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Do brado ao canto , anos 1930 e 1940

Toda a minha produção há de ser protesto e embelezamento enquanto não puder despejar sobre as brutalidades coletivas a potência dos meus sonhos!

OSWALD DE ANDRADE, A morta

Oswald de Andrade encontra nos anos 1930 e 1940 uma das fases mais intensas no âmbito da produção e da circulação de sua obra. É nesse período que publica três romances, quatro peças de teatro, um poema longo e inúmeros artigos de jornal sobre temas diversos, complementados por várias entrevistas. Corresponde à sua fase comunista ou marxista: em 1931, filia-se ao Partido Comunista do Brasil (PCB),1 e em 1945, rompe com ele. Focalizamos aqui as pontas dessa trajetória. Em 1929, o encontro com muda o rumo de sua vida e de sua obra. A intensa relação que estabelecem nos anos 1930 é marcada pelo engajamento, obras a quatro mãos, romances individuais que têm pontos de contato e intensa crítica social. Nos anos 1940, Oswald tem nova paixão, dedica-se intensamente à prosa, mas também retorna ao verso. Cabe a Candido Portinari, nos anos 1930, retratar Oswald e Patrícia Galvão, e a , nos anos 1940. A , cabe focalizar Oswald e Maria Antonieta d’Alkmin, então sua esposa, também nessa década. A amizade do escritor com o pintor lituano remonta aos anos 1920 e ao casal Tarsiwaldo, e permite olhares cruzados: Tarsila pelo traço de Segall, e vice-versa. A exposição Pagu/ Oswald/ Segall gira em torno de revoluções, romances, versos e retratos.

Rumo à revolução Pagu estreia nas páginas da revista carioca Para Todos, número 515, em outubro de 1928, eternizada pelo poema de Raul Bopp, “Coco de Pagu”, dedicado a Di Cavalcanti e acompanhado por ilustração deste. Trata-se de um retrato em versos, registro do indefinível fascínio que ela exerce sobre o círculo modernista, o qual começava a frequentar:

Pagu tem os olhos moles

1 Desde sua fundação, o partido recebe esse nome, passando a se chamar Partido Comunista Brasileiro em 1950, designação que se mantém até hoje. Em 1952, dissidentes criam o PC do B, que recupera o nome Partido Comunista do Brasil. 2

Olhos de não sei o quê Se a gente está perto deles A alma começa a doer.

Ai Pagu eh Dói porque é bom de fazer doer

Pagu! Pagu! Não sei o que você tem. A gente, queira ou não queira, Fica lhe querendo bem.

Eh Pagu eh Dói porque é bom de fazer doer

Você tem corpo de cobra Onduladinho e indolente, Dum veneninho gostoso Que dói na boca da gente.

Ai Pagu eh Dói porque é bom de fazer doer

[...]

Apresentada ao casal Tarsiwaldo, como os chamava Mário de Andrade, pelo mesmo Raul Bopp, que a apelidou Pagu por pensar que ela se chamava Patrícia Goulart, a então jovem normalista de dezoito anos se inspira na pintora e é mimada por ela e por Oswald. Conta Flávio de Carvalho como testemunhou a relação entre eles:

Certo dia, Oswald conheceu uma jovem normalista de tenra idade que atendia pelo nome de Pagu. Foi ela mimada por Tarsila e Oswald, acariciada com pentes que lhe alisavam os cabelos que caíam até os ombros. Assisti à toalete da jovem várias vezes. As unhas eram pintadas com tinta dourada e Tarsila maquiava seus olhos com pesadas sombras em redor, contrastando com o amarelo-limão do rosto de uma Pagu que recebia tudo como uma dádiva extraterrestre. Houve discussão sobre a cor dos lábios. Eu optei pelo preto, mas os mesmos receberam uma carga de vermelho-chinês. Mais de uma vez assisti ao enfeite da deusa adotiva. [“O antropófago Oswald de Andrade”, Manchete, 14 out. 1967.]

Circulando como poeta e declamadora, Pagu debuta, com desenhos, na segunda fase da Revista de Antropofagia, nos números encartados no Diário de S. Paulo de 24 de março, 8 de maio e 19 de junho de 1929. Assim, irrompe no cenário paulistano no momento em que Tarsila preparava sua primeira exposição individual no Brasil. Quando a caravana paulista chega, no dia 18 de julho, ao Rio de Janeiro para o vernissage da exposição de Tarsila no Palace Hotel, que se realizaria em 20 de julho de 1929, a mesma revista Para Todos, número 554, registra a forte presença de Pagu: na foto histórica, ao lado de , Tarsila, Oswald e outros, em um retrato de autoria de Emiliano Di Cavalcanti e em um texto, assinado por “A.” (talvez Álvaro Moreyra, diretor da revista), que a apresenta de modo certeiro:

3

Pagu está no Rio. Veio com Tarsila, Anita Malfatti, Oswald de Andrade. Não veio para ver a cidade, as praias, as montanhas, as vitrinas. Veio. Sem complemento. Pagu aboliu a gramática da vida. A análise lógica foi um preconceito da Escola Normal. Pagu parece um leão, uma arvorezinha de enfeite, um leque japonês. Mas de perto a gente acerta: é uma menina de cabelos malucos que ela nunca penteia. Pagu não tem modos. Tem gênio. Faz poemas. Faz desenhos. Os poemas se dependuram nos desenhos e ficam gritando. Quem passa para. Eta pequena notável! Pagu é o último produto de . É o anúncio luminoso da Antropofagia.

Sem complemento e sem maiores explicações, Pagu acaba sobressaindo-se nos lugares que frequenta. Sendo assim, é impossível falar de Oswald nesse período sem conceder a ela o mesmo protagonismo e o mesmo espaço que cabem a ele. No retrato feito por Di Cavalcanti, Pagu aparece sentada em uma poltrona, com as pernas cruzadas, a mão direita erguida, segurando uma piteira, enquanto a esquerda repousa sobre suas pernas. A estampa da roupa e da poltrona sugerem romantismo, a echarpe que lhe envolve o pescoço aumenta seu charme, a pose e o vestido que deixa à mostra os joelhos, os braços e o colo transmitem sensualidade. Seus cabelos aparecem penteados, ao contrário do que diz a reportagem, mas seus olhos e lábios exageradamente pintados coincidem com as descrições que se costuma fazer dela. Em uma entrevista que integra a matéria de Clóvis de Gusmão, publicada no número seguinte da revista, Pagu afirma ter livros “a não publicar: – Os 60 poemas censurados que eu dediquei ao Dr. Genolino Amado, diretor da censura cinematográfica. E o Álbum de Pagu – vida, paixão e morte – em mãos de Tarsila, que é quem toma conta dele. As ilustrações dos poemas são também feitas por mim”. Entre suas “admirações”, aí apontadas, figuram Tarsila e Oswald. Os três desenhos de Pagu que circularam na Revista de Antropofagia são uma amostra do que se encontra no Álbum de Pagu, dedicado a Tarsila2 e que ficou em poder da pintora até sua morte. Um deles é acompanhado por legenda que informa sua procedência desse Álbum, embora não se encontre nele. Outros números da revista da mesma época trazem desenhos de Tarsila.

2 Acompanhando a dedicatória, Pagu faz um pequeno retrato de Tarsila, semelhante àquele de sua autoria estampado na revista Para Todos, n. 555, na mesma página em que foi reproduzida a entrevista citada. 4

No Álbum, datado de 1929, subtitulado Nascimento vida paixão e morte, o diálogo entre poemas e imagens evoca o Primeiro caderno do aluno de poesia Oswald de Andrade e O mundo do menino impossível de Jorge de Lima, ambos publicados em 1927, com versos e desenhos dos próprios poetas. Traços simples, mas com imenso poder de sugestão, criam imagens que completam os textos sem se subordinarem a eles. Por sua vez, estes não constituem legendas, e também complementam as imagens. De caráter autobiográfico, mas com elementos ficcionais, a história de Pagu é contada com ousadia, sensualidade, deboche, alusões irônicas a temas religiosos. Os autorretratos consistem em uma figura feminina nem sempre precisa; quando definida, aparece nua e quase sem rosto, destacando-se apenas seus olhos e lábios, exceto em dois momentos: na capa, em que o rosto de frente – delineados apenas sobrancelhas, olhos, lábios e a farta cabeleira – se impõe sobre o corpo de perfil, do qual só vemos parte de um braço e das costas; já no final, quando ela surge quase idêntica à imagem da foto que registra sua chegada ao Rio de Janeiro para o vernissage de Tarsila, em que aparece de chapéu e casaco. Se o que une os três desenhos publicados na Revista de Antropofagia é a figura feminina em movimento e posição de ataque (no primeiro segurando um tridente, no segundo uma lança e no terceiro de braços erguidos), no Álbum ela é retomada em poses mais delicadas e sensuais. Por sua vez, a gata “safada e corriqueira”, que aparece em um dos desenhos do Álbum, será figura recorrente em três obras de sua autoria que pertenceram a Mário de Andrade, assim como o túmulo, que encerra o Álbum e reaparece também em duas delas, dando um toque macabro ao conjunto. Os três desenhos que ficaram com Mário, embora não datados, são provavelmente também dessa época. Neles, o sol e as plantas tropicais – coqueiros e bananeiras – reforçam seu vínculo com a Antropofagia. Mas, o que prevalece é a força do autorretrato, especialmente em um deles, no qual uma pintora contempla um quadro recém-concluído – o sol ilumina uma bananeira cercada por três figuras –, enquanto uma espécie de sombra ou vulto parece colorir a imagem da própria pintora. Entre a fissura pela própria imagem e o questionamento da representação, insinuam-se um traço mais firme e uma proposta mais madura, que se repetem em outro desenho: a figura feminina, leve e sensual, flutua sobre os edifícios em um céu noturno, em meio a nuvens, estrelas e balões. Podemos considerá-lo uma espécie de releitura do primeiro desenho do Álbum: a criança recém-nascida que voa em um cesto levada por um bicho voador é substituída pela jovem nua de longos cabelos que voa levada por uma pipa, passando do universo lendário para o onírico. Por ocasião da viagem ao Rio de Janeiro para a exposição de Tarsila, o antropófago e a normalista já haviam iniciado uma relação amorosa, conforme fica 5 registrado em uma espécie de diário do casal, a quatro mãos, intitulado O romance da época anarquista. Livro das horas de Pagu que são minhas. O romance romântico, cuja data inicial é 24 de maio de 1929. Tarsila, envolvida com os preparativos para a mostra, talvez não tenha percebido o que se passava. Há diferentes versões para a maneira como essa relação foi assumida publicamente. Segundo Pagu – em carta dirigida a Geraldo Ferraz, escrita em 1940 e publicada postumamente, sob o título Paixão Pagu –, forjou-se seu casamento com o primo de Tarsila, Waldemar Belisário, para que ela, menor de idade, pudesse sair da casa dos pais e livrar-se do domínio deles. Dias depois da cerimônia, ela foi para a Bahia com o objetivo de trabalhar, e voltou atendendo a pedido de Oswald, com quem já havia se relacionado. Ele havia se separado de Tarsila e queria viver com Pagu, que estava grávida, mas não sabia disso por ocasião da viagem. Segundo dados de época, o casamento com Belisário foi arranjado, na tentativa de evitar um escândalo, pois Pagu estava grávida de Oswald. No prontuário dela no Departamento de Ordem Pública e Social (Deops), encontra-se seu passaporte datado de 10 de setembro de 1929, no qual assina como Patrícia Galvão de Andrade. Diante desse documento, podemos supor que eles já planejavam nessa data se casar e/ou fugir. Após a cerimônia, realizada em 28 de setembro no Cartório da Vila Mariana, os noivos rumaram para Santos; Oswald esperava-os no caminho, Pagu seguiu com ele, e Waldemar regressou a São Paulo. Em dezembro, viajam à Bahia e, ao retornarem, Oswald se separa de Tarsila e assume a nova relação. Em uma entrevista concedida a , reproduzida em Pagu. Vida-Obra, Sidéria Rehder Galvão, irmã da noiva, confirma que o casamento fora forjado e que ela fugira em seguida com Oswald. Informa ainda que Tarsila e Oswald foram padrinhos, e a pintora presenteou os noivos com um quadro dela, “por incrível que pareça era um touro, com chifres na cabeça”. Entre as cartas trocadas pelo casal, há uma de Pagu a Oswald – assinada como “Bebê” e dirigida a “Jacaré” –, sem data, em que menciona a não aceitação do relacionamento por seus pais, a primeira gravidez e o casamento forjado:

Jacaré, meu solteirão, Estou em casa, desoladíssima, presíssima, com 28 correntes fazendo 28 vezes o quarto pra não engordar. [...] O papai não decide nada. [...] Quer o seu casamento comigo, mas diz que só posso ver o jacaré no dia. Ele me disse muita coisa má de você: eu não acreditei só porque você disse para eu não acreditar. Você é que vai me dizer tudo, não é? [...] Não pude falar com você. Espero o papai e ficarei só. Quero somente você ao meu lado para dar o primeiro beijo em Pagurzinha. Você foi tão bom... tão bom... para mim. [...] Passar mais uns dias com todo o carinho de você... Perto da sua menininha adorada. Se eu morrer v. pode ficar com Pagurzinha? Eu queria que você ficasse com ela. Se não for assim eu prefiro que ela não viva. Você verá Pagurzinha pequenina e depois nunca mais, nem ela nem eu... 6

Eu amo demais. Serei como Alma, uma lembrança. Você não esqueceu da cançãozinha de jacarés? [...] O Antenor deu o nome do advogado a papai e contou uma história de casamento forjado. Foi você que mandou? Que pena o carnaval tão perto. Eu desesperada e só. Quando é que você liberta a pobre prisioneira? [Tereza Freire, Dos escombros de Pagu, pp. 50-51.]

No caderno a quatro mãos, O romance da época anarquista, temos o desenho de um jacaré, assinado por Pagu, acompanhando a folha de título. Além da data inicial de 24 de maio de 1929, há outros registros nesse mês, seguidos por outro sem data; a especificação volta em agosto e depois salta para novembro de 1929. Alterna-se a letra de ambos, ora com registros de fatos do cotidiano, ora com declarações de amor, ora com desabafos que sugerem desentendimentos entre o casal e separações. Pagu assina alguns textos como Bebê e se dirige a Oswald como Valdinho ou Alma. Ele assina Jayme d'Avelos [sic] ou Waldinho.3 Nessa espécie de diário, é ela que faz o pedido de casamento em 17 de novembro de 1929:

Valdinho Benzinho querido E se fosse assim – e se eu me fizesse tua esposa numa tolice bonita e se num deslumbramento eu me envolvesse nessa ideia de ter um larzinho contigo

Fica registrado também o casamento, no dia 5 de janeiro de 1930, com letra de Oswald:

Nesta data contrataram casamento a jovem amorosa Patrícia Galvão e o crápula forte Oswald de Andrade. Foi diante do túmulo do cemitério da Consolação, à rua 17, n. 17, que assumiram o heroico compromisso. Na luta imensa que sustentam pela vitória da poesia e do estômago, foi o grande passo prenunciador, foi o desafio máximo. Depois se retrataram diante de uma igreja. Cumpriu-se o milagre. Agora sim, o mundo pode desabar.

Em 25 de setembro, anota-se, com letra de Pagu, à tinta vermelha, o nascimento de Rudá Poronominare Galvão de Andrade, único filho do casal, fruto de uma segunda gravidez. No dia 5 de novembro de 1929, havia sido registrada a perda do primeiro filho do casal, tudo indica que por aborto espontâneo. Há também desenhos, como o mencionado, os quais registram o relacionamento e complementam os textos, como o relógio em forma de coração que acompanha o “Poema besta”, de autoria de Oswald; retratos caricaturais do casal,

3 Alma e Jorge d'Alvelos são personagens do conjunto de romances intitulados inicialmente A trilogia do exílio: Os condenados (1922), A (1927) e A escada vermelha (1934), republicados em um só volume, com o título Os condenados (1941), quando o primeiro volume passa a se chamar Alma e o terceiro A escada. 7 assinados por Pagu; um esboço do parto, assistido por uma figura demoníaca, sem assinatura. Antes do casamento, predomina a letra de Pagu e o tom é mais descontraído, havendo também declarações de amor a Oswald; por ocasião do casamento e depois, predomina a letra dele e há belíssimos textos confessando sua paixão por ela. Mais adiante, porém, fica registrado o rompimento do casal. O diário termina em 1931, a última data é 2 de junho, provavelmente quando Pagu inicia a militância e começa a se afastar de Oswald:

Bebê Separado, serei o teu melhor marido. A casa de Rudá é a tua casa. Seu Andrade

O envolvimento de Oswald e Pagu fica registrado também em fotos e cartas que comprovam que eles ainda se relacionaram de alguma maneira mesmo após essa data. Em dezembro de 1930, Pagu viaja a Buenos Aires, onde participará de um Congresso de Escritores e recitará poemas. Conhece os vanguardistas argentinos do grupo Sur e planeja ver Luís Carlos Prestes, mas o encontro não se concretiza. Entra em contato com a literatura marxista, a qual começa a traduzir, a pedido de Astrojildo Pereira, ao regressar ao Brasil. Filiados ao Partido Comunista, Oswald e Pagu criam o jornal O Homem do Povo, que circula de março a abril de 1931. O que caracteriza esse periódico – de grande formato, mas com apenas seis páginas em cada número – é a defesa dos ideais do comunismo, a crítica social, política e religiosa como tema e a abordagem de questões do momento sem meias palavras, em tom de denúncia e clamando à participação; a irreverência da linguagem, o caráter inovador da diagramação e das ilustrações também chamam a atenção. O periódico – do qual Maria de Lourdes Eleutério faz uma abrangente análise em “O homem e a utopia” – traz colaborações com pseudônimos, alguns não revelados até hoje, e outras de Brasil Gerson, Galeão Coutinho, Geraldo Ferraz e Flávio de Carvalho, que assumem a autoria sem disfarces. Oswald e Pagu têm algumas colaborações assinadas, outras apenas com pistas de sua autoria. Oswald assinou quase todos os editoriais, supõe-se que era o autor também daqueles atribuídos a O Homem do Povo (números 5 a 7) e que estava por trás de alguns pseudônimos. Pagu assinava a coluna A Mulher do Povo – mais uma crítica às distorções do que uma defesa pura e simples do feminismo, ou, como Antonio Risério aponta, a “negação de um feminismo ingênuo” e uma crítica ao feminismo “em nome do materialismo histórico” –, a história em quadrinhos “Malakabeça, Fanika e Kabeluda” e era responsável pela seção de Correspondência e pelas ilustrações, embora 8 nem todas tragam sua assinatura; supõe-se que estava por trás de alguns pseudônimos também. Essas ilustrações, comparativamente aos desenhos de sua autoria antes mencionados, são mais caricaturais. Astrojildo Pereira, que colaborou em todos os números do jornal, assinava a coluna Sumário do Mundo – sobre o comunismo, os conflitos e outros acontecimentos no exterior, fazendo a ponte com o Brasil – com o pseudônimo Aurelinio Corvo. Como Gildo Pastor, publicou uma resenha do livro Rhum, L’Aventure de Jean Galmot, de Blaise Cendrars,4 no número 5. Revelou estar por trás da primeira assinatura no momento em que renega sua colaboração, classificando o periódico como pequeno- burguês. Felizmente, preservou seus exemplares, alguns dos quais integram esta exposição, conservando as duas únicas coleções completas e inteiras de que temos notícia. Anarquista na juventude, Astrojildo participou da fundação do PCB em 1922, mas foi afastado de sua direção e expulso do partido no início dos anos 1930, quando os partidos comunistas optaram por proletarizar sua direção – decisão tomada no Pleno Ampliado do Secretariado Sul-Americano da Internacional Comunista, realizado em Buenos Aires em maio de 1930, como informa Martin Cezar Feijó, em O revolucionário cordial – e o PCB expulsou prestistas e intelectuais de seus quadros. Sua colaboração em O Homem do Povo ocorre pouco depois da expulsão. É em duas cartas de defesa escritas em 1931 – reproduzidas por Feijó – que confessa ter colaborado nesse e em outros periódicos, classificando tal ato como um erro. Na primeira, assinada por Aurelinio Corvo e datada de abril, portanto pouco depois do fechamento do jornal, já que consta texto de sua autoria no último número, afirma:

Declaração idêntica devo fazer acerca do jornal O Homem do Povo, no qual, desde o primeiro número, redigi a seção de comentário e noticiário internacional sob a rubrica "Sumário do Mundo". Se bem que responsável unicamente pela referida seção – onde igualmente me era dada inteira liberdade – considero também um erro político de minha parte colaborar no O Homem do Povo, que se mostrou desde o primeiro número um órgão de confusionismo pequeno-burguês, procurando mascarar sob o disfarce do comunismo a luta que na realidade elementos da pequena-burguesia sustentam para conquistar, contra o Partido Comunista, a direção do movimento revolucionário das massas. Assim sendo, eu me desligo desde esta data completamente da redação do aludido jornal.

Na segunda carta, datada de 29 de julho, que remete à anterior, reconhece novamente “o erro dessa colaboração”. A opinião de Astrojildo quanto ao engajamento de Oswald não é voz dissonante; até hoje o jornal é visto como pouco sério, conta com pouca bibliografia e ainda não

4 Publicado em Paris, pela editora Bernard Grasset, em 1930. A resenha apareceu sob o título “Comprimidos de Bayer (Caracterização dos livros que vou lendo)”, na coluna Panfleto e Doutrina. Consta que ele assinou com o mesmo pseudônimo uma resenha de Vidas secas, de Graciliano Ramos, publicada na Revista Acadêmica, jul. 1938. Cf. Alexandre Eulalio, A aventura brasileira de Blaise Cendrars, p. 429. 9 teve sua importância avaliada no contexto do comunismo brasileiro. Mais anarquista do que comunista, ou engajado à sua maneira, se não pode ser considerado um “homem do povo”, Oswald pelo menos almejou que sua obra tivesse um alcance maior. Em “Carta a Afrânio Zuccolotto”, publicada na revista Ritmo, número único, de novembro de 1935, dirá: “A massa, meu caro, há de chegar ao biscoito fino que eu fabrico. [...] Descrer da capacidade de compreensão da massa é descrer do próprio progresso revolucionário”. Voltará ao tema outras vezes, como veremos mais adiante. Quando ataca a Faculdade de Direito – classificando-a como “cancro de São Paulo” – no editorial “As angústias de Piratininga”, assinado por O Homem do Povo e publicado no número 7, o jornal enfrenta um protesto. Reunidos diante da redação, que funcionava na praça da Sé, os estudantes queriam linchar Oswald e Pagu, mas não o conseguiram. O escritor revida no editorial “Isto aqui é Coimbra?”, publicado no número seguinte, com sua assinatura. Aí denuncia a covardia dos estudantes por quererem “agredir em batalhão uma mulher e um homem do povo”; rememora sua passagem pelas Arcadas, critica o conservadorismo que as sustenta e aponta a ingenuidade dos alunos:

A grande manifestação de pensamento que produziu até hoje a Faculdade de Direito foi o trote. [...] O vosso mal é um mal coimbrão, um mal português agravado pela nossa situação de colônia mental. A nossa velha Faculdade, é como a de Recife, apenas um pedaço de projeto escolar, que não foi avante no Primeiro Império e assim represou o pensamento brasileiro na bacharelice [...]. Nós ficamos com a herança de Coimbra! E vocês querem prolongar Coimbra! [...] Vocês são os únicos seres que continuam a acreditar no Tamanduateí, na Ilha dos Amores e na grandeza das arcadas conventuais. [...]

Pagu, por sua vez, no artigo “Normalinhas”, publicado em sua coluna A Mulher do Povo, também no último número do jornal, aproveita a oportunidade para criticar as estudantes de outra tradicional instituição de São Paulo – a qual também frequentou –, quer abrir-lhes os olhos e as provoca aludindo ao conflito anterior:

As garotas tradicionais que todo o mundo gosta de ver em S. Paulo, risonhas, pintadas, de saias de cor e boinas vivas. Essa gente que tem uma probabilidade excepcional de reagir como moças contra a mentalidade decadente, estraga tudo e são as maiores e mais abomináveis burguesas velhas. Com um entusiasmo de fogo e uma vibração revolucionária poderiam se quisessem, virar o Brasil e botar o Oiapoque perto do Uruguai. Mas dona Burguesia habita nelas e as transforma em centenas de inimigas da sinceridade. [...] Se vocês, em vez dos livros deturpados que leem, e dos beijos sifilíticos de meninotes desclassificados, voltassem um pouco os olhos para a avalanche revolucionária que se forma em todo o mundo e estudassem, mas estudassem de fato, para compreender o... que se passa no momento, poderiam, com uma convicção de verdadeiras proletárias, que não querem ser, passar uma rasteira nas velharias enferrujadas que resistem e ficar na frente de uma mentalidade atual como autênticas pioneiras do tempo novo. 10

Vocês também não querem, que nem os seus coleguinhas de direito, trocar bofetões comigo?

Esse texto motivou uma curiosa carta – arquivada em seu prontuário no Deops –, a qual certamente teria tido espaço no jornal, caso ele tivesse continuado a circular. A remetente Walkiria de Souza – a quem Pagu já se dirigira na seção de Correspondência do número 7 – critica esse artigo, mas elogia o periódico amplamente, citando vários colaboradores e revelando-se leitora assídua. No mesmo dia da publicação desses artigos, 13 de abril de 1931, os estudantes de direito protestam novamente e tentam agredir o casal. Pagu foi acusada de disparar dois tiros contra eles, agredir alguns com unhadas, sendo levada à Central de Polícia juntamente com Oswald, conforme noticiaram os jornais na ocasião.5 O Homem do Povo é empastelado, fica proibido de circular e encerra sua trajetória com esse oitavo número. Após o fechamento do periódico, o casal viaja a Montevidéu, onde se encontra com Prestes e passa três dias e noites conversando com o futuro Cavaleiro da Esperança. Ao regressar, Pagu milita em São Paulo, Santos e Rio de Janeiro, sofre prisões, sendo a primeira mulher presa por motivos políticos no Brasil, enquanto Oswald escapa e se mantém foragido, mas sempre em contato com ela e tentando proteger o filho do casal. Não há registros sobre as prisões de Oswald, embora ele próprio as mencione. Em documento datado de 28 de novembro de 1933, que integra o prontuário do Clube dos Artistas Modernos (CAM) no Deops, informa-se sobre a existência de um prontuário de Oswald, do qual são recolhidos os seguintes dados:

[...] jornalista e escritor, também intelectual comunista e agitador de massas; já foi um dos chefes do P. Comunista nesta capital e seu campo de ação se estendia por todo o Estado de S. Paulo. Foi fundador e diretor do jornal comunista O Homem do Povo. [...] Em sua residência, em batidas levadas a efeito por esta Delegacia, tem sido encontrado abundante material comunista de propaganda, e tem sido auxiliado, em sua atuação, pela sua companheira Patrícia Galvão de Andrade, também conhecida por “Pagu”.

Infelizmente, o prontuário do escritor ao qual tivemos acesso reúne apenas quatro documentos, todos relativos aos anos de 1942 e 1944. No segundo semestre de 1931, o casal passa uma temporada na Ilha das Palmas, em Santos, o que ele registra em A escada vermelha, publicado em 1934, com capa de Oswald de Andrade Filho. Os personagens Jorge d'Alvellos e Mongol apresentam características que correspondem a Oswald e Pagu.

5 As notícias sobre os conflitos entre os estudantes, Pagu e Oswald foram publicadas nos jornais Folha da Noite e A Gazeta, 9 abr. 1931; Diário de S. Paulo, 10 abr. 1931; Folha da Noite e A Gazeta, 13 abr. 1931; Diário de S. Paulo, Folha da Manhã e Diário Nacional, 14 abr. 1931. Matérias reproduzidas na edição fac-similar do jornal a partir dos exemplares pertencentes ao Arquivo Público do Estado de São Paulo, à Folha Imagem e à Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro. 11

Em 1933, Oswald publica Serafim Ponte Grande. Embora iniciado em 1924, como está registrado nos manuscritos da obra, é no ano de seu lançamento que o autor escreve um segundo prefácio, considerado uma espécie de manifesto, em que faz mea culpa por ter “servido à burguesia” e confessa almejar ser “pelo menos casaca de ferro na revolução proletária”. Antonio Candido, no ensaio “Estouro e libertação”, destaca nesse livro o “estouro rabelaisiano”, o “caráter de confluência de temas e tiques nacionais” e o considera uma “espécie de Suma Satírica da sociedade capitalista em decadência”, “uma sorte de Macunaíma urbano”. Em “Digressão sentimental sobre Oswald de Andrade”, Candido desenvolve esta última ideia: “apesar de faltar-lhe a dimensão etnográfica e mitológica, há nele uma espécie de transposição do primitivismo antropofágico para a escala da cultura burguesa”. A estrutura fragmentária, cinematográfica, que leva ao extremo o aspecto experimental que já caracterizara Memórias sentimentais de João Miramar (1924), consagra-o como uma prosa que escapa a qualquer classificação. Embora ao ser publicado a capa estampe a palavra “romance”, nos manuscritos aparece em seu lugar a palavra “invenção”.6 No mesmo ano, Pagu publica Parque industrial. Romance proletário, que retrata o cotidiano das operárias das confecções do Brás. Por exigência do partido, o livro, custeado por Oswald, é publicado com o pseudônimo Mara Lobo. A burguesia é ridicularizada e se apresenta a exploração das mulheres em todos os sentidos, sendo inclusive mostrada a prostituição às vezes como única saída. Há elementos autobiográficos, como o conhecimento que a autora tem do bairro por ter vivido ali até os dezesseis anos; a menção às meninas da Escola Normal, onde ela também estudou; a própria experiência de Pagu como operária e a repressão que enfrentou ao iniciar a militância em Santos. O personagem Alfredo Rocha, burguês que possui um Ford e se casa com uma normalista, frequenta os salões da alta sociedade e depois se converte ao comunismo, identifica-se com Oswald. Em ambas as obras, saltam aos olhos a denúncia da hipocrisia da sociedade, a menção a questões sexuais, relacionamentos fora do casamento, experiências homossexuais, o que deve ter chocado os leitores da época. João Ribeiro, em artigos publicados no Jornal do Brasil em 1933, refere-se ao livro de Oswald como “produção libérrima”, “quase romance”, “docemente pornográfico”. Quanto ao de Pagu, considera- o “um panfleto admirável de observações e de probabilidades”, destaca seu estilo e os quadros “pitorescos e maravilhosos, desenhados com grande realismo”. Embora sem a mesma solidez que Serafim Ponte Grande, Parque industrial é mais que uma crônica,

6 Ao presentear Haroldo de Campos com um exemplar desse livro, o autor riscou na capa a palavra “romance”, substituindo-a por “invenção”. Cf. Haroldo de Campos, “Serafim: um grande não-livro”, em Oswald de Andrade, Serafim Ponte Grande, p. 13. 12 não camufla a influência oswaldiana e o que lhe falta em consistência quanto à arte de narrar sobra em engajamento. No periódico O Homem Livre – de perfil semelhante ao de O Homem do Povo, embora menos conhecido e mais radical, que circulou de maio de 1933 a fevereiro de 1934, em um total de 22 números –, publicou-se uma crítica sobre Serafim Ponte Grande, até hoje pouco conhecida. Trata-se de “Na maré alta da última etapa” (número 8, 17 jul. 1933), de autoria de Geraldo Ferraz, que colaborou na Revista de Antropofagia, em O Homem do Povo e será o segundo marido de Pagu, a partir dos anos 1940. Nesse artigo, menciona a publicação do referido livro como um “acontecimento notável”, considerando-o “[o] mais completo romance que as letras modernistas produziram no país”, “documento do estado atual da classe média”, e se refere ao prefácio como “profissão de fé”. Conclui com muita verve: “O boêmio-burguês se vingou da classe média no livro, e se voltou numa atitude perfeitamente lógica para o proletariado, no prefácio sincero, que relata a evolução operada nos cinco anos transcorridos da ofensiva antropofágica à adesão consciente ao marxismo e suas consequências”.7 No mesmo jornal, no artigo “O lado demonstrativo das contradições” (número 9, 24 jul. 1933), Geraldo Ferraz menciona brevemente, mas de maneira elogiosa, Parque industrial. Entretanto, em “Ainda sobre Cacau” (número 21, 3 jan. 1934), Eneida faz uma dura crítica aos dois romances: “A novidade atualmente no Brasil é a preocupação de intitular proletária uma literatura pornográfica e falsa. E aparecem então os monstruosos livros de Pagu, Oswald de Andrade, etc., etc. Palavrões. Pornografias. Libidinagem. Livros tipicamente fim de regime, próprios para os delírios sexuais de semivirgens”. A crítica segue atacando violentamente o livro de Jorge Amado. Em setembro de 1933, Pagu viaja pelo mundo a serviço do partido e às custas de Oswald, e deixa registradas suas impressões na correspondência com ele e Raul Bopp, conforme documenta Tereza Freire, em Dos escombros de Pagu. Passa pelo Japão, China, Rússia, Alemanha e França, atuando como correspondente dos jornais Correio da Manhã, Diário de Notícias e A Noite. De Moscou, manda um postal pasmado: “Isto aqui é fantástico sem fantasia. Tou besta”. Da “terra de Hitler”, envia a Oswald uma carta, sem data, em que se mostra bastante empolgada: “Sobre a Rússia não há comentários. Simplesmente colossal. [...] encontrei gente batuta inclusive o organizador do teatro revolucionário. Venha logo pra gente voltar. Tenho estudado muito. Muito. Estou certíssima q. v. pode representar aqui O homem e o cavalo”.

7 No mesmo jornal, publica-se um trecho do romance, “Testamento de um legalista de fraque”. Cf. “De Serafim Ponte Grande, o próximo romance de Oswald de Andrade”, O Homem Livre, n. 1, São Paulo, 27 maio 1933. 13

Quando está em Paris, em setembro de 1935, Pagu é presa e repatriada. O balanço dessa viagem, especialmente sua indignação com a miséria encontrada na China e em Paris, é registrado por Geraldo Ferraz, uma semana após seu desembarque, no artigo “Pagu andou pelo mundo”:

Pagu chegou na semana passada. A mala desembarcada na estação do Norte – Pagu desceu no Rio e veio pela Central – trazia uma porção de etiquetas. Tinha etiqueta do Hotel du Nord de Kobe, de um misterioso Peping, de uma porção de cidades onde andou, levando as coisas de Pagu. A viajante saiu daqui de Santos, foi aos Estados Unidos, atravessou o Canal do Panamá, e além do Pacífico passeou o velhíssimo mundo da Ásia, onde um Pu-Yi qualquer subia ao trono manchu, por determinação do governo de Tóquio, quando Pagu chegou lá. [...] A máscara dramática que Portinari fixou certa vez, num fundo azul intenso, traz um grande aproveitamento da experiência. Chamo experiência estes quase dois anos sofridos pela moça brasileira, no contato diário com a miséria, a dor e a revolta de uma parte grande da humanidade que morre de fome, no momento mesmo em que a superprodução congestiona os mercados mundiais. [...] Recorda a fome inenarrável da China, sugada pelo governo nacionalista de Chang Kai-Chek, onde a pobreza é avassalante como o inverno, que penetra, infiltra-se, preexiste, acompanhando a sombra da noite e a luz do sol. Os episódios são tantos! Vejo que os olhos de Pagu ainda têm diante de si uma criança desfalecida de fome, que caiu na rua e ajeitou ali o corpo desnutrido, em exibição à indiferença da gente rolando pela cidade chinesa. Três dias depois Pagu passou pelo mesmo lugar. O cadaverzinho da criança estava lá mesmo, na mesma posição, coberto de moscas... [...] Na conversa vem Paris. A grande fome da pequena-burguesia, jogando as mocinhas diariamente no turbilhão gozador da cidade; a grande fome dos milhares de chomeurs, e os invernos gelados acossando tudo. A cidade assiste às manifestações nas ruas. Cresce por toda parte o arranco vigoroso da extrema-esquerda. As municipalidades de em torno à capital estão, quase todas, nas mãos dos comunistas.

Em 1936, Pagu é presa novamente. Nessa ocasião, sua relação com Oswald já havia terminado. Depois de libertações, mais militância, novas prisões e fugas, vê-se definitivamente livre apenas em 1940. Nesse ano, desliga-se definitivamente do PCB, do qual já havia sido expulsa em 1937. Se Di Cavalcanti é o autor do primeiro retrato da jovem e devastadora Pagu, publicado em Para Todos em 1929, Portinari a registrará mais madura, o rosto impondo-se sobre as atitudes e os trejeitos, em três obras: uma pintura a óleo e dois desenhos a grafite, todos realizados em torno de 1933. Na pintura,8 única imagem colorida de Pagu de que temos notícia – referida por Geraldo Ferraz no artigo citado –, vemos uma espécie de busto em que a figura se

8 Embora não seja impossível, parece-nos improvável que esse retrato de Pagu tenha sido feito por encomenda de Oswald, conforme Sergio Miceli propõe em Imagens negociadas, p. 127. Supomos que a decisão de fazer este e os demais retratos de Pagu se deva à própria plasticidade de sua figura. Pode dever-se ainda à amizade entre Portinari e Oswald, já que o pintor retratou também este. Embora não tenhamos localizado documentos sobre essa amizade, sabemos que Portinari foi padrinho de casamento de Oswald, quando este se uniu a Julieta Bárbara em 1936, e foi professor de pintura de seu filho, Nonê, quando este passou uma temporada no Rio de 14 destaca em uma blusa azul, rosto quase em diagonal e olhos baixos, apenas um deles totalmente visível, que conduzem o olhar do leitor para a boca bem desenhada em vermelho intenso. A roupa recatada, com mangas e um decote discreto, e o aspecto sereno completam a imagem séria e distanciada. Os dois desenhos a grafite focalizam apenas o rosto de Pagu. Um deles, absolutamente frontal, o único datado por Portinari, apresenta a figura com olhos vazados e cabelos com aspecto natural, conferindo-lhe a aparência mais jovial dos três; os traços bem definidos revelam um rosto perfeito e harmonioso, que parece quase desprender-se do papel, assemelhando-se a uma escultura. Esse retrato pertenceu a Alfonso Reyes, embaixador mexicano que residiu no Rio de Janeiro nos anos 1930 e esteve em contato com vários artistas brasileiros; não sabemos, porém, em que momento passou às mãos de Reyes, que esteve na abertura da exposição individual de Portinari no Palace Hotel, em 1933.9 O outro desenho representa a figura mais de perto, um pouco enviesada, como no retrato a óleo; porém, o rosto mais arredondado e os olhos baixos conferem-lhe uma certa tristeza. Com dedicatória do pintor à retratada, foi escolhido para ilustrar o panfleto Verdade e Liberdade, quando ela se candidatou a Deputada Estadual em 1950, pelo Partido Socialista Brasileiro. Portinari retrata também Oswald em 1933, em um desenho a grafite de estilo semelhante ao do retrato de Pagu. Igualmente com olhos vazados e traços bem definidos, porém menos frontal, a figura do escritor adquire certo mistério, situando-se entre a escultura e a máscara. Este retrato, assim como o óleo de Pagu, integrará a mencionada exposição individual do pintor realizada em 1933 no Rio de Janeiro. No mesmo ano, o retrato colorido de Pagu participará da II Exposição de Arte Moderna da Sociedade Pró-Arte Moderna (SPAM), com envio para a mostra a cargo da Pró-Arte. Outro retrato do escritor foi feito a óleo, tudo indica que na mesma época que os mencionados, mas, além de não datado, permaneceu inacabado. Aí vemos um Oswald mais jovem, de camisa branca e gravata vermelha, com o rosto na mesma posição que no desenho. Uma análise detida revela quase um desfazer da imagem pelo próprio artista, riscando-a com o cabo do pincel, talvez com o objetivo de retrabalhá-la. Quando Portinari realiza sua primeira exposição individual em São Paulo, na Galeria Itá, em 1934, Oswald e Pagu já estão separados. Sua musa do momento é a pianista Pilar Ferrer, também eternizada pelo pintor, cujo retrato integra a mostra juntamente com o do escritor, a grafite. Entre os textos que circularam na imprensa

Janeiro. Os retratos também não têm relação com o PCB, pois quando Portinari se filia no fim dos anos 1940, Oswald e Pagu já haviam se afastado do partido. 9 Sua presença está registrada em uma fotografia pertencente ao Projeto Portinari. Em Paixão Pagu, p. 72, a autora menciona já conhecer Reyes em 1930, quando de sua viagem a Buenos Aires, citada. 15 nessa ocasião, destaca-se o artigo “O pintor Portinari”, no qual Oswald ressalta o aspecto social e revolucionário de sua pintura, a tendência para o muralismo, sua relação com os contemporâneos nacionais e estrangeiros, sem esquecer a terra natal, e o talento para o retrato. Aponta ainda o caráter escultural deste gênero na obra do artista de Brodósqui, que podemos constatar nos retratos de Pagu e Oswald mencionados, e também no de Pilar Ferrer, que ele focaliza no artigo. Conclui ressaltando seu engajamento e o potencial de suas figuras:

Sendo assim, o Brasil tem em Candido Portinari o seu grande pintor. Mais do que escola, que faça exemplo. Pintor iniciado na criação plástica e na honestidade do ofício, homem de seu tempo banhado das correntes ideológicas em furacão. Não admitindo a arte neutra, construindo na tela as primeiras figuras do futuro titânico – os sofredores e os explorados do capital. * Um dia, plástico e vermelho, todos eles rebentarão as molduras que os oprimem, todos partirão, as negrinhas, os negrinhos, o menino da arapuca, o operário e o sorveteiro, os futebolers descalços, o mestiço, a índia e a cabeça beethoveniana de Pilar Ferrer – partirão para o imenso conclave da pintura mural.

Poucos anos depois, em 1939, Oswald não poupará críticas a Portinari no artigo “As pinturas do Coronel”, publicado em Dom Casmurro, por ter sido então promovido a “pintor oficial” e incontestável. Em 1950, será a vez de Pagu fazer sua crítica ao pintor, em “Contornos e desvãos de um panorama sumário”, publicado no jornal Fanfulla: “O Portinari que me desenhava a fisionomia dezenas e dezenas de vezes para fazer um quadro já não é o mesmo”. Flávio de Carvalho e Di Cavalcanti, que presenciaram a inserção da jovem Pagu no círculo modernista, serão responsáveis por registrá-la em 1945 e 1946, na fase pós- comunista e pós-prisão, com feições joviais substituídas pela face amadurecida, e o olhar sedutor cedendo lugar a olhos distantes e sofridos. As próprias palavras de Patrícia Galvão, no poema “Natureza-morta”, são a melhor tradução para esses retratos:

Os livros são dorsos de estantes distantes quebradas. Estou dependurada na parede feita um quadro. Ninguém me segurou pelos cabelos. Puseram um prego em meu coração para que eu não me mova Espetaram, hein? a ave na parede Mas conservaram os meus olhos É verdade que eles estão parados. Como os meus dedos, na mesma frase.

Intermezzo Quando Maria Antonieta d’Alkmin é apresentada a Oswald, em 1942, e ele a convida para ser sua secretária, inicia-se uma nova etapa na vida afetiva e na carreira do escritor. A relação profissional se converte na mais duradoura relação amorosa do 16 antropófago: eles se casam em 1943, têm dois filhos – Antonieta Marília e Paulo Marcos – e permanecem juntos até a morte dele, em 1954. A primeira tarefa da jovem professora era organizar os materiais do romance Marco zero e fazer pesquisas sobre alguns temas nele abordados. Totalmente diferente de sua prosa anterior, o romance cíclico, cuja redação iniciara em 1936, fora planejado para cinco volumes que dariam conta da história de São Paulo: A revolução melancólica, Chão, Beco do Escarro, Os caminhos de Hollywood e A presença do mar. Destes, só se publicaram os dois primeiros, havendo trechos inéditos manuscritos dos demais em vários cadernos que integram o arquivo do escritor. O volume Marco zero I, com o subtítulo A revolução melancólica, publicado em 1943, tem como tema a Revolução de 1932 em São Paulo, seus bastidores e desdobramentos. Embora tenha sido um dos finalistas do II Concurso Literário Latino- americano, juntamente com Terras do sem fim, de Jorge Amado, foi mal recebido pela crítica. Desencadeou polêmicas, a mais famosa delas com Antonio Candido, então crítico do jornal Folha da Manhã, com quem se reconciliaria pouco depois, como o crítico rememora em “Digressão sentimental sobre Oswald de Andrade”. É dessa época a alcunha de “chatoboys” que Oswald lança aos jovens “críticos sociólogos”, vários deles integrantes do grupo da revista Clima, de São Paulo. Marco zero II, com o subtítulo Chão, lançado em 1945, focaliza o período posterior à Revolução de 1932, o início do Estado Novo, a industrialização crescente, a ascensão dos imigrantes, o empobrecimento da aristocracia agrária, a atuação de comunistas e integralistas. Igualmente não foi bem recebido pela crítica da época. Ambos foram publicados pela Editora José Olympio, com capa de Tomás Santa Rosa. Com várias histórias que se cruzam e grande número de personagens, Marco zero questiona a história oficial e faz crítica social. Transita pela capital e o interior paulista, abordando a questão do latifúndio, da posse da terra e das relações dos brasileiros com os imigrantes no que se refere ao emprego e à exploração da mão-de- obra, no contexto da derrocada do café. Incorpora a fala popular, registra a oralidade e revela intenso trabalho de pesquisa histórica e observação do cotidiano. Empresta ainda fatos autobiográficos a alguns personagens, como o baque diante das perdas decorrentes da crise de 1929 e a peregrinação pelos agiotas para saldar dívidas. Constitui-se pela técnica simultaneísta e cinematográfica já presente em Memórias sentimentais de João Miramar e Serafim Ponte Grande, porém se diferencia deles pela intensa crítica social e pela ênfase no coletivo, o que chegou a ser considerado como falta de aprofundamento psicológico na construção dos personagens. Dá continuidade ao engajamento iniciado pelo romancista no segundo prefácio de Serafim Ponte Grande. Como afirma Di Cavalcanti, em “O drama do Marco zero”: “Evidentemente, 17

Oswald de Andrade é um burguês que deseja ultrapassar seu destino de escritor de uma classe”. Essa aspiração é mencionada pelo próprio Oswald em entrevista concedida a Mário da Silva Brito. Ao ser perguntado se Marco zero é um livro de massa, responde com muita perspicácia: “Pergunto a você se Einstein é um matemático de massa. Nessa questão, o que importa é a massa no sentido vertical e não horizontal. Depois sempre foi uma lenda essa história de que eu não procuro alcançar o povo. Está aí uma cousa que eu jamais deixei de desejar. Tenho um grande sentimento por não haver conseguido isso senão agora” [“Oswald de Andrade não quer falar mal da crítica”, Diário de S. Paulo, 18 nov. 1943]. Oswald toma para si a pintura social e a luta de classes que havia enaltecido na obra de Portinari no artigo mencionado sobre o artista, publicado em 1934, e considera seus próprios romances como “afresco social”, “tentativa de romance mural”, fazendo a síntese que ele apontara no mesmo artigo: “A pintura mural impõe o afresco”, ou seja, o suporte impõe a técnica e se revela propício para a abordagem da temática social, seja pelas dimensões, seja pelo alcance que tem ao ocupar o espaço público. Assim, ele almeja para sua obra o mesmo alcance e visibilidade do mural, arte social por excelência, a mesma eficácia do afresco. A discussão sobre o papel da arte que se travava nos anos 1940 ganha as páginas de Marco zero II, quando os personagens Jack de São Cristóvão, engenheiro e arquiteto que defende a questão estética na arte, e Carlos de Jaert, que defende a pintura social, estabelecem um longo diálogo. A partir das características físicas que lhes são atribuídas e das ideias que defendem, identificam-se, respectivamente, com Flávio de Carvalho e Portinari. Nessa conversa, é mencionada uma palestra de Siqueiros proferida no Clube de Arte, que corresponde à apresentação do muralista mexicano no Clube dos Artistas Modernos (CAM) em dezembro de 1933, à qual Oswald esteve presente.10 Esse episódio do romance será o ponto de partida da conferência realizada pelo escritor em agosto de 1944, na Galeria Prestes Maia, com o título “Aspectos da pintura através de Marco zero”, recolhida em Ponta de lança. Di Cavalcanti, no texto citado, dá continuidade à classificação do livro a partir de elementos da pintura ao considerar que algumas de suas páginas satisfazem como “uma rara água-forte impressionista”. Não há dúvidas sobre o talento de Oswald para criar imagens e cenas de grande plasticidade, surpreendentes pelo colorido, pelo movimento, ao mesmo tempo precisas e inesperadas. Amigos de longa data, como Di informa no mesmo texto – “[...] Conheço Oswald desde 1918. Admiro todos os tesouros de sua verve incomparável. Ele é um

10 David Alfaro Siqueiros realizou no CAM, em 27 de dezembro de 1933, a palestra “A pintura mural mexicana”. Cf. J. Toledo, Flávio de Carvalho: o comedor de emoções, p. 169. 18 homem raro, raríssimo mesmo neste Brasil de inteligências avelhantadas, adoecidas ou acovardadas” –, o pintor o retratará justo em torno da publicação dessa obra. Literaliza o título dos romances e representa Oswald de corpo inteiro, diante do marco zero, vestido de terno e gravata, com livros debaixo do braço. Com o corpo apresentado frontalmente, achata sua silhueta e amplia sua largura, em oposição à verticalidade da pedra demarcatória; o rosto, de perfil, ganha um ar ressabiado ou preocupado. O céu, composto por duas nuvens e uma estrela, em oposição a um cacto e um barquinho inquietantemente próximos, busca evocar as noites que abrigam as cenas mais marcantes e dar conta dos vários ambientes pelos quais a trama se movimenta, em seu trânsito entre o rural e o urbano, São Paulo e o Rio de Janeiro. As setas horizontais, que sinalizam a orientação a partir do marco zero, quase passam desapercebidas, na parte inferior do desenho; em sentidos opostos, propõem uma nova leitura para o olhar de Oswald: desorientado ou indeciso? Resta saber a que rumo o pintor aludia além do geográfico: político, profissional... Vale lembrar que Di Cavalcanti se havia filiado ao Partido Comunista em 1928 e vinha intensificando a abordagem da temática social em sua obra desde os anos 1930. O arquiteto Gregori Warchavchik, revelando uma faceta de fotógrafo pouco conhecida, registra Oswald na mesma época, com muito vigor. Formalmente vestido, o escritor parece olhar com simpatia para quem o contempla, sem ironia nem sisudez. Mário da Silva Brito comenta, na entrevista citada, que acompanhou o escritor até a casa do arquiteto para buscar as fotos que este havia tirado. Uma delas foi reproduzida no jornal, provavelmente aquela com que Oswald presenteou o crítico literário, como ele menciona nessa reportagem. Em outra, com passe-partout que traz o carimbo “Warchavchik arquiteto”, o autor de Marco zero esboça um sorriso maroto. Entre 1943 e 1945, Oswald escreve regularmente artigos de jornais publicados na Folha da Manhã, Diário de S. Paulo, O Estado de S. Paulo e Correio da Manhã, do Rio de Janeiro. Nesses textos, aborda temas diversos, tais como a situação mundial no contexto da Segunda Guerra, a política, sociedade e cultura brasileiras, intervindo inclusive em polêmicas sobre literatura e artes plásticas. Alguns deles foram reunidos em Ponta de lança, volume organizado pelo autor e publicado em 1945. Outros foram recolhidos apenas postumamente nos volumes Feira das Sextas e Telefonema. Além da polêmica em torno de Marco zero, já mencionada, esses artigos também participam das discussões em torno da obra de Erico Verissimo e Lasar Segall, alvo de perseguições e atitudes difamatórias no mesmo ano de 1943. No período de junho de 1944 a abril de 1945, porém, Oswald se ausentou dos jornais, pois um de seus artigos, publicado na coluna Telefonema do Correio da Manhã, fez com que fosse censurado pelo Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP), o que motivou também certo silêncio 19 sobre sua obra. Após o enfraquecimento do DIP, mantém com assiduidade essa coluna, colaborando esporadicamente em outros jornais. No ano de 1945, assiste-se ao fim da Segunda Guerra, à deposição de Vargas, a um curto período em que o PCB deixa a ilegalidade e à libertação de Prestes. Em setembro, Oswald se afasta do partido por questões ideológicas, ao discordar do direcionamento que o Cavaleiro da Esperança passa a imprimir a ele. Pouco antes, havia recebido Pablo Neruda em São Paulo e participado do comício histórico de Prestes no Pacaembu; nessa ocasião, porém, não foi incumbido de fazer a saudação ao Cavaleiro da Esperança, o que coube a Jorge Amado. Esse fato, juntamente com a candidatura do escritor baiano a deputado pelo Partido Comunista em São Paulo, desagradou o antropófago. Assim se encerra também um ciclo na vida de Oswald, com um gesto, tipicamente seu, de indignação e protesto.

Retorno ao verso Paralelamente à escrita dos romances e artigos nos anos 1940, Oswald volta à poesia e escreve, em 1942, o Cântico dos Cânticos para flauta e violão, dedicado a Maria Antonieta d’Alkmin, a quem enviou os versos como pedido de casamento. Esse poema longo, que evoca o Cântico dos Cânticos hebraico, é formado por fragmentos ou cantos curtos, os quais recebem títulos inovadores e que se integram ao texto orientando a leitura. Aí se fundem o amante e o poeta. A amada não tem voz, é apenas presença marcante como interlocutora, evocada permanentemente, cujo retrato se constrói, em um primeiro momento, pela negação de musas diversas, para confirmá-la como a escolhida, soberana sobre o céu, a terra e o mar. Em um segundo momento, surge relacionada à figura materna, imagem revertida pouco depois com a reflexão sobre a simbiose do casal relacionada à concepção, à gestação, que culmina na inversão de papéis: “eu te trazia no colo”. Em seguida, recupera-se a trajetória da aproximação do casal, e temos a referência a suas características físicas que retoma a relação com a figura da mãe: os “olhos finais de minha mãe” e a “boca ansiosa” são os únicos traços físicos concretamente apontados. Uma imagem incompleta, fragmentária, complementada por outros elementos visíveis, embora inapreensíveis: “Gesto de pudor de minha mãe”; “Teus gestos saíam dos borralhos incompreendidos”; “Teus passos subiam/ Das barrocas desesperadas/ Do desamor”. O poema se desenvolve em meio à guerra, ao mar e ao universo infantil. A guerra permite a confissão de seu intenso amor e seu empenho em defendê-lo. O mar cria a metáfora do encontro, porto seguro depois de uma vida plena de turbulências. O universo infantil das lendas, parlendas e cantigas de roda compõe a atmosfera de sonho e fantasia em que se constrói o “amor perfeito” aqui declarado. Ecoam ainda 20 personagens históricos ou literários e o poema culmina de forma inusitada com uma referência ao contexto da época: a Segunda Guerra Mundial, a vitória de Stalingrado. Em algumas passagens, a defesa da amada funde-se à defesa da humanidade, coincidindo o eu lírico com o eu coletivo ou participante, como aponta Haroldo de Campos, em “Uma poética da radicalidade”. Ou seja, o engajamento continua presente. Estruturado em versos longos e curtos que se alternam em sequências desiguais, com repetição de sons, de estruturas e de versos inteiros, o poema tem um ritmo que conduz ao mnemônico e ao acalanto em algumas passagens. Em outros momentos, porém, há uma crescente intensidade do sentimento e de sua declaração, e o acalanto é substituído por “brados”. Na entrevista mencionada, Oswald cita as palavras de Drummond sobre o poema: “– Você restituiu à literatura brasileira o poema de amor que você mesmo havia destruído...”. Na mesma ocasião, apresenta o que está por trás do título Poesias Reunidas O. Andrade, que será lançado em 1945: “Já que eu não posso ter indústrias...”, ou seja, uma versão lírica para as Indústrias Reunidas Matarazzo. Essa reunião de seus poemas até então publicados foi uma das poucas reedições que pôde ver durante a vida, e além de recolocar em circulação seus versos lançados havia vinte anos, trouxe também as ilustrações que os acompanharam, de autoria de Tarsila, em Pau Brasil; do próprio Oswald, que figuraram no Primeiro caderno..., e ainda as de Segall, para o novo poema. O pintor lituano radicado no Brasil fez três ilustrações para Cântico dos Cânticos para flauta e violão. Destas, duas apareceram na primeira publicação do poema, em 1944, em suplemento da Revista Acadêmica, encartado no número 64, dedicado a Segall. A terceira foi incluída em Poesias Reunidas O. Andrade, publicada em 1945, quando uma das anteriores foi escolhida para a capa dessa obra e essa passou então a ocupar seu lugar. Focalizando as duas primeiras ilustrações, vemos Antonieta retratada destacando-se o nariz largo, os lábios grossos e os cabelos encaracolados. Seu rosto transmite muita meiguice, especialmente no retrato em que vemos parcialmente seu corpo, até a cintura, envolvido por veste com estampa delicada, cuja pose sugere acolhimento e extrema doçura, associados à languidez do olhar. Quando é focalizado apenas seu rosto, a economia de traços deixa sua fisionomia mais imprecisa, mas não irreconhecível. Considerando a relação entre o poema e as ilustrações de Segall, Flávio de Carvalho dirá: “Os desenhos do mestre Segall conseguiram compreender o poeta. Oswald, que criava palavras para preencher vazios no lirismo. O ritmo e o som tinham mais sentido que o mero significado. Era uma linguagem de volta ao útero, contendo, na expressão, a simplicidade dos primeiros habitantes do continente” [“O antropófago Oswald de Andrade”, Manchete, 14 out. 1967]. 21

Na mesma época, Segall fez três retratos de Oswald de Andrade: dois deles focalizam apenas seu rosto de perfil e a mão que o sustenta; outro o registra sentado, deixando ver seu corpo até os joelhos. O primeiro, que apresenta somente seu rosto e mão, caracteriza-se pela economia de traços, construído apenas pelos contornos; no segundo, com o uso de três tintas diferentes (tinta bistre, aguada e nanquim), temos o preenchimento de algumas regiões do desenho, como os cabelos, parte do rosto e das mãos, criando um jogo de luz e sombra que deixa sua figura sombria. Diferenciam-se ainda pelo contorno dos dedos, do cabelo e do detalhe da roupa, mas são bastante semelhantes de maneira geral. O primeiro retrato parece ser um recorte, ou o ponto de partida, daquele em que aparece de forma mais completa, diferindo mais uma vez os cabelos e o detalhe da roupa; vemo-lo numa posição um pouco incômoda, a mão direita apoiada na perna direita e aparentemente tensa, talvez a sugerir que para ele não havia repouso; apresenta um fundo semelhante a placas de mármore, quadriculado que se repete na superfície sobre a qual está apoiado o braço esquerdo do escritor. Os olhos de Oswald aparecem vazados nos três retratos, como já apareceram também em um dos realizados por Portinari nos anos 1930; porém, com a íris contornada, mas não preenchida, se revelam menos impactantes no traço de Segall. A posição do rosto e a inclinação do olho do retratado direcionam o olhar do espectador para sua mão, realçando sua atividade de escritor. O artista registra Oswald numa pose que lhe é cara, evocando o pensador de Rodin. Não é raro ver o pintor na mesma posição em fotos e autorretratos.11 Quando Segall realiza em 1943 uma exposição individual no Museu Nacional de Belas Artes, no Rio de Janeiro, acaba sendo alvo de uma campanha difamatória na imprensa. Segundo Cláudia Valladão de Mattos, em livro dedicado ao artista, ele foi vítima de uma campanha do jornal A Notícia, que se estendia ao então ministro da Educação, Gustavo Capanema. O diário veiculou manifestações de ataque ao artista de simpatizantes da arte acadêmica, artigos xenófobos e anticomunistas, de inspiração nazista. Acusado de russo, comunista, judeu e defensor da arte degenerada, também foi criticada a valorização oficial de sua obra, o que se inseria ainda na polêmica arte acadêmica versus arte moderna então em voga. Tal fato motivou sua defesa por vários jornalistas como Geraldo Ferraz, Luís Martins e Moacir Werneck de Castro, e intelectuais como Jorge Amado, Mário de Andrade, Manuel Bandeira e Oswald de Andrade. No artigo “Diálogo contemporâneo”, recolhido em Feira das Sextas, Oswald informa sobre o cerco armado em torno do pintor, apontando para o fundo nazista do

11 Segall retrata ainda na mesma pose Manuel Bandeira (c. 1926) e Guilherme de Almeida (1927), além de figuras anônimas. Cf. Segall realista. 22 fato. Sob a forma de um diálogo entre amigos que não se viam há muito, passa pela polêmica Portinari versus Segall, detém-se neste último fazendo uma distinção entre a pessoa (sobre a qual faz seus típicos comentários maldosos) e o artista, e finalmente faz uma apreciação da obra segalliana como retrato de seu tempo:

– [...] Segall exprime admiravelmente a nossa época de migrações lancinantes. Ninguém tem mais boa vontade em parecer classificado e sereno dentro da burguesia, bem casado, com maneiras distintas, rico... trazendo na mala a sua carta de naturalização e seu atestado de boa conduta, mas não é isso que faz a sua arte. – Você quer dizer que ele é o heimatlos?... – Exatamente, essa palavra bárbara exprime Segall como nenhuma outra... O que perdeu o lar, perdeu a pátria... Veja se no tumulto presente não é esse um dos dramas fundamentais, o de homem que é forçado a deixar as suas raízes... Os motivos de Segall, que nos apaixonam, vêm nos seus imigrantes, nas suas famílias desgarradas nas travessias do oceano incerto, nas carnificinas legais dos pogroms, na guerra... e a prova do que digo está na recente exposição realizada no Rio.

Retoma a questão em “Salada russa”, também recolhido em Feira das Sextas: “a vitoriosa coligação que vai se formando ante a maravilha emocional e política que são Os imigrantes realizados, na maior técnica que o Brasil possui, por Segall...”. Tudo isso culminou na publicação do já mencionado número da Revista Acadêmica em sua homenagem, em 1944, no qual Oswald colabora com “Diálogo das vozes segallianas”– reproduzido neste catálogo –, uma belíssima apreciação do conjunto da obra do pintor:

Entre dois polos dramáticos voga a cabeça privilegiada de Lasar Segall – o ícone e a revolução. Porque não me venham dizer que o pintor pinta com outra coisa senão com a cabeça, sendo as mãos e o pincel um prolongamento acessório do que ele recebe, sofre e alegoriza. Contou-me certa noite aquela expressiva fala do artista d’Os imigrantes, um dos episódios máximos de sua vida de heimatlos, quando entre as fronteiras de dois países, tomara um trem sem saber para que destino o levava, se para a fuga ou para a prisão. Desse anseio parece ter jorrado o pânico de sua obra. São suas figuras, cores e composições, uma demonstração plástica do ser que luta e se desdobra entre a agonia de viver e a certeza da morte.

Oswald conhecera Segall nos anos 1910, nos salões de Freitas Valle; porém, tudo indica que a amizade se consolidou nos anos 1920, quando dos salões de dona Olívia Penteado12 e durante sua relação com Tarsila. Uma fotografia do casal Tarsiwaldo com Jenny Klabin Segall, um retrato do artista por Tarsila e uma carta ilustrada remetida por ele a Oswald e sua esposa registram temporadas na Fazenda Santa Teresa do Alto – que pertencera à família Amaral e passou a ser uma das residências do casal. Em contrapartida, em um pequeno cartão dirigido a Segall, datado de fevereiro de 1927,

12 Carolina da Silva Telles conta que foi Oswald quem apresentou dona Olívia a Segall [Depoimento em Vera D’Horta Beccari, Lasar Segall e o modernismo paulista, p. 163]. Oswald e Tarsila, por sua vez, tinham conhecido dona Olívia em Paris, por intermédio de Paulo Prado. Consta que, quando o casal Tarsiwaldo se separa e o antropófago assume sua relação com Pagu, dona Olívia se recusa a receber o novo casal, e Oswald, indignado, passa a chamá-la de dona Azeitona. 23

Tarsila e Oswald lamentam não ter podido comparecer a um chá oferecido por ele, embora o tenham visitado em outras ocasiões, como revela o “Caderno de visitas” que integra o arquivo do artista. O pintor fez também um retrato de Tarsila em 1928, com poucos traços, mas muita precisão, como um dos que fez de Oswald nos anos 1940. A amizade entre eles ao longo do tempo fica registrada também nas várias dedicatórias de Oswald a Segall, estampadas em Memórias sentimentais de João Miramar, de 1924; Primeiro caderno do aluno de poesia Oswald de Andrade, de 1927; A morta. O Rei da Vela, de 1937; Marco zero I, de 1943, e Poesias Reunidas O. Andrade, de 1945. Quando, nos anos 1930, Oswald se casa com Pagu, deixa de frequentar a residência de Segall, evitando comparecer a locais em que Tarsila estivesse presente. É nessa época que o artista cria a Sociedade Pró-Arte Moderna (SPAM), da qual o escritor não participa, optando pelo Clube de Artistas Modernos (CAM), criado no mesmo período por Flávio de Carvalho, de quem era então muito próximo. Lamentavelmente, o perfil de Pagu não foi brindado pelo traço de Segall. Em compensação, nos anos 1950, Patrícia Galvão, então casada com Geraldo Ferraz, dedica uma crônica ao artista, quando está em elaboração o pioneiro livro de Pietro Maria Bardi sobre ele. Trata-se de “Lasar Segall quase que fez uma completa autobiografia” – reproduzido neste catálogo –, em que a jornalista registra uma tarde em que o visita e tem acesso a um texto autobiográfico. Ela apresenta de forma poética sua condição de imigrante e sua atração pelo exotismo, circunstâncias que o vincularam ao Brasil e configuraram sua obra em grande parte: “que grande artista o mar nos trouxe um dia, ao enviar no acaso das viagens transatlânticas, para estas costas americanas do sul, um pintor russo, que sentia em sua alma diante do oceano, o mesmo apelo que chamou Gauguin para as suas ilhas dos mares do sul”. A receptividade que Segall teve nesse meio artístico e a forma como a retribuiu se inscrevem nos traços dos escritos e desenhos aqui apresentados. Com esse encontro, unem-se as pontas dessa teia de relações que buscamos esboçar.