UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINA CENTRO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA

Karine Lima da Costa

CAMINHOS PARA A DESCOLONIZAÇÃO DOS MUSEUS: A QUESTÃO DA REPATRIAÇÃO DAS ANTIGUIDADES EGÍPCIAS

Florianópolis 2019

Karine Lima da Costa

Caminhos para a descolonização dos museus: A questão da repatriação das antiguidades egípcias

Tese submetida ao Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Santa Catarina para a obtenção do título de Doutora em História. Orientadora: Prof.ª Dra.ª Maria de Fátima Fontes Piazza Coorientadora: Prof.ª Dra.ª Margaret Marchiori Bakos

Florianópolis 2019

Karine Lima da Costa

Caminhos para a descolonização dos museus: a questão da repatriação das antiguidades egípcias

O presente trabalho em nível de doutorado foi avaliado e aprovado por banca examinadora composta pelos seguintes membros:

Profa. Dra. Letícia Borges Nedel Universidade Federal de Santa Catarina

Profa. Dra. Thainá Castro Costa Figueiredo Lopes Universidade Federal de Santa Catarina

Prof. Dr. Gregory da Silva Balthazar Universidade Tiradentes

Prof. Dr. Moacir Elias Santos Uniandrade

Certificamos que esta é a versão original e final do trabalho de conclusão que foi julgado adequado para obtenção do título de doutora em História pelo Programa de Pós- Graduação em História. ______Prof. Dr. Lucas De Melo Reis Bueno Coordenador do Programa

______Profa. Dra. Maria de Fátima Fontes Piazza Orientadora

Florianópolis, 2019.

Para Susana e Fabiano, com amor.

AGRADECIMENTOS

“Quando o mundo se torna ‘sombrio’ por causa das opiniões contraditórias e ambivalentes, a estética – a ficção, a arte, a poesia, a teoria, a metáfora – vem iluminar a nossa difícil situação cultural e política”. (BHABHA, 1998).

Em primeiro lugar, gostaria de agradecer a minha mãe, Susana, e ao meu amor, Fabiano, não só por estarem ao meu lado no momento de realizar a mudança para Florianópolis em 2015, mas por permanecerem ao longo da vida. Obrigada por tanto! Eu AMO MUITO vocês! Aos meus familiares e amigos de Porto Alegre, por se fazerem tão próximos nesses últimos 4 anos, entendendo a minha distância e o meu afastamento, especialmente no último semestre. À minha tia Janete; aos meus dois afilhados Leonardo´s; à Amanda Eltz; à Ana Amonra; à Fernanda Coelho; à Jacqueline Cardoso; à Kimberly Terrany, pelas trocas e conversas empolgantes sobre os debates da repatriação; à Sibelle Barbosa; a minha best, Vanessa Lima; e à Ysis Freitas. A amizade de vocês faz toda diferença! Aos amigos que eu tive o prazer de conhecer na “Ilha da Magia”, especialmente o Bruno Araújo; a Cecília Ewbank (e sua querida família); a Silvia de Freitas; e a Talita Medeiros. Obrigada pelas cervejas, pelas caipiras, pelos vinhos, pelas pizzas, pelos quitutes vegetarianos, pela virada do ano, pelo amanhecer na praia, pelas conversas e pelas risadas. Obrigada também pela companhia e hospedagem no Campeche, na Lagoa, em Londrina e no Rio de Janeiro. Obs.: vocês ainda me devem um luau na Parainha, hehe. Ao professor Elison Paim e os meus colegas da Educação/UFSC, especialmente o Vavá, pelos dois semestres de intensas discussões e imersões na teoria de Walter Benjamin, foi um ano de muito aprendizado e conhecimento sobre esse autor, que agora me é muito estimado. Agradeço também às professoras e aos colegas do Labharte, pelas reuniões e trocas proveitosas, particularmente à professora Maria Bernardete Ramos Flores. Ao Gregory Balthazar, por anos de amizade e descobertas acadêmicas. Obrigada pelo período em que dividimos o mesmo teto e pelo acesso a sua biblioteca especializada em Michel Foucault. Saibas que eu admiro demais a tua competência intelectual e fico muito orgulhosa de ver onde tu chegaste. Ao Moacir Elias Santos, obrigada por me encher de esperança a cada encontro; pelo brilho nos olhos, entusiasmo e amor a tudo que se relaciona ao Egito. Grata pelas dicas (acadêmicas e turísticas), pelas trocas, pelas considerações e, acima de tudo, pelo trabalho lindo que tu realizas em Curitiba, facilitando a aproximação dos brasileiros com o Egito antigo. À Leticia Nedel, agradeço pela oportunidade de adquirir tanto conhecimento ao longo das disciplinas em que fui sua aluna, bem como na disciplina de estágio docência. Obrigada pelas indicações de sites, pelas recomendações na minha banca de qualificação, pelas sugestões de leitura e por nos brindar com tanta erudição. À Thainá Castro, pela alegria e diversão garantidas a cada encontro; e pelas vezes em que eu pude te ouvir falar tão apaixonadamente sobre a Museologia, seja em sala de aula ou em participações de bancas. À minha orientadora, Fátima Piazza, pela simpatia, alegria e sabedoria. Obrigada por abraçar a “causa” da repatriação, por me enviar notícias diárias sobre esse tema, por ter conhecido o comigo e por te encantares com o Museu Egípcio de Turim. Amei o nosso encontro e parceria ao longo desses últimos 5 anos! À minha coorientadora Margaret Bakos, pelos longos anos de estudos sobre o Egito; pela imersão nas obras de Edward Said e de Homi Bhabha; e por ter deixado a “marca” da Egiptomania no Brasil. À CAPES, pela concessão da bolsa de estudos integral que possibilitou a realização da minha pesquisa. À UFSC, que se tornou uma terceira casa e simplificou a minha adaptação em outra cidade, tornando a vida acadêmica do doutorado muito mais leve. Assim que saiu o resultado final da minha aprovação e “caiu a ficha” sobre o meu novo endereço, eu não conseguia entender o motivo da vida estar me “mandando embora” de Porto Alegre. Após conhecer cada um de vocês acima citados e de poder dividir tudo com a minha família e os meus amigos, hoje eu compreendo.

Obrigada, Floripa!

“Champollion, Richard Lepsius, Auguste Mariette, Gaston-Camille-Charles Maspero, Adolf Erman, Flinders Petrie, Howard Carter, James Breasted e George Reisner desfilam heroicamente pelo palco. Egípcios cintilam nas sombras como confiantes capatazes, servos leais, trabalhadores, ladrões de tumbas, traficantes de antiguidades, funcionários obstrucionistas e nacionalistas ignorantes. Justaposições não-convencionais – Champollion e Rifaa al-Tahtawi, E.W. Lane e al-Tahtawi, Maspero e Ahmad Kamal, Max Herz e Ali Bahgat – são usados neste livro para desafiar tais narrativas. A questão não é subestimar as realizações ocidentais ou exagerar as semelhanças entre egípcios e europeus, mas apontar as desigualdades de poder, desafiar suposições que ‘nunca os dois se encontrarão’ e mostrar que as histórias disciplinares deveriam ser mais do que monólogos ocidentais no silêncio egípcio”.

(REID, 2002).

RESUMO

A presente pesquisa intenciona a apresentação do panorama geral sobre as questões relacionadas ao patrimônio cultural do Egito, desde o final do século XVIII, momento da ocupação francesa, e no decorrer do século XIX, com a ocupação britânica. A atuação desses impérios no Egito foi essencial para o contexto de dispersão de muitas de suas antiguidades para os museus estrangeiros, especialmente os europeus. Com o intuito de verificar a constituição dos acervos museológicos e a formação das coleções de antiguidades egípcias, serão destacados os históricos do Museu Britânico, em Londres, na Inglaterra; do Museu do Louvre, em Paris, na França; e do Museu Egípcio de Turim, na Itália – o primeiro museu especializado na cultura egípcia antiga do mundo (fora do Egito). Esses museus possuem em suas coleções exemplares das antiguidades egípcias que atualmente estão sendo reclamadas pelo Egito para serem repatriadas. Com o objetivo de verificar a viabilidade desses retornos, serão analisados os discursos que envolvem a questão da repatriação dos bens culturais nos museus, englobando os seus principais conceitos, instrumentos jurídicos e percorrendo casos nacionais e estrangeiros, já solucionados ou não. Também serão apontados caminhos que podem auxiliar os países e as instituições nesse debate.

Palavras-chave: Egito. Repatriação. Museus.

ABSTRACT

This research intends to present an overview of the issues related to Egypt’s cultural heritage, since the late 18th century, the moment of the French occupation, and during the 19th century, with the British occupation. The performance of these empires in Egypt was essential to the context of the dispersal of many of their antiquities to foreign museums, especially European ones. In order to verify the constitution of the museum collections and the formation of Egyptian antiquities collections, will be highlighted the history of the British Museum in London, England; the Louvre Museum in Paris, France; and the Egyptian Museum of Turin, Italy - the world’s first museum specializing in ancient Egyptian culture (outside Egypt). These museums have in their collections exemplary Egyptian antiquities that are currently being claimed by Egypt to be repatriated. In order to verify the viability of these returns, will be analyzed the discourses that involve the question of the repatriation of cultural heritage in museums, encompassing its main concepts, legal instruments and going through national and foreign cases, already solved or not. We will also point out ways that can help countries and institutions in this debate.

Keywords: Egypt. Repatriation. Museums.

LISTA DE FIGURAS

Figura 1 – Integrantes da Comissão de Ciência e Artes no Instituto Egípcio ...... 38 Figura 2 - Boneco com trajes de um soldado inglês pendurado pelo pescoço ...... 50 Figura 3 - “Cruz copta” ...... 56 Figura 4 – Belzoni e a “pirâmide humana” ...... 60 Figura 5 – Registro de Belzoni no interior da pirâmide de Quéfren ...... 62 Figura 6 - Inscrições feitas por Belzoni (acima de Salt), em 1816 ...... 63 Figura 7 - Gravação de Drovetti em Abu Simbel, 1816 ...... 64 Figura 8 - Tabela quantitativa das missões arqueológicas estrangeiras no Egito ...... 71 Figura 9 – Sala de trajes e tipos do Egito ...... 95 Figura 10 – Templo Egípcio na Exposição Universal de Paris, 1867 ...... 96 Figura 11- Interior do templo egípcio ...... 97 Figura 12 – Galeria de esculturas egípcias ...... 107 Figura 13 - Litografia de Vivant Denon ...... 112 Figura 14- Gravura de 1863 após a organização da sala egípcia por Champollion ...... 115 Figura 15- Mensa Isiaca, Museo Egizio ...... 119 Figura 16- Sala sobre a origem da coleção do MET ...... 121 Figura 17- Estátua de Ramsés II ...... 125 Figura 18- Detalhe da inscrição na estátua de Totmés III ...... 126 Figura 19 – Busto de em exibição no Neues Museum ...... 133 Figura 20- Caricatura de Zahi Hawass como Tutankhamon ...... 144 Figura 21 - Capa do catálogo da coleção “Zahi Hawass” ...... 145 Figura 22- Modelo pousando com as roupas da linha “Zahi Hawass” ...... 146 Figura 23- Modelo em frente a um sarcófago e e sentado no trono do rei Tutankhamon .....147 Figura 24- Logo do Centro de Egiptologia Zahi Hawass ...... 157 Figura 25- Sede do novo Museu Egípcio da Ordem Rosacruz ...... 159 Figura 26- Réplica do trono real de Tutankhamon no novo museu de Curitiba ...... 160 Figura 27- Zahi Hawass em meio a Times Square ...... 162 Figura 28- Principais legislações sobre as antiguidades ...... 176 Figura 29- Apelo de Zahi Hawass em seu site oficial ...... 178 Figura 30- Zahi Hawass em frente à Pedra de Rosetta ...... 182 Figura 31- Estátua egípcia em meio aos escombros causados pela guerra ...... 195

Figura 32- Estátua do deus dos rios Illissos e placa no Museu Britânico ...... 199 Figura 33- Cariátides no Museu da Acrópole ...... 203 Figura 34 - Sessão de manipulação de objetos no Museu Britânico ...... 208 Figura 35 – Visitantes no Museu d´Orsay (França) e Neues (Berlim), 2017 ...... 210 Figura 36 - Projeção do Grande Museu Egípcio, no Cairo ...... 218 LISTA DE QUADROS

Quadro 1 – Wish List do Egito ...... 22 Quadro 2 - Novo percurso expográfico do MET ...... 122

LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS

CCBB Centro Cultural Banco do Brasil CRAN Conselho Representativo das Associações Negras da França DIVUM Declaração da Importância e Valor dos Museus Universais EAO Egyptian Antiquities Organization ECHO Organização do Patrimônio Cultural Egípcio GEM Grande Museu Egípcio ICOM Conselho Internacional de Museus ICOMOS Conselho Internacional de Monumentos e Sítio IFAO Instituto Francês de Arqueologia Oriental IPHAN Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional KMT A Modern Journal of MAI Missão Arqueológica Italiana MET Museu Egípcio de Turim MHN Museu Histórico Nacional MAS Ministry of State for Antiquities NMEC Museu Nacional da Civilização Egípcia NSPA Lei Nacional de Propriedade Roubada ONU Organizações das Nações Unidas SCA Conselho Supremo de Antiguidades SIM Sociedade dos Irmãos Muçulmanos UNESCO Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura USP Universidade de São Paulo WAFD Delegação Egípcia

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ...... 15 1 CONTROLE POLÍTICO E CULTURAL DO EGITO POR MEIO DE PRÁTICAS IMPERIALISTAS ...... 32 2 DELINEAMENTOS DO PODER COLONIAL: A CONSTITUIÇÃO DOS ACERVOS DE ANTIGUIDADES EGÍPCIAS NOS PRIMEIROS MUSEUS EUROPEUS ...... 81 3 ZAHI HAWASS: ENTRE O CARISMA E O EGO ...... 135 4 A QUEM PERTENCE O PASSADO? DEBATES SOBRE A REPATRIAÇÃO DO PATRIMÔNIO CULTURAL ...... 164 CONCLUSÃO ...... 220 REFERÊNCIAS ...... 225

APÊNDICE A – Cronologia histórica do Egito antigo ...... 245

APÊNDICE B - Lista de diretores do Serviço de Antiguidades ...... 246

ANEXO A - Lei n. 117 Egypt ...... 248 ANEXO B - Wish List Egypt ...... 266

ANEXO C - DIVUM ...... 269 ANEXO D - Red List Egypt ...... 270 ANEXO E - Formulário para pedidos de restituição ou devolução ...... 282

15

INTRODUÇÃO POR QUE O EGITO?

“[...] Estrangeiros governaram o Egito, mas o Egito sempre se livrou de seus governantes estrangeiros. Que o Egito sempre se recupera é agora uma norma histórica. O Egito, como qualquer um pode julgar, permanecerá para sempre o Egito”. (ADAM, 1904).

“Não basta agir, pensar e criar para produzir patrimônio. É também necessário transmiti-lo. É sobretudo preciso que o herdeiro o aceite”. (LENIAUD, 1998).

E por que não!? A famosa frase atribuída ao filósofo chinês Confúcio, “escolha um trabalho que você ame e não terás que trabalhar um único dia em sua vida”, sintetiza essa jornada até aqui. Foram anos de estudos dedicados à compreensão do fascínio que o Egito antigo causa nas pessoas, inclusive em mim. Embora esse fascínio, muitas vezes, apareça disfarçado pelo “gosto egiptofilíaco1”, ele camufla – ou simplesmente escancara – outros desejos e intenções acerca do usufruto da cultura egípcia antiga, sobretudo no tocante à cultura material, marcada em sua gênese por diversos conflitos. Considerado um “lugar-comum”, onde todos parecem ter o direito de reivindicar algum tipo de “posse”, especialmente material, esperamos que a partir do estudo de caso específico do Egito, possamos contribuir para o avanço dos estudos históricos e museológicos sobre o debate acerca do patrimônio cultural. Patrimônio esse que é motivo de seleção e disputas, muitas vezes invisíveis ao público apreciador, mas que fazem toda a diferença ao serem inseridas em um debate mais amplo, como propriedade e exposição, por exemplo. Com efeito, propomos trazer à luz alguns desses conflitos que estão por trás das narrativas apresentadas pelos museus através da biografia de seus objetos (KOPYTOFF, 2008), especialmente no que tange à atual discussão sobre repatriação ou restituição de antiguidades promovida por alguns países, como o próprio Egito.

1 Além da Egiptologia, que se refere ao estudo científico do Egito, existem outros termos correlatos: a Egiptofilia, caracterizada pela posse e o gosto de coisas relacionadas ao Egito antigo; e a Egiptomania, que se apropria de elementos da cultura egípcia antiga, no entanto, lhe atribui novos significados (HUMBERT, 1994). No Brasil, a historiadora e egiptóloga Margaret Marchiori Bakos produziu uma extensa pesquisa sobre as representações do Egito antigo no país, que pode ser consultada através de artigos ou na obra Egiptomania: o Egito no Brasil, publicada em 2004. 16

Ao nos voltarmos para o imaginário referente ao nosso estudo de caso, o Egito, é habitual que venha à nossa mente duas temporalidades justapostas: o antigo Egito dos faraós, com suas riquezas monumentais e um grande legado; e o Egito moderno ou contemporâneo, que remete a um lugar repleto de conflitos políticos e religiosos e não muito seguro para os turistas ocidentais – o que não se confirma. Situar geograficamente o país no continente africano, então, ainda suscita algum estranhamento. Esse imaginário que assegura tais generalizações é efeito de uma longa tradição de viajantes que iam atrás de informações e conhecimento acerca daquela região tão peculiar. A tradição de peregrinações e viagens remonta à própria Antiguidade, com os povos de regiões vizinhas, como “[...] os habitantes das costas da Palestina e da Síria” (VERCOUTTER, 2002, p. 19), além dos gregos e dos romanos; perpassando pela época medieval, com destaque aos lugares sagrados mencionados na Bíblia; pelo Renascimento europeu, no qual se iniciou à prática do colecionismo; e culminou com a incursão dos franceses e britânicos a partir do final do século XVIII. O seu reconhecimento deve-se, também, pela importância do rio Nilo e a sua relação com o Mediterrâneo, o que entrelaça a história do Egito tanto ao continente africano quanto às regiões mediterrâneas “[...] e, portanto, está inseparavelmente ligado à história da Europa e do Oriente Próximo” (WESSELING, 1998, p. 46). Além das viagens científicas é preciso observar que ao longo de sua história o Egito presenciou uma série de invasões e períodos de ocupação, a começar pelos assírios em 671 a.C., pelos persas em 525 a.C., pelos macedônios em 332 a.C., pelos romanos em 30 a.C., pelos árabes em 639, pelos turcos entre 1517 e 1867 (com um curto período de dominação francesa) e pelos britânicos a partir de 1882, que Said (2007) pontuou como um dos projetos geopolíticos mais importantes após a expedição de Napoleão. Até mesmo a independência do país que foi reconhecida em 1922, se deu em parte, pois os britânicos continuaram a exercer a ocupação militar do território. Aparentemente, é como se a população egípcia nunca tivesse gozado de total independência e liberdade – o que não significa a aceitação passiva sem rompantes de resistência, como veremos. Ao longo dos estudos desenvolvidos nas áreas de História e Museologia, as nossas investigações estão centradas a partir da perspectiva da crítica pós-colonial2, um “[...] produto da resistência ao colonialismo e ao imperialismo” (YOUNG, 2016, p. 15, tradução

2 No presente trabalho, compreendemos o conceito de pós-colonial não no sentido de continuidade, mas de transformação do presente, tal como proposto por Homi K. Bhabha (1998). 17 nossa)3. Seus princípios teóricos desenvolveram-se por meio dos estudos culturais e literários na década de 1960, e posteriormente foram propagados em outras áreas do conhecimento, como a História, a Antropologia, a Filosofia, entre outras. Entre os principais teóricos dessa corrente destacamos Aimé Césaire; Albert Memmi; Edward Said; Franz Fanon; Homi Bhabha; e Stuart Hall. Trazendo à luz outras concepções e narrativas possíveis, essa perspectiva “[...] resiste à busca de formas holísticas de explicação social. Ela força um reconhecimento das fronteiras culturais e políticas mais complexas que existem no vértice dessas esferas políticas frequentemente opostas” (BHABHA, 1998, p. 241-242). Na esperança de suplantar formas hegemônicas de análise de outros povos, esses escritores procuraram interpretar os seus próprios processos históricos. A partir da década de 1960, observamos a emergência de grupos ideológicos e políticos que reivindicavam mudanças nos padrões e comportamentos sociais, os chamados movimentos da contracultura. Originária dos Estados Unidos, a contracultura foi um movimento social e cultural (majoritariamente jovem) de contestação contra os comportamentos “padrões” impostos pela sociedade e disseminados pelos meios de comunicação da época. Nesse mesmo período, alguns países latino-americanos enfrentavam duros governos ditatoriais, com a imposição de práticas de censura e de violência. Durante o movimento estudantil de maio de 1968, um grupo de profissionais questionou os museus de Paris, por considerá-los instituições burguesas. Os estudantes de Paris chegaram a cogitar a dispersão das coleções para fora dos museus, utilizando a expressão “La Jaconde au métro” (A Mona Lisa ao metrô). Nos Estados Unidos, artistas rejeitavam a arte e os museus. Essa conjuntura possibilitou a autocrítica e a reavaliação de conceitos, objetivos e valores interpelados pelos museus, na busca pela adequação às transformações que ocorriam em diferentes sociedades e que não deveriam deixar de ser contempladas em suas ações. Com efeito, foi possível a emergência da chamada Nova Museologia. Essa nova concepção museológica compreende a Museologia Social (ou Sociomuseologia), a Ecomuseologia, os ecomuseus, os museus comunitários e demais inovações no campo museal4. Às vezes apontada como oposta à “velha Museologia”, ela não está restrita à total ruptura ou o afastamento das práticas museológicas clássicas ou tradicionais: “por exemplo, os curadores

3 O autor enfatizou a diferença entre os termos “colonial” e “imperial”, destacando que ambos são utilizados, muitas vezes, como sinônimos: “tanto o colonialismo como o imperialismo envolviam formas de subjugação de um povo por outro” (YOUNG, 2016, p. 15, tradução nossa). No entanto, o colonialismo deve ser analisado, sobretudo, como uma prática, ao passo que o imperialismo pode ser considerado um conceito (ou mesmo diferentes conceitos). 4 Os eventos que levaram à criação da Nova Museologia, bem como a sua definição variam de acordo com cada autor. Indicamos consultar os trabalhos de André Desvallées (1992); Peter Van Mensch (1992); e François Mairesse (2002). 18 podem pesquisar o que os artefatos nos dizem sobre as condições sociais ou relações sociais, em vez da pesquisa sobre cultura material tradicional” (DAVIS, 2011, p. 62). Trata-se, portanto, de uma adequação e/ou adaptação de novas perspectivas museológicas pertinentes às mudanças contemporâneas. O enfoque na coleta e na preservação dos objetos, a apresentação e a sua disposição no interior do museu, a “passividade” do público em apenas observar o acervo em exposição, sem maiores interações, entre outras características, eram as principais críticas direcionadas aos museus clássicos, que por muito tempo não se interrogavam sobre essas questões. Com isso, a principal temática evocada pela Nova Museologia recaiu sobre a função social dos museus, ou seja, aquela que ultrapassa a preocupação com a coleta e a preservação dos objetos – sem que essas atividades sejam menosprezadas. E como a Museologia e os museus são feitos por sujeitos, a maior transformação oferecida pela Museologia Social foi a prerrogativa de que todos os sujeitos fazem parte da cultura material e imaterial que está representada nos museus. O fortalecimento do sentimento de comunidade foi a base primordial para as novas práticas museológicas: “a característica essencial da nova museologia, como originalmente concebida, era que os museus deveriam atender às necessidades presentes e futuras de suas comunidades” (DAVIS, 2011, p. 65, tradução nossa). No decorrer do trabalho, recorremos à utilização da base teórica museológica francesa, devido a sua importância no desenvolvimento da própria Museologia brasileira. No entanto, atualmente existem outras correntes teóricas no interior do pensamento museológico que operam diferentes conceitos, das quais podemos citar a Museologia Crítica, voltada para a análise de outros tipos de instituições culturais, “[...] como museus e centros de arte contemporânea” (LORENTE, 2006, p. 27); e a Museologia Decolonial, que objetiva “[...] instrumentalizar o fazer e o pensar do campo da museologia social com vistas a transformação das estruturas sociais em perspectiva decolonizadora, insurgente e transgressora da prática museal e museológica hegemônica” (PEREIRA, 2018, p. 19). De acordo com a premissa pós-colonial de crítica e desconstrução de narrativas que foram naturalizadas ao longo do tempo, nas quais muitas ainda são empregadas na manutenção de determinados discursos, elaboramos o presente estudo sobre os pedidos de repatriação das antiguidades egípcias aos museus europeus, partindo do princípio de que essas instituições, as coleções e os patrimônio culturais são “espaços institucionais e discursivos” (GONÇALVES, 2007, p. 15). 19

Tradicionalmente, os museus configuram-se na junção entre o poder e a memória, uma vez que a etimologia da palavra se refere ao antigo templo dedicado às nove musas5, filhas de Zeus, o deus da autoridade e do poder, e de Mnemosine, a deusa da memória. Logo, ao analisarmos a sua emergência, conseguimos distinguir o enfoque de cada instituição na exaltação do poder da memória ou o apelo à memória do poder: “reconhecer que existem relações entre o poder e a memória implica em politizar as lembranças e os esquecimentos” (CHAGAS, 2009, p. 44). Na obra Discurso sobre o Colonialismo, publicada pela primeira vez em 1978, o poeta Aimé Césaire (2010, p. 15) afirmou que a civilização europeia ocidental era “[...] incapaz de resolver os dois principais problemas que sua existência originou: o proletariado e o problema colonial”. Neste viés, a problemática da repatriação – entendida como um efeito do processo de descolonização (GAY, 2013), evidenciada a partir da segunda metade do século XX –, indica dois caminhos importantes a seguir: o primeiro, a iniciativa em mobilizar os principais agentes envolvidos nessa discussão; e o segundo, que corrobora com a afirmação de Césaire, de que o legado do colonialismo ainda é um problema, mesmo em tempos de descolonização6. A atualidade dessa questão recai primordialmente nas iniciativas de reivindicação histórica de outros povos, que no enfrentamento às narrativas frequentemente impostas buscam a viabilidade de novas formas de protagonismo: “[...] o problema de toda memória oficial é o de sua credibilidade, de sua aceitação e também de sua organização” (POLLAK, 1989, p. 7). Conceitualmente, segundo o dicionário online Oxford7, o substantivo “repatriação” (repatriation) significa o “retorno de alguém ao seu próprio país” ou o “envio de dinheiro ao seu próprio país”. Já o termo “restituição” (restitution) pode significar “a restauração de algo perdido ou roubado” ou “recompensa por danos ou perdas. No âmbito da Museologia, o conceito mais próximo de repatriação ou restituição dos acervos é o de “desmusealização”,

5 As nove musas da mitologia grega são: Calíope (canção heroica, poesia épica); Clio (história); Erato (amor, canções nupciais); Euterpe (harmonia, música); Melpomene (tragédia); Polímnia (hinos sagrados); Tália (comédia); Terpsícore (dança); Urânia (astronomia). (BERENS, 2009). 6 Na atualidade, há uma diferenciação entre os termos “descolonialidade” e “decolonialidade”, como apontado pela intelectual Catherine Walsh (2013, p. 25): “eliminar o ‘s’ é a minha escolha. Não para promover um anglicismo. Pelo contrário, pretende fazer uma distinção no significado castelhano de ‘des’ e o que pode ser entendido como um simples desarme, desfazer ou reverter do colonial. Ou seja, para se deslocar de tempos coloniais até um não colonial [...]. Com este jogo linguístico, intento destacar que não existe um estado nulo da colonialidade, mas posturas, posicionamentos, horizontes e projetos de resistir, transgredir, intervir, in-surgir, criar e influenciar. O decolonial denota, então, um caminho de luta contínuo no qual se pode identificar, visibilizar e incentivar ‘lugares’ de exterioridade e construções alter-(n)ativas”. Nesta esteira conceitual, os termos colonialismo e pós-colonialismo também possuem diferenciações e críticas, como as empreendidas pelas autoras Ella Shohat e Anne McClintock (como se o “pós” indicasse uma espécie de “superação”). Para maiores considerações, ver o capítulo “Quando foi o pós-colonial? In: HALL, Stuart. Da diáspora: identidades e mediações culturais. Belo Horizonte: UFMG, 2003. 7 Disponível em: https://en.oxforddictionaries.com/ Acesso em: 03 mar. 2017. 20 utilizado para se referir “[...] aos casos mais simples de devolução de peças a seus contextos originais (embora tais contextos possam ser também museológicos)”8 (MENESES, 1993, p. 214). Como iremos nos deter particularmente ao caso das antiguidades egípcias, optamos por empregar o termo “repatriação” para tratarmos de lugares distintos, como os pedidos de devolução do Egito para outros países. Já o termo “restituição” será aplicado quando as antiguidades percorrerem o mesmo território ou então como uma medida compensatória, no caso da impossibilidade de resolução da repatriação. No Egito, a questão da repatriação das antiguidades entrou em evidência a partir da atuação do arqueólogo e egiptólogo Zahi Hawass, ao assumir o cargo de secretário geral do antigo Conselho Supremo de Antiguidades (SCA – Supreme Council of Antiquities) do país em 2002, atual Ministério de Estado das Antiguidades (MSA – Ministry of State for Antiquities), função que ocupou até 2011. Este período marca os esforços empreendidos por Hawass na campanha de retorno das antiguidades ao Egito, em colaboração com órgãos internacionais como a Unesco, o ICOM, a INTERPOL, o FBI e a Scotland Yard (polícia metropolitana de Londres), além do apoio de cientistas e instituições museológicas. Durante muitos anos, a posição de Zahi Hawass como “porta-voz” oficial no cenário internacional sobre as descobertas arqueológicas no Egito, somada a sua iniciativa pela repatriação viabilizaram a ampliação do debate acerca deste tema. Em abril de 2010, a cidade do Cairo sediou uma conferência sobre o assunto promovida pelo SCA e denominada Cooperação Internacional para a Proteção e a Repatriação do Patrimônio Cultural, na qual participaram vinte e dois países9, especialmente os que possuíam interesse pela devolução de objetos históricos. Representantes do Serviço de Imigração e Alfândega dos Estados Unidos compareceram ao evento, com exceção de países como a Alemanha, a França e a Inglaterra – coincidentemente nações portadoras de antiguidades que estão sendo reclamadas. Zahi Hawass destacou os saques nos sítios arqueológicos e o roubo dos objetos como os principais problemas para a dispersão das antiguidades do Egito. Como soluções, ele pontuou o gerenciamento dos sítios e das coleções; o retorno dos objetos roubados; e a cooperação entre os países. Por fim, foi elaborado um documento publicado em junho de

8 Ao contrário, a “musealização” engloba “[...] uma série de ações sobre os objetos, quais sejam: aquisição, pesquisa, conservação, documentação e comunicação” (CURY, 2005, p. 26), ou seja, abrange todos os processos pelos quais passam os objetos ao adentrarem uma coleção. 9 Áustria, Bolívia, Chile, China, Colômbia, Chipre, Equador, Grécia, Guatemala, Índia, Itália, Líbia, México, Nigéria, Peru, Polônia, Rússia, Coréia do Sul, Espanha, Sri Lanka, Síria e Iêmen. 21

201010, pontuando alguns princípios e recomendações para guiar as ações dos países envolvidos. Assim, foram definidos quatro princípios gerais:

- A ideia de pertencimento do patrimônio cultural ao seu respectivo país de origem; - Esse pertencimento não deve se expirar ou atender a qualquer prazo de prescrição; - A autenticidade e o valor único do patrimônio cultural estão associados ao seu contexto cultural original; - Os países de origem devem compartilhar com os demais os esforços para coibir o comércio ilícito do patrimônio cultural.

Os países representados tiveram a oportunidade de divulgar os objetos que gostariam que retornassem ao seu território através de uma Wish List (Lista de desejos), além de debateram sobre as medidas que poderiam ser tomadas. A Lista de Desejos apresentada pelo Egito manifestou o interesse no retorno das seguintes antiguidades:

10 Os principais documentos associados ao evento estavam disponíveis para consulta no antigo site do SCA, que atualmente não está mais em funcionamento: http://www.sca-egypt.org/eng/RST_ICHC.htm Acesso em: 14 abr. 2014. Todas as traduções foram nossas. 22

Quadro 1: Wish List do Egito.

NOME MUSEU IMAGEM

Nefertiti Neues Museum

Pedra de Rosetta British Museum

Hemiunu Roemer-Pelizaeus Museum

Ankhhaf Museum of Fine Arts

Ramsés II Museo Egizio

Zodíaco de Dendera Musée du Louvre

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Nas recomendações (divididas em internas e externas), o Egito sugeriu a ênfase na conscientização pública em relação ao seu patrimônio cultural; melhorias na segurança dos sítios arqueológicos e dos museus; modernização dos locais de guarda e exposição do patrimônio cultural; aprimoramento na documentação referente a esse patrimônio; reforço na legislação nacional; e fomento à cooperação internacional, inclusive no que tange à aplicação da lei, tanto nacional quanto internacional. Embora o evento tenha encerrado com o ensejo de tornar o encontro anual para dar acompanhamento aos seus progressos, não houve continuidade no Egito, provavelmente devido às mudanças ocasionadas pela eclosão da “Primavera Árabe” no ano seguinte. No artigo Repatriação de objetos históricos pode fragmentar acervos de grandes museus e empobrecer o mundo, do historiador inglês Peter Burke (2010), algumas dúvidas foram levantadas: esses objetos saqueados serão devolvidos? E mais: deveriam ser devolvidos? Essas indagações são importantes no que tange aos pedidos de repatriação, mas o que nos chamou a atenção na matéria foi o tom afirmativo (pois não há nenhum tipo de pontuação que indique o contrário) do título, embora o autor reconheça – e afirma sentir-se constrangido – a forma como alguns objetos foram parar nos maiores museus europeus: “a palavra ‘adquiridos’, empregada com frequência nos círculos dos museus, é uma espécie de jargão resumido que alude a doações, aquisições e objetos pilhados – não pelo museu, é claro, mas por alguns marchands e doadores” (BURKE, 2010) 11. Para o historiador, se tudo fosse devolvido “o mundo sairia empobrecido”, mas quem perderia com esse “empobrecimento”? Peter Burke concorda com a devolução de objetos que estejam relacionados com a identidade nacional dos povos, no entanto, podemos questionar: quem atribui essa identidade? O artigo termina com a seguinte alegação: “como mostra o número de visitantes estrangeiros que passam por esses museus, esses acervos viraram parte de uma cultura global” (BURKE, 2010). Aqui é interessante ressaltarmos a menção à identidade e à universalidade, pois essas ideias serão centrais na argumentação para a devolução das antiguidades, como veremos no decorrer do trabalho. Firmemente contrário aos pedidos de repatriação, destacamos a argumentação do historiador da arte americano e presidente da instituição cultural J. Paul Getty Trust, James Cuno, que em 2008 publicou a obra Who Owns Antiquity? Museums and the Battle Over Our Ancient Heritage. Nela, o autor defendeu a permanência de objetos e obras de arte nos seus atuais museus e se posicionou firmemente contra os pedidos de repatriação, com uma

11 Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/fsp/mais/fs2802201010.htm Acesso em: 14 abr. 2014. 24 aclamação aos museus enciclopédicos dedicados à exposição de objetos provenientes de diferentes regiões do mundo: “os museus enciclopédicos dirigem a atenção para culturas distantes, pedindo aos visitantes que respeitem os valores dos outros e busquem ligações entre as culturas” (CUNO, 2008, p. 19, tradução nossa)12. Diferentemente do argumento nacionalista enfatizado pelos países reclamantes, o autor se concentrou na característica internacionalista dos museus enciclopédicos, por não se limitarem apenas à história de seu território. Em suma, as alegações de James Cuno nos auxiliam a pensar na indagação feita por Peter Burke: “terão os países modernos o direito de propriedade sobre algo que foi produzido no passado em um território que hoje é deles?” (BURKE, 2010). Além dos casos de repatriação que lidam com objetos e monumentos, outros exemplos ainda mais delicados são os que envolvem restos mortais ou até mesmo múmias inteiras retiradas de seus antigos sepultamentos para serem exibidas nos museus. É necessário frisar que cada situação é diferente no que se refere à repatriação, incluindo a legislação. Como em todos os museus, os objetos podem ser oriundos de doação, legado, transferência, compra e mesmo saque, o que não significa a instituição estar a par desse processo. Muitos museus antigos que acumularam coleções advindas de diferentes lugares não sabem ao certo a procedência de muitos objetos, devido à falta de documentação e informações referentes. Aqui, priorizaremos esse tipo de ocorrência, uma vez que muitos objetos atualmente reclamados pelo Egito foram retirados do seu território em circunstâncias variadas. A problemática da repatriação e/ou restituição vem recebendo a atenção de pesquisadores das áreas de Arqueologia, Direito, História, História da Arte, Museologia, entre outras. Com amplas discussões no âmbito internacional, aos poucos o tema está ganhando espaço nos estudos brasileiros sobre o patrimônio cultural, devido à diversidade de acervos e de instituições culturais voltadas à sua preservação. No entanto, ainda são poucos os resultados efetivos que vislumbramos. A partir dessas prerrogativas, objetivamos examinar alguns discursos que pleiteiam a questão da repatriação – promovidos essencialmente por intelectuais responsáveis pelos pedidos oficiais e pelos representantes de instituições museológicas que atualmente detêm a posse das antiguidades13 –, a fim de analisar a

12 Um dos documentos analisados na tese será a “Declaração sobre a importância dos Museus Universais”, publicada em 2002. Com a assinatura de alguns diretores de museus europeus e norte-americanos, o documento sublinhou o compromisso das instituições museais com os povos de todas as nações e enfatizou o seu posicionamento contra os pedidos de repatriação. 13 Os sujeitos envolvidos nos discursos sobre repatriação e/ou restituição variam de acordo com determinadas especificidades. Aqui, destacamos o papel dos intelectuais, pois são eles os responsáveis por essa manifestação no Egito, bem como os museus aos quais estão direcionados os seus pedidos. 25 sustentação de suas argumentações e, se possível, verificar a viabilidade do retorno dos bens culturais reclamados:

Compreender esse discurso, composto de som e silêncio, de cheio e vazio, de presença e ausência, de lembrança e esquecimento, implica a operação não apenas com o enunciado da fala e suas lacunas, mas também a compreensão daquilo que faz falar, de quem fala e do lugar de onde se fala (CHAGAS, 2009, p. 43).

O aporte teórico-metodológico do presente trabalho está ancorado, principalmente, nos pressupostos de pensadores como o intelectual palestino Edward Said, com destaque nos debates referentes ao Orientalismo e ao Imperialismo; do crítico literário indiano Homi Bhabha e as suas reflexões na obra O local da Cultura; e do filósofo francês Michel Foucault, no que concerne às suas considerações sobre análise e formação de discursos e relações de poder. Acreditamos que as proposições desses autores serão basilares para a compreensão do que pretendemos realizar com este estudo: mais do que uma tomada de posição sobre os pedidos de repatriação – como é buscado pela maioria dos estudiosos sobre o assunto –, ensejamos identificar e analisar a constituição desses discursos e os seus efeitos nos debates sobre restituição do patrimônio cultural. Desde a publicação da obra Orientalismo: o Oriente como invenção do Ocidente, em 1978, muitas críticas foram dirigidas à abordagem de Said (o próprio autor ampliou a sua discussão anos depois, com a publicação de Cultura e Imperialismo). No entanto, a sua análise é considerada pioneira no desenvolvimento dos estudos pós-coloniais, especialmente em termos teórico-metodológicos. Para o teórico inglês Robert Young (2016, p. 383, tradução nossa), uma das maiores contribuições de Said para a investigação pós-colonial foi “[...] a introdução da ideia de que o colonialismo operava não apenas como uma forma de regime militar, mas também simultaneamente como um discurso de dominação”. Dentre as críticas direcionados à Said, ressaltamos a maneira generalizada com que o autor abordou o Oriente, sem considerar totalmente as suas especificidades culturais, econômicas e geográficas – aliás, essa crítica é reiteradamente apontada como uma característica problemática dos estudos pós-coloniais (AHMAD, 2002; BHABHA, 1998; YOUNG, 2016). Segundo Young (2016, p. 18, tradução nossa), Said não distinguiu o colonialismo do imperialismo e tampouco abriu espaço para analisar “[...] o impacto da resistência anticolonial”, o que foi corrigido por Said posteriormente:

Usarei o termo “imperialismo” para designar a prática, a teoria e as atitudes de um centro metropolitano dominante governando um território distante; o “colonialismo”, quase sempre uma consequência do imperialismo, é a implantação de colônias em territórios distantes (SAID, 2011, p. 42). 26

Homi Bhabha (1998) apontou problemas na utilização dos conceitos de poder e discurso de Foucault por Said, ancorados neste último em uma relação binária, contrária aos postulados de Foucault. James Clifford já havia feito ressalvas em relação à adoção da metodologia foucaultiana por Said, por sua abordagem genealógica do Orientalismo e pela divergência entre os dois intelectuais sobre a crença no humanismo, no entanto, Clifford (1980, p. 212, tradução nossa) reconheceu que “[...] o Orientalismo é uma das primeiras tentativas de usar Foucault sistematicamente em uma análise cultural ampliada”. Verifica-se que há uma coerência entre os autores sobre a característica polêmica do Orientalismo, que foi revisitado pelo próprio Edward Said (1985) em outras ocasiões, no intuito de formular argumentos às críticas que ele julgou pertinentes: “[...] e ele também escreve a partir de uma convicção de que a erudição ‘pura’ não existe. O conhecimento, na sua opinião, está inextricavelmente ligado ao poder” (CLIFFORD, 1980, p. 205, tradução nossa). Nesse sentido, recorrer à teoria de Foucault sobre o poder14 – desenvolvida por ele ao longo de suas análises sobre a loucura, a sexualidade, as prisões, etc. –, nos permite elucidar o funcionamento das relações de poder exercidas no interior do corpo social através de um conjunto de estratégias ou táticas específicas empregadas pelos “operadores de dominação” (FOUCAULT, 1999). Se assimilarmos que o poder é uma prática15 social que permeia todas as esferas da sociedade – já que, segundo Foucault, ele está em todos os lugares –, importa- nos também evidenciar as formas de resistência implicadas nessa relação (FOUCAULT, 1999). Tomando como ponto de partida a afirmação defendida por Edward Said – e ancorada na ideia de discurso de Michel Foucault16 – de que o Orientalismo deve ser entendido como um “[...] modo de discurso baseado em instituições, vocabulário, erudição, imagens, doutrinas, burocracias e estilos coloniais” (SAID, 2007, p. 28 – grifo nosso), nos valemos de seu pensamento para demonstrar de que forma as incessantes ocupações estrangeiras do Egito

14 Entendemos o “poder” tal como postulado por Michel Foucault: “[...] primeiro, como a multiplicidade de correlações de forças imanentes ao domínio onde se exercem e constitutivas de sua organização; o jogo que, através de lutas e afrontamentos incessantes a transforma, reforça, inverte; os apoios que tais correlações de força encontram umas nas outras, formando cadeias ou sistemas ou ao contrário, as defasagens e contradições que as isolam entre si; enfim, as estratégias em que se originam e cujo esboço geral ou cristalização institucional toma corpo nos aparelhos estatais, na formulação da lei, nas hegemonias sociais” (FOUCAULT, 1988, p. 102-103). 15 “Na verdade, tudo é prática em Foucault. E tudo está imerso em relações de poder e saber, que se implicam mutuamente, ou seja, enunciados e visibilidades, textos e instituições, falar e ver constituem práticas sociais por definição permanentemente presas, amarradas às relações de poder, que as supõem e as atualizam” (FISCHER, 2001, p. 200). 16 Através da análise de discursos políticos, textos literários e relatos de viagem, Edward Said evidenciou a produção de uma “tradição” relacionada ao Oriente, equivalente ao que Michel Foucault chamou de “discurso” (SAID, 2007). 27 foram sistematicamente incorporadas pelo discurso orientalista, ao passo que transformaram o próprio Egito em um tipo singular de discurso:

Existe, afinal, uma profunda diferença entre o desejo de compreender por razões de coexistência e de alargamento de horizontes, e o desejo de conhecimento por razões de controle e dominação externa” (SAID, 2007, p. 15).

Embora a análise de Said tenha se concentrado no que ele denominou de experiência franco-britânica (e posteriormente americana) no Oriente, as suas observações nos ajudam a pensar em outros momentos vivenciados pelos egípcios ao longo de suas ocupações. Reconhecer o Orientalismo como um “fato cultural e político”, nos termos de Said (2007, p. 41), nos auxilia na compreensão dos discursos relacionados ao patrimônio cultural do Egito, que corrobora com a ideia de Foucault de perceber o discurso como uma prática:

Não mais tratar os discursos como conjuntos de signos (elementos significantes que remetem a conteúdos ou a representações), mas como práticas que formam sistematicamente os objetos de que falam. Certamente os discursos são feitos de signos; mas o que fazem é mais que utilizar esses signos para designar coisas. É esse mais que os torna irredutíveis à língua e ao ato da fala. É esse “mais” que é preciso fazer aparecer e que é preciso descrever (FOUCAULT, 1986, p. 55).

No que concerne à metodologia de análise empregada às fontes por Said em Orientalismo, as referências e os textos sobre o Oriente são pensados no âmbito de “representações”, ou seja, quase nunca são, de forma alguma, a realidade dos fatos: “o Oriente é o palco sobre o qual todo o Leste está confinado. Neste palco aparecerão figuras cujo papel é representar o conjunto maior do qual elas emanam” (SAID, 2007, p. 102). Neste caso, o discurso sobre o Egito pode ser utilizado novamente como um exemplo, uma vez que as imagens e os enunciados produzidos acerca de sua cultura estão impregnados por estereótipos, considerados por Homi Bhabha (1998, p. 117) como “[...] uma forma presa, fixa, de representação”, constantemente repetidas. Essas formas fixas de representação, por sua vez, podem ser vislumbradas no caso dos museus, a princípio, lugares de mostra e troca de conhecimentos e experimentações diversas: “espaço que suscita sonhos”, para Walter Benjamin (2005); “casa da incoerência”, para Paul Valéry (2008). Talvez os frequentadores nem imaginem que uma de suas principais funções seja a seleção. Seleção que está presente em todos os processos que envolvem as instituições museológicas, como a apresentação de uma determinada narrativa criteriosamente escolhida em detrimento de outra (s), na produção de “rituais de verdade” (FOUCAULT, 1975). Essas narrativas descritas através da exposição dos objetos; das legendas e dos textos que os acompanham; dos equipamentos audiovisuais disponíveis; entre outros recursos, 28 necessitam ser repensadas e problematizadas, nos tirando da zona de conforto do que nos é prontamente oferecido e nos fazendo questionar: “suponho que em toda sociedade a produção do discurso é ao mesmo tempo controlada, selecionada, organizada e redistribuída por certo número de procedimentos que têm por função conjurar seus poderes e perigos” (FOUCAULT, 2013, p. 8). Pensar os museus como campos de batalhas entre diferentes narrativas, como aludiu o museólogo Mário Chagas, nos fornece indícios para desvelar esses poderes e perigos dos quais suspeitou Foucault. Nessa esteira de pensamento, o filósofo alemão Walter Benjamin refletiu que o passado não é algo inerte que ocorreu há tempos e que não pode ser invocado ou mesmo modificado, pelo contrário, ele demonstrou que ainda podemos recorrer a este mesmo passado para construir novas perspectivas acerca do presente, visando a sua transformação. Com isso, a partir do exposto, acreditamos que seja inviável ocuparmo-nos da temática da repatriação isolando-a de outras questões tão complexas quanto, principalmente se considerarmos as especificidades dos exemplos que elencamos. Nesse sentido, na tentativa de abarcar (ou ao menos nos aproximar) de todas as demandas que surgem desse assunto, dividimos a tese em quatro capítulos, cada um acentuando eventos importantes para a análise da repatriação. A história da cultura egípcia possui uma longa duração, marcada por conflitos internos e externos, impossíveis de serem esgotados em apenas um capítulo. Reconhecendo que “[...] o papel da materialidade e a apropriação do patrimônio arqueológico e dos ‘tesouros’ de outras civilizações têm uma história muito mais longa do que a do colonialismo europeu moderno” (HASSAN, 2003, p. 22-23, tradução nossa), elegemos discorrer sobre importantes aspectos ocorridos no território norte- africano, no decorrer do “longo” século XIX, na esperança de compreensão das atuais reivindicações do patrimônio cultural egípcio. Assim, o Capítulo 1 – Controle político e cultural do Egito por meio de práticas imperialistas visa apresentar um panorama histórico das ocupações francesa e britânica no Egito a partir do final do século XVIII, pois naquele período ambos desenvolveram papeis fundamentais na constituição de discursos sobre o Egito – sobretudo o discurso científico e cultural –, assim como na dispersão de suas antiguidades para o mundo ocidental. Em consonância com a análise do historiador Donald Reid, na obra Whose Pharaohs (2002), discutiremos temas como o imperialismo, o nacionalismo, a identidade egípcia e a sua relação com o surgimento da Arqueologia e a Egiptologia, pois a sua historicidade é de extrema relevância para a compreensão da gênese dos primeiros museus europeus e a formação de suas coleções de antiguidades egípcias. Percorrer esse histórico nos permitirá 29 demonstrar de que forma as relações de poder foram exercidas entre franceses, britânicos e egípcios, evidenciando as suas redes de apoio, tensões e formas de resistência. O Capítulo 2 – Delineamentos do poder colonial: a constituição dos acervos de antiguidades egípcias nos primeiros museus europeus pretende demonstrar como a prática do colecionamento que se desenvolvia na Europa, aliada ao gosto reservado especificamente ao estilo e às características orientais, compôs o cenário para o desenvolvimento de coleções privadas que posteriormente originaram os primeiros museus europeus, com destaque para a formação das coleções de antiguidades egípcias. A exemplo do Capítulo 1, que buscará uma contextualização histórica sobre formas específicas de controle do passado egípcio, o segundo capítulo incluirá uma contextualização museológica dessa questão, na tentativa de responder algumas indagações, em especial: como foram constituídas as coleções de antiguidades egípcias, especialmente as que compõem a Wish List dos pedidos de repatriação? O sentido moderno de museu, tal como conhecemos atualmente, se efetivou a partir da institucionalização das antigas coleções privadas e, posteriormente, da sua abertura ao público: “ainda hoje, nos grandes museus europeus, pode-se ver a trajetória do colonialismo europeu do século XIX” (SUANO, 1986, p. 40). Além dos conceitos de coleção, nos valendo das reflexões do intelectual alemão Andreas Huyssen (1994, p. 37), neste capítulo levaremos em consideração a “[...] crítica ideológica sobre os museus como agentes legitimadores da modernização capitalista e como vitrines triunfais do saque na expansão colonizadora”, através da explanação sobre as feiras e as Exposições Universais, que durante o século XIX, juntamente com os museus, foram responsáveis pela reprodução de concepções limitadas sobre outras culturas. Como recorte espacial, selecionamos três museus europeus para demonstrar a constituição das coleções de antiguidades egípcias: o Museu Britânico, em Londres, Inglaterra (1753); o Museu do Louvre, em Paris, França (1793); e o Museu Egípcio de Turim, do Piemonte (1824) – atual Itália. Além de serem os primeiros museus do continente europeu, eles figuram entre as instituições museológicas que possuem antiguidades egípcias na lista para a repatriação. O Capítulo 3 – Zahi Hawass: entre o carisma e o ego, procurará mostrar a trajetória do arqueólogo egípcio em sua campanha pelo retorno das antiguidades ao país através de acontecimentos biográficos de sua vida (BOURDIEU, 1996) e de sua inserção na categoria social de intelectual. Indicaremos de que maneira Zahi Hawass utiliza certos “dispositivos”, definidos por Foucault (1979, p. 244) como “[...] um conjunto decididamente heterogêneo que engloba discursos, instituições, organizações arquitetônicas, decisões regulamentares, leis, medidas administrativas, enunciados científicos, proposições filosóficas, morais, 30 filantrópicas”, para legitimar os seus pedidos de repatriação frente às instituições museológicas. Esses dispositivos produzem um “discurso verdadeiro”, que carrega “[...] efeitos específicos de poder” (FOUCAULT, 1986, p. 29), como veremos. Partindo da indagação de Foucault (2013, p. 8): “mas, o que há, enfim, de tão perigoso no fato de as pessoas falarem e de seus discursos proliferarem indefinidamente? Onde, afinal, está o perigo?”, o Capítulo 4 – A quem pertence o passado? Debates sobre a repatriação do patrimônio cultural, concentrará a sua atenção na apresentação do panorama internacional sobre a repatriação do patrimônio cultural, percorrendo outros casos, inclusive, os já solucionados. Serão apresentados e analisados os discursos envolvidos na questão da repatriação das antiguidades egípcias, com base nos instrumentos que lhes dão suporte. Dentre eles, destacamos alguns regulamentos como as Cartas Patrimoniais (documentos originários de encontros e reuniões que fornecem aos países recomendações referentes às demandas que envolvem o seu patrimônio cultural); a legislação egípcia; especialmente a Lei n. 117 de 1983, alterada pela Lei n. 3 de 2010 (comumente a mais recorrida); e outras medidas e normativas disponibilizadas por órgãos internacionais de cooperação para o patrimônio cultural. A análise dos discursos proferidos justifica-se na medida em que eles ainda são tomados como base de sustentação para o debate sobre a repatriação e, em muitos casos, se encerram aí. No entanto, também serão examinadas outras ações que buscam suplantar esses discursos, delineando o museu enquanto “[...] um espaço e um campo para reflexão sobre a temporalidade, a subjetividade, a identidade e a alteridade” (HUYSSEN, 1994, p. 38). Ao percorrermos esse itinerário, sublinhamos que a repatriação também pode ser pensada enquanto um discurso viabilizado em tempos de mudanças globais, nas quais vislumbra-se a configuração de um novo contexto cultural, que abre caminho para “[...] narrativas novas ou alternativas, que se tornam entidades institucionalizadas ou discursivamente estáveis” (SAID, 2011, p. 102). Entretanto, esse discurso não está alheio às relações de poder, o que causa uma série de tensões que devem ser constantemente problematizadas. Dessa forma, apresentaremos diferentes contextos que abordam alguns casos de repatriação e restituição, na esperança de que suas ações auxiliem nas discussões e nos debates sobre a propriedade do patrimônio cultural. Em síntese, esperamos que o presente estudo colabore para a ampliação das reflexões sobre os embates discursivos que permeiam o campo do patrimônio cultural e dos museus, uma vez que a originalidade do presente trabalho reside na insuficiência de estudos sobre 31 repatriação no Brasil. Embora este seja um debate que inicialmente se desenvolveu no âmbito internacional, consideramos pertinente pensar nos mais variados aspectos que ele engloba, pois segundo pesquisas realizadas pelo Instituto Brasileiro de Museus (IBRAM), o país possui mais de três mil instituições museológicas espalhadas por todas as regiões17, dentre as quais existem as que abrigam objetos de culturas estrangeiras em seus acervos. Nesse sentido, estas instituições não estão totalmente livres de tais reclamações e possivelmente precisarão de um suporte de profissionais capacitados para lidar com situações afins18.

17 Museus em Número (pesquisas realizadas através do Cadastro Nacional de Museus desde 2006). Disponível em: http://www.museus.gov.br/estudo-do-ibram-revela-que-brasil-ja-tem-mais-de-3-mil-museus/ Acesso em: 15 mar. 2017. 18 Iniciativa "semelhante" pode ser encontrada no âmbito dos arquivos, como o Projeto Resgate de Documentação Histórica Barão do Rio Branco, criado em 1995. Trata-se de uma parceria entre Brasil e Portugal que promove a disponibilização de documentos relacionados à história do Brasil que se encontram nos países europeus. Para maiores informações, ver: http://www.cmd.unb.br/resgate_index.php Acesso em: 15 mar. 2017. 32

CAPÍTULO I CONTROLE POLÍTICO E CULTURAL DO EGITO POR MEIO DE PRÁTICAS IMPERIALISTAS

Fi bilad Misr, khayruha li-ghayriha (Na terra do Egito, suas coisas boas pertencem a outros). Provérbio árabe.

“O Egito sempre foi um prêmio para um povo de mentalidade econômica”. (Lowell Ragatz, 1922).

“O imperialismo não é apenas uma pilhagem das riquezas do povo, mas uma agressão à sua dignidade e ao seu orgulho. Revoltar-se contra o imperialismo é o direito natural de todos os povos colonizados”. (Gamal Abdel Nasser).

Como exposto na Introdução, a questão da repatriação do patrimônio cultural está inserida em um contexto de reivindicação pós-colonial, ponderando que o “[...] foco real da crítica pós-colonial tem sido desconstruir não tanto o colonialismo, mas estruturas coloniais de dominação, tal como são reproduzidas pelos discursos do Estado-nação” (COLLA, 2003, p. 1051, tradução nossa). No caso do Egito, as principais antiguidades que estão sendo reclamadas deixaram o seu território original em períodos de ocupação estrangeira – o que não é incomum, uma vez que o Egito enfrentou invasões e ocupações de povos estrangeiros desde a Antiguidade19. Para que possamos vislumbrar como esses monumentos foram deslocados do norte do continente africano para outras regiões onde residem atualmente, é necessário conhecer a conjuntura que possibilitou a sua dispersão. Situado no nordeste do continente africano, composto pelo deserto e próximo aos mares Mediterrâneo e Vermelho, além de ser atravessado pelo rio Nilo, a posição geográfica do Egito foi crucial para o desenvolvimento de sua história. Partindo da afirmativa de que “o principal objeto de disputa no imperialismo é, evidentemente, a terra” (SAID, 2011, p. 11), o Egito se encaixa literalmente nessa assertiva: não somente nos períodos de ocupação francesa e britânica – facilitadas, também, pela distância geográfica entre o Egito20 e a capital do

19 Foram eles: os hicsos, os assírios, os persas, os macedônios, os romanos, os árabes, os turcos, os franceses e os ingleses. 20 Antes do Cairo, a capital do Egito sob o controle muçulmano era Fostate, incendiada no século XII. 33

Império Otomano, Istambul –, mas na época de exploração e busca por antiguidades e, consequentemente, no posterior desenvolvimento da Arqueologia:

Tudo na história humana tem suas raízes na terra, o que significa que devemos pensar sobre a habitação, mas significa também que as pessoas pensaram em ter mais territórios, e portanto precisaram fazer algo em relação aos habitantes nativos. Num nível muito básico, o imperialismo significa pensar, colonizar, controlar terras que não são nossas, que estão distantes, que são possuídas e habitadas por outros. Por inúmeras razões, elas atraem algumas pessoas e muitas vezes trazem uma miséria indescritível para outras (SAID, 2011, p. 39).

Na obra Postcolonialism: an historical introduction, o teórico inglês Robert Young centrou-se na análise da descolonização privilegiando o ponto de vista do colonizado, ao invés do colonizador. Assim como Young (2016, p. 10, tradução nossa), daremos ênfase na atuação dos impérios britânico e francês, “[...] não apenas porque foram os maiores da história recente, mas porque juntos eles incorporaram o que poderia ser chamado de dois modelos ocidentais dominantes de império”, além de terem participação efetiva no decurso da história moderna do Egito21. A história dos impérios britânico e francês e os desdobramentos políticos de suas inserções na África já foi amplamente estudada, portanto, aqui, nos interessa focar nas relações de poder estabelecidas no norte do continente africano e as suas implicações:

[...] para os cidadãos da Inglaterra e França oitocentistas, o império era um grande tema de atenção cultural sem que houvesse qualquer constrangimento. As Índias britânicas e o norte da África francês desempenharam um papel inestimável na imaginação, economia, vida política e trama social das sociedades britânica e francesa (SAID, 2011, p. 42).

Alguns historiadores afirmam que as pretensões francesas no Egito eram estritamente militares, no entanto, a organização prévia de uma Comissão Artística e Científica para acompanhar o exército na região demonstra o contrário. Após a exposição dos principais projetos políticos e culturais desses impérios no Egito, passaremos a uma breve análise da ascensão do nacionalismo árabe (al-qawmiyya al-'arabiyya). Compreendido como um fenômeno cultural, além de político (SMITH, 1997), um dos objetivos desse nacionalismo foi a dissociação da ocupação estrangeira, embora não fosse o único. Nesse sentido, a relação entre Imperialismo, Arqueologia e o posterior advento da Egiptologia será visível no presente capítulo, pois foram essas ligações que viabilizaram a organização dos primeiros museus europeus, baseados na aquisição de acervos provenientes de outras regiões, como veremos no segundo capítulo. Ancorados pela análise de Said em

21 Sublinhamos que o Imperialismo europeu do final do século XIX se diferencia de outras configurações imperiais anteriores, como o próprio Império Otomano, que não será discutido aqui. 34

Cultura e Imperialismo (2011), buscaremos observar onde as culturas representadas se encontram e se relacionam, para além de suas claras diferenciações. A ocupação francesa do Egito é frequentemente referenciada pela historiografia como a “redescoberta” do Egito, sugerindo uma posição inerte dos egípcios modernos frente ao processo histórico, como se após o fim do período faraônico a população estivesse “adormecida” ou parada no tempo, esperando uma espécie de “resgate”, propiciado, obviamente, pelos colonizadores europeus. Na tentativa de romper com essa narrativa, buscaremos evidenciar o exercício das relações de poder no sistema colonial através de embates, lutas e enfrentamentos que viabilizaram a produção de outras formas de resistir, logo, outras formas de poder.

1.1 OCUPAÇÃO FRANCESA DO EGITO (1798-1801)

A ação imperialista francesa no Egito esteve diretamente relacionada a interesses estratégico-políticos, mas também a interesses científicos, culturais e mesmo pessoais do então comandante do exército francês, Napoleão Bonaparte (posteriormente imperador Napoleão I), que desde jovem se interessava pela história do Egito, especialmente pelos feitos de Alexandre, o Grande. Embora reconheçamos que houve, de fato, uma intenção de “expedição” por parte dos franceses ao Egito no final do século XVIII, acreditamos que a ideia de “conquista estrangeira” não deve ser normalizada “[...] dentro da órbita cultural da existência europeia” (SAID, 2011, p. 77) e, nesse sentido, corroboramos com a historiografia crítica do Imperialismo que caracterizou a incursão francesa como uma ocupação:

As historiografias nacionalistas egípcias e árabes viram a ocupação como a primeira grande intrusão do imperialismo ocidental e celebraram heróis da resistência popular. Para outros, 1798 trouxe o primeiro ato de uma violação ocidental prolongada e intencional da autenticidade cultural do Egito islâmico (DYKSTRA, 1998, p. 115, tradução nossa).

O contexto político que viabilizou essa investida foi o conflito entre a França e a Grã- Bretanha pelo controle da Índia, já que os britânicos haviam perdido as suas colônias da América do Norte e a França perdera as suas colônias no Canadá, Acadia e Newfoundland na Guerra Franco-Indígena (1754-1763) e na Guerra dos Sete Anos (1756-1763): “o Egito era vital para ambos os países, vital para o governo britânico por razões de estratégia imperial, vital para os franceses por causa da tradição e do prestígio” (TAYLOR, 1954, p. 287, tradução nossa). Entretanto, o Egito possuía uma proximidade maior com a França, já que os interesses 35 britânicos na região “[...] estavam em Constantinopla e não no Cairo” (WESSELING, 1998, p. 40). Com o objetivo de prejudicar a Grã-Bretanha, em 1797, Bonaparte deu duas opções ao Diretório22, após constatar que um ataque por via marítima seria inviável, devido à precariedade da marinha francesa destinada à guerra. Entre as opções estavam “[...] atacar o Hanover ou conquistar o Egito, projeto desenvolvido por Talleyrand, ministro das Relações Exteriores” (TULARD, 1996, p. 78). Atacar a cidade de Hanover, na Alemanha, ficou fora de cogitação, pois os franceses não queriam confrontar os alemães (DUFRAISSE, 1988). Já a segunda opção – ocupar o Egito –, obteve maior apoio do Diretório e da opinião pública, pois o projeto visava não apenas bloquear uma das rotas econômicas dos britânicos para a Índia, mas facilitar uma possível conquista posterior dos franceses, visto que o Egito “[...] era uma possessão turca, e na época a Turquia não era aliada da Inglaterra nem estava em guerra com a França” (DUFRAISSE, 1988, p. 27), o que ocorreu no ano seguinte. Dessa forma, com a ocupação do istmo de Suez, a França conseguiria bloquear o caminho que levava a Inglaterra à Índia, uma de suas principais colônias: “Napoleão e o governo francês esperavam que tomar o Egito fosse o primeiro passo para fundar um grande império francês que abrangesse áreas generosas da África e da Ásia” (BURLEIGH, 2008, p. 7, tradução nossa). Além de porta de entrada da África e da Ásia, “[...] o vale do Nilo poderia fornecer cana-de-açúcar, linho, índigo, trigo e arroz” (BURLEIGH, 2008, p. 11, tradução nossa). Durante cerca de um mês, Bonaparte organizou um exército de trinta e cinco mil homens que foram divididos em duzentos navios, em uma viagem que durou quase dois meses (TULARD, 1996). O Diretório o encarregou de organizar estudos no país “[...] para melhorar a navegação do Nilo, restabelecer a antiga comunicação entre o rio e o mar Vermelho e recuperar a rede de estradas” (DUFRAISSE, 1988, p. 29). Antes do desembarque em , no começo de julho de 1798, Bonaparte comunicou aos seus soldados: “a pilhagem enriquece apenas um pequeno número de homens: nos desonra, destrói nossos recursos, torna-nos inimigos dos povos que é de nosso interesse ter por amigos” (NAPOLEÃO, 1798 apud LACROIX, 1953, p. 230). Também os aconselhou a tolerar a crença dos muçulmanos, como um trunfo contra os mamelucos23 que dominavam a

22 Período político francês dominado pela alta burguesia entre 1795 e 1799. 23 Essa declaração foi feita porque naquele momento o Egito era governado pelos Otomanos, que tinham como inimigos os mamelucos, “[...] senhores da guerra descendentes de escravos estrangeiros que começaram a governar o Egito em 1250 d.C.” (HASSAN, 2002, p. 214, tradução nossa). O governo dos mamelucos foi dividido em duas fases e durou até 1517, com a tomada do poder pelos Otomanos, que transformaram o Egito 36 região: “eu venho restituir os vossos direitos, punir os usurpadores, e que respeito, mais do que os mamelucos, Deus, seu profeta e o Corão” (LACROIX, 1953, p. 234), palavras proferidas em árabe. Com essa declaração, parte da população egípcia depositou na França uma esperança libertadora, que combinava a promessa de revolução contra os seus opressores e o respeito à fé islâmica:

Todos os egípcios devem agradecer a Deus pela destruição dos mamelucos, dizendo em voz alta: Que Deus preserve a glória do sultão otomano! Que Deus preserve a glória do exército francês! Que Deus amaldiçoe os mamelucos e conceda felicidade à nação egípcia (NAPOLEÃO, 1798 apud DYKSTRA, 1998, p. 119, tradução nossa).

Mesmo com a manifestação de “respeito à religião egípcia”, posteriormente Bonaparte tentou introduzir no país o “Code Napoleón” (Código Napoleão), o código civil francês em substituição à Sharia, em uma tentativa de “[...] europeização da lei” (MARSOT, 1999, p. 661, tradução nossa), demonstrando que o respeito em relação a outra religião no momento de sua chegada se aproximava mais de uma desculpa retórica, possivelmente na tentativa de evitar qualquer embate e resistência por parte do povo egípcio. Após atacarem e ocuparem Alexandria, os franceses se dirigiram à cidade do Cairo, onde travaram uma batalha (“Batalha das Pirâmides”) contra os mamelucos na região de Gizé, próxima às pirâmides, da qual saíram vitoriosos. No entanto, dez dias depois a frota francesa foi atacada pelos britânicos na costa mediterrânica do Egito, na baía de Abuqir (“Batalha do Nilo”), onde foi destruída. No mês seguinte, a Turquia declarou guerra contra a França: “nós perdemos o Egito!, ele gritou. Meus projetos e meus sonhos foram destruídos pela Inglaterra” (WEIGALL, 1915, p. 42, tradução nossa). De fato, “[...] a França nunca foi forte o suficiente para dominar, apesar de Napoleão” (CALHOUN, 2008, p. 41). Embora parte da literatura produzida na época “romantize” a passagem das tropas de Napoleão Bonaparte pelo Egito, especialmente em relação à equipe de sábios que o acompanharam, esse breve período teve efeitos devastadores para ambos os países (WEIGALL, 1915). Apesar da organização da comitiva, eles não imaginaram as dificuldades pelas quais passariam no Egito, uma região assolada pelo calor, pela miséria e pelas doenças, o que acarretou na morte de muitos soldados. O final da ocupação foi brutal para o exército, pois dentre os trinta e cinco mil homens que o acompanharam por terra, pouco mais de vinte

em uma província. Ainda assim, os mamelucos continuaram a ter influência em determinadas regiões do país, até a ocupação francesa em 1798 (MARSOT, 2007).

37 mil retornaram com vida para França, dos quais cerca de três mil estavam doentes ou contaminados. Entre os dezesseis mil marinheiros, nem dois mil chegaram a regressar (BURLEIGH, 2008). A equipe de sábios precisou ficar isolada em quarentena durante um mês, e após isso foram autorizados a publicarem o material que haviam coletado no Egito, o que iniciou em 1802. Militarmente, a ocupação francesa do Egito foi um fracasso, porém, obteve sucesso científico e cultural nos termos franceses, devido ao trabalho da “Commission des Sciences et Arts” (Comissão das Ciências e Artes)24, composta por mais de cento e cinquenta artistas e cientistas:

Astrônomos, matemáticos, naturalistas, físicos, médicos, químicos, engenheiros, botânicos e artistas – até poeta e musicólogo – trancaram suas carteiras, embalaram seus livros, despediram-se de amigos e familiares e empreenderam o que era, literalmente, para a maioria deles, uma viagem ao desconhecido (BURLEIGH, 2008, p. 8, tradução nossa).

24 Sobre os cientistas que acompanharam Bonaparte no Egito, ver a obra de Nina Burleigh, Mirage: Napoleon's Scientists and the Unveiling of Egypt, na qual a autora selecionou dez cientistas para analisar as suas participações durante a campanha e invasão. 38

Figura 1: Integrantes da Comissão de Ciência e Artes no Jardim do Instituto Egípcio, no Cairo.

Fonte: https://gallica.bnf.fr/blog/16052018/lexpedition-degypte-et-la-naissance-de-linstitut- degypte?mode=desktop25

Na imagem, observamos a chegada da Comissão no Egito e o que nos chama a atenção são os trajes usados por eles: “sobrecasaca de espesso tecido verde, calças ajustadas, chapéu de feltro [...]. Seus trajes são totalmente inadequados ao verão egípcio. Muitos deles sentem falta da França” (VERCOUTTER, 2002, p. 54). Boa parte das narrativas sobre a ocupação e as incursões do exército francês pelo Oriente enfatiza o despreparo dos franceses para lidar com questões relacionadas ao clima, como o calor e a falta de água, o que posteriormente foi atestado durante a invasão da Rússia, em 1812, onde eles encontraram severas dificuldades com frio extremo. Dentre os membros que compunham a Comissão destacamos o artista, diplomata e escritor francês Dominique-Vivant Denon, o mais velho entre os cientistas (com cinquenta anos), a quem Bonaparte nomeou anos mais tarde como o primeiro diretor do Museu do Louvre: “na verdade, ele acabou se tornando consultor de arte particular do imperador, catalogando e organizando para o novo museu nacional os trabalhos de arte pilhados das guerras em toda a Europa” (BURLEIGH, 2008, p. 249-250, tradução nossa). Ele ocupou o cargo até 1815, ano da queda de Napoleão, pressionado pelos monarquistas, mas “[...] deixou um pé de múmia e papiros que lhe pertenciam para a coleção do museu” (BURLEIGH, 2008,

25 Acesso em: 09 dez. 2019. 39 p. 250, tradução nossa). Denon concebeu a obra Le Voyage dans la Basse et la Haute Égypte pendant la campagne du Général Bonaparte, em 1802 e a famosa Description de l'Égypte, entre 1809 e 1828, ambas consideradas marcos do início dos estudos em Egiptologia. Os principais legados culturais de Bonaparte e de sua Comissão foram a criação do “Institut d’Égypte” (Instituto do Egito), em agosto de 1798, no Cairo. Semelhante ao “Institut de France” (Instituto da França), criado em Paris em outubro de 1795, do qual Napoleão era membro, essa instituição foi criada no Oriente para documentar e estudar a história egípcia através dos materiais recolhidos durante o período da ocupação/expedição. Seu primeiro presidente foi o matemático Gaspard Monge (membro da Comissão científica), sendo Bonaparte o vice-presidente (LACROIX, 1953). Inicialmente, o Instituto estava dividido em quatro seções: Matemática, Física, Literatura e Belas Artes, e Economia Política, com doze membros cada, porém, tinha a participação de outros civis e militares (BURLEIGH, 2008). Ao longo dos anos a nomenclatura do Instituto foi modificada (Sociedade Egípcia; e Instituto Egípcio, quando foi transferido para Alexandria em 1859). Durante os conflitos da chamada “Primavera Árabe”, em dezembro de 2011, o prédio que sediava o Instituto pegou fogo e boa parte do acervo de mais de duzentas mil obras foi perdido. Ele foi reaberto no ano seguinte. Durante o curto período em que os franceses permaneceram no Egito, a literatura do Império foi marcada pela publicação (em língua francesa) de dois jornais, entre os anos de 1798 e 1801: o Le Courier de l´Egypte (Correio do Egito) e o La Décade égyptienne (A década egípcia). O primeiro, direcionadas às tropas militares, divulgava notícias diárias do Egito e da França; e o segundo, para os civis, era um jornal literário e de economia política, com informações sobre o Instituto do Egito e artigos dos membros da Comissão científica (TULARD, 1996). Além da criação desse Instituto e da circulação dos dois jornais, os participantes da Comissão elaboraram a grandiosa obra Description de 1'Égypte ou Recueil des observations et des recherches qui ont été faites en Égypte pendant l'expédition de l'armée française26, composta por vinte e quatro volumes, publicada em série entre os anos de 1809 e 1828, com descrições, textos, desenhos, gravuras, pinturas e mapas dos lugares, da arquitetura e dos monumentos vistos pela comitiva de sábios (BURLEIGH, 2008). A organização da obra seguia os princípios difundidos pelos Iluminismo, dentre eles o Racionalismo, do qual Bonaparte era um adepto. Daí a ideia de reunir “todo o conhecimento humano” até então

26 “Descrição do Egito ou Compêndio de observações e pesquisas feitas no Egito durante a expedição do exército francês”. 40 adquirido sobre o Egito em uma só obra, embora a história moderna do Egito sob a presença estrangeira (árabe, muçulmana, otomana e francesa) não tenha sido enfatizada:

[...] a expedição militar de Napoleão ao Egito foi motivada pela vontade de tomar o Egito, ameaçar os ingleses e demonstrar o poderio francês; mas Napoleão e seus especialistas acadêmicos estavam lá também para mostrar o Egito à Europa, no sentido de exibir sua antiguidade, sua riqueza de associações, sua importância cultural e uma aura própria para um público europeu. Mas isso não se faria sem uma intenção estética, além de política (SAID, 2011, p. 197-198).

Foi isso que motivou a incursão dos artistas e cientistas franceses pelos sítios e monumentos antigos do Egito, que levou à compilação e posterior publicação da Description, uma obra puramente francesa sobre a história egípcia (antiga), na qual Said refutou a ideia de que as reproduções da obra seriam descrições, definindo-as apenas como atribuições:

[...] ao folhear a Description, sabemos que estamos olhando desenhos, diagramas, pinturas de sítios faraônicos empoeirados, decrépitos, abandonados, que parecem magníficos e ideais como se existissem apenas espectadores europeus, e não egípcios modernos (SAID, 2011, p. 198).

Como sugeriu Said (2011, p. 201), nas páginas da Description o Egito é representado como um teatro no qual os principais atores – os europeus – se sobressaem em relação aos egípcios: “o contexto europeu implícito nelas é um teatro de poder e conhecimento, enquanto seu contexto egípcio concreto no século XIX simplesmente desapareceu”. Todas essas iniciativas culturais – formação de Comissão científica, promoção de estudos, publicações, impressão de jornais, criação de institutos culturais e posteriormente museus – se encontram no cerne do planejamento e da ação de grandes impérios, e se inserem na caracterização dos recursos instrumentais disponíveis pelos Estados coloniais, possíveis, também, graças ao “capitalismo tipográfico”, segundo a análise do historiador Benedict Anderson (2008, p. 250):

[...] relatórios arqueológicos maciços, tecnicamente sofisticados, com dezenas de fotografias, registrando o processo de reconstrução de cada ruína; livros luxuosamente ilustrados para consumo público, inclusive estampas exemplares de todos os principais sítios reconstruídos dentro da colônia.

Com a publicação da Description, o interesse europeu e a busca pelas antiguidades egípcias se intensificou, pois aguçou a cobiça e a curiosidade pelos objetos da cultura material remanescentes da “época de ouro” do passado egípcio, repleto de monumentalidade e de múmias, tumbas, esculturas e objetos decorativos ou de uso cotidiano, como joias e demais 41 utensílios com motivos egípcios. Isso despertou uma sanha aventureira e de exploração por sítios arqueológicos e uma geração de colecionadores dedicados à arte do Egito antigo27. Em 1801, os franceses foram definitivamente derrotados pelas tropas britânicas e otomanas, chegando ao fim a ocupação napoleônica no Egito e promovendo os interesses da Grã-Bretanha. O documento que marcou o fim da ocupação francesa foi a Capitulação de Alexandria, oferecida como rendição no final de agosto pelo próprio general francês Abdullah Jacques-François Menou. O documento foi aceito após alterações propostas pelo general britânico John Hely-Hutchinson e pelo almirante Lord Keith. Entre as principais ordenações da Capitulação ficou estabelecido que os franceses deveriam abandonar o Egito no máximo em cinquenta dias; e os documentos e antiguidades recolhidas por eles foram designadas propriedade pública, o que facilitou a transferência da Pedra de Rosetta e de outras antiguidades capturadas pelos franceses para o Reino Unido, posteriormente destinadas ao Museu Britânico pelo rei Jorge III (CERAM, 1954). Para assegurar a retirada completa do exército de Napoleão Bonaparte, o embaixador britânico William Hamilton foi enviado ao Egito em 1801: “ele frustrou uma tentativa francesa de contrabandear a pedra para fora do Egito e depois fez um reconhecimento até o Nilo” (REID, 2002, p. 37, tradução nossa). Hamilton foi secretário de Lord Elgin – o responsável pela retirada dos mármores do Parthenon, na Grécia e do seu traslado para a Inglaterra anos depois. No ano de 1898, instituições egípcias e francesas organizaram algumas conferências e exposições em “comemoração” ao centenário da Expedição/Ocupação francesa no Egito: “[...] enquanto os participantes egípcios faziam as malas para Paris, surgiu um debate na imprensa egípcia: seria realmente apropriado que os egípcios ‘celebrem’ a expedição francesa?” (COLLA, 2003, p. 1044, tradução nossa). Enquanto uns achavam que aquele fato deveria ser comemorado, outros discordavam (especialmente os intelectuais egípcios), pois afirmavam que se tratava de um evento triste que celebrava a sua própria colonização, e não um momento festivo. A partir das diferentes visões apresentadas pela imprensa, o evento se transformou em um caloroso debate político em relação às ações estrangeiras no país.

27 Dentre tantos exemplos, indicamos que na segunda metade do século XIX emergiu na Europa dois escritores: Karl May (1842-1912), nascido no que atualmente é o território alemão; e Emilio Salgari (1862-1911), nascido em Verona, cujos livros de aventura e procura por tesouros influenciaram gerações de arqueólogos na busca por outras civilizações e sua cultura material, especialmente no continente americano e asiático. 42

1.2 OCUPAÇÃO BRITÂNICA DO EGITO (1882-1922) E ASCENSÃO DO NACIONALISMO ÁRABE

Considerado por Adam Smith (1776) como um projeto de império, o Imperialismo britânico foi analisado pelo historiador John Darwin (2009) como um fenômeno global (por sua extensão), que permaneceu inacabado e repleto de contradições. Sua estrutura sistêmica e flexível pode ser atestada nas diferentes colônias que acumulou, nas quais desenvolveu relações comerciais, políticas e culturais que eram moldadas de acordo com as necessidades específicas de cada colônia. Essas colônias podiam ser de governo, de assentamento, de ocupação (como foi o caso do Egito), de protetorado, de mandato, entre outras; formais e não formais. Esse fenômeno global começou a se intensificar a partir da década de 1840, quando a sua presença foi verificada em diversas regiões do mundo. O período de 1815 que se estendeu até o início do século XX, foi apontado como o “século imperial da Grã-Bretanha” (PORTER, 1999, p. 9, tradução nossa), especialmente pelas vitórias alcançadas nas guerras que foram travadas, sobretudo contra a França. No início do século XIX, a França (juntamente com a Rússia) era uma das maiores ameaças à Grã-Bretanha. Em relação à França, isso foi perceptível através de suas ações no Egito, como já vimos, mas também na Nova Zelândia, na Polinésia, no Sudão e em outras partes da África e da Ásia (PORTER, 1999). Os interesses britânicos no Egito alinhavam-se à permanência do controle do Canal de Suez e às rotas à Índia, somados à fragilidade dos impérios não europeus como o Otomano, o Persa e o Chinês, pois “[...] seus governantes eram considerados ‘ineficientes’, ‘corruptos’, muitas vezes ‘brutais’ e ‘indignos de confiança’”, porém, “’suscetíveis’ tanto para contrariar a reforma quanto para a cooperação diplomática em seu interesse próprio” (PORTER, 1999, p. 12, tradução nossa). Nesse contexto, a ocupação militar britânica do Egito iniciou em 1882, quando o território ainda era uma província do Império Otomano28:

A Grã-Bretanha abrigada no Egito ganhou não apenas vantagem local sobre a França e maior segurança para a rota do Canal de Suez para a Índia, mas acima de tudo uma alavanca importante na negociação com o governo otomano para conter a

28 O correto é se referir à província do Cairo (Misr) ao invés de Egito, já que “as províncias otomanas eram geralmente referidas pelo nome da cidade que as governava” (MITCHELL, 2002, p. 180, tradução nossa). No entanto, ao longo do século XIX, as menções ao Cairo foram modificadas, sendo identificado como cidade ou país.

43

expansão russa na Turquia e no leste do Mediterrâneo (PORTER, 1999, p. 12, tradução nossa).

A ideia de construção de um canal que facilitasse a navegação na região já era pensada desde a época dos faraós. No período da ocupação dos franceses, Napoleão acompanhou pessoalmente o local onde iriam se iniciar as obras, juntamente com membros da Comissão científica e do Instituto do Egito. Finalmente, no início do século XIX, Egito e França uniram esforços para a construção do Canal, que ligaria o mar Mediterrâneo (porto Said) ao mar Vermelho (cidade de Suez). Exatamente por esse motivo, a Grã-Bretanha foi contra o empreendimento, pois naquele período os seus navios eram os mais rápidos e ágeis para navegar até a Índia e outras regiões. Embora a Grã-Bretanha fosse oposta à obra durante anos, no final de 1858 foi criada a “Compagnie universelle du canal maritime de Suez” (Companhia Universal do Canal Marítimo de Suez), que inaugurou o canal oficialmente em novembro de 1869. A Companhia foi fundada pelo engenheiro francês Ferdinand de Lesseps, cônsul do Egito entre os anos de 1832 e 1838. Entre os presentes na cerimônia de inauguração estavam a imperatriz Eugenia, representando o seu marido, Napoleão III, que não pôde comparecer e o escritor português Eça de Queiroz. Durante as obras de construção do canal, cerca de cem mil egípcios morreram pelo grande esforço que precisavam fazer e também por contração de doenças: “a maioria dos egípcios considerava o canal ao mesmo tempo uma bênção e uma maldição” (DECHANCIE, 1988, p. 65). A partir de 1875, o Egito se viu obrigado a declarar falência por conta da dívida externa acumulada com as obras: “[...] os gastos feitos em nome da modernização do Egito estavam gerando um endividamento que em breve seria fatal, jogando o Egito nas mãos dos credores e levando setores inteiros da economia a serem tutelados” (FERRO, 1996, p. 95). Além disso, os egípcios reclamavam do tratamento inferior que recebiam em relação aos estrangeiros no país, sobretudo na ocupação de cargos oficiais do exército. O resultado foi um levante iniciado em 1881 e liderado por um oficial do exército egípcio chamado Ahmad Urabi, que originou o nome do conflito, Revolta Urabi29: “uma revolta militar liderada pelos únicos quatro coronéis egípcios nativos do exército; com seu slogan nacionalista de ‘Egito para os egípcios’ [...], foi amplamente apoiada entre grupos de elite, intelectuais e a população rural” (MARSOT, 1999, p. 653, tradução nossa). Os egípcios lutaram contra a ocupação

29 Para saber mais sobre essa revolta, ver: COLE, Juan R. I. Colonialism and revolution in the Middle East: social and cultural origins of Egypt’s Urabi movement. New Jersey: Princeton University Press, 1993. 44 estrangeira e contra o governo déspota e corrupto do quediva30 Tawfik, chamado pelos marxistas de “[...] lacaio do imperialismo europeu” (WESSELING, 1998, p. 58). Ahmad Urabi havia participado da fundação do Partido Nacional (Al-Hizb al-watani), fundado em 1890 (HASSAN, 2002). Na tentativa de conter a revolta, em agosto de 1882 os britânicos e suas tropas derrotaram os nacionalistas egípcios na chamada Batalha de Tell-el-Kebir, dando início à ocupação do Egito (MARSOT, 1999). Como consequência das dívidas acumuladas pelo país e da revolta, a sua parte como proprietário do Canal de Suez foi vendida aos britânicos, os que mais utilizaram o canal desde a sua abertura oficial: cerca de oitenta por cento dos navios eram de sua propriedade (TAYLOR, 1954). Com a ocupação, o Egito passou a se desenvolver politicamente. Houve a participação ativa de conselheiros britânicos em diferentes departamentos comandados por ministros egípcios. Militarmente, os oficiais britânicos tomaram o lugar do exército egípcio, que foi desfeito. A “falsa impressão” de que os egípcios ainda mantinham o controle e o governo de seu país foi chamada de Protetorado Velado: “o evidente bem-estar econômico do Egito foi a justificativa mais frequentemente dada para a continuada ocupação britânica do país” (MARSOT, 1999, p. 661, tradução nossa). Em suas primeiras declarações, a Grã-Bretanha utilizou o pretexto da ocupação (que deveria ser apenas temporária) como uma forma de “salvar” os egípcios do caos que os nacionalistas haviam causado: “na verdade, não houve acordo geral nem política claramente concebida” (MARSOT, 1999, p. 654, tradução nossa). O administrador colonial britânico Evelyn Baring (futuro Lord Cromer) procurou justificar a ocupação (e permanência) britânica no Egito por incapacidade dos próprios egípcios, alegando “[...] que não havia nacionalidade egípcia, já que a maior parte da riqueza do país estava em mãos estrangeiras, e que todos os nacionalistas pretendiam explorar seus compatriotas” (MARSOT, 1999, p. 661, tradução nossa). Contudo, mesmo após a crescente onda de nacionalismo espalhar-se pelo país, os ingleses continuaram afirmando a defesa de sua permanência no Egito, como observamos no discurso do primeiro ministro Arthur James Balfour, na Câmera dos Comuns, em 1910 – ao qual Edward Said (2007) caracterizou como didático e ao mesmo tempo moralista. Ao se referir aos egípcios como uma “grande raça”, ele afirmou que todos os países deveriam se

30 Título de vice-rei concedido aos soberanos do Egito entre 1867 e 1914. Posteriormente foram adotados títulos como sultão, rei e presidente. 45 considerar orientais e negou qualquer postura ou atitude de superioridade em relação a eles. No entanto, frisou que as nações ocidentais possuem uma distinção “natural” para o autogoverno, ao contrário dos habitantes do Leste (os “orientais”), que não têm vestígio algum de autogoverno: “esse é o fato. Não é uma questão de superioridade e inferioridade” (BALFOUR, 1910 apud SAID, 2007, p. 64). Dentre os argumentos utilizados por Balfour, Said identificou a relação entre conhecimento e poder, já que naquele momento os britânicos não se encontravam mais no controle econômico e militar do país, uma vez que os egípcios estavam os expulsando. Assim, o ministro salientou a grandeza do Egito, sobretudo baseado no conhecimento de sua história: “conhecemos melhor a civilização do Egito do que a civilização de qualquer outro país” (BALFOUR, 1910 apud SAID, 2007, p. 62). Esse conhecimento, na mentalidade de Balfour, justificava não só a ocupação britânica, como as antecessoras, já que os orientais seriam “incapazes de se autogovernar”. Logo, os britânicos estavam no Egito por causa dos próprios egípcios, para auxiliar com os problemas gerados por outros governos. Lord Cromer criticava o nacionalismo egípcio e desprezava o Islã e a Sharia, corroborando com o Código Napoleão: “isso resultou na ascensão de uma escola para juízes e uma escola de direito, principalmente ensinada em francês, já que o sistema legal era baseado no Código Napoleão” (MARSOT, 1999, p. 661, tradução nossa). Esse quadro contribuiu para a criação de novas instituições que ensinavam línguas estrangeiras, “[...] que serviam não apenas para educar uma nova elite, mas também para distanciar ou aliená-las de sua própria língua e cultura” (MARSOT, 1999, p. 662, tradução nossa). A introdução do estilo de vida ocidental pôde ser percebida em praticamente todas as esferas da elite, principalmente nas grandes cidades – seja na culinária, na moda, no comportamento, na arquitetura, etc. A própria educação dos egípcios passou a ser realizada na língua inglesa, excluindo os professores árabes (EL-DALY, 2005). Os ingleses não se preocupavam em incentivar a população egípcia a aprimorar os estudos sobre a sua história, talvez por medo de encorajar movimentos de ordem nacionalista (REID, 1985), p. 237), visto que “[...] o estudo do passado e do patrimônio cultural de um país tem uma relevância direta para as relações internacionais. Ele tem o poder de colonizar histórias locais e ideologicamente legitimar governos” (LANGER, 2017, p. 193, tradução nossa). As incursões franco-britânicas no Egito foram marcadas por embates violentos e outras formas de opressão, no entanto, os egípcios sempre resistiram. Em Cultura e Imperialismo, Edward Said sublinhou que além da resistência armada contra a imposição da política imperial, houve também uma resistência cultural, que no caso do Egito foi revelada 46 através da busca por mecanismos que reforçavam a identidade e a independência nacional, visando uma unidade que os estrangeiros consideravam perdida e/ou inexistente:

O contato imperial nunca consistiu na relação entre um ativo intruso ocidental contra um nativo não ocidental inerte ou passivo; sempre houve algum tipo de resistência ativa e, na maioria esmagadora dos casos, essa resistência acabou preponderando (SAID, 2010, p. 10).

Os protestos e as revoltas no Egito durante as ocupações podem ser encarados como atos de resistência, pois, segundo Foucault, “onde há poder há resistência”. Se pensarmos no tempo antropológico, tal como concebido por Johannes Fabian (2013, p. 171), percebemos que “o que está em oposição, em conflito, na verdade, [...] não são as mesmas sociedades em diferentes estágios de desenvolvimento, mas diferentes sociedades voltadas umas para as outras, num mesmo Tempo”. Ao reconhecer essa prerrogativa, entendemos a recusa dos europeus em inibir o envolvimento dos egípcios na construção do nacionalismo e na inserção das atividades intelectuais e culturais. Portanto, mesmo com a derrota da revolução urabista para os britânicos, esse levante foi de extrema importância, pois demonstrou a luta dos egípcios em prol da defesa de seu território, como ocorreu em outras regiões do continente africano:

Em nenhuma parte da África as iniciativas e a resistência dos africanos à partilha e à ocupação europeia foram tão determinadas e contínuas quanto nos modernos Estados do Egito, do Sudão e da Somália. As reações começaram em 1881 com o levante militar no Egito e continuaram em algumas partes da região até os anos de 1920. Jamais, na história da África, um povo lutou tão aguerridamente para defender sua liberdade, soberania, e sobretudo religião e cultura (IBRAHIM, 2010, p. 73).

Para o professor Hassan Ahmed Ibrahim (2010, p. 80), um dos movimentos de resistência contra a ocupação britânica foi manifestada na esfera intelectual, com o lançamento da “[...] revista pan-islâmica, Al-Urwa al-Wuthqa (“O Elo Indissolúvel”), cujo objetivo era libertar o Egito da ocupação inglesa agitando a opinião pública egípcia”. Embora a revista tenha parado de circular no número dezoito, ela teve grande influência entre os jovens e os intelectuais egípcios, que pretendiam “[...] refutar a afirmação de Cromer de que os egípcios eram incapazes de se governar de acordo com princípios civilizados, assim como convencer o povo de que formava uma nação capaz e merecedora de autonomia” (IBRAHIM, 2010, p. 82). Outras pessoas influentes no país também se posicionaram contra à ocupação, como quedivas e membros do Partido Nacionalista. 47

Em 1907, surgiu um novo partido de ordem nacionalista denominado Umma (“do Povo”), com jornal próprio e um programa que “preconizava a criação de uma identidade nacional egípcia, sem a qual – imaginava – o Egito não poderia conseguir a verdadeira independência” (IBRAHIM, 2010, p. 85). A sua influência não chegou a atingir um público mais amplo, devido à colaboração com o governo britânico e as suas ideias liberais próximas às convicções europeias e à modernização da religião islâmica: “as populações do Egito, do Sudão e da Somália não lutavam apenas por seus territórios, mas também por sua fé” (IBRAHIM, 2010, p. 97). Um novo movimento nacionalista despontou em 1916, em meio à Primeira Guerra Mundial, quando a Grã-Bretanha tornou o Egito um protetorado dois anos antes, pois ele ainda era uma província do Império Otomano, que decidiu aderir a guerra ao lado dos alemães e austro-húngaros. O Al-Wafd al-Misrī (“Delegação Egípcia”) pretendia “[...] conquistar a independência total do Egito, garantir a soberania egípcia sobre o Sudão e abolir as capitulações que outorgavam privilégios especiais aos estrangeiros residentes no país” (IBRAHIM, 2010, p. 677), obtendo força entre a população durante a grave crise econômica em que o Egito se encontrava:

Não foi senão em 1919, em resposta ao colonialismo britânico, que o nacionalismo egípcio no sentido moderno europeu se tornou um elemento chave na retórica política de libertação e independência. O nacionalismo egípcio (Al-Qawmiya Al- Misryia) foi legitimado por um apelo às pessoas comuns como fonte de poder político e invocando a glória das realizações faraônicas, que foram o foco da aprendizagem acadêmica e ampla publicidade na Europa desde as décadas de 1860- 1880, quando os líderes políticos eram jovens (HASSAN, 2002, p. 214, tradução nossa).

A forte campanha nacionalista do Wafd contra o controle britânico e em prol da independência circulou no Egito durante esse período, resultando na Revolução de 1919:

A revolução de 1919 é um acontecimento de considerável importância na história do Egito moderno. Efetivamente, ela mobilizou pela primeira vez todas as classes egípcias (camponeses, operários, estudantes, proprietários rurais, intelectuais) e todos os grupos religiosos (coptas e muçulmanos) contra o colonialismo britânico (IBRAHIM, 2010, p. 680).

Como resultado, em 1922 foi assegurada a Declaração de Independência e instaurada uma monarquia parlamentar no país, contanto que a ocupação militar do território fosse mantida pelos britânicos, assim como os assuntos exteriores31. Por esse motivo, nem todos os

31 As exigências postuladas pelos britânicos (“Reserved Points”) eram as seguintes: a defesa do território egípcio; o comando sobre as telecomunicações; as relações internacionais e o governo do Sudão (CASTRO, 2011, p. 3). 48 historiadores concordam que o episódio deva ser encarado como uma revolução, no entanto, para os egípcios foi um importante passo em direção à independência colonial (mesmo que unilateral): A Declaração de Independência deu ao governo egípcio maior liberdade de movimentos para dirigir os negócios internos e externos. Restaurou o Ministério das Relações Exteriores, que havia sido suprimido em 1914, permitindo-lhe manter representações diplomáticas e consulares (IBRAHIM, 2010, p. 681).

Os intelectuais egípcios tiveram um papel determinante na criação de uma nova imagem nacional, desenvolvida a partir da década de 1920, na qual Israel Gershoni e James Jankowski elencaram quatro sub imagens coletivas: a primeira, relacionada ao território singular encontrado no Vale do rio Nilo; a segunda, de cunho histórico e contínuo que vislumbrava uma união entre egípcios antigos e modernos; a terceira, semelhante à última, buscava um vínculo entre o período faraônico e o Egito moderno, no qual “a herança faraônica do Egito foi assumida como a única herança nacional autêntica do país” (GERSHONI; JANKOWSKI, 1987, p. 131, tradução nossa); e a quarta, demonstrava que a cultura nacional egípcia era independente das tradições árabes e muçulmanas. Nessa conjuntura, em 1925 foi aberta uma universidade estadual no país e os “[...] nacionalistas proclamavam o orgulho dos antepassados faraônicos, e escritores, pintores, arquitetos, escultores, autores de livros didáticos e designers de selos expressavam isso através da adoção do simbolismo faraônico” (REID, 2002, p. 17, tradução nossa). Tal comportamento foi fomentado após a descoberta e abertura da tumba de Tutankhamon, em 1922. A partir desse momento ampliou-se o controle dos egípcios em relação as suas próprias antiguidades, o que possibilitou a revisão de sua antiga legislação patrimonial e o treinamento de egípcios em áreas como a Arqueologia e a Egiptologia, como veremos. Com algumas discordâncias em relação aos resultados obtidos durante o processo de “independência”, bem como acusações de corrupção dos líderes do Wafd, o movimento perdeu força popular e acabou por dividir-se em dois grupos rivais, o que levou à posterior legalização da ocupação britânica, em 1936: “consequentemente, o Wafd tornou -se o partido que representava a maioria dos egípcios, e não um organismo unificado que falava em nome de toda a nação” (IBRAHIM, 2010, p. 683). Nesse período surgiu um outro grupo que teve – e ainda tem – grande influência no Egito: a Irmandade Muçulmana ou Sociedade dos Irmãos Muçulmanos (SIM – Jam’iyyat al- Ikhwan al-Muslimin), formada em 1928. Diferentemente do Wafd, que era laico, a SIM apostou a sua base nos princípios do Islã, visando “[...] a transformação da sociedade do país 49 através do comprometimento com os ensinamentos contidos no Alcorão e na Sharia’ – lei islâmica” (CASTRO, 2011, p. 2). A ascensão da SIM pôde ser justificada graças aos seus preceitos religiosos, em um momento em que o Egito passava por um “revivalismo muçulmano” (CASTRO, 2001). Em resposta a um ataque ocorrido ao quartel da polícia egípcia próximo do Canal de Suez, em janeiro de 1952 (que deixara cerca de cento e cinquenta egípcios mortos e feridos), a população foi às ruas do Cairo protestar contra os britânicos, responsáveis pelo ataque. O alvo dos manifestantes foram principalmente lugares representativos do poder e da soberania estrangeira, como “[...] teatro, lojas luxuosas, restaurantes sofisticados, hotéis que atendiam estrangeiros (e barravam os egípcios), bancos e outros empreendimentos estrangeiros” (DECHANCIE, 1988, p. 39). Esse foi o gatilho para que um grupo de oficiais do exército (Movimento dos Oficiais Livres) se organizasse para depor o então rei Faruk, acusado por corrupção; expulsar os ingleses do país; e pôr fim a todos os partidos políticos existentes: “a notícia de que Faruk estava planejando agir contra os Oficiais Livres levou Nasser a antecipar a data do golpe” (DECHANCIE, 1988, p. 44). Sob liderança (ainda que velada) do militar egípcio Gamal Abdel Nasser (‘Abd al-Nasir) – que desde jovem participava de manifestações e protestos pela soberania do Egito em relação aos britânicos –, a Revolução teve início oficialmente em julho de 1952:

A experiência tem demonstrado – e os fatos sempre confirmam – ser a Revolução o único caminho para que a luta árabe por um futuro possa ser coroada de êxito. A Revolução é o único meio pelo qual a nação árabe pode libertar-se das algemas e deixar a sombria herança que lhe pesava. Pois os elementos de supressão e exploração que dominavam há tanto tempo a nação árabe, e que se apoderavam de sua riqueza, não se submeterão de boa vontade (NASSER, 1970, p. 103).

Para Nasser, os longos anos de exploração do povo árabe32 foram responsáveis pelo subdesenvolvimento em que se encontravam em relação aos países mais desenvolvidos. Dessa forma, somente a revolução (“missão redentora”) poderia os libertar: “com as perspectivas que alcançam, aquelas descobertas multiplicam o progresso de países avançados e, em assim

32 Nasser compartilhava a crença de muitos egípcios que se auto afirmavam árabes (por causa da língua e da religião em comum), ao invés de se aproximarem de uma identidade “múltipla” africana: “eu conheço exatamente as fronteiras da nação árabe. [...]. Essas fronteiras terminam onde minha propaganda já não encontra eco. Além desse ponto, começa alguma outra coisa, um mundo estranho, que não interessa” (NASSER apud DECHANCIE, 1988, p. 73). Contudo, atualmente “os egípcios reconhecem que pertencem à ‘Al Umma Al-Islamia’ (muitas vezes traduzida como Nação Islâmica), mas eles não se consideram árabes nem otomanos. [...] Os egípcios veem os ‘árabes’ como nômades ‘Badow’ (beduínos), e desprezam ‘Al-Atrak’ ou ‘Tarakwa’ (otomanos ou turcos), que consideravam os egípcios como servos” (HASSAN, 2002, p. 214, tradução nossa). 50 fazendo, alargam ainda mais a lacuna entre si próprios e outros, apesar de todos os esforços destes últimos para recuperarem-se” (NASSER, 1970, p. 103). Em meio à revolução, muitos letreiros escritos em árabe foram colocados em substituição dos escritos em inglês.

Figura 2: A imagem mostra um boneco com trajes de um soldado inglês pendurado pelo pescoço, com uma faixa onde lê-se: “a forca espera pelo pescoço dos britânicos” (janeiro de 1952).

Fonte: DECHANCIE, 1988, p. 41.

Após a abdicação forçada do rei, o próximo passa seria ocupar o Canal de Suez e expulsar os britânicos. No ano seguinte ao início da revolução, Nasser declarou o Egito uma República, sendo eleito como primeiro presidente o general Mohammed Naguib. Com as sucessivas discordâncias entre ambos, Naguib foi levado a renunciar ao cargo, deixando a presidência sob o comando de Nasser. O ato de nacionalização do Canal foi uma resposta dos egípcios aos seus ocupantes estrangeiros, sobretudo os franceses e os britânicos. No entanto, nem todos os egípcios aceitavam a determinação e a conduta exacerbada de Nasser para cumprir os objetivos propostos em favor da nação árabe, como mostrou a tentativa de assassinato perpetrada a ele no momento em que realizava um discurso em Alexandria após a retirada britânica, em 51 outubro de 1954. Foram disparados oito tiros, mas nenhum o acertou33: “como líder único do mais populoso país árabe, Nasser naturalmente seria uma figura poderosa no mundo árabe; sua determinação de revitalizar o Egito sem a interferência ocidental e suas ações durante a crise de Suez aumentaram sua influência” (DECHANCIE, 1988, p. 53). Embora a população tenha ficada aterrorizada com o incidente, o atentado não abalou Nasser, que continuou o seu discurso e ainda tentou acalmar a todos. Com a crise e o crescimento do nacionalismo árabe, em 1956 Nasser decidiu pela nacionalização do Canal, seguida pela retirada da Grã-Bretanha do país, sob forte pressão estrangeira: “o mundo árabe aplaudiu sua ação, e, do dia para a noite, Nasser tornou-se o principal defensor da independência e do nacionalismo árabes” (DECHANCIE, 1988, p. 64- 65). Com a sua morte em 1970, o vice-presidente Anwar Al-Sadat assumiu o governo do país, adotando uma agenda voltada aos interesses da direita política, sob o qual:

[...] despertou uma identidade egípcia que ultrapassou o nacionalismo árabe de Gamal Abdel-Nasser para o nacionalismo egípcio da era pré-revolucionária. Diplomaticamente, o Egito tornou-se oficialmente a República Árabe do Egito (ERA), restaurando, para o deleite de muitos egípcios, o nome de “Egito” do qual foi privado sob Nasser (HASSAN, 2002, p. 210, tradução nossa).

Para o arqueólogo egípcio Fekri Hassan, a atuação de Nasser proporcionou a aproximação e a identificação do Egito com o mundo árabe: “ele viu o Egito no coração de um círculo árabe. Uma língua comum (árabe), religião (islamismo), cultura e laços históricos estreitos favoreceram a consolidação dos laços do Egito com o mundo árabe” (HASSAN, 2002, p. 207, tradução nossa). Segundo Nasser (1970, p. 91), “no plano regional, o nacionalismo árabe está na base de nossa política. Esse nacionalismo está intimamente ligado à vida política da nação árabe, como também, à política mundial”, corroborando com a perspectiva do sociólogo Craig Calhoun (2008, p. 39), de que o nacionalismo “[...] surge no relacionamento com outros projetos étnicos, culturais e políticos”. Exemplo disso é a menção de Nasser sobre a força dos movimentos nacionalistas em outros continentes, como na Ásia e na América Latina, que ele pontuou como uma das principais mudanças após o término da Segunda Guerra Mundial, junto com o impulso do comunismo no enfrentamento ao capitalismo. Conforme Hassan (2002, p. 209), a posição anti-imperialista de Nasser e a busca pela liberdade dos povos árabes foram essenciais para a

33 O atentado foi cometido por um integrante da Irmandade Muçulmana, pois este partido não estava de acordo com os termos negociados entre os egípcios e os britânicos para a evacuação do Canal, especialmente em relação à divisão entre soldados egípcios e civis ingleses em torno das imediações do local: “a Irmandade Muçulmana tachou o tratado de traição, pois, na verdade, aliava o Egito com o Ocidente não-islâmico” (DECHANCIE, 1988, p. 53). 52 sua popularidade: “[...] sua imagem como um antagonista do imperialismo e da corrupção e não como um chefe de governo”, já que os egípcios aprenderam a desconfiar de seus governantes. Na historiografia sobre o nacionalismo árabe, encontramos alguns termos semelhantes, como pan-arabismo ou arabismo. Em relação ao Egito, a busca de uma unidade pela soberania de seu território se tornou evidente a partir do século XX (VICENZI, 2006), embora as suas reivindicações e os seus descontentamentos não tenham sido dirigidos apenas à administração estrangeira, mas também aos próprios governantes locais. Na obra Comunidades imaginadas, publicada pela primeira vez em 1983, o historiador Benedict Anderson refletiu sobre a ideia de nacionalismo ou, mais especificamente, os nacionalismos, já que estes variam de acordo com cada nação. Concebido como um produto cultural, para Anderson, o desenvolvimento da imprensa e do chamado capitalismo editorial tiveram um papel fundamental na imaginação das nações. Em uma concepção antropológica, Anderson (2008, p. 32) definiu a nação como “[...] uma comunidade política imaginada – e imaginada como sendo intrinsecamente limitada e, ao mesmo tempo, soberana”. Para ele, as nações são comunidades imaginadas porque é inconcebível que os seus integrantes conheçam todos os demais pertencentes desse mesmo lugar, por menor que ele possa ser, “[...] embora todos tenham em mente a imagem viva da comunhão entre eles (ANDERSON, 2008, p. 32). Segundo o autor, compartilhar a mesma língua é importante para a imaginação da comunidade (até pela circularidade das ideias e dos discursos), no entanto, não é um fator decisivo. Nessa perspectiva, “as nações não existem ‘objetivamente’ antes de existirem em termos discursivos” (CALHOUN, 2008, p. 37). No caso do Egito, a expansão do nacionalismo exaltado pela figura forte e carismática de Nasser foi possibilitado pela veiculação de seus discursos nas rádios do país, mais do que nos jornais:

Enquanto o texto desempenha papel-chave na elaboração da ideologia e na sua disseminação entre as elites e, posteriormente, para as classes médias, outros meios orais e audiovisuais serviram para mobilizar a maioria da população, embora isso não tenha resultado em um único Estado-nação árabe (VICENZI, 2006, p. 178).

Corroborando com as caracterizações de Anderson, Israel Gershoni (1997, p. 3) mencionou algumas formas de “comunidades imaginadas” no contexto de emergência do nacionalismo árabe, a saber: “[...] nacionalismo territorial, nacionalismo de estado-nação e uma ampla variedade de identidades islâmicas ou religiosas”. Segundo o autor, a origem histórica do nacionalismo árabe remonta às duas guerras mundiais, “[...] como um movimento 53 de oposição nas províncias árabes do Império Otomano, em geral buscando autonomia cultural no âmbito do estado otomano” (GERSHONI, 1997, p. 3, tradução nossa). Para a professora Elie Chalala (1987), de acordo com a literatura sobre o assunto, o nacionalismo árabe – entendido como discurso – pode ser dividido em três etapas: a primeira, no século XIX, evidenciou a falta de teorias elaboradas sobre essa temática, no qual ainda prevalecia a ideologia islâmica; isso foi contornado pela segunda etapa; e, por último, reformulado durante a terceira etapa, desenvolvida a partir da década de 1950. Com a fundação da Liga Árabe no Cairo – uma organização formada por países árabes –, o nacionalismo árabe atingiu a maturidade em 1945, embora tenha alcançado o apogeu durante os períodos nasserista e baathista34, ao ser “[...] transformado em um movimento revolucionário, apelando a grandes massas por meio de um programa socialista, retórica populista e um compromisso mais profundo com a ideia de estabelecer um único estado árabe” (GERSHONI, 1997, p. 4, tradução nossa). Gershoni pontuou três etapas pelos quais o estudo do nacionalismo árabe perpassou: a primeira no final dos anos de 1930 e 1940, com relatos esparsos sobre o anseio pela unidade árabe naquele período; a segunda, entre as décadas de 1950 e 1960, quando esses estudos se voltaram para o mundo acadêmico e enfatizaram as origens ideológicas do nacionalismo árabe; e a terceira – a tese do autor – no início dos anos 1970, com a emergência de uma “nova narrativa” sobre o nacionalismo árabe, com novas pesquisas e deferentes metodologias. A antiga narrativa demonstrou que não foram apenas os escritores e demais intelectuais ocidentais que transmitiram uma imagem fantasiosa do Oriente Médio, especialmente do Egito e de outras culturas antigas, pois “reviver a glória árabe clássica era indispensável para o renascimento nacional” (GERSHONI, 1997, p. 7, tradução nossa). Também indicava que o Egito não tivera grande participação no início do desenvolvimento do nacionalismo árabe, pelo menos até o período de Nasser, nos anos de 1950: “[...] as manipulações cínicas da ideologia pan-arabista por políticos egípcios não foram acompanhadas por um processo de mudança ideológica no público egípcio. O Egito permaneceu egípcio e o arabismo permaneceu estrangeiro” (GERSHONI, 1997, p. 11, tradução nossa). Para o autor, a nova narrativa sobre o nacionalismo árabe promoveu avanços

34 A palavra “Baath” significa renascimento e refere-se a uma ideologia “[...] fruto do nacionalismo do século XIX e do humanismo idealista do século XX” (MOHAMMED, 2016, p. 26), que congrega o nacionalismo e o socialismo árabe, o pan-arabismo e o anti-imperialismo, baseados na ideia de unificação de todos os árabes em um só estado – a Grande Nação Árabe. Tanto o baahtismo como o nasserismo são movimentos políticos de ideologia nacionalista árabe, embora o primeiro seja considerado mais radical que o segundo (CHALALA, 1987). 54 da História das Ideias para o campo da ação prática de inclusão de grupos, partidos, organizações e instituições:

Embora reconheça as fontes externas do nacionalismo (ou seja, europeias), a nova narrativa enfatiza a experiência histórico-cultural particular do Oriente Médio, com seus modos específicos de apropriação e reprodução do nacionalismo que a recriam na forma “árabe” (GERSHONI, 1997, p. 14, tradução nossa).

Essa experiência histórico-cultural manifesta que “[...] o nacionalismo é essencialmente cultural e tão antigo quanto o sentimento de fraternidade entre membros de comunidades étnicas e linguísticas” (CALHOUN, 2008, p. 38), que no mundo moderno foi propiciado, também, pela emergência do Estado e de outros sistemas de poder, como a alfabetização popular, a imprensa, os museus, etc. Ainda sob a perspectiva cultural, “a revolução de 1952 de Nasser levaria a dois objetivos que escaparam à geração de 1919 – total independência e controle nacional dos museus e da arqueologia” (REID, 2002, p. 17, tradução nossa), como veremos adiante. Além da influência para a ascensão do nacionalismo árabe, Nasser incutiu em muitos egípcios o sentimento de orgulho pela própria história do país, que a partir daquele momento passou a ser governado por um egípcio: “o Egito sempre tivera um passado, mas foi Nasser quem lhe deu um futuro” (DECHANCIE, 1988, p. 101). Ao mesmo tempo, o discurso nacionalista proferido por Nasser revelou tensões entre os próprios egípcios, pois nem todos concordavam com os seus termos, assim como não aceitaram uma série de medidas tomadas pelos presidentes que o sucederam, como observamos em sua história recente. Isso aponta que o nacionalismo [...] também prospera na competição entre nações declaradas. Organiza tanto lutas internas como internacionais e, de fato, a própria distinção entre interno e internacional. Ele importa mais porque importa em tantos contextos diferentes. Isso confere maior ressonância e vida à retórica do nacionalismo ao mesmo tempo que torna as definições discutíveis (CALHOUN, 2008, p. 40).

Nesse sentido, o movimento nacionalista no Egito – propiciado em meio à ocupação estrangeira – deve ser visto como uma das muitas estratégias de poder exercidas no bojo das relações estabelecidas com os ocidentais, produzindo outras formas de discurso. Retomando a ideia de Fabian de “tempo compartilhado” e o pensamento foucaultiano, entendemos que egípcios, franceses e britânicos sofrem e, simultaneamente, exercem a ação do poder (sem desconsiderar a disparidade dessas relações em determinados períodos).

55

1.3 DOS “CAÇADORES DE TESOUROS” ÀS MISSÕES CIENTÍFICAS ESTRANGEIRAS NO EGITO: O DESENVOLVIMENTO DA ARQUEOLOGIA

Atualmente considerada uma área multidisciplinar, as origens da Arqueologia no século XIX remontam à época da “caça aos tesouros”, “[...] em uma busca apressada por cidades perdidas ou enterros reais carregados de ouro. Foi uma época de grande aventura e, devo admitir, uma grande quantidade de saques desenfreados” (FAGAN; DURRANI, 2016b, p. 6, tradução nossa). No Egito, o interesse pelos monumentos e demais bens levou à prática de roubos, saques e pilhagens desde a Antiguidade. Documentação encontrada em papiros do período atestam os desdobramentos desses roubos, como em um julgamento que ocorreu na região de Tebas (atual cidade de Luxor, no sul do Egito), no qual foram condenados os envolvidos nas violações dos túmulos antigos: “processos semelhantes ocupam metros e metros de papiros” (VERCOUTTER, 2002, p. 58). Além de ouro e tesouros escondidos, os “caçadores” ainda buscavam o Z’ibaq ahmar (mercúrio vermelho), popularmente conhecido por trazer riqueza35 e o kohl, famoso por sua utilização cosmética, no qual alguns egípcios antigos acreditavam no poder de cura da cegueira e da lepra (EL-DALY, 2005). Manuais ou livros de magia como o “Livre des Perles enfouies et du Mystère précieux, au sujet des indications des cachettes des trouvailles et des trésors” foram publicados com instruções de lugares e procedimentos para encontrar os tesouros (VERCOUTTER, 2002). Com o passar dos anos e a intensificação dessa prática, tal atividade foi designada como uma profissão no século 9, já que “[...] o estado passou a depender dos rendimentos financeiros do tesouro” (EL-DALY, 2005, p. 32, tradução nossa), tornando a exploração dos sítios passível de autorização do estado e do acompanhamento de algum funcionário. Dentre os saqueadores, destacamos a atuação dos irmãos Ahmed e Mohamed Abd el- Rassoul, que encontraram o primeiro esconderijo real no complexo de Deir el-Bahari, em 1871: “[...] uma das maiores descobertas da Arqueologia” (SANTOS, 2000, p. 36). No intuito de frustrar a ação dos “caçadores de tesouros”, em 1907 o egiptólogo egípcio Ahmad Kamal (aconselhado pelo egiptólogo francês Gaston Maspero) publicou um livro pelo Serviço de

35 O mito sobre “os poderes” do mercúrio vermelho ainda existe no Egito, pois recentemente, após a descoberta em julho de 2018 de três múmias que estavam no interior de um sarcófago submerso em Alexandria, cerca de dez mil pessoas assinaram um documento que pedia a autorização do governo para a ingestão do líquido encontrado junto às múmias, por acreditarem que ele continha “elementos energéticos”. O pedido foi negado pelo Ministério de Antiguidades do Egito, que alegou que o líquido era água de esgoto. Reportagem disponível em: https://revistagalileu.globo.com/Ciencia/noticia/2018/08/peticao-para-beber-liquido-de-sarcofago-ganha- milhares-de-assinaturas.html Acesso em: 16 junho 2019. 56

Antiguidades sobre os segredos contidos nos túmulos inspirado nos antigos manuais, com o objetivo de mostrar para a população que essa prática não era tão secreta e irrestrita e, dessa forma, “[...] tais livros seriam desacreditados e se tornariam menos eficazes para instigar escavações ilegais” (EL-DALY, 2005, p. 33, tradução nossa). Para o egiptólogo francês Jean Vercoutter (2002, p. 59), a transferência de monumentos para outras cidades e capitais realizada durante os impérios Persa, Romano e Bizantino também pode ser caracterizada como uma forma de pilhagem: “em seguida os coptas, transformando os templos em igrejas, e os eremitas, ocupando templos rupestres, destroem, mutilam ou apagam os baixos-relevos e pinturas”, como podemos observar na imagem abaixo:

Figura 3: Cruz copta (símbolo dos egípcios cristãos) gravada em um pilar do templo de Philae dedicado à deusa Isis, em Assuã.

Fonte: foto da autora (2017).

Após a corrida desenfreada pelos “tesouros escondidos” do Egito, observamos a sistematização dessas buscas por meio da organização de sociedades científicas e 57 arqueológicas36. Segundo o estudioso norte-americano Elliot Colla (2007, p. 15), um dos tipos de instituição egiptológica é o sítio arqueológico, motivo de intensas disputas. Assim como na política, a rivalidade anglo-francesa também esteve presente nessa área, marcada pela acirrada concorrência pela posse das antiguidades egípcias:

A matriz genética da arqueologia egípcia desenvolveu-se em torno da tensão existente entre a chamada ‘caça ao tesouro’ ou antiquariado e a arqueologia científica. De um lado, as pulsões comerciais e de recolha-saque de objetos que interessassem aos museus, mesmo que, para o efeito, se tivesse de destruir monumentos ou artefatos; do outro, a investigação metodologicamente organizada e conceitualmente enquadrada ao serviço da reconstituição e conhecimento sustentado do passado, tendo por objetivo a salvaguarda dos próprios locais intervencionados (SALES, 2002, p. 86).

Nesse sentido, o autor considera que a noção mais apropriada que precedeu a Arqueologia científica egípcia seria a “pilhagem de antiguidades” e embora os ataques às tumbas e aos templos egípcios ocorressem desde a Antiguidade, foi após a invasão de Napoleão Bonaparte e a publicação da Description que os saques se intensificaram. No entanto, ainda que quase não apareçam na literatura do século XIX, os próprios egípcios travavam um embate entre eles pelo controle dos lugares de escavações, especialmente entre os grupos nacionais: “[...] elites urbanas e camponeses rurais, secularistas e islamistas, proponentes do pan-arabismo e nacionalistas territoriais, e assim por diante” (COLLA, 2007, p. 11, tradução nossa). Na corrida pela acumulação das antiguidades egípcias destacamos o protagonismo dos cônsules estrangeiros enviados ao Egito para cumprir funções diplomáticas:

Com efeito, estes desempenharam um papel de primeiro plano no comércio de antiguidades, uma vez que quer para o transporte dos objetos quer para a escavação dos sítios (ao nível do recrutamento de trabalhadores) era preciso um firman (palavra de origem persa que significava ≪ordem≫), ou seja, uma autorização escrita, que os cônsules, devido a sua excelente posição política, facilmente obtinham ou negociavam (SALES, 2002, p. 88).

Por meio da atuação desses diplomatas, as antiguidades deixavam facilmente o país, inclusive com o aval do então paxá Mehmed Ali, que lhes cedia autorização para a escavação e o transporte dos monumentos. Muhammad ‘Ali (em árabe) ou Mehmed Ali (em turco) foi

36 Segundo Françoise Choay (2011), até o século XIX, aqueles que se interessavam pelo estudo e pela categorização dos vestígios da Antiguidade eram chamados de “antiquários” e esses vestígios denominados como “antiguidades” (do plural antiquitates). Através do aprimoramento de seus estudos, foi preparado o terreno para o trabalho desenvolvido pelos arqueólogos, etnógrafos e historiadores no decorrer do século XIX.

58 um oficial do exército otomano, designado governador do Egito37 entre 1805 e 1848, ano de sua morte. Ele ficou conhecido como o “fundador do Egito moderno” através de um projeto de industrialização que previa a abertura de escolas públicas, hospitais e fábricas, auxiliado pela contratação de especialistas estrangeiros para a execução dos trabalhos técnicos38: “é entre estes estrangeiros, verdadeiros aventureiros, que são recrutados os que, de 1810 a 1850, levarão do Egito grande número de seus monumentos” (VERCOUTTER, 2002, p. 60). Assim como outros governantes do Egito, Mehmed Ali preocupava-se bastante com dinheiro e com o seu próprio enriquecimento e o de sua família, por isso facilitava o acesso estrangeiro às antiguidades, em alguns casos, o seu tráfico. Através da concessão de firmans, as antiguidades eram negociadas, muitas vezes, em troca de máquinas que vinham do exterior (VERCOUTTER, 2002). Aqui, apresentamos a ação de quatro desses cônsules, batizados por Reid (2002) de “cônsules-coletores”: Benoît de Maillet, Henry Salt, Giovanni Belzoni e Bernardino Drovetti. A sua escolha se deve ao fato de serem os principais responsáveis pela formação de coleções de antiguidades egípcias, posteriormente negociadas com países europeus, contribuindo com a organização de seus primeiros museus. Benoît de Maillet (1656-1738) foi um diplomata francês, cônsul-geral da França no Egito entre 1692 e 1708, e desenvolveu algumas ideias na área de Geologia e História Natural: “por sua posição, Maillet é o percursor dos mais célebres cônsules do século XIX que cobiçam a pilhagem das antiguidades do Egito em benefício dos grandes museus europeus” (VERCOUTTER, 2002, p. 33). A partir de suas memórias, em 1735 foi publicada uma obra semelhante à Description, contendo alguns relatos sobre a geografia, os monumentos, os costumes, a religião e outros aspectos do Egito39. Ele enviou antiguidades egípcias para alguns condes franceses, nas quais muitas se encontram na Biblioteca Nacional da França, além da tentativa de enviar para Paris a coluna de Pompeu em Alexandria, o que não se concretizou (VERCOUTTER, 2002). Henry Salt (1780-1827) foi um pintor e diplomata inglês, nomeado Cônsul Geral Britânico no Egito em 1816, encarregado de reunir antiguidades para acrescer à coleção

37 No caso, governador do Cairo. 38 Para saber mais sobre a atuação política de Mehmed Ali no Egito, ver: DODWELL, Henry. The Founder of Modern Egypt: A Study of Muhammad’ Ali. Cambridge: Cambridge University Press, 1931; e FAHMY, Khaled. All the Pasha’s Men: Mehmed Ali, His Army and the Making of Modern Egypt. Cairo, New York: The American University in Cairo Press, 2002. 39 Embora a historiografia tradicional conceda à publicação da Description um papel notório em relação à compilação dos estudos realizados no Egito, existem uma série de obras da mesma tipologia que foram publicadas desde a Antiguidade por outros viajantes e estudiosos que estiveram no Egito. 59 egípcia do Museu Britânico: “apesar de sua tarefa nacional, as intensas atividades de coleta do Sr. Salt o colocaram em inimizade com suas contrapartes britânicas” (MAHMOUD, 2016, p. 31, tradução nossa). Ele chegou em Alexandria em março de 1816, onde se deparou com uma grande quantidade de europeus no local40. A sua permanência no Egito e a “caça” às antiguidades era movida pela esperança de “[...] obter riqueza financeira” (MAHMOUD, 2016, p. 33, tradução nossa). Salt passou mais de onze anos no Egito, nos quais foi encarregado, também, de tomar conta dos consulados de Alexandria e do Cairo. Formou a sua primeira coleção de antiguidades egípcias a partir de 1818, que foi comprada pelo Museu Britânico, por duas mil libras (VERCOUTTER, 2002, p. 66). O envio das antiguidades a esse museu foi mais intenso entre os anos de 1820 e 1821. Os artefatos eram depositados no museu como propriedade de Salt e posteriormente negociados e vendidos (MAYES, 2003). Uma segunda coleção de antiguidades foi reunida por ele entre os anos de 1819 e 1824, após receber uma herança devido à morte de seu pai, ocorrida em 1817. Essa coleção também era para ser vendida ao Museu Britânico, mas a França a comprou por dez mil libras em 1826, destinada ao Museu do Louvre (MAYES, 2003). Por fim, o Museu Britânico adquiriu uma terceira coleção após a sua morte, composta por mais de mil itens, dentre eles uma mesa dos reis de Abidos. Salt faleceu precocemente em outubro de 1827, com apenas quarenta e oito anos, em decorrência de uma infecção no intestino e foi enterrado em Alexandria (BOSWORTH, 1974). Uma terceira coleção foi vendida posteriormente, em 1835, na qual o Museu Britânico adquiriu uma parte. Dentre os cônsules, Salt pode ser considerado “[...] um colecionador mais gentil e deixou muito do trabalho sujo para os outros. O mais bem-sucedido de seus agentes foi um homem forte de circo que virou ladrão de túmulos – Giovanni Battista Belzoni” (FAGAN; DURRANI; 2016a, p. 37, tradução nossa). Giovanni Belzoni (1778-1823) nasceu em Pádua, mas ainda adolescente decidiu tentar a vida em Roma, onde permaneceu até a invasão das tropas napoleônicas, em 1798. No início dos anos de 1800 foi para Londres, onde trabalhou durante alguns anos em circos, feiras e teatros, facilitado pela sua altura (media mais de dois metros) e força: “Londres, em 1803, era uma cidade capital, cheia de espetáculos animados e apresentações teatrais obscenas” (FAGAN, 2004, p. 82, tradução nossa). Um dos shows mais aplaudidos no tradicional

40 Ao longo de sua vida, Henry Salt se correspondeu com amigos e colegas e o conjunto dessas cartas foram publicadas em dois volumes, por HALLS, J. J. The Life and Correspondence of Henry Salt. London: Samuel Dentley Publisher, 1834. 60

Sadler´s Wells Theatre, em Londres, era a chamada “pirâmide humana”, exercício no qual “[...] ele carregava em seus ombros até uma dúzia de pessoas” (ZATTERIN, 2008, p. 10).

Figura 4: Belzoni e a pirâmide humana.

Fonte: Disponível em: https://www.aramcoworld.com/en-US/Articles/September-2018/Egyptology-s- Pioneering-Giant.

Na ilustração, Belzoni aparece representado erguendo sobre os ombros onze pessoas que faziam parte da equipe do teatro, sob uma estrutura de ferro que pesava cinquenta e oito quilos. Esse espetáculo deu a ele o apelido de “O Grande Belzoni”, com o qual ficou conhecido em toda a Europa e o fez aperfeiçoar ainda mais as suas performances41. Durante os anos que esteve na Inglaterra, Belzoni conheceu a sua esposa Sarah Bane, que o acompanhou por vinte anos em diversas viagens. Sua biografia é conhecida graças às

41 Disponível em: https://www.aramcoworld.com/en-US/Articles/September-2018/Egyptology-s-Pioneering- Giant Acesso em: 30 outubro 2018. 61 correspondências42 que trocou e às menções encontradas nos diários de viajantes que o encontraram no Egito (MAYES, 2003). Em uma de suas viagens – Malta – Belzoni conheceu um funcionário de Mehmed Ali. Eles conversaram sobre as habilidades de Belzoni na área de engenharia hidráulica e mecânica e este afirmou que poderia criar uma máquina inovadora para aprimorar a agricultura egípcia. Dessa forma, em 1815 ele foi convidado a ir até o Egito, onde desembarcou em Alexandria. Após um ano de tentativas, a ideia de Belzoni não convenceu o paxá, mas foi nomeado cônsul da Inglaterra no Egito. Depois passar por dificuldades financeiras, ele foi trabalhar como agente de Henry Salt nos últimos seis meses de 1816 (VERCOUTTER, 2002). No intuito de obter vantagens, Belzoni recebeu cem libras de Salt e do explorador suíço John Lewis Burckhard para transportar uma enorme cabeça de Ramsés II, conhecida como Ramesseum (chamada pelos franceses de Memnonium): “cada um deles deu a ele vinte e cinco libras por conta da cabeça, e o cônsul adicionou outros cinquenta” (MAYES, 2003, p. 153, tradução nossa). Após obter uma autorização (firman), Belzoni empreendeu uma viagem do Cairo até Tebas e precisou da mão de obra de vários homens para auxiliar no transporte do busto até o seu destino final, na Inglaterra (VERCOUTTER, 2002). Além desse trabalho, Belzoni empreendeu outras descobertas durante três anos, o que lhe permitiu reunir uma coleção que posteriormente enriqueceu o acervo do Museu Britânico: “[...] abriu o templo de Abu Simbel, o túmulo de Seti I e a segunda pirâmide de Gizé (REID, 2002, p. 38, tradução nossa). As pinturas encontradas no interior do túmulo de Seti I foram copiadas e exibidos em Londres e Paris: “nós sabemos há muito que os amadores representam um papel importante na história da Arqueologia, e o amadorismo de Belzoni é indubitavelmente um dos mais singulares” (CERAM, 1954, p. 110). Na busca por tesouros antigos, as múmias eram as mais visadas por Belzoni, especialmente pelos rolos de papiro encontrados em alguns túmulos, pois neles continha partes do Livro dos Mortos, além de serem um material mais leve de se carregar, embora delicado (MAYES, 2003). Em 1821, ele organizou uma exposição em Londres com as antiguidades que encontrou, na qual apresentou o túmulo de Seti através de uma réplica em gesso (FAGAN; DURRANI, 2016a):

De 1817 a 1820, Giovanni Belzoni embarcou em uma notável carreira como ladrão de túmulos. Ele recuperou múmias, papiros e estátuas de templos e tumbas em

42 O primeiro volume dessas correspondências foi publicado pelo antropólogo italiano Giovanni Marro, em 1940. 62

Luxor, foi a primeira pessoa a entrar no templo de Ramsés II em Abu Simbel, e descobriu o ricamente decorado túmulo do faraó do Reino Novo Seti I no Vale dos Reis. Em Giza, ele explodiu com pólvora a Pirâmide de Khafre, onde ainda é possível ver seu nome pintado de fuligem na parede da câmara funerária (FAGAN; DURRANI, 2016a, p. 38, tradução nossa, grifo nosso).

Belzoni e outros “exploradores” tinham o costume de deixar registrado nos monumentos as suas assinaturas. A dele foi pode ser encontrada em uma das orelhas da estátua de Ramsés II e no interior da pirâmide de Quéfren, onde gravou: “descoberta por G. Belzoni. 2 de março de 1818”, como observamos no registro abaixo:

Figura 5: Registro de Belzoni no interior da pirâmide de Quéfren. Foto de Jeffrey Ross Burzacott.

Fonte: Disponível em: https://www.nilemagazine.com.au/march-2015- archive/2015/3/3/khafres-burial-chamber-explored Acesso em: 19 out. 2019.

A rivalidade entre Belzoni e Salt é comumente referida pela historiografia, especialmente entre os anos de 1820 e 1830, quando Belzoni esteve mais determinado em completar a sua grande coleção de antiguidades. Os agentes que trabalhavam para ambos eram encarregados de demarcar o limite de cada um nos templos e cuidar dos locais por eles explorados (FAGAN, 2004). Assim como Henry Salt, Belzoni também faleceu cedo, com apenas quarenta e cinco anos e praticamente na miséria (MAYES, 2003).

63

Figura 6: Inscrições feitas por Belzoni (acima de Salt), em uma das paredes de Medinet Habu, em 1816. Acima observamos também a inscrição de Félix Bonfils, fotógrafo francês que viajou pelo Oriente Médio ao longo do século XIX.

Fonte: disponível em: http://alanfildes.com/plogger/index.php?level=picture&id=49 Acesso em: 05 mai. 2018.

O italiano Bernardino Drovetti (1776-1852) nasceu no Piemonte, mas foi naturalizado francês. Estudou Direito e posteriormente integrou o exército de Bonaparte, o que o aproximou da carreira diplomática. Em 1803 foi ao Egito ocupar o cargo de vice-cônsul em Alexandria e posteriormente foi nomeado cônsul-geral:

Em 1814, quando o Piemonte se tornou parte do Reino da Sardenha, Drovetti manteve sua nacionalidade e perdeu seu status oficial. Mas sua influência com o paxá ainda era grande. A notícia da fuga de Bonaparte de Elba encorajou-o a pensar que a bandeira francesa logo voaria novamente sobre seu consulado. Oficialmente, ele não foi nomeado cônsul geral até 1821, mas sua posição como representante da França nunca foi contestada (MAYES, 2003, p. 81, tradução nossa).

Conhecido por ser rival de Henry Salt, os seus trabalhos se concentraram na região de Tânis e de Tebas. Com a queda de Napoleão Bonaparte, Drovetti perdeu o seu posto político no Egito, mas manteve a sua residência por lá (viveu cerca de trinta anos no país). Foi nomeado novamente Cônsul Geral da França em 1820, no período de Luís XVIII, no qual reuniu uma segunda coleção de antiguidades que posteriormente foi vendida ao Museu do Louvre. Ele foi considerado um “[...] saqueador implacável que se cercou de um bando de bandidos. Ele subornou autoridades locais, cavou imprudentemente em tumbas e templos, e não estava acima de usar a força para alcançar seus objetivos” (FAGAN; DURRANI; 2016a, 64 p. 37, tradução nossa). Tinha como intérpretes ou guarda costas alguns mamelucos franceses e suas características físicas contribuíram para carregar os monumentos mais pesados.

Figura 7: Gravação de Drovetti em Abu Simbel, 1816.

Fonte: Foto de Hervé Champollion/akg-images43.

Durante anos Drovetti depositou as antiguidades recolhidas no pátio do consulado e esperou o melhor momento (ou a melhor oferta) para vender a sua coleção, que acabou sendo dividida em várias coleções. Ele recebeu ofertas da Alemanha e ofereceu a coleção ao rei da França, Luís XVIII, para compor o acervo do Museu do Louvre, porém, o rei não concordou com o alto valor cobrado. Por fim, as coleções foram separadas em três: a primeira foi vendida por quatrocentas mil liras ao rei do Piemonte, Carlos Félix (que originou o Museu Egípcio de Turim); a segunda foi comprada por duzentos mil francos pelo rei da França, Carlos X (destinada ao Museu do Louvre); e a terceira foi vendida em 1836 ao rei da Prússia, por um pouco menos de trinta mil francos (VERCOUTTER, 2002):

Belzoni, um italiano, forneceu a galeria egípcia do Museu Britânico. As antiguidades de Drovetti formaram a base da magnífica coleção de Turim, enquanto os esforços de Henry Salt melhoraram muito as galerias do Louvre. Todos colheram

43 Disponível em: https://www.akg-images.com/archive/-2UMDHUV1RANX.html Acesso em: 05 mai. 2018. No templo de Dendur, situado no interior do Metropolitan Museum of Art, em Nova York (um presente do Egito pelo auxílio dos Estados Unidos na campanha de salvamento dos monumentos da Núbia, na década de 1960), existe outra gravação de Drovetti e do ano de 1816. 65

as recompensas de fama, notoriedade ou ganho financeiro. O único perdedor foi o Egito (FAGAN, 2004, p. 165, tradução nossa).

O transporte dos monumentos maiores e mais pesados era realizado com a ajuda dos felás (fellahin – camponeses), que os carregavam até às margens do rio Nilo e os depositavam em barcos até Alexandria, para então seguir rumo ao continente europeu:

Uma rápida visita aos museus, tanto o Louvre como os de Turim e de Londres, mostra que os cônsules e seus agentes buscavam, de preferência, monumentos mais impressionantes, os de grandes dimensões, geralmente de granito: obelisco, esfinges, cubas de sarcófagos, estátuas colossais (VERCOUTTER, 2002, p. 67-68).

Donald Reid (2002) ainda citou outros “cônsules-coletores” que acumulavam antiguidades egípcias, como o chanceler do consulado da Áustria no Egito, Giuseppe Nizzoli; o cônsul-geral da Suécia-Noruega, Giovanni Anastasi; e o cônsul geral belga, Stephan Zizinia. Paradoxalmente, foi a partir dessa caça ao tesouro e da tutela material sobre as antiguidades que muitas foram enviadas para fora do território egípcio, aguçando ainda mais o interesse estrangeiro nos estudos da história, da língua e da literatura antigas, culminando no desenvolvimento da ciência arqueológica e egiptológica, como veremos a seguir: “[...] a história da arqueologia tem sido usada algumas vezes para justificar as estratégias pelas quais as potências imperiais incorporam, como a sua própria, a cultura que elas invadem” (MORO- ABADÍA, 2006, p. 12, tradução nossa). O surgimento da Arqueologia, no século XIX, está diretamente relacionado à prática imperialista e ao interesse de recuperar e reconhecer um passado que pela ótica ocidental lhes era alheio: No fundo, a arqueologia é um empreendimento colonialista. Baseia-se e geralmente perpetua os valores das culturas ocidentais. Privilegiando o material sobre o espiritual e o científico sobre o religioso, a prática arqueológica está solidamente fundamentada nos modos ocidentais de conhecer o mundo (SMITH; WOBST, 2005, p. 4).

Segundo as considerações do arqueólogo canadense Bruce G. Trigger (1984, p. 355), “a Arqueologia é fortemente influenciada pela posição que os países e regiões em que é praticada ocupam dentro do moderno sistema mundial”44, dos quais ele destacou três tipos de Arqueologia que podem ser produzidos de acordo com diferentes contextos sociais: nacionalista, colonialista e imperialista. Embora em sua análise a Arqueologia nacionalista tenha sido a mais predominante e os demais tipos não tenham sido totalmente diferenciados

44 A análise de Trigger nesse período foi influenciada pela teoria dos sistemas mundiais do sociólogo Immanuel Wallerstein (HABU; FAWCETT; MATSUNAGA, 2008). 66 um do outro, aqui nos interessa examinar como a Arqueologia colonialista e imperialista foi exercida, sobretudo no Egito, que posteriormente desenvolveu a sua própria Arqueologia de tradição nacionalista45. A Arqueologia colonialista reforçava a discriminação e o preconceito contra os povos que pretendia controlar, pois considerava-os incapazes de promoverem um maior desenvolvimento por si mesmos:

Nesses países, a arqueologia era praticada por uma população colonizadora que não tinha laços históricos com os povos cujo passado eles estavam estudando. Embora os colonizadores tivessem todos os motivos para glorificar seu próprio passado, não tinham motivo para exaltar o passado dos povos que estavam subjugando e suplantando (TRIGGER, 1984, p. 360).

Já a Arqueologia imperialista era praticada por poucos estados com grande influência econômica, política e cultural sobre outras regiões, como o Reino Unido, a União Soviética e os Estados Unidos (TRIGGER, 1984, p. 363). Assim, os seus princípios metodológicos eram aplicados às regiões por eles subjugadas, bem como a criação de instituições e a divulgação de seus estudos, promovendo um conhecimento sobre a história desses povos (o que pode a caracterizar como Arqueologia nacionalista também):

Nem o imperialismo, nem o colonialismo é um simples ato de acumulação e aquisição. Ambos são sustentados e talvez impelidos por potentes formações ideológicas que incluem a noção de que certos territórios e povos precisam e imploram pela dominação, bem como formas de conhecimento filiadas à dominação (SAID, 2011, p. 43, grifo nosso).

Na obra Black Athena, o escritor inglês Martin Bernal (2005, p. 13-14) demonstrou como que os Estudos Clássicos “[...] teriam incorporado os padrões sociais e culturais dos contextos em que se desenvolveram, fornecendo, em troca, argumentos em favor da noção de uma incontestável superioridade europeia sobre todos os outros continentes”, o que os auxiliou na justificativa de suas ações imperialistas. A negação da colonização da Grécia antiga por povos não ocidentais – como os egípcios e os fenícios – e a sua aproximação com o passado cultural europeu evidenciou a sua emergência “[...] como a primeira civilização

45 Posteriormente outras análises foram desenvolvidas, como a que difere a Arqueologia nacional – realizada no interior de determinados estados – da nacionalista, que visa a construção de uma identidade nacional, mas não se restringe apenas à fronteira de seu estado: “a arqueologia nacionalista é frequentemente envolvida na criação e elaboração de identidades nacionais, processos que ocorrem não apenas dentro dos estados, mas também como estados expandem e interagem com outros estados” (KOHL, 1998, p. 226, tradução nossa). Em alguns casos as pesquisas ou incursões arqueológicas que foram promovidas podiam ser ao mesmo tempo imperialistas, colonialistas e nacionalistas, como a atuação de Napoleão Bonaparte no Egito, por exemplo (KOHL, 1998). 67 universal” (BERNAL, 2005, p. 30, tradução nossa) e tramou as bases para a disseminação do caráter universal da Europa – segundo o Modelo Ariano que explicaria as origens da Grécia em oposição ao Modelo Antigo, que não defende apenas as colonizações egípcias e fenícias, mas destaca ainda as “[...] massivas e importantes influências culturais orientais no Egeu” (BERNAL, 2005, p. 26, tradução nossa). A própria Egiptologia, logo após a sua emergência, não apresentava tanto entusiasmo quanto às pesquisas destinadas ao estudo da Antiguidade Greco-Romana (GADY, 2006):

É importante destacar que o Egito antigo foi, gradativamente, retirado de seu passado árabe-islâmico para integrar a história da civilização ocidental. Esse deslocamento epistemológico, uma vez colocado sob os estudos referentes ao orientalismo, permite compreender que uma ideia de Oriente forja as balizas conceituais para o desenvolvimento de um saber sobre o Oriente (ROCHA, p. 238).

Os estudos de Benedict Anderson (2008) sobre o Sudeste Asiático apontaram suas suspeitas em relação à atuação da arqueologia colonial oitocentista dirigida pelo Estado, especialmente pela forma díspar como as populações das colônias eram comparadas em oposição aos seus antepassados e sua relação com o legado que lhes fora outorgado:

Em outros casos, como na Birmânia, o que se imaginava era uma decadência secular, de modo que os nativos contemporâneos não eram mais capazes das realizações dos seus ditos ancestrais. A essa luz, os monumentos reconstruídos, ao lado da pobreza rural circundante, diziam aos nativos: a nossa mera presença mostra que vocês sempre foram, ou há muito tempo se tornaram, incapazes de grandeza ou de autogoverno (ANDERSON, 2008, p. 249).

O mesmo ocorre com o Egito e a questão da construção das pirâmides, por exemplo. Por mais pesquisas científicas que tenham sido desenvolvidas, ainda existem teorias de que esses complexos funerários teriam sido obra de alienígenas ou outros povos não egípcios (ou africanos). Com a chegada dos europeus e a “recuperação” dos monumentos e sítios, “[...] assim museificados, eles eram reposicionados como insígnias de um Estado colonial secular” (ANDERSON, 2008, p. 250). Paralelo às atividades dos cônsules no Egito (influenciada, também, pela prática colecionista exacerbada), no final do século XIX surgiram as chamadas missões científicas, consideradas “[...] as primeiras sociedades eruditas, frequentemente arqueológicas” (GIRAUDY, BOUILHET, 1990, p. 29). Essas missões procuravam recolher fontes e objetos para o estudo científico da história egípcia antiga, porém, não incluía os egípcios modernos. Com o objetivo de reunir documentos e antiguidades para “prover” o conhecimento da cultura egípcia antiga, estudiosos e políticos eram enviados ao Egito, como foi o caso do francês 68

François Auguste Ferdinand Mariette. Ele foi ao Egito em 1850 através do Museu do Louvre (onde era curador assistente), para a aquisição de manuscritos coptas e acabou destinando o dinheiro da compra em escavações realizadas no sítio arqueológico de Saqqara, ao sul do Cairo, onde descobriu o Serapeum, uma necrópole subterrânea dedicada ao deus touro Apis. Também retomou as atividades de retirada da areia que cobriam o corpo da esfinge de Gizé em 1853 (VERCOUTTER, 2002). Oito anos depois, Mariette foi nomeado responsável pela supervisão dos trabalhos arqueológicos desenvolvidos no Egito (“maamour”), cargo que depois foi convertido em Diretor geral do Serviço de Antiguidades (Service des Antiquités). Nesse cargo, ele restringiu a exportação das antiguidades, num período em que “os camponeses egípcios tomaram consciência do valor das antiguidades, que eles mesmo poderão procurar através de escavações clandestinas” (VERCOUTTER, 2002, p. 106), como se antes não houvesse clandestinidade nos trabalhos arqueológicos. A partir daí ele passou a realizar diversas escavações pelo Egito, reunindo os achados no Museu de Boulaq, inaugurado na década de 1860 às margens do rio Nilo, no norte do Cairo (SALES, 2002). O Serviço de Antiguidades passou por inúmeras mudanças ao longo dos anos. A sua criação remonta ao ano de 1858, pelo então vice-rei do Egito, Said Pasha, um dos filhos de Muhammad’ Ali, com o intuito de proteger o tráfico e o comércio ilegal de antiguidades do país (GADY, 2011). Após a sucessão de oito diretores franceses, somente na década de 1950 o departamento se tornou um órgão governamental egípcio, com a desocupação das forças britânicas no território e a nomeação de Mostafa Amer, seu primeiro diretor egípcio46. No período de construção do Museu de Boulaq, Mariette já conhecia os museus do Louvre, de Berlim e de Turim, todos com acervos de antiguidades egípcias. Ele esforçou-se para organizar os objetos no museu, com indicações de cada origem e período47. Em 1890, a sede do museu foi transferida de Boulaq para Gizé e em 1902 para a região central do Cairo, configurando-se no atual Museu Egípcio, em fase de conclusão após a sua reestruturação e ampliação.

46 Anteriormente ligado ao Ministério de Obras Públicas, em 1929 o Serviço foi transferido para o Ministério da Educação; em 1960 passou a integrar o Ministério da Cultura; e em 1971 foi denominado Organização das Antiguidades Egípcias (Egyptian Antiquities Organization – EAO). A alteração para Conselho Supremo de Antiguidades ocorreu em 1994 e permaneceu até 2011, quando se tornou um ministério independente: Ministério de Estado das Antiguidades, transformado em Ministério de Antiguidades do Egito, em 2015. Informações disponíveis na atual página do Ministério: http://www.antiquities.gov.eg/DefaultEn/About Acesso em: 08 mai. 2018. A lista de todos os diretores pode ser consultada no Apêndice. 47 Relativo aos museus otomanos do final do século XIX e como a sua expografia foi modificada em resposta ao discurso colonial, ver: SHAW, Wendy. M. K. Possessors and Possessed: Museums, Archaeology, and the Visualization of History in the Late Ottoman Empire. Berkeley: University of California Press, 2003. 69

Durante a sua estadia no Egito, Mariette recebeu convites para assumir a direção da Biblioteca Nacional da França; um cargo de conservador do Museu do Louvre; uma cátedra no College de France; e um lugar no Senado, aos quais recusou para dar continuidade aos seus trabalhos com as antiguidades do Egito: “o vice-rei conceder-lhe-ia, reconhecido, os títulos de bey e, mais tarde, paxá, quer dizer, o mais alto grau honorifico da administração turca” (SALES, 2002, p. 95)48. Ele também foi o responsável por organizar o pavilhão egípcio da Exposição Universal de Paris, em 1867, como veremos no segundo capítulo. Mariette não permitia que os egípcios copiassem as inscrições nos monumentos e objetos que estavam depositados no museu, e nem a participação deles no Serviço de Antiguidades, com receio de ameaçarem a sua posição e, consequentemente, dos demais estrangeiros que desenvolviam esses estudos, sobretudo os franceses (FAGAN, 2004). Após a sua morte em 1881, o cargo foi ocupado por outro francês, o egiptólogo Gaston Maspero, chefe da Missão Arqueológica Francesa no Cairo (posterior Instituto Francês de Arqueologia Oriental – IFAO, criado no Cairo em maio de 1898). Os franceses mantiveram o controle do Serviço de Antiguidades egípcias até 1952, com a Revolução dos Oficiais Livres: “os serviços arqueológicos coloniais se tornaram instituições de poder e prestígio, convocando os serviços de alguns funcionários com erudição e de capacidade excepcional” (ANDERSON, 2008, p. 246-247). Ao longo do século XIX, outras organizações científicas estrangeiras surgiram, muitas vezes financiadas por museus para aquisição de objetos para as suas coleções, como a sociedade britânica The Egypt Exploration Fund (depois chamada Egyptian Exploration Society), fundada em 1882, pela jornalista e romancista Amelia Edwards e o numismático Reginald Stuart Poole; e a Egyptian Research Society, criada em 1894, e transformada em 1906 na British School of Archaeology in Egypt: “embora ainda sem um Instituto, de 1905 a 1914, a Alemanha patrocinará campanhas de escavação (em Abusir e Tell el-Amarna) através da Deutsche Orient Gesellschaft (SALES, 2002, p. 98-99). Em 1903, foi criada a Missão Arqueológica Italiana (MAI), inicialmente financiada pelo rei Vittorio Emanuele III49 e posteriormente subsidiada pelos Ministérios de Instrução Pública e Assuntos Exteriores (DONADONI; CURTO; ROVERI, 1990). A Missão tinha como líder o professor e egiptólogo italiano Ernesto Schiaparelli (1856-1928), “[...]

48 A designação “paxá” ou “pasha” (lorde) era concedida aos vice-reis otomanos ou governadores das províncias, em contrapartida aos termos “bey” ou “amir”, destinados aos mamelucos (MARSOT, 2007). Após a Revolução de 1952, a utilização desses termos turcos foi proibida (HASSAN, 2002). 49 Pertencente à Casa de Savoia. Reinou na Itália entre 1900 e 1946. 70 responsável pela coleção egípcia do Museu Arqueológico de Florença, entre 1881-1894” (SALES, 2002, p. 99) e posteriormente do Museu Egípcio de Turim. As campanhas eram organizadas anualmente para a concessão de autorização. A MAI foi responsável pela descoberta dos túmulos de Nefertari (esposa de Ramsés II), Maia, Iti e do arquiteto Kha. As pinturas dos túmulos de Maia e Iti e o mobiliário do túmulo de Kha “[...] foram transportados para o Museu Egípcio de Turim onde são, até hoje, consideradas das peças mais importantes” (SALES, 2002, p. 99). Assim como outros exploradores, os métodos de Schiaparelli nas escavações foram bastante criticados50, no entanto, ele foi o primeiro arqueólogo a utilizar a fotografia no Egito, uma de suas grandes contribuições. Tradicionalmente, a historiografia referente à Egiptologia não dispensou tanta atenção aos trabalhos arqueológicos desenvolvidos pela Itália no Egito, como aconteceu com a Alemanha, a Grã-Bretanha e a França, até mesmo pela ausência de publicações italianas a respeito, embora, talvez, pelas circunstâncias de rivalidade franco-britânica em relação ao controle político e cultural do Egito: “a era de ouro da egiptologia [...] revela-se atravessada, até mesmo moldada, pelas rivalidades e nacionalismos coloniais da virada do século” (JARSAILLON, 2017, p. 16, tradução nossa). Mesmo com poucos recursos financeiros e técnicos, a MAI totalizou doze campanhas ao redor do Egito entre 1903 e 1920, que revelaram importantes achados, incluindo sepulturas no Vale das Rainhas, que até então não tinha sido explorado. Em correspondência datada de vinte e nove de abril de 1902, Schiaparelli escreveu ao Ministério da Instrução Pública sobre a importância de criar uma missão da recém unificada Itália na participação das campanhas arqueológicas no Egito, algo que já havia sendo praticado pelas principais nações europeias daquele período.

50 No início, as técnicas de escavação eram bastante precárias, pois não havia uma metodologia sistemática para o trabalho em campo, o que só foi possível a partir de 1881, com a chegada do arqueólogo britânico William Matthew Flinders Petrie no Egito.

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Figura 8: Tabela quantitativa das missões arqueológicas estrangeiras no Egito entre 1903 e 1912.

Fonte: JARSAILLON, 2017, p. 6.

A tabela acima foi elaborada pela pesquisadora francesa Carole Jarsaillon a partir dos relatórios do Serviço de Antiguidades e demonstra a quantidade de permissões de escavações concedidas aos diferentes países entre os anos de 1903 e 1912, somando um total de duzentas e seis, sendo que a Itália obteve o menor número (vinte e dois) dentre os demais países (França, Reino Unido, Alemanha, Estados Unidos e outros) e o Reino Unido alcançou o maior número, sessenta e quatro permissões. Posteriormente, as escavações foram conduzidas pelo egiptólogo italiano Giulio Farina. Ao todo, eles legaram mais de trinta mil artefatos para Turim. É preciso lembrarmos que durante esse período estava em voga o chamado sistema partage (do francês, compartilhado), no qual as equipes arqueológicas dividiam os achados com o país em que estavam trabalhando: “esta questão do compartilhamento de antiguidades explica as tensões muito fortes entre os diretores franceses do Serviço e os arqueólogos anglo- saxões” (GADY, 2011, p. 7, tradução nossa). No Egito, esse sistema se estendeu até o início do século XX, quando os egípcios passaram a se envolver e colaborar gradativamente com a Arqueologia local, possibilitados pela conquista de independência parcial, como veremos no próximo tópico.

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1.4 A OCIDENTALIZAÇÃO DO EGITO POR MEIO DA CIÊNCIA: A EGIPTOLOGIA

A sistematização do estudo da Arqueologia egípcia ficou conhecida como a Egiptologia, “[...] considerada um produto da erudição ocidental moderna” (EL-DALY, 2005, p. 1, tradução nossa). Comumente referida como uma das poucas ciências que possuem uma datação específica – 1822, ano em que o jovem linguista francês Jean-François Champollion decifrou corretamente os sinais que formam a escrita egípcia antiga, conhecidos como hieróglifos. As fontes recorrentes mais utilizadas para se referir ao passado faraônico são os registros deixados pelos viajantes (majoritariamente europeus) e a cultura material em si, proveniente dessas viagens e, posteriormente, das escavações arqueológicas. Como vimos, a batalha travada entre o poder europeu pela recolha e posse da história egípcia antiga se estendeu à cultura material. Em relação aos estudos sobre o Oriente Próximo, o desenvolvimento da Assiriologia e da Egiptologia no século XIX, foi possibilitado pelo auxílio de textos e inscrições contidas em monumentos e outros suportes, como estelas, tabletes de argilas e obeliscos, acrescentando cerca de “[...] três mil anos de história a duas regiões do mundo de particular interesse em termos de estudos bíblicos, regiões sobre as quais, todavia, outrora não se dispunha de documentação direta” (TRIGGER, 2004, p. 40). Iniciativas anteriores de decifração da escrita egípcia antiga já haviam sido realizadas, como no século XVII, pelo jesuíta Athanasius Kircher, que publicou um manuscrito composto por três volumes intitulado Oedipus Aegyptiacus. O terceiro volume dessa obra contém os seus estudos na tentativa de decifração, que posteriormente foram contestados por alguns estudiosos. O médico e linguista inglês Thomas Young (1773-1829) fez considerações importantes, pois “[...] reconheceu o copta como a língua do antigo Egito e deduziu que alguns sinais demóticos derivavam de hieróglifos e que hieróglifos misturavam sinais alfabéticos e não alfabéticos” (REID, 2002, p. 41, tradução nossa). No entanto, coube ao jovem linguista francês, Champollion, realizar a leitura correta dos hieróglifos, após o seu primeiro contato (com apenas doze anos) com as inscrições contidas na Pedra de Rosetta, através de cópias que foram enviadas à França antes da entrega aos ingleses: “os britânicos se gabavam de segurar a Pedra de Rosetta, mas foi preciso um francês para lê-la!” (REID, 2002, p. 41, tradução nossa). Desde muito cedo, Champollion se dedicou ao aprendizado de diferentes línguas, especialmente as orientais, até ser enviado a Paris para complementar os estudos: “quero 73 saber o egípcio como o meu francês, porque nessa língua será baseado o meu grande trabalho sobre os papiros egípcios” (CHAMPOLLION apud VERCOUTTER, 2002, p. 91). Esse trabalho culminou na decifração dos hieróglifos, em 1822, os quais ele verificou que conjugam sinais ideográficos, fonéticos e determinativos (SANTOS, 2010). Pouco tempo depois ele viajou até Turim para pesquisar a coleção adquirida de Drovetti e que anteriormente fora rejeitada pela França: “lá ele aconselhou sobre a organização do primeiro grande museu egípcio do mundo” (REID, 2002, p. 46, tradução nossa), como veremos no próximo capítulo. Embora Mariette, Maspero e Champollion sejam referidos como os grandes nomes da Egiptologia, “[...] também devem ser lembrados como atores influentes no imperialismo de seus dias” (REID, 2002, p. 11, tradução nossa). Champollion é comumente reverenciado pelo seu grande trabalho em relação à ciência egiptológica, mas para Said (2011, p. 197), a Egiptologia “[...] estava encarnada na pessoa de Auguste Mariette [...], cuja nacionalidade e formação francesas faziam parte de uma genealogia imperial fundamental”. No total, Mariette desenvolveu pesquisas em cerca de trinta e cinco sítios arqueológicos espalhados pelo Egito:

[...] Mariette dedicava-se regularmente a escavar e esvaziar os sítios arqueológicos, de modo que os museus europeus (sobretudo o Louvre) aumentavam seus tesouros egípcios, enquanto Mariette expunha com cinismo as tumbas verdadeiras vazias no Egito (SAID, 2011, p. 201).

Nas discussões sobre a descolonização da Egiptologia, encontramos diferentes autores que se debruçaram nos estudos de fontes e períodos antes negligenciados pelos acadêmicos europeus. O próprio nome que designa a Egiptologia foi dado pelos ocidentais, que a definiram como uma ciência que estuda o Egito antigo, abarcando o início do período dinástico (3000 a.C.) até a chegada de Alexandre (330 a.C.), excluindo, assim, os períodos pré-histórico, copta e islâmico, competência dos arabistas:

[...] Timothy Mitchell demonstrou como a egiptologia tem funcionado como uma instituição administrativa entre outras especialmente autorizadas, sob a bandeira da perícia técnica, para administrar a riqueza, os recursos e, mais importante, a população do Egito. Como mostrou Mitchell, essas formas de conhecimento especializado constituíram seu próprio modo especial de poder (COLLA, 2007, p. 15, tradução nossa).

No jardim do próprio Museu Egípcio, no Cairo, foi inaugurado em 1904 um monumento que homenageia apenas os egiptólogos europeus: “[...] seis egiptólogos franceses, cinco britânicos, quatro alemães, três italianos, um holandês, um dinamarquês e um sueco” (REID, 2002, p. 3-5, tradução nossa), além de um túmulo e uma estátua de Mariette ao centro 74 do monumento. Embora nem todos os egiptólogos ocidentais fossem alheios aos interesses dos egípcios pelo desenvolvimento de seus estudos, é notório que “a história da egiptologia é a dos heróis e vilões, de feitos ousados e incríveis descobertas, de aventura, pesquisa de alto nível e absolutamente desonesta” (FAGAN, 2004, p. 255, tradução nossa, grifo nosso). Essa desonestidade se deve ao fato da pouca credibilidade facultada aos acadêmicos egípcios e mesmo pelas crenças “populares” dos muçulmanos sobre o passado, especialmente no período de consolidação da própria disciplina, que priorizou o estudo sistemático da escrita hieroglífica. A partir de premissas generalizantes e discriminatórias sobre a população egípcia e a sua “competência intelectual”, os europeus exerceram a sua influência no campo científico:

[...] o conhecimento que os egiptólogos produzem, como outras ordens de conhecimento, sempre articulou uma forma de poder: às vezes foi organizada para justificar fins explicitamente coloniais, outras vezes serviu para contestar o domínio colonial e quase sempre foi usada para disciplinar o campesinato do Alto Egito (COLLA, 2007, p. 18, tradução nossa).

Para Donald Reid (1985), o desenvolvimento da Egiptologia pelos próprios egípcios foi comprometido devido a dois fatores: primeiro, pelo fato da identidade islâmica não examinar relações com os antigos egípcios – pagãos, logo, divergente da crença islâmica monoteísta51; segundo, pela influência do imperialismo europeu que dominou os estudos iniciais dessa área: “[...] os egiptólogos franceses e britânicos durante o auge do imperialismo ocidental deliberadamente reprimiram o crescente interesse egípcio pela antiga civilização do país” (REID, 1985, p. 246, tradução nossa). Mesmo o escritor egípcio Rifa’a al-Tahtawi, o primeiro a escrever sobre a história dos egípcios antigos em árabe, ainda mantinha uma visão eurocêntrica do seu próprio passado (EL-DALY, 2005). Nesse cenário, os europeus fundaram as primeiras instituições de pesquisa dedicadas ao estudo da história antiga egípcia, como o Instituto do Egito, o Serviço de Antiguidades, o Museu de Boulaq, o Museu Greco-Romano (Alexandria) e o Museu de Arte Árabe (atual Museu de Arte Islâmica). Essa configuração ilustra a base do desenvolvimento da Egiptologia, estabelecida entre o trabalho de campo e o museu. A partir da segunda metade do século XIX, a disputa entre os franceses e os britânicos pelas antiguidades do Egito se intensificou e ele foi entregue “[...] em concessões a todos os

51 Podemos considerar também a ascensão do Cristianismo e o seu papel no Egito, no qual “os cristãos desfiguraram ou estocaram imagens idólatras e transformaram os templos pagãos em igrejas (REID, 2002, p. 24, tradução nossa). 75 que oferecem garantias científicas” (GADY, 2011, p. 3). Entretanto, foi durante esse período que a Arqueologia egípcia se destacou, com importantes descobertas para o seu desenvolvimento e estudo: “todos os anos, uma média de vinte sites são pesquisados por acadêmicos ocidentais que não são membros do Serviço, um terço pelos britânicos e um quarto pelos franceses” (GADY, 2011, p. 3). Na década de 1860, importantes pesquisas foram realizadas em Alexandria pelo astrônomo Mahmud el-Falaki, por ordem do governante Ismail Pasha, que o levaram à publicação de um mapa que representava a antiga cidade (GADY, 2011, p. 4). No entanto, em 1902 foi determinado que apenas os membros de sociedades científicas poderiam realizar escavações no Egito, o que excluía praticamente todos os egípcios, que não possuíam uma formação à altura, muito menos recursos financeiros. No artigo “Nacionalizando o passado faraônico: Egiptologia, imperialismo e nacionalismo egípcio, 1922-1952”, Donald Reid investigou a participação dos egípcios no processo de nacionalização da ciência egiptológica entre os anos de 1922 (independência do Egito) e 1952 (Revolução dos Oficiais Livres. Em um primeiro momento, os egípcios tomaram para si o controle do Serviço de Antiguidades do país, do Museu Egípcio e das escavações, para depois empreender esforços na consolidação de um discurso baseado no sentimento de orgulho do passado faraônico, com o objetivo de fortalecer a identidade egípcia moderna: “esse esforço foi paralelo e fez parte da luta nacional para reunir todo o público por trás da demanda por independência total” (REID, 1997, p. 128, tradução nossa). Para o autor (1985), a descolonização da Egiptologia só foi possível a partir dos anos de 1920, com a fundação de uma escola nacional de Arqueologia e a inserção de poucos egípcios no Serviço de Antiguidades, como Ahmad Kamal, o único egiptólogo egípcio que havia se destacado até então, embora a inserção de egípcios na “vida intelectual” não fosse limitada somente à área da Egiptologia (EL-DALY, 2005). Kamal trabalhou no museu de Boulaq como secretário, tradutor e curador assistente, logo após a morte de Auguste Mariette. Entre 1882 e 1886 ele lecionou Arqueologia e hieróglifos para um grupo pequeno de alunos, indicado por Gaston Maspero. Ao longo dos anos – em parceria com outros colegas – ele publicou alguns livros em árabe sobre a história do Egito, os hieróglifos e guias de viagens: “Kamal passou vinte e cinco anos trabalhando em um dicionário de 22 volumes, árabe-francês-egípcio, enfatizando as afinidades semíticas do egípcio” (REID, 1985, p. 237, tradução nossa)52.

52 Segundo El-Daly (2005), durante o período colonial os britânicos e franceses impediram a publicação do dicionário, que só teve um primeiro volume (letra A) lançado recentemente no Cairo. 76

Em 1923, foi criada uma disciplina de Egiptologia no Higher Teachers College, com Kamal como diretor. Infelizmente, ele faleceu pouco tempo depois. No ano seguinte, foi oferecido o primeiro curso sobre a língua egípcia antiga, ministrado por um professor russo na universidade (REID, 1985, p. 241). Após a sua morte, os seus estudos tiveram continuidade através de seus alunos. Em relação ao Serviço de Antiguidades, só foi dirigido por um diretor egípcio, Mustafa Amer, após noventa e quatro anos de legado francês (REID, 1985). Outro fator importante que contribuiu para o interesse e a inserção dos egípcios na Arqueologia e na Egiptologia (embora ainda limitados à elite) foi a descoberta da tumba de Tutankhamon, em 1922, pelo arqueólogo inglês Howard Carter e sua equipe, no mesmo ano da concessão de independência parcial do Egito. Nesse momento, as autoridades não permitiram a retirada dos achados do país, como era feito anteriormente; o número de livros sobre o Egito antigo publicados em árabe aumentou; um egípcio, Selim Hassan, foi nomeado curador adjunto do museu e posteriormente o primeiro professor universitário egípcio; e houve a oferta de algumas bolsas de estudo para fora do país, uma das quais Selim Hassan foi o beneficiário (REID, 1985). Uma das constatações de Donald Reid (1985, p. 246, tradução nossa) ao escrever o artigo sobre a Egiptologia egípcia era que “a maioria dos egípcios de classe média e baixa permanece imune ao fascínio do passado faraônico”. Atualmente, os egípcios trabalham em parceria com missões estrangeiras, mas é de reponsabilidade do atual Ministério de Antiguidades autorizar as licenças e os locais para as escavações arqueológicas. O próprio território do Vale dos Reis onde são realizadas inúmeras escavações nunca teve uma equipe egípcia liderando os trabalhos (HAWASS, 2009)53. Com as desigualdades sociais, ainda há bastante disparidade entre os egípcios, no qual a elite exerce um colonialismo interno informal “[...] baseado na cooptação de narrativas coloniais ocidentais. Acabar com sua legitimação ideológica é, portanto, inseparável da descolonização da egiptologia” (LANGER, 2017, p. 194, tradução nossa). Embora a Egiptologia tenha se modificado atualmente a partir de novas regras sobre as escavações e a proteção do patrimônio arqueológico do Egito, bem como o interesse dessa área por alguns cidadãos egípcios, ainda é notadamente uma disciplina dominada pelos estrangeiros, sobretudo europeus e norte-americanos. Basta observarmos a própria produção intelectual ou literária, pois qualquer um que deseje aprofundar os seus estudos nesse campo

53 Recentemente, a primeira equipe coordenada por um arqueólogo egípcio (Zahi Hawass) deu início aos trabalhos de escavação na região conhecida como Vale dos Macacos, em Luxor, na margem ocidental do rio Nilo. 77 não encontrará uma variedade de obras especializadas no Egito, mas fora dele, principalmente disponibilizadas em idiomas como o inglês, o francês e o alemão, línguas que precisam ser conhecidas pelos egiptólogos egípcios. No entanto, o contrário não ocorre, pois a maioria dos egiptólogos estrangeiros não domina a língua árabe e “quando os egiptólogos egípcios publicam em árabe, eles arriscam seus artigos nunca serem lidos pelos egiptólogos ocidentais que dominam o campo” (WYNN, 2007, p. 65, tradução nossa)54. Desse modo, a afirmação de Said (2011, p. 197) de que “[...] a egiptologia é a egiptologia e não o Egito” faz todo o sentido. Assim como a crítica de Johannes Fabian em relação à construção de próprio objeto de estudo da Antropologia na obra O Tempo e o Outro, o mesmo o fez o cientista social Jack Goody, em O roubo da História, no qual o autor examinou a tradição historiográfica etnocêntrica ocidental de negação (ou mesmo apagamento) das principais inovações e mesmo dos valores e emoções orientais, com destaque para a análise do continente asiático: “[...] é necessária a consciência de que até mesmo a espinha dorsal da historiografia – a localização dos fatos no tempo e no espaço – é variável, objeto de construção social, por isso, sujeita a mudança” (GOODY, 2008, p. 23-24). Consequentemente, a precisão espaço-temporal dos fatos históricos é delimitada pelos cientistas, logo, é preciso dar ênfase às histórias não ocidentais: “o poder de narrar, ou de impedir que se formem e surjam outras narrativas, é muito importante para a cultura e o imperialismo, e constitui uma das principais conexões entre ambos” (SAID, 2011, p. 11). Em relação à história do Egito antigo, esse tipo de negligência historiográfica foi o que motivou o egiptólogo egípcio Okasha El-Daly (2005) a desenvolver em estudo que cobre um período de mil anos, “[...] desde a anexação muçulmana do Egito no século VII d. C. até a conquista otomana no século XVI”. Através de pesquisas em manuscritos árabes (especialmente de escritores egípcios), o autor procurou demonstrar o interesse dos árabes medievais na tentativa de conhecer os egípcios antigos (ou pré-islâmicos) e a relevância desses estudos para os historiadores e arqueólogos – o que é extremamente expressivo, já que estamos falando de uma lacuna de mais de mil anos (que foi interrompida somente durante o período do Iluminismo). El-Daly reconheceu que pelo fato de os manuscritos estarem espalhados em diferentes regiões, o seu acesso é um pouco mais difícil e as suas cópias caras, pois muitos deles

54 Essa crítica é frequente no campo da Antropologia, no qual alguns autores, como o antropólogo Maxwell Owusu afirmam que a maioria dos “[...] etnógrafos ‘clássicos’ falharam em cumprir uma condição básica: o domínio da língua dos povos que eles estudavam” (FABIAN, 2013, p. 67). 78 possuem inúmeros volumes para serem analisados. Além disso, a sua tradução não é uma tarefa fácil. Contudo, ele criticou a disparidade da atenção concedida aos manuscritos árabes medievais que se referem às Ciências Naturais, à Medicina ou à Química em relação às demais crônicas sobre outros assuntos, consideradas, muitas vezes, “[...] estórias fantásticas e exóticas desprovidas de valor histórico” (EL-DALY, 2005, p. 8, tradução nossa):

Ao contrário da visão predominante de que os muçulmanos/árabes/egípcios não tinham interesse no Egito Antigo, as fontes mostram não apenas um grande interesse, mas também uma séria erudição que procura entender e se beneficiar do estudo do Egito Antigo (EL-DALY, 2005, p. 4, tradução nossa).

Durante o período colonial, a história egípcia chegou a ser abolida do currículo escolar: “por exemplo, em 1905, os cursos de história da escola secundária preocupavam-se quase exclusivamente com a história europeia” (EL-DALY, 2005, p. 4, tradução nossa). A visão eurocêntrica do período faraônico se perpetuou nos cursos superiores do próprio Egito, como, por exemplo, a retórica que salienta o ódio mantido pelos persas contra os egípcios durante a sua ocupação no século V a. C., dos quais não se possui muitas evidências (EL- DALY, 2005). Como um efeito do poder, a literatura do Império dispôs de mecanismos que instituíram um “[...] processo de visibilidade e reconhecimento que continua sempre sendo uma percepção autoritária” (BHABHA, 1998, p. 158). No entanto, o lugar da alteridade se fez presente, agindo “[...] constantemente, embora de forma desigual, ao longo de toda a fronteira da autorização” (BHABHA, 1998, p. 159). Um exemplo disso é a obra Al-Jabarti’s Chronicle of the French Occupation, 1798 (Crônica da Ocupação Francesa de Al-Jabarti, 1798), escrita por um egípcio que presenciou aquele período (SAID, 2011)55. Se na Description os franceses tentaram “normalizar” e justificar a presença estrangeira no Egito, nas Chronicle o escritor árabe se viu envolvido emocionalmente durante o período: “a divergência entre a política que produz a Description e a reação imediata de Jabarti é profunda, ressaltando o terreno que disputam com tamanha desigualdade” (SAID, 2011, p. 78). Em suas crônicas, o autor refutou a ideia de que os franceses estariam ao lado dos egípcios contra os mamelucos e de que eles seriam a favor da religião egípcia, os acusando de “materialistas antirreligiosos” (REID, 2002). As crônicas de Al-Jabarti deslocam-se para outra forma de enunciação, sinalizando um lugar híbrido, alternativo, segundo as preposições de Homi Bhabha (1998).

55 Além de Al-Jabarti, outras produções árabes abordaram o período da ocupação francesa no Egito, escritas no início do século XIX por Niqula al-Turk e Haydar al-Shihabi (ABU-LUGHOD, 1963). 79

No interior da visão romântica que é comumente difundida pela literatura e historiografia ocidentais, os “sábios” europeus são consagrados como “os salvadores” dos monumentos e das antiguidades (não somente as egípcias), e muitos autores afirmam que se não fosse por esses homens, provavelmente esses objetos não maios existiriam, no entanto, não temos como saber: “sob o pretexto de que a arte egípcia antiga só teria chances de conservação se levada para fora do país, conseguiu-se um álibi moral inconsistente para roubos muito ordinários” (EHLEBRACHT, 1981, p. 17). O que sabemos é que raramente nesses relatos egiptológicos foi mencionada a maneira como muitos dos exploradores chegaram até os monumentos (através de explosões e demais danos) e de como os deixavam (muitos com inscrições grotescas de seus próprios nomes): “[...] eles geralmente enfatizam que a necessidade e o benefício da aquisição superam todo o dano” (COLLA, 2007, p. 12, tradução nossa). Foi somente a partir da década de 1970 que novos relatos começaram a surgir, viabilizando uma história revisionista da Arqueologia colonial no Egito: “esta nova narrativa, produzida principalmente no Ocidente, criticou os projetos europeus de aquisição, ao mesmo tempo em que os caracterizava como pilhagem aleatória e roubo organizado” (COLLA, 2007, p. 12, tradução nossa). Obras que denunciam a violação da própria história egípcia começaram a surgir, como The Rape of the Nile (O estupro do Nilo) ou The Rape of Egypt (O estupro do Egito), que “[...] transmitem o recente reconhecimento ocidental do lado imperialista da Egiptologia do século XIX” (REID, 2002, p. 11, tradução nossa)56. Na perspectiva da narrativa colonial, não encontramos muitas menções sobre o interesse dos egípcios modernos em sua própria história, especialmente da cultura material, onde o discurso esbarra na questão da conservação: “eles argumentam a legitimidade da arqueologia colonial e da aquisição de artefatos em termos de conservação de objetos que, se deixados in situ, certamente teriam sido perdidos ou destruídos” (COLLA, 2007, p. 11-12, tradução nossa). Já a concepção da narrativa nacional defende a propriedade dos povos nativos em relação ao patrimônio cultural:

[...] o colonial argumenta que os egípcios eram indiferentes a antiguidades e, portanto, carentes de cultura, enquanto o nacional argumenta que os egípcios modernos têm uma pretensão mais legítima às antiguidades egípcias do que os europeus; as alegações coloniais de que o melhor lar para os artefatos faraônicos é em Londres ou Paris, enquanto o nacional argumenta que eles pertencem ao Cairo; o colonial afirma que os antigos egípcios eram os progenitores indiretos da civilização

56 No contexto pós-colonial, tendências historiográficas recentes abriram também espaço para a inserção dos estudos egiptológicos dentro de uma visão afrocêntrica, como a discussão sobre a raça dos antigos egípcios e o seu reconhecimento enquanto parte do continente africano, entre outras discussões. 80

ocidental, enquanto o nacional os reivindica como ancestrais diretos dos egípcios modernos (COLLA, 2007, p. 13-14, tradução nossa).

Esses argumentos ainda são frequentes na negativa de devolução de alguns monumentos e antiguidades egípcias e também eram utilizados como justificativa pela baixa produção literária ou mesmo acadêmica sobre a história egípcia (seja ela antiga ou contemporânea). Em relação aos documentos produzidos durante a ocupação francesa no Egito, por exemplo, mais de dois terços se encontravam em Paris e os que se estavam no Cairo eram cópias que, muitas vezes, dificultavam a leitura e a tradução (AL-KHÛLÎ; ´ÎSÂ, 2008). Em suma, procuramos demonstrar como a história e a cultura do Egito antigo foram representadas e apropriadas no contexto do Imperialismo francês e britânico, sobretudo através de relações de conhecimento e poder, nas quais o Egito desempenhou um papel fundamental nessa conjuntura. Adiante, analisaremos a forma de apresentação desse conhecimento ao público por meio de exposições e da institucionalização das coleções privadas pelos nascentes museus europeus.

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CAPÍTULO 2 DELINEAMENTOS DO PODER COLONIAL: A CONSTITUIÇÃO DOS ACERVOS DE ANTIGUIDADES EGÍPCIAS NOS PRIMEIROS MUSEUS EUROPEUS

“[...] Os museus e a imaginação museologizante são profundamente políticos”. (ANDERSON, 2008).

“Tudo é silêncio, estou neste deserto para encontrar-te, amada Roma? Todas aquelas figuras que uma vez, em outro lugar, eu prazerosamente cumprimentava...Aqui um fragmento de estátua, ali um busto, pernas cruelmente desmembradas – tudo amontoado nesta lúgubre sala: em um museu! Medo e tristeza me perseguem”. (HERDER apud SUANO, 1986).

“É mais fácil visualizar a maioria das relíquias em museus e arenas públicas do que in situ”. (LOWENTHAL, 2015).

Como demonstramos no capítulo anterior, uma das formas do exercício do poder colonial se desenvolveu por meio científico e cultural, no qual a diplomacia teve um papel essencial. Em relação ao Egito, mas não somente, a apropriação e a transferência indiscriminada de documentos, objetos, monumentos e até restos mortais (como são os casos das múmias ou parte delas) contribuíram para a consolidação de estudos e pesquisas sobre a história egípcia antiga, assim como o estabelecimento de coleções museológicas dos nascentes museus europeus. Para que possamos compreender de que forma essas coleções foram institucionalizadas no espaço museal, é preciso conhecer a biografia dos objetos que a compõem (KOPYTOFF, 2008) através de seus deslocamentos e de sua circulação. Como identificamos, a coleta das antiguidades egípcias se intensificou a partir do século XVI, “com as notícias dos viajantes europeus, e ganhou os espíritos cultos da Europa após a expedição napoleônica ao Egito em finais do século XVIII” (ARAÚJO, 1987, p. 243). No entanto, o ato de “colecionar” (independentemente do tipo de coleção), possui as suas próprias implicações, convenientes a critérios subjetivos de cada colecionador, mas 82 também condizentes às características do gosto e das tendências de cada época, modificadas com o passar do tempo:

[...] não se podem encarar os objetos independentemente dos homens, que, ao servirem-se deles, lhes conferem funções e, no caso dos semióforos, significados. Mas pela mesma razão os homens e os seus comportamentos não poderiam ser encarados sem os objetos de que se servem e que co-determinam o seu lugar na hierarquia social, os seus papéis e as suas identidades (POMIAN, 1998, p. 95).

Nessa perspectiva, transitaremos pelos conceitos de coleção a partir das análises de autores específicos, particularmente Jean Baudrillard, Krzysztof Pomian e James Clifford, até o momento em que as coleções foram destinadas aos museus, ocasião em que o seu status enquanto coleção privada transitou para a esfera pública e institucional57. A transformação do olhar estrangeiro sobre as antiguidades egípcias que passaram de curiosidades/exóticas/maravilhosas para objetos de valor artístico e científico provenientes de escavações arqueológicas foi fundamental para a sua inserção no “mundo dos museus”, que aos poucos foram moldados e configurados de acordo com as tendências de cada período. Paralelo a isso, durante o século XIX houve a difusão das feiras ou exposições universais, nas quais as novas potências industriais exibiam a sua influência através da representação de culturas distintas. Alguns museus como o Victoria and Albert Museum e o Museu de Ciências de Londres; o Museu Nacional de Artes Africanas e Oceânicas de Paris; e o Museu da Ciência e Indústria de Chicago foram criados a partir das sucessivas Exposições que ocorreram em 1851, 1931 e 1933, além do incremento de coleções de outros museus (RYDELL, 2006). Com o objetivo de evidenciar a constituição dos acervos de antiguidades egípcias nos museus da Europa – e sem perder de vista o foco nos principais objetos que estão sendo reclamados pelo Egito no processo de repatriação –, priorizaremos a análise dessas coleções em três instituições: o Museu Britânico, de Londres; o Museu do Louvre, de Paris; e o Museu Egípcio de Turim, na Itália. Enquanto os dois primeiros se enquadram na tipologia moderna de museus enciclopédicos ou universalistas, o último é dedicado a uma coleção especializada, sendo considerado o primeiro museu egípcio do mundo. Contudo, como veremos, desde o princípio esses museus convergem com o modelo de transmissão de valores universais, assimilados no histórico de sua gênese e nos seus pressupostos museológicos e expográficos.

57 Embora os autores citados façam essa distinção, é importante ressaltarmos que o conceito de coleção privada em épocas anteriores difere-se completamente do conceito de coleção após a criação dos museus. A partir da sua institucionalização, elas receberam (e ainda recebem) tratamentos múltiplos, que variam de acordo com a sua função, significado, tipologia e outras atribuições. 83

2.1 VITRINES DO COLONIALISMO: COLEÇÕES, MUSEUS E EXPOSIÇÕES UNIVERSAIS

A afirmação abaixo de Richard Grove sintetiza a multiplicidade de definições, tipologias e funções que uma só instituição – hoje, designada museu – pode vir a assumir:

Um hospital é um hospital. Uma biblioteca é uma biblioteca. Uma rosa é uma rosa. Mas um museu é Colonial Williamsburg, Mrs. Wilkerson's Figure Bottle Museum, the Museum of Modern Art, the Sea Lion Caves, the American Museum of Natural History, the Barton Museum of Whiskey History, The Cloisters, and Noell's Ark and Chimpanzee Farm and Gorilla Show (GROVE, 1969, apud ALEXANDER; ALEXANDER, 2008, p. 1, tradução nossa).

A origem moderna dos primeiros museus ocidentais está diretamente relacionada à prática do colecionamento (ou antiquária). Tal prática já foi amplamente explorada por diferentes áreas do conhecimento, almejando “[...] entender os desejos e intenções contidos na própria iniciativa de constituir uma coleção” (ALMEIDA, 2001, p. 123), esta última subjetiva à história e ao gosto de cada colecionador. Para o curador norte-americano Francis Henry Taylor (1948, p. 17), “as coleções são meramente as ilustrações tangíveis dos processos comuns da história econômica e mostram as tendências do gosto histórico”, sendo parte dos registros de pessoas influentes que se destacaram em sua época, variando de acordo com cada região. No entanto, o autor demonstrou que apesar dessas variantes, haviam muitas semelhanças em seus gostos e ambições58. Contudo, a definição de coleção ou do ato de colecionar varia de acordo com o autor e a sua área de conhecimento. Alguns a caracterizam como uma categoria de pensamento, histórica e culturalmente relativa; outros a postulam como uma prática restrita ao mundo ocidental; enquanto estudos mais recentes tratam a coleção como uma categoria universal (GONÇALVES, 2007). O antropólogo norte-americano James Clifford reconheceu o colecionamento enquanto uma prática universal, embora tenha se concentrado em analisar a sua incidência em determinadas sociedades. Clifford (1994, p. 79) avaliou que “coletar – pelo menos no Ocidente, onde geralmente se pensa o tempo como linear e irreversível – pressupõe resgatar fenômenos da decadência ou perda histórica inevitáveis”. Para ele, o ato de colecionar no Ocidente se distingue de outras sociedades por sua relação com noções como acumulação, preservação, temporalidade e ordem:

58 A obra de Taylor, The Taste of Angels (O gosto dos anjos), abarcou um longo período de análise, desde o Egito antigo até as guerras napoleônicas. 84

Em resumo, para o autor, o colecionamento está no coração mesmo dos processos de formação de uma subjetividade moderna no ocidente, a partir da relação deste com as chamadas sociedades “primitivas” ou “exóticas”. Nas práticas que desencadeiam esses processos fazem-se presentes valores centrais de ordem epistemológica, estética e política (GONÇALVES, 2007, p. 49).

No campo simbólico, o historiador polonês Krzysztof Pomian (1984, p. 53) definiu a coleção como “um conjunto de objetos naturais ou artificiais, mantidos temporária ou definitivamente fora do circuito das atividades econômicas, sujeitos a uma proteção especial num local fechado preparado para esse fim, e expostos ao olhar do público”. Salientando as suas dimensões econômica, histórica e social, o autor também pontuou a faculdade mediadora que uma coleção pode adquirir através dos objetos heterogêneos que a compõem, sendo necessário que estes sejam lançados ao olhar público. No âmbito da Museologia, a análise de Pomian corrobora com o conceito de coleção postulado na obra Conceitos-chave de Museologia, que a define como:

[...] um conjunto de objetos materiais ou imateriais (obras, artefatos, mentefatos, espécimes, documentos arquivísticos, testemunhos, etc.) que um indivíduo, ou um estabelecimento, se responsabilizou por reunir, classificar, selecionar e conservar em um contexto seguro e que, com frequência, é comunicada a um público mais ou menos vasto, seja esta uma coleção pública ou privada (DESVALLÉES; MAIRESSE, 2013, p. 32).

Nesse caso, o conjunto de objetos reunidos deve ser coerente e significativo para que possa ser definido enquanto uma coleção. No domínio dos museus, o conceito de coleção pode variar conforme a sua natureza institucional ou ainda de acordo com a natureza material ou imaterial de seus suportes59 (DESVALLÉES; MAIRESSE, 2013). No espaço institucional do museu, Pomian (1984, p. 71) caracterizou os objetos como semióforos, ou seja, “objetos que não têm utilidade”, mas que “são dotados de um significado”. Para ele, a coleção “[...] é um domínio único”, que deveria ser estudada por si só, com ênfase na produção, circulação e “consumo” dos objetos semióforos. Nessa categoria também estão incluídos os objetos considerados raros ou “exóticos”, qualificados como obras de arte60 (POMIAN, 1990). Enquanto semióforos, esses objetos61 não possuem valor de uso, mas de troca, pois carregam

59 Os autores salientam que essa noção não corresponde “[...] a certos modelos de museus que não possuem coleções ou àqueles em que a coleção não se situa no coração do seu projeto científico” (DESVALÉES; MAIRESSE, 2013, p. 32). 60 As obras de arte são assim definidas por não possuírem uma utilização específica no momento de sua produção (externa ao espaço do museu), além de estarem destinadas ao ornamento e à decoração (POMIAN, 1990). 61 Os semióforos surgem a partir de uma sucessão histórica e integram um grupo maior de objetos visíveis classificados por Pomian (1998). Os demais são: corpos, restos, coisas e media. 85 consigo sinais invisíveis de vestígios de outrora, tendo como objetivo torná-los visíveis. Para isso, precisam de uma série de elementos que os destaquem no espaço ou no ambiente em que serão exibidos (POMIAN, 1998). O sociólogo francês Jean Baudrillard (1973, p. 94) distinguiu duas funções básicas dos objetos: a de ser utilizado e a de ser possuído. Os objetos que são possuídos, nessa distinção, são aqueles que se tornaram parte de uma coleção, pois deixaram de ser utilizados cotidianamente ou simplesmente não possuem mais a mesma função prática e, assim, passam a ser qualificados e organizados pelos indivíduos. Para Baudrillard (1973, p. 103), “a problemática temporal é essencial à coleção”, ao passo que os indícios culturais do tempo podem ser substituídos através da organização de uma coleção de objetos (especialmente os objetos antigos). Desde a Antiguidade encontramos registros da formação de coleções distintas, na Mesopotâmia, no Egito, na Grécia e em Roma, coleções essas que durante a Idade Média eram tratadas como relíquias e tesouros (muitas vezes sagrados) e guardados em lugares religiosos, como as igrejas e os mosteiros. Durante o Renascimento as coleções particulares proliferaram, sobretudo as dos príncipes e dos reis que as mantinham em seus palácios: “neste período começa a se estabelecer um padrão de colecionismo por toda a Europa” (COSTA, 2007, p. 31). Após o rompimento das principais ideias religiosas predominantes na Idade Média, como a ênfase no teocentrismo ou na presença de Deus em todas as coisas, emergiu o Humanismo, um movimento intelectual que designava o Homem como centro de tudo (antropocentrismo). Os humanistas figuravam entre os homens que mantinham coleções de objetos e obras de arte, com o intuito de representar todo o conhecimento que se possuía naquela época: “[...] a partir do núcleo inicial constituído pelos humanistas italianos, o entusiasmo pelas antiguidades irradiou em todas as direções geográficas e sociais” (POMIAN, 1984, p. 77). Na região onde geograficamente se situa a Itália62, a partir do século XV, se formaram múltiplas coleções particulares, especialmente em Florença, na qual a família aristocrática dos Médici se destacou na prática do colecionamento e do mecenato por cerca de onze gerações (TAYLOR, 1948). Dentre eles, mencionamos Cosimo e Lorenzo de Médici, que patrocinavam artistas como Botticelli, Leonardo da Vinci e Michelangelo. Com o acúmulo de

62 Aqui optamos pela designação do que hoje é a Itália, após a unificação de seus estados no século XIX: “o papel pioneiro desempenhado pela Itália, a partir do Quattrocento, na gênese da primeira revolução cultural europeia explica-se não somente pela pregnância da sua herança romana (em particular sob a forma de uma densa rede de cidades), mas também por fatores econômicos e políticos ligados à vitalidade das suas cidades- Estado” (CHOAY, 2011, p. 22). 86 obras de arte nesse período, foi aberta a Galleria degli Uffizi (Galeria dos Ofícios), instalada em um edifício de 1560, aberta à visitação pública. Essa é uma das galerias de arte mais importantes do mundo e atrai multidões à visitação. Durante esse período, especialmente no decorrer dos séculos XVI e XVII, multiplicaram-se na Europa os chamados Gabinetes de Curiosidades ou Câmara das Maravilhas, em alemão, Wunderkammer (RAFFAINI, 1993, p. 159). Eram espaços que acumulavam um grande número de objetos distintos organizados por diferentes categorias, variando de um gabinete para outro: “em grandes coleções como na do rei Frederico III (1648-1670), da Dinamarca, existiam na Kunstkammer real várias salas específicas por tipo de objeto” (RAFFAINI, 1993, p. 160). No início, esses objetos eram tratados sobretudo como curiosidades (daí o seu nome), e posteriormente como objetos de estudo (POMIAN, 1990). Dentre todas as coleções, as que mais faziam sucesso eram as de moedas antigas e, posteriormente, os itens de Ciências Naturais. Numa tentativa de sistematizar a divisão dos diferentes itens que compunham os gabinetes, em 1567 o colecionador Samuel Quickeberg publicou um catálogo intitulado Musaeum Theatrum, que separava as coleções em cinco classes de objetos: a) artefatos religiosos; b) esculturas, moedas, medalhas e obras em ourivesaria; c) espécimes de história natural; d) instrumentos científicos e musicais; e) obras de arte (TAYLOR, 1948). Posteriormente, os objetos passaram a ser ordenados conforme as seguintes categorias:

Artificialia (artefatos produzidos pelo homem), naturalia (manifestações de fauna, flora e minerais), scientifica (instrumentos para o estudo do mundo e do universo), memorabilia (coisas dignas de serem lembradas), mirabilia (coisas admiráveis, maravilhas que devem ser olhadas) e exotica (objetos vindos ou produzidos em terras e civilizações longínquas) (RANGEL, 2013, p. 410).

Aguçada pelas viagens às terras distantes, a procura por esses objetos – especialmente os considerados “exóticos” – se espalhou por todo o continente europeu: “as salas de maravilhas foram um efeito das trocas que vinham sendo intensificadas e dilatadas pelas descobertas geográficas” (PADIGLIONE, 2013, p. 22). Outra categoria próxima ao “exótico” é o “maravilhoso”, tal como referido por Cristóvão Colombo em sua primeira carta sobre o relato de sua viagem ao Novo Mundo, onde ele mencionou o seu encontro com inúmeras ilhas, tomadas de imediato: “à primeira ilha que encontrei dei o nome de San Salvador, em homenagem à Divina Majestade, que maravilhosamente me concedeu tudo isto” (COLOMBO apud GREENBLATT, 1989, p. 43, grifo nosso). 87

Para o teórico Stephen Greenblatt (1989, p. 52), apesar do “discurso do maravilhoso” de Colombo aparentar ser algo natural, ao analisar as suas cartas e o seu relatório oficial aos Reis católicos pode-se constatar que ele tinha plena consciência de como e quando o utilizar nesses registros: “[...] a transparência discursiva é uma ilusão, e os sentimentos que chamamos naturais são precisamente aqueles mais intimamente ligados a complexas estratégias culturais”. Embora sabe-se que “as maravilhas estão inseparavelmente ligadas, na tradição retórica e pictórica, às viagens às Índias” (GREENBLATT, 1989, p. 53), as observações de Colombo acerca do maravilhoso63 são bastante pontuais e diferem-se daquelas registradas por outros viajantes. Segundo James Clifford (1994, p. 69), a prática de coleta de objetos exóticos está inserida em uma estrutura específica de valor, que ele chamou de “sistema de arte-cultura”, um sistema ideológico e institucional “[...] através do qual o Ocidente contextualizou e valorizou os objetos exóticos no século passado” (em referência ao século XIX). Com a virada do século, esses objetos foram classificados como categoria científica (artefatos culturais) ou como categoria estética (obras de arte). Para Clifford, o ato de colecionar ocidental pode ser visto como “[...] uma estratégia para a distribuição de um eu, uma cultura e uma autenticidade possessivos” (CLIFFORD, 1994, p. 71), no qual a subjetividade está aliada ao desenvolvimento de práticas institucionais:

Os artefatos reunidos – quer eles encontrem o caminho dos armários de curiosidades, das salas de estar privadas, dos museus de etnografia, folclore, ou o do museu de belas-artes – funcionam num “sistema de objetos” capitalista em desenvolvimento (BAUDRILLARD, 1968 apud CLIFFORD, 1994, p. 72).

Na análise de Baudrillard, aos objetos são atribuídos valores funcional, de troca, simbólico e de signo64. Nessa perspectiva, um determinado objeto ganha destaque na ideologia da sociedade de consumo ocidental por sua singularidade e referência ao passado: o objeto antigo. No interior do sistema proposto por Baudrillard, esse tipo de objeto adquiriu um estatuto psicológico especial, que o levou a questionar “de onde surge esta espécie de fenômeno de aculturação que arrasta os civilizados para os signos excêntricos, no tempo e no espaço, de seu próprio sistema cultural, para os signos sempre anteriores” (BAUDRILLARD,

63 “O maravilhoso havia desempenhado desde a Antiguidade um papel fundamental na estética europeia, papel que se intensificou na Idade Média e foi exaustivamente teorizado na Renascença” (GREENBLATT, 1989, p. 56). Contudo, no século XVI a categoria do “maravilhoso” foi empregada para se referir às curiosidades encontradas no Novo Mundo, em uma acepção diferente da atribuição de valor que se faria posteriormente com as antiguidades, por exemplo (CLIFFORD, 1994). 64 De maneira geral, o valor funcional refere-se a sua utilidade; o de troca diz respeito ao seu valor econômico; o simbólico concerne às atribuições que são feitas pelos indivíduos; e o de signo subtrai todas essas possibilidades, formando um sistema de objetos de consumo (BAUDRILLARD, 1973). 88

1973, p. 83). Ao contrário, as sociedades menos desenvolvidas procuram pelos produtos e signos industriais, ou seja, os objetos (ainda) funcionais. Na ótica do autor, ambos se apropriam do objeto (ou de sua “virtude”), cada um de sua maneira. Todavia, enquanto os “civilizados”65 buscam nos objetos uma origem (que é valorizada através de um sentido nostálgico e de uma ênfase na autenticidade), os “menos desenvolvidos” postulam nele um domínio, que, nesse caso, fora exercido pelo poder colonial: “[...] sempre aquilo que falta ao homem se acha investido no objeto” (BAUDRILLARD, 1973, p. 90). Como crítico da economia de consumo, Jean Baudrillard demonstrou que os signos materiais do passado foram domesticados e adquiriram maior valor nessa sociedade, o que contribuiu para os saques em igrejas e museus e o crescimento ilegal do comércio de antiguidades e obras de arte: “[...] paradoxo cultural mas verdade econômica: apenas a contrafação ainda pode satisfazer esta sede de ‘autenticidade66’” (BAUDRILLARD, 1993, p. 92). Para ele, essa condição é uma nova forma de imperialismo privado (“neoimperialismo cultural”). É importante ter em mente que os objetos materiais faziam parte de categorias culturais e de sistemas classificatórios imprescindíveis para a sua mediação (GONÇALVES, 2007), assim como atribuições específicas de valor. A partir do Renascimento, o sistema etnocêntrico de classificação dos objetos materiais (de modelo evolucionista) estava de acordo com os princípios científicos do período, especialmente as concepções antropológicas, que durante muito tempo guiaram as práticas museográficas (e/ou expográficas)67 dos primeiros museus, notadamente aqueles considerados enciclopédicos:

O objetivo destes era narrar a história da humanidade desde suas origens mais remotas, reconstituindo esse longo caminho até chegar ao que entendiam como o estágio mais avançado do processo evolutivo: as modernas sociedades ocidentais (GONÇALVES, 2007, p. 17).

Um dos críticos desse modelo evolucionista foi o antropólogo Franz Boas, que já na década de 1880 chamou a atenção para a especificidade dos contextos dos objetos materiais (GONÇALVES, 2007). A sugestão de Boas foi reunir os artefatos de uma determinada etnia no mesmo espaço ao invés de uma classificação geral, “assim, o mesmo instrumento, julgado

65 Termo utilizado pelo próprio autor em oposição aos “selvagens”. 66 A questão da autenticidade será retomada no Capítulo 4. 67 A utilização dos termos “museografia” e “expografia” varia de acordo com cada país. Aqui, entendemos a museografia como o conjunto de técnicas e atividades desenvolvidas pelos museus em todos os seus domínios, desde a administração até a comunicação. Já a expografia é utilizada no Brasil para referir-se especificamente à prática da exposição (DESVALLÉES; MAIRESSE, 2013). 89 do ponto de vista formal, pode pertencer a vários departamentos diferentes de um museu tipologicamente organizado” (JACKNIS, 1985, p. 79, tradução nossa). A percepção de Boas permitiu ir além das características intrínsecas dos objetos – forma, dimensão, material, etc. – para as suas características extrínsecas – usos e significados (MENSCH, 1987 apud FERREZ, 1994). Com a criação dos departamentos de Antropologia nas universidades no início do século XX e da sua profissionalização, houve um distanciamento das pesquisas antropológicas sobre os objetos materiais nos museus, o que retornou com maior vigor no final do século, através da Antropologia social e cultural (GONÇALVES, 2007)68. O interesse pelas antiguidades egípcias, por exemplo, recai em um sistema de valor arcaizante que atribui beleza (artística) aos objetos antigos, especialmente se forem de culturas que já não existem mais: “objetos antigos são dotados de um senso de ‘profundidade’ por parte de seus colecionadores de mentalidade histórica. A temporalidade é reificada e resgatada enquanto origem, beleza e conhecimento” (CLIFFORD, 1994, p. 74). No entanto, Clifford reconheceu que o sistema arte-cultura está se transformando, especialmente no contexto pós-colonial: “‘cultura’ e ‘arte’ não podem mais simplesmente ser estendidas a povos e coisas não-ocidentais. Elas podem na pior das hipóteses ser impostas, na melhor, traduzidas” (CLIFFORD, 1994, p. 83). Atualmente, as práticas dos colecionadores e a sua referência ao Egito antigo ainda estão presentes em algumas galerias europeias, como na exposição “L’Apothéose du Génie. Oeuvres majeures d’artistes et artisans du XIX e siècle: prestige des Expositions Universelles”, na Galerie Aveline, em Paris, em parceria com a Galerie Neuse, de Bremen, Alemanha. A mostra reúne objetos artísticos e mobiliários pertencentes a dois antiquários alemães, cujas peças do acervo produzidas em ébano, bronze, ouro, prata, entre outros materiais, já haviam sido apresentadas nas Feiras Mundiais e nas Exposições Universais. Segundo o texto presente no catálogo da exposição:

[...] o Egito antigo também é uma fonte significativa de arte do século XIX no norte da Itália. Um gabinete neo-egípcio de Giuseppe Parvis (1831-1909) lembra que este turinês emigrou para o Cairo em 1859 e criou um negócio bem sucedido de móveis e objetos de arte. Seu cliente era o quediva Ismail Pasha, que encomendou moedas árabe-egípcias para a Exposição Universal da Filadélfia em 1876, Milão em 1881 e Turim em 1884. A presença das escavações da coleção Drovetti no Museu Egípcio de Turim provavelmente não é à toa no entusiasmo da Itália por tudo que tocou a vida da época dos faraós (BOYER, 2019, s.p., tradução nossa).

68 Nessa área, existem alguns autores que distinguem a Antropologia acadêmica da Antropologia de museus, pois consideram essa última menos teórica ou baseada em teorias já ultrapassadas (JONES, 1993). 90

As referências sociais e culturais da civilização egípcia não se manifestaram apenas nas coleções privadas ou nos museus, mas estiveram presentes, também, nas feiras e Exposições Universais. O “longo século XIX” apresentou mudanças significativas na ordem econômica e política mundial, acarretando diversas transformações culturais, nas quais “o imperialismo e o colonialismo desempenharam papéis cruciais nesse crescimento, redefinindo a estrutura do poder global e estimulando o interesse generalizado no mundo não-ocidental – agora parte da economia universal” (ÇELIK, 1992, p. 1, tradução nossa). Para isso, era preciso conhecer esse “outro” mundo, notadamente através da Ciência e do desenvolvimento de disciplinas específicas, como a Antropologia e a Arqueologia. Se durante a tradição cristã as viagens às terras longínquas foram realizadas como missões ou peregrinações sagradas, com a consolidação da burguesia no século XVIII, “[...] as viagens se tornariam (ao menos potencialmente) fonte do conhecimento ‘filosófico’ e secular de todo homem” (FABIAN, 2013, p. 44), partindo agora dos centros de conhecimento e poder, que produziram “[...] projetos e instituições de pesquisa que podem ser chamados de antropológicos, num sentido estrito” (FABIAN, 2013, p. 163). Nesse período, a literatura de viagem (assim como a tradição empírica e científica que se seguiu) primava pela elaboração de mapas, gráficos, tabelas, entre outros instrumentos, revelando uma tendência que Johannes Fabian chamou de visualismo, no qual “[...] a capacidade de ‘visualizar’ uma cultura ou sociedade torna-se quase sinônimo de entendê-la” (FABIAN, 2013, p. 130)69. Esse visualismo denota um “viés cultural e ideológico do pensamento ocidental”, como observamos na “Description de l´Egypte” e em outras obras ou relatos de viajantes atentos à representação geográfica dos locais por onde passavam. Outro ponto que o autor se referiu foi a superioridade dos viajantes ocidentais, que podemos observar através de alguns relatos. Como exemplo, Fabian recorreu à narrativa do francês Constantin-François Chassebœuf, mais conhecido como Volney, em “Les Ruines ou Méditation sur les Révolutions des Empires”, publicada originalmente em 1791. Na obra, a menção às ruínas nos remete à tristeza e à nostalgia, remanescentes de um passado glorioso oriental: “é um conhecimento superior, pois não é compartilhado pelos orientais presos ao presente de suas cidades, tanto desertadas quanto arruinadas, ou superpovoadas e infectas” (FABIAN, 2013, p. 47).

69 Embora nesse capítulo o autor estivesse falando sobre uma tendência atual nos estudos de campo realizados na área antropológica, identificamos o mesmo “padrão” em épocas anteriores, nas quais os viajantes ou intelectuais do período tentavam organizar e sistematizar o conhecimento sobre o Outro através dessas ferramentas. 91

A partir desse (e demais exemplos), o autor demonstrou de que forma os intelectuais utilizaram o conhecimento do Tempo ao longo do desenvolvimento da Antropologia cultural enquanto um conhecimento superior, que no auge da produção industrial capitalista pôde “[...] dar forma a relações de poder e desigualdade” (FABIAN, 2013, p. 33), reconhecendo que “[...] não há conhecimento sobre o Outro que não seja também um ato temporal, histórico, político” (FABIAN, 2013, p. 40). No caso do Oriente (especialmente o Egito), tal conhecimento foi evocado através de um contraste marcado por um passado excepcional e um presente decadente, o que nos remete à ideia de Homi Bhabha sobre os estereótipos, baseados em características fixas de representação e frequentemente reiterados. Assim como a Arqueologia, a Antropologia também fora reconhecida como Ciência no momento de “[...] ascensão do capitalismo e sua expansão colonialista-imperialista nas próprias sociedades que se tornaram o alvo de nossas investigações” (FABIAN, 2013, p. 160-161). Uma das formas de exercício e até mesmo imposição desse conhecimento aos outros – apontado por Timothy Mitchell (1989) como uma preocupação europeia em tornar as coisas visíveis – pode ser encontrada na organização de Feiras ou Exposições Universais (também conhecidas como Mundiais ou Industriais), que por meio de galerias e pavilhões exibiam ao mundo diferentes produtos, modelos arquitetônicos, obras de arte, culturas, entre outros. Atingindo o auge no século XIX, as Exposições Universais “[...] visavam ampliar as vendas pelos renovados contatos entre produtores e consumidores, que estimulariam os negócios e a produção pelo salutar conhecimento dos novos produtos e processos” (PESAVENTO, 1997, p. 43). Essas exposições poderiam ser especiais e internacionais ou universais70 e nacionais, ainda que o conceito de universal, naquele período, estivesse predominantemente voltado aos países da Europa ocidental e aos Estados Unidos:

São universais na medida em que esses são países portadores dos valores do progresso, que pela força da lógica inexorável do capital internacionalizado, tantas vezes acompanhado nos novos continentes coloniais pelo argumento das armas, transformaria o mundo num novo Império, legitimado desta vez, não pela cristianização do gentio, mas pelos valores da Civilização (NEVES, 1986, p. 21).

Assim como nas antigas feiras (a partir do século XII), as exposições intencionavam “[...] a acumulação e exibição de vários bens de natureza e origem no mesmo ponto” (GERAULT, 1902, p. 21, tradução nossa). No entanto, as feiras apresentavam objetos e materiais destinados à venda e ao consumo, enquanto as exposições foram “[...] projetadas

70 “A dimensão de universalidade seria dada pela abrangência dos itens expostos, englobando tudo o que concerne à atividade humana, e também pela internacionalização do evento, dada a participação ativa das nações estrangeiras além da que promovia e sediava a exposição” (PESAVENTO, 1997, p. 43). 92 para dar uma ideia do desenvolvimento da indústria, comércio e artes em diferentes países” (GERAULT, 1902, p. 22, tradução nossa), ou seja, para serem exibidas e apreciadas. Ao analisar a emergência dos museus, o autor inglês Tony Bennett (1995) buscou compreender a sua relação com o desenvolvimento das feiras e das exposições internacionais. Através da exibição de espécimes, objetos ou mesmo de pessoas, elas objetivavam a comunicação de “[...] significados e valores culturais específicos”, aos quais o autor verificou aproximações e interações com as instituições museológicas, como o legado de suas coleções a museus metropolitanos e as técnicas de controle e conduta de visitantes. Denominadas por Bennett de “tecnologias culturais”, essas exposições concorriam “[...] para popularizar a noção de progresso e civilização” (PADIGLIONE, 2013, p. 23). Nesse momento, observamos a emergência de um novo discurso, no qual “[...] as articulações do conhecimento e do poder não vêm mais ocultas, mas se tornam visíveis para um público amplo” (PADIGLIONE, 2013, p. 23). A realização de Exposições Universais no século XIX tinha como objetivo demonstrar o valor econômico e a forma como ele era aproveitado pelas grandes potências capitalistas da época, como apontado por Georges Gerault em seu estudo sobre as consequências econômicas das exposições universais. Nas palavras de Walter Benjamin (1985, p. 35), as exposições eram o “centro de peregrinação ao fetiche mercadoria”. Na mesma linha de raciocínio, Eric Hobsbawm (2015, p. 48) as inseriu dentro do que ele chamou de “mundo triunfante do capitalismo”, análogo às “representações alegóricas do triunfo econômico e progresso industrial” da época dos príncipes barrocos. Para demonstrar o êxito que o capitalismo alcançara, nada mais grandioso do que os “[...] gigantescos rituais de autocongratulação, as grandes exibições internacionais, cada uma delas encaixada num principesco monumento à riqueza e ao progresso técnico”. Essas mudanças foram propiciadas devido à Revolução Industrial, que ampliou a variedade de produtos manufaturados, expandiu o maquinismo e introduziu a força a vapor somada à construção de estradas de ferro, estendendo “[...] o poder mecânico em todos os continentes e em países não-industrializados” (HOBSBAWM, 2015, p. 55):

Caminhar ao longo da área expositiva significava colocar numa única trama, narrativas retrospectivas e progressivas, articular em um mesmo relato, diferentes concreções temporais: do selvagem ao civilizado, do simples ao complexo, do antigo ao novo, da memória das tradições ao imaginário tecnológico (PADIGLIONE, 2013, p. 23).

93

No Ocidente, a primeira grande Exposição (The Great Exhibition of the Works of Industry of All Nations) ocorreu na cidade de Londres, em 1851, e teve a participação de quatorze mil firmas (HOBSBAWM, 2015). A exposição foi realizada no antigo Crystal Palace (Palácio de Cristal), uma imponente construção erguida especificamente para aquele evento: “[...] um monumento de ferro e vidro que serviu por um tempo como modelo para salas de exposições. Era um grande salão único que podia ser dividido por partições” (ÇELIK, 1992, p. 51, tradução nossa). A ideia inicial era que a obra pudesse ser desmontada e reconstruída posteriormente em outros locais, o que ocorreu até 1936, quando o Palácio foi destruído em um incêndio. Embora ele fosse o centro das atenções no início, com o sucesso e o crescimento das exposições foi necessário investir em um outro tipo de estrutura, como as construções independentes que apresentavam (e representavam, literalmente) diferentes etnias indígenas:

Como muitos estudiosos têm atestado, essas feiras foram eventos notavelmente complexos que serviram a múltiplas funções como laboratórios de arquitetura, estações de pesquisa de campo antropológica, parques proto-temáticos, motores do consumismo, exercícios de nacionalismo e locais para construir cidades de sonho de amanhã aparentemente utópicas e imperiais (RYDELL, 2006, p. 136, tradução nossa).

Essa exposição contou com a reproduções de réplicas em miniatura de exemplares arquitetônicos de outras culturas, “[...] reivindicando autoridade científica e precisão enquanto alimentava fantasia e ilusão” (ÇELIK, 1992, p. 2, tradução nossa). Em relação às estruturas destinadas às seções islâmicas, a busca pela “autenticidade” era conferida através dos detalhes arquitetônicos, reproduzidos minuciosamente. Os Estados Unidos também tiveram uma tradição nas feiras e exposições, entre as quais destacamos a Feira do Centenário da Filadélfia, realizada em 1876. Foram cerca de dez milhões de visitantes, dentre eles D. Pedro II e sua esposa D. Tereza Cristina, então monarcas do Brasil, que participaram da cerimônia de abertura oficial (HOBSBAWM, 2015). No Brasil, a temática das Exposições Universais e a participação do país foi examinada na década de 1980, pela historiadora Margarida de Souza Neves, em Vitrines do Progresso. Na obra, a autora buscou compreender as mudanças políticas, econômicas e socioculturais pelas quais a cidade do Rio de Janeiro passou no decorrer do século XIX e na virada para o século XX, e de que forma essa nova configuração adequou-se às ideias de progresso sem fronteiras e de civilização (ou “ilusão do progresso”), tão desejadas pela modernidade e encarnadas nessas mostras. O Brasil participou da Exposição de Londres no 94 ano de 1862, e posteriormente promoveu Exposições Nacionais na cidade do Rio de Janeiro a partir de 1861, além da Exposição Internacional, no “Centenário da Independência do Brasil”, em 1922, “[...] apresentada assim como ‘vitrine do progresso’ mundial” (NEVES, 1986, p. 16). O “desejo” de modernidade e aspiração para se enquadrar na nova ordem (capitalista) mundial espelhava-se em certa premissa: “ser moderno é romper com o atraso colonial, é buscar ser igual à Europa” (NEVES, 1986, p. 16). Longe de se equiparar política e economicamente à Europa e em meio a uma sociedade totalmente desigual, esses “[...] espaços da dramatização do que se espera do real, constroem a ilusão do progresso como realidade tangível para aqueles que as visitam ou delas têm notícias através da imprensa” (NEVES, 1986, p. 17). A exemplo do Brasil, o Egito também participou dessa lógica das Exposições Universais, como a de Paris, em 1855 – a primeira a ser definida como “universal” –, onde apresentou a sua produção de algodão; e a de Londres, em 1862. Sob o governo de Ismail Pasha, com ambições de se aproximar das nações europeias, o Egito formou uma Comissão específica e participou da Exposição de Paris em 1867, de Viena em 1873 e novamente de Paris em 1878. Após a ocupação britânica em 1882, a incumbência da organização dos pavilhões egípcios ficou sob a responsabilidade da iniciativa privada (ÇELIK, 1992). A Exposição de Paris de 1867 teve a participação de cinquenta mil firmas (HOBSBAWM, 2015), sendo “[...] uma das primeiras e maiores mostras do poderio imperial” (SAID, 2011, p. 200). As seções arquitetônicas otomanas e egípcias foram apresentadas como pertencentes ao mesmo conjunto dos ambientes urbanos islâmicos e a maioria dos arquitetos eram franceses. O quarteirão destinado ao Egito foi projetado pelos arquitetos Jacques Drévet, que nunca havia ido ao Egito e Édouart Schmitz, que realizava trabalhos na região. Possuía quatro estruturas diferentes, com cerca de seis mil metros quadrados: uma remontava à antiguidade egípcia, caracterizada por uma réplica de um de seus templos71, em contraste com outros três espaços (selamlik72, okel73 e estábulos), que representavam o passado árabe, a

71 Entre os diferentes autores consultados a respeito da representação do Egito nas exposições universais, existem variadas identificações para esse templo: Edfu, Háthor ou Philae – o próprio Auguste Mariette (1867) o caracterizou como uma reprodução do templo de Philae. No entanto, pelas características externas que podem ser visualizadas nas fotografias da época, deduzimos que se tratava de uma réplica do templo de Háthor (deusa da fertilidade), em Dendera, embora a sua reconstrução tenha se baseado em aspectos arquitetônicos dos demais templos, como a fileira de esfinges, que nos remete ao caminho entre os templos de Luxor e Karnak, na antiga cidade de Tebas. 72 Parte da habitação otomana destinada à recepção masculina. 73 Caravançará. No Oriente Médio era uma espécie de mercado que também disponibilizava hospedagem aos viajantes (ÇELIK, 1992). 95

época medieval e a vida moderna e comercial dos egípcios, apresentando pessoas com vestimentas típicas da época.

Figura 9: “Sala de trajes e tipos do Egito”. Gravura, 1867.

Fonte: Grande Álbum da Exposição Universal de 1867, Paris (Michel Lévy Frères) 1868, p. 79. Berlim: Arquivo de coleções de arte e história74.

Uma cópia de uma estátua de Jean-François Champollion feita em mármore branco pelo escultor francês Frédéric Auguste Bartholdi75 também adornava esse quarteirão, além de um pavilhão dedicado à história da construção do Canal de Suez, com comentários de Ferdinand de Lesseps (ÇELIK, 1992; SENAC, 2013). A ideia de desordenação que caracterizava o quarteirão egípcio (e outras instalações árabes) foi proposital, pois no imaginário dos especialistas ocidentais, a arquitetura e a história da arte do mundo árabe eram caracterizadas pela “desordem”, ao contrário do mundo ocidental (EDMOND apud ÇELIK, 1992). Arquitetonicamente, o templo egípcio foi reconstruído nos mínimos detalhes, tanto na parte externa quanto interna, com base em medições e fotografias do templo original, embora Auguste Mariette tenha considerado uma “heresia” a sua reconstituição à base de granito, já que os templos egípcios eram feitos de arenito (MARIETTE, 1866 apud NOUR, 2017). As réplicas podiam ser reutilizadas, conforme a necessidade de remodelação dos espaços: “assim,

74 Imagem disponível em: https://www.akg-images.fr/archive/Salle-des-costumes-et-des-types-de- l%E2%80%99Egypte-2UMDHUQPIMV9.html Acesso em: 13 out. 2019. 75 Atualmente a estátua de Champollion se encontra no pátio do Collège de France, em Paris. Bartholdi foi o responsável pelo projeto da Estátua da Liberdade, um presente da França aos Estados Unidos em comemoração à sua independência, inaugurada em outubro de 1886. 96 um ‘templo’ egípcio pode ser um museu, e um banheiro, ou mesmo uma mesquita, pode ser um mercado” (ÇELIK, 1992, p. 95, tradução nossa). Os hieróglifos foram copiados com a técnica da litografia e gravados na estrutura pelo próprio Mariette, com auxílio de seu assessor, o egiptólogo alemão Heinrich Brugsch. Em frente à entrada do templo havia uma fileira de dez estátuas em formato de esfinge, executadas com um método de cimento plástico a partir de moldes fornecidos pelo Museu do Louvre (MARIETTE, 1867 apud NOUR, 2017).

Figura 10: Templo Egípcio na Exposição Universal de 1867, Paris.

F o n t e :

F o t o g r a f i a

d e

Fonte: fotografia de Pierre Petit. Arquivo Nacional. Serviço fotográfico dos arquivos nacionais76.

No interior do templo havia uma espécie de “galeria” ou “museu”, com a exibição de estátuas, crânios e múmias – essas últimas desembrulhadas para os convidados em diferentes “sessões antropológicas” (NOUR, 2017). Alguns desses objetos foram selecionados por Auguste Mariette, que os trouxera do Museu de Bulaq. Como percebemos, Mariette teve grande participação na idealização do pavilhão egípcio, especialmente nos trabalhos do templo, tendo sido recomendado pelo próprio quediva Ismail Pasha. Sua participação se estendeu à Exposição de 1878, na qual foi nomeado Comissário-geral.

76 Disponível em: https://archimaps.tumblr.com/search/egyptian+temple Acesso em: 13 out. 2019. 97

Figura 11: Interior do templo egípcio, com os objetos dispostos para exibição.

Fonte: François Ducuing (Éd.). L´Exposition Universelle de 1867 illustrée, vol. 1. Paris: Bureaux d'abonnements, 186777.

Economicamente, a participação do Egito na Exposição de 1867 almejava angariar investimentos para o país, que se encontrava endividado por conta das obras de construção do Canal de Suez, além do aumento de suas dívidas após a perda do “[...] domínio do mercado de algodão no final da Guerra Civil Americana” (NOUR, 2017, p. 37, tradução nossa). O próprio pavilhão destinado à representação da construção do Canal pretendia exibir a modernidade do Egito em contraste com a sua história antiga, apresentando fotografias, modelos de máquinas e produtos daquela região (DEMEULENAERE-DOUYÈRE, 2014). Em visita à Exposição, numa tentativa de estreitar os laços com os países ocidentais, Ismail Pasha declarou: “por trinta anos, a influência europeia transformou o Egito; agora [...] somos civilizados”:

A ambição arquitetônica dos pavilhões nacionais do Egito refletia seu status econômico e político. Como uma província semi-independente, lutando para se separar do Império Otomano e buscando uma aliança mais firme com as potências europeias, o Egito de Ismail Pasha enviou uma grande exibição à exposição de 1867, enfatizando sua autoimagem nacional e complexo patrimônio histórico (ÇELIK, 1992, p. 119, tradução nossa).

Já na Exposição de 1878, a mostra do Egito não foi tão grandiosa quanto a de 1867. A galeria egípcia abrigou um templo egípcio (The Paharonic House), baseado nas incursões arqueológicas de Mariette na região de Abydos, conhecida por ser uma importante necrópole e

77Disponível em: https://edizionicafoscari.unive.it/media/pdf/article/mdccc-1800/2017/1numeromonografico/art- 10.14277-2280-8841-MDCCC-6-17-3.pdf Acesso em: 13 out. 2019. 98 centro de peregrinação dos egípcios na Antiguidade. No interior desse templo foram expostos objetos e produtos referentes à modernidade egípcia, enquanto os objetos do Museu de Bulaq foram expostos “[...] juntamente com outras obras antigas, nas galerias da arte retrospectiva” (ÇELIK, 1992, p. 116, tradução nossa). No centenário da Revolução Francesa, em 1889, foi organizada em Paris outra exposição, que confirme explicação contida no Guide Bleu du Figaro et du Petit Journal, destinava-se a todos os públicos, de todas as idades: “o industrial aí encontra os modelos dos quais ele saberá aproveitar. O simples passante aí toma uma ideia geral e suficiente das maravilhas, sempre em progresso, da indústria moderna” (PESAVENTO, 1997, p. 13). Essa exposição foi marcada pela ênfase em suas obras arquitetônicas, como a reconstrução da Bastilha e a apresentação da Torre Eiffel. A presença do Egito nessa exposição ocorreu por meio da Rue du Caire (Rua do Cairo), uma reconstrução caótica do Cairo medieval concebida a partir de destroços da parte antiga da cidade, apresentando casas, edifícios (com direito a pinturas com um aspecto de sujeira similar aos originais), lojas e fachadas de mesquitas, no qual o seu construtor, o engenheiro francês Alphonse Delort de Gléon, evidenciou o descaso com a preservação e a má construção da cidade (GLÉON, 1889). Nessa mostra, a ênfase recaiu sobre a representação de povos indígenas e seus locais de habitação, onde a população oriental do Cairo foi “retratada” em suas atividades cotidianas por meio de franceses vestidos com roupas típicas e montados em animais, numa espécie de “etnologia dos pobres” (DEMEULENAERE-DOUYÈRE, 2012). Ao evocar o “progresso”, os escritores muçulmanos que publicaram sobre essas mostras se referiam apenas aos países ocidentais, com suas máquinas e tecnologia avançada para a época: “a disposição de adotar a tecnologia ocidental como chave para a modernização remonta ao início do século XIX” (ÇELIK, 1992, p. 45, tradução nossa), como nos empreendimentos de Muhammad ‘Ali para modernização do Egito. Para a arquiteta Zeynep Çelik (1992, p. 56), é necessário compreender a importância ideológica das exposições, pois estas buscavam representar o pensamento e as convicções das nações anfitriãs, logo, aquilo que elas julgavam importante mostrar naquele momento: “arquitetonicamente congelados em um passado ambíguo e distante, as culturas islâmicas nas exposições universais foram apresentadas como incapazes de mudança e avanço”, a exemplo de outras culturas que foram igualmente teatralizados. Entretanto, na percepção de muitos orientais, como o próprio Ismail Pasha, a participação do Egito nessas “[...] celebrações 99 ocidentais do nacionalismo, do imperialismo, do capitalismo industrial e do consumismo” (REID, 2002, p. 95, tradução nossa) poderia ser extremamente benéfica, pois introduzia e aproximava o país na modernidade do mundo ocidental. Através dos olhares estrangeiros, o mundo era representado enquanto um objeto nessas exposições: “[...] o Oriente era talvez o objeto mais importante em exibição nas exposições europeias, a grande ‘realidade externa’ do Ocidente” (MITCHELL, 1989, p. 218, tradução nossa), reafirmando a tese de Edward Said sobre o Orientalismo. À moda das feiras e das exposições, os chamados objetos etnográficos eram exibidos nos museus ocidentais para ilustrar “[...] as etapas da evolução sociocultural e os trajetos de difusão cultural” (GONÇALVES, 2007, p. 16). Ao identificar a forma e a composição material de cada objeto produzido, poderia se constatar as técnicas empregadas e o grau de conhecimento dos diferentes grupos sociais. Um dos casos mais polêmicos desse período foi a história de Saartje (Sarah) Baartman, uma sul africana levada para a Grã-Bretanha no início do século XIX, para ser exibida em apresentações como “aberração”, devido às suas características físicas. Após a sua morte, em 1815, foram conservados o seu cérebro, esqueleto e órgãos genitais, exibidos no Museu do Homem, em Paris, até 1974. Na década de 1990, o então presidente da África do Sul, Nelson Mandela, fez a solicitação de repatriação de seus restos mortais ao governo francês, o que ocorreu somente em 2002. Contudo, antes de retornar à sua terra natal, o museu fez uma última exposição, com duração de nove meses78. Esse caso chocante gerou muitas discussões em relação às políticas de repatriação, especialmente porque os seus restos mortais foram tratados como acervo – o que ainda precisa ser problematizado no campo dos museus, pois nem todos fazem a distinção entre os objetos da cultura material e restos mortais. Ao tratar o corpo como acervo, a França poderia justificar a sua permanência e exibição pelo museu, o que demonstra o protagonismo francês na criação dos discursos políticos para negar os pedidos de repatriação, assim como a Inglaterra, como teremos a oportunidade de analisar. O museu foi apontado por Michel Foucault (2013) como um ambiente das “heterotopias acumulativas do tempo”, ou seja, um lugar real que reúne em um só espaço diferentes tempos, em oposição aos lugares de utopia, espaços irreais que retratam a sociedade de forma aperfeiçoada. Para o filósofo, as heterotopias são variadas e os museus considerados,

78 Disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/noticias/2016/01/160110_mulher_circo_africa_lab?fbclid=IwAR3K7i7F1qW 4bYGl-pQINbSeHThIuQ3N1PHoGi54YvanjYNYW0JFgZFZWD0 Acesso em: 23 dez. 2019. 100 na modernidade, “[...] heterotopias típicas da cultura ocidental do século dezenove” (FOUCAULT, 2013, p. 6). As feiras (assim como os circos) também foram consideradas pelo autor como heterotopias, no entanto, não possuíam o caráter de “eterno”, muito pelo contrário. As primeiras experiências que tornavam as antigas coleções privadas em museus “públicos e acessíveis” remontam ao final do século XVII, entretanto, a ideia de público dirigia-se a uma parcela seleta e restrita da sociedade. É o caso do Ashmolean Museum, de Oxford, na Inglaterra, fundado em 1683, em um prédio que continha laboratório de Química e salas para aulas e palestras. Criado a partir da doação da coleção do antiquário Elias Ashmole à Universidade de Oxford, ele é considerado o primeiro museu público da Grã-Bretanha e o primeiro museu universitário do mundo79. Nesse mesmo período, a palavra museu (no sentido moderno no termo), foi registrada no dicionário de inglês Oxford (SMITH, 1989). Ao longo dos anos, com a ampliação dos cursos oferecidos pela universidade e a aquisição de novas coleções, o museu expandiu suas dependências para outros edifícios. Setenta anos depois da fundação do Ashmolean, foi criado o primeiro museu nacional do mundo: o British Museum (Museu Britânico), através de um Ato Parlamentar publicado em junho de 1753. Segundo o historiador francês Jacques Le Goff (1990, p. 465), a partir do final do século XVIII, iniciou-se a “era dos museus públicos e nacionais”, período de eclosão dos estados nacionais europeus que buscavam legitimar as suas “identidades emergentes” (PADIGLIONE, 2013), ratificadas, também, pela noção de proteção da herança e do legado dos seus passados, ou seja, do seu patrimônio cultural. Os laços mantidos com ideais do Renascimento ainda eram perceptíveis, como a própria arquitetura dos prédios escolhidos para sediar os novos museus, baseada em características dos templos gregos ou dos palácios romanos (frontões, cúpulas, colunatas, etc.), demonstrando um “[...] apego ao estilo neo-grego que remonta às origens da museologia moderna” (GIRAUDY; BOUILHET, 1990, p. 26). Nessa perspectiva, ao enfatizarmos a criação dos museus no Ocidente, seria correto referir inicialmente à construção da ideia de patrimônio ou de uma “tradição patrimonial” nacional, evidenciada no período da Revolução Francesa e relacionada à consolidação dos estados nacionais europeus (HUYSSEN, 1994; LOWENTHAL, 1998). Essa noção patrimonial inaugurou um novo sentido de coletividade, pois após a queda do Antigo Regime, as coleções reais que antes eram restritas à elite (sobretudo à Coroa e ao clero) tiveram a sua propriedade transferida para o controle do Estado francês (CHOAY, 2006).

79 Informações disponíveis no site do museu: https://www.ashmolean.org/history-ashmolean Acesso em: 11 jan. 2019. 101

Para Françoise Choay (2006, p. 89), uma nova conjuntura se formou a partir do Renascimento, com o interesse gradativo pela arte e a constante expansão de um mercado, o que possibilitou a criação de “[...] uma nova mentalidade num público de apreciadores recrutados em camadas sociais mais variadas, e que dispunha de uma autoridade intelectual e de um poder econômico sem precedentes”. O status do objeto “maravilhoso” ou “exótico” cedeu espaço para a pesquisa e o estudo científico, propiciados, também, pelas campanhas e escavações arqueológicas (POMIAN, 1984). Nesse contexto, o surgimento dos primeiros museus de arte acompanhou o crescimento das coleções privadas:

As relíquias que asseguravam a fé, os escritos que transmitiam o saber, as obras de arte e de arquitetura que obedeciam às leis da beleza foram pois os primeiros elementos do patrimônio. Essa diligência, quase idealista, foi fortemente abalada quando a estes critérios de religião, beleza e saber vieram juntar-se os da história e da etnologia (LENIAUD, 1998, p. 335).

A Revolução Francesa teve um papel fundamental nessa nova consciência patrimonial, uma vez que a proteção do patrimônio ocorreu juntamente com a sua destruição – o chamado “vandalismo revolucionário”, “[...] como efeito indireto dos confiscos e dos realocamentos de propriedades, da liquidação de um bom número de heranças anteriormente mantidas pela Igreja ou pelas famílias aristocráticas (POULOT, 2011, p. 473), assim como a tentativa de dissociação do Antigo Regime. Nesse período, foram formados comitês que se reuniam em assembleias para discutir os rumos desse patrimônio, agora, importante e pertencente a todos, como fora decidido coletivamente: “eles transformaram o status das antiguidades nacionais” (CHOAY, 2006, p. 98). Status esse que adquiriu uma dimensão econômica enquanto bens materiais com valores de troca, ao qual “[...] sob pena de prejuízo financeiro, será preciso preservar e manter” (CHOAY, 2006, p. 98). A partir da década de 1790, a França instituiu a criação dos Arquivos Nacionais, abertos ao público em 1794 e de quatro museus, dentre eles, o Louvre (SUANO, 1986). Com a assinatura do Tratado de Tolentino, em 1797, os franceses se apossaram de territórios e obras de arte provenientes do que hoje é a Itália, que foram destinadas ao Museu Nacional (Louvre) e outros museus da província (POULOT, 2011). Para organizar e definir a gestão do patrimônio, foi formada uma comissão que optou por instrumentos como o tombamento e o inventário. Por sua heterogeneidade, os bens (definidos como móveis e imóveis) foram divididos em dez categorias: livros impressos; manuscritos; forais e selos; medalhas antigas e modernas; pedras gravadas e inscrições; estátuas, bustos, baixos-relevos, vasos, pesos e medidas antigos e da Idade Média, armas 102 ofensivas e defensivas, mausoléus, túmulos e todos os objetos desse gênero, relacionados à Antiguidade e à História; quadros, pastas de pintores, desenhos, gravuras, mapas, tapeçarias antigas ou históricas, mosaicos, vitrais; máquinas e outros objetos relativos às artes mecânicas e às ciências; objetos relativos à história natural e a seus três reinos; objetos relativos aos costumes antigos, modernos, europeus e estrangeiros (CHOAY, 2006). A partir de sua organização, os bens móveis foram transferidos de seus depósitos para os então nascentes museus, que tinham “[...] por função servir à instrução da nação” (CHOAY, 2006, p. 101). Esses museus geralmente situavam-se em grandes palácios, como no caso do Louvre. Já os bens imóveis deveriam receber um outro tratamento e destinação diferente de seu uso original. Sob a égide de instituição pública e nacional, instaurou-se uma nova ordenação: “o interesse nacional é um discurso homogeneizador. No caso dos museus, ele também é o argumento que sustenta a continuidade e a permanência das riquezas e dos valores artísticos e científicos” (CHAGAS, 2009, p. 50). Como o antigo Mouseion (templo das musas), “o museu nasce assim como depositário de um passado eleito e construído, que se quer de alguma forma eleger como guia útil para os desafios do presente e do futuro” (PADIGLIONE, 2013, p. 20). Nesse caso, o autor invocou a proximidade entre os valores clássicos difundidos pelo Mouseion “[...] e a noção de Patrimônio, domínio contemporâneo de intensos tráficos culturais e políticos” (PADIGLIONE, 2013, p. 20). Nos Estados Unidos, os primeiros museus surgiram no decorrer do processo político de união das antigas colônias britânicas. O primeiro foi o Charleston Museum, fundado em 1773, na Carolina do Sul, inspirado no British Museum. No decorrer da década de 1870, foram fundados três grandes museus de renome internacional, como o Museu Americano de História Natural, o Museu Metropolitano de Arte, de Nova York e o Museu de Belas Artes, de Boston. A partir dos anos de 1900, os museus norte-americanos estreitaram as suas relações com as escolas, tornando-se referência em programas educacionais (ALEXANDER; ALEXANDER, 2008). Ao longo do século XIX e início do século XX, inúmeros museus foram criados em diferentes países, o que conferiu a esse período a expressão de era dos museus: “os museus etnográficos tomam forma e função nesse momento, organizando-se enquanto instituições consagradas à coleção, preservação, exibição, estudo e interpretação de objetos materiais” (SCHWARCZ, 1989, p. 33). É nesse contexto que surgem as primeiras instituições museológicas no Brasil, que com pretensões de serem enciclopédicas, acabam por se 103 especializar em Ciências Naturais, devido à tendência da época das expedições de naturalistas estrangeiros que viajavam por terras distantes “[...] em busca de coleções que representem variedades da flora, da fauna e da espécie humana” (SCHWARCZ, 1989, p. 34), preconizadas pela Antropologia evolucionista do período. Essas viagens e expedições científicas possibilitaram o contato dos nascentes museus brasileiros com outras instituições estrangeiras semelhantes, fortalecendo o intercâmbio internacional. O surgimento dos modernos estados nacionais concomitante às expedições e escavações arqueológicas possibilitaram a reconstrução de um passado que deveria ser mostrado (ou representado): “foi como consequência do primeiro desses desenvolvimentos que a perspectiva de uma história universal da civilização foi aberta ao pensamento e materializada nas coleções arqueológicas dos grandes museus do século XIX” (BENNETT, 1995, p. 76, tradução nossa). Esse foi o principal pressuposto para a classificação e a organização dos objetos e das antiguidades no espaço dos modernos museus, que conseguiam, assim, alinhar as suas recentes histórias nacionais à história universal da civilização ocidental (BENNETT, 1995), empregados enquanto aparelhos ideológicos do Estado (ALTHUSSER, 1985). Numa acepção antropológica anglo-americana, os museus “[...] são os arquivos do que os antropólogos chamam de ‘cultura material’”, cultura essa atribuída a ‘outros’” (STOCKING JR, 1985, p. 4, tradução nossa). A sua diferenciação em relação ao arquivo recai no “[...] espaço tridimensional que abrange tanto o objeto quanto o observador” (STOCKING JR, 1985, p. 4, tradução nossa). Contudo, tanto o museu quanto o arquivo se ocupam “[...] das representações discursivas do passado e seus efeitos de verdade sobre um tempo e lugar determinados” (NEDEL, 2013, p. 62), configurando, também, um espaço para o exercício das relações de poder. Uma das questões centrais (e polêmicas) introduzidas pelos museus é a problemática do tempo, já que os objetos agregam distintas temporalidades – desde antes de serem retirados de seu contexto original (muitas vezes abruptamente) e realocados em lugares apropriados para a sua “conservação perene”, protelando de todas as formas a sua degradação e/ou destruição total: “por sua conexão física com o tempo, as coleções de museu concretizam uma memória muitas vezes difícil de capturar em palavras” (NEDEL, 2011, p. 63). O fato desses objetos já terem pertencido a outros e de possuírem diferentes finalidades indica apenas uma das etapas que compõem a sua biografia cultural (KOPYTOFF, 2008; STOCKING JR, 1985), que de modo algum deveria ser encerrada após a sua entrada em uma instituição cultural. 104

O modelo francês pós-revolução demonstrou interesse pelos objetos das antigas civilizações, “[...] que continuavam a representar um valor supremo especialmente no contexto cultural europeu, envolvido pelo espírito de revelar a continuidade histórica com os períodos áureos da civilização” (ALMEIDA, 2001, p. 138). Ao lado de culturas clássicas como a Grécia e Roma, as antiguidades egípcias representavam o apogeu de uma civilização já extinta que legou ao mundo qualificações na Arte, Arquitetura, Astronomia, Medicina, entre outras áreas. Dessa forma, passaremos agora à análise do tratamento dessas antiguidades em três instituições museológicas europeias: o Museu Britânico, o Museu do Louvre e o Museu Egípcio de Turim.

2.2 MUSEU BRITÂNICO

O Museu Britânico – considerado o primeiro museu nacional do mundo – foi criado por Ato Parlamentar (The British Museum Act) em 07 de junho de 1753, a partir do legado da coleção do gabinete do médico, naturalista e colecionador Sir Hans Sloane (1660-1753), que a ofereceu à nação através de seu testamento. Previsto para ser um museu público aberto à visitação desde a sua criação, ele é um exemplo clássico do nascimento da instituição museu, tal como conhecemos atualmente, desenvolvida a partir da “institucionalização da coleção privada” (DESVALLÉES; MAIRESSE, 2013, p. 33). Desde o início, as suas ações apresentam um caráter notadamente administrativo e organizacional, o que irá se manifestar em sua expografia (MAGET, 2009). Supervisionado por um Conselho de Administração com pouco mais de quarenta membros, embora o museu possuísse um caráter público (desejo manifestado por Sloane em seu testamento), os curadores eram os responsáveis por definir quem poderia ou não ter acesso às coleções, nas quais os interessados deveriam se organizar com antecedência e pagar pelo ingresso80. Como era necessário o preenchimento de uma ficha, os analfabetos automaticamente eram excluídos (CASH, 2002). A visita era conduzida de maneira rápida pelos próprios funcionários e “apenas oito grupos, de no máximo quinze pessoas cada, eram admitidas por dia. A autorização para a visita, contudo, levava até meses para ser concedida” (SUANO, 1986, p. 30). Em 1810, a cobrança para a entrada no museu foi revogada, no entanto, outras medidas foram tomadas para o controle do acesso às coleções, pois os

80 No período em que surgiram os primeiros museus “públicos” do mundo, como o Ashmolean Museum, em Oxford, o Museu Britânico e o Museu do Louvre, as visitas eram limitadas a um público selecionado e mediante pagamento e/ou agendamento antecipado de ingressos (SUANO, 1986). 105 curadores acreditavam que os menos favorecidos não sabiam se portar dentro do museu e poderiam causar danos ao acervo (CASH, 2002). Contudo, essas medidas foram questionadas por parte da população, como mostram alguns artigos publicados em jornais do período. Eles interrogavam sobre os poucos dias de abertura do museu (apenas três por semana); sobre a exigência de uma recomendação para poder consultar a Sala de Leitura; sobre o destino do dinheiro investido no museu; entre outras reclamações: “ao examinarmos o uso do ‘público’, veremos que, como o Museu Britânico era uma instituição de apoio público, as pessoas acreditavam que era para todos” (CASH, 2002, p. 2, tradução nossa)81. As reclamações incluíam, inclusive, comparações com o Museu do Louvre, considerado mais público que o Museu Britânico (CASH, 2002). Como o governo britânico não auxiliava o museu financeiramente, constantemente eram feitos apelos à população para custear os seus gastos (MAGET, 2009). Famosa entre os britânicos e outros estrangeiros, a coleção de Sloane era composta por mais de setenta mil artefatos que ele colecionou, comprou e recebeu de presente ao longo de sua vida, dentre gravuras, livros, manuscritos, medalhas, miniaturas, moedas, objetos, pedras, selos, “além de inumeráveis exemplares pertinentes às ciências naturais e um herbário” (MOZZATI, 2009, p. 9). Cerca de cento e cinquenta objetos da coleção de Sloane eram antiguidades egípcias, incluindo duas múmias que mais tarde foram avaliadas como falsas, além de objetos de bronze, uma estela, um escaravelho, pedaços de esculturas e ushabtis (MOSER, 2006). Inicialmente disposto como um gabinete de curiosidades, a sede do museu foi aberta ao público em janeiro de 1759, na Montagu House, um palácio do final do século XVII, situado na área central de Londres, Bloomsbury, e considerado “um dos mais prestigiados edifícios londrinos do final do século XVIII” (MOZZATI, 2009, p. 9). Dois documentos foram apresentados em 1756 e 1757 pelo curador da coleção de Sloane, James Empson, com instruções sobre a disposição da coleção no museu, organizada de maneira simples e natural a partir de duas categorias em voga na época: Curiosidades Naturais (criadas por Deus ou pela natureza) e Artificiais (criações humanas) – princípios do sistema taxonômico de Carl Linnaeus, baseados na hierarquia de evolução da natureza (MOSER, 2006). A década de 1700 foi vantajosa para a ampliação das coleções do museu. Em 1755 foi realizada uma doação de objetos do militar britânico William Lethieullier adquiridos em

81 Aqui, o autor faz distinção da palavra “público”, tal como distinguiu o filósofo alemão Jurgen Habermas: após a aparição dos estados nacionais, “[...] ‘público’ passou a significar assuntos relacionados ao Estado, e ‘privado’ referiu-se a assuntos fora da autoridade do Estado” (CASH, 2002, p. 3, tradução nossa).

106 viagem ao Egito, incluindo uma múmia da 26ª Dinastia e seu ataúde. Posteriormente outras peças foram doadas ao museu pelos seus familiares (BIERBRIER, 1988). Em 1772, uma coleção privada de vasos gregos foi comprada pelo Parlamento; e em 1785, o museu adquiriu cerca de 1.125 antiguidades, das quais cento e sessenta eram egípcias (MOSER, 2006). Com o aumento das coleções (especialmente as antiguidades clássicas e orientais) foram construídas outras salas nomeadas de Townley Gallery, “[...] para receber as antiguidades egípcias e a coleção de esculturas clássicas de Charles Townley” (MOZZATI, 2009, p. 9), um antiquário e colecionador inglês. Tal adaptação se fez extremamente necessária, uma vez que as novas peças eram grandes e pesadas demais para serem mantidas no espaço antigo. Nessa nova configuração, as antiguidades foram divididas em treze salas (juntamente com as coleções de medalhas, moedas e pedras preciosas). Posteriormente, um novo edifício foi construído para abrigar as novas coleções que não paravam de chegar, até a construção do atual prédio, entre 1823 e 1852: a fachada sul foi “[...] inspirada na ideia, então corrente, de ‘templo das musas’, com um nobre estilo neoclássico, em estreita sintonia com as concepções museográficas daquele tempo” (MOZZATI, 2009, p. 10). Embora motivados por essas concepções museográficas, somadas às imagens e às descrições antigas que chegaram até nós, até cerca de 1840 o museu não estava nem um pouco organizado, pois “materiais diversos eram colocados ao acaso com parca identificação, amontoados, sem iluminação” (SUANO, 1986, p. 30). Formada basicamente através de doações, compras, escavações arqueológicas, saques, além dos objetos legados por Hans Sloane, ao longo dos anos a coleção egípcia foi sendo ampliada, com o incremento de esculturas, estelas, múmias, sarcófagos, papiros e demais objetos. A primeira divisão das coleções agrupou os livros impressos e gravados, os manuscritos e as medalhas e os objetos naturais e “curiosidades artificiais”, até a criação do Departamento de Antiguidades, em 1807, sob os cuidados do arqueólogo e numismata inglês Taylor Combe, responsável pela coleção de moedas e medalhas do museu desde 1803. A criação do Departamento de Antiguidades foi necessária após as novas aquisições dos ingleses estipuladas na Capitulação de Alexandria, em 1801. Entre as principais peças do acervo egípcio destacamos a enorme cabeça de Ramsés II e a Pedra de Rosetta. Inicialmente alocada na Sociedade de Antiquários de Londres, foram feitas várias cópias de suas inscrições e enviadas a outras cidades para o seu estudo e em 1802 o rei George III a doou para o Museu Britânico, elevando a sua coleção egípcia a mais importante daquele período (BURLEIGH, 2008). 107

Figura 12: Galeria de esculturas egípcias. Gravura de William Radclyffe, 1840.

Fonte: MOSER, 2006, p. 158.

No Departamento de Antiguidades o acervo estava divido em Galerias que expunham as esculturas no térreo e as demais peças de tamanho menor em salas no andar superior. As esculturas estavam dispostas em ordem cronológica de acordo com a história egípcia antiga. As peças eram numeradas e apresentavam uma descrição sumária acerca do seu significado no Egito antigo; a indicação do local onde foi encontrada; e a proveniência de sua aquisição (doação, parte de outra coleção, etc.), como o exemplo que segue:

N. 08. Estátua do deus Hapi, ou Nilo, carregando um altar de libações, do qual pendem aves aquáticas e plantas. Ao lado está uma figura vestida de sacerdote e atrás uma dedicação de Sheshank I. (Shishak), da 22ª dinastia, para Amon-ra. Karnak. Arenito. Da coleção do Sr. Salt (BRITISH MUSEUM, 1856, p. 159, tradução nossa).

Esse primeiro inventário registrou um total de 825 peças e papiros nas paredes das escadas que levavam o visitante ao piso superior. A primeira sala egípcia estava dividida entre deidades, divindades; animais sagrados (quadrúpedes, pássaros); pequenas estátuas; mobiliário doméstico e outros objetos grandes; objetos de vestir e toalete; vasos; lâmpadas; múmias, ataúdes; múmias de animais; bacias, copos; implementos agrícolas; fragmentos de tumbas; armas; inscrições e instrumentos de escrita e pintura; caixas, cestas; instrumentos musicais; amuletos. 108

Em outras peças estavam mencionadas em sua descrição palavras como “encontrada” ou “descoberta” por Belzoni; “apresentada” por Henry Salt e Louis Burckhardt ou pelo rei George III, etc. A Pedra de Rosetta recebeu o número 24 e na sua descrição estavam mencionadas as três inscrições nela contidas e a afirmação de que “era a chave para a decifração dos caracteres hieróglifos e demóticos do Egito”, além de indicar o material, basalto. Logo na entrada da sala onde fica a Pedra, o visitante pode ler a seguinte inscrição (pintada em branco em letras maiúsculas): “CAPTURADA NO EGITO PELO EXÉRCITO BRITÂNICO, 1801. APRESENTADO PELO REI GEORIGE III” (BURLEIGH, 2008). A Pedra de Rosetta foi encontrada durante uma expedição na região de El-Rashid (Rosetta), pela equipe comandada pelo capitão Pierre-François Bouchard. Trata-se de uma estela de basalto, medindo 1,14 metros. Nela foi identificada a transcrição de um texto em três línguas: hieroglífico, demótico e grego. Várias cópias foram enviadas à França para que os estudiosos pudessem se dedicar à sua decifração, o que ocorreu em 1822. O conteúdo das inscrições é um decreto destinado à Ptolomeu V, datado de 196 a.C. Entre 1815 e 1816 o museu adquiriu importantes esculturas gregas para o acervo, incluindo os mármores do Parthenon por Thomas Bruce (sétimo conde de Elgin), que foi nomeado embaixador em Constantinopla em 1799 e ficou encarregado de conseguir desenhos e moldes em Atenas para Thomas Harrison: “[...] se Lorde Elgin transporta para Londres os frontões do Partenon e as esculturas escolhidas na Acrópole para mostrá-los ao público inglês, este ainda não está consciente de estar privando o patrimônio grego de obras-primas que são de sua propriedade” (GIRAUDY; BOUILHET, 1990, p. 27). As esculturas foram compradas pelo museu em 1816, no valor de trinta e cinco mil libras, juntamente com outras antiguidades: “[...] de 1800 a 1840, foi enriquecido por material trazido das colônias e protetorados ingleses ou, simplesmente, de lugares onde a então toda-poderosa Inglaterra tivesse influência” (SUANO, 1986, p. 40). As aquisições foram até 1835, ano da lei egípcia que proibia a exportação de antiguidades egípcias. O estudo dos objetos que compunham o museu começou a partir de 1836, quando o antiquário e egiptólogo britânico Samuel Birch foi nomeado para o Departamento, no qual reorganizou as coleções (TANRÉ-SZEWCZYK, 2017). Ao analisar detalhadamente as estratégias de representação nas instalações egípcias do Museu Britânico, Stephanie Moser (2006) afirmou que a instituição teve um papel fundamental na consolidação de duas características duradouras da nossa compreensão da história egípcia: em primeiro lugar, sua oposição cultural ao desenvolvimento da sociedade 109 ocidental através do contraste direto entre as culturas materiais da antiguidade egípcia e clássica; e em segundo lugar, o seu apelo popular único entre as culturas passadas através do seu estabelecimento como o assunto mais acessível intelectualmente da história antiga. Ao longo dos anos, o Departamento de Antiguidades passou por inúmeras modificações, até a sua transformação em Departamento de Antiguidades Egípcias e Assírias, em 1866, que posteriormente foi subdividido em Antiguidades Egípcias e Antiguidades da Ásia Ocidental. Em transformação mais recente, essas antiguidades foram separadas e o Sudão passou a compor o Departamento das Antiguidades Egípcias (MOZZATI, 2009). Atualmente as coleções estão divididas em:

1.África, Oceania e América 2. Antigo Egito e Sudão 3.Ásia 4.Moedas e Medalhas 5.Grécia e Roma 6.Médio Oriente 7.Grã-Bretanha, Europa e Pré-História 8.Impressões e Desenhos82.

Em 2003 e 2005, o Egito entrou com um pedido oficial de repatriação da Pedra, através do então secretário do Conselho Supremo de Antiguidades, Zahi Hawass. Em resposta às solicitações, o Museu Britânico lhes apresentou uma réplica em tamanho real do objeto, que foi exibido no Museu Nacional Rashid, perto do local onde a pedra foi encontrada. Em 2009 Hawass solicitou que a Pedra original fosse cedida ao Egito por empréstimo de três meses, mas todos os seus pedidos foram negados pela direção do museu. Em 2018, a repatriação foi novamente solicitada, na esperança de poder expor o monumento no Grande Museu Egípcio do Cairo.

82 Informações disponíveis no site do Museu Britânico: http://www.britishmuseum.org/about_us/departments.aspx Acesso em: 25 out. 2018. 110

2.3 MUSEU DO LOUVRE

Quarenta anos após a criação do Museu Britânico, surgiu na França o Museu Nacional83 (instalado no palácio do Louvre), instituído por decreto em 27 de julho de 1793; inaugurado oficialmente em 10 de agosto, comemorando “[...] o primeiro aniversário da queda da monarquia” (ALEXANDER; ALEXANDER, 2008, p. 29, tradução nossa); e aberto ao público uma semana depois, sob a administração de três pintores, um arquiteto e um escultor. Embora essas sejam as datas oficiais, há um consenso historiográfico de que as suas origens são mais remotas, pois o espaço do palácio onde situa-se o museu era utilizado pelos reis franceses para a guarda de obras artísticas que, eventualmente, eram exibidas para algumas pessoas (RICHARDS, 1912). O palácio onde está situado o museu foi construído inicialmente como uma fortaleza no final do século XII, pelo rei Felipe Augusto (Felipe II), que governou a França entre 1180 até 1223, ano de sua morte. Esse rei ficou conhecido pela durabilidade de seu governo e pelas obras que construiu, como uma das torres que atualmente integra o prédio que sedia o Louvre. Sua transformação em palácio ocorreu no século XVI, pelo rei Francisco I e seu filho e sucessor, Henrique II, passando por outras modificações e ampliações ao longo dos diferentes reinados. Durante a Revolução de 1793, o prédio serviu como residência real e sede do governo (BARRELET; HUBERT; ROSENBERG, 1978) e mesmo após a sua inauguração como museu, as modificações na arquitetura e nas coleções continuaram, de acordo com os seus sucessivos governantes84. Após a Revolução Francesa, o acervo do museu foi ampliado a partir da nacionalização das obras pertencentes à nobreza e às Ordens Religiosas (HERNÁNDEZ, 1998). Livros, objetos e demais obras de arte que antes eram confinadas nas igrejas e em coleções privadas agora se tornavam públicas, com legendas que indicavam, inclusive, sua a origem: “a inauguração do museu contribuiu para uma celebração nacional dos valores republicanos” (MCCLELLAN, 2012, p. 244, tradução nossa). Ao exemplo de outras coleções de arte particulares “abertas ao público” em Paris, o Louvre também adotou esse modelo, porém, esse público era extremamente restrito: “o

83 A nomenclatura do museu variou ao longo dos anos: Museu Francês, Museu Nacional das Artes, Museu das Artes ou apenas Museu entre 1793 e 1797; Museu Central das Artes de 1797 a 1803; e Museu Napoleão entre 1803 a 1815 (MCCLELLAN, 2012). A origem do nome “Louvre” possui uma série de hipóteses, porém, não se sabe ao certo o seu significado. 84 Informações sobre as sucessivas modificações do prédio do Louvre podem ser encontradas no site do próprio museu: https://www.louvre.fr/en/histoirelouvres/history-louvre#tabs 111

Louvre foi o depositário privilegiado de uma estratégia que visava retirar a ‘arte francesa’ da exclusiva propriedade da realeza e da aristocracia e expô-la ao interesse e admiração públicos” (SCHWARCZ, 1989, p. 31). No início a sua entrada era “livre” e gratuita para o público, mas apenas nos finais de semana, pois durante a semana o seu acesso era reservado a “[...] artistas e estrangeiros, ambos eram geralmente autorizados a acessar a maioria das coleções, mesmo nos dias em que estes eram fechados ao público em geral” (BODENSTEIN, 2011, p. 297-298). Considerado “[...] o primeiro grande museu de arte nacional” (ALEXANDER; ALEXANDER, 2008, p. 29, tradução nossa), assim como a sua nomenclatura, a sua estrutura foi se modificando com o passar dos anos, numa série de obras e reformas. Com a invasão da península itálica por Napoleão e suas tropas, houve um crescimento considerável no acervo do museu a partir do saque desenfreado das antiguidades e obras de arte daquelas regiões. O acervo que originou as primeiras coleções do museu foi adquirido através do legado de obras dos mestres do Renascimento italiano, até então pertencentes aos reis franceses. Além disso, o museu foi abastecido por meio de compras e doações e através de saques e pilhagens empreendidos por Napoleão Bonaparte em outras regiões da Europa, como o território italiano e fora dela, como o Egito, no intuito de exaltar

[...] a civilização, realiza o elogio da nação e destaca a sua participação no concerto universal como herdeira dos valores clássicos ocidentais e para isso privilegia as obras de artes consagradas colocando ao seu lado, posteriormente, artefatos de povos “primitivos” e de países colonizados (CHAGAS, 2009, p. 48).

Quando o museu foi renomeado Museu Napoleão, seu primeiro diretor foi o pintor francês Dominique Vivant Denon, considerado o criador da “[...] figura do conservador moderno” (FREGOLENT, 2009, p. 7) e responsável pelo primeiro inventário das coleções:

No Louvre, ele realizará inúmeras atividades ligadas à administração das coleções, como correspondência com artistas, organização dos Salões, gerenciamento do transporte, aquisição e recuperação de obras e resolução de questões relativas aos objetos confiscados no exterior (MORALES, 2015, p. 15).

Durante o período que passou no Egito, Denon se aproximou bastante de Napoleão. Após a primeira visita do general ao Louvre, em 1800, o barão foi nomeado Diretor Geral dos Museus, ato declarado “[...] como um passo decisivo na burocratização dos museus” (MCCLELLAN, 2012, p. 255, tradução nossa), devido à forma como ele conduziu a administração da instituição naquele período, além de outros museus franceses. Nesses espaços ele recebeu as obras de arte europeias que haviam sido entregues à França após a 112 ocupação de seu exército, às quais organizou metodologicamente conforme sua cronologia, escola nacional e evolução dos estilos artísticos: “outras seções do museu, especialmente de pinturas, eram classificadas segundo um espírito racional semelhante aos trabalhos de Lineu e de Buffon – gênero, espécie, subespécie – até onde era possível (BLOM, 2003, p. 141).

Figura 13: Vivant Denon. Litografia do pintor e litógrafo Jean-Baptiste Mauzaisse.

Fonte: https://www.histoire-image.org/fr/etudes/vivant-denon-1745-1825-museum-central-arts-musee- napoleon Acesso em 08 jun. 2019.

A figura acima foi produzida a partir de uma obra do pintor René Théodore Berthon, na qual retrata Vivant Denon em seu escritório no Museu do Louvre. Na imagem, observamos Denon rodeado por objetos que compõem a sua coleção pessoal, como obras de arte, estatuetas, esculturas e até uma cabeça mumificada, talvez proveniente da ocupação francesa de 1798, da qual fez parte. Em um pronunciamento destinado à Classe de Belas Artes do Instituto Nacional, em 1802, Denon comunicou a chegada de comboios vindos da Itália com novos itens, ampliando a coleção de estátuas do museu francês. Num tom bastante político, ele se referiu a Napoleão como “o herói de nosso século”, e afirmou que o general exigiu de seus inimigos os monumentos, denominados por Denon “troféus da paz” ou ainda monuments de dépouilles 113 opimes, do latim spolia opima, “[...] que caracterizava o que um general romano ganhava ao matar seu inimigo pelas próprias mãos” (MORALES, 2015, p 215). Denon salientou a preocupação de Napoleão à respeito da conservação dos monumentos e indicou que cada objeto receberia uma “nomenclatura simples”, no entanto, os curadores haviam elaborado um catalogue raisonné para as coleções do Museu Napoleão, sob a sua orgulhosa direção (DENON, 1802). Denon mencionou que a estátua grega de Melpomene foi a primeira obra colossal de seus museus: “é desejável que as gigantescas circunstâncias em que vivemos sejam consagradas por monumentos colossais” (DENON, s.d., p. 7, tradução nossa). Ao se referir a outras obras de destaque, ele afirmou: “não quero antecipar nossos prazeres futuros; basta saber que outras sete salas estão sendo preparadas, que serão inteiramente dedicadas aos monumentos egípcios” (DENON, s.d., p. 8, tradução nossa). Para Denon, o acervo do Louvre foi o maior troféu adquirido pela França, especialmente pela formação excepcional de suas coleções. Ele exerceu o cargo de diretor até 1815, ocasião em que foi pressionado pelos países Aliados para devolver as obras de arte confiscadas durante o Império após a derrota de Napoleão, no qual esse se opôs veementemente85. Contudo, cerca de cinquenta mil dessas obras foram repatriadas para países como a Áustria, a Bélgica, a Espanha, a Itália, a Prússia, entre outras. Em algumas regiões, esse retorno viabilizou, inclusive, a abertura de galerias e museus para expor as obras restituídas, a exemplo do Museu Koninklijk, que antecedeu o Rijksmuseum, em Amsterdã; e a coleção de arte do Museu do Prado, em Madri (ALEXANDER; ALEXANDER, 2008). Mesmo com a devolução dessas obras, ao longo dos anos o museu seguiu ampliando as suas coleções e renovando os seus espaços, até o surgimento da Reunião dos Museus Nacionais em 1895, “[...] um organismo destinado a financiar as aquisições” (FREGOLENT, 2009, p. 14) e a fundação da Sociedade dos Amigos do Louvre, “[...] um grupo de mecenas privados” (FREGOLENT, 2009, p. 14). Diferentemente de Londres, uma sala dedicada à cultura egípcia no Museu do Louvre foi criada em 1818, dez anos após a abertura do Departamento de Antiguidades no Museu Britânico. Denominada “Sala de Ísis ou dos Monumentos Egípcios”, o nome fazia alusão a

85 Nesse período, o francês Quatremère de Quincy (1815, p. 57-58) escreveu Considérations morales sur la destination des ouvrages de l'art, no qual condenava a retirada das obras de arte de seus locais originais: “deslocar todos os monumentos, recolher assim seus fragmentos decompostos, classificar metodicamente seus escombros, e fazer de uma tal reunião um curso prático de cronologia moderna; é para uma nação existente se constituir como nação morta; é assistir, viva, a seus funerais; é matar a arte para dela fazer a história; não é de modo algum fazer sua história, mas seu epitáfio”. 114 uma estátua que representava, na verdade, a deusa egípcia Sekhmet. A sala estava repleta de objetos que pertenciam ao período romano. No início, a coleção egípcia era formada basicamente por esculturas que anteriormente pertenciam às coleções reais, até o início das aquisições de grandes coleções, que ocorreram entre os anos de 1824 e 1827. No mesmo ano foi inaugurado o Museu Charles X, no qual o rei francês adquiriu três grandes coleções, com o incentivo de Champollion, nomeado curador do departamento de Antiguidades do museu no mesmo ano. Entre 1852 e 1868, coleções acumuladas por colecionadores europeus que fizeram carreira no Egito enriquecem os quartos. Inicialmente, a parte egípcia estava dividida em quatro salas (uma destinada aos deuses, uma civil e duas funerárias) e, posteriormente, a coleção foi acrescida através de compras e doações de colecionadores europeus (mesmo que algumas peças não tivessem proveniência conhecida). A segunda compra de Carlos X para o museu abarcava uma coleção de quatro mil e quatorze objetos, como consta no inventário do museu (VERCOUTTER, 2002). A decoração das salas temáticas estava em conformidade com o desejo dos criadores em “[...] desenvolver coleções coerentes, metodicamente e cronologicamente classificadas” (CHAUDONNERET, 1991, p. 491, tradução nossa). Com a compra de novas coleções entre 1824 e 1826, o acervo foi acrescido num total de nove mil objetos. Nomeado curador da coleção em maio de 1826, Jean-François Champollion se encarregou de organizar a expografia do novo departamento do museu, inaugurado no ano seguinte (TANRÉ-SZEWCZYK, 2017). Após a chegada de Champollion à cidade de Turim, em 1824 – para estudar a coleção reunida por Bernardino Drovetti –, ele aconselhou o Ministro do Interior da Sardenha sobre “[...] o método que deveria ser adotado para melhor cuidar desta coleção” (TANRÉ-SZEWCZYK, 2017, p. 4, tradução nossa). Champollion já estava atento para a necessidade de uma classificação museográfica, que possibilitaria uma melhor apresentação dos artefatos expostos, ao contrário do que os museus estavam fazendo: “[...] uma espécie de loja, onde os objetos são empilhados sem ordem e colocados sem relação um com o outro” (TANRÉ-SZEWCZYK, 2017, p. 4, tradução nossa). Dessa forma, ele sugeriu uma divisão classificatória de ordem cronológica das antiguidades egípcias, separadas em três categorias: monumentos religiosos, monumentos históricos e monumentos funerários, categorias essas que posteriormente foram aplicadas a outras coleções do Louvre (TANRÉ-SZEWCZYK, 2017).

115

Figura 14: Gravura de 1863 após a organização da sala egípcia por Champollion.

Fonte: Augustin Régis. Planche du guide d’Adolphe Joanne, Paris illustré. Nouveau guide de l’étranger et du Parisien, Paris, Gravure, 1863.

A partir da atuação de estudiosos e colecionadores no Egito, a coleção foi ampliada entre os anos de 1852 e 1868, onde destacamos quase seis mil obras que foram enviadas para o museu após a descoberta do Serapeum por Auguste Mariette, incluindo a famosa estátua do escriba sentado, encontrada em Saqqara, na capela de uma tumba da V Dinastia. Outro item famoso que entrou no acervo do Louvre foi o Zodíaco de Dendera, que originalmente adornava o teto do Templo de Hator, em Dendera – um dos itens preferidos de Denon. A representação em formato circular do Zodíaco se difere de todos as outras formas do Egito antigo, geralmente piramidais ou quadradas. A sua remoção pelos franceses na década de 1820 ocorreu através do agente Jean-Baptiste Lelorrain, a mando do antiquário e colecionador Sébastien Louis Saulnier, para ser enviado à França (Paris): “Lelorrain usou pólvora para dinamitar o zodíaco do teto do templo porque não havia tempo para cortá-lo das pedras usando ferramentas de corte regulares” (WYNN, 2007, p. 54). Ao que consta, ele levou dias trabalhando forçosamente para conseguir cerrar o calcário: “felizmente, suas explosões cuidadosamente controladas não derrubaram o teto” (FAGAN, 2004, p. 172, tradução nossa). O zodíaco foi vendido ao rei Louis XVIII pelo valor de 150 mil francos: “agora pode ser visto no Louvre. O visitante de Dendera deve se contentar com uma réplica de gesso” (FAGAN, 2004, p. 172). Chega a ser irônico ler as declarações atuais que apontam para a “provável” destruição dos monumentos antigos se permanecessem no Egito, uma vez 116 que os antigos “colecionadores” aplicavam técnicas explosivas “cuidadosamente controladas” no interior dos templos e das tumbas. Qual o sentido de destruir para conservar? O Zodíaco de Dendera está entre as seis peças da Wish List do Egito, no entanto o Louvre afirma que o monumento saiu legalmente do país em 1821, com o aval do pasha Mohamed Ali Pasha. Em 2009, Zahi Hawass exigiu que o Louvre devolvesse cinco pinturas de pedra calcária que haviam sido compradas pelo museu em 2000 e 2003, através de uma galeria e de em um leilão, porém, essas peças foram roubadas nos anos de 1980, em um túmulo de Luxor. Na época, o museu não atendeu ao pedido de Hawass, que decidiu encerrar uma escavação em curso na região de Saqqara, patrocinada pelo Louvre. Hawass contou que estava em meio a uma palestra, quando o então presidente do Egito, Hosni Mubarak, lhe telefonou para avisar que o presidente francês, Nicolas Sarkozy, havia questionado a ação do arqueólogo, que foi compreendida por Sarkozy. Posteriormente, o museu do Louvre devolveu as peças para o Egito, atualmente expostas no Museu de Luxor86. Com obras que compreendem todos os períodos da história egípcia antiga (desde o final da Era Pré-Histórica até o Período Cristão), após a renovação do Louvre em 1997, a coleção do Departamento de Antiguidades Egípcias passou a ocupar dois andares, nos quais as peças mais pesadas encontram-se no piso térreo87. Essa decisão não permite um itinerário expositivo organizado pela cronologia da história egípcia, o que pode ser verificado no outro andar. O térreo compreende as salas um a dezenove e o primeiro andar acomoda as salas vinte a trinta. Por se tratar de um palácio, o itinerário expográfico completo do museu torna a visita um pouco cansativa. De caráter universalista, atualmente as coleções estão divididas em oito departamentos:

1. Antiguidades Gregas, Etruscas e Romanas 2. Antiguidades Egípcias 3. Antiguidades Orientais 4. Artes do Islã 5. Artes Gráficas 6. Esculturas 7. Objetos de Arte

86 Disponível em: https://www.theguardian.com/world/2009/dec/14/france-louvre-returns-egypt-relics Acesso em: 1 mai. 2018. 87 Informações disponíveis no site oficial do Museu do Louvre: https://www.louvre.fr/departments/antiquit%C3%A9s-%C3%A9gyptiennes. Acesso em: 1 mai. 2018. 117

8. Pinturas

No século XX, o museu procurou proporcionar melhores condições de acesso aos seus visitantes, o que culminou com o projeto do Grande Louvre, lançado em 1981, pelo então presidente da França, François Mitterrand. Em constante expansão, muitas obras foram transferidas pa11ra o Museu d´Orsay, inaugurado em 1986 (FREGOLENT, 2009). Com uma quantidade exorbitante de obras de arte, esculturas e objetos, o Louvre decidiu expandir os seus espaços para além de Paris e inaugurou em 2012 o Museu do Louvre na cidade de Lens, no norte da França, e em 2017 o Louvre Abu Dhabi, na capital dos Emirados Árabes Unidos.

2.4 MUSEU EGÍPCIO DE TURIM

O Museu Egípcio de Turim, localizado na região do Piemonte, ao norte da atual Itália, foi fundado em 1824 e é considerado o primeiro museu dedicado à civilização egípcia do mundo, mais antigo que o próprio Museu Egípcio do Cairo, inaugurado em 1902. O prédio onde atualmente encontra-se o museu é denominado de Collegio dei Nobili (Colégio dos Nobres), construído no século XVII para abrigar uma escola jesuíta, onde estudavam os filhos das famílias mais abastadas da cidade. No século XVIII, passou a funcionar em suas instalações a Accademia delle Scienze (Academia de Ciências), que recebeu a coleção egípcia em 1832, ano de abertura do museu ao público. Até essa data, a coleção encontrava-se no Museu da Universidade Real de Turim (fundado em 1724), juntamente com outras coleções, como a de história natural e de Roma. Em 1824, o último rei da linhagem dos Savoia88, Carlos Félix, adquiriu uma vasta coleção com mais de cinco mil objetos que foram reunidos pelo diplomata italiano Bernardino Drovetti, dando origem ao Museu Egípcio de Turim, que na década de 1830 passou da tipologia de museu universitário para museu nacional: “na capital do norte da Itália, em particular, o governo dá um lugar de destaque ao desenvolvimento da ciência, a fim de estabelecer poder. A realização é confiada a instituições acadêmicas” (MAGET, 2009, p. 65, tradução nossa).

88 A Casa de Savoia (ou Saboia), uma das famílias reais mais antigas do mundo, desde o século XVIII mantém uma tradição no que diz respeito ao interesse pelo patrimônio cultural, com inúmeros investimentos em museus, exposições, castelos, etc. Já no século XVI, eles designaram Turim como capital, com o objetivo de tornar a cidade uma referência intelectual e cultural. Os seus sucessores – Casa de Savoia-Carignano – foram os responsáveis pelo processo de unificação da Itália, em 1861 (DONADONI; CURTO; ROVERI, 1990). 118

Considerada uma região ainda atrasada na década de 1850 (HOBSBAWN, 2015), especialmente se comparada a sua “rival”, Florença, possuir uma coleção singular era uma forma de ampliar o prestígio do Piemonte no âmbito das Artes. Nesse sentido, a criação do Museu Egípcio obedeceu a razões políticas (DONADONI; CURTO; ROVERI, 1990). Além do MET, a Itália ainda possuía seis museus egípcios em Roma, coleções maiores na Bolonha e em Florença e coleções menores espalhadas por diversas cidades. No início, o museu possuía apenas documentos e objetos do período do Reino Novo, notadamente uma falta em relação ao acervo diversificado do Museu Britânico e do Louvre, por exemplo. Em 1872, foi realizada uma pesquisa pelo então conservador do Museu de Boulaq, Luis Vassalli (a mando do Ministro da Educação Cesare Correnti), sobre as coleções egípcias na Itália, que indicou a falta de materiais sobre os períodos mais antigos da história faraônica e destacou que “[...] a exposição era pouco racional, já que todos os objetos menores foram reunidos no quarto andar e sugeriu as modificações apropriadas” (DONADONI; CURTO; ROVERI, 1990, p. 245). Posteriormente, o próprio Museu do Cairo doou algumas peças referentes a períodos anteriores da história egípcia. A partir de 1900, o arqueólogo Ernesto Schiaparelli (que havia assumido a direção do museu em 1894) e sua equipe iniciaram uma série de campanhas arqueológicas no Egito, ampliando a coleção composta por itens que contemplam desde o período pré-histórico até a Época Copta, incluindo objetos de uso cotidiano. Nesse sentido, a coleção do MET diferenciava-se dos demais museus do período, que primavam pelas grandes obras artísticas. Seguindo as recomendações de Vassalli, o acervo do museu foi subdividido a partir de séries tipológicas, conforme consta no catálogo organizado em 1882 e revisado em 188889. A marcação dos objetos recebeu a designação “Cat.” (Catálogo) antes de sua numeração e os objetos que foram incorporados posteriormente ao acervo (inventário Schiaparelli e demais) receberam a denominação “Suppl.” (suplemento) (DONADONI; CURTO; ROVERI, 1990). O item mais antigo do acervo é a Mensa Isíaca (ou Tábua de Bembine)90, uma mesa feita em bronze destinada ao altar do templo de Isis, datada do período romano. Por representar divindades egípcias e conter inscrições hieroglíficas, foi estudada no século XVII pelo jesuíta Athanasius Kircher. A última aquisição do museu proveniente do Egito ocorreu em 1955, e foi um presente do governo egípcio para os países que auxiliaram na campanha de

89 Catalogo Generale dei Musei di Antichità, Serie I – Piemonte – Vol. I – Regio Museo di Torino ordinato e descrito. Antihità Egizie, I, Turín. Aurtoria de Ariodante Fabretti, Francesco Rossi e Ridolfo Vittorio Lanzone. 90 A peça recebeu esse nome por ter sido adquirida pelo cardeal e antiquário Bembo, após o saque de Roma, em 1527. Posteriormente, foi vendida pelo filho de Bembo e ficou durante antes sem registros, até a sua aparição em Turim, por volta de 1630 (DONADONI; CURTO; ROVERI, 1990). 119 salvamento dos monumentos da Núbia. À Itália, coube receber o Templo de Ellesija, construído pelo faraó Tutmosis III em 1450 a.C. Outro item importante do acervo é o Papiro dos Reis, que possui uma listagem dos governantes e o período de seu reinado (DONADONI; CURTO; ROVERI, 1990). Figura 15: Mensa Isiaca, Museo Egizio.

Fonte: foto da autora (2016).

Durante a Segunda Guerra Mundial, o acervo foi transferido para o Castelo de Agliè, na mesma região do Piemonte, por ordens do então diretor, Giulio Farina. Com o fim do conflito, os itens retornaram à sede do museu, reaberto em 1946. Os monumentos mais pesados e difíceis de transportar permaneceram no museu, mas o seu cuidado foi reforçado. Com a direção de Silvio Curto entre 1965 e 1984, as salas expositivas foram reorganizadas para receber novos objetos advindos da Missão Arqueológica, bem como o Templo de Ellesija (DONADONI; CURTO; ROVERI, 1990). A administração do museu ficou sob responsabilidade do estado até 1875, quando a universidade passou a regê-lo, e retornou ao estado a partir de 1880. Em 1939, o museu passou a ser uma Superintendência das antiguidades egiptológicas de Turim. A coleção foi privatizada em 2004 através da criação da Fondazione Museo delle Antichità Egizio di Torino, sendo o primeiro museu do estado a ser privatizado na Itália através de uma experiência de gestão participativa, que engloba o Ministério do Patrimônio e das Atividades Culturais, a Região do Piemonte, a província e a cidade de Turim, a Companhia de San Paolo 120 e as fundações bancárias CRT. Por seu regimento, a fundação terá duração de trinta anos e não possui fins lucrativos. Seu objetivo é a “valorização, promoção, gestão e adaptação estrutural, funcional e expositiva do museu, de bens culturais recebidos ou adquiridos por qualquer motivo e a promoção e melhoria das atividades museológicas” (GALLETTI, 2005, p. 137). A partir de 2014, o museu passou por uma importante obra de restauração e reabriu em março de 2015, com um investimento de cinquenta milhões de euros (BONDIELLI, 2015). No Press Release enviado à imprensa em 31 de março de 2015, a Fundação salientou a importância e o compromisso da instituição em manter as suas portas abertas ao público todos os dias, mesmo durante o período em que estavam em obras. O projeto para a nova museografia foi desenvolvido por um comitê científico formado por oito curadores de diferentes formações, incluindo o atual diretor do museu, o arqueólogo Christian Greco. Nele, os autores priorizaram o fornecimento das mais completas informações referentes aos objetos expostos, bem como o local e a data em que foram encontrados:

A nova museologia do museu, renovado em 2015, é herdeira desta estreita ligação entre museu e arqueologia introduzida por Schiaparelli: os conjuntos de objetos são apresentados o máximo possível pelos locais, e as fotografias de arquivo hoje evocam as escavações e o contexto arqueológico para destacar sua proveniência e coerência (JARSAILLON, 2017, p. 10, tradução nossa).

A sede do museu possuía 6.500 metros quadrados e após a reforma duplicou o seu tamanho. O prédio possui cinco andares e abriga uma coleção de cerca de quarenta mil itens. Além das salas expositivas, o museu possui uma biblioteca (Silvio Curto), com uma coleção de mais de sete mil livros; duas mil e cem edições de periódicos; cento e setenta e um folhetos; oito mil e quinhentas monografias; microfilmes; o acervo bibliográfico do egiptólogo Giuseppe Botti, com cerca de quinhentos exemplares de monografias e periódicos; e os exemplares das bibliotecas dos egiptólogos Celeste Rinaldi e Vito Maragioglio. O acervo bibliográfico foi incrementado a partir de 1964, após o auxílio da Itália na recuperação dos monumentos da Núbia, o que faz da sua biblioteca uma referência nos estudos egiptológicos. O museu também possui uma Associação de Amigos, fundada em 1974 pelo egiptólogo italiano Silvio Curto, ainda em funcionamento e mantém uma revista anual (Revista do Museu Egípcio) que aceita constribuições sobre pesquisas relacionadas ao acervo do museu e às escavações arqueológicas realizadas pela instituição91.

91 Todas as informações referentes à origem da coleção estão disponíveis no site do Museu Egípcio de Turim: http://www.museoegizio.it/museo/ Acesso em: 20 mai. 2016. 121

Figura 16: Sala sobre a origem da coleção do MET.

Fonte: foto de Paolo Bondielli.

A cronologia abordada pela atual museografia compreende desde o ano 4000 a.C. até 700 d.C. Logo após a entrada do museu existe um pátio onde as pessoas podem sentar para descansar; seguido pela bilheteria e livraria. Nesse mesmo nível, o percurso expográfico se inicia pelas salas dedicadas à história da formação da coleção museológica, com destaque para os documentos, livros e fotografias das antigas escavações arqueológicas realizadas pelos italianos no Egito, bem como os seus principais arqueólogos e arqueólogas. Essa sala foi pensada com o intuito de responder uma indagação frequente por parte dos visitantes sobre o motivo de um museu tão grandioso especializado na cultura egípcia antiga ter lugar na cidade de Turim. Nesse mesmo nível uma sala é dedicada à exposição integral do papiro Iuefankh (Livro dos Mortos), que mede dezenove metros, datado do Período Ptolomaico. Para dar prosseguimento à visita respeitando a ordem cronológica da história egípcia, é preciso subir até o último andar (3º), onde são montadas as exposições temporárias. A Sala dos Reis foi criada pelo designer e decorador italiano Dante Ferretti, em 2006 e permanece no andar térreo devido ao peso das estátuas que a compõem. As demais salas estão divididas da seguinte forma:

122

Quadro 2: Novo percurso expográfico do MET.

2º PLANO 1º PLANO TÉEREO Período Pré- Deir el-Medina Galeria dos Reis Dinástico/Reino Antigo Tumba dos Túmulo de Kha Templo de Ellesjia/Sala Desconhecidos/Tumba de Núbia Iti e Neferu Reino Médio Galeria do Sarcófago Reino Médio / Reino Novo Papiroteca Vale das Rainhas Período Tardio Era ptolomaica Período Romano e Tardio Fonte: elaborado pela autora a partir das informações de Paolo Bondielli com a colaboração de Tiziana Giuliani.

Os recursos disponibilizados durante a visita são áudio-guias distribuídos em seis línguas diferentes, incluindo o árabe que, na sua concepção, enfatiza a relação com a terra originária do acervo exposto. A iluminação das salas é devidamente controlada, respeitando a incidência de luz direta nos objetos, mas também orientando a percepção dos visitantes. A conservação é realizada através de um moderno sistema tecnológico de controle higrométrico, além de outros sistemas de monitoramento. Na fala do diretor do museu, Christian Grego, que consta no informativo distribuído à imprensa por ocasião da reabertura do museu, ele enfatizou a função da coleção em auxiliar o público na compreensão “[...] sobre os fragmentos de história que pertencem a toda a humanidade” (GRECO, 2015, p. 3, tradução nossa), referindo-se à ideia da universalidade dos museus. Ele também mencionou o interesse em tornar o museu um ponto de encontro entre as diferentes comunidades étnicas presentes na região de Turim, especialmente os egípcios. Em consonância com a inauguração do novo museu, foi lançado também um novo catálogo em 2015, no qual Christian Greco mencionou as formas de estabelecimento da coleção no século XIX: a prática do antiquariado e as escavações arqueológicas – refletidas na nova concepção expográfica que ganhou salas para abordar as principais escavações realizadas pela Missão Arqueológica Italiana. Assim como no Press release enviado à 123 imprensa, a principal justificativa para a remodelação do museu recaiu na sua relação com o público:

A importância e o papel que os objetos adquiriram ao longo do tempo, sua relação com o resto das coleções, o significado que eles assumem na percepção do público, constituem um campo de valores que requerem interpretação constante, com plena consciência do passado, mas também com uma perspectiva de mente aberta para as necessidades do presente (GRECO, 2015, p. 9, tradução nossa).

Como resposta às incessantes inquietações do público, foram criadas salas adicionais que apresentam documentos relacionados às escavações, bem como a utilização de prosopografia para contar uma breve história dos arqueólogos e estudiosos que tiveram destaque na formação e no estudo da coleção. Pelas palavras do diretor, fica claro que a preocupação maior desse novo layout do museu é o de proporcionar ao visitante um entendimento histórico da coleção que ali está abrigada e não limitar a visita apenas à exposição dos objetos. Ainda assim, não encontramos informações acerca de saques ou pilhagens; dos métodos abruptos utilizado pelos italianos para adentrar nos sítios arqueológicos; e nem sobre o pedido de repatriação que envolve um objeto do museu, seja no percurso expográfico, no catálogo ou nas entrevistas e declarações do diretor e demais funcionários da instituição. Mas o que o museu diz sobre a repatriação? Segundo as informações disponibilizadas no site da instituição, é apresentado um breve histórico sobre a coleção museológica e a forma como algumas peças chegaram no museu, salientando o papel da MAI e de Schiaparelli no Egito, no século XX. No entanto, é apenas mencionado que na época os achados provenientes das escavações eram divididos entre o Egito e os países responsáveis pelas missões arqueológicas, salientando que atualmente tudo deve permanecer no Egito, a partir da implementação de leis que regem o patrimônio cultural do país. Não há nenhum tipo de menção à discussão sobre o repatriamento de qualquer objeto. Sobre o pedido de devolução da estátua de Ramsés II, o curador do Departamento de Coleção e Pesquisa do MET, Federico Pool (2016), afirmou que nunca houve um pedido oficial do Egito ao estado italiano para a devolução, embora seja de seu conhecimento que ela integra uma das seis antiguidades desejadas por Zahi Hawass. Na sua opinião92:

Como um país cuja herança é especialmente rica e tem sido extensivamente apropriada, legalmente ou não, por colecionadores estrangeiros até tempos muito recentes, simpatizamos com os sentimentos egípcios de arrependimento pelas obras no exterior. No entanto, aceitamos o fato de que, apesar das milhares de pinturas,

92 Correspondência eletrônica datada de 11 de novembro de 2016, às 09:53. Tradução livre da autora. 124

esculturas, vasos pintados, etc. que desapareceram, ainda temos uma herança incrivelmente rica dentro de nossas fronteiras e uma que estamos lutando para cuidar adequadamente como ela é. Nós olhamos para o lado positivo: esses objetos italianos no exterior são embaixadores do nosso país e de sua herança. Não estamos reivindicando a restituição de artefatos que deixaram a Itália há 100 anos ou mais. Isso não quer dizer que não haja motivos para um país pedir o retorno de tais artefatos, mas acreditamos que esses esforços se mostraram até agora irrealistas. Em 2005, a Itália retornou um obelisco retirado da Etiópia como espólio de guerra em 1937. Era uma coisa respeitosa a se fazer. Quando a estátua de Ramsés II foi tirada há quase 200 anos, o país era um protetorado, não havia legislação sobre antiguidades e os próprios habitantes locais vendiam antiguidades para os europeus. Obviamente, essa é claramente uma situação colonial que empresta seu flanco à crítica. Então, novamente, pode haver motivos para pedir restituição, mas após um certo ponto, é como pedir aos norte- americanos e sul-americanos não nativos que deixem seu país para os nativos (os “índios”): seria a coisa certa a fazer, mas não é viável. Uma questão completamente diferente é a expatriação ilegal de artefatos, especialmente desde a Convenção da UNESCO de 1970 e a subsequente adesão do Egito a ela. Isso deve ser perseguido com a maior severidade, até porque incentiva a escavação ilegal.

O caso de repatriação ao qual Pool se refere foi atendido em abril de 2005, na atual região da Etiópia. Trata-se de um monumento conhecido como Obelisco93 de Axum (ou Askum), levado de navio para a Itália em 1937, após a invasão de Mussolini:

Obeliscos, naquele momento da história, quando a Itália consolidava seu poder como Estado-nação unificado em um mundo de expansão colonial, estavam sendo usados – como antes tinham sido usados por imperadores e papas romanos – para proclamar o estabelecimento de uma nova ordem (HASSAN, 2003, p. 51, tradução nossa).

Após sessenta e oito anos, o monumento voltou ao seu local de origem, onde teve o seu transporte dividido em três etapas, o que foi bastante comemorado pelo povo etíope: “nós também usamos esta ocasião para incitar o retorno de todos os artefatos históricos levados durante o período colonial da Europa para a África” (BEKERIE, 2005, p. 2, tradução nossa).

93 Os obeliscos (nome grego), são provenientes da palavra tekhen (raio de sol). Originários do Egito antigo, eram erguidos em homenagem ao deus sol, Rá, e representavam a ligação entre o céu e a terra, significado este que “[...] foi completamente ignorado, uma vez que entrou no contexto europeu” (HUMBERT & PRICE, 2003, p. 3, tradução nossa). Atualmente os obeliscos são utilizados como demarcação de fronteiras, homenagens, marcos comemorativos e triunfos de guerra e, assim como outros monumentos antigos, ao longo do tempo foram apropriados e reinterpretados em diferentes culturas. 125

Figura 17: Estátua de Ramsés II.

Fonte: Museu Egípcio de Turim.

A estátua de Ramsés II encontra-se na sala dos Reis, no piso térreo do museu e leva o número de inventário “Cat. 1380 RCGE 5463”. Data do Reino Novo (XVIII-XX Dinastia), proveniente de Tebas (templo de Amon, Karnak), da coleção de Drovetti. A estátua foi restaurada a pedido de Champollion, pois estava quebrada em diversas partes. Em correspondência com seu amigo, Dubois, Champollion descreveu a admiração pelos detalhes da estátua e declarou: “eu me apaixonei por ela”, a quem a chamou de “Apollo Balvedere egípcio” – em comparação com a estátua de mármore do deus Apolo, de um dos museus do Vaticano (FONDAZIONE MUSEO DELLE ANTICHITÀ EGIZIE DI TORINO, 2015). Como vimos no Capítulo 1, a ação dos cônsules e dos arqueólogos que deixavam os seus nomes registrados nas paredes dos templos também são atestadas nos monumentos maiores. Como por exemplo, observamos esse registro no acervo do próprio MET, na estátua de Totmés III, feita em granito negro:

126

Figura 18: Detalhe da inscrição na estátua de Totmés III.

Fonte: VERCOUTTER, 2002, p. 63-64.

As inscrições foram feitas por Jean-Jacques Rifaud (1786-1852), um escultor marselhês que viveu cerca de quarenta anos no Egito e auxiliou Drovetti na busca pelas antiguidades. Na inscrição, embora contenha erros ortográficos, podemos ler: “descoberta por J. Rifaud a serviço de Drovetti, em Tebas, 1818” (VERCOUTTER, 2002, p. 64). Tendo como parâmetros o diálogo, a pesquisa científica e a acessibilidade ao patrimônio cultural, o MET realiza empréstimo de coleções para outras instituições culturais internacionais, inclusive para o Egito, onde desde 2015 mantém uma equipe arqueológica atuando em escavações. No entanto, no site do museu encontramos apenas menção sobre esse diálogo com outra instituição italiana: o Museu do Vaticano, especialmente a coleção do Museu Gregoriano Egípcio (fundado por Gregório XVI, em 1839), que possui uma importante coleção do Egito antigo e recentemente abrigou uma exposição temporária, sob o título “Collezioni in Diálogo: um capolavoro del Museo Egízio di Torino raccontato dai Musei Vaticani”, em exibição de dezembro de 2018 até agosto de 2019. No Brasil, foi inaugurada em outubro de 2019, a exposição “Egito antigo: do cotidiano à eternidade”, em comemoração aos trinta anos do Centro Cultural Banco do Brasil (CCBB), no Rio de Janeiro. A mostra conta com cento e quarenta objetos do Museu Egípcio de Turim e a partir de fevereiro de 2020 poderá ser visitada em São Paulo.

127

2.5 CONSIDERAÇÕES ACERCA DA EXPOSIÇÃO DAS ANTIGUIDADES EGÍPCIAS NOS MUSEUS

Convém ressaltarmos que nem todas as antiguidades que deixaram o Egito para adentrar às coleções estrangeiras foram vendidas ou roubadas. Muitas são provenientes de doações dos governantes do Egito, como um dos dois obeliscos de Luxor, hoje em Paris, “[...] dado por Muhammad Ali aos franceses em 1819, e levado mais de uma década depois pelo engenheiro Lebas a Paris, onde foi erguido na Place de la Concorde” (WYNN, 2007, p. 55, tradução nossa). Há ainda obeliscos na Inglaterra, em Istambul, em Nova York e em Roma. Durante o governo do vice-rei Muhammad ‘Ali, uma quantidade significativa de objetos e monumentos deixaram o país. Ele tinha como objetivo modernizar o Egito e em troca de tecnologia e apoio estrangeiro, acabou negociando algumas antiguidades, especialmente para os oficiais que possuíam cargos políticos. No entanto, as pilhagens desenfreadas que ocorreram nesse período somadas aos danos causados ao patrimônio cultural do Egito não podem ser consideradas justificativas indiscutíveis para iniciar os debates sobre a repatriação, como defendem alguns museus. Outro exemplo mais recente em relação às doações por parte do governo egípcio refere-se às ações que ocorreram na década de 1960, por ocasião da construção da Alta Represa de Assuã. Embora esse acontecimento tenha sido um fato marcante na transição da monarquia para a independência egípcia, por conta de sua modernização, por outro lado instaurou um perigo iminente para parte do patrimônio cultural do Egito. Com o local da construção eleito cerca de sete quilômetros ao sul de Assuã, a ideia da barragem visava a criação de um reservatório capaz de armazenar a grande quantidade de água do rio Nilo, o que ajudaria basicamente no controle de suas cheias anuais e nos períodos de seca, na geração de energia hidrelétrica, na expansão das áreas de cultivo e na melhoria da navegação (ABU- ZEID; EL-SHIBINI, 1997). Iniciado em 1960, sob o governo de Abdel Gamal Nasser, o projeto da Alta Represa foi concluído após dez anos, embora etapas anteriores já haviam sido realizadas desde o final do século XIX (BETTS, 2015). Correndo o risco de ficarem submersos com a construção da alta barragem, o primeiro diretor do então Serviço de Antiguidades, Mustafa Amer, informou o ministro de Antiguidades, Kamal el-Dine Hussein, sobre a sua preocupação com os monumentos daquela região. Após um estudo minucioso realizado por arqueólogos e engenheiros em 1954, verificou-se a necessidade de buscar ajuda internacional para o salvamento dos 128 monumentos94, pois o Egito não teria condições de arcar com os custos sozinho (VALENTÍN, 2001). Assim, uma grande campanha foi organizada pela UNESCO, visando o “Salvamento dos Monumentos da Núbia”, oficialmente publicada em 1959:

O Governo da República Árabe Unida, como compensação pela ajuda internacional concedida, oferece pelo menos cinquenta por cento dos objetos descobertos nos sítios arqueológicos, a autorização para realizar novas escavações em outras partes do Egito e a transferência de objetos e monumentos preciosos, incluindo certos templos da Núbia, para serem transferidos para o exterior. Por seu turno, o governo do Sudão também oferece cinquenta por cento dos objetos encontrados nas escavações realizadas em seu território (UNESCO, 1960, p. 3).

Com uma equipe interdisciplinar, “as expedições incluíam, além de egiptólogos, arqueólogos, engenheiros, arquitetos e geólogos” (HASSAN, 2007, p. 84, tradução nossa), que conseguiram salvar um total de vinte e três templos. Em contrapartida, o Egito ofereceu apoio aos países interessados nas suas instalações arqueológicas (não só na região dos monumentos núbios, mas em outras áreas do país); prometeu a liberação de cinquenta por cento dos objetos encontrados para os seus respectivos museus estrangeiros; e selecionou alguns templos para doação. Assim, o templo de Taffa foi doado à Holanda; Dendur aos Estados Unidos; Ellesiya à Itália; Debod à Espanha; e um pórtico foi doado à Alemanha (HASSAN, 2007)95. O templo de Debod foi doado em 1968 à Espanha e está situado no Parque del Oeste, no centro de Madri, aberto ao público desde 1972. A Espanha ajudou financeira e tecnicamente a campanha de salvamento, enviando à Núbia uma equipe de arqueólogos. Originalmente, o templo foi construído no deserto da Núbia durante o período Ptolomaico e levou mais de duzentos anos para ficar pronto (FLORES; PRIEGO, 1992). O templo foi desmontado em 1961, e os blocos de pedra ficaram depositados na ilha de Elefantina até 1970, quando foram transportados via marítima para Alexandria e, posteriormente, para a Espanha. Considerado o maior templo egípcio fora do Egito, atualmente ele pertence à rede de museus municipais da Câmara Municipal de Madri e depende diretamente do Museu de San Isidro, “[...] onde as coleções arqueológicas da Câmara Municipal estão reunidas” (MUSEO DE SAN ISIDRO, 2001, p. 9). A sua gestão atual lhe confere um status para além

94 No ano seguinte, a UNESCO autorizou a criação de um Centro de Documentação e Estudos sobre a História da Arte e Civilização do Egito Antigo, no Cairo, para documentar e auxiliar na proteção dos monumentos antigos, especialmente os túmulos da necrópole de Tebas. 95 Além dos templos, outras peças importantes foram doadas nesse contexto, como a estátua de Akhenaton para o Museu do Louvre e a coleção egípcia do Museu de La Plata, na Argentina, com cerca de 300 objetos. 129 de monumento, através de funções básicas exercidas pelos museus, como “a conservação, a investigação e a difusão” (FLORES, 2001, p. 122). Um dos principais marcos da campanha de salvamento dos monumentos egípcios e núbios promovida pela UNESCO foi a “[...] valorização do que veio a ser conhecido como ‘patrimônio mundial’ e a criação de um Centro do Patrimônio Mundial, encarregado da missão de salvaguardar a herança cultural da humanidade” (HASSAN, 2007, p. 73, tradução nossa). Além disso, os estudos acadêmicos sobre a Núbia avançaram consideravelmente, com o aumento do interesse pela história e sua cultura, que hoje podem ser contempladas em diversos museus. Essa campanha demonstrou a união de esforços e a cooperação dos países para, de fato, salvarem exemplares do patrimônio mundial, independentemente de sua localização ou de suas pretensões de propriedade. Como vimos, os arqueólogos e os diplomatas estrangeiros ocupam um papel crucial na criação dos primeiros museus, bem como na seleção criteriosa dos objetos que deveriam ou não ser adquiridos por essas instituições, levando em conta determinadas características estéticas, a monumentalidade e a sua importância histórica. Dessa forma, verificamos que a gênese da constituição dos acervos de antiguidades egípcias nos museus que analisamos foi formada, basicamente, por:

1. Tráfico ilícito, no qual eram cometidos pequenos saques ou grandes pilhagens de antiguidades, posteriormente comercializadas; 2. Espólio de guerra, onde as nações vencedoras tomavam para si os objetos anteriormente apropriados por outras nações estrangeiras; 3. Presentes ou gratificações concedidas pelos governantes de cada período; 4. Sistema partage, no qual os achados arqueológicos eram divididos entre as missões estrangeiras e o país cedente; 5. Por doações e/ou legados advindos de coleções particulares.

No decorrer do capítulo observamos o interesse pelos documentos, objetos e monumentos egípcios reunidos, no início, como curiosidades “exóticas” ou belos exemplares para adornarem coleções privadas. A partir da década de 1800, houve uma transformação na busca por essas antiguidades “[...] pela apreciação artística e interesse cultural” (DONADONI; CURTO; ROVERI, 1990, p. 125), no qual proliferaram os museus. Segundo Stephanie Moser (2006, p. 232, tradução nossa), até meados de 1850, as exibições das antiguidades egípcias no Museu Britânico, por exemplo, foram organizadas de modo a “[...] 130 educar os visitantes sobre a ascensão da arte ocidental”, apoiadas nas concepções clássicas de história da arte (grega e romana). Obedecendo ao estilo das práticas de exibição da era vitoriana, centradas na apresentação enciclopédica e cronológica dos objetos em caixas de vidro, essas exibições “[...] refletiam ideologias contemporâneas de arte, natureza e cultura na sociedade ocidental, e foram trazidas para o Egito sob administração francesa e britânica” (DOYON, 2008, p. 3, tradução nossa). Na possibilidade de um espaço mais amplo para exposição, como é o caso do MET, as instalações foram organizadas de acordo com a tipologia e a função dos objetos. Contudo, a ênfase nessas exposições sempre foi dada à Arquitetura (especialmente referente às pirâmides); às múmias (e ao processo de mumificação); e as estátuas ou esculturas dos reis e rainhas. Desde o início, o MET ainda se diferenciava pela sua expografia, preocupada com a contextualização e proveniência dos objetos – modelo de museu arqueológico-histórico (DONADONI; CURTO; ROVERI, 1990). Obviamente a maneira como os objetos eram coletados no início – sem maiores preocupações com questões de preservação ou contextualização – facilitou a entrada das antiguidades nos museus sem a exigência de dados informacionais, até a sistematização metodológica das escavações arqueológicas: “[...] as exposições de objetos foram reconhecidas como uma oportunidade para compreender o passado de uma maneira que não poderia ser alcançada por outros modos de discurso” (MOSER, 2006, p. 1, tradução nossa). Adotando uma abordagem passiva (MACDONALD, 2003), como se os objetos estivessem ali apenas para instruir o público à beleza estética e à proeminência dos detalhes, não havia espaço para maiores reflexões ou problematizações, especialmente pelo entusiasmo dos visitantes frente às antiguidades: “a realidade em que as coleções de egiptologia são constituídas baseia-se nas concepções globalizantes de tempo e na busca progressiva por estruturas óptimas” (MAGET, 2009, p. 64, tradução nossa). Claramente os “grandes nomes” da ciência egiptológica nascente foram cruciais para o estabelecimento (e a posterior difusão) dessas coleções, bem como o papel dos “cônsules-coletores”. Assim como eles, os colecionadores privados também exerceram um papel de destaque na dispersão das antiguidades egípcias, no qual a sua atuação pode ser comprovada atualmente, como no tema da exposição temporária “Passió per l’Egipte faraònic: 200 anys de collecionisme al Museu Egipci de Barcelona”, que reforça o sentimento de orgulho dos museus europeus nos quais se encontram grandes coleções de arte egípcia. O texto do catálogo ressalta que esta exposição pretende realizar 131

[...] uma homenagem ao mundo do colecionismo e aos seus protagonistas: arqueólogos, egiptólogos, museus, antiquários, pintores, escritores, refugiados de guerra, militares, empresários, aristocratas, desportistas, médicos, banqueiros, colecionadores de muitas nacionalidades e épocas (MEB, 2018).

Resultado de um laborioso processo de pesquisa, na exposição se mostram, junto às que um dia foram suas admiradas obras, as muitas histórias e anedotas que se tem a possibilidade de recompilar sobre esses indivíduos. Outra exposição sobre a temática egípcia tem lugar na cidade de Barcelona, na Catalunha, que reúne fotografias sob o título “Egipte 1909: El viatge dels Amatller a la terra dels faraons”, alocada em uma agência de turismo. Trata-se de reproduções fotográficas da família Amatller, formada pelo empresário Antoni Amatller Costa e sua filha Teresa Amatller Cros, acompanhados de mais três pessoas em uma viagem ao Egito e ao Sudão. A partir das estereoscópicas do empresário e do diário de viagem de María de Las Mercedes Garí, é possível detectar o fascínio que o Egito provoca no mundo ocidental por meio de suas ruínas, monumentos grandiosos, templos, usos e costumes, próximo da estética romântica do sublime: da sua magia e magnificência; do assombro que provoca, mesclando temor e curiosidade. A viagem dos Amatller aponta para uma Egiptomania que se torna evidente em qualquer longitude do continente europeu. Convém ressaltar que durante esse período circulava um manual de viagem “Egypte et Soudan”, escrito em francês, do autor Karl Baedeker, composto por mapas e itinerários, além de 57 vinhetas. O resultado dessa viagem encontra-se no espaço expositivo da Casa Amatller com a apresentação de algumas peças do Egito antigo. Embora hoje seja extremamente comum encontrarmos e acessarmos mostras e exposições relacionadas ao Egito antigo em qualquer parte do mundo, a ideia de acesso público às coleções dos primeiros museus, como vimos, era extremamente restrita. Todas essas instituições de exibição – as feiras, as exposições universais e os museus – formavam “[...] um complexo de relações disciplinares e de poder” (BENNETT, 1995, p. 58, tradução nossa), que monitoram os visitantes por meio do exercício de um poder disciplinar (FOUCAULT, 2000), desempenhado através da organização do espaço e do percurso que deveria ser seguido (locais que podem ou não serem acessados); do controle do tempo; da preocupação com a segurança patrimonial; e da produção de conhecimento (CHAGAS, 2009). Formas essas que ainda estão presentes nas instituições museais:

132

As relações de poder estão no coração da vida social e curadoria é um conceito profundamente incorporado ao poder. O curador, desde o princípio, é alguém que controla, sob as ordens de um mestre ou autoridade, povos e coisas e, portanto, a curadoria é um cargo de administração do poder em nome de alguém ou alguma autoridade política. [...] A curadoria arqueológica tem sido incorporada em relações de poder assimétricas, onde curadores, em nome de governantes arbitrários, controlavam as representações do passado. Desafios recentes aos desequilíbrios e ao papel da inclusão de diversos grupos sociais no interior dos povos estão também sendo considerados (FUNARI; MOURAD, 2016, p. 26).

Frequentemente as coleções egípcias foram utilizadas pelos grandes museus como ferramenta de marketing, pois o Egito antigo se tornou um conceito (MACDONALD, 2003), a exemplo das grandes exposições blockbuster com temática egípcia. Nelas, atestamos o legado da Egiptomania e da Egiptofilia, através da reunião de um número expressivo de visitantes de todas as idades, gêneros e classes sociais, como a recente “Toutânkhamon: Le trésor du pharaon”, sediada na cidade de Paris, na Grande Halle de La Villette, que atraiu uma multidão de espectadores. A magia do Egito expressa através da apresentação de sua cultura material parece inibir maiores reflexões acerca da constituição dessas coleções, de seu trânsito e de sua institucionalização, entre outras problematizações:

A paródia do fazer museal, do representar descobertas ou diferenças culturais, é um exercício instrutivo de desconstrução de utopias que, embora já abandonadas ou à deriva, permanecem, tal como os ideais positivistas da ciência, como fundamento de muitas práticas culturais nobres, científicas, artísticas e museais. Assim, expor com leveza a problemática da acumulação do saber, da desigualdade e da exploração incorporadas ao colecionar objetos de outras culturas, das políticas e das poéticas dos discursos patrimoniais, da historicidade das categorias artísticas etc. torna-se uma provocação crítica, uma ação reflexiva de desvelamento do que valorizamos (PADIGLIONE, 2013, p. 41).

A forma de apresentação das antiguidades egípcias nos museus majoritariamente ainda segue a cronologia da história egípcia, dividida em galerias progressivas que culminam na era Cristã ou Islâmica (FAZZINI, 1995). Em alguns casos, objetos egípcios do período islâmico estão postos em outros espaços destinados à história da cultura islâmica (sem interação com a história egípcia), o que dificulta a identificação entre egípcios antigos e modernos, especialmente por parte do público. Isso foi perceptível durante muito tempo na prática museográfica do próprio Egito, com a criação de museus específicos para cada período histórico, cenário que apresentou modificações a partir do final do século XX96.

96 Como exemplo, destacamos a criação do Museu Nacional da Civilização Egípcia (NMEC), inaugurado em 2017, no Cairo e dedicado à “integralidade” da história da civilização egípcia, desde o período pré-histórico até os dias atuais através do patrimônio tangível e intangível. Desde O projeto do museu contou com o auxílio técnico e patrocínio da UNESCO desde a década de 1980. Outras informações podem ser encontradas no site do museu: https://nmec.gov.eg/. 133

Mesmo que oriunda de diferentes vertentes teóricas museológicas, a narrativa museográfica e expográfica das coleções egípcias nos grandes museus, tanto no espaço expositivo quanto nos conteúdos dos catálogos ainda reproduz uma lógica discursiva de séculos anteriores (antes mesmo da criação dos museus), voltada a realçar critérios de “singularidade”, “grandiosidade”, “universalidade”, entre outros. A singularidade, por exemplo, pode ser atestada através dos recursos técnicos explorados por esses museus: as informações disponibilizadas nas legendas, a seleção de espaços privilegiados para a exibição de determinados itens ou mesmo a sua iluminação, com jogos de luz e sombra que visam a reiteração de um discurso hierárquico e sacralizador desses objetos, como observamos na próxima imagem:

Figura 19 – Busto de Nefertiti em exibição no Neues Museum.

Fonte: http://www.hurriyetdailynews.com/berlin-marks-100-years-of-discovering-nefertiti-28914 Acesso em: 24 dez. 2019.

Cabe lembrarmos que as normas para aquisição ou mesmo o descarte de objetos pelos museus (Política de Acervos) é algo relativamente novo, que varia conforme a instituição97. De qualquer forma, há um paradoxo no contexto de aquisição das antiguidades egípcias, pois não podemos negligenciar o fato de que muitas pessoas conhecem um pouco mais da história do Egito através de seus monumentos, objetos e documentos espalhados por incontáveis

97 O ICOM (Conselho Internacional de Museus) publicou em 1970 uma Ética da Aquisição e em 1986 o Código de Ética Profissional, constantemente revisado. Ambos documentos devem servir de base para uma conduta apropriada por parte dos museus. 134 museus e galerias de arte, ao mesmo tempo em que “[...] esses artefatos são os melhores embaixadores do Egito para o resto do mundo e também são uma parte vital do próprio passado do Egito e da identidade contemporânea” (IKRAM, 2011, p. 142, tradução nossa). Embora alguns objetos e monumentos tenham saído do país com o consentimento das autoridades, muitos outros foram (e ainda são) retirados ilegalmente. Nesse caso, para que possamos compreender as dinâmicas que envolvem os debates atuais sobre esses objetos, é fundamental conhecermos a sua história:

Na medida em que os objetos materiais circulam permanentemente na vida social, importa acompanhar descritiva e analiticamente seus deslocamentos e suas transformações (ou reclassificações) através dos diversos contextos sociais e simbólicos: sejam as trocas mercantis, sejam as trocas cerimoniais, sejam aqueles espaços institucionais e discursivos tais como as coleções, os museus e os chamados patrimônios culturais. Acompanhar o deslocamento dos objetos ao longo das fronteiras que delimitam esses contextos é em grande parte entender a própria dinâmica da vida social e cultural, seus conflitos, ambiguidades e paradoxos, assim como seus efeitos na subjetividade individual e coletiva (GONÇALVES, 2007, p. 15).

Atualmente, graças ao aprimoramento do trabalho prático nos museus e à atuação de organizações nacionais e internacionais, além dos cursos e disciplinas acadêmicas que refletem sobre o patrimônio cultural (no qual a Museologia se insere), são evidentes a preocupação e o cuidado que as instituições devem manter com a preservação da materialidade dos objetos e com a própria documentação destes, desde a sua entrada no museu até o seu descarte, quando for o caso. Entrevistas com o doador, registros fotográficos e outros dados são extremamente relevantes para constar na identificação dos objetos. No campo da Museologia, esses dados são determinados pelas suas informações intrínsecas e extrínsecas, definidas pelo cientista holandês Peter van Mensch (1992). Contudo, como proceder quando o museu não possui essas informações? Como aplicar regras contemporâneas de normatização informacional às coleções antigas, das quais não existem muitos dados? Como recorrer ao sistema jurídico atual alusivo ao patrimônio cultural para auxiliar nos conflitos entre diferentes nações, quando a legislação não pode ser aplicada retroativamente? A história que envolve o patrimônio cultural dispõe de “[...] incontáveis casos semelhantes de benefícios misturados com efeitos nocivos. Como devemos julgar um reino ao mesmo tempo tão benéfico e tão prejudicial?” (LOWENTHAL, 1998, p. 10, tradução nossa). Essas são algumas das principais questões que envolvem o discurso atual da repatriação, herança da ação de indivíduos e instituições sobre a tutela do patrimônio cultural, demandas que iremos nos debruçar a partir do próximo capítulo. 135

CAPÍTULO 3 ZAHI HAWASS: ENTRE O CARISMA E O EGO

“Produto de sociedades despedaçadas, o intelectual é sua testemunha porque interiorizou seu despedaçamento. É, portanto, um produto histórico. Nesse sentido, nenhuma sociedade pode se queixar de seus intelectuais sem acusar a si mesma, pois ela só tem os que faz”. Jean-Paul Sartre, 1994.

“[...] Ao contrário da imagem que veicula muitas vezes de si mesmo, o intelectual não é infalível. A intelectualidade algumas vezes pecou”. Jean-François Sirinelli, 1996.

“A areia do Egito tem sido generosa para mim e é meu grande prazer compartilhar minhas descobertas com o mundo”. Zahi Hawass, 2010.

No Egito, o movimento da repatriação ganhou fôlego a partir da fala e da atuação do arqueólogo egípcio Zahi Hawass. Conhecido por estrear documentários e séries televisivas e figurar reportagens de jornais, revistas e sites, ele ficou mundialmente famoso por sua personalidade forte – o que criou uma imagem caricatural – e pela atenção midiática que voltou ao Egito. Contudo, ao examinarmos a sua trajetória98, nos deparamos com inúmeras polêmicas e contendas que envolveram o seu nome durante os anos em que foi responsável pela proteção (e propagação) do patrimônio cultural egípcio, no cargo de Secretário do Conselho Supremo de Antiguidades. No interior das redes de sociabilidade, das quais se insere a dimensão afetiva (SIRINELLI, 1996)99, ao que concerne à repatriação de bens patrimoniais egípcios, ao qual Zahi Hawass é o mais notório defensor, a sua imagem aponta para a emergência de duas posições antagônicas sobre a sua atuação: os que o defendem e o apoiam e os que são contrários a ele e às suas ideias. Especificamente no caso do Egito, constatamos que o debate está centrado no ambiente acadêmico e intelectual, ou seja, é um assunto que não engloba a

98 No sentido de “envelhecimento social”, tal como postulado por Bourdieu (1996). 99 Segundo Sirinelli (1996, p. 252), essa dimensão pode apresentar elementos que “[...] influem – às vezes – no funcionamento desse ecossistema que é a intelligentsia”. 136 participação ativa da população egípcia, como teremos a oportunidade de examinar no próximo capítulo. Nos estudos sobre os intelectuais, encontramos uma variedade de conceitos que lhes são atribuídos – que variam de acordo com a conjuntura espaço-temporal dos autores –, bem como a sua historicidade. Dentre eles, destacamos a obra do filósofo francês Jean-Paul Sartre, Em defesa dos intelectuais, que reuniu três conferências realizadas por ele no Japão, intituladas “O que é um intelectual?”; “Função dos intelectuais”; e “O escritor é um intelectual?”. A obra Sociologia dos Intelectuais, do sociólogo francês Gérard Leclerc apresenta definições de diferentes autores que nos auxiliam na composição das múltiplas características que constituem a figura de um intelectual, servindo de base introdutória para analisarmos Zahi Hawass a partir de sua trajetória pessoal e profissional, especialmente no que diz respeito aos “[...] seus locais de formação, seus modos de filiação, suas redes de sociabilidade” (LECLERC, 2004, p. 11). Em Representações do Intelectual, Edward Said conferiu maior atenção “[...] à imagem, às características pessoais, à intervenção efetiva e ao desempenho, que, juntos, constituem a própria força vital de todo verdadeiro intelectual” (SAID, 2005, p. 27). O conjunto dessas obras possibilitaram a análise e o entendimento sobre a atuação de Zahi Hawass no âmbito da repatriação cultural. A origem moderna do termo intelectual remonta-se à França do final do século XIX, a partir do caso Dreyfus, no qual tomou uma conotação negativa ao indicar os homens que utilizavam de seus conhecimentos mais aprofundados para criticar a sociedade em que viviam: “o intelectual é alguém que se mete no que não é de sua conta e que pretende contestar o conjunto das verdades recebidas, e das condutas que nelas se inspiram, em nome de uma concepção global do homem e da sociedade” (SARTRE, 1994, p. 14-15). Para o autor, o intelectual é aquele que utiliza os seus conhecimentos científicos em prol da sociedade; aquele que escapa da sua zona de conforto para problematizar questões que são inerentes a essa sociedade. Segundo essa compreensão, verificamos que os intelectuais, de fato, incomodam. Para o historiador francês Jean-François Sirinelli (1996, p. 232), a história dos intelectuais converteu-se em “[...] um campo histórico autônomo que, longe de se fechar sobre si mesmo, é um campo aberto, situado no cruzamento das histórias política, social e cultural”. Embora tenha reconhecido a variedade de definições atribuídas aos intelectuais devido às transformações sociais ao longo do tempo, o autor pontuou duas acepções em que eles podem ser inseridos: “[...] uma ampla e sociocultural, englobando os criadores e os ‘mediadores’ 137 culturais, a outra mais estreita, baseada na noção de engajamento” (SIRINELLI, 1996, p. 242). Dentre as inúmeras possibilidades de investigação histórica que podem ser realizadas a partir dessa área do conhecimento, encontra-se a biografia, que através da reconstituição da trajetória de vida de um indivíduo nos auxilia na compreensão de seu papel no campo social. Considerada durante muito tempo como um gênero menor, a historiografia se voltou para a biografia a partir da década de 1980, especialmente na França, fruto da renovação do individualismo (LEVILLAIN, 1996). No intuito de advertir sobre a “ilusão biográfica”, Pierre Bourdieu (1996) demonstrou que a biografia ou a autobiografia não podem ser limitadas apenas ao relato único sobre a história de vida de uma pessoa, pois corre-se o risco de criar um sentido artificial a sua narrativa. Dessa forma, é preciso compreender os acontecimentos biográficos “[...] como colocações e deslocamentos no espaço social” e as relações do indivíduo com os demais “[...] envolvidos no mesmo campo e confrontados com o mesmo espaço dos possíveis” (BOURDIEU, 1996, p. 190). Nessa perspectiva, a partir de “acontecimentos biográficos” entrelaçados em uma rede de relações estabelecidas ao longo da vida de Zahi Hawass, pretendemos demonstrar o seu enquadramento enquanto um intelectual nos dois sentidos propostos por Sirinelli – a mediação cultural e o engajamento –, uma vez que a sua atividade profissional visa o aprimoramento do estudo científico e da divulgação do Egito antigo, ao mesmo tempo em que a sua posição legitima um envolvimento nas questões relacionadas ao patrimônio cultural do seu país, particularmente no que se refere à repatriação dos bens culturais.

3.1 FRAGMENTOS DE UMA HISTÓRIA

Conceber a biografia de Zahi Hawass foi análogo à montagem de um jogo de quebra- cabeça: recorremos a informações pouco detalhadas dispersas em sites na Internet (especialmente na sua página oficial); a reportagens de jornais e revistas; a artigos próprios publicados no jornal egípcio online Al-Ahram; e ao seu livro Segredos da Areia: minha busca pelo passado egípcio, no qual Hawass procurou narrar algumas histórias que marcaram a sua carreira como arqueólogo e egiptólogo; as suas principais descobertas; e as frustrações e expectativas de ocupar um lugar tão privilegiado neste meio. Após separar variadas informações dispersas, foi preciso reuni-las novamente, com o intuito de formar um quadro geral de sua trajetória, a fim de compreender a emergência de sua imagem singular. 138

Zahi Hawass nasceu em vinte e oito de maio de 1947, em uma pequena aldeia (Abeedya) na cidade de Damietta, ao norte do Cairo. De família humilde, sendo o filho mais velho entre seis irmãos, ficou órfão de pai aos treze anos de idade. Embora desejasse ser um advogado, formou-se em 1967 (aos vinte anos), na área de Arqueologia Grega e Romana pela Universidade de Alexandria e no ano seguinte ingressou no Departamento de Antiguidades100, como inspetor. Em 1978, iniciou o seu curso em Egiptologia na Universidade do Cairo, onde se graduou com honra e depois cursou o Mestrado (1983) em Egiptologia e Arqueologia Sírio-Palestina e o Doutorado (1987) em Egiptologia, ambos nos Estados Unidos, na Universidade da Pensilvânia. No exterior, ele recebeu alguns convites de colegas egiptólogos para cursar o seu doutorado, onde teve a chance de escolher entre a Alemanha, a Áustria ou a França, mas ele recusou o convite alegando que poderiam achar que essa oportunidade seria uma espécie de “troca de favores”, pois estes países mantinham equipes trabalhando no Egito, com o aval de sua autorização. A decisão em seguir sua carreira como arqueólogo e egiptólogo foi tomada após a realização de sua primeira escavação no sítio de Kom Abu Billo (uma região a noroeste do Cairo), quando pôde aprender mais sobre o seu ofício. A partir desse momento, Hawass passou a dedicar todo o seu tempo às escavações e à procura de novas descobertas. Nas primeiras páginas de Segredos da Areia, ele se auto intitulou “embaixador do mundo”, pelo fato de ter sido – até aquele momento – o porta voz oficial de todas as novas descobertas arqueológicas do Egito, algo bastante criticado por parte de seus colegas. Ele fez referência ao deus egípcio antigo do mal e do caos, Seth, para estabelecer uma conexão com os riscos atuais que assolam o patrimônio do país:

Eu sirvo como um embaixador no mundo, encontrando-me com líderes, celebridades, jornalistas e equipes de televisão de todo o mundo para que eu possa compartilhar minhas aventuras entre os monumentos antigos do Egito com milhões de pessoas. E devo lutar diariamente com as forças de Seth, antigo deus do mal e do caos e inimigo do sucesso, que aparece sob a forma de turistas descuidados, políticos gananciosos, colegas ciumentos e as forças destrutivas da natureza, que ameaçam destruir nosso patrimônio. Mas tenho a força para todas essas tarefas porque amo meu trabalho. É minha paixão, meu amor, minha razão de viver (HAWASS, 2010, p. 7, tradução nossa).

Em entrevista à Comissão Fulbright no Cairo (Programa de Assuntos Educacionais e Culturais dos Estados Unidos), no período da sua candidatura ao programa de Doutorado, ele

100 Inicialmente chamado de Departamento de Antiguidades; Organização de Antiguidades Egípcias e depois de Conselho Supremo de Antiguidades até 2011, quando virou Ministério de Estado de Antiguidades.

139 frisou: “os monumentos egípcios são tesouros que não deveriam ser usados apenas em benefício da economia egípcia e eu insisti que precisávamos de estratégias de longo prazo para conservação e restauração” (HAWASS, 2010, p. 38), além de enfatizar a importância de enviar um arqueólogo egípcio para complementar os seus estudos na América. Antes de dar continuidade à sua formação em Arqueologia, Hawass não estava totalmente seguro em continuar nesta atividade, o que o levou a tentar a carreira de diplomacia pelo Ministério dos Negócios Estrangeiros e, embora tivesse ido bem no exame escrito, não passou na prova oral. Segundo ele, quando questionado sobre o interesse de um arqueólogo no serviço diplomático, respondeu:

Nossa história é uma das mais importantes do mundo. As pessoas vêm de todo o mundo para ver nossos monumentos, especialmente as pirâmides, as múmias e o Rei Tut. Posso usar a magia do passado para fazer mais amigos para o meu país (HAWASS, 2010, p. 20, tradução nossa, grifo nosso).

De alguma forma o examinador não gostou da resposta, que pareceu um pouco presunçosa e arrogante, como muitas das atitudes de Hawass frente às suas aparições (assim como a ênfase aos pronomes possessivos para se referir ao Egito, como se fosse de sua propriedade). Para Hawass, a combinação de modéstia e personalidade forte são essenciais para um arqueólogo – e também para um homem público ligado aos assuntos políticos, como ele veio a se tornar ao longo dos anos. Seguindo os ensinamentos de seu pai: “seja honesto e nunca tome nada que não seja seu; ame as pessoas e nunca machuque outra pessoa; mas, ao mesmo tempo, seja forte e nunca mostre sua fraqueza a ninguém, exceto àqueles que estão mais próximos de você” (HAWASS, 2010, p. 18, tradução nossa). Os longos anos de estudos e a experiência como inspetor das antiguidades na região de Abu Simbel o conduziram ao mesmo cargo na região do Planalto de Gizé, onde se situam os principais monumentos do Egito: a esfinge e as três pirâmides. O objetivo de sua nomeação era o de promover a organização e a proteção deste sítio, que havia passado por um grande roubo: “o platô precisava do tipo de coragem e disciplina que eu havia mostrado em minhas posições anteriores” (HAWASS, 2010, p. 13, tradução nossa). Em 2002, ele foi promovido a secretário geral do Conselho Supremo de Antiguidades (SCA) pelo então Ministro da Cultura do Egito, Farouk Hosni: “será um trabalho árduo e muitas das minhas decisões não serão populares, mas devo pensar na sobrevivência a longo prazo dos monumentos. Estou ansioso para este novo desafio” (HAWASS, 2010, p. 252, tradução nossa). A conjugação entre a sua formação acadêmica e profissional com a sua atuação nos permite conferir-lhe um status de intelectual, pois flexionam “a pertença a uma 140

‘profissão intelectual’ e a uma posição institucional, à qual geralmente se acrescenta um engajamento individual” (LECLERC, 2005, p. 11). Como salientou o crítico indiano Aijaz Ahmad (2002, p. 244), “o papel que os intelectuais desempenham tem muito a ver com as escolhas práticas que eles fazem para si próprios” e, neste sentido, reconhecemos que parece ser muito cômodo para Hawass se envolver intimamente com as questões que envolvem o patrimônio egípcio, afinal, essa sempre foi a sua vocação. A partir da sua atuação como secretário-geral do Conselho Supremo de Antiguidades, a sua fama se consolidou. Conhecido por muitos como o “Indiana Jones” egípcio, Hawass ganhou destaque através de participações em documentários sobre a civilização egípcia (canais como BBC, Discovery Channel, National Geographic, entre outros), aparições em inúmeras descobertas arqueológicas, entrevistas, palestras, artigos e a sua proximidade com a mídia, tendo sido, inclusive, considerado uma das cem pessoas mais influentes do mundo pela revista norte-americana TIME, em 2006101. Diferente da maioria dos intelectuais que são originários da classe média, Hawass veio de uma família humilde e ascendeu à essa classe quando ganhou visibilidade através de sua fama. Grande parte de sua publicidade decorreu dos cargos oficiais que ocupou no Ministério das Antiguidades, pois era encarregado de atender as equipes jornalísticas e fornecer informações sobre escavações e demais campanhas envolvendo o patrimônio cultural egípcio: “os intelectuais são eloquentes, fazedores de discursos dos mais variados gêneros. Afinal, são homens do espaço público [...]. Conhecem os circuitos da edição, da publicação, da publicidade, da mídia” (LECLERC, 2004, p. 12). Os seus conhecimentos específicos na área de Egiptologia e a sua desenvoltura e proximidade com os meios midiáticos contribuíram para a sua nomeação, em 2001, como um dos Explorers-in-Residence da National Geographic Society’s que, segundo o redator do New Yorker, Ian Parker, era o único que possuía uma equipe de trinta mil pessoas102. De fato, Hawass está sempre acompanhado por uma “comitiva”, em articulação com o coletivo, característica do intelectual, como apontada por Gérard Leclerc (2004). Através da formação e da manutenção de uma (ou mais) redes de sociabilidade e políticas de amizade que o trânsito desses intelectuais por diferentes meios da sociedade torna viável a circulação de ideias.

101 Zahi Hawass aparece na revista na categoria de “Cientistas e Pensadores”. Disponível em: http://content.time.com/time/specials/packages/completelist/0,29569,1975813,00.html Acesso em: 10 abr. 2017. Além disso, ele acumulou outros prêmios ao longo de sua carreira. Demais informações pessoais e profissionais podem ser encontradas no seu site oficial: http://www.drhawass.com/wp/ 102 Disponível em: https://www.newyorker.com/magazine/2009/11/16/the-pharaoh Acesso em: 19 fev. 2018. 141

Este intelectual que ocupa a esfera pública tem por hábito a divulgação de pesquisas ou, no caso de Hawass, de achados arqueológicos que são veiculados em periódicos científicos, em revistas de grande tiragem, jornais de grande circulação e, atualmente, mídias sociais. Também faz parte do “jogo” a concessão de entrevistas a vários órgãos de comunicação de massa, como rádio, redes de televisão, séries e documentários; e a prestação de consultoria a diversas entidades científicas e culturais, como curadorias para museus e outros órgãos de cultura. De personalidade forte, nem mesmo algumas celebridades escaparam de sua antipatia, como aconteceu em um episódio que envolveu a cantora americana Beyoncé, em visita ao complexo de Gizé durante uma turnê musical em 2009. Segundo Hawass, a cantora deveria chegar ao complexo por volta das 15 horas, mas chegou mais tarde e não se desculpou pelo atraso. Além disso, a cantora foi acompanhada de um segurança e um fotógrafo particular e se recusou a ser fotografada pelo profissional que acompanhava Hawass. Após um desentendimento, ele a chamou de “estúpida” e deixou o local103. Em um incidente mais recente, Zahi Hawass perdeu a paciência e discutiu com um colega com quem deveria trocar ideias. O caso ocorreu em abril de 2015, onde ele participaria de um debate com o jornalista e escritor Graham Hancock. A ideia era que cada um falasse cerca de uma hora e, em seguida, a discussão seria aberta para que o público fizesse perguntas. A pedido de Hawass, Hancock seria o primeiro a falar e decidiu então verificar a sua apresentação de slides antes da chegada do público. Ao ver um slide que mencionava a “Teoria da Correlação de Orion” e a imagem de Robert Bauval, seu responsável, Hawass se irritou e pediu para que essas imagens fossem removidas da apresentação, acusando Bauval de ladrão e afirmando que ele não era um acadêmico. A situação se agravou quando Hancock, surpreso pela reação de Hawass, disse que sentia vergonha dele por não dar continuidade ao debate, o que o deixou mais irritado. Ele levantou a voz para Hancock e pediu para ele não o dirigir mais a palavra. Após alguns minutos, Hawass deixou a sala. Depois de conversar com os organizadores do evento, ele concordou em retornar, fazer a sua palestra e responder as perguntas do público, mas se negou a assistir a fala de Hancock e a debater com ele104. Robert Bauval é engenheiro e ficou conhecido pela sua “Teoria da Correlação de Orion”, no qual observou que as três pirâmides que compõem o complexo de Gizé estão

103 Essa versão foi contada pelo próprio Hawass em entrevista ao jornal britânico The Independent. A assessoria da cantora negou. Disponível em: http://www.independent.co.uk/arts-entertainment/music/news/rude- beyonc-banned-from-pyramids-by-egypts-indiana-jones-8957818.html Acesso em: 22 fev. 2018. 104 O vídeo da discussão está disponível no YouTube: https://www.youtube.com/watch?v=8Ziu2ygE_Wc Acesso em: 22 fev. 2018. 142 alinhadas com as estrelas que fazem parte da constelação de Orion, e que os seus antigos construtores tinham esse conhecimento. Essa é uma das muitas teorias “alternativas” que surgiram ao longo dos anos para explicar a construção e a função das pirâmides e da esfinge de Gizé. Zahi Hawass chama os responsáveis por tais “teorias” de “pyramidologists” ou “pyramidiots”, pois considera as suas ideias sem veracidade científica: “eu digo às pessoas em minhas palestras que qualquer pessoa pode ganhar muito dinheiro com as pirâmides: basta criar uma ideia, quanto mais louca melhor, e escrever um livro sobre isso!” (HAWASS, 2010, p. 41, tradução nossa). Alguns colegas de profissão são seus críticos ferrenhos e os seus desentendimentos já acarretaram na suspensão de licenças para a realização de escavações no Egito, como a da egiptóloga inglesa Joann Fletcher, que em junho de 2003 declarou ao Discovery Channel ter encontrado a múmia da rainha Nefertiti. A notícia foi desmentida por Hawass, pois não havia nenhuma evidência que provasse que a múmia era da rainha: “ela é uma amadora. A múmia não era nem feminina” (HAWASS apud WAXMAN, 2005, s.p., tradução nossa). Dessa forma, a licença da egiptóloga foi suspensa, pois ela havia quebrado uma das principais diretrizes do SCA de ser o primeiro notificado após qualquer descoberta arqueológica (HAWASS, 2003). No “auge” de sua carreira, foi ao ar entre julho e setembro de 2010 uma série televisiva de dez episódios no canal americano The History Channel, intitulada Chasing Mummies: The Amazing Adventures of Zahi Hawass, que mostrava algumas de suas aventuras na busca por novas descobertas arqueológicas. A série recebeu muitas críticas, especialmente pela forma como foi conduzida por Hawass, como se ele estivesse representando um personagem e a maneira rude com que tratava os membros da sua equipe – nada muito diferente das suas atitudes e do estereótipo que ele mesmo criou105. Uma das principais características que foram associadas à construção de seu “personagem” é o chapéu que ele sempre usa, ao estilo Indiana Jones:

As pessoas me perguntam o tempo todo: por que seu chapéu é mais famoso que o chapéu do Indiana Jones? Eu sempre respondo a eles que o chapéu do Indiana Jones é falso, o meu é o verdadeiro chapéu do egiptólogo! (HAWASS, 2017, s.p., tradução nossa).

105 Após cinco anos, Hawass admitiu em uma entrevista que algumas cenas do programa eram encenadas. Disponível em: https://stepfeed.com/zahi-hawass-admits-infamous-reality-show-episode-was-fake-1254 Acesso em: 22 fev. 2018. 143

O seu próprio site, onde são divulgadas informações sobre a sua carreira, o apresenta como Dr. Zahi Hawass: the man with the hat (o homem do chapéu). O acessório ficou tão conhecido que foram lançadas réplicas para a sua comercialização, com o intuito de reverter os lucros para o Museu das Crianças no Cairo. Posteriormente, as réplicas foram vendidas na loja física da exposição itinerante sobre Tutankhamon, que percorreu diferentes cidades nos Estados Unidos, e também pelo site da empresa de viagens King Tut. Os lucros das vendas seriam destinados ao Hospital de Câncer Al-Orman, em Luxor106. É raro encontrarmos reportagens ou notícias sobre Arqueologia ou Egiptologia que não relacionem o acessório e a imagem de Indiana Jones a Zahi Hawass, especialmente para aludir a sua fama:

O intelectual é um ser híbrido que, profissionalmente, produz uma obra artística ou científica e que, enquanto ator engajado nos assuntos da vida pública, é dotado, queira ou não, de uma visibilidade que o aproxima dos stars, dos homens políticos, dos homens da mídia (LECLERC, 2004, p. 16-17).

O chapéu, as camisas sociais, a calça jeans e as botas que são comumente usadas por Hawass contribuíram para a construção do personagem caricatural que ele mesmo criou e que foi divulgada pela mídia através de associações com Indiana Jones ou com os faraós da Antiguidade. Pela sociologia proposta por Leclerc (2004, p. 10), essas manifestações são próprias aos intelectuais: “os jornais o reconhecem, fazendo-o regularmente aparecer em suas caricaturas, em companhia do administrador, do juiz ou do homem político”.

106 Ainda é possível adquirir uma dessas peças, que vem com uma etiqueta autografada por Hawass e atestando que se trata de uma réplica de um chapéu de escavação. Para outras especificações, consulte: http://www.kingtuttours.com/donate 144

Figura 20: Caricatura de Zahi Hawass como Tutankhamon, por Jean-Claude Floch (Floc’h).

Fonte: Jornal online The New Yorker. Disponível em: https://www.newyorker.com/news/newsdesk/speaking-with-the-sphinx Acesso em: 22 mar. 2018.

A comercialização do chapéu e a popularização das vestimentas semelhantes às de Indiana Jones renderam mais frutos para Zahi Hawass, que em junho de 2010 aceitou uma proposta da empresa norte-americana Art Zulu para participar do lançamento de uma linha de roupas que levava o seu nome, com a seguinte descrição apresentada no catálogo:

É uma nova linha de moda não apenas para o homem viajante, mas o homem que valoriza a autodescoberta, historicismo e aventura. Ricas calças cáqui, os azuis profundos e os couros suaves e resistentes dão um olhar que remonta à Era de Ouro do Egito, no início do século XX. Tinturas naturais, corantes vegetais e algodão orgânico com tecidos ecológicos que proporcionam um novo visual arrojado para os homens (ART ZULU, 2010)107.

A coleção inclui bermudas, calças, camisas, jaquetas e até malas, que na sua descrição convidam os consumidores a viajarem para este “local exótico”, o que reforça o estereótipo ocidental sobre o Egito. A dona da empresa, Lora Flaugh, afirmou que Hawass aceitou a

107 Originalmente, toda a descrição da nova linha de roupas podia ser encontrada no site da empresa, que foi desativado. Todas as imagens sobre essa coleção aqui apresentadas foram retiradas desse endereço eletrônico. 145 proposta desde que parte do lucro das vendas fossem destinadas a uma instituição de caridade, assim como ele já faz com a venda de seus famosos chapéus. O beneficiário foi o Hospital do Câncer Infantil no Cairo que atende gratuitamente as crianças enfermas108.

Figura 21: capa do catálogo da coleção “Zahi Hawass”.

Fonte: fotografia de James Weber.

Como em todas as atividades que envolvem o nome de Hawass, essa também gerou uma série de críticas e polêmicas, especialmente após a publicação do post feito pelo próprio fotógrafo da campanha, James Weber, intitulado “Noite no museu”, publicado no seu blog em vinte e três de novembro de 2010109. Além da divulgação das fotos do catálogo, ele contou que os trabalhos de filmagens aconteceram em um museu durante a noite (entre às 21h 30 min e às 07hrs), enquanto a exposição estava fechada para o público. O que pareceu estranho no relato do fotógrafo foi que ele mencionou que a sessão de fotos ocorrera dentro de um museu e que ele e o seu colega foram acompanhados pelo chefe de segurança local, tomados os devidos cuidados com as peças, como a iluminação, o controle da temperatura e um sistema de alarme para evitar roubos. Logo, as pessoas ficaram indignadas, pois acreditavam se tratar do Museu Egípcio do Cairo, o que mais tarde foi desmentido pelo próprio James Weber e por Lora Flaugh.

108 Disponível em: http://www.egyptindependent.com/zahi-hawass-now-sale-harrods/ Acesso em: 22 mar. 2018. 109 Disponível em: https://jamesweberstudio.wordpress.com/tag/art-zulu/ Acesso em: 23 mar. 2018. 146

Figura 22: modelo pousando com as roupas da linha “Zahi Hawass”.

Fonte: fotografia de James Weber.

Em atualização posterior no blog, foi inserida uma entrevista que o fotógrafo concedeu ao jornalista Ahmed Danny Ramadan, para responder à polêmica que o seu post havia gerado. James Weber afirmou que as fotos foram feitas em sete de outubro de 2010, na exposição do rei Tutancâmon em Nova York e que as críticas só chegaram a ele em abril do ano seguinte, após as manifestações que ocorreram no Cairo. Ainda assim, essas críticas recaíram sobre a figura de Zahi Hawass que, para o fotógrafo, eclodiram após a notícia sobre as fotos terem sido veiculadas no Egito. Para o povo egípcio, Hawass teria se utilizado das antiguidades pelas quais era o maior responsável para ganho pessoal, embora tenha sido dito em diferentes ocasiões que parte dos lucros com a venda das roupas iriam para a caridade.

147

Figura 23: modelo em frente a um sarcófago (Caixão Dourado de Tjuya) e sentado no trono do rei Tutancâmon.

Fonte: fotografia de James Weber.

Questionado sobre a originalidade dos artefatos, o fotógrafo afirmou que os objetos que estão em contato com o modelo (como o trono do rei em que ele aparece sentado) eram réplicas e que os originais foram utilizados apenas como pano de fundo das imagens, nas quais recorreram à técnica do photoshop para as montagens. O jornalista lhe perguntou se havia algum tipo de documentação (autorizada por Hawass) que lhe permitisse o contato com esses artefatos e Weber respondeu alegando que essa questão era irrelevante, uma vez que Hawass ainda era o Ministro das Antiguidades naquele momento, o que o isentaria de apresentar qualquer tipo de documentação – uma regra que vai contra o Código de Ética dos Museus – pois ao menos um contrato ou algo que assegurasse o valor das peças se algum dano fosse causado deveria ser firmado (certamente o Museu de Nova York responsável pela exposição deve ter uma documentação referente a isso que apenas fugiu do conhecimento de James Weber). Através das imagens podemos observar a presença da combinação entre o Egito antigo e o moderno, presença esta que encontramos em quase todas as suas representações: na arquitetura, no cinema, nos livros, na moda, na televisão, entre outros. Essas representações atuais sobre a antiguidade egípcia com diferentes significados e outros usos foi definida pelo historiador da arte francês, Jean-Marcel Humbert, sob o conceito de Egiptomania: 148

A egiptomania é muito rica em originalidade e tem um passado antigo e prestigiado. Ela não é só mania do Egito, nem um mero avatar do neoclassicismo ou exotismo: sua relação com o colonialismo, negada em determinadas épocas, está longe de ser a marca exclusiva de um fenômeno permanente (HUMBERT, 1996, p. 23).

Entendida como um fenômeno de longa duração, a história da Egiptomania está relacionada à própria história da Egiptologia, que se desenvolveu a partir do interesse que outros povos mantinham pelo Egito antigo, o que levou ao seu posterior estudo científico. Mais popular e facilmente reconhecida por todos, a Egiptomania é um meio lúdico de divulgação do Egito, sobretudo nos meios de massa: “a egiptomania contribui em muito para tornar a egiptologia atraente a um público muito mais amplo que o acadêmico” (CARDOSO, 2004, p. 179), pois as suas representações e símbolos são facilmente reconhecidos, tanto pelo público leigo quanto por aqueles que se interessam pela história do Egito, mas que não possuem, necessariamente, conhecimentos científicos mais aprofundados. O que percebemos nessas apropriações – e a própria maneira como Hawass procura difundir o Egito – são as imagens a ele vinculadas, completamente estereotipadas: “o fascínio do antigo Egito pode ser explicado pelo fato de que muitas das suas mais poderosas imagens são arquétipos, no sentido literal que elas são primordiais, a primeira patente e representação identificável de uma forma duradoura” (MACDONALD; RICE, 2003, p. 05, tradução nossa). Para o egiptólogo alemão Christian Langer (2017, p. 192), alguns membros da elite egípcia acabam se “ocidentalizando”, “[...] cooptando as elites ocidentais através do colonialismo informal e como resultado ‘orientalizando’ sua própria população”, como é evidente em algumas declarações de Hawass e o seu “culto” ao mito do Egito antigo. Adotando uma postura muitas vezes contraditória, Zahi Hawass diverge da ideia de Edward Said (2005, p. 10) sobre um dos papeis dos intelectuais, que “[...] reside no esforço em derrubar os estereótipos e as categorias redutoras que tanto limitam o pensamento humano e a comunicação”. Na maioria das vezes, Hawass parece reforçar os estereótipos associados ao Egito, possivelmente pela facilidade com que são reconhecidos e difundidos, o que torna a relação entre o Egito antigo e o moderno extremamente lucrativa: “o jogo entre a personalidade, o desígnio, os êxitos individuais e a sociedade faz-se entre o símbolo, que conduz a uma leitura coletiva, e a norma, que emana da ética, entre o prescrito e a aceitação livre” (LEVILLAIN, 1996, p. 169). Após pesquisas sobre a marca responsável pela realização da linha de roupas, encontramos um site voltado a registrar queixas e reclamações de consumidores do mundo inteiro para todos os tipos de empresas, com informações sobre fraudes e processos judiciais. 149

Algumas destas reclamações (dez no total) foram destinadas à presidenta da empresa Art Zulu, Lora Flaugh e o seu marido Daniel Burns, acusando-os de serem golpistas e desonestos com clientes e funcionários. Os reclamantes relataram que eles não faziam os pagamentos corretamente e os obrigavam a trabalhar por longas horas, além de repassarem cheques sem fundos e de não atenderem ligações ou responderem e-mails. Uma pessoa alegou que na folha de pagamento só constava o nome de seu marido e seus demais funcionários eram, geralmente, estagiários estrangeiros (que também fizeram queixas e denúncias). Uma designer que trabalhou para a marca chegou a afirmar que Flaugh copiava da Internet todas as imagens que estavam disponíveis no site da empresa110.

3.2 TENSÕES NO MEIO INTELECTUAL: ACUSAÇÕES E INVESTIGAÇÕES

Concomitante ao sucesso e a fama que Hawass adquiriu ao longo dos anos, vieram também acusações e investigações. Uma delas reporta-se ao período em que ele cursou o doutorado na Pensilvânia, no qual recebeu uma bolsa de estudos do Programa Fulbright. A polêmica em torno desse assunto foi mencionada pelo jornalista Robert Smith, autor da biografia de Hugh Lynn Cayce (“Hugh Lynn Cayce: About my Father’s Business”). Hugh Lynn era filho de Edgar Cayce, um médium norte-americano conhecido pelos seus relatos sobre a “civilização perdida” de Atlântida e, na década de 1980, dirigia a fundação de seu pai. Como conhecia uma pessoa que trabalhava na Fulbright, pediu a ela que concedesse a bolsa a Hawass111. Segundo Robert Smith, ajudar Hawass a avançar na sua carreira poderia auxiliar nos projetos futuros do próprio Edgar Cayce, que pretendia realizar escavações abaixo da esfinge de Gizé na busca por registros de Atlântida. Cayce também teria auxiliado nos estudos do egiptólogo americano Mark Lehner, amigo pessoal de Hawass e colega de trabalho em escavações no Planalto de Gizé.

110 Essas reclamações podem ser encontradas no site: https://www.ripoffreport.com/reports/art-zulu/new-york- new-york-10018/art-zulu-artzulu-lora-flaugh-daniel-burns-does-not-ayemployeesvendorslandloards-and- 1021301 Acesso em: 22 mar. 2018. Não foram encontradas declarações ou quaisquer esclarecimentos por parte de Hawass ou dos donos da empresa e o site oficial da marca não está mais disponível, apenas a página do Facebook, desatualizada desde julho de 2013: https://www.facebook.com/Art-Zulu-184500363577/. Acesso em: 23 mar. 2018. 111 Essa pessoa era Frank Blanning, diretor da Comissão Fulbright no Cairo na época. O próprio Hawass mencionou que conheceu pessoalmente Blanning, a quem considerava “um bom homem que apreciava o meu trabalho” (HAWASS, 2010, p. 38). Essas informações foram esmiuçadas em um artigo de Robert Bauval – que mantinha uma inimizade há anos com Hawass – intitulado “How did Zahi Hawass get a PhD in America? Digging for the Truth”, disponível em: http://my blog.robertbauval.co.uk/2012/04/18/the-zahi- hawass-saga-who-is-telling-the-truth/ Acesso em: 05 abr. 2018. 150

Em entrevista ao Jornal KMT de 1998, Hawass e Lehner desmentiram as afirmações de Smith: “Robert Smith, autor da biografia, enviou-me um fax pedindo desculpas por ter escrito a referência ao Dr. Lehner e a mim sem ter nos contatado sobre a exatidão das declarações de Hugh Lynn Cayce” (HAWASS, 1998, p. 5-6), embora Hawass (2010, p. 41) tenha mencionado em Segredos da Areia que Lehner “originalmente veio para o Egito sob os auspícios da Fundação Cayce”, ao fazer uma pequena crítica aos egiptólogos que inicialmente foram pesquisar no Egito com ideias mais “fantasiosas” do que científicas. De fato, Lehner era uma espécie de discípulo de Cayce, até conhecer Hawass nos Estados Unidos quando eram bastante jovens e se tornarem amigos próximos. A partir daí, realizaram palestras e escavações juntos e Lehner começou a duvidar das “teorias” de Cayce e a acreditar nas evidências arqueológicas levantadas pelos egiptólogos. As demais parcerias de Zahi Hawass com empresas e organizações também geraram uma série de acusações. Uma delas envolveu a National Geographic Society, que em 2013 foi acusada pelo Departamento de Justiça dos Estados Unidos por repassar pagamentos indevidos a ele. A equipe da National Geographic possuía livre acesso para fazer reportagens e filmagens nos sítios arqueológicos do Egito, incluindo a entrada em templos e pirâmides, como o episódio que mostrava ao vivo um robô entrando no interior da grande pirâmide de (Quéops), sempre com o aval e o acompanhamento de Hawass. Segundo o site Vocativ, esses serviços custavam taxas que variam de oitenta a duzentos mil dólares por ano, que os Estados Unidos entenderam como subornos ilegais. Questionado sobre os fatos, Hawass alegou: “ninguém pode me subornar”; “sou o egiptólogo mais famoso”, como se a sua fama fosse prerrogativa para eximi-lo de qualquer acusação. Segundo ele, o contrato firmado com a National Geographic como explorador incluía a escrita de livros e a realização de palestras. Sobre os duzentos mil dólares que lhe foram pagos em 2010, ele afirmou: “não são nada”, alegando que chega a receber cerca de cinquenta mil dólares por palestra, especialmente nos Estados Unidos, onde se considera bastante popular112. A maior crítica sobre essa parceria recaía no fato de Hawass receber dinheiro da organização estrangeira ao mesmo tempo em que exercia uma função ativa no governo egípcio. Licenças para reportagens e gravações também foram cedidas por ele ao Discovery Channel. Além de programas de televisão e publicações, a sua parceria com a National Geographic se estendeu às exposições, como a que iniciou nos Estados Unidos em 2005 sobre

112 Informações disponíveis em: http://www.vocativ.com/underworld/crime/tut-tut-nat-geo-bribe-egypts-famed- indiana-jones/index.html Acesso em: 22 fev. 2018. Em diferentes entrevistas, Hawass enfatizou o quanto é reconhecido em outros países e como a venda de ingressos para suas palestras esgota em poucas horas. 151 o rei Tutancâmon (Tutankhamun and the Golden Age of the Pharaohs). A exposição foi realizada em acordo com empresas como a Anschutz Entertainment Group (AEG), da área de entretenimento esportivo e musical e a Arts and Exhibitions International, especializada em exposições itinerantes. Após os Estados Unidos, a mostra foi levada para a Europa e a Austrália, com cerca de cento e vinte objetos. O Egito lucraria com a exposição e os museus ganhariam com a venda dos ingressos, embora tivessem que abrir mão da curadoria: “trouxe cento e três milhões de dólares para o país. Antes, as pessoas costumavam permitir que as exposições viajassem para outros museus gratuitamente. Eu disse que não há mais comida grátis” (HAWASS, 2013, s.p., tradução nossa). Ora, para Said (2005, p. 14), o papel do intelectual “é conferir autoridade com seu trabalho enquanto recebem grandes lucros”. Sobre as críticas que recebeu por causa dos lucros com a exposição, Hawass rebateu:

Eu não estou fazendo isso pela fama, eu já sou famoso. Eu não estou fazendo isso pelo poder. Eu não preciso de poder. Estou fazendo isso porque eu sou o único que pode fazer isso. É a primeira vez que o Egito está sendo explicado para o público (HAWASS apud WAXMAN, 2005, s.p., tradução nossa).

Quando os protestos da chamada “Primavera Árabe” chegaram ao Egito em janeiro de 2011, Hawass fez questão de aparecer publicamente para fazer declarações e conceder entrevistas: de um lado, para demonstrar o seu apoio ao então presidente Hosni Mubarak, que estava sendo alvo de críticas e pedidos de renúncia por parte da população; e, de outro, para informar a situação do Museu Egípcio do Cairo, que foi atacado por grupos de manifestantes. Segundo o relato do próprio Hawass, na noite da invasão do Museu Egípcio os ladrões desceram até as salas do museu por cordas, mas como estava escuro, eles esbarraram em algumas vitrines, o que deixou marcas de sangue espalhadas pelo chão. Os invasores estavam atrás de ouro e mercúrio vermelho que, segundo uma lenda antiga, traz riqueza: “eles cavam embaixo de suas casas para encontrar antiguidades – para encontrar mercúrio vermelho” (HAWASS, 2013, s.p., tradução nossa). A sua preocupação maior era com as múmias e os objetos valiosos de Tutankhamon. Ao todo, foram contabilizados cinquenta e quatro objetos roubados, dos quais vinte e cinco foram devolvidos até outubro de 2013, quando foi inaugurada uma exposição no Cairo intitulada “Destruição e Restauração”, exibindo alguns dos objetos recuperados e outros que foram restaurados após sofrerem danos113. Em entrevista pública à rede de televisão BBC em fevereiro do mesmo ano, Hawass declarou o seu apoio à permanência de Mubarak na presidência do Egito: “o presidente gostaria de ficar e todos nós gostaríamos que ele ficasse. [...] Ele era um homem gentil e um

113 Informações disponíveis em http://www.middle-east-online.com/english/?id=61686 Acesso em: 06 ago. 2014. 152 homem bom e eu sempre respeitei esse homem”114. Em outro momento, Hawass comparou a durabilidade do governo de Mubarak ao do faraó Pepi II, que reinou por mais de noventa anos durante a VI Dinastia, no Reino Antigo. Para ele, o problema está centrado na continuidade do mesmo cargo (o que serviu de exemplo para ele próprio): “quando você governa por tanto tempo, há deterioração. [...] O poder se acumula ao seu redor, seja você o governante ou o diretor de antiguidades” (HAWASS, 2013, s.p., tradução nossa). Do mesmo modo, ele acredita que os presidentes anteriores – Gamal Abdel Nasser e Anwar Al Sadat – teriam permanecido ao longo de suas vidas no governo e que se Mubarak tivesse renunciado cerca de dez anos atrás, atualmente poderia ser visto como um herói: “por vinte anos [seu governo] foi bom. Trinta anos foi demais” (HAWASS apud HAMMER, 2013, p. 04, tradução nossa). Hawass insiste em afirmar que nunca foi um político e sempre se coloca como um arqueólogo, não obstante, “uma certa dose de maniqueísmo é inevitável quando os intelectuais se engajam na luta política, em essência partidária e dualista” (SIRINELLI, 1996, p. 259). Segundo ele, a sua proximidade com o ex-presidente Mubarak e a sua esposa, Suzanne, ocorreu durante o desenvolvimento do Museu das Crianças, no Cairo, e o seu cargo como Ministro das Antiguidades foi criado posteriormente pelo ex-primeiro-ministro Ahmed Shafiq, no contexto da “Primavera Árabe”, para garantir a segurança do patrimônio cultural do país que estava sendo atacado (HAWASS, 2013). Contudo, Edward Said (2005, p. 111) manifestou que:

Com o tempo, o intelectual naturalmente se volta para o mundo político, em parte porque, ao contrário da academia ou do laboratório, esse mundo é animado por considerações de poder e interesse que conduzem toda uma sociedade ou nação.

Considerada uma categoria social, segundo Sartre (1994, p. 23), uma das características dos intelectuais é a sua adequação à hegemonia, como “guardiães da tradição”, ou seja, a eles é permitida uma parcela do poder, que será complementada com os seus conhecimentos específicos, se estes estiverem de acordo com a “ideologia dominante”. Nesse sentido, certamente a proximidade de Hawass com a família Mubarak lhe trouxe alguns benefícios, o que também lhe rendeu muitas críticas, como o apelido de “Mubarak das Antiguidades” dado pelos manifestantes, devido a sua postura firme nos assuntos relacionados às antiguidades do país. Em mais uma polêmica envolvendo o museu, Hawass foi condenado a um ano de prisão, ao pagamento de uma multa de mil libras egípcia e à perda do seu cargo como

114 Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=Alj-Wptv2As Acesso em: 08 mar. 2018. 153

Ministro das Antiguidades em abril de 2011, por conta de um contrato de locação de uma livraria que funcionava no interior do Museu Egípcio. O espaço era alugado pelo comerciante Farid Attiya, que foi excluído de concorrer para um novo contrato por atrasar os alugueis anteriores. Dessa forma, Attiya resolveu processar o SCA, que depois de muitos desdobramentos decidiu pela condenação de Hawass, que entrou com uma apelação e conseguiu anular a condenação posteriormente115. Após a queda do presidente Hosni Mubarak, a situação se agravou no Egito e vários sítios arqueológicos foram invadidos e saqueados. Com a situação sem controle, Hawass decidiu renunciar ao cargo de ministro das Antiguidades, alegando que não poderia prosseguir com o seu trabalho naquelas condições. O então ministro da Cultura, Farouk Hosni, a mais de vinte anos no cargo foi acusado de “enriquecimento ilegal”, com uma fortunada avaliada em dezoito milhões de libras egípcias116. O seu sucessor no cargo, o arqueólogo Muhammad Abdul Maqsood, garantiu que a partir daquele momento chegaria ao fim o personalismo e as verdadeiras estrelas a brilhar no Egito seriam as antiguidades, priorizando, também, o trabalho em equipe117. Sobre a vida pessoal de Hawass, pouco se sabe. Em entrevista ao New Yorker, em 2009, ele contou que pela manhã era levado pelo seu motorista até a academia e depois se dirigia ao seu escritório, onde passava horas trabalhando, inclusive nos finais de semana. Antigamente ele era fumante, mas ao sofrer um ataque cardíaco nos anos de 1990, largou o cigarro. Às vezes sai para jantar com os amigos e antes de ir para a casa frequenta um café para assistir futebol ou jogar gamão. Quem o conhece afirma que ele é um apreciador de vinhos caros.

3.3 A VIDA DE ZAHI HAWASS APÓS O CONSELHO SUPREMO DE ANTIGUIDADES

Ainda que os acontecimentos de sua vida sejam marcados por acusações e polêmicas, é inegável o suporte da rede de sociabilidade intelectual e as políticas de amizades que Hawass acumulou durante a sua carreira, o que mostra que a tríade status, prestígio e poder alavancaram a sua carreira, particularmente entre os anos em que esteve nos Estados Unidos.

115 Informações disponíveis em: http://english.ahram.org.eg/NewsContent/9/40/10255/Heritage/Ancient- Egypt/AboutUs.aspx Acesso em: 23 mar. 2018. 116 Disponível em: https://www.rtp.pt/noticias/mundo/ex-ministro-da-cultura-do-egipto-vai-ser-julgado-por- corrupcao_n584351 Acesso em: 10 abr. 2018. 117 Disponível em: https://www.terra.com.br/noticias/ciencia/egito-quer-recuperar-antiguidades-roubadas-e- ganhar-fama,eb585b6db16da310VgnCLD200000bbcceb0aRCRD.html Acesso em: 23 mar. 2018. 154

Ele pôde se aproximar de colegas arqueólogos e de pessoas ligadas à política, com quem consolidou profundas relações, como Abdel Raouf, embaixador do Egito nos Estados Unidos, também natural de Damietta: “ele usou a magia da arqueologia para fazer amigos para o Egito, reunindo-se com congressistas, senadores e prefeitos de todas as cidades que visitamos” (HAWASS, 2010, p. 39, tradução nossa). Além de políticos, a sua rede se estendeu a diretores de museus e instituições culturais, a professores universitários e até mesmo aos funcionários que trabalham em agências que auxiliam no combate do tráfico ilícito de antiguidades, o que possibilitou o retorno de alguns artefatos roubados ao Egito. A egiptóloga paquistanesa Salima Ikram é amiga e defensora de Hawass: “ele está tentando fazer em dez anos o que leva cinquenta anos para fazer118”. Ikram é uma das intelectuais que militam ao lado de Hawass pelo retorno dos bens patrimoniais egípcios. Sabiamente, Hawass soube aproveitar as amizades políticas que conquistou ao longo dos anos para dar continuidade ao seu trabalho:

A importância da comunicação entre colegas, da notoriedade e da visibilidade, o papel da palavra pública enquanto forma de engajamento do intelectual, a vontade de dar um peso coletivo a uma iniciativa que pode, de início, ser individual, todos esses fenômenos explicam que o intelectual seja ao mesmo tempo profundamente individualista e esteja enraizado no grupo de seus pares (LECLERC, 2005, p. 73).

Apesar de tantas polêmicas que envolveram a sua figura, a atuação de Zahi Hawass foi reconhecida ao longo dos anos, o que lhe concedeu várias honrarias, como o prêmio “Orgulho do Egito”, de membros da imprensa estrangeira no Cairo. Em 2006, ele foi o primeiro egípcio a ganhar o Emmy Award, por sua participação em um documentário sobre Tutancâmon. No ano seguinte, ele foi nomeado como oficial na “Ordem das Artes e Letras francesas” e, em 2008, recebeu o cargo de comandante na “Ordem do Mérito da República Italiana” e foi escolhido Embaixador da Boa Vontade no Japão, pelos Ministérios de Relações Exteriores do Egito e do Japão. Pela Espanha, foi eleito em 2010 como “Personalidade do Ano” e já havia recebido a “Medalha da Ordem Espanhola de Arte e Cultura”. Para Hawass, as honrarias mais importantes que recebeu foram o “Prêmio de Primeira Classe para Arte e Ciência”, concedida pelo ex-presidente Mubarak pelos seus trabalhos de conservação na esfinge de Gizé, e um prêmio concedido pela população da sua aldeia natal, “em uma cerimônia realizada no pátio da escola onde eu recebi minha educação primária” (HAWASS, 2010, p. 10, tradução nossa). Acusações, brigas e polêmicas à parte, algo é inegável: Zahi Hawass soube dar uma roupagem totalmente nova à Arqueologia egípcia e a sua relação com as pessoas. Como

118 Disponível em: https://www.newyorker.com/magazine/2009/11/16/the-pharaoh Acesso em: 19 fev. 2018. 155 indicou o historiador Ciro Flamarion Cardoso, a Egiptomania consegue atingir um público muito mais amplo do que a Egiptologia e Hawass faz isso muito bem. Ele transformou os seus conhecimentos científicos de forma apreensível para o público leigo e, de quebra, ainda aumentou a sua fama e popularidade, afinal, o ego inflado é uma das suas maiores características. Além disso, ele alcançou um status dentro da mídia tele jornalística que, mesmo sofrendo constantes críticas, ainda o tratam com respeito e credibilidade. Isso se deve, também, à rede de sociabilidade que ele formou, aos meios pelos quais ele circulou e a sua visibilidade dentro das discussões acadêmicas que envolvem o patrimônio cultural do Egito. Para ele, as críticas que recebe têm um motivo:

Acho que é inveja. Todos os acadêmicos procuram a mídia para apoiar seus trabalhos. Eu nunca cacei um repórter. Eles vêm até mim. O SCA conseguiu mais realizações nos últimos seis anos do que no último século. Repórteres pedem entrevistas e tenho de recusar 50% delas. Acho que meus críticos simplesmente não gostam do que eu faço. Estão com inveja, mas o que eles dizem não me importa. Sei que estou fazendo o que é correto (HAWASS, 2009, s.p., tradução nossa).

Pelas suas declarações – firmes e convictas – percebemos que a aproximação e a identificação da figura de Hawass com o personagem de Indiana Jones, por exemplo, não surgiram “por acaso”: foi uma imagem construída pelo próprio Hawass, difundida na mídia, ao mesmo tempo, pelos seus apoiadores e pelos seus críticos. Essa imagem é semelhante ao quadro paradoxal construído e fixado em torno do Egito: ao mesmo tempo em que ele parece lutar contra o discurso hegemônico ocidental sobre o Egito, ele próprio é produto deste mesmo discurso, o alimentando constantemente:

A apropriação de Indiana Jones por Zahi Hawass oferece outro exemplo de um traje de colonizador sendo recuperado por um membro de uma comunidade historicamente colonizada para fins auto afirmativos (BLOUIN, 2017, s.p.).

A sua formação acadêmica nos Estados Unidos, a sua aproximação com grandes empresas norte-americanas para a comercialização de variados tipos de produtos, a sua grande força midiática e a sua relação com os museus estrangeiros e os órgãos federais norte- americanos só reforçam essa imagem estereotipada: Hawass levanta a bandeira contra o imperialismo, quando ele é a própria imagem imperial: “a notoriedade do intelectual deve-se, em parte, à sua presença no espaço público da mídia. Mas procede também de sua autoridade intelectual, profissional, discursiva, científica, artística etc.” (LECLERC, 2004, p. 83). Como Sartre (1994, p. 14) destacou, os intelectuais parecem ser um mal necessário: “precisa-se deles para conservar, transmitir, enriquecer a cultura; alguns sempre serão ovelhas negras – basta combater sua influência”. Assim pode ser concebida a trajetória e a atuação de Zahi 156

Hawass, tido como um “mal necessário” para o Egito, pois ele foi além da sua competência em prol de uma causa no qual acreditava e amava. A sua atuação, mesmo que marcada por muitos episódios polêmicos – gerou bons frutos em relação à proteção e à divulgação do patrimônio cultural do Egito. As suas viagens, os encontros com autoridades estrangeiras, as visitas a museus, as palestras e os debates dos quais ele participa somados à popularidade de sua imagem também servem de veículo para a divulgação do Egito, para chamar a atenção aos perigos e dificuldades que eles enfrentam:

No fim das contas, o que interessa é o intelectual enquanto figura representativa — alguém que visivelmente representa um certo ponto de vista, e alguém que articula representações a um público, apesar de todo tipo de barreiras. Meu argumento é que os intelectuais são indivíduos com vocação para a arte de representar, seja escrevendo, falando, ensinando ou aparecendo na televisão. E essa vocação é importante na medida em que é reconhecível publicamente e envolve, ao mesmo tempo, compromisso e risco, ousadia e vulnerabilidade (SAID, 2005, p. 27, grifo nosso).

De fato, todos possuem alguma opinião formada sobre Zahi Hawass, e durante o período em que atuava como funcionário do governo egípcio, cada passo seu era acompanhado pela mídia. Atualmente, ele continua a viajar e a fazer palestras e a sua agenda é constantemente atualizada em sua página no Facebook e no seu site oficial. Desde o seu afastamento do serviço público, são poucas as informações que circulam referentes ao trabalho que está sendo realizado pelo Ministério das Antiguidades do Egito, com exceção das notícias referentes à inauguração do Grande Museu Egípcio do Cairo, prevista para outubro de 2020. Na ocasião, será apresentada uma ópera escrita pelo próprio Hawass, com uma composição musical de um italiano, semelhante à ópera Aida, de Giuseppe Verdi. No início de maio de 2018, foi inaugurado no Cairo um novo centro de Egiptologia em homenagem à Hawass – Zahi Hawass Center of Egyptology. A iniciativa partiu da direção da Biblioteca de Alexandria, que propõe enaltecer o trabalho de pesquisadores egípcios: “através de uma série de palestras, workshops e eventos, o centro visa aumentar a conscientização sobre o patrimônio cultural do Egito e promove o envolvimento do público em vários locais históricos” (HAWASS, 2018, n.p., tradução nossa). Salvo essas atividades, o centro ainda possui departamentos de pesquisa e pretende conceder bolsas de estudos para novos pesquisadores, bem como realizar palestras mensais através do Skype para alunos da Austrália, dos Estados Unidos, da Itália e do Japão119.

119 Informações disponíveis em: http://weekly.ahram.org.eg/News/24417.aspx Acesso em: 03 mai. 2018. 157

Com o objetivo de ampliar a conscientização da população em relação à proteção do patrimônio cultural e natural do Egito, o centro promove atividades relacionadas à educação para o patrimônio, que abrange a área da Museologia; a formação profissional para arqueólogos (como ensinamentos relacionados a métodos não destrutivos); e a capacitação de acadêmicos para lidar com temas do patrimônio. Suas atividades parecem convergir com o desejo de Fekri Hassan para o Egito:

Um futuro político estável do Egito depende da capacidade de integrar seus passados e reconhecer sua herança faraônica, helenística e islâmica, e colocar essa herança diversificada no curso de uma civilização global. As ligações do Egito com o Ocidente não se limitam à história recente de confronto, colonização e descolonização. Um programa cultural e educacional ativo para envolver o público e as crianças em idade escolar em atividades arqueológicas que mostram o longo passado multicultural e rico do Egito é essencial para combater o que eu considero uma perda de afiliação, que é explorada por partidos religiosos extremos subversivos (HASSAN, 2002, p. 212-213, tradução nossa).

Além de sua luta constante para a conscientização de crianças, jovens e adultos egípcios em relação à preservação do seu patrimônio cultural, uma das principais pautas levantadas por Zahi Hawass nos últimos anos é o seu envolvimento no debate sobre o direito de propriedade de algumas antiguidades egípcias que foram retiradas do país em situações diversas e que atualmente estão sob a guarda de instituições estrangeiras.

Figura 24: Logo do Centro de Egiptologia Zahi Hawass, que o representa ao lado das pirâmides e da esfinge, alguns dos maiores símbolos do Egito antigo.

Fonte: Disponível no site oficial do Centro: http://hawass.bibalex.org/en/home/index.aspx Acesso em: 02 out. 2019. 158

Recentemente, Hawass voltou à mídia para defender os pedidos de repatriação, dessa vez devido à tragédia do incêndio do Museu Nacional, no Rio de Janeiro, em 2 de setembro de 2018. Em entrevista concedida à BBC News Brasil, ele declarou que aqueles que não protegem a arte egípcia devem devolvê-la, referindo-se à coleção egípcia que o museu mantinha, até então a maior da América Latina120. Ao afirmar que o ato do incêndio foi um crime, ele questionou de quem seria a responsabilidade (da equipe do museu ou do governo) e indagou como que um museu tão grande não possuía um esquema eficaz contra esse tipo de sinistro. Anteriormente, na década de 1990, a egiptóloga Mervat Mahomed Abd El-Halim visitou o Museu Nacional e questionou sobre a precariedade em relação à conservação do prédio e do acervo, especialmente as múmias egípcias, alegando que os brasileiros poderiam devolvê-las se não tivessem mais interesse em sua preservação:

Segundo a egiptóloga, o trabalho científico desenvolvido no Museu Nacional é de altíssimo grau: “Existem museus no Egito que não chegaram a um nível de estudo como este. Este acervo é quase tão variado como os dos museus do Cairo, British Museum (Londres) e Louvre (Paris), e poderá ser destruído caso não se tome providências”, afirmou durante a visita (CÔRTES, 1992, p. 23, grifo nosso).

Dentre o acervo egípcio do museu – com mais de setecentas objetos – estava um sarcófago da XXIII Dinastia, pertencente à cantora Sha--em-su. A peça teria sido um presente do quediva Ismail ao imperador do Brasil, D. Pedro II, na segunda metade do século XIX121. Hawass reiterou que a coleção egípcia do Museu Nacional não constava na lista de pedidos de repatriação, uma vez que os seus objetos teriam deixado o Egito de maneira legal. Ao final da entrevista, o arqueólogo afirmou que iria entrar em contato com a Unesco para reforçar a proteção das coleções egípcias existentes em outros países. Em outra entrevista recente concedida à edição online da Revista Aventuras na História, na sessão “Personagens”, a fama de “ícone pop” de Hawass foi reafirmada, pois a matéria recebeu o título de “Zahi Hawass, o arqueólogo pop122”. Nela, ele reforçou que os pedidos de repatriação recaem sobre objetos considerados únicos da história faraônica e os que foram roubados do Egito. No final de 2018, a empresa de viagens Hórus (com sede em Juiz de Fora, Minas Gerais) promoveu a vinda de Zahi Hawass ao Brasil para divulgar o seu trabalho e as suas

120 Disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/brasil-45364002 Acesso em: 27 set. 2019. 121 O imperador D. Pedro II é considerado o primeiro egiptólogo do Brasil, devido ao seu interesse e estudo pelas línguas antigas, dentre elas, a egípcia. O imperador visitou o Egito em duas ocasiões, em 1872 e 1876 (BAKOS, 2004). 122 Reportagem disponível em: https://aventurasnahistoria.uol.com.br/noticias/reportagem/ah-entrevista-zahi- hawass-o-arqueologo-pop.phtml Acesso em: 27 set. 2019. 159 novas pesquisas. A palestra intitulada “Múmias, Pirâmides e Cleópatra: novas descobertas” foi realizada em Curitiba, no Rio de Janeiro e em São Paulo123. Antes de sua “entrada triunfal”, o protocolo do evento apresentou um vídeo institucional do arqueólogo em seus trabalhos de campo realizados em diversas regiões do Egito. Na ocasião, ele não permitiu que fossem tiradas fotos durante a sua fala, e se mostrou extremamente incomodado com qualquer tipo de barulho ou interferência, mesmo dos organizadores do evento. Menos de um ano depois, Hawass retornou ao Brasil, em setembro de 2019, para a inauguração oficial do Museu Egípcio e Rosacruz Tutankhamon, em Curitiba, uma iniciativa da Ordem Rosacruz. Na ocasião, ele realizou uma palestra intitulada “O Rei Menino de Ouro: Tutankhamon” e lançou o livro “Montanha dos Faraós”, com o consentimento de uma sessão de autógrafos.

Figura 25: Sede do novo Museu Egípcio da Ordem Rosacruz.

Fonte: foto de Letícia Akemi, Gazeta do Povo, 07/09/2019.

O projeto do novo museu foi desenvolvido por uma empresa italiana indicada por Hawass – Laboratorio Rosso (a mesma que gerencia o seu site oficial) e o seu itinerário expográfico percorre informações sobre a breve vida do faraó; a sua morte e a sua tumba; a descoberta do seu complexo funerário; e aspectos da religião e da crença egípcia na vida após a morte. O acervo é composto por réplicas confeccionadas pela Unidade de Produção de

123 Disponível no site da Agência de Notícias Brasil-Árabe: https://anba.com.br/arqueologo-zahi-hawas-fara- palestras-no-brasil/ Acesso em: 27 set. 2019. 160

Réplicas (Replica production unit) do Conselho Supremo de Antiguidades do Egito, a partir dos objetos originais encontrados na tumba do rei (KV 62), situada no Vale dos Reis, em Luxor. O novo museu faz parte da Ordem Rosacruz, que já possui um museu dedicado à história do Egito e um complexo chamado Luxor, com reproduções da antiga alameda das esfinges; um obelisco do faraó Totmés III; e o Atrium Romano com uma estátua de César Augusto (réplica da estátua “Augusto de Prima Porta”, que se encontra no Museu do Vaticano)124. Zahi Hawass explicou que na tumba original do faraó foram encontrados quase 3.600 objetos, que serão exibidos ao público no Grande Museu Egípcio do Cairo, muitos ainda inéditos. Para a confecção das réplicas foi utilizada a técnica de produção manual dos artesões que trabalham para o SCA.

Figura 26: Réplica do trono real de Tutankhamon no novo museu de Curitiba.

Fonte: foto de Letícia Akemi, Gazeta do Povo, 04/09/2019.

A estimativa do arqueólogo sobre as descobertas do período faraônico que foram realizadas até o momento no Egito é cerca de apenas trinta por cento, devido ao fato das cidades modernas terem sido construídas em cima das antigas habitações. Essa circunstância facilita as escavações ilegais, pois aumenta as chances de serem encontradas tumbas e outros objetos: “eu mesmo encontrei várias tumbas em casas da parte antiga do Cairo, perto do aeroporto da cidade” (HAWASS, 2019, s.p., tradução nossa).

124 Disponível em: https://bilheteria.amorc.org.br/complexo-luxor/ Acesso em: 27 set. 2019. 161

Além das viagens e das palestras que oferece ao redor do mundo, Zahi Hawass está participando de roteiros turísticos especiais pelos principais locais históricos do Egito, juntamente com Jehan Sadat (esposa do ex-presidente Anwar Sadat) e Mostafa Waziri, chefe de Antiguidades do Egito. A sua proximidade com outras pessoas reconhecidas e influentes no Egito corrobora com a ideia de que o grupo dos intelectuais “[...] organiza-se também em torno de uma sensibilidade ideológica ou cultural comum e de afinidades mais difusas, mas igualmente determinantes, que fundam uma vontade e um gosto de conviver” (SIRINELLI, 1996, p. 248). Neste roteiro especial, a viagem tem duração de quatorze dias e recebe grupos entre vinte e cinco e trinta e cinco pessoas, com valor aproximado de quarenta mil reais. Durante os passeios, os turistas terão a oportunidade de conhecer lugares exclusivos que não são abertos ao público, e os demais locais serão visitados fora do horário de funcionamento normal. O tour também pode ser realizado em grupos menores, no entanto, o valor também é maior. Nas palavras de Hawass: “ninguém pode viajar pelo Egito assim. Exceto você – quando você vier e se juntar a mim. [...] Você será tratado como a realeza, é por isso que chamamos de Royal Tour125”. Obviamente isso só foi possível devido à posição e à influência que ele ocupa no Egito. Para incentivar o turismo no Egito, Hawass foi fotografado em um dos pontos mais conhecidos dos Estados Unidos: a Times Square. Na imagem, ele aparece usando os seus “trajes típicos” de arqueólogo e registrou uma mensagem convidando os americanos a visitarem o Egito. Durante trinta dias seguidos a mensagem foi veiculada no local a cada dois minutos.

125 Ainda estão disponíveis mais de vinte datas até abril de 2021. Mais informações sobre os pacotes estão disponíveis no site oficial de Hawass: https://archaeologicalpaths.com/tours,egypt-royal-tour Acesso em: 30 set. 2019. 162

Figura 27 – Zahi Hawass em meio a Times Square.

Fonte: https://egyptindependent.com/zahi-hawass-billboard-in-times-square-promotes-tourism-to-egypt/ Acesso em: 20 dez. 2019.

Em suma, a partir dos acontecimentos biográficos que foram expostos até aqui, podemos constatar que a atuação de Zahi Hawass em prol da preservação e da permanência do legado das antiguidades egípcias, nos permitem situá-lo na categoria de intelectual mediador engajado, conforme os seguintes termos:

[,,,] uma categoria socioprofissional marcada, quer pela vocação científica, no dizer weberiano, ou pela especialização que lhes confere “capital cultural” e “poder simbólico”, nos termos de Bourdieu, quer pelo gosto da polêmica, inclusive a política. Na acepção mais ampla que aqui consideramos, são homens da produção de conhecimentos e comunicação de ideias, direta ou indiretamente vinculados à intervenção político-social. Sendo assim, tais sujeitos podem e devem ser tratados como atores estratégicos nas áreas da cultura e da política que se entrelaçam, não sem tensões, mas com distinções, ainda que historicamente ocupem posição de reconhecimento variável na vida social (GOMES; HANSEN, 2016, p. 10).

Sob essa ótica, Zahi Hawass abrange a figura do arqueólogo no sentido da ciência como vocação; do polemista contundente que usa da retórica para alcançar os seus objetivos e construir a sua autoimagem ou auto representação; do político ou formulador de políticas 163 públicas, como no caso da repatriação de bens culturais do Egito, como iremos examinar no próximo capítulo; e de um propagandista multimídia, com suas séries televisas, entrevistas exclusivas e até marca de roupas. As suas incursões fora do Egito e a sua proximidade com o meio acadêmico e intelectual ocidental (até pela sua formação nos Estados Unidos) lhe conferem legitimidade para incorporar e sustentar a discussão sobre a repatriação – ainda que ela pertença a uma determinada ordem do discurso, como veremos no próximo capítulo. Todos esses traços servem como princípios de distinção, no sentido bourdesiano do termo, para aquisição de capital cultural, simbólico, político e social e reforçam a sua aura de “salvador” dos tesouros “perdidos” da Antiguidade. Em qualquer publicação sobre o Egito antigo, Zahi Hawass é referenciado como fonte de pesquisa e informação, como na recente exposição em Paris, denominada Touttânkhamon: Les trésor du pharaon, na Grande Halle de La Villette, cujos objetos expostos pertencem ao Grande Museu Egípcio, do Cairo. Na publicação oficial do evento, Hawass aparece nas fotografias de um exame realizado na múmia do faraó e em um quadro cronológico disposto pela curadoria da exposição, ao lado de grandes egiptólogos. Como observamos, suas opiniões são respeitadas, reconhecidas e propagadas. Percorrer a trajetória de Zahi Hawass foi importante para elucidar a sua atuação em prol das antiguidades do Egito antigo, já que ele é o maior expoente dessa questão no cenário internacional. Entretanto, ao analisarmos os discursos sobre a repatriação proferidos por ele, constatamos que ele “não foge à regra” hegemônica ocidental, que sua luta não é, de forma alguma, “contra o poder”:

O papel do intelectual não é mais o de se colocar “um pouco na frente ou um pouco de lado” para dizer a muda verdade de todos; é antes o de lutar contra as formas de poder exatamente onde ele é, ao mesmo tempo, o objeto e o instrumento: na ordem do saber, da “verdade”, da “consciência”, do discurso (FOUCAULT, 1979, p. 42).

Nesse sentido, no próximo capítulo propomos a análise mais detalhada dos discursos envolvidos na repatriação, com intuito de verificar a sua aplicação e validade no debate atual, especialmente no que se refere ao Egito e na atuação de Zahi Hawass nesse cenário.

164

CAPÍTULO 4 A QUEM PERTENCE O PASSADO? DEBATES SOBRE A REPATRIAÇÃO DO PATRIMÔNIO CULTURAL

“Nunca houve um monumento da cultura que não fosse também um monumento da barbárie. E, assim como a cultura não é isenta de barbárie, não o é, tampouco, o processo de transmissão da cultura”. (BENJAMIN, 1994).

“O legado da humanidade acaba no Louvre e no Museu Britânico, mas está ausente de Samoa e da Somália. O universalismo dota os que têm à custa dos outros”. (LOWENTHAL, 1998).

Scientia potentia est. “Conhecimento é poder”.

Após observarmos a formação das coleções de antiguidades egípcias nos principais museus europeus a partir do final do século XVIII, voltaremos a nossa atenção para o movimento contemporâneo de repatriação ou restituição do patrimônio cultural, através da veiculação de seus principais discursos. Segundo Kowalski (2005), os bens culturais são passíveis de solicitações de retorno através de três meios: repatriação, restituição e retorno. Para a professora de Direito, Patty Gerstenblith (2001), os bens envolvidos nessas solicitações compreendem as obras de arte que estão inseridas em coleções públicas ou privadas; os objetos arqueológicos; e os objetos etnográficos que atualmente são reivindicados pelos descendentes dos povos antigos, extintos ou não. Como vimos na Introdução, a repatriação (do latim repatriare), se refere à troca entre pátrias distintas. Inclui, também, o retorno de refugiados ou soldados ao seu país de origem, após uma guerra ou mesmo um corpo que se encontra em diferente solo. Aqui, claramente estamos falando em repatriação cultural, ou seja, o retorno de objetos culturais aos seus países originários. A restituição “[...] significa devolver algo ao estado original (condição ou situação)” (DOLÀK, 2010, p. 48). Como por exemplo, podemos mencionar o caso de alguns museus da República Tcheca, que a partir de 1989 decidiram restituir objetos que foram roubados durante o regime comunista, entre 1948 e 1989. Nessa situação, estamos tratando de objetos que nunca deixaram o seu território, logo, foram restituídos (DOLÀK, 2010). Já o 165 retorno, “[...] refere-se às demandas apresentadas pelos países que foram privados de sua propriedade cultural devido à colonização ou exportação ilegal a ser devolvida ao seu local de origem”. Em relação ao Egito, podemos tanto utilizar o termo repatriação quanto retorno. Em muitos casos, a repatriação e/ou restituição implica uma dimensão semântica que sinaliza a direção dos seus discursos: as esculturas gregas, por exemplo, geralmente são referenciadas pelos britânicos como “Mármores de Elgin” – indicando o indivíduo (Lorde Elgin) responsável pelo seu traslado entre a Grécia e a Inglaterra. Em contrapartida, os gregos as nomeiam de “Mármores da Acrópole ou do Parthenon” – que corresponde ao lugar aonde foram construídas originalmente126. Nesse sentido, a repatriação e a restituição podem ir além dos seus conceitos e demarcar uma tomada de posição bastante convicta, já que aludem a noções de legitimidade e de propriedade (LOWENTHAL, 1998). Ao compreendermos os discursos enquanto “[...] práticas descontínuas, que se cruzam por vezes, mas também se ignoram ou se excluem” (FOUCAULT, 2013, p. 50, grifo nosso), iremos analisar os debates acerca da repatriação das antiguidades egípcias a partir dos indivíduos responsáveis por essas demandas no âmbito internacional, considerando que “não se tem o direito de dizer tudo, que não se pode falar de tudo em qualquer circunstância, que qualquer um, enfim, não pode falar de qualquer coisa” (FOUCAULT, 2013, p. 9). Para tanto, destacaremos a atuação do egiptólogo egípcio Zahi Hawass, por seu empenho e protagonismo na campanha de repatriação das antiguidades egípcias, e os demais interlocutores aos quais se direcionam os seus pedidos. Como veremos, esses indivíduos atuam diretamente no campo patrimonial e os seus discursos “autorizados” sugerem que “ninguém entrará na ordem do discurso se não satisfizer a certas exigências ou se não for, de início, qualificado para fazê-lo” (FOUCAULT, 2013, p. 35).

4.1 IDEIAS PRELIMINARES SOBRE A REPATRIAÇÃO

O movimento de repatriação do patrimônio cultural está no cerne das reivindicações pós-coloniais no decorrer do século XX, nas quais “os povos colonizados conscientizaram-se de que o passado foi, além das terras e riquezas, objeto de expropriação e legitimação do colonialismo” (FERREIRA, 2009, p. 72). No cenário internacional, a questão da repatriação foi evidenciada a partir da década de 1981, ano em que a atriz grega Melina Mercouri (1920-

126 John H. Merryman (2006), sinalizou que utiliza o termo “mármores de Elgin” para indicar as esculturas que estão atualmente no Museu Britânico, em oposição aos fragmentos dos “mármores do Parthenon”, que ainda permanecem em Atenas. 166

1994) foi nomeada Ministra da Cultura da Grécia, a primeira mulher a ocupar esse cargo no país. Durante o seu mandato, Mercouri iniciou uma campanha para o retorno dos Mármores do Parthenon (ou Mármores do Elgin) à Grécia, retirados de Atenas e levados para Londres no início do século XIX, por Thomas Bruce – conhecido como conde de Elgin, embaixador britânico do Império Otomano, do qual a Grécia fazia parte na época (KYNOURGIOPOULOU, 2011). Ao conhecer as esculturas, Elgin intentou realizar alguns moldes para decoração de sua casa na Escócia, no entanto, conseguiu um acordo com o governo otomano para a remoção de algumas partes: “como o povo grego estava sob ocupação turca, Elgin ofereceu a assistência irrevogável da Grã-Bretanha na guerra franco-turca e prometeu lealdade ao Império Otomano (KYNOURGIOPOULOU, 2011, p. 157, tradução nossa). A justificativa de Elgin para essa atitude – assim como muitas em relação aos monumentos antigos – era o descaso do governo com a sua preservação, embora as esculturas tenham sido danificadas ao serem removidas de seus suportes, já que ele “[...] obteve autorização para retirar esculturas clássicas encontradas sobre o solo ou debaixo dele perto do Partenon, em Atenas – mas não para remover artefatos do próprio templo” (BURKE, 2010). O processo de remoção e traslado das esculturas para Londres durou cerca de três anos e a partir de 1803, elas estavam sob responsabilidade de Elgin, que posteriormente foi obrigado a negociá-las com o governo britânico, possivelmente para pagar as suas dívidas, sendo encaminhadas para o Museu Britânico127 em 1816, designadas como propriedade pública devido a sua importância, segundo o Comitê Seleto da Câmara dos Comuns (KYNOURGIOPOULOU, 2011). Mais de cento e cinquenta anos depois, o governo grego entrou com um pedido oficial de retorno dos mármores através do Comitê Intergovernamental do Patrimônio Mundial da Unesco128, que durante anos deliberou uma série de recomendações para que ambos os países entrassem em um acordo amigável – o que não aconteceu –, instaurando um caso complexo que ainda suscita discussões e opiniões diversas: “não obstante sua localização em Londres, os gregos modernos consideraram as esculturas como parte de sua herança

127 A coleção é formada por grande parte dos frisos do Parthenon, estátuas e suportes, como uma cariátide inteira, partes de colunas e esculturas da Acrópole (KYNOURGIOPOULOU, 2011). 128 Algumas resoluções já foram acatadas a partir da atuação do Comitê Intergovernamental, como a devolução da Itália para o Equador de mais de dez mil artefatos do período pré-colombiano em 1983, após sete anos de discussões. Em 1987, a Alemanha devolveu à Turquia sete mil tabletes cuneiformes. Outros casos podem ser consultados através do site da Unesco: http://www.unesco.org/new/fr/culture/themes/restitution-of-cultural- property/return-or-restitutioncases/ Acesso em: 19 ago. 2018. 167 nacional e símbolos vivos de sua identidade híbrida (KYNOURGIOPOULOU, 2011, p. 158, tradução nossa). No caso grego, o principal argumento em defesa da repatriação dos mármores recai principalmente sobre a sua identificação com a arquitetura clássica, pois ela foi a base para a constituição da identidade grega moderna. Para os britânicos, as esculturas também fazem parte da sua história e de sua identidade nacional, no interior da noção de patrimônio internacional (KYNOURGIOPOULOU, 2011). O Museu Britânico está inserido em vários casos de repatriação, juntamente com outras instituições museais, como os que dizem respeito aos artefatos africanos que compõem uma coleção de mais de novecentos bronzes retirados de Benim pelos ingleses, no final do século XIX. Atualmente, esses bronzes estão divididos entre a Alemanha, os Estados Unidos, a Inglaterra e a Nigéria. Mesmo a sua retirada de Benim tendo sido reconhecida como um ato de pilhagem pelo próprio Museu Britânico, eles insistem “[...] que não houve nada de ilegal em sua aquisição” (GEKOSKI, 2015, p. 225), argumento que é utilizado, também, para negar o pedido de devolução dos mármores do Parthenon à Grécia. Embora ainda bastante incipiente, a discussão sobre o retorno dos bens culturais no Brasil tem ganhado destaque nos últimos anos, especialmente após o incêndio que destruiu a maior parte do acervo do Museu Nacional, no Rio de Janeiro. Um dos casos mais emblemáticos é o que envolve um dos itens do acervo do Museu Histórico Nacional (MHN), na mesma cidade: o canhão conhecido como El Cristiano, símbolo da guerra do Paraguai. A demanda pela sua devolução é antiga, mas o seu pedido oficial só foi efetivado em 2010, quando o então ministro da Cultura, Juca Ferreira, enviou ao Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) um ofício “[...] para que pudesse haver, eventualmente, o cancelamento do tombamento e a devolução do bem ao Paraguai” (IPHAN, 2010, p. 6). O pedido de cancelamento do tombamento deve-se ao fato do acervo do MHN ser tombado desde 1998, e o Decreto-lei nº 3.866, de 29 de novembro de 1941 (que modificou o Decreto- lei nº 25, de 30 de novembro de 1937, sobre a organização da proteção do patrimônio histórico e artístico nacional), definiu que o tombamento de bens poderia ser cancelado pelo/a Presidente da República. Do ponto de vista do Brasil, o canhão é considerado um símbolo da vitória e já para o Paraguai, a sua devolução representaria uma espécie de compensação pelas vítimas do conflito, além dos valores artístico e simbólico, por “[...] ter sido originado de sinos derretidos” (IPHAN, 2010, p. 10). Mesmo com um parecer favorável à devolução por parte do então presidente do IPHAN naquele momento, Luiz Fernando de Almeida, a repatriação ainda 168 não ocorreu. No entanto, diferentes perspectivas foram levantadas pelos membros do Conselho Consultivo do IPHAN, que valem uma consulta129 para orientação de futuros pedidos de repatriação. Outro caso de repatriação, mas no qual o Brasil seria o solicitante, ocorreu com um artefato sagrado da etnia Tupinambá, já considerada extinta: trata-se de um manto de plumas vermelhas utilizado em cerimônias pelos seus antigos líderes (BORGES; BOTELHO, 2010). O manto teria deixado o Brasil no século XVII, por meio do então governador da colônia holandesa, Maurício de Nassau: “é muito possível que se tratasse de um manto recebido ou retirado dos índios Caeté que, naquela época, distribuíam-se pelo litoral de Pernambuco” (BORGES; BOTELHO, 2010, p. 13). Atualmente, o objeto encontra-se sob a guarda e exposição do Nationalmuseet (Museu Nacional) de Copenhagen, na Dinamarca. Além dele, existem apenas mais cinco exemplares distribuídos em museus europeus (Alemanha, Bélgica, França, Itália e Suíça), nenhum no Brasil. A discussão em torno de sua repatriação foi suscitada durante a exposição “Mostra do Redescobrimento”, ocorrida em 2000, no estado de São Paulo. Na ocasião, remanescentes baianos dos antigos Tupinambá observaram o manto em exposição e após retornarem à Bahia e conversarem com a sua comunidade, decidiram que o manto não deveria sair novamente do país. No entanto, o desejo dos indígenas envolveu várias indagações relacionadas às circunstâncias de saída e aquisição do manto pela Dinamarca; a legitimidade dos Tupinambá de Olivença (Ilhéus, Bahia); o local de guarda no Brasil; e as suas condições de conservação e preservação; entre outros fatores:

Além da questão acerca da legitimidade da posse, seria preciso responder acerca de quem, dentre os possíveis herdeiros, ficaria com a posse do manto e quem se responsabilizaria pela sua guarda e preservação. Afinal, o Museu de Copenhagen vem desempenhando essa função há mais de 300 anos. Ou, o manto Tupinambá deveria ser restituído ao governo brasileiro, pois, afinal, trata-se de um bem patrimonial de todo o povo brasileiro, um objeto de memória que nos rememora uma parte da história do Brasil, legado de um povo cuja importância etnográfica e histórica é inegável? (BORGES; BOTELHO, 2010, p. 16).

A dimensão simbólica desse artefato para a própria comunidade descendente também deveria ser analisada, afinal, qual o tratamento que os Tupinambá dariam ao manto? Ele continuaria a ser utilizado como nos antigos rituais ou seria empregue como adorno? E o seu

129 Essas informações estão detalhadas na Ata da 65ª reunião do Conselho Consultivo do Patrimônio Cultural, que ocorreu na cidade do Rio de Janeiro, em 04 de novembro de 2010. Disponível em: http://portal.iphan.gov.br/uploads/atas/2010__03__65a_reunio_ordinria__4_de_novembro.pdf Acesso em: 31 jul. 2018. 169 acesso pelo público, ainda seria permitido? Segundo o Nationalmuseet, nenhum pedido oficial do Brasil foi feito para o processo de repatriação130. No entanto, embora essa demanda ainda não tenha sido resolvida, é sintomático que nenhum exemplar desse artefato esteja sob a guarda ou exposição de alguma instituição cultural brasileira, ou mesmo sob a posse dos indígenas. Em 2013, o Brasil repatriou ao Egito a escultura de uma cabeça do Período Romano. A peça foi adquirida por um turista no Egito em 1976, e encontrava-se em posse de uma família na cidade de Petrópolis, no Rio de Janeiro. Após o falecimento do seu comprador, a sua filha decidiu entrar em contato com a embaixada egípcia para realizar a sua devolução, um desejo de seu pai. Na ocasião, o arqueólogo Moacir Elias Santos analisou a escultura e atestou a sua autenticidade. Ao retornar ao Egito, a peça deveria passar por procedimentos de conservação e seria encaminhada a um museu específico de sua localidade original131. Nos termos da restituição, houve um caso brasileiro resolvido em 1989, quando o Museu Paulista da Universidade de São Paulo (USP) devolveu aos índios Krahô um machado de pedra semilunar, “[...] que, em tempos passados, haviam aparentemente cedido a este museu” (BORGES; BOTELHO, 2010, p. 10). A discussão em torno da restituição do artefato se iniciou em 1986, por parte dos Krahô, e durou cerca de três anos, em diálogo com a direção da Universidade. Uma das primeiras propostas sugeridas pelo museu foi a confecção de uma réplica do objeto para ser utilizado pelos Krahô, “[...] ao que os indígenas responderam que poderiam fazer isso, mas para que a cópia ficasse em exposição e a original voltasse para a aldeia” (MELO, 2010, p. 100), o que não foi aceito por parte da instituição. Com o passar do tempo e a visibilidade do caso através da mídia e da opinião pública, o museu optou pela restituição do artefato aos indígenas, que o incorporaram novamente em seus rituais. A sugestão do Museu Paulista em relação às réplicas é instigante, uma vez que a ideia da utilização desse material pelos museus ainda é bastante refutada – a não ser em casos particulares, como os que envolvem a acessibilidade voltada para as pessoas com deficiência ou para representar objetos que não existem mais ou que, por alguma razão, não estão disponíveis para exposição. Os museus de ciências são os que mais recorrem à utilização de réplicas como um recurso didático para a reprodução de animais, do meio ambiente e de suas características. O próprio Museu Nacional mantinha, em outros locais, réplicas ou imagens em 3D de alguns artefatos originais que estavam em exposição, como o crânio do fóssil Luzia,

130 Reportagem disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/brasil-42405892 Acesso em: 31 jul. 2018. 131 Informações disponíveis em: http://luxortimes.com/2013/02/a-roman-head-repatriated-to-egypt-from-brasil/ e http://english.ahram.org.eg/NewsContent/9/41/63501/Heritage/GrecoRoman/Roman-head-on-its-way-back-to- Egypt-from-Brazil.aspx Acesso em: 20 dez. 2019. 170 a mulher mais antiga encontrada nas Américas. As múmias da coleção egípcia também haviam passado por um processo de tomografia e raio X por pesquisadores da universidade. Esses trabalhos certamente auxiliarão na reconstrução do novo museu e na divulgação do acervo que foi perdido. Recentemente a questão da repatriação ascendeu uma discussão a nível internacional, a partir das declarações do presidente da França, Emmanuel Macron, sobre a repatriação das obras de arte africanas que atualmente encontram-se na França. Em uma fala na Universidade de Ouagadougou (capital da Burquina), ele declarou a nomeação da historiadora de arte francesa, Bénédicte Savoy, e do escritor senegalês, Felwine Sarr, para analisarem essa questão no período de oito meses. Segundo Macron, “a herança africana [...] deve ser destacada em Paris, mas também em Dakar, Lagos, Cotonou [...]. Dentro de cinco anos, quero que sejam reunidas as condições para um retorno da herança africana à África132”, o que surpreendeu a todos. O relatório dos especialistas foi publicado em novembro de 2018, e a primeira medida tomada pela França foi a devolução de vinte e seis objetos roubados do Benin que estão no Museu de Quai Branly, em Paris. A inciativa do presidente francês foi uma resposta à campanha iniciado no final de 2013 pelo Conselho Representativo das Associações Negras da França (CRAN), sobre o retorno de alguns artefatos africanos retirados no período colonial e mantidos em solo francês. Com o objetivo de fortalecer as relações entre a França e os países africanos, Macron reconheceu a diversidade do continente africano e os crimes cometidos pelas nações europeias, e sugeriu em três frentes que essa aproximação se desse em três frentes, às quais ele chamou de “remédios”: cultura, esporte e língua. Dentre os fatos mundialmente conhecidos sobre o retorno dos bens culturais, destacamos o que ocorreu no início do século XX, quando o moldureiro italiano Vincenzo Peruggia roubou a famosa obra Mona Lisa do Museu do Louvre, do qual ele havia feito parte da equipe da nova moldura do quadro. Sua ação foi uma forma de protesto em relação às obras que foram levadas da Itália por Napoleão, no final do século XVIII e início do século XIX: “o roubo da Mona Lisa e sua repatriação foram aclamados como ato altruísta, embora isso fosse um contrassenso” (GEKOSKI, 2015, p. 28), pois o moldureiro teria agido em busca de dinheiro. No final da Segunda Guerra Mundial, foi constatado o roubo de cerca de cem mil obras que deveriam adornar o museu de Hitler, o que levou os países Aliados a iniciar uma

132 O discurso do presidente pode ser lido na íntegra no site: http://www.elysee.fr/declarations/article/discours- du-president-de-la-republique-emmanuel-macron-a-l-universite-ouaga-i-professeur-joseph-ki-zerbo-a- ouagadougou/ Acesso em: 06 jun. 2018. 171 extensa campanha de retorno dessas obras aos seus proprietários originais, no final da guerra (FELICIANO, 2013). Segundo o autor, muitas obras retornaram aos seus proprietários ou foram doadas para alguns museus, mas metade delas ainda permanece desaparecida. De qualquer forma, repatriação, restituição ou retorno estão intimamente associadas à noção de propriedade, aqui, especificamente, propriedade do patrimônio cultural. Juridicamente, a ideia de patrimônio está associada ao termo em latim pater familias, que na Roma antiga indicava o responsável pelos ritos e cuidados com a família:

A busca pela definição jurídica de patrimônio começa a partir da relação jurídica existente entre o pater, sua família e seus bens marcadas pelo fato de que, sob o domínio do pater, se encontrava todo o patrimônio da família, consequência da posição jurídica desempenhada pelo pater como o detentor dos destinos de toda a família (RODRIGUES, 2003: 31).

Logo, a noção de patrimônio evidencia um conjunto de bens (herança), que devem ser mantidos na família e transmitidos às futuras gerações, num sentido mais estrito: “confinar a posse a alguns enquanto exclui outros é a razão de ser do patrimônio” (LOWENTHAL, 1998, p. 230, tradução nossa). Com a constituição dos estados modernos nacionais, foram elencados conjuntos de bens materiais e imateriais para integrar o patrimônio histórico e artístico das nações, através de “[...] determinados agentes, recrutados entre os intelectuais, e com base em instrumentos jurídicos específicos” (FONSECA, 2009, p. 21). Como pontuou Timothy Mitchell (2002, p. 179, tradução nossa), “[...] para um estado provar que era moderno, ajudava se também pudesse provar que era antigo”. Assim, o direito de propriedade dos bens culturais está vinculado à territorialidade em que esses se encontram, sendo considerados de interesse público, mas também se associam aos valores representativos e simbólicos que lhes são atribuídos em diferentes contextos. Na esfera jurídica internacional, o termo propriedade cultural (cultural property, traduzido para o espanhol como bienes culturales), transitou por diferentes concepções. A primeira menção pode ser localizada na Convenção para a proteção dos bens culturais em caso de conflito armado (ou Convenção de Haia, de 1954), no qual os estados se reuniam com o objetivo de “[...] encontrar os meios para regular a guerra e proteger objetos e instituições” (GUEDES; MAIO, 2016). O Artigo 1º da Convenção especificou o conceito de bens culturais, divididos em três categorias: bens móveis e imóveis (como monumentos, sítios arqueológicos e objetos de interesse histórico, artístico ou arqueológico); edifícios com o objetivo de conservar e expor os bens culturais móveis (como arquivos, bibliotecas e 172 museus); e os “centros monumentais”, que possuam um número considerável de bens a serem preservados (UNESCO, 1954: 8-9). Em 1970, foi aprovada em Paris a Convenção Relativa às Medidas a Serem Adotadas para Proibir e Impedir a Importação, Exportação e Transferência de Propriedade Ilícitas dos Bens Culturais, que “trata de um tipo de proteção diferente da reconhecida em 1954, pois remete, principalmente, aos tempos de paz e redefine o termo bem cultural” (GUEDES; MAIO, 2016). Foi firmado que os estados deveriam eleger seus objetos considerados importantes e ampliou-se as categorias às quais eles poderiam se encaixar. Essa Convenção defendia a devolução dos bens de propriedade cultural que fossem retirados de um país, no entanto, não se referia aos casos históricos, como os do período colonial. Dessa forma, os museus europeus estariam protegidos de possíveis solicitações. Segundo a autora Maria Fonseca (2009, p. 43), existe uma distinção entre bem cultural e bem patrimonial que ainda é pouco explorada. O primeiro compreende valores utilitário, econômico e simbólico, enquanto o segundo prevê a intermediação do Estado, que fixa valores histórico, artístico e etnográfico. Ademais, “a leitura de bens enquanto bens patrimoniais pressupõe as condições de acesso a significações e valores que justifiquem sua preservação”. Em suma, o conceito de patrimônio e de bens culturais e/ou patrimoniais e as suas atribuições jurídicas não são imutáveis, podendo sofrer variações em diferentes períodos e contextos.

4.2 A REPATRIAÇÃO DAS ANTIGUIDADES EGÍPCIAS SOB A ÓTICA DOS INTELECTUAIS

Motivado pelas campanhas internacionais, o principal incentivador e porta-voz dos pedidos de repatriação no Egito é o egiptólogo Zahi Hawass, que se envolveu com os pedidos de repatriação das antiguidades egípcias a partir de 2002, quando se tornou secretário geral do então Conselho Supremo de Antiguidades. Na ocasião, foi aberto um novo departamento voltado à recuperação de objetos roubados, como parte de um plano estratégico de cinco ações que ele pretendia evidenciar, a saber: a transformação e modernização dos antigos museus em grandes centros culturais e educacionais; o incentivo à conscientização dos egípcios para o respeito e cuidado com o seu patrimônio cultural; a proteção das antiguidades de roubos e destruição; a repatriação; e o desenvolvimento de programas de gerenciamento próprios do Conselho (HAWASS, 2009). Hawass atuou como secretário geral até 2011, 173 quando foi exonerado após a queda do presidente egípcio Hosni Mubarak, depois de intensos protestos iniciados no final de 2010, conhecidos como “Primavera Árabe”. De postura firme e bastante polêmico, Hawass admitiu que algumas das suas decisões frente a esses novos desafios não agradariam a todos, no entanto, ele deveria “[...] “pensar na sobrevivência a longo prazo dos monumentos” (HAWASS, 2010, p. 252, tradução nossa). Em entrevista concedida à arqueóloga e egiptóloga, Salima Ikram, ele mencionou que o novo departamento recebia se apoiava na legislação nacional e internacional e recebia o auxílio de órgãos internacionais, como “[...] FBI, Interpol, Scotland Yard, Art Squad e muitas outras agências. Museus, arqueólogos e particulares também nos ajudam” (HAWASS, 2002-3, p. 20, tradução nossa). Na mesma entrevista, Hawass destacou as circunstâncias em que os objetos deverão ser devolvidos:

Depois de 1983, tornou-se ilegal qualquer antiguidade deixar o Egito (e esse é o nosso foco). Antes havia um comércio ilegal de antiguidades. Também estamos pedindo o retorno de tudo o que foi retirado da parede de um monumento, mesmo se isso foi feito antes de 1983 (a menos que ele tenha sido esculpido no século XIX). Os acordos da UNESCO de 1970 cobrem isso. Sempre que há documentação suficiente para mostrar que a peça estava in situ e está agora na posse de um museu ou colecionador particular, exigimos o retorno dessas peças.

Essa declaração geralmente é repetida pelo arqueólogo em todas as oportunidades que ele pode falar sobre a repatriação, pois muitos ainda creem que o Egito começou a exigir o retorno indiscriminado das antiguidades que se encontram em outros países, o que não é verdade. O ano de 1983 corresponde à publicação da Lei egípcia n. 117, que após os esforços de Hawass foi revisada e alterada pela Lei n. 3 de 2010133, a qual alude sobre a proteção das antiguidades, especificando, dentre outras resoluções, que todas as antiguidades descobertas em território egípcio são de sua propriedade e a sua retirada ilegal do país será considerada roubo. A lei também pôs fim ao sistema de partage e auxiliou no retorno de alguns objetos adquiridos ilegalmente. Na versão de 2010, a publicação da lei teve a apresentação redigida por Hawass, que reconheceu os esforços de outros países no auxílio à preservação dos monumentos egípcios, inclusive no que tange à repatriação de antiguidades roubadas (SUPREME COUNCIL OF ANTIQUITIES, 2010). Atualmente essa lei é utilizada como modelo pelas autoridades egípcias na disputa pelo retorno de seus bens culturais. Um dos casos mais conhecidos envolvendo roubo e condenação por tráfico ilícito de antiguidades a partir da aplicação desta lei foi o de Frederick Schultz, ex-presidente da

133 Anexo A. 174

Associação Nacional dos Comerciantes em Arte antiga, oriental e primitiva, conhecido como negociante de antiguidades em Nova Iorque. Ele foi acusado em 2001 pelos Estados Unidos de vender objetos saqueados de sítios arqueológicos do Egito, o que viola a Lei Nacional de Propriedade Roubada (NSPA). O seu julgamento iniciou em fevereiro de 2002, no qual foi considerado culpado. Ele apelou da sentença, mas no ano seguinte foi novamente condenado pelo Tribunal de Apelações dos Estados Unidos (Segundo Circuito de Cortes), a trinta e três meses de prisão, multa de cinquenta mil dólares e à devolução de uma peça de baixo relevo do Reino Antigo. Ao que tudo indica, Schultz mantinha “negócios” com o britânico Jonathan Tokeley- Parry, que em 1997 foi condenado pelo contrabando de antiguidades egípcias e passou três anos na prisão. Segundo as investigações, o alto valor que Tokeley-Parry arrecadava com as vendas só perdia para o tráfico de drogas. Alguns egípcios que faziam parte de sua quadrilha também foram condenados, pois foi constatado que eles facilitavam a apreensão das antiguidades e o seu envio para o exterior. No caso de Schultz, a recorrência à legislação egípcia de 1983 também auxiliou na sua condenação, embora a sua defesa tenha alegado que essa lei não deveria ser suficiente para sustentar a acusação: “o caso Schultz é o único processo judicial subsequente com base na lei de propriedade de um país estrangeiro” (GERSTENBLITH, 2009, p. 26, tradução nossa)134. Para Zahi Hawass, o julgamento de Frederick Schultz foi um incentivo para as inúmeras tentativas de recuperação dos artefatos roubados: “ele estabeleceu um precedente e também mostrou às pessoas que nós somos sérios. Temos um escritório de advocacia em Nova Iorque que trabalha para nós (o Conselho Supremo)” (HAWASS, 2002-3, p. 20, tradução nossa). O primeiro ato normativo sobre as antiguidades egípcias foi um Decreto publicado pelo governante Mohammed Ali, em 15 de agosto de 1835, que proibia a remoção não autorizada de antiguidades do país sem uma licença adequada, embora o seu foco fosse as antiguidades situadas no Alto Egito, uma região conhecida pelos grandes templos e monumentos, lugares bastante visitados por turistas e agentes dos governos estrangeiros que procuravam por venda de monumentos e objetos. Abaixo, uma parte do conteúdo do Decreto:

134 O primeiro precedente americano acerca da aplicação da legislação estrangeira no caso de contrabando de antiguidades ficou conhecido como Doutrina McClain (no caso Estados Unidos v. McClain), que na década de 1970 condenou cinco acusados de contrabandear artefatos pré-colombianos do México, indo contra à lei de propriedade do país: “um requerente deve provar que as antiguidades foram encontradas no território moderno da nação, e o ato de conversão ou roubo deve ter ocorrido após a data efetiva da legislação de aquisição (GERSTENBLITH, 2009, p. 25, tradução nossa). 175

Estrangeiros estão destruindo edifícios antigos, extraindo pedras e outros objetos trabalhados e exportando-os para países estrangeiros. Se isso continuar, fica claro que em breve monumentos antigos não mais permanecerão no Egito. [...] Sabe-se também que os europeus têm edifícios dedicados ao cuidado de antiguidades; pedras pintadas e inscritas, e outros objetos são cuidadosamente conservados lá e mostrados para os habitantes do país, bem como para os viajantes que querem vê-los. [...] Tendo considerado esses fatos, o governo julgou adequado proibir a exportação para o exterior de antiguidades encontradas nos antigos edifícios do Egito... e designar na capital um lugar para servir como um depósito... Decidiu exibi-los aos viajantes que visitam o país, proibir a destruição de edifícios antigos no Alto Egito e despender o maior cuidado possível em sua guarda (ALI, 1835 apud REID, 2002, p. 21, tradução nossa).

O decreto foi o resultado de um pedido de Champollion, após visitar o Egito e atestar o cenário de destruição gerado pela concorrência indiscriminada pelas antiguidades, o que o fez redigir uma carta endereçada ao paxá. No documento também foi feito um apelo aos egípcios em relação ao sentimento de identidade, através da ênfase à grandeza da civilização que detém tais antiguidades e estão expostas em seu território para que todos possam contemplá- las135. Ao longo do século XIX, outras normas foram publicadas, como um Decreto de 19 de Março de 1869, que incluía disposições regulamentares sobre as escavações para tentar impedir o contrabando; uma lei de Março de 1874, que frisava a propriedade do governo sobre as antiguidades desconhecidas, independente da sua localização; uma Ordem de 16 de Maio de 1880, que proibia qualquer tipo de transação econômica das antiguidades sem a permissão das autoridades; um Decreto de 17 de Novembro de 1891 que regulamentava a permissão para a realização de escavações após a aprovação do Diretor-Geral de Museus e Escavações e da Comissão Permanente de Antiguidades; e um Decreto de 12 de Agosto de 1897 que dizia respeito à punição para escavações clandestinas e a possível devolução das antiguidades ao governo. No século XX, foram emitidas novas leis para a proteção do patrimônio egípcio, como a Lei n. 14, de 12 de junho de 1912, constituindo-se como uma espécie de compilação de todas as leis e decretos anteriores, reforçando a importância das escavações devidamente aprovadas e assegurando a propriedade do Estado sobre todas as antiguidades do país. Neste mesmo ano foram publicados dois Decretos Ministeriais, ambos em 08 de dezembro: o n. 50, abordando a autorização do comércio de antiguidades e o n. 52, acerca das escavações. Outro Decreto Ministerial foi publicado em 10 de dezembro de 1921, referindo-se à exportação de antiguidades. Ainda assim, as escavações clandestinas, os roubos e as transferências ilegais de

135 Em 1841, o cônsul americano Gliddon, membro da Sociedade Egípcia do Cairo, publicou um “Apelo aos Antiquários da Europa sobre a Destruição dos Monumentos do Egito” (REID, 2002).

176 antiguidades para fora do país continuaram ocorrendo, o que determinou a aprovação da Lei 215, de 31 de outubro de 1951, com as alterações introduzidas pela Portaria n. 0614, de 6 de março de 1952, sobre a exportação de antiguidades. Essa lei dispunha sobre a proteção das antiguidades e adotava medidas mais rígidas para o tráfico ilegal.

Figura 28: Principais legislações sobre as antiguidades.

Fonte: KERSEL, 2010, p. 90.

Segundo Hawass, um dos problemas prejudiciais à proteção dos monumentos no Egito era a questão da segurança, em todo o seu conjunto. Os profissionais designados para a guarda e a proteção dos monumentos, seja nos templos, nos museus e demais locais, não recebem treinamento específico para lidar com os visitantes (ou ao menos não cumprem a sua função de maneira adequada). Em entrevista, o arqueólogo comentou sobre o baixo salário pago aos guardas e afirmou que esse quadro mudaria, não havendo, assim, a necessidade de aceitar subornos. O que não foi dito é que os próprios guardas pedem pequenas quantias de suborno para autorizarem alguns turistas a tirarem fotos e entrarem em lugares que são restritos aos visitantes. Zahi Hawass lembrou da época em que foi nomeado como inspetor de antiguidades do Planalto de Gizé, em 1974, onde pôde organizar a segurança do local com os guardas, 177 inspecionando diariamente as suas ações, inclusive com a ajuda de alguns estrangeiros que serviam como “espiões”. Dessa forma, ele constatou que muitos guardas recebiam pequenos subornos além da cobrança de admissão no complexo arqueológico, o que levou ao afastamento de alguns e a demissão de outros. Contudo, alguns criticam o seu posicionamento, pois as pessoas que trabalham nesses sítios (em sua maioria camponeses), recebem salários muito baixos alguns são obrigados a deixarem as suas residências para cederem lugar à exploração arqueológica. Para Helaine Silverman (2004), é preciso entender os motivos que levam essas pessoas para a prática de atividades ilegais, como a violência social, a pobreza, entre outros fatores. Em Gizé, onde estão situadas as pirâmides e a esfinge, existe um subúrbio rodeado por casas, hotéis, lojas e restaurantes, chamado de Nazlet el-Samman. Muitas dessas casas foram construídas ilegalmente e alguns de seus moradores fazem parte do esquema de roubo e venda das antiguidades. Esses mesmos moradores são os responsáveis pelo assédio insistente aos turistas que visitam o complexo, uma prática duradoura. Hawass pontuou que existem projetos para melhorar a circulação dos turistas, já que o complexo possui duas entradas de acesso: uma em frente à esfinge que está situada dentro desse subúrbio e outra mais recente e melhor equipada que fica ao sul da pirâmide maior, com uma área exclusiva para o estacionamento dos ônibus e demais veículos que transportam os turistas. Esses problemas já eram apontados por Hawass desde que ele começou a trabalhar com o Departamento de Antiguidades do país e, ainda hoje, a situação parece não ter avançado muito. A questão da segurança se intensificou com os protestos da chamada “Primavera Árabe”136 que ocorreram no Egito entre janeiro e fevereiro de 2011, o que desencadeou um período de instabilidade política, com o aumento do desemprego e da pobreza. Durante este período houve também ataques aos bens culturais do país, como a invasão ao Museu Egípcio do Cairo, cujo desdobramento foi o roubo e a destruição de alguns de seus artefatos, “[...] principalmente devido ao fato de que a polícia e as forças de segurança desapareceram de seus postos em todo o país, inclusive dos sítios de antiguidades” (IKRAM, 2013, p. 366, tradução nossa). Com isso, a “exploração” dos sítios arqueológicos e as pilhagens das antiguidades acabaram se tornando uma fonte extra de renda para a população.

136 Como parte da prática de quase transpor os acontecimentos do mundo ocidental ao mundo oriental, a chamada “Primavera Árabe” foi assim denominada por parte da imprensa ocidental, que se baseou na “Primavera dos Povos”, revoluções europeias que aconteceram a partir de 1848 e na “Primavera de Praga”, que ocorreu na Tchecoslováquia em 1968. Para alguns estudiosos do tema, a nomenclatura é errônea, uma vez que os protestos no Oriente Médio e no norte da África (Middle East and North Africa – MENA) ocorreram durante o inverno. Além disso, o termo “primavera” refere-se a um novo começo, um despertar que gera mudanças, diferente do que efetivamente aconteceu após a “Primavera Árabe”, com o aumento de alguns governos autoritários, o que hoje é conhecido como “Inverno Árabe” (ABUSHARIF, 2014). 178

Esse período de instabilidade política marcou um dos maiores desastres do patrimônio cultural do Egito, em agosto de 2013, quando o Museu Nacional de Malawi, próximo ao sul do Cairo foi invadido, saqueado e destruído por vândalos, considerados apoiadores do presidente então deposto, Mohammed Morsi, segundo relatos da polícia egípcia. Já os arqueólogos desconfiaram que a ação tenha partido de gangues de ladrões especializados no tráfico ilícito de antiguidades. Na invasão, um dos funcionários do museu foi assassinado137. Ao ser questionado pela Folha138 sobre o destino da sua campanha de repatriação após a queda do presidente egípcio, Hosni Mubarak, Zahi Hawass respondeu, em um tom de irritação: “os museus são seguros. O que aconteceu foi falta de policiamento. Se a polícia ficar cinco horas fora de qualquer lugar, no Egito ou no Brasil, todo mundo iria roubar tudo”. Com as notícias dos protestos e das revoltas somadas ao sentimento de insegurança, o turismo – principal fonte de economia no país – foi prejudicado naquele período, levando o arqueólogo a fazer um apelo em seu site pessoal, no qual pedia às pessoas que retornassem ao Egito, afirmando que era um local seguro (num tom personalista, ao invés de recorrer às imagens dos monumentos e pontos turísticos do Egito, Hawass optou por estampar a “campanha” com uma foto sua):

Figura 29: Apelo de Zahi Hawass em seu site oficial: “o Egito é seguro. Precisamos que você volte”.

Fonte: site oficial de Zahi Hawass: http://www.drhawass.com/wp/

137 Disponível em: https://www.ibtimes.com/malawi-national-museum-looting-condemned-unesco-amid-fears- egypts-cultural-heritage-danger-1391295 Acesso em: 20 dez. 2019. 138 Disponível em: http://blogdoturismo.folha.blog.uol.com.br/arch2011-04-03_2011-04-09.html Acesso em: 03 mai. 2017. 179

A professora de Egiptologia da Universidade Americana do Cairo, Salima Ikram, também corrobora com Hawass sobre os pedidos de repatriação, tendo várias publicações, artigos e entrevistas sobre o assunto. Os principais argumentos que ambos defendem para o retorno dos bens culturais é o “sentimento” nacionalista que esses objetos parecem invocar, segundo eles, e o seu impulso na economia, já que os turistas visitam o país para conhecer a sua longa tradição histórica, atestada, também, pelas suas antiguidades. O nacionalismo é um ponto importante que será referido tanto pelos que pretendem ter os objetos de volta quanto pelos que atualmente os detém: “invocar o passado é uma questão de discurso político comum” (HASSAN, 2002, p. 201, tradução nossa), especialmente no Ocidente. Salima Ikram recorre ao argumento nacionalista para justificar o retorno dos bens culturais, como pode ser percebido no artigo intitulado “Coleta e repatriação do passado egípcio: rumo a um novo Nacionalismo”, publicado em 2011, na obra Patrimônio Cultural Contestado: Religião, Nacionalismo, Apagamento e Exclusão em um Mundo Global, organizado pela professora de Antropologia, Helaine Silverman. Na tentativa de confirmar a sua hipótese, Ikram apresentou um panorama acerca das antiguidades do Egito, mencionando diversas leis nacionais e o problema do comércio de antiguidades, os pedidos de repatriação de artefatos icônicos da história egípcia, o turismo e a discussão sobre patrimônio e identidade nacional. Na sua concepção, o passado faraônico é essencial para a criação de um sentido de identidade nacional entre os egípcios:

Claramente, o passado antigo do Egito é uma parte intrínseca de sua identidade e economia nacional. Ele também fornece um terreno comum que unifica cristãos e muçulmanos. Numa altura em que o fundamentalismo religioso e o sectarismo são problemas mundiais que ameaçam o presente e o futuro, bem como o passado, os governos não devem pedir nada que promova uma unidade secular e um senso de nacionalidade, independentemente do credo? Os antigos egípcios não poderiam ter acesso a imagens icônicas de seu passado, mesmo que brevemente, para ajudá-los a reforçar sua identidade nacional e servir como um ponto de encontro? (IKRAM, 2011, p. 152, tradução nossa, grifo nosso).

Assim como as alegações de Ikram e Hawass, a invocação de Melina Mercouri para a devolução das esculturas gregas apelava para o caráter sentimental e emocional, alegando que mármores eram parte da história e da alma do povo grego, aquilo que o jurista americano John Henry Merryman chamou de argumento do “nacionalismo cultural”. Nas palavras de Mercouri: “esta é a nossa história, esta é a nossa alma...você deve nos entender. Você deve nos amar. Temos lutado com você na Segunda Guerra. Devolva-nos e ficaremos orgulhosos 180 de você. Devolva-os e eles estarão em boas mãos”139 (MERCOURI apud MERRYMAN, 1985, p. 1883, tradução nossa). Dessa forma, “[...] tradicionalmente, a ideia de repatriação implica manipular o patrimônio arqueológico para vinculá-lo à identidade de uma nação e ao Estado” (FERREIRA, 2009, p. 67), corroborando com o pensamento de Merryman (1985), ao afirmar que o argumento do nacionalismo cultural está ligado aos fatores econômicos e políticos e é fortemente apoiado pelos estados que desejam a repatriação dos bens culturais, assim como organizações como as Nações Unidas e a Unesco. Contudo, quando recorremos ao fundamento do nacionalismo, ele deveria convir a todas as nações. Logo, porque ele é válido somente para algumas em detrimento de outras? Se esse argumento não deve ser levado em consideração quando relacionado aos gregos ou egípcios, porque deveria o ser em relação aos britânicos ou franceses? O próprio Merryman (1985, p. 1916) reconheceu que esse apelo se encaixa nos dois contextos, embora tenha optado por apoiar a permanência dos objetos no Museu Britânico. Segundo ele, “se Elgin não tivesse removido os Mármores, alguém (provavelmente os franceses, mas alguns alemães também interessados) certamente teria tentado fazê-lo”, em uma tentativa de minimizar as ações e a responsabilidade moral de Elgin, referindo-se a um “ato historicamente inevitável”. Merryman reforçou que cada país tem o direito legal de entrar com um processo contra outras nações ou instituições – como os museus –, caso sintam-se roubadas, independente da data do ocorrido. A partir daí, serão tomadas as medidas cabíveis conforme a legislação nacional de cada país. No que concerne ao Direito Internacional, “a regra é que os efeitos legais de uma transação dependem da lei vigente na época” (MERRYMAN, 1985, p. 1900, tradução nossa). A afirmação nacionalista como justificativa para o retorno dos bens culturais é recorrente, porém, questionável e por isso ela não se esgota em si e dificilmente é aceita em primeira instância, especialmente quando envolve países distintos, com diferentes contextos e legislações: “na forma nua, o argumento do nacionalismo cultural é mais uma asserção do que uma razão” (MERRYMAN, 1985, p. 1912, tradução nossa). No caso do Egito, algumas vezes percebemos um senso de identidade nacional a priori, por reconhecimento da sua própria história, mas há também uma tentativa de enaltecer e consolidar esse sentimento (algo inerente ao nacionalismo), que se torna evidente através do apelo dos intelectuais que estão em atividade nas universidades e nos museus, por exemplo. A população do Egito está alheia

139 Todas as citações estrangeiras apresentadas na presente tese são de tradução da autora. 181 a tais reivindicações. O próprio Zahi Hawass reforça essa ideia quando procura justificar os esforços empreendidos pelo Egito no retorno dos seus bens: “é uma questão de orgulho nacional para todos os egípcios. Nós também tentamos educar os egípcios quanto à importância e o valor de sua herança, em todos os seus aspectos” (HAWASS, 2002-03, p. 21, tradução nossa). Como observamos no Egito, o turismo realmente é a sua maior fonte de economia. Ao se deslocar pelo país, encontramos infinitas referências ao passado faraônico, mesmo nas regiões mais modernas e nas proximidades das mesquitas e de algumas igrejas coptas. Ainda assim, o fundamentalismo é uma característica forte e isso não pode ser negado e, muito menos, amenizado. Afirmar que o passado faraônico do Egito serve para unificação de cristãos e muçulmanos parece um pouco forçado, mesmo que essas referências estejam presentes em símbolos nacionais, como monumentos, selos e moedas – o que atesta a sua utilização para fins retóricos no período de emergência do nacionalismo no país140:

Ora, o que os intelectuais descobriram recentemente é que as massas não necessitam deles para saber; elas sabem perfeitamente, claramente, muito melhor do que eles; e elas o dizem muito bem. Mas existe um sistema de poder que barra, proíbe, invalida esse discurso e esse saber. Poder que não se encontra somente nas instâncias superiores da censura, mas que penetra muito profundamente, muito sutilmente em toda a trama da sociedade. Os próprios intelectuais fazem parte deste sistema de poder, a ideia de que eles são agentes da “consciência” e do discurso também faz parte desse sistema. (FOUCAULT, 1979, p. 42).

Claramente esses intelectuais sabem disso. Tanto que Salima Ikram e Zahi Hawass clamam pelo retorno dos objetos que foram levados ilegalmente do país e outros (seis) que, segundo eles, são considerados ícones da história e identidade egípcia141, o que virou um aforismo em suas declarações. As suas reinvindicações não se estendem a todos os acervos de coleções egípcias espalhadas pelos museus estrangeiros, pelo contrário. Assim, há dois objetos que estão no topo de sua Wish List, sempre mencionados: a pedra de Rosetta, no Museu Britânico e o busto de Nefertiti, no Neues Museu, em Berlim. A pedra foi descoberta em 1799, período em que o Egito estava sob ocupação francesa, durante os trabalhos de engenharia no forte Juliano, próximo à cidade de Rosetta, perto de Alexandria. Comandados pelo oficial Pierre-François Bouchard, seus homens

140 Segundo a própria Ikram (2011, p. 151, tradução nossa): “esses símbolos foram usados pela primeira vez no século XIX e, novamente, no início do século XX”, em contextos diferentes do atual. 141 Outros objetos já foram devolvidos após negociações entre o governo egípcio e os museus, como o Metropolitan Museum of Art, de Nova York, que em 2011 devolveu dezenove artefatos provenientes da tumba de Tutâncamon. A França também concordou com o retorno de alguns objetos, após Zahi Hawass ter rompido as relações com o Museu do Louvre. Ainda assim, nenhuma antiguidade considerada icônica retornou ao país, apenas artefatos menores que foram produzidos em maior número. 182 avistaram uma pedra de cor escura com algumas inscrições, que foi imediatamente levada para o estudo de especialistas. Ao serem expulsos do Egito, em 1801 foi firmada a Capitulação de Alexandria, estipulando que a pedra e outras antiguidades – consideradas despojos de guerra – deveriam ser cedidas à Inglaterra142, por isso ela se encontra desde então sob posse do Museu Britânico, em Londres (VERCOUTTER, 2002). O pedido oficial de repatriação da pedra foi feito por Zahi Hawass em 2003, “[...] no entanto, após a devida deliberação, ele retirou esse pedido, pois as questões legais relativas à propriedade da pedra estão repletas de complexidade” (IKRAM, 2011, p. 146, tradução nossa). Ainda assim, Hawass tentou um acordo de empréstimo com o Museu Britânico, para que a pedra ficasse exposta por um período determinado no Cairo, o que ainda não aconteceu. Em um relato sobre uma de suas visitas ao Museu Britânico, ele expressou: “fiquei de pé na frente da Pedra de Rosetta e desejei que um dia fosse devolvida para casa, para que nossos filhos pudessem visitá-la no Museu do Cairo” (HAWASS, 2003, p. 251, tradução nossa).

Figura 30: Zahi Hawass em frente à Pedra de Rosetta.

Fonte: https://www.telegraph.co.uk/news/2018/11/06/egyptian-museum-calls-rosetta-stone-returned-uk- 200-years/ Acesso em: 18 out. 2019.

Outro caso semelhante e controverso é o do busto da rainha Nefertiti, descoberto durante as escavações na cidade de Amarna, em 1912, pela equipe de arqueólogos alemães

142 De acordo com o Artigo 16 da Capitulação. VER: WILSON, Robert Thomas. History of the British Expedition to Egypt. Londres: T. Egerton, 1803. 183 liderada pelo egiptólogo . Zahi Hawass afirmou que Borchardt encontrou a cabeça da rainha e o levou ainda coberto de lama para o Museu do Cairo: “naquela época, era necessário que as expedições levassem as antiguidades que descobriram ao Cairo para serem divididas entre a expedição e o Departamento de Antiguidades Egípcias” (HAWASS, 2003, p. 251, tradução nossa), o chamado sistema partage. Ele questionou a forma como o busto deixou o Egito naquele período e a legalidade da Alemanha sobre o mesmo, pois existiram rumores de que o próprio Borchardt teria coberto o busto com lama para não ser examinado com mais afinco. A primeira tentativa de retorno do busto de Nefertiti ocorreu em 1924, através do então diretor do Serviço de Antiguidades da época, o egiptólogo francês Pierre Lacau. Naquele período – pós fim da Primeira Guerra Mundial – as relações entre a França e a Alemanha ainda estavam abaladas e Lacau impediu as escavações alemães no Egito durante um período. Cinco anos depois, “o Egito ainda ofereceu trocar peças valiosas em sua coleção do Cairo pelo busto de Nefertiti” (IKRAM, 2011, p. 147, tradução nossa), o que nos faz pensar: quais peças seriam essas e quais critérios determinariam a sua valoração? Após anos de negociações, o busto quase retornou ao Egito em 1935, por decisão do primeiro-ministro prussiano Hermann Göring, mas Adolf Hitler se negou a devolver. Em 1984, houve um movimento chamado “Nefertiti quer ir para casa”, uma iniciativa do etnólogo Herbert Ganslmayr e do jornalista Gerd von Paczensky “[...] que sugeriu que o busto fosse exibido alternadamente no Cairo e em Berlim como solução para o dilema” (IKRAM, 2011, p. 147, tradução nossa). Um apelo oficial por parte do governo egípcio foi feito à Unesco em 2005, mas sem resoluções. Na época das negociações, o historiador e ex-diretor do Museu de Berlim, Dietrich Wildung, havia afirmado que o busto não deveria sair do país, pois era muito delicado para fazer uma viagem, embora já tenha sido transportado algumas vezes pela Alemanha. Zahi Hawass contestou essa afirmação através de uma correspondência, na qual afirmava que os profissionais envolvidos eram cautelosos no cuidado com os artefatos egípcios e recomendava “[...] que a avaliação desses objetos deve ser realizada por um comitê internacional equilibrado e diversificado, incluindo especialistas do Egito e de outras nações não-ocidentais” (HAWASS apud IKRAM, 2011, p. 148, tradução nossa, grifo nosso). A ampliação do debate, inclusive com o público, e a não limitação apenas para países ocidentais é de extrema importância nessa conjuntura, como examinaremos. Ainda assim, Hawass acredita que um dia essas peças poderão serão apreciadas, também, no Egito:

184

Espero que um dia veja todos esses artefatos de volta à sua pátria, mas se isso for impossível, espero que diferentes museus, pelo menos, concordem em exibir os objetos durante um ano no Museu do Cairo. Então nossos filhos e os egípcios que não podem viajar para vê-los terão a chance de ver essas magníficas obras de arte. Espero que um dia eu abra o jornal e leia “Nefertiti voltou ao Egito”. Eu sei que isso é um sonho – mas muitas vezes vejo meus sonhos se concretizarem (HAWASS, 2010, p. 251, tradução nossa).

Em relação aos dois casos, os países ainda não chegaram a nenhum acordo. Prevendo que a repatriação da pedra e do busto provavelmente não acontecerá, houve uma alteração no discurso de Zahi Hawass e, ao invés de pedir a devolução das peças, ele solicitou a ambos os museus um empréstimo, devidamente documentado e assinado, para a abertura do Grande Museu do Cairo, prevista para 2020. A ideia de empréstimo desses artefatos para exposições no Egito é também contestada pelos diretores de museus, pois estes não podem garantir o seu retorno aos países, mesmo certificados pela documentação, como já prevista pelo Código de Ética para museus do ICOM (1971 apud CAMARGO-MORO, 1986, pp. 35-36):

Qualquer que seja a especialidade ou a categoria do museu, qualquer que seja o lugar em que ele se situe no mundo, certos princípios de ética e de integridade profissional devem ser aplicados por aqueles que são encarregados das aquisições. Isto significa que a origem de todo objeto a ser adquirido, qualquer que seja a natureza, deve ser documentada devidamente. Este princípio serve não só para o objeto artístico, como para o arqueológico, etnográfico, histórico ou pertencente às ciências naturais.

Os debates em torno da propriedade, tanto da pedra quanto do busto, são mais complexos do que parecem: envolvem, no mínimo, quatro nações com histórias distintas que se cruzam: Alemanha, Egito, França e Inglaterra. Ao analisarmos as alegações sobre o histórico de aquisições das antiguidades egípcias por parte dos países colonialistas, percebemos que o ensejo pela manutenção desses objetos em seus territórios aponta para a sua própria história, mais do que a história que eles ensejam representar:

Os museus nacionais, em vez de alojar coleções de relíquias arqueológicas nacionais, foram estabelecidos como vitrines de possessões imperiais. Curiosamente, o Museu Britânico, por exemplo, não é um museu de artefatos britânicos. Abarrotado de “tesouros” do Egito, Irã, Iraque, Índia e muitos outros países das grandes civilizações do mundo, tornou-se um templo do imperialismo cultural britânico numa época em que a Grã-Bretanha era um império com imenso poder global (HASSAN, 2003, p. 22, tradução nossa).

185

No final de 2016, a Oxford Union143 realizou um debate sobre repatriação de peças obtidas durante o período colonial. Foram selecionados seis debatedores para exporem as suas ideias acerca do tema, três que defendiam a repatriação e três contrários. Ao final das arguições, os alunos ouvintes fizeram uma votação a favor ou contra os argumentos apresentados, na qual ganharam os que defenderam a repatriação, por 165 contra 106 votos. Os representantes favoráveis ao retorno dos objetos aos seus lugares de origem foram Ed Evans Saint-Johns, aluno de Estudos Clássicos do St. John's College, o arqueólogo Zahi Hawass e Wim Pijbes, ex-diretor geral do Rijksmuseum (Museu Nacional) de Amsterdã. Os oradores contrários ao retorno dos objetos foram Mia Smith, aluna de Estudos Clássicos da Oriel College e ex-bibliotecária da Oxford Union, o historiador da arte James Cuno e Sabine Haag, diretora geral do Kunsthistorisches Museum, de Viena144. Os três representantes favoráveis à repatriação tocaram no cerne do problema, no que diz respeito ao Imperialismo. A base da arguição de Hawass se pautou na prática imperialista de se apropriar e de manter sob a sua custódia os objetos que foram retirados do Egito em período de ocupação, que o estudante Ed Evans chamou de “souvenirs do Imperialismo”. Hawass acredita que o fato de esconderem essa informação do público também se insere nessa prática. Para o historiador de arte holandês Wim Pijbes, essa discussão ultrapassa os objetos: “é sobre fronteiras, sobre nações, sobre nacionalismo, sobre pátria”. Para ele, “objetos culturais não têm um único dono, eles são patrimônio mundial, no entanto, em termos de propriedade, é claro que o lugar e o contexto dos objetos são relevantes”. Em uma fala concisa e objetiva, ele destacou a importância da Linguagem nessa discussão e mencionou o trabalho pioneiro do Rijksmuseum, que está promovendo uma remoção da terminologia colonial dos títulos e das descrições das obras de arte do museu que podem ser consideradas ofensivas para outros povos, como “negro”, “indiano” ou “anão”. Essa ação promovida pelo museu visa conceder propriedade ao objeto, para que eles sejam acessíveis a um público maior. Essa propriedade não deve ser dada aos países, mas às pessoas, já que esses objetos possuem uma história comum (pois fazem parte da história tanto do seu local de origem, quanto do local ao qual se encontram atualmente). Embora não tenha ficado claro na fala de Pijbes a sua posição em relação à devolução de artefatos (mesmo que ele esteja do lado dos que a defendem), a sua contribuição foi de extrema importância, pois essa é uma das iniciativas que os demais museus poderiam adotar como uma espécie de

143 Fundada em 1823, a Oxford Union é uma sociedade administrada por alunos que promove debates sobres os mais variados temas, muitas vezes polêmicos, no âmbito internacional. 144 Todas as falas dos representantes podem ser conferidas no site: https://www.youtube.com/results?search_query=We+Should+Repatriate+Artefacts Acesso em: 04 jun. 2017. 186

“compensação” pelas ações que foram empreendidas pelos seus países no passado, uma vez que para alguns museus a repatriação é considerada inviável. A menção à infraestrutura dos grandes museus europeus e os trabalhos de conservação e restauração dos objetos foram lembrados como fatores para não repatriar, tomando como exemplo uma recente restauração da máscara de Tutankhamon feita por um especialista alemão, depois que funcionários do Museu do Cairo usaram um material não adequado para colar a barba do faraó. Hawass contestou essa arguição explicando que isso pode acontecer em qualquer lugar, como casos antecedentes na Inglaterra (sobre uma limpeza malsucedida nos mármores do Parthenon que apagaram algumas marcas originais) e na Bélgica (que ocasionou danos em uma múmia), não se limitando apenas ao Egito ou aos demais países árabes. Ele também confrontou a alegação de que os museus internacionais estão melhores equipados que os egípcios e afirmou que o país está investindo na modernização desses espaços e na criação de novos, como o Museu da Núbia em Assuã, o Museu Nacional da Civilização Egípcia e o Grande Museu Egípcio, atualmente em construção. Hawass comparou que os países que negam a devolução ou o empréstimo de curto prazo de objetos ao Egito, são os mesmos contemplados pelo governo egípcio com autorizações para a realização de trabalhos e escavações arqueológicas por suas equipes, a exemplo da Alemanha, dos Estados Unidos, da França e da Inglaterra. Ele se mostrou bastante aborrecido pela justificativa de alguns museus em negar o empréstimo por não estarem seguros quanto ao retorno das peças, ponderando a importância de documentar devidamente todo o processo. Hawass questionou ainda a falta de apoio desses mesmos países à proteção das antiguidades que naquele momento estavam sendo atacadas e destruídas em alguns territórios árabes, como o Iraque, a Líbia e a Síria. Segundo ele, o Louvre declarou que não podia abrigar esses objetos em seu acervo, embora antes pudesse – talvez porque nesse contexto específico não seja tão importante para a instituição manter esse tipo de acervo, até porque a sua coleção já está constituída. O arqueólogo encerrou a sua fala pedindo maior cooperação entre os museus, exemplificando que 60% dos objetos do Museu Britânico são ilegais e que deveriam retornar aos seus locais originais, pois o seu descumprimento caracteriza, na sua opinião, uma prática imperialista.

187

4.3 POR QUE NÃO REPATRIAR?

As falas dos representantes que apoiam a manutenção do local atual das antiguidades estão centradas basicamente na crítica ao nacionalismo, como se o retorno dos objetos significasse uma restrição ao seu acesso pelo público. Para a estudante Mia Smith, o mundo está em um período delicado de retrocessos e preconceitos, no qual “[...] devemos incentivar a conscientização cultural”. Logo, exaltar a propriedade cultural dos objetos baseada estritamente em sua nacionalidade contribui para esse pensamento. Ela não se considera contrária a essa preposição, mas não concorda com a sua utilização como justificativa para os pedidos de retorno que os limitam apenas pelo espaço geográfico, sem considerar a “cultura, prática ou crença”. Como exemplo, Smith diferenciou a definição do que é ser identificado como grego no século XXI, ao que era na Antiguidade. Ao confrontar os representantes favoráveis à repatriação, ela declarou que eles “[...] querem convencer vocês falando sobre as atrocidades cometidas pelas potências coloniais, eles podem tentar encantar vocês com argumentos moralistas sobre propriedade intelectual”, mas salientou que a repatriação é prejudicial para a globalização. James Cuno, historiador e curador (atual diretor da instituição cultural J. Paul Getty Trust, em Los Angeles) e um dos maiores defensores da não repatriação, reforçou as ideias de Mia Smith e assinalou que “os objetos culturais não possuem DNA e mesmo que o tivessem, isso não determinaria a sua identidade nacional”, pois estes podem ser resultado de influência de outros objetos e de outras culturas, já que “a cultura não conhece fronteiras políticas”. Ao mencionar a atuação da Unesco nesse contexto, ela a referiu como uma “criatura da era nacionalista” e o seu reconhecimento do valor universal e, ao mesmo tempo, nacional do patrimônio a torna controversa. Assim como os demais, ele procurou amenizar o problema do colonialismo ao enfatizar que o que deveria ser discutido era “qual a melhor forma de compartilhar o patrimônio mundial com o mundo para o maior entendimento e tolerância da diferença”, ao invés de questionar sobre o retorno dos objetos obtidos durante o período colonial. Para Cuno, nós herdamos esse mundo, logo, temos a responsabilidade de transmitir essa cultura para as gerações futuras. Na sua obra intitulada “A quem pertence a Antiguidade”, publicada em 2008, o autor partiu do estudo de caso de três pedidos de repatriação distintos – os mármores da Grécia, a pedra de Rosetta e as coleções de bronzes chineses que atualmente estão nos Estados Unidos – para sustentar a sua argumentação contra essas reinvindicações. Segundo Cuno, a querela 188 está centrada entre os museus e os modernos Estados-nações que apelam ao sentimento nacionalista para requerer esses objetos:

O governo egípcio pediu o retorno da Pedra, alegando que é importante para a identidade egípcia, embora no momento da sua tomada não existisse nenhum estado independente do Egito e não seria por mais de cem anos. Também não havia um respeito local pela herança antiga da terra. [...]. Foi somente através do interesse europeu pelos restos do antigo Egito, em grande parte provocado pela descoberta da Pedra de Rosetta e pela decifração de seus hieróglifos, que os egípcios também se interessaram (CUNO, 2008, p. 14, tradução nossa).

Embora os argumentos sobre uma suposta identidade egípcia não sejam suficientes para resolver a querela da repatriação, eles estão associados com o processo de independência e o contexto de ocupações estrangeiras vivenciados pela história egípcia. Recorrer ao conhecimento europeu sobre o Egito, propiciado pela retenção de sua cultura material reafirma os “[...] mecanismos de poder no interior dos próprios discursos científicos” (FOUCAULT, 2012, p. 226); estabelece esse conhecimento enquanto estratégia e revela as relações entre o saber e o poder que Foucault destacou. Contrário à ideia do nacionalismo, Cuno acredita que esses povos só compartilham o mesmo espaço geográfico do território antigo, não havendo semelhança entre os egípcios antigos e modernos, por exemplo. Assim, as instituições culturais desses lugares não podem tomar essa premissa como válida para a devolução dos objetos. Para tanto, Cuno recorreu aos museus enciclopédicos para diferenciá-los dos museus nacionais, dos quais considera “[...] instrumentos importantes na formação de narrativas nacionalistas”, pois “eles são usados para contar a história do passado de uma nação e confirmar sua importância atual” (CUNO, 2008, p. 19, tradução nossa). Para ele, os museus nacionais estão limitados a uma história local, enquanto as coleções apresentadas pelos museus enciclopédicos não se restringem a uma só região: “os museus enciclopédicos dirigem a atenção para culturas distantes, pedindo aos visitantes que respeitem os valores dos outros e busquem ligações entre as culturas” (CUNO, 2008, p. 19, tradução nossa). Contudo, podemos questionar qual história não pode ser considerada local? E, mesmo um museu que é dedicado a uma parte específica da história de um povo, não pode promover o respeito a outras culturas, só porque não estão representadas naquele contexto? Como resumiu o arqueólogo Ulpiano Bezerra de Meneses (1993, p. 213):

Numa tipologia sumária, podem-se distinguir três níveis principais de amplitude na atuação dos museus: o universal, o nacional e o local/regional. O primeiro, por certo, se apresenta como distante do viés ideológico da identidade. Isto, porém, está longe de ser verdadeiro, embora, no caso, tal viés seja menos articulado e aparente. Aliás, basta examinar alguns dos grandes museus da espécie (Louvre, British Museum, 189

Dahlem, Metropolitan ...) para concluir que a própria pretensão à universalidade é já um sintoma de etnocentrismo.

A ideia de progresso também está contemplada nos princípios desses museus, assim como foram explicitadas nas antigas exposições universais. O passado de outras culturas “conservado” nesses espaços é tão valorizado exatamente pela temporalidade que os objetos parecem encerrar. Para Foucault (2014, p. 110), uma das consequências da visão da história tradicional é “[...] o tema e a possibilidade de uma história global”, no qual é possível encontrar ligações homogêneas entre os acontecimentos e definir “[...] o rosto de uma época” (FOUCAULT, 2014, p. 110). Uma alternativa a essa ideia seria a proposição de uma história geral, que nos permita reunir “[...] todos os fenômenos em torno de um centro único” (FOUCAULT, 2014, p. 12). Seguindo a sua análise, Cuno expôs a trajetória de seis artefatos do Instituto de Arte de Chicago, do qual ele foi diretor entre 2004 e 2011. Eles são originários de locais diferentes e o autor se valeu de suas respectivas histórias para demonstrar “[...] como os objetos movem-se pelo mundo através do comércio ou por causa de dificuldades econômicas, saques e violência” (CUNO, 2008, p. 31, tradução nossa), embora não tenha esclarecido que, muitas vezes, o próprio país em que os artefatos estão locados são os responsáveis pelos atos de saques e violência. Para Cuno, o principal objetivo de um museu enciclopédico é o de divulgação do conhecimento irrestrito sobre variadas culturas e períodos, “[...] este é o conceito do museu dedicado a ideias, não ideologias, o museu de aspirações internacionais, de fato aspirações universais e não de limitações nacionalistas, curioso e respeitoso do legado artístico e cultural do mundo” (CUNO, 2008, p. 31-32, tradução nossa). Seria correto, então, afirmar que somente os museus que se dedicam à guarda e à exposição de coleções oriundas de diferentes partes do mundo são relevantes, uma vez que essa característica não os “limitaria”? Nesse mesmo raciocínio, estaria esse tipo de museu isento de qualquer ideologia? Ao expor as suas convicções, James Cuno enfatizou que não há uma intenção de privilegiar ou favorecer as instituições europeias, já que, segundo ele, a maioria dos museus enciclopédicos se concentra no “mundo desenvolvido”. Mas, por quê? A história “oficial” contada por algumas instituições sublinha que as coleções de antigas civilizações foram formadas a partir de acordos e com o aval de seus estados, o que não procede em alguns casos. As pessoas visitam esses museus e se encantam com a riqueza de tais objetos, adquirem catálogos e demais souvenirs nas suas lojas, mas nem sempre questionam a forma como essas coleções foram adquiridas. Ao reivindicar a universalidade através de discursos que não se preocupam com as contradições e os preconceitos que exprimem, essas declarações reforçam 190 as suas próprias particularidades, que no caso da Europa apresentam uma espécie de “ressentimento” – talvez por carregarem “[...] uma memória sem passado” (NORA, 1993), ao contrário das culturas mais antigas:

São os rituais de uma sociedade sem ritual; sacralizações passageiras numa sociedade que dessacraliza; fidelidades particulares de uma sociedade que aplaina os particularismos; sinais de reconhecimento e de pertencimento de grupo numa sociedade que só tende a reconhecer indivíduos iguais e idênticos (NORA, 1993, p. 13).

Na obra Há uma gota de sangue em cada museu, do museólogo brasileiro Mário Chagas, na qual ele parafraseia o título do primeiro livro de poemas do escritor Mário de Andrade, Há uma gota de sangue em cada Poema, de 1917, ele reflete sobre os discursos presentes nas instituições museológicas:

Admitir a presença de sangue no museu significa também aceitá-lo como arena, como espaço de conflito, como campo de tradição e contradição. Toda a instituição museal apresenta um determinado discurso sobre a realidade. Este discurso, como é natural, não é natural e compõe-se de som e de silêncio, de cheio e de vazio, de presença e de ausência, de lembrança e esquecimento (CHAGAS, 2015, p. 32).

Enquanto produtos e produtoras de saber/poder, as instituições museológicas instituem regimes de verdade145 através de suas narrativas expositivas. Ao assinalar três grandes sistemas de exclusão que atingem o discurso, destacamos em Foucault a vontade de saber, inserida em um suporte institucional que exerce um poder coercitivo nos demais discursos: “ela é também reconduzida, mais profundamente sem dúvida, pelo modo como o saber é aplicado em uma sociedade, como é valorizado, distribuído, repartido e de certo modo atribuído” (FOUCAULT, 2013, p. 17). A ênfase de James Cuno à universalidade dos museus é proclamada através de um documento assinado por diretores de dezenove instituições europeias e norte-americanas146 em dezembro de 2002, intitulado “Declaração da Importância e Valor dos Museus

145 “Por ‘verdade’, entender um conjunto de procedimentos regulados para a produção, a lei, a repartição, a circulação e o funcionamento dos enunciados” (FOUCAULT, 1979, p. 11). E ainda: “não há absolutamente instância suprema. Há regiões onde esses efeitos de verdade são perfeitamente codificados, onde o procedimento pelos quais se pode chegar a enunciar as verdades são conhecidos previamente, regulados. São, em geral, os domínios científicos” (FOUCAULT, 2014, pp. 232-233). Verdade e poder jamais são dissociados. 146 São elas: The Art Institute of Chicago; Bavarian State Museum, Munique (Alte Pinakothek, Neue Pinakothek); State Museums, Berlim; Cleveland Museum of Art; J. Paul Getty Museum, Los Angeles; Solomon R. Guggenheim Museum, New York; Los Angeles County Museum of Art; Louvre Museum, Paris; The Metropolitan Museum of Art, New York; The Museum of Fine Arts, Boston; The Museum of Modern Art, New York; Opificio delle Pietre Dure, Florence; Philadelphia Museum of Art; Prado Museum, Madrid; Rijksmuseum, Amsterdam; State Hermitage Museum, St. Petersburg; Thyssen-Bornemisza Museum, Madrid; Whitney Museum of American Art, New York; The British Museum, London. Anexo C. 191

Universais147” (DIVUM), que deixa clara a posição de determinados museus quanto à devolução de alguns de seus objetos:

A comunidade internacional de museus compartilha a convicção de que o tráfico ilegal de objetos arqueológicos, artísticos e étnicos deve ser firmemente desencorajado. Devemos, no entanto, reconhecer que objetos adquiridos em épocas anteriores devem ser vistos à luz de diferentes sensibilidades e valores, reflexo dessa era anterior. Os objetos e obras monumentais que foram instalados décadas e mesmo séculos atrás em museus em toda a Europa e América foram adquiridos em condições que não são comparáveis com os atuais (ICOM, 2004, p. 4, tradução nossa).

Como apontado no documento, é preciso também refletir cada ideia à luz do contexto em que estão inseridas. As primeiras linhas demonstram que esses museus são contrários ao tráfico ilícito de artefatos, desde que ocorram após a consolidação das coleções dos grandes museus que estão envolvidos. Esse “desde que” não está escrito, mas está indicado na própria justificativa posterior que apela para “sensibilidade e valor” das épocas em que essas coleções foram formadas. E que valores são esses? O próprio documento dá um indício no final deste primeiro parágrafo, quando assinala que as condições daqueles períodos anteriores eram diferentes das condições atuais. Ora, essa preposição é um pouco óbvia, mas não está clara. Em relação à aquisição, no seguinte parágrafo, são citadas três vias: compra, presente ou partilha. De fato, como vimos no segundo capítulo, essas formas de aquisição realmente aconteciam. Porém, e os saques e roubos anteriores? De onde procedem alguns objetos que posteriormente foram comercializados? Após serem citadas algumas das formas de aquisição, seguiu-se a alegação de que esses artefatos “[...] tornaram-se parte dos museus que cuidaram deles e, por extensão, parte da herança das nações que os abrigam” (ICOM, 2004, p. 4, tradução nossa). Tal assertiva corrobora com a hipótese de que esses objetos são tão caros aos lugares onde se encontram atualmente exatamente porque fazem parte da sua história e não daquela dos povos antigos. São fragmentos dispersos de narrativas que juntos dão a ilusão de uma história maior, global, já que algumas dessas nações não possuem a antiguidade de muitos objetos que expõem, talvez por isso recorram à suposta universalidade. Por outro lado, os países que reclamam o retorno dos bens culturais não possuem o apelo à universalidade, pois são produtos dela e, por isso, recorrem ao seu passado e a sua antiguidade, já consolidados. Nos interrogamos como

147 “’Universal’ aplica-se a coleções que se destinam ou reivindicam a abrangência de todas as áreas do empreendimento artístico e de todas as civilizações” (LOYRETTE, 2009, p. 66, tradução nossa). Às vezes esses museus são referidos também como enciclopédicos, “[...] um método de apresentação herdado do Iluminismo” (LOYRETTE, 2009, p. 66, tradução nossa).

192 procederiam esses países se o caso fosse o contrário? Se o Peru, a Grécia e o Egito – que também recebem milhares de turistas por ano e frequentes visitas aos seus museus – fossem os detentores de monumentos e objetos históricos retirados da França, Inglaterra e Estados Unidos, por exemplo, estaria o argumento da universalidade ainda em voga?

Todas as culturas tendem a elaborar representações de culturas estrangeiras a fim de melhor dominá-las ou de alguma forma controlá-las. Mas nem todas as culturas fazem representações de culturas estrangeiras e de fato as dominam ou controlam. Este é o traço distintivo, a meu ver, das culturas ocidentais modernas (SAID, 2011, p. 172).

Ao que parece, o que está exposto ao grande público nos museus que evocam o universalismo como forma de propiciar um suposto “conhecimento universal” não é a história do Egito antigo (ou dos demais povos que lá estão representados), mas uma parte da história de determinados países no Egito, como meio de legitimar a posse sobre os seus bens materiais. Desse modo, Cuno (2008, p. 15, tradução nossa) reconheceu que “possessão é poder e as noções de propriedade incluem noções de controle”, embora ele tenha centrado na questão do controle governamental sobre as antiguidades, como se as instituições museais estivessem isentas desse tipo de controle. Neste caso, a sua afirmação procurou restringir a querela entre o Estado (governo egípcio) versus o Museu (alemão, inglês, dentre outros):

O que torna as antiguidades uma propriedade cultural de uma nação e não o legado artístico e cultural comum do mundo? Há apenas uma resposta: o poder. E o poder vem da autoridade estadual do governo. É uma questão de política (CUNO, 2008, p. 18, tradução nossa, grifo nosso).

Se é reconhecido que é uma questão de poder e política do governo egípcio, o que a diferencia dos demais países? Afinal, quem se auto declara “proprietário do legado artístico e cultural do mundo”? Não são esses os valores proclamados pelos museus universais? E as antiguidades que hoje estão em posse de museus estrangeiros, estão fora da esfera da autoridade governamental e política? A Declaração prossegue com a afirmação de que mesmo estando fora do seu local original os museus asseguram a sua devida contextualização, mas de qual contexto eles falam? Se observarmos a justificativa do Museu Egípcio de Turim para a reorganização da sua expografia, por exemplo, notamos uma vontade de responder às inquietações do público, mas ao visitarmos a exposição percebemos as mesmas lacunas de antes: nem todas as informações estão disponíveis, especialmente as que dizem respeito à forma de aquisição da sua imensa coleção. 193

Há uma menção na DIVUM que salienta a “importância da coleta pública” e traz como exemplo a escultura da Grécia clássica, para explicar que o gosto por essas obras foi possível pelo acesso a elas possibilitado pela sua exibição nos grandes museus. O documento encerra com o reconhecimento sobre os pedidos de repatriação e entende que eles devem ser julgados individualmente, embora salientem que “devemos reconhecer que os museus servem não apenas os cidadãos de uma nação, mas o povo de cada nação” e que “reduzir o foco de museus cujas coleções são diversas e multifacetadas seria, portanto, um desserviço para todos os visitantes” (ICOM, 2004, p.4, tradução nossa). No ato de publicação da DIVUM pela revista ICOM News, foram veiculados dois artigos com opiniões distintas sobre a declaração. O primeiro deles, intitulado “Os Tesouros da Cultura Mundial no Museu Público”, de Peter-Klaus Schuster, diretor geral dos museus estaduais de Berlim, expôs alguns argumentos que levaram à redação da Declaração. Ele refutou a ideia de análise individual dos casos de restituição148, pois considerou que “qualquer reivindicação de retorno incondicional ao local de origem de uma obra seria legalmente questionável e também não mostraria respeito pela história e pelo destino do objeto” (SCHUSTER, 2004, p. 4, tradução nossa). Isso porque ele tomou como exemplo um vaso grego ático datado do século V a.C., que em um dado momento teria sido transportado de Atenas à região da Etrúria, posteriormente escavado pelo Vaticano, vendido a um monarca prussiano – provavelmente um colecionador, embora as condições dessa venda não tenham sido especificadas – e, por fim, transferido para um museu público (o autor não mencionou a localidade). A sua indagação foi: “o vaso agora pertence a Atenas, Vulci, Roma ou Berlim?” (SCHUSTER, 2004, p. 4, tradução nossa). Não seria exatamente por isso que cada caso precisaria ser analisado separadamente, considerando a forma como o objeto deixou o local e através de que meios foi adquirido pelo museu, já que nem todos os objetos levados para outros locais possuem a mesma trajetória? A posição do autor é extremamente pertinente, mas nos leva a outra indagação: é correto manter um objeto em propriedade de um museu mesmo depois de descobrir que ele foi roubado ou exportado ilegalmente? Simplificações como: “agora que já está lá deveria continuar” ou “deve permanecer no seu local de origem” não dão conta da discussão complexa que a repatriação comporta. Schuster salientou também a importância das escavações como uma forma de prevenir alguns objetos do desaparecimento e/ou destruição, mencionando a “salvação” do Altar de

148 Diferentemente do documento original que utiliza a palavra repatriate, o autor optou pelo uso da palavra restitution no artigo, talvez por considerá-la mais coerente com as suas ideias. 194

Pérgamo (dedicado ao deus Zeus) pelos alemães, que foi descoberto na região atual da Turquia e reconstruído em Berlim, no século XIX. O discurso “missionário” de salvação está presente em outros momentos, no entanto, o que não foi mencionado foi o contexto político que levou a Alemanha a se apropriar do altar (mesmo que legalmente); os pedidos de retorno por parte da Turquia; e as condições de preservação do monumento. Em relação a sua preservação, partes do altar ficaram vulneráveis à degradação por terem sido guardadas em um bunker durante a Segunda Guerra Mundial, depois transferidas para a União Soviética após o fim da guerra e retornaram a Berlim em 1958149, no qual a restauração só foi possível em 1994150. Atualmente o salão principal onde se encontrava a escultura no Pergamon Museum está fechado para restauro, com previsão de abertura em 2020. Semelhante a esse caso, outro museu de Berlim, o Neues Museum, onde se encontra o busto da rainha egípcia Nefertiti, foi fechado durante a Segunda Guerra Mundial e destruído após sofrer ataques aéreos acometidos na cidade naquele período, com vários danos aos objetos, o que comprova que o argumento de melhores condições de segurança e salvaguarda desses monumentos nos atuais países não se sustenta, uma vez que ataques, roubos e conflitos não se limitam a um só território.

149 Informações e imagens disponíveis em: http://www.dw.com/en/berlins-pergamon-museum-will-spend-next- eight-years-without-its-famous-altar/a-36337653 Acesso em 26 abr. 2017. 150 Ver: http://www.dw.com/pt-br/peda%C3%A7o-da-gr%C3%A9cia-antiga-resplandece-em-berlim/a-1231682 Acesso em 26 abr. 2017. 195

Figura 31: Estátua egípcia em meio aos escombros causados pela guerra (Neues Museum; 17/11/1949).

Fonte: https://fr.wikipedia.org/wiki/Fichier:Bundesarchiv_Bild_183- S89884,_Berlin,_Neues_Museum,_Ruine,_%C3%84gyptische_Statue.jpg Acesso em 26 abr. 2017.

Ao se encaminhar para o final do artigo, Schuster elencou quatro categorias de restituição de obras de arte que se encontram nos museus: obras históricas que foram adquiridas legalmente; saques de guerra para fins de reparação ou troféu; perseguição (como os saques realizados pelos nazistas); e escavações ilegais e pilhagem. Ele afirmou que muitas obras já foram restituídas, inclusive as que foram comprovadas como pertencentes aos museus de Berlim. O outro artigo intitulado “A Declaração: uma questão contestada”, do arqueólogo e ex- Diretor Geral dos Museus Nacionais do Quênia, George Abungu, questiona a ideia central da Declaração. O seu argumento inicial corroborou com as últimas alegações do artigo de Schuster, uma vez que ele comentou sobre a origem suspeita da constituição de coleções de alguns museus ocidentais e sugeriu que os pedidos de repatriação151 não se estendessem em larga escala.

151 Diferentemente de Schuster, Abungu utiliza a palavra repatriation. 196

A denominação de alguns museus como universais foi contestada pelo autor: “os Museus Universais reivindicam ser universais com base em seu tamanho, suas coleções, quão ricos eles são?” (ABUNGU, 2004, p. 5, tradução nossa). Para ele, cada museu é digno de se considerar universal, já que “deve ter algo especial que o torne de valor universal para a humanidade” (ABUNGU, 2004, p. 5, tradução nossa), citando o exemplo dos Museu Nacionais do Quênia, com os quais ele teve experiência. Abungu afirmou que esses museus, por exemplo, não foram convidados a participar da Declaração, questionando se a universalidade da qual eles se auto proclamam compreende apenas a Europa e a América do Norte. Além disso, na sua análise, o documento parece ter sido elaborado como uma proteção à propriedade dos objetos que foram e ainda podem vir a ser reclamados, sinalizando “[...] uma forma de se recusar a dialogar sobre a questão da repatriação” (ABUNGU, 2004, p. 5, tradução nossa). Ao final, o autor sugeriu que os diretores desses museus se unam aos demais e discutam a repatriação ao invés de se separarem, como parece no tom da Declaração. Outro crítico da Declaração e da universalidade dos museus é o colunista do site de notícias Modern Ghana, Kwame Opoku, que possui várias análises sobre a relação entre os bens culturais e o colonialismo. No artigo “Declaração sobre a Importância e o Valor dos Museus Universais: Falha Singular de um Projeto Arrogante Imperialista” – publicado dez anos depois do documento – ele afirmou que a motivação da Declaração foi uma resposta às sucessivas reclamações da Grécia ao Museu Britânico para a devolução dos mármores, o que reuniu outras instituições com históricos semelhantes. Ele também enfatizou a falta de representantes de instituições africanas e asiáticas no documento e acusou os seus signatários de “diretores de museus egoístas do Ocidente”:

O que é realmente notável sobre DIVUM é que ela veio depois de cerca de quarenta anos da independência africana e usa uma linguagem que lembra os auges do colonialismo. O que a Declaração está dizendo é que não devemos perturbar a ordem no mundo dos museus deixada pelo colonialismo (OPOKU, 2013, p. 8, tradução nossa).

Para ele, a restituição é uma questão pertinente ao presente dos países que estão afastados de alguns de seus objetos mais icônicos, como a cidade de Benin (atual Nigéria) que teve muitos dos seus bronzes espalhados pela Alemanha, Inglaterra e Estados Unidos no século XIX152. Atualmente o Museu Etnológico de Berlim e o Museu Britânico são os

152 James Cuno (2008, p. 25, tradução nossa) mencionou a discrepância entre a produção dos relevos de bronze e da arte africana, no que tange à qualidade desses artefatos, o que “[...] levou alguns intelectuais europeus a proporem contatos muito antigos entre Benin e a Europa; de que outra forma, perguntavam-se, os africanos poderiam ter produzido? ”. 197 proprietários da maior parte desses bronzes, enquanto os demais estão em diferentes museus da Nigéria: “uma situação em que o Museu de Etnologia de Berlim tem mais Bronzes de Benin do que a cidade de Benin certamente deve ser visto por todos como errado” (OPOKU, 2013, p. 8, tradução nossa). Na sua concepção, não se trata de mudar ou julgar o passado, mas de reparar um dano que foi cometido no passado, neste caso, a invasão e pilhagem de objetos característicos daquela região. Ele insistiu que o pensamento colonial ainda enraizado em algumas instituições museológicas é o que permitiu a aparição desse tipo de documento. Outro ponto que o autor ressaltou foi o medo ou receio por trás das alegações dos diretores de museus de que a repatriação poderá esvaziar (ou mesmo “empobrecer”, como mencionado por Peter Burke) os seus acervos. Porém, já foi definido que os países não desejam a devolução de todos os objetos, o que seria praticamente impossível. A Grécia, por exemplo, enfatizou o retorno dos mármores e o Egito da pedra de Roseta e do busto da Nefertiti. Ao escrever esse artigo dez anos após a publicação da Declaração, Opoku refletiu sobre a validade da DIVUM nos dias atuais e questionou a posição de James Cuno em uma recente publicação (Museums Matter: in Praise of the Encyclopedic Museum), por não fazer nenhuma alusão à Declaração e nem comentar sobre a decisão do Museu J. Paul Getty em devolver a cabeça de Hades à Sicília153, apontando a não validade do documento. Ainda assim, a sua existência e as discussões que foram geradas a partir dele continuam sendo de extrema relevância nos casos de repatriação/restituição que ainda estão em voga:

Com esta morte inglória do DIVUM, os museus ocidentais podem agora considerar fazer o que deveriam ter feito já em 1960, o ano da independência africana: devolver alguns dos artefatos simbólicos e icônicos dos povos da África, Ásia e América Latina e começar a construir com eles relações benéficas baseadas no respeito mútuo e livres de racismo (OPOKU, 2013, p. 13, tradução nossa).

Existem inúmeros artigos e comentários de Opoku acerca da universalidade dos museus e da repatriação, reflexões válidas em torno dessa discussão. Contudo, ele parece nutrir uma aversão às ideias de Cuno, sempre o criticando. Em um artigo de 2015, intitulado “O Dr. Cuno realmente acredita no que ele escreve?”, Opoku escreveu que havia jurado não comentar mais sobre as opiniões de Cuno, mas que não poderia se calar diante de suas últimas

153 Trata-se de um fragmento de terracota que foi roubado durante a década de 1970 e adquirido pelo museu em 1985. A cabeça voltou à Sicília em 2016 e juntou-se à Vênus Morgantina, já repatriada cinco anos antes. Informações disponíveis em: http://news.getty.edu/press-materials/press-releases/hades-returns-to-sicily.htm / Acesso em 26 abr. 2017. 198 declarações em carta ao editor do New York Times154 sobre os ataques terroristas do Estado Islâmico (EI) às antigas cidades de Nimrud e Hatra. Nas palavras de Cuno (2015, tradução nossa): A Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura incentiva – e fornece um instrumento institucional para – a conservação de antiguidades dentro das fronteiras do Estado moderno que as reivindica. Esse estado, muito infelizmente, também tem a autoridade para vendê-los no mercado ilegal, danificá- los ou destruí-los.

Para Cuno, o antigo sistema de partage que dividia os achados arqueológicos entre os países era uma boa alternativa para a proteção dos mesmos, pois não estariam restritos em um só lugar, logo, seriam protegidos da destruição promovida pelo Estado Islâmico. No entanto, a Convenção da Unesco de 1970, a qual ele se refere, não prevê a destruição de objetos culturais pelos Estados. Ademais, nenhum local está a salvo de qualquer tipo de danos, ataques ou roubos, como vimos anteriormente. A própria atuação do Estado Islâmico é, de certa forma, imprevisível e não está restrita ao mundo não ocidental, como acompanhamos recentemente. A menção sobre as condições de segurança para a preservação do patrimônio cultural é um ponto comum invocado para negar os pedidos de repatriação em defesa dos “grandes museus”. O Egito, por exemplo, é sempre apontado como um país fundamentalista e de economia fraca. Em 1985, o então diretor, David Wilson, se referiu à Grécia como um “país de Terceiro Mundo”, logo, incapaz de prover a conservação do patrimônio cultural (KYNOURGIOPOULOU, 2011). Ignorando essas e outras acusações, em 2004, foi lançada em Atenas uma campanha intitulada “Parthenon 2004”, na esperança do retorno dos mármores para os jogos olímpicos que ocorreram naquele ano. A campanha teve apoio de atrizes, atores e políticos britânicos, mas fracassou em seu objetivo. Em 2009, o recém-inaugurado Museu da Acrópole, em Atenas, refez o pedido de devolução das esculturas ao Museu Britânico, que continuou com a sua posição de legalidade do direito de propriedade, complementando que que tais monumentos pertencem a todos e que a sua visitação no museu é totalmente gratuita, podendo ser estudada também online155. Também foi utilizada a justificativa das esculturas serem muito pesadas para viajar, o que poderia lhes ocasionar algum dano físico.

154 Disponível em: https://www.nytimes.com/2015/03/11/opinion/deploring-isis-destroyer-of-a-civilizations- art.html?_r=0 Acesso em 26 abr. 2017. 155 Essas informações estão disponíveis no site do Museu Britânico, que enfatiza a retirada legal dos mármores no século XIX e reafirma a sua posição contrária aos pedidos de repatriação. Disponível em: 199

Nesse sentido, poderíamos afirmar que estariam todos os museus contemplados nessa negativa? Comprovadamente não, pois em 2014 a instituição resolveu emprestar uma das estátuas que compõem os mármores à Rússia para ser exposta no Museu Hermitage de São Petersburgo (considerado um dos maiores museus do mundo), em comemoração ao seu aniversário de duzentos e cinquenta anos: “Neil MacGregor, diretor do Museu Britânico, compartilha parte da história da longa amizade entre os primeiros grandes museus do Iluminismo europeu156”.

Figura 32: Esq.: Estátua do deus dos rios Illissos, no Museu Hermitage. Dir.: placa no Museu Britânico indicando sobre o empréstimo da escultura.

Fonte: https://www.publico.pt/2015/01/07/culturaipsilon/noticia/marmores-de-elgin-a-grecia- contraataca-1681441 Acesso em: 04 abr. 2017.

O que o diretor do Museu Britânico não levou em consideração foi que em 2006, mais de duzentos objetos foram roubados do Museu Hermitage, estipulados no valor de cinco mil dólares157. Assim, a justificativa sobre uma pretensa “falta de segurança” como argumento

http://www.britishmuseum.org/about_us/news_and_press/statements/parthenon_sculptures.aspx Acesso em 04 abr. 2017. 156 Disponível em: http://british.museumblog.org/loan-of-a-parthenon-sculpture-to-the-hermitage-a-marble- ambassador-of-a-european-ideal/ Acesso em: 04 abr. 2017. 157 Disponível em: http://traffickingculture.org/encyclopedia/case-studies/state-hermitage-museum-thefts2006/ Acesso em: 15 jan. 2018. 200 para negar o empréstimo dos mármores aos gregos não os convenceu, e eles viram o empréstimo da escultura à Rússia como uma afronta ao seu povo. De fato, a justificativa de falta de segurança em alguns países comparado a outros já não possui mais validade. Nos últimos anos, aconteceram uma série de acidentes e fatalidades em diferentes regiões. Como vimos, durante a Segunda Guerra Mundial, vários museus de diferentes países foram atacados e destruídos. Após o fim da guerra, os alemães se empenharam em reconstruir esses espaços, como é o caso do Neues Museum (Novo Museu) e do Stadtschloss (Palácio da Cidade), que foi demolido nos anos 1950. Em abril de 1958, nos Estados Unidos, o Museu de Arte Moderna em Nova York pegou fogo, o que causou a morte de um operário o ferimento de alguns bombeiros. Em setembro de 1970, duas galerias do Museu Nacional de História Americana, em Washington, foram atingidas por um incêndio em setembro de 1970, causado por uma pane elétrica. Já o Museu Americano de Telefonia, na Califórnia, foi totalmente destruído em setembro de 2015. Na França, um pequeno incêndio atingiu uma das alas do Museu do Louvre, na década de 1990, provavelmente causado por um curto circuito, mas foi rapidamente controlado. Em agosto de 2015, um incêndio de grandes proporções ocorreu na Cité des Sciences (Cidade das Ciências), em Paris, considerado o maior museu de ciência da Europa. A causa foi uma obra que estava sendo realizada no edifício, e por isso o sistema de alerta contra incêndios se encontrava desligado no momento do acidente, que deixou dois bombeiros feridos. Recentemente, a Catedral de Notre-Dame, no centro de Paris, foi atingida por um grande incêndio, em 15 de abril de 2019. A catedral começou a ser construída no século XII, e só foi concluída quase duzentos anos depois. É uma das principais atrações turísticas da capital francesa e a mais visitada em todo continente europeu. Assim que o fogo começou, o local foi isolado e as pessoas que estavam no interior da catedral foram retiradas. No período da Revolução Francesa, ela havia sido atacada e quase destruída. A Revolução de Julho de 1830 (conhecida como as Três Gloriosas), posicionava-se contra o reinado absolutista de Carlos X, e durante os protestos a coleção egípcia do museu do Louvre foi atacada, as janelas do museu foram quebradas e alguns objetos roubados, mas foram recuperados posteriormente por Champollion (SENAC, 2013). Em 2013, vários incidentes ocorreram em museus e outros espaços culturais europeus, como um incêndio de grandes proporções no museu Cuming, em Londres, que destruiu a sua biblioteca e uma parte (pequena) da coleção. Na Itália, em março a Cidade da Ciência, em Nápoles foi totalmente destruída. O prédio foi reconstruído e reaberto em 2017. O Museu da 201

Resistência Dinamarquesa, em Copenhague também pegou fogo em abril, mas maior parte do acervo foi salvo. Em julho de 2017, três quadros originais da coleção do Louvre foram queimados em um incêndio na ilha francesa de Tatihou, provavelmente causado após a queda de um raio. As pinturas haviam sido emprestadas (a longo prazo) ao Museu Marítimo. No total, foram destruídas cerca de duzentas obras do acervo158. No início do mês de julho do mesmo ano, o Louvre sofreu com inundações após o rio Sena transbordar, devido às fortes tempestades que atingiram a cidade. Algumas obras do acervo foram danificadas, inclusive as que estavam na ala “Denon” (salas “Artes do Islã” e “Do Oriente Mediterrâneo ao período romano”), além de outros setores do museu. No continente asiático, o Museu de História Natural, em Nova Delhi, na Índia, teve o seu acervo destruído por um incêndio em abril de 2016159. No Egito, o Grande Museu Egípcio foi atingido por um incêndio no final de abril de 2018, em meio às obras de construção, provavelmente causado por faíscas de um equipamento de soldagem durante a instalação do sistema de ar condicionado. O fogo foi contido cerca de uma hora após o início e danificou apenas uma parte externa da estrutura do edifício160. O Brasil foi atingido por uma das maiores – senão a maior – tragédia nacional relacionada à história, à memória e ao patrimônio cultural: a destruição do Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro, causada por um incêndio que devastou cerca de noventa por cento do acervo que estava em exposição, acervo esse considerado de maior relevância nacional e internacional nas áreas de Antropologia, Arqueologia, Botânica, Etnologia, Geologia, História, Paleontologia e Zoologia. Com isso, ascendeu-se no país uma discussão que há anos vem sendo suscitada por parte dos pesquisadores e dos profissionais da área do patrimônio, que é o descaso das autoridades (nos seus sucessivos governos) em relação à preservação da memória. Todos esses exemplos ocorreram em diferentes períodos, regiões e circunstâncias diversas. Cabe ressaltar que nenhum museu, biblioteca, arquivo, centro cultural, igreja, castelo, mesquita, etc. estão imunes a tragédias ou catástrofes, sejam elas naturais ou intencionais. Por isso, é dever de todas as nações zelar por medidas de gestão e segurança do

158 Disponível em: https://news.artnet.com/art-world/fire-destroys-paintings-loaned-louvre-1030964 Acesso em 15 abr. 2019. 159 As informações sobre os incêndios ao redor do mundo podem ser encontradas em: https://www.bbc.com/portuguese/noticias/2015/12/151222_lista_museus_incendio_lgb Acesso em 15 abr. 2019. 160 Disponível em: http://english.ahram.org.eg/NewsContent/1/64/298782/Egypt/Politics-/Egypts-top-prosecutor- says-Grand-Museum-fire-was-c.aspx Acesso em 15 abr. 2019.

202 seu patrimônio cultural, investindo da maneira que podem em capacitação, treinamento e equipamentos, para que possam, dessa forma, auxiliar uns aos outros em momentos de calamidade. Como uma resposta a essas incessantes afirmações sobre a falta de condições da Grécia para uma adequada preservação dos mármores, foi inaugurado o Museu da Acrópole, projeto fruto de um concurso. A idealização do projeto do novo museu previu uma interação entre passado e presente, desde a escolha do local para a sua construção, a narrativa expográfico e a ênfase tanto nas antiguidades que estão in loco quanto as que estão fora da Grécia, pois ao longo do museu existem espaços vazios, indicando uma “expografia da ausência”:

A expografia proposta para o novo Museu da Acrópole é composta de grandes espaços, límpidos e com paredes externas transparentes em vidro. A vista é um ponto forte, pois o visitante está em constante diálogo com a paisagem local e pode observar a colina onde se encontra as ruínas da Acrópole. A galeria do Parthenon localiza-se no último andar do edifício, a espacialidade foi projetada coincidindo visualmente e geometricamente com a localização do templo na colina, assim, perceptivelmente o último andar fica um pouco deslocado no eixo central do prédio. Desta forma, a exposição demonstra a localização original dos objetos dentro do Parthenon (PIRES, 2018, p. 60).

A técnica expográfica que destaca a ausência nos e dos espaços foi evidenciada a partir da década de 1970, especialmente nos museus que representavam a história das guerras e do Holocausto, enfatizando a ausência ou mesmo o acúmulo dos objetos. Também pode ser considerada um recurso empregado em oposição à expografia do acúmulo, característica dos museus universalistas.

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Figura 33: Cariátides no Museu da Acrópole, com os espaços vazios.

Fonte: site oficial do Museu da Acrópole: https://www.theacropolismuseum.gr/en/content/walk- through-museum-archaeologist Acesso em: 15 out. 2019.

Na imagem acima observamos a disposição das estátuas, com a destaque para a que está faltando. Na parte exterior das ruínas da Acrópole, onde se encontram as cariátides, algumas foram retiradas e mantidas no interior do museu para sua melhor preservação e no lugar das esculturas originais foram instaladas réplicas. A utilização de réplicas por parte dos museus ainda é bastante questionável, especialmente se pensarmos no valor de autenticidade que são inerentes aos objetos museológicos. A questão de autenticidade161 tem sido abordada por diferentes autores, embora seja “[...] sintomático o próprio fato de que poucos têm sido os estudos produzidos com a intenção de pensá-la como um problema; e muitos os que a tomam como um dado existencial ou histórico” (GONÇALVES, 2007, p. 118). Para o antropólogo José Gonçalves (2007, p. 124), essa negativa à problematização da autenticidade também integra uma “estratégia retórica”, que está no cerne da formação das identidades nacionais.

161 “Estar fundado em si” (BAUDRILLARD, 1973, p. 85).

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Ao se valer da expressão “forma não-aurática de autenticidade”, Gonçalves sugeriu que se pensem nos modelos “inautênticos” como uma recriação do original, que não mantém, necessariamente, um vínculo mais profundo com o passado, como no caso dos objetos originais. Para analisar as diferentes concepções de autenticidade, o autor analisou a cidade colonial de Williamsburg162, nos Estados Unidos e a cidade de Ouro Preto, no Brasil, com o objetivo de evidenciar de que forma valores como autenticidade versus inautenticidade e aurático versus não-aurático são atribuídos, considerando ambos os casos como “construções culturais” (GONÇALVES, 2007, p. 131). As ideias de Gonçalves estão ancoradas no célebre artigo A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica, do filósofo alemão Walter Benjamin, originalmente publicado em 1936. Nele, o autor analisou o papel das modernas técnicas de reprodução como responsáveis pelo “abalo” da ideia de autenticidade, que está diretamente relacionada à originalidade da obra de arte e destacou o papel do Cinema e da Fotografia ao afrontar essas noções. Para Benjamin (1987, p. 167), uma obra de arte original carrega uma característica que a distingue das demais reproduções que ela receba: a existência única, que nos permite percorrer a sua história e trajetória. Como o original carrega consigo “[...] a autoridade da coisa, seu peso tradicional” (BENJAMIN, 1987, p. 168), a sua condição como testemunho histórico é anulada com a reprodução técnica, ou seja, ocorre o que ele chamou de perda da aura163, definida como “uma figura singular, composta de elementos espaciais e temporais: a aparição única de uma coisa distante, por mais próxima que ela esteja” (BENJAMIN, 1987, p. 101). A aura – que confere autenticidade à obra de arte – é equivalente ao sentido que atribuímos ao objeto antigo, que possuí um status de “[...] testemunho, lembrança, nostalgia, evasão” (BAUDRILLARD, 1973, p. 81), ainda que seja “[...] puramente mitológico na sua referência ao passado”. Contudo, é essa referência ao tempo que marca a sua função dentro do sistema dos objetos, como vimos anteriormente. O objeto antigo possui uma presença autêntica que o faz alcançar um status de totalidade e completude (especialmente no espaço do museu): “o tempo do objeto mitológico

162 Colonial Williamsburg, no estado da Virgínia, é considerado um museu “vivo” a céu aberto, com o objetivo de retratar fielmente o cotidiano da cidade a partir do século XVIII. Segundo uma declaração de seu diretor, em 1941, “a autenticidade tem sido praticamente [nossa] religião”, (LOWENTHAL, 1996, p. 166, tradução nossa). Para Lowenthal (1996), Williamsburg trata antes da história do que do patrimônio. 163 Benjamin (1987, p. 99) mencionou pela primeira vez o conceito de aura e a sua destruição pelas modernas técnicas de reprodução em um texto de 1931, intitulado “Pequena História da Fotografia”, o que ele chamou de “fenômeno aurático”.

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é o perfeito: ocorre no presente como se tivesse ocorrido outrora e por isso mesmo acha-se fundado sobre si, ‘autêntico’” (BAUDRILLARD, 1973, p. 83). Daí a sua diferenciação dos objetos funcionais, que são eficazes e atuais. Ao contrário, o objeto antigo carrega consigo uma “aura” do mito de origem, manifesta através da “nostalgia das origens” e a “obsessão pela autenticidade” (BAUDRILLARD, 1973). Essa autenticidade é guiada por informações sobre a data e a origem da sua produção, a sua autoria, a sua utilização, entre outras: “[...] é a fascinação por aquilo que foi criado (e que por isto é único, já que o momento da criação é irreversível)” (BAUDRILLARD, 1973, p. 85). Para Benjamin (1987, p. 170), os responsáveis pela perda da aura foram os movimentos das massas modernas, com as sucessivas reproduções em série das obras de arte e imagens que eram associadas à “[...] necessidade de possuir o objeto, de tão perto quanto possível, na imagem, ou antes, na sua cópia, na sua reprodução”. Como as obras de arte, ao serem retirados de seu local original, os objetos que compõem uma coleção museológica são manipulados dentro das instituições museológicas para criar um novo contexto, diferente daquele ao qual pertenceram no passado: “é precisamente o isolamento do objeto de seu contexto genealógico que permite a experiência do ‘reencantamento’ através do olhar museico” (HUYSSEN, 1994, p. 53). Como se o museu ganhasse uma espécie de “isenção” no repasse das informações correlatas sobre as formas de aquisição de seus objetos, agora recriados e ressignificados no novo espaço geográfico: a exposição. Para James Clifford (1994, p. 77), o ideal seria que toda a história da coleção e de sua exposição fossem “[...] um aspecto visível de qualquer mostra”:

[...] a “autenticidade” cultural ou artística tem tanto a ver com um presente inventivo quanto com um passado, sua objetivação, preservação ou reavivamento. E em ambas as discussões, a definição de valor cultural é mostrada como uma questão de debate político histórico (CLIFFORD, 1985, p. 242, tradução nossa).

Clifford enfatizou as diferenças entre as classificações de artefatos ou objetos em museus de etnologia ou de arte, nos quais esse último se preocupava com informações básicas como o autor da criação e a sua originalidade: “enquanto no museu etnográfico o objeto é culturalmente ou humanamente ‘interessante’, no museu de arte é principalmente ‘belo’ ou ‘original’” (CLIFFORD, 1985, p. 242, tradução nossa), como mencionamos no Capítulo 2. Em O sistema dos objetos, Baudrillard (1993, p. 98) pontuou que o fim ideal da apropriação dos objetos para a sua incorporação em uma coleção certamente vislumbra a posse do objeto “raro” ou “único”, porém, sinalizou que “a qualidade específica do objeto, seu valor de troca, depende do domínio cultural e social”. Já a singularidade absoluta do objeto de 206 uma coleção reside no fato dele ser possuído por um indivíduo específico (ou no caso dos museus, por uma instituição específica), o que não impossibilita a sua projeção em outros objetos da mesma coleção. Para ele, (1993, p. 99), essa projeção reitera a ideia de que “[...] colecionamos sempre a nós mesmos”. Por isso muitos autores tratam com desconfiança as instituições que se denominam “universais”, mas quando são solicitadas para devolver objetos originais (“raros” e “únicos”) ou aceitarem “cópias” em seu lugar, negam veementemente. Assim, geralmente os casos de repatriação e/ou restituição que se efetivaram, na maioria das vezes referem-se a objetos de porte menor, nos quais existem inúmeros outros (mesmo que não sejam idênticos, são semelhantes em suas formas e funções). Seguindo as concepções de Benjamin (1987, p. 171), a era da reprodutibilidade técnica proporcionou à obra de arte a sua emancipação, pois antes ela estava presa à tradição do ritual (mágica ou religiosa), raramente sendo produzida para ser exposta ao olhar. Porém, “à medida que as obras de arte se emancipam do seu uso ritual, aumentam as ocasiões para que elas sejam expostas” (BENJAMIN, 1987, p. 173), possibilitando, assim, a sua ampla reprodução. Nos museus, essa reprodução foi evidenciada especialmente a partir da década de 1980, quando houve uma grande proliferação de museus e um aumento do número de visitantes, ampliando os recursos de marketing e, consequentemente, o comércio dentro dessas instituições através de suas lojas e cafés: “a obra de arte original surge como um meio para vender seus múltiplos derivados, e a reprodutibilidade como uma estratégia para aureolar o original” (HUYSSEN, 1994, p. 44). No caso do Egito antigo, onde as suas referências estão presentes nos mais variados âmbitos, os souvenirs comercializados nos museus que mantêm coleções dessa tipologia auxiliam no reforço do apelo ao original (MACDONALD, 2003). A exemplo do que já ocorria nas oficinas dos grandes museus europeus, durante o reinado de D. Pedro II, o Brasil adquiriu o primeiro grupo de moldes em gesso oriundos da Europa, inclusive do Museu do Louvre. Esses moldes foram produzidos do início do século XIX até o final da década de 1920, destinados à Academia Imperial de Belas Artes (posteriormente Escola Nacional de Belas Artes). Atualmente eles estão distribuídos entre o Museu D. João VI e o Museu Nacional de Belas Artes, nas suas duas Galerias de Moldagens164. Graças a sua autonomia, a reprodução técnica consegue ser explorada de formas que não poderiam ser aplicadas ao original, como a aproximação dos indivíduos da própria obra.

164 Informações disponíveis em: https://mnba.gov.br/portal/exibicoes/galeria-moldagens Acesso em: 20 dez. 2019. 207

Essa proximidade deveria ser mais explorada pelos museus, ao incorporar em seus acervos réplicas ou cópias com diversos fins, inclusive para serem tocadas – não somente como um recurso exclusivo para pessoas com deficiência visual –, mas por todos os públicos. Experiência semelhante pode ser encontrada no Please Touch Museum, fundado em 1976, na Filadélfia, Estados Unidos. O público alvo do museu são as crianças de até oito anos de idade e a sua missão é a de “mudar a vida de uma criança enquanto descobrem o poder de aprender através do brincar”165. Entre o acervo encontram-se mais de vinte e cinco mil brinquedos e jogos interativos que estimulam as crianças a desenvolver o pensamento crítico, a colaboração, a comunicação e a criatividade, com vistas à aprendizagem. São réplicas em miniatura que representam locais como hospital, jardim, lanchonete, supermercado, labirinto, rios, entre outros cenários possíveis. Os programas educativos diversificados propõem atividades que procuram atender às necessidades específicas de cada criança, promovendo à inclusão e à acessibilidade. Para as crianças que possuem autismo ou dificuldade de aprendizagem, por exemplo, a instituição abre em dias e horários específicos. Eles diminuem as luzes e os sons, disponibilizam brinquedos sensoriais e profissionais capacitados para que as crianças possam vivenciar a experiência do museu. Na América do Sul, o Museu de História da Arte (MuHar), situado em Montevidéu, no Uruguai, possui uma coleção de réplicas que estão expostas com as demais. Cerca de 80% do acervo da instituição é composta por objetos originais e as réplicas foram confeccionadas a partir dos modelos primários. Entre as réplicas mais conhecidas encontram-se a Vitória de Samotrácia e a Vênus de Milo (que estão no Museu do Louvre, em Paris); o busto de Nefertiti (que está no Neues Museum, em Berlim); e o Discóbolo, do escultor grego Míron, que possui inúmeras cópias em diferentes museus, já que o original foi perdido. O museu tem um caráter didático e ocupa quatro andares, nos quais três são destinados às exposições de coleções da Pré-História, da Mesopotâmia, da Síria, do Irã, da Grécia (Clássica e Helenística), do Egito, de Roma, da Índia, da China, do Japão, da América Pré-Colombiana e da Arte Africana166. O próprio Museu Britânico realiza experiências sensoriais com os seus visitantes, através do programa Object handling sessions: Hands On desks (que anteriormente era chamado de Please Touch). Aberto em janeiro de 2000, atualmente o programa funciona diariamente, das 11 às 16 horas, em seis salas do museu, onde os visitantes são guiados por

165 Informações disponíveis no site do museu: Acesso em 14 nov. 2018. 166 Informações disponíveis no site da instituição: http://muhar.montevideo.gub.uy/ Acesso em: 19 novembro 2018. 208 voluntários (mais de noventa) e podem manusear as réplicas dos objetos das coleções (MCINTYRE, 2008)167.

Figura 34: Sessão de manipulação de objetos no Museu Britânico.

Fonte: https://www.britishmuseum.org/pdf/Hands%20On%20Report%20online%2030-12- 2010.pdf. Acesso em: 19 novembro 2018.

No Brasil, o Museu Egípcio e Rosacruz, de Curitiba e o Museu de Arqueologia Ciro Flamarion Cardoso, localizado na cidade de Ponta Grossa, no Paraná, possuem acervos majoritariamente compostos por réplicas sobre a civilização egípcia. Nesse segundo, há também uma sala dedicada à história da América pré-colombiana. As réplicas são confeccionadas pelo próprio diretor, o arqueólogo Moacir Elias Santos, a partir de moldes originais. A entrada do museu possui colunas que recriam um templo egípcio e os objetos estão protegidos por vitrines, todos identificados com legendas que afirmam se tratarem de réplicas. O museu possui um programa educativo que visa, através da exposição desses objetos, aproximar as culturas antigas do público brasileiro (COSTA, 2013).

167 Entre abril de 2006 e março de 2007, foi realizada uma pesquisa de público com os participantes do programa. Foram preenchidos 734 formulários que incluíam diferentes informações, inclusive sobre a percepção dos indivíduos em relação ao objeto original e a réplica. Disponível em: https://www.britishmuseum.org/pdf/Hands%20On%20Report%20online%2030-12-2010.pdf. Acesso em: 19 novembro 2018. 209

Embora exemplos como esses sejam cada vez mais frequentes, ainda existe bastante resistência frente à adoção de réplicas, ao toque ou ao manuseio dos objetos, pois muitos museus funcionam como “templos sagrados”, como as antigas exposições imortalizadas pelos antropólogos ao longo do século XIX. Nesses lugares, quase nada é permitido: “é proibido tocar, é proibido fumar, é proibido aproximar-se, é proibido fotografar, é proibido rir, é proibido comer, é proibido correr, é proibido falar alto, é proibido sentar no chão” (GIRAUDY; BOUILHET, 1990, p. 13), como se algumas exposições ainda imortalizadas pelos antropólogos ao longo do século XIX. Fiona Candlin (2004, p. 73) examinou essa atitude que ela chamou “resistência institucional ao toque”. De fato, os grandes museus que recebem centenas de visitantes ao longo do dia não podem autorizar o toque desenfreado dos objetos, por questões óbvias de segurança e conservação. Por isso, o investimento na confecção réplicas e a ampliação da sua utilização por todos os tipos de público, respeitando, claro, as suas limitações, pode ser uma boa alternativa, inclusive nos embates sobre repatriação e restituição. Essas cópias que os museus tanto resistem atualmente já eram um recurso empregado na Antiguidade, especialmente pelos romanos:

[...] na falta de objetos originais, os romanos ricos encomendavam cópias de obras famosas aos ateliês de artistas gregos. Foram feitas, assim, cópias em série de centenas das obras gregas mais famosas e pouquíssimos eram os romanos capazes de distinguir – ou que faziam caso em distinguir – entre original e cópia (SUANO, 1986, p. 13).

É interessante notar como as pessoas agem ao visitarem os museus. Alguns adultos e crianças têm a “necessidade do toque”, que pode ocorrer quando ninguém está olhando ou mesmo no meio de uma multidão de espectadores. Sobre esses comportamentos, o fotógrafo francês Stefan Draschan desenvolveu alguns projetos, como o People Matching Artworks, no qual ele fotografou pessoas que estavam vestidas com cores ou estampas semelhantes às utilizadas por personagens ou nas paisagens retratadas em esculturas e obras de arte. Outro projeto do fotógrafo, People Touching Artworks, registrou vários visitantes tocando os objetos expostos e até mesmo se apoiando nos suportes expositivos – e vejam que estamos falando de grandes e reconhecidos museus europeus, que possuem vigias e câmeras de segurança em todas as salas. 210

Figura 35: Visitantes no Museu d´Orsay (França) e Neues (Berlim), 2017.

Fonte: https://stefandraschan.com/ Acesso em 18 nov. 2018.

Ao mencionar a destruição da aura, Benjamin (1987, p. 169) afirmou que “no interior de grandes períodos históricos, a forma de percepção das coletividades humanas se transforma ao mesmo tempo que seu modo de existência”. Do mesmo modo, Huyssen (1994, p. 51) refletiu:

[...] a noção de relíquia mesmo antes do museu e de qualquer tipo de mise-em-scène é em si um mito originário. [...] Os objetos do passado sempre chegaram ao presente através do olhar que os captou; a sedução e o segredo que eles contêm nem sempre estão no objeto em estado de pureza, como haveria de estar, mas se encontram quase sempre no espectador e no presente. É o olhar vivo que atribui aura ao objeto, apesar de essa aura depender da materialidade e da opacidade deste.

Clifford (1994, p. 77) também salientou que “as categorias do belo, do cultural e do autêntico mudaram e estão mudando”, e assim como os exemplos que trouxemos, ansiamos por novas experiências museais, outros modos de exibição e articulação entre o público e a cultura material ou imaterial, sem perder de vista um dos principais objetivos dos museus: o processo comunicacional e educacional.

211

4.4 PODER-SABER: A CONSTITUIÇÃO DOS DISCURSOS DA REPATRIAÇÃO

Recorrer aos preceitos teórico-metodológicos propostos por Michel Foucault (1989, p. 183-184), especialmente em relação ao discurso e ao poder nos auxiliou na compreensão da forma como o poder é exercido por parte dos intelectuais que conduzem a discussão sobre a repatriação do patrimônio cultural, incluindo Zahi Hawass: “o indivíduo é o efeito do poder e, simultaneamente, ou pelo próprio fato de ser um efeito, é seu centro de transmissão. O poder passa através do indivíduo que ele constituiu”:

Ao analisar um discurso mesmo que o documento considerado seja a reprodução de um simples ato de fala individual, não estamos diante da manifestação de um sujeito, mas sim nos defrontamos com um lugar de sua dispersão e de sua descontinuidade, já que o sujeito da linguagem não é um sujeito em si, idealizado, essencial, origem inarredável do sentido: ele é ao mesmo tempo falante e falado, porque através dele outros ditos se dizem (FISCHER, 2001, p. 207).

Segundo as concepções de Foucault (1986, p. 126), não é preciso procurar no discurso algo que ficou despercebido, algo oculto: “por mais que o enunciado não seja oculto, nem por isso é visível”. É preciso interrogar o discurso pela sua própria linguagem, pelo que realmente foi dito. Talvez por isso seja confuso, às vezes, analisar as afirmações de alguns dos intelectuais que lidam com os processos de repatriação, pois nos levam a perguntar: será mesmo que ele (a) disse isso?

Não existe um discurso do poder de um lado e, em face dele, um outro contraposto. [...] Podem existir discursos diferentes e mesmo contraditórios dentro de uma mesma estratégia; podem, ao contrário, circular sem mudar de forma entre estratégias opostas” (FOUCAULT, 1988, p. 112-113).

Nesse sentido, entendemos que a questão da repatriação está inserida em uma série de enunciados que nos permitem compreendê-la como um dispositivo, tal como estipulado pelo filósofo:

[...] um conjunto decididamente heterogêneo que engloba discursos, instituições, organizações arquitetônicas, decisões regulamentares, leis, medidas administrativas, enunciados científicos, proposições filosóficas, morais, filantrópicas. Em suma, o dito e o não dito são os elementos do dispositivo. O dispositivo é a rede que se pode tecer entre estes elementos (FOUCAULT, 2000, p. 244, grifo nosso).

O conjunto de enunciados (unidades do discurso) não está fechado em si e nem é definitivo, mas ele reconhece o que pode ser aceito: “se sabe o que pode e o que deve ser dito, dentro de determinado campo e de acordo com certa posição que se ocupa nesse campo” 212

(FISCHER, 2001, p. 203). Neste sentido, fica clara a atuação dos intelectuais na condução desses debates, pois estes estão inseridos nas redes de relações de poder que a repatriação envolve. A própria escolha por utilização de termos como “repatriação” ou “restituição” já denota uma posição frente a essa discussão, indicando o pertencimento a uma determinada ordem do discurso. Através dos discursos que foram apresentados e de suas aproximações, semelhanças e discrepâncias, notamos que estes se complementam, alguns buscam apoio uns nos outros, formando uma rede: “o que faz com que o poder se mantenha e que seja aceito é simplesmente que ele não pesa só como uma força que diz não, mas que de fato ele permeia, produz coisas, induz ao prazer, forma saber, produz discurso” (FOUCAULT, 1979, p. 8). A análise de Foucault nos auxiliou, também, na percepção das possibilidades de emergência dos discursos relacionados à repatriação, “[...] no próprio campo do exercício do poder” (FOUCAULT, 1988, p. 24). Assim, os discursos de Zahi Hawass e Salima Ikram, por exemplo, denotam uma convergência de elementos que os tornam possíveis no interior das disputas do campo discursivo. Por essa razão, a questão da repatriação no Egito não atinge a maior parte da população, exatamente porque o seu discurso não é destinado a ela: “o discurso não é simplesmente aquilo que traduz as lutas ou os sistemas de dominação, mas aquilo porque, pelo que se luta, o poder do qual nos queremos apoderar” (FOUCAULT, 2013, p. 10). O apelo dos intelectuais egípcios em relação ao nacionalismo confirma que “o antigo Egito não apenas serve a um propósito político no imaginário público, como também é usado para fins retóricos em discursos políticos” (LANGER, 2017, p. 190, tradução nossa). Isso fica evidente no tratamento destinado à população egípcia em comparação com os turistas estrangeiros como o próprio Hawass já havia declarado em outras ocasiões. No complexo de Gizé, por exemplo, o acesso dos egípcios às pirâmides é muito mais afastado do que a entrada principal para os turistas: “isso foi justificado por Hawass, alegando que os egípcios se comportavam de maneira desrespeitosa em relação a sua herança antiga” (SHENKER, 2016), o que Christian Langer (2017) denominou de colonização interna. Ainda que haja rompantes de resistência no interior dessas práticas discursivas, ela mesma não está deslocada das relações de poder: “é preciso pensar os problemas políticos dos intelectuais não em termos de ‘ciência/ideologia’, mas em termos de ‘verdade/poder’” (FOUCAULT, 1979, p. 11). Essa verdade/poder se encontra no cerne do discurso hegemônico do Ocidente, que produz regimes de verdade (FOUCAULT, 1979). Nesse sentido, tanto Zahi Hawass, quanto Mohammed Ali ou mesmo o ex-presidente Abdel Nasser estão inseridos nessa ordem, se valendo de suas posições no Egito para exercerem relações de poder. Hawass 213 faz questão de ser tratado como um intelectual e de estar cercado por pessoas influentes (o que pode ser observado em seu próprio comportamento), pois ele é um produto da sociedade ocidental, não se diferencia dela. Através da sua trajetória no capítulo anterior, percebemos que, mesmo com a suas atividades em relação à preservação do patrimônio cultural egípcio, ele não rompe com o discurso colonial, pelo contrário, ele o reafirma para reiterar a sua posição de prestígio dentro do jogo de exercício do poder, o qual ele desempenha muitas relações: através de suas amizades políticas; das viagens pelo exterior; da relação estreita com a mídia e com grandes veículos de comunicação; da participação ativa nas redes sociais; do trânsito e aproximação com os grandes museus aos quais ele acusa; da sua proeminência nos sítios arqueológicos do Egito; entre outras estratégias utilizadas por ele. Exemplo disso é a sua participação na modificação da principal legislação – parte do dispositivo – que rege a proteção das antiguidades no Egito, que se aproxima da iniciativa de diretores de grandes museus europeus na redação de um documento contra a repatriação. Isso só foi viável devido à posição que eles ocupam na sociedade, enquanto intelectuais que ocupam cargos específicos dentro de instituições culturais e políticas, autorizados a falar. Se a repatriação se tornasse efetivamente viável no Egito, abarcando a maior parte da população – que poderia falar por si mesma –, poderíamos, então, afirmar que estaríamos entrando em “[...] um novo ‘regime’ no discurso e no saber”, constituindo “[...] uma nova política da verdade”? (FOUCAULT, 1979, p. 11). Esperamos que sim, que de alguma forma a questão da repatriação amplie o lugar de fala e, principalmente, de ação, para que esses impasses não se limitem ao campo discursivo – necessário, é claro, para a sua afirmação –, mas que possam ser certificados a partir de intervenções efetivas, com rumos para cooperação e um consenso maior entre os países, além de formas de reparação.

4.5: ESFORÇOS CONJUNTOS PARA A REPATRIAÇÃO

Em linhas gerais, como proteção legal para a preservação dos bens culturais, os países podem adotar controles seletivos de exportação (como o Canadá, o Japão e o Reino Unido), restrição total à exportação ou embargo (como em alguns países da América Latina e a China) ou declarar propriedade nacional alguns tipos de objetos, mesmo os que ainda não foram descobertos (como é o caso das antiguidades pré-colombianas): “o que todas essas leis têm em comum é o conceito de ‘patrimônio cultural nacional’ como algo importante para a nação como um todo e distinto da propriedade privada ou posse” (HERSCHER, 1999, p. 214

118). Além dessas iniciativas, as convenções e regulamentações da Unesco e acordos bilaterais entre os países auxiliam na resolução dos conflitos suscitados pela disputa do patrimônio cultural. Como o período do Imperialismo, as mudanças e reflexões advindas das duas grandes guerras mundiais tiverem repercussão também no campo do patrimônio cultural. A preocupação com os saques e a destruição de monumentos, objetos e obras de arte fizeram com que os países voltassem os olhos aos seus próprios bens culturais e a relação destes com outros países e outras realidades. Nesse contexto, surgiram organizações como a ONU – Organização das Nações Unidas e a UNESCO – Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura, em 1945; o ICOM – Conselho Internacional de Museus, entre 1946/47; e o ICOMOS – Conselho Internacional de Monumentos e Sítios, organização ligada à UNESCO, em 1964, que organizaram encontros e eventos com o propósito de debater as questões sobre o patrimônio cultural. As recomendações e medidas normativas que nasceram dessas reuniões são chamadas Cartas Patrimoniais e os países que participantes são denominados de estados membros, ou seja, “designa os Estados (no sentido de nação) que se comprometem a praticar as normas e recomendações aprovadas nas Convenções Internacionais” (UFRGS; SPH, 2007, p. 25). Essas medidas servem como ferramenta para a melhoria das ações empreendida pelos estados membros em relação ao seu patrimônio cultural, não sendo entendidas como normas jurídicas punitivas. Podemos destacar a Convenção, Regulamento e Protocolo para a Proteção dos Bens Culturais em caso de Conflito Armado (Convenção de Haia), ocorrida nos Países Baixos, que de maneira geral, afirmou o compromisso dos países contratantes em assegurar a salvaguarda dos bens culturais situados em seu território ainda em tempos de paz, para que sejam tomadas as medidas adequadas caso venha a ocorrer um conflito armado. O artigo 4º do documento faz um prelúdio à outra Convenção que iria ocorrer anos mais tarde, em 1970, sobre a exportação e importação de bens culturais, quando menciona que os países devem prevenir e proibir qualquer tipo de roubo, pilhagem ou vandalismo contra seu patrimônio. O Egito assinou a Convenção de Haia em 30 de dezembro de 1954, sendo membro da Unesco desde 04 de novembro de 1946. Em dezembro de 1956, surgiu a Recomendação de Nova Delhi, que teve origem na Conferência Geral da Unesco e propõe “que todos os vestígios arqueológicos sejam estudados e, eventualmente, preservados e coletados” (UNESCO, 1956:01). Esta carta é importante pois destaca o compromisso de cada Estado na proteção de seus bens arqueológicos, mas também 215 salienta a importância das trocas com a comunidade internacional, além de fomentar a participação dos museus nesse debate, o que nos remete às questões relacionadas ao tema central deste trabalho sobre a possibilidade de repatriação desses bens. Atualmente o Egito possui acordos com universidades internacionais que têm a permissão de trabalhar e pesquisar em seu território, mas há muito tempo o país sofre com as escavações clandestinas e o tráfico ilícito de antiguidades. Para as escavações arqueológicas que ocorrerem após essa normativa, a Unesco recomendou que os produtos dessas pesquisas permaneçam em território nacional, mas sinalizou a possibilidade de ceder alguns objetos a um pesquisador habilitado que os destine a centros científicos públicos por um período determinado, além de recomendar que “cada Estado-Membro168 deveria considerar a possibilidade de ceder, trocar ou enviar para depósito em museus estrangeiros, objetos que não apresentem interesse para as coleções nacionais” (UNESCO, 1956, p. 7), o que seria uma boa alternativa para as instituições que mantém coleções egípcias. A Recomendação de Paris, datada de novembro de 1964, se refere às medidas destinadas a proibir e impedir a exportação, a importação e a transferência de propriedades ilícitas de bens culturais que, entre outras medidas, alerta para a colaboração mútua sobre a repatriação dos bens culturais que foram ilicitamente exportados e comenta sobre a utilização de publicidade em relação ao bem cultural desaparecido para o conhecimento do público, instrumento esse bastante utilizado por Zahi Hawass. Essa Recomendação deu origem à Convenção que ocorreu em Paris em novembro de 1970 que, dentro outras medidas, chamou a atenção para a ética e a cooperação entre os estados membros: “considerando que os museus, bibliotecas e arquivos, como instituições culturais que são, devem velar para que suas coleções sejam constituídas em conformidade com os princípios morais universalmente reconhecidos169” (UNESCO, 1970). Como prevenção, o documento enfatizou a preocupação que os Estados devem ter com a manutenção de um inventário nacional de seus bens e a supervisão das escavações arqueológicas. Segundo o artigo quinze da Convenção, os estados membros podem dar continuidade aos acordos que já foram feitos em relação à restituição de bens removidos, mesmo antes da sua entrada em vigor. O Egito é membro da convenção desde abril de 1973.

168 Os estados membros correspondem às nações que “se comprometem a praticar as normas e recomendações aprovadas nas Convenções Internacionais” (IPHAN, 2004). 169 Posteriormente, o ICOM (Conselho Internacional de Museus) publicou em 1970 uma Ética da Aquisição e em 1986 o Código de Ética Profissional, constantemente revisado. Ambos documentos devem servir de base para uma conduta apropriada por parte dos museus. 216

Em 1978, foi organizado o Comitê Intergovernamental para a Promoção do Retorno dos Bens Culturais aos seus Países de Origem ou sua Restituição em caso de Apropriação Ilícita, de caráter consultivo. Formado por vinte e dois estados membros da Unesco, o documento oriundo dessa reunião prevê o pedido de restituição ou retorno de quaisquer bens culturais que tenham sido apropriados de forma ilícita ou durante uma ocupação colonial ou estrangeira. No Artigo terceiro do seu Estatuto são definidos como bens culturais “os objetos e documentos históricos e etnográficos, incluídas as obras de artes plásticas e decorativas, os objetos paleontológicos e arqueológicos e os espécimes zoológicos, botânicos e mineralógicos” (UNESCO, 1978: 2). O Artigo prevê que os estados membros do Comitê ou associados à Unesco possam requerer uma restituição ou o retorno de um bem que tenha sido apropriado ilicitamente durante uma ocupação estrangeira ou mesmo colonial, desde que esse bem “[...] tenha uma significação fundamental do ponto de vista dos valores espirituais e do patrimônio cultural do povo” (UNESCO, 1978: 2). Caso seja de interesse de algum Estado requerer um artefato cultural, o Comitê aconselha as tentativas de negociações diretas com o Estado que atualmente possui determinado objeto. Se ambos não entrarem em um consenso, o caso poderá ser submetido ao Comitê por intermédio de um formulário padrão de solicitação170, contendo a descrição do objeto; o local onde se encontra atualmente; o país solicitante; o seu status legal; o seu estado de conservação; algumas referências e documentação; além de informações referentes ao modo e ao período em que o objeto deixou o seu local de origem e às tentativas de negociações anteriores. Um ano após os acontecimentos da “Primavera Árabe”, em 2011 – em especial dos ataques de vandalismo e dos saques que ocorreram no Museu Egípcio do Cairo – o ICOM lançou uma publicação intitulada Lista Vermelha de emergência de bens culturais egípcios em risco171, com o objetivo de “[...] ajudar os profissionais de arte e patrimônio e os policiais a identificar objetos egípcios que estão protegidos por legislações nacionais e internacionais” (ICOM, 2011). As listas vermelhas não estão destinadas apenas ao Egito172 e também não contém uma listagem exaustiva de objetos, pois são muitos de variados estilos e épocas. Dessa forma, ela descreve algumas categorias ou tipos de objetos que possuem maior

170 O Comitê especifica que deve ser solicitado apenas um objeto por formulário. Caso se trate de uma coleção, a mesma deverá ser tratada como “uma entidade” (ICPRCP, 1986, s.p.). Anexo D. 171 Emergency Red List of Egyptian Cultural Objects at Risk – Anexo D. 172 Outras publicações de Listas Vermelhas incluem os objetos arqueológicos do oeste africano, os bens culturais da América Latina, as antiguidades do Iraque, do Afeganistão, da Líbia, da Síria, do Iêmen, do Peru, da Dominica e do Camboja, os objetos culturais ameaçados da América Central e do México, do Haiti, da China e da Colômbia. O Brasil também está elaborando a sua Red List. 217 probabilidade de serem comprados e vendidos ilegalmente. Além de policiais e de agentes aduaneiros, a lista também foi destinada para museus, colecionadores e casas de leilões. A lista apresenta cinquenta objetos já inventariados sob a guarda de instituições reconhecidas que servem de guia para ações futuras. Esses objetos estão separados segundo a divisão temporal dos períodos que compreendem a história da civilização egípcia e suas categorias incluem estátuas (de cerâmica, metal e pedra), vasos e recipientes, objetos do cotidiano (de diversos materiais), elementos funerários (inclusive restos humanos e múmias de animais), papiros, elementos arquitetônicos, moedas, manuscritos, fragmentos têxteis e acessórios, como joias. O Egito recebe apoio através de instrumentos internacionais que o orientam e possui acordos bilaterais com países como a Áustria, a China, Cuba, o Equador, a Grécia, a Índia, a Itália, o Peru, a Suíça, entre outros. Também possui associações e iniciativas que se desenvolvem no próprio país, como a Organização do Patrimônio Cultural Egípcio (The Egyptian Cultural Heritage Organisation – ECHO), uma instituição filantrópica que se sustenta através de doações públicas e privadas. Foi fundada em 1998, a partir da união entre paixão e necessidade, idealizada pelos arqueólogos Fekri Hassan e Geoffrey Tassie, com o objetivo de estruturar as questões relacionadas ao patrimônio cultural do Egito, como as técnicas e as práticas de escavação, a conservação e a preservação dos sítios arqueológicos, a legislação pertinente e a gestão dos visitantes173. Segundo a Organização, os principais fatores que ameaçam a conservação e a preservação do patrimônio cultural egípcio são:

- Chuva ácida e intemperismo - Poluição - Práticas agrícolas modernas e recuperação de terras - Pilhagens - Projetos de demolição, construção e desenvolvimento - Expansão urbana causada por uma população sempre crescente - Terremotos, inundações e outros desastres naturais - Turismo - Deterioração causada por uma mudança de ambiente devido à escavação - Salinização - Níveis altos do lençol freático

173 Para maiores informações, acesse o site da Organização: http://www.e-c-h-o.org 218

- Falta de dinheiro e recursos - Sebakhin (escavadores de tijolos de barro antigos e lavagem de tijolos de barro, usados como fertilizante ou na fabricação de novos tijolos de barro) - Extração de Matéria Prima - Treinamento militar e guerra - Processos de erosão natural - Construção de represas

Assim como a Grécia, o Egito está investindo na construção de novos museus e espaços com melhores condições de segurança para abrigar as suas antiguidades, como o Grande Museu Egípcio (Grand Egyptian Museum – GEM), previsto para inaugurar em 2020. Esse empreendimento contará com amplos espaços para receber exposições permanentes e temporárias, uma biblioteca, um centro de pesquisa, laboratórios de restauração e pequenos museus destinados às crianças e às pessoas com deficiência, além de parques, jardins, loja e restaurantes. A aposta é que o seu Centro de Conservação seja o maior do Oriente Médio.

Figura 36: Projeção do Grande Museu Egípcio, no Cairo.

Fonte: site oficial do GEM: http://gem.gov.eg/

Obviamente o público estrangeiro que frequenta os museus egípcios não precisa ser convencido de sua importância para a sociedade. No entanto, a população egípcia merece atenção em relação a essa sensibilização. Através de recentes pesquisas aplicadas por meio de 219 questionários que objetivavam compreender a relação dos egípcios com os seus museus – pessoas de diferentes faixas etárias e provenientes de várias regiões do país – foi constatado que a maioria delas nunca havia sequer visitado um museu e muitos ainda desconheciam a presença de um museu local em sua região. A ideia de que esses lugares seriam guardiões dos tesouros antigos do Egito os intimida, pois eles estariam a serviço dos turistas estrangeiros, totalmente afastados da realidade da maioria da população egípcia: “os estudos concluem que, embora os museus provinciais estejam fazendo um esforço para se envolver com as comunidades locais, suas vozes podem atingir apenas uma porcentagem muito baixa de seus públicos-alvo” (RASHED, 2017, p. 4, tradução nossa). O autor apontou para algumas mudanças nos últimos anos, principalmente com o crescente interesse dos egípcios em conhecer mais sobre sua história e participar de trabalhos voluntários em organizações não governamentais ou mesmo na arqueologia. Entretanto, a partir de 2011 a situação da economia piorou, o que levou ao aumento das taxas de desemprego e da miséria. Logo, quem mal consegue se sustentar ao longo dos meses não possui qualquer interesse para atividades de lazer ou entretenimento. Para Rashid (2011), a morosidade desses processos no Egito ocorre pela burocracia, pelo centralismo e pelo sistema governamental corrupto. A sua sugestão é insistir na participação e no envolvimento da comunidade nas ações museais e na criação de museus com tipologias e narrativas diferentes das que são comumente apresentadas, centradas na história e na arqueologia do Egito. Investir em museus de Ciências e Tecnologia ou História Natural e diversificar os públicos, além da renovação dos museus que já existem (o que tem sido feito nos últimos anos). Poderia ser criado um Conselho Nacional/Supremo de Museus para o Egito, no qual o “[...] seu papel poderia ser consultivo, principalmente com foco no planejamento geral dos museus de acordo com as necessidades e expectativas da sociedade” (RASHED, 2017, p. 9, tradução nossa).

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CONCLUSÃO

Como essas novas condições podem ser concebidas – agora que o “silêncio” do Oriente está quebrado, agora que a etnografia, como Leiris sugeriu, pode ser multidirecional, agora que a autenticidade, tanto pessoal quanto cultural, é vista como algo construído em relação aos outros? (CLIFFORD, 1980).

“Se você veio para mudar nossos costumes, vá embora; do contrário, seja bem- vindo.” (Mensagem de um chefe kwagiulth para Franz Boas).

Não foi nem um pouco fácil reunir todas as complexidades que a questão da repatriação comporta, ainda mais se levarmos em conta a abrangência das disciplinas aqui tratadas, como a Arqueologia, a Antropologia, a Egiptologia, a História e a Museologia. No entanto, a interdisciplinaridade dessas áreas auxilia para a convergência das ideias sustentadas. Como dito no início do trabalho, todo museu é feito de seleção. Isto é, de narrativas selecionadas. Significa que, ao optar por representar um determinado sujeito ou grupo através de um ou mais discursos, outros acabam ficando de fora ou apenas se tornam expectadores da sua própria história. Todo o projeto político de disputa sobre determinadas narrativas e acervos se traduz em um projeto de educação museal, pois pensar no papel educativo dos museus é pensar, também, nos discursos que o museu está agenciando, e quais disputas estão sendo travadas. Nesse sentido, os pedidos de repatriação representam, entre outros desejos, uma demanda por justiça, com múltiplas solicitações em diferentes contextos, em alusão a uma memória ferida, atualmente considerada “[...] uma poderosa força histórica” (ZIEGLER, 2011, p. 27). Pontuamos no início do trabalho que a nossa ideia não era fazer um julgamento de valor aos pedidos que devem ou não ser atendidos nas solicitações para repatriação, até porque isso foge à nossa competência. Nesse sentido, o principal objetivo buscado pela pesquisa foi demonstrar de que forma foram construídos e disseminados os inúmeros discursos que permeiam essa problemática, sobretudo, em relação ao patrimônio cultural do Egito. 221

Em meio aos casos não solucionados que analisamos, encontramos iniciativas em que os pedidos de repatriação e/ou restituição foram acatados. A partir da atuação do Comitê Intergovernamental da Unesco, em 1983, a Itália devolveu ao Equador mais de dez mil artefatos do período pré-colombiano, após sete anos de discussões. Em 1987, a Alemanha devolveu à Turquia sete mil tabletes cuneiformes. Os Estados Unidos também devolveram diferentes artefatos a países como o Egito, o Iraque e o Peru. Em 2012, vários objetos retornaram ao Peru após a devolução feita pelo Museu de História Natural Peabody, de Yale, em uma negociação que durou cerca de dois anos – embora outros pedidos tenham ocorrido em 1918 e 1920. Os objetos foram levados de Machu Picchu em 1912, pelo professor de Yale, Hiram Bingham, em uma expedição patrocinada pela Universidade e pela National Geographic Society: “Yale afirma que Bingham teve permissão para remover os artefatos do presidente peruano e que o Código Civil do Peru de 1852 transferiu permanentemente o título para Yale” (MCINTOSH, 2006, p. 199), embora o Peru afirme que se tratava de um empréstimo. Atualmente essas antiguidades estão expostas no Museu Machu Picchu – Casa Concha, em Cusco, criado para essa finalidade. Partindo das reflexões de Nora (1993), os museus não são lugares de memória, mas de história, já que tudo que referimos como memória já se tornou história: “a necessidade de memória é uma necessidade da história” (NORA, 1993, p. 14). Nesse sentido, a questão da repatriação atualmente emerge como uma necessidade histórica de direito de memória, no seu sentido coletivo. É a aceitação e o reconhecimento de uma história violenta, cheia de lutas e embates, muitas vezes desiguais. Exemplo disso é a conjuntura histórica e geográfica pertinente à própria demanda dos casos de repatriação. Afinal, ninguém nunca questionou tão veementemente os motivos que levaram a Europa a pedir o retorno de suas obras de arte e objetos da cultura material, que também foram retirados de seus países em circunstâncias diversas. Ninguém questiona a viabilidade de retorno do patrimônio cultural quando se trata de países europeus. Quando Napoleão empreendeu saques à Itália, apenas Vivant Denon pareceu se opor à restituição das obras de arte. Sobre o período nazista, há um consenso que as obras deveriam (e ainda devem) retornar às suas famílias ou aos museus de suas cidades, como quando a judia Maria Altmann decidiu processar o governo austríaco pela posse da obra de arte “Woman in Gold” (A dama dourada), do artista austríaco Gustav Klimt, roubado de sua família após a invasão da Áustria pelos nazistas, bem como outros quadros de sua coleção. Ao empreender uma jornada que 222 envolveu a Europa e os Estados Unidos, na qual ela conseguiu reaver cinco quadros em 2006, a sua história virou filme e ganhou um livro. Ao desaparecer do Museu Louvre, no início do século XX, o quadro da Mona Lisa atraiu mais visitantes para observar o espaço vazio deixado na parede do que quando a obra estava exposta: “ele colecionava ausências. Para ele, as ausências eram mais intensas, vibrantes e reais do que as presenças que as acompanhavam” (GEKOSKI, 2015, p. 09). A França criou “projetos de reparação” para determinados grupos, mas não previu necessariamente a repatriação. Exemplo disso são as atividades desenvolvidas no Museu do Louvre e do Quai Branly, que investem em novos processos museológicos colaborativos. Recentemente o país reconheceu que metade das obras africanas que atualmente estão em seu território foram espoliadas, no entanto, não inseriu o Egito em seu projeto para a repatriação, pois corrobora com a noção de que o “Egito também é universal”, logo, a sua história pertence a todos, mas, ao mesmo tempo, não pertence a ninguém. Ou pelo menos vincula-se mais ao Ocidente do que aos egípcios, afinal, a sua população atual “só compartilha do mesmo território que os seus antepassados”. O Egito não era universal, ele foi universalizado; é uma grande diferença. Trabalhar sob a perspectiva da descolonização – seja ela no campo político, científico ou cultural – nos permite um distanciamento dos modelos já pré-concebidos de dominadores versus dominados, por exemplo, inserindo ambos no mesmo espaço e no mesmo tempo, agindo, sofrendo e produzindo relações de poder. Já a noção antropológica da Museologia e os exemplos por ela colocados são extremamente importantes, como o de curadoria compartilhada, por exemplo, experiência que vem sendo desenvolvida em algumas instituições em parceria direta com os povos e as comunidades cuja cultura material e imaterial estão representadas no interior dos museus (esse é um processo que merece um aprofundamento maior, pois pode ser utilizado pelos museus como uma estratégia para não repatriar ou restituir). Algumas iniciativas podem ser observadas em museus etnográficos, que cederam espaço para o diálogo com as comunidades ali representadas, o que a professora americana Mary Louise Pratt (1992) denominou como zona de contato, ou seja, a aproximação e a relação estabelecida entre diferentes povos em um determinado espaço, no qual o museu foi posteriormente contemplado pela análise de James Clifford, no seu artigo “Museus como zonas de contato”. Uma experiência que o surpreendeu foi através de sua visita a uma exposição no Centro Cultural U’mista, no qual o antropólogo foi confrontado ao se deparar 223 com uma narrativa singular, que em conjunto com os objetos apresentava discursos políticos de uma história coletiva, estimulando “[...] o papel construtor do espectador” (CLIFFORD, 2009, p. 286). Mais do que ícones – como definidos pelo “sistema arte-cultura” – que estão ali para serem apreciados ao gosto e olhar e estéticos, esses objetos o inquietaram, ressaltando o seu compromisso político e histórico (CLIFFORD, 2009). Devido à tradição museológica ocidental, ainda é difícil para algumas instituições pensar em modos distintos de representação e apresentação dos objetos no espaço expositivo, tanto para os profissionais de museus quanto para os seus visitantes. A ênfase na conservação dos objetos ainda está estritamente limitada às técnicas ocidentais de preservação e exposição, discursos esses veiculados pelo ICOM através da inserção de conflitos teóricos e políticos ao longo de sua atuação. Em suas resoluções, os museus europeus facilmente encontram alternativas para não ter que devolver os objetos ou mesmo reformularem suas abordagens em relação a determinados itens do acervo. Insistir na mudança de seus parâmetros e pressupostos teórico-metodológicos é o melhor caminho, assim como insistir na discussão sobre a repatriação. A efetivação do retorno das antiguidades egípcias desejadas parece estar longe de acontecer, seja através de uma devolução ou mesmo de um empréstimo formal. Com isso, os egípcios (e outros povos envolvidos na disputa pela repatriação) devem pressionar as instituições museológicas; levar esses casos para a mídia; fomentar a opinião pública, pois assim os museus serão obrigados a repensar a sua postura, como aconteceu com o Museu Egípcio de Turim, no qual após inúmeras indagações sobre o motivo de sua proeminência na cidade e o desconhecimento sobre a história de suas coleções levou a sua equipe a pensar e reformular toda a concepção expográfica do museu. Entretanto, o que nós gostaríamos de ver admitido por essa e outras instituições é que parte de suas coleções foram provenientes de saques, roubos, pilhagens, troca de favores, etc., para além da “boa vontade” das doações dos sujeitos que são mencionados nas legendas expositivas ou dos “feitos heroicos” dos primeiros aventureiros e arqueólogos. Ademais, ao invés de só publicarem notas oficiais em seus sites institucionais ou cederem parcas declarações acerca da negativa de empréstimo ou devolução das antiguidades, levar esses casos para o interior dos museus, em suas narrativas, como o Museu da Acrópole poética e museograficamente fez. Uma proposta mais ambiciosa seria, de fato, a expectativa pelo o empréstimo ou pela devolução dos objetos mais significativos aos seus países de origem, mas pelo panorama que tentamos esboçar sabemos que essa hipótese é praticamente inviável. A produção de réplicas 224 para compor o acervo também não é aceita por muitos museus. O que poderia ser feito, neste sentido, é uma forma de retratação na própria narrativa expografia dos grandes museus que exibem esses objetos, como legendas ou notas explicativas que contextualizem a maneira como o objeto se estabeleceu naquela instituição. Não se trata nem de repatriação, nem de restituição, mas de reparação. Reparação de uma longa história de abusos, de apagamentos e de silenciamentos. Afinal, quem torna a cultura material inteligível? Se julgarmos que “[...] não existe um contexto ao qual seus objetos devessem necessariamente estar afixados ou presos” (GORDON; SILVA, 2005, p. 105), estamos propensos a pensar outras formas de apresentação desses acervos. No entanto, em relação às coleções de antiguidades egípcias, não se trata apenas de uma crítica à descontextualização desses acervos nos museus, que podem ser encontrados nos mesmos territórios “de origem”, mas uma crítica a um discurso enraizado direcionado a sua cultura:

É importante lembrar que a cultura material é descontextualizada assim que é trazida para um ambiente de museu. É a interpretação que precisa ser verdadeira em relação à evidência, localizada com especificidade histórica e honesta em sua declaração de qualquer especulação (HUYSSEN, 1994, p. 106).

Julgamos que mencionar/questionar/problematizar saques, espólios, repatriação de objetos fora de seus contextos originais, entre outras demandas patrimoniais, não diz respeito apenas a uma ocultação narrativa, mas ao cumprimento de uma hierarquia informacional nos discursos dos museus, que negam intencionalmente informações, no mínimo, fundamentais: muitos desses objetos foram, sim, roubados. E não, eles não serão devolvidos. Se essas informações fossem inseridas nos textos de apresentação das exposições, nas legendas, nos catálogos, qual seria a percepção do público em relação a esses objetos, em se tratando de museus que diariamente recebem um número expressivo de visitantes oriundos de todas as partes do mundo, seja na Alemanha, no Egito, na França, na Inglaterra ou na Itália? Para muitas sociedades, o não retorno ou a negativa de empréstimo dos bens culturais é uma lembrança constante da atribuição de “falta de capacidade” para cuidar do seu próprio patrimônio; de seu próprio passado espoliado.

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REFERÊNCIAS

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245

APÊNDICE A – Cronologia histórica do Egito antigo

PERÍODO DINASTIAS Período Thinita (2920-2575 a.C.) I, II Reino Antigo (c. 2575-2134 a. C.) III, IV, V, VI Primeiro Período Intermediário (c. 2134- XVII, XVIII, IX, X, XI 2040 a.C.) Reino Médio (c. 2040-1640 a.C.) XII Segundo Período Intermediário (c. 1540- XIII, XIV, XV, XVI, XVII 1532 a.C.) Reino Novo (1550-1070 a.C.) XVIII, XIX, XX Terceiro Período Intermediário (1070-712 a. XXI, XXII, XXIII, XXIV, XXV C.) Período Saíta (664-525 a.C.) XXVI Período Tardio (525-332 a.C.) XXVII, XXVIII, XXIX, XXX, XXXI Período Ptolomaico (304-30) Imperadores romanos (30 a.C.- 395 d.C.) Período Bizantino (395-640) Período Islâmico (640-1250) Período Mameluco (1250-1497) Período Otomano (1517-1805) Período Moderno (1805-até o presente) Fonte: Elaborado pela autora a partir de BAINES; MÁLEK, 1996.

246

APÊNDICE B – Lista de diretores do Serviço de Antiguidades

SERVIÇO DE ANTIGUIDADES

Diretores franceses Diretores egípcios

Auguste Mariette (1858– Mostafa Amer (1953–1956)

1881) Gaston Maspero (1881–1886) Abbas Bayoumi (1956–

1957)

Eugène Grébaut (1886–1892) Moharram Kamal (1957– 1959)

Jacques de Morgan (1892– Abd el-Fattah Hilmy (1959)

1897)

Victor Loret (1897-1899) Mohammed Anwar

Shoukry (1960–1964)

Gaston Maspero (1899–1914) Mohammed Mahdi (1964–

1966)

Pierre Lacau (1914–1936) Gamal Mokhtar (1967–

1971)

Étienne Drioton (1936–1952)

ORGANIZAÇÃO DAS ANTIGUIDADES EGÍPCIAS

Gamal Mokhtar (1971–1977)

Mohammed Abd el-Qader Mohammed (1977–1978)

Shehata Adam (1978–1981)

Fuad el-Oraby (1981)

Ahmed Khadry (1982–1988)

Mohammed Abdel Halim Nur el-Din (1988)

Sayed Tawfik (1989–1990)

Mohammed Ibrahim Bakr (1990–1993)

247

CONSELHO SUPREMO DE ANTIGUIDADES

Mohamed Abdel-Halim Nur el-Din (1993–1996)

Ali Hassan (1996–1997)

Jaballah Ali Jaballah (1997–2002)

Zahi Hawass (2002–2011)

Mohamed Abdel-Fattah (de Julho a Setembro de 2011)

Mostafa Amin (de 29 de Setembro de 2011–2013)

Mohammad Ibrahim (2013–?)

Mostafa Waziri (a partir de Setembro de 2017)

MINISTÉRIO DAS ANTIGUIDADES

Zahi Hawass (2011)

Mamdouh Eldamaty (a partir de Junho de 2014)

Khaled El-Enany (2016)

Fonte: Elaborado pela autora (2019).

248

ANEXO A – Lei Egípcia n. 177, de 1983.

LAW NO. 117 OF 1983

AS AMENDED BY LAW NO.3 OF 2010 PROMULGATING THE ANTIQUITIES' PROTECTION LAW

(Published in the Official Gazette on February 14,2010 )

INTRODUCTION

The progress of countries is measured by their success in keeping hold of their culture and heritage, and 1 think Egypt is one of the very few countries in the world maintaining her cultural patrimony. We have been able, through a great effort led by Farouk Hosni, the Minister off ulture, to preserve and offer this heritage to the world as evidence of the magnificence of this great country, on whose land the most important civilization in existence was bout. This civilization is in the heart of every human being on earth. The French newspaper, Le Figaro, published an article some time ago commending the quality of restoration and maintenance of Egyptian monuments, as well as new discoveries made by an Egyptian team. The world is following our efforts in building museums, managing archaeological sites. conducting archaeological awareness programs and repatriating smuggled antiquities. I think the most important issue for us all is to protect Egypt’s cultural heritage, which previously was unsecured and at the mercy of looters and thieves. This spurred the construction of more than 36 warehouses with world-class maintenance, restoration and electronic guarding, and which are equipped with conservation and photography labs that make the objects within them av le for scholarly use. Moreover, we started registering this heritage through a national project led by trained, conscientious youths at the Antiquities Registration Center. We created more than 29 units at airports, seaports and border crossings in order to prevent the smuggling of antiquities from within the country after we found that most of the antiquities that leave Egypt are being smuggled through ports near Cairo and 249

Alexandria. We also employed about 8000 new guards and for the first time they are well paid, so they will ensure the protection of Egyptian cultural heritage. Mr. Farouk Hosni, Minister of Culture, formed a committee in 2003 with top archeologists, legal experts and public figures to change the antiquities law. We have held meetings and discussions for the last 8 years until finally we completed the preparation of this law. It was then sent to the State Council and the Council of Ministers, and then to the People’s Assembly, which seek to modify the terms of law and not the law as a whole. Among the most important of the terms under discussion is the abolishment of the agreement that foreign missions could keep 10% of their discoveries, as well as more extensive efforts to prevent and criminalize trading in antiquities and the need for citizens to register the antiquities they possess within six months of the law’s promulgation. We established a new department to address this and to receive registration requests from citizens, in addition to a media campaign to make citizens aware of their responsibility to record and examine what they have. Now, the executive regulation of this law is being prepared, through which the new terms can be implemented at a high level. Some antiquities have also now been copy written for use commercially and only the Supreme Council of Antiquities is allowed to reproduce antiquities at a 1:1 scale. I, like many archaeologists, wish that the penalty for theft and smuggling antiquities was more severe because the theft of antiquities is also theft of the honor of Egypt and Egyptian history. Regrettably, the current penalty will not deter the bleeding of antiquities out of this country. In general, however, we have taken a serious step in order to preserve the heritage of Egypt. Here I thank all the members of the People’s Assembly from the opposition, independents, and the National Party for their great interest in discussing the antiquities law and for its approval. I hope that all citizens help to maintain this heritage and guide us to any antiquities that arc still at large. There will he a remunerative reward for those who preserve the heritage of their country. The memory of the homeland is the right of future generations, and our duty to them is to keep this memory alive and vibrant. Zahi Hawass

NOTIFICATION FROM THE LEGAL COUNSELLOR OF THE SUPREME COUNCIL OF ANTIQUITIES This is to notify that in accordance with the provisions of the Egyptian laws. The attached translation will be a mere guiding translation. Therefore, In case of the occurrence of any difference between the Arabic text and the translated one, reliance will be on the Arabic text. June 2010 ACHRAF El-ACHMAWI

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LAW NO. 117 OF 1983, AS AMENDED BY LAW NO. 3 OF 2010 PROMULGATING THE ANTIQUITIES’ PROTECTION LAW

In the Name of the People The President of the Republic After having reviewed the Constitution, The Civil Code, The Penal Code, Law No. 529 for 1953 on Organization of Antiquities’ Service, amended by Law No, 192 of 1955 and Law No. 27 of 1970, Law No. 86 for 1956 concerning mines and quarries, Law on Customs Promulgated by Law No. 66 of 1963, Law No. 93 of 1973 concerning the General Budget of the State, Antiquities’ Protection Law No. 117 of 1983, Law No, 10 of 1990 concerning Expropriation of property for the public benefit. Law of the General Sales Tax Promulgated by Law No. 11 of 1990, Environmental Law No. 4 of 1994, Law on the Protection of Intellectual Property Rights Promulgated by Law No. 82 of 2002, Law of the Demolition of Ramshackle Buildings and Facilities and Preservation of Architectural Heritage No. 144 of 2006, Law of Unified Building No. 119 of 2008, and Presidential Decree No. 82 of 1994 to establish the Supreme Council of Antiquities, and after the approval of the Council of Ministers, and based on the view of the Council of State, Decreed The People’s Assembly has approved the following Law and we have issued it.

ARTICLE I Provisions of ARTICLE I, II and III of the promulgation Law and ARTICLES: 1, 4, 5, 6, 7, 8, 10, 16, 17, 25, 32, paragraph c of ARTICLE 34, and ARTICLES 35, 36, 39, 41, 42, 43, 44 and 45 of Antiquities’ Protection Law No. 117 of the Year 1983 shall be replaced by the following provisions. The words “Authority” and “to the Authority” shall be replaced by “the Council” and “to the Council” as well as the term “Head of the Authority” and “Antiquities’ Authority” shall be replaced by “Head of the Council” and “Supreme Council of Antiquities” wherever they mentioned in the referred- to antiquities’ law.

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ARTICLE II In the application of the provisions of this Law, the capitalized words and terms shall have the following meanings: • “Minister” means competent Minister in culture affairs. • “The Council” means Supreme Council of Antiquities. • “Head of the Council” means Minister of Culture, Chairman of the Supreme Council of Antiquities’ Board of Directors. • “Board of Directors” means the Supreme Council of Antiquities’ Board of Directors, • “Secretary General” means the secretary general of the Supreme Council of Antiquities. • “Competent Permanent Committee” means, according to the conditions set forth in the law, either the permanent committee concerned with the ancient Egyptian, Greek and Roman Antiquities or the permanent committee concerned with Islamic and Coptic monuments. • “Antiquity Sacrum”means places or lands adjacent to the antiquity determined by the Competent Permanent Committee to ensure protection for the antiquity. • “Antiquities Public Utilities Lands” means the State-owned lands, which are proved to be archaeological lands according to archaeological evidences existing in the same. • “Adjacent Places or lands” means the places or lands lying outside the range of the archaeological sites, places or lands, and it extends to any distance determined by the Council which are considered as such by a decree to be issued by the Supreme Council for Planning and Urban Development whether for inhabited areas or any other areas to ensure protection for the antiquity. • “Approved Beautifying Lines of the Antiquity”means the area surrounding the antiquity and extends to a distance determined by the Council to ensure the aesthetic aspect of the antiquity. Said lands shall be treated as archaeological lands. ARTICLE III The Minister is entitled to issue the executive regulation and the necessary decrees to enforce Said Law. ARTICLE IV The following shall be added to Antiquities’ Protection Law No. 117 of 1983: • Article 5 bis, • The sentence: “Without prejudice to the right of the owner of such real antiquity to have a fair compensation” at the beginning of Article 13, • The sentence: “in accordance with terms and conditions set by Supreme Council for Planning and Urban Development upon recommendation from the Minister” at the beginning of Article 20, • The sentence: “in accordance with terms and conditions set by Supreme Council for Planning and Urban” at the beginning of Article 22. • Articles 36 bis, 44 bis, 45 bis and 52. 252

ARTICLE V The provisions of Article (9) of Antiquities’ Protection Law No, 117 of 1983 shall be deleted. ARTICLE VI This Decree shall be published in the official Gazette, and shall enter into force as from the day following the date of publication. This Law shall be stamped with the State Seal and shall be executed as one of its laws. Issued at the Presidency of the Republic on February 14, 2010. President of the Republic Hosni Mubarak

Chapter One - GENERAL REGULATIONS

ARTICLE 1 In application of the provisions of this Law any real-estate or chattel is considered an antiquity whenever it meets the following conditions; 1. To be the product of Egyptian civilization or the successive civilizations or the creation of art, sciences, literature, or religions that took place on the Egyptian lands since the pre-historic ages and during the successive historic ages till before 100 years. 2. To be of archaeological or artistic value or of historical importance as an aspect of the different aspects of Egyptian civilization or any other civilization that took place on the Egyptian lands. 3. To be produced and grown up on the Egyptian lands and of a historical relation thereto and also the mummies of human races and beings contemporary to them are considered like any antiquity which is being registered in accordance with this Law. ARTICLE 2 Any real-estate or chattel of a historic, scientific, religious, artistic, or literal value may be considered an antiquity by a decree from the Prime Minister upon recommendation of the competent Minister in cultural affairs, whenever the State finds a national interest in keeping and preserving such real-estate or chattel, this without being bound with the time limit specified in the hereinbefore article. Said estate or chattel shall hereby be registered in accordance with the provisions of said law, and in this ease the owner of the antiquity shall be deemed liable for the preservation of such and has no right to make any change therein as from the date such owner is notified of said decree by a registered letter attached with a receipt.

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ARTICLE 3 Lands owned by the State which were considered archaeological in pursuance to decrees or decisions prior to effecting said law or lands which are considered as such by a decree to be issued by the Prime Minister upon recommendation of the competent Minister in cultural affairs are deemed archaeological lands. By a decree from the Prime Minister upon recommendation of the competent Minister in cultural affairs, any land may be excluded from being one among the archaeological lands or public service facilities, lands set for antiquities on condition that the Council attested that such lands is free from antiquities or lies out of the lands of the beautifying line authorized for the antiquity. ARTICLE 4 Archaeological Buildings are the buildings which were registered in pursuance to decrees and decisions prior to effecting said law or which are registered as archaeological buildings by a decree in accordance with the provisions of this law. The Council—whenever the State finds such a national interest—may adjust the status of the tenants of historic buildings or archaeological places, the expropriation of which was not determined, and related rent relationships shall be ended within one year as from the date of the procedure of status adjustment by finding suitable alternative places or giving them a fair compensation. ARTICLE 5 Taking into consideration the provision of ARTICLE 32 of this law, the Council is the exclusive authority concerned with all that is related to antiquities’ affairs at its museums and stores, at archaeological sites and areas, over or under earth’s surface, at the local waters and the Egyptian regional waters and any antiquity discovered by accident The Council undertakes exploration and excavation in lands even if owned by others as well as any cultural, tourist, commercial or promotional activities relating to antiquities to be exercised at the archaeological sites or inside the antiquity sacrum. The executive regulation of this Law regulates the exercise of these activities realizing rehabilitation and security of the archaeological site. ARTICLE 5 bis The SCA has the right to terminate any contractual relationship of any occupancy, whether residential, commercial, industrial or any other occupancy at archaeological sites and areas, whoever the relationship parties are, against a fair compensation. Presence of any type of street vendors or any type of animals in the archaeological sites is prohibited except in places and in accordance with terms and conditions stipulated in the executive regulation of this law. ARTICLE 6 All real-estate and movable antiquities and lands which are considered archaeological lands are considered public property except the wakfs and private properties. The ownership, possession or disposal of is not permitted except in the terms and conditions stipulated in said law and its executive regulation. 254

ARTICLE 7 Two permanent committees arc set up in the SCA, one of which is concerned with the ancient Egyptian, Greek and Roman Antiquities and the other is concerned with Islamic, Coptic and Jewish monuments. The executive regulation shall specify the formation and competences of each committee. ARTICLE 8 Trade, sale or commerce in antiquities including all antiquities held as private property shall be prohibited in accordance with the provisions of this law or legal existing possession at the time of implementation of said law or such which originates in accordance with its provisions. The owner or the possessor of any antiquity may not dispose of, allow deterioration of or leave such except after getting a written consent from the Council within 60 (sixty) days at least in accordance with the procedures, terms and conditions, of which a resolution from the Minister is issued, otherwise such act shall be illegal. In all cases it is provided that such trade, sale, commerce in, or disposal of any antiquity shall transferring said antiquity outside the country by any means. The Council in all cases has the priority of having the antiquity from its owner or possessor in return for a fair compensation. Any one owns any archaeological object in accordance with the provisions of this Law must notify the Council of such object within six months starting from the beginning of March 2010 provided that such persons are required to preserve such objects until the Council registers it. Moreover, the Council may restitute, from its owners or possessors, antiquities taken of architectural elements whenever the Board of Directors finds a national interest and upon recommendation from the competent Permanent Committee which possessors have in return for a valuable consideration. ARTICLE 10 By a Presidential resolution some antiquities—except the unique ones and that determined by the competent committees—may be exhibited abroad for a specific period and some of the duplicate movable antiquities may be exchanged with states, museums or educational institutes whether Arab or foreign After taking necessary procedures to secure them adequately. ARTICLE 11 The SCA is entitled to accept cession of corporations or individuals for their ownership of historic real-estate through donation or sale for a symbolic price or through laying such under the Council’s disposal for no less than 50 (fifty) years, whenever the State finds such a national interest. ARTICLE 12 Any antiquity is registered due to a ministerial resolution from the competent Minister in culture affairs upon recommendations of the Board of Directors. The Decree issued for the registration of the real-estate antiquity is announced to its owner or the person in charge through administrative 255 means and is published in the Egyptian Official Gazette, and is marked as such on the margin of the real-estate register at the Real-Estate Publicity Administration. ARTICLE 13 Without prejudice to the right of the owner of such real antiquity to have a fair compensation, registration of the such real antiquity and notifying the owner of such in accordance with the provisions of Article 11 of this law shall result in the hereinafter provisions: 1. Pulling down all or part of the real-estate or taking part of the same outside the Arab Republic of Egypt is not permitted. 2. Expropriation of land or real-estate for the interest of any other party is not permitted, while such expropriation is permitted with regards to adjacent lands alter the approval of the competent Minister in cultural affairs upon recommendations of the SCA Board of Directors. 3. Any easement of title for a third party on the real estate is thereupon not permitted, 4. Renovation of the real-estate or changing its characteristics by any means is not permitted except with a license from the Head of Council after the approval of the Competent Permanent Committee and the execution of the work he licensed be under the direct supervision of the Council representative. If the party concerned executed any work without the referred-to license, the Council undertakes returning the case to its previous state on the expense of the transgressor without prejudice to the right of having compensation and without prejudice to the penalties stipulated in this law. 5. The owner is obliged to have a written consent from the Council as to every disposal that may occur to the real-estate together with mentioning the name of the person disposed to and his place of residence. On disposal of such, the owner must notify the party disposed to that the said real-estate is registered. The Council must thereto declare its opinion within a period of 30 (thirty) days as of date of notifying the Council with the application for disposal and expiration of this time without reply from the Council is deemed a refusal from SCA. 6. The Council is entitled, at any time, to carry out on its expense whatever it deems necessary for the conservation of the antiquity. The provisions of this Article shall remain applicable even if what in the realestate of antiquity became movable. ARTICLE 14 By a decree from the competent Minister in Culture affairs upon recommendation of the Council’s Board of Directors and after consulting the Competent Permanent Committee registration of the immovable antiquity or part of it may be cancelled, and the decree of cancellation shall hereupon be published in the Egyptian Official Gazette. and shall be informed to individuals and bodies that notified before of its registration. The same shall be recorded on the margin of the antiquity’s register at the Council and on the margin of the real-estate register at Real-Estate Publicity Administration,

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ARTICLE 15 Any existing exploitation by individuals or corporations to any archaeological site shall not result in any statue of ownership by prescription, and the Council is entitled to evacuate the same whenever it deemed such evacuation necessary against a valuable consideration. ARTICLE 16 Upon recommendation of the competent Minister in cultural affairs and against a fair compensation. Supreme Council for Planning and Urban Development is entitled to arrange easement on real-estates adjacent to the archaeological sites and historic buildings within the Antiquity Sacrum to ensure the conservation of the aesthetic characteristics or the general appearance of said estate. The resolution issued thereto identifies the real-estate properties or parts of such resulting in one or more easements and scope of such right and constraints which consequently originate on the right of the owner or the possessor. ARTICLE 17 Without prejudice to penalties stipulated in present law or other laws, Head of the Council or the Secretary General—exclusively—after approval of the competent Permanent Committee is entitled to remove any infringement on any archaeological site or real-estate through the administrative means, provided that notifying the Governorate of such resolution. The competent local authorities undertake executing the resolutions of violations removal in police custody in a period not exceeding 10 (ten) days, otherwise the Council shall execute the resolution through its own authorities or other bodies upon the Council’s request in police custody on the transgressors expenses. ARTICLE 18 Lands owned by individuals may be expropriated for their archaeological importance. It also may, by a resolution front the President of the Republic, temporarily seized until procedures of expropriation are completed. Such land shall thereby be considered in the governance of antiquity as of the date of the provisional seizure, and all this against fair compensation. The possibility of the presence of antiquity in the expropriated land is not observed in the compensation. ARTICLE 19 Upon a request of the Board of Directors, the competent Minister in cultural affairs may issue a resolution to determine the beautifying lines of public antiquities and archeological sites. Lands lying within said lines shall be considered archaeological lands and provisions of present law shall be applicable thereupon. ARTICLE 20 In accordance with special conditions set by Supreme Council for Planning and Urban Development upon recommendation from the Minister, granting buildings licenses at archaeological sites or lands shall not be permitted. 257

Other parties shall be prohibited from establishing foundations or cemeteries or digging canals or constructing roads or cultivating in the same or in the publicservice facilities set for antiquities or lands lying within the approved beautifying lines. Implanting trees or the cutting of such or carrying rubble or taking soil or fertilizers or sand or the execution of any other work which result in changing the characteristics of said sites and lands shall be prohibited except with a license from the Council and under its supervision. Provision of the previous paragraph shall be applicable on adjacent lands lying outside the scope of the sites referred to in the previous paragraph which extend to 3 (three) kilometers distance in uninhabited places or to the distance the Council determines in a way that realizes protecting the environment of the antiquity at other sites. By a resolution of the competent Minister in culture affairs, provisions of present article may be applicable on lands of which the Council becomes evident, on the basis of studies it undertakes, of the possibility of the presence of antiquities in such. Provisions of this article shall thereto be applicable on the desert areas and places where operation of store quarries is licensed. ARTICLE 21 Archaeological sites and lands, and buildings and places of historical importance must be observed when the lying out of cities, districts and villages where the same are found is being changed. Implementation of modernized planning or expansion or amendment in archaeological and historical areas and what belongs to it shall not be permitted except after the approval of the Council in writing with deference to easement of title arranged by the Council. The Council must declare its opinion concerning the planning within a period of 3 (three) months as of dale of submission. In case the Council does not declare its opinion within said period, the matter may be submitted to the competent Minister in culture affairs to issue a resolution thereto. ARTICLE 22 Building in places adjacent to archaeological sites inside the inhabited area shall not be licensed except in accordance with special terms set by Supreme Council for Planning and Urban Development to the competent organ after taking the Council’s approval. The competent organ must include in the license provisions which the Council sees guaranteeing the establishment of the building is in a proper way that does not predominate over the antiquity or spoil its appearance and ensure for such a suitable sanctum together with taking appropriate of the archaeological and historical environment and specifications guaranteeing protection of stated antiquity. The Council must declare its opinion in the application within a period of 60 (sixty) days as of date of submission of such otherwise the lapse of the period referred to is considered a refusal. ARTICLE 23 Any individual who finds an unregistered real-estate antiquity must notify the Supreme Council of Antiquities of such. This antiquity is considered the ownership of the State and the Council must undertake the necessary procedures to take care of such antiquity. Within a period of 3 (three) 258 months, the Council is entitled either to take stated immovable present in the property of individuals or undertake procedures of expropriation of the land wherein the same was found or to leave said antiquity at its place together with registering it in accordance with provisions of present law. In estimating the value of the expropriated land, the value of antiquities found at said land is not observed. The Council may grant whoever guided to the antiquity) a recompense which is determined by the Competent Permanent Committee. ARTICLE 24 Whoever accidentally finds a movable antiquity or part or parts of an immovable monument, must give notice of such to the nearest administrative power within 48 (forty-eight) hours as of time of finding the same. Moreover, he must take good care of such antiquity till handing it over to the competent authority otherwise he is considered possessor of antiquity without license, and the authority referred to must immediately notify the Council of such. The antiquity becomes the property of the State and the Council is thereby entitled to grant whoever found the antiquity and notified of such a recompense which is determined by the Competent Permanent Committee. ARTICLE 25 A committee formed by a decree from the Minister, wherein the Board of Directors is represented, undertakes estimating the compensation stipulated in ARTICLE 4, 5 bis, 8, 13, 15, 16 and 18 of present law. State Treasury shall pay referred to compensations, and those concerned may raise a complaint to the competent Minister in cultural affairs from the committee’s estimation within a period of 60 (sixty) days as of date of notifying them of the compensation estimated by the committee by a registered letter with a receipt otherwise the estimation is considered final. In all cases the action for compensation falls if such is not raised within a three years period as of date of its becoming a final estimation.

Chapter Two – REGISTRATION, PRESERVATION AND DISCOVERY OF ANTIQUITIES

ARTICLE 26 The Council undertakes enumerating, photographing, drawing, and registering immovable and movable antiquities together with gathering information pertaining to said antiquities in registers prepared for such uses. Registration is effected in accordance with terms and conditions of which a decree by the Board of Directors is issued. The registered antiquities are those registered at the date of effecting present law at the registers set for it. The Council aims at generalizing archaeological survey for archaeological sites and lands and defining places and characteristics of the said and recording them on maps together with sending 259 photocopies of such to both the competent local department and the General Authority for Urban Planning for the observance of such at the preparation of the general planning. The Council shall prepare a register for environmental and urban data and factors affecting every archaeological site according to its importance. ARTICLE 27 The Council undertakes preparing the registered archaeological places and sites and historical buildings for visit or study in a way that is not incompatible with their security and preservation. The Council also aims at revealing the aesthetic and historic characteristics and distinguishing features of the same. The Council thereto employs the capabilities of archaeological sites and museums in developing archaeological awareness by all means. ARTICLE 28 Movable antiquities shall be kept together with what entails its transference for objective considerations of architectural antiquities and all shall be put at the Council’s museums and stores. The Council undertakes organizing the exhibition therein and in its departments with scientific methods, together with preserving its contents and holding temporary internal exhibitions that are affiliated with such. The Council is entitled to entrust the Egyptian universities with organizing and managing museums therein located or at its faculties together with ensuring the registration and security of such. In all these cases, antiquities’ museums and stores are considered among the public property of the State. ARTICLE 29 The Council is charged with taking care of antiquities, museums, stores, and archaeological sites and areas and historical buildings besides the guarding of such through the competent police, and special watchmen and guards commissioned by the stated Council in accordance with, the rules regulating such. The Council shall put a maximum limit for the extension of every inspection of antiquities in a way guaranteeing the ease of movement of such inspection in their area and enabling it to supervise its antiquities. By a decree from the Board of Directors, the border of every archaeological site guarded by the Council shall be defined. Said may include, after consulting Ministry of Tourism, imposing admission fees to said sites provided that it does not exceed 5 (five) Egyptian pounds for Egyptians or 100 (one hundred) Egyptian pounds or what equals it of free currency in respect to foreigners. Stated fee does not detriment any that are imposed as stipulated in ARTICLE 39 of this Law. ARTICLE 30 The Council and no other shall be concerned with the execution of maintenance and restoration work necessary for all registered antiquities and archaeological sites and areas and historical buildings. 260

Ministry of Religious Endowment “the Wakf Ministry”, Egyptian Wakf Authority and Christian Wakf Authority shall bear expenses of restoration and conservation of archaeological and historical real-estate affiliated with and registered to such Ministry and authorities. The Council shall bear the expenses of restoring registered historical buildings in the possession of individuals and other authorities unless the reason for restoration originating from the bad use of the possessor according to what the Competent Permanent Committee decides and in this case the possessors shall bear the expenses of restoration. After the approval of the Competent Permanent Committee, Chairman of Council’s Board of Directors may license competent authorities and scientific missions to undertake operations of restoration and conservation under the Council’s supervision. Also specialized individuals may be given the license in writing to undertake such operations. ARTICLE 31 The Council shall arrange priorities of permission for missions and authorities to excavate antiquities starting with places that are more subject to the environmental dangers and more affected by the State’s projects of urban extension in accordance with an objective timetable that is decided by the Board of Directors. ARTICLE 32 The Council undertakes discovery of antiquities located over earth surface and excavations for antiquities underground and in the local and territorial waters. According to terms and conditions stipulated in the executive regulation of this Law and after the approval of the Competent Permanent Committee, the Board of Directors may license any specialised scientific institutions and universities, whether national or foreign, to excavate and search for antiquities in specified sties and for limited period of time due to a special license, which can not be assigned to any other party. Such license is granted only after verification of the availability of sufficient scientific, technical, financial and archaeological practical experience of the institution or the university demanding this license. The above-mentioned provision is applicable even if the search and exploration were in a non-archaeological land. The licensee are licensed to study, draw, photograph antiquities discovered by the same within the license period, and the right in the scientific publication about its excavations is preserved for five years as of date of its first discovery at the site. ARTICLE 33 The Council’s Board of Directors shall issue a decree with the terms and conditions which must be observed and executed at the excavation licenses so that the license includes an illustration of the boundaries of the area the search takes place, the time licensed, the minimum rate for working in such, and the insurances that must be deposited to the Council and terms for the execution of excavation together with the confinement to a special area until work in such area is completed, and 261 the obligation to successive registration and undertaking guard and conservation of such and provide the Council with a complete registration and a comprehensive scientific report about the work to be licensed. ARTICLE 34 License for foreign missions to search and excavate antiquities shall be subject to the following rules: a) Each mission is obliged to restore and preserve whatever it undertakes discovering of architectural and movable antiquities, one after the other and before the end of its working season, this under the supervision of the competent organs at the Council and with their cooperation. b) The association of the plan of even foreign mission for archaeological excavation work in Egypt with a complementary one wherein the mission undertakes any restoration work to present antiquities which were previously discovered, or whatever suits its capabilities of archaeological survey, enumeration, and registration of areas wherein it works or those nearby. This is executed with the approval of the Council or in cooperation with it. c) The Competent Permanent Committee is entitled to estimate the work of any licensed authority. ARTICLE 35 All discovered antiquities found by any of the foreign or Egyptian scientific excavation mission are the property of the State. ARTICLE 36 All rights of intellectual property and trademark and the exploitation of such for the Council’s benefit provided by Act No. 82 of 2002 are applicable to archaeological replica produced by the Council and photos of archaeological objects and sites owned by the Council. Rules set forth in this regard are stipulated by the executive regulation of the present law. ARTICLE 36 bis For achievement of its objectives, the Council is entitled to establish production units of a special nature. Rules for establishment and work system of such production unites are stipulated by the executive regulation of the present law. ARTICLE 37 By a decree from the Council’s Board of Directors, working licenses granted to any authority or mission for work in excavations may be terminated for transgressions made during their work without prejudice to penalties stipulated for the appropriation of antiquities without a right, or the smuggling of such. The Council may prevent any archeological mission or any foreign antiquities museum from practicing archaeological excavations at the Arab Republic of Egypt for a period not less that 5 (five) years if participation or assistance of any of its members in committing any crime of those referred to in this law was proved.

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ARTICLE 38 The Supreme Council of Antiquities and missions of Egyptian Universities shall be exempted from custom duties on instruments, equipments and sets imported from abroad for work of excavations, restoration of archaeological and historical buildings and preparation of museums, antiquities centers affiliated with the same and artistic and archaeological exhibitions. The Customs Administration shall thereto release on provisional bases instruments and sets imported to the country by foreign missions for excavations, restoration and natural studies pertaining to antiquities for using the same in their set uses. These missions shall be completely exempted from custom duties in case they dispose of or transfer these instruments or sets to the Council or to archaeological missions at Egyptian Universities. The mission shall bear the value of stipulated customs duties if it disposed of said instruments or sets after the termination of its work to other than these organs. ARTICLE 39 By a resolution from the Minister after the approval of the Council’s Board of Directors, admission fees shall be defined for visiting museums and archaeological sites for Egyptians and foreigners. Said fees shall not exceed 1000 Egyptian Pounds for Egyptians and 5000 Egyptian pounds or what equals it of free currency in respect to foreigners.

Chapter Three – PENALTIES

ARTICLE 40 Without prejudice to any severer penalty stipulated by the penal law or any other law punishing, for the violation of the provisions of present law, by the penalties stated in the hereinafter articles. ARTICLE 41 Whoever smuggles an antiquity outside the republic of Egypt, together with his knowledge of such act shall be punished by intensive imprisonment and by a mulct not less than 100,000 (one hundred thousand) Egyptian Pounds and not more than one million Egyptian Pounds. In this case the antiquity, object of the crime, shall be confiscated together with sets, instruments, machinery, and cars used in said crime for the benefit of the Council. ARTICLE 42 Whoever steals an antiquity or part of such, whether this antiquity is a registered antiquity owned by the State, under registration or discovered through archaeological excavations of the Council or licensed missions, bodies or universities work for the purpose of smuggling such shall be punished by imprisonment and by a mulct not less than 50,000 (fifty thousand) Egyptian Pounds and not than 500,000 (five hundred thousand) Egyptian Pounds. Whoever hide an antiquity or part of such for the of smuggling it shall be punished by imprisonment for not less than 7 (seven) years. In all cases 263 the antiquity, object of the crime, shall be confiscated together with sets, instruments, machinery, and cars used in said crime for the benefit of the Council. The following shall be punished by imprisonment for not less than one year and not more than 7 (seven) years and by a mulct not less than 50,000 (fifty thousand) Egyptian Pounds and not more than 100,000 (one hundred thousand) Egyptian Pounds: 1. Whoever intentionally pulls down or damages or spoils or changes the distinguishing features of a movable or immovable antiquity or intentionally separates part of the same. 2. Whoever executes archaeological excavation for the purpose of finding antiquities without license. Penalty in the above-mentioned cases shall be by imprisonment and by a mulct not less than 100,000 (one hundred thousand) Egyptian Pounds and not more than 250,000 (two hundred fifty thousand) Egyptian Pounds if the doer is one of those working in the Supreme Council of Antiquities or officials or workers of excavation missions or of the contractors having a contract with the Council or their workers. ARTICLE 42 bis Whoever steals an antiquity or part of such that is owned by the State shall be punished by imprisonment for a period not exceeding 7 (seven) years and by a mulct not less than 50,000 (fifty thousand) Egyptian Pounds and not more than 250,000 (two hundred and fifty thousand) Egyptian Pounds, Except for the mulct penalty, whoever hides an antiquity or part of such if obtained from any crime shall be punished by imprisonment for a period not exceeding 5 (five) years. In all cases the antiquity, object of the crime, shall be confiscated together with sets, instruments, machinery, and cars used in said crime for the benefit of the Council. ARTICLE 43 The following shall be punished by imprisonment for a period not less that one year and not more than 5 (five) years and by a mulct not less than 10,000 (ten thousand) Egyptian Pounds and not more than 100,000 (one hundred thousand) Egyptian Pounds: 1. Whoever transfers, without a written permission from the Council, an antiquity owned by the State or a registered antiquity or intentionally tears the same off its place. 2. Whoever transfers archaeological buildings or lands or parts of such to a residence or yard or store or factory or cultivates the same or prepares it for cultivation or implants trees therein or makes a barn or digs drainage or irrigation canals or sets in the same by any other such work or infringes upon the same by any other means without license in accordance of the provisions of this law. 3. Whoever counterfeits one of the ancient antiquities with the aim of deception or fraud. ARTICLE 44 Whoever violates provisions of ARTICLES 6, 8, 13, 17 and 20 of this law shall be punished by penalties stated in ARTICLE 43 of this law. In all cases the antiquity, object of the crime, shall be 264 confiscated together with sets, instruments, machinery, and cars used in said crime for the benefit of the Council. ARTICLE 44 bis Whoever violates provisions of ARTICLE 5 bis, 24 and 36 of this law shall be punished by imprisonment for a period not more than one year and by a mulct not less than 5,000 (five thousand) Egyptian Pounds and not more than 20,000 (twenty thousand) Egyptian Pounds or one of either above- mentioned penalties. In all cases the antiquity, object of the crime, shall be confiscated together with sets, instruments, machinery, and cars used in said crime for the benefit of the Council. ARTICLE 45 The following shall be punished by imprisonment for a period not more than one year and by a mulct not less than 1,000 (one thousand) Egyptian Pounds and not more than 50,000 (fifty thousand) Egyptian Pounds or one of either above-mentioned penalties: 1. Whoever puts advertisements or propaganda posters on the antiquities. 2. Whoever writes or inscribes on the antiquity or puts paints on such. 3. Whoever spoils or damages an immovable or a movable antiquity or separates part of such. 4. Whoever appropriates rubble or fertilizers or soil or sand or other materials from an archaeological site or land without license from the Council or exceeds terms in the license granted to him in quarries or brings to the site or archaeological place fertilizers or soil or waste or other materials. In all cases the guilty is obliged to pay a compensation for the damages originating from the violation. ARTICLE 45 bis Whoever notified the competent authorities or investigation bodies of his crime before proceeding to investigate shall be exempted from the penalty stated in ARTICLES 41 and 42 of this law. The court may exempt the guilty from the penalty if the said admitted his guilty of the crime that leads to confiscation of the antiquities, subject of the crime, or helps to repatriate such antiquity whether locally or abroad. ARTICLE 46 Whoever violates provisions of ARTICLE 18, 19 and 20 of this law from those working in the State shall be punished by imprisonment for a period not less than two years and by a mulct not less than 100 (one hundred) Egyptian Pounds and not more than 500 (five hundreds) Egyptian Pounds together with obliging him to pay a compensation for the damages originating from the violation. ARTICLE 47 In case of violation of ARTICLES 7, 21 and 22, the antiquities shall be confiscated for the benefit of the Supreme Council of Antiquities. 265

Chapter Four – FINAL REGULATIONS

ARTICLE 48 Head of the Council’s Board of Directors, antiquities directors, museums directors, assistant curators, superintendents, directors of archeological areas, antiquities inspectors and assistant inspectors are entitled to enjoy the quality of judicial arrests with regards to impounding crimes and violations stipulated in this law and decrees issued in implementation of said law. ARTICLE 49 Mulcts stipulated in accordance with provisions of present law and fees prescribed in ARTICLES 29 and 39 of this law shall go to the fund financing antiquities and museums projects at the Council. The Council may grant recompenses from revenues of these sums, which the Head of the Board of Directors decides to whoever participates in guiding or impounding violations, this is in pursuance to terms and conditions of which a decree from the Council’s Board of Directors is issued. ARTICLE 50 All sums payable to the Council in the application of present law may be collected through administrative confiscation. ARTICLE 51 The Council undertakes coordinating work among authorities and bodies concerned with planning, housing, tourism, public utilities, security and councils of governorates in a way guaranteeing the protection of antiquities, museums, and historical buildings from shakes, shocks and reasons for leak and pollution, industrial danger and its historical and archaeological environment in a way realizing the balance between urban needs and the necessity of preserving antiquities and heritage. ARTICLE 52 The Council is the authority entitled to form technical and archaeological committees which shall examine the archaeological objects, subject of the crimes. Said committees shall prepare technical and archaeological reports on the results of such examination and shall submit the same to the courts and investigation bodies. Procedures to form said committees are regulated by the executive regulation of the present law.

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ANEXO B – Wish List Egypt

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ANEXO C – DIVUM

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ANEXO D – Red List Egypt (ICOM)

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RED LIST OF EGYPTIAN CULTURAL OBJECTS AT RISK

IMPORTANT NOTE: A Red List is NOT a list of actual stolen objects. The cultural goods depicted are of inventoried objects within the collections of recognised institutions. They serve to illustrate the categories of cultural goods protected by legislation and most vulnerable to illicit traffic. ICOM wishes to thank all of the institutions and people who so generously provided the photographs presented in the Emergency Red List for Egypt.

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Vessels and containers

Ceramics: Bowls and jars, may be painted and/or incised with figural or geometric designs. [illus. 7–8]

Stone: Canopic jars, vases, bowls and flasks, made from calcite, siltstone, limestone, greywacke and hydrite. [illus. 9]

7 7 8 8 9

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ANEXO E – Formulário para pedidos de restituição ou devolução

Standard Form concerning Requests for Return or Restitution Formulario de base para las Solicitudes de Retorno o de Devolución January 1986 Enero 1986 Intergovernmental Committee for Promoting the Return of Cultural Property to its Countries of Origin or its Restitution in Case of Illicit Appropriation Comité Intergubernamental para la Promoción del Retorno de Bienes Culturales Hacia sus Países de Origen o su Restitución en Caso de Apropiación Ilícita

NOTES ON COMPLETING THE FORM Orientación para rellenar el Formulario General Generalidades 1. The present form has been established by the 1. Este formulario ha sido concebido por el Comité Intergovernmental Committee as a mechanism to intergubernamental con el fin de permitirle la promoción enable it to promote bilateral negotiations concerning de negociaciones bilaterales en relación con el retorno o the return or restitution of cultural property. The form la restitución de bienes culturales. Queda claro entonces is to be used therefore only in cases where negotiations que sólo se puede recurrir a él en caso de confrontarse already initiated have made unsatisfactory progress. It con negociaciones y entabladas que no avanzan de is intended to be a comprehensive yet flexible manera satisfactoria. Fue concebido como un marco framework, which allows Member States to provide global, pero flexible que les permite a los Estados information as completely as possible. Miembros dar información la más completa posible. 2. The requesting country should use the form to 2. El país demandante tiene que recurrir a este formulario submit its request to the Secretariat of the Committee para dirigir su solicitud al Secretariado del Comité, el which will transmit the document cual transmitirá el documento al país demandado to the holding country concerned. The holding country (poseedor relacionado). El país demandado (poseedor) should in turn use the form to provide its reply to the utilizará este formulario para contestar a la demanda y lo request and return it to the Secretariat of the tiene que devolver al Secretariado en el plazo de un año a Committee within a period of one year from the date of partir de la fecha de recepción. receipt. 3. Sírvase tomar nota de que a cada formulario 3. Please note that the use of the form is limited to one corresponde un solo objeto. No se puede interferir con object per form. It is not practicable to deal with información respecto de más de un objeto a la vez. information on more than one distinct object at a time. Cuando se trata de una solicitud respecto de uma In the case of a request for an entire collection of colección completa de objetos, para el propósito del objects it is understood that the collection, for the presente formulario se entiende que la colección se purposes of the present form, would be treated as an considerará como una unidad, es decir como "un objeto". entity i.e. "na object". 283

Name of the requesting country/Nombre del país que solicita

La República de X

Name of the requesting institution or service/Nombre de la institución o departamento demandante

El Museo Nacional de Arqueología Ministerio de Cultura Macondo

A DOCUMENTARY DATA ON THE OBJECT/DATOS EN RELACIÓN CON EL OBJETO

A.1 Description of the object Information should be provided if possible with respect to: a) Type of object: painting, sculpture, manuscript, ceramics, textiles, archaeological finds, buildings or monuments, etc. b) Characteristics: material of which made (wood, stone, metal, parchment, etc.), dimensions, weight, form, period, authorship (if applicable,special distinctive features).

A.1 Descripción del objeto En la medida de lo posible se proporcionará información sobre: a) El tipo de objeto: cuadro, escultura, manuscrito, construcciones, elementos de construcción o de monumentos, etc. b) Sus características: material (madera, piedra, pergamino, etc.), dimensiones, peso, forma, período, autor (si se conoce), características distintivas y peculiares.

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Requesting country/País demandante Holding country/País demandado Navío de plata con, en oro, figuras incrustadas de leones erguidos y peleando; al dorso hay una escena de caza. Los brazos son figuras de leones de cuerpo entero. Se encuentra ligeramente dañado: falta una astilla arriba en la escena principal; también falta un diente en el cuerpo del navío debajo del brazo. Algunas partes del conjunto fueron reforzadas. Altura: 22,6 cm Ancho del cuerpo: 18,2 cm Ancho con brazos: 24,8 cm Diámetro de apertura: 11,3 cm Diámetro del pie: 6,2 cm Número de adquisición: 1941.123.1 Hecho probablemente por el llamado "Maestro de leones", alrededor del año 800 antes de Cristo

A.2 Location of the object A.2 Ubicación del objeto

The place where the object is currently displayed or held in the Conviene especificar dónde se encuentra holding country should be specified, e.g. a museum gallery or expuesto o retenido el objecto en el país reserve collection. If not known, the holding country may wish que lo tiene (por ejemplo, las salas de ex- to to state the presumed location, according to the latest information positión o las reservas del museo). Si no available. se conoce el lugar donde se supone que se encuentra el objeto según los informes más recientes.

Requesting country/País demandante Holding country/País demandado

Museo de Bellas Artes Calle de la Libertad Macondo, República de X

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Requesting country/País demandante Holding country/País demandado

El objeto se vio por última vez, allí, hace un mes, el 1 de abril de 1999. Quizá y no se encuentra en este museo. (ver fotografía en anexo; el objeto se encuentra al extremo derecho, abajo, en la vitrina)

A.3 Ownership A.3 Propiedad

It should be made clear whether the object was/is the property of Hay que dejar establecido si el objeto era/es a public or private organization or of a private individual. propiedad de un organismo público o de alguien em particular.

Requesting country/País demandante Holding country/País demandado

La Nave es/era propiedad del Estado. Se encuentra/encontraba bajo el cuidado del Museo Nacional de Arqueología, el cual a su vez está bajo la jurisdicción del Ministerio de Cultura. Se excavó en 1939 y fue trasladado al Museo en 1941 después de un estúdio y un tratamiento de conservación y de consolidación. El equipo que hizo la excavación, dirigido por el professor Fulano, estaba trabajando en X que le fue asignado por parte del Estado. El acuerdo entre el que lleva a cabo la excavación y el Estado define los hallazgos como "propiedad del Estado". Salvo que se defina de otro modo, ver A.8 abajo para la referencia al informe sobre la excavación.

A.4 Date of acquisition A.4 Fecha de Adquisición

Noviembre de 1941. Número de adquisición: 1941.123.1 De conformidad con la práctica en el Museo Nacional, los números son pequeños y se encuentran pintados de rojo, en la parte debajo del pie de la nave.

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A.5 Legal Status A.5 Situación legal Is the object part of the national heritage; is it part of the El objecto em cuéstion forma parte del pa- collection of a public or private museum; is it held on trimonio cultural? Forma parte de la colec- short – or long-term loan, deposit, etc. ? ción de um museo público o privado? Se dispone de él sobre la base de un préstamo a corto o largo plazo, de un depósito, etc.?

Requesting country/País demandante Holding country/País demandado

Esta nave hecha probablemente por el llamado "Maestro de Leones" constituye parte del patrimonio nacional y formaba parte de la colección permanente del Museo Nacional. Este Maestro era el único forjador de plata conocido en la República de X.

A.6 State of conservation A.6 Estado de conservación Here details may be given concerning the decay of constituent Aquí vendrían datos respcto del estado en matérials, deterioration noted, intentional or acidental mutilations, que se encuentran los materiales, el deteri- if any, restoration carried out. oro que se observo, eventuales mutilacio- nes intencionadas o accidentales y si even- tualmente hubo restauraciones.

Requesting country/País demandante Holding country/País demandado El objeto se encontraba en una condición relativamente estable en el clima original, no controlado. Aparecen ahora ciertas grietas entre el cuerpo y las áreas pegadas. Se evidencia deterioro en las áreas tratadas y se observa evidente cambio de color debido a condiciones ambientales.

A.7 Conservation requirements for the object A.7 Requerimientos de conservación para el objecto Information should be provided as to the environmen- Aquí se estipulará las condiciones ambientales tal conditions required, posible conservation treatment necesarias así como el tratamiento que se im- indicated, etc. pone para la conservación, etc.

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Requesting country/País demandante Holding country/País demandado Conviene no manipular este objeto sin guantes, el brillo perdido causa daño a la decoración de la superficie; se requiere un ambiente libre de emanaciones para evitar que se vuelva cada vez más opaco; es conveniente que la humedad ambiental no sea muy alta.

A.8 References and documentation A.8 Referencias y documentación

Bibliographic or other references concerning the object should be Poner aquí referencias bibliográficas o de provided. Other documentation such as labels, catalogue cards, otro tipo em relación con el objeto en cues- information about the archaeological site from which the object tión. Si es posible, conviene añadir también originated, etc. should also be included wherever possible. Such otro tipo de documentación, como etiquetas, material may be attached to the present form. números de catálogo o información respecto del sitio arqueológico de donde proviene el objeto. Conviene documentar esos elemen- tos en anexo.

Requesting country/País demandante Holding country/País demandado

Informe de excavación: TAL, Fulano de: Anales de Arqueología, n° 12 (1939), p. 15; idem, N° 13, 1940, pp. 77-92.

Publicaciones: CARTÍN, Estrella: Los leones centroamericanos, Editorial Universidad de Costa Rica, 1978, 120 pp., com referencia en P. 27 LAFLEUR, Georges: Les travaux du "Maître des Lions", Bruselas, Ediciones Tintin, 1983, 146 páginas TORRES, Adela: La figura de Melquiades en el entorno de la ciudad fantasmagórica de macondo, Editorial Buenavista, Santiago, 1987, 244 páginas, con esudio peculiar sobre "el Maestro de leones", pp. 147-15. Hasta la fecha no hubo reproducciones impresas debido a su mala calidad. Fichas de catálogo: Se adjuntan copias en anexo 1.

A.9 Circumstances in which the object left country of origin A.9 Circunstancias en que el objeto desapareció del país Information should be provided if possible with respect to the de origen means by which the object left its country of origin, e.g. trade, Si es posible, aquí conviene poner informaci- illicit appropriation, colonial or foreign occupation, exchange, ón sobre la forma en que el objeto desapareci- gift, loan for repair and/or reproduction, temporary export licence ó del país: por ejemplo, por la vía comercial, for scientific purposes including conservation or exhibition. por apropiación indebida, por ocupación co- lonial o foránea, por intercambio, donación, prés- tamo para reparación o para ser reproducido, 288

bajo la forma de licencia temporal de exportación para conservación y exposición.

Requesting country/País demandante Holding country/País demandado

Se informa que la nave fue robada en 1959. Se reseñó en los periódicos locales (ver copias en anexo 00) y en revistas profesionales (copias en el mismo anexo). El robo debe de haber ocurrido en la noche del 1 al 2 de enero de 1959, junto con otros objetos. No existe claridad respecto de lo ocurrido. Después del robo, por lo visto, se procedió a la exportación ilícita de la nave.

A.10 Mode of acquisition by institution in holding country A.10 Cómo el objeto fue adquirido por una institución del país que lo retiene por ahora The mode of acquisition should be specified, e.g. purchase, Se proporcionará información sobre cómo gift, exchange, loan, archaeological excavation, temporary se adquirió. Por ejemplo, mediante compra, import for scientific purposes, illicit acquisition, colonial or donación, intercambio, préstamo, excavaci- foreign occupation, etc. ón arqueológica, importación temporal por razones científicas, adquisición ilícita, ocupación colonial o extranjera, etc.

Requesting country/País demandante Holding country/País demandado

Se adquirió probablemente por la vía de la compra (a lo mejor el país que lo posee por ahora pueda dar datos al respecto).

A.11 Particular significance for the requesting country A.11 Significado peculiar para el país demandante This may be historical, cultural, religious or scientific in nature El razonamiento será de tipo histórico, cultu- or a combination of several of these. The object may be a ral, religioso o científico. Incluso puede haber "missing link" in a given cultural tradition and/or in the interferencia entre esas perspectivas. Quizá el country’s national collections. objeto constituye el “enlace” faltante dentro de una tradición cultural determinada o dentro de la colección nacional de determinado país.

Requesting country/País demandante

Ver punto 5 anterior. Se señala además que esa nave goza de una alta estima como tesoro nacional y en los manuales de texto de escuelas, colegios y universidades hay constantes referencias a ello. Se reconoce y aplaude como parte del patrimonio nacional de nuestra república.

289

A.12 Details of similar objects known to exist in country of origin A.12 Datos sobre objetos similares que se co- or elsewhere nocen en el país de origen o en outra parte Information may be provided concerning objects of the same Conviene dar datos en relación con obje- period, provenance or type, or (where applicable) by the same tos del mismo período, tipo de origen y, si author ; objects whose significance is similar to that described es del caso, obras del mismo autor; también under A.11 above may also be mentioned. conviene mencionar objetos con un signifi- cado similar al descrito bajo A.11.

Requesting country/País demandante Holding country/País demandado

Aunque en nuestras colecciones nacionales existen fragmentos de tales navíos, no hay ninguna muestra de una nave tan completa y tan decorada.

A.13 Significance of the object for the holding countr A.13 Significado del objeto para el país que lo retiene

Requesting country/País demandante Holding country/País demandado

Este objeto de alta calidad representa un período de nuestra cultura. Es una muestra única, producida em nuestro país y excavado en el nuestro.

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B REFERENCES TO LEGISLATION AND REGULATION TO PREVENT ILLICIT TRAFFIC IN CULTURAL PROPERTY REFERENCIAS EN RELACIÓN CON DISPOSICIONES LEGALES Y DE REGLAMENTO QUE TIENDEN A IMPEDIR EL TRÁFICO ILÍCITO DE BIENES CULTURALES

Full references to the relevant articles of national legislation or Conviene señalar aquí referencias a los regulation concerning illicit traffic should be provided, both with artículos relevantes de la legislación o la respect to export of cultural property and its import from other reglamentación nacionales, en lo que se re- countries. The texts of such legislation or regulation may be attached fiere a tráfico ilícito, tanto a nível de ex- to the present form if necessary. portación como de importación de bienes culturales desde otros países. Se puede proceder a po- ner el texto de esas leyes o eses reglamentos en anexo del presente formulário, si se estima conveniente.

Requesting country/País demandante Holding country/País demandado

En anexo se encontrará copia de todo lo que se refiere a actas y escritos sobre tales asuntos. Tómese nota de que se trata de leyes recientes (de 1973 em adelante) y que por ende a lo mejor no son de aplicación en el caso en referencia. Sin embargo, el presente llamado es de tipo moral y va más allá de toda limitación de tipo estatuaria.

C SUGGESTED ACTION ACCIONES SUGERIDAS

C.1. Previous negotiations C.1 Negociaciones previas Give full details of negotiations carried out so far. What Poner aquí datos relevantes en cuanto al pro- progress has been achieved ? Please indicate reasons for lack of ceso de negociación que se llevó a cabo. Qué progress with respect to these negotiations. progreso se logró? Favor de indicar raziones por las que se estancó el proceso de negociaciones.

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Requesting country/País demandante Holding country/País demandado

Como consta en anexo, el 15 de julio de 1985 se hizo um llamado de asistencia el Museo de Bellas Artes del país que retiene el objeto. La solicitud quedó sin respuesta. Se informó al respecto a INTERPOL y al Consejo Internacional de Museos (ICOM). (Ver copia de correspondencia en anexo 00). También se informó al Ministerio de Relaciones Exteriores del país que retiene el objeto (ver copias en el mismo anexo).

C.2 Proposals of requesting country C.2 Sugerencias del país demandante Proposals with respect to further steps necessary or new forms Conviene poner aquí observaciones en cuanto of co-operation or negotiation to be initiated may be outlined a posibles pasos a emprender o nuevas formas here. de cooperación o de negociación a considerar.

Requesting country/País demandante

  Colaboración de diversos ministerios en el país que retiene el objeto. Recurrir a un llamado internacional. Una campaña de prensa donde se subraye o bien la falta de cooperación o la ausencia de resultados positivos respecto de fecha de retorno de la nave.

C.3 Legal status object would have in requesting country C.3 Situación legal que tendría el objeto en el país Information should be provided as to whether the object would demandante become part of the national heritage or of the collection of a Poner allí datos sobre el hecho de que el objeto public or private museum or other institution. formaría parte del patrimonio cultural o de una colección determinada en un museo estatal o privado o en otro tipo de institución.

Requesting country/País demandante

  El objeto en cuestión recobraría el estatuto que siempre mantuvo, incluso después de ser removido ilegalmente, es decir, sería un "tesoro nacional".

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C.4 Place of display in requesting country C.4 Lugar de exposición em el país demandante Information should be provided as to whether the object will be Dar datos sobre el lugar donde se pondría el displayed in a State museum or other institution ; in a private objeto, si un museo estatal u outro tipo de ins- museum or institution ; in a place of worship, etc. titución, en una institución pública o privada, en lugar de oración, etc.

Requesting country/País demandante

  La nave retornará a su lugar original de exhibición, ahora rodeado de sistemas de alta seguridad con miras a disuadir todo intento de repetición del robo y para reducir el grado de deterioro.

C.5 Facilities available C.5 Recursos disponibles Information should be provided concerning the curatorial, Señalar los recursos de tipo curador, adminis- managerial and conservation facilities available to the museum tración o de conservación de que dispone el or other institution which will receive the object. museo u otra institución para recibir el objeto.

Requesting country/País demandante

  El Museo Nacional de Arqueología dispone de un equipo de doce curadores y limitados recursos para la conservación. Los objetos de relevancia, como el que nos ocupa, se encuentran en manos del laboratório universitario porque posee equipo avanzado.

C.6 Response by holding country C.6 Respuesta del país que retiene el objeto

Requesting country/País demandante

  El Museo Nacional de Arqueología dispone de un equipo de doce curadores y limitados recursos para la conservación. Los objetos de relevancia, como el que nos ocupa, se encuentran en manos del laboratório universitario porque posee equipo avanzado.

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C.7 Institutions or persons responsible for negotiations C.7 Instituciones o personas encargadas de la Negociación

Requesting country/País demandante Holding country/País demandado

El Ministerio de Cultura El Profesor Fulano, quien dirigió la excavación ofreció su colaboración si fuera del caso.

D OTHER OBSERVATIONS/OTRAS OBSERVACIONES

Requesting country/País demandante Holding country/País demandado

Requesting country/País demandante Holding country/País demandado

Signed/Firma ______Signed/Firma ______

Full Name/Nombre completo ______Full Name/Nombre completo ______

Title/Cargo ______Title/Cargo ______

Date/Fecha Date/Fecha 294

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