LILIANE REIS SOUZA

O FEMININO NA PELOS RASTROS DE HELOÍSA MARIA BUARQUE DE HOLANDA, A MIÚCHA.

Paris - Niterói Março, 2019 LILIANE REIS SOUZA

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação - PROSEDUC, da Faculdade de Educação da Universidade Federal Fluminense, para obtenção do título de Mestra em Educação na linha de Diversidade, Desigualdades Sociais e Educação (DDSE). .

Orientadora: PROF.ª DRA. MARÍLIA ETIENNE ARREGUY

Paris - Niterói Março, 2019

2 LILIANE REIS SOUZA

O feminino na Bossa Nova pelos rastros de Heloísa Maria Buarque de Holanda, a Miúcha

Dissertação de Mestrado submetida ao Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal Fluminense – UFF, como parte dos requisitos necessários para a obtenção do título de Mestre em Ciência da Educação, na Linha de Diversidade, Educação e Desigualdades Sociais.

BANCA EXAMINADORA

Profa. Dra. Marília Etienne Arreguy – Orientadora Programa de Pós-Graduação em Educação - UFF

Prof. Dr. José Antônio Miranda Sepulveda – Presidente Programa de Pós-Graduação em Educação – UFF

Profa. Dra. Camila do Valle Fernandes – Membro da Banca Instituto Multidisciplinar de Letras – UFRRJ

Profa. Dra. Fabricia Walace Rodrigues – Membro da Banca Programa de Pós-Graduação em Literatura - UNB

Dra. Elisa Mares Guia Menéndez – Suplente Participante Titulada pela Université Paris Diderot

Niterói - Paris Março, 2019

3 R375f

Reis Souza, Liliane O feminino na Bossa Nova: Pelos Rastros de Heloísa Maria Buarque de Holanda, a Miúcha / Liliane Reis Souza; Marília Etienne Arreguy, orientadora.

Niterói, 2019.

151 f. : il.

Dissertação (mestrado) - Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2019.

DOI: http://dx.doi.org/10.22409/POSEDUC.2019.m.87032260500

1. Estudos de Gênero. 2. Biografia de Miúcha. 3. Desconstrução em Jacques Derrida. 4. Música Popular Brasileira - MPB. 5. Produção intelectual. I. Etienne Arreguy, Marília, orientadora. II. Universidade Federal Fluminense. Faculdade de Educação. III. Título.

4 Dedicatória

Miúcha, a você dedico a nossa pesquisa compartilhada. Obrigada por se entregar ao riso e ao risco da dúvida.

Quero me perder Quero me encontrar Quero me soltar Perto de você Quando a loucura começar Segura coisa (letra e música de Miúcha)

5 Agradecimento

Meu imenso obrigada: À minha orientadora e parceira Marília Etienne Arreguy, pelo interesse vibrante, integridade intelectual e respeito nesta caminhada. A Daniel Zarvos Guinle, pela dança e pela desconstrução e construção diária do amor. Aos pequenos-grandes Nicolas (Nikos) e Iolanda (Lola) Mutti Reis Zarvos Guinle por me ensinarem o “ouvido interior” como Villa-Lobos. À Norma Lúcia Reis Souza, pela vida e revisão ortográfica precisa. A Leandro Reis Souza, Clóvis Figueiredo Souza Filho, Clóvis Figueiredo Souza (in memoriam), por acreditarem em mim sempre que eu hesito. À Adriana Zarvos de Medicis pelo suporte com os netos enquanto escrevia. À Yolanda Cvitak, pela dedicada tradução do alemão para o português para esta pesquisa. Ao Centre International Les Récollets (Centro de Artistas e Pesquisadores de Paris), na figura de Chrystel Dozias, pela acolhida afetuosa, e a todos que torcemos uns pelos outros nesse espaço tão potente. Aos amigos Ana e Luciano Rodrigues e o erê Davi pela companhia nas bibliotecas e parques; À professora Liv Sovik, da ECO-UFRJ, a quem acompanho e me inspira desde a minha graduação na UFBA. Ao professor João Camillo Penna, Letras da UFRJ, pelas indicações de textos e músicas. Aos professores da banca de qualificação, poetas & intelectuais Camila do Valle, Paula Glenadel e Paulo Carrano, pelas marcações valiosas. Às mestras Anne E. Berger e Marie-Dominique Garnier, pelos Seminários em Estudos de Gênero articulados com psicanálise, literatura e política da diferença, na Universidade Paris 8 - Vincennes Saint Denis. À banca da defesa, pela presença e precioso tempo da leitura. Ao corpo docente, discente e funcionários da Universidade Federal Fluminense - UFF, do Departamento de Psicanálise da Université Paris Diderot, do IHEAL – Instituto de Altos Estudos da América Latina - Sorbonne Nouvelle Paris 3 e ao Departamento de Literatura Comparada da Université Sorbonne IV, pelo exemplo de generosidade e luta intelectual.

6 RESUMO

Este estudo surge inspirado no pensamento da desconstrução, na perspectiva de Jacques Derrida, para pesquisar os deslocamentos e errância pelo feminino na sociedade falogocêntrica. Para pensar as condições nas quais os deslocamentos podem se dar, a pesquisa se dedica a acompanhar os rastros de vida da cantora Heloísa Maria Buarque de Holanda, de apelido Miúcha. Observa-se essa mulher como sujeitA e autora, ao narrar suas ações de afastamento e aproximação do feminino convencionado. Suas escolhas de mudança de país, casamento, separação e maternidade são tratadas nesta pesquisa como deslocamentos pela différance. A artista transita por entre-lugares ao afirmar-se como protagonista do movimento da Bossa Nova. A partir da sua experiência corpórea, da sua voz, dos seus desejos e das suas memórias, busca-se entender como uma mulher torna-se sujeitA da sua história. A experiência dessa artista que atravessou o século XX para o XXI - seu percurso escolar, suas viagens, seu lugar na música -, pode contribuir para desafiar os papéis estereotipados e hierarquizados por gênero na alta contemporaneidade?

Palavras-chave: Desconstrução. Différance. Falogocentrismo. Música Popular Brasileira – MPB. Público X Privado.

RESUMÉ

Cette étude émerge inspirée par la pensée de la déconstruction, dans la perspective de Jacques Derrida, pour enquêter sur les déplacements et les errances du féminin dans la société phallogocentrique. Pour réfléchir aux conditions dans lesquelles les déplacements peuvent avoir lieu, la recherche se consacre à accompagner les traces de vie de la chanteuse Heloísa Maria Buarque de Holanda, de surnom Miúcha. On observe cette femme en tant que sujet(E) et autrice en racontant ses actions d’éloignement et son approche de la convention féminine. Ses choix de changement de pays, de mariage, de séparation et de maternité sont traités dans cette recherche comme des déplacements par la différance. L'artiste se déplace entre les lieux en s'affirmant comme la protagoniste du mouvement Bossa Nova. A partir de

7 son expérience corporelle, de sa voix, de ses désirs et de ses mémoires, on cherche comprendre comment une femme devient soumise à son histoire. Comment l'expérience de cette artiste qui a traversé le XXIe siècle pour le XXI - son parcours scolaire, ses voyages, sa place dans la musique - peut contribuer à remettre en question les rôles stéréotypés et hiérarchisés par genre dans la haute contemporanéité ?

Mots-clés : Déconstruction. Différance. Phallogocentrisme. Musique Populaire Brésilienne. Public X Privé.

ABSTRACT

This study is inspired by the process of deconstruction, from the perspective of Jacques Derrida, investigating the displacement and wandering by the feminine in the phallogocentric society. To think about the conditions in which this displacement takes place; this research is dedicated in following the traces of the life of the singer Heloísa Maria Buarque de Holanda, nickname Miúcha. One observes this woman, as subject and author of her own history, narrating, actions of estrangement in her approach towards feminine conventions. Her choices, of country, marriage, separation and motherhood, are identified in this research as displacements marked by her différance. The artist transits between places and affirms herself as a protagonist in the Bossa Nova movement. From her bodily experience, her voice, desire and memories, she seeks to understand how a woman can become subject to her own history. How can the experience of this artist who has crossed the XXI century for the XXI - her school career, her travels, her role in music - can contribute to challenge the stereotyped and hierarchical roles by gender in the high contemporaneity??

Keywords: Deconstruction. Différance. Falogocentricism. Brazilian Popular Music. Public X Private.

8 SUMÁRIO

INTRODUÇÃO – Diário da Pesquisa...... 11

Impressões, premissas e perspectivas...... 12

Método: a narrativa compartilhada...... 16

O luto na pesquisa...... 23

CAPÍTULO 1 – Narrando com Miúcha...... 24

1.1 – Ela entre eles...... 32

1.2 – A mãe, o pai, as tias...... 37

1.3 – Errância e flânerie...... 47

1.4 – Casamento, maternidade e estranhamento...... 55

1.5 – O amor como interdito?...... 60

CAPÍTULO 2 – A “boa educação” e a mulher no século XX...... 65

2.1 – O doméstico e a escola: ferramentas de controle?...... 77

2.2 – Cartas de amor ou aulas para uma “boa-esposa”?...... 79

2.3 – Rainha por consentimento...... 83

2.4 - Educação segregada por gênero...... 86

2.5 – A invenção da hierarquia por gênero...... 97

2.6 – Controle social X controle sexual...... 99

2.7 – A musa e a mascarada: arma ou armadilha?...... 102

9 CAPÍTULO 3 – Desconstrução pelo feminino na música...... 110

3.1 – De quem é palco, de quem é a palavra?...... 114

3.2– A escrita pelo corpo discursivo...... 117

3.3 – A boêmia como entre-lugar...... 125

3.4 - A Bossa descolonial, desafiando universalismos...... 130

Uma (quase) conclusão...... 139

Referências bibliográficas...... 147

Anexo – Elemento pós-textual...... 151

10 Diário da pesquisa

Escrevo em plena greve dos trabalhadores e estudantes da França. Os ventos, as imagens e o tempo me chegam pela janela. As primeiras definitivas linhas surgem em 2018, exatos 50 anos após a insurreição dos estudantes deste país, em sintonia com outros levantes pelo mundo. Em 1968, a mobilização estudantil foi deflagrada a partir de uma bandeira de luta atravessada pela questão de gênero: o desejo dos estudantes de ambos os sexos de compartilharem residências estudantis mistas. Um levante contra a repressão sexual na Universidade de Nanterre, na Île-de-France, seria o estopim para dividir os tempos em antes e depois. Essa fagulha, que à primeira vista pode parecer uma quimera juvenil, foi capaz de provocar convulsões coletivas, ações concretas e quebras de paradigmas sobre qual contrato social e sexual a sociedade da segunda metade do século XX desejava viver.

Vim para Paris seguindo os rastros das memórias errantes de Miúcha, a cantora de Bossa Nova e a mulher, se é que, para o feminino, é possível dissociar essas duas identidades. O tempo de Miúcha se insere nos paradigmas sexuais da sua época, e o seu presente constituiu a reescrita da sua experiência. Antes da viagem para realizar o segundo ano do mestrado em mobilidade acadêmica internacional, concluí o campo da pesquisa. Nas nossas entrevistas, Miúcha me relata os anos da sua juventude em Paris. Na década de 60, ela conhece Violeta Parra, a cantora chilena que lhe abriria as portas da capital francesa. Da troca entre essas duas mulheres, desdobrar-se-ia o encontro de Miúcha com o cantor João Gilberto, com quem viria a se casar e ter a sua única filha. Essa lembrança que trago de um tempo que não vivi me inspira e constitui a presença deste estudo.

Uma passagem da vida de Miúcha, que surge no depoimento colhido por esta pesquisa, me chama especial atenção. Ela me conta sobre as regras no seio da sua família, as quais impunham diferentes códigos para as irmãs e os irmãos. Mesmo sendo a filha mais velha, ao contrário do irmão e também cantor de Holanda, Miúcha não tinha a chave de casa. Assim foi até viajar sozinha para a Europa, aos 24 anos. Na casa da família, a primogênita devia respeitar horários para voltar à noite, e, sobretudo, não lhe era permitido chegar acompanhada apenas de um único rapaz: “-Imagina se fosse um namorado?!”, indaga imitando o tom de voz da sua mãe. Então, para disfarçar as saídas noturnas e a

11 boêmia regada à música, romances, bebida, cigarro, Miúcha usa o artifício de voltar sempre acompanhada de um grupo heterogêneo de amigos, para a tranquilidade da sua mãe. Misturados a eles, estiveram camuflados alguns de seus namorados. No que Miúcha me conta com picardia, às gargalhadas: “-Mamãe não acreditava em suruba!”.

Impressões, premissas e perspectivas

Pergunto-me por que os rastros de Miúcha me mobilizam como o corpo desta pesquisa. Fui criada por mulheres. Uma rede de mulheres formada por minha mãe, minha tia - irmã mais velha da minha mãe que não teve filhos -, minha avó, minha madrinha e a minha irmã adotiva. Minha mãe trabalhava três turnos e educava os três filhos. Uma imagem oposta à donzela na torre do castelo à espera do príncipe. Meu pai passava a maior parte do tempo na biblioteca, dedicado à medicina ou à política pública. Minha mãe era, então, a representação da (pseudo) autonomia da mulher-maravilha. A quem favorece esse papel feminino da mãe-super-heroína? À custa de quanta anulação dos desejos do indivíduo mulher? Pode a mãe ser mulher-sujeitA 1-desejante?

Se me permito essa curva pessoal na narrativa, é para afirmar o que, à primeira vista, pode

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1 – A escolha de feminilizar a palavra sujeito (A) parte da urgência de revisões linguísticas propostas por Luce Irigaray no artigo Sexes et genres linguistiques (1990, pp.83-92), publicado no livro Je, tu, nous – pour une culture de la différence, obra não traduzida para o português. A autora argumenta que a entrada da mulher no espaço público exige mutações culturais e idiomáticas. Irigaray analisa as marcas sexuais nos discursos, registradas em situações cotidianas e terapêuticas. A autora pediu a homens e mulheres que fizessem uma frase simples com palavras como “casamento”, “criança” e “sexualidade”. A conclusão é de que o masculino domina toda a sintaxe da língua francesa, mesmo quando as protagonistas da ação são mulheres. O mesmo se passa no idioma português: ils sont mariés (eles são casados), ils s’aiment (eles se amam). No francês, o pronome neutro ou impessoal se masculiniza com o uso do il faut (você tem que) e não elle faut (1990, p.37). A feminilização surge nesse estudo, ainda, como política de subjetivação. O tornar-se sujeitA, aqui, baseia-se na obra Micropolítica e cartografia do desejo, de Felix Guattari e Suely Ronik. Eles introduzem o conceito do devir- feminino (1982, pp. 86-87) que trata do falar de um lugar singular, em oposição às estratificações dominantes no mundo ocidental, construído a partir da subjetividade masculina. O feminino autônomo então seria um devir, e os deslocamentos fazem parte dessa contra construção do feminino hegemônico, historicamente tecido a partir do masculino como centro. A grafia com “A” em maiúsculo em destaque na palavra “sujeitA” visa ainda colaborar para uma nova arqui-escritura da linguagem (DERRIDA, 1972, pp.36-37), um exercício da desconstrução valorativa das palavras pelo masculino, ressignificando o sentido, muitas vezes, negativo que o neologismo “sujeitA” pode evocar.

12 soar banal o fato de os sujeitos em diálogo serem sujeitAs, sendo esse A maiúsculo constitutivo da experiência desta pesquisa. Na minha trajetória, me vi, como jornalista, no campo externo a casa, viajando e circulando em um mundo masculino. Assim, Miúcha também me descrevia o seu métier profissional. Onde estavam as outras? Elas raramente estavam no centro do palco como autoras, reverberando suas ideias, palavras e sensibilidades. Às vezes, as cantoras selecionavam o seu repertório como intérpretes, espaço onde o feminino era/é mais presente. Essa ausência de pares me fazia, nos fazia, um tanto estranhas. Às vezes, também envaidecidas, porque ser estranho é uma maneira de se destacar. Estaria essa performance no espaço público pautada por máscaras do feminino para o masculino, atendendo, sem nos darmos conta, a um jogo externo?

As escolhas de Miúcha não são totalmente singulares ou puras, mas também foram essas e não outras. Ela agiu entre a boemia, a coxia, os estúdios, ora no palco, ora fora dele. Dessa maneira, ela esteve presente em shows, turnês e gravações, às vezes com destaque, outras, sem receber cachê ou crédito da publicação do seu nome em capas de discos ou fichas técnicas. Miúcha também promoveu encontros entre atores da Música Popular Brasileira - MPB, sendo ela uma sujeitA constante na cena, fomentando amizades que evoluíam para parcerias criativas. O lugar ocupado por Miúcha parece-me um entre-lugar, de uma mulher entre eles. Esse é um lugar excepcional: não existiu outra como ela no centro da apelidada tríade de ouro da Bossa Nova 2. Esse trio de poetas, músicos, cantores e letrados é formado por João Gilberto, Vinícius de Moraes e Tom Jobim.

Chamava-me atenção o silenciamento literário de Miúcha, não encontrando nenhuma ______2 - O termo Bossa Nova, inicialmente, referia-se a um jeito de cantar e tocar, até tornar-se sinônimo de um dos gêneros musicais brasileiros mais conhecidos em todo o mundo. Considerada uma nova forma de tocar , a bossa nova foi criticada pela forte influência norte-americana, traduzida nos acordes dissonantes comuns ao . As letras das canções contrastam com as das canções de sucesso até então, abordando temas leves e descompromissados, definidos através da expressão "o amor, o sorriso e a flor", que faz parte da letra de Meditação, de Tom Jobim e Newton Mendonça. Outra característica é a forma de cantar, também destoante com a que se tinha na época. O 'canto-falado' ou do 'cantar baixinho', o texto bem pronunciado, o tom coloquial da narrativa musical, o acompanhamento e canto integrando-se mutuamente, em lugar da valorização da 'grande voz' (MEDAGLIA, Júlio. in CAMPOS, Augusto de. Balanço da bossa e outras bossas. São Paulo: Perspectiva, 1993, p. 72). Porém, Miúcha não é muito afeita às definições enciclopédicas sobre o gênero musical. Ela traz uma definição mais concisa da Bossa Nova, parafraseando o marido: “A Bossa Nova é o samba lento. Para João Gilberto nunca existiu Bossa Nova, só existe samba”. Já a expressão “tríade de ouro” aparece com frequência nas críticas musicais da impressa dos anos 60. biografia direta sobre ela. Então, decidi começar pelas entrevistas 3 que viriam a compor esta pesquisa e, em seguida, reunir as ferramentas teóricas para essa análise. O campo dos estudos de gênero me pareceu o mais apropriado, por articular a transdisciplinaridade inerente para ensaiar traduzir uma vida. Psicanálise, filosofia, linguística, estudos culturais, pós-coloniais, antropologia, essas leituras alimentavam e mostravam caminhos, mas ainda faltava algo. Como chamar o que me parecia inominável? Tinha uma hipótese: Miúcha rompeu e se aproximou do feminino padrão. Ela foi protagonista e sombra da Bossa Nova. Como conceituar esse duplo movimento?

Das leituras da obra de Jacques Derrida, surge o fio condutor desta pesquisa. Parto para observar o que chamo de deslocamentos 4 pela différance 5 em Miúcha; a sua particularidade de se diferir por dentro da economia do mesmo (DERRIDA, 1967a, p.295). Entre o significante (perceptível) e significado (representação) a différance emerge como uma relação de fricção da ação com o enunciado. Assim, produz um deslocamento do signo fixo, no caso, a feminilidade convencionada. Ao viajar, Miúcha pôde se reinventar como sujeitA. Ao fazê-lo, contribuiu para criar outro lugar para o feminino. O “quase conceito” différance, como o autor preferia chamar, me orienta a observar as escolhas desta mulher pelas margens e dentro da Bossa Nova. ______3 - HOLANDA, Heloísa M. Buarque, em entrevista para esta pesquisa, , 17 de fevereiro de 2017, 15 de julho de 2018 e 27 de outubro de 2018. Arquivo 1, 2 e 3 - vídeo HD (240min.).

4 – Os deslocamentos podem ser ilustrados pela literatura como descrição de atuação fora do convencionado. Em um exemplo inverso, do masculino para o feminino, evoco uma passagem da Odisseia sobre o momento em que Ulisses escuta o aedo cantar suas aventuras. Nesse momento, a personagem baixa a cabeça e começa a chorar. Esse gesto, o choro público, era comumente associado ao feminino. As mulheres eram as que choravam, em situações como quando, após longas viagens para aventuras e frentes de batalha, elas recebiam o cadáver do marido. Nota-se nessa metáfora, do homem que chora em público, um deslocamento dos estereótipos de gênero do feminino para o masculino.

5 - O temo différance surge trazido por Jacques Derrida no contexto do movimento do pós-estruturalismo francês e recebeu diferentes traduções no Brasil. Opto aqui por manter a versão original do autor. Ao deslocar a palavra différance da semântica original no idioma francês - trocando o "e" pelo "a" no meio da palavra différence, Derrida inaugura uma arqui-escritura, permitindo a articulação em um só termo de ideias de diferença e errância, essa última provocada pelo som de errance. O pensamento na différance sugere um exercício de pensar a desconstrução de verdades dadas como ontológicas e canônicas. Nesta pesquisa, o termo différance é trazido como ação de deslocar-se por entre o feminino naturalizado, se encontrando não no meio, mas dentro do meio (DERRIDA, Jacques & BENNINGTON, Geoffrey, p.151). A expressão entre-lugar, no Brasil, aparece no livro Uma literatura nos trópicos, de Silviano Santiago, 1978, referindo-se ao lugar da arte brasileira em um mundo eurocêntrico. Aqui, por sua vez, serve para observar essa mulher e artista além dos binarismos. A perspectiva deste estudo é narrar a sujeitA sem classificações reducionistas, como esposa-dedicada ou uma mulher-outsider, buscando traduzi-la sem o recurso de adjetivos binários.

14 Ao longo deste estudo, tenho uma pergunta-guia: onde estariam os pontos de virada da sujeitA ao se deslocar do falogocentrismo 6 ? Seria Miúcha uma flâneur(e) 7 experimentando novos femininos pela presença do corpo? O que leva uma mulher a provocar ações de desconstrução dos estereótipos de gênero? Como contraponto, quais seriam os interditos aos deslocamentos, capazes de provocar desvios, configurando um fluxo de aproximações e recuos entre o feminino convencionado e o feminino autônomo? Assim, busco identificar seus deslocamentos do feminino 8 estabelecido, sejam eles territoriais ou simbólicos; a sua normatização, quando ela se ajeita e se encaixa nas regras do sistema falogocêntrico; e suas mascaradas, quando transita pela representação do que se institucionalizou como feminino. Quais seriam as condições objetivas e subjetivas para se deslocar? ______6 – A palavra falogocentrismo expõe o centralismo do falo como o ponto de referência discursivo, um modo de validação da cultura para pensar a sociedade sob pretexto de uma neutralidade transcendental, que coloca um privilégio pelo masculino (BENNINGTON & DERRIDA, 1991, p. 146). Uma antologia da palavra falogocentrismo obriga a recorrer a diferentes atores do século XX. O termo logocentrismo surge no início do século XX, pelo filósofo alemão Ludwig Klages, para se referir à tendência no pensamento ocidental de colocar o logos (palavra de origem grega que pode significar verdade; razão) como o centro do discurso. Na mesma época, Sigmund Freud, interessado em literatura, teatro e na arte dos povos antigos, utiliza a palavra phallus (do grego phallós, do latim phallus) nos estudos sobre sexualidade. A palavra serve, em certa medida, para Freud distinguir o pênis, órgão genital, do falo, que seria o símbolo representativo da virilidade. Mais tarde, na década de 60, Jacques Lacan traz a palavra “falocentrismo” no seminário sobre o conto de Edgar Alan Poe The Purloined Letter, expandindo o conceito simbólico do falo. Logo em seguida, Jacques Derrida funde os dois termos: “logocentrismo” e “falocentrismo” e cria, então, um neologismo: “falogocentrismo”, acrescentando o lo(go) ao falocentrismo. Para Derrida, o movimento é sempre duplo. Mas do que utilizar um nome do “o” ou “um” falo, devemos falar do movimento fálico (...) ele existe na presença, no fetiche previsível e calculável – e no risco da significação, uma corrida infinitamente aberta, dispersa e incalculável (DERRIDA, 1972, pp. 54-55). Derrida usou o termo para referir-se ao pensamento ocidental desde Platão. Estaríamos desde o platonismo até a alta contemporaneidade, regidos pela busca constante da "verdade" e da “origem”. Desconstruir o falogocentrismo, em uma perspectiva derridiana passa por questionar as ditas verdades binárias, como: homem/ativo; mulher/passiva, homem/sádico; mulher/masoquista; homem/viril, mulher/castrada (DERRIDA, 2000, p.20).

7 – No século XIX, na obra de Charles Baudelaire, surge o termo flâneur como um personagem da literatura, errante, vadio, caminhante. Com esse termo, usado também para designar o artista independente, comumente no masculino, o autor inaugura um novo verbo, sem tradução do original francês para outras línguas, que passa a definir uma forma de habitar o espaço público, em especial a cidade. Essa pesquisa identifica que o termo dialoga bem com a errância de Miúcha no percurso da sua vida. Ela praticaria a flanerie, e seria, portanto, uma flâneur(e), feminizando a palavra. Isso se daria ao se mudar do Rio de Janeiro para Paris, sem um roteiro de vida pré-determinado, embalada pela Bossa Nova e buscando mais do que cantar: experimentar a liberdade de fazer escolhas sem amarras familiares ou expectativas sociais. O fato de ser uma desconhecida na cidade permitiria se reinventar como bem quisesse, no seu caso ser cantora de Bossa Nova.

8 - Este estudo trabalha com as palavras “feminino” e “feminilidade”, analisadas como termos em disputa. Seus sentidos estão, portanto, em combate discursivo entre o que seria dito como próprio do gênero feminino e sua desconstrução e autoconstrução pelas entranhas da lógica falogocêntrica. Isso se traduz entre a feminilidade como uma representação da mulher sobre o que lhes foi dito ser constitutivo do feminino e dos femininos autônomos a serem ainda inventados.

15 Quando uma mulher se desloca, complexifica os olhares do que seria o feminino? A memória individual pode ser vista como uma memória coletiva, entendendo esta como uma coletânea de rastros que afetam o curso da história dos grupos envolvidos (RICŒUR, 2016, p.128)? Pode a fala de uma mulher ajudar a pensar plurais femininos?

Método: a narrativa compartilhada

A gente escreve o que ouve, nunca o que houve 9 Oswald de Andrade

Para a jornalista, diferente da artista, o eu é um terreno do oculto, velado pela objetividade imposta ao texto jornalístico. Estamos sempre narrando na terceira pessoa, contando uma experiência vivida por outrem; assim rezam os manuais de redação. Se evoco essa figura identitária da jornalista, é porque foi a partir desse emblema que estive habituada a me significar diante do mundo na vida adulta. Como mestranda do campo de educação e diversidade, dedicada a uma pesquisa de componente biográfico, esse lugar foi se mostrando poroso no meu percurso. Nas entrevistas com Miúcha, busquei fazer um exercício semelhante: onde você estava? O que você sentiu? O que você pensa? Meu desejo era tocar a alma, o ventre, a pulsão de vida dessa mulher artista.

No percurso das entrevistas, pós-escuta e escrita desta pesquisa, o que chamo de narrar com se revelou susceptível a transferências e contras transferências entre a sujeitA que narra e a sujeitA que traduz. Parece-me ainda mais claro que o que apresento é o resultado de uma “pesquisa tradução”, por me sentir como um filtro ao transcrever com minhas palavras o dito por Miúcha. Portanto, como é inerente à tradução, não existe neutralidade, o tradutor inevitavelmente faz escolhas a partir da sua experiência na relação com a sujeitA e o mundo. ______

9 – Citação atribuída ao modernista Oswald de Andrade, extraída do livro Oswald de Andrade, o homem que come, de Maria Augusta Fonseca, Ed. Brasiliense, 1982.

16 Escolhi começar pela narração por ser um verbo substantivo para este estudo. Um mergulho na epistemologia da palavra “narrar” ajuda a clarear o que vejo quando escuto. A palavra “narrar” vem do verbo latino narrare, cujo significado além de contar e relatar, é também expor, tornar conhecido. Assim observei Miúcha enquanto tecíamos esta pesquisa desejosa de contar o que viveu, como alguém que arrasta a sua história para além da vida.

Falar das memórias alheias suscita as nossas próprias memórias. Por isso, acrescento à frase “a gente escreve o que ouve, nunca o que houve”, do modernista Oswald de Andrade, o como, quando, quem e de quem ouve. Assim, a atmosfera da tecelagem do corpo desta pesquisa revela tanto. As entrevistas se desenvolveram com visitas à residência de Miúcha, no bairro do Leblon, na cidade do Rio de Janeiro. Na sua casa, ela guardava objetos que herdou ou acumulou ao longo da vida. Era o seu museu íntimo, composto por cartas, fotos, guardanapos, diários, que contam passagens da sua vida entrecruzada as histórias da Bossa Nova. Esta pesquisa trabalha, então, fundamentalmente, a partir dessas fontes primárias: a sujeitA e as suas coisas, as quais identifico como os objetos falantes. Os elementos do seu acervo ajudaram a provocar as conversas objetivadas para este estudo. Através deles, segui costurando contextos e garimpando sutilezas.

Quem narra comigo esta pesquisa é a Miúcha nos seus 80 aos 81 anos, idade em que se encontrava quando transcorreram as entrevistas. Uma nova Miúcha lembra aquilo que outra viveu, gerando uma narrativa vista pela maturidade. Nestes momentos, surgem narrativas particulares nas quais se concentram os principais Acontecimentos 10, dos anos 60 e 70, ______10 – Esta pesquisa trabalha a noção de Acontecimento como um cronotopo, da semântica grega crono/tempo e topo/espaço. O Acontecimento é algo que acontece em certo instante, como no momento da enunciação ao ser narrado. O conceito surge a partir dos estudos de análise do discurso, do filósofo da linguagem Mikhail Bakhtin, que diferencia o acontecimento histórico do acontecimento discursivo. Em uma perspectiva da desconstrução, o Acontecimento neste estudo é visto nessa dupla direção e inclui ainda o que Derrida chama de “invenção performativa”, compreendendo que o Acontecimento se apropria dele mesmo, na sua performatividade. Derrida, no entanto, utiliza a expressão “Événement”. Porém, opto pelo termo Acontecimento por acreditar ser mais adequado na língua portuguesa. Para este estudo biográfico interessa observar a vida da sujeitA por seus rastros, como uma trama composta por casualidades e marcada em um arco temporal, um lugar onde se dão as transformações de sentido (DERRIDA, 1967b, p.77; p; 86; p.105; p.323). Assim, uma sujeitA contém em si inúmeras e inesgotáveis combinações biográficas. Existem várias narrativas possíveis para Miúcha, essa é uma, resultado de um encontro de Acontecimentos, que incluem as entrevistas. Para destacar os Acontecimentos que têm a potência de ponto de virada, usarei o A maiúsculo na palavra Acontecimento marcando a presença da sujeitA. A expressão “ponto de virada”, também recorrente neste estudo, por sua vez, tomo emprestada das narrativas literárias para descrever um incidente capaz de mudar o curso da ação dramática, criando novos obstáculos ou apontando soluções para a sujeitA.

17 diferentes daquelas que teriam sido narradas no período em que transcorreram. Viver e narrar se amalgamam, e isso traz uma intensa sensibilidade para o processo das entrevistas. Ao narrar, Miúcha revive com outro corpo, aquilo já vivido, e me leva a observar que aquilo que é narrado é estruturante das lembranças, reelaborando um evento passado, que ganha um sopro de vida ao serem rememorados.

Faço a escolha por respeitar a atmosfera dos instantes das entrevistas, por isso privilégio o tempo verbal do presente do indicativo, em uma leitura de que a artista continua viva na sua obra e esta mulher deixa seus rastros no presente. Conservo também certo embaralhamento na narrativa, inerente à fala, que não segue a cronologia histórica dos Acontecimentos. Por esse motivo, alguns assuntos vão e voltam acrescentando uma nova entonação ou trazendo diferentes reflexões. O a-cronológico surge para marcar que esta pesquisa não trabalha com o princípio evolutivo da experiência e, sim, com uma perspectiva não cartesiana dos rastros de uma vida, como uma imagem espiral.

Falamo-nos pessoalmente ou por telefone, informalmente ou gravando, durante dois anos. Seis anos antes de iniciar esta pesquisa, tínhamos nos encontrado no Quartier Latin, em Paris, sem combinar. Nesse dia, sentamos no Café Danton, na Praça Odéon, para brindarmos aos encontros. Ela, em meio à conversa, aponta para a esquina do Saint-German des Près e começa a contar despretensiosamente: “-Era ali que ficava o La Candelária, um bar com música ao vivo, onde comecei a cantar Bossa Nova”. Nele estaria, pela primeira vez, ocupando o palco como atração principal. É lá que conhece João Gilberto, e ela diz que já se sentiram namorados desde o primeiro instante. Percebo um encantamento pelo “herói” - palavra trazida por ela. Miúcha me diz que percebeu a sua vida sendo dividida em antes e depois daquele primeiro encontro com o futuro marido. Esse Acontecimento tem a potência de ponto de virada, como pude confirmar depois nas entrevistas formais.

Essas conversas livres serviriam para aguçar minha curiosidade e construir a hipótese dos atravessamentos do feminino pelo masculino como produtor de interditos consentidos pela interditada. Esses Acontecimentos na vida de Miúcha também seriam produtores de deslocamentos, como a decisão, anos mais tarde, de ter uma única filha, romper a relação amorosa e não voltar a se casar. A sua carreira viria também a alcançar o auge depois de

18 voltar a morar no Brasil, perto dos 40 anos de idade, após a separação. A problematização do métier da música como espaço com distinções hierarquizadas por gênero foi minha observação inicial. Os papéis do masculino e do feminino me pareciam marcados nas letras das canções, nas capas dos discos, no espaço do palco. Estariam também nas lembranças e impressões de Miúcha?

Sua primeira resposta sobre os possíveis estereótipos de gênero na Bossa Nova foi “– Não!”. Para e em seguida, ainda no primeiro encontro formal, me guiar a ver como foi difícil conciliar ser mulher, cantora e mãe. E como era bem mais custoso para elas do que para eles, os cantores, artistas e pais. Procuro trazer esses Acontecimentos íntimos em diálogo com a música, as que ela cantou e as que compuseram seu universo de referências. A música é constitutiva de Miúcha, que cantarola durante os depoimentos, por isso as canções significativas estão com os versos na íntegra ou letras completas, nas quais faço as marcações da pesquisa.

Neste estudo, a catalogação dos documentos exclui aqueles que Miúcha manifestou não estar certa de desejar torná-los públicos, como cartas onde descrevia suas questões com o casamento. Nelas, estariam os motivos da sua decisão de se separar, que surgem na fala associada ao não, ou ao pouco reconhecimento do trabalho dela em certas passagens da Bossa Nova. Na fala mais livre da oralidade, aparecem com força os Acontecimentos profissionais delicados, demonstrando como os espaços da intimidade e da carreira se atravessam. Assim, algo lhe escapa. Esse escape seria um ato falho? Uma manifestação do seu inconsciente ávido por externalizar algo guardado por e que não lhe caía bem?

Esta seleção controlada dos arquivos esbarra no Acontecimento das entrevistas, onde agem forças como a representação contida neste ritual e os escapes típicos da presença desconcertante do outro. Para Hannah Arendt, a palavra também é uma forma de ação. Eis, então, o primeiro risco. O segundo é da esfera do acaso: nós começamos alguma coisa, jogamos nossas redes em uma trama de relações, e nunca sabemos qual será o resultado. Isso vale para qualquer ação, e é simplesmente por isso que a ação se concretiza – ela escapa às previsões (ARENDT, 1993, p.143). Sigo atenta aos acasos, sem abrir mão do

19 propósito científico desta pesquisa. Por isso, parte da poética dos nossos encontros deve ser transformada em filme 11. Identifico nela um desejo da autocriação como sujeitA, como alguém que buscou a autoria sobre a sua imagem.

Ao começar as entrevistas, não sabia para onde elas me levariam, mas tinha um ponto de partida: como as experiências dessa mulher e mãe se atravessam com a da cantora de Bossa Nova? Para ensaiar responder essa questão, concentrei as perguntas feitas à Miúcha no seu cotidiano doméstico, familiar e amoroso, inevitavelmente, intricados à sua persona pública como artista. Esse entre-lugar do público com o doméstico na experiência desta sujeitA me fez decidir pela utilização do seu nome de família e artístico no título: “O feminino da Bossa pelos rastros de Heloísa Maria Buarque de Holanda, a Miúcha”.

No título, existe uma vírgula oculta entre o seu nome composto Heloísa e Maria, marcada sutilmente pela linha que quebra na frase. Com essa diagramação da capa busco comunicar visualmente que ela é célebre como artista e comum como tantas outras Marias. A primeira linha terminando com Heloísa, justifica-se ainda por ser esse o nome como João Gilberto a chamava, o mesmo usado pela sua mãe em momentos nos quais essa lhe chamava a atenção. Segue-se o nome Maria e o sobrenome da família paterna, que ela nunca substituiu pelo do marido. Por fim, Miúcha o seu nome artístico, o mesmo como era chamada pelos familiares e amigos. O apelido Miúcha foi dado pelos pais logo que ela nasceu, como uma corruptela da sua característica de uma criança “miúda”. Para o título, pelo ainda emprestado do glossário da desconstrução, o termo rastro (DERRIDA, 1967a, pp.76-77) como traço impresso entre as diferentes esferas, pública e privada, de Miúcha.

Esse recorte embutido no título permite localizar a consubstancialidade 12 da sujeitA Miúcha. ______11 – Link do compacto do material audiovisual produzido por esta pesquisa com legendas em francês. Disponível no site: https://vimeo.com/261684307, senha: bossanova. Acesso feito em 06 de agosto de 2019.

12 – A consubstancialidade introduz a perspectiva de que as opressões além de se acumularem, como aposta a perspectiva da interseccionalidade, também se realizam umas nas outras, dando substância e formando o tecido social. Esse tecido social deve ser entendido na sua totalidade, sendo que seccioná-lo, mesmo para fins analíticos, pode atrapalhar a análise do dinamismo inerente a esses fenômenos. A perspectiva da consubtancialidade é usada neste estudo por identificar os movimentos entrelaçados como constituidores e reiteradores do falogocentrismo. O termo consubstancialidade é atribuído a Françoise d’Eaubonne, biógrafa e eco-feminista, autoidentificada assim antes da popularização da expressão “eco-feminismo”, o que (...)

20 Se a sua condição de artista e o seu sobrenome de família de destaque público a colocam no lugar social de privilegiada, a combinação de mulher, mãe, artista brasileira e latina vivendo na Europa e nos Estados Unidos, a empurra para a borda. A presença do corpo feminino no palco, muitas vezes estereotipado em uma categoria antagônica ao papel santificado de mãe, a restringe duplamente como uma habitante na margem do centro pelo masculino. Suas viagens e moradas por epicentros da cena artística marcadamente eurocêntrica e dominada pela cultura norte-americana, a colocam como uma exceção por transitar pelos holofotes da Europa e Estados Unidos. Uma demonstração do seu reconhecimento fora do Brasil foi o destaque dado pela mídia a sua morte, como a matéria do jornal francês Le Figaro 13 com o título: ‘Miúcha, a rainha mãe da Bossa Nova morre aos 81 anos’.

No caminhar das transcrições das entrevistas, sigo me perguntando em que medida Miúcha não queria contar algo que contou. Ela demonstra haver ali uma autoria dela sendo tecida, em cada palavra é possível ler suas escolhas de como gostaria de ser lembrada. Algumas vezes, deixa a sensação de que estava cansada do script que escreveu para si mesma. Dentro dessa teia de intersubjetividades, busquei me colocar como um exotopo, o lugar da estrangeira, no qual reconheço meu estranhamento temporal e espacial ao investigar um tempo que não vivi. A exotopia compreende um desdobramento de novos olhares a partir de um lugar exterior, externo ao sujeito narrado, que inclui algo que o próprio sujeito não pode ou não quer vê. ______

12 - (...) acontece a partir de 1978. No livro Le feminisme ou la mort – femmes em mouvement (Ed. P. Horay, 1974), Euabonne utiliza o termo consubstantialité em francês. Para a autora, através do apartheid sexual, o sistema falogocêntrico (Euabonne utiliza o termo falocracia) extrai das mulheres o trabalho reprodutivo necessário à manutenção da estabilidade social, ao mesmo passo que garante aos homens o poder sobre a sexualidade feminina. Através do racismo (e esse estudo acrescenta as relações de poder sobre as colônias), conseguiria mão de obra para realização de trabalhos que os dominantes julgam inferiores, como toda a gama de cuidados: com a casa, com as crianças, com a comida, com a sexualidade masculina. Ainda segundo a autora, ao apropriar-se da fertilidade (das mulheres) e da fertilidade (do solo), os homens e a sociedade “falocrática” as conduzem para a catástrofe. Por isso, o reconhecimento da feminitude -, como chama a infelicidade de ser mulher em uma sociedade governada por homens -, pode salvar a espécie humana ameaçada. A única alternativa seria então: “feminismo ou morte”, como sugere o título do seu livro. Apesar de sua obra ter sido publicada na segunda onda do feminismo francês, o conceito de consubstancialidade pode ser visto como uma teoria pós-interseccional do século XXI.

13 – Link para reportagem Le Figaro, de título original do francês: ‘Miúcha, na reine mère de la Bossa Nova, est décédée à l’age de 81 anos’, datada de 28/12/2018 – Disponível no site: http://www.lefigaro.fr/musique/2018/12/28/03006-20181228ARTFIG00098-micha-la-reine-mere-de-la-bossa- nova-est-decedee-a-l-age-de-81-ans.php . Acesso feito em 06 de agosto de 2019.

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Coloquei abertamente a minha inquietação sobre como percebia o intrincamento entre a sua vida pública e a privada e, na minha hipótese, de como as duas se afetam de forma determinante para o seu percurso. Isso ajudou a quebrar uma possível resistência às perguntas estranhas ao universo da música. Este narrar com inclui o estado de entre- afecção13, no qual Miúcha se permitiu ser tocada pelas perguntas e as perguntas também foram sendo adaptadas ao fluxo das respostas. Concordamos juntas que o talvez seria bem- vindo, então, peguei as diferenças de experiências, geracionais, profissionais, maternas, e sigo com elas. Propus as entrevistas com, e não de. São muitas as limitações e riscos embutidos na tradução do outro. Segundo Jacques Derrida, não podemos falar do outro, só podemos falar ao outro. Nessa máxima da alteridade radical derridiana, busquei me pautar no que defino este estudo biográfico como uma “pesquisa tradução”. Eu a traduzo falivelmente a partir do seu texto narrado sobre si mesma.

A divisão dos capítulos segue dois caminhos distintos e complementares. O primeiro capítulo assume o tom biográfico das entrevistas, portanto mais fluido e literário; o segundo articula os rastros no tempo e no espaço em diálogo com as matrizes teóricas que me orientam e inquietam; o terceiro dedica-se à contribuição de Miúcha e da Bossa Nova para os femininos com seus plurais e a cultura brasileira no mundo. Para buscar entender as escolhas de Miúcha, recorro à psicanálise, lendo especialmente na companhia do filósofo Jacques Derrida. Opto, ainda, por fazer uma análise do discurso de autores homens sobre diferenças de gênero, para identificar como a construção do feminino se deu no seu exterior e ensaiar apontar desconstruções possíveis. Como exemplo, trago o discurso da educação feminina rousseauniana pelo bom-comportamento e como complemento do homem. Como essa construção simbólica e real ecoa na alta-contemporaneidade, e como algumas mulheres conseguem desafiar essas heranças? ______13 – No livro Gramatologia, Derrida traz o tremo “autoafecção” como a experiência do tocante-tocado (...). Ao dar-se uma presença ou um gozo, acolhe o outro na estreita diferença que separa o agir do padecer (1967, pp.201-202). Parto de Derrida, para trabalhar com o termo entre-afecção, buscando reforçar a dupla direção e entendendo a pesquisa como ação discursiva e pós-discursiva. Ao longo da sua obra, Derrida irá caminhar para se interessar pelos estudos sobre alteridade radical na relação como outro. O “entre” aqui serve para localizar os encontros das entrevistas entre as duas sujeitAs – Miúcha e esta pesquisadora - com suas diferenças, resultando não em uma síntese, mas em uma pesquisa tradução: como escuto Miúcha, como ela me permitiu escutá-la e como me foi possível lê-la. A palavra “afecção”, refere-se às sujeitAs em diálogo na pesquisa e nas esferas da sua vida pública e privada.

22 O luto na escrita

Após quatro entrevistas presenciais, além das ligações telefônicas e alguns encontros casuais e festivos, dia 27 de dezembro de 2018 chega-nos a notícia da morte de Miúcha no Rio de Janeiro. Começa aí, mergulhada em um sentimento de luto e responsabilidade, a segunda etapa desta pesquisa. Era hora de ouvir todo o material novamente, para me certificar das escolhas feitas até aqui e do que eu possa ter deixado escapar. O que estava ali e não ouvi? Um respiro? Uma modulação na voz? Um riso mais significante?

Parece-me ainda mais claro que tornar pública a narrativa de Miúcha contribui para ressignificar a memória coletiva do feminino na Bossa Nova. A sujeitA e o coletivo são entidades em diálogo, somos indivíduos em relação com o outro, o que significa dizer, que existimos no outro. Com o nascimento da sua filha, nasce também uma nova Miúcha, sem que a antiga, que desejava cantar e circular pela boemia, estivesse morta. Os rastros entrecruzados entre o coletivo e a sujeitA tornam significantes às micro-histórias. O slogan que ecoou nas manifestações dos anos 60, quando o movimento feminista queimou sutiã nas ruas e reivindicou o direito ao uso da pílula anticoncepcional, segue atual e, arrisco, mais urgente do que nunca: “O pessoal é político” 14.

No caminhar de toda essa movência, foi significante o momento de autorização formal de Maria Heloisa Buarque de Holanda para esta pesquisa, em julho de 2018, após as suas falas. Ela assinou sem hesitar. Esse fato só aumentou a minha insistência em persistir, concluindo esta escrita pouco mais de um mês após a sua morte. Portanto, é em estado de resignação com o destino, que chego até aqui. Preciso me conformar que Miúcha não irá ler essas linhas, logo ela que desafiava e ria da morte vivendo sem freios, culpa ou julgamentos. A partir daqui, é jogar as palavras ao vento como música para quem sabe, contribuir com a sua experiência para amplificar vozes de outras artistas mulheres e somar mais aplausos ao seu merecido reconhecimento.

______14 – A autoria da frase é atribuída à feminista norte-americana Carol Hanisch.

23 Capítulo 1 –

Narrando com Miúcha

Miúcha se lembra da sua infância com uma nitidez espantosa. Suas memórias das casas por onde morou com a sua família Buarque de Holanda são sempre definidas como cheias de gente e muito alegre. Por lá passaram intelectuais e escritores como Antônio Cândido, Manuel Bandeira, Simone de Beauvoir, Sartre, Albert Camus, políticos como os presidentes Luís Inácio Lula da Silva e Fernando Henrique Cardoso. Lá, frequentaram personalidade de diversas matrizes, em especial da literatura e da música, como Jorge Amado e Dorival Caymmi. Muitos trazidos por Vinícius de Moraes, que, como conta Miúcha, chegava à casa da sua família “nunca com menos de dez pessoas e um violão”. A festa entrava pela madrugada. Ela diz: “- Vinícius de MoraES era o plural encarnado”, brincando com o sobrenome do poeta.

Miúcha: Vinícius (de Moraes) era aquele rapaz prodígio, dez anos mais novo do que o papai, muito precoce e sedutor. O jovem poeta promissor. Vinícius chegou lá em casa antes de mim. Ainda no primeiro ano do casamento dos meus pais eles ficaram muito amigos. Ele estava sempre trazendo um verso novo para mostrar e adorava incluir as crianças, levando todos a cantar. Anos mais tarde, foi Vinícius que me apresentou as primeiras canções de Bossa Nova. Naquele momento, para mim, foi como se o cinema em preto e branco ficasse colorido.

Vinícius de Moraes conhece Miúcha ainda bebê. O poeta visita seus pais para parabenizá-los pela chegada da primogênita. E através dele, a música pré-Bossa Nova vai ocupando a sala de estar dos Buarque de Holanda. Antes de João Gilberto se consagrar como cantor, veio Dorival Caymmi, baiano que inspirou a batida e a harmonia no violão de João Gilberto, como Miúcha conta. Na mesma época, Dorival Caymmi já habitava o universo dos Buarque de Holanda 15, frequentando esporadicamente os saraus da família, levado por Vinícius de Moraes. Sobre a importância da Dorival Caymmi na sua formação enquanto artista, Miúcha narra: Miúcha: Eu não era uma criança bonitinha, decorativa. Certa vez, quando fiz a minha primeira música, devia ter uns oito anos, eu mostrei para papai e mamãe, e eles não deram muita bola. Acharam uma imitação de (Dorival) Caymmi, porque falava de mar e de pescador. Agora veja só, se uma criança nessa idade já teria a noção de estar copiando alguém. Fiquei muito chateada! ______

15 – Imagem abaixo: Foto do álbum da família Buarque de Holanda com Sergio Buarque de Holanda no centro (de colete) e Maria Amélia ao lado de Miúcha (de preto), na ponta direita.

24

Figura 1 – Esta foto retrata a família Buarque de Holanda reunida em uma divisão espacial com as filhas mulheres próximas à mãe Maria Amélia e os filhos homens próximos ao pai Sergio Buarque de Holanda.

Essa memória surge como algo muito familiar, como quando ainda na infância ganha o seu apelido de Miúcha.

Miúcha: Meu nome não era meu nome, era da vovó. Heloísa, Heloísa com trema (grafia do português antigo). Aí comecei a ser chamada de Miúcha em casa, então não sei quem começou essa história, se foi meu pai ou minha mãe. Virei Miúcha porque eu era miúda. Era ágil, agitadíssima e muito pequena. Depois na escola, não queria que me chamassem de Miúcha. Ah! Foi aí que o apelido pegou mesmo! Heloísa ficou só quando mamãe dava bronca, se ela estivesse bravíssima era Heloísa Maria!”

Da infância, Miúcha tem uma recordação especial do nascimento da primeira irmã, em um tempo em que os pais não sabiam o sexo do bebê antes do nascimento. Ela conta:

Miúcha: Mamãe não aguentava mais menino (risos), foram três depois de mim. Então, quando nasceu a Pí, a Maria do Carmo, foi uma surpresa. Levei o maior susto, acho que mamãe também. Eu mesma pensei: ‘-É mesmo? Pode nascer outra mulher nesta família?’. Depois mamãe ficou aliviadíssima e eu fiquei encantada.

Com o nascimento da irmã, Miúcha não perderia o posto de primeira filha e de primeira neta, mas passaria a ter uma garota na casa que jogava futebol melhor do que ela. Ela se

25 lembra mais da infância: ‘-A gente jogava futebol todos os irmãos juntos, mas quando nasceu a Pí (Maria do Carmo), ela se revelou muito melhor com a bola do que eu”. Viriam ainda mais duas irmãs, Maria Cristina e Ana Maria. “-Todas são ‘Marias’. Era mamãe que queria colocar os nomes de Maria, dedicados a Nossa Senhora”.

É essa Miúcha que, ainda criança, manifesta para a família o que seria a primeira influência musical evidente, sem que ela própria percebesse qualquer interferência direta na sua música. Para ela, viria mesmo era da experiência de criança nas praias do Rio de Janeiro. Miúcha marca as passagens da infância e adolescência pelas diversas mudanças de residência da família. De Copacabana, bairro carioca onde nasce em 30 de novembro de 1937, se mudaria ainda criança para o bairro do Leme. Dessas duas casas do lado da praia, ela lembra as brincadeiras com os irmãos e as babás catando conchas do mar e tatuís. Ela conta:

Miúcha: Nasci em um prédio de arquitetura art nouveau, que ainda está lá de pé, na Avenida Nossa Senhora de Copacabana, com a praia por perto. Lembro-me das brincadeiras com meus irmãos, de pegar vagalume com copo e depois destampar os vagalumes no quarto para ver aquelas luzinhas voando.

Essa poética pueril da infância contrasta com o que viria a ser a sua vida como artista. A canção Essa Mulher 16, cantada e escrita por duas mulheres, mães e artistas, casadas com homens artistas, dá pistas sobre o universo da Música Popular Brasileira - MPB. A canção de Joyce e Ana Terra, que se tornou popular na voz da cantora Elis Regina, exemplifica a narrativa da condição feminina e o desejo de ser cantora.

A canção Essa Mulher descreve:

De manhã cedo essa senhora se conforma Bota a mesa, tira o pó, lava a roupa, seca os olhos Ah, como essa santa não se esquece de pedir pelas mulheres Pelos filhos, pelo pão Depois sorri, meio sem graça E abraça aquele homem, aquele mundo

______

16 – A canção Essa Mulher ficou popular na interpretação de Elis Regina e foi escolhida pela cantora para dar nome ao seu disco lançado em 1979. Disponível no site: https://www.youtube.com/watch?v=KvB7vyBrfdE. Podcast da entrevista na qual cita outras mulheres mães e artistas: http://www.ebc.com.br/cultura/galeria/audios/2013/03/elis-fala-sobre-a-musica-essa-mulher-composicao-de- joyce-e-ana-terra. Sites acessados em 04 de agosto de 2019.

26 Que a faz assim, feliz

De tardezinha essa menina se namora Se enfeita se decora, sabe tudo, não faz mal Ah, como essa coisa é tão bonita

Ser cantora, ser artista Isso tudo é muito bom E chora tanto de prazer e de agonia De algum dia qualquer dia

Entender de ser feliz De madrugada essa mulher faz tanto estrago Tira a roupa, faz a cama, vira a mesa, seca o bar Ah, como essa louca se esquece Quanto os homens enlouquecem Nessa boca, nesse chão.

Depois parece que acha graça E agradece ao destino aquilo tudo Que a faz tão infeliz Essa menina, essa mulher, essa senhora Em que esbarro toda hora No espelho casual

É feita de sombra e tanta luz De tanta lama e tanta cruz Que acha tudo natural. (grifos meus)

Como dar conta de ser mulher sexualmente ativa, cuidar dos afazeres domésticos e ser cantora? Se isso não estava previsto pelo destino traçado ao nascer mulher, viria, como na letra da canção Essa Mulher, a resignação. No primeiro verso, ao descrever o cotidiano doméstico a partir de uma personagem feminina, a canção não apenas explicita qual o papel é comumente reservado às mulheres, como revela a sua sina: “bota a mesa, tira o pó, lava a roupa, seca os olhos”. A canção soa como a narração de um sonho, descrito como algo distante para o feminino materno. “Ser cantora, ser artista”, dito no segundo verso, seguido de um “algum dia, qualquer dia”, relata o inusitado desejo. A letra dessa música, embora feita para uma personagem fictícia, que não Miúcha, permite uma analogia e traduz esse paradoxo entre a família e o palco, o externo e o doméstico, ao que parece mais difícil de ser conciliado por uma sujeitA mulher.

A família Buarque de Holanda se mudou de casa algumas vezes no Rio de Janeiro. A família alternou de cidades, entre o Rio de Janeiro e São Paulo, no período em que o pai de Miúcha,

27 Sergio Buarque de Holanda 17, foi diretor do Museu Paulista do Ipiranga durante dez anos e professor da Universidade de São Paulo - USP. As casas mudavam, mas os hábitos do lar onde Miúcha foi criada seguiam com a família. Miúcha recorda da época em que morou em São Paulo, quando ela e os irmãos ficavam à noite na escada, ouvindo e espiando as conversas. Ela conta que, até então, as crianças não podiam participar dos saraus. Em umas dessas noites regadas à música e poesia, ela finalmente consegue entrar na roda:

Miúcha: Era o Vinícius (de Moraes) que chamava as crianças, ele quebrava o protocolo imposto pela minha mãe! Quando ele chegava, já sabíamos que ia ter música. Ele incluía todo mundo, inclusive os mais novos. Uma noite lembro bem a gente no topo da escada da casa da Rua do Buri (São Paulo) já na hora de criança dormir e Vinícius chamou a gente, não teve como mamãe dizer não. Eu adorava participar do coro, a gente imitava as Pastorinhas do Ataulfo Alves. Logo Vinícius (de Moraes) me ensinou as primeiras posições no violão e me deu a receita dele para fazer música: ‘-música é assim, conta uma historinha, depois repete a frase’. Todo mundo começou a fazer música lá em casa.

A iniciação musical de Miúcha surge então no seu cotidiano familiar, o que inclui brincadeiras com suas irmãs mais novas, que imitavam grupos vocais como os Everly Brothers. A partir das experiências de cada irmão, é possível acompanhar as distinções das subjetividades, nas quais as diferenças de gênero interferem, mas não é o único elemento de singularização.

Miúcha: Uma vez estava em casa, na sala, lendo e conversando com papai, devia ser umas onze horas (da noite) quando vejo a porta abrir por fora. Era o Chico (Buarque) entrando em casa. Perguntei: ‘- Que diabo é isso, como você tem a chave?’ Ora, ele era o quarto de sete irmãos, sete anos mais novo do que eu, que devia ter quase uns 20 anos nessa época. Era um absurdo ele ter a chave de casa e eu não!

Miúcha narra o tratamento dado ao seu irmão, o também cantor Chico Buarque de Holanda, completando que nesse dia perguntou ao pai deles o porquê das regras distintas, já que esse repetia sempre que mulheres e homens eram iguais.

______17 - Sergio Buarque de Holanda (1902-1982): Historiador, escritor, jornalista. Autor do clássico "Raízes do Brasil". Em 1922 participou do Movimento Modernista, como correspondente da cidade do Rio de Janeiro, para a revista Klaxon, publicação mensal dedicada à propagação das ideias modernistas. Em 1945, foi um dos signatários da Declaração de Princípios, contrária à ditadura de Vargas. Em 1946, foi nomeado diretor do Museu Paulista. Foi catedrático da Universidade de São Paulo até 1969, quando se aposentou em protesto contra a cassação de professores da USP afastados pelo Ato Institucional nº 5. Disponível no site: https://www.ebiografia.com/sergio_buarque_de_holanda/. Em 1980 foi membro fundador do Partido dos Trabalhadores. Fonte: Apontamento da Cronologia de Sergio Buarque de Holanda, escrito por sua mulher Maria Amélia: Filme Raízes do Brasil II. Disponível no site: https://www.youtube.com/watch?v=rPv65Xk_R8M 1:02:03. Sites acessados 4 de agosto de 2019.

28 Miúcha: Comecei uma briga com papai e perguntei: ‘-O que você acha disso? Você não diz que homem e mulher, é tudo igual? No que ele me respondeu: ‘-É tudo igual, mas aqui em casa quem sabe é a sua mãe’. Sobrava para mamãe fazer a dureza!

Nessa narrativa, além de evidenciar a separação das regras entre o irmão e a irmã, nota-se a responsabilidade e a autoridade na educação dos filhos concentrada na figura da mãe. Essa autoridade incluía o gerenciamento do orçamento doméstico. Sergio Buarque tinha um código com a empregada da casa: quando chegava com livros novos, alguns muito raros e caros, ele os deixava na porta dos fundos e entrava em casa pela porta da frente sem os livros. Assim, Maria Amélia não viria, não tendo como reclamar do gasto extra, tendo o casal sete filhos para criar. Para esta pesquisa interessa problematizar como esse reinar da mulher em casa é consentido pelo marido, não ocupando o tempo do masculino com os afazeres diários, com o doméstico administrados pela mulher.

No espaço público, a visibilidade do pai de Miúcha alcançou diversas esferas e reverberou como uma voz ativa. O historiador Sergio Buarque de Holanda foi um intelectual, escritor e professor universitário que marcou o pensamento crítico brasileiro e influenciou todo um campo das ciências sociais dedicado a pensar a formação da identidade brasileira. Miúcha, a filha primogênita, era em muitos momentos a companheira do pai. Através do círculo social da família, formado principalmente por outros homens ilustres, tornou-se amiga de uma geração de artistas e intelectuais.

Nas famílias tradicionais pai-mãe-filhos, como a de Miúcha, o papel das filhas mulheres sofreu historicamente maiores limitações no acesso à rua, com horários rígidos para voltar para casa à noite. Essas distinções, muitas vezes sutis ou veladas nas dinâmicas das famílias, não representam uma característica particular da família Buarque de Holanda. Essas duas esferas, o doméstico e o público, historicamente tiveram códigos diferentes, mas, sobretudo, eram habitadas por indivíduos distinguidos por gêneros como um código de conduta. Miúcha nasceu e foi criada já sendo inserida nessa teia de relações, que, à medida que foi passando da infância para a adolescência, chegavam mais novos frequentadores à sua casa e, assim, ela foi herdando essas amizades.

29 Entre as amizades herdadas dos pais, veio Vinícius de Moraes (1913-1980), de quem Miúcha se manteve amiga e parceira até o fim da vida dele. Mesmo a forte amizade entre os pais de Miúcha e Vinícius de Moraes não impediu que a mãe e a avó materna tivessem receio de ela circular fora de casa sozinha com o poeta. Quando a família foi morar na Itália, com convite feito ao pai para ele ensinar na Universidade de Roma, Miúcha ficaria no Brasil morando com as tias. Após o fim do seu ano letivo, surge a ideia de ela seguir para Europa acompanhada de Vinícius de Moraes, possibilidade que acabou sendo descartada. Então, uma tia foi escalada para levá-la. Ela conta: “-Com a fama de conquistador de Vinícius (Moraes), era melhor não facilitar, pensavam a mamãe e a vovó Maria do Carmo (mãe de mamãe)”.

A Bossa Nova foi o movimento dos homens charmants e das suas musas. Vinícius de Moraes encarnou o poeta porta-voz. Ao contrário do pai de Miúcha, casado até o fim da vida com a mesma mulher, que depois ficou viúva por 28 anos sem voltar a casar, Vinícius de Moraes casou e descasou oito vezes. A exceção foi a última e nona mulher, Gilda Mattoso, de quem não chegou a se separar. Miúcha define Vinícius de Moraes com três palavras: agregador, amigo e sedutor. O poeta não inventou a musa, que pode ser localizada nas civilizações mais remotas, mas tem um papel fundamental de ecoar o feminino pelo masculino na Música Popular Brasileira. É de Vinícius de Moraes uma das canções com uma das letras mais controversas do repertório da Bossa Nova e que aqui interessa analisar a sutileza do discurso sobre a figura da musa. Em Samba da Benção Vinícius de Moraes recita uma parte da letra e refere-se, no tempo verbal do subjuntivo, com ares de imposição, de dever, de obrigação, traçando e desenhando um modelo ideal de mulher submissa e servil. É o masculino ditando como a mulher deveria ser. Ele, então, define a existência dela a partir do lugar do masculino, como neste verso:

Uma mulher tem que ter Qualquer coisa além de beleza Qualquer coisa de triste Qualquer coisa que chora Qualquer coisa que sente saudade Um molejo de amor machucado Uma beleza que vem da tristeza De se saber mulher Feita apenas para amar Para sofrer pelo seu amor E pra ser só perdão (grifos meus)

30 Para “se saber mulher”, segundo essa canção de Vinícius de Moraes, tem que sofrer pelo seu amor e perdoá-lo, fazendo o poeta uso do vocabulário judaico-cristão: “sofrer” e “perdão”, para definir o lugar da mulher. Para Miúcha, Vinícius de Moraes foi um provocador. Ela se lembra de quando estavam definindo o roteiro do show do Canecão, baseado no repertório do disco dela com Tom Jobim, e Vinícius e seu uísque se expandiam pelo palco. Por vezes, tinha pequenas rusgas bem-humoradas com Tom Jobim, de personalidade mais introspectiva. A canção de Vinícius de Moraes mais conhecida na voz de Miúcha é Medo de amar. A letra da canção diz:

Vire essa folha do livro e se esqueça de mim Finja que o amor acabou e se esqueça de mim Você não compreendeu que o ciúme é um mal de raiz E que ter medo de amar não faz ninguém feliz

Agora vá sua vida como você quer Porém, não se surpreenda se uma outra mulher Nascer de mim, como do deserto uma flor E compreender que o ciúme é o perfume do amor (grifos meus)

A música traz o rompimento da relação amorosa, marcada pela desconfiança e sentimento de posse do homem pela mulher. Essa mulher, então, responde que do deserto nasceria uma flor, como a figura de uma nova mulher pronta para escolher um novo amor. O abandono do feminino pelo masculino não é visto como um fim da estrada, ao invés disso, ela renasce no símbolo da flor que floresce como uma metáfora da sensualidade. O verso “você não compreendeu que o ciúme é um mal de raiz”, funciona como a resposta da mulher a esse sentimento tantas vezes usado como prova de amor, o que a letra sugere refutar. No verso “vá sua vida como você quer”, permite uma interpretação pelo feminino observando a mulher da canção como aquela que, cansada do ciúme do parceiro, parte em busca do seu desejo, deixando o parceiro e seguindo ela para viver a sua liberdade de fazer escolhas.

Sobre esta canção, Miúcha conta, aos risos, ser uma personagem, uma ficção das várias faces do poeta. Além do depoimento de Miúcha, a interpretação do repertório de Vinícius de Moraes, que compõe o ambiente musical de Miúcha sugere a existência de um eu-lírico feminino no poeta. Esse eu-lírico feminino, imaginado e escrito pelo masculino, posteriormente aparece diversas vezes nas canções de Chico Buarque. A canção Medo de

31 Amar ficou bastante conhecida na versão cantada por Miúcha e outra na interpretação de Nana Caymmi. O sujeito, ou sujeitA, da música Medo de Amar, portanto, é o exemplo inverso do medo do amar, que não acabaria com o fim de uma relação amorosa, já que viria outra após outra. Miúcha encerra o assunto assim: “- Ah, Medo de amar, essa é a maior mentira do Vinícius (de Moraes). Imagina você, o poeta do amor ter medo de amar!”.

A Bossa Nova, então, traz elementos desconstrutores, raros de serem encontrados nos movimentos anteriores, em especial no samba, repertório que também habitou o universo musical de Vinícius de Moraes e Miúcha. No cancionário do samba-canção pré-Bossa Nova é possível identificar, de forma recorrente, o papel da mulher como sofredora. Miúcha se lembra do que escutava nos saraus na sua casa, em especial a música: Amor do malandro, de Francisco Alves 18. Miúcha ensaia a canção na capela, apenas com a voz: “- Amor é o do malandro, ai meu Deus, amar como ele eu nunca vi, se ele te bate é porque gosta de ti, porque bater em quem não se gosta, eu nunca vi”. No filme Raízes do Brasil 19, Miúcha deixa transparecer na expressão facial e nas reticências da fala o seu estranhamento com a letra e por fim diz: “-Era tudo assim..., mulher que leva porrada, mulher de malandro mesmo”.

1.1- Ela entre eles

A gente se esquece da gente A gente tem que acreditar outra vez Que o corpo da gente não mente Eu vou te tirar pra dançar. ‘Tempo de amar’, Miúcha e João Donato

A atmosfera profissional de Miúcha era de um estar entre amigos. Com sua capacidade agregadora e expansiva, ela ocupou um papel de anfitriã na Música Popular Brasileira - MPB, apresentando muitos futuros parceiros. Miúcha desenvolveu o hábito de chegar à casa de ______18 – Francisco Alves é o mesmo cantor da popular canção Aquarela do Brasil, espécie de hino do país no exterior. Gravação original disponível: https://www.ouvirmusica.com.br/francisco-alves/1743969/. Site acessado em 04 de agosto de 2019.

19 – Trecho de Miúcha comentando as letras de música de “mulher que apanhava”. Raízes do Brasil disponível no site: https://www.youtube.com/watch?v=etUEsguoUx4 . 5:40. Site acessado em 04 de agosto de 2019.

32 amigos com outros amigos, como Vinícius de Moraes fazia na sua casa desde que ela nasceu. Amizades como a de Caetano de Veloso com Chico Buarque, e João Donato se iniciaram a partir da aproximação feita por Miúcha, em um período em que o epicentro da indústria cultural estava na região sudeste do Brasil. Em certa ida a Salvador, na , Miúcha, então grávida de , conheceu , no Teatro Vila Velha. Esse Acontecimento, mais tarde, contribuí para a aproximação do cantor baiano com seu irmão Chico Buarque. Em seguida, durante os anos em que Caetano Veloso e Chico Buarque foram bem próximos profissionalmente, Miúcha seguiu morando nos Estados Unidos e, depois, na Cidade do México.

Foi Miúcha quem apresentou Gilberto Gil a João Gilberto, e o resultado dessa amizade é a gravação de Eu vim da Bahia, por João Gilberto em 1972. O disco de João Gilberto seria lançado em 1973 e teve forte presença de Miúcha na escolha do repertório. Entre as idas e vindas ao Brasil no início da década de 70, Miúcha seria ainda responsável por aproximar João Donato de Caetano Veloso e Gilberto Gil, funcionando como um elo desses encontros.

Com a morte de Vinícius de Moraes, em 1980, ela segue com o papel de anfitriã ocupado pelo poeta, aparecendo, por exemplo, algumas vezes no apartamento de Caetano Veloso na companhia de João Donato ou Tom Jobim.

Anos mais tarde, a Bahia voltaria à vida de Miúcha, desta vez a convite de Maria Bethânia e Rosa Passos. A influência da música produzida na Bahia no cenário carioca teve o amadrinhamento de Miúcha. Sua importância nessa aproximação pode ser medida no disco Quem é Quem 20, de João Donato. Entre outras canções, com arranjos que ainda hoje soam de vanguarda, o pianista gravou Cala Boca Menino, de Dorival Caymmi. Nessa música, dois pontos chamam a atenção: o fato de ter uma citação sobre o Cabula, bairro de Salvador, e, ainda, a letra colocar, do ponto de vista literal, a relação com a criança a partir da ______20 - Esse disco tem um bastidor curioso de conflito do artista com o sistema do mercado das grandes gravadoras. João Donato gravou o disco com o apoio da gravadora Odeon, mas, depois de pronto, avisou que não ia lançar, não ia fazer festa, nem convidar a imprensa para apresentar o trabalho. João Donato se revoltou. Foi para a igreja da Glória, no Rio de Janeiro, levou uma caixa de vinis e lançou um sem fim de discos para o alto, enquanto era filmado pela TV Globo. ‘Cala Boca Menino’: Cala boca menino/ Que seu pai logo vem/ Ele foi pro Cabula/ Foi comer jaca mole/ Da cabeça dura. Disponível no site: https://www.youtube.com/watch?v=kzAk3lDWUfI . Acessado em 04 de agosto de 2019.

33 paternidade, do filho que chora a ausência do pai que vai voltar.

Porém o “Cala boca menino”, expressão presente na letra da canção, pode ser interpretada como uma metáfora do “cala boca”, ato presente na censura frequentemente praticada pela Ditadura Militar-Empresarial Brasileira, em curso no ano de 1973. Com João Donato, Miúcha foi parceira da composição Tempo de Amar, canção interpretada na voz dela. A letra fala de tirar o parceiro para dançar, podendo ser lida como a desconstrução da mulher que espera o homem tirá-la para dançar, tomando ela a iniciativa do cortejamento. Esse verso, cantado pela voz feminina de Miúcha diz: “A gente se esquece da gente/A gente tem que acreditar outra vez/Que o corpo da gente não mente/ Eu vou te tirar pra dançar”.

Figura 2: O texto poético escrito por Tom Jobim é poético, revela por trás das

doces palavras quem cuidava dos filhos enquanto os homens da música criavam. Este estudo visa provocar o estranhamento de textos naturalizados e expressões como “patroa”. A patroa é um exemplo da expressão do reinar (feminino) por

consentimento (pelo masculino).

Nas letras das canções, o discurso amoroso aparece em uma metáfora com a música. No disco O amor, o sorriso e a flor 21, lançado em 1960, considerado o auge do movimento da ______21 – Reprodução desta pesquisa da contracapa do disco O amor, o sorriso e a flor. JOBIM, Antônio Carlos. In. Contracapa do LP de João Gilberto Amor, o Sorriso e a Flor, com direção musical de Tom Jobim. São Paulo: gravadora RCA, 1960.

34 Bossa Nova, e o segundo de João Gilberto após o disco inaugural , de 1958, é possível perceber essa analogia. Entre as faixas do disco, está a canção Samba de uma nota só, de Tom Jobim, na qual é descrito o processo de feitura da música.

Eis aqui este sambinha feito numa nota só (...)Já me utilizei de toda a escala e no final não sobrou nada Não deu em nada

E voltei pra minha nota como eu volto pra você Vou cantar em uma nota como eu gosto de você E quem quer todas as notas: Ré, mi, fá, sol, lá, si, dó Fica sempre sem nenhuma, fica numa nota só

Esse parece ser um disco onde o processo dos bastidores surge como um Acontecimento. Na contracapa do disco, o diretor musical e arranjador do disco, o pianista Tom Jobim, descreve como transcorria a construção criativa.

Tom Jobim: Lá longe da cidade e do telefone, trabalhamos sossegados uns dez dias. De vez em quando o trabalho era interrompido pelas crianças, que irrompiam o quarto trazendo algum filhote de tico-tico ou do coleiro 'caído' do ninho. Nessa época do ano a trepadeira fica cheia desses ninhos de passarinhos pequenos. Às vezes também as patroas entravam com um café cheiroso, biscoitos e ficavam ali um pouco. (JOBIM, 1960) 22 (grifos meus).

No texto da contracapa do disco, Tom Jobim começa a narrativa descrevendo a chegada de

João Gilberto e Sra., para em seguida contar sobre o processo deles, os homens. Esse evento revela, mesmo que sutilmente, a aparente paridade de gêneros na Bossa Nova, um ambiente visto como horizontal se comparado a círculos explicitamente conservadores. A Sra. João Gilberto não é sequer identificada pelo nome, mas pela data, é possível concluir que se trata da também cantora Astrud Gilberto.

As mulheres eram indispensáveis, mas para inspirá-los. A eles cabia o privilégio da criação. Às mulheres e musas cabiam os elogios, majoritariamente pelos seus atributos físicos ao encantar os homens. Assim pode ser demonstrado na canção ícone do movimento da Bossa Nova, Garota de Ipanema (1962), escrita por Vinícius de Moraes com música de Tom Jobim.

______22 – Reprodução desta pesquisa do bilhete escrito por Antônio Carlos Jobim para Miúcha, datado de 27 de agosto de 1976. Fonte: imagem acervo pessoal de Miúcha.

35 Na letra a descrição da mulher é feita pelas expressões adjetivas “de graça”, “corpo dourado” e “coisa mais linda”, sendo a garota de Ipanema o retrato de um feminino pueril e terno, uma menina de “doce balanço, a caminho do mar”.

Olha que coisa mais linda Mais cheia de graça É ela, menina Que vem e que passa Num doce balanço A caminho do mar Moça do corpo dourado Do sol de Ipanema O seu balançado é mais que um poema É a coisa mais linda que eu já vi passa (...) Ah, se ela soubesse Que quando ela passa O mundo inteirinho se enche de graça E fica mais lindo Por causa do amor

O mesmo Tom Jobim, nos anos 70, se tornaria o principal parceiro de Miúcha. Juntos gravariam dois discos com foto e nome de ambos na capa. Tom Jobim escreve para Miúcha um bilhete, na ocasião do primeiro disco deles, que exemplifica bem essa amizade: “- Miúcha, sem você a vida não teria graça. Sem teu sorriso não há disco (...), minha farsa não chega a atingir-te, parceira, ouvideira”. Não há dúvida a de que as mulheres estavam

Figura 3: A cumplicidade de Miúcha e Tom Jobim encontra reciprocidade dele para ela, como ela revela dela para ele nos depoimentos a esta pesquisa.

36 presentes no movimento da Bossa Nova, mas os seus papéis eram marcadamente os de musas, de companheiras ou aquelas que os auxiliam ou complementam. Elas enfeitam as criações, como ao darem nomes às músicas. É o caso de Ligia (1972), uma paixão platônica de Tom Jobim pela professora do seu primeiro filho Paulo Jobim.

No círculo social de Miúcha, a grande maioria era de homens. O “estar entre eles” é algo que lhe parece, em uma primeira conversa, sem destaque. Porém, chama atenção o fato de que, ao ser questionada se haveria outras mulheres, Miúcha se realiza como exceção feminina no seu círculo de amizade. “- Realmente eram poucas as que frequentavam as rodas, posso até contar nos dedos, até hoje a grande maioria dos meus amigos são homens”. Sendo o ambiente profissional um lugar do encontro e onde sensibilidades se formam, essa constatação não parece irrelevante.

1.2 - A mãe, o pai, as tias

Larga da minha perna, rapaz, cai fora Vai passar essa cantada, em alguém que te der bola, Não me amola! 'Larga da minha perna', Miúcha e Sergio Buarque de Holanda

Como nas canções da Bossa Nova, o espaço marcado para o feminino não era diferente na vivência de Miúcha no interior da casa da sua família. Sua mãe, Maria Amélia Buarque de Holanda - de sobrenome paterno Carvalho Cesário Alvim 23 nem admitia imaginar a filha cantora.

Miúcha: Mamãe achava se exibir no palco a coisa mais feia que podia existir, já papai, ao contrário, achava formidável. Mamãe era muito católica, até o ballet não era bem visto, podia mostrar as pernas! Não era de bom tom se exibir. Então, ser artista pra mim era um desejo reprimido.

______23 - Maria Amélia Carvalho Cesário Alvim era neta de dois senadores da República: Costa Carvalho pelo Estado de São Paulo e Cesário Alvim por Minas Gerais. Filha mais velha que se casaria aos 27 anos, considerado tarde para a época, cresceu com valores aristocráticos e republicanos. Esses mesmos valores, mantidos de forma velada, justificavam a cobrança por excelência e pudor, especialmente na criação das filhas.

37 A exposição pública era vista, nesse contexto social, como uma manifestação de vulgaridade, especialmente para as mulheres. Ela poderia, caso viesse a se tornar artista, se dedicar às “artes solitárias”, segundo Miúcha relata. A exposição física da artista era, relata Miúcha sobre o sentimento da sua mãe, vista como uma tipificação do corpo feminino, como se a dançarina ou a intérprete fosse uma musa calada. Já as artes onde não havia exposição do corpo, como a pintura e a literatura, eram bem-vistas por Maria Amélia.

Esse universo ajuda a entender o porquê da forma veemente como a mãe repudiava ver a filha cantora ou bailarina, coisas que na mocidade de Maria Amélia ainda eram vistas como atos de cabaré. Esse interdito se aplicava aos filhos homens com menos ênfase na exposição física e maior na valorização do intelecto. Certa vez, como relembra Miúcha, sua mãe comparou Chico Buarque a um neto, por esse ter se formado em arquitetura, e seu filho, já um cantor reconhecido, ter iniciado a universidade também de arquitetura e nunca concluído. Ela, então, completa: “-Mamãe pagou pela língua, dos sete filhos, quatro são artistas!”.

Miúcha: Uma vez mamãe me levou pra ver Edith Piaf em São Paulo, e disse que, se eu quisesse ser cantora teria que ser no míiiinimo uma Piaf. Fiquei impressionada com a Piaf no palco, parecia um passarinho, de tão pequena, e com aquele vozeirão! Depois desse dia aprendi a cantar tudo da Piaf, sabia tudo dela. Mas não era minha ideia de música. Eu queria ser cantora, amava a Juliette Greco, mas gostava mesmo era daquele cantar mais coloquial da Bossa Nova.

A mãe de Miúcha também vive os novos tempos, se interessa por política, pintura, cinema e música, mas se expressando, fundamentalmente da porta de casa para dentro. A matriarca da família Buarque de Holanda tinha gosto pela pintura e pelo piano, mas apenas restrito aos encontros domésticos. Como o marido demonstrava não ter tempo para passeios, as suas saídas consistiam em: visitas aos familiares, ida sozinha ao cinema e aos passeios das férias anuais. Maria Amélia viveu dedicada à família: criou sete filhos, teve doze netos, foi casada por quarenta e seis anos, ficou viúva por um período de vinte e oito anos, sem se casar novamente. Morreu aos cem anos.

Miúcha cresceu num ambiente marcado pela cobrança de perfeição e pela necessidade de ser uma mulher exemplar nesse ambiente doméstico, tendo a mãe como referência de lar estruturado. Na narração de Miúcha sobre a família Buarque de Holanda surge a figura da mãe-esposa. Maria Amélia foi a revisora dos livros do marido ao longo da carreira de escritor

38 do historiador e professor Sérgio Buarque de Holanda. Já o pai é descrito como um intelectual boêmio, que passava a maior parte do tempo cercado por livros, na biblioteca da casa da família, local descrito por Miúcha como de acesso restrito aos filhos.

Miúcha: Enquanto papai estudava, mamãe cuidava para que ele estivesse sempre bem servido. Ela era bem rígida, uma guardiã do silêncio. ‘-Não façam barulho, seu pai está trabalhando!’ E fazia mais barulho que a gente (risos). Era proibido às crianças fazerem barulho, podia atrapalhar o papai. Era ela também, que depois ia revisar, página por página, todos os escritos dele. Mamãe foi antes de tudo a mulher do papai, ela era fascinada por ele. Ela vivia em ambiente muito mais careta antes dele, e papai viveu a boêmia da Berlim dos anos 30... Ele foi a descoberta da vida para ela!

Sobre esse cotidiano doméstico, Miúcha conta que Maria Amélia reinava ao manter a casa silenciosa. Cabia ainda à mãe a função de datilografar os escritos do marido. Ela era também a primeira leitora e ouvinte dele. O papel da esposa dedicada, enquanto o marido obtinha prestígio na esfera pública, era o almejado nas casas das famílias tradicionais brasileiras, tendo, aos olhos do status quo, essa mulher feito um bom casamento. Ao nomear as funções não públicas da mãe, a partir do pai, Miúcha exemplifica como a história das civilizações foi construída por mulheres invisíveis. As mulheres sempre estiveram ali, mas poucas, ou apenas em ocasiões específicas, foram publicamente notadas e reconhecidas.

Para conciliar as duas paixões do marido, a música e os livros, Maria Amélia funcionava como uma anfitriã abrindo as portas da casa para receber os amigos festeiros do casal. Nas lembranças de Miúcha, surge uma festa na casa que foi se estendendo pela rua.

Miúcha: Certa vez, mamãe abriu a casa para uma festa com muitos convidados e foi chegando todo mundo, amigos de amigos. Apareceu até pipoqueiro na porta de casa. E a gente foi misturando no copo guaraná com álcool para disfarçar bebida, logo tava todo mundo à mil. Mamãe foi jogando água para acalmar os casais mais avançadinhos.

É Sergio Buarque de Holanda o primeiro parceiro musical da filha. Juntos fizeram a canção Larga da minha perna. Miúcha lembra vivamente do verso da música e do prazer de ter sido composta em parceria com o pai.

Miúcha: Lembro bem de 'Larga da minha perna', que escrevi e musiquei com papai. Essa fazia muito sucesso lá em casa, vivia cantarolando: ‘Larga da minha perna, rapaz, cai fora, vai passar essa cantada, em alguém que te der bola, não me amola!' (canta o verso). Dizia ‘larga da minha perna’ como hoje fala para alguém: ‘sai fora’, ‘tá pegando no meu pé’. Mas nunca gravei essa música, gravar naquele tempo era algo muito distante.

39 A canção Larga da minha perna, escrita por uma Miúcha adolescente, em torno dos 15 ou 16 anos, nunca chegou a ser gravada comercialmente. Nela, é possível notar certa picardia, já que ainda cedo se desloca da imagem do feminino romantizado, perpetuada pelas cantigas infantis da princesa à espera do príncipe, como uma Teresinha de Jesus 24. A relação com o pai era marcada por momentos de respeito, cumplicidade e boêmia. O fato de ser a primogênita deu a Miúcha algumas regalias, como acompanhar o pai nas rodas de música, o que lhe permitiu certos acessos autorizados à rua e ao transitar noturno.

Miúcha: Certa vez papai estava com o Vinícius (de Moraes) e eles queriam seguir se divertindo pela noite. Hesitou em me levar. Mamãe estava no Rio e a gente, em São Paulo. Na verdade, ele não sabia o que deixaria mamãe mais fora de si: se ele iria sozinho com o Vinícius ou me levar junto. Acabei indo com eles para o Cave, e é claro, eu adorei!

Em alguns momentos, Miúcha, Sérgio Buarque e Vinícius de Moraes agiam como uma tríade de amigos. Em outros, Vinícius ocuparia o lugar paternal, especialmente nos palcos e nas viagens. Ele surge novamente nas suas lembranças, quando conta sobre a primeira vez que se apresentou em um palco. Miúcha: Já tinha cantado outras vezes, mas essa eu lembro bem porque foi a minha primeira com o microfone amplificando a voz, o que era fascinante. Foi uma música muito conhecida, daquelas que todo mundo sabe, mas me deu um branco total e eu esqueci a letra. Vinícius (de Moraes) veio no meu auxílio. Foi um vexame! O palco, ah o palco era muito proibido...

Esse lugar de companheira do pai, como filha mais velha e já adolescente, iria contribuir para desenvolver em Miúcha um prazer pelas viagens que a acompanhou por toda a vida. Nas viagens da família, por ser difícil e custosa a mobilidade com tantas crianças, suas três irmãs mais novas, Cristina, Maria do Carmo e Ana, ficariam, em escolas e conventos em regime de internato por passagens de férias na Europa. Miúcha chega a lembrar de que, ao voltar para pegar as irmãs, elas já estavam falando italiano. Miúcha seguia com os pais ao lado dos três irmãos: Sérgio, Álvaro e Chico, nessa ordem de idade.

Miúcha: Mamãe adorava nos mostrar os museus, a arquitetura das cidades, especialmente de Roma, a sua predileta. Acho que muito por influência dela, Chico estudou arquitetura, mas nunca se formou, para tristeza de mamãe. ______24 - Letra da ciranda do cancioneiro popular brasileiro: Teresinha de Jesus, de uma queda foi ao chão/ acudiram três cavalheiros, todos com o chapéu na mão/ o primeiro foi seu pai, o segundo seu irmão, o terceiro foi aquele que Tereza a deu a mão... Terezinha levantou-se, levantou-se lá do chão e sorrindo disse ao noivo, eu te dou meu coração...

40 Da estada em Roma, onde vive dois anos com a família, cidade também predileta de Miúcha, ela traz uma passagem do seu diário, no qual aos 16 anos, escreve o destino que traçaria para si: Miúcha: Queria mesmo sair pelo mundo, viajar, morar sozinha. Casar e ter filhos não estavam nos meus planos. Olhava para as minhas amigas do colégio e via que os nossos sonhos eram bem diferentes. Logo elas se casariam, teriam um filho atrás do outro e ficariam dentro de casa cuidando dos seus maridos. Definitivamente, isso não era para mim!

Entre as viagens da Europa, na fase da adolescência, fica um ano doente por consequência de um diagnóstico de poliomielite. Por esse motivo, ficaria todo o tempo em casa, passa a ter um quarto só para si, uma extensão de telefone, tempo para ler poesia e Marcel Proust, autor que cita como um de seus escritores preferidos. Paradoxalmente, esse é um dos fatos lembrados como sua grande alegria da juventude. “-A coisa que mais queria era ter um quarto só pra mim, então, ficar doente foi como se ganhasse um prêmio”. Essa fala, aparentemente despretensiosa, sugere uma citação a escritora inglesa Virginia Woolf, autora de A room of one’s ows sobre os desafios de ser mulher e escritora. Essa referência denota tanto o conhecimento literário de Miúcha, como sua sintonia com autoras mulheres, que antes de Miúcha já denunciavam a falta do básico para as mulheres exercerem sua arte.

Depois de superar a pólio, ela passa a dar aulas de arte, em um curso que unia pintura e música, para garotas do Des Oiseaux, colégio onde estudou durante os anos em que a família morou em São Paulo. Assim vai sendo talhado também seu gosto pela literatura e sua escrita íntima. Ela descreve as trocas de cartas durante as viagens e o tempo que viria a morar fora do Brasil como um de seus maiores prazeres. Miúcha também narra sua trajetória a partir dos livros que leu no momento em que as passagens da vida acontecem. Da visita ao Brasil do casal de escritores do existencialismo francês, Jean-Paul Sartre e Simone de Beauvoir, ela recorda de estar lendo o livro da autora Le deuxième sexe que autografou seu exemplar.

Miúcha narra ter ficado impressionada com Simone de Beauvoir, que era, então, menos conhecida do que Sartre. Ao desembarcar no aeroporto, todas as atenções da imprensa se voltaram para Sartre, que já era um nome conhecido no Brasil. Porém, nas rodas fechadas dos salões formados por intelectuais, era Beauvoir quem mais despertava as atenções ao falar e gesticular, segundo descrição de Miúcha. Ela conta: “-Sartre era ainda mais esperado

41 naquela época no Brasil do que ela, mas ao falar, circular nas rodas, foi Beauvoir que despertou mais curiosidade”. Essas referências femininas, de uma nova mulher que começa a emergir no espaço público dos anos 50 e 60, compõem o universo social da grande família de Miúcha. Nas falas de Miúcha surge a tia Thereza Cesário Alvim 25, irmã mais nova da sua mãe, trazida nas entrevistas misturadas às memórias com João Gilberto, de quem, a partir de Miúcha, se tornaria amiga. Essa tia materna se separou por sua própria iniciativa, desafiando o julgamento social e familiar, e manteve sua assinatura com o nome de solteira. Thereza conheceu o marido aos dezessete anos em Paris e aos vinte e seis anos já era mãe de cinco filhos. O marido precisou sair compulsoriamente do Brasil e ela ficaria no país. Nesse momento, realiza o seu desejo de trabalhar como jornalista.

A tia Thereza decide, então, não acompanhar o marido, mesmo que, para isso, tivesse que criar sozinha os filhos. Os convites para morar próxima à família do marido em São Paulo, o que lhe daria certas garantias materiais, assim como as cartas do marido chamando-a para encontrar, são refutados. Ela permanece na cidade do Rio de Janeiro trabalhando e pagando as suas contas. O marido reapareceria cinco anos mais tarde, quando Thereza já tinha um novo companheiro, e depois novos namorados. Na volta do marido, ela decide se desquitar, como a separação era tratada pelo Direito Civil da época. A semântica da palavra desquitada inclui o verbo quitar, quem des-quita, deixaria de quitar algo, não honrando as dívidas com o casamento. A palavra sugere ainda que “a mulher desquitada” não teria mais o mesmo valor no mercado de troca da economia sexual 26 do casamento.

Na década de 60, Miúcha viaja constantemente: mora em Nova Iorque, em Roma, na Cidade do México, depois em Nova Iorque novamente. Nesse período, o Brasil vive um paradoxo: o auge da polarização entre os avanços comportamentais das mulheres e a eclosão de movimentos tradicionalistas. Da porta de casa para fora, o clima era de disputa de qual seria ______

25 - No livro Branco sobre Branco, resultado da tese de doutorado de Guilherme Zarvos, Letras – PUC-RJ, a história da jornalista Thereza Cesário Alvim é contada com mais detalhes pelo seu filho e também autor do livro. Nesta obra, é possível notar como essa tia teve uma vida de intensos e significativos deslocamentos do feminino nas décadas de 50, 60 e 70, compondo com o seu exemplo as referências femininas do círculo íntimo de Miúcha.

26 – Na lógica da “economia sexual”, o casamento é um mercado de trocas e de (re) produção (IRIGARAY, 1977, p.74; p.83; p.96).

42 o papel social da nova mulher na virada da primeira para a segunda metade do século, período marcado pelo otimismo nacional do final dos anos 50. Já da porta de casa para dentro, as coisas continuaram praticamente estáticas. As mulheres seguiam responsáveis pelos cuidados com a casa e os filhos, os homens eram os donos da rua. Assim, a conquista profissional, em muitos casos, significou o aumento da carga de trabalho, muitas vezes com uma sobrecarga dupla ou tripla jornada.

A tia Thereza refaz a sua vida trabalhando como jornalista e tradutora. Foi uma mulher atuante nos meios intelectualizados e políticos, com os quais publicou livros e participou de coletâneas, circulando com desenvoltura em ambientes como bares e jornais, universos predominantemente masculinos. No ano de 1964, Thereza Cesário Alvim organizou a coletânea intitulada: Golpe de 64 - a imprensa disse não! 27, lançada pela editora Nova Fronteira. Chama atenção o fato de a jornalista ser a única mulher a assinar o livro ao lado de dezoito jornalistas e intelectuais, entre eles Carlos Drummond de Andrade, Antônio

Callado, Carlos Heitor Cony e Rubem Braga, que se tornariam escritores e ensaístas célebres.

Figura 4: Essa relação traz a tia de Miúcha, a jornalista Thereza Cesário Alvim, como a única mulher entre eles, semelhante ao que se passa com Miúcha ao longo

da sua carreira. ______27 - Foto produzida por esta pesquisa da página de abertura do livro A impressa disse não!

43 As tias têm uma forte presença na vida de Miúcha. Parte das suas viagens é narrada nas trocas de cartas com a única irmã de seu pai, a tia Cecília Buarque de Holanda, de quem ganhou seu primeiro violão, que se tornaria seu instrumento para “tirar” a música. A tia Cecília lhe deu a opção de escolher entre um colar de pérola ou um violão. Miúcha escolhe o violão. Com o presente da tia, ensinou os primeiros acordes ao irmão Chico, sete anos mais novo. Miúcha: Depois que aprendi a tocar violão com Vinícius (de Moraes), ensinei os primeiros acordes ao Chico (Buarque), que logo pegou a batida. Mas a gente aprendia mesmo observando todo mundo tocar. A gente não tinha televisão, então aprendia era de ouvido. Vinícius foi o grande professor, ele me ensinou como fazer música: você conta uma historinha, depois repete um verso, depois outro e outro.

Na família materna, a presença das tias era mais numerosa, e a pequena diferença de idade favorecia a proximidade entre a sobrinha e as tias. Entre as tias com maior presença nas entrevistas, Miúcha cita a tia Maria, irmã da sua mãe. Ela tinha um grupo de amigas, quase uma irmandade secreta de mulheres que se permitiam namorar outras mulheres. Em certo episódio, a tia Maria a apresentou a uma amiga. O pretenso encontro amoroso na praia é preterido, na descrição de Miúcha, aos risos. Nas suas memórias, ela recorda que avistou um amigo do “rolé da música”, na mesma hora em que a amiga da tia se insinuava sedutoramente, e ela, então, descreve esse episódio como uma “fuga”: “-Ele parecia um príncipe surgindo pelas areias da praia para me ajudar a salvar a mim mesma”. Chama-me atenção a naturalidade com que narra, como se descrevesse uma cena de um filme.

No filme Raízes do Brasil 28, Ana Maria Buarque de Holanda, irmã de Miúcha, conta no seu depoimento sobre o leito de morte do pai, nos seus últimos momentos de vida, foi enfático em agradecer a mulher Maria Amélia. Para a filha caçula, no leito de morte, seu pai repetia: “-Tudo que fiz, tudo que eu escrevi, tudo que eu tenho, tudo que eu sou, eu devo a sua mãe (Maria Amélia), ela estava sempre comigo, sem ela eu não seria nada”. A filha Ana Maria, irmã de Miúcha nove anos mais jovem, completa que todos já sabiam disso, mas o pai fez

______28 – “Raízes do Brasil - uma cinebiografia de Sérgio Buarque de Holanda é um filme dirigido por Nelson Pereira dos Santos, que leva o mesmo nome do livro de Sergio Buarque de Holanda, porém no filme a referência é a família do próprio escritor. No filme, além de abrir os depoimentos, Miúcha assina como roteirista, o que denota o papel dela como historiadora íntima da família. Filme Raízes do Brasil I – disponível no site: https://www.youtube.com/watch?v=etUEsguoUx4 Raízes do Brasil II - disponível: https://www.youtube.com/watch?v=rPv65Xk_R8M . Trecho do depoimento de Ana de Holanda: 43:35. Acessado 04 de agosto de 2019.

44 questão de dar esse testemunho antes de morrer.

A importância das tias na trajetória de Miúcha aparece como referência de sujeitAs. Essas mulheres, de caminhos poucos usuais para o feminino brasileiro da época, servem de contraponto à imagem de matriarca da mãe, que dedicou a vida a cuidar dos sete filhos e do marido. Entre as tias, Miúcha teria muita aproximação ainda com a tia Gilda, que vivia em Paris solteira desde os anos 40. Ela ficou morando um tempo no apartamento ao lado da tia Gilda, que pertencia à família.

Miúcha: Eu queria estudar fora. Então consegui uma bolsa para estudar história da arte na Sorbonne, que me permitia ir para onde eu queria. Foi assim que fui parar em Paris sozinha, com pretexto de estudar e visitar a tia Gilda.

A tia Gilda viajou jovem para fazer um tratamento de saúde em Paris, passa a trabalhar com traduções e nunca mais voltou a morar no Brasil. A viagem de Miúcha sozinha a Paris foi um sonho acalentado desde a infância, que diz enfática ter sempre almejado pagar as suas próprias contas. Para viajar, batalhou uma bolsa de estudos através do adido cultural da França no Brasil. Na época, o pedido de bolsa para cursar história da arte soou pouco usual. Mas, para os seus pais, a forma como a notícia chegou foi motivo de espanto. O adido, em visita à casa da família, foi quem contou, e os pais foram surpreendidos. Miúcha não havia contado nada. Miúcha relembra: “-Mamãe ficou furiosa! O adido, achando que estava agradando ao papai, ficou sem graça”.

Para viajar sozinha, Miúcha fez todo o processo em segredo. Depois, ela mesma comprou a passagem, na terceira classe de um navio inglês: “-Era onde estavam os estudantes que queriam se divertir!”. Ela pagou a passagem trabalhando em agências de publicidade, fazendo jingle e ilustrações para pasta de dente.

Miúcha: Paris era o centro do mundo cultural, a pessoa não tinha uma cultura mínima se não falasse francês. A gente aprendia francês em casa e depois estudei em escola francesa no Rio e em São Paulo. Eu resolvi ir pra Paris, queria viajar, botar o pé na estrada. Não tinha nenhum estudo acadêmico, mas consegui com muita conversa ganhar uma bolsa para estudar Civilização Francesa. O adido veio feliz contar pra papai, e a mamãe quando ouviu ficou furiosa. Demorei um tempo para convencer ela para ir, mas juntei o meu próprio dinheiro trabalhando com publicidade, gravando jingles e fazendo ilustrações para vender Colgate. Com esse dinheiro, comprei uma passagem na terceira classe de um cargueiro inglês. Mas fui com pouco dinheiro. Um dia desmaiei na fila do bandejão da universidade. Em Paris senti que tinha que ir à luta!

45 Paris seria apenas o ponto de chegada em 1962. Dois anos depois, Miúcha se mudaria para Nova Iorque. No ano de 1964 se instaura a Ditadura Militar-Empresarial no Brasil e em 1968 é publicado o Ato Institucional nº5, que ficou conhecido como o AI-5, quando as liberdades individuais foram fortemente atacadas, configurando o início do período mais duro da ditadura brasileira. A partir daí no Brasil, artistas, estudante e intelectuais passam a ser perseguidos e a andar com capas falsas de livros. As letras das músicas são, então, fiscalizadas pela censura antes de chegar ao público. O irmão de Miúcha, Chico Buarque de Holanda, teve diversas músicas impedidas de serem executadas e espetáculos de sua autoria, como Roda Viva 29, foram proibidos de se apresentar. O recurso de metaforizar as

Figura 5: Este documento, de autoria do censor Mario Russomano, ilustra o contexto no qual a Bossa-Nova estava inserida durante a Ditadura no Brasil e

ajuda a entender o êxodo de tantos músicos para o exterior, como fizeram Miúcha e João Gilberto. ______29 – Carta datada de 1968 da censura proibindo o espetáculo Roda Viva. Fonte consultada para reprodução da imagem feita por esta pesquisa: Os Aparecidos Políticos. A peça Roda Viva foi escrita por Chico Buarque de Holanda em 1967 e teve direção de José Celso Martinez Côrrea. A peça conta a história de um famoso cantor que toca de nome para agradar seus fãs. O personagem principal é uma figura pública manipulada pela indústria fonográfica trazendo uma reflexão sobre o consumo da sociedade. Na carta, o censor diz sobre Chico Buarque: que a peça usa “expressões pornográficas as mais baixas possíveis são ditas no palco com a mais vergonhosa naturalidade”, seguido por “chegando ao absurdo de mostrar em cena posições de ordem sexual” e ainda que “...desrespeitam todos e tudo e até a própria mãe”. O teor da carta denota como as questões da liberdade sexual incomodaram a Ditadura Militar-Empresarial Brasileira. A relação das músicas de Chico Buarque censuradas encontra-se disponível: http://observatoriodaimprensa.com.br/diretorio-academico/a- censura-as-musicas-de-chico-buarque-na-ditadura-1964-1985/ . Acessado 04 de agosto de 2019.

46 letras politizadas das canções se torna, a partir daí recorrente na Música Popular Brasileira. O lirismo da Bossa Nova encontraria maiores palcos e público no exterior. Miúcha acompanha as mudanças do Brasil à distância pelas cartas, e só na década seguinte voltaria ao país.

1.3 - Errância e flânerie

Fecha os olhos pro soninho Abre os olhos pro sonhar ‘Dorme, dorme menininha’, Miúcha

Miúcha tinha 24 anos no início de 1962, quando viaja para estudar história da arte na Universidade da Sorbonne. No ano anterior à viagem, ela faz seu primeiro registro fonográfico. A canção Dorme, dorme menininha 30 é uma suave canção de ninar. A letra termina com “voa, voa passarinho, menininha, namorada”. A ação de formalizar a autoria, como não havia feito com as canções anteriores, denota a sua intenção de se profissionalizar através da música. Ela se revelará uma compositora esporádica, compondo poucas canções, como algumas para o Carnaval de Olinda, a exemplo de Segura a coisa (1982), escolhida por essa pesquisa como epígrafe dos agradecimentos (p.11).

Ao chegar a Paris, logo se apresenta como cantora pelas ruas da cidade para ganhar algum trocado, na companhia do músico Dudu do Banjo, que se tornou seu grande amigo e foi quem a ensinou a cozinhar “arroz e feijão” para se virar na Europa. Juntos, eles passavam o instrumento depois das apresentações como o "chapéu" recolhendo o “cachê”. Com Dudu do Banjo viajou tocando pela Europa, em diversos países como a Grécia, de onde relatou o estranhamento ao verem uma mulher na estrada.

Miúcha: A gente ganhava uma merreca cantando pelas ruas. Naquela época não tinha tanta gente cantando no metrô, na rua, como hoje, começamos a cantar nas ruas para ganhar um trocado. Depois viajamos pela Europa em um fusca, pagando a gasolina com o dinheiro que ganhávamos passando o banjo. Em uma apresentação na Grécia ao invés de pagarem, os homens tentaram me agarrar como se estivesse ali para aquilo, saímos correndo, fugidos. ______30 – Dorme dorme, menininha interpretara por Sergio Ricardo, URL: https://www.youtube.com/watch?v=yC1tS1QgPLI . Acessado 04 de agosto de 2019.

47 As lembranças de sua experiência dos dois primeiros anos pela Europa são marcadas por trabalhos como cantora, mas não remunerados ou muito mal remunerados. No pátio da Sorbonne, ela iria participar de uma apresentação de frevo, dança popular pernambucana, estado do qual tem descendência dos avôs paternos. Foi lá que se tornou amiga dos filhos da cantora chilena Violeta Parra, Isabel e Angel Parra, que tinham a idade próxima à dela.

Em Paris, no bar La Candelária, por exemplo, rememora ter se apresentado pelo consumo da noite. Miúcha havia chegado a Paris e meses depois, no pátio da Universidade de Sorbonne, Violenta Parra 31, além de cantora e compositora, havia se tornado uma agitadora cultural em Paris. A própria Violeta Parra fazia a curadoria de música latina da La Candelária, casa de shows em Saint-German-des-Prés, na Rive Gauche. Ela, então, convida Miúcha para se apresentar em uma noite de Bossa Nova. Miúcha descreve a cantora chilena como “uma poeta fortíssima, de voz singela”. Logo no primeiro ano da experiência parisiense, através de Violeta Parra, conheceria João Gilberto.

Miúcha: O João (Gilberto) foi curioso olhar para mim e ficou espiando lá atrás por uma fresta de porta. Depois do show veio falar comigo. Não reconheci ele no ato. Fiquei uns minutos tentando entender de quem se tratava, e ele meio escondendo a cara. Naquele tempo a gente não conhecia tão bem as pessoas, não saia tanto retrato. Mas logo a voz, aquela voz... Uma hora bateu no meu ouvido, acho que reconheci o João de ouvido. Ah, então quer dizer que você é você? Eu só pensava em música, e o João era o herói da minha vida!

Um ano antes, ainda no Brasil, Miúcha esteve muito próxima de conhecer João Gilberto. Ele havia feito um show no Anhangabaú, e ela estava na plateia. Depois do show, desta vez foi ela quem tentou se aproximar, mas ele foi arrastado pela sua entourage antes que ela pudesse se apresentar. Esse “herói” vai e volta na narração de Miúcha, como o discurso do anti-herói no romance Memórias de um subsolo de Fiódol Dostoiévski, entre o seu caráter cômico e trágico (BAKHTIN, 2008, p.58). O livro, escrito pelo autor russo na cabeceira de morte da sua primeira mulher, é conduzido por um personagem-narrador a partir de um subsolo, um lugar de sombra que funciona como metáfora dos seus labirintos interiores. ______

31 – Além de cantora, compositora e instrumentista, Violeta Parra era artista plástica. A chilena foi a primeira artista latino-americana a expor no Museu do Louvre. Sobre a exposição, que revela a importância dessa artista mulher nos anos 60, é possível ver no filme Violeta foi pro céu, dirigido por Andrés Wood. O filme, que mistura imagens reais e reconstituídas para ficção, traz também cenas no bar La Candelária. Violeta Parra se suicidou aos 49 anos, em 1967. A versão compacta, exibida na televisão, esta disponível no site: https://www.youtube.com/watch?v=UCBp0ueZk80&t=2179s. Acessado 04 de agosto de 2019.

48 Trazendo a figura do “herói” para a experiência da sujeitA Miúcha, aparece aqui a construção da expectativa da narradora, concedendo ao marido e cantor João Gilberto a existência de herói.

A construção do herói pode ser exemplificada no texto Cronotopia e exotopo 32 (AMORIM, 2016, p.97) o qual traz uma analogia com o retrato de Dora Mäar pintado por Pablo Picasso, no período em que eles formavam um casal de artistas. O quadro A mulher que chora 33,

Figura 6: Este retrato de Dora Maar pintado por Pablo Picasso exemplifica como a pessoa amada é vista pelo parceiro, em especial pelo olhar do artista.

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32 – AMORIM, Marília, Cronotopo e exotopia, p.95-113, in Bakhtin outros conceitos chaves, org. BRAIT, Beth, São Paulo: Contexto, 2006. No texto, a autora cita M. Bakhtin, La poétique de Dostoiévski, Paris, Seuil, 1970.

33 – Reprodução pesquisa do quadro A mulher que chora (Paris, 1937), pintura de Pablo Picasso. Imagem produzida por esta pesquisa em fotografia feita no Museu Picasso, em Paris. A pintura traz a imagem de Dora Maar, fotógrafa e então mulher do pintor, feita na mesma época da pintura do quadro Guernica.

49 uma leitura do pintor sobre a fotógrafa, não é necessariamente o real, mas a tradução dela feita por ele. Como para Picasso a sua mulher Dora Maar é, naquele instante do retrato, “a mulher que chora”; para Miúcha, naquele instante do primeiro encontro, João Gilberto é “o herói da Bossa Nova”, portanto, o herói da sua vida. Importante destacar que Miúcha era, mesmo que iniciante, uma cantora de Bossa Nova que foi para Paris com o sonho de cantar e a quem João Gilberto conhece cantando: ela no palco, ele na sua plateia. Como Picasso transforma Dora Maar na mulher que chora, João Gilberto existe para Miúcha na sua construção íntima de herói, a quem, me parece, resistia a vê-lo como anti-herói, mesmo que o casamento colocasse a carreira dela em segundo plano.

Entre Miúcha e João Gilberto, a trama da vida íntima do casal se mistura com os Acontecimentos da Bossa Nova. Miúcha conta com ares épicos o episódio curioso do primeiro encontro do então futuro casal. Uma noite em Paris, um produtor musical argentino, do qual ela não se recorda o nome, levou João Gilberto para conhecer Violeta Parra. Ele devia achar que estava promovendo um grande encontro entre duas referências da música da América Latina na Europa, talvez uma possível parceria com a letrista Violeta Parra e o violão de João Gilberto. Violeta estava na sua segunda temporada em Paris, cidade na qual havia morado nos anos 50, portanto era uma artista que já tinha certo trânsito no meio artístico parisiense.

A cantora chilena morava no andar de cima do bar La Candelária, e o João Gilberto foi até lá conhecê-la. Mas, o que seria um encontro profissional, acabou despertando na conversa a curiosidade de João Gilberto por Miúcha, que naquela noite estava em mais uma apresentação cantando Bossa Nova. Violeta Parra não só abriria caminhos no cenário da música em Paris para Miúcha, como, na noite do primeiro encontro com João Gilberto faria a apresentação do futuro casal. Miúcha a imita, brincando em espanhol: "- Ay una chica brasileña, que canta muy bien la Bossa Nova", rememora, narrando como Violeta comentou sobre ela para João Gilberto.

Então, João Gilberto foi olhar pela brecha da entrada do La Candelária, de onde avistou Miúcha no palco. Ele senta em uma mesa e fica ouvindo-a cantar, até que pediu que fossem apresentados. Em seguida, na mesma noite, viria uma cantada para despistar os amigos e ficarem sozinhos.

50 Miúcha: Depois do show entramos em um carro pequeno, daqueles franceses, apertado com seis, sete amigos, e João me disse: ‘Senta na extremidade do banco’. Quando parou no sinal, abrimos a porta e nos encontramos sozinhos. Achei aquilo meio maluco, mas na hora fiz. Enquanto corria pensava: ‘-Será que ele veio?’. Foi assim que demos o primeiro de muitos beijos. João pediu um violão emprestado na rua e cantarolou algo pra mim. (...) No segundo encontro, saímos para jantar e João ficou apavoradíssimo com o fogo no crepe suzette, nada era muito certinho com João.

Depois do primeiro encontro em Paris, eles se tornariam namorados, mas se separariam por viagem de João Gilberto aos Estados Unidos. Algum tempo depois daquela noite, João Gilberto procura Miúcha convidando-a para trabalhar com ele. Miúcha aceita o convite e na bagagem leva com ela seu violão.

Miúcha: Queria viver minha vida, viajar por aí, para conhecer outros povos, outras histórias. Queria sair pelo mundo, desde sempre. Até hoje, eu adoro uma viagem. Antes de você dizer para onde estamos indo, eu já estou de mala pronta. Aí, quando apareceu o convite de João, já ganhou, né?

A chegada e a recepção em Nova Iorque 34, no entanto, tem um abismo muito grande entre a expectativa e a realidade dos Acontecimentos. João não vai recebê-la no aeroporto, e ela se desloca para o hotel onde tem a informação de que ele estaria morando. Chegando lá, ao invés dele, encontra a também cantora e ex-mulher de João Gilberto, Astrud Gilberto com o filho do então casal, Marcelo Gilberto ainda bebê. Dias depois, Miúcha fica sabendo que existe uma conta aberta no hotel em nome de João Gilberto e decide cuidar da própria vida.

Figura 7: Esta imagem mostra o recém-casal na cidade de Nova Iorque. Miúcha,

com seus característicos cabelos curtos, naturalmente cacheados e roupas no estilo hippie, com seu estilo vanguardista para época.

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34 – Reprodução desta pesquisa do acervo pessoal de Miúcha. Autor/a desconhecido/a.

51 Miúcha, apesar de falar pouco inglês, idioma que praticamente só sabia das letras de música que cantava, consegue um emprego em uma agência de publicidade. Antes, no Rio de Janeiro já tinha feito parte desse métier por um curto período. Ela conta aqui uma anedota. O empregador lhe perguntou: “- Are you good with figures?”. Ela achou que ele se referia a figuras e não a números, já que a palavra tem essas duas conotações no inglês. Então, ela responde: “-Sim, claro!”. A sua pronúncia, de quem tinha ouvido musical, engana bem e ela foi imediatamente contratada. Para seu espanto, no dia seguinte foi encaminhada para trabalhar no departamento de contabilidade.

Foi o que conseguiu, pensou e, afinal, o importante era pagar as contas. Voltar ao Brasil, ou à França, naquela época, não era uma opção nada simples. João Gilberto e Miúcha só se encontram duas semanas depois da sua chegada a Nova Iorque. Na cidade, começam a planejar em ter uma casa juntos. Esse sonho realizado só viria acontecer depois do casamento, quando nasce Bebel Gilberto. Sobre a casa, ela conta: Miúcha: Logo que cheguei a Nova Iorque, moramos na casa de amigos, de um e de outro, não sabíamos quanto tempo íamos ficar na cidade. João tinha uns shows, mas logo se apaixonou por Nova Iorque, e a cidade por ele. Depois escolhi um apart hotel, que tinha uma cozinha micro e uma sala imensa, até que, chegou o momento em que tínhamos 15 dias para devolver as chaves.

Para o casamento em Nova Iorque, iria apenas o pai de Miúcha, que tinha a função de entrar com a noiva na igreja. Sobre o casamento na religião católica, ela segue: Miúcha: João já tinha sido casado, mas não na igreja. Acho que a família da Astrud Gilberto (primeira mulher dele) era luterana. Ele estava livre, leve e solto. Podíamos casar na igreja para felicidade de mamãe!

O pai chegaria trazendo o véu do vestido de noiva 35, esse que tinha feito para o casamento da avó materna de Miúcha. A mãe de Miúcha não pôde viajar para o casamento e ficou no Brasil com os filhos mais novos. Maria Amélia viajaria meses depois para o batizado da futura neta.

Miúcha: Estava correndo lá no Brasil que a gente estava namorando, que a gente ia casar. Aí eles (os pais) me mandaram uma carta: ‘Jornais noticiam seu casamento com João Gilberto. Aguardamos desmentido. Segue carta’. Aí João telefonou para Jorge Amado, que escreveu uma carta para meus pais. Dizendo algo assim: ‘João é uma das pessoas mais inteligentes, mais talentosas que eu conheço.

______35 – Foto datada de 21 de abril de 1965. Reprodução desta pesquisa feita da internet. Foto: PoPsie Randolph / Michael Ochs Archives - Getty Images.

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Figura 8: Esta foto acima revela a presença do pai no casamento da primogénita e

a ausência da mãe, que não viajou para Nova Iorque e ficou na casa da família cuidando dos seis irmãos de Miúcha.

Miúcha: (...) Ele é incrível. Vocês vão adorar ele. Um pouco maluco como todo músico, mas boa gente’. Meus pais ficaram satisfeitíssimos com essa carta. Meu pai foi a Nova Iorque quando a gente casou. Ele foi quem conheceu João antes. Mamãe apenas quando a gente veio para o Brasil, alguns anos depois e logo mamãe se perdeu de paixão por João Gilberto.

As lembranças do casamento são de um dia “complicadíssimo”, como definiu. Na hora chegou a pensar em desistir de tudo, em um sentimento de aprisionamento social pelas convenções, ao mesmo tempo em que descreve com carinho o fato de “o véu meio amarelado da vó Maria do Carmo”.

Miúcha: O dia do casamento foi complicadíssimo. A mamãe só acreditava em casamento na igreja. Papai então viajou para me levar no altar. Tinha meia dúzia de convidados. Tinha pouca gente, mas muito querida. E quem estava filmando tudo era o Luiz Bonfá (músico). Eu fui vestida de noiva com véu amarelado, um vestido com calda marfim que procurei muito para combinar com o véu da minha vó Heloisa. Esqueci as alianças, que tinham ficado sob minha responsabilidade. Tive que atravessar todo o Central Park para pegar. Quando voltei com o vestido todo amassado, o padre já estava trocando a roupa para ir embora. Na hora da entrada, papai, que não tinha ido para o ensaio, me deixou no meio do caminho do altar, onde era para ele sentar na volta, e eu acabei entrando sozinha...

O casamento de Miúcha já começa quebrando padrões, mas também compondo com o tradicionalmente esperado. O véu veio do Brasil como uma herança das mulheres da família

53 e, é comumente associado a um símbolo da pureza feminina. O pai da noiva foi o representante dos Buarques de Holanda, porque, conforme ela conta, Sergio Buarque de Holanda tinha uma função definida na cerimônia: entrar de braços dados com a noiva. Enquanto a filha casava em Nova Iorque, a sua mãe - Maria Amélia Cesário Alvin Buarque de Holanda - estava em casa com os outros filhos mais novos, o que ilustra o quanto o espaço doméstico vem sendo historicamente reservado às mulheres.

Depois da cerimônia, Miúcha relembra que dançaram a madrugada toda na suíte do hotel Delmonico reservada para a celebração. O dia seguinte, a volta para casa depois da festa é descrita por Miúcha como um choque de realidade. “- Chegamos à casa e estava uma zona total, eu botando luvas amarelas, desta vez para lavar pilhas de pratos. Foi um choque começar a vida de casada”. Meses após o casamento, Miúcha engravida da sua única filha, Bebel Gilberto 36. Ainda pequena, Bebel moraria um período com os avós maternos, enquanto João Gilberto se dedicava à carreira. João Gilberto teve um papel público de destaque na internacionalização da Bossa Nova, o qual se tornaria uma manifestação do estrangeiro-latino na Europa e Estados Unidos.

Para entender esse desejo movente de errância, é possível situar a ação de errância como ponto de fuga, como o filósofo Gilles Deleuze se dedica a demonstrar na sua escrita sobre as ciências vagabundas ou errantes, nômades, partindo de seus movimentos de diluição de fronteiras de reconstrução de novos territórios (DELEUZE apud PIRES, 1998, p.16). O ser artista, nesse caso, daria a Miúcha esse impulso para exercer a sua ressignificação em outras terras, com outros amores, variados desejos. Fora do Brasil, esses círculos internacionais tinham uma maior presença de mulheres de destaque, onde circulavam cantoras da sua geração como a italiana Rita Pavone, a francesa Brigite Bardot e a norte-americana Doris Day. Todas essas três transitaram pela Bossa Nova, incluindo no repertório das suas carreiras musicais como Garota de Ipanema e Insensatez, ambas as canções populares na voz de

Miúcha. No caso de Miúcha, acontece um duplo deslocamento, como mulher-errante, uma

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36 – Reprodução desta pesquisa do acervo pessoal de Miúcha, datada do ano de 1968. Autor desconhecido. A escolha deste estudo pelo uso de “Bebel” e não “Isabel”, para identificar a filha de Miúcha, é pelo fato dela ser também uma artista e, tanto na intimidade como para o público, ficou conhecida como Bebel Gilberto.

54 cantora latina no mundo eurocêntrico, e como artista-mãe, não aceitando ficar confinada aos espaços privados, quebrando o ciclo vivido até a geração da sua mãe.

Figura 9: Esta foto de Miúcha e Bebel Gilberto, com cerca de dois anos de idade, é uma foto da filha brincando de morder a mãe e funciona como um signo: uma Miúcha com

cabelos presos sendo devorada metaforicamente pela vida doméstica, concentrada na figura feminina do casal, sendo a Miúcha - mãe quem (quase) anula seus sonhos de ser cantora.

1.4 – Casamento, maternidade e estranhamento

Em Nova Iorque nasce Bebel Gilberto. Em seu encontro com a maternidade, Miúcha descreve inicialmente como um lugar de estranhamento.

Miúcha: Para mim, foi um espanto ser mãe! Quando Bebel nasceu, não tinha irmã, mãe em volta, crianças, nada. A mãe de primeira viagem não sabe como é ser mãe. Minha vida era muito complicada, a gente viajava muito. No dia do nascimento tinha greve de taxi em Nova Iorque, chamamos um casal de amigos que levaram a gente para o hospital... Depois foi procurando casa para morar com um bebê... Queria proteger aquele novo ser, dar o meu melhor, foi um deslumbre, nem imaginava que ia gostar tanto, só com ela nos braços. Eu não idealizava ser mãe, acho que a vida já me surpreendia muito, então era assim que ia levando, o que vier eu traço.

Ela conta que cabia a ela lembrar que a família precisava almoçar e jantar, “ter uma rotina básica para um cotidiano de uma casa com criança”.

55 Miúcha: Quando Bebel nasceu, ela não tinha cama. Nos primeiros dias ela dormia em uma gaveta com travesseiros. Também não tinha nem carrinho de bebê. Eu acho que não estava pronta para tudo aquilo. João não soltava o violão... Foi muito complicado o início. Depois ganhei um carrinho para passear com ela, que foi usado por uma amiga fotógrafa em um anúncio. Passava os dias empurrando carrinho de bebê no Central Park.

Sobre a fase do início da maternidade, ela se lembra da ida ao show do Pink Floyd, em Nova Iorque. Ali, o rock progressivo era uma curiosidade musical e surgia como parte do comportamento de uma nova geração de juventude: Miúcha: Depois de a Bebel nascer, estava um tempo, mais de um ano, sem sair. Foi quando estava tendo a primeira turnê do Pink Floyd. Nessa noite, sai sem o João (Gilberto) saber. Vesti um tailleur rosa que foi de minha tia. Não sabia como se vestia para ir a um show de rock. Cheguei lá todo mundo de jeans e logo me entrosei com a rapaziada mais jovem. Era uma loucura, o som ficava girando..., eles foram os precursores do surround, a música vinha de todo lugar. Voltei para casa com os bolsos recheados de baseados, que fui ganhando lá. Cheguei a casa e fui logo tirando dos bolsos. Achei que João (Gilberto) ia adorar, mas que nada, ele ficou furioso e teve um ataque de ciúme.

Lembranças engraçadas, que levam Miúcha às gargalhadas, aparecem à medida que a filha vai se tornando uma criança, entre os três e os seis anos. Entre as recordações, ela conta de uma chamada de atenção da mãe Maria Amélia, para voltar para casa para “assumir o seu papel de mãe”. E logo a ligação afetiva de Bebel Gilberto com Maria Amélia e Sergio Buarque ficaria muito forte. O avô ganharia o apelido de “Pappyotto” 37, uma espécie de “outro pai” em um portunhol infantil. A expressão inventada foi uma herança do idioma adquirido no repertório da experiência da família na temporada de dois anos morando no México.

Miúcha: Em 1972 fiquei um verão na casa de Gil (Gilberto) e Sandra (Gadelha), em Itapuã (bairro de Salvador, na Bahia) quando ele gravava o Refazenda, e todos os músicos estavam na casa ao lado. A gente comia caranguejo na praia, e Gal (Costa) me ensinou como comia aquilo. Quando não tinha água, tomava banho na Lagoa (de Itapuã) com xampu. Ah, era bom demais... Comecei a demorar na Bahia. Ai, mamãe, que estava cuidando de Bebel, ligou, me mandando voltar. Ai eu falei: ‘- Poxa, logo agora, que sábado tá combinado que vai baixar um disco voador aqui perto e estamos indo todos pra lá...!?’ Mamãe, é claro, não entendeu nada (risos).

Nota-se aqui que a “chamada de realidade” se dá para a mãe, absorvendo o pai das cobranças com a criação e educação da filha. João Gilberto, quando acontece esse episódio, estava nos Estados Unidos, e Bebel Gilberto sob os cuidados dos avós maternos. Sobre a família paterna, ela aparece no episódio da escolha do nome da filha. Miúcha conta que no ______

37 – Trecho do filme Raízes do Brasil I, disponível. https://www.youtube.com/watch?v=etUEsguoUx4. 1:09:16. Acessado 04 de agosto de 2019.

56 dia do nascimento, ela e João Gilberto ainda não sabiam que nome dar à bebê. Ela relembra:

Miúcha: João sugeriu Maria da Conceição, em homenagem ao nome da irmã dele, mas foi graças à enfermeira que ela não ganhou esse nome. Escrevi o nome Conceição no papel, e quando a enfermeira leu com a pronúncia do inglês disse: “-Não, essa menininha não pode se chamar Con-cei- ção”. (imita o sotaque norte-americano). Ela achou muito pesado para um bebezinho. Aí pensei em Izabel, João logo falou ‘Bebel, Beléleu’ e acabou ficando.

Alguns anos depois Bebel viria a conhecer a família paterna, na primeira viagem dos três reunidos para Juazeiro, na Bahia, cidade onde nasceu João Gilberto. A família paterna preparou uma festa de aniversário para recebê-los.

Miúcha: A nossa primeira ida, nós três juntos, para Juazeiro foi para a família de João conhecer Bebel. Era o aniversário de Bebel, devia ser já 4 ou 5 anos. Eles preparam uma mesa cheia de doces como ela nunca tinha visto e cobriram com uma toalha. Quando ela viu, perguntou: ‘-És tudo para mi, mamá!?’ encantada. Era uma festa como eu nunca tinha feito para ela. Engraçado que Bebel chegou falando portunhol, porque estávamos vindo da Cidade do México, onde ela foi morar ainda bebê e foi lá que começou a falar. A Cidade do México era para ser uma viagem de apenas duas semanas e acabou virando dois anos!

Essa passagem conota que as relações familiares não eram frequentes, as distâncias eram grandes e não existia a hiper conexão do século XXI, mas nem por isso os laços eram pouco afetuosos. Miúcha se lembra da farra da árvore de Natal em Nova Iorque, montada por Bebel com o tio Sergito (Sérgio Buarque). Em outra lembrança, traz a visita de Chico Buarque e sua então mulher, a atriz Marieta Severo. Bebel já conhecia a voz do tio materno de ouvir a música A Banda, com a qual Chico havia ganhado o Festival da Canção e o tinha transformado em um cantor famoso. De repente, durante a visita do tio, Bebel o associa com a foto e a voz do disco que adorava escutar. Depois, Bebel viria a participar do musical Os Saltimbancos, com músicas de Chico Buarque, ao lado da mãe e no coro com as primas. Miúcha participa do espetáculo cantando e também faz parte da trilha-sonora como cantora. Sobre o primeiro encontro musical entre a sobrinha e o tio, Miúcha conta:

Miúcha: A primeira vez que Chico (Buarque) conheceu Bebel foi quando ele e Marieta (Severo) estiveram na nossa casa. Chico estava estourado no Brasil com a música A Banda, que Bebel adorava. Cantarolava: ‘Ban-da-la-lá-lá’. Bebel olhava concentrada para o disco, parecia o papai quando lia jornal. Quando Chico (Buarque) pegou o violão, ficou tocando e cantando a música a pedido dela. Uma hora ela entendeu que ele era a mesma pessoa do disco. Ele e Bebel logo se afinaram, e ela não queria que ele parasse. Até que Chico disse aos risos: “-Ela acha que eu sou uma vitrola!”

57 Esses momentos de alegrias se misturavam aos afazeres da vida doméstica. Com João Gilberto ocupado com a carreira e Miúcha recém-mãe, ela passou a ver a vida de casada como exaustiva. Ela não apenas resolvia as questões práticas do cotidiano da família, como auxiliava na carreira do marido, sem que houvesse reconhecimento público para esse papel desempenhado nessa engrenagem profissional, sem créditos nos discos de João Gilberto, nos momentos em que ocupou a função de produtora. Depois de Paris, já morando em Nova Iorque, Miúcha passaria a cantar praticamente apenas dentro de casa. Já o marido:

Miúcha: João (Gilberto) recebeu um convite para um show em Washington. Estávamos tão duros, devendo o aluguel três ou quatro meses, e quando a notícia chegou comemorei. Dias antes, João (Gilberto) encucou: ‘-Você quer que eu arrisque a minha vida, entre naquele avião para fazer esse show só para você pagar o seu aluguel? Eu disse: ‘-Você vai!’. Tinha passagem marcada e estava tudo certo. Eu achava que a minha obrigação era resolver os problemas, e o problema dele era fazer um show...

Em seguida, sem ser perguntada a respeito, ela emenda, em voz alta, uma reflexão sobre si mesma: “- Como você vê, eu não era uma personagem tão feminista como deveria ter sido na época”. E retoma a palavra “chave”, no sentido literal, mas também que permite ser lida como uma metáfora entre a casa e a rua, o público e o privado, a prisão e a liberdade. O objeto chave também está presente no poema Iluminações (1886) de Arthur Rimbaud 38, poeta predileto de Vinícius de Moraes, segundo lembrança de Miúcha. O poeta francês encerra o poema Parade com o verso: “Eu sou o único a ter a chave dessa parada selvagem”. Trazendo para os rastros da vida de Miúcha, a chave da casa do casal inicialmente estava restrita à mão do marido. O mesmo objeto, concreto e simbólico, que na casa dos pais de Miúcha lhe foi negado. Ela, então, depois de ter ficado em casa sozinha sem chave, nas casas onde moraram juntos em Nova Iorque, e mais tarde na Cidade do México, faz a sua cópia das chaves. A chave da casa, finalmente, deixaria de ter um único dono.

As responsabilidades com o doméstico, historicamente no Brasil, foram vistas como algo secundário, de menor valor social. Assim, ao recair sobre a mulher as tarefas da casa, subtrai dela o tempo para o espaço público, da carreira ou algo que escolhesse, em função da

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38 – Citação extraída do livro Uma parada selvagem, para ler as Iluminações de Rimbaud, de Vicente Adalberto Luis.

58 sobrecarga de tarefas, provocada pela não divisão dos afazeres com a casa. Não ser uma mulher bem-comportada, portanto, não ser a mulher desenhada pela subjetividade binária homem-forte versus mulher-delicada, levanta novas questões, como a sobrecarga feminina no casamento. O sentimento da desigual divisão dos papéis no casamento transparece ao Miúcha narrar de que forma entendeu como seria a dinâmica da sua vida de casada. Ela ilustra esse processo ao retornar ao episódio do dia seguinte do casamento:

Miúcha: Depois da festa do casamento, voltamos para casa e me deparei com uma imensa pilha de pratos para lavar. João nunca levou jeito, sempre quebrava alguma coisa, acho que era uma forma de fugir... Então, claro, acabava sobrando pra mim. Ai, com a chegada de Bebel era a minha roupa, a roupa dela e a de João para lavar.

Depois do casamento, a cena se repetiria. Com João trancado às vezes dois dias no quarto com o violão. A figura do herói se transfere, segundo revela, para a figura do pai-herói.

Miúcha: João (Gilberto) e Bebel (Gilberto) sempre foram muito ligados. João (Gilberto) é o grande amor da vida dela. João adorava cantar para ninar Bebel. Ela começou a cantar até antes mesmo de falar, deve ter sido por isso.

Com o nascimento de Bebel, o casal se muda para Nova Jersey.

Miúcha: Uma vez me perdi de ônibus (ela tem uma vaga lembrança de que estava com Bebel Gilberto no colo) e, ainda pouco familiarizada com a cidade, fui de Nova Iorque para Nova Jersey. Me encantei com o que vi, casas e uma vida mais tranquila, lembrava de certa forma o Rio de Janeiro, fiquei apaixonada. Na volta, contei para João (Gilberto) e ele disse: ‘-Volta lá Heloísa e escolha a que mais gostar’. Resolvi tudo e no dia da mudança, quando João enfim conheceu a casa, ele disse logo na entrada: “Tijolinho, Heloísa, eu não te falei que eu detesto tijolinho!”. Ora, não fazia ideia de que ele não gostava de casa de tijolinhos. Moramos um bom tempo lá!

Miúcha, a essa altura já falava inglês fluente, passa a resolver também toda a parte prática com o aluguel do imóvel, assim como as demais demandas da casa e família. Na nova casa, João Gilberto concede uma entrevista à Marilena Miller 39. Durante a conversa, a entrevistadora pergunta à Miúcha: “- Você acompanha João (Gilberto) quando ele se apresenta fora de Nova Iorque?”. No que João Gilberto, até então visivelmente bastante tímido, responde: “-Ela acompanha na bateria”. A ironia expressa no termo bateria é uma piada no meio musical por significar, muitas vezes, bagunça, zona, ou ainda, o instrumento que dá a batida. Miúcha responde: “-Viajo sempre com João”. Em seguida, a entrevistadora

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39 - Entrevista de João Gilberto, com a participação de Miúcha e Bebel Gilberto concedida a Marilena Miller. Nessa entrevista é possível também ver imagens da casa na cidade Weehawken - Nova Jersey (EUA), onde moraram. Disponível: https://www.youtube.com/watch?v=Glv4bhRSoGc. Acessado 04 de agosto de 2019.

59 emenda outra pergunta: ‘-Você gostaria de cantar algum dia?’. Visivelmente desconfortável naquela situação, Miúcha, já era cantora naquela época, em 1967, é ali tratada como a mulher de. Nesse momento, a expressão facial de Miúcha muda e a sua voz fica embaralhada, quase inaudível. Ela diz, então, algo como: “-Vamos deixar para um dia, ver se...”.

1.5 – O amor como interdito?

Na segunda metade da década de 60, Miúcha esteve ao lado de João Gilberto cuidando para que tudo corresse bem. A partir dessa escolha, nota-se um desvio no rumo da sua trajetória como artista, que passa a ser pautada pela relação amorosa, e essa, por sua vez, orbitará em torno da carreira do marido.

Miúcha: Estava em Nova Iorque prestes a gravar meu primeiro disco, naquela época não era fácil gravar como agora. Chamei João (Gilberto) para participar da faixa Izaura, que mais tarde gravou no disco branco dele. Meu disco na verdade nunca saiu. Ele ficou impressionado com o estúdio, diferente dos estúdios do Brasil na época..., muito profissional, aí ele foi chegando e ficando...., e decidiu fazer um disco ali.

O “não disco” é como ela chama a experiência de interrupção da sua estreia na gravação fonográfica, que aconteceria em Nova Iorque. Essa é uma memória guardada no passado do ex-casal. Essa história, até então não contada publicamente por ela, aparece com intensa vivacidade e riqueza de detalhes nas suas rememorações.

Miúcha: Eu estava fazendo aula com Albert Tailleur, pianista americano que acompanhava várias cantoras, inclusive Sarah Vaughan, que eu amo. Ele me dava aula de interpretação, não era de canto, mas de como criar um clima, se desmanchar no palco. Em troca eu mostrava as músicas de Chico (Buarque) e Tom Jobim. Eu tava cheia de ideias, cheia de músicas, tinha levado Águas de março, que tinha acabado de sair (música de Tom Jobim). O disco começou desse encontro. Ai, a mulher dele (de Albert Tailleur) era dona de uma gravadora e fomos até lá. O João (Gilberto) iria participar do meu disco. Ele foi lá gravar Izaura, que passou a fazer parte do disco de João e outras (músicas) também. O meu ‘não disco’ virou o disco de João. (grifo meu).

O "não disco" de Miúcha seria um fio do casamento que começa a ser puxado a partir do mal-estar provocado entre a expectativa e o cotidiano. O palco e o estúdio, mais uma vez, não seriam para ela, parece receber esse recado. A mulher, principal responsabilizada pelas

60 tarefas domésticas 40, historicamente enfrentou maiores obstáculos ao reconhecimento no espaço público.

A exaustão, da vida de mãe, casada e profissional, seria o leitmotiv das separações 41 entre mulheres artistas. Em um paralelo entre a vida e a literatura, no conto A moça tecelã 42, de Marina Colasanti, percebe-se um ponto de virada na trajetória da personagem a partir do casamento. Na história, a moça tinha poderes de tecer o desejo e tecendo costurou um marido. Ao chegar, ele a fez tecer um castelo e não mais parava de tecer os seus desejos, compostos por coisas e objetos, e não mais os desejos dela ou de ambos. Ao que ela, sem tempo para ver o sol fora de casa, aproveitando que ele dormia, puxa o fio de lã. Ao acordar, o marido só tem tempo de se ver desaparecer. A mulher, então volta a tecer por puro prazer.

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40 – Esse contexto é baseado na pesquisa “Trabalho feminino e vida familiar: escolhas e constrangimentos na vida das mulheres no início do século XXI”. A pesquisa analisou casais heterossexuais de 2009 até 2015, e foi desenvolvida no Núcleo de Estudos de População “Elza Berquó” (Nepo) da Unicamp, sob a coordenação da professora Maria Coleta de Oliveira e da pesquisadora Glaucia dos Santos Marcondes. A principal fonte do estudo são os dados fornecidos pela Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) para os anos de 2001 a 2012. Segundo os dados da PNAD, anualmente, 90% das atividades do lar são executadas por mulheres, enquanto apenas 40% por homens na mesma faixa etária.

41 – Trecho do conto A mulher tecelã: “Sem descanso tecia a mulher os caprichos do marido, enchendo o palácio de luxos, os cofres de moedas, as salas de criados. Tecer era tudo o que fazia. E tecendo, ela própria trouxe o tempo em que sua tristeza lhe pareceu maior que o palácio com todos os seus tesouros. E pela primeira vez pensou em como seria bom estar sozinha de novo. Só esperou anoitecer. Levantou-se enquanto o marido dormia sonhando com novas exigências. E descalça, para não fazer barulho, subiu a longa escada da torre, sentou-se ao tear. Desta vez não precisou escolher linha nenhuma. Segurou a lançadeira ao contrário, e jogando-a veloz de um lado para o outro, começou a desfazer seu tecido. Desteceu os cavalos, as carruagens, as estrebarias, os jardins. Depois desteceu os criados e o palácio e todas as maravilhas que continha. E novamente se viu na sua casa pequena e sorriu para o jardim além da janela. A noite acabava quando o marido estranhando a cama dura, acordou, e, espantado, olhou em volta. Não teve tempo de se levantar. Ela já desfazia o desenho escuro dos sapatos, e ele viu seus pés desaparecendo, sumindo as pernas. Rápido, o nada subiu-lhe pelo corpo, tomou o peito aprumado, o emplumado chapéu. Então, como se ouvisse a chegada do sol, a moça escolheu uma linha clara. E foi passando-a devagar, entre os fios, delicado traço de luz, que a manhã repetiu na linha do horizonte”. Texto extraído do livro “Doze Reis e a Moça no Labirinto do Vento”, Global Editora, Rio de Janeiro, 2000, uma colaboração da amiga Janaina Pietroluongo, da longínqua Oxford.

42 – Base de dados secundária, extraída do artigo: Superar limites nas carreiras das mulheres musicistas (SEGNINI, Liliane, 2013, p.185). Nele, a pesquisadora trabalhou com os números levantados pela Classificação Brasileira de Ocupações (CBO) vinculada ao Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (PNDA/IBGE) que apontam as mulheres como a autora da maioria dos pedidos de separação no século XXI.

61 Miúcha, ao ser perguntada, para esta pesquisa, por que abriu mão do seu primeiro disco, de gravá-lo em Nova Iorque, de ter uma obra com o seu nome, e, a partir dela, possivelmente galgar um reconhecimento internacional, a artista dá lugar, em sua narrativa, a uma 62sujeita pragmática: a família tinha contas de aluguel a pagar, o casal tinha a filha para criar, e o retorno financeiro de um disco do marido, já com a carreira em evidência, seria o investimento mais seguro.

No disco branco de João Gilberto, ela canta na faixa Izaura 43. Sua voz está lá, mas o crédito com o seu nome não aparece no disco. O disco branco de João Gilberto, como ficou conhecido pela cor da capa e por ter apenas o nome do artista como título, foi lançado em 1973 e logo se tornou um sucesso de vendas, com reconhecimento de público e crítica. Miúcha participa dividindo os vocais com João Gilberto na faixa Izaura, que fecha o disco. Essa é a primeira gravação fonográfica de Miúcha. Interessante notar que na sua cronologia, escrita por ela para a finalidade de compor o conteúdo do site miuchabuarque.com, ela destacaria apenas a sua estreia fonográfica, omitindo o bastidor em torno da música externado para esta pesquisa. Identifica-se neste Acontecimento em torno da música escolhida por ela e que compôs o disco de João Gilberto e não o dela, um casal de artistas com profissões afins, ambos intérpretes, sendo para ele reservado os holofotes, e para ela o papel de estar ao seu lado. Seria o casamento e a maternidade interditos a esse desejo de liberdade que a personagem expressa?

Cerca de dois anos depois, Miúcha e Bebel Gilberto, então com nove anos, moram sem João Gilberto em Nova Iorque na casa de . Miúcha decide ficar esse ano na cidade, para a filha continuar estudando no colégio norte-americano. O estopim da separação do casal, decisão tomada por Miúcha, viria com o disco The best of two worlds 44. No álbum, Stan

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43 – A música Izaura, de autoria de Herivelto Martins e Roberto Roberti, é uma analogia com a personagem escrava Isaura, do livro homônimo de Bernardo Guimarães. Herivelto Martins foi um compositor boêmio, casado com a cantora Dalva de Oliveira. A personagem da escrava Isaura ficou ainda mais popular através da novela da Rede Globo, de 1976. Na grafia dos discos o nome Izaura aparece com Z e não S, como no romance. No disco, idealizado para o mercado norte-americano, a música foi rebatizada de You know i just shouldn’t stay. A canção Izaura nas vozes de João Gilberto, disponível no site : https://www.youtube.com/watch?v=IhKbkNqh0kk Acessado em 04 de agosto de 2019.

44 – Reprodução da capa do álbum The two words de Stan Getz, João Gilberto e Miúcha, gravadora CBS. Na capa nota-se a ausência do nome de Miúcha.

62 Getz, João Gilberto e Miúcha estão na foto da capa, mas o nome dela mais uma vez não aparece, não sendo ela creditada. Miúcha participa de quatro faixas, como a música que abre o disco Double raibow, versão em inglês de Chovendo na Roseira, e Água de março, ambas de Tom Jobim. Miúcha é a cantora do disco, cantando a Bossa Nova em inglês, papel não ocupado por João Gilberto e sendo Stan Getz fundamentalmente saxofonista.

Figura 10: Nesta imagem da capa do disco, o corpo de Miúcha está presente, mas o seu nome não aparece. Eles são os músicos, ela a intérprete de todas as canções em inglês.

Essa não citação é algo pouco usual no mercado fonográfico: uma voz de uma cantora principal sem crédito na capa.

Portanto, ao escutar o disco a sensação é de um disco de trio, com talentos complementares. Para participar como intérprete, Miúcha assinou um contrato, intermediado por Monica Getz, mulher e manager do Stan Getz, lhe pagando um simbólico U$1 pelos direitos autorais.

63 No disco The 64best of two worlds, Miúcha canta novamente Izaura, dividindo os vocais com João Gilberto, ela em inglês e ele em português. A música Izaura é um samba lento. A letrafaz um trocadilho entre o narrador da canção e a escravidão do trabalho, o qual justifica para a amada não poder ficar mais com ela porque precisa ir trabalhar. Sugere, ainda, que ele se desvencilhasse do aprisionamento do amor por essa mulher. A mulher aparece como aquela que escraviza o homem pela sedução. Na letra, cantada na primeira-pessoa do masculino, o personagem trabalha, a mulher ama. Ela é aquela que exige, e ele pede a sua compreensão. Ai, ai, ai, Izaura, hoje eu não posso ficar Se eu cair em seus braços, não há despertador Que me faça acordar, (eu vou trabalhar) Ai, ai, ai, Izaura, hoje eu não posso ficar

Se eu cair em seus braços, não há despertador Que me faça acordar, (eu vou trabalhar) O trabalho é um dever, todos devem respeitar Oh Izaura me desculpe, no domingo eu vou voltar

Seu carinho é muito bom, ninguém pode contestar Se você quiser eu fico Mas vai me prejudicar Eu vou trabalhar

No último dia de vida de Miúcha, instalada em um hotel de frente para o mar de Copacabana, bairro onde nasceu, João Gilberto a visitou e cantou para ela a música Izaura. Miúcha e João Gilberto se separaram algumas vezes, mas nenhuma delas no papel. Eles se falavam diariamente. Miúcha esteve presente na vida do ex-marido até o fim da vida dela, auxiliando o dia a dia prático da vida dele. Miúcha costumava marcar entre sete e dez anos o tempo do casamento. Entre idas e voltas nos anos finais, teria durado, então, de 1966 a 1976, ano do lançamento do disco do trio Stan Getz, João Gilberto e Miúcha. Ali selaria o rompimento e a decisão dela de ficar no Brasil. Essa 64sujeita, parece dizer, nas entrelinhas: “-Você, certamente e, vez por outra, será convidado a se retirar da minha vida por estar ocupando muito espaço. Não ligue, sou uma mulher elástico, preciso me esticar”, como no verso da poeta Camila do Valle 45.

______45 – DO VALLE, Camila. Mecânica da distração- os aprisântepos, Editora Casa 8, Rio de Janeiro, 2005. O verso do poema Microponto segue assim: “Foi esse bilhete que deixei colado na porta da minha casa antes que ele batesse a campanhia. Bateu, meu agente atendeu. Mandou aquele homem que parecia enorme ir embora chorando. Depois, com justa e mesma causa, mandei o meu agente ir embora. Chorando. Mas contínuo elástica. As lágrimas não me encolhem. Sou à prova d’água”.

64 Capítulo 2 – A “boa educação” e a mulher no século XX

É um escândalo o pensamento separado da vida Antonin Artaud

No final do século XIX e até início do século XX, o Brasil era um país predominantemente agrário, comandado por oligarquias rurais de origem tradicionalistas, e o espaço interno das fazendas era o território social consentido às mulheres da elite. A educação no espaço doméstico era especialmente feminina, com regras ensinadas por mulheres a outras mulheres. A circulação dos corpos femininos era restrita a espaços como a igreja e os bailes no interior das residências, onde a corte era feita a partir do sujeito masculino, a quem cabia tirar uma moça para dançar ou autorizar a dança da filha no baile de debutantes. O cortejamento 46 surge embalado pela cultura do cavalheirismo, como parte do rito da boa educação. Assim, é possível perceber a manutenção do consentimento paterno sobre a amorosidade da filha como um código de família pelo masculino para o feminino.

Essa marca conservadora é trazida como herança para as relações entre os gêneros no século XX. É possível notar os desdobramentos desses códigos sobre o cotidiano das mulheres na passagem do livro Raízes do Brasil, o qual eu utilizo para contextualizar as reflexões no interior da casa da família de Miúcha versus as limitações a que esteve submetida pela sua condição social de mulher. O texto foi escrito como dissertação de mestrado de Sergio Buarque de Holanda, quando ele e Maria Amélia Cesário Alvin ainda eram noivos. O autor narra um fato acontecido no século XIX, da mulher sendo violentamente tratada como propriedade do masculino no interior da família: Na organização patriarcal rural, o pátrio poder é virtualmente ilimitado e poucos freios existem para sua tirania. Não são raros os casos como o de um Bernardo Vieira de Melo, que, suspeitando a nora de adultério, condena-a à morte em conselho de família e manda executar a sentença, sem que a Justiça dê um único passo no sentido de impedir o homicídio ou castigar o culpado, a despeito de toda a publicidade que deu ao fato o próprio criminoso. O quadro familiar torna-se, assim, tão poderoso e ______46 – O substantivo “cortejamento” e o verbo “cortejar” têm origem no substantivo “corte” e dele também deriva a expressão “fazer a corte”. A cidade do Rio de Janeiro, onde Miúcha nasceu, foi sede da Corte Portuguesa (1808 – 1821). O fato deixou profundas marcas no Brasil. O Rio de Janeiro foi a primeira e única cidade na história da colonização europeia em que uma colônia sediou a Corte. Dessa experiência, o Brasil, e em especial o Rio de Janeiro, herdou rituais da monarquia, que se mostraram arcaicos no Brasil do século XX, mas deixaram suas heranças e rastros na alta-contemporaneidade.

65 exigente, que sua sombra persegue os indivíduos mesmo fora do recinto doméstico. A entidade privada precede sempre, neles, a entidade pública (HOLANDA, S., 1995, p.82).

Essa descrição feita por Sergio Buarque de Holanda se distingue em carga dramática da experiência vivida no percurso de Miúcha, porém, interessa aqui localizar como o pátrio- poder se reconfigura no século XX pelas sutilezas. Na carta escrita por Jorge Amado para o amigo Sergio Buarque de Holanda, nota-se uma discreta passagem dos direitos sobre a filha para o futuro marido. A carta foi escrita em 26 de janeiro de 1965 a pedido de João Gilberto, preocupado com o fato de os pais da noiva ainda não o conhecerem. Jorge Amado: Venho de receber uma carta de meu bom e querido amigo, o compositor João Gilberto, que se encontra nos Estados Unidos. Esse baiano de Juazeiro, das margens do São Francisco, é um dos brasileiros de maior talento e uma das melhores pessoas que eu conheço. Ele me escreve para comunicar-me seu próximo casamento com a sua filha Heloísa. João Gilberto está preocupado com o fato de você e sua esposa não o conhecerem e não terem uma ideia precisa sobre ele. Pede-me que eu escreva a você dizendo como ele é. Já o fiz linhas acima: praça da melhor qualidade, boníssimo, extremamente sensível, tímido, um pouco louco como todo músico que conheço. Creio que vocês irão gostar muito dele. Bem, meu caro Sergio, mande suas ordens para a Bahia, aqui fica seu velho amigo. (AMADO, 1965) 47.

Figura 11: Esta carta escrita por Jorge Amado para os pais de Miúcha apresentando João Gilberto, funciona como uma corte terceirizada de um amigo para outro amigo.

Algo impensável até nos dias de hoje: uma mulher “pedir a mão” do futuro marido aos sogros, o que deixa evidente a naturalização dos papéis de homens e mulheres em um no casal heterossexual.

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47 - AMADO, Jorge. In. Carta do acervo pessoal de Miúcha, datado de 26 de janeiro de 1965. Imagem da carta original produzida e fotografada para esta pesquisa. Carta datada de 26 de janeiro de 1965, datilografada e assinada do próprio punho por Jorge Amado.

66 Para além da poética de Jorge Amado e dessa relação de amizade realizando um gesto de simpatia do noivo para com os pais da noiva, cabe a este estudo provocar o estranhamento com uma hipotética inversão de papéis. Caso os sujeitos do enunciado fossem Miúcha e sua apresentação por intermédio de uma amiga comum à família de João Gilberto, a mesma carta soaria natural ou estranha? A noiva se apresentaria à família do noivo como se pedisse autorização para se casar com o filho?

A corte do feminino pelo masculino aparece, de forma ainda mais nítida, na discografia de Miúcha na qual seu irmão Chico Buarque “autoriza” o rito de passagem como um gesto de entre amigos. O texto irônico pode ser lido como uma desconstrução do machão, ao sugerir um drible sobre o masculino estereotipado pela força física e pelo descompromisso com a relação amorosa. Porém, mesmo que seja sobre o artifício do bom humor, a declaração revela a manifestação da autoridade dos irmãos sob a circulação da irmã no espaço externo a casa. Ele escreve o texto da foto publicado na contracapa do disco:

Figura 12: O texto escrito pelo irmão de Miúcha na contracapa do disco revela em tom de brincadeira a naturalização do consentimento para a irmã namorar e/ou ser artista. O texto sugere uma confraria masculina no ambiente musical, no qual usualmente caberia a elas o papel decorativo reservado às musas.

Chico Buarque: Éramos três irmãos, destacados para protegê-la da paquera. Aliás, naquele tempo não existiam as paqueras. Chamavam-se cafajestes e espreitavam nas esquinas. Não faziam outra coisa, os cafajestes. E ainda usavam uma camisa do tamanho menor, os bíceps forçando as mangas

67 arregaçadas. Então é claro que na iminência da batalha, tratávamos com os cafajestes, uma aliança súbita e estratégica: ‘- Pode falar com ela. O nome dela é Heloísa Maria. Mas pode chamar de Miúcha. Também pode dar beijo nela. Namora ela, namora (grifo meu) 48.

A autoridade 49 aparece, então, passada como um bastão do masculino para o masculino, na estratégia para despistar “os cafajestes” que se aproximassem da irmã, sete anos mais velha. Em seguida, o irmão caçula de Miúcha, concede, em tom de camaradagem, a autoridade dessa irmandade para os parceiros profissionais da cantora. O texto, da contracapa do disco Miúcha & Tom Jobim (1977) continua assim:

Chico Buarque: (...) agora o mano é Tom Jobim. E o Aloysio (de Oliveira, diretor musical do disco). Mais os músicos e os técnicos. Estamos todos loucos para atirar Miúcha às feras. Com todo carinho e com toda fé. ‘-Paquerem firme’. Chico Buarque de Holanda (assina).

A analogia entre a paquera e o trabalho sugere no texto um rito de passagem, algo nas entrelinhas reforçando a autorização, como se dissesse: ‘está dada a’. Essa autoridade masculina de conduzir e comandar os ritos, como casamento e a ocupação de espaços da música, também transparece em um bilhete público de Jorge Amado para a escritora Zélia Gattai, que foram casados até a morte do escritor. Jorge Amado dedica à mulher seu raro livro de não ficção - Bahia de Todos-os-Santos: Guia de ruas e mistérios. Na dedicatória do livro, feito para apresentar a Bahia a Zélia Gattai, o escritor usa a expressão tomar a mão. A expressão era, então, muito usual no cortejamento do masculino ao feminino, para batizar a sua mulher paulista como simbolicamente baiana:

Jorge Amado: Um dia vieste de passagem conhecer minha cidade, ficaste para sempre. Aqui nesse jardim onde cresceram nossos filhos e crescem nossos netos, entre as árvores que plantamos, no culto da amizade, tomo de tua mão de namorada e te proclamo Zélia de Euá, filha de Oxum, mulher de Oxóssi (AMADO, 1945, p.9, grifo meu).

______48 – HOLANDA, de B. Chico. In. Contracapa do LP 'Miúcha & Antônio Carlos Jobim'. São Paulo: gravadora RCA, 1977. Reprodução do disco Miúcha e Tom Jobim feita por esta pesquisa.

49 – O termo “autoridade” é trabalhando nesse estudo a partir do Seminário La noção d’autorité et ses limites, coordenado pela psicanalista Marília Etienne Arreguy e a filósofa Vassiliki-Piyi (Vicky) Christopoulou, acompanhando por essa pesquisa de janeiro a dezembro de 2018 na École Doctorale des Études Psychanalytiques, da Université Paris Diderot. A referência principal trazida pelo seminário é a filósofa alemã Hannah Arendt, no texto Qu’est-ce que l’autorité, publicado no livro La crise de la culture, Paris: Gallimard, pp. 121-185. No texto de Arendt, autoridade é apontada como base para segurança e permanência. Aqui, este estudo associa o desafiar a autoridade como as imposições familiares pautadas pelos estereótipos de gênero, como um deslocamento.

68 Os casais Zélia Gattai e Jorge Amado, Miúcha e João Gilberto têm em comum o fato de as mulheres públicas 50 não terem alterado o sobrenome após o casamento, não substituindo o de família pelo do marido, como era o padrão da época. Esta escolha sinaliza já terem uma carreira independente ao casamento. No caso de Miúcha o sobrenome artístico do marido já tinha sido herdado previamente pela mulher do casamento anterior ao com Miúcha, a também Astrud Gilberto. Como eles, outro casal, mais próximo à idade dos pais de Miúcha, Jean-Paul Sartre e Simone de Beauvoir, também contribui para reposicionar o feminino em perspectiva com o masculino. Miúcha lembra a visita do casal francês ao Brasil. Beauvoir e

Sartre 51 ficariam apaixonados pelo país.

Figura 14: As relações homens/mulheres não são as mesmas nas diferentes culturas. Esta foto revela um lugar de destaque para uma mulher mãe de santo, a quem Sartre e Beauvoir foram reverenciar na companhia de Jorge Amado. ______50 - A junção da palavra pública como adjunto adnominal das palavras homem e mulher suscita significados diferentes. A expressão homem público remete a um sujeito que serve à nação ou a um homem célebre. A expressão mulher pública soa como uma mulher de todos, sugerindo a conotação sexual, ao que nos parece, devido à mulher ser associada à esfera do privado, ao espaço não público.

51 – Foto da visita de Simone de Beauvoir e Sartre à Bahia, pertencente ao acervo da Fundação Casa de Jorge Amado. Autor desconhecido. Simone de Beauvoir e Jean Paul Sartre na companhia de Zélia Gattai e Jorge Amado, em visita ao terreiro de Mãe Senhora, na Bahia. Nota-se a autoridade de uma mulher negra de matriz religiosa afro-brasileira pela sua centralidade na foto.

69 Miúcha: Foi Jorge Amado que levou eles lá em casa. Aliás, Jorge Amado levou Beauvoir e Sartre pra cima e pra baixo. Depois da Bahia então, e de conhecer o candomblé e as mães de santo, eles não queriam mais sair do Brasil.

Sartre e Beauvoir se tornariam mundialmente conhecidos como o casal dos grandes filósofos do existencialismo francês. Porém, Simone de Beauvoir, nesse lugar da filósofa, ocupou um lugar de exceção, especialmente na primeira metade do século XX, mas não apenas nesse período, como provocou Jacques Derrida sobre o feminino na filosofia:

É impossível para eu ter um filósofo como mãe. Minha mãe não poderia ser uma filósofa. Um filósofo não poderia ser a minha mãe, e isso é muito importante e quer dizer muitas coisas. Quer dizer que a figura de um filósofo, para mim, e foi por isso que desconstruí a filosofia, é sempre uma figura masculina. Toda a desconstrução do falogocentrismo é a desconstrução de toda a ligação da filosofia, desde sempre, a uma figura masculina e paternal. O filósofo é um pai, não uma mãe. Um filósofo que fosse minha mãe seria um filósofo pós desconstrutivo. Minha mãe, como filósofa, deveria ser minha neta. (DERRIDA apud RODRIGUES, 2013, p.224).

Vale observar que a obra de Beauvoir 52, contemporânea a Sartre, faz citações à dele, em uma sinalização de referência intelectual dela para com ele, sem que a recíproca aconteça. O casal não teve filhos. Esse não era o padrão para a mulher da primeira metade do século XX, fosse ela de origem burguesa ou não, estavam todas, até então, unificadas pelo determinismo da maternidade. Esse foi um dos grandes desconfortos ao falogocentrismo provocado pelos escritos de Beauvoir, cruzando com os rastros da sua vida. Independente da atualidade ou de uma possível crítica a um essencialismo binário na obra da filósofa, o seu discurso pela ocupação do espaço falante no feminino ecoa até hoje e produz seus efeitos pela ação concreta de uma sujeitA mulher.

Ao fazer escolhas destoantes, Miúcha se aproxima dessa referência de mulher em deslocamento do feminino convencionado, sem deixar de transitar pelas regras do falogocentrismo. Os códigos do falogocentrismo estão entranhados e amalgamados em mulheres e homens de tal forma, que é abstrato pensar em desvencilhar-se totalmente sem uma ruptura estrutural. As ações de Miúcha constituem, então, o que esse estudo trabalha

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52 – BEAUVOIR de., Simone, Le Deuxième sexe, Gallimard, Paris, 1949, p.65 ; p.172. Citação a J.Paul Sartre, através dos livros Réflexions sur la question juive e L’Être et le Néaut.

70 como deslocamento pela différance, a partir de uma abertura do quase conceito para plurais de desconstrução no feminino, provocada por Jacques Derrida, criador do termo différance.

No livro Posições, Derrida coloca:

O particípio presente (différant) do verbo diferir (em francês, différer), a partir do qual se forma esse substantivo, reúne uma configuração de conceitos que considero sistemática e irredutível e em que para cada um intervém, se acentua em um momento decisivo do trabalho (DERRIDA, 1972c, p.14).

Na referida obra, Derrida apresenta o quase-conceito ou sistema de différance em três tópicos:

I – Primeiramente, différance remete ao movimento (ativo e passivo) que consiste em diferir por retardo, delegação, adiamento, reenvio, desvio, prorrogação, reserva. (...) o que difere a presença é – em seu representante, em seu signo – anunciada ou desejada;

II – Em segundo lugar, o movimento da différance, na medida em que produz os diferentes, na medida em que os diferencia, é, pois, a raiz comum de todas as oposições de conceitos que destacam nossa linguagem, tais como, para não tomar mais que alguns exemplos, sensível/inteligível, intuição/significação, natureza/cultura. Enquanto raiz comum, a différance é também o elemento do mesmo (que se distingue do idêntico) no qual essas oposições se anunciam;

III – Em terceiro lugar, a différance é também a produção, se ainda se pode dizê-lo, dessas diferenças. (...) Desse ponto de vista, o conceito de différance não é nem simplesmente estruturalista nem simplesmente geneticista – tal alternativa é, ela própria, um “efeito” da différance. (DERRIDA, 1972c, p.14-15).

Em uma entrevista concedida por Derrida à filósofa e psicanalista Julia Kristeva, publicada também em Posições, livro no qual se investiga o glossário semântico e conceitual derridiano, esse completa o sentido que dá à différance. Nessa fala, existe um diálogo próximo com as escolhas deste estudo, em especial, quando esta pesquisa se concentra no duplo movimento entre a esfera pública e a privada, as quais no sistema falocêntrico são impostas à mulher como indissociáveis.

71 A différance é o jogo sistemático das diferenças, dos rastros de diferenças do espaçamento, pelo qual os elementos se remetem uns aos outros. Esse espaçamento é a produção, ao mesmo tempo ativa e passiva - o a da différance indica essa indecisão relativamente à atividade e a passividade, aquilo que não se deixa ainda ser comandado e distribuído por essa oposição, dos intervalos sem os quais os termos “plenos” não significariam, não funcionariam (DERRIDA, 1972c, p.33). (grifo do autor).

Trazendo este quase conceito para a experiência dos rastros da vida de Miúcha, identifico que seus deslocamentos se dão pela différance ao transitar entre os espaços de domínio do masculino, se impondo por entre as margens e o centro da Bossa Nova. A subjetividade e a objetividade – é um efeito de différance (Idem, p.35). As presenças da voz e do corpo constituem a sua linguagem, e esta se manifesta com a autoria pela experiência. Afinal, como Derrida parafraseia Antonin Artaud 53: “É um escândalo o pensamento separado da vida” (Id., pp.255-256).

A cultura, psíquica e corporal do desejo, existe em diálogo com a linguagem, os sentidos, o som, o tato, o cheiro, o gozo. O sul e o norte não são territórios, mas lugares abstratos, que só aparecem ao se referirem a si mesmos a partir do outro. A língua, a paixão, a sociedade não são nem do norte nem do sul, são o movimento de suplementariedade pelo qual os polos se substituem alternadamente um pelo outro: pelo qual o acento enceta-se na articulação, difere-se ao se espaçar. A diferença local é apenas a différance entre o desejo e o prazer (DERRIDA, 1967, p.325).

O termo deslocamento surge na obra de Derrida em uma nota-pé, em A escritura e a diferença, como uma pontuação complementar: O deslocamento de uma questão forma certamente um sistema (DERRIDA 1967, p.437). Nesse caso, um sistema desconstrutor, que seria um “sistema de différances”, como aparece no ensaio de síntese do termo différance presente na obra Abécédaire de Jacques Derrida 54. Esse estudo trabalha o deslocamento como uma ação capaz de provocar o movimento dos atores e, dessa movência surge algo, que seria a différance. Ao escutar o som da palavra différance, é possível identificar o som das palavras diferenças e errância, no idioma francês e semelhante no português. Jacques Derrida irá ainda recorrer a Antonin Artaud para referir-se ao corpo como esse lugar do Acontecimento “da potência radical da palavra” (DERRIDA, 1967, p. 263). Essa associação abre o caminho para entender o corpo como território de linguagens:

______53 – DERRIDA, J. L’écriture et la différance, Paris : Essais, 1967, pp. 253-292. Sobre a linguagem do corpo e da voz, Jacques Derrida irá desenvolver a ideia de autoria como uma “impressão digital” em especial no capítulo La parole soufflée que dedica a um diálogo com a obra de Antonin Artaud.

54 - ANTONIOLI, Manola (org.). Abécédaire de Jacques Derrida, Sils Maria, Paris, 2006, p.56.

72 De acordo com (Antonin) Artaud, também ocorre primeiro em meu Corpo, em minha Vida, expressões cujo significado deve ser entendido além das determinações metafísicas e "limitações do ser" que separam a alma do corpo, a fala, gesto, etc. (Idem, p.263). (as iniciais maiúsculas são do original em francês).

Miúcha se desloca, não necessariamente provocando uma ruptura, mas transitando entre as normas do falogocentrismo, que impõe, algumas vezes, um lugar de contraponto para a voz feminina a voz masculina. Essa ação de desafiar o “lugar da voz” pode ser compreendida a partir do conceito de deslocamento trazido pela psicanalista Maria Rita Kehl. Na obra, Deslocamentos do feminino - a mulher freudiana na passagem para a modernidade, Maria Rita Kehl aponta a potência desses deslocamentos, sejam individuais ou coletivos, situados através do exemplo de mulheres na história e literatura.

O conjunto de mulheres, ao deslocar-se de uma posição construída de modo a complementar e sustentar a posição masculina, motivou uma produção de discursos e saberes extremamente prolixa, na produção direta da perplexidade que esse deslocamento produziu (KEHL, 2016, p.25).

Em uma análise pós-freudiana, Kehl irá apontar que mulheres do século XIX em deslocamento teriam atuado nos espaços públicos e privados, como se tivessem uma espécie de defeito de fabricação. E isso não passaria incólume ao masculino discursivo sobre o feminino. Essa reflexão permite colocar o deslocamento como da esfera do desafio da ordem, de incomodar ao dado como regra ou verdade, da convulsão das mulheres, muitas vezes patologizadas como loucas, histéricas, frígidas ou mães desnaturadas. Romper o círculo destinado ao feminino, como refutar o casamento como um fim de linha, pode se configurar como uma ação de deslocamento pela différance. Mulheres de diferentes tempos e origens se deslocam e desestruturam essa lógica, que não está dada nem acabada.

Esse olhar social sobre a sujeitA mulher é trazido pela escritora norte-americana Colette Dowling, no que chamou de “Complexo de Cinderela”. Partindo da sua experiência pessoal após o fim do seu casamento, ela então questiona o mito da felicidade institucional que atinge grande parte das mulheres, padrão incutido de forma contínua, fantástica e falaciosamente na alma feminina desde tempos imemoriais, pela via tanto do mito quanto da tragédia (ARREGUY, 2017, p.27). Essa sutil construção pelas relações amorosas segue enfronhada na psique e na regulação dos corpos, principalmente, das mulheres.

73 A família ou aquilo que é próximo, aparentemente afetuoso, pode ser muito inquietante, como apontou Freud no seu ensaio de 1919, o qual faz um voo linguístico pelo significado da palavra em alemão Heimlich. Esse é um texto de pistas, em que Freud – o médico - se aproxima da literatura para buscar entender os estranhamentos, que passariam pelas esferas do consciente e do inconsciente. Esse jogo de palavras suscita uma ambiguidade do universo familiar, no sentido doméstico e de círculo próximo. Onde se supõe mais confortável, pode ser de onde parte a pressão para não decepcionar. Na família residem experiências como atração e repulsão. A mãe que deseja que a filha se diferencie do seu percurso de mulher, mas teme que não consiga e sofra. Na experiência singular de Miúcha parece ter existido um impulso movendo-a para afastar-se do familiar, rompendo a zona de conforto e se permitindo ser uma estranha aos olhos do mundo e até de si mesma.

Se as mulheres não estão na frente da cena, na mesma medida que eles, ou aparecem muitas vezes ao lado, é preciso abrir os arquivos familiares e secretos para encontrar as mulheres. Quebrar os silêncios dos arquivos, garimpar o doméstico, o privado, o que pode reavaliar a história dita universal. O chamado sufrágio “universal”, por exemplo, no qual inicialmente só os homens votavam, foi uma política concretizada pelo masculino configurada em discurso neutro. Na França as mulheres só votaram a partir de 1944, após cinquenta anos do sufrágio dos homens no país. No Brasil as eleições, nos moldes republicanos, começam em 1884, apenas com homens eleitores e autorizados a serem candidatos. O voto feminino no Brasil foi conquistado em 24 de fevereiro 1932. Mas, por conta da ditadura da Era Vargas, só foi exercido em 1945, portando 51 anos após os homens. Se os grandes Acontecimentos históricos foram reservados aos “grandes homens”, como poder chegar à presidência do país, trazer a mulher para o discurso passa pela diversificação de arquivos, incluindo cartas, diários e todo um acervo muitas vezes visto como secundário ou feminino. Mostrar o que se passou no século XX em termos da hierarquia de gênero, de certo modo, significa evidenciar o que permanece incrustado na produção da subjetividade feminina da alta contemporaneidade.

Na música, esse deslocamento se dá ao ocupar lugares estranhos ao feminino. Ao avançar da carreira, Miúcha usa a sua voz como destoante, contribuindo para uma polifonia na

74 arquitetura sonora da Bossa Nova. Em certos momentos, ela canta invertendo o artigo do sujeito para o feminino. Em outros, ocupa o espaço delimitado para a voz masculina que seria, em tese, para o tom grave. E isso não é algo desprezível, afinal, como Miúcha gostava de marcar: “ - A voz é uma impressão digital”.

Miúcha: Fazíamos mil vozes (sobre a parceria como intérprete com Tom Jobim, durante as gravações para o disco Miúcha & Tom Jobim, em 1977). ‘Samba de avião’ foi escrita no tom do Tom (Jobim), mas ele ia lá e rearranjava, aí gravei, a gente experimentava adoidado. Não tinha essa de voz de mulher e voz de homem. A gente adorava trocar o que seria o óbvio. Era um desafio, uma brincadeira... Às vezes a gente trocava para dar outra tessitura, sem essa de que voz fina é voz de mulher.

Além da voz de Miúcha experimentando frases no imperativo pelo feminino e tons no grave, os deslocamentos pela différance acontecem pela presença do seu corpo em espaços de criação, como o estúdio de gravação. Dessa forma, ela instaura uma linguagem diferenciada do feminino sujeito, deixando um rastro na Música Popular Brasileira e na Bossa Nova, entendida aqui este último como um subgênero musical. Ao que parece, a história da MPB seria outra história sem a presença de Miúcha e seu transitar entre eles.

Miúcha: Eu tava na minha, mas fazendo um monte de coisa. Fiz coral no disco de Chico (Saltimbancos). Uma turnê com a Rosinha de Valença. Foi quando apareceu o Aloysio de Oliveira querendo fazer um disco comigo. Aloysio era um grande produtor. Ele dizia que a função dele era ‘captar a faísca da criação’. Minha função inicial era pedir música para ter material novo.Foram chegando os amigos. Foi juntando as ideias e as pessoas e foi ficando um disco muito alegre. Quando o disco tava ficando pronto, liga o Chico (Buarque) pro estúdio, naquele tempo não tinha celular. A gente disse: vem aí. Ele apareceu e mostrou Maninha (música feita pelo irmão Chico Buarque para Miúcha) no violão. Depois o Tom saiu com A Luz dos olhos meus, uma valsinha com sabor francês, Vinícius (de Moraes) adorou a música. Tem o Caetano (Veloso), ali também, aquele disco tem pedaços de todo mundo.

Essa capacidade agregadora de Miúcha aparece em diferentes espaços dos bastidores da Bossa Nova. Nos seus depoimentos, ela traz a descrição de outro Acontecimento, desta vez, que influencia a carreira de João Gilberto. No ano de 1978, Miúcha está com 40 anos e é finalmente uma cantora com discos gravados, parceira de Tom Jobim uma autoridade da Bossa Nova, iniciando turnês de shows pelo mundo. Nesse momento, o Teatro Castro Alves – TCA, em Salvador, na Bahia, seria reaberto depois de um incêndio de grandes dimensões. João Gilberto 55 é, então, convidado para fazer o show de reinauguração. No dia do show, o ______

55 - Ensaio e show de João Gilberto no TCA em 1978. Disponível no site: https://www.youtube.com/watch?v=1u44ZF80ID4&fbclid=IwAR0bgx0rThH4MnchL9Qm3jfN9uRDP2RUJAIBfuZ pf2LDh18w8Wx03uviwrg&app=desktop . Acessado em 04 de agosto de 2019.

75 som não está como ele deseja e reclama ainda do violão. É Miúcha quem desenrola o ensaio e garante que o show aconteça.

O deslocamento pela différance seria o duplo movimento, os quais um não atua em oposição ao outro, mas pelas entranhas dessa relação, como entre o casamento e o palco, entre a separação e o juntos até que a morte os separe, assumido por ambos diante do padre. Miúcha age como sujeitA na cena, hora sob os holofotes, hora nos bastidores da Bossa Nova. O duplo deslocamento, o deslocamento pela différance, também se dá como mulher-errante e mãe-artista, agindo entre as fissuras do falogocentrismo, ao circular atuando por espaços comumente de invisibilidade para a mulher-mãe e mulher-latina. Ao se afirmar no mundo artístico, Miúcha ganha reconhecimento público e, desta forma, desafia o fatalismo da mulher mãe de ter o horizonte restrito a cuidar da família como função social.

Em 1993, Miúcha viveria uma situação parecida com o ex-marido. João Gilberto é chamado novamente para outra reinauguração do Teatro Castro Alves 56. Ele, então, coloca uma condição: só iria se Maria Amélia Buarque de Holanda, sua ex-sogra e mãe de Miúcha, fosse junto. O político Antônio Carlos Magalhães – ACM, líder do então Partido da Frente Liberal, atual Democratas (DEM), ligaria para Maria Amélia pedindo que intervenha para que João Gilberto aceite o convite. Maria Amélia, que esteve ao lado de Sergio Buarque de Holanda envolvida com a formação do Partido dos Trabalhadores, em 1980, acha aquela condição absurda, uma excentricidade do ex-genro. Com isso, Miúcha acaba indo à Bahia para acompanhá-lo e garantir que o show aconteça. A viagem para ela não era nenhum esforço, já que lá tinha grandes amizades e recordações. Minutos antes do show, João Gilberto ainda cogitava se faria ou não o show. Miúcha foi quem garantiu a apresentação, mais uma vez, convencendo-o de maneira firme para que se dirigisse ao palco. Durante o show ele ainda reclamou da qualidade técnica do som. Miúcha não foi chamada para cantar.

______56 - TCA sofreu um novo incêndio em 1989 de grandes proporções e precisou ser fechado. A partir de 1991, o teatro passa por uma ampla reforma, sendo reinaugurado mais uma vez em 22 de julho de 1993. Nesse show, o palco, esteve João Gilberto, Gal Costa e Maria Bethânia.

76 2.1 – O doméstico e a escola: ferramentas de controle?

A separação de Miúcha e João Gilberto nunca foi formal e no papel, portanto até o final da vida eles eram oficialmente casados. Miúcha se desloca sem romper, se diferenciando do normatizado para o feminino da sua época, se afastando do que fora formatado pela educação recebida. Porém, ela concilia com o “herói”. Miúcha teve uma única filha, Bebel Gilberto, que, por sua vez, é também cantora e não tem filhos. Nos dias de hoje, a mulher que opta por não ser mãe, diferente das suas mães, sofre uma menor, mais ainda presente, pressão social. Para refletir sobre os papéis da mãe e do pai nas famílias médias do século XX, recorro a Gayatri Spivak, que retrabalha o conceito de falogocentrismo em Derrida, expandindo para os estudos de família. Para a filósofa indiana, mesmo nas famílias convencionais formadas por mãe-pai-filhos, nesse lugar onde a mulher teria o título de rainha do lar, a mulher “reina por consentimento”. No livro Pode o subalterno falar? a autora, dedicada aos estudos dos subalternos, questiona: quem está autorizado a falar por si mesmo? É preciso medir os silêncios, sejam esses reconhecidos ou não (SPIVAK, 2014, p.81).

O pátrio-poder pode ser demonstrado através do direito civil do uso do sobrenome do marido, acrescentado ao da mulher após o casamento. Durante todo o século XX, essa regra foi obrigatória em diversos países. No Brasil, após o casamento na instância civil, o sobrenome do pai da noiva permanecia no nome da filha do qual era retirado o sobrenome da mãe, passando a ser identificada pelo sobrenome do marido ao lado do sobrenome do pai. Essa prática representava a origem de família paterna e era vista como símbolo de status dado pelo homem. Da mesma forma, o sobrenome do pai era passado adiante para a nova família do filho e seus herdeiros. Observo aqui a lógica da herança na relação pública versus privada. Sendo o pai o sujeito do território externo à casa, caberia a ele passar aos descendentes suas conquistas, seu prestígio e seus feitos considerados de maior valor pela sociedade falogocêntrica.

O Código Civil Brasileiro 57 mudou apenas em 2002, permitindo a escolha da mulher e

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57 - A legislação brasileira, até 1977, era unilateral: o Código Civil Brasileiro obrigava a mulher, ao casar, a acrescentar o sobrenome do marido ao seu nome.

77 incluindo a possibilidade do inverso, ou seja, que o marido acrescente a seu nome o sobrenome da mulher. Porém, a cultura do pátrio poder ainda persiste, e o padrão é acrescentar o sobrenome do marido ou apenas não alterar os nomes após o casamento. O desejo de representar essa descendência é semelhante ao desejo de fazer com que as palavras representem um sentido pleno, e é prerrogativa do falo declarar-se fonte de soberania (SPIVAK, 1997, p.44). Ainda navegando pelos mares da linguagem, nota-se na língua portuguesa o hábito frequente de designar a mulher como esposa de fulano.

No início dos anos 60, movimentos tradicionalistas no Brasil associam a palavra “família” à manutenção do status quo. A ação de Miúcha de se afastar da família, atua como um desvio do predestinado ao feminino no Brasil naquele momento, caracterizando-se como um deslocamento pela différance. No século XX, as dores subjetivas de muitos indivíduos mulheres logo transbordariam em lutas coletivas. As bandeiras do feminismo se ressignificam, atravessando o profissional e o público com o individual e o privado. Não bastava reivindicar os mesmos salários dos homens, era preciso falar de direito reprodutivo, divisão de tarefas domésticas, liberdade sexual. Ao longo das décadas de 60 e 70, as bandeiras do feminismo vão, então, se atualizando e rompendo as fronteiras entre os países, criando um sentimento de “mulheres do mundo todo, uni-vos” 58.

Porém, o século XX segue marcado como o século dos “grandes homens”. Sigmund Freud, Albert Einstein e Karl Marx formam a tríade do pensamento da virada do século XIX para o XX. Esses “grandes homens” não fizeram a ruptura do poder pelo masculino, edificada no pensamento dominante. Um passeio, mesmo que sem aprofundamento, por essas biografias é possível identificar essa conivência com as hierarquias de gênero. A história oficial irá reforçar a hierarquia entre os gêneros, em que é forjado um masculino público e um feminino materno. E, sem desconstruir essa lógica, acaba-se por naturalizar e reforçar uma sociedade de castas por gênero.

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58 – Para-citação da frase “Proletário de todo o mundo, uni-vos!”, no Manifesto Comunista, de Karl Marx, que inspirou a luta pela Internacional Comunista no início do século XX.

78 2.2 – Cartas de amor ou aulas para uma “boa-esposa”?

Vejamos, agora, em outro contexto privado, como se dava o ensino velado do feminino para a subalternidade. No final do século XIX, o então estudante de medicina Sigmund Freud 59 e a jovem Martha Bernays 60 trocaram cartas por quatro anos, longo período em que durou o noivado. Nessa troca é possível identificar a educação para que a noiva se tornasse uma futura boa esposa. Aqui destaco uma carta datada do segundo ano de noivado, de 06 de novembro de 1883, escrita pelo noivo:

Freud: É uma ideia pouco viável de mandar as mulheres igualmente como os homens na luta da existência. Devo pensar da minha menina delicada, querida, por exemplo, como concorrente? O encontro terminaria simplesmente (...) eu faria tudo para tirar ela da concorrência e para estar desimpedida e tranquila na atividade da minha casa. Possível que uma educação diferente fosse capaz de suprimir todas essas propriedades ternas, vulneráveis e tão vitoriosas, que elas conseguissem ganhar a vida da mesma forma como os homens. Igualmente possível, que não está justificado neste caso a lamentar o declínio do mais encantador que nos será oferecido pelo mundo, o nosso ideal da mulher. Acredito que todas as atividades reformatórias da legislação e educação correm o risco de fracassar, atendendo ao fato de que a natureza define [a mulher] através da beleza, charme e bondade para ser algo diferente, muito antes da idade em que um poderia alcançar uma posição em nossa sociedade. (grifos meus) 61.

Sobre essa carta, dias depois, Martha Bernays manifestaria sua opinião respondendo com certas doses de ironia:

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59 - Em 1960, o Ernst Freud editou e selecionou as cartas de Freud para Martha, dando origem à publicação Briefe 1873-1939, da coleção Connaissance de l’inconscient. Esta seria a fala mais íntima de Freud, até então. Na introdução, Ernst escreve sobre Freud: “dificilmente poderiam ser mais esclarecedoras em termos de sua autobiografia”. Martha já havia morrido há nove anos. A ausência das respostas de Martha nessa primeira publicação talvez sinalize que se acreditava não serem vistas como interessantes para o público leitor, ou apenas um intuito de preservar Martha da exposição pública. Após a morte de Freud, Martha desejou queimar as cartas, mas, como não as destruiu, não se sabe se haveria ou não mudado de ideia quanto à publicação. Durante muitos anos, não houve um consenso na família Freud sobre a divulgação dessas cartas. Apenas em 1981, um ano antes de morrer, Anna Freud assinou um contrato com a editora detentora dos direitos da obra de Freud, permitindo que as cartas dela viessem a público, mas com a condição de a publicação ser feita após a virada do século XX.

60 - O nome escolhido para título do livro é inspirado em uma frase escrita numa carta de Freud: Sei mein, wie ich mir’s denke. Die Braubriefe Em português o título seria: Seja minha como imagino. O trabalho de edição ficou a cargo da especialista em Freud, Ilse Grubrich-Simitis, com os pesquisadores Gerhard Fichtner e Albrecht Hirschmüller, e teve a edição da alemã S. Fischer Verlag. A publicação das cartas está prevista para cinco obras, divididas cronologicamente. O primeiro volume foi lançado em 2006, cobrindo o período de junho de 1882 a julho de 1883. O segundo volume foi lançado em 2011, e, por estarem estes disponíveis, esse texto concentra- se nos dois primeiros volumes. O terceiro volume acaba de ser lançado em alemão, mas esta pesquisa ainda não teve acesso. A divisão por volumes sugere que todas as cartas ainda serão publicadas na íntegra. Até 2018, nenhum dos três livros teve tradução para a língua portuguesa ou francesa.

61 – FREUD, Sigmund. Vol. 2, 2011, p. 424. Tradução feita por Yolanda Cvitak do alemão para o português para esta pesquisa.

79 Martha: Meu amado Sigi, o que diz sobre Mill e as suas opiniões sobre as mulheres, querido, devo realmente "subscrever o que disse o orador anterior", como sempre se diz no Parlamento. É encantadora sua idéia de pensar de mim como uma colega, porém, você não acha também que um número considerável das minhas colegas e irmãs seriam mais aptas para o exercício de uma outra profissão de grande seriedade, do que somente para donas de casa e mães? (grifos meus). 62

Esse exemplo é revelador de diferentes expectativas para o futuro entre o noivo e noiva. Quem era Martha para Freud? Ou, quem ele gostaria que ela se tornasse? Nas cartas, Freud demonstra idealizar a noiva, como quem quer moldá-la aos seus desejos e ambições. Ele preocupa-se com a formação dela para o casamento, colocando-se como um professor. Aparece comumente nas cartas avaliando com precisão as qualidades da futura esposa, mas, ainda assim, tentando aprimorá-la como se estivesse dando-lhe aulas de educação para o lar, através dos seus ensinamentos por escrito. A pergunta que fica é: o período do noivado havia se tornado uma aula de como se tornar uma “boa esposa” ou, especificamente, de como ser a esposa perfeita para os desejos dele? Nas palavras de Freud, escritas em 23 de outubro de 1883, ele diz:

Freud: Sei, afinal, como você é terna, como você irá transformar uma casa em um paraíso, como participará de meus interesses, como você será alegre e incansável. Deixarei que você governe a casa quanto quiser e você me recompensará com o seu terno amor e sobrepondo-se a todas aquelas fraquezas pelas quais as mulheres com tanta frequência são desprezadas. (...) e eu a iniciarei em coisas que não poderiam interessar uma moça enquanto ela não se familiarizasse com o seu futuro companheiro e a ocupação dele. (grifos meus). 63

Os Bernays tinham uma condição econômica e social mais elevada do que a família Freud, o que não evita a dedicação de Martha a Freud, notadamente em passagens sobre a admiração dela quanto aos avanços profissionais dele. O sucesso na carreira de Freud implicaria a estabilidade financeira necessária para o casamento com o homem que escolheu e do qual era a escolhida. Ela, então, se coloca à espera dele e de seus feitos. Na carta da véspera, datada de 22 de outubro de 1883, Martha havia demonstrado interesse pelo desempenho profissional de Freud, ela diz: “- É muito certo e muito amável da sua parte, que você comunica tudo o que você está vivenciando, tem todo valor e interesse para mim, a sua vida e o seu trabalho” (BERNAYS, 2011, p. 403).

______62 – BERNAYS, Martha, Sei mein, wie ich mir’s denke. Die Brautbriefe, Volume 2., Berlim, 2011, p. 430. Carta datada de 17/11/1883. Tradução de Yolanda Cvitak.

63 – FREUD, Sigmund, Correspondances (1873-1939), Paris: Editions Gallimard, 1866, p.92. Tradução livre desta pesquisa feita do francês para o português.

80 Na evolução das cartas e, com elas, das atividades profissionais de Freud em contraponto à espera de Martha, ele se apresenta como esse homem ascendente em meio a seus experimentos médicos. Os dois demonstram acreditar no sucesso dele como o bem comum do casal. Se, conforme ela descreve, aos seus olhos, Freud estava tendo uma vida muito atarefada e cheia de desafios, em contrapartida, ela era para ele o conforto e a segurança necessários às conquistas na carreira. Martha parece reivindicar algo mais para a sua vida:

Martha: Querido! Ou devo chamá-lo de tirano? Ao fazer isso, me guardo solenemente o direito de uma vez estar acovardada. Naturalmente, não deve imaginar que me transformei durante “os anos de espera” numa forma e espécie de chorona, oh, você homem pedante, como você pode aguçar qualquer estado de espírito e criar disso um desastre de vida. Não, não, ainda olho com olhos frescos para o mundo como sempre e me imagino o futuro em mil cores 64.

Ele, por sua vez, promete em troca do tempo exclusivo que reivindica dela para o casamento, que será fiel e comumente conclui as cartas chamando-a de “única”. Haveria algo de Freud a temer Martha? Representaria a mulher amada um perigo para o “pobre homem”, como se refere a ele próprio? Em um sonho descrito em uma das cartas do noivado, ele conta a lenda medieval da Melusina 65. Nela, o filho do rei de Bretas casa-se

Figura 14: Esta imagem exemplifica a mitologia retratando a mulher como um ser misterioso e sedutor, ao qual o pobre homem se arriscaria cair nas suas

armadilhas ao desejá-la. ______

64 - BERNAYS, Martha, Sei mein, wie ich mir’s denke. Die Brautbriefe, Volume 2., Berlim, 2011, p. 364. Carta datada de 06/11/1883. Tradução de Yolanda Cvitak, do alemão para o português para esta pesquisa. 65 - Imagem ilustrativa de Melusina, reproduzida a partir da obra do pintor alemão Hübner Julius. Melusina é uma fada metade mulher e metade serpente. Esse é um conto que remonta da Idade Média e que se tornou muito popular na Europa em diferentes versões. Pela imagem é possível fazer uma associação entre o feminino e pecado original, de acordo com o qual a mulher come a maça oferecida pela serpente. No caso da Melusina, a mulher simboliza no seu corpo o próprio pecado.

81 com uma fada prometendo jamais vê-la aos sábados. Depois de muitos anos de felicidade, ele quebra a promessa e descobre que sua mulher, na verdade, é metade humana, metade serpente, justamente do umbigo para baixo. A mulher então desaparece para nunca mais voltar.

Como se para se prevenir de surpresas após o casamento, Freud pede a Martha dedicação de todo amor dela para ele e a elogia, atribuindo as mudanças a sua influência. Na carta seguinte, de 24 de outubro de 1883 ele escreve: “-Todas as suas cartas em que você me dá uma resposta estão indicando. Eu seria feliz se pudesse supor que essa “nova” (Martha) não é a consequência de uma maturação espontânea, mas das minhas influências e solicitações” (FREUD, 2011, p. 372). As cartas demonstram um jovem Freud racional, descrevendo o noivado como uma etapa calculada que o levaria ao casamento estável. O objetivo do amor no tradicionalismo burguês era o casamento, que se completava com a chegada dos filhos. O casal Freud e Martha não fugia à regra. Assim, ela, a futura esposa, seria corresponsável pelo êxito público do marido. O seu papel seria garantir o equilíbrio doméstico, reservada a ela a honra de apoiá-lo com zelo.

Freud e Martha escreveram-se quase todos os dias enquanto estiveram noivos, chegando a escrever duas ou três vezes no mesmo dia. Assim, carta a carta, o desejo dele de moldá-la ao seu desejo vai sendo lapidado, como quando ele usa verbos como “habituar”, em alemão sich gewöhne an (FREUD, 2011, p.262), referindo-se ao futuro dela como casada e mãe. A construção do feminino em Martha, como uma companheira devotada a garantir um cotidiano familiar que servisse de esteio para a carreira de Freud, se assemelha a domme do poète 66. A expressão surge em francês cunhada por Hélène Cixous, nos seminários dados por ela na Universidade Paris VIII. A filósofa referia-se ao relacionamento do escritor James Joyce e sua companheira Nora Joyce, sendo a mulher aquela que cuidava para que o escritor pudesse criar sem ser perturbado pela vida doméstica. ______

66 - A expressão domme do poète é um jogo de palavras em francês entre a palavra dame e bonne. A palavra dame é o diminutivo de madame, que significa senhora e é comumente usada como sinônimo de esposa de alguém. A palavra bonne, vem de expressão bonne des enfants, usada para designar a função de babá, como no português é chamada geralmente a mulher que cuida de crianças como um trabalho remunerado. Portanto, unir mulher e babá cria uma expressão equivalente no português a “cuidadora de marido”.

82 O período da escrita das cartas de Sigmund Freud e Martha Bernays data com os primórdios da psicanálise, discurso que atravessa este estudo no diálogo com a sujeitA Miúcha por suas relações e seu universo circulante. Miúcha foi uma mulher analisada. Até o último ano da sua vida, em 2018, fazia sessões semanais de psicanálise. Como ela, as mulheres próximas ao seu ambiente social e íntimo também tiveram a psicanálise entranhada na sua construção discursiva. O século XX foi o século da psicanálise. Miúcha e tantas outras mulheres do século XX tiveram a sua subjetividade talhada pela psicanálise como elemento da construção como sujeitA. A psicanálise esteve ali, no cotidiano das famílias brasileiras, em especial daquelas de alto capital econômico e simbólico 67, compreendendo esse último como o capital cultural e intelectual, como é predominantemente o perfil dos sujeitos da Bossa Nova. O glossário da psicanálise pode ser localizado em diversos terrenos afins à música, como na poesia e na literatura. São termos como “inconsciente”, “recalque”, “libido”, “narcisismo”, “sublimação”, “ato falho”, apropriados e ressignificados em novos contextos.

2.3 – Rainha por consentimento

Observemos agora um casal fictício anterior aos noivos Martha Bernays e Sigmund Freud. Os personagens Émile e Sophie surgem na escrita de Jean-Jacques Rousseau com o propósito de servir como casal modelo. Eles seriam um espelho social para garantir o ideal da moral rousseauniana de sociedade. No livro Émile ou de l’éducation (1762), o filósofo do Iluminismo cria o personagem que dá nome à obra de cinco volumes e, até o último volume, Émile está sendo preparado de acordo com o bem e mal, justo e injusto, mentira e verdade, vício e virtude. Ao completar 25 anos, Émile precisa encontrar a mulher ideal para se tornar um cidadão-pleno. Entra em cena Sophie. A mulher é apresentada como a esposa que deve ______67 - "Capital simbólico" é um conceito criado por Pierre Bourdieu, que surge na obra Mediação Pascalina (1997), que marca grande parte da sua obra. Para o sociólogo francês, o poder simbólico designa certas diferenças de poder existentes na sociedade, com as quais algumas pessoas ou instituições podem persuadir os demais de suas ideias. Acumulado desde o nascimento, o capital simbólico atribui autoridade aos que o possuem. Nele, os sistemas simbólicos, como instrumentos de conhecimento e de comunicação, constituem um poder estruturante. O capital social, por exemplo, corresponde à rede de relações interpessoais que cada um constrói, ou seja, os contatos com outras pessoas. Já o capital cultural se acumula na forma de conhecimentos apreendidos, livros, diplomas, prestígio etc. O capital simbólico representa a união de ambos e através do qual o individuo é visto e avaliado pela sociedade.

83 fazer o homem feliz, de acordo com o espírito com que ela foi educada (ROUSSEAU, 2009, p.515). Essa obra tem especial importância para este estudo, pelo fato de Rousseau sintetizar no seu discurso a descrição das mulheres destinadas por ele à esfera do privado.

O casamento aparece como um código social restritivo para vida das mulheres em sociedade. A base social seria a família, sendo que a família também serviria ao homem, já que a formação da família contribuiria para ele cumprir a sua função social: se tornar um homem público respeitado. Chama atenção o ensinamento do autor destinado para a mulher ser uma boa amante. Entre eles, praticar o que chama de “coquetterie”, termo que deriva do francês “coquette”. Isso seria desenvolver a graciocidade e o mistério feminino. E segue dando aulas de feminilidade: “os homens não devem tudo saber” (Idem, pp. 620-621).

O livro funciona como um guia de como se tornar a mulher perfeita no doméstico, cabendo a ela a responsabilidade de complementar o homem, sendo esse visto como o objetivo final da existência feminina. A distinção de masculino versus feminino é bem marcada em Rousseau, mas chama especial atenção como o homem continua a ser senhor, fora e dentro da casa, afinal todos atendem a ele e, no doméstico, ele será o principal beneficiado. A família e a casa funcionariam como lugares com sua existência justificada no status moral agregado ao homem, por permitir a ele se tornar um respeitoso homem casado e pai, e, assim, socialmente confiável.

A partir desse contexto, pego emprestado de Jacque Lacan o conceito de Nome do Pai 68. O Pai representaria a Lei e estaria vinculado a ela, ao Estado e à autoridade.

O que dizer do Nome do Pai? É muito estranho que lá, o social tenha uma predominância entre nós, e que literalmente fez a teia de tantas existências. É que ele detém esse poder de nomear-para, a tal ponto que afinal de contas, restaura um pedido, uma ordem que é de ferro. (LACAN, 1974, p.181) (grifo do autor).

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68 – LACAN, Jacques. Le séminaire livre XXI – Les non dupes errent, Paris : Seuil, 1973-1974, p.180-181. O conceito lacaniano Nom-du Père (iniciais maiúsculas do original do autor) não se restringe à associação com a autoridade, porém esse recorte na abordagem dialoga com esse estudo. Por isso, optei por me restringir a este enfoque. No Seminário RSI - Real-Simbólico-Imaginário (1974-1975) o conceito aparece no plural Noms-du- Pères, para comunicar o primeiro nome do Pai que inicia uma série de nomeações.

84 As regras do espaço doméstico, muitas vezes aparentemente ditadas e controladas pela mãe, atenderiam aos interesses paternos, desse Pai homem a quem estaria destinado o espaço público. A mulher, rainha do lar, estaria autorizada a reinar por consentimento. É uma rainha autorizada pelos interesses masculinos. Entre os papéis marcados para homens e mulheres do século XX, estava o direito da mulher casada de comandar as regras da casa, desde que de acordo com as leis do masculino. Esse contrato velado servia de agradável utilidade para eles, que eram dispensados dos inesgotáveis compromissos com o lar onde ambos habitavam. Aqui observo, mais uma vez, o conceito lacaniano “Em Nome do Pai”. Uma hipotética inversão da expressão para Em Nome da Mãe funciona, nos moldes padrões da família heterossexual, ainda persiste como uma ilusão de autoridade para atender os interesses do masculino a ser superado.

Para Rousseau, a “educação feminina” está intricada ao papel social de esposa e de mãe, ambas tratadas como sinônimo de mulher. Os elogios, usando artifícios como “naturalmente virtuosa”, aparecem para aprisionar o feminino na divisão criada entre a casa e a rua. O sexual para a mulher estaria dentro da instituição casamento e, esse, por consequência, voltado para a reprodução. Essa descrição revela, ainda, a quem caberia a educação das crianças e para qual direção serviria. A mulher virtuosa, personificada em Sophie, seria aquela que transmite aos seus filhos os princípios de humanidade pelo masculino, permitindo torná-los aptos na vida adulta para exercer a cidadania pelo masculino.

Assim, a mulher serviria ao marido e, depois, para ensinar os filhos a perpetuarem a sociedade de castas segregada por essa lógica determinista do gênero. Estaria a mulher alimentando o ciclo de dominação masculina pela educação? Ao descrever a personagem Sophie, Rousseau parte para ensinar as mulheres a serem mães. Caberia, por exemplo, à mãe domar as fantasias das suas filhas (ROUSSEAU, 2009, p. 534), perpetuando o ciclo pela ação das mulheres. Estas, então, deveriam educar filhas e filhos de forma diferenciada, tendo mais rigor com as meninas. O treinamento para se tornar uma boa esposa inclui servir a todos, marido, filhos, o que a tornaria “bela de espírito” (ROUSSEAU, 2009, p. 592).

A boneca será um elemento que aproxima Rousseau do pensamento do século XX. Para o psicanalista Sigmund Freud, a boneca aparece como o representante fálico externo do corpo

85 da menina, através da qual ela realiza o desejo de possuir simbolicamente o falo, órgão que nunca terá. Para Rousseau, a ligação com a boneca é uma evidência do destino materno, afinal, seu gosto ainda não está formado, mas a inclinação já despontaria. São leituras que desconsideram a experiência da mimetização com a mãe no espaço doméstico: se a mãe (ou outra mulher, como a menina, uma avó, uma tia, uma babá) cuida dela, logo seu papel é cuidar da boneca para ser como a mãe. Rousseau associa ainda o enfeitar a boneca pela menina como o se enfeitar para o masculino, colocando a brincadeira como um ensaio do embelezamento, máscara que deveria acompanhar a mulher para agradar o homem. É possível identificar a associação da boneca e dessa ludicidade da menina, na domesticação pelo elogio com a palavra “boneca”. Em diferentes culturas, o termo “boneca” é usado para designar mulheres, como um cortejo, o que pode ser associado à infantilização do feminino adulto, como uma musa calada.

2.4. – Educação segregada por gênero

Na adolescência, Miúcha estudou no Colégio Sion, no Rio de Janeiro, e, em seguida, no Colégio Des Oiseaux, em São Paulo, duas instituições particulares católicas dirigidas por freiras de origem francesa. No Des Oiseaux, depois de aluna, chegou a dar aulas de artes, em um curso que unia música e artes plásticas, seus dois maiores interesses como artista. Nos dois colégios, ela manteve amizades por toda a vida, mas sem grandes afinidades nas escolhas. Ela se diferenciava das amigas do seu círculo estudantil, como suas colegas do ensino secundário, que, segundo conta, sonhavam casar e ter filhos, enquanto ela, relata, se via “sem amarras”, como cantora pelos palcos e rodas de música. Nas suas memórias, aparece desde muito jovem a ideia de que conciliar os dois mundos, arte e família, não seria algo usual, então a música apontava prevalecer como primeira opção.

A passagem pela fase escolar aparece como um ponto híbrido entre a casa e a rua, o familiar e o coletivo, que ressoa na narrativa da sujeitA e constitui marcadamente a sua experiência. O pai de Miúcha, Sergio Buarque de Holanda, também havia passado a fase da adolescência em um estabelecimento de ensino religioso, particular e segregado por gênero: o Colégio Dom Bosco, de São Paulo. Até o ano de 2018, o Colégio São Bento, do Rio de Janeiro,

86 continuava interditado para alunas do sexo feminino. Ao que parece, a instituição escola, um espaço estruturante que remete ao imaginário comum como uma ferramenta para oportunizar conhecimento, saberes e encontros, vem servindo historicamente para reiterar os papéis sociais divididos, estereotipados e hierarquizados por gênero.

Para o sociólogo francês Pierre Bourdieu a escola é um território de legitimação das distinções, reforçando as categorias de classe, gênero e raça. Para Bourdieu, que dedicou grande parte dos seus escritos a problematizar o sistema escolar francês, a escola reforçaria a manutenção de elites, em especial do homem branco, europeu e economicamente privilegiado. Em uma de suas últimas obras, A dominação masculina, Bourdieu descreve as características polares, através do que chamou “Esquema sinóptico das oposições”, um quadro visual, descritivo de como opera a distinção na sociedade. Nele, o feminino é caracterizado pelo selvagem, mágico, dominado. Em oposição ao masculino: dominador, oficial, público. Esse quadro serve de demonstração dessas características forjadas, que foram historicamente embutidas ao corpo, marcando desde tempos imemoriais a divisão social do trabalho e, por consequência, o conteúdo escolar para atender a esse mercado. Nessa obra, Bourdieu diz sobre a história das mulheres:

Tal história não pode se contentar com registrar, por exemplo, a exclusão das mulheres de tal ou qual profissão, de tal ou qual carreira, de tal ou qual disciplina; ela também tem que assinalar e levar em conta a reprodução e as hierarquias (profissionais, disciplinares etc.), bem como as predisposições hierárquicas que elas favorecem e levam as mulheres a contribuir para a sua própria exclusão dos lugares de que elas são sistematicamente excluídas (BOURDIEU, 2003, p.101).

Não bastaria, portanto, incluir as mulheres no mercado de trabalho, se a divisão valorativa do papel social se reproduziria do espaço privado da casa para o espaço público, como territórios de subalternização, ao estarem reservados para as mulheres trabalhos periféricos, de menor prestígio e menor remuneração. Uma emblemática imagem da mulher trabalhadora, da França do século XIX 69, revela o feminino profissional associado aos cuidados com as crianças e a casa, como a figura das professoras, costureiras, babás, em uma reprodução e extensão do doméstico para o feminino no espaço público. A mulher ______

69 – Gravura reproduzida do acervo da Biblioteca Nacional de Paris a partir do livro Femmes publique, de PERROT, Michelle, Paris: Textual, 1997, pp.108-109. A imagem ilustra mulheres do século XIX em profissões consideradas socialmente de menor prestígio ou tidas como subalternas.

87

Figura 16: Esta imagem do século 19, com mulheres no papel de cuidadoras,

interessa a este estudo para provocar uma reflexão: dois séculos depois com quem estão concentrados, na maioria dos casos, os cuidados com os bebês, as crianças, os

idosos?

artista não é sequer mencionada iconograficamente. A divisão hierárquica dos gêneros no profissional, no universo específico da música, implica dizer: mulheres no coro - homens no microfone principal, ou homens compositores - mulheres musas. Elas estiveram sempre ali, no universo simbólico e estético do movimento da Bossa Nova, mas qual era mesmo o seu lugar?

No filme Dilili a Paris 70, o autor e diretor Michel Ocelot introduz, com muita acidez o tema em uma animação para crianças. O filme é conduzido por uma garota em torno de dez anos ______70 – O filme venceu o César 2019 melhor longa-metragem de animação e no discurso de premiação, em 22/02/2019, o diretor Michel Ocelot começou assim: “Viva as mulheres, viva as garotas!” Teaser de Dilili à Paris disponível no site: https://www.youtube.com/watch?v=1NSMtkfw29k e entrevista com o criador Michel Ocelot disponível: https://www.arte.tv/fr/videos/074505-028-A/dilili-a-paris- rencontre-avec-michel-ocelot/. Acesso feito em 04 de agosto de 2019.

88 e, à primeira vista, poderia passar despercebido como mais um divertimento. Porém, envolto às belas fotos da Paris da Belle Époque, a obra traz um panorama do feminino e da educação no início do século XX, com uma rica pesquisa histórica notadamente sobre personagens reais de mulheres artistas e intelectuais. Na obra, uma fictícia organização criminosa de nome autoexplicativo “Mâles Maîtres” 71 sequestra meninas para impor uma educação “para garotas” nos esgotos de Paris. Entre os métodos ensinados, uma senhora obriga as meninas a viverem na posição de quatro patas, totalmente cobertas de preto, e, pasmem, servindo de banco para que os homens pudessem sentar ou apoiar suas mesas. Chama atenção especial o diálogo entre o chefe da organização criminosa e o motorista da cantora de ópera Emma Calvé, personagem real, que segundo o diretor do filme, a artista nunca ganhou a notoriedade digna do seu talento. Segue trecho do diálogo:

O GRANDE MESTRE – Em Paris, as leis naturais foram desrespeitadas por mulheres que tomaram o poder. Precisamos corrigir Paris antes que essa abominação seja espalhada pelo mundo.

LEBEUF – Os acessos das mulheres ainda são limitados... O GRANDE MESTRE - Não há limite, a universidade está aberta para garotas! E meu pobre amigo, é uma mulher que te comanda... LEBEUF – É... O GRANDE MESTRE - E as mulheres desenvolveram uma invenção diabólica, os salões. Elas convidam quem elas querem, encontram quem elas quiserem, saem com quem elas querem...

Nessa cena, a organização “Mâle-Maître” demonstra querer controlar os acessos à educação e à postura corporal das mulheres porque, segundo consideram, sob o comando deles, elas iriam seguir “a ordem natural das coisas”. O filme é recheado de metáforas sobre a objetificação da mulher no métier artístico e as restrições à educação como punição. No filme, entre as personagens reais, encontra-se a cientista polonesa Marie Curie (1867-1934), a primeira mulher a ser professora na Universidade da Sorbonne. É dela a seguinte fala, ______

71 - Em uma tradução original do francês, “Mâle-Maître” é uma expressão composta, unindo a palavra “Mestres” ou “Professores” “Machos”.

89 presente no roteiro: “-Eu vim a Paris para estudar, ter acessos à educação que o meu país se recusou a dar para as meninas, nós não devemos recuar!”. Depois de lançar o filme em 2018, o diretor Michel Ocelot produziu um material pedagógico estimulando o uso da obra como suporte audiovisual entre os estudantes e orientando os professores a atualizar o debate, porque, para o autor, o mundo entrou em uma era de retrocessos nas questões de gênero. Essa obra de ficção lança uma pergunta: Por que a conquista das mulheres de circular em espaços, sem estigmas e com a mesma liberdade, como em escolas, universidades, ruas, noites, palcos, causaria incômodo? Em outro diálogo do filme, as pistas para essa questão:

- LEBEUF: Por que cercear as garotas? - GRANDE MESTRE: Para salvar o mundo!

O mal-estar está lançado: salvar qual mundo e de quem? A resposta que fica no ar, pode ser ensaiada como salvar o mundo da desordem provocada pela introdução das mulheres com poder e autonomia em espaços onde elas foram historicamente invisibilizadas. As mulheres seriam um elemento estranho. Para evitar o caos, seria preciso educá-las para serem mulheres; no caso do filme, domesticá-las é a palavra mais precisa.

Como estava a educação para o feminino no Brasil do início do século XX? Voltemos à educação a que Miúcha foi submetida durante sua formação escolar. Sobre a educação religiosa no Brasil, vale historicizar os anos 30, a década do nascimento de Miúcha, quando a educação vai ao centro dos debates políticos. Essa é uma fase dos grandes fluxos de urbanização e industrialização do país, que gera a necessidade da formação de trabalhadores e trabalhadoras. Com a Europa diretamente envolvida na primeira e segunda guerra mundial, e assim sem fornecer os produtos como até então, o Brasil passaria de importador de produtos industrializados a uma produção própria. Esse momento é ainda incentivado pela política nacionalista do governo Getúlio Vargas. A necessidade de produção objetiva favorece a abertura do mercado de trabalho para as mulheres.

Era preciso formar essa mão de obra feminina. A escola, com isso, entra na pauta dos grandes debates políticos no Brasil. Se o capitalismo necessitava de mão de obra mista, não

90 faria mais sentido a escola ser segregada por gênero. Assim, as já existentes lutas feministas e dos setores progressistas dos profissionais da educação encontram um grande impulso em prol das suas reivindicações. O auge do clamor é a conquista do voto pelas mulheres e o direito à sua elegibilidade em 1934. Nesse cenário, na luta pela educação havia três principais bandeiras: a laicidade, a obrigatoriedade do Estado de assumir a função educadora e a coeducação (ROMANELLI, 1978, p. 143). Do outro lado da moeda, estava a Igreja Católica, principal defensora da manutenção da escola separada para meninos e meninas, e de onde parte a orientação das duas escolas de freiras onde Miúcha estudou.

Em abril de 1942, Miúcha então com cinco anos, é publicado o decreto-lei oficializando a separação por sexo dos colégios do ensino secundário, em uma clara concessão aos interesses da Igreja Católica. O decreto de autoria do ministro da Educação, Gustavo Capanema, no Governo de Getúlio Vargas, diz no seu Art. 25:

Serão observadas, no ensino secundário feminino, as seguintes prescrições especiais: É recomendável que a educação secundária das mulheres se faça em estabelecimentos de ensino de exclusiva frequência feminina. Nos estabelecimentos de ensino secundário, frequentados por homens e mulheres, será a educação destas ministrada em classes exclusivamente femininas. Este preceito só deixará de vigorar por motivo relevante, e dado especial autorização do Ministério de Educação. Incluir-se-á, na terceira e na quarta série do curso ginasial e em todas as séries dos cursos clássico e científico, a disciplina de economia doméstica. A orientação metodológica dos programas terá em mira a natureza da personalidade feminina e bem assim a missão da mulher dentro do lar. (Decreto- Lei n. 4.244/42, grifos meus).

Esse ato foi uma tentativa de atrair o apoio da Igreja Católica para que servisse de sustentação à tumultuada Era Vargas. Depois desse decreto, que representou um retrocesso nas questões de gênero e educação no Brasil, só a partir do fim do Estado Novo em 1950, a maioria dos colégios passaram a ser mistos, não por obrigatoriedade, mas por nova orientação específica do Ministério da Educação e Cultura - MEC. As omissões nas legislações anteriores ao decreto-lei de 1942, marco na oficialização da segregação escolar por sexo, se deram, em certa medida, pela presunção da neutralidade, como de termos como alunos, estudantes, adolescentes usados de forma universalizante no masculino. Nota- se, até então, a ausência de uma escrita clara na legislação, seja ela de proibição ou afirmação da coeducação, ficando refém de critérios vagos, flutuando conforme regiões do país, instituições e gestões.

91 De todas as correntes educacionais, a católica foi a que mais resistiu à coeducação. O Colégio Sion, onde Miúcha estudou, só em 1972 deixou de ser destinado exclusivamente às meninas. A expansão das escolas mistas, porém, começa ainda na primeira metade do século XX, provocando a inclusão feminina nas escolas tidas como de excelência, e com maiores investimentos públicos. Essa medida confluiu com a mudança de comportamentos dos setores médios brasileiros e a entrada das mulheres da classe-média no mercado de trabalho.

A entrada em massa das mulheres casadas - grande parte delas mães - no mercado de trabalho e a sensacional expansão da educação superior formaram o pano de fundo, pelo menos nos países ocidentais típicos, para o impressionante reflorescimento dos movimentos feministas a partir da década de 1960 (HOBSBAWN, 1994, pp.304-305).

Até então, as escolas mistas existiam, mas com menor prestígio do que as escolas propedêuticas, e eram voltadas fundamentalmente para as camadas populares. O Manifesto de 1932, que ficou conhecido como Manifesto dos Pioneiros 72, é um significativo exemplo da pressão sobre os órgãos públicos responsáveis pela educação no país. O documento foi assinado por personalidade de diversas correntes, entre liberais e socialistas, intelectuais e artistas, e figuras formadoras da opinião pública, como Anísio Teixeira e Cecília Meireles. O texto tinha clara inspiração no movimento da Escola Nova, linha de pensamento que defendia ideais da escola como uma micro sociedade, local de vivências além da aprendizagem produtivista e da fixação por resultados. Entre os principais discursos da Escola Nova e do Manifesto dos Pioneiros estava a coeducação para meninos e meninas.

Importante observar que certa elite cultural e intelectual, com acesso a viagens, livros e aos bancos das universidades, como é o caso da família Buarque de Holanda, seguiu fazendo a opção pelas escolas privadas divididas por sexo, em especial para as moças e com orientação religiosa. Miúcha, no entanto, apesar das amizades feitas nessa fase da vida e dos vínculos mantidos com as ex-colegas, desloca-se ao fazer escolhas destoantes, como trabalhar, conquistar autonomia financeira e morar em diversos países por iniciativa própria. Esse ______

72 - Manifesto dos Pioneiros consultado na integra no site do INEP – Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira, acesso na íntegra disponível no link : http://download.inep.gov.br/download/70Anos/Manifesto_dos_Pioneiros_Educacao_Nova.pdf . Acesso em 05 de agosto de 2019.

92 ambiente artístico, festivo tinha também uma atmosfera intelectual. A casa da família se transformava quando o pai, Sérgio Buarque de Holanda, se recolhia no escritório, por horas a fio, concentrado na escrita dos seus livros. Raízes do Brasil 73 é o único livro lançado antes do nascimento de Miúcha. Sergio Buarque de Holanda teve uma intensa produção literária, entre obras e coletâneas, lançou mais de quinze livros.

Em contrapartida, o apagamento da contribuição intelectual feminina, na relação de um casal do mesmo círculo profissional, pode ser observado com a matemática sérvia Mileva Maric 74. Sua história pode ser remontada a partir do casamento e da maternidade. Ela foi a primeira esposa de Albert Einstein, com quem o físico teve três filhos. Os dois cientistas se conheceram no início do século XX. Eram colegas numa instituição de nível superior, na qual Mileva era a única mulher na turma do curso de matemática. Ela esteve ao lado do então marido em todo o princípio da descoberta da lei da relatividade, tendo abandonado as pesquisas para cuidar da casa e dos filhos.

As cartas de Mileva Maric revelam imensa castração do desejo, que, concomitante ao reconhecimento internacional de Einstein, culminou com a separação do casal. Logo após a separação, Einstein se tornaria famoso mundialmente e faria um novo casamento, com uma esposa que passaria a cuidar da sua corte social. A história de Mileva Maric ajuda a entender o padrão de casal no qual o marido se destaca profissionalmente, e a mulher, muitas vezes do mesmo métier profissional, torna-se o seu esteio, marcando-se como um rastro, de autoria pouco ou nada reconhecida.

Miúcha, como Martha e Mileva, teve na sua relação amorosa durante o casamento, o seu papel cotidiano associado ao esteio ao parceiro. Esse lugar reservado ao feminino, ao longo ______

73 – A escolha desta pesquisa em trabalhar passagens do livro Raízes do Brasil se deu por dois motivos diferentes e complementares: o contexto familiar de Miúcha, pelo autor se tratar do seu pai, e pelo texto apontar questões de hierarquia entre os gêneros feminino e masculino como um hábito presente na família tradicional brasileira do século XIX. Não apresenta, no entanto, aproximação e referência teórica para esse estudo.

74 – Fonte principal desse estudo: Einstein, o gênio de mente brilhante, exibido no History Channel, disponível no site: https://www.youtube.com/watch?v=UnSA27a00To, acesso em 05 de agosto de 2019. Ver ainda: o filme Einstein’s wife e o biografia Einstein, sua vida, seu universo, escrita por Walter Isaacson.

93 do tempo recortado por esta pesquisa, demonstra algo ensinado, sutilmente enraizado e reproduzido pelas mulheres, e, em certos momentos, elas afirmando esse lugar de complemento como sendo um desejo próprio. Esse lugar social do estar ao lado pode soar horizontal, se pensarmos na oposição do estar por trás. Porém, sem que aja uma alternância de papéis no doméstico, com uma bifurcação entre os sujeitos do casal nos espaços público e privado, a equanimidade parece distante.

Na seara do comportamento, a minissaia se populariza. Em 1963, a artista francesa Niki de Saint-Phalle (1930-2002) expõe a escultura La Marieé 75. A obra traz uma noiva gigantesca em um vestido branco, coberta de bebês e brinquedos. Um trabalho revoltado contra os grilhões da sociedade que coloca mulheres algemadas ao papel de mães e casadas.

Figura 17: Esta escultura de uma noiva portando um vestido “vivo” o qual aparenta estar carcomendo a mulher, inspira este estudo a pensar sobre os abismos entre o sonho do casamento de Miúcha e a realidade do seu cotidiano da vida de esposa e mãe.

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75 – Foto ilustrativa da escultura La marieé, da artista Niki de Saint Phalle, exposta no Centre Georges Pompidou, em Paris e fotografada para essa pesquisa.

94 Na virada da primeira para a segunda metade do século XX, porém, a sexualidade e as questões do feminino passam a ocupar o centro dos debates. Miúcha atravessa os anos 60 fora do Brasil, mas existe uma atmosfera coletiva que ecoa para além das fronteiras dos países. O movimento hippie se espalha pelo mundo ocidental e artistas levantam bandeiras como "paz e amor" e "amor livre". Era o mesmo que dizer: você é dona do seu corpo, das suas escolhas, pode casar ou não, ter ou não filhos, ou quantos desejar. O amor desconstruído e inter-racial de John Lennon (1940-1980) e Yoko Ono é demonizado pelos fãs de The Beatles. A artista plástica passa a ser atacada como a bruxa responsável pelo fim do grupo. O casal constrói o seu próprio discurso sobre eles e se autofotografa em nu frontal em 1968.

O corpo passa a transitar como símbolo entre as esferas públicas e privadas.No Brasil dos anos 60, o comportamento feminino é marcado ainda pelo biquíni de duas peças. O biquíni se torna uma febre nas areias cariocas e tem a figura marcante da atriz Leila Diniz, fotografada na praia grávida com o barrigão de fora. Os rígidos papéis de gênero masculino versus femininos davam sinais de esgotamento. As questões da maternidade entram na pauta, e revigoram-se as lutas das mulheres do mundo Ocidental. Surge a pílula anticoncepcional, lançada em 1960 nos Estados Unidos, e a questão do aborto se torna presente.

Os anos 60 foram marcados ainda pelo golpe militar-empresarial brasileiro e com ele a instauração da ditadura, regime que durou 21 anos no Brasil. O movimento da Bossa Nova também sofreu, mesmo que indiretamente, represálias desse regime cerceador das liberdades e da forte perseguição a artistas. Vinícius de Moraes 76 foi exonerado do seu trabalho de mais de 20 anos prestados à diplomacia no Brasil e no exterior, em países como França e Itália. Observa-se, na mesma época, quando Miúcha sai do país, a eclosão de

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76 - A Comissão da Verdade, formada no Governo da presidenta Dilma Rousseff para buscar historicizar a Ditadura Militar-Empresarial Brasileira, do período de 1964-1985, revelou a exoneração de Vinícius de Moraes pelos militares. Até então, grande parte das perseguições aos artistas brasileiros era uma memória apagada, entre outros fatores, pelo trato da Anistia para Todos, a qual previu a não punição de torturadores e supostos terroristas. (Fonte: Relatório final da CNV – Comissão da Verdade, entregue a presidência em dezembro de 2014). Disponível no site: http://cnv.memoriasreveladas.gov.br/index.php/outros-destaques/574-conheca-e- acesseo-relatorio-final-da-cnv . Acesso em 05 de agosto de 2019.

95 movimentos tradicionalistas, que associavam a palavra família à manutenção do status quo. Esse foi o caso da organização Tradição Família e Propriedade - TFP, fundada em 1960, e da Marcha da Família com Deus pela Liberdade.

No Brasil, em 1960, a organização conservadora TFP foi responsável pela saída em massas às ruas contra as reformas de base e o governo progressista de João Goulart. Grupos sociais, incluindo a Igreja Católica, com apoio de significativa parte da classe-média brasileira, se organizaram em marchas, levando às ruas mais de um milhão de pessoas no dia 19 de março de 1964 – dia de São José, padroeiro das famílias. As marchas eram organizadas por grupos como Campanha da Mulher pela Democracia (CAMDE) e União Cívica Feminina (UCF), com o slogan "a defesa da democracia, da família e da moral cristã". Deslocar-se, portanto, do ser mulher no Brasil naquele momento histórico, representaria, em certa medida, uma maneira de contrapor o predestinado ao feminino.

Viriam os anos 70. Na primeira metade, Miúcha fica indo e voltando ao exterior e na segunda metade da década o trabalho será determinante para voltar a fixar residência no Brasil. No início da década de 80, com os movimentos de abertura política do país, as causas comportamentais e sexuais seguem ganhando destaque. Outras cantoras, a exemplo de Elis Regina 77, se posicionam em prol da legalização do aborto. O assunto ganharia espaço na televisão brasileira, apontando a hipocrisia e o controle externo sobre o corpo da mulher.

Porém, na redoma do espaço íntimo via-se a repetição da configuração familiar, com papéis fortemente marcados para a mulher-mãe-cuidadora, o homem-pai-público. No ambiente privado, as relações custam ainda hoje a se modificar, estando reservado à mulher o território da casa e tudo que isso implica, como a responsabilidade pelos cuidados dos filhos do casal. O normal construído e que tentaram convencer as mulheres a se encaixar, por vezes disfarçado em um suposto livre arbítrio, é o papel social de mães, tias, avós, reinando da porta de casa para dentro. Esse espaço íntimo é também o espaço do oculto, à medida que historicamente foi visto como de menor valorização e prestígio. Uma divisão do espaço por gênero, que favorece quem se beneficia de circular livremente pelos dois mundos. ______77 – Entrevista da cantora Elis Regina em 1981 disponível no site: https://www.youtube.com/watch?v=xfmxUpWiBRc . Acesso em 05 de agosto de 2019.

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Essas articulações, se não contemporâneas, mas nem por isso datadas, ajudam a observar o feminino como uma palavra em debate e em (com) bate. Dentro dessa palavra contém outros sentidos como mãe, materno, maternagem. Esses termos em disputa são atravessados pelo jogo de significados em territórios conflitantes, como a mídia, a publicidade e os movimentos feministas com seus inúmeros plurais. No modelo falogocêntrico de sociedade, se as responsabilidades sobre os filhos recaem sobre a mãe, como propôs Rousseau, o feminino materno pode evidentemente ocupar esse papel, e, portanto, a maternidade estaria afetada pela cultura e o discurso feito sobre ela, o que não a faz escravizante e sim escravizada.

2.5 – A invenção da hierarquia por gênero

É possível observar a cultura como capaz de interferir na biologia e na natureza, modificando padrões dados como inaugurais. Uma abordagem antropológica das diferenças sexuais também ajuda a desafiar hierarquias. É o que propõe a francesa Françoise Héritier, sucessora de Lévi-Strauss no Collège de France 78. Para ela, a ideia sobre a família na qual o autor se inscreve é regulada pelas divisões sociais impostas. Para Claude Levis-Strauss 79, a família seria uma constituição útil à sociedade. Como foram inscritos a distinção dos papéis sociais entre homens e mulheres, garantindo a divisão sexual do trabalho, é o que Héritier irá problematizar. Para demonstrar essa hierarquização, a antropóloga cria o conceito de valência diferencial dos sexos 80. Ela considera que as categorias de gênero e as representações da pessoa, do corpo e de suas partes, não são fenômenos inscritos em uma natureza biológica. Essas construções sociais teriam sido edificadas pelos aportes culturais. ______

78 – O Collège de France, a mais alta instituição do pensamento Francês, fundado em 1530 e em funcionamento até os dias atuais, teve ao longo dessa história 96% de homens e 4% de mulheres entre seus membros.

79 – Lévi-Strauss, C. Antropologie structurale, capítulo VIII, les organisation dualiste existent-elles ?, 1956.

80 – A palavra “valência” é pouco usual no português e pode dificultar o entendimento da autora. Como a obra não tem ainda tradução para o português, optei pela tradução livre mais literal a partir do original em francês “valence”. Outra tradução possível seria valia diferencial entre os sexos, já que o conceito busca dar conta de como a hierarquização valorativa das diferenças foi construída ao longo dos séculos.

97 A desigualdade não é um efeito da natureza; foi posto em prática pela simbolização dos primórdios da espécie humana a partir da observação e interpretação de processos biológicos notáveis; essa simbolização é a fundação da ordem social. (HÉRITIER, 2002, p.14).

A antropóloga sugere que a observação da diferença entre os sexos estaria no fundamento de todo pensamento, tradicional ou científico, constituindo uma espécie de “categoria temática arcaica” com a qual trabalharia o pensamento simbólico. Os sistemas binários, de dois a dois, seco X úmido, claro X escuro, inferior X superior seriam classificações simplórias para a complexidade de masculino e feminino, como propagandas construídas e reinteradas em um ad infinitum. Para a antropóloga, a diferença sexual, irredutível e incontornável, não seria um problema em si. Nem tampouco se trataria de refundar um tempo, ao qual não temos mais acesso diante de uma cultura que inventou novos contratos sociais. E sim, que os complementos, alternâncias e elementos de distinção podem servir para uma atuação de alteridade pela diferença. Isso implica desafiar toda a ideologia de privilégio naturalizado ou camuflado do masculino.

As questões reprodutivas, segundo Héritier, como o direito ao uso de contraceptivo, escolher com quem casar e se ou quando separar, são a primeira marcha, por ser o corpo o lugar onde a dominação masculina é produzida (HÉRITIER, 2002, p.26). Ela aponta que o falogocentrismo diz para a mulher que antes de ela ser mulher, ela é mãe, porque nasceria para reproduzir (Id., pp.132-133). Como a verbalização do discurso falogocêntrico, que reporto à frase do imperador francês Napoleão Bonaparte (1769-1821): “A mulher foi dada ao homem para que lhe dê filhos” (Idem, p. 133). Nessa perspectiva, a construção cultural se dá pela maternidade, e apenas revendo os papéis dos homens e mulheres nesse rito, é possível desconstruir a opressão entre os gêneros. Isso passa por reposicionar o lugar da paternidade como ativa e corresponsável. Se o espaço doméstico é resignificado, o espaço público se reconfigura.

Nota-se a história oficial contada com a mulher no papel de apêndice, seja pela ótica iluminista, seja pela teocêntrica. A mulher existiria como complemento, o que pode ser ilustrado nas disciplinas de comportamento distintas imposta conforme o gênero, o que se manifesta na regulação dos corpos. A historiadora Michelle Pierrot 81 apontou a violência ______81 – PERROT, Michelle. As mulheres e os silêncios da história. Paris, 1998, pp. 246-280.

98 simbólica contra as mulheres contida nos manuais de bons modos e na escola segregada por gênero. A escola e a família vêm funcionando como territórios da gestação de conselhos como “seja bela, fale pouco”: uma prática discursiva de desvalorização das falas das mulheres. Casar e viver para o marido e para os filhos, por exemplo, ilustram a construção e reiteração do desejo, a ponto de ser introjetado nas mulheres como o verdadeiro ideal de felicidade restritivo de possibilidade. Esses discursos seriam fundamentais para forjar uma “moça casadoira” e, caso contrário, seriam excluídas do que Luce Irigaray chamou de “economia sexual”. Isso explicaria por que a questão da equidade de gênero costuma soar tão desconstrutora ao equilíbrio social, econômico e político.

Evidentemente é possível afirmar que, desde os tempos mais remotos, os códigos estavam lá. Em um exemplo dessa construção, trazido pela autora, ela ilustra com exemplos de sociedades arcaicas nas quais os homens foram caçar e as mulheres cuidavam da cria, isso contribuiria para as estaturas corporais diferenciadas. Se o hábito da divisão no espaço da família é estruturado a ponto de ser a própria cultura, a prática se constrói como cultura, e essa, por sua vez, como biológica. A pergunta que fica é: caberia à alta contemporaneidade reproduzir arcaísmos culturais sob a justificativa de uma biologia forjada?

2.6 - Contrato social X contrato sexual

A educação passada através da escola, do doméstico, da mídia, ou da literatura, vem sendo um forte elemento na construção das diferenças sexuais forjadas. Vejamos, mais uma vez, o discurso de Jean-Jacques Rousseau, desta vez na sua obra clássica Du Contrat Social (1762), publicado apenas um mês antes do livro Émile et l’éducation. Aqui, interessa especialmente a análise da divisão sociossexual, nas entrelinhas desse pacto contratualista, descrita conforme os papéis do Estado, da educação e da família. A importância dessa obra é fundamentalmente a marcação discursiva das estratificações sociais, com a constituição da mulher moderna. Esse livro de nome simbólico passa a compor o imaginário com o poder de criar e reiterar o real.

99 No Iluminismo, os livros, as enciclopédias e a palavra do homem tinham status totalizante, como a ciência, sucedendo o lugar antes ocupado por Deus. Isso fez com que as escrituras fossem vistas, muitas vezes, como o sinônimo da verdade. Rousseau é um dos principais pensadores do Iluminismo, a transitar pela filosofia, o direito, a música e a literatura, tendo- se tornando precursor do gênero do romantismo, no qual as mulheres viriam a ser as musas libidinosas e perversas pelas quais o pobre homem sofreria. Para Rousseau, impõe-se primeiro observar as diferenças entre masculino e feminino, que segundo ele, binariamente se inscrevia:

Na união dos sexos, cada um também contribui para o objeto comum, mas não da mesma maneira. Desta diversidade nasce a primeira diferença atribuível entre as relações morais de um e de outro (homem e mulher). Um é preciso estar ativo e forte, o outro, passivo e fraco; é necessário que alguém queira e possa; é suficiente para o outro resistir um pouco. Este princípio estabelecido segue-se que a mulher é feita especialmente para agradar ao homem; se o homem deve pleitear, por sua vez, é de uma necessidade menos direta, seu mérito está em seu poder, ele só agrada porque ele é forte. (ROUSSEAU, 1964, p.683).

As palavras diversidades e diferença em Rousseau aparecem na perspectiva oposta às diferenças trazidas por Derrida, Héritier e Irigaray. Rousseau irá usar as diferenças sexuais como fundadoras e legitimadoras das hierarquias da sociedade. É nesse sentido que insere o que chama de “natural materno”, no qual o corpo da mulher serviria ao homem e à sociedade, sendo uma vocação desde o nascimento (Idem, p.703). Um estranhamento ao seu discurso surge logo, quando se refere à contradição entre o Contrato Social e Émilie et l’éducation, obras escritas como já foi dito no mesmo ano: se essas diferenças seriam o natural, por que então a preocupação insistente em ensinar e forjar um contrato para a formalização desses papéis?

Derrida identifica Rousseau como um pensador de fundamental presença na distinção social entre o gênero masculino e o feminino: “A imagem natural da mulher tal qual reconstituiu Rousseau, desenha-se pouco a pouco: exaltada pelos homens, mas a ele submissa, ela deve governar sem ser senhora” (DERRIDA, 1976, p.216). Estaria aí o forjamento dos discursos como rainha do lar, do reinado por consentimento, do elogio que tece a máscara do feminino terno para servir ao masculino? Mesmo após tantos anos da sua publicação, a importância do Contrato Social se mantém - ecoando sobre a mulher da alta- contemporaneidade, em discursos dados como verdade, como a suposta vocação feminina

100 para os cuidados com a família. A família seria, segundo Rousseau, o primeiro núcleo social, no qual o pai é o chefe, a mãe inviabilizada, e os filhos representariam o povo.

Em uma leitura binária rousseauniana, a rua, a guerra, o governo, o palco, estariam reservados ao homem. Esses códigos não foram institucionalizados sem resistências femininas, o que fez Rousseau escrever com indignação e propor a demarcação dos territórios, reforçando os espaços públicos e de poder, como naturalmente pertencente aos homens. Ele descreve: “Sob o risco de, ao não poder se tornar homens, as mulheres os tornariam mulheres”. Esse inconveniente, que degradaria ao homem, é muito grande em toda parte, mas, sobretudo, nos Estados (ROUSSEAU apud DERRIDA, 1967, p.204). A frase revela o olhar de Rousseau para o feminino, como quem observa um fantasma, no qual o poder nas mãos delas seria desestabilizador.

Curioso notar que Rousseau não foi criado pela mãe, que morreu logo após o parto e em consequência desse nascimento. Também, ele não criou nenhum de seus cinco filhos, colocando-os desde pequenos em um orfanato, com a justificativa de que seriam mais bem- educados. A sua autobiografia Confissões, só publicada após sua morte, Jean-Jacques Rousseau deixa explícito o ambiente onde cresceu: com ausência da mãe e pai violento. “-Jamais ele (o pai) me abraçava” (ROUSSEAU, 1782, p.7), uma das primeiras suas confissões. Para decifrar e ajudar a desdobrar o Contrato Social entre o feminino e o masculino nas relações heterossexuais, recorro a Carole Pateman. A autora norte-americana aponta como sendo necessário investigar simultaneamente três expressões do contrato: o social, o de trabalho e o contrato de casamento (grifo meu). Ela dirá que o contrato original é um pacto social e sexual indissociável, mas a história do contrato sexual foi suprimida (PATEMAN, 1988, p.21). Segundo a autora, esta forma se daria pelo casamento, com a substituição de um regime de posse da mulher por um único homem.

Assim, os homens assegurariam coletivamente, como lógica social, a posse de todas as mulheres, mantendo o ciclo. Sobre esse mercado, que inclui o consentimento pela alienação, Pateman usa a expressão “o indivíduo-proprietário” (PATEMAN apud BERGER, 1994, p.219). No livro Le grand théatre du genre, a autora francesa Anne E. Berger irá reforçar a leitura de Pateman desse “contrato marchand” (Idem, p.295), colocando em

101 questão a relação entre soberania e “individuo proprietário”, ao chamar a atenção sea liberdade vem a ser performativa (Id. p.225). Assim, prefere a expressão “atos de liberdade”.

Carole Pateman trabalha com o que chama de “subordinação consentida” das mulheres. Para ela, o pensamento liberal propaga a possibilidade de cooperação sem coerção, na medida em que se baseia em consentimentos voluntários e acordos mútuos, mas que estes seriam produtores de padrões de submissão, com instituições como os casamentos nos moldes padrão. Colocando esse pensamento em diálogo com a escrita derridiana, na sociedade falogocêntrica, da fala, do enunciado e da comunicação, marcados pelo masculino, haveria uma reprodução construída e consentida do discurso masculino através do feminino. O desejo de certas mulheres seria alimentado e reforçado pelo que os homens desejam que elas desejem. A partir desse argumento, caberia perguntar: seria o papel de musa ou acompanhantes no ambiente da música uma extensão dos papéis sociais exercidos pelos gêneros na família? O espaço público reproduz os estereótipos do espaço doméstico? Como sair desse labirinto?

2.7 – A musa e a mascarada: arma ou armadilha?

O debate sobre a mascarada no comportamento feminino e a sua autorrepresentação é um terreno constantemente conflituoso nos estudos de gênero. A máscara seria uma forma de a mulher teatralizar a si mesma, como parte do jogo amoroso e social. A palavra máscara aparece nos estudos sobre a sexualidade feminina em 1929, no texto Womanliness as a masquerade, de Joan Rivière 82. A psicanalista britânica aponta que a mulher atuaria de forma multifacetada, em diversas esferas, recorrendo as suas máscaras. A autora se concentra em analisar uma mulher que trabalha, e essa teria uma rotina de “quebra-cabeça” para dar conta do doméstico e do profissional. O texto traz um estudo de caso dessa mulher intelectual, que escreve e fala em público.

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82 – Esta pesquisa trabalhou com a versão do texto Wolanliness as masquerade em inglês, com tradução própria. A autora, a psicanalista Joan Rivière, foi analisada por Sigmund Freud e Ernest Jones. Ela também foi uma das primeiras tradutoras das obras de Freud do alemão para o inglês.

102 Em um exemplo de mascarada da vida cotidiana, Rivière conta da ida de um homem a casa dessa mulher para consertar algo, e ela, apesar de entender daquela questão técnica, finge que suas opiniões são apenas palpites ou chutes (RIVIERE, 1929, p.307). Essa mesma mulher relatada no texto, teve um sonho no qual ela matava a família e em seguida aparece lavando a roupa graciosamente (Idem, p.306). Observado esse relato, a mascarada feminina parece surgir como estratégia de sobrevivência, tanto no espaço público como na economia sexual e dos afetos. Afinal, de modo contrário, essa mulher poderia ser vista como masculinizada, afastando o desejo dos homens e, mais, a sua existência como mulher normal.

A importância desse texto ontológico é que ao trazer a mascarada como performance, é colocar em questão um possível essencialismo do feminino, se haveria uma feminilidade genuína, ou se esta seria uma necessidade imposta às mulheres. Uma das máscaras seria para não ameaçar a seara do masculino e, com isso, evitar de ser excluída do jogo social e sexual. O texto suscita a ideia de contrarreação: as mulheres se mascarariam como resistência. A filósofa e psicanalista Luce Irigaray ensaia responder uma questão descritiva: como funcionam as mascaradas?

Na mascarada, elas (as mulheres) se submeteriam à economia dominante do desejo, para tentar permanecer no “mercado”, “mas do lado de quem se goza, não do lado de quem goza” (IRIGARAY, 2017, p.153). (grifo meu).

Assim, o papel da ‘feminilidade’ é descrito por Irigaray como espetacula(riza)ção forjada para e pelo masculino (IRIGARAY, 2017, p.153). Entre as variadas mascaradas de feminilidade, ela destaca a disputa em torno do masculino: “A relação entre mulheres é orquestrada como rivalidade pela posse do sexo masculino” (Idem, p.83). Irigaray coloca, ainda, que a mascarada corresponde muito pouco ao desejo da mulher (Id., p.40). Para ela, a mascarada funcionaria próxima à armadilha, sendo a mulher conduzida para encenar conforme as regras do falogocentrismo, uma espécie de aceite por resiliência.

A pergunta inicial suscita diferentes respostas e novas perguntas. Ao se mascarar, a mulher atenderia apenas a um desejo externo? Elas seriam sempre reféns das suas máscaras, ou a máscara pode ser vista como uma artimanha para se manter jogando? De que maneira a mulher pode não ser (a)sujeitada pelo desejo e expectativa do masculino e tornar-se sujeitA

103 da autoria de si? Outras perspectivas sobre a mascarada me parecem importantes de serem trazidas para este estudo. O primeiro é de que para o homem a mascarada costuma ser social e, para a mulher, sexual.

O homem atende a outros códigos de representação, que o tornaria mais ou menos desejável na economia sexual, como por exemplo, a demonstração de poder e autoridade. Para a mulher, passa fundamentalmente pelo aspecto físico ou o comportamento associado à chamada feminilidade, como o gestual do corpo, sua vestimenta, seu rebolar, sua entonação de voz. E diria ainda, o seu prazer, ou a representação desse para se passar a sensação ao masculino de ele como viril. Nesse imaginário sexual, a mulher não é senão o suporte, mais ou menos complacente, da atuação das fantasias do homem. É possível, e até certo, que ela encontre nisso, por procuração, um gozo (IRIGARAY, 2017, p.35). Como se, nesse jogo de sedução para agradar e ser a escolhida, ela se perdesse do seu desejo. (Idem, p.35).

Para Laura Mulvey, que se dedicou a investigar as mascaradas no cinema, a partir da representação do feminino nos filmes, a sociedade produz as máscaras do feminino (MULVEY, 1989, p.61), como uma ação coletiva e coercitiva sobre elas. Isso se daria pelos fantasmas do feminino, que são retratados, por exemplo: nas personagens marcadas pela beleza física, comumente associada à traição e perigo (Idem, p.10). Isso se daria pelo fato de o masculino temer as diversas e diferentes possibilidades contidas em uma única mulher. Seria menos arriscado, então, objetificá-las em um formato da mulher desejável.

Mas teria a mulher alguma autonomia sobre a sua autorrepresentação? Parece-me que existem nuances contidas nas mascaradas e seus plurais, podendo também agir como um drible ou uma espécie de contra jogo. Ensaio, aqui, interpretar a mascarada como um jogo de representações semiconsentidas, que pode contribuir para embaralhar as relações de poder. Analisemos o caso clássico do épico grego da Odisseia (Séc. IX a. C.), de Homero, a história de amor de Ulysses e Penélope. Penélope foi lida e recontada como aquela que espera por dez anos o amado voltar das fantásticas aventuras. Será que Penélope é fundamentalmente aquela que espera, ou essa passividade é outra construção discursiva das leituras posteriores?

104 O pai de Penélope, o rei de Tebas, após a ida de Ulisses para a Guerra de Tróia imaginava que o guerreiro morreria e indica a filha para um novo casamento. Diante da insistência e para não desagradar o pai, Penélope resolve aceitar a corte dos pretendentes estabelecendo uma condição: só se casaria novamente depois que terminasse de tecer um sudário para o pai de Ulisses. A partir daí, durante o dia, aos olhos de todos, Penélope tecia, e à noite, secretamente, ela desmanchava todo o trabalho. A mascarada se constitui ao nunca parar de (re)tecer, ganhando tempo para não se casar novamente, pois assim não desejava.

Essa desconstrução da “Penélope que espera” é apontada pela filósofa e historiadora da Grécia Antiga, Giulia Sissu 83, que identificou as artimanhas da personagem para fazer prevalecer suas escolhas. Aqui aponto que esse exemplo, do tecer e desfazer a tecelagem, aproxima a mascarada de um processo de deslocamento. Penélope se comportava, durante o dia, como a boa filha que aceita e, à noite, driblava a ordem, a lei, o pai, o Estado, ganhando tempo para que seu amado retornasse da guerra.

E foi assim até que uma de suas servas descobrisse e contasse ao rei. Penélope, então, propôs outra condição a seu pai. Conhecendo a dureza do arco de Ulisses, ela afirmou que se casaria com o homem que o conseguisse encordoar. Dentre todos os pretendentes, apenas um camponês humilde conseguiu realizar a proeza. Imediatamente este camponês revelou ser Ulisses, disfarçado após o seu retorno. A mascarada inventada pela heroína da Odisseia contribui aqui para tornar possível o seu deslocamento de escolher o sujeito do seu desejo. Assim, ela consegue fundamentar e garantir a sua escolha por Ulisses, consagrando a sua autonomia para amar quem desejasse. A heroína desloca-se do papel socialmente constituído e naturalizado para mulher, daquela que é escolhida para aquela que escolhe.

______83 – A interpretação citada para a Penélope e suas artimanhas para driblar o pátrio-poder é trazida por esse estudo a partir do Seminário: L’Invention du genre ou les fins des ciencies humaines, conduzido por Anne E. Berger. O seminário aconteceu no Collège Internationale de Phillosophie e foi acompanhado para fins desta pesquisa de outubro de 2018 a fevereiro de 2019. Na intervenção de Giulia Sissu, intitulada L’expérience du genre: sexualité, sensualité, incarnation, sobre a obra Odisseia, a estudiosa problematiza que os papéis do sujeito ou seu assujeitamento, não corresponder a papéis fixos. Sissu propõe rever a interpretação comumente da Penélope, apontando uma ambivalência na personagem que traria elementos de mascarada para atingir os seus objetivos.

105 O casamento arranjado decidido pelo pátrio-poder atravessou séculos adoecendo as mulheres, só tendo a sua norma padrão desafiada no mundo ocidental a partir do século XX. No caso de Miúcha, coloco aqui um exemplo sobre o cotidiano do casamento e os seus diferentes relatos. Ela narra que floreava as cartas para a mãe, se mostrando como uma boa dona de casa: “-Escrevia falando sobre como tinha ficado o bolo”. No mesmo dia, Miúcha escrevia outra carta para uma amiga contando sobre como se sentia solitária pelos afazeres domésticos recaírem sobre ela. Para se pensar desvios como esses, que podemos entender como mascaradas, recorro às palavras da psicanalista Maria Rita Kehl, quando essa ensaia uma definição: “- A feminilidade é um conjunto de representações que tentam produzir uma identidade entre todas as mulheres; mais que, por isso mesmo, não pode dar conta das questões de cada sujeito” (KEHL, 2016, p. 96) (grifo da autora).

A máscara pode servir ainda como uma forma de quebrar o silêncio da “musa calada”, a qual a mãe de Miúcha tanto temia que a sua filha se tornasse ao se “exibir” no palco como intérprete. A imagem do silêncio pode ser associada à escultura da La muse endormie 84 (1910).

Figura 18: Esta imagem da obra “A musa adormecida” simboliza no título e pela sua figura o que este estudo trata como a musa calada, na estátua com olhos fechados,

ouvidos (ausentes) e boca travada.

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84 – Imagem ilustrativa da escultura La muse endormie (1910) de Constatin Brancusi.

106 Nela, o artista Constantin Brancusi (1876-1957) inova ao substituir o busto tradicional pela cabeça cortada. Uma interpretação possível, suscitada ao observar a cabeça de uma mulher em modo apagado, portanto mudo ao dormir, é ver o pensamento e a fala da musa calada. Sobre a figura da musa, uma passagem da Bossa Nova revela um desconforto possível desse lugar. Nara Leão (1942-1989) foi chamada insistentemente de “musa da Bossa Nova” 86, até o dia da sua morte associavam o seu nome ao substantivo “musa”.

Figura 19: Nara Leão e o substantivo musa são quase sinônimos para a imprensa da época no auge da Bossa-Nova, o que pode ser exemplificado no destaque da capa da Revista Fatos e Fotos que a chama de “Musa da Bossa-Nova”.

Estaria a musa confortável nesse topo do pódio? Em certo momento, a cantora Nara Leão rompeu com a Bossa Nova, que, segundo ela, estava se revelando uma nova tradição musical e reivindica uma maior abertura às temáticas sociais (VILAS, 2005, p.67). Nara Leão escreveu na revista Fatos e Fotos, texto reproduzido na sua biografia 86, que não queria mais ______85 - Foto da capa da revista Fatos e Fotos, com a cantora Nara Leão em destaque, anunciada com a manchete: “Nara musa da Bossa Nova”, datada de 27 de abril de 1963.

86 – CABRAL, Sergio. Nara Leão, uma biografia, Ed. Lumiar, Rio de Janeiro, 2001.

107 saber “nem de bossa nova, nem de velha bossa”. Estaria ela desconfortável com esse lugar da musa? Esse estranhamento com o rótulo contribuiu para que tentasse se reinventar, buscando uma “música de raiz”, sem tantos adjetivos, como chamou o samba do morro que se colocava interessada em investigar? Nara Leão nunca manifestou diretamente não gostar do lugar de musa; supõe-se que pode ser difícil de refutar algo que soa como um prêmio.

Mas a sua filha Isabel Diegues, responsável pelo site que reúne documentos da cantora, na ocasião da passagem dos 70 anos do seu nascimento disse: “-Ela é muito mais do que a musa da Bossa Nova” 87.

É fato que cantoras como Miúcha e Nara Leão fazem parte de uma geração de artistas mulheres que começou a se arriscar a emitir opinião pública. O que desloca da construção e do papel destinado à musa, como alertou para uma armadilha Simone de Beauvoir: “As musas são mulheres, só que a musa não é criada por ela mesma” (1949, p.228). No início do século XX, são poucas as referências de musas falantes na música brasileira. Uma exceção foi Chiquinha Gonzaga (1847-1935). Essa para se dedicar à música, precisou romper com o casamento, foi proibida de criar dois de seus três filhos, sendo tratada como uma escandalosa pela sociedade da época.

Arma ou armadilha? Talvez a mascarada traga em si as duas manifestações: de uma ação do falogocentrismo sobre a mulher e de um ensaio de autonomia feminina. A esse jogo de forças estão susceptíveis diferentes mulheres, e cada uma irá lidar com os elementos de consubstancialidade que agem sobre elas. Com isso, podemos pensar em mascaradas com plurais, entre apropriações, inclusive mercadológica, e tentativas de poder e autonomia do feminino. A mascarada como flutuante, podendo ser arma e armadilha, submersa em diferenças culturais, temporais e subjetivas das experiências de cada indivíduo. Parece-me que, a depender da situação, a mulher pode recorrer a diferentes máscaras, inclusive procurar se masculinizar (BEAUVOIR, 1949, p.70) em territórios de poder onde é comumente vista como invasora.

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87 – Entrevista concedida por Isabel Diegues ao Jornal Folha de São Paulo publicada em 10/01/2012.

108 A questão da musa segue entranhada nas mascaradas de feminilidade. Poder-se-ia afirmar tratar-se de um jogo a ser jogado enquanto se busca questionar as regras sociais e amorosas e, para quem sabe, se criarem novas regras. Para tentar apontar uma luz nessa dúvida, sobre arma ou armadilha, recorro à perspectiva antropológica da psicanálise, trazida no texto A mulher, o poder e o falo. Nele, a autora Elisa dos Mares Guia-Menezes problematiza: “Pode a mulher ocupar um lugar de poder, sabendo como usar a mascarada de feminilidade?”. Para em seguida, lançar um desafio, com grifo da autora: Se há um poder das mulheres, mas não para as mulheres, o caminho é se inventar sem modelos. E conclui: a mulher tem que ser a tecelã de seu próprio vestido (GUIA-MENEDEZ, 2018, p.7).

109 Capítulo 3 – A desconstrução pelo feminino na música

No início era o verbo, mas o verbo era Deus e o Homem 88 Michelle Perrot

A Bossa Nova tem uma pré-história feminina. Sua batida nasce em disco de uma mulher originária da célula musical do samba: Elizeth Cardoso. Miúcha lembra passagens da gravação do disco de Elizeth, contada a ela por João Gilberto. Miúcha narra:

Miúcha: João estava acompanhando Elizeth (Cardoso) no violão. Ele inovou ao pedir dois microfones para gravar: um para a voz e outro para o violão. Desse modo, a harmonia passou a ser mais claramente ouvida.

O disco de Elizeth Cardoso se chamou Canção de amor demais. Nele, além do acompanhamento de João Gilberto no violão, o álbum teve um repertório composto basicamente de músicas de Tom Jobim e Vinícius de Moraes. Elizeth Cardoso nasceu no Morro da Mangueira, negra, aos 10 anos já trabalhava como balconista. Portanto, além de 17 anos mais velha que Miúcha, a origem social separa essas duas mulheres. Em comum, as duas não se mantiveram casadas por muito tempo e tiveram um maior impulso na carreira após a separação. Entre as canções famosas na voz de Elizeth Cardoso merece destaque: Eu bebo sim. Nessa canção, temas como boemia e mulher aparecem juntos. Chama ainda atenção a versão de Elizeth Cardoso para Chega de Saudade, primeira gravação dessa música. Na versão interpretada por ela, o masculino foi modificado para o feminino, representando uma mulher saudosa e declamadora pública do seu amor.

Vai minha tristeza E diz a ele que sem ele não pode ser Diz-lhe numa prece Que ele regresse Porque eu não posso mais sofrer

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88 – Citação do livro Les femmes ou les silences d’histoire, Paris: Flammarion, 1998. A frase é uma paródia do Velho Testamento. A autora faz uma intertextualidade com a notória abertura presente no primeiro capítulo do Evangelho do apóstolo João, no Antigo testamento. Ele inicia seu relato sobre a vida de Jesus Cristo com esta declaração: “No princípio era o verbo, e o verbo estava com Deus, e o verbo era Deus”.

110 Chega de saudade A realidade é que sem ele não há paz Não há beleza É só tristeza e a melancolia Que não sai de mim, não sai de mim, não sai

Mas se ele voltar Que coisa linda, que coisa louca Pois há menos peixinhos a nadar no mar Do que os beijinhos que eu darei Na sua boca

Dentro dos meus braços Os abraços hão de ser milhões de abraços Apertado assim, colado assim, calado assim Abraços e beijinhos, e carinhos sem ter fim Que é pra acabar com esse negócio de você viver sem mim Não há paz Não há beleza É só tristeza e a melancolia Que não sai de mim, não sai de mim, não sai

Dentro dos meus braços Os abraços hão de ser milhões de abraços Apertado assim, colado assim, calado assim Abraços e beijinhos, e carinhos sem ter fim Que é pra acabar com esse negócio de você viver sem mim Não quero mais esse negócio de você longe de mim Vamos deixar desse negócio de você viver sem mim (grifos meus)

A canção é um ícone do gênero da Bossa Nova, com letra de Vinícius de Moraes e música de Tom Jobim. Chega de Saudade deu título ao primeiro disco de João Gilberto, considerado como inaugural do movimento, em 1958. Miúcha rememora as impressões de Vinícius de Moraes sobre Chega de Saudade.

Miúcha: Quando Tom Jobim mostrou, Vinícius (de Moraes) ficou encantado. Disse que aquilo parecia uma música inteiramente nova, original: inteiramente diversa de tudo que viera antes dela, mas tão brasileira quanto qualquer choro de Pixinguinha ou samba de Cartola. Um samba todo em voltas, onde cada compasso era uma nota de amor, cada nota uma saudade de alguém longe. Era realmente a Bossa Nova que nascia, a pedir apenas, na sua interpretação, a divisão que João Gilberto descobriria logo depois.

Entre as intérpretes que gravaram Chega de saudade estão Gal Costa (1999) e Rosa Passos (2003). As duas cantoras utilizariam a letra destinada a uma mulher, observando que nesse caso as cantantes mulheres podem metaforicamente ou não reportar seu enunciado amoroso a uma mulher.

111 Transitando pelas lembranças de outros artistas, em certos momentos Miúcha parece deixar escapar frases como esta: “- Achava que não conseguiria ser cantora”. Essa afirmação de dúvida e hesitação sobre a carreira soa, ao menos à primeira vista, como insegurança e auto sabotagem. Miúcha diz: “- No início eu não me considerava cantora. Só quando gravei o disco e mesmo assim não acreditei muito. Eu achava que era uma coisa meio conto de fadas, era demais para mim”. Uma declaração muito semelhante pode ser encontrada na biografia de Nara Leão, que em tréplica a seu artigo publicado na revista Fatos e Fotos, ela responde que o que motivou a sua saída da Bossa Nova foi que não entendia por que diziam tanto que o gênero começou no seu apartamento, em Copacabana, na Zona Sul carioca. “-Se ao menos me convencessem de que tive uma participação importante...”, escreveu Nara Leão.

Seria esse sentimento de aqui-não-é-o-meu-lugar um traço apenas de personalidade e experiência pessoal ou algo também ensinado e construído através da mínima representação feminina no espaço público? Essas falas, me parecem, denotam a dificuldade do feminino em se ver como criadoras, autoras, personas falantes do espaço público. A auto-depreciação feminina não deve ser compreendida apenas em uma ótica singularizada, no qual esse estudo se aprofunda, mas precisa ser observada no contexto da violência simbólica, que, nas palavras do sociólogo Pierre Bourdier na obra A Dominação Masculina, a faz parecer quase invisível, fazendo essa relação ser vista como natural.

A violência simbólica se institui por intermédio da adesão que o dominado não pode deixar de conceder ao dominante (e, portanto, à dominação) quando ele não dispõe, para pensá-la e para se pensar, ou melhor, para pensar sua relação com ele, mais que de instrumentos de conhecimento que ambos têm em comum e que, não sendo mais que a forma incorporada da relação de dominação, fazem esta relação ser vista como natural. (BOURDIER, 2012, p.46).

A sofisticação dessa dominação se dar no momento que a própria mulher se torna instrumento dessa dominação. Isso, se dar, por exemplo com a reiteração ad infinitum do feminino como a esposa prendada para questões da casa, e da dedicação de mulheres para ocupar esse papel doméstico com louvor. As mulheres que se deslocam desse imaginário social costumam ser vistas – e terem também a sua auto-imagem - como ousadas demais. Os lugares marcados binariamente por gênero têm provocado, ao longo dos tempos, uma desconfiança inicial em relação ao feminino, muitas vezes partindo da mulher, na ocupação do espaço público.

112 Não ser aceita ou “não conseguir” são estados e sensações comuns a diferentes mulheres, o que pode ser provocado pela ausência ou reduzida presença de referências femininas em postos que se almeje alcançar. Pelo peso da auto-cobrança e da cobrança social, a mulher precisaria sempre estar na iminência de conquistar, já que o seu lugar de mulher pública não está colocado. A união das palavras “mulher” e “pública” pode soar vulgar ao senso comum. Enquanto “homem público” remete àquele que se dedica à nação ou é reconhecidamente célebre, a mulher pública, não raro, evolui para o exótico, como um espaço permitido pelo masculino. Esse espaço foi historicamente reservado aos bobos da corte, título dos artistas nos reinos aristocráticos, ou às musas no métier das artes.

No encontro entre o cotidiano doméstico de casada e mãe e a de cantora e artista, Miúcha conta que os momentos de dividir o palco a dois com João Gilberto praticamente não fazem parte das suas memórias. Porém, o cantor dividiu o palco com outras cantoras, como Rita Lee 89, essa, por sua vez, uma artista que inúmeras vezes foi retratada como exótica pelo fato de ser uma mulher e fazer rock. João Gilberto também esteve no palco com a filha. Bebel Gilberto 90, filha do casal nascida em 1965, desde muito pequena e depois adolescente dividia a cena com o pai, sendo encorajada por ambos.

Figura 20 – A foto com João Gilberto e Bebel Gilberto juntos cantando faz lembrar a ausência de Miúcha no palco, o que marcou o período em que esteve casada. ______

89 – Encontro João Gilberto e Rita Lee, áudio do show “Brasil é com S”, disponível no site: https://www.youtube.com/watch?v=YtQfl3zetNE . Acesso em 05 de agosto de 2019.

90 - Foto autor desconhecido. Bebel Gilberto no palco com o pai João Gilberto.

113 Porém, Miúcha estava ao lado, muitas vezes na coxia, como já exemplificado pelo show do Teatro Castro Alves. Ela agia, ao mesmo tempo, como esteio da família e com o desafio, nem sempre simples ou fácil, de garantir que tudo corresse bem no espaço público para o então marido.

3.1 – De quem é o palco, de quem é a palavra?

Antes de seguir com o percurso de Miúcha e sua reverberação na história coletiva, interessa aqui apontar a atualidade da problemática do discurso na/da música. De quem é o palco, de quem é a palavra? Persigo nessa pergunta. Para isso, proponho uma ponte com a música brasileira contemporânea através do levantamento das receitas dos artistas neste mercado no Brasil. A investigação desta pesquisa busca também compreender as reverberações desses processos de educação para a feminilidade na alta-contemporaneidade, articulando gênero e música, para tentar identificar se existiria ainda hoje uma invisibilidade, ou menor visibilidade, da mulher no meio musical.

Os números iluminam essa distinção e apontam como ela atua nas esferas de poder, com os homens ocupando de uma ponta a outra toda a cadeia musical, inclusive com grande presença deles nos espaços de fala e de maior rendimento financeiro. Na atualidade, com a difusão do hábito de escutar música através da web, os rendimentos não provêm mais da venda de discos, como na era das gravadoras. Desde o final dos anos 90, o faturamento dos artistas da música concentra-se na venda de shows e no recolhimento dos direitos autorais, através da execução em internet, rádio, propaganda, televisão, filme, espetáculo etc.

Para situar e atualizar a trajetória específica de Miúcha, recorro ao estudo quantitativo da pesquisa: “Por elas que fazem música” 91, publicada em fevereiro de 2018, que versa sobre direitos autorais e faturamento dos produtores. Este levantamento é focado em mapear a

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91 – Relatório da pesquisa ‘Por Elas que Fazem Música’ disponível na íntegra: http://www.ubc.org.br/anexos/publicacoes/arquivos_noticias/porelasquefazemamusica2018.pdf . Acessado em 05 de agosto de 2019.

114 representação das mulheres no mercado da música no Brasil, baseando-se em dados do ano anterior. A pesquisa foi realizada por uma equipe transdisciplinar da UBC (União Brasileira de Compositores), associação fundada em 1942 e que representa atualmente cerca de 25 mil compositoras e compositores brasileiros, espalhados pelo Brasil e no exterior.

O método de sondagem consistiu em levantar o faturamento anual dos associados, quantificando os do sexo masculino e os do feminino. A partir da análise dos dados, foi possível constatar a desigualdade de gênero no métier da música, mesmo sessenta anos depois do surgimento da Bossa Nova. Esta pesquisa não possui dados numéricos anteriores para compararmos se a presença da mulher na música no Brasil aumentou, reduziu ou se manteve. Porém, chama atenção a enorme disparidade, nos dias atuais, entre o faturamento de artistas homens e mulheres, após tantas lutas feministas, muitas delas reivindicando a inserção da mulher no mercado de trabalho e a sua devida equiparação salarial e/ou dos cachês.

Figura 21 – Esta imagem gráfica reproduzida da pesquisa “Por Elas que Fazem Música” (dados: 2017) expõe a sub-representação feminina no métier musical do Brasil, que, não apenas se manteve, como também se manifesta em diferentes espaços de poder, aqui no exemplo da diferença abissal na arrecadação entre os autores e das autoras.

115 O levantamento da UBC constata que 90% do faturamento com direitos autorais sobre música no Brasil do ano de 2017 foi destinado a homens. Podemos destrinchar item por item os dados fornecidos: notamos que entre os compositores, apenas 8% são de mulheres, contra 92% de homens. E mesmo entre os intérpretes, onde habitualmente as mulheres costumam ganhar projeção midiática e ter seus nomes mais lembrados pelo público, para cada 100 intérpretes, elas aparecem apenas em 17 contra 83 do sexo masculino. A pesquisa conclui ainda que 87% dos músicos, ou seja, dos acompanhantes dos grupos e bandas são compostos por homens, o que denota uma maior presença concreta do corpo masculino em espaços públicos, como no palco ou nos créditos das obras.

No item “produtores fonográficos” a presença feminina cai ainda mais, para apenas 4%, sendo o de menor presença delas e menor ainda o peso sobre o faturamento geral para as mulheres, representando apenas 1% do total que elas arrecadaram. Aprofundando a interpretação dos dados colhidos pela UBC, os números da distinção entre os sexos se mantêm nos itens listados dos autores, versionistas, intérpretes, músicos, acompanhantes e produtores fonográficos. Esse cruzamento de dados nos permite concluir que o discurso objetivo e subjetivo, seja ele através da palavra cantada, da criação das letras, do repertório executado, das variadas versões das músicas ou da presença numérica geral na cena da música brasileira, é, em todas as etapas dessa cadeia produtiva, ocupado pela expressiva maioria de profissionais do sexo masculino.

Este estudo quantitativo denota não apenas a atualidade do debate, como revela que a música brasileira exportada e apresentada ao mundo tem sexo e é o masculino. Ao longo do século XX e XXI, a música brasileira tem sido a maior vitrine cultural do país no exterior. Ao tratar da divisão da presença de mulheres e homens na música a partir do montante da receita com direitos autorais, podemos concluir que não apenas o discurso da música brasileira é dos homens, como os artistas de maior prestígio, por serem os de maior receita, também os são. Os números da pesquisa sinalizam que o cenário da música, ao menos com a presença numérica das mulheres, modificou muito pouco. No primeiro disco de Miúcha e Tom Jobim, de 1977, vinte e oito homens são creditados, entre músicos, compositores, intérpretes e técnicos. Miúcha figura como única mulher entre eles.

116 Essa hegemonia numérica e concreta, não impede, no entanto, ações de desconstrução de mulheres diante do feminino padrão, o qual esse estudo trata como deslocamento pela différance. A cantora Dolores Duran 92, certa vez, em um encontro entre músicos na Rádio Nacional, reescreveu a letra de Por causa de vocês, música de Tom Jobim e letra inicial de Vinicius de Moraes. Ela concluiu o bilhete com a seguinte frase: “-Vinícius (de Moraes) outra letra é covardia”, avisando, com humor, que esse não se atrevesse a modificar a letra, porque aquela era a versão definitiva como ela iria cantar. Quem conta essa história, em tom de anedota, é Tom Jobim no palco em um show ao piano em Minas Gerais. Tom Jobim conclui: “-Ficou a letra dela e saiu a do Vinícius (Moraes), que também era bonita”. Que ousadia, uma mulher, entre eles, ter a palavra final!

3.2 – A escrita pelo corpo discursivo

A Igreja diz: O corpo é uma culpa.

A ciência diz: O corpo é uma máquina.

A publicidade diz: O corpo é um negócio.

O corpo diz: Eu sou uma festa.

Eduardo Galeano

A regulação dos corpos, com a distinção social entre masculino e feminino, me parece o ponto cego do meio musical, mas não especificamente do gênero da Bossa Nova, funcionando como um impedimento ao desenvolvimento pleno dos sujeitos. Como ______92 – O episódio de Dolores Duran (1930-1959) está contado na íntegra por Tom Jobim e disponível na plataforma de música Spotify disponível na integra: https://open.spotify.com/album/1M7tCilZSiX2gxRtv6ldG9?si=jEYCD0DKQ4mxH9vlXGLUcg . Acesso 05 de agosto de 2019.

117 podemos ser capazes de ativar múltiplas possibilidades de inter-relações, se os códigos são moralmente separados? Aqui, vale uma distinção epistemológica entre os termos diferente e desigual. Nesta pesquisa parto da compreensão de que as diferenças são constituintes dos seres humanos e que, para além da construção cultural, as distinções biológicas e sexuais são da esfera do material e do psíquico. Importante, no entanto, pontuar que o antônimo de desigualdade não é igualdade, mas, a equidade, ou seja, uma sociedade com condições equânimes e escolhas singulares.

O meio artístico, notadamente o da música, costuma ser visto aos olhos da opinião média e pública como um ambiente equânime. Um métier habitado por mulheres e homens, de forma mista e diria, inclusive, queer, no qual identidades plurais de gênero transitariam livremente. Proponho aqui o deslocamento dessas falsas certezas para, dentro de uma perspectiva desconstrutivista, problematizar os não ditos. Parafraseando Nietzsche, na obra Assim falou Zaratrusta, como já havia feito antes Jacques Derrida (1968, p.13), ao desafiar absolutismos filosóficos, pergunto: será que é preciso romper os ouvidos para enxergar com os olhos? Em uma perspectiva dos estudos dos subalternos (SPIVAK, 2014, p.16), podemos entender a invisibilidade nas artes como um silenciamento do feminino com seus plurais. Quebrar o círculo dessa violência silenciosa passa por incluir outras vozes e escritas e construir novas bases, o que inclui desinfantilizar o feminino aprisionado nas musas, nas mulheres de fulano e cicrano, nas madonas e mães de maridos.

Parto da hipótese de que a afirmação da equidade no meio musical é um mito. As mulheres estão presentes nos territórios da música, como, por exemplo, no palco, nos estúdios de gravação, nos discos, na mídia, porém, na grande maioria das situações, na condição de musas ou de acompanhantes, à sombra do masculino. Não é que não haja mulheres célebres e reconhecidas no campo musical, claro que existem e posso citar diversas, mas estas são, em um dito popular, a exceção que confirma a regra. É possível fazer uma rápida iconografia do movimento da Bossa Nova a partir da presença - e da ausência - do corpo feminino. Nas fotos, a presença majoritária dos homens no palco e nos créditos dos discos fica evidente. As bandas, com as quais Miúcha cantou, eram sempre formadas por homens instrumentistas. O lugar, então, reservado às mulheres, era ao lado deles como cantoras, geralmente segunda voz, ou citadas nas letras das músicas, como era o caso das musas. Fossem nos palcos, elas

118 estavam quase sempre formando dupla com eles, ou com mais cantores, como quando Miúcha se apresenta com Tom Jobim, Vinícius de Moraes e Toquinho no lendário show do Canecão.

Mas havia um lugar onde as mulheres tinham espaço cativo: o coro. No samba, gênero musical fundamental para a criação da batida da Bossa Nova, o coro feminino tinha até nome: as pastoras ou as pastorinhas. Vozes femininas eram bem-aceitas no momento do “lá, lá, lá” ou “oh, oh, oh”, quase como uma saudação aos donos da festa, um cantarolar que remete às cantigas infantis. Na temporada do Canecão, quando o show do quarteto Tom Jobim, Vinícius de Moraes, Toquinho e Miúcha 93 ficou quase um ano em cartaz, o coro se revezou entre dezenas de amigas da turma.

Figura 24 – Miúcha no palco, na fase já separada de João Gilberto. A sua presença ao lado de Tom Jobim (sentado à frente do piano), apoiada no colo de Vinícius de _____Moraes______e com Toquinho na outra ponta do piano, representa a grande maioria das suas aparições públicas: como uma mulher entre eles.

As integrantes do coro não eram fixas, mas sempre mulheres, belas mulheres, afinal, atributos físicos costumam ser um pré-requisito para a mulher brilhar no palco. Miúcha era a única com status de atração principal no meio dos três homens, como fica nítido nas fotos. ______

93 – Foto do disco ao vivo Show Olympia, em São Paulo, 1977: Miúcha, Vinícius de Moraes, Tom Jobim (ao piano) e Toquinho (em pé). Gravadora RCA.

119 Essas duas fotos acima, exemplificam bem, a presença feminina de Miúcha cercada por artistas homens. Seu duplo deslocamento, como mulher-errante - uma cantora latina no mundo eurocêntrico -, e como artista-mãe - não aceitando ficar confinada aos espaços privados, me interessava, soando como micro revoluções em um tempo tão sem esperança. Ao acompanhar a profícua trajetória de Miúcha, nota-se que além de aparecer na maioria das fotos entre homens, é rara a presença de outras mulheres ao seu lado.

Ao longo do século XX, o corpo feminino sofreu diversos interditos do desejo de ser sujeito de individualidades. A instituição família e seus constituintes, como os afazeres domésticos e a maternidade, serviriam então como agente desses interditos do falogocentrismo. O papel da mãe como responsável principal pelos cuidados dos filhos implica um maior tempo dedicado à família pela mulher, o que subtrai do seu tempo o espaço para a rua. Essa divisão dos papéis - feminino versus masculino - no espaço privado coloca a mulher-mãe na condição de invisibilidade social.

O estar presente no espaço público também não é garantia do se fazer presente e ser reconhecida na presença. A presença ilustrativa da mulher, muitas vezes caracterizada como acompanhante do homem, representa uma invisibilidade no terreno metafísico, como uma presença fantasmagórica da imagem da sombra, o que Derrida compreende como um rastro. Em sociedades marcadas pelos símbolos e representações, como a da alta contemporaneidade – nas quais títulos sociais, mídia, salário são extremamente valorizados –, aquilo ou aquele que não é visto, simboliza, aos olhos de quem olha, e não vê, a não existência.

Como uma mulher pode tornar-se sujeitA da sua própria história? Como o corpo feminino pode se transformar em um corpo discursivo servindo de potência e ação? Por que o corpo no palco é falante? Uma maior presença da escrita feminina em espaços como a música ou a manifestação artística de amplo alcance pode despertar novas performatividades, novas representações, novos códigos simbólicos e sociais. Essa escrita pode inclusive contribuir para contar outra história, ou uma história do outro, em uma perspectiva de alteridade, entendendo a mulher adestrada para o feminino como esse ser à margem. Ao longo desse estudo, encontro questionamentos sobre se a invisibilidade que aponto é material, o que

120 objetivamente os números não refutam. Surge outra indagação: qual seria a diferença em se ter mais mulheres com a palavra? Para essa provocação, proponho pôr em reflexão um depoimento autobiográfico da escritora Hèléne Cixous, no seu texto manifesto, Le rire de la méduse, que se tornou um clássico da segunda onda do feminismo:

O que me impressiona é a infinita riqueza de suas constituições singulares: não podemos falar de uma sexualidade feminina, uniforme, homogênea, com um curso codificável, mais do que de um inconsciente similar. A imaginação das mulheres é inesgotável, como música, pintura, escrita: seus fluxos de fantasias são inéditos. (CIXOUS, 1975, p.39).

Cixous, no mesmo texto, conta que só aos 27 anos foi capaz de se aventurar em uma escrita própria e diz que até então ela via a escrita como algo reservado “aos grandes homens”. Na música, essa potência da escrita abre novas interlocuções, se pensarmos para além do discurso-textual das letras das canções. A música é um encontro de sensibilidades, incluindo nela o espaço visual com a afirmação da presença pelo corpo. O corpo é a nossa primeira diferença, uma “impressão digital” do sujeito. Ademais, uma diferença pelo corpo é marcante, pois a voz da mulher não tem a mesma tonicidade da voz do homem.

A metáfora da medusa dialoga com a investigação sobre a construção imaginária do feminino. No mito da medusa 94, tem-se a imagem de uma mulher como um monstro, que

Figura 26 – A medusa é um ícone do feminino sedutor, perigoso, enigmático, ______traiçoeiro, estigmas que são frequentemente usados no métier artístico, em uma representação construída pelo discurso exterior as mulheres.

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94 – Imagem de pintura à óleo da Medusa de Michel Caravaggio (1597 d.C) reproduzida da internet por este estudo.

121 emerge na Grécia Antiga como uma mulher com serpentes na cabeça. Os homens que olhassem a Medusa seriam castigados com a paralisia total, tornando-se pedra. Nota-se a serpente, animal que pode ser lido na sua iconografia fálica e que mata sua presa pelo veneno, no lugar dos cabelos, símbolo de beleza e feminilidade. A medusa representa, portanto, a mulher má, animalesca e perigosa. Medusa toma essa forma, meio mulher, meio animal, por maldição da deusa Atena, depois de Medusa profanar o templo de Atena ao ceder seus caprichos a Poseidon/Netuno em troca da festa. A Medusa, ser feminino, popularmente simboliza a inveja, a vaidade, a luxúria, o castigo.

A presença do palco e a desconstrução linguística pelo feminino parecem ser lugares de ocupação e afirmação da diferença. Essa escuta das mulheres, na qual o íntimo e o doméstico ganham visibilidade, é trazida para o século XX pela psicanálise, que contribui para romper a invisibilidade das dores e prazeres de alcova. Bakhtin e Derrida, nas suas obras mais críticas sobre o discurso embutido na psicanálise, não deixam de reconhecer a importância dos estudos de Freud para transformar o sexual em um enunciado falante, assunto que a sociedade da época havia recalcado e censurado. Freud também traz o inconsciente como algo não passivo, incluindo a catarse, os conflitos, o inacabado. Mas é a linguística, com a questão dos termos do humano pelo masculino pretensamente neutro, que inquieta especificamente Derrida.

Como exercício de contra-discurso, Derrida transformou novas palavras em ação. Dentro da sua obra, Derrida incluiu no seu vocabulário termos relacionados ao corpo e diferenças pelo feminino. Na obra Glass (em português: vidro) palavras como hímen e invaginação são usadas como um exercício desconstrutor, sem explicações, aspas ou qualquer marcação. Essas palavras aparecem afirmativamente, utilizadas pelo autor mesmo correndo o risco de ser interpretado como um glossário feminilizante, o que pode ser visto como um paradoxo ao seu discurso não binário. Cordão umbilical aparece no livro Otobiographie, (1984, p.138), para ficar só em alguns exemplos.

As remarcas desconcertantes que despertariam Derrida, estas, sim, dão conta do estranhamento do feminino na linguagem e são reveladoras, como em um ato falho, de como o falogocentrismo é entranhado em todas as esferas do discurso, mesmo em alguns

122 autoproclamados feministas. A ponto de afirmar o quanto essa experiência pode ser desconstrutora: “Palavras “femininas” sejam enxertadas em outros contextos, e predicados “femininos” sejam estendidos a estruturas mais amplas é a única maneira de perturbar o discurso dominante” (BENNINGTON & DERRIDA, 1996, p.158).

Esta ação linguística derridiana exemplifica na sua escritura a ação do entre, não no meio, mas dentro do meio para provocar rupturas dos privilégios do masculino. Parece apontar, em uma interpretação desta pesquisa, que a ação do feminino desconstrutor do falogocentrismo virá de um corpo gramishiniano, que disputa a hegemonia por dentro do tecido social, que atua no entre. Um desafio de desierarquizar, de-si-hegemonizar o desejo e, com isso, desconstruir a existência do humano pelo masculino. É preciso romper as margens que o limitam, como o hímen que existe para não mais existir. Para Derrida e Irigaray, nesse movimento desconstrutor, é onde o feminino se encontra. Irigaray irá dizer que a liberação subjetiva implica uma língua não submissa às regras de assujeitamento ou anulação das diferenças (IRIGARAY, 1990, p.83). Afinal, se as línguas, as falas, os arquivos, as escrituras são construídas e reiteradas a partir do masculino, como ressignificá-los a ponto de ressurgir em novos signos? Ou algo sempre escapa à domesticação do falogocentrismo?

Na tragédia grega Antígona, escrita por Sófocles 442 a.C. temos um enredo conhecido de algo que escapa. Antígona deseja enterrar o irmão assassinado. Esse desejo vai contra a ordem do rei, a quem o considera traidor e, por isso, proíbe seu corpo de ser enterrado. Para Antígona, o luto só se cumpriria ao velar o corpo do irmão e insiste no cumprimento desse rito de passagem. Por sua escolha e responsabilidade, vai de encontro aos conselhos de todos a sua volta. Antígona vai até o fim na sua decisão. O deslocamento de desafiar a autoridade social que a oprime e regula, gera consequências. Com a sua morte, Antígona abre mão do casamento e de se tornar mãe. A morte de Antígona arrasta com ela a do seu marido. Ao ver o filho morto, a mãe, que vem a ser a mulher do executor do irmão de

Antígona, tira a própria vida, fechando o ciclo da tragédia. Assim, algo escapa à autoridade.

Para Jacques Lacan, que se dedicou a investigar a força motriz de Antígona 95, de Sófocles, a ______95 – Leitura da tragédia de Antígona. LACAN, Jacques. Seminário VII, Édition du Seuil, Paris, 1960, pp.285-315.

123 personagem feminina se aproxima de “encarnar o puro desejo” (LACAN, 1960, p. 329). Se é possível escapar completamente da representação da feminilidade, como a imagem da mulher que chora e se resigna, ao qual estamos impregnados desde a expectativa do nascimento, não me parece certo afirmar. Porém, aqui interessa a ação de Antígona de desafiar a Lei dos homens e feita pelos homens. Antígona representa uma mulher que não aceita ser regulada pelo Estado, pela Lei, pelo marido, pela autoridade do masculino.

A presença corpórea de Miúcha no palco, por si só, já é desconstrutora, desafiadora, transbordante de sentidos. O corpo feminino no palco e, através dele, a voz feminina na música, traz em si uma imagem acústica (SAUSSURE apud DERRIDA, 1967, p.78) do outro feminino, o feminino público, garantindo-lhe materialidade. A cultura ocidental, fundada a partir dos processos de colonização, trata daquilo que é visível. Esse horizonte visual confere à presença do corpo feminino uma significância concreta. Dessa forma, a escrita feminina se dá na ocupação do palco, com seu corpo escrevendo a sua subjetividade destoante do hegemônico.

A música é então escrita por corpo esse discursivo, “da palavra que é corpo, do corpo que é um teatro, de um teatro que é um texto” (DERRIDA, 1967, p.260). No capítulo A palavra soprada, de A escritura e a diferença, Jacques Derrida fala através do poeta do teatro Antonin Artaud, trazendo a arte como potência para desafiar o dado, o posto. Assim, o corpo feminino não previsto no palco, é um corpo desconstruído. Esse é um contra corpo ao corpo dócil, identificado por Michel Foucault nas sociedades disciplinares, que adestra o corpo através de espaços como instituições escolares (FOUCAULT, 2009, p.164). A presença corpórea de uma mulher no palco, que fuma, bebe, canta, dança e se mistura entre os homens, é transbordante de sentidos.

Miúcha conviveu ativamente com uma elite intelectual e artística no Brasil e em países por onde passou. Fez parte desses grupos, sendo ela uma mulher, mãe e latina. Porém, mesmo nesses círculos sociais mais fluidos, a convivência existia, não sem rasuras e sem que houvesse ações objetivas de afirmação dessa mulher, afeita à convivência pública para além da condição de acompanhante. A presença ou a ausência do corpo feminino no palco atravessa as esferas do concreto e do simbólico. O corpo no espaço público, como o corpo

124 de uma artista, é um corpo político, forjado no seu discurso-percurso. A presença de Miúcha no palco entre eles realiza um "esgarçamento das possibilidades restritas do corpo dócil, ordinário, cotidiano" (PIRES, 2006, p.156). O corpo feminino, ao ocupar o centro do palco, funciona desafiando a divisão polar. A presença desse outro corpo em espaços de poder, como as apresentações de Miúcha no Olympia, em Paris, confere a seus atores a materialização da sua existência pública. No palco, a artista Miúcha se expande: ela baila, ela gesticula, ela rebola, ela se alegra diante da plateia.

O seu estar livre aos olhos alheios marca um território feminino deslocado pela ação de uma différance. Não se trata, em diversas passagens da vida dessa mulher, de ter o homem como imagem e semelhança, mas de ser o que essa sujeitA assim deseja. Entre os processos de subjetivação nos quais se manifestam as diversas formas de ser mulher, Miúcha é uma dessas que fala com o corpo às gargalhadas. Ser intensa, nesse caso, pode soar como uma redundância da caricatura do ser mulher, se pensarmos nos estereótipos de gênero e seus estigmas associados: feminino = emoção; masculino = razão.

3.3 - A boemia como entre-lugar

A mulher noturna é mais ou menos uma bruxa, desencadeia as forças irreprimíveis do desejo. Eva 96 eterna, a mulher desafia a ordem de Deus, e a ordem do mundo. Michelle Pierrot

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96 – Citação extraída do livro Les femmes ou les silences de histoire. Paris: Flammarion, 1998. O contraponto da representação da mulher, a partir de Eva, é o Mito de Lilith. De acordo com o mito, Lilith seria a mulher primordial. "A primeira esposa de Adão, que foi expurgada do texto representa a primeira reação feminina ao domínio masculino. 'Por que devo deitar embaixo de você? Eu também sou feita do pó, e assim sendo somos iguais'. Ela invoca o nome de Deus e foge para o mar Vermelho, uma região abundante em demônios lascivos, com os quais ela se reproduz diariamente e tem uma centena de lilim (demônios, filhos de Lilith). A sua rebelião a transforma definitivamente em um ser demoníaco, perpétuo inimigo dos homens e de suas crianças. Eva, denominada por Adão "a mãe de todos os seres viventes", e mais fácil de ser subjugada porque não foi feita como ele do pó, mas de uma parte dele, também demonstrou a sua capacidade de ser perigosa. Ao ser seduzida pela serpente, desobedeceu a ordem de Deus de não comer do fruto proibido e convenceu o homem a fazer o mesmo". Fonte sobre Lilith: LARAIA, Roque de Barros, Jardim do Éden revisado, Revista de Antropologia FFLCH/USP, vol. 41, São Paulo, 1997.

125 Eles se autodenominavam Turma do Funil, o nome de uma marchinha de carnaval popularizada na voz Elizeth Cardoso e, em seguida, pela interpretação escrachada de Miúcha. A canção Turma do Funil, também conhecida no grupo da música como “No Baixo Leblon”, abre o disco Miúcha e Tom Jobim (1979), cantada pelos dois e com participação ainda de Chico Buarque.

Chegou a turma do funil Todo mundo bebe, mas ninguém dorme no ponto Há há há há, mas ninguém dorme no ponto Nós é que bebemos e eles que ficam tontos Quando é tão densa a fumaça Que o tempo não passa E a porta do bar já fechou

Quando ninguém mais tem dono O garçom tá com sono E a primeira edição circulou Quando não há mais saudade

Nem felicidade Nem sede, nem nada, nem dor Quando não tem mais cadeira Tomo uma besteira de pé no balcão

E eis que da porta do fundo Do oco do mundo desponta um cordão

Chegou a turma do funil Todo mundo bebe, mas ninguém dorme no ponto Há há há há, mas ninguém dorme no ponto Nós é que bebemos e eles que ficam tontos

Morou? Eu bebo sem compromisso É o meu dinheiro, ninguém tem nada com isso Enquanto houver garrafa, enquanto houver barril Presente está a turma do funil

Chegou a turma do funil Todo mundo bebe, mas ninguém dorme no ponto Há há há há, mas ninguém dorme no ponto Nós é que bebemos e eles que ficam tontos

O refrão da letra se refere a um "todo mundo bebe, mas ninguém dorme no ponto”. Em muitas rodas, Miúcha era a única mulher a ocupar lugar de destaque na mesa do bar e no centro do palco. Aqui é possível localizar a sujeitA transitando por um entre-lugar, um espaço de aparente suspensão dos estereótipos de gêneros.

126 A boemia aproximou Miúcha e Tom Jobim 97, seu principal parceiro, nas palavras dela. Além do chope pós-praia no Rio de Janeiro, o que terá unido Miúcha e Tom Jobim? A voz feminina de Miúcha, como um contraponto sonoro? Seu francês falado e cantado e os “mundos” que carregava? O interesse pela etimologia das palavras? Ou tudo isso em meio ao poético cenário da boemia carioca?

Figura 26 – Esta foto ilustra a amizade entre Miúcha e Tom Jobim, parceiros de palcos, discos e boemia. Essa foi uma grande relação de cumplicidade da fase da carreira de Miúcha quando rompe o casamento e volta ao Brasil.

A chegada ao Brasil vindo de Nova Iorque com João Gilberto e Bebel, ainda criança, foi uma vinda sem volta. No Brasil, Miúcha decide que, naquele momento, não voltaria mais aos Estados Unidos nem tampouco à sua vida de casada como mulher de. Quando retorna ao seu país, se entrega saudosa à boemia. Bem ao estilo carioca, a boemia começava no fim de tarde do pós-praia e se estendia pelos bares da zona sul do Rio de Janeiro, onde sua turma se encontrava sem precisar marcar. Na mesa do Bar Veloso, sentava-se o maestro Tom Jobim, que tinha cadeira cativa por lá. Tom Jobim, já com extenso e consagrado currículo como pianista, compositor e arranjador, tinha fama de sisudo. Além dessa imagem, naquele ambiente era um dos mais experientes artistas da turma de Miúcha, em que variavam os demais personagens, mas a dupla Miúcha e Tom Jobim se mantinha carioca. Tom Jobim ainda era visto como tímido, porém o curioso é que algo naquela atmosfera se transformava em uma “mesa cheia” de amigos e bons papos. ______97 – Foto de autor desconhecido: Miúcha e Tom Jobim nos anos 70.

127 Foi nesse ambiente descontraído que nasceram os dois discos da parceria de Miúcha e Tom Jobim, que seriam os primeiros de Miúcha com foto e nome na capa. Sobre esse disco, ela demonstra ter funcionado como um rito de passagem. O que começa a partir da seleção do repertório do disco Miúcha e Tom Jobim. Nele, ela aparece cantando um repertório com o sujeito no feminino. Na música, ela fala da boemia dela, e do homem que não aceita a sua vida noturna.

A nossa vida tem sido um horror E o culpado é você que não me tem amor Se eu chego tarde você quer brigar Bota banca de infeliz Não para de falar Já lhe avisei para tomar cuidado Pois você está seguindo um caminho errado Ora, deixe de tolice Ora, deixe…

Essa música escrita por José de Menezes e Luiz Bittencourt foi sucesso pelo grupo Os cariocas, um dos precursores da Bossa Nova. A escolha dessa música para ser interpretada pela voz de Miúcha soa como uma pitada de auto referência. Nas entrevistas deste estudo, Miúcha é enfática ao dizer:- “ Não quero ser apêndice”. Na entrevista para imprensa, a preocupação se manifestava 45 anos antes, como na manchaete “Sou Miúcha e não a irmã de Chico Buarque” 98 .

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98 – Matéria de autoria do jornalista Cota Duha, publicada 22/04/1974 na Revista Fatos e Fotos. Na matéria Miúcha explicita, 45 anos antes desta pesquisa, o mal-estar que surge nas entrevistas para este estudo. Nos depoimentos para a esta pesquisa, Miúcha usa a palavra “apêndice”, da etimologia inglesa appendix, também pode se referir à informação extra que vem no final do livro e que é dispensável para compreensão da obra, o apêndice portanto não tem vida própria, algo que ela perseguiu ao longo da sua vida.

128

Figura 27 – A reportagem traz a aspas de Miúcha quando no ano de 1974 reivindicava “Ser Miúcha, simplesmente Miúcha”. E revela no destaque os entrelaçamentos que _____marcaram______a sua vida e sua carreira. A reportagem escreve ao apresenta-la no destaque: “Além do irmão famoso, só recentemente separou do marido também bastante

______conhecido: João______Gilberto”.

A analogia com o corpo humano nos revela uma metáfora para um órgão que está ali, como se não estivesse, ou não precisava estar. Pela evolução anatômica da espécie humana, o apêndice se tornou um órgão sem função, aquele que pode ser dispensado, sem fazer falta ao corpo. Miúcha faz essa observação aos risos e, ao mesmo tempo, em tom de protesto. Ela não é um apêndice, mesmo que a sua negação revele um discurso não dito, como se dissesse: - Antes que digam, deixe eu mesma dizer e fazer piada dessa imagem.

129 A presença insurgente do corpo feminino unindo palco e boemia pode ser ilustrada com o Jazz (2001) 99, dirigida por Ken Burns, o maestro Count Basie aparece descrevendo a jazzista da seguinte forma: “- Ela bebia, xingava e jogava como um homem. No ônibus era como se ela fosse um deles. Ela bem poderia ser chamada de ‘William’. A cena demonstra que ele a descreve como divertida e despudorada, revelando sequer cogitar que o feminino possa conter vários prazeres e comportamentos, ao que só lhe resta apelidá-la com um nome de homem.

3.4 – A Bossa descolonial – desafiando universalismos

A Bossa Nova se gesta, na experiência singular dos seus e suas protagonistas, incluindo outras mulheres além de Miúcha, como Nara Leão, Elizeth Cardoso, Astrud Gilberto, Sylvia Telles, Rosinha de Valença, Quarteto em Si, Rosa Passos. Nessa teia se somou a troca cultural entre estados brasileiros, como Rio de Janeiro e Bahia, e o trânsito entre países, em especial a música de raiz africana produzida nos Estados Unidos. A partir desses diálogos culturais, a Bossa Nova se tornou uma das maiores expressões do Brasil no estrangeiro em todo o século XX. Na França, a Bossa Nova é comumente chamada de nouvelle vague brésilienne, em uma referência ao movimento cinematográfico francês da nouvelle vague e ao movimento cinematográfico brasileiro do Cinema Novo, que eclodem simultaneamente nos anos 60.

Aqui, recorro aos Estudos Culturais 100 na perspectiva descolonial porque parece haver algo de descolonizante no movimento da Bossa Nova. Com a Bossa Nova, o Brasil chega ao público, artistas e mercado europeu e norte-americano dos anos 60 em diante. Ao unir o

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99 - A cena faz parte do episódio 6 da série Jazz, dedicado ao período de 1936-1937. A frase, dita no original em inglês, com livre tradução deste estudo é: “-She drank, cursed and gambled; On the bus, is if as she were one them. She could as well be called William”. A referência para o nome “William” é porque uma corruptela usual no inglês para esse nome é Bill. Ele estava fazendo, portanto, um trocadilho com “Billie”, que funciona tanto para o feminino como para o masculino, sendo que William é usando apenas no masculino.

100 - Os estudos pós-coloniais surgem como uma escola difundida pelos estudos culturais e literários da década de 1980 na Inglaterra e nos Estados Unidos. Aqui, guio-me fundamentalmente pelos escritos anticoloniais de Frantz Fanon.

130 samba lento e quase falado da Bossa Nova com os improvisos e suingue do jazz de raiz afro- americana, essa batida musical passa a ser exportada para fora do Brasil e copiada no exterior. Assim, nasce uma matriz sonora enunciada a partir de um país abaixo da linha do Equador, o qual era comumente referido como “Terceiro Mundo” 101. A Bossa Nova ocupa um papel de afirmação identitária não europeia pela cultura. É possível pensar que, em um contexto internacional, esse gênero musical contribui para contrapor as lógicas da colonialidade, apostando em outra experiência cultural e colocando em questão a relação centro produtor versus margens consumidoras de cultura.

A Bossa Nova realiza então um giro descolonial, do inglês turn, como um turning point, um ponto de virada no sentido da descolonialização. Isto se dá ao oferecer um contraponto à apropriação e imposição cultural de certo “gosto”, ou seja, daquilo que deveria ser normativamente consumido como “bom”, em uma lógica de mercado da indústria cultural. O termo “descolonial” tem sido usado, ao menos desde 1961, a partir de Frantz Fanon. A partir desse autor, parece-me possível pensar a Bossa Nova como uma backwash, semelhante ao que Fanon chamou de “reflection” (1961, p.316). Para ele, seria como uma imagem que bate no espelho e volta. Porém, aqui opto por uma imagem de uma backwash – para descrever uma onda que volta mais forte. É possível pensar, seis décadas depois da chegada da Bossa Nova na Europa e Estados Unidos, que através da cultura o colonizado pode voltar fortalecido para a colônia.

Para entender como se dá essa ação descolonizante, que me parece um descolocamento pela différance da Bossa Nova, recorro a Frantz Fanon, em especial na sua obra Os condenados da Terra 102, datada do seu último ano de vida. Trata-se de um livro que não foi ______101 – O termo “terceiro-mundo” aparece usado por Jean-Paul Sartre, no prefácio que esse escreve do livro Os condenados da terra, de Frantz Fanon. No texto, Sartre é acidamente crítico com a colonização, mas, usa o termo “Terceiro Mundo” como naturalizado linguisticamente.

102 - Esta pesquisa baseia-se na versão em inglês do livro The wretched of the Earth – The handbook for the back revolution, de Franzt Fanon, lançada em 1963, após a sua morte, com prefácio de Jean Paul Sartre, mantido da primeira edição em francês. Apesar de o subtítulo enfatizar a questão da luta racial, é possível perceber ao longo do livro um enfoque de consubstancialidade, ao evitar a pseudolinguística pelo masculino, incluindo sempre “mulheres” no seu vernáculo e denunciando a hierarquia entre países. Fanon irá dedicar o capítulo On national culture (pp. 206-248) para demonstrar como a colonização é reinterada cotidianamente pela cultura.

131 Escrito, mas sim ditado por ele para sua mulher Josie Fanon. Nele, Fanon, de formação em psiquiatria, alerta para a existência de fronteiras simbólicas e concretas criadas pela colonização, capazes de adoecer as pessoas. Ele aponta caminhos para desconstruir o que chama de “violência” do sistema colonial pela imposição cultural. Fanon localiza a contra- violência como “ação que liberta o colonizado do seu complexo de inferioridade, das suas atitudes contemplativas ou desesperadas” (FANON, 1963, p.78). Aqui, desloco para a ação da Bossa Nova, que também teria essa potência do que Fanon chama de “tornar[se]-o intrépido” e “reabilitando-o aos seus próprios olhos” (Idem, p.79). Um exemplo disso, é que Tom Jobim se torna uma estrela da mesma estirpe de Frank Sinatra. Em 1990, “Garota de Ipanema” era a quinta canção mais tocada no mundo (acima de 3 milhões de execuções) em todos os tempos, segundo uma pesquisa da BMI.) (CASTRO, 1993, p. 419).

Nessa perspectiva, a Bossa Nova serve de exemplo de descolonização, por, a partir do Brasil, provocar uma polissemia sonora em outros continentes. Podemos observar, por exemplo, a sua penetração nos filmes da Nouvelle Vague e do cinema norte-americano. Na trilha sonora do filme Un homme et une femme (1966), de Claude Lelouch, a voz do cantor francês Pierre Barouh vem acompanhada de Stan Getz, executando Samba da Benção, com letra de Vinícius de Moraes e música de Baden Powell. O filme ganhou o Grande Prêmio do Festival de Cannes do ano de 1966. Na França, ator e cantor Pierre Barouh (1937-2000), entre outras aproximações que promove com os dois países, cria Samba Saravah, uma adaptação de Samba da Benção.

Outro exemplo é o longa-metragem italiano Copacabana Palace 103 (FLÉCHET, 2005, p.54), que traz João Gilberto no cartaz de divulgação da trilha-sonora ao lado das atrizes do filme. O filme conta com a presença de João Gilberto, Luiz Bonfá e Tom Jobim na praia do Rio de Janeiro, em uma cena de pesca. Existe uma versão sobre a invenção da Bossa Nova, que envolve ainda o cinema, e é comumente contada no futuro do pretérito do indicativo 104. ______

103 - Copacabana Palace, trilha sonora original, com João Gilberto na foto, 1963. Reprodução da imagem do cartaz a partir do artigo, de Anäis Fléchet, La Bossa nova en France, un modele musical?, Cahier des Amerique Latines, 2005, pp. 53-78. Artigo disponível no site: https://journals.openedition.org/cal/7882?lang=pt . Acessado em 07 de agosto de 2019.

104 - O tempo verbal do futuro do pretérito do indicativo se refere a um fato que podia ter acontecido, a, uma ação condicionada, uma incerteza.

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Figura 28 – Este cartaz do filme Copacabana Palace permite duas observações: o alcance internacional da Bossa Nova, encarnado na figura masculina de João Gilberto acompanhado do violão, e as duas atrizes presentes, as quais encarnam a figura da musa tão cantada pela Bossa-Nova.

Nessa versão, a Bossa Nova teria ainda a influência do cantor Henri Salvador. Essa influência teria chegado através de Tom Jobim, ao assistir ao filme italiano Europa di notte (1958), de Alessandro Blasetti, que ficou em cartaz em 1958, em Copacabana, portanto no mesmo ano em que lançou o disco de Elizeth Cardoso. O filme italiano tem na trilha-sonora a canção Dans mon ilê, de Henri Salvador, francês de origem na Guiana Francesa. Essa é uma canção que remete imediatamente à sonoridade da Bossa Nova, mesmo que ainda falte a

133 antecipação do violão pela voz, trazido na interpretação de João Gilberto. Henri Salvador e Tom Jobim nunca se encontraram e não conversaram a respeito.

Sobre essa possível influência, dois pontos a colocar. O primeiro é a experiência vivida por Henri Salvador, que morou cerca de quatro anos no Rio de Janeiro dos anos 40. O cantor frequentou o Cassino da Urca 105, onde se apresentavam grupos como Os Cariocas, e onde todo o caldo que desaguaria na Bossa Nova já começava a se cruzar. A segunda observação é de que a cena do filme é visivelmente um pastiche do Carnaval carioca e, como sabemos, um ritmo musical antes de chegar a uma janela de circulação como o cinema, costuma já ter feito um caminho genuíno, sendo criado em meio ao cotidiano das pessoas. Mesmo considerando a possibilidade do duplo movimento, de Henri Salvador ter sido influenciado e levado ao Brasil suas raízes francesas e da Guiana Francesa, o trânsito musical foi gestado no Brasil.

Esse encontro pode ser resumido em uma frase dita por Gilberto Gil, então Ministro da Cultura do Brasil 106, por ocasião da morte do cantor francês: "- Henri (Salvador) foi um dos principais cantores de Bossa Nova”. Os fluxos culturais não têm uma única via, de papéis fixos de receptor ou emissor. A Bossa Nova é uma matriz cultural, mas é importante destacar que nasce hibridizada por outros gêneros, como o jazz, o samba e a música de terreiro. Esse último, talvez possa soar estranho, mas a batida do candomblé está lá, trazida ao menos através de duas fontes: a influência da baianidade mestiça de Dorival Caymmi, que por sua vez influenciou João Gilberto, e a origem do samba no candomblé, uma sonoridade gestada entre as comunidades da Bahia e os morros cariocas. ______

105 - Em 30 de abril de 1946, três meses depois de assumir a Presidência da República, o general Eurico Gaspar Dutra publicou um decreto-lei proibindo o fim dos jogos de azar. Com isso, a música do Rio de Janeiro perde esse importante local de concentração, se espalhando mais tarde para locais informais, entre a rua e os botecos, como o Beco das Garrafas, em Copacabana. Fonte: Senado Federal do Brasil. Disponível no site: https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2016/02/12/por-201cmoral-e-bons-costumes201d-ha-70- anos-dutra-decretava-fim-dos-cassinos-no-brasil. Acesso dia 15 de fevereiro de 2019.

106 - A frase foi extraída do comunicado oficial, escrito pelo então Ministro da Cultura Gilberto Gil, e divulgada em 13 de fevereiro de 2008, por ocasião da morte de Henri Salvador. Nota na íntegra disponível no site: https://noticias.bol.uol.com.br/entretenimento/2008/02/13/gilberto-gil-divulga-nota-por-morte-de-henri- salvador.jhtm . Acesso dia 05 de agosto de 2019.

134 Anos antes, em 1954, Vinícius de Moraes, que, mais tarde se autodenominaria “filho de oxalá”, escreve o espetáculo de teatro Orfeu da Conceição. Em 1956, a peça estreou no Teatro Municipal do Rio de Janeiro e três anos depois seria adaptada pelo cinema italiano. O protagonista era um Orfeu negro, situado numa favela brasileira. Até então, era tabu falar de samba, associado a pobres, negros e ainda a ponto de macumba. Em Orfeu da Conceição já havia o encontro de Vinicius de Moraes e Tom Jobim, que musicou e fez os arranjos da trilha sonora.

Os fluxos linguísticos da Bossa Nova são inúmeros. Trarei ainda apenas alguns exemplos mais significativos para esse estudo, por transitar entre países da margem e do centro da indústria cultural. Henri Salvador faria o encontro linguístico do francês com o português no seu dueto com Rosa Passos 107. Entre o inglês e o português, a Bossa Nova foi ponto de encontro linguístico reunindo Tom Jobim e Frank Sinatra 108, que fazem dueto cada um cantando na sua língua materna. Tom Jobim caiu nas graças do público norte-americano, fez temporadas no Carnegie Hall, em Nova Iorque, como estrela de primeira grandeza. Miúcha conta da paixão pelas línguas que a uniam a Tom Jobim:

Miúcha: Acho que o que o Tom mais gostava em mim é que eu falava francês e entendia um pouco sobre a origem das palavras, o que vinha do meu pai. O Tom era muito interessado em linguística, e muitas vezes ligávamos para meu pai para saber a etimologia de alguma palavra, o que significava alguma palavra. Era uma forma muito lúdica de se divertir com as palavras. Ele era apaixonado por línguas. A primeira coisa que ele fazia ao chegar a um país era comprar dicionário. Era encantado e curioso pela sonoridade do francês.

Porém, Tom Jobim gostava de destacar como a sua principal influência o maestro brasileiro Heitor Villa-Lobos (1887-1959), que, entre outros feitos, assimilou sons da Floresta Amazônia a sua música clássica. Já Tom Jobim grava e traz os sons reais dos pássaros a sua música. Miúcha lembra sobre a desconstrução linguística experimentada por Tom Jobim, que tinha o hábito de incluir sons da natureza nas suas músicas, como cantos de passarinhos. Esse foi o caso do disco Urubu (1976), ano anterior ao álbum de Tom Jobim e ______107 – Rosa Passos foi considerada pela crítica musical na época a “versão feminina de João Gilberto”, o que, além de denotar uma reverência ao cantor baiano, aponta para o masculino usado como modelo da Bossa Nova.

108 - Frank Sinatra – encontro linguístico entre o inglês e o português, disponível no site: https://www.youtube.com/watch?v=8v7cbnxfvQY. Acesso dia 05 de agosto de 2019.

135 Miúcha, e no qual experimenta uma intensa aproximação entre a Bossa Nova, a música erudita e a experimental, com canções com o dobro do tempo usual, como é o caso da canção Boto com 6:09 minutos. Sobre os experimentos sonoros e linguísticos de Tom Jobim,

Miúcha lembra como este buscava a cadência das palavras em diferentes idiomas:

Miúcha: Quando ele fez Águas de março colocou o ‘borogoró’. Ele fez um passeio pelas línguas germânicas, como o inglês e o alemão, para essa música. Ele achava as línguas germânicas muito onomatopaicas. Ele ficou fazendo um jogo, para desfiar o que considerava um mito de que essas línguas fossem duras. A música já era uma maravilha em português, mas para o Tom (Jobim) virou exercício de linguística em inglês. Ele gostava das diferentes sonoridades das línguas. Ele adorava dizer no meio do show: ‘- Le bule de la champanhe ne bouge pas à la corconde’. Ninguém entendia nada!

A turnê do show de Miúcha & Tom Jobim pela Europa, que teve ainda no palco Vinícius de Moraes e Toquinho, foi caracterizada por sempre haver casas lotadas. Miúcha lembra qual o arrependimento do produtor: “- Várias cidades italianas, Londres, tudo lotado, o produtor se perguntava surpreso a cada nova cidade: “- Por que não peguei mais datas aqui?”

Em 1965, portanto três anos depois do lançamento da canção Garota de Ipanema, a cantora norte-americana de jazz Ella Fitzgerald, substituiu a musa pelo muso 109. Na sua interpretação, ela desloca o objeto do desejo para o corpo e atributos físicos do masculino. A cantora norte-americana de jazz transforma a Garota de Ipanema em Boy from Ipanema 110, cantando a letra com a mudança do sujeito e misturando ao inglês palavras em português. A versão de Boy from Ipanema produz um duplo deslocamento: do gênero do artigo masculino para o feminino e um deslocamento do emissor do enunciado, já que a música norte-americana da segunda metade do século XX foi a principal exportadora musical, e, nesse exemplo, a cantora ecoa uma música brasileira. A Bossa Nova traz, assim, o ______109 – A palavra muso não existe formalmente na língua portuguesa, o que é significativo, e é usada propositalmente com a grafia no masculino por este estudo.

110 - A versão de Ella Fitzgerald recebeu interpretação de outras cantoras como Sarah Vaughan (1967), Shirley Bassey (1966), Eartha Kitt (1974), Petula Clark (1977), Diana Krall (2009). Antes, Peggy Lee já havia cantando Boys from Ipanema em 1964, mas a versão que se tornou mais conhecida de Boys from Ipanema surgiu na voz de Ella Fitzgerald. Ella Fitzgerald cantando Boy from Ipanema no programa de televisão BBC Show of the week, URL: https://www.youtube.com/watch?v=HRmxNrxAGeE . E na versão com mais improvisos com a voz e os idiomas, URL: https://www.youtube.com/watch?v=MZjLz6o7uZM. A letra: Oh, how I love him/ But he just doesn't see/ Tall and tan and young and handsome/ The boy/from Ipanema goes walking/ (…) He's like a samba/ That swings so cool and sways so gentle/ That when he passes each girl/ He passes goes, ah/Oh, but I watch him so sadly/How can I tell him I love him/ The boy from Ipanema goes walking/ And when he passes goes, ah/ I smile, but he doesn't see (doesn't see)/ He just doesn't see; he never sees me. (grifo meu).

136 discurso pela presença da cultura latina, da língua destoante e, nesse caso, ainda feminilizando o sujeito falante.

Assim, desafia a pseudoneutralidade pelo masculino e o pseudouniversalismo na arte, provocando um duplo deslocamento pela différance. Na sua interpretação, Ella Fitzgerald mantém o piano na música, mas acelera no ritmo do jazz, transitando em uma miscigenação harmônica entre a versão original de Vinícius de Moraes e Tom Jobim para o jazz de raiz afrodescendente. Um Brasil estranho se torna possível além do já estratificado pela cultura de massa. Estaríamos, através da Bossa Nova, mas não apenas por ela, inseridos no que Freud chama de "superego-cultural"? E, aquilo que Derrida trata como o desafio dos colonizados de "desrecalcar", despojando-se da pulsão europeizante que funda e edifica a sociedade ocidental? (DERRIDA, 1997, pp.73-74).

Essas ocupações de espaço no cenário da música internacional não são simplesmente marginais, tendo como sujeito esse outro brasileiro, no caso a manifestação da Bossa Nova. Ao deslocar palco e plateia do até então centro musical norte-americano, a Bossa Nova, cria um entre-lugar para quem estava reservado ser coadjuvante. A básica, não tão banal assim, circulação do outro em espaços de poder, como as apresentações de Miúcha no Olympia, em Paris, confere aos seus atores a materialização pública da existência. A descolonização pela Bossa Nova produz, assim, movimentos de reteriorialização (DELEUZE, 1980, p.17), desafiando os espaços territorializados que passam a ser passíveis de ocupação pelos não hegemônicos. Miúcha, como integrante desse movimento cultural, traz em si a experiência de ocupação por um corpo discursivo, desviante e, por sobrevivência, deslocado. Nos anos 80, Miúcha seria parceira profissional e afetiva de João do Valle 111. Juntos realizaram shows em Angola e pelo Brasil, como no estado do Maranhão.

______111 – Foto Miúcha e João do Valle. Autor desconhecido.

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Figura 29 (à esquerda Miúcha dançando) – Esta foto traz Miúcha e João do Valle em uma fase da sua carreira pós os discos lançados com Tom Jobim, onde percorre um caminho de experimentações, que inclui novos parceiros como o maranhense João do Valle.

Figura 30 (à direita) – Esta foto retrata Miúcha em um duo com Pablo Milanês, no auge da fama do cantor cubano no Brasil.

112 No final da década de 80, fez um show marcante com o cantor cubano Pablo Milanês . Com Pablo Milanês, ela compõe um duo cantando em espanhol: a música Buenos Dias America. Antes, além do português, ela já havia cantado em francês e inglês. Sobre o episódio, ela arremata: “- Não é possível inventar ser o que quisermos? Eu inventei de ir a Cuba!”.

______112 - Miúcha e Pablo Milanês com quem gravou um videoclipe da música Buenos dias América, em Cuba para a Rede Globo em 1987. Com ele, Miúcha cantou em espanhol, em um exemplo do seu multilinguismo como intérprete. Disponível no site: ‘Especial Miúcha 40 anos’: https://www.youtube.com/watch?v=4UnNIqnN9j4. Acesso em 05 de 2019.

138 Uma (quase) conclusão

Chego ao final dessas linhas refletindo com novas camadas sobre como opera o deslocamento pela différance. Parece-me que esse deslocamento do feminino e da feminilidade instituídos como padrão, traz duplo ou mais movimentos, contendo em si a consubstancialidade. Por isso, retorno agora a esse conceito trazido ainda no início desta pesquisa: a consubstancialidade introduz a perspectiva de que as opressões não se acumulam, como sugere o ponto de vista da interseccionalidade, mas se realizam umas nas outras, dando substância e formando o tecido social. Esse tecido social deve ser entendido na sua totalidade, sendo que seccioná-lo, mesmo para fins analíticos, pode atrapalhar a compreensão do dinamismo inerente a esses fenômenos.

No exemplo de Miúcha, o estudo de caso desta pesquisa, carrega diferentes elementos, além de ser mulher: 1) ela encarna a imposta contradição do feminino - materno versus ser artista, com vida noturna e boêmia; 2) exerce seu ofício de cantora, sendo brasileira, em países de cultura eurocêntrica; 3) vive como uma mulher-latina transitando pela cena do jazz nos Estados Unidos. Deslocar-se, seja com máscaras, como as usadas por Penélope no épico Odisseia, de Homero, ou rompendo com a autoridade, como agiu Antígona, de Sófocles, são variações de deslocamentos pela différance em sociedades falogocêntricas.

Os desafios de exercer múltiplos papéis não se trata, no entanto, de uma oposição ao desejo da mulher à maternidade, o que não são posições incompatíveis. É preciso considerar que existem escolhas femininas, ganhos e prazeres na maternidade. O gozo pela maternidade, a “la jouissance maternelle”, deve ser levada em conta, como o faz a psicanalista Elisa dos Mares-Guias. A psicanalista alerta para o perigo de vitimização do feminino e da identificação da figura da mãe como um “Grande-Outro”. A autora aponta o risco de idealizar a mãe e atenta para a importância de observar o exercício da maternidade, ou da não maternidade, caso-a-caso. Para a psicanálise esse “Outro” não se reduz ao discurso da mãe, como trago na relação de Miúcha e a sua mãe, mas é um ensemble: discurso social, família, as barreiras do próprio sujeito/A, entre outros fatores.

139 Como viver os múltiplos desejos e escolhas contidos em uma única mulher? É o que este estudo buscou problematizar. Me parece que sacrificar a persona pública pela vida íntima pode ser tão violento e limitante quanto o contrário. No caso de Miúcha, é possível ter havido algo do seu desejo de tornar-se mãe. Algo que já estava ali, e não se perdeu. Não posso, nem devo conjecturar o que teria sido se esta mulher artista não se casasse ou não tivesse a sua filha. O que posso apontar é uma quebra na narrativa da sua vida, a partir desses Acontecimentos, e o surgimento de uma nova narrativa a seguir. Sobre ela, agiu uma força externa, atuante com e após a maternidade.

Casamento e maternidade seriam pontos de virada, como se ali, socialmente, a mulher já tivesse cumprido a sua função de reprodutora e bastaria agora exercê-la. Afinal, vem sendo esperada e cobrada a realização do feminino pela maternidade. Miúcha aqui se contorce e se permite ser a mãe que, em alguma medida, foi possível conciliar entre seus múltiplos desejos de realização. Desafiou a família e a sociedade ao se deslocar do papel de mulher- mãe, signo do doméstico, hora carregando a filha pelas coxias e centros dos palcos, hora viajando, e a filha ficando aos cuidados dos seus pais, uma família estruturada nos moldes sociais tradicionais.

Essas escolhas de Miúcha parecem não ter sido fáceis ou alheias ao sentimento tão aprisionante e regulador da culpa materna. Outras antes dela, mulheres do seu círculo artístico, como a sua madrinha em Paris, Violeta Parra, pagaram caro pelas escolhas destoantes do padrão hegemônico imposto tão vigorosamente ainda para as mulheres dos nossos dias. A separação da cantora chilena do pai dos filhos se deu por iniciativa dele já que, segundo o então marido, ela priorizaria a carreira dela ao invés de servir de suporte para o trabalho dele. Coube a ela educar os filhos do casal e conciliar viagens, shows e maternidade. Violeta Parra tirou a própria vida aos 49 anos, agindo como uma Antígona que se lança à morte.

Estas mulheres, muitas vezes, são acusadas de mães que submetem suas crias aos maus tratos por não terem uma vida rotinizada pelo ideário burguês. A mesma regra social que costuma isentar os homens desse julgamento. Como se apontassem o dedo para as mães- artistas: qual seria o desejo maior da mulher-mãe que não a própria maternidade? Miúcha

140 desafia a lógica, ainda da alta contemporaneidade, de que ao se tornar mãe, deveria se dar o apagamento da mulher enquanto sujeitA-desejante.

Evidentemente, essa lógica foi e é constantemente contestada pelos movimentos feministas, que já transformaram significativamente as relações de poder entre homens e mulheres. No entanto, os rastros da vida de Miúcha nos deixam antever a repetição desses mecanismos insidiosos de fixação da mulher nas amarras do falogocentrismo. Ao escolher ser mãe, esta mulher deveria anular a sua errância e moldar-se à maternidade que aprisiona ao chão da terra, ao lar-doce-lar, ao doméstico. Miúcha faz parte das mulheres que abriram uma via para posicionamentos diferentes do adestramento ao feminino dócil e passivo. Contudo, nos rastros da sua vida, os retornos e regressos, mostram a incidência do que é marcado no inconsciente coletivo para o ser mulher.

Ao acompanhar o contexto público e íntimo da sua época, é possível afirmar que os homens que atravessam essa história se privilegiaram da sua condição pelo masculino. Não basta não ser a-feminino, é preciso desconstruir as hierarquias e se autodesconstruir identificando seus privilégios. É necessário reabrir estereótipos forjados e a naturalização das castas por gênero. As ações de deslocamento pela différance passam por repensar as línguas escritas, faladas e cantadas para além da pseudoneutralidade pelo masculino como modelo. Essa transformação passa por incluir o feminino linguístico, materializando assim a existência. O desafio desconstrutor se dá ainda ao inserir a mulher com seu corpo social, em espaços onde é possível ser vista, escutada, enxergada. Trata-se de quebrar os silêncios, suas reticências ou tímidas pontuações, também produzidas pelas próprias mulheres, ainda hoje, a partir da expectativa masculina. É preciso cantar o que ainda não foi cantado.

O corpo de uma mulher artista é um corpo social, e seus deslocamentos não se dão apenas a partir da sujeitA-desejante. O desejo não é algo do instinto puro, mas se constitui pelo cruzamento de fatores subjetivos e objetivos. Identifico o deslocar-se não como resultado do mérito individual, afeito ao romantismo heroico de uma suposta mulher-maravilha, uma exceção de sujeito idealizado que tudo concilia e tudo vence. As ações de deslocamentos pela différance são factíveis pela soma de condições concretas, a partir do papel libertador ou opressor dado por instituições como: Estado, Escola, mercado de trabalho, família, redes

141 de afeto. Portanto, é urgente inventar uma escola onde questões provocadoras de mal- estar, como a hierarquia e castas por gênero, possam ser revistas. Uma escola onde possa tomar partido 113 pela escuta das diferenças.

No caso da sujeitA deste estudo, é importante o contexto da época, propício ao surgimento de um novo feminino, durante os anos 60 e 70. A isso se somam as condições materiais para os deslocamentos de Miúcha, como as referências próximas de outras mulheres desviantes, no caso específico, a forte influência das tias, além de condições financeiras favoráveis. Miúcha fez parte de uma elite intelectual e econômica, o que permitiu sua différance, ao contrário de outras mulheres - negras, pobres, lésbicas - que sofreram e ainda padecem de processos muito mais estigmatizadores do feminino consubstancializado por classe, gênero e diversidade sexual. Ao seu círculo, pertenciam ainda os nobres amigos, de música e de boemia, desde sua infância festiva com direito a acessos aos círculos da vanguarda artística de Paris, Nova Iorque, Roma e Cidade do México. Esses fatores contribuíram para que esse corpo latino, formado pela voz e psiquê dessa mulher, circulasse em um centro cultural marcado pelo domínio eurocêntrico masculino da palavra. Todavia, esses deslocamentos não têm garantias de felicidade ou êxito, o que nos sugere uma sujeitA artista errante.

Nas entrevistas com Miúcha, foi valiosa a busca de quebrar os silêncios. Ah, como me pareceu difícil o feminino falar de si! As mulheres foram tão acostumadas a serem filhas de, irmã de, mulher de, parceira de... Tentei me aproximar ao máximo da sujeitA Miúcha, mas, mesmo assim, - e me parece que não poderia ser de outra forma -, termino com a impressão de que esse singular que persegui é um mito, ou ainda, algo da ordem do impalpável. Não existe nome próprio, e, segundo Derrida, todo nome é (im)próprio porque, como os arquivos, já estão corrompidos pelo arquivista (DERRIDA, 1995, p.118). Miúcha é atravessada pela construção que fizeram e que aqui faço dela. Algumas vezes, Miúcha questionava o porquê de perguntas estranhas ao universo da música. De todos esses ______

113 - Sobre a junção dessas duas palavras: “escola” e “partido”, ver mais em: JARDIM REIS, Mariana, Políticas Educacionais para relações de gênero: uma análise sobre o município do Rio de Janeiro, UFF, Niterói, 2018. A dissertação traz dados importantes para compreender a importância da presença das diferenças na escola, como a demanda social no Brasil pelo tema. Segundo pesquisa do IBOPE, realizada em 2017 e fonte desse estudo, 84% dos brasileiros acreditam que é importante discutir gênero nas escolas e 88% foram favoráveis a aulas de educação sexual na rede pública de ensino.

142 revezes, o que fica claro é a sua curadoria sobre si mesma, manifestada na forma minuciosa como construiu o seu arquivo físico, catalogado com a precisão digna de uma historiadora.

A importância de uma escrita feminina não teria, aqui, uma perspectiva por um espaço para uma dita essência da mulher, como se a música feita por mulheres pudesse se tornar um estilo ou uma escola artística. Também não se trata de apontar a necessidade de espaços de mulheres falando de mulheres para mulheres e, sim, problematizar territórios ditos como universais. Na obra Sexualidade e política, uma compilação das entrevistas concedidas por Michel Foucault, entre 1978 e 1984, esse, quando perguntado se os gays deveriam criar sua própria cultura, responde: “Devemos realizar criações culturais”. Da mesma forma, revelar a sub-representação das mulheres na música não deve ser visto como afirmação identitária e, sim, como um desejo de polifonia e desierarquização da criação e do espaço artístico.

Os rastros da vida de uma artista, como no caso de Miúcha, suas escolhas e percurso podem inspirar outras mulheres a se tornarem desviantes, ao ponto desses deslocamentos não precisarem mais ser destacados. Historicamente, mulheres pagaram um alto preço por diferirem, e ainda hoje desafiam ser rotuladas, catalogadas, estigmatizadas. Curiosamente, aparece na escuta dos depoimentos o apelido íntimo “Bruxa”, usado por alguns membros da família de Miúcha para se referir a ela afetivamente como a “tia bruxa”. Mulheres produtoras de deslocamentos do feminino são vistas como exóticas e diferentes, o que revela um terreno entre a curiosidade e o estranhamento. Na semântica da palavra estrangeiro está a origem da palavra estranho. Assim, as sociedades produzem e cultivam os seus estranhos de estimação.

A mulher, no meio musical, vem sendo essa graça estranha, estrangeira, de fora, que feminilizaria os ambientes da boemia. Para animar o rolé da música, abre-se a cena para a mulher, seu corpo, seu riso, sua voz, ora graciosa, ora transgressiva. Mesmo presentes nas rodas musicais e com seus nomes homenageados em letras de canções célebres da Bossa Nova, é importante localizar esse entre-lugar transitado por elas. Problematizar esses inter- não-ditos para a mulher passa, então, por penetrar o velado, os segredos, as entranhas, as coxias para enxergar as mulheres. Por isso, o íntimo é tão revelador. Aristóteles (384-322 a.C.) disse: “A arte imita a vida!”. Oscar Wilde, em 1891, no ensaio Intenção desafiou essa

143 máxima aristotélica e afirmou: “É a vida que imita arte!”. Essa frase de Wilde denuncia que vivemos em um mundo de representações e performatividades. A arte e a cultura, ao manter a invisibilidade, ou visibilidade secundária dos femininos, com seus plurais e diferenças, contribuíram consubstancialmente para naturalizar, reiterar e, também, criar o ciclo de castas por gênero, às vezes de forma mais sutil, outras mais explícitas.

Caminhos objetivos possíveis passam pelo fortalecimento de redes de apoio às mulheres, e, como parte delas, partem de políticas públicas específicas para a consubstancialidade do outro em questão: mulher-mãe-artista-latina. Essa desconstrução depende, sobretudo, da revisão do papel do masculino no espaço comum da casa, no casamento e na paternidade. Na integração de ações individuais e coletivas, com papel de destaque para a Escola, fundamental para o êxito social da mulher no espaço público. A Escola deve ser um espaço comum, sem distinção de origem social, racial ou de gênero. Uma Escola oportunizada em horário e proximidade para todas as famílias.

O desejo autônomo, do léxico autogerir a si e a seu corpo, é atravessado pela autonomia objetiva, pela articulação de políticas públicas de busca da equanimidade, como, por exemplo, incentivos fiscais para empresas que empreguem mulheres e mães. No caso dos artistas, seria justo considerar no Brasil a possibilidade de um “auxílio-criação”, que existe em alguns países como a França. Na França se chama “intermittent du spectacle” 114 e refere-se a um valor mensal pago pelo tempo que não se está trabalhando publicamente. Esse auxílio é direcionado a artistas e técnicos, entendendo a arte como um fazer cíclico, que exige tempo necessário à gestação de novas autorias. O contrário disso é o desperdício de talentos e o mal-estar contínuo de homens e especialmente mulheres-mães e mulheres não mães, algumas por se sentirem profissionalmente pressionadas pela não escolha da maternidade.

Opções como de creches e escolas públicas próximas a casa e/ou ao trabalho das mulheres, em regime de horários compatíveis com as variadas demandas profissionais do fazer ______

114 – Ver mais : MENGER, Pierre-Michel, Intermitents du spectacle : sociologie do travail flexible, CESPRA, 2011. Nesse livro, o autor analisa os efeitos dessa medida na França entre os anos de 2003 a 2011.

144 artístico e mesmo de qualquer função laboral que a mulher venha a ocupar. A ideia de creche, no período da noite, pode soar como um desatino contra o bem-estar das crianças. Sugiro, portanto, o estranhamento do estranhamento. Sem políticas públicas, muitas dessas mulheres não têm onde deixar seus filhos e seguem entregues à própria sorte. O importante é oportunizar escolhas para as mulheres. Afinal, o fato de alternativas como essas não serem sequer consideradas no Brasil, representa e vem representando ao longo dos tempos, o anulamento automático da mulher-artista-mãe, por interditos na carreira ou por interditos do não desejar. Mas, além da ausência de políticas afirmativas contemplando arte e maternidade, ainda existe a ser superado o preconceito arraigado no imaginário brasileiro, na medida em que se reproduz uma violência abissal contra a mulher-artista muitas vezes vista como “má” mãe.

Ao se deslocar, ao deixar escapar sua singularidade do padrão pré-estabelecido, a mulher quebra esse acordo tácito herdado ao nascer. Miúcha deixou escapar alguns de seus não ditos e chegou a me ligar depois das entrevistas. Esse momento aconteceu, em especial, nas conversas sobre vida doméstica e a maternidade, que a levaram a concluir que esses Acontecimentos marcaram seu casamento e como a sua vida profissional foi secundarizada nesse período. Ao dividir esses sentimentos, ela os reviveu. Esse mal-estar fica evidente quando perguntada por que não teve mais filhos, quando responde atravessando a pergunta: “- Mas como?!”

Uma sociedade não pode ir bem se sua metade sofre de privação do devir sujeito. Para as mulheres artistas, o desafio é grande e continua sendo superar a construção do espaço público como algo destinado ao masculino, o que para o feminino foi forjado como algo estranho, como um “grande-outro”. Miúcha, enquanto sujeitA central deste estudo, pôde fazer certas escolhas de se deslocar, não sem dores e tropeços, como acompanhamos. Mas me parece que tantas outras mulheres ficam emaranhadas em casamentos, aos quais desejam romper e não conseguem sair, ao se sentirem sem estrutura financeira, familiar ou emocional. Quantas mulheres são ou foram artistas não realizadas, por medo da instabilidade da vida do palco e da estrada, e sem saber como conciliar esse devir com o cuidado com os filhos? Quantas ainda podem representar este ser restrito, interditado? Por quanto tempo ainda será preciso falar em de-si-hierarquizar as sociedades e os afetos?

145 A sociedade ocidental do século XX não inventou a sociedade falogocêntrica, mas sofisticou seus instrumentos de poder de povos sobre povos, brancos sobre negros, índios, não ocidentais, homens sobre mulheres e não binários. Desde a Grécia Antiga, nos tempos mais remotos, guerrear era o esporte que mobilizava de reis a filósofos. Parece-me possível afirmar que essa valoração do gosto, do que seria o belo, o nobre, o forte, o ser digno de aplauso, é uma tradução discursiva de uma sociedade forjadora de desejos. Embaralhar as subjetividades, desafiar hierarquias, apontar diferenças ensinadas, quebrar dualismos polares, como homem versus mulher, requer de cada um e coletivamente, um devir desconstrutivista.

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150 ANEXO

Elemento pós-textual

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