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FACULDADES INTEGRADAS HÉLIO ALONSO

CURSO DE JORNALISMO

Andrei Felipe de Campos Martins de Matos

VIGIAR E MOSTRAR: UM ESTUDO DO CASO JAMES GUNN

Rio de Janeiro

2019

Andrei Felipe de Campos Martins de Matos

VIGIAR E MOSTRAR: UM ESTUDO DO CASO JAMES GUNN

Monografia apresentada ao Curso de Jornalismo das Faculdades Integradas Hélio Alonso, como requisito parcial para a obtenção do título Bacharel em Jornalismo sob a orientação do Prof. Rafael Dupim.

Rio de Janeiro

2019

Matos, Andrei Felipe de Campos Martins de. Vigiar e mostrar: um estudo do caso James Gunn / Andrei Felipe de Campos Martins de Matos. - Rio de Janeiro: FACHA,

2019.

51 f.

Orientador: Rafael Dupim de Souza.

Monografia (Graduação em Jornalismo) FACHA, 2019.

1. James Gunn. 2. Cibercultura. 3. Redes sociais. 4. Liberdade de expressão. 5. . I. Souza, Rafael Dupim de. II. FACHA. III. Título.

VIGIAR E MOSTRAR: UM ESTUDO DO CASO JAMES GUNN

Andrei Felipe de Campos Martins de Matos

Monografia apresentada ao Curso de Jornalismo das Faculdades Integradas Hélio Alonso, como requisito parcial para a obtenção do título Bacharel em Jornalismo sob a orientação do Prof. Rafael Dupim.

______

Prof. Orientador

______

Membro da Banca

______

Membro da Banca

Data de defesa: ______

Nota da defesa: ______

Rio de Janeiro

2019

À minha mãe que inquieta me mostrou a extrema importância dos estudos, minha vó que tanto me ensina e meu pai que soube ser sereno tantas vezes.

RESUMO

A pesquisa objetiva enriquecer e atualizar a compreensão da vivência virtual dos dias atuais através da revisão bibliográfica de autores consagrados sobre a modernidade e a pós-modernidade, como Zygmunt Bauman, Michel Foucault e Guy Debord, a abordagem de pesquisadores dos fenômenos digitais e das redes sociais na estabelecida cibercultura, nomeadamente Pierre Lévy, Raquel Recuero, Paula Sibilia e outros. A aplicação é sobre um caso recente, midiático e que acionou diferentes personagens como o diretor de cinema norte-americano James Gunn, do blockbuster Guardiões da Galáxia (Marvel/Disney), personalidades político-digitais como e mais. Com isso, se esboçam respostas acerca de quem são os atores dessas movimentações e como eles se constroem nas redes sociais, como ocorre a relação de exposição no ciberespaço e seus porquês, além das demais características e incongruências pertinentes. O obtido é que indivíduos das mais diversas identidades da existência se encontram em forma de personas múltiplas nas vias digitais em um entrave de interesses políticos e captação de status hoje ligados fortemente às redes sociais – que devem, sim, incentivar a liberdade de expressão, mas também moderar a livre propagação evitando a alta de “conteúdos poluidores”. Ainda, tem-se que o resultado desses encontros pode ser impactante, mas que em acordo com a liquidez do mundo pós-moderno, pode ser remodelado ou esquecido no momento seguinte – e essa mudança é o caráter mais valioso dos tempos atuais.

Palavras–chave: James Gunn. Redes Sociais. Cibercultura. Liberdade de Expressão. Twitter.

ABSTRACT

The research aims to enrich and update the understanding of the nowadays virtual experience through the bibliographic review of renowned authors about modernity and postmodernity, such as Zygmunt Bauman, Michel Foucault and Guy Debord, the approach of digital phenomena & social networks researchers into the established cyberculture, namely Pierre Lévy, Raquel Recuero, Paula Sibilia and others. The study is about a recent, media-driven case that has triggered different characters such as American film director James Gunn from blockbuster Guardians of the Galaxy (Marvel/Disney), digital-political personalities like Mike Cernovich and more. With this, is outlined answers about who are the actors of these movements and how they’re built in social media, how the exposure relationship occurs in cyberspace and its whys, in addition to others pertinent characteristics and incongruities. The result is that individuals of the most diverse existential identities find themselves in multiples forms of personas through digital ways for a fight of political interests and status capture today strongly linked to social media - which should, for sure, encourage freedom of speech, but needs to moderate the free propagation to avoid the increase of “pollution content”. Finally, the outcome of these meetings can be impactful, but according to the liquidity of the postmodern world, it can be reshaped or forgotten in the next moment - and this power of change is the most valuable aspect of our times.

Keywords: James Gunn. Social Media. Cyberculture. Freedom of Speech. Twitter.

LISTA DE ILUSTRAÇÕES

Figura 1 – Netflix plataforma

Figura 2 – Netflix produtora

Figura 3 – Netflix e sua alma nas redes

Figura 4 – Tweets polêmicos

Figura 5 – Gunn questiona apoiadores de Trump

Figura 6 – Gunn acusa Trump sobre fake news em resposta à Hilary

Figura 7 – Tweet de Roseanne Barr

SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO ...... 9

2 O ESPAÇO DE TODOS ...... 11 2.1 Ciberespaço: o líquido pós-moderno ...... 11 2.2 Funcionários do digital ...... 14

3 OLHAI, VIGIAI ...... 18 3.1 Panoptismo ...... 18 3.2 “Visualizado às”: vigilância ...... 19 3.3 Expressão ...... 22

4 CONEXÕES EXPOSTAS ...... 26 4.1 Redes sociais ...... 26 4.2 Capital das personas ...... 28

5 CASO JAMES GUNN ...... 33 5.1 Quem é @jamesgunn ...... 33 5.1.1 Desculpas ...... 34 5.2 Políticas ...... 37 5.2.1 Disney ...... 37 5.2.2 Gunn ...... 38 5.2.3 Mike e Jack ...... 40

6 CONCLUSÃO ...... 43

REFERÊNCIAS ...... 48 9

1 INTRODUÇÃO

A construção das sociedades contemporâneas alicerçadas na tecnologia digital e informacional tem impactos profundos nos indivíduos enquanto seres íntimos e nas sociedades das relações mais espetacularizadas. Com o estabelecimento dessa cultura cibernética em níveis globais, estamos diante de diversos fenômenos dos quais estudiosos da comunicação social (Raquel Recuero, Paula Sibilia, Fernanda Bruno, Henry Jenkins), da empresarial (João José Forni, Rick Levine), da sociologia (Guy Debord, Zygmunt Bauman, Pierre Lévy), da filosofia (Michel Foucault, Gilles Deleuze) da tecnologia (Fábio Malini), da psicologia e tantos outros das mais diferentes áreas precisaram e precisam contribuir para se fazer entender.

O presente documento se debruça no caso do diretor de cinema norte- americano James Gunn – da franquia Guardiões da Galáxia, demitido no ano passado no mesmo dia em que certos tweets seus com temas de pedofilia e outros igualmente sensíveis e polêmicos foram removidos dos rastros atemporais da Internet. O diretor é peça determinante do grupo Marvel, pertencente à Disney, que construiu na última década um universo compartilhado no cinema contanto com 23 filmes interligados até o momento dessa escrita. Considera-se, portanto, um dos maiores e mais rentáveis movimentos cinematográficos da história – que influi em todo o sistema midiático de programas de televisão, comerciais, notícias, eventos e produtos ao redor do mundo.

Em adição ao Caso, Mike Cernovich, norte-americano e personalidade de internet que é caracterizado como um troll nas redes sociais. Responsável pela exposição dos tweets antigos do diretor, Mike usa seu capital sociodigital em favor das narrativas que defende – patriotismo, supremacia branca, anti-feminismo e apoio ao republicanismo representado atualmente pelo presidente dos Estados Unidos, . Dados os nomes como exemplos da exposição e da vigilância nas redes sociais, é notória a relevância de uma polêmica com esses agentes de forma atual e com um desfecho sustentável até o momento. É um intento, portanto, por um caso acentuado, engrandecer a abordagem da vivência nas redes sociais tão naturais hoje à vida, seja das empresas multinacionais ou do cidadão comum de qualquer país.

Para isso, é necessário entender quem são os atores desses fenômenos – os usuários, suas personas digitais e como interagem nas redes sociais em busca da formação de um capital sociodigital através da autoexposição da qual lhes parece 10

fundamental para a validação da existência da própria identidade. A atenção especial é sobre a plataforma Twitter por aparecer como um consistente modelo puro das relações da cibercultura em uma configuração veloz e de grande poder de engajamento relacional dos interesses. São aspectos em que se aprofundam Raquel Recuero ao definir as Redes Sociais e o que constrói o Capital Sociodigital, também Fernanda Bruno e Paula Sibilia acerca da exposição contemporânea que segue o caminho determinado pela fixação do capitalismo intensificado desde o século XVIII.

Igualmente relevante é a ancoragem nas percepções consagradas das sociedades por autores como Zygmunt Bauman, Pierre Lévy, Michel Foucault, Guy Debord, Gilles Deleuze, Henry Jenkins e outros. Tratam, sobretudo, da relação existencial dos indivíduos uns com os outros e consigo mesmo. Seus conceitos ainda residem de forma preciosa em ambientes historicamente recentes como é o ciberespaço. Os entendimentos acerca dos indivíduos sólidos e líquidos, de sociedades modernas e pós-modernas, as disciplinares e as do controle, da centralização do capitalismo e suas revoluções e sobre a necessidade se expressar, vigiar e ser vigiado, são determinantes na construção do pensamento.

Dentro da revisão bibliográfica, a concatenação de teorias, a pesquisa e a aplicação ao caso, algumas perguntas devem surgir e é objetivo se aproximar de suas respostas, admitindo que é próprio do momento a transição dos conceitos. Certos acontecimentos digitais são irreversíveis? O quão determinantes são, de fato, em uma sociedade contemporânea hiperconectada e midiática? Existem diferenças entre os que se movimentam no ciberespaço? O que eles têm de semelhança, então? Temos, hoje, mais ou menos liberdade de expressão? Quem determina isso? E se realmente se trata, a livre expressão e exposição, um objetivo benéfico para as pessoas?

11

2 O ESPAÇO DE TODOS

Estabelecido um novo ambiente singular para a comunicação, novas estratégias de discurso e interação de diferentes tipos de indivíduos podem ser localizadas. Tamanha influência do capitalismo estrutural, as relações diversas seguem uma lógica do mercado no meio digital que não mais se distingue da vida real.

2.1 Ciberespaço: o líquido pós-moderno

O estabelecimento da Internet no cotidiano das multinacionais até o cidadão mais comum a partir dos anos 1990 pode ser considerado a maior revolução na comunicação desde a imprensa para as interações massivas e de nicho midiático ou desde os telégrafos por uma abordagem globalizada das informações. O evento ainda corrente e por muito esperado, com efeitos estudados antes mesmo de sua formação, continua a linha progressiva da comunicação - iniciada em algum ponto desconhecido da história por gestos, desenhos e fala que separaram o Homo sapiens de todos os demais. Em outras palavras, quando se evoluiu abandonando os menos preparados.

Na outra ponta, no presente onde estamos, o digital e o real passaram a coexistir no ciberespaço, nomeado assim por Pierre Lévy, o campo das movimentações da cibercultura – toda sociedade atravessada e rodeada por tecnologias virtuais conectantes. Deste conceito é pertinente ressaltar o caráter globalizante da informação em múltiplas emissões e de forma atemporal – que suprime o passado e o futuro em um agora. Nos dizeres de Lévy:

É virtual toda entidade ‘desterritorializada’, capaz de gerar diversas manifestações concretas em diferentes momentos e locais determinados, sem, contudo, estar ela mesma presa a um lugar ou tempo em particular (LÉVY, 1997, p. 47). Temos que a situação das trocas de informações, as conexões em rede, geram infinitos encontros entre múltiplos emissores e receptores, elevando a comunicação em um nível jamais presenciado na história. Para se ter ideia, segundo a empresa IBM, 90% dos dados digitais existentes foram gerados nos últimos dois anos1. Sua

1 IBM. 2.5 quintillion bytes of data created every day. How does CPG & Retail manage it. Matéria escrita por Ralph Jacobson, 2013. Disponível em https://www.ibm.com/blogs/insights-on-business/consumer-products/2-5-quintillion-bytes-of- data-created-every-day-how-does-cpg-retail-manage-it/. Acesso em 11 nov. 2019. 12

fabricação é por coletores de informação – como cookies em sites, cadastros diretos, fotos e posts em redes sociais, compras online, sinal de GPS etc. Desta ciência da informação e princípios administrativos, sem aprofundar o assunto, é baseada uma sequência chamada Pirâmide do Conhecimento proposta pelo teórico organizacional Russell Ackoff (1999), da qual se inicia com Dados, que formam Informação, seguindo para Conhecimento, que por sua vez gera uma Ideia e culmina na Sabedoria.

As possibilidades diante do novo, do diferente, o estrangeiro ou o simples ponto de vista do outro englobam em suas resultantes, saltando os diversos meios e variantes, a aceitação da emissão chegada, sua negação ou seu debate em contraponto. Há, então, uma proposta que incentiva a mudança de percepção e a não estagnação dos pensamentos – plano que encontra morada no termo “líquido”, do sociólogo e filósofo Zygmunt Bauman (2001) como ele define a estrutura da sociedade atingida por completo pelo pós-modernismo.

O período em questão tem alguns marcos, sejam eles políticos como a queda do Muro de Berlim em 1989, sejam mercadológicos como a dominação mundial do capitalismo moderno, sejam culturais com expoente na indústria cinematográfica norte-americana. Todos, no entanto, se conectam ao processo globalizante das tecnologias da comunicação.

O termo baumaniano, portanto, acompanha a cibercultura, que se compõe, em espectro mais amplo, de indivíduos propensos às mudanças e mais facilmente adaptáveis, objetivando uma perfeição dinâmica – o que se reflete em suas relações diversas, seja pessoal, social ou trabalhista.

No atual estágio “líquido” da modernidade, os líquidos são deliberadamente impedidos de se solidificarem. A temperatura elevada – ou seja, o impulso de transgredir, de substituir, de acelerar a circulação de mercadorias rentáveis. (BAUMAN, 2010).

As concepções da modernidade líquida se sobrepõem a um modelo anterior de sociedade reconhecido por Bauman como “sólida”, que, por sua vez, encontra ecos nas teorias do filósofo Michel Foucault (1999). Nomeadas “sociedades disciplinares”, são, segundo Foucault, aquelas com forte estruturação social, comunicação hierarquizada e uniformidade dos pensamentos hegemônicos. 13

Admitindo que a cibercultura existe no contexto baumaniano de modernidade líquida, os indivíduos caracterizados por esse recorte se afastam daqueles das décadas anteriores, os sólidos, firmados entre os séculos XIV e XX. Em concordância com a tese da sociedade disciplinar foucaultiana, Zygmunt Bauman e também para o filósofo francês Gilles Deleuze (1992), que confrontou teorias, a modernidade “sólida” pode ser definida como aquela fortemente alicerçada nas estruturas tradicionais como família e Estado, e que observa o indivíduo “líquido” pós-moderno, novo e transformador, com estranheza.

As sociedades disciplinares são aquilo que estamos deixando pra trás, o que já não somos. Estamos entrando nas sociedades de controles, que funcionam não mais por confinamento, mas por controle contínuo e comunicação instantânea. (ibid., p. 215).

Está claro que o processo de transição para a cibercultura conversa diversas camadas das relações comunicacionais, sendo uma preponderante a comercial – pois, no capitalismo onde estamos inseridos, o mercado e o tipo de consumo definem os indivíduos. Como registro contemporâneo dessa revolução, ainda em seus primórdios, um grupo de profissionais da tecnologia e acadêmicos liderados por Rick Levine, à época um web architect2, organizou uma série de “leis”, por assim dizer, do indivíduo no ciberespaço em relação às empresas e seus vínculos, chamado de Manifesto Cluetrain.

O documento direciona o comportamento dos atores da cibercultura – com divergências ao de mídia de massa, onde consumidores deixam de serem passivos para serem engajados. Como registro in loco deste processo, em 1999, o Cluetrain traz o efeito de que as empresas precisam humanizar sua comunicação e organizar as informações recebidas:

4 - Quer seja transmitindo informação, opiniões, perspectivas, argumentos ou apartes, a voz humana é tipicamente aberta, natural, sincera. [...] 8 - Tanto nos mercados interconectados como entre funcionários intraconectados, pessoas estão falando umas com as outras de uma forma nova e poderosa. (LEVINE, 2009, cap. XIV).

Informam-nos que as empresas têm uma alma, o que é efetivamente a notícia mais terrificante do mundo. O marketing é agora o instrumento de controle social, e forma a raça impudente dos nossos

2 Profissional que constrói as estruturas de um site determinando a experiência do usuário durante a navegação. 14

senhores. O controle é de curto prazo e de rotação rápida, mas também contínuo e ilimitado, ao passo que a disciplina era de longa duração, infinita e descontínua, O homem não é mais o homem confinado, mas o homem endividado. (DELEUZE, 1992, p. 223).

Deleuze teceu reflexões decisivas para o entendimento pleno do conflito social e existencial dos indivíduos durante a transição da sociedade disciplinar para a sociedade do controle. Em comparações objetivas, o filósofo aponta a saída de um modelo de normas massivas e identitário no qual as pessoas tinham números que as individualizavam na multidão e ao mesmo tempo ordenavam-nas dentro dela, formando um bloco maior, uma sequência. A entrada na sociedade do controle, para o autor, caracteriza a implementação de amostras – ou nichos, no lugar da massa, formadas por cada indivíduo “ondulatório, funcionando em órbita, num feixe contínuo” (DELEUZE, 1992).

É característico, como uma obviedade para nós, dessas sociedades que podem ser observadas em nichos, a operação informática – com atenção ao termo que carrega a informação em sua semântica. Ainda em Deleuze existe a definição de que essa situação “não é uma evolução tecnológica sem ser, mais profundamente, uma mutação do capitalismo” (ibid., p. 223).

A família, a escola, o exército, a fábrica não são mais espaços analógicos distintos que convergem para um proprietário, Estado ou potência privada, mas são agora figuras cifradas, deformáveis e transformáveis, de uma mesma empresa que só tem gerentes. Até a arte abandonou os espaços fechados para entrar nos circuitos abertos do banco. (idem).

2.2 Funcionários do digital

Neste período, arrastado entre os anos 60 a 90 e com apogeu nos 2000, as empresas modernas ainda tencionavam sua atuação entre o tradicional e o logo ali contemporâneo, em termos estabelecidos das estruturas organizacionais das empresas utilizados por autores como Antonio Cury, de Organização e Métodos: uma visão holística (1995), numa colocação apocalíptica se tomadas algumas das frases do Manifesto Cluetrain.

Essas empresas tradicionais – aquelas com organização rígida, comunicação hierarquizada e alta taxa de longevidade do funcionário, em geral as nascidas até a 15

terceira década do século XX, tiveram os maiores desafios considerando a relação com o cliente durante o estabelecimento da cibercultura atestado em Cluetrain.

As empresas modernas, tipicamente dos anos 50 e 60, são caracterizadas pela suavização da hierarquia em um processo consultivo, com menor expectativa de longevidade em um cargo e principalmente por ouvir a opinião do consumidor, mesmo que na maioria das vezes de forma passiva. Estas, em tese, estiveram aptas a abrirem caminho para uma comunicação contemporânea meio à liquidez do que se apresentava na sociedade.

É oportuno direcionar às mesmas a manobra de apropriação de uma alma pelas empresas, posto que tinham a vastidão comercial potencial em um momento que se poderia – e deveria, explorar para seguirem existindo. Não à toa grandes símbolos da humanidade foram gerados delas através de diferentes estratégias da publicidade e da propaganda – os ideais dos contos de fada da Disney, a apropriação do Natal e do Urso Polar pela Coca-Cola, o estilo de vida moderno do McDonald’s e também o workaholic do Starbucks, Michael Jordan como um rosto da Nike e os status de um relógio Rolex.

Dentre empresas tradicionais e modernas que sobreviveram às mudanças e se adaptaram, como algumas das citadas acima, as empresas contemporâneas se destacam por representarem o exato indivíduo líquido da cibercultura do qual elas emergem; sua estrutura se relaciona por igualdade entre partes, muitas vezes organizada por projetos - como a produção de um filme que tem chefes setorizados e dura alguns meses, e, em decorrência disso, inspira pouca fidelidade dos atores do mercado. Se caracterizam ainda pela comunicação totalmente aberta em diversos polos de emissão e recepção concomitantes. Em geral são empresas mergulhadas em tecnologia ou mesmo nascidas dela, como o Twitter.

O velho limite sagrado entre o horário de trabalho e o tempo pessoal desapareceu. Estamos permanentemente disponíveis, sempre no posto de trabalho. (BAUMAN, 2017).

As premissas comunicacionais da cibercultura no mundo pós-moderno tem respaldo em diversos aspectos como a formação dos nichos – e inclusive a comutação desses, ainda que haja um espaço para a formação das “bolhas comunicacionais” quando um nicho faz uso da intracomunicação rechaçando a permuta, especialmente 16

com nichos de visão desigual. Nessa abordagem da cibercultura é possível notar suas divergências à si mesma, como também à liquidez do ser.

A infidelidade do funcionário nessas condições existe em seu íntimo, como uma desconfiança, e surge de fato no momento de ruptura dos termos de contrato – o que não significa necessariamente algo ruim para ambas as partes. Sim, porque enquanto membro da empresa, se entende que esse indivíduo é entregue ao afazer, sendo representante constituinte da alma dessa entidade que é a empresa contemporânea. Os funcionários são, por esse ângulo, porta-vozes institucionais e, num mundo em redes de exposição, é natural que levem essa condição para seus perfis digitais.

Em uma outra ponta das relações, o público, o comprador, o consumidor, tem características semelhantes, servindo como devoto da marca enquanto a informação e o estilo por ela encarnados lhe forem identitários – quando não mais, a devoção termina e em alguns casos se torna hate, o ódio à empresa/marca muito propagado nas redes sociais. Por vezes, os representantes da alma da empresa podem ser alvos desse comportamento. Todas essas forças são, como não antes, integrantes fundamentais da existência da empresa.

65 – Nós também somos os trabalhadores que fazem sua empresa caminhar. Nós queremos falar diretamente com os clientes em nossas próprias vozes, não em frases escritas em um roteiro. [...] 84 – Nós conhecemos algumas pessoas da sua empresa. Eles são legais online. Você tem mais destes escondidos por aí? Eles podem sair e jogar? 85 – Quando nós temos perguntas, nós nos apoiamos em nós mesmos para obter respostas. Se você não tivesse um controle tão restrito sobre o “pessoal” talvez eles poderiam estar entre as pessoas em que nós nos apoiamos. (LEVINE, 2009, cap. XVIII). Aproveitando-se dos termos das redes sociais mencionados acima e pormenorizados em capítulos subsequentes, a ação das empresas na constituição da sua imagem e também a ação dos seus representantes, é ancorada na comunicação digital. Ora, se as pessoas, o público, a sociedade em si está entregue ao convívio real e digital numa amalgama cotidiana, a confirmada cibercultura, não se deve pensar qualquer comunicação fora dela.

Empresas de todas as áreas, seja do setor jurídico, do cinema, dos bolos, dos estofados, dos petshops, dos carros e qualquer outra precisa, nessa conjuntura, estar presente com sua alma nas redes sociais em um processo de convergência midiática. 17

A exemplo, uma empresa contemporânea como a Netflix atua, em uma primeira camada possível, como plataforma de filmes e séries em smartphones, notebooks e televisores smart. Em segunda camada midiática a Netflix é uma produtora e estúdio de gravação de suas séries e filmes. Em terceira camada, Netflix é uma personalidade digital interagindo diariamente em suas redes sociais como Twitter e Instagram.

Figura 1: Netflix plataforma Figura 2: Netflix produtora

Fonte: netflix.com Fonte: fanpop.com

Figura 3: Netflix e sua alma nas redes

Fonte: https://twitter.com/NetflixBrasil/status/978648600170418179?s=20.

A convergências das mídias é mais do que apenas uma mudança tecnológica. A convergência altera a relação entre tecnologias existentes, indústrias, mercados, gêneros e públicos. A convergência altera a lógica pela qual a indústria midiática opera e pela qual os consumidores processam a notícia e o entretenimento. Lembrem-se disto: a convergência refere-se a um processo, não a um ponto final. (JENKINS, 2009, p. 43).

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“Vigiai e orai, para que não entreis em tentação: o espírito, na verdade, está pronto, mas a carne é fraca.”

A Bíblia Sagrada (MATEUS, 26:41).

3 OLHAI, VIGIAI

Como herança das sociedades disciplinares industriais em crescentes aplicação da vigilância como forma de segurança e desenvolvimento, a vivência digital exponenciou também esse aspecto; não apenas se expor, mas fiscalizar. Nesse fenômeno, que diz respeito à construção da identidade e status na sociedade, se testam os limites da liberdade de expressão.

3.1 Panoptismo

Em Vigiar e Punir, publicado pela primeira vez em 1975, Michael Foucault elabora argumentos sobre o estado de vigilância e punição das sociedades da época, as disciplinares industriais, em crescente implementação das câmeras em propriedades privadas e também públicas. Na obra ele estende a dinâmica para além das instituições tradicionais de disciplinamento – hospital, manicômio e prisão, até os espaços de convívio social comum e de expressão, como a escola, restaurantes e também o ambiente caseiro. Em uma nova adaptação ao tempo em que vivemos, considerando a ambiência social embebida no virtual através do ciberespaço, as premissas básicas permanecem. Por uma troca de “vantagens”, seja segurança ou status, o indivíduo:

[...] está submetido a um campo de visibilidade, e sabe disso, retoma por sua conta as limitações do poder; fá-las funcionar espontaneamente sobre si mesmo; [...] torna-se o princípio de sua própria sujeição. (FOUCAULT, 1999, p. 226).

O disciplinamento tratado na teoria foucaultiana atuou sobre os comportamentos tendo como objetivo a criação de corpos “dóceis e úteis”, capacitados para movimentar a máquina capitalista e não para questioná-la. Nesta perspectiva, as formas de ser eram deterministas, construindo hegemonias ainda presentes hoje em dia – o patriarcado, a exemplo, e também as formas de não-existência – o feminismo, em oposição ao exemplo citado, em uma perspectiva conservadora. 19

Nas últimas décadas, a sociedade ocidental tem atravessado um turbulento processo de transformações, que atinge todos os âmbitos e leva até a insinuar uma verdadeira ruptura em direção a um novo horizonte. Não se trata apenas da internet e seus universos virtuais para a interação multimídia. São inúmeros os indícios de que estamos vivenciando uma época limítrofe, um corte na história; uma passagem de certo “regime de poder” para um outro projeto político, sociocultural e econômico. (SIBILIA, 2008, p. 15).

Tendo a Internet como espaço de todos que a ela acessam, sem limitações geográficas, culturais ou mesmo temporais, seus habitantes são os mais variados possíveis. Aplicando os entendimentos de Bauman e Foucault, é possível depreender que as pessoas “sólidas” e “líquidas”, disciplinares e do controle, modernas e pós- modernas – ou mais identificadas com um modelo que outro, se encontram e atuam nesse meio, dando vida a total virtualidade da existência através de diversas experiências inéditas se considerada a tecnologia empregada.

3.2 “Visualizado às”: vigilância

O campo inovador possibilitado pela Internet simula – de forma cada vez mais real e influente no mundo físico, o fenômeno do panoptismo. Desde a confirmação de leitura no WhatsApp – “visualizado às 14h”, passando pelo visto por N pessoas no story do Instagram e tantos outros exemplos. Para ser, de fato, parte da sociedade, o digital precisou se sociabilizar em todos os aspectos, bons ou maus, se possível dizer, como esse vigiar da espetacularização das vidas e as suas relações.

Em Guy Debord (1997) se encontram conceitos que caracterizaram fortemente as sociedades ao redor do mundo e que se mostram imprescindíveis para o entendimento de todas as movimentações culturais e comunicacionais de hoje. No título Sociedade do Espetáculo, o escritor aponta os efeitos do implemento do capitalismo nas relações humanas, o que, sobretudo, levou a uma substituição da existência pela posse. Ou seja, a dualidade do cidadão moderno e industrial entre o real, que é pessoal, e o espetáculo, que é o exposto, se assemelha a vivenciada pelo cidadão pós-moderno e digital; o ser pelo ter e, mais fortemente, parecer ter - agora de modo virtual nas redes sociais.

20

17 – A primeira fase da dominação da economia sobre a vida social levou, na definição de toda a realização humana, a uma evidente degradação do ser em ter. A fase presente da ocupação total da vida social em busca da acumulação de resultados econômicos conduz a uma generalização do ter e do parecer, de forma que todo o ter efetivo perde o seu prestígio imediato e a sua função última. Assim, toda a realidade individual se tornou social e diretamente dependente do poderio social obtido. Somente naquilo que ela não é, lhe é permitido aparecer. (ibid., p. 14).

Essa organização de sociedade estimula que o indivíduo exponha suas poses, nutrindo sua posição social. Em nome desse objetivo, ainda em uma sociedade não digitalizada, os corpos querem se mostrar mesmo que isso os coloque nos citados dispositivos de vigilância. A Internet catalisou tal fenômeno, destruindo as barreiras físicas e cronológicas.

Dentro da cibercultura dos tempos contemporâneos, os status inflam em sua parte comportamental, ainda que a outra metade mais “física” que determina a posição da pessoa numa pirâmide social – nominalmente a propriedade, a riqueza em si, ainda influa neste processo.

Na perspectiva de Fernanda Bruno (2008), interessada nas máquinas digitais como tecnologias de observação, a publicização da vida pessoal não significa que as pessoas não se importem mais com sua privacidade, mas sim que querem encená-la em público. Portanto, a propriedade real reduz de importância, já que o “parecer” se torna facilitado com a Internet. Em complemento, a autora diz que “por outro lado ela [a exposição] pode, se levada ao limite, se afogar em seu próprio excesso”.

O interesse pelo outro e pelo reconhecimento desse outro se alterou e, no ciberespaço, mistura a vigilância coercitiva com o prazer do voyeurismo e do exibicionismo – indo, assim, da câmera policial para a pornografia amadora, dos reality shows até a arte, passando, certamente, pelas postagens no Instagram, Facebook e Twitter, mesmo que estes meios não queiram, incialmente, vigiar.

Além disso, nota-se que nem todos estes dispositivos estão diretamente ou intencionalmente voltados para o exercício da vigilância; este, em muitos casos, é um efeito ou característica secundária de um dispositivo cuja função primeira é outra. [...] Assim como a vigilância moderna era inseparável do maquinário estatal, burocrática e disciplinar do capitalismo industrial, a vigilância contemporânea é inseparável da maquinaria informacional, reticular e 21

modular do capitalismo pós-industrial. Não é, portanto, nem boa nem má por natureza, assim como seus efeitos não se medem por suas intenções. (BRUNO, 2008, p. 46).

Debruçada nas teorias consagradas da sociologia, Fernanda Bruno desenvolve a chamada Estética do Flagrante. O conceito relaciona a vigilância e o prazer na Internet e, em ambientes como as redes sociais, ganham características ímpares em face da propagação, da rapidez e do encontro de interesses – sejam para apoio ou crítica. Segundo ela, o fenômeno se dá facilmente em temas policiais e jornalísticos, pelo “suposto interesse público em tom de denúncia e motivados por uma atitude ‘cidadã” (ibid., p. 51).

Em troca de status os indivíduos que circulam no ciberespaço se vigiam mutuamente. Se em Debord é possível entender que o sistema capitalista disciplinar exalou o espetáculo, comercializando-o, não diferente aconteceria com na Internet do controle. As redes sociais, tratadas mais especificamente abaixo, são, numa visão comercial, pesquisas de mercado espontâneas com variados dados, menos custos e, muitas vezes, mais precisas servindo à publicidade, ao marketing e à economia.

Para o momento da informação, os dados coletados no ciberespaço são hipervalorizados como material mercadológico e até mesmo político. Não somente dados objetivos como e-mail, nome, endereço e idade, mas principalmente os fluxos de assuntos e interesses são moedas valiosas que fazem as redes sociais tão importantes para a manutenção do sistema – e em acordo entre as partes, vigias e vigiadas.

8 – Não se pode contrapor abstratamente o espetáculo à atividade social efetiva [...]. O espetáculo que inverte o real é produzido de forma que a realidade vivida acaba materialmente invadida pela contemplação do espetáculo, refazendo em si mesma a ordem espetacular pela adesão positiva. A realidade está presente nos dois lados. O alvo é passar para o lado oposto: a realidade surge no espetáculo, e o espetáculo no real. Esta alienação recíproca é a essência e o sustento da sociedade existente. (DEBORD, 1997, p. 8).

Para a vida pessoal se aplicam as mesmas relações das empresariais de interesse informacional. A busca pela visualização de um perfil em específico – o público- alvo, pelo reconhecimento através de uma curtida ou mensagem privada direta vinda de uma outra conta em especial, atua tanto nas vidas “pessoais” e “privadas” como nas 22

grandes pesquisas digitais de intenção de votos e aquelas que estruturam fluxos de interesses em milhares de dados gráficos. Pode-se entender, portanto, que a adoração mútua da exposição é generalizada na vida contemporânea.

3.3 Expressão

Entendendo que o ciberespaço propicia comportamentos bastante específicos e encontros ainda mais singulares, de acordo com todas as suas nuances, é preciso explorar as expressões em uma observação aproximada e nomear seus “quem”, “como” e “porquês”.

Pegando-se pelas redes sociais, ambientes de fácil detecção dos fenômenos da cibercultura povoados pelos indivíduos pós-modernos, sejam eles mais identificados como “líquidos” ou “sólidos”, “disciplinares” ou do “controle”, se destacam os botões quantificáveis de curtidas, seguidores, compartilhamentos e outros. Para além da informação disposta gratuitamente, os usuários buscam incessantemente altos números nesses pontuadores de status digitais.

Surgem, inclusive, terminologias relacionadas à vivência digital desencadeada da linguagem dos usuários. Termos como hit – do inglês para “acerto”, por exemplo, se verbalizaram na comunidade digital brasileira. Este aparece para detectar um usuário que teve uma publicação bastante reconhecida positivamente, muito acima de sua média, usando a palavra “hitou”.

Por contrário, a cultura do cancelamento tem nível global ao traduzir o fenômeno que faz os usuários deixarem de alimentar o status – virtual, mas também real, pois não há mais distinção, de uma pessoa/empresa, em geral famosa. Isso acontece após a marca demonstrar uma atitude negativa no julgamento de diversos grupos atuantes nas redes sociais - principalmente os que possuem uma ligação mais forte de interesse ao perfil cancelado.

Para alavancar esses valores quantificáveis é preciso se expor. Como sedimentado pelos conceitos de uma sociedade espetacularizada e que aprecia a vigilância mútua – pois isso alimenta todo o circuito dos status online, diminui-se a noção de privacidade. É relevante relembrar a todo momento que o interesse por esses valores digitais se materializa nos usuários, que são consumidores e compradores. É, portanto, 23

de interesse da mídia também – que por sua vez é sinônimo de interesse mercadológico. Só se compra o que se vê, só se vende o que se expõe.

Pra Paula Sibilia, que trata o assunto exaustivamente, todo o sistema de exposição e trocas de informações nas redes poderia significar uma experiência transformadora positiva para os usuários. Mas que, de fato, para ela, é um processo que acentua o individualismo através de estímulos imagéticos ou pequenos relatos à medida que todos querem atenção e centralidade dentro da sua rede – em menor e maior escala, seja um micronicho, um grupo de fãs ou a totalidade das redes das quais este user participe. Cabe, no contexto, a sujeição às bolhas comunicacionais que incentivam a troca entre os mesmos.

A antropóloga recorre à acepções de contornos psicológicos para determinar que, assim como sempre precisamos do olhar estrangeiro sobre nós para formar a própria identidade, os perfis digitais necessitam dessa influência externa para legitimar a existência do ser interior. Corroborando com o filósofo germânico Georg Hegel que muito anteriormente teceu que “a autoconsciência existe em si e para si quando e porque ela existe em si e para si para uma outra autoconsciência; ou seja, ela não existe enquanto não for reconhecida” (HEGEL, 1992, p. 144).

Com acréscimo, ainda, que na internet são numerosas as telas da auto-imagem personalizável e fácil de serem forjadas nos moldes desejados. Isso, por vários motivos, mas em principal pela possibilidade de uma preparação ao se expor nas redes.

[...] a internet se construiu primeiro como um dispositivo de resistência: anonimato, distribuição e comutação de pacotes são invenções computacionais para questões políticas. Assim, esse amplo espectro resistente foi a base para a internet popular pós-79, com a invenção da Usenet e dos BBS [Bulletin Board System]. Veja que curioso: os BBSs, que foram as primeiras comunidades virtuais da internet, tiveram seu código inventado na big Science norte-americana. Mas o programa se resumia a um universo nerd. Foi preciso um ativista gay para corrigir o programa, tornando-o uma máquina de “dizer a verdade”, um dispositivo onde as pessoas poderiam ser francas e “sair do armário”. (MALINI, 2014, p. 68).

O comunicólogo Fábio Malini tece diversos comentários acerca da Internet e tem se tornado referência nacional sobre o tema e suas implicações. Em sua abordagem, a Internet constitui uma camada lógica sobre a realidade sensível – desde marcar 24

presença em eventos pelo Facebook a se expressar no Twitter sobre um debate político recém visto na televisão – em uma persistente convergência midiática. O pensamento vai na linha da amalgama entre o real e o virtual, o comum e o espetáculo, descritos anteriormente.

Malini traz uma afirmação interessante sobre a privacidade no ciberespaço. Ao dizer que “a privacidade é um novo front político anticapitalista”, em 2014 durante entrevista à revista Eptic da Universidade Federal de Sergipe, o pesquisador informa que, em sua visão de reflexos anarquistas, é uma atitude contra o sistema negar dados e priorizar a pessoalidade – o que constitui mais uma forma de se expressar. Entretanto, se por um lado os argumentos para isso são o crescimento de redes diretas como o WhatsApp e artifícios semelhantes ao “melhores amigos” do Instagram – que faz envios a um grupo, temos nada além de que uma exposição seletiva, premium.

A partir desses apontamentos, há de se ponderar que para alguns ambientes virtuais, como o Twitter - tratado em específico nas próximas páginas, a expressão acontece por vezes de forma velada. Isto é, através de fakes ou perfis pouco identificáveis que podem assumir diversas personas a todo instante. Sobre a plataforma de poucos caracteres, inclusive, há um destaque formado por vários fatores criadores de uma aura que repele as demais redes sociais.

Dentre a busca por hits, a fuga dos cancelamentos e a exposição em privacidade seletiva – que pode ser ampla ou restrita, é pertinente trazer luz aos aspectos da liberdade dessa expressão. Se em Cluetrain é atestado que as empresas precisam humanizar suas vozes através do digital, isso acontece por uma única razão: as vozes humanas se digitalizaram – se expandiram, se conectaram. A liberdade de expressão ganhou um nível a mais dentro dos meios digitais por conta da sua estrutura simulatória. Como visto nas palavras de Fernanda Bruno no capítulo 3.2, não se trata mais de anonimato, mas sim, de encenação.

Raoul Vaneigem filosofa sobre os limites dessa expressão apoiado em teorias legislativas e sociológicas, obtendo, resumidamente, que não deve existir restrição nos discursos, sejam eles preconceituosos, antidemocráticos ou revisionistas – como os que dizem que a Ditadura não existiu no Brasil, por exemplo. Para ele:

25

Não há nem bom nem mau uso da liberdade de expressão [...]. A absoluta tolerância com todas as opiniões deve ter por fundamento a intolerância absoluta com todas as barbáries. (VANEIGEM, 2004, p. 19).

O escritor separa decisivamente o discurso da prática, a ideia da ação, considerando que quando a fala deixa de ser apenas isto, alcança a “barbárie”, o crime, por assim dizer e este, sim, precisa ser coibido e penalizado. A perspectiva está em acordo, por exemplo, com a Declaração Universal dos Direitos Humanos3 que em seu Artigo XIX declara “Todo ser humano tem direito à liberdade de opinião e expressão; este direito inclui a liberdade de, sem interferência, ter opiniões e de procurar, receber e transmitir informações e ideias por quaisquer meios e independentemente de fronteiras”.

John Stuart Mill, outro estudioso que filosofou sobre as liberdades, tem na livre expressão o dispositivo que desenvolve os indivíduos e as sociedades. Em Stuart Mill a restrição da liberdade não significa que um assunto ou a sua prática deixem de existir, mas sim que o efeito dessa restrição impossibilita o debate. O que por sua vez, a discussão, é um dos mecanismos mais preciosos da democracia de onde surgem os aspectos bons e maus de uma opinião. A ausência desse fator por conta da censura dos assuntos, a limitação da expressão, leva a sociedade, nas palavras de Stuart Mill, a uma “pacificação intelectual” que, para ele, “é o sacrifício de toda a coragem moral da mente humana” (2017, p. 39).

A perspectiva de Stuart Mill encontra respaldo na abordagem teleológica da moral que considera os fins para a definição de uma possível imoralidade. Isto é, as condutas humanas aparentemente fora da moralidade podem ser legitimadas de acordo com os efeitos consequentes de interesse da sociedade ou grupo. Portanto, se tomando de um tema contemporâneo, a aparente imoralidade da educação sexual para crianças deve buscar a validade de sua aplicação dentro do consenso social de que a segurança sexual das crianças precisa ser garantida – e, no caso, através do conhecimento gradual por parte delas direcionada através de profissionais. Em uma exemplificação mais branda, ainda, uma piada que recorre ao absurdo pode por fim ser eficaz para a reflexão de um tema sensível – mesmo que por si só sugira a imoralidade da questão.

3 Declaração Universal dos Direitos Humanos. Disponível em https://www.ohchr.org/EN/UDHR/Documents/UDHR_Translations/por.pdf. Acesso em 11 nov. 2019. 26

4 CONEXÕES EXPOSTAS

Estabelecida a mescla de um antigo mundo dual entre o real e o virtual, a região das redes sociais se destaca no ciberespaço que ao Twitter cabe a posição de melhor exemplo. É dada a largada para a escolha do avatar na construção da melhor persona.

4.1 Redes sociais

Por definição é entendido que a rede social é um espaço de cibercultura que ganha especificidades tão ricas sobre a humanidade justamente por espelhar as interações sociais nos perfis e nas conexões entre eles que, diferente do mundo não- digital, podem ser extremamente numerosas.

Para além dos detalhes de cada uma das plataformas possíveis – desde o Telegram até o Youtube, certos fatores ressaltam sobre a unidade Rede Social. São, estes, ambientes de premissa gratuita para promover a interação entre seguidores e seguidos, considerando, assim, um dos maiores valores desse espaço a liberdade de escolha e expressão dos usuários – reservadas às diretrizes da comunidade que costumam ser pouco coercitivas.

Ainda que surgido no pico das redes sociais já clássicas e que mais perduram hoje, o Twitter parece se esforçar para se afastar do funcionamento do Facebook e Instagram – atualmente gerenciadas pelo mesmo empresário, Mark Zuckerberg. Para isso, algumas medidas mais bandeirosas são tomadas, como a decisão declarada por Jack Dorsey, CEO do Twitter, de banir anúncios políticos em sua plataforma – atitude a qual se apõe o criador do Facebook4. Com isso, uma nuvem distinta eleva o Twitter, se nutrindo de uma mecânica única, usuários ativos e seus fundadores orgulhosos, que distinguem a rede como:

Uma fonte muito rica para informação em tempo real. A nossa ideia é que essa informação chegue a todos a quem possa interessar; é nisso que estamos a focar-nos. (STONE, 2010).

4 Twitter anuncia fim de publicidade política na rede social. Matéria assinada por Thiago Lavado, 2019. Disponível em https://g1.globo.com/economia/tecnologia/noticia/2019/10/30/twitter-anuncia-fim-de- publicidade-politica-na-rede-social.ghtml. Acesso em 30 out. 2019. 27

Em sua mecânica, o Twitter mostra de forma prática os diferenciais para as demais grandes redes sociais. Em transcrição direta de seu processo, o cadastro é facilitado precisando apenas de um endereço de e-mail – sem obrigação de informar idade, sexo etc. Ainda que essas informações sejam conquistadas dentro da rede, não existe imposição.

De fato, como em redes de noticiosas, o Twitter segmenta interesses editoriais escolhidos pelo usuário logo no início de seu processo de adesão. Aqui, o foco é em assuntos – e não perfis, como no Instagram e também no Facebook, sendo que neste a segmentação ocorre de uma forma menos esclarecida. Há uma diferenciação, ainda que cedo ou tarde usuários e temas se misturem e por fim sirvam de direcionamento para a navegação em todas essas redes.

Para além de todos os fatores acima e abaixo, o Twitter ficou conhecido por ser uma rede que privilegia o texto curto e objetivo. Isso implica em diversos fatores como a diminuída interpretação do emissor e do receptor e o incentivo das trocas em debates menos monopolizados – considerando que um texto alongado tem mais possibilidade de nortear todas suas nuances e se bastar por si mesmo. Por fim, mensagens curtas e velozes facilitam a captação do grande fluxo de envios por parte do software, mantendo-se intermitente e garantindo que nenhuma fala seja negligenciada de sua atenção, desde as influentes contas verificadas dos famosos às minúsculas de um fake sem foto.

Alguns pontos da mecânica do Twitter são menos perceptíveis, mas são exatamente os que fazem a diferença e garantem a audiência singular. Para Facebook e Instagram, o feed – onde aparecem as publicações de quem você segue ou é amigo, não é cronológico. A ordem dos envios sofre interferência de algoritmos relacionados à audiência, influência e interesse acentuado que varia a todo instante. Isto é, ao acessar essas redes depois de algumas horas fora delas, o usuário não verá inicialmente, no Instagram e no Facebook, as publicações do momento, e sim uma seleção do que mais suas conexões interagiram. No Twitter, o feed retoma do exato ponto onde o user parou – mesmo que o último acesso tenha sido há dias, e a ordem das publicações privilegia a linha temporal das postagens. O impacto na usabilidade é expressivo, uma vez que respeita a autoridade do usuário ao dispor a ele todas as informações em ordem cronológica e que ele escolha aquilo que lhe agrada, atingindo algum tipo de onisciência de sua rede. 28

Na aba “busca” reside outro diferencial do Twitter meio às redes sociais. É onde as mensagens das pessoas tomam forma de temas e surgem de acordo com os interesses marcados pelo usuário e da atividade de quem é seguido. Ou, ao lado, a um slide de distância, os temas gerais destacados pela comunidade considerando sua totalidade. E se, ao ser lançado nos smartphones em 2006, o sistema de aglomeração dos conteúdos usava a hashtag (#), inteligentemente hoje a repetição de palavras ou termos é suficiente para a indexação de assuntos.

Ainda relacionado a aba “busca”, um fator determinante para o aspecto on time – e noticioso, do Twitter é que os temas que surgem são os mais comentados em um curto espaço de tempo corrente. Isto é, o assunto destacado está em evidência crescente – mesmo que macrotemas do dia tendam a permanecer entre esses trending topics. Repetindo, esses tópicos estão disponíveis em duas versões: a que considera as preferências e pesquisas do perfil, e a que leva em conta a comunidade toda. Esse funcionamento geral contribui para a noção de que o Twitter é, sim, uma rede social informacional. Uma rede informacional veloz, instantânea, urgente.

4.2 Capital das personas

Com as variantes de formação do usuário na rede social, os perfis misturam seus posicionamentos offline, aqueles que demonstram em ambientes de trabalho, família e amigos aos comportamentos exclusivos da vida online – sejam eles paralelos aos da “realidade” ou até contraditórios. A internet, o ciberespaço, as redes sociais permitem e em certo ponto incentivam esse “distúrbio de personalidade”.

Dentre os produtores de conexões da cibercultura nas redes sociais se destacam algumas personas – sejam elas geradas/controladas por uma pessoa ou grupo, e que em quase sua universalidade não vão encarnar um único caráter e sim a mistura de dois ou mais descritos a seguir:

- Famosos: pessoas notáveis em suas áreas, sejam cineastas, apresentadores, humoristas, cantores, modelos etc.

- Políticos: pessoas de atividade pública e governamental que atuam nas redes sociais. Tem-se o entendimento que é parte importante do trabalho com a sociedade. 29

- Trolls: usam o poder cibernético para proferir mentiras sobre pessoas e assuntos. São geradores de memes e fake news, uma combinação nociva.

- Imprensa: jornalistas ou grupos de profissionais da notícia.

- Haters: estes atacam e diminuem a ocupação de outro usuário específico e continuamente, como um bullying virtual.

- Ativistas: usuários com atividade principal o debate e defesa de algum tema.

- Militantes: pessoas que formam fãs e público de ativistas, tornando-se eles eventualmente por conta da admiração.

- Celebridades: como atores e socialites, não necessariamente notáveis - como os Famosos, em suas respectivas áreas.

- Influenciadores Digitais: estes usam seu capital sociodigital para ganhar a vida de maneira geral.

- Robôs: parcela de perfis gerados artificialmente com fim claro e objetivo, podendo ser facilmente reciclados para novos propósitos.

- Fakes: doam poucas informações, em geral forjadas, e podem usar seu “anonimato” de várias maneiras.

Um conceito abrangente que categoriza o encontro dos diversos perfis nas redes sociais é o de inteligência coletiva, de Pierre Lévy. Pensado a partir das novas possibilidades digitais crescentes nos anos 1990, ainda que vindouras as redes sociais, se define:

É uma Inteligência distribuída por toda a parte, incessantemente valorizada, coordenada em tempo real, que resulta em mobilização efetiva das competências. (LÉVY, 1998, p. 28).

A premissa é tão intrínseca aos fenômenos ciberculturais que não chega a ser notada e simplesmente existe com as movimentações digitais. Isto é, ninguém sabe de tudo, mas a Internet, sim. Porque cada usuário sabe um pouco e cada pouco dos usuários se torna uma sabedoria virtual completa e compartilhada da qual todos sabem tudo de tudo e de todos. Trata-se, então, de mais um atestado do fim da 30

comunicação massiva “um para todos” – e nem “um para muitos”, e o estabelecimento de “todos para todos”. Nichos comunicantes entre si.

Entretanto, dentro dessa utópica massa intelectual, a disputa dos egos persiste, como vimos acima nas linhas sobre status e vigilância, espetáculo e autoimagem. As técnicas que envolvem essa disputa digital são estudadas por muitas referências, mas quem se evidencia no tema por organizar relacionando com as redes sociais é a jornalista pesquisadora Raquel Recuero. Para ela, o Capital Social dentro do digital é o campo maior que sustenta outros fluxos digitais que constroem a relação, a conexão, entre influenciadores e influenciados.

Os atores, definidos por Recuero como nós em uma rede, emitindo e recebendo dados – são um estágio amplo dos usuários e suas personas, e as conexões – que são os laços sociais entre os atores, estruturam, para a pesquisadora, os pilares dos estudos sociocomunicacionais na cibercultura. Isto porque esses elementos geram informações que na Internet, nas Redes Sociais, são mantidos como rastros, registros, dados de toda a movimentação, se tornando insumo para pesquisas e característica da face atemporal da cibercultura.

Por fim, cabe destacar também que boa parte do processo comunicacional passa a ser não apenas público, deixando seus rastros digitais visíveis, mas também indexável [...] como a utilização de hashtags no Twitter promovem uma mudança cultural no discurso eletrônico, que passa de uma conversação online simplesmente para uma conversação “pesquisável” e pública entre diversos interagentes, o que sugere que as empresas/marcas devem observar ainda mais cautelosamente o modo como constroem seus discursos. (PEREIRA, 2016, p. 132).

Em busca de uma boa colocação do Capital Sociodigital, os atores usuários de redes sociais elaboram suas conexões e interações em direção aos valores que, segundo Recuero, podem ser Relacionais ou Informacionais.

O primeiro se explica pela geografia virtual dos nós na rede, que varia de acordo com suas conexões e interações. Um nó, um perfil, pode ser mais central em uma rede se tem mais conexões. Pode ser mais forte se mantém uma relação constante entre as conexões. Pode, também, ser maior dentro dessa rede conforme consegue influenciar com mais intensidade os demais nós a si conectados. 31

Na segunda característica apontada está o valor informacional. Ainda que secundária em vista do primeiro item, talvez este valor catalise o que significa adquirir Capital Social em toda a forma das redes sociais da Era da Informação. Trata-se da relevância daquilo que se informa, que tem a ver com o interesse gerado em um tema, que por sua vez apresenta uma curva de busca com ambiente pregresso, um pico e em seguida o decréscimo – e eventualmente uma retomada.

O empenho de um determinado ator em obter informações e divulgá- las a sua rede social, por exemplo, enquanto foca esse tipo de valor traz para o ator reputação. Vemos isso com mais clareza nos usos do Twitter e dos blogs. (RECUERO, 2009).

Ao se aprofundar no tema, conhecemos, dentre os fundamentos de Recuero, uma tríade determinante para o funcionamento da sociedade digital no ciberespaço. Inserido no Capital Social há o incremento da Reputação, Popularidade e Autoridade.

O primeiro item descreve o fenômeno perceptivo das pessoas sobre um usuário. Isto é, um perfil busca um tipo de reputação ao exercer determinada ação às vistas de outros perfis, como atestado na formação da identidade. Faz parte desse processo o “desvio”, ou o “gap”, entre o que o perfil causador da ação espera que seja notado/visto e aquilo que de fato foi percebido pelos outros usuários e nichos. Em uma escala maior essa movimentação constrói diferentes reputações de um usuário de acordo com os nichos e cada reputação pode ou não ter sido intencionada incialmente por esse usuário observado.

Mas a reputação não é somente o número de leitores de um blog, ou o número de seguidores do Twitter. A reputação é relacionada com as impressões que os demais atores têm do outro ator, ou seja, do que as pessoas pensam de um determinado blogueiro, por exemplo. A reputação é uma percepção qualitativa per se. Todos os nós em uma rede social possuem reputação. (RECUERO, 2008).

O segundo item aprofundado do Capital Sociodigital e preponderante para sua existência é a Popularidade. Se na Reputação os fatores envolvidos – usuários, se retroalimentam, o fluxo da Popularidade é de um nó para a audiência. Nas redes sociais, como visto, botões de ação podem descrever esse elemento ao medirem tanto quantitativa quanto qualitativamente, com curtidas e seguidores, por exemplo, fazendo da Popularidade um elemento mais técnico. 32

Um aspecto que une as duas perspectivas das ações é a menção – quando o nome do usuário é citado em uma publicação, fazendo referência a ele e melhor localizando sua posição na rede ou nicho de rede. De acordo com Raquel Recuero, quanto mais centralizado um nó, um ator, esteja, mais popular ele é porque vai mobilizar diferentes conexões espalhadas na rede. Este segundo item da tríade ainda se liga à malha atemporal dos rastros da Internet que, em plataformas como o Twitter, permite pesquisas dos registros de menções e assuntos, por causa da:

permanência ou persistência (como explica Boyd, 2007) das interações no ciberespaço. [...] Podemos, por exemplo, avaliar a popularidade de um perfil no Twitter pela quantidade de seguidores que esse perfil possui. Ou pela quantidade de referências que são feitas ao perfil em uma conversação. (ibid.).

Completando o conjunto, a Autoridade é das características construtoras do Capital Social a que mais se destaca. Uma vez que as duas anteriores estabelecem relação íntima – a Popularidade é um tipo de Reputação, boa ou ruim, e a Reputação alicerça a Popularidade do user nos nichos. A Autoridade independe das demais - ainda que existam enquanto conjunto, a tríade, e a última sujeita as anteriores.

É, para Recuero, o poder de influência de um nó dentro da rede – para além de suas conexões e centralidade neste ambiente. Portanto, a Autoridade se entende como um passo além da Reputação porque depende da percepção dos outros usuários para ser validada – e não apenas o esforço do perfil nessa direção. Com isso, é dos itens aquele que tem fluxo da audiência para o perfil, de forma subjetiva, pois o público que concederá Autoridade ao perfil de acordo com seus interesses e à medida que este a busca dentro dos nichos e da rede como um todo.

A autoridade de um ator no Twitter, outro exemplo, poderia ser medida não apenas pela quantidade de citações que um determinado ator recebe, mas principalmente pela sua capacidade de gerar conversações a partir daquilo que diz (o que não é, necessariamente, um sinônimo de citação). Como muitos atores utilizam o Twitter como uma fonte de informações (vide o trabalho de Honeycutt & Herring, 2007, por exemplo), há uma possível capacidade de gerar autoridade (a partir da influência) muito grande no sistema. [...] Assim, a medida de autoridade é uma medida que só pode ser percebida através dos processos de difusão de informações nas redes sociais e da percepção dos atores dos valores contidos nessas informações. (ibid.).

33

“Na era da informação, a invisibilidade é equivalente à morte.”

“As redes sociais são uma armadilha.”

(ZYGMUNT BAUMAN).

5 O CASO JAMES GUNN

O diretor de cinema James Gunn, de 53 anos, protagonizou diversas movimentações nas redes sociais sem perceber o quão poderosos são os olhos do tribunal digital igualmente politizado. Se a maioria dos indivíduos parece se expor de maneira semelhante, diferente se mostra a postura frente suas sentenças.

5.1 Quem é @jamesgunn

James Francis Gunn Jr. é um norte-americano nascido no estado do Missouri em 1966. Hoje, ele é um dos principais diretores de cinema do mundo em produções como Guardiões da Galáxia 1 e 2 (2014 e 2017), do Marvel Studios/Disney, com interferência decisiva nos demais filmes pertencentes ao Universo Cinematográfico da Marvel que interage, até o momento, 23 longa-metragens. Para além, dirigiu o vindouro Esquadrão Suicida 2, da concorrente DC/Warner Bros Entertainment. Gunn também veste o papel de roteirista, produtor, ator e músico.

Analisando sua cinebiografia, James Gunn se localiza na indústria como alguém surgido de filmes B – famosos “pastelões” orçados por baixo. Títulos como Tromeu e Julieta (1996) – uma adaptação grosseira e violenta do clássico de Shakespeare, Os Especiais (2000) – equipe de heróis de segunda linha, Scooby-Doo 1 e 2 (2002 e 2004) e Madrugada dos Mortos (2004) estão entre seus roteiros. Na direção, Gunn estreiou com Slither (2006) – comédia de terror e ficção científica da qual também roteirizou e Super (2010) – um outro filme de heróis. Este último parece ter consagrado o gênero para o diretor, o credenciando para comandar a adaptação da desajustada equipe Guardiões da Galáxia dos quadrinhos para as telonas. 34

Hoje, aos 53 anos, e após uma sequência de situações turbulentas profissionalmente, Gunn parece ter dirigido um plot twist - uma reviravolta, em sua própria vida. Sem medo de spoiler, o diretor segue entre os principais nomes da indústria hollywoodiana após as polêmicas – não apenas no trabalho em si, mas mantém boa forma relacional com outros profissionais do cinema.

Apesar de sua idade biológica permitir uma certa abordagem de sua personalidade, a verdadeira identidade de Gunn, em aspectos comportamentais, parece apontar mais para um mundo pós-moderno líquido imerso em cibercultura que não existia quando ele nasceu. Isto, pois, se entendido que as Redes Sociais são uma nova camada da existência, é possível expandir a avaliação de cada persona excedendo-se a sua idade e a questões geracionais.

Sobre a personalidade digital, a dos usuários, as personas, vale mencionar o Apply Magic Sauce – Prediction API, um leitor de perfis em redes sociais desenvolvido na University of Cambridge – The Psychometrics Centre5. Ao fazer uma varredura dos dados do perfil – disponíveis por download nas opções do usuário dentro de sua conta, a plataforma descreve a personalidade, a inteligência, a liderança, a satisfação e demais preferências do usuário nos rastros atemporais em rede.

Eu me via como um provocador, fazendo filmes e contando piadas que eram escandalosas e tabu. Como eu disse publicamente muitas vezes, na medida em que eu desenvolvi como pessoa, meu trabalho e meu humor também se desenvolveram. Não posso dizer que sou melhor, mas sou muito diferente do que eu era há alguns anos. (GUNN, 2018).

5.1.1 Desculpas

Em julho de 2018 James Gunn teve certas mensagens antigas de seu Twitter trazidas de volta por perfis como o de Mike Cernovich, comunicador norte-americano que interage nas redes sociais com ideiais declaradamente patrióticos, conservadores e também alinhado à supremacia branca e ao anti-feminismo. Outros perfis semelhantes contribuíram para remover os tweets da malha atemporal das redes, como o de Jack Posobiec, um militar de extrema-direita bastante atuante no Twitter.

5 Disponível em https://applymagicsauce.com/demo. Acesso em 13 nov. 2019. 35

Figura 4 – Tweets polêmicos

Fonte: https://www.cernovich.com/james-gunn-endorses-pedophilia-in-10000- deleted-tweets/.

Os tweets em questão tinham insinuações à pedofilia e ao estupro, desrespeito às pessoas com HIV, além de outros temas igualmente sensíveis, todos digitados por James Gunn de 2008 a 2011. No mesmo dia daquele julho, com o nome do cineasta nos trending topics do Twitter e seu “cancelamento” em andamento, a demissão veio através do diretor geral do Walt Disney Studios, Alan Horn, que encerrou as relações de negócios dizendo que “as atitudes e declarações ofensivas descobertas no Twitter de James são indefensáveis e inconsistentes com nossos valores, e danificaram nossa relação com ele” (HORN, 2018). Participações de Gunn em eventos para divulgação de Brighburn – por ele produzido, e um projeto em conversa para o serviço de streaming da Amazon foram imediatamente interrompidos.

James Gunn, ao ser contratado pela Marvel/Disney em 2012 para o início da produção de Guardiões da Galáxia, publicou em seu Facebook uma carta pedindo desculpas públicas por outras mensagens igualmente criticadas. Em específico, postagens homofóbicas e sexistas de seu blog no ano de 2011. Neste pronunciamento, Gunn declarou que há alguns anos escreveu um blog que pretendia ser satírico e ao relê-lo nos últimos dias – em 2012, não achou engraçado. Na mensagem ele ainda afirma, dentre outras coisas, que “as pessoas que estão familiarizadas comigo, como evidenciado pela minha página no Facebook e outros meios de comunicação, sabem que sou um defensor franco dos direitos da comunidade de gays e lésbicas, mulheres e qualquer pessoa que se sinta desprovidado de privilégios” (GUNN, 2012).

Eu estou aprendendo o tempo todo. (ibid.). 36

James Gunn comunicou desculpas por suas palavras mais uma vez, seis anos depois, agora por conta da demissão relâmpago causada pela projeção dos tweets de uma década antes. Em suas palavras o diretor afirma que ao longo dos anos sua personalidade foi mudando e, portanto, sua produção de trabalho também, enraizando-se mais no amor e na conexão do que na raiva. Ainda nesta carta pós- demissão, Gunn afirma que na época dos tweets polêmicos ele “falava coisas só para chocar e ver as reações” (GUNN, 2018). O tom, entretanto, não é de arrependimento ou remorso, uma vez que o diretor deixa claro não culpar seu passado.

Em 15 de março de 2019, com menos de um ano afastado do estúdio que o alçou a grande nome de Hollywood, James Gunn foi readmitido por Alan Horn, retomando projetos dos quais ele se mostrou peça fundamental – atestado pelos outros diretores do Marvel Studios que se negaram a dar seguimento nos trabalhos suspensos. Ainda, o elenco de Guardões assinou uma mensagem iniciada com a frase “Para nossos fãs e amigos: nós apoiamos James Gunn completamente” (GUARDIÕES DA GALÁXIA, 2018), declarando o amor e gratidão nas relações geradas durante as gravações.

O pronunciamento, no entanto, não defendeu as “piadas” antigas e colocou em oposição as “teorias conspiratórias” acentuadas por um ambiente político norte- americano polarizado. Sobre isso, se completa nas palavras da equipe o desejo de que o julgamento público vindo dos diversos espectros políticos se atenuem acerca do “assassinato de personalidades” parando, assim, de reproduzir a “mentalidade de rebanho”.

Entre demissão e retorno, James Gunn seguiu seu ritmo de trabalho ao ser convidado por outra produtora, a DC/Warner, para assumir a sequência de mais um filme de grupo de heróis – ou quase isso. Conciliando, então, suas atividades de trabalho com fidelidade enquanto nas produções.

É nossa esperança que o ocorrido possa servir de exemplo para cada um de nós perceber a grande responsabilidade que temos, conosco e com os outros, tratando-se de nossas palavras escritas que são gravadas nas pedras digitais; e que como sociedade possamos aprender com essa experiência e, no futuro, pensar duas vezes no que queremos expressar; e curar ao invés de machucarmos uns aos outros. (GUARDIÕES DA GALÁXIA, 2018).

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5.2 Políticas

5.2.1 Disney

A política se faz presente no Caso James Gunn em diferentes formas e interagentes, como tudo atualmente, no ciberespaço. A começar pela política empresarial da Disney que nas palavras do diretor geral Alan Horn surgiram num vislumbre para alertar que os tweets antigos de Gunn não estão de acordo com os valores da empresa. Pois, certamente, tendo em vista que se trata, possivelmente, da maior fabricante de conteúdo infantil e juvenil da história.

Pode se pensar que a velocidade na demissão de James Gunn – no mesmo dia da exposição, se deu de forma proporcial a de propagação dos meios digitais. Ainda que com bancos de dados e estudos de situações precedentes, tomadas de atitudes apressadas, urgentes nas crises, em geral conferem às ações uma abertura para retornar a decisão – como assim se provou.

Pode-se deduzir que as ameaças ganham proporções maiores, pois um efeito negativo, na velocidade da informação e com diferentes meios de comunicação que favorecem tal agilidade pode ter consequências devastadores para uma organização, um produto e a reputação de uma marca. (TEIXEIRA, 2011, p. 3).

Para certos estudiosos da comunicação empresarial como o brasileiro João José Forni, a decisão imediata de Horn tem valência no termo turning point – de onde surgem as atitudes menos debatíveis que outras em favor da imagem da marca. Em casos mais raros o “ponto de virada” pode ir no sentido de um ganho expressivo e não a fuga de algo negativo. O termo é característico do efeito das velozes redes sociais mesmo para empresas pós-modernas que privilegiam o processo consultivo em suas decisões, como o caso da Disney, suas divisões e subsidiárias. Para Forni, o turning point é o estado pré-crise no qual:

A mais alta qualidade da tomada de decisão é essencial. Nessa fase, provavelmente está o ponto em que muitas organizações falham. (FORNI, 2013, p. 10).

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É pertinente constatar que a Disney, sendo uma das empresas mais longevas e bem-sucedidas, não tem propriamente uma identidade una – o rato, hoje, é um símbolo distante de ser sua maior fonte de lucro, logo, de interesse. A exemplo, atendo-se apenas ao cinema, a companhia tem três grandes estúdios – Marvel, Pixar e Lucasfilm que movimentam diferentes ícones e respectivos nichos.

A relação dos valores da marca, portanto, encontra-se fragmentada em diversas imagens. Aprodundando, a identidade é separada - pois não é individual, na presença de numerosos representantes que incrementam opiniões, desejos, argumentos e posicionamentos. O fenômeno da partição identitária parece estar de acordo com o momento de nichos relacionais inseridos como ferramenta das sociedades do controle.

A identidade é a coleção de atributos vistos como específicos daquela organização por seus membros. E, nesse sentido, a identidade não é necessariamente comum a todos os membros da organização, mas, sim, mantida por grupos específicos. (VAN RIEL, 2003, apud ALMEIDA in KUNSCH, 2009, p. 217).

5.2.2 Gunn

Com sua adesão ao grupo Disney em uma posição importante, James Gunn se tornou forte vetor da imagem da marca por onde quer que fosse – ou digitasse. Isto, pois, Gunn sempre se mostrou ativo digitalmente em blogs e redes sociais. Como visto, nunca se omitindo de comunicar o que pensasse, qualquer fosse o objetivo.

A visibilidade alcançada pelo diretor no Twitter, por exemplo, a partir dos anos como funcionário da Marvel/Disney, levou sua inquietação por temas polêmicos a um alvo-destaque: o presidente dos Estados Unidos da América, Donald Trump, eleito nas votações de 2016.

Numa averiguação própria para o presente documento, desde o início do ano da corrida presidencial até o fim de 2018, James Gunn tuitou o nome “Trump” em 380 oportunidades. Dentre mensagens diretas às do presidente a citações em assuntos tratados pelo chefe de estado, o diretor teve média de 1 tweet a cada 3 dias em que falasse algo sobre Donald Trump.

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Figura 5 – Gunn questiona apoiadores de Trump

Fonte: https://twitter.com/JamesGunn/status/1018907361501593602?s=20.

Figura 6 – Gunn acusa Trump sobre fake news em resposta a Hilary

Fonte: https://twitter.com/JamesGunn/status/1020100541303599104?s=20.

James Gunn aproveitou-se desse capital sociodigital de diversas maneiras em diferentes momentos, mas sempre inserido na ciberultura inerente aos tempos de hoje. O Twitter, como ferramenta apropriada desses processos, tinha, em 2011, 100 milhões de usuários ativos por mês. Uma marca alta que registra 330 milhões de perfis nas mesmas condições em 20196.

Desde o dia da demissão em 20 de julho de 2018, Gunn não mais escreveu no Twitter até o momento de seu retorno, em 15 de março de 2019. As pautas seguintes passaram a ser sobre interação com seus fãs, atualizações de seus trabalhos e breves aparições de sua vida pessoal. Os raros assuntos políticos em seu perfil falam de

6 Informações disponíveis em https://link.estadao.com.br/noticias/empresas,numero-de-usuarios-do-twitter- cresce-apos-limpeza-na-rede-social,70002800800 e https://www.huffpostbrasil.com/2011/09/08/twitter- stats_n_954121.html. Acesso em 18 out. 2019. 40

causas climáticas e animais, não tendo mencionado ou se referido ao presidente de seu país, Donald Trump.

5.2.3 Mike e Jack

Se James Gunn usufruiu de seu capital sociodigital nas redes – e se esforçou para isso, o mesmo pode ser aplicado aos perfis que vasculharam seus dados no Twitter. Mike Cernovich é, para além das apresentações já citadas, reconhecido como um troll na vida digital. O escritor Andrew Marantz, no artigo Trolls for Trump para o jornal norte-americano The New Yorker, definiu Cernovich como “the meme mastermind of the alt-right” (2016) – algo como “a mente brilhante por trás dos virais de extrema-direita”.

Mike exercita sua comunicação para nichos que interagem com seu capital dentro das prerrogativas de Raquel Recuero descritas ao longo do capítulo 4.2 sobre Reputação, Popularidade e Autoridade – bem como qualquer perfil em rede. Outro nome relacionado é o de Jack Posobiec, autor de uma imagem bastante replicada com uma compilação dos citados tweets. Em comum, Mike e Jack tem o posicionamento político de extrema direita em apoio ao republicano Trump, além das outras questões conspiracionistas, de supremacia branca, militares, etc. Eles se identificam também nas personas das redes sociais – um alavancando o outro em perfis digitais mesclados – Troll, Imprensa, Hater, Ativista, Militante, Influenciador e outros dentre os mencionados também no capítulo 4.2.

Ambos ainda estão ligados ao Caso PizzaGate – conspirado por Jack e endossado por Mike. No episódio, durante a corrida presidencial, a democrata Hillary Clinton foi acusada de abusar sexualmente de crianças em rituais satânicos no porão de uma pizzaria em Washington, D.C. Além da influência de perfis como os de Mike e Jack, a fake news foi impulsionada nas redes sociais através de perfis robôs7.

A caçada por James Gunn tem uma razão óbvia – seus ataques ao presidente norte-americano, mas encontrou respaldo em outros pontos, além do suposto

7 Disponível em https://www.rollingstone.com/politics/politics-news/anatomy-of-a-fake-news-scandal- 125877/. Acesso 20 out. 2019. 41

jornalismo-cidadão denunciado por Fernanda Bruno e o teor vil das postagens do diretor de cinema.

Alguns meses antes da situação do Caso, a Disney havia demitido a comediante de 66 anos de idade Roseanne Barr por conta de um tweet em que ela se referiu a Valerie Jarrett, assessora de Barack Obama em seu governo presidencial, como a mistura da Irmandade Muçulmana com Planeta dos Macacos – o filme.

Figura 7 – Tweet de Roseanne Barr

Fonte: cnbc.com 42

Em todas as suas declarações seguintes, Roseanne - que enviou tal mensagem de Twitter enquanto contratada da Disney, insistiu em um mal-entendido de sua piada e que não foi racista, chegando a culpar remédios controlados. A empresa farmacêutica, inclusive, respondeu dizendo que “racismo não é um dos efeitos colaterais do medicamento”8.

Os grupos conservadores de escavação digital tiveram em Roseanne, democrata apoiadora de Trump, o questionamento político-partidário para argumentar com a Disney se porventura não fosse demitido quem eles acusassem de algo semelhante.

Em tempo, é pertinente mencionar que a manobra usada pelos trolls é recorrente. Em 2017, Mike Cernovich causou a demissão do humorista e comentarista político Sam Seder do canal MSNBC por conta de um tweet seu de 20099.

Se o conhecimento pode criar problemas, não é através da ignorância que podemos solucioná-los. (ASIMOV, 1975, p. 15).

8 Disponível em https://www.theguardian.com/culture/2018/may/30/roseanne-ambien-racism-tweet-side- effect-response-sanofi. Acesso em 25 set. 2019. 9 Disponível em https://money.cnn.com/2017/12/05/media/sam-seder-msnbc-mike-cernovich/index.htm. Acesso em 25 set. 2019. 43

6 Conclusão

Dada a formatação digital das sociedades pós-modernas nas quais vivemos, certas visões de indivíduos diferentes persistem em polarizar a amalgama digital. Da política em um plano geral, extremando modos de existência, passando pelo público e o privado, o real e o virtual, a expressão existe, ainda assim, de forma mais democrática possível para os diversos emissores na cibercultura.

O contexto carrega o centenário capitalismo estrutural, principalmente numa concepção ocidental da vida moderna, na qual parece ser parte fundamental. Tendo- se por sentidos mercadológicos, então, a transição para o modelo pós-moderno de sociedade do qual imprescinde a cibercultura ainda se movimenta para encontrar estabilidade entre o preço e a demanda – dos status, da influência, dos discursos.

Ora, porque sim, o caráter vendível das imagens da sociedade do espetáculo persiste, encontrando novos símbolos e apequenando do controle massivo ainda presente nos primórdios de um mundo pós-moderno. Os múltiplos polos de informação, de vozes, de pontos de vistas fatiam qualquer massa e comunicam suas personas singulares que precisam aparecer para existir. Plataformas como o Twitter são exemplos adequados para essa democratização da fala/imagem.

Pelo gozo do vigiar, pois o panoptismo é dessas características profundamente enraizadas nas sociedades, as personas singulares se encontram. Apesar da oportunidade de uma contemplação do diferente visando a aprendizagem, é perceptível a prevalência midiática de uma vigilância coercitiva e acusadora.

Esse encontro quase às cegas nas redes sociais coloca em confronto pessoas de diferentes regiões, idades, políticas etc. acrescendo-se as novas possibilidades de personalidades disponíveis em um mundo virtual. São personas que, em maior ou menor quantidade, comunicam uma postura progressista ou conservadora. Abrangendo os conceitos de Bauman, são seres líquidos e sólidos que, em geral, se identificam mais com um modelo ou com outro.

Ao passo que a existência no ciberespaço incentiva a visualização mútua dos perfis, uma força contrária a si mesma eclode desse fenômeno. A perseguição da expressão é, apesar da contradição, mais uma forma de se expressar. Pois, sim, um dado exposto em rede pode servir ao entendimento de qualquer usuário que a ela 44

tenha acesso. Notório que esses usuários são os mais diversos possíveis. Adiantando, o resultado dessa perseguição parece tão fugaz quanto exige sua Era.

Ao nos escalar para lhe ajudar a contar essa história de baderneiros que encontram redenção, ele mudou nossas vidas para sempre. Acreditamos que o tema de redenção seja mais do que relevante agora. (GUARDIÕES DA GALÁXIA, 2018).

Adentrando no Caso, seu personagem central, o diretor James Gunn, é em essência e em suas personas nas redes, líquido. Este ponto se autentica por sua disposição com dispositivos sociodigitais não característicos da sua geração – Gunn nasceu em 1966, mas sim quase simbióticos para os jovens de hoje em dia. Disposição essa que, segundo o próprio, o levou a expor sem filtro os seus devaneios em busca de algum destaque para a audiência digital. Por conta também da sua relação com o trabalho ser nitidamente guiada por uma infidelidade velada que permite uma entrega onde se assume a alma da marca/empresa enquanto isso lhe der vida, absorvendo uma outra assim que conivente e sem prejuízo.

Mas nenhum aspecto é mais representativo da identificação de James Gunn em um ser líquido que sua capacidade de mudar. Quando chamado para ser parte da Disney nos cinemas, Gunn se retratou sobre o blog no qual distribuía seu tom satírico resvalando em abordagens grosseiras sobre o lugar da mulher na sociedade, em exemplo. Ao ter seus tweets indignos retirados da malha atemporal da internet, não houve outro posicionamento senão o de pedir desculpas e reconhecer sua falha – datadas de uma década atrás, afirmando ter mudado como ser humano. Mesmo com a demissão da empresa da qual não era contratado na época das mensagens.

Em defesa, Gunn poderia ter recorrido aos conceitos da liberdade de expressão que se usam do humor e ironia como formas de validação do discurso. Em especial se tratando de um ambiente que despreza o silêncio. Mas escolheu pela distinção da sua imagem em diferentes épocas.

Ainda é possível citar, como parte dessas mudanças mais relacionadas à liquidez do indivíduo, o novo direcionamento que Gunn dá a suas redes sociais ao se interessar mais pela interação com os fãs e a abordagem dos seus trabalhos. Mesmo na possibilidade de uma motivação empregatícia em alguma instância, são 45

numerosos os pontos mais empáticos acerca das suas riquezas relacionais com outras pessoas que creditam ao diretor essa capacidade de autorreconhecer-se.

Como exemplo oposto, ou seja, de uma ligação mais firme com a solidez nos conceitos baumanianos, Roseanne Barr – onde os fatores se mostram pouco ligado às gerações, uma vez que pouco mais de dez anos separam a comediante do cineasta. A predominância da solidez em Roseanne está nos seus posicionamentos políticos conservadores e até mesmo em seu tipo de humor permeado de aspectos patriarcais. É possível citar ainda que na perspectiva do trabalho, mesmo com diversos programas no currículo, houve a constante ligação da comediante com a ABC/Disney, mostrando-se fiel ao posto como nos entendimentos tradicionais do emprego.

Em um ponto-chave para o entendimento da comparação está a possibilidade de mudar. Roseanne passou por situação semelhante à de Gunn ao ser demitida da Disney depois de um tweet. Alguns aspectos divergirem as situações – a comediante se expressou no Twitter enquanto contratada da empresa que a demitiu e, mais importante ainda, o ato de racismo pode ser criminalizado apenas no discurso mesmo indireto, enquanto crimes como a pedofilia, não, se ligando aos atos como registro/distribuição de mídia ou o abuso físico em si. Faz-se a ressalva que para cada situação negativa presente em nossa sociedade deve existir uma intervenção equivalente e funcional, seja em discurso ou ação.

Roseanne, diante da demissão e a repercussão midiática do tweet, optou por um discurso de justificativa das suas palavras à retratação. Não foi concebível para a comediante a possibilidade de reconhecer o erro e buscar mudar suas percepções como seria mais provável para um indivíduo líquido em essência.

À dupla Mike e Jack é possível conceber os preceitos da solidez por uma identificação do modelo tradicional da sociedade evidenciado nas bandeiras que os próprios levantam – as estruturas arcaicas como o exército e a pátria, a proteção da soberania branca, heterossexual, masculina e norte-americana (lê-se “no centro do mundo”). Isso, pois, são indivíduos líquidos em seus aspectos tecnológicos, usando com maestria as movimentações do capital sociodigital sobre Reputação, Popularidade e Autoridade na construção de uma influência digital e, logo, social. 46

Essa proteção de seus ideais surge nos mesmos espaços da cibercultura que permitiram que as vozes repartidoras das hegemonias, àquelas do feminismo, dos negros e das formas de não-existência do mundo globalizado apenas por elites.

As personas se esbarram o tempo todo na cibercultura pós-moderna e cada uma se expressa gerando sua narrativa buscando a identificação. O ciber é tão espaço de todos que mesmo os identificados com a solidez das sociedades, mais tradicional, e não só aqueles aos quais as redes sociais são inerentes, digitam livremente.

Nessas condições os discursos são forjados para combater ameaças, mesmo que a partir de notícias falsas, mentiras ou a pós-verdade10 assessorada por vetores digitais. Como Mike Cernovich admitiu no citado artigo Trolls for Trump: “Eu li a teoria pós- moderna no colégio. Se tudo é uma narrativa, então precisamos de novas narrativas contra a narrativa dominante”.

E se a liberdade de expressão surge como atributo do ciberespaço, a saída do armário como disse Malini (capítulo 3.3), são as redes sociais seus permissivos porteiros. Diante das comprovadas fake news propagadas, o escárnio vingativo sobre o passado digital e a catapultamento pelos grandes capitais sociodigitais – gerados de formas igualmente turvas, parece prudente a aplicação de uma seletividade, como os moderadores de um fórum – e não uma censura, sobre os algorítmicos de propagação e impulsionamento dos conteúdos e informações nas redes sociais preservando, assim, a imagem mais próxima da realidade – e menos da virtualidade, de cada pessoa.

O encalço nos vestígios digitais traz duas confirmações das novas concepções do mercado. Onde tudo é visto – e se mostra, produtos são consumidos até mesmo para que sejam criticados e não somente pelos fãs. Por segundo, mais do que nunca a empresa tem sua construção e manutenção da alma por vozes que não são de seus diretores e CEOs, mas sim também de funcionários e principalmente dos públicos.

As polêmicas trazidas por vias digitais têm consequências, sim, mas estas se mostram tão mudadiças quanto o mundo líquido que dissolve as estruturas sólidas. Gunn retomou suas atividades tão logo – como em outros casos semelhantes em que o apoio de amigos, a pronta retratação e a capacidade de mudar mais ligada aos indivíduos

10 Tendência a acreditar em algo de acordo com sentimento ou crença pessoal, ignorando fatos comprobatórios e científicos. Disponível em https://www.oxfordlearnersdictionaries.com/definition/english/post-truth. Acesso em 14 out. 2019. 47

líquidos fluíram a imagem prejudicada para uma posição de redenção. O caminho observado no Caso pode perfeitamente ser aplicado à vida comum de igual existência na cibercultura. Isso porque o acréscimo midiático dos atores envolvidos na descrição são atributos que engrandecem a amostra para melhor visualização, apenas.

Quando recurso do debate é, para todos os lados, a audácia de falar, é preciso reconhecer o direito da livre expressão como uma das preciosidades a serem protegidas em qualquer sociedade. A mudança, no entanto, das estruturas hegemônicas, das opressões, dos caráteres negativos, das fraquezas é dever compartilhado de mesmo valor. No mundo pós-moderno das rápidas conexões expostas ter voz para errar talvez seja mais importante do que não ter do que se desculpar.

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