi colhida nessa coluna, que acompanhei até o fim da década de 1950. A partir de 14 de novembro de 1954 ela já passou a ser assinada por Newton Mendonça (que eu, por ato falho, fiquei um tempão confundindo com Newton Teixeira e achando que continuava em ótima companhia). E a partir de 1959 transformou-se em simples transcrição de informativos produzidos pelas próprias emissoras, sendo assinada por Silva Neves. Outros dados foram obtidos nas páginas da revista O Cruzeiro e da Revista do Rádio, pesquisadas no Arquivo Edgard Leuenroth, que não dispõe das coleções completas, mas que possui um número razoável de edições para cada ano. Da primeira, consegui folhear as edições disponíveis de janeiro de 1954 até maio de 1958, antes que a coleção fosse toda ela enviada para microfilmagem. Da segunda, as edições disponíveis de 1950 a 1959. 8

Mas antes de dar início à apresentação dos dados colhidos nessas fontes, eu gostaria de fazer uma breve observação acerca das programações diárias das emissoras de TV publicadas nas edições do Diário Popular de 1954. Transcrevi as programações completas dos meses de setembro e outubro, quando a TV Tupi e a TV Record entravam no ar às 18:30 e a TV Paulista às 19:40, e percebi que havia uma certa uniformidade nas grades das três emissoras, com programas voltados para o público feminino ou infantil nas primeiras horas, esporte logo em seguida, telejornalismo e humorismo na sequência, cabendo aos programas teatrais e musicais os horários nobres da grade. A maior parte dos programas musicais já tinha nome, como “Astros e ritmos” e “Astros e estrelas” que as TVs Paulista e Record exibiam, respectivamente, no mesmo horário das 21 horas; outros porém eram apenas designados por seu conteúdo, como “Recitais”, “Solistas” e “Coral e quarteto”, exibidos pela TV Paulista; outros ainda eram designados diretamente pelo nome dos artistas que neles se apresentavam, como “Conjunto Hawai” e “André Penazzi”, na Paulista, “Luis Vieira”, “” e “Tia Amélia”, na Record. Sua profusão é evidente. Entretanto, diluídos assim na grade completa da programação das emissoras, seu volume não impressiona tanto quanto o faz na programação divulgada comercialmente pela TV Record no Estadão, também em 1954, pois ali não se trata da grade inteira, mas apenas dos programas que a emissora queria destacar. Isso nos leva a crer que, além de ser quantitativamente relevante na programação diária das emissoras, a música era um produto qualitativamente valorizado pelos produtores, uma vez que os programas musicais pareciam ser divulgados com mais frequência que os outros, impressão esta que só se reforçou ao longo da leitura da coluna “Vendo e Ouvindo”, do jornal O Dia, sobretudo depois que se transformou em pura transcrição de informativos enviados pelas emissoras. Os artistas destacados nos anúncios da Record no Estadão nos primeiros 20 dias de 1954 foram, nesta ordem, , Elizeth Cardoso, Luiz Vieira, Alvarenga e Ranchinho, Elza Laranjeira, Alfredo Simoney, Trio Nagô, Orquestra Cassino de Sevilha, Isaurinha Garcia, Aracy de Almeida, Henrique Simonetti, Vagalumes do Luar, Mestre Durva e suas Pastoras, Moacyr da Batucada, André Penazzi e Heitor dos Prazeres e sua Escola de Samba. Não é possível saber agora se sua valorização pela emissora era sinal de um investimento estatutário em qualidade ou de um investimento mercadológico em audiência. Não é possível sequer saber se naquele momento se atribuía ou não a mesma qualidade que hoje atribuímos ou não a esses artistas, muito menos imaginar que 9

qualidade artística e qualidade comercial já estivessem tão dissociadas quanto acabariam ficando depois da “institucionalização” da MPB. Anunciantes e produtores não pareciam de fato fazer essa distinção, já que aos primeiros era permitido incluir seu nome nos próprios nomes dos programas que patrocinavam, por mais valorizados que fossem os cantores que neles se apresentassem: Ângela Maria em 1956, na TV Paulista, e Maysa em 1959, na TV Record, por exemplo, tiveram seus respectivos programas exclusivos intitulados simplesmente de “Espetáculos Piraquê”. Mais do que isso, muitos programas pertenciam aos anunciantes, e não às emissoras, daí haver programas com o mesmo nome em emissoras diferentes, e há indícios de que muitas vezes era o próprio anunciante quem contratava os artistas para os espetáculos que patrocinava: Virgínia Lane, por exemplo, segundo notícia de 1957, estaria sendo contratada pela Philco para aparecer no programa “Atrações Pirani-Philco”, que ia ao ar pela TV Tupi. Os dados colhidos na coluna “Vendo e Ouvindo” foram sistematizados primeiramente por emissora, por meio da transcrição o mais completa possível das informações em seu estado bruto, digamos assim. Elaborei em seguida uma ficha para cada ano de cada emissora, na qual anotei os nomes de todos os programas mencionados e dos músicos deles participantes, bem como os nomes dos músicos citados como contratados ou em temporada na emissora naquele ano, distinguindo entre eles os nacionais e os estrangeiros. E a primeira impressão do resultado, causada pela análise das fichas correspondentes ao ano de 1954, é falsamente tranquilizadora: enquanto a TV Tupi pode ser classificada como elitista, priorizando de forma quase exclusiva o canto lírico, a música erudita e o balé, a TV Record se mostra nacional e popular, dando espaço para variadas formas de música brasileira, desde o que na época se designava como suas manifestações folclóricas até o que começava a ser construído pela turma da Velha Guarda como MPB, incluindo expressões instrumentais da mesma natureza. As operetas da TV Tupi eram anunciadas diretamente por seus nomes, e, entre maio e julho de 1954, foram mencionadas “Alvorada de Amor”, “Scunizza”, “Amores de Príncipe”, “A Jurity” e “Última Valsa”. A emissora tinha um “cast especializado”, no dizer de Denis Brean, liderado por Pedro Celestino, irmão de Vicente Celestino, do qual foram citados Tânia Amaral, Tercina Sarraceni, João Monteiro, Arnaldo Pescuma, Romeu Feres, Nancy Louzã Miranda, Vera Helena, Amadeu Celestino, Aida Mar e Maria da Glória,. Da opereta “Jurity” participaram, além de alguns desses nomes, outros artistas ainda: Mário Tupinambá, Astrogildo Filho, Nelson Novais, Araken Saldanha, 10

Aníbal de Castro, Domitília Gomes da Silva, Clenira Michel e Neili Oliveira. A parte musical estava a cargo do maestro Aldo Petrioli, mas não se diz se nesses programas ele regia uma das três orquestras da emissora ou outro conjunto menor de músicos. O maestro Aldo Petrioli era também diretor musical do programa “Grandes Momentos Líricos”, que apresentava, segundo a coluna, “condensações de grandes óperas”, provavelmente as árias mais famosas. Estreou em junho de 1954 e até novembro daquele ano já tinham sido anunciadas as apresentações de “Madame Buterfly”, “La Traviata”, “Cavaleria Rusticana”, “La Bohéme” e “Lúcia de Lammermoor”. Do elenco, são citados Nancy Louzã Miranda, Nino Valsanni, Geraldo Castelar e José Parisi, além das cantoras Egle Bittencout, em “Cavaleria Rusticana”, Clélia Simone e Tereza Vieira, em “La Bohéme”. Havia ainda o programa “Música e Fantasia”, exibido quinzenalmente, que reunia música clássica e que a coluna anunciava contar ora com o maestro Rafael Puglieri, ora com o maestro Souza Lima à frente de uma orquestra de 70 figuras. Em sua 36a edição, comentada por Chico Vizzoni em reportagem na revista O Cruzeiro de 30 de abril de 1954, a orquestra contara com 80 figuras, sob regência de Souza Lima e com Stela Schwartz ao piano, e apresentara “Um americano em ”, de Gershwin, com a participação de um grupo de 30 bailarinos, entre os quais alguns elementos do Balé do IV Centenário. O custo de cada programa, segundo Vizzoni, alcançava a “razoável fortuna de 200 mil cruzeiros”. A produção era de Theophilo de Barros Filho. O patrocínio, do Grupo Industrial Pignatari. E havia público presente ao auditório. Sua “tempestade de palmas”, no “final apoteótico”, constituiu, nas palavras do redator da revista, “merecido prêmio à iniciativa do Sumaré nessa audição de magnitude e bom-gosto”. Como se não bastasse tudo isso, os homens do Sumaré transmitiram também pelas telas da Tupi naquele ano de 1954 um Concerto Lírico Sinfônico com Orquestra e Coral da Municipalidade. Havia também programas populares na Tupi, e eu transcrevi na ficha de 1954 aqueles nos quais se noticiou ter havido apresentação musical: “Desfile de Melodias Jardim”, “Clube dos Artistas”, “Palhinha na TV” e “Feira de Amostras”. No primeiro, diz a coluna, apresentavam-se os “cantores do Sumaré”, ou os “intérpretes populares” da TV Tupi. O Cruzeiro, em 12 de junho de 1954, por Chico Vizzoni, comenta esse programa, que já completara um ano de exibição e que era composto de “belas músicas e belos bailados”, que giravam em torno de sucessivos temas, “nascidos da inspiração do produtor Ribeiro 11

Filho”. Os participantes de um desses programas aparecem nas fotos, e são eles Clélia Simone, Heleninha Silveira, Nino Valsanni, Vadeco, o Trio Tupi (Maria de Lurdes, Jeanete e Maria da Glória), Wilma Bentivegna e Astrogildo Filho. Vê-se assim que o “cast” lírico não era tão especializado assim, porque muitos dos nomes ali incluídos encontram-se aqui associados a repertório popular. Desse “Desfile de Melodias Jardim” participavam também artistas circenses, segundo O Cruzeiro, e isso obedecia a uma espécie de padrão dos programas mais populares do período, nos quais a música e a dança estavam associadas com o humorismo. “Clube dos Artistas” era um programa de Aírton Rodrigues e nele se apresentavam não apenas cantores do Sumaré, mas também cantores convidados, tendo sido citados pela coluna, ao longo do ano de 1954, Carlos Lombardi (cantor de tangos), Mirian de Oliveira (cantora da gravadora Copacabana), Isaurinha Garcia, João Dias, o Coro da Banda Americana (que a Rádio Bandeirantes trouxera dos EUA para os festejos do IV Centenário), Nilceia Rogers, Romeu Feres (“o barítono Roquette-Pinto da música fina do nosso rádio”), Juanita Cavalcanti (da Rádio Gazeta), Nestor Amaral e Vadico, Dircinha Costa (da Rádio Bandeirantes), Lia Roberti e Célio de Barros (da Rádio Record), além de Dolores Barrios, intérprete de tangos e de canções espanholas, e do cantor espanhol Manuel Carlos Carrion. Em “Palhinha na TV”, noticiaram-se na coluna as apresentações do cantor de música espanhola Oscar de La Torre e o Trio Alonso (outro cartaz da música espanhola, contratado para uma temporada pela Rádio Bandeirantes); em “Feira de Amostras”, a apresentação da cantora norte-americana Judith Kenez (que estava atuando no “snak-bar” Clube 550). Sobre “Feira de Amostras”, diz Chico Vizzoni, em O Cruzeiro de 3 de julho de 1954, compor-se sempre de nove “sketches” de humorismo e três números musicais. A participação do maestro Elcio Alvares parece que era constante, e pode-se ver a cantora Wilma Bentivegna em uma foto. São citados ainda na coluna como tendo se apresentado na TV Tupi em 1954 o intérprete italiano Roberto Murolo (“cantor exclusivo de Martini&Rossi”), os cantores portugueses Raul Motta e Helena Gonçalo e o cantor chileno Antonio Prieto, este último no programa “Antarctica no Mundo dos Sons”, que deixei para comentar por último porque parece ser representativo do modo como a programação musical popular da TV Tupi procurava pautar-se, em seus melhores momentos, em critérios eruditos de qualidade, e um indício disso aparece quando Chico Vizzoni, em O Cruzeiro de 16 de janeiro de 1954, ao 12

comentar o trabalho dos maestros da TV Tupi, diz particularmente de Georges Henry, o responsável pela parte musical desse programa: ele “veste com traje de gala, põe sobrecasaca no samba do povaréu”. “No mundo dos sons” contava com um jazz sinfônico de 90 figuras (formado por uma das orquestras da emissora, acrescida de mais 40 músicos, contratados pelo patrocinador do programa, a Companhia Antarctica Paulista) e mais o Coral das Estrelas (formado por elementos do “cast” da emissora e mais 10 cantores também contratados pelo patrocinador, num total de 36 vozes). Os arranjos eram do maestro Luiz de Arruda Pais, que no ano seguinte, com a saída de George Henry, assumiria a regência. Nele se apresentaram, ao longo de 1954, e foram noticiados pela coluna, vários cantores líricos do Sumaré (Nancy Louzã Miranda, Nino Valsanni, Marita Luize, Geraldo Castellar e Túlio de Lemos), o maestro Gaya e o maestro Souza Lima, o cantor de tango Carlos Lombardi, a intérprete brasileira, então radicada nos EUA, Delora Bueno, e, finalmente, Stelinha Egg (cantora de “músicas folclóricas”), Os Índios Tabajaras e Pixinguinha (que estava em São Paulo para participar do I Festival da Velha Guarda da Rádio Record e se apresentou nesse programa da TV Tupi como convidado). Os nomes dos programas musicais exibidos pela TV Record em 1954 não impressionam tanto quanto os nomes dos artistas que eram seus titulares: mencionando apenas os que foram citados pela coluna, havia os programas semanais de Ary Barroso, Inezita Barroso, e Elizeth Cardoso, e havia também Ataulfo Alves e sua Escola de Samba, Jackson do Pandeiro, Jacob do Bandolim e Nelson Gonçalves, em temporadas. Havia o programa semanal “O fado e o samba”, com Cidália Meireles representando o fado e Isaurinha Garcia, o samba; o programa semanal “Viva São João”, com Alvarenga e Ranchinho; o programa semanal “Gente do Sereno” (em que se noticia apresentando uma dupla de repentistas pernambucanos); e um programa semanal com Sílvio Mazzuca e sua orquestra de danças. Havia o mais popular de todos eles, que seguia à risca o modelo de um programa semelhante da Rádio Record: “TV visita seu bairro”. Mas nele se apresentava o “cast” da Maior, como era conhecida a Rádio Record naquele tempo, e esse era um “cast” especializado na chamada “faixa verde-amarela da nossa música”, no dizer de Denis Brean, que cita como participantes desse programa ao longo de 1954 Isaurinha Garcia, Elizeth Cardoso, Araci de Almeida, Carlos Galhardo, Luiz Vieira, Jacob do Bandolim, Mário Zan, Conjunto Regional e Conjunto de Baião da Rádio Record, além dos menos 13

conhecidos cantores da casa Oswaldo Rodrigues, Elza Laranjeira, Carlos Galindo, Neide Fraga, Roberto Amaral, Roberto Villar, Esterzinha de Souza, Edair Badaró e Mauricy Moura. Havia também programas aparentemente mais pretensiosos, como “TV de Concertos” e “Improvisos G.E.”, mas sua divulgação foi mínima, comparecendo à coluna em apenas uma ocasião: o primeiro quando transmitiu uma apresentação da Orquestra Sinfônica Brasileira, sob a regência do maestro , e o segundo quando contou com a presença do pianista Tito Fuentes. No gênero, teve mais divulgação um terceiro programa, apresentado durante uma temporada de três meses por Tia Amélia, “a pianista de Goiás que é uma grande cultora do melhor estilo de Ernesto Nazareth”. Por outro lado, programas populares como “Astros e Estrelas” e “Grandes Espetáculos Café Caboclo e União” também só compareceram à coluna em pouquíssimas ocasiões, o primeiro quando recebeu Jacob do Bandolim, e o segundo quando recebeu Sivuca e Rosália Meireles, e um outro ainda apenas teve seu nome publicado para anunciar que ia ao ar naquele dia, como foi o caso de “Risos e Melodias”. Isso, aliado aos dados relativos à programação destacada pela TV Record em sua propaganda paga no Estadão, pode significar que o investimento maior da emissora, tanto financeiro quanto simbólico, era de fato na “linha verde-amarela”, dentro da qual se produzia na Rádio, naquele ano, o I Festival da Velha Guarda de Almirante, e dentro da qual faz sentido também uma iniciativa paralela da emissora, da qual participou a própria TV: a transmissão das Festas Juninas promovidas em conjunto com a Comissão do IV Centenário, em programação que incluiria a apresentação de repentistas e desafiadores do “folclore do Norte”, por Almirante, e o II Campeonato de Músicas Sertanejas. Infelizmente, essa clareza toda começa a se desvanecer logo nas fichas seguintes, em parte, desconfio eu, porque Denis Brean saiu da coluna, entrando em seu lugar uma pessoa que, segundo os critérios de valor da época, não teria escrúpulos de dizer, em 26 de outubro de 1957, que tinha uma “sala” na Record (e de revelar, em 4 de maio de 1958, que Mário Júlio, cronista das coisas de São Paulo da Revista do Rádio, era seu colega na mesma “sala”). Isso certamente contaminou a minha amostra, tornando-a muito mais completa para essa emissora do que para as outras, e pode ter contribuído para que somente nela fosse possível identificar uma linha de continuidade em relação ao que vinha antes. De qualquer forma, a programação mais elitista da TV Tupi tinha de fato saído do ar ainda em 1954, ou viria a fazê-lo na sequência. 14

O encerramento das apresentações de operetas pela Tupi tinha sido anunciado em julho de 1954: tratava-se já àquela época de uma segunda série de apresentações, que se encerrava em razão de compromissos artísticos de seu diretor-geral, Pedro Celestino, no Rio de Janeiro. Não encontrei a notícia do encerramento das apresentações de “Grandes Momentos Líricos”, o que me levou a fazer a conjectura romântica de que se tenha dado de forma abrupta e dramática, dada que a última referência ao programa, datada de novembro de 1954, dava conta de que não fora ao ar, na terça-feira anterior, porque o maestro Aldo Petrioli e o barítono Geraldo Castellar tinham tido “uma rusga muito feia”. O encerramento das apresentações de “Música e fantasia” só seria noticiado em 1o de janeiro de 1957, mas a única nota sobre ele só voltaria a ser publicada pela coluna em 1956, para informar a participação do maestro Eduardo de Guarnieri na regência. Entretanto, uma reportagem de Chico Vizzoni publicada em O Cruzeiro de 29 de dezembro de 1956, às vésperas da notícia do encerramento de suas apresentações, mostra que sofrera alterações importantes em seu conteúdo: era agora um programa de homenagem aos diversos países do mundo, e, tendo já homenageado a França, a Itália e os Estados Unidos, homenageara também o Paraguai, aproveitando que Samuel Aguayo, autor de “Noches del Paraguay” e “Recuerdos de Ipacaray”, estava em São Paulo. Aguayo participara do programa como convidado, “interpretando pessoalmente as ‘guarânias’ doces e cheias de nostalgia da música paraguaia”. “Antarctica no mundo dos sons” continuava presente na ficha de 1955 da Tupi, mas por razões nada musicais: nesse ano, enquanto Georges Henry se encontrava em viagem à França, os membros da orquestra e do Coral das Estrelas redigiram abaixo-assinado solicitando a efetivação do arranjador Luis de Arruda Pais em seu lugar; o maestro francês foi em seguida desligado da própria direção musical da emissora, sendo substituído nessa função pelo maestro Ítalo Izzo; e o colunista, depois de haver dado sobre o programa apenas esse tipo de notícia, mostrando-se inclusive satisfeito com o rumo dos acontecimentos que noticiava, fez, no final do ano, um único comentário sobre o programa em si, para dizer que já não era nem a sombra do que fora antes. Em 1955 a programação popular da Tupi, ao contrário, permaneceu na grade, ainda que com outros nomes, sendo citados dois novos programas produzidos por Aírton Rodrigues (“Encontro entre amigos” e “Os melhores da semana”, este último também apresentado na Rádio Tupi); “Grêmio Juvenil” (que a Revista do Rádio explicaria em 1956 tratar-se de uma espécie de “curso secundário” do “Clube do Papai Noel”, que Homero Silva 15

apresentava havia 18 anos na Rádio Tupi e que revelava jovens talentos em vários setores da atividade artística); “Big Show” (programa em que, segundo O Cruzeiro, casais disputavam provas, recebendo prêmios em dinheiro, o público participava e “cartazes de relevo do Sumaré” se exibiam, “abrilhantando esses divertimentos”, sendo possível ver em uma foto que um desses cartazes tinha sido Cauby Peixoto); e um programa fortemente inspirado no teatro de revistas, que daria o tom da programação musical da emissora, recebendo dali por diante, com variados nomes ao longo da década, os maiores investimentos financeiros e simbólicos: “Grande Revista S. Luis”, que O Cruzeiro descreve como “uma sucessão de cenas humorísticas, números musicais e variedades”, com a participação de “expressivos nomes do teatro, do canto e da comédia, além dos elementos do ‘cast’ de comediantes e cantores do Sumaré”, sendo citada com destaque a vedete Virgínia Lane, e mencionados os nomes de Leny Eversong e de Sílvio Caldas entre os que já tinham participado, sendo possível ver, em uma foto, que até mesmo Tânia Amaral e Arnaldo Pescuma já tinham apresentando ali um trecho de opereta. As temporadas internacionais noticiadas pela coluna na Tupi em 1955 foram restritas a um cançonetista italiano, Tak Gianni, e à fadista portuguesa Amália Rodrigues. E o único nome de artista brasileira citado, para além dos que já o foram ao longo da descrição da programação, foi o de Lolita Rodrigues, que, ao lado de Erlon Chaves, interpretara “Boneca de Piche” em um programa transmitido em conjunto pelas TVs Tupi e Record. O título do programa, que reunia assim tão intimamente as duas emissoras que eu tinha imaginado tão opostas, até parece uma indireta: “Use a cabeça”. Não vou dar conta de desfilar aqui todos os programas da Record de 1955, e é bom que eu passe agora a uma viagem mais panorâmica sobre as fichas para tornar possível a redução deste texto às dimensões esperadas. Mas é importante registrar que pelo menos 10 dos 20 títulos de programas da Record mencionados nesse ano podem ser de alguma forma associados à “linha verde-amarela” do ano anterior: “Carnaval Kelson’s” e “Carnaval Duchen” (que foram levados ao ar, respectivamente, no início e no final do ano, e que, com outros nomes, foram transmitidos ao longo de toda a década por ocasião do carnaval), “Canta Inezita Barroso”, “II Festival da Velha Guarda”, “A Noite dos Choristas” (organizado por Jacob do Bandolim), “Marlene, meu bem” (produzido por Mário Lago para a cantora e seu marido Delfino), “Concerto de Música Popular Brasileira” (organizado por Radamés Gnatali, Paulo Tapajós e Gabriel Migliori), “O fado e o samba” (ainda com Cidália e Isaurinha), “Retrato Musical do Brasil” (de melodias 16

folclóricas, sob a responsabilidade dos maestros Gabriel Migliori e Zico Mazagão) e “Feitiço da Vila” (com Sílvio Caldas e Elizeth Cardoso). As temporadas internacionais noticiadas pela coluna na Record em 1955 se limitaram a quatro: a cantora norte-americana Olga James, a cantora francesa Jacqueline François, a cantora italiana Paola Silvi e o barítono colombiano Carlos Ramires. E, avançando na linha de continuidade que posteriormente seria traçada entre a Velha Guarda e a Bossa Nova, passaram a ter programas semanais na TV Record dois cantores cujo papel intermediário seria ressaltado depois: Dick Farney e Lúcio Alves, compensando o desaparecimento do programa de Ary Barroso. A ficha da TV Record de 1955 apresenta, por outro lado, uma mancha de informações extremamente densa, concentrada em torno de um dos programas novos, o “Big Show Peixe”, semelhante à que aparecera na ficha da emissora no ano anterior em torno de “TV visita seu bairro”, e que viria a ser uma marca de suas fichas até o final da década. Creio que isso significa que desses programas, e de outros que lhes foram sucedendo (“Sucessos Arno”, em 1956 e 1957; “Espetáculos Mullard-Sensação”, em 1957 e 1958; “Astros do Disco”, em 1958 e 1959, e “Martini Bar”, nesse último ano), participavam muitos artistas, entre os da casa e os convidados, o que tornava a informação sobre eles necessariamente mais detalhada que aquela relativa aos programas que tinham apenas um titular, e que eram talvez a tônica da Record. Ao longo dos anos, acompanhados pela Orquestra da Record regida por Gabriel Migliori e Hervê Cordovil (“Sucessos Arno”), Sílvio Mazzuca e Ciro Pereira (“Astros do Disco”) ou Renato de Oliveira (“Martini Bar”), apresentaram-se nesses três programas artistas como Carmélia Alves, Jorge Goulart, Nora Ney, Elizeth Cardoso, Dolores Duran, Ciro Monteiro, Blecaute, Inezita Barroso, Maysa, Ângela Maria, Doris Monteiro, Carminha Mascarenhas, Agostinho dos Santos, Conjunto Farroupilha, Nelson Gonçalves, Marlene e Carlos Galhardo, além de cantores do “cast” da emissora menos conhecidos hoje em dia, como Norma Avian, Elza Laranjeira, Neide Fraga, Dircinha Costa, Bianca Bellini, Cinderela, Morgana e Wilma Valéria e os cantores Oswaldo Rodrigues, Roberto Amaral, Roberto Villar, Oscar Ferreira e Antonio Martins. Entre 1956 e 1957, os programas que tinham apenas um titular também aumentaram na Record. Em 1956, veio Emilinha Borba, logo substituída por Isaurinha Garcia, em programa que tinha acompanhamento da orquestra da Record regida por Hervê Cordovil; em 1957, veio Ângela Maria, roubada a preço de ouro da concorrente TV Paulista, 17

acompanhada em seu programa pela mesma orquestra, regida pelo maestro Gabriel Migliori; Maysa, acompanhada pela mesma orquestra, regida pelo maestro Rafael Pugliesi, contratado a pedido da cantora por ter feito os arranjos de seu LP; e o Conjunto Farroupilha, que se fazia acompanhar em seus programas pelo maestro Ciro Pereira. Em 1958, surgem programas exclusivos de cantores do próprio “cast”, entre eles Elza Laranjeira, acompanhada de orquestra regida por Ciro Pereira, e Norma Avian, que a substituiu em circunstância de doença e acabou ganhando programa próprio quando de sua volta. Em 1959, um programa reunia Elza Laranjeira, Dircinha Costa, Neide Fraga e Bianca Bellini, intitulado “Quando cantam as estrelas”, e a cantora Morgana tinha um programa exclusivo. Mas creio que uma mudança mais significativa na programação musical da Record, para além da sucessão interminável de novos títulos de programas e de variações quase infinitas dentro dos mesmos gêneros, talvez possa começar a ser identificada em 1957, quando, ao mesmo tempo em que interrompia a exibição dos “Espetáculos Mullard- Sensação” por cinco domingos seguidos para transmitir o “acontecimento lírico do ano”, isto é, as apresentações de ópera da temporada lírica do Teatro Municipal de São Paulo, a TV Record passou a veicular semanalmente o programa “Noites de Rock and Roll”, entregando-o à responsabilidade musical de Robledo e seu conjunto. Ou seja, desferiu um duplo golpe em sua linha “verde-amarela”, muito embora compensado pelo lançamento, no mesmo ano, do programa “Turma do Sereno”, com Paulo Tapajós à frente da Velha Guarda. No caso do rock and roll, o golpe foi mais duro, pois ainda em 1957 a TV Record organizou o “Campeonato de Rock and Roll”, no horário do programa de Robledo e contando com sua participação e a da Orquestra de Luis César: os casais disputavam quem dançava melhor o novo ritmo, e a dupla vencedora ganhava como prêmio uma viagem aos EUA. E trouxe dos EUA, para se apresentar no Teatro de Cultura Artística e para participar do encerramento do referido campeonato, o Rock and Roll Fantasy, grupo composto por “35 figuras dessa música alucinante”. No ano seguinte, organizou o Campeonato Panamericano de Rock and Roll, culminando-o com a presença diante das câmeras de Bill Halley e seus Cometas, que se apresentaram também em espetáculos no Teatro Paramount. Outro sinal da inflexão internacionalista da programação musical da TV Record foi dado em 1957, muito embora a contratação de Louis Armstrong para uma temporada de quatro 18

dias em São Paulo, no mês de outubro daquele ano, com shows no Teatro Paramount transmitidos diretamente pela televisão, possa ter sido uma resposta competitiva à iniciativa da concorrente TV Paulista, que, no ano anterior, no mês de maio, inovara em relação às temporadas de artistas portugueses, italianos, espanhóis e latino-americanos que aparentemente predominavam até então em todas as emissoras, trazendo simplesmente Edith Piaff, e, o que é pior, trazendo-a de novo, naquele mesmo ano de 1957, entre maio e junho. A Tupi dera sua resposta ainda em 1956, trazendo Dizzy Gillespie e sua orquestra para uma temporada de três dias “diante das câmeras da TV-3 e microfones da Tupi-Difusora”. E a Record fazia-o agora, ainda que com o cuidado de não ferir demais sua mais pura tradição popular, isto é, organizando, no Parque do Ibirapuera e a preços módicos, um espetáculo para os que não podiam pagar os altos preços dos ingressos no Teatro Paramount e onde o grande Louis Armstrong se apresentou ao lado da não menor Ângela Maria, num dos momentos que me pareceram dos mais emocionantes dessa história toda. A inflexão internacionalista da TV Record não se revelaria claramente em 1958, mas o faria da maneira a mais cabal possível em 1959. Nesse último ano, até o final de agosto, foram noticiadas as temporadas internacionais de Roy Hamilton, Nat “King” Cole, Damita Jô, Teddy Randazzo (que, apesar do nome italiano, apressava-se a esclarecer o colunista, era um jovem intérprete norte-americano que tinha tudo para enlouquecer os “teenagers”), Yma Sumac, Doris e Rossie, The Jubilee Singers, Giácomo Rondinella, Sarah Vaughan, Renato Carosone e seu conjunto, Marlene Dietrich e Domenico Modugno. E já se anunciavam as próximas temporadas de Brenda Lee e Paul Anka. Mas houve mais do que isso em 1959: a TV Record adquiriu os direitos de transmissão do “Perry Como Show”, programa da NBC norte-americana que também era exibido na Venezuela, em Cuba e na Itália, e no qual se apresentavam, segundo o colunista “os maiores cantores e artistas do show business norte-americano”. O programa foi ao ar pela primeira vez no mês de junho, mas sua exibição passou por uma série de problemas que revelam o pioneirismo da iniciativa: depois do “trailler” do primeiro dia, conforme o colunista, a “verdadeira” estreia ocorreria na segunda apresentação, a primeira a contar com legendas em português; e já estávamos em julho quando o colunista revelou que o programa sofria muitas interrupções para a exibição da publicidade do patrocinador, que isso decorria das rígidas cláusulas do contrato, e que agora não aconteceria mais, e o programa teria “o deslanche vertiginoso das audições milionárias de entretenimento”. 19

Saiu do ar em agosto, dando espaço no mesmo horário para “Dick Farney Show”, programa em que o titular homenageava um compositor a cada domingo, havendo notícia de que Antonio Carlos Jobim e João de Barro foram os dois primeiros homenageados. Vitória da “linha verde-amarela”? Não, pois, no mesmo dia em que se noticia o encerramento das apresentações de “Perry Como Show”, noticia-se a compra dos direitos de exibição de um outro programa norte-americano: o “Nat ‘King’ Cole Show”, que, pelo menos até o final de agosto de 1959, parecia estar funcionando muito bem, tendo já apresentado Sammy Davis Jr. e Ella Fitzgerald. Ao que tudo indica, a programação musical da TV Record tinha adquirido o caráter livre e diversificado que chamaria a atenção de todos na década seguinte, quando exibia, sem qualquer drama de consciência, dois programas cujos participantes digladiavam entre si por conta, entre outras coisas, do verde-amarelismo de alguns deles: o “Fino da Bossa” e a “Jovem Guarda”. Mas isso já é outra história, e neste momento gostaria apenas de acirrar a impressão da liberdade e da diversidade da programação musical da emissora no final da década de 1950, registrando que em 1959 foi para o ar um programa novo que logo passou a disputar com “Astros do Disco” e “Martini Bar” o lugar da mancha mais densa de informações da minha ficha: tratava-se de “Revista Musical Cometa”, com o qual a emissora aderia ao gênero que passara a ser o mais cultivado por sua concorrente TV Tupi, mostrando mais uma vez para mim que toda tentativa de uma classificação binária das emissoras é cega aos fatos. A confusão é tanta que foi justamente por ter participado de “Revista Musical Cometa” que João Gilberto foi citado pela primeira vez pelo colunista. As notícias sobre a programação musical da TV Tupi entre 1956 e 1959 são muito escassas, talvez porque a prioridade da Tupi já fosse, desde então, a dramaturgia, talvez porque o colunista tivesse uma “sala” na Record. As manchas nas fichas se dão em torno dos programas que sucederam a “Revista S. Luis”, de 1955, e que dela herdaram o tom “alegre, humorístico, musical e malicioso” que lhe fora atribuído por Chico Vizzoni na ocasião: em 1956, “Hora de Atrações Pirani”, que contava com Virgínia Lane, comediantes, a orquestra da Tupi, dirigida por Élcio Álvares, e os cantores Salomé Parísio, Artur Murad, Clélia Simone, Carmen Déa e Lolita Rodrigues em apresentações esporádicas; em 1957, “Atrações Pirani-Philco”, para o qual a Philco contratou Virgínia Lane em algum momento e no qual são noticiadas as participações da orquestra da Tupi e dos cantores Maby Daniel, Leny Caldeira, Artur Murad e Edson Lopes, além de atrações 20

internacionais como o cantor italiano Nuzzo Salonia e a orquestra espanhola Suspiros de Espanha; ainda nesse ano, “Folias Philips 1957”, produção de Abelardo Figueiredo, que, segundo a Revista do Rádio, teve como título de uma de suas apresentações “Madrugadas Cariocas”, cujo tema (o contraste entre a pobreza da favela e o esplendor ofuscante de Copacabana) foi desenvolvido por Consuelo Leandro, Doris Monteiro, Lolita Rodrigues e Francisco Egídio; em 1958, “Grandes Atrações Pirani”, em que se noticia a participação esporádica de Cauby Peixoto, Linda Batista, Estelita Araya, entre outros, além de atrações internacionais representadas por uma orquestra feminina cubana e uns bailarinos espanhóis; e “Folias Philips 1958”, com a participação anunciada de Wilza Carla, e do qual foram divulgados dois títulos: “Saudades da Bahia”, com Dorival Caymmi e o cantor Carlos José, e “Rhapsody in blue”, com o pianista Salinas e a cantora chilena Madalene de Paula interpretando obras de George Gershwin. Os programas populares de Aírton Rodrigues na TV Tupi merecem destaque. Em 1957, por exemplo, noticia-se que “Almoçando com as estrelas” completara um ano de exibição e receberia como convidados Cyl Farney, Angelita Martinez, Fada Santoro e Mara Rúbia; no mesmo ano, noticia-se o lançamento de “Campeões do Disco”, que ao longo de 1957 e 1958 contou com as participações noticiadas de Trio Irakitan, Nelson Gonçalves, Trio de Ouro, Dolores Duran e do cantor cubano Bienvenido Granda. Por outro lado, com exceção de Dizzie Gillespie e sua orquestra, trazidos em agosto de 1956, e da cantora francesa Lady Patachou, todas as temporadas internacionais da Tupi anunciadas nesse período foram de artistas portugueses, italianos, espanhóis ou latino- americanos, e não foram muitas: Nicola Paone e Teddy Reno, em 1956; Pepe de Lucena, Nuzzo Salonia e Bienvenido Granda, em 1957; Amália Rodriques e Abílio Herlander, em 1958. Os dados sobre o ano de 1959 são particularmente raros para a TV Tupi. A coluna de O Dia, que nesse ano publicava diretamente os informativos das “Unidas” e da “OVC”, não publicava, até agosto, os informativos das “Associadas”. E não consegui chegar a 1959 na pesquisa em O Cruzeiro, dado que a coleção foi enviada à microfilmagem no meio do meu trabalho. Na edição de 16 de junho de 1956 dessa revista, eu ficara sabendo que, por pouco tempo, durante aquele ano, Inezita Barroso se transferira para a TV Tupi, o que lhe valera uma reportagem de quatro páginas coloridas. Em diferentes edições de 1957 e de 1958 vejo Chico Vizzoni divulgando e enaltecendo os nomes de algumas pratas da casa: Heleninha Silveira, Dirceu Matos, Léo Romano e Romeu Feres (16 de fevereiro de 21

1957), Almir Ribeiro, que se apresentava no programa “Spot-light”, produção de Abelardo Figueiredo, com arranjos musicais de Luis Arruda Paes (27 de julho de 1957) e Laila Cury (26 de abril de 1958). E vejo também, na edição de 1o de janeiro de 1957, uma reportagem sobre o programa “Grande Gala Sudan” em que percebo ainda vivas algumas das antigas pretensões de requinte da emissora, muito embora muito mais bem expressas nesse momento pelo balé que pela música. Em termos musicais, a sensação que fica é que ao final da década a Tupi se transformara na “prima pobre” da Record, limitando-se a trabalhar na faixa de público de seu próprio “cast” – que não era mais especializado em música lírica, que não era e nunca fora especializado na faixa “verde- amarelo”, e que talvez fosse popular naquele sentido que tanto líricos quanto “verde- amarelos” considerariam negativo, e que uma das últimas estreias na emissora anunciadas pela Revista do Rádio no período, Agnaldo Rayol, talvez possa simbolizar. Finalizada essa apresentação, gostaria de fazer algumas breves reflexões, fundadas nas primeiríssimas impressões dos dados de uma pesquisa que ainda está em andamento e que ainda se encontra, na verdade, parafraseando minha irmã Lúcia Helena, no “introito do prefácio”. As impressões que tive de investimentos estatutários em música foram muito tênues. A comparação entre a Tupi e a Record, aqui realizada, permite vislumbrar diferenças nos tipos de música em que cada uma dessas emissoras investiu preferencialmente ao longo do tempo, mas não permite afirmar, a não ser por interpretação de indícios muito fracos, que esse investimento foi de natureza estatutária. Tais indícios se encontram presentes nas reportagens em que Chico Vizzoni comenta para O Cruzeiro os programas “Música e Fantasia” e “Antarctica no mundo dos sons”, por exemplo, pois nelas é possível perceber que jornalista e emissora, para enaltecê-los, interpelavam um público que compartilhava com eles de uma hierarquia antiga de valores da qual a música erudita e a música popular orquestrada, que esses programas apresentavam, ocupavam o topo. Mas esse foi apenas um momento da Tupi, talvez o seu momento pioneiro, do qual a minha pesquisa só permitiu até agora vislumbrar o fim. Talvez o seu momento mais vivo, em termos de música. Depois, parece que a música perdeu o seu protagonismo nas telas da Tupi; deixou de brilhar, e passou a abrilhantar outros espetáculos. Ao mesmo tempo, caiu tão baixo na antiga hierarquia de valores antes compartilhada por jornalista e emissora que não se tornou mais possível qualquer investimento estatutário nela. 22

Eu fico me perguntando se haveria indícios de investimentos estatutários em música no material relativo à Record. E sempre chego à conclusão de que não. Percebo nesse material a operação de alguns mecanismos sutis de hierarquização dos artistas, que a emissora parecia acionar, entretanto, para valorizar todo o seu “cast”, e não apenas aqueles que, de um ponto de vista “verde-amarelo”, podiam ser considerados melhores que os outros. Ao destacar a programação musical na propaganda paga que veiculava no Estadão em 1954, por exemplo, não deixou de citar Alfredo Simoney ou Elza Laranjeira só porque tinha Ary Barroso e Aracy de Almeida para citar. E em 1959 estendeu para elementos menos consagrados de seu “cast” o acesso a um programa exclusivo, deferência que mesmo antes não oferecia com exclusividade aos representantes da faixa “verde-amarela”, mas aos cantores de maior público. Entretanto, Newton Mendonça, que provavelmente ecoava os pontos de vista da TV Record nas páginas do jornal O Dia, não deixava de traí-los, certamente sem o perceber, na medida em que punha em ação estruturas narrativas diferenciadas para referir-se aos altos e aos baixos membros desse “cast”, que a emissora, ao contrário, parecia querer valorizar por inteiro. Seus textos sobre os novos cantores que a emissora revelava, ou que contratava depois de revelados por outras emissoras, obedeciam a um esquema repetitivo em que a ênfase era posta muito mais no esforço pessoal despendido até ali pelo artista, em sua perseverança, às vezes até mesmo em sua humildade, para nisso fundar seu merecimento, fundando-o apenas secundariamente em seu valor artístico. No caso das cantoras novas, essa hierarquização se revelava por uma ênfase semelhante na beleza, na elegância e na simpatia das artistas, e apenas secundariamente na qualidade de sua voz ou na densidade de sua interpretação. Quase sempre os cantores menores do “cast” da emissora eram chamados de “rapazes” e as cantoras de “meninas”. Já os grandes nomes escapavam das estruturas pré-fabricadas de seu texto, e eram referidos pelas qualidades ímpares que o discurso social lhes atribuía: a “personalíssima”, o “caboclinho querido”. Denis Brean certamente participava dos investimentos estatutários que os compositores de música popular brasileira que tinham sido hegemônicos nas décadas de 1930 e 1940 faziam na década de 1950 na música que sempre haviam praticado, investimentos esses que estudei a fundo em minha já citada pesquisa anterior, e dos quais podem ser vistos como exemplo os esforços de Almirante. Assim é que também, para o caso da TV Record, o ano de 1954, por conta das referências hierarquizantes de Denis Brean no jornal O Dia à linha “verde-amarela” de sua programação, pode ser visto como aquele 23

em que tênues indícios de investimento estatutário em música podem ser encontrados, mas neste caso, ao contrário do que ocorria com Chico Vizzoni em O Cruzeiro, vindos de fora, e não de dentro da própria emissora. Caberia investigar com mais profundidade o sentido da opção anterior da Rádio Record pela chamada faixa “verde-amarela”, e, quem sabe, encontrar sentido semelhante nas práticas posteriores da própria TV, mas não há, no material coletado, discursos que permitam fazer qualquer conjectura sobre esse sentido, o que pode ser tomado provisoriamente como um sinal de que não se tratava, pelo menos naquele momento, de um investimento simbólico muito articulado. As referências à faixa “verde-amarela” evocam certamente a possibilidade alternativa, mas não excludente, de investimentos identitários nacionalistas. Mas sobre investimentos identitários eu entendo que devo ser ainda mais cautelosa do que já tenho sido. Não há qualquer indício da existência de um discurso articulado em torno da identidade nacional por parte dos cronistas lidos ou dos produtores empresariais e realizadores artísticos dos programas mencionados, com exceção, é claro, do que já foi dito sobre Denis Brean e Almirante, pois, como se sabe, a concorrência estatutária em que esses compositores estavam enredados dentro do campo ainda não totalmente autônomo da música popular brasileira tinha na questão nacional seu principal eixo de articulação. O que se vê, no caso da Record, é muito mais o uso da nacionalidade como diferença que valoriza a música da emissora no mercado das atrações e dos espetáculos, não importando muito se essa nacionalidade é a brasileira, com foi predominante na fase “verde-amarela” da programação ou no discurso sobre os “verde-amarelos” dos “cast” em qualquer tempo, ou se é outra qualquer, sobretudo a norte-americana, na fase de valorização do rock e das grandes atrações internacionais. Na Tupi, talvez nem isso possa ser detectado. Por outro lado, se nos esquecermos momentaneamente tanto das mitologias nacionais quanto das nacionalidades como estratégias, veremos que cada emissora, justamente porque se conectava apenas com o mercado, de um lado, e com a criação artística, de outro, acabou performatizando uma nação realisticamente heterogênea, que se expressava musicalmente das maneiras as mais diversas, inclusive nas operetas de origem napolitana, nas guarânias de origem paraguaia, nos repentes do Norte, no fado, no samba, no rock, e em tudo o mais que se podia ver e ouvir em suas telas. O mesmo vale, por enquanto, para os investimentos identitários étnicos, etários e de gênero. Dos primeiros não vi qualquer sinal: a diferença étnica não aparece sequer como recurso de valorização das músicas no mercado das atrações e dos espetáculos, a não ser 24

excepcionalmente, e em dois momentos bem sugestivos: quando se trata de valorizar alguns artistas norte-americanos, chamando-os de “coloured”, por exemplo, ou quando essa qualificação, provavelmente emprestada do material de divulgação desses mesmos artistas, é atribuída a uma artista brasileira e carioca em temporada carnavalesca na TV Record. Já as referências etárias e de gênero parecem ter sido importantes na construção das grades de programação das emissoras desde o início, onde proliferavam programas infantis e femininos. De qualquer forma, só a etária acabou sendo utilizada como uma diferença para agregar valor a um tipo de música, curiosamente também vinda dos EUA: o rock and roll, cujos ídolos a TV Record trazia de longe especialmente para os “teenagers” brasileiros. Ora, se o material responde apenas fracamente às minhas perguntas, ele fala muito por si mesmo, impondo-me suas próprias questões. Gostaria de apresentar aqui uma delas, encerrando com isso a minha apresentação. Ela começou a se impor pelo lado negativo: fui-me irritando com o modo como Newton Mendonça falava de certas cantoras, esquecendo-se de que estavam na televisão para cantar e não para exibir beleza, elegância ou simpatia. Seus comentários me pareciam ofensivos, mesmo quando elogiosos, e mais ainda quando, desconhecendo completamente as regras do politicamente correto que só viriam a ser estabelecidas muitos anos depois, achava-se no direito de dizer que eram feias, que estavam muito gordas, que não sabiam se vestir ou que eram por demais convencidas. Obviamente que parte de minha irritação advinha de ele poupar-se de fazer comentários do mesmo tipo sobre os cantores homens. Eu percebia, para além da hierarquia de valor artístico já comentada, que ele revelava compartilhar com seu tempo uma insuportável hierarquia de gênero, e me regozijei quando, depois de provar que eu estava certa, enfatizando excessivamente em seus comentários sobre a própria Marlene Dietrich que ela já era uma senhora, ainda que, apesar disso, continuasse bonita e insinuante, entendi que ele, ou alguém parecido, dirigiu a ela a gentil pergunta pelo segredo de seu estado de conservação, ao que ela teria respondido: “Eu sou conservada porque eu tenho apenas 57 anos”. Adorei, e desejei fortemente que ela tivesse dito isso de uma forma bem arrogante. Passada essa fase de irritação, comecei a pensar que, para além da hierarquia de valor artístico e para além da própria hierarquia de gênero, aquilo tudo podia ser reflexo do impacto da imagem televisiva sobre a fruição musical. A música é certamente uma arte performativa, e o corpo do músico toca tanto quanto o instrumento, da mesma forma 25

como o cantor não canta apenas com a garganta. Mas era a primeira vez que a performance musical podia ser acompanhada em sua integridade por um conjunto mais amplo de pessoas do que aquelas presentes aos estúdios das rádios e das gravadoras, aos auditórios e às plateias do teatro. A televisão dava visibilidade integral a essa performance, e a isso podia estar associada, talvez, a própria profusão de fotografias de maestros, pianistas e músicos em geral que me impressionara ao folhear as primeiras páginas das publicações pesquisadas. Tanto o rádio quanto o disco, por revelarem apenas a parte sonora das performances musicais populares, e por destacarem da própria parte sonora justamente sua parte vocal, talvez fossem capazes de projetar somente o cantor no imaginário coletivo, ficando os demais participantes dela em uma espécie de limbo, do qual a televisão talvez os tivesse tirado. Havia algo positivo em tudo isso: afinal, não era bom que o maestro Gaó também pudesse protagonizar uma propaganda de colchão, como o fez então nas páginas das revistas especializadas? Aprofundando essa reflexão, reconheci a importância de serem performances ao vivo, as que a televisão mostrava naquele tempo. Sendo ao vivo, elas compartilhavam com outras performances culturais, como o teatro, por exemplo, o mesmo caráter de indeterminação, contingência e imponderabilidade dos próprios dramas sociais e subjetivos que muitas vezes replicam, desencadeiam ou ajudam a resolver simbolicamente. Sendo ao vivo, elas são performances mais integrais ainda, no sentido de que envolvem seus participantes em experiências que são ao mesmo tempo cognitivas, emocionais e corporais, ou seja, que os envolvem por inteiro, podendo envolver por inteiro o próprio público. Sendo ao vivo, finalmente, estão sujeitas às vicissitudes da vida, tirando disso toda sua força, quando conseguem transformar o sofrimento em beleza ou o sentimento em sentido, e toda a sua fragilidade, quando sucumbem aos dramas da vida e não conseguem mais dramatizá-los. Lembrei-me então da “rusga feia” havida entre o maestro Aldo Petrioli e o barítono Geraldo Castellar, que tirou do ar os “Grandes Momentos Líricos” que até então vinham conseguindo performatizar juntos para oferecer como dádiva aos telespectadores da Tupi. E de repente me lembrei de Elza Laranjeira, que teve de deixar o programa exclusivo que acabara de ganhar na TV Record para fazer uma cirurgia na garganta, o que era particularmente problemático por ser ela uma cantora, particularmente dramático porque era a própria vida que agora destacava da integridade de seu corpo uma parte, fragmentando-o da forma mais dolorida. Em razão de complicações da cirurgia, Elza Laranjeira demorou três meses para voltar, e voltou insegura, sem saber se ia dar conta 26

do recado. E foi então que me lembrei do texto escrito por Newton Mendonça para O Dia, repercutindo sua volta. “Elza Laranjeira voltou. E voltou melhor que nunca. Estava ela nervosíssima quando entrou no palco. Tremia seu corpo. Houve o primeiro acorde da orquestra dirigida por Ciro Pereira. Sua voz saiu. Ela sentiu mais confiança. Foi soltando-a. Final da primeira música: aplausos, aplausos e mais aplausos. Aí estava de volta uma das nossas grandes intérpretes. Elzinha chegou a chorar de emoção. Seus companheiros também sentiram algo estranho. Vieram outras melodias. Em ‘Tabu’, ela alcançou notas altas. Final da audição: Randal Juliano anuncia sua interpretação. Elzinha vai cantar ‘Flamingo’. Sinceramente temi pelo seu sucesso. Mas que surpresa! A voz de Elza Laranjeira saiu limpa, clara e potente. Palavra que fiquei arrepiado. Finalizada a audição, Elza teve abraços e mais abraços dos colegas e amigos. Felizmente ela voltara em toda plenitude de sua carreira. Aí está para brilhar novamente na programação da Rádio e TV Record”. Com a lembrança desse texto, que fala da experiência intersubjetiva integral que está na base da criação e da fruição artísticas, falando da contingência humana sobre a qual elas se assentam, Newton Mendonça conseguiu me emocionar, e eu quase o redimi de todos os seus pecados. Ele provou que sabia se relacionar integralmente com outros e com outras, vistos também em sua integridade. Ele provou que sabia compartilhar da emoção da integridade reconstituída. O corpo dela, novamente inteiro, tremia, mas o seu também, inteiro, se arrepiava. A voz dela saiu limpa, clara e potente. Seu texto também. Mas então, por que não foi assim o tempo todo? Por que, diante da experiência integral das performances artísticas que a televisão exibia, preferia falar apenas de um fragmento delas? Por que, das cantoras que nela se exibiam integralmente, preferia enxergar apenas uma parte? Dando a última volta nessa reflexão, lembrei-me então de que algumas vezes o texto de Newton apenas seguia o movimento da câmera. Era o cameraman quem dava um close em uma parte do corpo da cantora, direcionando a atenção dos telespectadores e dos críticos de televisão para um braço gordo ou para um decote generoso. Era a TV Record que organizava, sob a coordenação do próprio Marcelino de Carvalho, o concurso da perna mais bonita do Brasil, que, escrito assim no singular, na Revista do Rádio, tinha ainda mais explicitada a fragmentação subjacente. Era a televisão que, naqueles seus primórdios, já revelava seus diversos potenciais. Podia exibir a integridade das performances, mas também podia exibir a elas mesmas 27

fragmentadas. Podia revelar a integridade das pessoas ou mostrá-las ainda mais em pedaços. Podia ser arte, e podia não ser.

BIBLIOGRAFIA MENCIONADA

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