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UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO INSTITUTO DE LINGUAGENS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ESTUDOS DE CULTURA CONTEMPORÂNEA

QUISE GONÇALVES BRITO

ANIMÊ COMO RECURSO DE SOFT POWER: COMUNICAÇÃO E CULTURA NA SITUAÇÃO DE GLOBALIZAÇÃO

CUIABÁ-MT 2013

QUISE GONÇALVES BRITO

ANIMÊ COMO RECURSO DE SOFT POWER: COMUNICAÇÃO E CULTURA NA SITUAÇÃO DE GLOBALIZAÇÃO

Dissertação apresentada ao Programa de Pós- Graduação em Estudos de Cultura Contemporânea da Universidade Federal de Mato Grosso como requisito para obtenção do título de Mestre em Estudos de Cultura Contemporânea na Área de Concentração em Estudos Interdisciplinares de Cultura, Linha de Pesquisa Comunicação e Mediações Culturais.

Orientador: Prof. Dr. Yuji Gushiken

Cuiabá-MT 2013 Dados Internacionais de Catalogação na Fonte.

B862a Brito, Quise Gonçalves. Animê como recurso de soft power: comunicação e cultura na situação de globalização / Quise Gonçalves Brito. -- 2013 187 f. : il. color. ; 30 cm.

Orientador: Yuji Gushiken. Dissertação (mestrado) - Universidade Federal de Mato Grosso, Instituto de Linguagens, Programa de Pós-Graduação em Estudos de Cultura Contemporânea, Cuiabá, 2013. Inclui bibliografia.

1. animê. 2. soft power. 3. comunicação. 4. situação de globalização. 5. Estado- nação. I. Título.

Ficha catalográfica elaborada automaticamente de acordo com os dados fornecidos pelo(a) autor(a).

Permitida a reprodução parcial ou total, desde que citada a fonte.

À todos os que contribuiram para este trabalho, oferecendo o suporte emocional, intelectual e material para realizá-lo.

Agradecimentos

Ao meu orientador, Yuji Gushiken, por seu exemplo, apoio e fundamental contribuição para este trabalho.

A Mário Cezar Silva Leite e Rose de Melo Rocha por suas observações precisas, indicações bibliográficas valiosas e pela cordialidade.

A Rosa Maria, Luis Alberto, Uinie, Pandora ( in memorian ), Mafalda, Manolito, Polina, Conan e Baby: minha família, meu porto seguro.

A Bruno Atanaka, que acreditou neste trabalho desde o início e permaneceu pacientemente ao meu lado.

A Tais Marie Ueta, Tatiane Hirata e Karina Galli, minhas nakama nos estudos e na vida.

A Lais Teodoro, por sua ajuda com o material bibliográfico e por sua amizade.

A CAPES, pelo suporte finaceiro.

A todos, meus sinceros agradecimentos.

Resumo

Este estudo realiza uma análise dos fluxos e panoramas de comunicação e consumo engendrados pelas animações japonesas (animês) e a sua potencialidade enquanto recurso cultural de soft power japonês para a gestão da política nacional em um contexto marcado pela intensificação dos processos de transnacionalização dos mercados e globalização da economia. Os animês, produtos de uma efervescente cultura pop japonesa, tornam-se conhecidos e reconhecidos mundialmente em meados da década de 1990. O consumo em torno dessas produções mobiliza constantemente fluxos globais de símbolos, socialidades, ideias, capital, produtos e serviços. O percurso e a dinâmica de circulação dos animês revelam aspectos do processo de mundialização da cultura, bem como de uma nova economia cultura global que sinaliza a crescente importância da gestão cultural para o exercício político e a gestão econômica nacionais. O Soft Power, estratégia de gestão do poder através do uso de fontes de atratividade, entre as quais a cultura, oferece uma ferramenta fundamental nesse sentido. Os animês, tomados como recursos de soft power para o Japão, oferecem através dos panoramas mobilizados grande potencial de colaborar na gestão de três itens que exigem uma reconfiguração dos Estados-nação nesta situação de globalização: a hegemonia cultural, soberania econômica e legitimidade política.

Palavras-chave : animê, soft power, comunicação, situação de globalização, Estado-nação.

Abstract

This study performs an analysis of flows and panoramas of communication and consumption engendered by the Japanese animation () and its potentiality as a resource for cultural soft power to manage the Japanese national policy in a context marked by the intensification of the processes of transnationalization of markets and globalization of economy. The anime, products of an effervescent Japanese pop culture, become known and recognized worldwide in the mid-1990s. The consumption around these productions constantly mobilizes global flows of symbols, socialities, ideas, capital, products and services. The route and dynamic of movement of anime reveal aspects of the globalization of culture, as well a new global cultural economy that signals the growing importance of cultural management to exercise political and national economic management. The Soft Power, power management strategy through the use of sources of attractiveness, including culture, offers a fundamental tool in this regard. The anime, taken as soft power resources to , offers through mobilized panoramas great potential to collaborate in the management of three items that require a reconfiguration of the nation-states in this situation of globalization: cultural hegemony, economic sovereignty and political legitimacy.

Keywords : anime, soft power, communication, situation of globalization, nation-state.

Lista de Figuras

Figura 1. Mudança no tempo dedicado ao consumo de distintas mídias entre 2008 e 2011...... 32 Figura 2 Fotografia de Toquio, no meio da tarde de 24 de Dezembro de 1964, quando a poluição causava escuridão em pleno dia...... 61 Figura 3. Hakuja Den (1958) Toei ...... 76 Figura 4. Akahon de Shin Takarajima. Osamu Tezuka (1947) ...... 78 Figura 5. Detalhe do akahon de Shin Takarajima...... 79 Figura 6. Cenas da série de animê Tetsuwan Atomu. Mushi Productions, Fuji TV, Osamu Tezuka (1963-1966)...... 83 Figura 7. Cena do animê Kodomo Pokémon...... 97 Figura 8. Imagem do animê Shoujo Kare Kano...... 98 Figura 9.Cena do animê Shounen One Piece...... 99 Figura 10. Cena do animê Shoujo Ai Strawberry Panic! ...... 100 Figura 11. Cenas do animê Shounen Ai Sekai Ichi Hatsukoi...... 100 Figura 12. Cena do animê Josei Nodame Cantabile...... 101 Figura 13. Cena do animê Seinen Monster...... 102 Figura 14. Cena do animê Ero Bible Black...... 103 Figura 15. Gintama' ...... 104 Figura 16. Chihiro no Kamikakushi (A Viagem de Chihiro) ...... 104 Figura 17. Ultimate ...... 105 Figura 18. NaNa ...... 105 Figura 19. Japoneses e iraquianos em uniformes de futebol em frente a um caminhão de água das Forças de Auto Defesa japonesas, estampado com a figura dos personagens de Kyaputen Tsubasa . 110 Figura 20. Estratégia de promoção global dos conteúdos japoneses através da All Nippon Entertainment Works Co...... 120 Figura 21 Folder turístico (frente e verso) destacando locais e eventos relacionados aos animês no Japão ...... 152

Sumário

INTRODUÇÃO 9

1 A PROBLEMÁTICA CULTURAL NA ESFERA GLOBAL 16

1.1 SOFT POWER E A CULTURA COMO RECURSO : GESTÃO NACIONAL NO CONTEXTO GLOBAL 30

2 CULTURA POP E J-POP 44

2.1 CULTURA POP : DISCUTINDO O CONCEITO 44 2.2 A CRIAÇÃO DO J-POP 54 2.3 O MAINSTREAM GLOBAL JAPONÊS 65

3 ANIMÊS: A INFANTARIA DO MAINSTREAM JAPONÊS 69

3.1 PRIMEIRO MOMENTO : AS ORIGENS DO ANIMÊ 71 3.2 SEGUNDO MOMENTO : A CRIAÇÃO DO ANIMÊ MODERNO 74 3.3 SEGMENTAÇÃO DE PÚBLICO E PRODUÇÃO 94

4 O ANIMÊ COMO SOFUTO PAWA 107

4.1 O PANORAMA JAPONÊS RECENTE 108 4.2 O COOL JAPAN 114 4.3 ANÁLISE: O ANIMÊ COMO UM RECURSO CULTURAL 122 4.3.1 O ANIMÊ E A HEGEMONIA CULTURAL 124 4.3.2 O ANIMÊ E A SOBERANIA ECONÔMICA 137 4.3.3 O ANIMÊ E A LEGITIMIDADE POLÍTICA 155

CONSIDERAÇÕES FINAIS 168

BIBLIOGRAFIA 177

CRÉDITO DAS IMAGENS 183 APÊNDICE 185

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Introdução

Este estudo realiza uma análise dos fluxos e panoramas de comunicação e consumo engendrados pelas animações japonesas (animês) e a sua potencialidade enquanto recurso cultural de soft power japonês para a gestão da política nacional em um contexto marcado por processos de força transnacional e global. Para cumprir com essa questão, foi realizada uma pesquisa de base teórica que encontra suporte em obras de Renato Ortiz, Arjun Appadurai, George Yúdice, Joseph Nye Jr., Cristiane Sato, Sonia Luyten, Fréderic Martel, Paul Gravett, Tilman Osterwold, Massimo Canevacci entre outros autores consultados. Metodologicamente este trabalho se desenvolve sob o modelo teórico da comunicação como cultura, conforme proposto pelo sociólogo e pesquisador do campo da comunicação Venício Arthur de Lima. Na perspectiva da comunicação como cultura, a comunicação é entendida como sistema de significação através do qual, uma ordem social é comunicada, reproduzida, experimentada e explorada e ainda como um processo simbólico em que a realidade é produzida, mantida, restaurada e transformada (LIMA, 2001). Complementando este modelo, a ciência política e a economia surgiram como disciplinas de apoio em virtude da necessidade de se discutir as reconfigurações e fragilidades do Estado-nação ante os fluxos que escapam às demarcações territoriais e que caracterizam a realidade atual, entendida como uma situação de globalização. A situação de globalização, noção proposta pelo sociólogo Renato Ortiz, compreende uma totalidade que engloba as partes envolvidas sem anulá-las. Trata-se de um processo histórico no qual novas práticas, processos, ideias e fronteiras se inserem e os antigos paradigmas, instituições e barreiras, longe de desaparecer, redefinem-se. Nessa situação podemos identificar movimentos que transcendem as classes, as nações e os territórios e que, apesar de intimamente ligados, constituem linhas de força distintas. A globalização é uma dessas linhas de força. O conceito de globalização passou, de acordo com Ortiz, de um período inicial de negação e desconfiança (sobretudo no campo das ciência sociais, mas também na mídia etc.) para outro de banalização sem que tenha havido um intermezzo necessário para amadurecer as análises a respeito do fenômeno (ORTIZ, 2006). Globalização, palavra de sentido difuso, passou de mera ideologia a um evento onipotente e onipresente. A evidente relação da globalização com a dimensão econômica e 10

tecnológica das transformações em curso acarretou no aparecimento de estudos e perspectivas que alimentavam uma visão determinista entre as atividades da esfera econômica e as transformações culturais e políticas, sendo que estas últimas seriam suas meras extensões. Ortiz irá propor uma perspectiva diversa a qual distingue, mas não separa, as transformações em curso no campo da cultura das observadas na esfera econômico- tecnológica, sendo que o conceito de mundialização refere-se às primeiras e o de globalização trata das segundas. Mundialização e globalização são, assim, as tendências componentes da situação de globalização. Appadurai (1999, 2005) observa estes mesmos processos globalizantes em termos de fluxos singulares de pessoas (etnopanoramas), ideologias (ideopanoramas), tecnologias (tecnopanoramas), capital (finançopanoramas) e símbolos midiatizados (midiapanoramas), os quais compõem processos disjuntivos, muitas vezes contraditórios e complexos. De acordo com Appadurai, esses panoramas constituem o bloco construtivo de "mundos idealizados", o que significa dizer "mundos múltiplos constituídos pelas imaginações historicamente situadas de pessoas e dos grupos disseminados pelo mundo inteiro" (apud FEATHERSTONE, 1999, p. 313). Observamos os animês, em amplo aspecto, e as mobilizações que eles desencadeiam sob o prisma da dinâmica, interpenetração e disjunção desses fluxos propostos pelo autor indiano. O objeto aqui escolhido, o animê, insere-se no conjunto de manifestações da cultura pop japonesa, a qual emerge no período pós Segunda Guerra mundial. Os elementos da cultura pop, em suas diversas manifestações nacionais e globais ( mainstream ), surgem da confluência entre cultura e mercado com o advento das tecnologias de comunicação de massa, da emergência da juventude enquanto categoria social e das indústrias culturais na metade do século XX. Por essa estreita relação, os elementos do pop são especialmente oportunos para revelar aspectos nodais da imbricação entre cultura, economia e política nos dias atuais, e como isso passa a interessar ao Estado na situação de globalização. Atravessados por processos que os transcendem e os englobam, os Estados-nação tornam-se instituições que necessitam reconfigurar-se diante dos problemas que se colocam em relação às suas bases constituintes, como a hegemonia, a soberania e a legitimidade. As modernas tecnologias de comunicação acrescem uma nova dimensão a ser considerada nos processos de legitimidade política, assim como a soberania econômica deve levar em consideração capitais e tecnologias que não necessariamente pertencem ou estão sob o jugo da nação, mas fluem através dela. A questão cultural assume uma nova função que diz 11

respeito não só a hegemonia (no plano externo e interno) mas à função de conduzir a um estado de bem estar social (YÚDICE, 2004). Nesse cenário, a cultura emerge como um recurso a ser, na medida do possível, gerido pela instituição nacional. As manifestações culturais criam de forma autônoma midiapanoramas, finaçopanoramas e ideopanoramas que afetam as condições de ação política da nação. Trata-se, em alguma medida, de uma inversão da ideia clássica de política cultural, onde não é a cultura que necessita do subsídio nacional para se manter, mas o Estado-nação que necessita da cultura enquanto ferramenta de gestão político-administrativa. Os animês, através de diversos fluxos de consumo, são conteúdos midiáticos que possuem hoje amplo apelo entre um público disperso pelo globo, definido por Canclini (2008) como uma comunidade transnacional de consumidores. A partir da década de 1990, essas animações adquirem uma condição mundializada, presentes no cotidiano de milhões de consumidores que podem acessá-los nas bancas de jornal, nos canais de televisão, nos cinemas, mídias móveis e sobretudo na internet. A influência estética do animê, que se torna um paradigma no campo da animação, é encontrada na publicidade, em mostras de arte, em outras produções de animação e na moda. O consumo mobilizado através dos animês não diz respeito apenas a sua materialidade ou a produtos relacionados, mas também a todo um conjunto de símbolos e ideias que colaboram na construção de imagens particulares de Japão. Assim, o consumo é aqui entendido em um sentido amplo, que contempla sua faceta material e também as fruições e experiências construtivas (BARBOSA, Lívia; CAMPBELL, Colin, 2006). Essa presença mundializada e cotidiana dos animês torna-se interessante ao governo japonês diante dos desafios que se impõe ao Estado-nação frente aos processos de escala transnacional e global. A apropriação dessas animações e outros produtos do pop japonês para ações de soft power busca gerar benefícios, culturais, políticos e econômicos através da construção de uma imagem cool , capaz de gerar hegemonia e colaborar na manutenção da soberania e da legitimidade nacional. É interessante notar que esse deslocamento dos usos da cultura e sua imbricação e apropriação pelas esferas da economia e da política no momento atual do capitalismo assinala para um contexto de crise das instituições e modelos considerados até então como base a uma política econômica e social. No caso do Japão, as constantes instabilidades econômicas sofridas desde a década de 1990, associadas aos problemas enfrentados pela indústria automobilística e decorrentes de desastres naturais recentes, criam o cenário propício para o estudo de abordagens alternativas de 12

desenvolvimento e gestão nacional na situação de globalização, entre elas a que se baseia no potencial criativo e atrativo de suas demais indústrias e dos indivíduos. O soft power é uma estratégia que atua em especial consonância com o potencial dessas novas áreas de interesse, como o setor de serviços e as indústrias criativas. O Soft Power, teorizado pelo cientista político americano Joseph Nye (2004), compõe um conceito dialético de gestão do poder e pressupõe a realização deste através de estratégias de atração e cooptação, em contraste com o hard power que é o poder obtido através de estratégias de coerção, sendo a síntese desses dois exercícios de poder entendida como smart power. Nye destaca que as fontes para estratégias de soft power, no caso do Estado-nação, se encontrariam na produção cultural, nos ideais políticos (de pretensão democrática, sobretudo) e nas ações políticas. Neste trabalho de dissertação em Estudos de Cultura Contemporânea, o foco é trazido (pela natureza do nosso objeto) à cultura enquanto recurso de soft power. Através do estudo do momento histórico, das novas dimensões assumidas pela cultura nessa realidade, e das questões que se impõe ao Estado em sua reconfiguração na situação de globalização, observando esses processos a partir do trajeto mundializado e dos fluxos engendrados pelas animações japonesas, extrapola-se aqui a teoria de Nye, propondo um método de análise das condições que permitem aos recursos culturais serem apropriados para medidas de soft power. Dentro dos pontos identificados como condições, buscamos analisar o animê enquanto recurso cultural de soft power japonês. O trabalho está estruturado em 4 capítulos. O Capítulo 1 trás para a discussão as teorias que fundamentam o estudo e forneceram as lentes com as quais observamos o objeto proposto e o cenário onde ele se insere. São abordados os conceitos de mundialização da cultura, globalização, modernidade-mundo e situação de globalização, presentes nos livros, artigos e entrevistas de autoria de Renato Ortiz. Arjun Appadurai é outro autor de importância central, pois através dos seus estudos sobre os panoramas componentes da realidade atual pudemos explicitar muitos dos fluxos que envolvem a produção e o consumo dos animês em capítulos posteriores. A cultura enquanto recurso é outro aspecto abordado, à partir da perspectiva de George Yúdice. Levanta-se nesta discussão as maiores debilidades do Estado-nação na situação globalizada e propõe-se, com Joseph Nye, o soft power como uma ferramenta de gestão das questões nacionais nesse contexto. Também são expostos, sucintamente, os princípios que nortearão nossa análise do animê como recurso de soft power japonês no último capítulo deste estudo. 13

O Capítulo 2 realiza uma discussão sobre o conceito de cultura pop. Entendendo que trata-se de uma manifestação cultural de caráter modernizante e singular à situação de globalização, é proposta uma distinção entre cultura pop e popular fundamentada nas questões levantadas por Stuart Hall, Tilman Osterwold, Cristiane Sato e Sonia Luyten, destacando a constituição do pop em sua associação com as condições técnicas e materiais surgidas com os meios de comunicação de massa e as indústrias culturais, bem como sua íntima relação com a categoria social do "jovem", que emergia na mesma época. Em seguida é analisada a cultura pop japonesa, destacando o processo de sua formação e alguns dos seus expoentes, como os mangás e os games. Buscou-se apresentar um panorama amplo, que contempla a relação entre os fenômenos de âmbito nacional e os fluxos internacionais que contribuíram nesse processo; fatores políticos, econômicos e propriamente culturais foram levantados com esse propósito. No Capítulo 3 exploramos o objeto da pesquisa, as animações japonesas (ou animês), consideradas como o expoente da cultura japonesa mainstream globalmente. Através do levantamento do seu histórico e da sua popularização a nível mundial, observaremos a dinâmica dos processos de mundialização da cultura, percebendo como produtos, práticas e ideias desenraizam-se e passam a compor uma memória-internacional popular. Os midiapanoramas criados em torno do consumo dessas produções são levantados, mostrando como o consumo subalterno desempenha um papel fundamental na popularização dessas animações. As características de produção e segmentação de público dos animês são também examinadas e apresentadas como fatores importantes nesse sentido. Neste capítulo, além do uso das fontes bibliográficas, fez-se o uso abundante de fontes secundárias, como notícias, artigos e relatórios a respeito dos animês e da cultura pop japonesa. O Capítulo 4 realiza uma revisão do panorama econômico e social japonês recente, além de apontar as medidas tomadas pelo governo sob a bandeira do projeto Cool Japan que envolvem os conteúdos midiáticos, especialmente os animês. Foram destacadas as ações de soft power engendradas pelo governo nipônico que contemplam essas animações, além de propostas para o setor da indústria criativa local. Neste capítulo explicitamos a metodologia de análise proposta para a observância dos recursos culturais enquanto fonte de soft power nacional. A pertinência desses recursos depende dos fluxos mobilizados autonomamente (de capital, humano, midiático, etc.) e da capacidade que eles demonstram contextualmente para a realização de benefícios culturais (de ordem hegemônica), econômicos (de ordem soberana) e políticos (de ordem legítima). Foram levantadas condições que, como propomos, permitem 14

a um recurso cultural colaborar para a hegemonia cultural, para a soberania econômica ou a para a legitimidade política nacional. Para cada condição seguiu-se uma discussão dos correspondentes fluxos mobilizados em torno dos animês, destacando suas confluências e disjunturas em relação a estes objetivos. O conceito de soft power nos ofereceu subsídios para tratar de parte dessas questões. A ciência política, através dos conceitos de Weber e Bobbio (2002), além da observação da Carta dos Direitos e Deveres econômicos dos Estados (promulgada em assembléia da ONU em 1974), forneceram outros pontos de apoio para a discussão da atualização da legitimidade e da soberania na situação de globalização. Através desse trajeto, busca-se mostrar como a cultura em sua dimensão mundializada - processo que pressupõe o compartilhamento e circulação de símbolos, produtos imagens e conteúdos, práticas e modos de vida a nível global, e se acentua na passagem para o século XXI com o advento das novas tecnologias de comunicação e informática - mobiliza fluxos diversos: de capital, de conteúdos e produtos, identitários, de valores e legitimações, sobretudo na sua vertente pop, emergindo nesse cenário como moderno recurso a ser gerido para promover o bem estar social. O estreitamento da cultura pop com uma dimensão econômica (pela assunção de uma postura declaradamente mercadológica) e a ampla difusão de suas manifestações através das mídias dotam-na de um papel de destaque nos processos de mundialização cultural, e a compreensão dessas novas dinâmicas envolvendo a cultura a comunicação e o consumo nos dias atuais se torna, se não interessante, fundamental aos Estados na tarefa de gestão das questões nacionais ante os processos de globalização das economias e tecnologias. O Soft Power é uma estratégia de gestão do poder que leva em consideração esse novo status conferido ao campo cultural como fomentador da economia e também como ferramenta para ação política, uma vez que os panoramas ideológicos, comunicacionais e mercadológicos criados em torno da circulação e do consumo cultural possibilitam o estabelecimento de relações de legitimação, autoridade e hegemonia entre produtores e consumidores. Os animês, objetos que nos permitem investigar parte desses fluxos neste estudo, são conteúdos que ao se desterritorializarem nos anos de 1980 - saindo do Japão para alcançar consumidores nos mais distintos pontos do globo através da televisão, cinema, e sobretudo da internet - passam a compor a mobília de uma modernidade-mundo (ORTIZ, 1994) criando movimentações de dinheiro, produtos, pessoas, ideias e ideais que envolvem e afetam indivíduos, economias e a política (sobretudo japonesa) em uma escala necessariamente planetária. 15

Muitas questões sobre estes processos, por vezes disjuntivos e contraditórios, surgiram no decorrer da observação do panorama intrincado entre política, cultura, economia e o Estado nos dias atuais. Outras emergiram no trajeto de descrição das animações japonesas e seu processo de mundialização. A análise dos animês enquanto recurso cultural de soft power foi uma questão que se impôs no decurso do estudo e mostrou-se fundamental para a compreensão de como os tecnopanoramas, midiapanoramas, ideopanoramas, finaçopanoras e etnopanoramas de escala global atualizam-se nas localidades e repercutem para o Estado japonês. Essas animações em seus fluxos de consumo mundializados irão atuar autonomamente na construção de imagens do Japão enquanto nação nos dias atuais. Sua capacidade de comunicar a distintos públicos pelo globo colabora na afirmação de imagens já encontradas no imaginário internacional-popular a respeito de uma identidade nipônica e de um Estado japonês, bem como nega outras e acrescenta novas dimensões a elas. Espera-se que através da análise desses diversos fluxos organizados em torno da produção e do consumo dos animês seja possível ampliar as condições de compreensão das dinâmicas que envolvem a cultura contemporaneamente em sua relação com outras esferas da vida social em um mundo marcado por processos globais que nos atravessam e nos constroem para o mundo e para nós mesmos.

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1 A PROBLEMÁTICA CULTURAL NA ESFERA GLOBAL

O sociólogo Renato Ortiz no seu livro Mundialização e Cultura , de1994, propõe o exame de uma questão desafiadora: como pensar a realidade mundial a partir da problemática cultural? O período subentendido nesta "realidade" corresponde às últimas décadas do século XX - quando as ideias de globalização e mundialização começavam a apresentar-se como desafios ao pensamento sociológico e estes objetos não dispunham de "plena cidadania" nos círculos acadêmicos - e apoia-se na hipótese da emergência de uma sociedade global. Mais de 20 anos separam o momento em que desenvolvemos este trabalho e o da formulação original de Ortiz. A velocidade crescente com que por um lado aprofundam-se e por outro realizam-se novos processos econômicos, políticos e culturais desde o fim do século XX imbuem este espaço de tempo, relativamente curto, de considerável potência transformadora. Isto que dizer que a realidade mundial atual e a em cuja Ortiz levantou esta problemática pode encerrar muito de diferença. No entanto, este tempo, do mesmo modo que comportou transformações nessa realidade permitiu a observação do fenômeno em sua evolução e a reavaliação da aplicabilidade dos conceitos propostos para compreendê-lo. Dito isto, cabe propormos a seguinte questão: em que sentido desenvolveu-se a problemática da sociedade global? Ela mostrou-se capaz de esclarecer as dinâmicas do tempo presente? Em trabalhos posteriores a Mundialização e Cultura , Ortiz abandona a prerrogativa da emergência de uma sociedade global para a análise dos processos que ultrapassam as barreiras do nacional e que, de fato, constituem a realidade mundial. Em entrevistas e artigos recentes o autor afirma que esta proposição seria ilusória sobretudo da perspectiva cultural e explica os problemas do conceito: a sociedade global torna-se uma noção inadequada pois supõe uma homologia entre o global e a sociedade nacional, posição que não se sustenta ante uma análise aprofundada. Destaco um trecho de um artigo do autor que é esclarecedor nesse sentido:

Não creio na existência de uma “sociedade global”, ou seja, em uma unidade sociológica homóloga às sociedade nacionais, na qual o processo de integração das partes se 17

faria de maneira coerente e ordenada. Ou seja, uma metassociedade englobando todas as outras. O espaço transnacional não é da mesma natureza dos espaços nacionais. A metáfora “sociedade global” ilude-nos nesse sentido (por exemplo, muitos afirmam a existência de um espaço público transnacional como se ele fosse homólogo ao espaço público nacional). (ORTIZ, 2007, p. 10)

Desse modo, desvinculando-nos da sociedade global como parâmetro analítico, evitamos nos enredar em uma noção que cedo ou tarde acabaria surgindo a partir deste raciocínio, a de cultura global. Como bem explica Ortiz, podemos, sem grandes problemas, dizer que existe um mercado global, definido pelo capitalismo, assim como uma tecnologia global, a mesma em qualquer lugar, mas certamente seríamos pouco convincentes ao falarmos de uma cultura global com as mesma características. Para isso teríamos que supor que o nível cultural reproduziria o movimento de uma base econômico-tecnológica. É necessário esclarecer que a realidade atual pressupõe, sem dúvida, uma base econômico- tecnológica sem a qual não poderíamos falar a respeito de processos globais e mundiais. Mas a relação entre esta base material e a esfera da cultura não se dá de maneira simétrica, ela está antes vinculada a múltiplas mediações de maneira assimétrica. O conceito de sociedade global, nesse sentido, recuperaria em alguma medida as lacunas do paradigma do world system 1 (sistema mundial), que com seu foco demasiado economicista dos processos globais, tende a reduzir a dimensão dos fenômenos da esfera cultural, além de propor uma geopolítica dos fluxos em termos de centro e periferia, outra noção bastante questionada. Optando pela proposição de uma outra abordagem sobre a realidade global, não como um sistema nem como uma mega-sociedade, Ortiz irá defini-la como uma situação. Ponto que investigaremos adiante. Em síntese, esta breve revisão conceitual proposta, põe em questão a pertinência de conceitos que foram estabelecidos pela sociologia no fim do século XX para dar conta das transformações que tornavam-se agudas e evidentes em distintas esferas sociais no momento

1 Para Ortiz existiu e ainda existe em certa medida muita relutância nas ciências sociais em reconhecer esse novo objeto de estudo, o mundo como totalidade, pois até mesmo o instrumental analítico, ou seja, os conceitos, são fundados na premissa das individualidades, dos grupos e dos estados. Um primeiro estudo que tomará a totalidade como objeto aparecerá em meados dos anos 70, trata-se de O moderno sistema mundial , de Immanuel Wallerstein. A crítica ao Estado-nação como unidade de análise irá abrir a perspectiva e permitir que o World System torne-se uma categoria analítica para dar conta da realidade envolvente. Porém este novo paradigma traz consigo um certo determinismo que tende a ver a problemática cultural como mero reflexo de outras instâncias sociais, neste raciocínio ela corresponderia a superestrutura ideológica de uma infraestrutura econômica do tempo presente, esquema explicativo que induziria necessariamente ao reducionismo. 18

em que o capitalismo se instaura como lógica econômico-tecnológica hegemônica (marcado pelo esfacelamento do bloco soviético). Apontando para a insuficiência dessas noções, Ortiz opta por um deslocamento analítico que abandona a premissa da emergência de um todo coeso fruto dos processos de globalização (como faz pressupor, sobretudo, a ideia de sociedade global), e parte para a consideração dos processos não como aspectos de um todo integrado, mas como a própria realidade mundial, uma situação conflitiva, múltipla e de força hegemônica, onde as pessoas encontram-se conectadas, mas não integradas. Eis dois trechos de entrevistas recentes nas quais Ortiz busca sintetizar essa questão:

Se habla mucho de la esfera civil, de la sociedad civil mundial, pero la verdad es que no existe. Es interesante pensar en ella como una metáfora, pero en la realidad no existe una sociedad global, y no va a existir. [...] Hoy hay un montón de equívocos, como que el mundo es un mundo integrado. No. No es nada integrado. Sí es un mundo conectado, pero conexión e integración son cosas distintas. 2

*

yo prefiero, hace ya un tiempo, hablar de una situación de globalización, en la cual la diversidad de concepciones, de civilizaciones, de estados-naciones, existe, está presente, confrontándose y complementándose, entrando en conflicto consigo misma. Esta es para mí la gran diferencia entre los dos niveles, quiero decir, no va a haber una cultura global, tampoco una identidad nacional como identidad global, pero existe un proceso de mundialización de la cultura que tiene una tendencia hegemónica, que establece un orden interior en el cual viven múltiples concepciones del mundo. 3

2 ORTIZ, Renato. No existe ni existirá nunca una sociedade mundial integrada: depoiment [09 de Setembro de 2009]. Argentina: La Nación On-line (também publicado na edição impressa). Entrevista concedida a Raquel San Martín. Disponível em: Consulta em 02 de Agosto de 2012.

3 ORTIZ, Renato. Identidad y Diversidad: de la cultura local a la global: depoiment [Outubro de 2006]. Chile: Revista Austral de Ciencias Sociales, n.12, pg131-144, 2007. Entrevista concedida a Andrea Soto Calderón. Disponível em: Consulta em: 02 de Agosto de 2012.

19

A assunção de que os processos globalizantes não conduzem a um todo coeso e integrado (excetuando-se as esferas econômica e tecnológica, cujos processos globalizantes demonstram uma tendência o tanto quanto possível inclinada neste sentido) ou seja, o entendimento de que deles não resulta uma sociedade globalmente integrada, uma cultura globalmente integrada e uma política globalmente integrada, permite a aproximação com questões levantadas por outros autores a respeito dessa realidade conflitiva e complexa que se delineia tanto para os indivíduos, quanto para os Estados e instituições. Neste sentido, Arjun Appadurai considera que há uma nova economia cultural global que

[...] procura ser interpretada como uma ordem disjuntiva, superposta e complexa, que não pode mais ser interpretada em termos dos modelos de centro e periferia existentes [...]. A complexidade da atual economia global tem algo a ver com certas disjunções fundamentais entre economia, a cultura e a política que mal começamos a teorizar. (APPADURAI in FEATHERSTONE (org), 1999, p.315).

Como proposta para a análise deste processos, Appadurai sugere o estudo do relacionamento entre cinco dimensões de fluxos culturais globais, os panoramas , formas fluidas e irregulares componentes da globalização. Trazendo o foco mais para a questão humana dos processos, mas nem por isso deixando de explicitar sua relação com os fluxos tecnológicos e de capital, o autor indiano designa esses panoramas da seguinte forma: etnopanoramas, midiapanoramas, tecnopanoramas, finançopanoramas e ideopanoramas. Neste ponto interessa-nos, especialmente, a noção de midiapanoramas, tecnopanoramas e finançopanoramas, os quais observaremos mais detidamente a seguir, passando depois às observações de Ortiz sobre esses mesmos fluxos, que, ainda que este autor os nomeie e agrupe diferenciadamente, entendemos que em muitos aspectos tratam de questões afins. Aos midiapanoramas (ou mediascapes), correspondem os fluxos de imagens e informações, produzidos e distribuídos pelo cinema, pela televisão, jornais, revistas e acrescentaríamos também os sites, rádios (online ou tradicionais), mídias sociais e etc. De acordo com Appadurai, esses midiapanoramas podem ser produzidos tanto por grupos privados quanto por interesse do Estado. Gostaríamos de acrescentar aqui as iniciativas privadas individuais também, já que o teórico indiano não as explicita. Hoje, parte do intenso 20

fluxo de informações e de conteúdos é, em boa medida, independente dos canais oficiais ou das vias já estabelecidas pelos conglomerados de mídia. Não é preciso mais submeter uma música a um estúdio para que em qualquer lugar do mundo alguém possa ouvi-la, basta que produtor e possíveis consumidores estejam conectados à internet. O nível de exposição e a publicidade com certeza são distintos no primeiro e segundo caso, mas certamente, as possibilidades são multiplicadas. O mesmo vale para filmes, ilustrações, textos, ideias. Há que se considerar, contudo, que os suportes por onde compartilhamos esses conteúdos muitas das vezes podem estar nas mãos dos novos conglomerados digitais de mídia, como o Google, contudo, existe sempre a possibilidade da criação de plataformas privadas e independentes. Sem desconsiderar as novas relações de poder e consumo engendradas pelo uso dessas novas ferramentas, podemos assumir que os avanços da eletrônica e sobretudo da informática potencializaram a capacidade individual de produção, compartilhamento e circulação de conteúdos, criando novos e intrincados midiapanoramas (e por consequência ou por correlação, novos ideopanoramas e etnopanoramas) na realidade globalizada. Appadurai nos lembra ainda que os midiapanoramas referem-se também às imagens do mundo produzidas por estas mídias, que envolvem modulações complexas, dependendo do seu uso, dos seus instrumentos, audiência e, não menos importante, dos interesses dos que as detém ou controlam:

O que é mais importante a respeito desses midiapanoramas é que eles proporcionam (especialmente sob as formas de televisão, de filmes e de cassetes) vastos e complexos repertórios de imagens, de narrativas e de etnopanoramas para os espectadores do mundo inteiro, nos quais o mundo de commodities, das notícias e da política estão profundamente misturados. (APPADURAI in FEATHERSTONE (org), 1999, p. 315).

Os tecnopanoramas (ou technoscapes) podem ser descritos como uma configuração global e fluida de tecnologia, tanto mecânica como informacional, caracterizada pela velocidade de movimento a qual elimina barreiras de tempo e espaço antes intransponíveis. A lógica tradicional de mercado, onde as grandes economias detinham as melhores tecnologias, não consegue dar conta das relações e disjunções que se estabelecem entre esses dois campos. 21

A distribuição avulsa de tecnologias bem como das particularidades dos diversos tecnopanoramas estabelecidos pela relação entre as pessoas, empresas privadas e os Estados, "torna-se cada vez mais dirigida não por economias óbvias de escala, de controle político ou de racionalidade de mercado" (Appadurai, 1996, p.34), sintetiza, mas sim por relações crescentemente intrincadas entre os fluxos do dinheiro, as possibilidades políticas e a disponibilidade do trabalho, especializado e não especializado. Desse modo, os tecnopanoramas vinculam-se com os finançopanoramas (finanscapes), produzidos pelo intenso e veloz fluxo do dinheiro nas agências financeiras e nas agências de valores e os quais movimentam grandes somas através das fronteiras nacionais, "com implicações absolutas para pequenas diferenças em pontos percentuais e em unidades de tempo". Apesar de majoritariamente institucionalizados através dessas agências, os fluxos de valores (reais e especulativos) também correm por malhas subalternas, informais ou ilícitas, constituintes dos próprios processos expansivos e contraditórios do capital. Os produtos piratas são um exemplo desses fluxos. A tendência é pensá-los sempre como uma agressão à propriedade, uma afronta às relações de mercado e um prejuízo aos produtores e detentores das patentes ou direitos originais, porém sua dinâmica pode desvelar- se muito mais nuançada e complexa. Os produtos piratas certamente atuam como concorrentes dos produtos originais, gerando prejuízos para as detentoras das patentes e copyrights, mas não só e nem sempre. Do mesmo modo eles atendem mercados onde os produtos originais são inexistentes e parcelas de consumidores para os quais esses originais são financeiramente inacessíveis, mobilizando diferentes redes de consumo e finançopanoramas. Também cabe considerar que a pirataria pode, de um modo torto, promover e difundir a imagem de seus originais nesses espaços. Tomemos um caso chinês. De acordo com o sociólogo Frédéric Martel (2012), parte dos DVD's, CD's, relógios Rolex e outros produtos piratas são produzidos nas mesmas fábricas que seus homólogos "originais". E dito isto, devemos ponderar que a qualidade de um de outro, neste sistema, deve ser razoavelmente próxima com um custo bastante distinto 4. Desse modo temos que estas fábricas atuam ao mesmo tempo através de fluxos hegemônicos e subalternos da produção de capital e atendem a demandas específicas dos mercados

4 Martel explica que em certas fábricas chinesas realiza-se, simultaneamente, a produção de originais e suas cópias "piratas", ainda que não declaradamente. Para ele, a qualidade dos produtos falsificados é similar à dos originais. Para mais informações consultar, Mainstream: A guerra global das mídias e das culturas. Ver bibliografia.

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relacionadas às condições políticas e logísticas das localidades onde se encontra o consumidor, além de passar por uma questão de gosto e custo. Em relação aos DVD's, por exemplo, na China vigora um complexo sistemas de cotas que permite a exibição de cerca de 20 filmes estrangeiros por ano e é comum que estes cheguem às telas com atraso em relação às exibições mundiais. A enxurrada de baratas cópias piratas tem colaborado para o aumento da escassa oferta bem como predisposto o público chinês à encorpar a bilheteria de blockbusters americanos quando liberados para a exibição nos cinemas. Como entender a situação em que uma determinada empresa possui uma fábrica que simultaneamente produz cópias ilegais de seus próprios produtos? A primeira questão que nos devemos colocar é: essa produção é clandestina por parte das fábricas ou há interesse das detentoras dos direitos? Para o caso das que defendam ser efetivamente lesadas é necessário considerar que, provar a existência dessas práticas e buscar coibi-las é uma questão de implicações não somente mercadológicas mas jurídicas e políticas: há que se considerar as determinações contratuais entre as partes diretamente envolvidas, mas também às questões menos tangíveis dos acordos, relativas às expectativas e implicações que envolvem outros atores indiretamente, entre eles os Estados e as instituições supranacionais de comércio. Por último, cabe observar que, mesmo diante dos fatos, os custos de produção costumam ser tão mais baixos na China que desestimulam que medidas mais enérgicas sejam tomadas contra essas práticas. Este exemplo ilustra como os finançopanoramas, tecnopanoramas e midiapanoramas (associados devidamente aos etnopanoramas , que correspondem aos fluxos humanos; e aos ideopanoramas , que referem-se aos fluxos imagéticos que compõem as ideologias e contra- ideologias) podem constituir processos contraditórios, fluxos insuspeitos e não-isomórficos na realidade globalizada, ainda que, evidentemente, conectados. Sem prejuízo desta constatação, podemos acrescentar que estes fluxos muitas vezes convergem sob determinados prismas. Mas como afirmar disjunção e conjunção num mesmo processo? Do mesmo modo como afirmaremos o global e o local, o hegemônico e o subalterno, entre outros. Adotamo- los como categorias de análise que são, contextuais, e não como materialidade. Desse modo, só pode haver um local em uma realidade que o transcenda, do mesmo modo que a disjunção se realiza da conjunção (e vice-versa). Um mesmo fenômeno pode se apresentar numa infinidade de nuances e representar diferentes fluxos dependendo do ponto de observação. É com esta ambiguidade e complexidade que nos propomos a trabalhar aqui, buscando escapar das dicotomias que podem se revelar improdutivas para a análise da realidade atual. 23

Este cenário complexo de panoramas que propõe Appadurai, Ortiz irá denominar situação de globalização . Para este autor, as transformações nas diferentes esferas da situação de globalização não transcorrem com a mesma velocidade. Processos econômicos e tecnológicos, possuem uma velocidade de transformação mais próxima entre si, porém mais distante da velocidade com que ocorrem as transformações culturais e políticas. Isso não implica em uma relação de causalidade. Seria incorreto afirmar que as transformações do campo cultural ou político são meras extensões dos fenômenos ocorridos na economia (lembremos a crítica ao world system e seu modo reducionista de lidar com as esferas política e cultural em relação a uma base econômico-tecnológica). Existem sim correlações, interferências, e imbricações mas cada esfera se modifica à sua própria velocidade e dentro das suas possibilidades reais. Outro fator diz respeito a natureza desses processos. Enquanto que a tecnologia e a economia tendem a definir um modelo global único, e não simplesmente hegemônico, que objetiva garantir a manutenção dos fluxos de capital, produtos e informações de, e para qualquer canto do planeta, os campos político e cultural não demonstram a mesma tendência. Ainda que existam modelos políticos difundidos (como os Estados-nação democráticos) não é possível identificar um sistema político estruturado globalmente. Quanto à cultura, mesmo diante da evidente gama de produtos culturais e conteúdos consumidos mundialmente, seria ingenuidade afirmar uma cultura única difundida pelo globo. Diante dessas questões e de modo a evitar as armadilhas de uma análise sistêmica, Ortiz opta por distinguir – mas não separar – esses fenômenos entre processos globais e mundiais. Globalização e mundialização são, dessa forma, processos concomitantes, ligados mutuamente, porém distintos. A globalização refere-se aos processos econômicos e tecnológicos enquanto que a mundialização ocupa-se do campo da cultura. Podemos aproximar, sem prejuízo, os conceitos de tecnopanoramas e finançopanoramas de Appadurai à globalização, enquanto que os midiapanoramas e ideopanoramas relacionan-se à mundialização. Entendemos também que é possível identificar traços dos etnopanoramas em ambos os processos propostos por Ortiz, ainda que este não seja o foco no trabalho deste autor. Sobre a diferenciação entre mundialização e globalização, ele complementa:

Há na ideia de globalização uma conotação que nos sugere uma certa unicidade. Quando falamos de economia global, nos referimos a uma estrutura única, subjacente a toda e qualquer economia. [...] A esfera cultural não pode ser 24

considerada da mesma maneira. Uma cultura mundial não implica o aniquilamento das outras manifestações culturais, ela coabita e se alimenta delas. (ORTIZ, 1994, p.26-27).

A mundialização, desse modo, pressupõe um processo contínuo de produção e compartilhamento de produtos culturais e de um universo simbólico - para usar um termo antropológico - específico às sociedades atuais tendo como matéria prima os universos simbólicos e as práticas regionais, nacionais ou étnicas. Assinala uma linha de força que atravessa as localidades e as identidades nacionais, desterritorializa e reterritorializa ideias, produtos, práticas e conteúdos, põe em circulação num fluxo supranacional e sobreclassista questões que se impõem a realidade e ao cotidiano dos indivíduos nas mais distintas posições geográficas. As composições de Mozart, os livros de Sheakspeare, os contos dos irmãos Grimm, a língua inglesa, musica pop, Coca-cola, Pokémon, telenovelas brasileiras, Monalisa de Da Vinci, Michael Jackson, o conceito fast food, Charles Chaplin, Hello Kit, Harry Potter, videogames, maison chanel, celulares, Ipads, futebol, lojas de departamentos, supermercados, etc. são exemplos de elementos mundializados que perpassam, em diferentes níveis, o cotidiano dos indivíduos pelo globo. Desse modo,

O processo de mundialização é um fenômeno social total que permeia o conjunto das manifestações culturais. Para existir, ele deve se localizar, enraizar-se nas práticas cotidianas dos homens, sem o que seria uma expressão abstrata das relações sociais. (ORTIZ, 1994, p.30-31).

Ortiz elucida ainda que, conceber a mundialização enquanto totalidade permite uma aproximação com a ideia de “civilização” proposta por Marcel Mauss, que a define como um conjunto extranacional de fenômenos sociais específicos e comuns a várias sociedades. Os tempos atuais exigem, contudo, que os pressupostos limites geográficos aos quais as civilizações estavam confinadas sejam substituídos pela imagem de uma civilização que se tornou territorialmente global. Essa civilização globalizada é responsável pela promoção de um padrão (pattern) cultural e técnico que seria a modernidade-mundo. Um padrão que se reproduz entre os países e localidades de maneira desigual, assimétrica e até mesmo perversa, mas que dificilmente pode ser negado. 25

Este padrão, obviamente, convive com outras manifestações culturais, mas o aspecto que nos interessa é que ele “possui uma especificidade, fundando uma nova maneira de ‘estar no mundo’, estabelecendo novos valores e legitimações” (ORTIZ, 1994, p.33). A evolução dos meios de comunicação e a formação das indústrias culturais têm um papel central na produção e circulação dos elementos da cultura mundializada, como bem observa Ortiz

Estou convencido de que, no processo de globalização, a cultura de consumo desfruta de uma posição de destaque. Na minha opinião, ela se transformou numa das principais instâncias mundiais de definição de legitimidade dos comportamentos e dos valores. (ORTIZ, 1994, p.11).

[...]

Na verdade, é apenas durante o século XX que o processo de mundialização se realiza plenamente. Trata-se de uma progressão contínua, que na conjuntura posterior à da Segunda Guerra sofrerá saltos e redefinições. [...] cabe ressaltar o advento das indústrias culturais. O modo de produção industrial, aplicado ao domínio da cultura, tem a capacidade de impulsioná-la no circuito mundial. [...] Os meios de comunicação contém uma dimensão que transcende suas territorialidades. O circuito técnico sobre o qual se apoiam as mensagens é também responsável por um tipo de civilização que se mundializa. (ORTIZ, 1994, p.56-60).

Assim, há que se observar que a formação de toda uma rede necessária à mobilidade cultural se torna possível com a materialidade dos meios de comunicação. Sua estrutura desterritorializada proporciona o suporte técnico para uma comunicação-mundo e para a formação de uma cultura internacional-popular. O desenvolvimento de novas tecnologias, sobretudo a eletrônica e a informática, ampliaram enormemente este processo. Ortiz entende que o conjunto de inovações e aparatos tecnológicos (tecnopanoramas comunicacionais e informacionais) possui influência capital no fenômeno da mundialização da cultura, constituindo a estrutura material para a sua consolidação. O desenvolvimento tecnológico é ainda mais fundamental ao processo de globalização, que em linhas gerais refere-se a consolidação de um mercado global de bens de consumo, o advento de um setor financeiro cada vez menos vinculado do controle do Estado- nação e de uma estrutura tecnológica e informacional que relativiza o tempo e as distâncias. Gisela Castro nos lembra que: 26

Embora haja controvérsias acerca da real abrangência desse conceito, cremos ser importante considerar a informatização dos mercados financeiros e a criação da rede mundial de computadores como marcos na aceleração, expansão e consolidação da globalização no bojo do chamado 'turbocapitalismo' pós-industrial. (CASTRO in BACCEGA (org), 2008, p. 134).

Desse modo, vimos que globalização e mundialização exprimem fluxos (tecnopanoramas, finançopanoramas e midiapanoramas diversos) transcendentes ao controle e limites propriamente nacionais para explicitar um panorama mais amplo, mundial, denominado situação de globalização . Mas o que entender por uma situação ? De acordo com Ortiz,

é uma totalidade no interior da qual as partes que a constituem são permeadas por um elemento comum. No caso da globalização, essa dimensão penetra e articula as diversas partes dessa totalidade. Colocar a problemática nesses termos permite-nos evitar, primeiro, um falso problema, a oposição entre homogêneo e heterogêneo, levando-nos a pensar simultaneamente o comum e o diverso. (ORTIZ, 2007, p.10).

Nesse sentido , a situação de globalização caracteriza-se pela emergência do novo e pela redefinição do “velho”. Ambos se encontram inseridos no mesmo contexto. Nele, diversas temporalidades se entrecruzam. Isso pressupõe um processo histórico em duplo sentido: da história já nele incorporada, ou seja, a história já feita, e a história que nele se incorpora, no presente e no futuro. Assim, não é necessário opor tradição a modernidade, local a global. Importa qualificar de que tipo de tradição se fala e pensá-la nas formas de sua articulação à modernidade-mundo . Da mesma maneira, de acordo com Ortiz, o local e o nacional não devem ser considerados como dimensões em vias de desaparecimento; o desafio consiste em entender como esses níveis são redefinidos. Na situação de globalização coexiste, portanto, um conjunto diferenciado de unidades sociais: nações, regiões, blocos e civilizações. A diversidade integra a totalidade. A questão da suposta oposição entre nação e globalização/mundialização merece ser observada mais atentamente. Ortiz explica que a formação da nação (e não devemos confundi-la com o Estado) pode ser lida como um processo de desenraizamento. A cultura nacional pressupõe um grau de desterritorialização, liberando os indivíduos do peso das tradições geograficamente enraizadas (ORTIZ, 1994, p.45). O que se encontrava limitado e 27

circunscrito pelas localidades se amplia sob a nação. Essas transformações foram possíveis porque, de acordo com o autor, a constituição das nações se assenta em outro fenômeno, que seria o surgimento da modernidade. A modernidade está aqui referida não como o início da era moderna histórica, mas ao momento de transição da sociedade agrária para a industrial, que rearticulou o tecido social imprimindo um novo estilo de vida. A separação entre espaço e tempo, com a emancipação do tempo em relação ao espaço (a partir das tecnologias que permitiram ao homem utilizar àquele como ferramenta para o domínio deste) redefiniu o valor da circulação, da mobilidade, do desenraizamento, que se torna elemento estruturante da modernidade. Ela permite o "desencaixe" das relações sociais. De acordo com Ortiz, durante o antigo regime tempo e espaço estavam confinados a limites seguros conferindo ordem a sociedade estamental. Esses limites separavam as classes sociais, a cidade do campo, cultura erudita e popular impedindo o movimento de um lado para outro. A modernidade romperia este equilíbrio impulsionando a circulação de objetos, mercadorias. O aspecto da mobilidade e da expansão também é apontado por Zigmunt Bauman como traço fundamental da modernidade: O tempo adquire história uma vez que a velocidade de movimento através do espaço (diferentemente do espaço eminentemente inflexível, que não pode ser esticado e que não encolhe) se torna uma questão do engenho, da imaginação e da capacidade humanas. [...] Apenas o céu (ou, como acabou sendo depois, a velocidade da luz) era agora o limite,e a modernidade era um esforço contínuo, rápido e irrefreável para alcançá-lo. (BAUMAN, 2000, p. 16).

Modernidade e nação, desse modo, não são apenas fatos sociais correlatos, a nação se constituiria historicamente através da modernidade. "Porque a sociedade industrial inaugura um novo tipo de estrutura social ela pode ser nacional"(ORTIZ, 1994, p.49). Desse modo a nação deve ser entendida como uma primeira afirmação da mundialidade, pois os mesmos princípios desenraizadores da modernidade que agora a extrapolam e lhe escapam foram os que permitiram sua emergência 5. Ao se expandir a modernidade-mundo relativiza as noções de "dentro" e "fora" e a especificidade dos universos culturais, ela traz consigo elementos que

5 Ortiz irá dizer que, vista dessa perspectiva, a sociedade moderna seria um conjunto desterritorializado articulado entre si, um primeiro movimento de desterritorialização. Lembramos que, como toda desterritorialização pressupõe uma reterritorialização, do mesmo modo que a modernidade desenraiza os grupos e as tradições do domínio do local ela irá permitir seu reagrupamento sob uma unidade maior e múltipla, a nação. Desse modo podemos dizer que a modernidade é um movimento de força expansiva e aglutinadora. 28

escapam ao controle da "ordem" interna da nação e dos grupos e carrega uma outra intenção, definindo novos territórios e novas fronteiras. Lógica que se vincula a interesses, forças e articulações, como nos lembra Ortiz. Anthony Giddens elaborou uma passagem interessante neste mesmo sentido ao falar da modernidade e da sua articulação com as localidades na situação de globalização 6:

A modernidade é inerentemente globalizante. [...] A globalização pode assim ser definida como a intensificação das relações sociais em escala mundial, que ligam localidades distantes de tal maneira que acontecimentos locais são modelados por eventos ocorrendo a muitas milhas de distância e vice versa. Este é um processo dialético porque tais acontecimentos locais podem se deslocar numa direção anversa às relações muito distanciadas que os modelam. A transformação local é tanto uma parte da globalização quanto a extensão lateral das conexões sociais através do tempo e do espaço. (GIDDENS in IANNI, 1999, p. 221).

Nesse novo cenário o indivíduo é perpassado constantemente por experiências extranacionais em todos os lugares do planeta, ainda que de maneira desigual em cada um deles, o território se relativiza, as fronteiras são redefinidas pelas experiências. Uma sensação de familiaridade, ou um não estranhamento, é possível de ser experimentado tanto no Japão, por um brasileiro, como no Brasil, por um japonês, devido à presença de produtos, símbolos, estilos arquitetônicos, tecnologias, serviços, operações de câmbio e comércio, modos de produção e reprodução material e simbólica que tornaram-se cotidianos a nós sejamos japoneses ou brasileiros. As nações deixam, pois, de se constituir em espaços hegemônicos de coesão social, culminando no rearranjo das relações sociais. Retemos aqui a noção de hegemonia, que é fundamental para o presente trabalho. Em uma entrevista concedida a um periódico chileno em 2006, Ortiz 7 defende que hegemonia não equivale a unidade, não é uniformidade nem homogeneidade. Hegemonia é um fluxo, uma tendência que dita relações hierárquicas. Ele traz como exemplo o inglês que seria agora a língua do mundo. Esse status prático global conferido ao inglês não implica, contudo, que outras línguas deixem de existir, porém o inglês estabelece com estas línguas, em escala

6 apesar de usar apenas o termo "globalização", entendemos que há correspondência de sentido entre este e a noção de situação de globalização proposta por Ortiz. 7 ORTIZ, Renato. Identidad y Diversidad: de la cultura local a la global: depoiment [Outubro de 2006]. Chile: Revista Austral de Ciencias Sociales, n.12, pg131-144, 2007. Entrevista concedida a Andrea Soto Calderón. Disponível em: Consulta em: 02 de Agosto de 2012. 29

transnacional, relações de legitimidade, autoridade, e, portanto, de hegemonia. Este é o motivo pelo qual não deve se opor diversidade e homogeneidade, o mundo é, simultaneamente, uno e múltiplo. Apenas está posta uma situação em que a globalização da economia e tecnologia têm um papel decisivo na definição desta imagem, neste cenário, neste contexto. Ou seja, cria relações de hegemonia. No interior, no entanto, o mundo continua diversificado. Pode-se dizer, de forma metafórica, que o mundo é uno, mas isso é vivido diversamente em cada lugar, em cada história, cada língua e em cada contexto. Assim, a modernidade encerra uma vocação mundial como força expansiva exigindo uma redefinição do papel nacional e local em distintas esferas. Esse desafio se impõe a todas às nações, indivíduos e classes. Ante a situação de globalização todas as relações, práticas, formas de organização social e noções sobre soberania, hegemonia, identidade entre outros podem ser repensados. Todo este cenário de transformações culturais, econômicas e tecnológicas irá alterar a maneira como os indivíduos percebem o “nós” e os “outros”. A noção de identidade, tradicionalmente associada a uma outra, a do Estado-nação, se borrará na realidade múltipla e complexa do tempo presente com seu mercado globalizado e sua cultura mundializada. “Um nós difuso, complexo, que se insinua nos lugares, a despeito de suas idiossincrasias” (ORTIZ, 1994, p. 220). De acordo com o cientista social argentino-mexicano Néstor Garcia Canclini (2006) 8, o processo de mundialização da cultura tornou possível a passagem das identidades modernas, consideradas territoriais e monolingüísticas, para as identidades pós-modernas 9, transterrritoriais e multilinguísticas. O senso de pertencimento e de identidade, ligadas anteriormente à memória-pátria e aos símbolos histórico-territoriais, são constantemente redefinidos. As culturas nacionais não se extinguem, elas passam a coexistir, a se relacionar e a serem reconstruídas através do intercâmbio com outras práticas, saberes e símbolos dentro do espaço desterritorializado. A coexistência, ainda que em níveis complexos, parece ser a palavra de ordem de nossos dias.

8em seu livro Consumidores e Cidadãos: Conflitos multiculturais da Globalização . Ver bibliografia. 9 não compartilharmos de uma visão pós-moderna no sentido de fim da modernidade, entendemos que o pós-moderno deve se aproximar em sentido da concepção de modernidade líquida, de Bauman, ou sobremodernidade em Marc Augé. Em suma, um estado sintomático das falhas do projeto moderno e aprofundamento dos dilemas inaugurados pela modernidade, e não sua superação. 30

1.1 Soft Power e a cultura como recurso: gestão nacional no contexto global Já foram discutidos alguns aspectos concernentes a dinâmica envolvendo o nacional e o global anteriormente, iremos agora expor outros aspectos dessa questão. É preciso, primeiramente distinguir os conceitos de nação e Estado. O Estado deve ser entendido como máquina político-administrativa que detém o monopólio da violência sobre determinado território, e sob essa perspectiva sua origem é remota. Nele a coesão se estabelece por meio da força e da coerção administrativa. A nação se funda em vínculos sociais de outra natureza, ela pressupõe um movimento de integração, uma "consciência coletiva" como sugere Ortiz ou ainda uma unidade moral, mental e cultural dos habitantes que aderem conscientemente ao Estado e às suas leis, de acordo com Marcel Mauss. 10 . Nesse sentido, a nação se inaugura com a industrialização, que rompe com os limites precisos das sociedades altamente hierarquizadas e heterogêneas compostas de "universos autônomos" articulados entre si. A divisão industrial do trabalho exige uma nova configuração social marcada pela mobilidade e por um outro grau de integração, capaz de envolver esses diversos mundos sob uma mesma, língua, Estado e, principalmente, sob uma consciência nacional . Os desafios que se impõem à concepção moderna de Estado-nação, pois, na situação de globalização são de duas naturezas: no plano nacional trata-se da necessidade de reordenamento em relação a sua hegemonia; no plano político-administrativo, a questão é como pensar a soberania. Ambos exigem reconfigurações ante os processos de mundialização e globalização. A nação já não é o espaço hegemônico de coesão social e nem o Estado é soberano frente aos fluxos da globalização e às novas exigências no âmbito político internacional. Os tempos são outros e os Estados-nação também o são, mas essa reconfiguração ainda não foi totalmente apreendida e decifrada pelo pensamento. Muitas são as estratégias e os conceitos que surgem para dar conta das questões práticas e teóricas envolvendo a situação de globalização e o Estado-nação. Um deles mostra- se particularmente interessante para o presente estudo por permitir o estabelecimento de uma conexão entre gestão do poder e a esfera cultural, trata-se do conceito de Soft Power desenvolvido pelo cientista político americano Joseph Nye. Soft power compõe um conceito dialético de gestão do poder e pode ser entendido como o poder de atração e persuasão, em contraste ao poder de coerção, definido por Nye (2004) como hard power . A síntese entre esses dois exercícios de poder é denominada smart

10 apud ORTIZ, 2000. p. 47 31

power . Da perspectiva do Estado-nação, que é a que nos interessa para este estudo, as fontes de poder disponíveis para o exercício do soft power proviriam da cultura nacional (independente se relativa à tradição ou à esfera da cultura de consumo), dos valores políticos (de pretensão democrática, sobretudo) e das políticas externas. Mas por quê seria importante a capacidade de atração para um Estado? Maquiavel já explorava a mesma questão no século XVI em O príncipe quando dizia, sobre o exercício de governança, que na impossibilidade de ser temido e amado, a primeira prerrogativa se fazia mais necessária. Hoje, contudo, a gestão do poder do Estado não pode abrir mão das fontes de atratividade sem arriscar marginalizar- se nos fluxos de globalização e mundialização, estagnando tanto política e cultural, quanto economicamente. Nesse sentido, a capacidade de cooptar cresce de importância em relação a coagir. Vejamos alguns aspectos dessa questão: A disseminação de informações é uma das características mais marcantes no plano comunicacional das sociedades atuais. Nunca antes tantos conteúdos estiveram a disposição de tantas pessoas pelo mundo (sobretudo em sua forma virtual, mas também através de uma infinidade de revistas, livros, canais de televisão) e o aparecimento de novas, mais velozes e baratas ferramentas tecnológicas e informacionais tende a contribuir para uma crescente desta tendência, gerando novos e diversos tecnopanoramas e midiapanoramas. Hoje, metade de todos os conteúdos na web não existiam dois anos atrás e estima-se que, logo, metade dos dados disponíveis terá apenas 18 meses de idade 11 . O tempo gasto consumindo informações e conteúdos através das mídias digitais também sofre uma crescente mundial. Enquanto que o tempo dedicado a leitura de jornais, livros, revistas e também ao rádio e à televisão aberta têm sofrido diminuições, os canais pagos de televisão, as rádios online, as mídias sociais e, sobretudo, o consumo de vídeos em streaming 12 tem ganhado cada vez mais tempo dos consumidores (ver figura 1).

11 resultados de pesquisa realizada pela Ernst & Young para a edição de 2012 do Forum D'Avignon. O fórum foi criado após a ratificação da Convenção da Unesco sobre a diversidade cultural, em 2007, e visa reforçar as ligações entre a cultura e a economia sugerindo temas de reflexão a nível mundial, Europeu e local. A última edição do fórum (que é anual) ocorreu entre 15 e 17 de novembro de 2012. Os dados compilados pela Ernst & Young para a composição do gráfico consideram informações do mercado americano sobretudo.Disponível em: . Consulta em 05/01/2012. 12 Streaming é a tecnologia que permite o envio de informação multimídia através de pacotes, utilizando redes de computadores. Através do streaming é possível escutar e visualizar os arquivos enquanto se faz o download .Quando a ligação de rede é banda larga, a velocidade de transmissão da informação é elevada, dando a sensação de que o áudio e o vídeo são transmitidos em tempo real. É possível assistir a vídeos em streaming também via telefone celular e outras tecnologias móveis. 32

Figura 1. Mudança no tempo dedicado ao consumo de distintas mídias entre 2008 e 2011.

Diante disto, podemos dizer que o crescente acesso à informação e conteúdos por parcelas cada vez maiores de indivíduos coloca na mesa duas questões importantes. Primeiro, a legitimidade das ações do Estado passa por mediações muito mais complexas e numerosas que anteriormente, a exposição é, efetivamente, global. Tanto para se construir uma imagem positiva e atrativa quanto para evitar associações negativas, múltiplas instâncias devem ser consideradas. Ante a seletividade dos canais oficiais e dos grandes conglomerados de mídia em relação à informação (seletividade que passa por interesses e relações de poder), celulares, câmeras fotográficas que se conectam à internet, redes sociais, entre outros, podem ser olhos e ouvidos alternativos em qualquer parte. A cobertura dos acontecimentos iniciados em março de 2011 na Síria é um exemplo claro. Milhares de civis e ativistas enviando enxurros de imagens, tweets, vídeos e notícias de um crime contra uma população ao vivo. Celulares com câmeras foram enviados aos manifestantes por uma organização ativista global para garantir que as informações e denúncias continuassem 13 , mesmo com o afastamento da imprensa. A arrecadação para a compra e envio dos celulares foi feita online, numa campanha global via e-mail e redes sociais. As consequências de tamanha visibilidade foram muitas e não pretendemos esgotá-

13 BERCITO, Diogo. Ong investe em ativismo online para ajudar os rebeldes na Síria. Folha de S. Paulo [19 de Dezembro de 2012]. Disponível em: < http://www1.folha.uol.com.br/mundo/1203522-ong-investe-em-ativismo- on-line-para-ajudar-os-rebeldes-na-siria.shtml > Consulta em: 23 de Dezembro de 2012. 33

las aqui, mas uma breve consulta (logicamente) à internet é suficiente para observar que mesmo Estados que tenderiam a manter neutralidade devido a interesses diversos (econômicos, sobretudo) foram pressionados pela opinião pública a tomar medidas, a exemplo dos Estados Unidos que congelaram os bens do então presidente Bashir al-Assad e de mais seis membros do governo sírio no país 14 . Segundo, que essa abundância de informações redunda em uma competição global por atenção. Numa miríade de notícias e produtos, como conseguir a atenção desejada? E mesmo antes disso, para que um Estado necessitaria de atenção? Podemos levantar algumas hipóteses. Para a gerência de sua soberania e hegemonia ante os fluxos globais, o Estado na sua função político-administrativa deve buscar tirar o melhor benefício dos recursos disponíveis, que como vimos não necessariamente lhe pertencem, mas o atravessam sob a forma de etnopanoramas, tecnopanoramas, ideopanoramas e mediapanoramas fluidos e instáveis. Nesse sentido, como fazer, por exemplo, com que as instituições e iniciativas do Estado atraiam talentos e investidores? Como tornar-se um espaço desejável para as empresas e estudantes? Angariar parceiros, investimentos, pesquisadores, estudantes. Todos esses objetivos passam pelo estágio fundamental da visibilidade e, desse modo, uma "economia da atenção", através do manejo de fontes de atratividade é certamente uma questão que merece consideração. A imagem e a legimidade que uma instituição, indivíduo ou um país gozam também colaboram para que ele sirva de referência como fonte confiável de informações, serviços e produtos. De outro lado, o uso do poder coercitivo também tem de ser repensado não apenas pelo viés da legimidade, a globalização das tecnologias exige mais cautela para a guerra, pois não mais se sustenta a imagem de uma única potência (ou duas, como foi na Guerra Fria) global detentora de tecnologia para a destruição em massa. Ainda que os Estados Unidos (hipoteticamente sob a figura da ONU) invistam contra o desenvolvimento de armas nucleares por qualquer país que não o seu próprio, o barateamento da produção de armamentos, não só nucleares, coloca em xeque a capacidade de controle sobre essas iniciativas. Potencialmente, países, exércitos particulares (bem como piratas modernos e diversos outros etnopanoramas recentes) e mesmo indivíduos podem estar muito bem munidos em qualquer parte do globo, e dentro nas próprias fronteiras nacionais. As alianças

14 CORRÊA, Alessandra. Pela primeira vez Estados Unidos anunciam sanções contra o presidente da Síria. BBC Brasil [18 de Maio de 2011]. Disponível em: Consulta em 02 de Dezembro de 2012. 34

entre indivíduos, Estados e instituições diversas podem decisivamente ampliar a dimensão de quaisquer conflitos e esse é outro fator a ser considerado. Os custos (humanos, de imagem, financeiros) de um enfrentamento civil ou de uma investida militar fora do território do Estado são assim decuplicados, pois uma linha muito mais tênue sustenta as relações de poder estabelecidas. Sanções econômicas, outro exercício de poder coercitivo, também tendem a tornar-se menos efetivas no mercado globalizado, onde não só a demanda como a oferta pode vir de parceiros antes insuspeitos e incomunicáveis. Nye irá destacar um outro aspecto dessa questão, em relação às modernas democracias (que é o modelo político hegemônico nos dias atuais, ainda que bastante nuançado). Ele afirma que mudanças sociais nas democracias pós-industriais tem contribuído para o aumento dos custos no uso do poder militar, que é a ausência de uma ética "guerreira", antes prevalecente e calcada nos ideais nacionais de glória e do sentimento nacional. Segundo Nye, hoje as democracias têm seu foco no bem estar e na cidadania, o que, para ele, significa que o uso de força militar requer elaboradas justificativas morais para garantir o apoio popular. A idéia de "conquistador" impregnou-se de um ranço histórico e perdeu o seu lustro para grande parte das populações no mundo. Diferentemente de períodos anteriores (e recentes), ilhas de paz onde o uso da força não é mais uma opção nas relações entre Estados tem caracterizado as relações entre grande parte das democracias liberais modernas. De acordo com ele:

The existence of such islands of peace is evidence of the increasing importance of Soft Power where there are shared values about what constitutes acceptable behavior among similar democratic states (NYE, 2004, p. 20). 15

Pode-se considerar ainda uma passagem no campo econômico que sinaliza para uma maior importância da economia criativa globalmente. A economia baseada em commodities e a economia industrial já foram os principais motores das grandes economias do mundo e a passagem de uma à outra constitui a entrada na modernidade para diversas nações. Logicamente, os processos de modernização sendo diversos em cada localidade imprimem diferenças e criam modelos particulares, como é o caso do Brasil, onde considera-se que a experiência de modernização se deu menos através da industrialização e muito mais através

15 "A existência de tais ilhas de paz é evidência da crescente importância do soft power onde são compartilhados valores sobre o que constitui comportamentos aceitáveis entre estados democráticos." Tradução livre. 35

do consumo, no entanto é inegável a proeminência de um desses dois modelos econômicos em grande parte das nações atuais. Diante das novas condições informacionais, tecnológicas e sociais que se estabelecem globalmente, podemos vislumbrar contudo, num futuro próximo, modelos econômicos que encontram seu foco em uma economia criativa, a qual se baseia no talento humano, na capacidade de inovação e na criatividade, que serão os diferenciais competitivos em um cenário onde cada vez mais Estados obtém acesso e às tecnologias de produção e aos insumos. Vimos até agora alguns dos aspectos do mundo globalizado que reforçam a conveniência de uma estratégia política que considere as fontes de atratividade como recurso para a gestão das questões nacionais. A construção de uma imagem nacional favorável, tanto interna quanto externamente, passa pelas malhas da cultura, sobretudo a cultura de consumo, uma esfera privilegiada de construção de imagens e universos simbólicos devido ao seu caráter mundializado e aos múltiplos midiapanoramas e ideopanoramas que abastece e constrói. Retomando as fontes de soft power apresentadas por Joseph Nye, nos concentraremos na cultura enquanto recurso, que é o que nos interessa para o presente estudo. George Yúdice (2004) irá problematizar justamente esta noção no trabalho A conveniência da cultura: usos da cultura na era global . Para Yúdice, a cultura como recurso

[...] é muito mais do que uma mercadoria; ela é o eixo de uma nova estrutura epistêmica na qual a ideologia e aquilo que Focault denominou sociedade disciplinar [...] são absorvidas por uma racionalidade econômica ou ecológica, de tal forma que o gerenciamento, a conservação, o acesso, a distribuição e o investimento - em "cultura" e seus resultados - tornam-se prioritários.

A cultura como recurso pode ser comparada à natureza como recurso, especialmente desde que ambas negociam através da moeda da diversidade (YÚDICE, 2004, p. 13).

Diante deste panorama a questão que se impõe é uma gestão desses recursos, de conhecimentos, tecnologias e etc. De acordo com este autor, a cultura como recurso está sendo crescentemente dirigida para fins de melhoria sociopolítica e econômica, como forma de aumentar a participação das instituições e Estados em uma "era de envolvimento político decadente, de conflitos acerca da cidadania (Young, 2008: 81-120) e do surgimento daquilo 36

que Jeremy Rifkin (2000) chamou de 'capitalismo cultural'." (YÚDICE, 2004, p. 25). As fontes de crescimento econômico tradicionais que se desestabilizam no presente contexto (algumas das quais comentamos há pouco), associadas à enorme oferta e distribuição de bens simbólicos mundialmente (o autor se refere diretamente aos filmes, comerciais televivos, música e turismo, entre outros), elevam a esfera cultural à um patamar acima do que já esteve em qualquer outro momento da modernidade. Yúdice acrescenta que a defesa de uma centralidade da cultura para a solução de problemas sociais e políticos não trata-se de uma novidade, no entanto ela tomou formas distintas no passado (como a reprodução ideológica) que não refletem de forma precisa o status atual. Mas a diferença fundamental entre esses usos da cultura é que, historicamente, ela não foi levada em consideração como fomento para o crescimento econômico. Esta perspectiva, que estava ausente em épocas anteriores, agora apresenta-se como uma das motivações fundamentais para a gestão da produção cultural. Neste sentido, a promoção de certos produtos e manifestações culturais sob a bandeira do soft power nem sempre se assemelha as tradicionais políticas para a cultura que visam a manutenção das formas artísticas e culturais, como os recursos ecológicos, para fins de diversidade cultural nacional e coesão social. Essa dimensão está presente pois a riqueza cultural local também é em si uma fonte de atratividade, mas quando falamos da cultura pop o que está em jogo é antes a mobilização econômica. As manifestações do pop conseguem manter-se e mobilizar finançopanoramas, tecnopanoramas e etnopanoramas independentes da intervenção e apoio dos Estados, os quais poderão posteriormente apoiá-las tendo como fim ampliar os fluxos de capital, produtos e pessoas (afinal, pequenas cidades ao redor do mundo de repente veem-se mobilizadas economicamente em torno do turismo de fãs, como a pequena Forks, no estado americano de Washington, ambientação da saga de vampiros Crepúsculo, que se tornou febre mundial em 2010 16 ). Ainda seguindo este raciocínio, Yúdice explica que quando instituições como grandes bancos, fundações internacionais, a União Européia, entre outras, começam a perceber o campo cultural como uma esfera crucial para investimentos, cada vez mais a cultura e as artes passam a ser consideradas como qualquer outro recurso. Ele destaca que:

16 Para mais informações: Turismo Vampiro: conheça Foks, o local da Saga Crepúsculo. portal on-line Terra[16 de Janeiro de 2010]. Disponível em: Consulta em 12 de Outubro de 2012. 37

O recurso do capital cultural é parte da história do reconhecimento da insuficiência do investimento no capital físico durante os anos 1960, no capital humano dos anos 1980, e no capital social dos anos 1990. Cada nova noção de capital foi projetada como um meio de melhorar algumas falhas de desenvolvimento na estrutura precedente. O conceito de capital social foi operacionalizado dos BDM's levando em consideração o cunho social de seus projetos desenvolvimentistas [porém] enquanto os retornos econômicos foram substanciais nos anos 1990, a desigualdade cresceu exponencialmente. [...] Consequentemente recorreu-se aos investimentos na sociedade civil, e a cultura é sua maior atração (YÚDICE, 2004, p. 31).

Todas essas questões descortinam um cenário que muitos entenderão como um processo de culturalização da economia (RIFKIN, 2010 apud YÚDICE, p. 35). Para Yúdice, essa culturalização da economia não aconteceu naturalmente, em vez disso foi coordenada através de acordos comerciais e de propriedade intelectual (a exemplo do GATT e a OMC), o que caracterizaria esta nova fase de crescimento econômico como também sendo uma economia política. Esta nova economia, que baseia-se no trabalho cultural e intelectual, torna-se com o auxílio das novas tecnologias de comunicação e informática a base de uma nova divisão do trabalho cultural. A propriedade intelectual torna-se um aspecto nodal nesse processo, e a pirataria e o compartilhamento de conteúdos online parecem ser o calcanhar de Aquiles dessa nova esfera de gestão político-econômica a que corresponde a economia criativa. Sugiura Tsutomu, conselheiro do Marubeni Research Institute e membro da subcomissão especial do Conselho de Tóquio para as Artes, nos diz que em um mercado global altamente competitivo, um prêmio é colocado na criatividade e na capacidade de inovação. A ideia de um setor criativo, ou de uma economia criativa, emergiu durantes os últimos 35 anos, com um grande empuxo nos últimos quinze. De acordo com Tsutomu, a cultura é um dos mais importantes e influentes elementos de soft power nessas novas economias, ela está relacionada a uma percepção amplamente espiritual, de valor agregado e embasada no conhecimento, enriquecendo a qualidade da vida diária das pessoas. As indústrias criativas necessitam de recursos tais como pessoas talentosas e criativas, e essas pessoas necessitam ser estimuladas por um ambiente rico culturalmente. Por isso, reforça o autor, é interessante às empresas, cidades e países serem capazes de prover um ambiente atrativo e estimulante do ponto de vista cultural. (TSUTOMU in WATANABE e 38

McCONNEL, 2008, p. 130). Com a captação de recursos humanos criativos, não só a própria área cultural se beneficia, como os demais setores tradicionais da economia são reformulados e inovados. Retomando um aspecto que citamos anteriormente, dentre toda a gama de manifestações e expressões culturais que podem servir de fonte de atratividade, a cultura pop é o recurso mais efetivo para direcionar a atenção pública, pela sua conjunção com o mercado e decorrente exposição. Essa dinâmica particular garante que os produtos e manifestações do pop dependam infinitamente menos que as manifestações culturais tradicionais de incentivos e fomentos governamentais. Sua proposta é ser mainstream, ou seja, ser consumida pelo maior número de pessoas em quantos lugares for possível, de modo que o alcance dos elementos do pop também tende a ser muito mais abrangente que outras manifestações culturais arraigadas à tradição, à alta cultura ou às localidades. No entanto, como o pop não constitui uma receita pronta, tanto elementos da alta cultura, das tradições, como manifestações locais específicas podem revestir-se com sua aura desterritorializada tornando- se objeto do maisntream. De acordo com Nye, é mais fácil identificar efeitos políticos específicos de contatos da alta-cultura, tais como intercâmbios universitários, do que demonstrar a importância política da cultura pop e popular 17 . Segundo este autor:

Many intellectuals and critics disdain popular culture because of its crude commercialism. They regard it as a providing mass entertainment rather than information and thus having little political effect. They view popular culture as an anesthetizing and political opiate for the masses. Such disdain misplaced, however, because popular entertainment often contains subliminal images and messages about individualism, consumer choice, and other values that have important political efects (NYE, 2004, p. 46-47). 18

O comentário de Nye nos abre espaço para discutir um aspecto fundamental da cultura enquanto fonte de soft power, que é a dificuldade (pela natureza imaterial dos objetos e pelos efeitos intangíveis obtidos) de se controlar ou aferir a efetividade e o alcance dos

17 Nos Estados Unidos não é usual fazer a distinção entre cultura popular e cultura pop, a qual defendemos no presente estudo. No capítulo dois discutiremos a cultura pop e o que ela representa como manifestação cultural singular da situação de globalização. 18 "Muitos intelectuais e críticos desdenham a cultura popular pelo seu comercialismo bruto. Eles a consideram apenas como entretenimento de massa e não como informação, tendo assim, pouco efeito político. Eles veem a cultura popular como anestesiante e um ópio político para as massas. Este desdém é equivocado, no entanto, pois o entretenimento popular muitas vezes contém imagens subliminares e mensagens sobre individualismo, escolha do consumidor e outros valores que têm efeitos políticos importantes." Tradução livre. 39

elementos culturais enquanto recursos políticos e mesmo econômicos. Ele explica que os governos podem atrair ou repelir pela influência de suas ações, no entanto, o soft power não pertence ao governo na mesma medida que o hard power. Os recursos de hard power, como as forças armadas, são estritamente governamentais, outros são inerentemente nacionais, como reservas minerais e de petróleo, outros ainda, podem ser convertidos para o controle coletivo, como a frota aérea que será mobilizada em caso de emergência. Em contraste, as fontes de soft power, entre elas e sobretudo a cultura, estão separadas da esfera governamental e são somente em parte responsáveis pelos seus propósitos. Nesse sentido, cabe considerar que o soft power também tem seus limites, e eles são ditados pelo contexto em que a relação de poder existe. Todo poder é contextual. Um recurso efetivo para atrair estudantes americanos para o Japão pode não funcionar da mesma maneira na China ou na índia. Em relação à cultura pop, por exemplo, Nye defende que ela tende a atrair indivíduos e produzir soft power na direção dos objetivos pretendidos onde as culturas em questão tenham alguma afinidade de valores, estética, etc. O soft power, muito mais que o hard power, depende da existência de intérpretes dispostos e receptivos. Além disso, a atração tem muitas vezes um sentido difuso, criando uma influência no plano geral em vez de produzir uma ação específica facilmente observável (NYE, 2004, p. 16). De acordo com o cientista político:

Soft Power is more difficult to wield. [...] Many of its crucial resources are outside the control of governments, and their effects depend heavily on acceptance by the receiving audiences. Moreover, soft-power resources often work indirectly by shaping the environment for policy, and sometimes take years to produce the desired outcomes. [...] Generally, however, soft-power resources are slower, more diffuse, and more cumbersome to wield than hard-power resources (NYE, 2004, p.99-100). 19

A proposta de Nye é fornecer uma contribuição conceitual para a gestão nacional em um contexto globalizado. Seu estudo possui uma forte orientação utilitarista, em consonância com a tradição acadêmica norte-americana, e fundamenta-se em questões práticas observadas no cenário político a nível internacional e americano. A partir dessa base concreta, elabora-se

19 "Soft power é mais difícil de manejar. Muitas de suas fontes cruciais estão fora do controle do governo, e seus efeitos dependem fortemente da aceitação de audiências receptivas. Além disso, as fontes de soft power na maior parte das vezes trabalham indiretamente para moldar o ambiente político, e algumas vezes levam anos para produzir os resultados esperados. De forma geral, as fontes de soft power são mais lentas, mais difusas e mais difíceis de manejar que as fontes de hard power." Tradução livre. 40

o cenário de um processo maior, o qual permitiria, e em certa medida exigiria, a consideração do soft power como ferramenta indispensável ao exercício político nacional na situação de globalização. Devemos nos lembrar com Ortiz que o caráter prático não desqualifica as análises sobre esse fenômeno posto que os administradores globais são também intelectuais, para atuar nessa realidade complexa é preciso problematizá-la. O conceito de soft power ganhou ampla difusão no cenário político, econômico e diplomático nas duas últimas décadas pois, como visto, contempla questões emergentes a respeito da situação nacional e de distintos aspectos da modernidade-mundo. A esfera política no plano nacional busca estabelecer novos vínculos com a esfera econômica, e ambas precisam ser manejadas ante os fluxos disjuntivos e os panoramas complexos da situação de globalização. A cultura potencializada no seu aspecto mundializado tem criado territórios férteis para essas interações. As noções de diplomacia cultural, indústria criativa e economia da atenção surgem nesse bojo. Michael Hardt e Antonio Negri também chamam atenção a este aspecto

Na pós-modernização da economia global, a produção de riqueza tende cada vez mais ao que chamaremos de produção biopolítica, a produção da própria vida social, na qual o econômico, o político e o cultural cada vez mais se sobrepõem e se completam um ao outro (HARDT e NEGRI, 2004, p. 13).

A presença mundializada de produtos da indústria criativa japonesa em segmentos como design, música pop, moda e entretenimento, consumidos em um sem número de pontos dispersos pelo globo, converte-se em moderna ferramenta para o Estado japonês fomentar boas relações diplomáticas no cenário mundial, atrair investimentos, talentos, turistas e ampliar suas perspectivas econômicas. Esta nova política de relacionamento e promoção das indústrias criativas, a qual ficou conhecida sob o termo Cool Japan , não é um exemplo isolado de gestão da questão nacional na situação de globalização através da esfera cultural, Coréia do Sul, Inglaterra e Estados Unidos também possuem políticas declaradas nesse sentido. O Japão, em princípio, mais do que outros países precisa de Soft Power, pois abriu mão em constituição a uma das principais ferramentas de hard power, que é o direito à beligerância e ao envolvimento em conflitos. Sua economia de base industrial tem sido posta em xeque pelos sucessivos abalos econômicos e, de outro lado, uma recente catástrofe natural 41

(o tsunami de 2011 e suas consequências funestas em relação à explosão do reator nuclear em Fukushima) colabora para a sensação de instabilidade política e econômica no país. Pontuaremos essas e outras questões do panorama japonês recente (econômico, social e cultural) no quarto capítulo deste trabalho, bem como as medidas de soft power implementadas pelo país, com foco nas relativas à esfera cultural. Propomos agora uma forma de analisar as fontes culturais de soft power sob uma tríplice perspectiva, que revela-se bastante plausível após o caminho percorrido até aqui. As considerações aqui levantadas servirão para que, no quarto capítulo, possamos expor e discutir os critérios de análise, relacionando-os ao nosso objeto, que é o animê, enquanto recurso de um soft power japonês. O Soft Power, observado da perspectiva do Estado-nação, pressupõe uma estratégia de conjunção político-cultural-econômica que procura, como discutido, beneficiar o Estado em distintas frentes, podendo ter objetivos específicos ou mais gerais. Entendemos que, dentre uma miríade de expressões e produtos culturais, alguns possam gerar mais benefícios do que outros, levando em consideração suas dinâmicas particulares de circulação e consumo na realidade globalizada. De uma forma geral, tanto os investimentos quanto os benefícios esperados das ações de soft power são avaliados simultaneamente em termos econômicos, políticos e culturais, para tentar dar conta justamente das maiores debilidades do Estado na situação de globalização: a organização em torno de sua hegemonia cultural da soberania econômica e, acrescentamos, da legitimidade política. Pode-se questionar por que coloca-se aqui a soberania com um fim econômico e não político, como é habitual. Entende-se que diante das dinâmicas do mercado global com seus múltiplos finançopanoramas e tcnopanoramas, desterritorialização do capital e da mão de obra, a esfera econômica nacional tem de lidar com um processo hegemônico e transcendente de força muito mais acentuada que a esfera política. Como observa Ortiz, a velocidade de fluxos e conexões dos mercados e das tecnologias são próximas entre si, enquanto que no campo político as transformações sofridas pelos fluxos globais são menos velozes e possuem outra dinâmica. Não existe a tendência, até onde pudemos observar, de um fluxo que reúna as sociedades sob uma única forma de governo global, como é o caso do mercado, ainda que a gestão da política nacional seja obviamente redefinida pelos processos mundiais. Diante deste cenário, muito dificilmente uma nação conseguirá ser soberana politicamente se não o for economicamente. 42

A soberania aqui não indica um objetivo de completa independência ou autossuficiência. Colocar a questão nestes termos seria faltar com a observação de tudo o que foi discutido a respeito dos fluxos globais. A soberania é aqui entendida como a busca pelo maior nível possível , diante desses processos, de autossuficiência e capacidade de gerenciamento dos recursos, e é nesses termos que a consideraremos para a análise das fontes de soft power. A hegemonia, quando colocada como um benefício cultural, representa a disputa pela visibilidade e proeminência no mainstream global. A capacidade de circular e difundir valores, manifestações culturais, produtos e serviços também passa, fundamentalmente, por uma organização tanto a nível nacional como mundial da questão de uma identidade nacional, que tenta ser reconstruída pelo Estado sob a moeda da diversidade, da tolerância, do arrojo e da criatividade. Cabe lembrar com Yúdice (2004) que o papel da cultura enquanto recurso nos dias atuais desvincula-se de uma função de mera reprodução ideológica e passa a compor uma noção de sustentação do estado de bem-estar social, sobretudo através do fomento econômico. A observância da hegemonia cultural de determinados produtos, técnicas e conteúdos é relativamente fácil, enquanto que a análise das imagens subjetivas que são construídas através do consumo cultural é um processo muito mais complexo, pois lida com o intangível, o que não diminui sua importância. Esse intangível servirá como fonte para o objetivo político, que é a legitimidade. Procuraremos considerar ambas as dimensões em nossa análise. A legitimidade como fim político foi discutida anteriormente neste texto mas cabe retomarmos alguns de seus pontos principais. A multiplicidade de informações e produtos exige uma determinada economia da atenção, que pode ser obtida através da legitimidade de quem informa, distribui e compartilha. Um país que tenha legitimidade enquanto ator político, produtor tecnológico ou cultural, possivelmente encontrará maior facilidade de gerir suas questões econômicas e políticas. A força de uma opinião pública global deve ser considerada e constitui uma das formas de se avaliar a imagem que as nações possuem ante indivíduos no mundo inteiro. Cada fonte potencial de soft power tem condições de realizar benefícios em alguma dessas áreas, comumente em mais de uma delas. A cultura enquanto recurso, geralmente o faz em todas, ainda que de forma desigual em cada uma. No entanto cabe lembrar que a cultura não está a disposição do manejo e controle do Estado como estão os recursos naturais. As manifestações, conteúdos e produtos culturais têm seus próprios meios e fins, mas, no 43

entanto, estas mesma manifestações e produtos podem ser estimuladas pelos governos na tentativa de manutenção das questões nacionais ante a situação de globalização. Como dito há pouco, muitos são os recursos culturais disponíveis para que o Estado realize ações de soft power, e a capacidade particular de realizar benefícios, quando comparada ao fomento necessário, tem traduzido a potencialidade de cada uma dessas manifestações ou produtos enquanto recursos. Sob esta proposta, realizaremos então uma análise do animê enquanto recurso de soft power japonês no último capítulo deste trabalho, após descrever este objeto e seus fluxos na realidade mundializada, destacando os midiapanoramas criados e a relação com o contexto histórico, amplamente considerado, no qual ele se insere.

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2 CULTURA POP E J-POP

Por que é imprescindível falar de cultura pop quando nos propomos a discutir, política, cultura e economia nas sociedades atuais? Porque o pop, ou o mainstream (MARTEL, 2010), é um fluxo cultural hegemônico na atualidade, sua evidente simbiose com a mídia e seu apelo se confundem com o próprio processo de mundialização, ainda que estes não sejam sinônimos. Quando falamos em mundialização da cultura, estamos diante de um processo muito maior e mais complexo que o simples fluxo de conteúdos e produtos culturais, trata-se, como já exposto, de um fenômeno social total, que exprime todo um padrão cultural e civilizatório, nos costumes, valores, práticas e também nos produtos. No entanto, a cultura de consumo, denominação utilizada por Ortiz (1994) e que sob o ponto de vista adotado neste estudo está relacionada ao que desenvolveremos sobre a cultura pop, tem um papel de destaque nesse processo, tanto por sua estreita relação com a dimensão econômico-tecnológica dos fluxos globais, quanto por apresentar-se como uma das principais instâncias mundiais de definição de legitimidade e de valores, tão caros à(s) política(s) diante da situação globalizada (ORTIZ, 1994, p.11). Dito isto, cabe aqui alguma discussão semântica e conceitual a respeito da cultura pop. Dizê-la mainstream - palavra de origem americana que significa: para o grande público, dominante, popular, de acordo com a definição de Frédéric Martel (2010) – seria passar apenas no raso de um fenômeno que se desenvolve juntamente com os processos de globalização e que tem muito mais a dizer não somente sobre estes na sua dimensão econômica, mas também sobre a configuração social que os permeia e os permite desenvolver.

2.1 Cultura pop: discutindo o conceito Muitas vezes empregado, mas poucas vezes analisado criticamente - ao menos em língua portuguesa 20 - o conceito de cultura pop corre o risco de ficar apenas na abstração do senso comum quando, de fato, descreve uma notável alteração no estatuto da cultura dentro

20 Em língua inglesa encontramos um número significativo de estudos e publicações sobre a cultura pop e/ou cultura popular, que em certas abordagens são tidas como sinônimos, sobretudo entre os estudiosos norte-americanos. Um estudo que reúne e discute algumas das principais definições é Cultural Theory and Popular Culture , do inglês John Storey. 45

do contexto de mudanças sociais profundas desencadeadas pelo fim da segunda Guerra Mundial e subsequentemente pelo término da Guerra Fria. Nascida no bojo dos novos meios de comunicação de massa e das indústrias culturais, circulando pelas bordas de outras manifestações e aglutinando tudo o que fosse novo, as misturas improváveis, o duvidoso, as apologias e críticas de uma nova realidade que se insinuava na política, na economia e nos modos de vida, a cultura pop se assume como mercadoria, aproximando irreversivelmente as esferas da cultura e mercado. No fim do século XX essa relação inaugurada pelo pop irá desenvolver-se em direção a um estreitamento entre cultura (produção cultural, capital criativo, tradição, etc.) e economia em sentido mais amplo, implicando, desse modo, numa inédita relevância - ao menos em grau - dos processos culturais para a esfera política, como apontam os estudos de George Yúdice (2004), Jeremy Rifkin (2000), Sugiura Tsutomu ( in WATANABE; Mc CONNELL, 2008, p 128-153) e Joseph Nye (2004). Esta imbricação entre cultura e economia primeiramente, e então com a política, também se evidencia na criação do Forum D'Avignon, ratificado após a Convenção sobre Diversidade Cultural da Organização das Nações Unidas (ONU) em 2007. O Fórum, que acontece anualmente na França desde 2008, objetiva "reforçar as ligações entre a cultura e a economia, sugerindo temas de reflexão a nível mundial, europeu e local [através da organização de] reuniões internacionais que oferecem oportunidades únicas para discussões e trocas entre os atores do mundo da cultura, as indústrias criativas, a economia e os meios de comunicação" 21 . Esta é uma iniciativa que revela que o estudo das novas configurações e usos da cultura na atualidade passa a constituir uma questão fundamental não só aos campos tradicionais de estudo (as ciências sociais de modo geral) como também às esferas política e econômica. Dentro dessas novas manifestações que se impõem, o estudo dos fenômenos culturais agrupados sob o termo "pop" é de suma importância para a compreensão das novas configurações globais em torno, especialmente, dos midiapanoramas e finaçopanoramas e ideopanoramas (APPADURAI, 1999; 2005) que permeiam os processos de mundialização da cultura e globalização da economia e das técnicas (ORTIZ, 1994).

21 Tradução livre. Texto disponível na página de apresentação do Fórum D'Avignon. Disponível em: < http://www.forum-avignon.org/en/le-forum-davignon> Consulta em 18 de Outubro de 2012. O Fórum conta com a participação não só de especialistas, empresários, filósofos e cientistas sociais como também de políticos e representantes governamentais. Esta ligação com a esfera política torna-se mais evidente com a observação dos eixos centrais de discussão, sendo eles: "cultura, financiamento e modelos econômicos", "cultura e a atratividade dos territórios" e "cultural, inovação e o digital". 46

O "pop" é uma expressão que consegue ampla difusão graças à capacidade de agregar ao seu entorno, através do uso social e cotidiano, uma noção mais ou menos coesa de si. Este poder de sustentação é imprescindível a qualquer conceito, noção ou ideia: a aplicabilidade cotidiana e o manejo social dos conceitos garantem a eles, mais que força elucidativa, a legitimidade que deveria almejar todo o conhecimento científico. E aqui, logicamente, é necessário referir-se à legitimidade para além das metalinguagens acadêmicas. Por outro lado, o uso corriqueiro do "pop" seja em blogs pessoais, televisão ou em revistas e jornais, por falta de um concomitante tratamento analítico que dimensione minimamente sua proposta, acaba por tornar seu sentido difuso. Destarte, "cultura pop" passa a ser banalizada na identificação de uma infinidade de práticas, produtos, movimentos, atitudes, estilos artísticos e musicais, agrupados em um conjunto de percepções mais ou menos afins. Isto se deve a uma certa resistência nas ciências sociais em aceitar a cultura pop enquanto objeto válido de estudo. Em língua portuguesa não foi encontrada nenhuma publicação que se dedique especificamente ao tema. As poucas obras que tratam da cultura pop em nossa língua são, sintomaticamente, relativas à cultura japonesa (LUYTEN et al., 2005; SATO, 2007; NAGADO, 2007)22 . A cultura pop japonesa vem sendo objeto de crescente interesse tanto na academia quanto nas mídias, brasileiras e globais, sendo que os Estados Unidos têm já há alguns anos sólidos grupos de pesquisas e publicações voltadas à cultura japonesa e ao chamado J-pop (cultura pop japonesa) 23 . De modo a compor uma base para nossa discussão sobre acultura pop, tomaremos como ponto de partida a concepção de uma das autoras brasileiras que possuem trabalhos dedicados ao estudo do pop japonês, Cristiane Sato (2007). Para Sato, a chamada cultura pop é um fenômeno de produção industrial de ícones e referências que se tornam comuns a um povo através da mídia. Não se trata apenas de veiculação. A mídia é utilizada como suporte e também como ferramenta de produção desses produtos culturais os quais divulga. Ainda de acordo com Sato, há que ressaltar a importância da identificação popular e a efemeridade

22 José Mário Ortiz Ramos também possui um capítulo em seu livro Cinema, televisão e publicidade: cultura popular de massa no Brasil nos anos 1970-1980, em que discorre brevemente sobre a cultura pop, enunciando particularmente sua aproximação à juventude, buscando apoio nos estudos de Edgar Morin sobre uma "cultura adolescente-juvenil". Ver bibliografia. 23 Pode-se destacar: o periódico acadêmico Mechademia , dedicado à cultura pop japonesa e publicado pela Universidade de Minnesota desde 2006; o Reischauer Institute of Japanese Studies de Harvard, Massachussets, que possui um grupo de pesquisa voltado especificamente ao fenômeno cool Japan - englobando a mídia, tecnologia e cultura japonesas - em parceria com o MIT Japan Program (Massachussets Institute of Technology); o programa de estudos no exterior da Temple University, da Philadelphia, que possui campus próprio no coração de Tóquio dedicado aos estudos sobre cultura japonesa. Ver sites consultados. 47

características do pop, que, deste modo distingue-se do folclore - ou cultura popular - que tem caráter atemporal e é transmitida pelo próprio povo, sobretudo, mas não exclusivamente, através da oralidade. À partir do que foi observado pela autora, pode-se inferir que a cultura pop é um fenômeno relacionado direta e primeiramente ao consumo e à produção industrial enquanto que a cultura popular estaria antes relacionada às tradições, aos mitos, aos saberes e à manutenção de uma identidade nacional/local. Assim, Pop e popular, apesar de o primeiro termo ser provavelmente uma contração do segundo, não são sinônimos. O pop só o é dentro de um contexto histórico, com as condições tecnológicas e sociais que o permitiram se desenvolver, como veremos adiante. Sonia M. B. Luyten, pesquisadora brasileira também dedicada ao estudo da cultura pop japonesa explica que

A palavra 'pop' provavelmente é um dos termos mais bem sucedidos nos Estados Unidos durante os anos 60 e 70 e ficou relacionada especialmente à música ouvida pelos jovens - a pop music. Por outro lado, por meio das obras de arte de Roy Lichtenstein, que se inspirou nas histórias em quadrinhos para suas pinturas, o termo pop art passa a ser conhecido e traz o sentido de que a arte também tende a seguir o que é transmitido pelos meios de comunicação e pela publicidade, além de se tornar popular. (LUYTEN, 2005, p.7).

É interessante notar o destaque dado por Luyten à obrigatoriedade de tornar-se popular para caracterizar-se enquanto pop, assim como o faz Sato (quando diz 'tornar-se comum a um povo'). O que à primeira vista pode parecer contraditório (afinal pop e popular não são sinônimos) se justifica ao percebermos que o popular, neste contexto, refere-se ao que é mainstream , cotidiano e difundido. Sem a capacidade de apelar a um gosto partilhado coletivamente, apesar de toda a produção em massa, nenhum produto do pop tem grande sobrevida. É preciso que ele "dê o que falar", que se torne assunto e referência coletivos. Uma observação merece aqui ser feita. A distinção proposta por Cristiane Sato entre pop e popular, ainda que consiga grifar o aspecto mais inequívoco da cultura pop que é seu caráter de produção e consumo em grande escala, apresenta uma visão restrita da questão, posto que desconsidera um aspecto importante desta distinção relativo à tensão entre cultura 48

da elite versus cultura popular, destacada por autores como Stuart Hall (HALL apud VELASCO, 2010, p.117). Enquanto o popular se constrói nestas tensões com as culturas de elite o pop, em certa medida, possui um trânsito mais fluido entre as duas instâncias. Os ícones e as estrelas do pop (estes sendo também produtos, por sua vez) são consumidos, muitas vezes, entre as elites bem como camadas populares. Podemos citar como exemplo, os jogos de videogame japoneses PacMan e Super Mario, desenhos dos estúdios Disney, animês como Pokémon e Dragon Ball, figuras como Pelé, Michael Jackson, Hello Kitty 24 ou Madonna. Eles não possuem território fixo, pode-se pagar muito para acessá-los em lojas caras ou espetáculos exclusivos, obtê-los no camelô mais próximo ou através da televisão. Isto não significa que a cultura pop seria o elo entre cultura hegemônica e culturas subalternas25 nas sociedades capitalistas, mas sim que por não trazer claro o que vem no rótulo (pode-se verificar isso pela própria dificuldade de se conceituar o pop) ela transita por terrenos menos demarcados e áreas fronteiriças. Justamente por este motivo, há opiniões muito divergentes e difusas a respeito da cultura pop e é possível que também por isso se note certa resistência na inserção do pop (e não do popular) como objeto de pesquisa legítimo e relevante nas ciências sociais. Como já havia destacado Luyten, a pop music , a pop art e a indústria cinematográfica (incluindo aqui as animações) são os expoentes da cultura pop que se evidencia na segunda metade dos anos 50 e sobretudo nos anos 60. A expressão pop art é creditada ao crítico de arte e curador inglês Lawrence Alloway que a cunhou em meados da década de 50, ele também utilizava já neste período a expressão pop culture . Lawrence era integrante de um grupo de arquitetos, escritores, intelectuais e artistas britânicos auto-denominado Independent Group , ligado ao Intitute of Contemporary Arts , de Londres, que visava estudar os meios de comunicação de massa e o cenário do consumo no capitalismo. Tilman Osterwold, em seu livro Pop Art , destaca que a análise crítica da nova sensibilidade artística que estava surgindo precedeu o próprio movimento artístico:

24 Um exemplo recente: foi apresentada na semana de moda de São Paulo, a São Paulo Fashion Week, em junho de 2011, uma coleção da estilista Fernanda Yamamoto que homenageava a personagem Hello Kitty, uma gatinha criada pela ilustradora japonesa Yuko Shimizu, trazendo-a na estamparia de diversas peças. 25 Culturas hegemônicas e culturas subalternas só fazem sentido dentro da concepção de um conjunto maior, como as culturas nacionais -- não se tratando estas últimas de todos homogêneos, mas de uma multiplicidade de expressões e variações proativamente reunidas em torno de uma construção ideológica, neste caso a da nação, em oposição a conjuntos também heterogêneos de outras nações. Também é possível hoje, observando as transformações no campo da cultura, pensar essa antítese nos termos de um conjunto ainda mais abrangente, global, representado pelo movimento de mundialização da cultura. O indispensável no entanto, quando falamos em hegemonia e subalteridade, é que não há como pensá-los sem um referencial, um conjunto que os transcenda e os englobe. 49

[...] Lawrence Alloway was one of the first critics to write on pop culture. It was during these years, too, that his wrote his critical analyses of Hollywood films. His writings and statements show that theoretical work on modern popular culture preceded Pop Art itself. According to Alloway, he had been using the terms "pop culture" and "pop art" since 1958 to refer a "mass produced culture" rather than to works of art. The term pop art had then been increasingly employed to describe new works of art produced in this period and, in this way, had spread to become the central stylistic concept of the pop scene and a synonym for the cultural movement of the period in general. (OSTERWOLD, 2003, p.71) 26

Percebe-se que Alloway, ao falar do pop, pressentia que este cenário de mudanças tendia a englobar muito mais do que o campo das artes ou do cinema especificamente, mas se traduzia em uma transformação estrutural da sociedade em sua perspectiva cultural mais ampla. Os midiapanoramas que são inaugurados pela cultura de consumo, criando fluxos globais hegemônicos e transversos de produtos e conteúdos, afirmativamente, colaboram na multiplicação de ideopanoramas e na complexificação dos arranjos sociais. Richard Hamilton, um dos artistas mais notáveis da pop arte, escreveu certa vez em carta que ela se caracterizava por ser "popular, transient, expendable, low-cost, mass- produced, young, witty, sexy, gimmicky, glamorous and Big Business" (OSTERWOLD, 2003, p.71) 27 . Tiago Velasco (2010) aponta que as expressões reunidas por Hamilton corroboram o caráter mercadológico pretendido pelo movimento artístico, pois através delas ele se afirma como mercadoria dentro de um sistema de produção capitalista, alinhada à sua lógica e destinada a um grande número de pessoas (sem pressupor uma conotação pejorativa), assim como mostram qual a estética adotada pelo movimento para se lançar ao mercado (artístico e econômico): voltada à juventude, carregada de humor e ironia, que explora a sensualidade como valor hedonista associada ao comportamento jovem e que remete à construção glamourosa dos astros e estrelas das mídias massivas. De acordo com Massimo Canevacci (2005), a juventude enquanto faixa etária e categoria social é bastante recente, data dos anos de 1950, assim como a cultura pop. E isso

26 Lawrence Alloway foi um dos primeiros críticos a escrever sobre cultura pop. Foi também durante esses anos que escreveu suas análises críticas dos filmes de Hollywood. Seus escritos e declarações mostram como o trabalho teórico sobre a moderna cultura popular precedeu a própria pop arte. De acordo com Alloway, ele tem usado os termos "cultura pop" e "pop arte" desde 1958 pra se referir à "cultura produzida em massa" em vez de obras de arte. O termo pop arte foi sendo cada vez mais usado para descrever os novos trabalhos de arte produzidos neste período e, desta forma, espalhou-se tornando-se o conceito estilístico central da cena pop e sinônimo para o movimento cultural do período em geral. (tradução livre) 27 popular, transitória, descartável, de baixo custo, produzida em massa, jovem, espirituosa, sexy, chamativa, glamourosa e um grande negócio. (tradução livre) 50

não é mera coincidência. O pop e o jovem estão intimamente ligados entre si e ao momento histórico. Uma das primeiras manifestações da emergência do jovem enquanto categoria social pode ser encontrada na popularização do termo teenager nos Estados Unidos em 1950, o qual havia sido desenvolvido quase cinquenta anos antes em um livro do psicólogo americano G. Stanley Hall. Hall apontava que a adolescência, ou o período entre a infância e a vida adulta, era não só biologicamente determinado, mas construído socialmente. Esta fase compreendia aproximadamente o decênio que vai dos 14 aos 24 anos e era caracterizada por grande instabilidade emocional. O adolescente era estimulado a retardar sua entrada na vida adulta - marcada pelo ingresso no exército, no mercado de trabalho ou pelo casamento - dedicando-se por mais tempo aos estudos. Canevacci irá dizer que é justamente o surgimento da escola de massa 28 que vai caracterizar "os jovens" como traço decisivo da contemporaneidade. Segundo ele, antes da escola de massa os jovens ainda não existiam como faixa etária, a adolescência era entendida muito elasticamente fazendo a ponte entre a criança e o adulto. Como o trabalho agrícola e o trabalho industrial absorviam já desde o fim da infância os filhos das classes populares, os jovens corresponderiam então aos aristocratas isentos do trabalho e, posteriormente, aos filhos das classes burguesas (2005, p. 22).

A escola de massa separa um segmento interclassista da população, da família e da produção; a mídia (discos, rádio, cinema) produz um novo tipo de sensibilidade e sexualidade, modo e estilo de vida, valores e conflitos; metrópole se difunde como cenário panoramático repleto de signos e sonhos (CANEVACCI, 2005, p.22).

O contexto histórico-social onde emerge a figura do jovem é justamente o decurso do fenômeno do baby boom , que ocorre em distintos países entre o fim da Segunda Guerra Mundial e meados da década de 60. O baby boom corresponde à explosão das taxas de natalidade verificadas neste período, tendo como causa principal o retorno de milhões de soldados que cumpriam tempo de serviço no exterior. Nos Estados Unidos entre os anos de 1946 e 1964 nasceram cerca de 77 milhões de bebês, sendo que no pico, em 1957, foram registrados 4,3 milhões de nascimentos. No Japão, essa geração conhecida como " dankai " corresponde aos 6,9 milhões de bebês nascidos entre

28 entendo a escola de massa, na proposta de Canevacci, como aquela não segmentada por classes sociais ou de trabalho. 51

1947 e 1949 (primeira geração baby boom japonesa), o equivalente a 5,4% do total da população no período 29 . Canadá e Austrália também passaram por seus respectivos baby booms entre 1946 e 1966. Na Europa os baby boomers , como são chamados os que nasceram nessas explosões demográficas, são conhecidos como "geração de 68" (os que tinham entre 18 e 25 anos nesta data). Estes baby-boomers inauguram, pela força de seus números, um novo estágio da vida social: a juventude. Foram vários milhões crescendo juntos, frequentando à escola 30 e à faculdade juntos, entrando juntos no mercado de trabalho e se tornando a força motriz de diversas transformações econômicas, políticas e sociais pelo mundo. Resguardados os matizes regionais, os baby boomers possuem em comum ser a geração que mais se diferenciou até então da dos próprios pais. É comum a associação destes jovens à rejeição ou redefinição de valores tradicionais, embora a extensão e a intensidade dessa recusa sejam discutíveis. Em suma, os baby boomers podem ser agrupados sob a forma de uma grande categoria social emergente entre o fim dos anos de 1940 e meados de 1960, tendente a derreter muitos dos sólidos das gerações anteriores - para usar uma expressão de Zygmunt Bauman (2001) - embora conservando outros. Este aspecto rebelde (evocado notadamente nos filmes com os atores Marlon Brando e James Dean, na década de 1950) e "do contra" (contra a autoridade retrógrada, contra a música tradicional pré- e antimídia, contra a manutenção de certos "tradicionalismos") dos comportamento e atitudes, evidenciado, por exemplo, na popularização do jeans-e-camiseta em detrimento da alta costura ou na oposição juvenil à guerra e ao serviço militar em diversos países entre as décadas de 1950 e 1960, é um ponto fundamental de diferenciação das gerações, de acordo com Canevacci. É sobre este nexo que ocorrerá, no período pós- guerra, a ascensão das culturas juvenis primeiramente como subculturas, como contraculturas e por fim, como mídia-culturas (2006, p.22). A pop music , que surge em meados de 1950 primeiramente nos Estados Unidos os quais se tornam uma vitrine mundial do estilo, é o gênero musical que será adotado por esses jovens. A indústria fonográfica norte americana, até os anos 50, era dominada por grandes vozes como Frank Sinatra e Bing Crosby ou ainda pelas big bands . Não existia ainda um

29 segundo informações do relatório de Maio de 2006 de autoria de Hiroyuki Nitta, da Divisão de Economia Japonesa (Japanese Economy Division), intitulado Capitalizing on Retirement of Japan's first Baby-Boomers . Disponível em: Consulta em 10 de Agosto de 2012. 30 E é justamente o aparecimento da "escola de massa", como nos informa Canevacci, que irá constituir os jovens como traço decisivo da contemporaneidade, porquanto ela separa um segmento interclassista da população, da família e da produção. CANEVACCI, 2005, p.22 52

gênero caracterizado como pop nem um estilo musical com que os jovens se identificassem particularmente. No começo dos anos 50, a fusão da música negra com a música caipira norte-americana originou o rock’n’roll , gênero que transformaria a música americana e mundial. Foi somente com a emergência do rock, gênero totalmente identificado com as culturas juvenis que emergem nos anos 50, que se abriu espaço para que um novo universo na música popular fosse criado, a pop music ; ambos fazem parte do mesmo movimento no início, a canção jovem, mas aos poucos os gêneros se distinguem. As inovações que se seguiram à ruptura artística provocada pelo rock na música estavam intimamente associadas ao novo ambiente econômico, social e cultural do período. Ambiente que trouxe como características principais a conquista de certo poder aquisitivo pelos jovens, a valorização do consumo, a expressão mais contundente das aspirações libertárias dos jovens, o conflito de gerações, o enfrentamento das segregações raciais, sexuais e sociais, o avanço das tecnologias de comunicação e o surgimento e a popularização de novas formas de entretenimento, como a televisão e o disco fonográfico. Canevacci (2005) elucida que, dos anos de 1950 em diante, o jovem é tal porque consome, em oposição ao “adulto que produz”, destacando que o consumo juvenil pela primeira vez adquire um papel central que se amplia para o restante da sociedade. Ele consome e não produz, pois ainda não se inseriu no mundo do trabalho. Deste contexto surge a expressão "sociedade do consumo", carregada de ressentimentos por parte do sujeito, político, adulto e produtor de riqueza. O pop , assim, possui íntima relação com o jovem não só por terem nascido juntos, mas por ainda hoje, e cada vez mais, mesmo diante de todas as transformações no campo social e cultural, traduzir-se como a cultura característica a esse segmento social, aqui entendido fora das faixas estreitas da concepção biológica. É necessário destacar não só a emergência da juventude enquanto categoria social e classe de consumidores a partir da década de 50, mas também a consolidação de toda uma classe média nos países capitalistas no mesmo período. Isso equivale a dizer que cada vez maiores parcelas da população conseguiam adquirir bens e serviços fundamentais - como a casa própria e atendimento médico, maior acesso a educação e às atividades culturais e de lazer, além de condições mais seguras e confortáveis de trabalho. Vistas todas estas questões e retomando o ponto fundamental que nos colocamos no início desta discussão, a respeito da distinção entre cultura pop e popular, podemos agora 53

frisar que é preciso diferenciá-las não só em relação ao seu conteúdo, ao seu modo de produção e ao público ao qual é dirigido, mas também, e fundamentalmente, ao momento histórico. A cultura pop é drasticamente ulterior à cultura popular (observada tanto da perspectiva clássica que identifica o popular como a cultura própria de um grupo distinto da elite esclarecida, quanto da perspectiva que estabelece uma relação intrínseca entre a cultura popular e a questão nacional - sendo o fundamento ideológico da construção do Estado- Nação, e mesmo em relação ao histórico do conceito, que se desenvolve no século XIX) e emerge no período posterior ao fim da Segunda Guerra mundial. Considerar o pop e o popular como sinônimos seria observar a questão por um viés a-histórico. O surgimento das mídias de comunicação de massa como o cinema, o rádio e a televisão, impulsionaram esse elementos pop (associados a uma ideia de juventude, de mudança de valores, de uma nova sensibilidade artística e de urbanidade) a um fluxo global, que se torna hegemônico pela capacidade de fazer circular não só produtos como capitais e valores, fundamentais à reconfiguração do panorama geográfico-político mundial ao fim da Segunda Guerra mundial. A cultura pop, vinculada em princípio ao mercado e à juventude, reinventa-se no tempo com o amadurecimento dos conglomerados de mídia e o advento das novas tecnologias de comunicação, numa dinâmica ambivalente que capta elementos das contraculturas emergentes bem como das culturas hegemônicas, reconstruindo incessantemente estilos de vida, padrões e referências sob uma lógica que Edgar Morin (1997) irá denominar "sensibilidade adolescente". Essa capacidade de circulação e consumo dos elementos do pop em diversos pontos dos globo, potencializada pelas tecnologias, irá relacioná-la assim, a todo um movimento de circulação de manifestações, símbolos e produtos culturais em escala global, o qual Ortiz (1994) denomina mundialização da cultura. Como frisado por este autor, a cultura de consumo (na qual os elementos pop são proeminentes), possui um papel de destaque nos movimentos de mundialização pois representa uma instância privilegiada de legitimação dos costumes e valores, o que é abordado também por Canevacci ao propor que:

A cultura do consumo é fundada na constante produção e reprodução de sinais bem reconhecíveis por seus donos e por seu público; ela não encoraja um conformismo passivo na escolha das mercadorias, mas, pelo contrário, procura educar os indivíduos a ler as diferenças dos sinais, a decodificar facilmente as infinitas minúcias que diferenciam as roupas, 54

os livros, os alimentos, os automóveis, o ambiente. Dessa forma, as distinções de classe e dos diversos segmentos de classe, e ainda as subculturas, ao invés de diluir-se, se fortalecem e se complicam: novos minissímbolos precisam ser descobertos para manter as diferenças (2001, p. 239).

Percebe-se deste modo que a cultura pop só poderia emergir na conjuntura da instauração do capitalismo como lógica econômica dominante (processo que se inicia ao fim da Segunda Guerra e culmina no fim da Guerra Fria), mais precisamente em seu estágio tardio, em meio ao surgimento dos meios de comunicação de massa e das indústrias culturais. A confluência da esfera da cultura com a esfera da economia atendeu à demanda das camadas populacionais que começavam a se inserir como consumidoras, tanto de produtos, quanto experiências materiais ou imateriais, bem como respondeu às necessidades de expansão contínua do capital e da criação de novos mercados. A relação entre os fluxos culturais associados às mídias, os midiapanoramas, e os fluxos econômicos, os finançopanoramas, como propostos por Appadurai (2005) ganha complexidade nessa condição globalizada onde todos os aspectos da vida foram sendo em alguma medida capitalizados e onde cada vez mais pessoas conseguiram acesso aos bens de consumo. A cultura pop , um fluxo cultural hegemônico nesse panorama, representa o ponto mais delgado do estreitamento entre as esferas cultural e econômica. Suas manifestações e produtos promovem uma série de valores, tendências, conceitos, estabelecem relações de autoridade e legitimações que irão reverberar incisivamente na esfera política, sobretudo através da manutenção de um soft power (NYE, 2004) nacional.

2.2 A criação do J-pop Para os objetivos deste trabalho, não se pode falar de animês sem antes apresentar o j- pop. A observação da formação de uma cultura maisntream japonesa revela aspectos das transformações sofridas pelo Estado japonês em plena assunção e consolidação dos processos globais, e como a dimensão cultural dessas transformações foi fundamental na reestruturação do país no período pós-guerra. As relações de poder que definiram os contornos da política e economia japonesas, passam, fundamentalmente pelas malhas das mediações culturais entre vencidos e vencedores. Veremos adiante que o j-pop, ou a cultura pop japonesa começa a se desenvolver nos anos subsequentes ao fim da Segunda Guerra Mundial, acompanhando a tendência de consolidação das indústrias culturais e desenvolvimento de novas tecnologias de 55

comunicação de massa que se apresentava em outras nações industrializadas no mesmo período. Os Estados Unidos terão influência capital nesse processo devido a uma conjunção de fatores, os quais veremos a seguir. A ocupação americana no Japão (de 1945 a 1952) a princípio tinha um claro objetivo desagregador como destaca Renato Ortiz: "O inimigo deve ser desarmado, desarticulado, mantido sob vigilância. Os eventos internacionais irão, no entanto, reorientar a política dos Estados Unidos"(2000, p.83). O objetivo americano era, no pós-guerra, "estabelecer uma estrutura de paz sustentada por uma China Unificada, democrática e aliada. Entretanto, Chiang Kai-shek, o líder Chinês apoiado pelos americanos para fazer a reunificação da China, estava sendo superado pelas forças comunistas, perdendo a credibilidade dos EUA" (UEHARA, 2003, p. 80). Este fator fez com que o direcionamento da política americana na Ásia cambiasse da China para o Japão em 1947, ano que marca o início da Guerra Fria, e com isso a reconstrução da economia japonesa bem como o equilíbrio político do país se tornaram prioridades. Os Estados Unidos investiram recursos na economia japonesa de forma direta até 1950, sendo que com a guerra na península coreana (1950-53) passaram a enviar capital para o Japão na forma de aquisições especiais de produtos japoneses que consistiam em compras de equipamentos para as forças armadas americanas no Extremo Oriente, pagamento aos funcionários japoneses empregados pelo exército americano no Japão e gastos realizados pelos soldados ou contratos de curto prazo. Houve interferência direta dos americanos também na elaboração da nova constituição japonesa (de 1947) - a qual ainda vigora e estabeleceu, entre outras coisas, a igualdade em direito entre homens e mulheres e a renúncia do país à guerra - bem como em medidas que representaram mudanças socioeconômicas significativas, como a reforma agrária e tributária. Mesmo após a assinatura do Acordo de Paz de São Francisco, que reabilitou a soberania do Japão em 1952, a influência americana sobre a diplomacia e economia japonesas permaneceu significativa e o relacionamento entre os dois Estados não se afrouxou. Os Estados Unidos apoiaram as campanhas para a inserção do Japão nos recém inaugurados órgãos internacionais como a ONU, o G7 e o GATT (acordo temporário que mais tarde daria origem a OMC - Organização Mundial do Comércio), o que representava perante o mundo que o país havia se tornado desenvolvido e industrializado. Outro fator importante para a recuperação da economia japonesa foi a proteção do mercado interno frente a concorrência estrangeira. Uehara destaca que: 56

Mesmo com seu ingresso no Acordo Geral de Tarifas e Comércio - GATT, em 1955, e na Organização para a Cooperação Econômica e Desenvolvimento - OECD, em 1964, o Japão, com o apoio dos EUA conseguiu contornar as pressões por uma maior abertura de seu mercado [...] (UEHARA, 2003, p. 83).

No aspecto cultural também encontramos várias implicações. A primeira delas diz respeito às alterações provocadas pela reorganização espacial e urbana. As cidades japonesas, já densamente habitadas desde o início do século XIX, sobretudo as áreas de Tóquio, Osaka e Kyoto, recebiam grandes contingentes populacionais com o progressivo esvaziamento do campo (provocado pelo realocamento da mão de obra na atividade industrial) desde a revolução Meiji. Com o fim da guerra e a diversificação da atividade industrial, além da inserção de novas tecnologias de cultivo, a população economicamente ativa nos setores secundário e terciário suplanta a mão de obra empregada na agricultura: em 1950, 16 milhões de trabalhadores estavam empregados em atividades agrícolas, número que cai para 10 milhões em 1967; já os trabalhadores da indústria sobem de 6,8 milhões na década de 1940 para 13,5 milhões na década de 1970 enquanto que os que encontram-se ocupados no comércio e atividades afins saltam de 4 para 10 milhões nos respectivos períodos. Essa mudança incide diretamente sobre as áreas urbanas, que passam por radicais reurbanizações nas décadas posteriores 31 a fim de poder acomodar não só o contingente populacional vindo do campo como adequar-se ao boom de crescimento demográfico japonês, entre os anos de 1947-49 32 . De uma cultura preponderantemente rural, boa parte da população japonesa teve de adequar-se rapidamente a um modo de vida urbano. A reforma agrária promovida pela força de ocupação americana através do general Douglas MacArthur, entre 1947 e 1949, intensificou o esvaziamento do campo e o rápido inchaço das cidades e regiões metropolitanas. A socióloga Célia Sakurai destaca que a partir do final da Segunda Guerra o Japão segue a tendência mundial de obter maior produtividade da terra com o uso de

31 apesar de as taxas de natalidade no Japão terem despencado nos últimos anos, sendo hoje a menor do mundo, a falta de espaço nas áreas urbanas ainda é um dos maiores problemas do país. É necessário considerar que apesar do baixo crescimento demográfico o Japão possui um grande volume populacional se comparado a outros países cujos territórios são bem maiores (em julho de 2011 o Japão contava com 127 milhões de habitantes, enquanto o Brasil, por exemplo, tinha entre 203 a 205 milhões, segundo o Indexmundi) além de receber muitos imigrantes - trabalhadores e estudantes em sua maioria. 32 Aposentadoria da geração "baby boom" ameaça economia do Japão. G1/EFE [02 de Abrilde 2008]. Disponível em: Consulta em: 08 de Julho de 2012. 57

maquinários, fertilizantes, pesticidas, em suma, uma modernização que libera mão de obra para as atividades urbanas:

"Os jovens migram para as cidades e os mais idosos, acima de 65 anos permanecem no campo. Assim, eles correspondem hoje a quase metade da população rural. O 'Japão antigo' sobrevive nas áreas rurais onde ainda as famílias são mais numerosas e há grupos familiares de três gerações convivendo sob o mesmo teto" (SAKURAI, 2007, p.45)

O deslocamento dessa mão de obra jovem para as cidades coincidiu justamente com o primeiro baby boom japonês - não é difícil esboçar a situação: uma grande massa de homens e mulheres jovens (incluindo os soldados que voltavam aos milhões do exterior) reunidos nas cidades, constituindo família e tendo filhos. A conformação nas metrópoles associada às transformações no mundo do trabalho e à emergência de um suporte material e tecnológico favorece o desenvolvimento de cultura midiática, imagética e associada a condição urbana. A materialidade da vida nas grandes cidades imprime mudanças nos estilos de vida, costumes, práticas e mesmo na organização do núcleo familiar, promovendo mudanças na ordem do lazer, do trabalho e do consumo, afetando a economia e a política. Além das alterações provocadas pela reorganização urbana, foram fatores de grande impacto social e cultural a retomada civil (ainda que sob vigilância e censura do governo ocupação) de setores e atividades que haviam se tornado praticamente exclusividade militar durante a guerra (ou pela censura e controle estrito das forças armadas ou pela falta de recursos da iniciativa privada) como a publicação de periódicos e as transmissões radiofônicas assim como, e aqui cabe destacar, a chegada de uma enxurrada de produtos da indústria cultural americana, desde Hollywood a Frank Sinatra, dos longas metragens Disney aos comics, os quais se tornaram cotidianos e populares entre os japoneses. Além de entreter, promoviam estilos de vida e toda uma longa lista de bens materiais como ventiladores, máquinas de lavar, automóveis, rádios portáteis, gomas de mascar e câmeras fotográficas que aos poucos começaram a compor a oferta do mercado japonês e a estimular a indústria nacional, já que o custo desses importados era bastante elevado e praticamente inacessível a maioria da população. Com o fortalecimento da economia japonesa os Estados Unidos ganharam mais que um parceiro capitalista na região asiática, o Japão tornou-se a vitrine das benesses desse 58

modo de produção e organização social em uma área em que a influência comunista crescia rapidamente. O desenvolvimento de uma forte indústria cultural no Japão nos moldes da indústria americana, não obstante a tendência mundial que encaminhava as nações industrializadas neste sentido, é também reflexo da importância que a cultura de massas assumiu como ferramenta ideológica no contexto da Guerra Fria e, por consequência, da grande dimensão que ela cobria na vida social, política e econômica. Não se deve esquecer, como nos alerta Ianni, que

A expansão cíclica mas contínua do capitalismo envolve tanto a produção material como a cultural. Desde o início da Guerra Fria, a indústria cultural do capitalismo passou realizar tarefas fundamentais, e com eficácia, na guerra ideológica que acompanha a própria Guerra Fria [grifo no original]. Em todos os níveis o capitalismo aparece como um poderoso sistema, um processo civilizatório, impondo-se a todas as outras formas sociais de vida e trabalho" (IANNI, 2005, p.19).

Por todos estes fatores, muitos autores ao falar da constituição do pop japonês e da sociedade de consumo japonesa vão situá-los em direta relação ao American Way e ao Star System americanos, tendo àqueles baseado-se no modelo destes para a composição de um mercado nacional de bens simbólicos e materiais. Cristiane Sato afirma que conforme a economia japonesa tomava fôlego durante a década de 50 a oferta de produtos adaptados às condições japonesas (financeiras e de espaço) foi aumentando, atendendo a uma crescente classe média que se formava, "o fato de tais produtos serem menores e caberem dentro de casa comparados aos fabricados na América, fizeram com que o público japonês optasse pelo affordable dream (sonho pagável) nacional" (SATO, 2007, p. 16). A contínua demanda interna e o desenvolvimento de novas tecnologias acompanhavam uma mudança de enfoque sobre o consumo e o lazer na sociedade japonesa. A modernização do Japão durante a era Meiji se faz sobre a égide da contenção do consumo e exaltação das virtudes do trabalho, apoiadas (mas não condicionadas) pelos preceitos da tradição ascética neoconfucionista. Incentivando a disciplina e o trabalho o Estado exigia dos seus governados uma dose de sacrifício, correspondente a um padrão de vida modesto, em nome do bem geral: os avanços técnicos e materiais da nação. Com uma ideologia de trabalho destinada a sustentar a industrialização não poderia haver uma contrapartida baseada em uma ética do lazer e do consumo. Com o fim da Segunda Guerra mundial e todas as implicações 59

que dela decorreram uma outra ideologia de trabalho, consumo e lazer teve de ser forjada no Japão a fim de sustentar o novo cenário social, econômico e cultural. O posterior desenvolvimento dos meios de comunicação de massa, da indústria cultural e da indústria de bens duráveis, associado à baixa qualidade de vida herdada dos anos anteriores e ao aumento da renda familiar no decurso dos anos 60, propiciou o surgimento de um fenômeno que idealizava o lar como espaço privilegiado de consumo através de slogans comerciais e propagandas 33 . Na década de 50, os "Três Tesouros Sagrados"34 de consumo das famílias japonesas eram "Os três S's": Senpûki, Sentaku e Suihanki (ventilador, máquina de lavar roupa e panela elétrica para arroz, respectivamente). Na década de 60 foram "Os três K's": Kaa, Kûraa e Kaaraa Terebi (carro, ar condicionado e televisão em cores). Nos anos de 1970 eram "Os Três J's": Jûeru, Jetto e Jûtaku (jóias, jato - significando viagem - e casa própria). A política nacional de produção em abundância encorajou a população a consumir massivamente, a "fantasmagoria do 'meu lar' choca-se com a tradição confucionista, expulsando-a para a periferia da vida moderna [...] O que era entendido como excessivo, exagerado, dissipação de energia, é ressemantizado como um ideal coletivo" (ORTIZ, 2000, p.89). Ortiz traz algumas estatísticas reveladoras desse processo. Vejamos o caso da televisão - que nesta pesquisa nos interessa diretamente por ser o meio privilegiado para a produção e consumo de animês: implantada no Japão em 1951, ainda em preto e branco, os aparelhos eram importados dos Estados Unidos e o custo era inviável a maior parte da população. Entre 1957 e 1959 a indústria japonesa aumenta sua produção de 613 mil aparelhos/ano para 2,8 milhões fazendo com que na próxima década os televisores, já em cores, se tornem um bem de massa. Do mesmo modo, em relação aos produtos culturais como quadrinhos, novelas, programas de rádio, filmes e animações, as novas condições sociais e econômicas propiciaram que estes se consolidassem como parte do cotidiano das pessoas. Cristiane Sato defende que, cansadas do estresse e sofrimento causados pelos longos anos de conflito e sendo obrigadas de pronto a tomar nas mãos a responsabilidade de reconstruir o país, as pessoas queriam se divertir e assim alimentar suas esperanças para o dia seguinte. Neste

33 o slogan "consumir é uma virtude", lançado na década de 1960, é um exemplo de como as necessidades da época foram conduzindo a uma mudança de paradigma em relação ao consumo. Para mais informações ver: KANEHISA, Tching. La publicité au Japon. Paris: Maisonneuve & Larose, 1984.

34 A expressão faz uma referência aos Três Tesouros Sagrados do xintoísmo, os quais: um colar, um espelho e uma espada, símbolos do poder imperial. SATO, Cristiane A. op. cit., p.16 60

ambiente a ansiedade e a pressão por formas populares de entretenimento criaram um ávido e gigantesco mercado, que encontrou escopo nas diversas manifestações da cultura pop que surgia. A grande poluição das metrópoles japonesas, consequência da intensa atividade industrial das décadas de 50 e 60, também é um fator que deve ser considerado na alavancagem desses produtos culturais - que em sua grande maioria podiam, eram e ainda são consumidos dentro do lar e durante atividades de trânsito, como percursos nos metrôs, trens e ônibus. Em meados de 1960, o ar de Tóquio era tão carregado de poluentes emitidos pelas inúmeras fábricas localizadas em seu entorno que a cidade chegava a ficar "no escuro" em pleno dia devido à fumaça 35 (Figura 2). Muitas pessoas usavam máscaras e evitavam a exposição à poluição das ruas, mas ainda assim os problemas respiratórios tornaram-se correntes entre a população. Na década de 80 eles se agravaram de tal modo que o governo se viu obrigado a adotar medidas públicas de controle da poluição e de tratamento a determinadas doenças respiratórias crônicas. Neste cenário, as atividades de lazer que podiam ser desfrutadas em ambientes fechados demonstraram grande apelo, ajudando a consolidar um forte mercado de entretenimento midiático ancorado sobretudo nos mangás (quadrinhos japoneses), animês, cinema e programas televisivos.

35 FROST, Peter. Postwar Japan, 1952-1989. About Japan/Japan Society [24 de Março de 2008]. Disponível em: . Consulta em 10 de agosto de 2012. 61

Figura 2 Fotografia de Toquio, no meio da tarde de 24 de Dezembro de 1964, quando a poluição causava escuridão em pleno dia.

A produção cinematográfica japonesa se recupera e desenvolve nas décadas subsequentes ao fim da guerra, aumentando sensivelmente o número de películas produzidas: em 1946 foram 69 filmes; em 1950, 215 filmes; em 1960 já eram 555 filmes. A popularização da televisão com um bem de massa nesta última década, no entanto, vai causar uma desaceleração na produção de filmes (embora se mantenha alta quando comparada a outros países) e uma redução no número de salas de cinema no país: em 1970 são produzidos 423 filmes; em 1975, 333 filmes e em 1980, 310 filmes; já as salas de cinema caem de 7.457 em 1960 (com a frequência de 1 bilhão de pessoas) para 4.649 em 1965 (372 milhões de assistentes). 36 A década de 60 viu ainda surgir na música o kayõkuoku , estilo formado por baladas ocidentalizadas com arranjos tradicionais japoneses e por versões em japonês de músicas

36 Ortiz, 2000, p. 85. 62

estrangeiras. Também o rock japonês toma impulso em 1965 através do musical Ereki no Waka Daisho (O jovem capitão da guitarra elétrica) estrelando o galã Yuzo Kayama, filme com clara influência dos musicais de Elvis Presley e do rock'n roll como estilo musical símbolo de uma cultura pop global emergente. As Olimpíadas de Tóquio em 1964 - as primeiras realizadas na Ásia - fomentaram grandes avanços em termos de infraestrutura e tecnologia e apresentaram ao mundo a imagem de um Japão próspero e moderno, com eficientes sistemas de comunicação, transporte (o shinkansen , ou trem bala, foi inaugurado nesta época) e hotelaria. Em 1970 a feira mundial Expo World Japan, realizada na cidade de Osaka, marcou a entrada do Japão no seleto grupo das potências econômicas e industrializadas (SATO, 2007, p. 18). É oportuno notar que logo no início da década de 70, o fato de uma feira de negócios e tecnologia ser denominada feira mundial , e não internacional , já é por si um sintoma de como os processos que compõem à situação de globalização tornavam-se latentes na segunda metade do século XX. Ao observarmos a dinâmica dessas feiras percebemos que as nações estão, em princípio, lá representadas por suas empresas. A situação em que o capital técnico e científico de uma empresa privada pode ser automaticamente estendido a localidade de origem desta empresa - um país -, e a participação das empresas em grandes eventos de tecnologia implicam em países desenvolvidos tecnológica e industrialmente só faz sentido em um momento do capitalismo onde o capital e as empresas que o produzem estão atrelados à nação. A progressiva internacionalização e posterior globalização do capital, das tecnologias, da mão de obra e do capital intelectual (o pesquisador desenvolve seus estudos onde lhe oferecem condições para isso), tornou praticamente impossível para a nação deter o controle dos fluxos desses capitais. Tomemos como rápido exemplo o caso dos smartphones e tablets: Samsung e Apple, as duas maiores empresas mundiais nesse ramo de tecnologia são, respectivamente, de origem sul-coreana e americana. No entanto, os centros de desenvolvimento de tecnologias da Samsung estão espalhados em mais de 10 países (a Apple, mais conservadora, possui apenas 2, a central na Califórnia e uma em Israel, inaugurada ano passado após a perda da liderança no mercado de smartphones para a rival) e os produtos de ambas as empresas são fabricados na China (onde é mais barato), com mão de obra e know how chineses. Isto sem considerar a evidente pluralidade de acionistas e do capital financeiro das duas empresas. Ante este cenário, é inevitável pois o deslocamento de uma perspectiva inter-nacional, onde as nações relacionam-se de forma autônoma, interagindo através do manejo de seus capitais "nacionais", para uma perspectiva mundial, onde a nação precisa se 63

rearticular em torno de capitais que não propriamente a pertencem mas sim a atravessam todo o tempo e relações que não se travam diretamente nos parâmetros de unidades nacionais soberanas, mas entre o nacional e o que o engloba e ultrapassa, o global. Talvez precocemente as feiras mundiais de tecnologia tenham prenunciado esse quadro de mudanças. A crise mundial do petróleo em 1973 colocou em xeque a sustentabilidade do modelo de desenvolvimento e industrialização vigentes no Japão, bem como em outras nações industrializadas. Sua estrutura de crescimento rápido tinha forte dependência do petróleo como fonte de energia. 37 Sobre os desafios econômicos e sociais que se impuseram nesta época Sato explica que

A eficiência industrial virou questão de vida ou morte. As fábricas passaram a ser modernizadas com processos que usassem menos combustível e energia. Fontes alternativas renováveis de energia passaram a ser desenvolvidas. [...] Buscando reduzir a zero desperdícios no processo produtivo e custos desnecessários, empresas japonesas adotaram técnicas administrativas posteriormente copiadas no mundo inteiro, como o kanban e o just-in-time. Investimentos para aumentar a automação na industria e no campo criaram um novo produto de exportação: em uma década, de exportador de produtos industrializados, o Japão passou a exportador de know how . (SATO, 2007, p. 19-20)

No universo pop, o clima de insegurança mundial da década de 70 colaborou para o surgimento de duas tendências opostas. A primeira, mais conservadora e nostálgica, recuperava antigas fórmulas e estilos cinematográficos e musicais consagrados, enquanto que a segunda inaugurava gêneros e caracterizava-se pelas rupturas. Nos mangás (os quadrinhos japoneses) títulos alcançavam o status de hits nacionais tanto nos gêneros voltados à garotas quanto aos garotos, Ashita no Joe (O Joe de amanhã) e Berusaiyu no (A rosa de versalhes) tornaram-se best sellers . No campo das animações, os longa metragem de ficção científica começam a atrair a atenção do público e da mídia no país, criando febre entre grupos jovens. Nos anos de 1980 o Japão irá ganhar notoriedade mundial em através de suas realizações econômicas. Dando sinais de recuperação dos problemas causados pela crise do petróleo, a economia japonesa experimentou um significativo crescimento, superando os

37 UEHARA, 2003, p. 92 64

Estados Unidos em termos de renda per capita e como país credor de ajudas internacionais. A participação política do país no plano internacional, criticada e considerada raquítica em comparação a força de sua economia (o Japão ocupava o posto de segunda economia mundial à época) se amplia com a representação japonesa na reunião de Cúpula de Veneza(1980), a partir da qual, segundo Uehara "o país adquire status de membro de resoluções em questões políticas e de segurança globais" (2003, p. 106-107). Uma efetiva política de distribuição de renda resultou em uma ampla e bem paga classe média, sendo que 70% da população economicamente ativa recebia salários igual ou acima de 2 mil dólares e 60% tinham casa própria em 1987. Segundo Sato, as seguintes características compunham o pop japonês da época:

Nos anos 80, a geração da "bolha econômica" altamente consumista e hedonista se impôs no Japão, eram jovens que primavam pelo divertimento [...] Nada que lembrasse hábitos e valores frugais das gerações anteriores lhes agradava. Nas rádios, os ritmos e arranjos ocidentais com letras frívolas do j-pop (música pop japonesa) tomam o lugar das baladas tradicionalistas, dramáticas e lamentativas do enka . Na tv e nos quadrinhos tudo se torna mais fantasioso e adolescente. É o auge das burikko idols - moças lançadas como cantoras ou atrizes pela indústria de tarentos . (2007, p. 20-21)

Na transição desta década para os anos 90, inicia-se o primeiro boom de popularidade das animações japonesas pelo mundo. Os animês de ficção científica serão os grandes responsáveis por atrair a atenção de jovens em diversos países para a vasta e diversificada produção japonesa neste campo. O sucesso dos animês permitiu que os mangás (quadrinhos japoneses) fossem também licenciados e comercializados. Animês e mangás criaram um amplo canal e consolidaram um fluxo de atenção para o que se produz no Japão, desde a moda à culinária, sobretudo após a difusão da internet banda larga. Hoje, constituem o pop japonês não só os popularíssimos mangás e animês, como destaca Sato, mas também o J-pop (música pop japonesa), animesongs (gênero musical japonês formado pelas trilhas sonoras de animês, tokusatsus 38 e videogames), games,

38 Em japonês , Tokusatsu , traduzido literalmente, significa “efeitos especiais”. É sinônimo de um gênero de filmes e seriados que justamente por se utilizar muito destes efeitos passou a ser conhecido como tokusatsu . São alguns exemplos Jaspion e Kamen Rider . 65

cosplay 39 , videokês, lámens instantâneos, além dos tradicionais – mas não menos pop – sushis, sashimis, katanas, kimonos, dentre uma infinidade de outros produtos e manifestações. Estão presentes no cotidiano não só de consumidores no Japão como também no de milhões ao redor do globo. Com a intensificação do comércio, do turismo, dos intercâmbios e a proliferação de novas tecnologias de comunicação e produção, os produtos, sejam ele materiais ou simbólicos, perderam não só um ponto único de origem, fabricação ou concepção, como um ponto único de destino. Eles estão para quem quiser e - sobretudo - puder consumi-los, independente de onde se encontre. Globalização e mundialização são fenômenos em macroescala mas que atuam através dos indivíduos e de suas ações, os quais reafirmam-se no local, nos grupos, nações e Estados, simultaneamente, dissolvendo e recriando ou reafirmando fronteiras.

2.3 O mainstream global japonês A cultura pop japonesa, como vimos, não se origina nem é consumida exclusivamente no território do Estado japonês. No entanto, um dos seus grandes atrativos sugere encontrar-se no fato de seus produtos evocarem no consumidor uma imagem particular e exótica de Japão. Excetuam-se nesta observação os vizinhos asiáticos, para os quais a motivação é justamente oposta, e os produtos japoneses são comumente preparados para revestirem-se de uma aura mundializada, que evita a abertura de feridas de um passado recente e pouco amistoso 40 . São as contradições para as quais se abre o mundo complexo em que vivemos, onde os processos que transcendem os grupos, as classes e as nações se por um lado afirmam novas territorialidades, novas formas de interação e novas maneiras de se conceber as identidades, por outro encontram-se indissociáveis de movimentos de força divergente que estabelecem outros parâmetros. Apesar da força que os conteúdos, personalidades e produtos do pop japonês desfrutam em casa, em todo o extremo oriente e parte do sudeste asiático, onde ainda é hegemônica apesar da intensa competição com o k-pop (cultura pop sul coreana), poucos são

39 Abreviação de costume play ou ainda costume roleplay . Refere-se à atividade lúdica de fantasiar-se como um personagem real ou ficcional, concreto ou abstrato, acompanhada da tentativa de interpretá-los na medida do possível. Disponível em: Consulta em Setembro 2012. 40 para mais referências sobre a presença do pop japonês na Ásia, consultar os livros Soft Power Superpowers , oeganizado por Watanabe e McConnell e Mainstream , de Frédéric Martel. Ver bibliografia. 66

os seus elementos indubitavelmente mundializados 41 . São eles os mangás, os games (hardware e software) e os animês, como veremos adiante.

Mangás

Os mangás são o maior fenômeno editorial do Japão e um dos maiores do setor de publicações no mundo. Alguns títulos de revistas semanais de mangá, como a Weekly Shonen , vendem cerca de 3,5 milhões de exemplares, sendo estimada como a revista de quadrinhos mais vendida no mundo. Os mangás são disponibilizados em dois formatos impressos além dos digitais. A princípio, as histórias são lançadas em antologias (como a Weekly Shonen Jump, que possui mais de 20 capítulos de histórias diferentes em um único volume). São grandes volumes monocromáticos impressos em papel barato. O custo é baixo e essas revistas costumam ser descartadas em locais públicos após a leitura. As histórias que alcançam boa popularidade ganham versões individuais em impressão e papel melhores, sendo mais caras e colecionáveis. Grande parte da população japonesa consome mangás, eles fazem parte do lazer cotidiano, desfrutado em metrôs, nos intervalos de trabalho ou da escola, nas igrejas e mesmo como material institucional e pedagógico. Personagens de mangás e animês estampam placas nas ruas, sinalizações, aviões, vagões de trem e uma infinidade de outros espaços. Existe também, e são muito populares, os mangás café, onde uma variada oferta de títulos fica a disposição dos clientes que podem lanchar, conectar-se a internet e, logicamente, ler mangás. Nos últimos anos, contudo, a pirataria e a competição com outras plataformas de consumo de quadrinhos (como a web) tem causado grandes problemas para as editoras de mangás, que veem seus números de vendas reduzirem-se paulatinamente. O mercado de mangás possui estreita relação com o de animês desde meados da década de 50, quando a confluência entre essas duas mídias foi inaugurada para viabilizar o aparecimento das séries animadas para a televisão. O animê (como veremos no capítulo seguinte), enquanto prática artística, não derivou dos mangás e possui sua própria dinâmica na sociedade japonesa, porém com a abertura do mercado televiso no país, a conjunção entre mangás e animês tornou-se a forma mais segura de se investir em produções animadas para televisão, já que os mangás eram histórias conhecidas e populares. Essa conjunção não foi

41 adotamos a perspectiva de que, nos processos de mundialização de elementos da cultura de consumo, há os já incontestavelmente mundializados, ou seja, os que atingem parcelas globais de público e compõem midiapanoramas mainstream, e os que participam dos processos de mundialização mas sem tal evidência, em suma, produtos e conteúdos de caráter mais subalterno, globalmente considerados. 67

apenas importante para os animês como também para os mangás, que tiveram que adaptar-se a fim de não comprometer o andamento das séries animadas. Os mangás assumiram a partir daí uma dinâmica mais veloz de produção e comercialização, saindo de formatos mensais, que eram relativamente comuns até então, para capítulos semanais nas ontologias. Fora do Japão os mangás também se consolidaram como um fenômeno midiático desde os anos 90, após a popularização dos animês. Essas duas mídias são de tal forma interligadas no Japão na atualidade, que pode-se afirmar um processo de retroalimentação, onde as transformações e a dinâmica de consumo e circulação dos animês influi diretamente na indústria de mangás e vice versa. França, Alemanha, Estados Unidos são alguns dos maiores e mais consistentes mercados consumidores de mangás hoje, ainda que o sistema de distribuição e a variedade de títulos disponíveis no exterior, todavia, não contemplam nem mesmo uma pequena parcela do que é produzido no Japão. O consumo transversal, ou subterrâneo como propõe Hirata (2012), através da internet com a prática conhecida como scanlation , assim como ocorre para os animês através dos fansubs , é comumente a via mais difundida entre os leitores ao redor do mundo.

Games

As primeira empresas japonesas no setor, como a Sega, Taito, Namco e Nintendo eram produtores de jogos eletromecânicos para arcade - os fliperamas, como são conhecidos no Brasil, grandes videogames profissionais usados em estabelecimentos de entretenimento. O Japão se tornou um grade exportador de jogos durante a idade de ouro dos jogos de arcade, entre o fim da década de 70 e meados de 1980. Com a quebra da indústria de videogames nos Estados Unidos em 1983, o Japão tornou-se hegemônico no mercado com o lançamento da terceira geração de consoles da Nintendo. A situação manteve-se nas duas décadas seguintes, até que consoles como o Xbox, da Microsoft, começaram concorrer com a Sony (Playstation) e Nintendo no início dos anos 2000. Embora videogames japoneses tenham em geral um bom apelo no exterior, o inverso não é tão comum. No entanto, em recentes anos a popularidade dos jogos e consoles japoneses tem diminuído significativamente, em 2002 a indústria japonesa de games detinha 50% do mercado global, em 2010 esse índice cai para 10%. Os jogos online, a pirataria e a concorrência com diversas empresas que oferecem opções mais baratas de produção (a China, por exemplo, é hoje um grande polo de produção de games, ainda que os jogos sejam desenvolvidos muitas vezes para empresas estrangeiras, como destaca Martel (2010) em seu 68

livro Mainstream ) podem ser apontados como fatores que ocasionaram essa diminuição. Apesar da recente crise, a qual criadores e desenvolvedores tem afirmado ser uma crise criativa, das dez franquias de jogos mais vendidas no mundo até o presente momento, sete são criação japonesa, incluindo febres mundiais como Mario, Tetris e . O mercado de games também possui uma relação íntima com o mercado de mangás e animês, na medida em que é comum a criação de jogos baseados em personagens e séries populares de animês e mangás, bem como, de outro lado (o que verifica-se mais raro), vê-se personagens de jogos conhecidos, ou ainda roteiros de jogos, ganharem suas próprias séries de animê e mangá, como é o caso de Pokémon , um hit mundial que começou como um jogo da empresa Nintendo, em 1996, ganhou uma versão em mangá no mesmo ano e por fim sua adaptação em série e filmes de animê (de 1997 em diante), alcançando sucesso globalmente no fim dos anos de 1990. O capítulo seguinte será dedicado a descrição dos animês, seu histórico, papel na formação e consolidação da cultura pop japonesa, dinâmica de produção, consumo e popularização a nível global. Neste percurso será exposto o processo que alçou essas animações a uma condição de conteúdo mundializado e hegemônico após os anos de 1990. Esta descrição e exposição acerca dos animês será propícia também para a visualização dos próprios movimentos de mundialização da cultura e globalização da economia, vistos a partir de uma perspectiva que encontra seu lócus no Japão, atualizando-se portanto, contextualmente, no panorama social, político e econômico japonês desde a primeira década do século XX aos dias atuais. Essa exposição é importante para que, ao analisarmos o animê como um recurso cultural de soft power no quarto e último capítulo deste estudo, tenhamos o conhecimento necessário deste objeto e seu posicionamento dentro de uma lógica cultural pop japonesa para apontar e discutir algumas das diversas mobilizações (econômicas, tecnológicas, sociais) por ele realizadas e como essas mobilizações poderão facilitar ou dificultar a sua adoção como uma ferramenta governamental de gestão das questões nacionais na situação de globalização.

69

3 ANIMÊS: A INFANTARIA DO MAINSTREAM JAPONÊS

Animê é o nome sob o qual a animação japonesa tornou-se conhecida mundialmente. Para os japoneses, qualquer filme de animação, independente da estética, técnica utilizada ou origem, é um animê. Fora do Japão, animê (corruptela de "animeeshon", que é a pronúncia japonesa de animation , do inglês) 42 , passou a denominar as animações nipônicas e, mais tardiamente, animações oriundas de outros países e que compartilham de estética e técnica semelhantes. Para este trabalho, animê se referirá à animação japonesa, ou, quando explicitado, à que apresente o mesmo estilo técnico e conceitual. Os animês são os maiores representantes da cultura pop japonesa a nível global. Mais que os mangás, os games, ou mesmo expressões tidas como tradicionais e que já foram símbolos de japonidade, como a prática do Ikebana 43 e a cerimônia do chá, na atualidade, são as animações a fazer grande parte da mediação que permite que outros produtos do pop e demais manifestações culturais japonesas transitem no fluxo da modernidade-mundo. Mais da metade das animações exibidas mundialmente já em 2004 eram criações japonesas 44 e o sucesso tanto de público quanto de crítica dos animês longa metragem tornou-se notável na última década: foram duas indicações ao Oscar de melhor animação 45 , sendo que A Viagem de Chihiro , do , recebeu o prêmio em 2003 (correspondente ao ano de 2002) – o segundo ano apenas de criação da premiação - além do Urso de Ouro, prêmio máximo do Festival de Berlim, em 2002, sendo a primeira animação a conseguir este título. A série de grande sucesso global Pokémon (Poket Monsters, "montros de bolso"), tornou-se uma febre tão logo estreou na televisão americana em 1998. Foi exibida em aproximadamente 70 países, tendo cerca de 4 mil produtos licenciados sob a marca que renderam mais de 7 bilhões de dólares em vendas ao redor do mundo. Se considerados todos juntos, os produtos, filmes longa metragem e a série, Pokémon é uma potência econômica

42 De acordo com Sônia Luyten (2000) e Cristiane Sato (2007). 43 Ikebana é, sinteticamente, uma técnica de composição de arranjos florais. Considerada uma arte e um dos símbolos de japonidade, a técnica do ikebana, curiosamente, se originou na Índia, onde nas festas religiosas destinadas a Buda eram ofertados arranjos florais. O arranjo floral do ikebana deve seguir três pontos principais que simbolizam o céu, a terra e a humanidade. Existem várias escolas de ikebana e cada escola valoriza e enfatiza um conceito próprio. 44 GRAIEB, Carlos. O Japão é pop. In: VEJA, São Paulo, edição 1835, nº1, ano 37, p. 80-86, janeiro, 2004. Disponível em: < http://veja.abril.com.br/acervodigital/>. Acesso em 07 de maio de 2011. Disponível em: . Acesso em Outubro de 2010. 45 O Castelo Animado, também do Studio Ghibli, foi indicado à premiação referente ao ano de 2005. 70

avaliada, sozinha, em 20 bilhões de dólares, sendo que, deste valor, rendeu 10 bilhões de dólares apenas no Japão. Embora o modelo de gestão dos direitos e a receita obtida com a franquia consistam em exceção entre os animês, a popularidade de Pokémon não é um caso isolado. Fenômeno similar, ainda que em menor escala ou em áreas específicas (como a Europa, Ásia ou a América Latina), ocorreu com o filme Akira no fim dos anos 80 e mais recentemente com as séries One Piece, Dragon Ball , Sailor Moon , Hello Kitty , Naruto e Death Note . Estes fatos tornam-se ainda mais relevantes posto que os animês só passaram ser reconhecidos como tal e a desfrutar de popularidade no mundo em meados da década de 90 e enfrentaram, bem como ainda enfrentam, sérios obstáculos culturais nos seus fluxos de consumo em decorrência da velha polêmica sobre a presença da violência e obscenidade em animações, além da concorrência com a gigante americana Disney, voltada completamente para o entretenimento infantil e politicamente correto. A história da animação no Japão tem origem antiga, quase tanto quanto a do cinema live action 46 . No entanto, o animê como o conhecemos hoje - chamado por alguns de animê moderno - com todas as características que lhe são pertinentes, é produto de uma série de transformações e influências que foram se somando da segunda metade do século XX até os dias atuais. O aspecto destacadamente híbrido do animê criou um novo conceito de animação, que, ainda que não possa ser entendido enquanto modelo rígido devido às variadas possibilidades que contempla e pela dinamicidade que apresenta, ampliou tanto as possibilidades estéticas quanto comunicativas da animação. As diretrizes de produção dos animês, que em grande parte segue o modelo da sua arte irmã 47 , os mangás (quadrinhos japoneses), são bastante singulares em relação as usuais na produção de animações em outras partes do mundo, sobretudo nos estúdios tradicionais americanos, como Disney e DreamWorks, o que contribui para os fluxos de consumo diferenciados destes produtos dentro da cultura mundializada. Tendo iniciado timidamente seu período de exportação na década de 60, os animês começam a ganhar popularidade no mundo entre as décadas de 70 e 80, tendo como boom a década posterior. O desenvolvimento de novas mídias possibilitou, paradoxalmente, a popularização e configuração das animações

46 chamaremos de cinema "live action", ou simplesmente cinema, o cinema interpretado por atores em vez do cinema de animação. 47 Expressão utilizada por Mônica Lima de Faria em seu artigo História e Narrativa das Animações Nipônicas: Algumas Características dos Animês . Disponível em: última consulta em Abril de 2012. 71

japonesas como produto de exportação, assim como, mais recentemente, o surgimento de uma crise de comercialização dos animês devido justamente ao modo de distribuição que o tornou mais popular: gratuitamente via internet. A popularidade dos animês pelo mundo propicia que eles atuem não só como entretenimento mas como um fomentador econômico e ator político na promoção de uma imagem de Japão no cenário internacional, um atrativo cultural para o turismo e negócios em geral. Todas essas mobilizações possibilitam que os animês venham a ser apropriados posteriormente como recurso cultural de um soft power japonês, situação que investigaremos no próximo capítulo deste trabalho. Para se compreender os fluxos que condicionaram a animação japonesa a um fenômeno de consumo global e o contexto em que isso se deu é necessário neste momento uma incursão pelo histórico dos animês. A história dos animês pode ser dividida em dois momentos distintos, o primeiro compreendendo o intervalo entre os anos de 1917 a 1950 aproximadamente e o segundo de 1950 aos dias atuais, com o desenvolvimento do que convencionou-se chamar "animê moderno". Observaremos cada um deles a seguir, buscando explicitar os fluxos, condições sociais, fatores econômicos e políticos (nacionais ou globais) eventos e articulações que contribuíram na construção e popularização das animações japonesas.

3.1 Primeiro momento: as origens do animê De acordo com o curador do acervo de filmes do Centro Nacional de Cinema japonês, Akira Tochigi (2008) 48 , tanto o cinema quanto o cinema de animação chegaram ao Japão como técnicas importadas. Aparelhos como o cinematógrafo dos irmãos Lumiére e o quinetoscópio e o vitáscópio de Edison foram importados por comerciantes japoneses que realizaram exibições dessas novidades por volta de 1896. Catorze anos mais tarde as primeiras animações, francesas e americanas, chegaram às telas japonesas e consta que receberam especial predileção pelo público. Os filmes do francês Émile Cohl que apresentavam o herói "Le Fantoche", que no Japão receberam o título de Um novo caderno de desenhos de Dekobo , tornaram-se tão famosos que Dekobo (como foi batizado o herói da

48 Em seu texto As fontes do Anime , sobre o cinema silencioso japonês elaborado para a II Jornada Brasileira de Cinema Silencioso, em 2008. Projeto desenvolvido pela cinemateca brasileira. Disponível em: . Acesso em 01 de maio de 2011. 72

história) foi usado na época como o equivalente japonês para a palavra "animação", que não tinha um nome específico até então. Em 1917, vinte anos após a chegada do cinema ao Japão, os primeiros artistas japoneses começaram a produzir curtas de animação no país. A maioria dos pioneiros nessa área trabalhava de forma experimental, em seus próprios estúdios e com pequeno capital. As técnicas variavam, sendo a mais comum a animação de recortes. As tentativas de trabalhar com as animações comercialmente esbarravam na carência de recursos, foram poucos os profissionais que no decorrer da década de 1920 conseguiram estimular as produtoras de cinema japonesas a financiar seus projetos 49 . As possibilidades encontradas pelos cineastas de animação naquela época concentravam-se em produzir animações encomendadas por prefeituras, associações de professores e artistas engajados no movimento marxista como a Liga do Cinema Proletário, ou ainda pelo Ministério da Educação. Tochigi explica que

Tentativas de trabalhar com grandes produtoras como a Nikkatsu e a Shochiku alcançavam apenas sucesso relativo, porque muitos executivos dos estúdios não se dispunham a financiar essas pequenas produções, preferindo importar e distribuir para os ávidos espectadores japoneses animações estrangeiras mais sofisticadas. Em decorrência disso, a maior parte dos cineastas de animação era obrigada a fazer animações para audiências jovens, e ficava na dependência do circuito de filmes educativos financiados pelo poder público (TOCHIGI, 2008).

Desde 1910, crescia um debate no Japão em torno da influência do cinema nas platéias jovens. Devido à polêmica, que se estendeu por mais de uma década, o governo japonês formulou, por volta de 1920, políticas cinematográficas que atrelaram ainda mais a produção de animação ao Estado: através da concessão de certificados à produções selecionadas o Ministério da Educação passaria a promover o uso educativo de filmes (este inclusive iniciaria uma produção própria de longas, documentários e animações); foi estabelecida também uma censura governamental para cada cópia de filme, em 1925, pelo Ministério do Interior. Neste contexto político, a animação, chamada à época de eiga (filme de desenho), passou a ser considerada um ramo do cinema educativo voltado para crianças, e as produções versavam, sobretudo, sobre contos populares e lendas.

49 a exemplo de Seitaro Kitayama, que após produzir curtas de animação para públicos jovens pela Nikkatsu (o mais antigo estúdio de cinema japonês, fundado em 1912) abriu seu próprio estúdio em 1921 passando a produzir animações promocionais para uma agência do governo. 73

No início dos anos de 1930, acompanhando a transição do cinema silencioso para o cinema sonoro e sob a influência de intelectuais e cineastas progressistas os quais defendiam uma modernização do cinema nacional, as animações começam a aderir a um estilo "ocidental" (entenda-se francês e americano) de humor, de ritmo mais acelerado. Os filmes silenciosos japoneses, incluindo as animações, eram comumente exibidos com acompanhamento de música ao vivo, tal como em outros países, sendo que os instrumentos utilizados eram o chamisen (instrumento de corda) e o taiko (tambor); um fato peculiar, no entanto, era que sempre havia ao lado da tela um narrador (que também atuava como dublador) conhecido como benshi . Algumas exibições contavam com grupos de benshis , cada um dublando um personagem. Mais do que o diretor, eram os benshi de prestígio que tinham o poder de decisão sobre os conteúdos das narrativas. Disso resultava que as produções japonesas da época tinham duas características marcantes:

1. Para que o ritmo de narração dos benshi não fosse quebrado, os elementos próprios a uma narrativa do tipo analítica, como intertítulos, primeiros planos e cortes, eram na medida do possível evitados.

2. Devido a essa primeira postura, cada plano era uma longa tomada contínua (ITAKURA, 2008). 50

As críticas sobre esse formato do cinema silencioso japonês começam a tomar voz após 1915. Apreciadores do cinema silencioso europeu e americano exibidos no Japão, críticos e cineastas progressistas defendiam que, para se modernizar, as produções japonesas deveriam inserir intertítulos, que o conteúdo das narrativas e as falas deveriam ser decididas dentro do filme e que se deveria utilizar primeiros planos e cortes, próprios a uma narrativa analítica. Essa "modernização" do cinema japonês foi posta em prática paulatinamente desde o início dos anos de 1920, mas só se tornou preponderante após o terremoto de 1923, que destruiu estúdios, salas de cinema e boa parte dos filmes e animações produzidas até então. A voga modernizante se introduziu na poética das animações, a inserção de falas diretamente no filme (1933), a utilização da técnica de animação em células e a exploração de ângulos e planos na montagem se inauguram em produções realizadas entre 1925 e 1945.

50 de acordo com Fumiaki Itakura (assistente de curadoria do National Film Center e do The National Museum of Modern Art de Tóquio) em seu texto Os filmes silenciosos japoneses , para a II Jornada Brasileira de Cinema Silencioso, 2008. Disponível em: , no dia 24 de Julho de 2012. 74

O cinema japonês entra numa nova fase a partir do governo militar, em 1933, que perduraria até o final da segunda Guerra Mundial. No decorrer deste período a atividade cinematográfica passa a ser utilizada como veículo de propaganda militarista, vinculada aos objetivos expansionistas do Estado, e após a entrada do Japão na Segunda Guerra Mundial, em 1941, seriados americanos exibidos nas manhãs de sábado, suspenses ingleses e animações estrangeiras como Betty Boop e Mickey Mouse , que até então eram muito populares entre os japoneses, foram proibidas. Há registro de poucas animações nacionais neste período no início da década de 40 foram realizadas as primeiras animações longa metragem no país, financiadas pelos órgãos militares como o Ministério da Marinha; essas animações de cunho militarista atuavam como propaganda de guerra, recebendo a denominação de puropaganda anime (SATO, 2007, p.33). Apesar da grande perda em liberdade temática, esta época propiciou avanço técnico para as animações japonesas, devido aos generosos orçamentos com que contaram essas produções.

3.2 Segundo momento: A criação do animê moderno Com a derrota do Japão ao fim da Segunda Guerra e a urgência de reestruturação da economia e política do país, o animê e a atividade cinematográfica em geral tiveram suas atividades bastante prejudicadas até meados da década de 50. Matérias primas como o celulóide, filmes e tintas eram todos importados a altos custos, tornando a animação em células 51 , por exemplo, quase inviável no período. O foco das produções também se altera drasticamente. Os censores das forças de ocupação americanas, além de fiscalizar tudo o que seria produzido e veiculado a partir de então fosse em jornais, filmes ou rádio 52 , também promoveram uma revisão da produção cinematográfica japonesa dos períodos pré e durante guerras em busca de qualquer propaganda de "ideologias não democráticas". Grande parte de toda a produção analisada, incluindo as animações, foi queimada ou destruída. De muitos dos

51 também conhecida como animação tradicional, ou clássica, é a técnica onde os desenhos são feitos a mão e retraçados ou copiados em um plástico transparente chamado célula. Depois coloca-se a célula sobre um fundo pintado e os movimentos são fotografados um a um com uma câmera. 52 os quais saíam do poder dos militares e passavam para a iniciativa privada dando origem aos grandes conglomerados de comunicação e mídia do Japão. Renato Ortiz esclarece que embora existam nichos de meios públicos de comunicação (a exemplo da NHK) predominam os monopólios na imprensa e nas telecomunicações. Nestes a produção seria orientada pela demanda de mercado, acarretando que a lógica comercial, embora não seja a única, se torna prevalente nas comunicações japonesas. Ver ORTIZ, 2000, op. cit., p. 85-6. 75

animês produzidos entre 1933 e 1945 restam apenas ilustrações ou relatos de que eles existiram. 53 No final dos anos de 1950, pouco mais de dez anos após o fim da guerra, o Japão já se encontrava numa situação econômica mais equilibrada e a crescente classe média japonesa se mostrava ansiosa em obter novos produtos e utilitários, aquecendo a atividade industrial e o comércio. Este cenário economicamente favorável, possibilitou que em 1958, a Toei, uma das maiores produtoras de cinema do Japão no pós-guerra, fundasse a companhia Toei Dõga, atual , dedicada a produção de animações comerciais longa metragem. Neste mesmo ano a companhia lança Hakuja Den (a lenda da serpente branca), o primeiro animê longa metragem colorido, e que refletia um esforço de reavivar a produção de animação no Japão. Hakuja Den alcançou enorme sucesso entre os japoneses e incentivou a Toei a continuar as produções. Esse foi o primeiro passo para uma nova fase da animação japonesa, sobretudo a comercial. A criação de diversas companhias de animação e também o surgimento de muitas produções independentes marcaram o desvencilhamento da produção de animação em relação ao Estado e a independência em relação ao Ministério da Educação. Logicamente, normas que regulamentavam a atividade e os conteúdos existiam, como ainda existem, mas as oportunidades/possibilidades de produção e a liberdade temática são revolucionadas a partir daí.

53 Para mais informações consultar: SATO, Cristiane A. A cultura popular japonesa: animê in LUYTEN, Sonia M. Bibe. Cultura pop japonesa. São Paulo: Hedra, 2005. p. 31 NOCHIMSON, Martha P. World on film: an introduction. Singapura: Wiley-Blackwell, 2010. p. 201. 76

Figura 3. Hakuja Den (1958) Toei

Neste processo de transformações, um artista em especial é considerado o divisor de águas na produção de mangás e animês devido às suas contribuições pioneiras tanto na temática e na técnica quanto na formação de uma indústria nesse sentido: seu nome é Ozamu Tezuka. Sato resume a importância das contribuições de Tezuka explicando que:

Histórias em quadrinhos (mangás) e desenhos animados (animês) no Japão são um assunto seríssimo. São atividades que movimentam trilhões de yenes por ano e cujas criações atualmente influenciam vários outros setores, do entretenimento à moda, dentro e fora do arquipélago. Embora na origem sejam atividades distintas no Japão elas tiveram um denominador comum - alguém que lhes conferiu originalidade e características hoje qualificadas de "japonesas". [...] Especialmente no pós guerra, suas histórias influenciaram gerações de crianças e jovens no Japão, e através de sua notoriedade ele conferiu ao mangá e ao animê prestígio e status de arte. Tornando-se um empresário bem sucedido, este autor criou o modelo pelo qual os quadrinhos e a animação no Japão se tornaram uma ampla e influente indústria. (SATO, 2007, p.125)

77

Tezuka, filho mais velho de uma família de classe média alta, viveu grande parte de sua infância e juventude em um país em guerra. De acordo com Paul Gravett 54 , quando adolescente Tezuka presenciou os efeitos de um ataque aéreo à Osaka e, muito impressionado, tornou-se convicto de pregar a paz e o respeito a todas as formas de vida através das animações e, do que era menos dispendioso, os quadrinhos. Tendo sido criado em um ambiente familiar liberal e atípico para o padrão japonês da época, Tezuka teve desde muito novo acesso a diversos tipos de quadrinhos, nacionais e importados, os quais eram presenteados por seu pai (que na juventude havia tentado a carreira de quadrinista) e lidos para por sua mãe em voz alta até que ele pôde fazê-lo por conta própria. O que mais o estimulou e influenciou, no entanto, foi a sétima arte. Um dos passatempos e paixões da família era ir ao cinema, o próprio pai de Tezuka era um colecionador de filmes e chegou a produzir alguns de forma amadora, em rolos de 8mm. Tezuka iniciou sua carreira como quadrinista concomitantemente ao estudo universitário em 1945, aos 17 anos, quando passou a publicar em um jornal de Osaka uma série de tiras humorísticas denominada Ma-chan no Nikki-cho (O diário de Ma-chan), contando as histórias de um menino doce e ingênuo. Fortemente influenciado pela avalanche de filmes americanos que eram exibidos a preços módicos nos cinemas japoneses desde aquele mesmo ano, Tezuka teve a ambição de levar a dramaticidade e o movimento do moderno cinema americano para os quadrinhos; para isso percebeu que precisaria de muitos quadros para reproduzir cenas complexas, com vários pontos de vista. Como o espaço para os quadrinhos nos jornais era cada vez mais minguado Tezuka optou por tentar publicar suas histórias com pequenas gráficas de Osaka as quais faziam compilados de quadrinhos em papel e impressão baratos, os chamados Akahon (livro vermelho). Aos 19 anos, após produzir 260 páginas que foram reduzidas pelos editores a 60 apenas, Tezuka consegue publicar seu primeiro trabalho Shin Takarajima (a nova ilha do Tesouro), que vendeu impressionantes 400 mil exemplares, tornando-se o primeiro best seller do Japão pós guerra. Pioneira no período, a história criou uma tendência para a publicação de originais diretamente no formato akahon e deu início à primeira onda de intensa produção e publicação de mangás em Osaka. Este trabalho de Tezuka é um divisor de águas pois representa o estabelecimento do mangá como narrativa longa, posto que vigoravam as tiras, além de introduzir as técnicas cinematográficas de montagem e decomposição de planos nos quadrinhos.

54 Em seu livro Mangá: como o Japão reinventou os quadrinhos . p. 28. Ver bibliografia. 78

Figura 4. Akahon de Shin Takarajima. Osamu Tezuka (1947) 79

Figura 5. Detalhe do akahon de Shin Takarajima. Nele podemos ver como Tezuka buscou aplicar os princípios de composição cinematográfica nos quadrinhos. Este estilo viria a ser transposto para as animações. 80

Tendo publicado mais de 36 akahon entre 1947 e 1953 e começado produzir histórias também para revistas mensais de editoras maiores voltadas ao público infantil (revistas de variedades segmentadas por gênero, que dedicavam parte de suas páginas aos mangás), Tezuka se mudou nesse meio tempo para um pequeno apartamento em Tóquio para ficar mais próximo aos seus editores e começou a aplicar métodos de produção em massa para conseguir cumprir com todos os trabalhos e otimizar a produção. Para isso contratou assistentes e dividiu o trabalho de modo que ele ficasse responsável pela parte criativa dos roteiros e desenho dos personagens enquanto que os assistentes e desenhistas iniciantes ocupavam-se de dos fundos de cena e a arte-finalização. O intenso ritmo de trabalho de Tezuka, que em 1952 tinha pelo menos sete histórias em andamento em sete revistas diferentes (fora as histórias dos livros vermelhos) e varava noites produzindo, fez com que tanto demais desenhistas quanto editoras concorrentes passassem a publicar cada vez mais mangás, com enredos mais longos e dedicando um maior número de páginas nas revistas, fazendo com que no início dos anos 60 a atividade já tivesse características de indústria, de acordo com Sato (2007, p.128). Ainda enquanto se dedicava aos quadrinhos, Tezuka convencionou através de seus trabalhos as características mais latentes do que chamamos por mangá e animê modernos: predominância da linguagem narrativa cinematográfica como estética, criando cenas de ângulos inusitados, muitos closes e jogos de planos (no caso do mangá, o modelo é bastante semelhante a um storyboard)55 ; os olhos aumentados, expressivos e brilhantes, inspirados na maquiagem das atrizes da Ópera Takarazuka 56 e também em um certo estilo convencionado por animações estrangeiras das décadas de 30 das quais o artista era um grande admirador,

55 Storyboard é uma ferramenta de construção e visualização de roteiros utilizada na produção de filmes em geral e consiste no sequenciamento de imagens, acompanhadas ou não de uma descrição textual, que irão compor uma cena ou conjunto de cenas. 56 Também conhecido como Teatro de Revista de Takarazuka, é um estilo teatral desenvolvido no Japão durante o século XX e encenado exclusivamente por mulheres, que fazem tantos os papéis femininos como masculinos. As atrizes são cuidadosamente selecionadas através de testes e antes de subir aos palcos passam por dois anos de aulas de canto, dança e interpretação na Escola Musical de Takarazuka, criada para este fim. A maquiagem carregada, sobretudo na região dos olhos, e os corpos delgados e longilíneos são uma marca da trupe. Tezuca frequentava os espetáculos musicais com a sua mãe durante a infância e declarava ter sido grandemente influenciado por eles. A princesa e o Cavaleiro ( no Kishi , de 1953), uma das obras clássicas de Tezuka que viria a influenciar toda a produção de quadrinhos e animações a partir de então, traz como protagonista uma princesa que, por engano de um anjo, ganhou uma alma feminina e outra masculina, e para defender o trono de seu reino tem que se vestir e agir como menino; a personagem andrógina, alta, magra e de enormes olhos brilhantes, claramente inspirada nas atrizes Takarazuka, se tornou um paradigma da estética dos quadrinhos femininos, que aos poucos foi sendo incorporado também pelos quadrinhos para meninos. 81

como Bambi ou Betty Boop; personagens estilizados de cabelos extravagantes ou ainda antropomorfizados; descolamento dos quadrinhos e animações do terreno da infância reivindicando uma gama maior de temáticas e públicos contemplados; complexificação das obras destinadas ao público infantil, introduzindo o drama e questões de ordem filosófica nas produções pra este segmento; introdução de questões éticas envolvendo o homem e a tecnologia (que veio a se tornar a base de todo um movimento ciberpunk 57 na animação, o qual deu origem aos famosos animês de ficção científica como Akira , ou Ghost in the Shell ); adaptação aos quadrinhos de obras clássicas da literatura como Fausto , de Goethe e Crime e Castigo , de Dostoiévski. O estilo e a vitalidade do trabalho de Tezuka caíram no gosto popular, o sucesso de sua carreira como quadrinista lhe garantiu independência financeira e condições de abrir sua empresa de animação, a Mushi Productions, em 1961. Vendo na popularização da televisão uma oportunidade para iniciar sua carreira como animador Tezuka começou a produzir uma série de animê baseada no seu famoso mangá Tetsuwan Atomu (Astro Boy), que já vinha sendo publicado desde 1952 na Shõnen Magajin (magazine para garotos). Para reduzir custos e garantir a viabilidade do projeto Tezuka tomou duas medidas que foram fundamentais para o desenvolvimento da indústria de animação no Japão: A primeira foi optar por um método de animação econômico, que reutilizava acetatos preenchidos com fundos ou partes dos personagens (um exemplo: quando só a boca do personagem é animada, movendo-se, enquanto o restante do corpo permanece estático) e sequências prontas (um personagem caminhando, voando, correndo etc.), entre outras estratégias. Esta técnica introduzida por Tezuka chama-se limited animation (animação limitada) e foi originalmente desenvolvida nos Estados Unidos – inspirada nos movimentos artísticos avant-garde e expressionismo abstrato - como uma alternativa ao estilo de animação ultra-realista dos estúdios Disney 58 . Essa técnica buscava criar um novo conceito e uma nova

57 O movimento cyberpunk apesar de ser trabalhado com notoriedade nos animês é na verdade um fenômeno maior que atingiu toda a produção de ficção científica mundial - sobretudo nas décadas imediatamente posteriores ao fim da Segunda Guerra Mundial - e também a juventude. Relaciona-se com as tecnologias digitais, ciberespaço, tecno-marginais, poderes midiático, político e econômico dos conglomerados multinacionais e caracteriza-se por uma visão pessimista ou distópica do futuro. Uma leitura interessante e abrangente sobre o cyberpunk pode ser encontrada no artigo da profa. dra. Adriana da Rosa Amaral Visões perigosas: Para uma genealogia do cyberpunk. Os conceitos de cyberpunk e sua disseminaçãona comunicação e na cybercultura. Disponível em: Consulta em 24 de Outubro de 2012. Ver bibliografia. 58 Durante o desenvolvimento da indústria da animação nos anos de 1930 e 1940, os pioneiros dos Estúdios Disney evoluíram para um estilo estético altamente naturalista, lutando para transmitir com seus desenhos um olhar tão real quanto possível dentro das limitações da arte dos desenhos à mão [...] Então, inspirados 82

estética para a animação, provando que era possível contar histórias, transmitindo ação e dramaticidade, mesmo sem criar simulações do real. Desse modo, as animações realizadas sob este prisma continham imagens e fundos abstratos; economia de movimentos - animando somente partes dos personagens, o suficiente apenas para transmitir a sensação de movimento ou emoção - uso de simbolismo e a simplificação visual. Esses efeitos eram conseguidos com a redução do número de quadros por segundo de animação (8 ou 12 enquanto que o convencionado eram 24), traços e cenários simples, figuras de pouco volume, e a utilização de loops de animação, que é a reutilização de um quadro ou seqüência de quadros. A empresa de Tezuka também implementou nesta época técnicas que economizavam energia, como o cinema stop motion e criou um banco de acetatos, no qual células prontas eram armazenadas para uso repetido. Esse sistema de produção permitiu que várias companhias de animação que surgiam no mesmo período conseguissem viabilizar seus projetos a partir do corte de custos; mesmo hoje esta técnica, ou adaptações dela, são prevalecentes na produção de animês no Japão. A segunda medida tomada por Tezuka foi desenvolver um modelo de negócios onde os custos e posteriormente os lucros obtidos com a produção das animações seriam divididos entre empresas parceiras, planejando conjuntamente não só os investimentos de produção como meios para assegurar seu retorno financeiro. Caso a animação obtivesse sucesso todos sairiam beneficiados, caso o projeto falhasse o prejuízo também seria dividido, com o atenuante de que a produtora evitaria assim a falência diante do primeiro fracasso, o que provavelmente ocorreria se fosse a única responsável pelos investimentos. Convém lembrar que grande parte das empresas de animação no pós guerra começaram com dificuldades e pequenos capitais. Desse modo, ainda na fase de pré-produção da série Tetsuwan Atomu , Tezuka buscou o patrocínio da emissora onde a série seria exibida (Fuji TV) e de empresas fabricantes de objetos licenciados de seus personagens (Tezuka já tinha um bom número de personagens famosos de seus mangás), que tinham uma expectativa de venda de produtos e de veiculação de comerciais baseada na popularidade dos personagens. Tetsuwan Atomu já tardiamente pelos movimentos de arte de 1940, tais como expressionismo abstrato que rejeitou esta abordagem naturalista, princípios avant-garde começaram a infiltrar-se nos desenhos animados. Em particular, a United Productions of America (UPA), um estúdio que empregava muitos animadores que haviam deixado a Disney em 1941, durante a greve da indústria trabalhista de animação, defendeu uma estética que enfatizasse a linha, a forma e um padrão mais abstrato sobre o estilo naturalista [tradução nossa]. The less limited expressive possibilities of Limited Animation - Part 1. Between the frames (blog) [01 de Junho de 2005]. Disponível em: . Acesso em 20 de julho de 2012. 83

era um personagem popular entre os japoneses e o sistema de financiamento privado (como ficou conhecido) se mostrou bem sucedido com a série, que tornou-se um fenômeno instantâneo. Vários estúdios passaram a fazer o mesmo e esse modelo de negócios difundiu- se no campo da produção de animações no Japão, que pode assumir os contornos de indústria a partir daí.

Figura 6. Cenas da série de animê Tetsuwan Atomu. Mushi Productions, Fuji TV, Osamu Tezuka (1963-1966)

Outra consequência relevante do sucesso de Tetsuwan Atomu na televisão, embora não deliberada, foi que a série abriu a prerrogativa para que as animações japonesas passassem a ser majoritariamente baseadas em mangás já populares em vez de consistirem produções originais. Assim, temos que quase todas as características lingüísticas, temáticas e estéticas desenvolvidas para o mangá no pós-guerra foram sendo incorporadas ao animê, que se desenvolvia paralelamente. A aproximação entre essas duas produções deve-se ao fator primordial da redução dos riscos de produção em termos de viabilidade financeira; os mangás 84

servem de inspiração atualmente para cerca de 60% de todos os animês produzidos por empresas japonesas. 59 Cristiane Sato nos lembra que:

É importante observar que a constante busca por redução de custos de produção e a limitação de recursos materiais e financeiros no Japão influenciaram bastante as características dos desenhos animados produzidos ao longo do século XX. (SATO in LUYTEN (org), 2005, p.30)

Tetsuwan Atomu e seu modelo de produção e financiamento foram tão influentes para a nascente indústria de animação japonesa pois tratava-se da primeira série animada produzida no país, tendo estreado no feriado de 01 de janeiro de 1963 na Fuji Network Systems (FNS), seu sucesso ou seu fracasso poderiam alterar decisivamente o modo como se desenvolveria a indústria de animação durante a década de 60. Embora o primeiro desenho animado para televisão produzido no Japão tenha sido History Calendar 60 (em japonês Hisutori Karenda , também citado por alguns autores a exemplo de Cristiane Sato como Manga Calendar ), criado pelo estúdio Otogi Productions e exibido pela primeira vez em setembro do ano anterior, foi apenas um programa de cinco minutos. Tetsuwan Atomu , por outro lado, foi a primeira série com episódios de cerca de 30 minutos de duração (tempo médio dos episódios de animês ainda hoje, contando a abertura e o encerramento), exibida semanalmente e sem atrasos por mais de quatro anos e - o fundamental para se tornar uma referência - sem levar a Mushi Productions à falência. O programa ganhou muita popularidade, marcando índices de audiência que chegaram a 40,3% em seu pico e 25% em média. "Astro Boy" foi o primeiro exemplo de negócios envolvendo mangás e animês em que os direitos autorais foram bem geridos, o pré- requisito para o estabelecimento da prática do marketing de personagem, ou character business . Por todos esses fatores afirma-se a grande contribuição de Tezuka para a formação das indústrias de mangá e animê no Japão. Suas histórias e seus métodos de trabalho, bem como sua trajetória pessoal, estimularam diversos talentos a se dedicar aos quadrinhos e às animações no país, ajudando assim a revitalizar ambas as atividades, duramente atingidas pelas condições econômicas do pós-guerra. Após Astro Boy o caminho estava aberto para a

59 MACWILLIAMS, Mark W. Japanese visual culture: explorations in the worl of manga and anime. Armonk, M. E. Sharpe, Inc. 2008. 60 Informação obtida em texto descritivo da exposição permanente do Tezuka Osamu Manga Museum , no site oficial de Osamu Tezuka. Disponível em: em 20 de julho de 2012. 85

multiplicação de séries de animês, um dos maiores filões do mercado midiático japonês na atualidade. O hábito de ver televisão, que apesar de introduzida no Japão em 1951 só se tornou um bem de massa durante década posterior, se cristaliza entre os anos de 1960 e 1965, coincidindo com o período de estreia e popularização dos animês na programação televisiva. Se em 1963 cinco séries de animação foram exibidas regularmente, em 1964 o número já havia subido para 11. Podemos fazer um paralelo entre esses números e o tempo gasto em frente aos televisores nos lares japoneses no mesmo período; "se em 1960, a média diária de sintonia de televisão por domicílio era de 56 minutos, em 1965 ela sobe para 2,52 horas" (ORTIZ, 2000, p. 85). Esses dados são indicativos de que as animações contribuíram para a consolidação da televisão como um dos meios comunicacionais mais populares do Japão, que ao lado dos Estados Unidos possuem hoje o maior índice de audiência média semanal do mundo, 21 horas 61 . Neste mesmo período diversas produções independentes foram exibidas pelo Japão com o nome de animation , essas produções, muitas delas inspiradas em trabalhos como o de Norman McLaren 62 , tinham um cunho mais pessoal e experimental para “públicos adultos mais sofisticados, na contracorrente da produção de animação voltada para crianças no contexto japonês da época” (TOCHIGI, 2008). No mercado dos mangás um fenômeno semelhante acontecia com os mangás gekigá (imagens dramáticas), um tipo de mangá mais sombrio focado menos na fantasia e mais na realidade das ruas e das situações cotidianas. Os autores de gekigá trabalhavam de forma marginal, fora do circuito das grande editoras e suas revistas infantis, parte deles vinham de negativas deste mesmo segmento encontrando na possibilidade de publicar em pequenas editoras ou mesmo apresentar suas histórias em teatros de papel uma possibilidade de ter rendimentos regulares, ainda que parcos. Esses mangás eram lidos por adolescentes mais velhos e jovens adultos. Com a crescente demanda por artistas desde meados da década de 60 nas indústrias de animês e mangás, muitos autores desses animation e gekigá seriam paulatinamente incorporadas ao grande mercado no

61 segundo os resultados do estudo Motorola's Mobility's Global 2010 Media Engagement Barometer. Disponível em: em 22 de Julho de 2012 62 Fundador do departamento de animação do National Film Board of Canadá, Norman McLaren (1914-1987) foi um dos grandes mestres do filme direto , técnica que consistia em fazer desenhos e riscos sobre o celulóide, criando desse modo sons sintéticos. Desenvolveu também a técnica de pixilation , na qual objetos e atores são filmados quadro a quadro e transformados em marionetes. Retrospectiva Norman McLaren na Cinemateca . Cinematógrafo (blog) [07de Novembro de 2007]. Disponível em:. Acesso em 20 de abril de 2009. 86

decorrer das próximas décadas, suas contribuições e inovações foram decisivas para a diversificação de temáticas, estilos e públicos contemplados atualmente por estas produções. A exportação de animês se inicia no Japão ainda na década de 60, resultado da iniciativa individual de algumas companhias como a pioneira Mushi Productions , que assinou um contrato com a rede NBC para comercializar Tetsuan Atomu nos Estados Unidos ainda em 1963 sob o título de Astro Boy. Nesta época a maioria das produções era comercializada como alternativa de entretenimento despretensiosa e entre os telespectadores de outros países não se fazia muita distinção entre as animações japonesas e demais animações. Não era esperado que os animês se transformassem, como foi constatado nas décadas seguintes, em um grande fenômeno de consumo midiático global e um dos maiores promotores de uma imagem "nacional" japonesa nos dias atuais. Os animês se consolidam como ramo da indústria de entretenimento japonesa durante a década de 70 obtendo índices de crescimento admiráveis nas décadas seguintes. Uma série em especial desencadeou o que se pode chamar a primeira geração de fãs de animês no país: Uchyû-senkan Yamato (Patrulha Estelar, no Brasil). Cristiane Sato descreve o fenômeno da seguinte forma:

Produzida em 1974, esta série de ficção científica sobre a tripulação de uma nave espacial similar ao Yamato, encouraçado japonês da 2 Guerra, não obteve bons índices de audiência quando foi ao ar na TV japonesa, o que levou à realização de 26 capítulos ao invés dos 39 inicialmente planejados. Entretanto, em 1977, uma compilação da série de tevê levada aos cinemas na forma de um longa-metragem virou sucesso de bilheteria. Centenas de fãs - na maioria estudantes colegiais - formaram filas enormes diante dos cinemas e vararam madrugadas para ver o desenho, o que levou a polícia a ter de organizar a multidão em alguns cinemas e gerou matérias nos telejornais. (SATO, 2007, p. 38)

No fim desta mesma década algumas séries de animês, entre elas Uchyû-senkan Yamato, já desfrutavam de bons índices de audiência em outros países, como no Brasil, na França (tendo sua estreia neste país em 1978, com Grendizer , uma série com robôs gigantes), Alemanha e nos Estados Unidos, sendo que este último tornou-se posteriormente uma espécie de "entreposto" comercial dessas produções para outras áreas das Américas e parte da Europa. Esses animês com suas naves espaciais e robôs gigantes prepararam o terreno para o 87

primeiro boom de popularidade das animações japonesas a nível mundial, o que aconteceria no fim dos anos 80. Se procurarmos um denominador comum entre as séries que começavam a se destacar, tanto no Japão como em outros países, veremos que os animês com foco em tecnologia e ficção científica foram os grandes responsáveis por desencadear o interesse de jovens pelo mundo sobre a vasta produção de animação japonesa. O pano de fundo era a emergência de legiões de fãs em torno do que hoje são filmes clássicos da ficção científica como a franquia Guerra nas Estrelas (com seu primeiro filme lançado em 1977), Contatos Imediatos de Terceiro Grau (1977) e Alien - o 8 passageiro (1979); também já existia, sobretudo desde meados da década de 1930, uma extensa literatura de ficção científica, mas animações voltadas ao gênero eram absolutas novidades no mercado e arrebataram milhares de telespectadores. Nos Estados Unidos um fenômeno que iria transformar o consumo de animês (e de produções audiovisuais como um todo) no mundo estava em curso. Fandoms (junção de fan + kingdom, "reino dos fãs" em tradução livre) de ficção científica e quadrinhos americanos, os comics , ao se depararem com essas animações japonesas passaram a consumir e compartilhar episódios em encontros e através de trocas de fitas cassete (os aparelhos chegaram ao mercado em 1975) via correio. Em 1977 começaram a surgir os primeiros fandoms que dedicavam atenção especial aos animês e que colaborariam proativamente na promoção das animações japonesas no país. O precursor Cartoon/Fantasy Organization 63 , chegou a receber o próprio Osamu Tezuka (que estava em viagem de negócios por Los Angeles) para uma palestra, em 1978, na qual o artista fez exibições de trabalhos seus inéditos no país e encorajou os fãs a promoverem os animês. Logo, as animações japonesas começaram a ocupar cada vez mais espaço nas convenções, tornando-se umas das principais atrações. As trocas de fitas cassete permitiam esses conteúdos viajassem pelo país fomentando a criação de novos fandoms. Esse processo amador e não comercial de circular as produções seria responsável não só por contribuir na popularização dos animês nos Estados Unidos (e posteriormente em diversos países), como - alguns anos mais tarde com o desenvolvimento de novas tecnologias de comunicação e transmissão de dados - pela promoção de um padrão de consumo e sociabilidade singulares que consegue alimentar nichos de público dispersos globalmente

63 no livro organizado por Fred Patten Reading Anime, Watching Manga: 25 years of essays and reviews .2004, passim. Ver bibliografia. 88

mesmo diante da ausência de mercados estruturados no âmbito regional, fenômeno este já não restrito a um determinado país, mas global. Isso virá a contribuir incisivamente, como veremos, para a formação de uma comunidade transnacional de consumidores - tomando a expressão de Néstor García Canclini - de animês, mangás e outros produtos do pop japonês. Durante os anos 80, no Japão o mercado de animação se expandia e surgiram os OVA's, sigla de , animações exclusivas (sem exibição prévia no cinema ou na televisão) para o mercado de video-locação ou de venda a varejo, comercializadas a princípio em fitas cassete e mais recentemente em DVDs e blu ray . Esta foi uma década de intensa produtividade no mercado de animação japonês, só em Tóquio concentravam-se cerca de dez mil animadores; em 1985 uma única produtora, a gigante Toei Animation, contratou mil animadores para a matriz em Tóquio e sua filial em Seul, na Coréia do Sul. No exterior canais de diversos países começaram a oferecer alguma variedade de séries de animês, que podia ser maior ou menor dependendo da localidade 64 , as quais, contudo, eram comumente submetidas a cortes e edições. Quando o sombrio e apocalíptico Akira (1988), de Katsuhiro Otomo estreou integralmente em salas de cinema dos Estados Unidos (1990), Brasil (1992), França (1992), Alemanha (1989 - Berlim Ocidental/1991 - Alemanha unificada) Holanda (1991), entre outros, encontrou um público que já tinha tido contato com os animês, em especial os de ficção científica, e que os apreciava. Estava configurada a primeira explosão de popularidade de um animê mundialmente. Em meados dos anos 90 os animês experimentam seu pico de popularidade, canais de todo o mundo mundo passaram a licenciar e veicular diversos títulos de séries japonesas como Sailor Moon , Dragon Ball , Saint Seya e , que se tornaram febres mundiais. A explosão no consumo de animês, dentro (desde o início da década de 80) e fora do Japão, fez com que os produtores buscassem novas e mais rápidas formas de suprir a demanda crescente, o que acarretou num processo de descentralização e deslocalização da produção, como a concebe Ortiz (ORTIZ, 1994. p 108 e 109). Nesse sistema, as funções

64 No Brasil, que tem um caso um tanto peculiar com os animês e com os japoneses e seus descendentes, desde meados dos anos de 1960 não houve uma década em que séries e filmes vindos do Japão não tivessem ido ao ar. Nos anos 80, de todos os 38 produtos audiovisuais japoneses exibidos no país, 22 eram animês. Para mais informações consultar: GUSMAN, Sidney. Tudo começou com national kid. in Henshin, São Paulo, n. 21, p. 10-12, 2001. VILIEGAS, Renato. Se não fosse por eles... in Henshin, São Paulo, n. 21, p. 18-22, 2001.

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consideradas centrais na produção do animê como planejamento, direção, dublagem e demais processos que requerem especialidades mais avançadas continuaram no Japão, enquanto a animação e a colorização, por exemplo, entre outras operações mais simples são deslocadas para outros países, como Taiwan e Coréia do Sul, onde a mão de obra é mais barata (SATO, 2007. p.37). Desde os anos 2000, com a difusão da internet banda larga pelo mundo, o animê alcançou um outro patamar de popularidade. O desenvolvimento das novas tecnologias eletrônicas foi capaz de otimizar a produção das animações e multiplicou as possibilidades de compartilhamento e comércio, impulsionando os animês a níveis globais de consumo, o animê, através da internet, tornou-se constituinte de uma memória-internacional popular. Seus consumidores não podem ser agrupados em relação a região onde vivem e nem mesmo podem ser mensurados pelos índices de vendas de DVDs ou de audiência na televisão ou no cinema. O consumo do animê ao mesmo tempo que transita pelas vias comerciais legais cria fluxos de retroalimentação que subvertem a lógica do capital. Os fansubs , apontados por alguns hoje como digisubs (devido a estreita relação com os meios digitais de comunicação), descrevem ao mesmo tempo a atividade de legendagem amadora feita por fãs para compartilhamento de conteúdos audiovisuais em rede, e os grupos que a realizam. Este trabalho que evoluiu das atividades dos primeiros fandons cria uma rede rizomática, onde pessoas dispersas pelo globo trabalham colaborativamente para disponibilizar uma quantidade incontável de produtos através da internet. A oferta pelas vias dos fãs é infinitamente maior que a do mercado em qualquer parte do mundo, exceto, talvez, no próprio Japão. Essa proliferação de títulos disponíveis gratuitamente reflete inclusive na percepção da popularidade dos animês nos dias atuais. Os fãs de animês, constituindo uma categoria transnacional de consumidores, se subdividem entre a oferta disponível de acordo com suas preferências, de modo que é difícil destacar um único grande sucesso mundial, como acontecia em meados da década de 1990, onde a oferta dessas produções se fazia majoritariamente sob o controle dos conglomerados midiáticos. O trabalho dos fansubs, que é amador mas, muitas vezes, de qualidade profissional, faz com que as empresas, de forma crescente, tentem capturar essa mão de obra para o seu staff. A circulação gratuita dessas produções através da rede, pela sua eficiência e o seu caráter rizomático (o qual dificulta que medidas legais seja aplicadas para coibir essa prática), tem colocado em risco a viabilidade financeira não só do comércio de animês quanto da produção audiovisual como um todo, ao menos nos moldes tradicionais. A internet e o 90

trabalho colaborativo dos fãs colocam o consumo em outros termos e exigem novas formas de se pensar os negócios na situação de globalização. Como foi visto, os animês enquanto conteúdos legitimamente mundializados explicitam a relevância da cultura de consumo e da estrutura material-tecnológica, ou dos tecnopanoramas, no desenvolvimento de um fluxo cultural global. Até meados dos anos 80, seus personagens de olhos enormes, brilhantes, cabelos coloridos, andróginos e longilíneos eram características típicas e praticamente restritas às animações japonesas, uma estética estranha a boa parte do mundo. As primeiras operações comerciais de licenciamento de animês para outros países acontecem ainda na década de 50, como eventos isolados, e se consolidam na década de 90. Paralelamente a comercialização legal, fãs compartilham esses conteúdos trocando fitas cassetes amadoras desde o fim da década de 70 e com a difusão da banda larga no início do século XXI a popularização dessas animações explode. Esse percurso dos animês revela mais do que uma simples constituição de uma forma específica de animação num recorte de tempo, ele é índice da própria constituição dos fluxos de globalização e mundialização, criando intrincados midiapanoramas, ideopanoramas e práticas de consumo a eles vinculadas. Hoje, animês e seus personagens são de fato mainstream. Ostentam o título de animações mais consumidas pelo globo através das vias legais, e possivelmente também o seriam pelas transversas, se pudéssemos mensurar. Figuras cotidianas a grandes parcelas de públicos ao redor do mundo, emissoras de TV nos Estados Unidos, Brasil, Portugal, Espanha, França, México, África do Sul, Arábia Saudita, Austrália, Singapura, Canadá entre outros exibem animês em sua programação diária, seus personagens estão nas capas de cadernos, estojos, sandálias infantis, brindes de fast food, na publicidade, jogos de videogame, nos celulares, na internet. Fala-se de animês em comunidades virtuais, nas escolas, nas universidades, em círculos políticos. Nas bancas e livrarias, publicações dedicadas ou relacionadas a eles não são mais excepcionais. O animê tornou-se mobília da modernidade- mundo.

O que antes era visto como “alienado” – estranho à nossa concepção nacional – torna-se agora interno à modernidade- mundo. As marcas dessa cultura mundializada, sobretudo na sua versão do entretenimento, pode ser vistas na arquitetura dos hotéis de turismo, nos shoppings center, nas novelas, artigos de jornais, publicidade etc. Dificilmente poderíamos entender esta realidade restringindo-se ao debate tradicional 91

entre cultura nacional e modernidade, cultura popular x cultura erudita, imperialismo cultural x autenticidade nacional. (ORTIZ, 2006) 65

Nessa atual situação de mercado globalizado, onde não mais a parte determina o todo 66 e sim o inverso, fica evidente o processo de desterritorialização dos produtos, como se pode observar no exemplo dos animês. As estratégias de negócios globais não têm como objetivo primordial atender a demandas específicas de um número limitado de mercados nacionais (como ocorre nos movimentos de internacionalização), mas segmentos de públicos pulverizados em diversas nações. Os executivos e publicitários, "artífices mundiais de cultura" como o quer Ortiz, devem compreender o terreno no qual atuam e, concordando com Mattelard, entendemos que "os administradores globais são intelecutais" (MATTELARD apud ORTIZ, 1994, p.148) que produzem um saber empírico sobre a realidade globalizada de modo a atender as necessidades de suas empresas. Os animês constituem exemplos sugestivo nesse sentido. Tomemos um caso, um tanto extenso, mas elucidativo: as animações japonesas fazem percursos diversos até chegarem a um consumidor qualquer nos Estados Unidos ou Brasil (consideraremos americanos e brasileiros para este exemplo pois é através dos Estados Unidos que se faz a mediação da venda de animês a vários países no mundo, entre eles o Brasil). De 1960 até meados da década de 90 coexistiam três formas básicas de acesso a esses produtos: através da televisão com produções dubladas; através da televisão com produções dubladas e editadas (esta sendo posterior), e através do trabalho amador dos fãs com a gravação e compartilhamento das séries e filmes em fitas cassete. No Brasil, por exemplo, onde registra-se a exibição de animês em canais abertos desde a década de 60, predominavam as animações apenas dubladas e sem cortes. De meados de 1990 até 2010 as produções passam a ser mais frequentes nos canais abertos e pagos, mas

65 ORTIZ, Renato. Desafi(n)ando o coro global: depoiment. Campinas: Jornal da Unicamp, ed. 325, de 29 de Maio a 04 de Junho de 2006. Disponível em: < http://www.unicamp.br/unicamp/unicamp_hoje/ju/maio2006/ju325pag4-5.html> Consulta em: 08 de Maio de 2012.

66 Ortiz coloca que “Os intelectuais das grandes corporações partem do princípio que o mundo vive uma fase de mudança radical [...] que exigiria a reformulação dos negócios.”. O primeiro aspecto desse quadro seria a globalização do mercado, que se tornou único em toda a Terra, porém, sendo distinto de um mercado internacional, onde as empresas ofereceriam serviços individualizados. Esses intelectuais entendem que esse novo mercado, sem fronteiras, globalizado, transcende inclusive a origem das firmas que nele atuam. Enquanto que o mercado internacional é a composição de diversos mercados autônomos que exigiriam um tratamento particular, o mercado global atua com segmentos de público dispersos pelo globo, as especificidades nacionais são secundárias (ORTIZ, 1994, p. 148-150). 92

torna-se habitual a realização de cortes e edições por parte das empresas licenciantes. Em um trabalho anterior, analisamos estes processos e percebemos que as edições tinham como objetivo, em sua maioria, retirar a imagem do sangue, as piadas maliciosas, as calcinhas à mostra, os cigarros, os crucifixos, em suma, traços de erotismo, violência e profanação. Este tipo de edição já tem sido adiantado pelas própria produtoras dos animês antes da comercialização com os Estados Unidos e alguns países da Europa, por exemplo. 67 Ao mesmo tempo abre-se uma nova via de acesso aos animês: a internet. O trabalho amador dos fãs migra para a plataforma digital. A "legendagem sem edições" permanece como parâmetro para essa atividade mas o nível técnico refina-se a ponto da qualidade do material compartilhado pelos fãs equivaler ou superar o das empresas licenciantes. Em poucos segundos na rede, podemos encontrar uma infinidade de sites que hospedam milhares de séries e filmes de animês para serem assistidos online ou para download, gratuitamente. Apesar de a popularização dos animês pelo mundo ter iniciado através da televisão, a internet potencializou o processo e, logo, uma parte significativa dos consumidores mundiais de animês passou a ter acesso a duas versões de diversos títulos, a televisiva e a ddisponível na internet. Podemos ver claramente através desse panorama que apenas os fãs e uma minoria de empresas licenciantes adotam uma estratégia global de distribuição (não digo comercialização pois o trabalho dos fãs é colaborativo e sem fins lucrativos) dos animês, de acordo com o que foi acima discutido, enquanto que a maioria das emissoras de TV americanas e brasileiras, além das distribuidoras japonesas tem uma postura assentada sobre as prerrogativas dos processos de internacionalização, onde o produto é lapidado para ficar supostamente palatável a uma demanda nacional específica. Os resultados dessas duas estratégias são reveladores da dinâmica de consumo dos animês globalmente: As produções editadas e exibidas na televisão aberta com frequência redundam em baixas ou médias audiências enquanto que o consumo através da internet e de novas vias que estão sendo criadas pelas empresas (a exemplo da Viz Media, empresa americana que trabalha com a venda de boxes de DVDs legendados e sem cortes e disponibiliza os episódios para visualização gratuita e seu site) continuam em franca expansão. Pode-se observar também que as séries que fizeram a fama destas animações no início da década passada também foram exibidas integralmente em sua maioria. Os fãs

67 Informações disponíveis na monografia intitulada Comunicação e Mundialização no consumo do animê: Japão, EUA, Brasil , de autoria de Quise G. Brito. Ver bibliografia. 93

reclamam um modelo de negócios para o segmento diferente do que tem sido empregado pelas empresas, têm expectativas particulares, mobilizam-se e criam fluxos de consumo e sociabilidade que lhes atendam. Enquanto consumidores reagem com desinteresse as estratégias que desconsiderem seu caráter mundializado e cosmopolita. Ao menos para os animês, a prerrogativa do mercado global e seus produtos desterritorializados mostra-se assertiva. Appadurai também observa a questão da desterritorialização, não só de produtos, como de capitais e tecnologias:

A idéia de desterritorialização pode ser aplicada também ao dinheiro e às finanças, uma vez que os administradores do dinheiro procuram os melhores mercados para os seus investimentos, independente das fronteiras nacionais. [...] É nesse terreno fértil da desterritorialização, onde o dinheiro, os bens de consumo e as pessoas se envolvem numa incessante perseguição recíproca pelo mundo inteiro que os midiapanoramas e os ideopanoramas encontram a sua contraparte fragmentada (APPADURAI in FEATHERSTONE, 1999, p. 319).

Nos distanciamos aqui em certa medida do raciocínio do autor, que privilegia a análise dos fluxos de desterritorialização que prosperam por responder a necessidade de populações desterritorializadas. Ou seja, as massas de trabalhadores, turistas e estudantes dispersos pelo globo que buscam, através da criação de midiapanoramas específicos, "contacto com o país de origem"(op. cit. 1999, p.318). Com certeza esses fluxos são importantes e de nenhuma forma seriam aqui negados, contudo, percebemos que a maior parte dos processos de desterritorialização atendem hoje a um sujeito cosmopolita. Desse modo, não necessariamente um produto japonês encontra-se mundializado por atender uma demanda específica das comunidades japonesas dispersas pelo globo, mas sim para atender a demanda de sujeitos que constituem-se num contexto de múltiplas referências, produtos e ideias, onde o que é do país de origem e o que não, independente da sua posição geográfica, pode muitas vezes não ser o fator preponderante nas escolhas de consumo e na constituição das identidades. Um outro aspecto em relação a desterritorialização merece aqui ser exposto. A globalização das técnicas e da mão de obra também influem no processo de mundialização da cultura em relação a um outro aspecto: a percepção de origem. A produção de animês hoje já 94

não possui um território fixo, como vimos anteriormente. O trabalho é fragmentado entre matrizes, filiais e terceirizadas dispersas pelo mundo, o produto final é composto de diversas práticas e saberes. Num movimento análogo, a estética japonesa, ao desterritorializar-se, não se restringe mais às suas próprias animações. Muitos dos “animês” produzidos pelo mundo são americanos, franceses, coreanos, etc. Passaremos agora à observação da dinâmica de produção dos animês, entendendo que esta lógica é fundamental para explicar como essas produções tornaram-se um fenômeno midiático de consumo, incorporando-se ao repertório e ao cotidiano de um público disperso globalmente nos fluxos da mundialização.

3.3 Segmentação de público e produção

As animações japonesas são lançadas atualmente no mercado em pelo menos 4 formatos: séries de televisão, filmes, OVAs (Original Video Animation), e ONA's (Original net Animation). OVAs são animês produzidos para serem lançados diretamente ao mercado nos formatos LD (laserdisc), VHS, DVD ou Blu-Ray sem prévia exibição na televisão ou no cinema. Podem vir em formato de filme ou de série, sendo, neste último caso, normalmente mais curtos que as séries para televisão. Geralmente possuem mais riqueza de detalhes, coloração e animação que as séries televisonadas. As ONA's são animês diretamente liberados para a internet. Podem também ser exibidas na televisão, mas apenas após terem sido veiculados em rede. A nomenclatura deriva das OVA's (animação original para vídeo) tendo no entanto a internet como o novo meio de distribuição desses conteúdos. A criação das ONA's foi viabilizada pela quantidade crescente de sites de mídia streaming no Japão. As séries para televisão são exibidas em capítulos de aproximadamente 23 minutos, geralmente uma vez por semana no Japão. Possuem uma qualidade de imagem menor que os filmes e OVAs, por ter seu orçamento dividido entre os vários capítulos. Enquanto muitas séries possuem 13 ou 26 episódios, outras ultrapassam os 100 capítulos, existindo casos de animês em exibição ininterrupta por mais de 15 anos, sem reprises. Os fansubs, disponibilizam pela internet um episódio de animê em média 1 dia após a exibição na televisão japonesa. 95

Os filmes de animação são um crescente fenômeno internacional do setor. Enquanto que os primeiros títulos exportados, ainda na década de 50 para os EUA, não obtiveram sucesso significativo no mercado, produções mais recentes tornaram-se sucessos de bilheteria e de crítica ao redor do mundo, transformando-se em novos paradigmas para o cinema de animação. Hayao Miyazaki, o maior nome do cinema de animação japonês da atualidade, Isao Takahata, Mamoru Oshii e Hideaki Anno são cineastas de animação incensados no Japão também fora dele por companheiros de profissão como o francês Luc Besson (SATO, 2007, p. 86) e Quentin Tarantino, além de serem populares também entre os fãs de animês. Independentemente do formato em que é lançado, o animê é usualmente produzido tendo como diretrizes uma estruturação e segmentação básicas que organizam e categoriazam as produções e que, de fato, caracterizam o mercado de animação japonês. No Japão, as produções de animação são majoritariamente divididas em relação ao púbico-alvo, denominado "demografia". Neste esquema, as produções são divididas de acordo com o indicador demográfico. Os critérios de segmentação são o sexo (feminino e masculino, exceto para os infantis que usualmente não fazem essa distinção), o gênero (terror, comédia, ficção, fantasia, erótico, etc.) e a idade (criança, jovem, adulto). Muitas combinações são possíveis entre esses três recortes básicos e o resultado é uma variedade imensa de temáticas e produções dentro de cada demografia. Esses critérios foram sendo desenvolvidos ao longo da segunda metade do século XX, num primeiro momento obedecendo à crescente demanda do público que acirrou a concorrência entre editoras e emissoras as quais se viram obrigadas a incorporar cada vez mais artistas de estilos e propostas diferentes, e depois através dos mecanismos de mercado destinados a captar tendências latentes na realidade social, e são comuns à produção de animês e de mangás. A estreita relação entre essas duas mídias permite que novos estilos e gêneros (costumeiramente experimentados antes nos mangás e depois transpostos para as telas) sejam criados e testados constantemente. Existem produções para nichos bastantes específicos como destaca Hirata ao comentar sobre o mercado dos mangás:

[...] públicos que geralmente não são contemplados pelos quadrinhos ocidentais, como o público LGBT, geeks, executivos e fashionistas, encontram nos mangás conteúdos que atendem às suas demandas específicas. Exemplos são a revista WAai! – Boys in Skirts, da editora Ichijinsha, com histórias voltadas para homens adeptos do crossdressing (ato de vestir roupas e acessórios de beleza do sexo oposto); 96

Business Jump, da editora , cujo conteúdo é voltado para os executivos japoneses, chamados de salarymen; G- Men, revista com o gênero Bara, que consiste em histórias com sexo explícito entre homens com o estereótipo “macho”; Comic Yurihime, da Ichijinsha, especializado em histórias , romances apimentados entre mulheres; e a Comp Ace, da editora Kadokawa, que além de mangás oferece conteúdo para aficionados em games e tecnologia. (HIRATA, 2012, p. 20)

Esta flexibilidade permite uma grande diversificação da oferta, contribuindo para a renovação do mercado através da permanente proposição de temáticas e da atualização de paradigmas e gêneros consagrados. Também favorece o surgimento de uma série de controvérsias em torno de produções consideradas muito desviantes ou polêmicas, como as que abordam o estupro, a pedofilia, aborto entre outros temas. Essa característica básica da segmentação pelas demografias e por estilo tornou-se um diferencial dos animês enquanto produção de animação (posto que são raras as animações produzidas em outros pontos do mundo que fogem à destinação do consumo infantil) ao mesmo tempo em que os aproxima do cinema live action: assim como existem filmes de guerra, dramas, romances (homossexuais, heterosexuais, etc.), terror, infantis, históricos, educativos, ação, ficção científica, eróticos, pornográficos, também existe espaço adequado a todas essas temáticas no mercado de animês e mesmo para a combinação delas dentro de uma mesma história. Pode-se citar as principais demografias consideradas para a produção e comercialização de animações e quadrinhos japoneses68 , destacando alguns elementos recorrentes nas produções a elas destinadas:

Kodomo (ou Kodomomuke): as produções nesta demografia são direcionadas especialmente para crianças. Como características gerais, possuem enredos menos complexos, traços simplificados, e sua gama de temáticas compreende desde as de cunho mais didático (como os dedicados a auxiliar no processo de alfabetização, os que fomentam a ciência e os esportes), até as aventuras onde são realizados duelos com monstrinhos, robôs, livros e poderes mágicos, combates contra as forças do mal e etc. Essas produções abusam do humor e dos roteiros fantasiosos e costumam promover diversos tipos de mercadorias e

68 Selecionados e compostos à partir das observações de autores como Alfons Moliné (2006), Cristiane Sato (2007) e Sônia Luyten (2000), além de dados empíricos coletados em fontes virtuais. 97

brinquedos. Muitos possuem um caráter de fábula que usualmente prescreve a preservação das amizades (esta inclusive é uma "moral da história" comum a diversos segmentos dos animês e mangás) e a responsabilidade. Os personagens comuns nessas histórias são, crianças, animais antropomorfizados, simpáticos robôs protetores e seres fantásticos. Exemplos de títulos produzidos para a demografia kodomo: Hello Kitty, Doraemon, Anpanman, Heidi e Pokémon.

Figura 7. Cena do animê Kodomo (destinado ao público infantil) Pokémon.

Shoujo (ou shojo): produções direcionadas a demografia de meninas jovens e adolescentes. As temáticas variam bastante, ainda que os títulos permitam a identificação de alguns aspectos recorrentes. Os enredos dessas produções costuma frisar o romance, o drama, o cotidiano escolar, a beleza e o desenvolvimento dos sentimentos dos personagens, envolto, muitas vezes, por um clima onírico ou mágico. Um tipo bastante conhecido do shoujo e que já foi extremamente popular é o mahou shoujo , ou "garotas mágicas", que ganham super poderes e passam a cumprir uma determinada missão. Há shoujos que do mesmo modo que os shounen (demografia que corresponde ao público masculino jovem e adolescente) possuem lutas e confrontos. O personagem central no shoujo é tradicionalmente a garota e a trama se desenvolve em torno dos sentimentos da protagonista, seu amor, suas amizades e o seu amadurecimento. Alguns shoujo também abordam coadjuvantemente temas como o 98

incesto, a subjugação ou o homossexualismo 69 . Convém lembrar que a categorização aqui realizada indica apenas traços recorrentes e não devem ser encarada como um modelo fixo. Os gêneros não são estáticos e se adaptam as demandas históricas. Exemplos de títulos produzidos para a demografia shoujo: Kare Kano, Angel Sanctuary, Sailor Moon, Sakura Card Captors, Skip Beat.

Figura 8. Imagem do animê Shoujo (destinado ao público adolescente/jovem feminino) Kare Kano.

Shounen (ou shonen): as produções contempladas nessa demografia destinam-se a meninos jovens e adolescentes. Como acontece no Shoujo as temáticas podem variar muito, desde o terror à comédia escrachada. Como elementos recorrentes, identifica-se os roteiros geralmente dramáticos ou cômicos (e frequentemente uma mistura dos dois), costuma-se ressaltar a determinação, a superação, o companheirismo e a competitividade. Esses títulos

69 Existe no mercado japonês atual produções shoujo, sobretudo mangás, que trazem conteúdo erótico e/ou pornográfico e são direcionadas a garotas no final da adolescência e a mulheres jovens. Muitas dessas histórias possuem caráter realista e pedagógico abordando temas como a descoberta do próprio corpo e o uso de preservativos. Algumas delas exploram a temática do estupro consentido (quando a mulher se sente no dever de aquiescer às investidas masculinas) e da pedofilia, quando personagens menores se apaixonam e são correspondidas por bishounens (literalmente, rapaz bonito) de idade quase indecifrável. No Ocidente, essas produções receberam a denominação de steamy shoujo, algo como shoujo picante. Este é um movimento relativamente recente nas produções japonesas. Até poucos anos atrás o beijo era entendido no Japão como parte das preliminares sexuais e, ainda hoje, na maior parte dos shoujos, não é comum se encontrar beijos e declarações explícitas de amor. Essa concepção vem mudando aos poucos devido ao processo de globalização, que permite o contato e o debate de referências distintas, e às próprias mudanças sociais japonesas. Para mais informações: FERNANDES, Valéria. Steamy Shoujo - O que é isso? AnimePró (website). Disponível em: . Acesso em 22 de abril de 2009. 99

são em geral permeados por uma dose considerável de violência, tragédia, humor e ação, mas podem abordar também o romance, apesar de não serem tão comuns produções nesse sentido. Dentro desta demografia há os animês voltados aos esportes, às lutas, aos super-carros, aos robôs gigantes, entre muitos outros. O perfil do personagem principal do shounen pode variar muito, partindo do garoto comum, aparentemente sem qualidades excepcionais porém super- determinado em sua meta, até o anti-herói problemático. A superação física, psicológica e moral é uma meta que vale todos os esforços e a idéia da luta do bem contra o mal está presente na maioria das produções desse segmento. Exemplos de títulos produzidos para a demografia shounen: One Piece, Slam Dunk, Cavaleiros do Zodíaco, Death Note, Naruto.

Figura 9.Cena do animê Shounen (destinado ao público adolescente/jovem masculino) One Piece.

As produções shoujo que enfocam o amor romântico entre garotas possuem uma categoria própria, conhecida como Shoujo Ai , ou Yuri , e no Japão são consumidas majoritariamente pelo público masculino. As produções shounen que enfocam o amor romântico entre meninos também constituem uma categoria singular, denominado Shounen Ai , ou , (criadas basicamente por artistas mulheres) e assim como o Yuri são consumidas sobretudo pelo público do sexo oposto, sendo que o mesmo fenômeno verifica-se fora do Japão. Os dois participantes em uma relação Yaoi (e por vezes também na Yuri) são muitas vezes referidos como seme e uke (superior e inferior, literalmente, mas podem ser entendidos como ativo e passivo). Os termos tem origem nas artes marciais e derivam das noções de 100

"atacar" e "receber", respectivamente. Boa parte dos personagens nesses roteiros são caracterizados por uma androginia idealizada. Exemplos de títulos da categoria Yuri : Strawberry Panic!, Maria-sama ga Miteru, Candy Boy. Exemplos de títulos da categoria Yaoi : Gravitation, Sekaiichi Hatsukoi, Ai no Kusabi.

Figura 10. Cena do animê Shoujo Ai (romance gay entre personagens femininas) Strawberry Panic!

Figura 11. Cenas do animê Shounen Ai (romance gay entre personagens masculinos) Sekai Ichi Hatsukoi. 101

Josei : as produções nesta demografia destinam-se à mulheres adultas (ou maduras, tradução literal do termo). Como uma característica geral, os enredos são mais complexos e maduros que os do shoujo. Suas histórias, mais realistas e normalmente centradas no universo feminino são comumente criadas por artistas mulheres. Não desconsiderando a variedade temática, pode-se notar que os enredos mágicos são menos comuns que no shoujo e os títulos josei podem abordar para além do romance idealizado temas mais delicados como as relações familiares, mercado de trabalho, depressão, sexo dentro e fora do casamento, divórcio. As adaptações de mangás Josei para animês costumam ser mais raras, sendo mais comum a adaptação em séries live action. Hoje uma parte significativa dos títulos voltados a demografia Josei se enquadram na categoria Yaoi 70 , um exemplo é a magazine Be-Love da editora , que direcionada para o público Josei publica diversos títulos Yaoi. Exemplos de títulos josei com adaptações em animê: Nodame Cantabile, Usagi Drop, Pet shop of Horrors e NaNa.

Figura 12. Cena do animê Josei (destinado a moças e mulheres) Nodame Cantabile.

70 Para mais informações sobre a representação do romance homossexual masculino na mídia e na sociedade japonesa contemporâneas, consultar artigo de Mark McLelland Male Homosexuality and Popular Culture in Modern Japan . Para outras informações consultar o livro de Antonia Levi, Mark McHarry e Dru Pagliassoti Boy's Love Manga: essays on the sexual ambiguity and cross-cultural fandom of the genre . Ver bibliografia. 102

Seinen : produções nessa demografia são direcionadas à homens maduros. Usualmente são mais psicológicos, satíricos e violentos que os shounen além de não haver restrições em relação ao sexo (assim como o josei), contudo, o enfoque é dado sobre a trama e, consequentemente, as histórias costumam ser menos orientadas para a ação. Ao contrário do josei, o seinen apresenta muitas produções sobre ficção científica e suspense, sendo que essas possuem um nível de complexidade bastante acentuado inclusive em termos de linguagem: os próprios kanjis usados nos mangás seinen são de nível universitário 71 . As produções desse segmento também podem retratar a rotina e os problemas do homem japonês adulto, aprofundando temas como a política ou negócios. Exemplos de seinen: Vagabond, Ghost in the Shell, Monster e .

Figura 13. Cena do animê Seinen (destinado a rapazes e homens) Monster.

Ero : as produções nesta demografia são direcionadas a homens e mulheres adultos. São as produções eróticas e pornográficas, existindo inúmeras temáticas e categorias possíveis, dentre os quais o , que no Japão designa especificamente os conteúdos mais

71 Kanjis são uma das quatro variedades de ideogramas da língua japonesa e representam palavras completas. Existem milhares de kanjis e eles são separados de acordo com o grau de instrução e uso popular. Desse modo há kanjis para nível colegial, ginasial, universitário e etc. 103

perversos e anormais, mas fora dele acabou tornando-se sinônimo de toda a produção Ero. O hentai aborda as temáticas mais polêmicas como relações entre seres humanos e alienígenas, animais, monstros, taras relacionadas a objetos, o controverso estupro consentido e o estupro protagonizado por vários personagens, etc. A categoria Ero como um todo oscila desde enredos românticos e apimentados, compreendendo tanto o sexo hetero como homossexual, até os hentai mais radicais que envolvem categorias como toddlercon (sexo com ou entre crianças pequenas e/ou bebês). Exemplos de ero: Genmukan: the sin of desire & shame, Bibble Black, Secret of Green Tentacles.

Figura 14. Cena do animê Ero (produções eróticas e pornográficas destinadas ao público adulto) Bible Black.

Selecionamos em um dos sites dedicados aos animês, o top 10 , quatro títulos de diferentes segmentos-base e a sua descrição para exemplificar como a segmentação funciona na prática:

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Figura 15. Gintama'

Episódios: 51 Tipo: seriado de TV Ano: 2011 Classificação: +12 Gêneros: Ação, Comédia, Histórico, Paródia, Samurai, Ficção, Demografia: Shounen

Figura 16. Chihiro no Kamikakushi (A Viagem de Chihiro)

Episódios: 1 Tipo: Filme Ano: 2001 Classificação: +10 Gêneros: Aventura, Drama, Romance, Sobrenatural Demografia: livre

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Figura 17. Hellsing Ultimate

Episódios: 10 Tipo: OVA Ano: 2006 Classificação: +16 Gêneros: Ação, Horror, Vampiros, Sobrenatural, Militar, Demografia: Seinen

Figura 18. NaNa

Episódios: 47 Tipo: seriado de TV Ano: 2006 Classificação: +16 Gêneros: Comédia, Drama, Musical, Romance, Slice of Life, Demografia: Josei

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Este esquema de produção, fundamentado na segmentação de público, mostrou-se bastante sustentável no Japão e também é um dos grande fatores de atratividade para o público fora do país, devido a sua variedade e pelo grande volume de produções disponíveis em cada demografia. Independentemente da existência de um mercado estruturado de modo a atender o público em uma determinada localidade, oferecendo essas produções em sua variedade característica, a possibilidade de acessar esses conteúdos online (muitas vezes com boa ou ótima qualidade e gratuitamente) contribui para que a popularidade dos animês se faça inclusive e sobretudo por vias alternativas e marginais ao mercado. O trabalho colaborativo dos consumidores e fãs, que subvertem a lógica capitalista e reconvertem-na num sistema de dádivas, mostra, mais uma vez, que os fluxos do capital não são sempre determinantes das práticas sociais e culturais, ainda que sua dimensão técnica, neste caso, potencialize esta forma de consumo, compartilhamento e interação. Os produtos da cultura pop japonesa, com destaque para os animês, têm chamado a atenção do mundo para a imagem de um Japão criativo, empreendedor, cool , imagem que por sua vez cria fluxos de identificação, significação e consumo que têm o potencial de estimular o turismo, a indústria, abrir caminho para empresas de diversos setores bem como dar visibilidade ao país na arena internacional, não só na esfera política das relações entre Estados como no âmbito da sociedade civil e dos processos de globalização. Observaremos no capítulo seguinte como estas produções passarão a interessar ao Estado japonês ante a necessidade de reorganização de questões econômicas e políticas nacionais na situação de globalização e algumas das mobilizações que essas animações promovem nos âmbitos cultural, econômico e político japoneses.

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4 O ANIMÊ COMO SOFUTO PAWA

Este capítulo realiza uma análise do animê enquanto recurso cultural para ações de soft power (sofuto pawa, na adaptação vernacular japonesa). Isso implica em apontar e discutir diversos dos fluxos de capital, de símbolos, humanos e ainda outros mobilizados por essas animações a nível global e regional, com suas implicações para o Estado Japonês. Faz- se necessário também explicitar os critérios desenvolvidos para esta análise, que foram brevemente comentados no primeiro capítulo deste trabalho e relacionam-se a capacidade de colaboração para a manutenção de uma hegemonia cultural, soberania econômica e legitimidade política nacionais ante os processos transnacionais da situação de globalização. Contudo, antes de proceder a análise é necessário realizar algumas considerações a respeito do poder, além de uma breve apresentação do panorama econômico e social japonês recente e da exposição das iniciativas governamentais de promoção do animê sob o slogan do projeto Cool Japan . Dissemos anteriormente que o Soft Power é, em linhas gerais, o poder de atração. Joseph Nye (2004) define o poder como a habilidade de influenciar o comportamento de outros a fim de obter determinados resultados. Na sua concepção formas de poder são tanto a coerção e a recompensa (pagamento) quanto as habilidades de ditar preferências e comportamentos. Nye argumenta que pensar o poder apenas em termos dos recursos disponíveis pode levar ao paradoxo que aqueles com a maior quantidade e qualidade de recursos nem sempre conseguem resultados desejados. Para Nye, converter recursos em poder realizado, no sentido de conseguir resultados desejados, requer estratégias bem designadas e habilidosa liderança. A proposta é simples: o poder é exercido mediante uma ação (ou medida) deliberada. Temos de considerar, contudo, que Nye é cientista político. Hoje professor da Universidade de Serviços Distintos da Universidade de Harvard, Nye foi presidente do Conselho Nacional de Inteligência americano e secretário-assistente de Defesa na administração de Bill Clinton. A visão de Nye sobre poder e gestão de recursos (incluindo os recursos culturais) é assim orientada pela aplicabilidade cotidiana do exercício político. Para este trabalho, no entanto, resgatamos a teoria do soft power de Nye dialogando com o campo da comunicação enquanto ciência da cultura, e nesse sentido, observamos a questão também da perspectiva da ciência política, mas não apenas. Esta serve-nos como um 108

suporte e um complemento necessário para dar conta do que pudemos perceber através do caso dos animês enquanto conteúdo mundializado. Os pontos de intersecção e ruptura entre economia, política e cultura, mobilizados pelos animês, são os que aqui nos interessam. Assim, enquanto Nye pressupõe que o soft power acontece de ação deliberada, pode-se perceber mobilizações que nem sempre atendem essas premissas, e no entanto não deixam de construir relações de poder onde a atração é um elemento fundamental. Já foi possível observar minimamente (e exploraremos essas questões adiante) que essas animações criam fluxos de fãs, consumidores, estudiosos, de notícias e produtos, independente de uma ação realizada pelo Estado, e em parte, independente até mesmo da comercialização das empresas. No entanto, a lógica neste caso é outra: o que se evidencia é o soft power criado de modo independente pela indústria criativa em busca de um mercado transnacional e pelos consumidores na formação de midiapanoramas autônomos e de uma cultura mundializada. A mundialização da cultura é um processo que surge e se realiza independente de uma gestão política, mas quando a esfera política se interessa pela cultura enquanto recurso e passa a fomentar diversos midiapanoramas visando obter benefícios políticos, econômicos e culturais a ação política começa a ter reflexos no processo de mundialização. Desse modo, quando utilizamos a ideia de soft power para analisar o caso dos animês neste estudo, é sobre uma dupla perspectiva: a de soft power na concepção de Nye, aquele deliberadamente executado pelo Estado, e aquele que o Estado obtém por extensão da ação de outras partes envolvidas nos fluxos de consumo e comercialização dos animês. Esclarecida esta primeira questão, pontuaremos agora alguns aspectos do panorama econômico e político japonês atual que julgamos ser oportunos para demonstrar como os desafios enfrentados pelo Estado-nação na situação de globalização se atualizam contextualmente nesta nação e em um momento específico.

4.1 O Panorama japonês recente Como foi discutido no primeiro capítulo, o Japão enquanto Estado não possui um exército, mas emprega as assim chamadas "Forças de Autodefesa", criadas após a Segunda Guerra Mundial. A atuação dessas forças é significativamente limitada pelo artigo nono da constituição japonesa, através do qual o país renuncia a opção de resolver disputas internacionais através da guerra bem como participar de conflitos armados. Em termos de hard power, podemos dizer que o Japão tem, assim, sua capacidade de atuação limitada, já 109

que os maiores recursos para essa estratégia de ação são, de acordo com Nye, as forças armadas, as sanções econômicas e a capacidade de pagar pelos resultados desejados. Mas, por outro lado, a suposta ênfase no pacifismo tem encontrado significativo apoio nacional e global (vimos no capítulo 1 que a solução de conflitos mediante o uso da força tem sido uma opção bastante impopular diante de uma "opinião pública global") e tem contribuído positivamente para a construção de uma imagem japonesa atual como um país pacífico. Em 2004, pela primeira vez, o Japão fez uso de suas Forças de Autodefesa sem um acordo das Nações Unidas e as enviou para o Iraque, em apoio aos Estados Unidos e sob o propósito de prestar ajuda humanitária e colaborar na reconstrução do Iraque. Para isso foi necessária a aprovação de uma lei especial, declarada posteriormente inconstitucional por um tribunal de Nagóia 72 . Contudo, mesmo antes da decisão judicial, parte da população japonesa manifestou-se publicamente sentindo-se desrespeitada não somente em relação aos seus valores, mas também em relação à sua constituição. Assim, enquanto protestavam contra a decisão governamental 73 , muitos japoneses confirmaram essa imagem pacifista, a qual constitui um recurso fundamental do soft power japonês na atualidade. (LAYER, 2010, p.1). Por outro lado, este episódio promoveu a nível local (no Iraque) um desdobramento distinto, ao menos de início, pois os caminhões enviados com água e suprimentos para o Iraque não só eram adesivados com as bandeiras japonesa e iraquiana, como também com grandes imagens de Captain Tsubasa , uma série animê e mangá bastante conhecida pela população local e que trata do universo do futebol. Essa foi uma medida para facilitar a identificação de qual país estava oferecendo a ajuda humanitária. Foram promovidos jogos amistosos entre os japoneses e iraquianos e estabelecido um clima de cooperação e expectativa entre a população da cidade de Samawa (onde se concentraram as tropas) e as forças nipônicas.

72 Japão anuncia o fim de seu desdobramento militar aéreo no Iraque . UOL Notícias/EFE [11 de Setembro de 2008]. Disponível em: Consulta em: 04 de Novembro de 2012. 73 Protesters rally in against dispatch of troops to Iraq. The Japan Times [ 26 de Janeiro de 2004]. Disponível em: Tribunal diz que envio de tropas ao Iraque é inconstitucional. G1/EFE [17 de Abril de 2008]. Consulta em: 27 de Novembro de 2012. 110

Figura 19. Japoneses e iraquianos em uniformes de futebol em frente a um caminhão de água das Forças de Auto Defesa japonesas, estampado com a figura dos personagens de Kyaputen Tsubasa (Capitão Majed, em árabe).

Tendo focalizado sua política externa numa postura expansionista e militarista até meados do século XX, a derrota do Japão na Segunda Guerra Mundial trouxe uma mudança, deslocando a atenção para o desenvolvimento econômico. Desse modo temos que a ideia de política externa japonesa, de 1945 em diante, se assenta sobre seu desenvolvimento econômico, sobretudo de base industrial, recordando a carência de recursos naturais do país devido às suas proporções e condições geográficas. Como destaca Uehara, desde o final da Segunda Guerra Mundial, o Japão tem buscado desempenhar sua política externa via recursos econômicos 74 , e isso implica, obviamente, na manutenção de uma boa imagem:

O Japão mantém um perfil não militar no mundo político porque necessita da boa vontade e aceitação da comunidade internacional para obter acesso aos mercados mundiais e aos fornecedores de recursos naturais (INAGAWA apud UEHARA, 2003, p. 109)

74 UEHARA, Alexandre R. Política Externa Japonesa no Final do Século XX: o que faltou? [testemunho do autor e debate]. Centro Brasileiro de Relações Internacionais. Disponível em: Documento sem data, p. 10. Consulta em: 10/01/2013 111

A doutrina Yoshida, que tem direcionado a política externa japonesa desde então, se assenta em quatro princípios, sendo: 1-economicismo; 2-minimalismo; 3-bilateralismo dominante; e 4-multilateralismo, que em linhas gerais significam: "concentrar-se no desenvolvimento econômico japonês e não no desenvolvimento político ou militar" (UEHARA, 2003, p. 109) 75 . Esta questão é fundamental para a compreensão dos problemas que o Estado japonês enfrenta ante a situação de globalização. Optando por atuar politicamente através de um viés assumidamente econômico, o Japão busca esquivar-se de uma visibilidade política atrelada às questões de segurança geopolítica e estratégica. Essa postura pode ser entendida em parte devido às relações do Japão com os EUA no pós-guerra, as quais já discutimos no segundo capítulo deste trabalho, e, de outro lado, devido à reorganização geopolítica que se impõe para todas as nações com a globalização. A necessidade de realizar operações comerciais com os vizinhos asiáticos, os quais veem com desconfiança qualquer tentativa japonesa de liderança política, pode ser apontada também como um dos fatores que contribuíram para esta abordagem das questões políticas ante os fluxos globais. Mesmo focando-se em estabelecer um relacionamento com o leste- asiático em termos demarcadamente econômicos, as ações japonesas na região costumam ser observadas criticamente por seus vizinhos, devido ao seu protecionismo econômico.

Japan still has an image problem in East Asia today- sometimes as a country lacking in remorse for its past militarism and other times as a predatory and protectionist “economic animal” (LAM, 2007, p. 350)76 .

A sustentação política sob o panorama econômico externo tornou o Japão o país mais industrializado da Ásia e até então na segunda economia mundial. Entretanto, essa estratégia mostrou suas debilidades conforme as crises econômicas foram surgindo. No início da década de 1990, a bolha econômica com base na inflação dos imóveis e os preços das ações finalmente estourou. A crise global do fim da década de 90 afetou de tal modo a economia japonesa que seus esforços voltaram-se mais para os problemas domésticos do que para a condução de uma política exterior propriamente dita. A perda do posto de segunda economia

75 Para mais detalhes sobre a política externa japonesa e sua transfiguração para uma política econômica após a segunda guerra mundial, consultar o capítulo 2 do livro de Alexandre Uehara A política externa do Japão no final do século XX: o que faltou? . Ver bibiografia. 76 "O Japão permanece com um problema de imagem no leste-asiático hoje - algumas vezes como um país sem remorsos por seu passado militarista, outras vezes como um 'animal econômico' predatório e protecionista." Tradução livre. 112

mundial veio em fevereiro de 2011, para a China. A sua maior moeda de barganha política, ou seja, a sua economia, passa por mudanças e diminui de importância ante o surgimento de novos e grandes atores econômicos globais, como os países que compõem o chamado BRIC 77 . Isto significa que a diplomacia japonesa está lentamente a perder o poder que poderia tirar do seu desempenho econômico superior. As graves e sucessivas crises econômicas, pelas quais tem passado o país desde o fim do milagre econômico dos anos de 1980, forçou um olhar mais cuidadoso sobre outros setores da economia, a fim de diversificar as fontes de recursos e investimentos e ampliar a margem de segurança em relação aos abalos que atingem os setores mais tradicionais da indústria, como o da produção automobilística, de maquinário e equipamentos de informação. A mundialização da cultura enquanto processo concomitante vai também exigir reformulações das políticas nacionais na medida em que faz emergir novas possibilidades de gestão bem como a imposição do declínio de práticas políticas já arraigadas. As mudanças na economia japonesa apontam para uma reorientação de base, uma tendência novamente global, fruto das transformações gerais nos campos tecnológico, financeiro, social e cultural. O envelhecimento da população, as reconfigurações do mercado de trabalho, o cosmopolitismo característico das novas gerações, as novas experiências culturais, entre outros fatores influem decisivamente nesse processo. Sugiura Tsutomu, em artigo que discute a crescente importância do setor de serviços e das industrias criativas para a economia japonesa, destaca alguns desses pontos e comenta:

With the increasing tranfer of production offshore, Japan is developing into a postindustrial and service-oriented society. In addition, with the aging of baby boomers, Japan is rapidly becoming an aging society. These trends suggest, first, that Japan's economy will be more throught personal contact with other people. [...] Second, due to the mass production system and economic development [...] our priority in everyday life has shifted from a desire for material gain, with dominated the old economy, to a desire for spiritual satisfaction (TSUTOMU in YASUSHI e McCONNELL, 2008, p.129) 78

77 Sigla para: Brasil, Rússia, Índia e China. 78 "Com a crescente transferência de produção para além mar, o Japão está se transformando em uma sociedade pós-industrial e orientada a serviços. Além disso, com o envelhecimento dos baby boomers, o Japão está se tornando rapidamente uma sociedade em envelhecimento. Estas tendências sugerem, primeiro, que a economia do Japão vai se sustentar mais através contato pessoal com outras pessoas. [...] Em segundo lugar, devido ao 113

Este movimento de reconhecimento e valorização das indústrias criativas não é apenas uma característica do contexto japonês, mas de uma tendência mais ampla, num mundo onde os países que não ingressaram na experiência de modernidade através da produção, o fazem através do consumo e onde justamente a criação de novos mercados consumidores passa fundamentalmente pela questão da construção do gosto e da gestão das fontes de atratividade. O Japão como uma nação que caminha de uma economia industrial para um outro modelo voltado aos serviços, necessita também de sua indústria criativa para a manutenção e abertura de mercados. Trata-se de um momento de crise estrutural do capitalismo e das suas tradicionais instâncias de produção de riqueza, no qual, para todos, os fatores determinantes são a inovação, a qualidade e o potencial criativo humano. Há ainda um problema adicional que o Japão enfrenta com o recente terremoto que causou a catástrofe do tsunami e do acidente nuclear no início de 2011. Em números gerais, quase 26 mil estudantes de 8 mil escolas atingidas pelo tsunami tiveram de ser realocados em novas escolas. 3.400 instalações esportivas, culturais e sociais foram destruídas, sendo que delas 353 eram marcos culturais, incluindo templos, sítios históricos e paisagens icônicas. A maior parte das construções e todas as instalações industriais com riscos de explosões e liberação de produtos tóxicos ao meio ambiente, tais como refinarias de óleo, depósitos de combustíveis, usinas termelétricas e indústrias químicas, localizadas na região atingida colapsaram, com danos ao meio-ambiente ainda não quantificados. O subsequente acidente na usina nuclear de Fukushima, acarretou na evacuação de 160 mil pessoas e na contaminação de uma área de centenas de quilômetros, sendo que a maior parte do material liberado foi despejado no Oceano Pacífico e 19% da radiação fixou-se no solo. As perdas humanas somam um total de 16 mil mortos e mais de 3.300 desaparecidos e os custos para a reconstrução do país chegavam a 240 bilhões de dólares no fim de 2012 79 . Em meio a crise financeira global deflagrada pela quebra do setor imobiliário nos Estados Unidos, o Japão tem o duplo desafio de gerir as questões nacionais frente a um mercado global desestabilizado e tendo que lidar internamente com os custos humanos, econômicos, políticos e culturais do desastre. Cabe destacar, no entanto, que a ação do governo japonês na

sistema de produção em massa e desenvolvimento econômico [...] a nossa prioridade na vida diária passou de um desejo de ganho material, que dominou a velha economia, a um desejo de satisfação espiritual." Tradução livre. 79 Para mais informações, ver: Gastos com reconstrução do Japão pós tsunami devem passar de U$$ 239 bi . Estadão [02 de Julho de 2012]. Disponível em: Consulta em 05 de Janeiro de 2013 114

reconstrução das áreas afetadas e no socorro às vítimas, de outro lado, permitiu a criação de uma imagem positiva do Japão na mídia internacional bem como nas redes sociais 80 , como um país capaz de se recuperar e agir com eficiência em caso de calamidade. Esta breve consideração de aspectos fundamentais do panorama japonês recente nos permitirá, a esta altura, discutir como o governo japonês tem se apropriado dos animês como uma ferramenta de soft power. Após identificarmos estas medidas, procederemos finalmente a análise dos animês e sua condição de recurso para estratégias de atratividade e gestão governamental.

4.2 O Cool Japan Sugiura Tsutomu 81 , conselheiro do Marubeni Research Institute e membro da subcomissão especial do Conselho de Tóquio para as Artes, irá denominar o cenário caracterizado pelo intenso fluxo da cultura pop japonesa em escala global – sobretudo através dos seus maiores expoentes: animês, mangás e games – da terceira geração do “japanismo”, fenômeno semelhante a primeira geração, que emerge no fim do século XIX, e a segunda, a qual se manifesta entre os anos de 1950 e 1960, porém diferindo-se das suas antecessoras em um aspecto chave: esta terceira onda de influência trouxe a cultura japonesa ao conhecimento do público geral em outros países, onde demonstrou amplo apelo sobretudo entre os jovens. Como nos lembra Tsutomu, o Japão há muito tem sido conhecido no mundo por elementos de sua cultura tradicional, como a cerimônia do chá, a prática do Ikebana , bonsai, as pinturas ukiyo-e e quimonos. Porém, esse conhecimento ficava restrito a grupos intelectuais (japanólogos e antropólogos) e aos japanófilos (apaixonados pela cultura japonesa). Acrescentamos à distinção proposta por Tsutomu mais um ponto que difere esta terceira geração do japanismo das anteriores, que é a capacidade, no mínimo acentuada em relação às demais, que a cultura pop apresenta de promover não só os elementos que a compõem como também outras manifestações culturais – incluindo o que é considerado

80 Dois exemplos: SETTI, Ricardo. Fotos incríveis mostram a superação dos japoneses após tsunami e tragédia nuclear. Já a Região Serrana do Rio... Veja/Blogs e Colunistas [14 de Dezembro de 2011]. Disponível em: Consulta em 05 de Janeiro de 2013. LIMA, Murilo. A incrível recuperação do Japão após o terremoto e a tsunami. Geek Café. Disponível em: Consulta em: 05 de Janeiro de 2013 81 TSUTOMU, Sugiura. Japan's Creative Industries: Culture as a Source of Soft Power in Industrial Sector in Soft power superpowers: cultural and national assets of Japan and United States. p.128-153. Estados Unidos: M.E. Sharpe, Inc. 2008.

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tradicional – e produtos de outros segmentos da indústria japonesa. Isto é, a influência da cultura pop japonesa não se esgota em sí e talvez seja este seu maior trunfo, sobretudo para o Estado japonês. A profusão de mangás e animês pelo mundo se faz acompanhar de um aumento geral (mas diverso de localidade para localidade) na demanda por produtos e serviços tais como o arroz para sushis 82 , folhas de algas, futons, cursos de língua japonesa e artes marciais, roupas, cosméticos, design, eletrônicos etc. O mercado do turismo no Japão também se beneficia grandemente da popularidade desses produtos, que estimulam muitos fãs a conhecer os lugares, festivais e eventos reais que inspiram centenas de histórias 83 . Logicamente não se trata de uma simples relação causal. Outras forças políticas, econômicas e sociais estão ativamente envolvidas, mas fator crucial é que os produtos do pop constroem uma vitrine de Japão para o mundo, e conseguem atrair atenção para o país, contribuindo para os fluxos que estão sendo estabelecidos em outras instâncias e gerando novos fluxos de influências, técnicas, mercadorias e capitais. O primeiro a sintetizar esse fenômeno apontando a emergência do Japão como uma superpotência cultural foi o jornalista americano Doulas McGray em uma matéria intitulada Japan's Gross National Cool 84 , publicado na revista americana Foreign Policy , em 2002. Na reportagem, McGray discutia como após uma década de recessão econômica pela qual o Japão havia passado durante os anos 90, uma nova imagem de superpotência japonesa começava a se delinear através do aperfeiçoamento da "arte de transmitir" certos tipos de cultura de massa. O jornalista traçou um breve panorama da intensa presença no cenário internacional dos expoentes de um Japão descolado e pós-moderno, em suma: cool , representado pelos mangás, animês e outros produtos da indústria criativa japonesa, como os games, a arquitetura e a moda, tanto a de rua (jovem e urbana) quanto a alta costura, itens que são exportados para o mundo inteiro ao lado de uma faceta mais tradicional do país, que

82 Um exemplo: na cidade de São Paulo, que abriga milhares de imigrantes japoneses desde a década de 1940, o crescimento na oferta de culinária nipônica foi de 400% entre 1989 e 2003. Neste ano, o número de restaurantes japoneses (600) chegou mesmo a ultrapassar o de churrascarias (500), tradicionais no país. Ver: ZAKABI, Rosana. Ao gosto brasileiro: comida japonesa se torna popular como o churrasco nas principais capitais do país . Veja On-line, ed. 1811 [16 de Julho de 2003]. Disponível em: Consulta em 19 de Outubro de 2011. 83 Otaku tourism: Manga and Game Locations become tourist atractions . Trends in Japan. Disponível em: site associado ao Ministério de Assuntos Exteriores do Japão (Mofa). Consulta em: 09de Janeiro de 2012. 84 McGRAY, Douglas. Japan's Gross National Cool. Foreign Policy: arquivo digital [2002]. Disponível em: Consulta em: 03 de Junho de 2010.

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também se reveste da aura cool, representada pelos quimonos, pelo sumô e culinária, entre outras expressões culturais mais antigas. Ainda na reportagem, McGrey apontou o " national cool " como um dos tipos de soft power, conceito desenvolvido em 1989 pelo decano de Harvard, Joseph Nye. Como forma de poder, o soft power é exercido através da atração, do compartilhamento de objetivos legitimados entre as forças envolvidas na relação de poder, e não da coerção ou do pagamento - estes últimos correspondendo ao hard power . De outro modo, soft power é a habilidade de conseguir os resultados desejados através do manejo de fontes de atração, sendo elas, no caso do Estado, as políticas externas, os valores políticos e a cultura. McGray destacou que o Japão, apesar de dispor de uma imensa reserva potencial de soft power, apresentava poucos meios de aproveitá-la, posto que essa imagem positiva e pós-moderna gerada no contexto do Cool Japan , a qual colaboraria para que o país infundisse suas universidades, centros de pesquisa, empresas e artes com o talento estrangeiro, não encontraria uma contrapartida necessária nos suportes político e público para a imigração. Essas questões levantadas de forma pioneira por McGray seriam fundamentais para a posterior elaboração de um plano de gestão da indústria criativa japonesa e da imagem de um Japão cool . As considerações de McGray foram retomadas na mídia internacional em uma matéria de Margaret Talbot para o restrospecto de 2002 do The New York Times e a partir de então um número crescente de funcionários menos tradicionalistas do governo e líderes empresariais no Japão, bem como a imprensa, passaram a se referir ao Gross National Cool japonês e adotar de forma não oficial o slogan Cool Japan. A noção de cool para se referir a um determinado potencial cultural, criativo e atrativo não é inédita. Em 1997, o Reino Unido e a Coréia do Sul lançaram projetos para fortalecer e divulgar suas indústrias criativas sob a bandeira cool , obtendo bons resultados não somente para as áreas diretamente envolvidas como desdobrando-se em benefícios sociais e econômicos mais amplos. No Reino Unido a administração de Tony Blair introduziu o projeto Cool Britannia . As iniciativas tomadas, entre elas a criação do Conselho de Design e o suporte completo através das embaixadas e escritórios de investimento para a abertura de mercados no exterior, resultaram em uma taxa de crescimento anual da indústria criativa britânica de 6% após 5 anos da implementação do projeto, enquanto que o produto interno bruto do país atingiu apenas 3% no mesmo período; as exportações desta industria cresceram 1.7 vezes entre 2000 e 2006 e a taxa de crescimento anual do número de empregados entre 117

1997 e 2003 foi de 3% na indústria criativa em contraste com apenas 0.9% no Reino Unido como um todo. Na Coréia do Sul, sob a administração do presidente Kim Dae-jung, que se auto declarou um "presidente cultural", o governo e os setores privados se uniram para difundir a influência coreana pela Ásia utilizando o Cool Korea Strategy . Este programa estabeleceu, entre outras medidas, o Instituto de Promoção do Design, a Agência de Conteúdo Criativo e a Agência Coreana de Investimento e promoção comercial (KOTRA), esta última responsável pelo suporte para ganho de mercado externo; os resultados desse plano estratégico podem ser vistos hoje com a alta competitividade da cultura pop coreana no mercado asiático. Apesar do exemplo destas bem sucedidas experiências, e a despeito de todo o potencial evidenciado pela cultura pop japonesa na década de 90, o governo Japonês tem voltado seus recursos e atenções à indústria criativa apenas nos últimos 6 anos. É a partir de Junichiro Koizumi, primeiro ministro de 2001 a 2006, que a idéia de diplomacia cultural passa efetivamente a compor a pasta das políticas externas japonesas. Em Dezembro de 2004 foi criado o Conselho de Promoção de Diplomacia Cultural (Council on the Promotion of Cultural Diplomacy), o qual recomendou em relatório de junho do ano seguinte que o Japão aproveitasse o interesse já existente pela língua e cultura pop japonesas no exterior para incentivar a popularização de outras manifestações culturais daquele país. Apesar das recomendações, medidas de promoção da cultura pop japonesa foram executadas apenas a partir de Taro Aso, ministro das relações exteriores entre 2005 e 2007 e primeiro-ministro de setembro de 2008 a setembro de 2009. Sob sua administração, em 2007, foi criado o Prêmio Internacional de Mangá (International Manga Award), que através do uso ativo da cultura pop japonesa na diplomacia pública, homenageia artistas estrangeiros de mangá que contribuem na promoção deste estilo de quadrinhos no exterior. Em 2009 o personagem Doraemon foi empossado pelo então ministro das relações exteriores, Masahiko Koumura, como Embaixador do Animê. Na ocasião o ministro expressou o desejo de que as pessoas ao redor do mundo conhecessem mais sobre o lado positivo do Japão através do animê, dito universalmente popular. A fundação Japão (Japan Foundation) 85 , apesar de desenvolver seus projetos majoritariamente nas áreas de ensino da língua japonesa, intercâmbio intelectual e promoção da cultura tradicional também contempla ações para a divulgação da cultura pop

85 Foi criada em 1972 como uma entidade jurídica especial supervisionada pelo Ministério das Relações Exteriores para realizar intercâmbio cultural internacional. Em outubro de 2003 foi reorganizada como uma organização administrativa independente. 118

sobretudo na forma de apoio logístico e regional às iniciativas dos órgãos governamentais como o Mofa (Ministry of Foreing Affairs of Japan). Em meados de 2010, período em que o Japão encontrava-se recém-saído de sua pior crise econômica desde o fim da Segunda Guerra Mundial, foi estabelecido o Escritório de Promoção das Indústrias Criativas ( Creative Industries Promotion Office ), o qual se ocupa de planejar e implementar medidas interministeriais para a promoção das indústrias culturais como um setor estratégico para o Japão. Este escritório, submetido ao Ministério da Economia, Comércio e Indústria (Meti), foi criado em resposta às considerações de dois documentos elaborados em 2009 que compilavam os resultados de discussões sobre modos de impulsionar a receita japonesa e de garantir empregos no futuro e que apontavam para uma economia com foco nas pessoas, nos pequenos e médios negócios e na criação de novas indústrias e mercados, entre elas a indústria criativa. A partir das diretrizes, o METI tem apoiado e promovido desde então diversas ações e eventos que buscam dar visibilidade à cultura japonesa no exterior, seja através do pop ou de manifestações consideradas tradicionais. No que tange especificamente à cultura pop, a Japan EXPO na França e o Anime Festival Asia - este último dividido em 2012 em três edições sucessivas, a primeira ocorrendo na Malásia, a segunda na Indonésia e a terceira em Singapura – são megaeventos que reúnem entre 70 mil a 200 mil pessoas e combinam negócios, animês, mangás, música, games, cosplay, entre outras atrações e contam com o apoio e promoção diretos do ministério. Em janeiro de 2012, o METI e a Divisão das Indústrias Criativas (Creative Industries Division) divulgaram um documento intitulado Cool Japan Strategy 86 , trata-se de um diagnóstico da economia japonesa e das oportunidades a serem exploradas em torno da imagem cool que o Japão já desfruta pelo mundo em várias frentes, desde a arquitetura aos mangás. O documento contém indicações do potencial dos produtos de sua indústria criativa pelo mundo, destacando o que eles consideram ter maior apelo em cada região, um exame dos modelos de gestão de uma imagem cool experimentados anteriormente pelo Reino Unido, Coréia do Sul e Estados Unidos, e por fim, um plano de ação com medidas a ser implementadas na promoção do Cool Japan . Mangás e animês entram nesta lista de produtos como "conteúdos", ao lado de filmes, programas de televisão, música, games etc. Apesar do já constatado apelo desses produtos

86 Disponível em: http: Consulta em: 08/06/2012 119

globalmente, sua cota no total de exportações da indústria de conteúdos (inserida na indústria criativa) é de apenas 5% e o volume de ações planejadas pelo governo para ampliar este índice ainda é tímido. Dos 15 projetos adotados pelo METI em julho de 2012 para implementação dentro da estratégia de promoção do Cool Japan , apenas seis deles contemplam o fomento à exportação de algum tipo de conteúdo, sendo que para fora da região asiática este número se reduz a apenas 1, correspondendo à área alvo da costa oeste dos EUA e o Havaí 87 . Uma medida implantada para tentar alterar a atual situação deste setor da indústria criativa, colaborando para a maior difusão de conteúdos mundialmente, foi a criação da Innovation Network Corporation of Japan (INCJ), agência de inovação criada em 2009 fruto de uma parceria público-privada entre o governo japonês e grandes corporações, está se preparando para lançar uma nova empresa, a All Nippon Enterteinment Works Co. (criada formalmente no final de outubro de 2011). Seu papel será atuar como fomentadora para as empresas japonesas deste segmento de conteúdos, bem como intermediadora para a comercialização desses produtos no exterior. Entre suas atribuições estariam a obtenção de direitos de filmes e a coordenação de direitos autorais para outros conteúdos relacionados, o planejamento para a produção em larga escala e o desenvolvimento dos produtos com vistas a um alcance global. A estratégia apontada é lançar os conteúdos da indústria japonesa no mercado mundial através do mercado americano, o qual possui um papel de destaque na circulação e legitimação de elementos culturais que passam a compor um mainstream mundializado de conteúdos, como evidencia o quadro da Figura 20, extraído do documento Cool Japan Strategy (2012).

87 Cool Japan Strategy Promotion Program FY 2012 (adoption opportunities). Disponível em: (em japonês). Consulta em Setembro de 2012. 120

Figura 20. Estratégia de promoção global dos conteúdos japoneses através da All Nippon Entertainment Works Co. Nela evidencia-se o papel estratégico do mercado americano para o acesso ao mercado mundial de conteúdos.

Outro aspecto que aponta para uma mudança de direcionamento da postura política japonesa em relação à adoção e gestão do que é produzido na cultura pop dentro de suas fronteiras, enquanto recurso de soft power, consiste no fato de que ainda que seja notável a preponderância de ações das agências de fomento e promoção cultural japonesas (governamentais ou não) no incentivo e uso das manifestações tradicionais ou clássicas (como o ensino e estudo da língua nipônica) em detrimento de ações voltadas aos produtos do j-pop, aos poucos, políticos e diplomatas japoneses têm buscado observar essa demanda latente gerada por animês, mangás e games e incorporá-la em suas pastas e discursos.

Seiichi Kondo, embaixador do Japão na Dinamarca entre 2008 e 2010, fez uma declaração ao periódico dinamarquês Borsen, em 2009, enfatizando que: "Personally, I prefer classical music and paintings, but I also like anime. Maybe not so much manga or cosplay, but I promote it if the Danes want it" (KONDO apud CHRISTENSEN, 2011) 88 . Este mesmo político japonês, hoje Comissário da Agência japonesa de Assuntos Culturais, também destacou a importância da gestão dos assuntos culturais para a nação na realidade dos

88 "Pessoalmente eu prefiro música clássica e pinturas, mas também gosto de animê. Talvez não tanto de mangá ou cosplay, mas eu os promoverei se os dinamarqueses assim o quiserem" Tradução livre. CHRISTENSEN, Asger R. Cool Japan, Soft Power . Global Asia (jornal online da East Asia Foundation) [2011]. Disponível em: < http://www.globalasia.org/V6N1_Spring_2011/Asger_Rojle_Christensen.html>. Consulta em 13 de Outubro de 2012. A entrevista original de Seiichi Kondo, intitulada "Soft Power cultural é importante na globalização" pode ser visualizada (em dinamarquês, com o título original: Kulturens bløde magt er vigtig i globaliseringen ) no site do jornal Borsen. Disponível em: < http://borsen.dk/nyheder/avisen/artikel/12/3099051/artikel.html?list=1> Consulta em 13 de Outubro de 2012. 121

processos de globalização, afirmando em uma leitura pública em Copenhagen (em 2009) que: "Art and culture play a vital role in globalization. It is a way to get your message across, an effective yet discreet way to create friends - opposite to the alarm and fear resulting from coercion" (apud CHRISTENSEN, 2011) 89 . Essas falas evidenciam ainda os traços de conflito entre o que se produz em termos de cultura pop japonesa na atualidade e o que o pensamento político japonês para a promoção cultural considera adequado adotar como símbolos culturais de seu país no exterior. Como explica Yuji Gushiken:

A produção de uma efervescente cultura pop (música, quadrinhos, moda etc.), no caso japonês, aponta os modos como o país simultaneamente busca os processos de modernização da economia, mas se debate com os evidentes percalços de ver-se também capturado numa experiência de ocidentalização no plano cultural. (GUSHIKEN, et al. 2012)

A cultura pop, que como vimos possui uma dimensão necessariamente industrial de produção e transnacional em seu consumo, exige assim uma determinada logística que deve ser considerada, de acordo com Gushiken, dentro de uma dinâmica maior de modernização dos transportes e da comunicação. Essa dinâmica traria consigo algo de uma experiência ocidentalizante (contemporânea da experiência de modernização) a qual converte-se em um mal-estar cultural e político do Japão no início do século XXI.

Esse dilema político-cultural tende, no entanto, a se enfraquecer diante da necessidade de reordenamento da economia japonesa em um momento de crise estrutural do capitalismo, onde as pesquisas do Ministério da Economia, Comércio e Indústria (Meti) passam a apontar o potencial das indústrias criativas nacionais e seu produto mais visível e difundido, que é a cultura pop, como um dos principais motores econômicos do país atual e futuramente. A necessidade de angariar uma imagem positiva e atrativa para a nação passa a ser uma questão também de sobrevivência econômica, em suas múltiplas implicações.

89 "Arte e cultura desempenham um papel vital na globalização. é uma maneira de passar sua mensagem, uma forma eficaz e discreta para criar amigos - em oposição ao alarme e medo resultantes da coerção." Tradução livre. Referência disponível na nota anterior . 122

4.3 ANÁLISE: O animê como um recurso cultural A produção e o consumo do animê geram fluxos diversos, e mobilizam questões financeiras, culturais e, indiretamente, até mesmo políticas. Expusemos e comentamos parte dessas questões ao longo deste trabalho, explicitando acontecimentos da esfera nacional japonesa e supranacional que influem no modo como o animê enquanto conteúdo do j-pop é desenvolvido e nos modos como essas produções circulam pelo globo. Observando o percurso do animê enquanto produto que se mundializa e buscando entender quais os fatores condicionam um produto cultural a ser percebido como adequado para ações governamentais de Soft Power, levantamos alguns dos desafios impostos ao Estado-nação na situação de globalização que, acreditamos, mostram-se decisivos no processo de eleição dos recursos culturais. Esses desafios dizem respeito a manutenção de uma hegemonia cultural, soberania econômica e legitimidade política naconais. O animê em seus midiapanoramas, finaçopanoramas e ideopanoramas autônomos, criados pelas demandas consumidoras e pela necessidade permanente do capital da busca de novos mercados, gera condições que podem ser analisadas como favoráveis ou desfavoráveis à sua adoção como recurso cultural de gestão das questões nacionais. A capacidade de aproveitar os efeitos desses fluxos para obter soberania, hegemonia e legitimidade depende da habilidade do Estado Japonês de realizar estratégias que potencializem os benefícios que o animê já apresenta como conteúdo mundializado. A esta altura, cabe refletir: que potencial o animê apresenta para colaborar na realização de uma soberania econômica, legitimidade política e hegemonia cultural japonesas? Como vimos, não raros autores, jornalistas, políticos e consumidores destacam a notoriedade desses produtos da cultura pop japonesa contemporânea, no entanto as ações voltadas para seu uso efetivo como uma ferramenta de soft power pelo governo japonês são bastante tímidas. Por que isso acontece? Essa é uma das questões que buscamos ampliar a seguir. Sobre a metodologia de análise, cabem alguns esclarecimentos. Os critérios para a observância do potencial favorável do animê como recurso de Soft Power não foram escolhidos arbitrariamente. Muitos deles surgiram da discussão conceitual sobre as fragilidades do Estado-nação e da teoria do Soft Power realizadas no início deste trabalho, como ficará evidente. Outros foram deduzidos da discrepância entre as parcas medidas de utilização do animê enquanto recurso do Soft Power japonês e o potencial apontado por 123

consumidores, acadêmicos, políticos japoneses e pelo próprio Joseph Nye, como destaca o jornalista e pesquisador Craig Norris:

Joseph Nye Jr, who coined the term 'soft power', sees manga and anime as ideal soft power products - claiming they are 'immediately recognized and widely admired' everywhere. He notes the global success of anime such as Pokemon , such project a 'soft and friendly image' that appeals to children all over the world. Japan's Ministry of Economy, Trade and Industry (METI) itself has identified anime as having a important impact on Japan's image overseas, as well as being the centre of technological innovations and global media trends through increased overseas investment and collaboration (NORRIS, Craig in SUGIMOTO, Yoshio. 2009, p. 237) 90 .

Partindo dessas considerações, foi elaborado um quadro de condições que o animê deve apresentar enquanto recurso cultural para que possa colaborar na gestão das questões relativas a hegemonia cultural, a soberania econômica e a legitimidade política japonesas, individualmente. Muitas vezes as condições se sobrepõem entre uma e outra esfera, o que reflete a natureza correlacionada dos fluxos globais de tecnologia, capital e cultura. Alguns desses conceitos (soberania, hegemonia e legitimidade) foram deslocados de suas tradicionais fronteiras sob a necessidade de adaptação ao contexto real em que o objeto se insere, esses deslocamentos serão explicitados e discutidos em cada caso. Pode-se adiantar, de maneira geral, que nenhum deles refere-se a um fim absoluto. Seria pouco sensato, partindo dos estudos de Ortiz (1994), Appadurai (2005), Nye (2004) e tantos outros autores, admitir que diante dos fluxos globais pelos quais a nação, as localidades e as culturas são atravessadas, pode-se afirmar a busca de uma hegemonia cultural "global", ou a legitimidade "global". Os fluxos globais passam necessariamente por relações de poder que estriam os espaços e criam panoramas não homogêneos ou simétricos, mas sim rizomáticos, resgatando essa importante metáfora de Deleuze e Guattari (1995). Como sistemas abertos, esses fluxos não encontram um cento definido e se espraiam de forma irregular por entre os lugares e os indivíduos. O

90 "Joseph Nye Jr., que cunhou o termo 'soft power', vê mangás e animês como produtos ideais para o soft power - afirmando que eles são 'imediatamente reconhecidos e admirados' por todo lugar. Ele observa o sucesso global do animê Pokémon, que projeta uma "imagem suave e amigável" que agrada à crianças de todo o mundo. O Ministério de Economia, Comércio e Indústria do Japão (METI) identificou ele próprio que os animês têm um importante impacto sobre a imagem do Japão no exterior, bem como é o centro de inovações tecnológicas e tendências globais de mídia através dos crescentes investimentos e colaboração estrangeiros." Tradução livre. 124

que pode ser legítimo para parte dos indivíduos do mundo em determinado contexto, pode não o ser para tantos outros frente a mesma situação. É necessário ainda frisar que o objetivo da seguinte análise não é oferecer um "diagnóstico" e nem esgotar a discussão sobre as condições que permitem às práticas, produtos e manifestações culturais serem capturadas como recurso político e econômico no atual mundo globalizado. Muito pelo contrário, trata-se de abrir um panorama propondo de forma instrumental uma metodologia básica de observação dessa questão. Através desse primeiro ensaio, novos e mais completos estudos devem ser realizados de modo a aprimorar o método de análise proposto, oferecer resultados atualizados e informações específicas relacionadas às particularidades de cada contexto e recurso cultural.

4.3.1 O animê e a hegemonia cultural Como foi discutido no primeiro capítulo deste trabalho, a hegemonia corresponde a um fluxo, uma tendência que dita relações hierárquicas. Sob esta perspectiva, ao analisar o animê em relação a sua potencialidade de realizar ou contribuir para uma hegemonia cultural, há que se considerar que existe mais de uma dimensão possível para interpretação: a hegemonia em relação ao segmento (de animações), e a hegemonia no sentido de colaboração para a realização de uma hegemonia cultural japonesa dentro dos fluxos da mundialização da cultura. Sabemos que a mundialização é em si um processo de força hegemônica, mas seria possível afirmar que em seu interior existe uma cultura hegemônica específica? De acordo com Ortiz, o processo de mundialização da cultura faz desterritorializar uma infinidade de símbolos, produtos e práticas, provenientes dos universos simbólicos nacionais, regionais e étnicos, que se reúnem na forma de uma cultura internacional-popular, partilhada globalmente. O seu alimento é, assim, a diversidade das manifestações que conseguem comunicar-se para além de suas fronteiras originais, reciclando-se constantemente num processo assimétrico e rizomático. Nesse sentido, faz pouco sentido afirmar a hegemonia de uma cultura nacional específica em meio a esses fluxos, no entanto, é preciso reconhecer que esse processo não pressupõe uma igual distribuição de conteúdos e símbolos através do espaço. É notável, por exemplo, como a cultura americana através das suas mais variadas manifestações, consegue participar com destaque nesse processo. Não trata-se de afirmar aqui a improdutiva "americanização" da cultura, mas sim que, no conjunto dos processos de mundialização muitos símbolos e produtos da cultura americana encontram-se 125

inseridos, destacados e amplamente consumidos. Esta, logicamente, é uma questão que passa pela posse dos meios e das mais avançadas tecnologias da comunicação, como satélites de transmissão, cabos, redes de fibras ópticas, entre outros, o que favorece alguns países notadamente. De outro lado temos ainda que a busca por uma hegemonia cultural pode estar direcionada a uma localidade ou região específica e aos seus correspondentes midiapanoramas e ideopanoramas. É o caso do Leste Asiático, onde sobretudo Japão, Coréia do Sul e a região administrativa especial de Hong Kong disputam pela hegemonia da cena pop, não somente através de produtos acabados (animações, filmes, séries e músicas) mas também através de formatos 91 . De acordo com Martel:

Foi declarada uma guerra mundial de conteúdos, é uma batalha nos meios de comunicação pelo controle da informação; nas televisões, pelo domínio dos formatos audiovisuais, séries e talk shows; na cultura, pela conquista de novos mercados através do cinema, da música e do livro; e finalmente é uma batalha internacional de trocas de conteúdos pela internet. Nessa guerra pelo soft power se opõem forças muito desiguais. [...] Em grande medida, e mais uma vez à exceção dos Estados Unidos, as trocas continuam sendo em sua maioria intrarregionais. (2010, p. 445-446)

*

A guerra do audiovisual na Ásia oriental, entre o Japão e a Coréia, entre a Coréia e Taiwan, entre Taiwan e a China, é na realidade uma batalha de formatos tanto quanto uma batalha de programas. E por sinal costuma-se falar de "format trade": o comércio de formatos. (2010, p. 292)

Percebe-se justamente, que nesse processo de busca pela hegemonia cultural as produções audiovisuais têm um papel determinante, pois mais do que outras elas têm o poder de comunicar para além de sua materialidade. Filmes, novelas, animações, seriados e etc. (à exceção dos 'formatos' reconstruídos localmente) conseguem criar panoramas completos (ainda que não sejam cópias da realidade, eles a representam) de modos de vida, valores,

91 De acordo com Martel, um formato é, tomando como exemplo os doramas (séries coreanas), mais que uma idéia e menos que uma série. "Ao adquirir os direitos, um produtor pode refaze a série, remotar sua intriga, os personagens, ao mesmo tempo em que tem liberdade, bem definida no contrato, de adaptá-la localmente para torná-la compatível com os valores locais, com os atores nacionais e que falem a língua do país." (2010, p.292). Não foi constatado o mesmo tipo de comércio em relação às animações. 126

prática e gostos de sujeitos em localidades específicas. As novelas brasileiras constroem uma vida brasileira para estrangeiros do mesmo modo que animês constroem uma vida japonesa em outros cantos do mundo. A música, os alimentos, tudo o que ali está representado é também exposto à atenção e apreciação global, tornando mais fácil o conhecimento e o interesse por outras manifestações oriundas do mesmo local. A busca pela hegemonia cultural, nas variadas dimensões possíveis, é assim uma disputa pelo poder do espaço simbólico e referencial no mundo globalizado. De outro lado, o reforço de uma identidade cultural "nacional" no exterior, através dos fluxos hegemônicos de seus elementos culturais pode contribuir para o fortalecimento de um sentimento de identificação nacional interno. Como vê-se no caso dos EUA e do sentimento nacionalista reforçado tanto para estrangeiros quanto para os próprios americanos através de sua música e cinema mainstream , no qual seus valores práticas, crenças e produtos são divulgados. O reforço de uma identidade nacional faz parte também dos esforços do Estado em gerir etnopanoramas, finaçopanoramas e midiapanoramas que se impõem na situação de globalização. A hegemonia cultural considerada em relação aos fluxos globais, desse modo, tende a colaborar para um sentimento de coesão interno, que por sua vez reafirma o papel do Estado nesse novo contexto político-econômico-cultural em que ele se insere. Observadas essas questões quanto à hegemonia, apontaremos agora condições necessárias para que o animê se aproxime de uma condição hegemônica, tanto a nível de segmento, quanto a nível regional ou de destaque no processo mais amplo da cultura mundializada, analisando os fluxos que ele mobiliza nesse sentido.

• visibilidade e acesso : fluxos mundializados e midiapanoramas de amplo alcance

Como já discutimos, diante dos atuais fluxos de informação, captar a atenção, ou seja, tornar-se literalmente visível torna-se elemento fundamental para qualquer recurso de soft power. O acesso também ter que ser garantido aos produtos, manifestações ou conteúdos promovidos, pois a visibilidade associada a impossibilidade do acesso podem criar um efeito não necessariamente desejado, como veremos com o caso dos animês. Já foi dito no capítulo anterior que o Japão é provedor de 60% de todas as animações exibidas globalmente, o que confirma, numericamente, a visibilidade de que gozam as animações japonesas na atualidade e a hegemonia conquistada em seu segmento. Restam então as questões de como elas conseguiram visibilidade a nível global, e, o que mostra-se mais urgente, através de que 127

meios elas puderam manter-se sob o foco de atenção de grandes segmentos consumidores pelo mundo, tendo em vista que estes renovam-se constantemente. Para observarmos apropriadamente estas questões, iniciaremos com uma breve retrospectiva do processo de exportação dos animês. Sato (2005) nos lembra que as primeiras animações japonesas foram exportadas no início da década de 60 para canais americanos e europeus. No entanto, essas primeiras séries, que tinham como foco principal o público infantil, não despertaram uma atenção especial do púbico e não se fazia uma distinção clara entre as animações japonesas e as demais. Na década de 1970, com as primeiras séries que se dirigiam a um público mais adolescente explorando a temática de ficção científica, os animês começaram a ganhar visibilidade em parte da Europa e da América, criando a primeira base de fãs, a cuja desenvolveu um midiapanorama paralelo de distribuição e consumo através dos fandons. Quando, em uma estratégia eficiente de marketing, o filme Akira foi lançado simultaneamente em vários cinemas do mundo, essa base de fãs e outros que se somaram então a eles criaram o primeiro fluxo global de atenção às animações japonesas. A partir daí uma percepção de japonidade associada a esses conteúdos acompanhada de um certo "exotismo" (que permeia ainda hoje o imaginário coletivo global quando evoca-se a imagem de Japão), conduziu ao reconhecimento geral da diferença entre estas e as animações até então hegemônicas. A intensidade e a violência plástica de Akira também contribuiu para que as primeiras grandes polêmicas em torno dos animês fossem levantadas no Ocidente. E os aspectos negativos também atraem atenção. O que é preciso notar até aqui é que, nesse primeiro momento de reconhecimento da singularidade e da abertura de um fluxo de visibilidade para as animações nipônicas, a imagem de um Japão que despontava como potência econômica e tecnológica veio justamente a corroborar suas produções que se centravam em epopeias espaciais e nos perigos de um futuro onde a tecnologia eletrônica seria inseparável do cotidiano humano. Desse modo, pode-se ponderar que o status do Estado japonês na época legitimou em alguma medida todo um conjunto de produções culturais do país no exterior naquele período. A proximidade do acidente nuclear de Chernobil (1986) quando o assombroso Akira (1988) foi lançado não pode também deixar de ser levantada como uma hipótese para o destaque que o filme recebeu e ajudou a transferir para os demais animês que o seguiram nos canais de TV na década seguinte. Outra questão fundamental para a visibilidade é o acesso. A visibilidade se dá através do acesso dos indivíduos às manifestações, produtos, conteúdos e símbolos. O aumento da 128

visibilidade dos animês acontece conforme essas produções tornam-se mais acessíveis aos indivíduos. No caso específico dos animês, o acesso é multiplicado não só pela lógica da demanda e oferta do mercado, mas fundamentalmente pelo trabalho subalterno dos fãs que tomam a dianteira na criação de um circuito rizomático e autônomo de compartilhamento desses conteúdos. Isso é, em parte uma resposta frente às dificuldades que o mercado externo legal têm de lidar com as animações japonesas. Algumas vezes por desconhecimento da sua lógica de produção, outras por buscarem apenas as animações de maior sucesso comercial no Japão (quase todas pertencentes a demografia shounen , destinado a garotos adolescentes), as empresas licenciadas nos países do Ocidente quase sempre enfrentam críticas diversas ao exibirem animês. Parte das críticas vem dos pais e das alas mais conservadoras das sociedades que, ao se depararem com as produções shounen em programas matinais infantis, entendem que os animês, genericamente, são violentos e eróticos demais para o público infantil (o único socialmente aceito fora do Japão). Outra leva de críticas vem de parte do público que, muitas vezes já tendo contato com as animações integrais via fansub (que são as organizações de fãs em torno da atividade de legendagem e distribuição gratuita desses conteúdos), abomina quaisquer edições, cortes ou censuras feitas para que o desenho seja levado ao ar (lembrando que muitos países possuem códigos regulamentadores para os conteúdos televisivos, como é o caso do Brasil e dos Estados Unidos). O segmento do público que não conhece as animações originais para ter uma base de comparação torna-se assim o público mais receptivo a essas produções licenciadas 92 . Ante essas e outras dificuldades, que vão desde a falta de informação em língua inglesa nos sites das produtoras de animação japonesas (o que dificulta as negociações com outros países) até a falta de periodicidade das emissoras em outros países (lembrando que os animês contam histórias com começo, meio e fim; as reprises e atrasos quebram a narrativa e comprometem a compreensão da história), o mercado legal de animês no exterior demonstra não ter se fortalecido o suficiente para suprir a demanda dos consumidores, muitas vezes optando por animações locais já elaboradas com foco no público infantil. Diante disso o acesso aos animês por vias transversais tornou-se um dos fluxos majoritários de visibilidade,

92 Para mais informações sobre as questões de censura nos animês consultar BRITO, Quise G. Comunicação e mundialização no consumo do animê: Japão - EUA - Brasil. Ver referências. 129

sobretudo com o advento das novas tecnologias de edição de vídeos, som e da internet banda larga (a qual difunde-se por boa parte do mundo em meados de 2001) Assim, o acesso, mesmo tranversal, é um dos fatores fundamentais a visibilidade. Todavia, ser acessível não garante que as animações mantenham-se populares. A questão sobre como os animês tenham conseguido manter diversos midiapanoramas pelo mundo e sustentar um fluxo permanente de atenção sobre o que sai do Japão em termos de animação e cultura pop depende de outros fatores. Para a abertura dos primeiros canais de visibilidade para os animês, o fator preponderante foi a necessidade mercadológica das empresas japonesas de exportarem suas produções, reflexo da lógica capitalista de permanente busca por novos mercados consumidores. A criação dos primeiros fandons anos mais tarde irá influir nesse processo, porém só vai revelar-se uma fator determinante apenas anos mais tarde, A manutenção dos fluxos de visibilidade, por outro lado, dependem muito mais da iniciativa individual e das questões que envolvem o gosto. Teceremos algumas considerações sobre esta questão do gosto, complexa e muitas vezes intangível, em um tópico adiante.

• apelo ao gosto: carga afetiva associada aos conteúdos, produtos e manifestações culturais

Como recurso de soft power, um produto ou manifestação cultural deve possuir apelo a um gosto internacional-popular. Sem este apelo, mesmo criativas e incisivas ações de promoção e fomento tendem a ser insuficientes na obtenção de uma hegemonia cultural. As séries de animês e os filmes animados são exibidos atualmente em 112 países, alcançando 87,2% da população global 93 . O consumo através da internet dificilmente pode ser mensurado da mesma maneira, mas é possível conseguir alguns números que podem nos dar uma dimensão do seu alcance. Numa pesquisa rápida ao Google, por exemplo, a palavra "anime" encontrou 973 milhões de resultados, enquanto que a palavra "disney" encontrou 608 milhões.

93 Segundo informação de pesquisa realizada pela FinNode/ Finpro Japan sobre as indústrias criativas japonesas, em outubro de 2010. A FinNode é uma rede global de organizações de inovação finlandesa que opera nos Estados Unidos, China, Rússia, Japão e Índia. A Finpro é a Organização Nacional de Desenvolvimento de Internacionalização, Comércio e Investimento da Finlândia. Esta pesquisa sobre as indústrias criativas japonesa teve a participação dos dois órgãos sob a consultoria de Masahiro Kimura. Disponível em: Consulta em: 10 de Janeiro de 2013 130

Somente em língua portuguesa, identificamos para esta pesquisa um total de 62 fansubs ativos (alguns legendam não só animês como também doramas coreanos, séries, filmes e etc.) 94 . Pelo caráter rizomático desses agrupamentos de fãs, é possível que novos fansubs tenham surgido entre a coleta de dados e o momento atual, bem como outros podem ter-se desfeito. O interessante quando se observa o consumo através da internet é justamente que ele funciona por lógicas outras além da centralização, a organização formal ou as leis de mercado. A socialidade é um elemento fundamental nessas práticas, e as relações desmancham-se e se refazem permanentemente em torno das práticas de compartilhamento e consumo de conteúdos, símbolos, narrativas e representações imagéticas. Realizar uma análise semiológica ou psicológica do gosto não é nosso objetivo para este trabalho, porém podemos levantar alguns pontos de reflexão para o caso dos animês. Contata-se, através de sua popularidade, que os animês são produções que caíram nas graças de um gosto internacional-popular, sobretudo jovem. Entre as características mais recorrentes encontradas na literatura consultada sobre animês para justificar a alta penetração que esses conteúdos tiveram fora do Japão em tão curto período de tempo e ante a concorrência de estúdios mais solidamente estabelecidos (Disney e Hanna Barbera, além de outros estúdios que foram criados mais recentemente como Pixar, Dreamworks, Image, etc.) temos a segmentação das produções e o incrível volume de animações disponíveis no mercado. Gilles Poitras (2008) explica que:

Not only has anime diversified, but the industry is also producing a much larger amount of material as a result of a larger audience. Part of this growth was an increase of gender-specific and niche-specific genres. [...] However, there is not just gender-specific programming, as many shows can appeal to both men and woman. Shows aimed at the niche markets, which are often released in OVA format, include every genre that has been made into live-action cinema (POITRAS in MacWILLIAMS, 2008, p. 60) 95 .

94 A listagem foi feita através do buscador do Google em 23 de Março de 2012, sendo que os 62 fansubs elencados encontravam-se ativos nesta data. A lista completa segue como apêncidece nesta pesquisa. 95 "Não só o animê se diversificou, mas a indústria também está produzindo uma quantidade muito maior de material, como resultado de um público maior. Parte desse crescimento foi o aumento das produções destinadas a atender gêneros e nichos específicos. [...] No entanto, não há apenas produções para gêneros específicos como também muitas que apelam para ambos, homens e mulheres. Animês destinados à nichos de mercado, que muitas vezes são lançados no formato OVA, incluem todos os gêneros que têm sido feitos no cinema live- action." Tradução livre. 131

No Brasil, por exemplo, essa variedade no segmento de animações (acessível sobretudo através da internet, posto que nos canais de televisão o que vigora é a lógica ocidental de que animações devem pertencer ao terreno na infância) veio a preencher "a lacuna que havia entre as produções infantilizadas dos programas matinais e as novelas, jornais e minisséries, direcionados ao público adulto, oferecendo entretenimento ao público jovem pensado para o público jovem" (BRITO, 2009, p. 72). Em outros países ocidentais a situação é similar, a lacuna existente entre as produções destinadas ao público infantil e às destinadas ao público adulto tem sido uma realidade facilmente observável. Mais recentemente, após a década de 1990, seriados voltados ao público jovem tem tornado-se mais frequentes em diversos canais pelo mundo. O Disney Channel, por exemplo, veicula hoje em sua grade tantos seriados jovens (como Hannah Montana, Sunny entre Estrelas, Zack e Cody) quanto animações e programas infantis. A Rede Globo, no Brasil, mantém desde 1995 a série Malhação para atingir o público jovem. As redes brasileiras Band, Record e SBT também têm investido em novelas voltadas para este público, como Floribela (exibida pela Band em 2005), Rebelde (novela mexicana exibida pelo SBT entre 2005 e 2006) e Rebelde (versão brasileira da original mexicana exibida entre 2011 e 2012). Todas estas séries e novelas citadas têm em comum o fato de conseguirem grandes audiências, seja no México, no Brasil, nos EUA bem como para os demais países em que são exibidas. A rede MTV é outro bom exemplo, pois trata-se de um canal inteiramente voltado a este segmento, com programações adaptadas para os gostos e língua locais em mais de 120 canais espalhados por 167 países 96 . Este é um forte indício do espaço que ainda tem para ser preenchido com produções audiovisuais pensadas para o gosto do público jovem. Os animês, tendo o diferencial de serem animações e não seriados ou novelas, surgem como uma diversificada e abundante alternativa nesse sentido, conseguindo atrair e manter consumidores em distintas partes do globo. Uma hipótese que pode ser considerada é que, devido a variedade e segmentação dessas produções, é possível também que os consumidores consigam migrar de estilos e categorias conforme se tornam mais velhos. Existem outros fatores que podem contribuir para a popularidade global dessas animações, como o apelo das narrativas de caráter universal (sobre a liberdade, o preconceito, o poder, os sentimentos humanos como a inveja, a fúria, o amor, a solidão, o medo etc.), apontado por Sonia Luyten (2000), e a sedução do contraste entre tradição X modernidade,

96 Disponível em: Consulta em 04 de Janeiro de 2012 132

que encontra seus fundamentos no lado mais exótico de um país que parece nunca ser (ou querer ser) plenamente desvendado pela ótica estrangeira. Ortiz (2000) entende que essa ideia que paira no senso comum planetário, e que é reforçada pela literatura nihonjiron 97 , surge da necessidade de retomar a identidade nacional no Japão pós-guerra e acaba criando uma mitologia em que a cultura nipônica passa a ser vista como algo excepcional e unívoca, harmoniosa e equilibrada, e segundo a qual "apenas os japoneses conseguem entender o Japão" (TSUTUMI apud ORTIZ, 2000, p. 23). Para Ortiz, essa ideia será utilizada pelas elites e pelo Estado Japonês em suas negociações com o exterior, aproveitando-se de uma mística na qual o Japão permanece envolto. Essa mesma mística envolve as produções do pop japonês: ao mesmo tempo em que denotam modernidade e tecnologia, entregam ao público um ideal de tradição e espírito único japonês, caracterizado por sua "sinceridade emocional" (LUYTEN, 2000, p. 70). O que é importante perceber aqui é que existem determinadas forças narrativas, logísticas e midiáticas latentes que podem ser relacionadas à construção de um gosto internacional-popular em torno das animações japonesas. A mídia, ao mesmo tempo em que estrutura é estruturada por "dinâmicas afetuais" (ROCHA in BACEGGA, 2008, p.124) e problematizar o gosto permite analisar não só essas dinâmicas quanto as questões que emergem da produção de sentido articulada ao consumo cultural.

• identidade reconhecível: carga simbólica associada a uma origem e ao segmento

Como destacou Nye ao falar sobre a grande potencialidade do animê e dos mangás como fonte de soft power, o reconhecimento de uma "identidade" (associada a uma origem geográfica) mostra-se um fator fundamental para a adoção de um produto cultural enquanto recurso de soft power de determinada localidade, grupo ou nação. Essa associação é o que garantirá que os benefícios gerados em termos simbólicos, afetivos e políticos sejam vinculados ao promotor das ações de soft power (carros seguros, econômicos e confortáveis, por exemplo, tendem a associar-se na percepção do consumidor não apenas à sua marca mas também a um polo tecnológico geográfico). Quando foi discutido, no terceiro capítulo, que o processo de desterritorialização irá influir na percepção de origem das manifestações e produtos, demonstrou-se que na

97 De acordo com Ortiz, trata-se de "um conjunto de textos, romances, poesias, análises sociológicas, escritos de marketing cujo intuito é discutir a japonidade." (ORTIZ, 2000, p. 25) 133

atualidade diversas animações são produzidas fora do Japão com a mesma estética e gags visuais dos animês. Soma-se a isso o fato de que no processo de desterritorialização, independente da existência de concorrentes similares, qual a garantia que se pode ter de que nos processos de consumo globais haja uma devida associação das manifestações e produtos culturais à sua origem geográfica? (Afinal, os famosos chapéus-panamá são, de fato, fabricados no Equador) Estes pontos certamente colocam riscos à questão do reconhecimento de uma identidade dos animês em relação ao Japão, no entanto, há alguns fatores que indicam que a percepção de uma origem nipônica prevalece em suas animações. O primeiro é que, como foram pioneiros em seu estilo, ao tornarem-se globalmente populares em meados de 1990 os animês acabaram nomeando todo o conjunto de produções que vieram ulteriormente, tanto que fala-se em animê americano, animê francês, japanse influenced animation , etc. Logo, a referência é em relação a um "original" animê, seguido de produções semelhantes em alguma medida. Segundo, que mesmo ao se desterritorializarem (e isso pode implicar uma série de cortes e adaptações, no caso da comercialização legal), a narrativa singular e a padronização estética dessas produções permanecem como fatores distintivos em relação às demais presentes no mercado. Os nomes caracteristicamente japoneses, a escrita, as paisagens, as vestimentas e alimentos são recursos que realizam links com os conhecimentos prévios, superficiais ou não, que a maioria dos indivíduos têm sobre o Japão. Como já destacava Tsutomu (2008), esta terceira geração do japonismo foi precedida das que apelavam para os traços mais tradicionais da cultura nipônica, como a cerimônia do chá, as gueixas, as pinturas, o estilo arquitetônico, quimonos, samurais, jardins zen, entre diversos outros. Muitos desses elementos já fazem parte de uma memória internacional-popular (ORTIZ, 1994), são componentes da modernidade-mundo. Em alguma medida, as animações japonesas irão resgatar esses traços já cotidianos de uma japonidade mundialmente representada e idealizada que reforçarão sua identidade nipônica e atratividade. Não menos importante é considerar que boa parte (e talvez seja mesmo a maior delas) do consumo do animê fora do Japão hoje se dá através da internet (legalmente em canais oficiais ou através da pirataria). Na web, a associação dos animês com uma imagem de Japão não depende nem mesmo da posse prévia de elementos da memória internacional-popular que 134

evoquem o país do Sol levante 98 , pois a avalanche de informações e referências à uma "fonte" nipônica é inescapável, oferecendo elementos abundantes para a construção de novas narrativas e ideais de japonidade, que articulam-se logicamente às já preexistentes na mídia. Os títulos das séries de animês são encontrados nas mais diversas línguas acompanhados do título original em japonês, a sazonalidade da liberação de novos episódios acontece em relação a exibição dos mesmos no Japão, centenas de milhares de tópicos correlacionados aparecem em cada busca por um animê qualquer na web, apresentando não só outras animações do estilo como links para cursos de artes marciais, língua japonesa, passeios turísticos entre uma infinidade de assuntos. É necessário destacar que a identidade também se refere a um determinado nível de coerência interna que permite agrupar os conteúdos em um mesmo segmento. Essa característica de conjunto é importante para reforçar uma identidade das produções enquanto tal e garantir que uma animação seja reconhecida como um animê ao ser assistido. Os animês, como discutimos no capítulo anterior, compartilham uma série de características relativas não só a estética mas também a um modo específico de construção cênica, a um conjunto de dispositivos de comunicação visual (enormes gotas de suor, nuvens negras, sombras faciais, balões, plaquetas explicativas e etc. - traços bastante difundidos nos quadrinhos em geral, não somente japoneses, mas bastante raros em outras animações), a uma temporalidade das histórias e personagens entre outros aspectos comuns. Este também pode ser apontado como uma fator relativo à economia da atenção, pois a identificação das animações colabora para manter um fluxo de visibilidade sobre o próprio conjunto desses conteúdos e não apenas para um título específico. Diante da diversidade de títulos disponíveis hoje e das variadas vias pelas quais ele chega a um consumidor qualquer no mundo, tornam- se problemáticas as formas de aferição tradicionais sobre este fenômeno, posto que os números podem apresentar apenas uma rasa aparência das demandas reais de consumo e circulação.

98 Considere, por exemplo, os pequenos consumidores de menos de 10 anos, que cada vez mais cedo desenvolvem autonomia com os meios de comunicação digital e não necessariamente possuem um conhecimento acerca do Japão e de suas produções. 135

• capacidade de autopromoção

Uma última condição que identificamos e que se impõe a um potencial recurso de soft power no objetivo de conseguir hegemonia cultural (em seu segmento, em uma determinada região ou para a contribuição na abertura de fluxos de visibilidade para demais elementos do local que representa) é a capacidade de autopromoção que esta manifestação, conteúdo ou produto deve apresentar. Isso significa que ela não deve depender unicamente das ações governamentais para atrair um fluxo de atenção e criar vínculos simbólico-afetivos com o consumidor. O potencial de atratividade de uma manifestação cultural passa justamente por essa autonomia, afinal, medidas abertas e deliberadas de promoção podem reerguer antigas e superadas questões a respeito do imperialismo cultural. O que é interessante perceber aqui a respeito dos animês é que essa capacidade de autopromoção, facilmente observada nas dinâmicas de seu percurso de difusão global, passa não necessariamente pelas partes diretamente envolvidas em sua produção, que tradicionalmente são as mais interessadas, mas sim pelas partes diretamente interessadas em seu consumo, o que, destacamos, é uma característica marcante do animê enquanto conteúdo mundializado. A criação dos fluxos de visibilidade e a adoção desses animês por uma comunidade transnacional de consumidores se dá paralelamente a longa recusa do Estado japonês em assumir que o que construía a nova ponte do Japão moderno com a com outros países passava justamente pelas manifestações pulsantes e, em certa medida, "ocidentalizadas" de sua cultura pop. A capacidade de autopromoção do animê está diretamente ligada aos rituais de socialidade que essas práticas criam entre os indivíduos que dela participam. Hirata ensina que:

Enquanto a sociabilidade moderna é caracterizada pelas relações ditas formais e convencionais de se pertencer e de conviver em sociedade, a socialidade contemporânea está intimamente ligada às efervescências, aos agrupamentos urbanos e às relações banais do cotidiano. O vitalismo posto em prática nas festividades, nos rituais, nos momentos de estar junto à toa dos jovens do cenário urbano se transfere para o ciberespaço, onde pessoas conectadas de qualquer parte do mundo engendram experiências coletivas e criam práticas que escapam ao controle social. (HIRATA, 2012, p. 117) 136

Desse modo, o consumo dos animês através das práticas de socialidade virtual, cria outros panoramas de reconhecimento, construção de identidade e afirmação do gosto para os indivíduos. Essas ritualidades que emergem da congregação em torno do consumo do animê e extrapolam para outras esferas de ação social e produção de sentido também são atrativos fundamentais para essas produções. Como destaca Rocha ao comentar os estudos sobre o gosto de Eric Landowsky:

Assim, declarar o gosto é afirmação de identidade e estratégia de visibilidade, tomando parte dos nossos rituais de encontro societal, de identificação e demarcação da diferença (ROCHA in BACCEGA, 2008, p. 124)

Os agrupamentos de fãs que se reúnem colaborativamente trabalhando nos fansubs, criando fóruns virtuais de debate e promoção de seus títulos favoritos, páginas de homenagem nas redes sociais, organizando encontros presenciais, shows, concursos, mobilizando-se em torno de suas afinidades, multiplicam os fluxos de visibilidade dessas animações e os midiapanoramas onde elas se inserem. Os espaços de afinidade tem o potencial de criar " pontes que unem as diferenças de idade, classe, raça, sexo e nível educacional; porque as pessoas podem participar de diversas formas, de acordo com suas habilidades e seus interesses" (JENKINS, 2009) É importante ressaltar que o trabalho colaborativo de compartilhamento e difusão dos animês através da internet consiste em uma forma não planejada (e, para as detentoras dos direitos, não desejada) de promoção desses conteúdos. No entanto, para fins práticos, ela mostra-se mais eficiente do que qualquer medida até então tomada pelos próprios estúdios ou pelo Estado japonês. Esta tendência é global e vale para uma gama de outros produtos: músicas, filmes, novelas, seriados; é raro e quase desconcertante descobrir que algum deles não se encontra disponível para download gratuito via internet. O pioneirismo dos agrupamentos de fãs em torno da legendagem dos animês revela não só uma tendência que aponta para a ascensão do amador (munido da necessária tecnologia) como produtor autônomo e independente de editoras, estúdios, gravadoras e majors de mídia, como também revela, mais uma vez, a potencialidade das animações nipônicas em preencher uma lacuna midiática para o consumo juvenil, estabelecendo-se desde então como a quintessência do cool para um público que espraia-se por todo o planeta. 137

4.3.2 O animê e a soberania econômica Foi discutido no primeiro capítulo que apesar de o fato de se utilizarem elementos do campo cultural como recurso não consistir em uma novidade, um dos elementos de distinção das práticas realizadas no passado e atualmente é que hoje os recursos culturais são levados em consideração como ferramenta para o desenvolvimento econômico (YÚDICE, 2004). Esse estreitamento do campo da cultura com o mercado se dá, segundo Yúdice, em face da globalização que "pluralizou os contatos entre os povos e facilitou as migrações, problematizando assim o uso da cultura como um expediente nacional" (2004, p. 28), e também diante do reconhecimento das falhas nas estruturas de capital precedentes, o que acarretou em uma política de investimentos diretamente na sociedade civil, e por consequência na cultura. Para este autor, a conveniência da cultura, em seus diversos aspectos, graus e manifestações, é uma característica óbvia da vida contemporânea, e carece de esforços analíticos. A cultura pop mainstream , como o ponto mais delgado entre as esferas econômicas e culturais, o que foi visto no segundo capítulo, revela o papel central da cultura de consumo nesse processo, sobretudo aquela veiculada pela mídia. Martel (2010) destaca este aspecto ao dizer que:

[...] as questões colocadas por estas indústrias criativas em termos de conteúdos, de marketing ou influência [...] permitem entender o novo capitalismo cultural contemporâneo, a batalha mundial pelos conteúdos, o jogo dos atores para ganhar soft power, a ascensão das mídias do Sul e a lenta revolução que estamos vivendo com a internet. (2010, p. 16-17)

Já foi discutido também que, sobretudo na situação de globalização, a atuação política desprovida da capacidade de gestão da economia nacional e de suportes tecnológicos competitivos torna-se comprometida. Como destaca Nye (2004), uma economia fortalecida (o tanto quanto possível diante dos finaçopanoramas e etnopnoramas que escapam à nação) pode ser tanto uma fonte de hard power como de soft power, dependendo das estratégias usadas. A permanente busca pela soberania econômica, a qual, reiteramos, só pode ser apreendida hoje sob o prisma de um constante processo e não como um fim em si, depende cada vez mais das interações com as demais esferas da vida social. 138

A soberania econômica nacional, prevista na Carta de Direitos e Deveres Econômicos dos Estados 99 , tem como elementos centrais a defesa da produção nacional, a conquista de novos mercados no exterior, com o consequente crescimento da participação do país no mercado internacional, o equilíbrio das contas externas, e a geração de uma tecnologia nacional competitiva 100 . A partir dessas prerrogativas, da observância das dinâmicas concernentes à cultura de consumo nos processos de mundialização e globalização, e da crescente importância do setor criativo para as economias nacionais, buscou-se elaborar um quadro de pontos básicos para que um recurso cultural, enquanto elemento de soft power, possa colaborar na obtenção da soberania econômica. Cabe pontuar: ao nível mais elementar das relações econômicas, por que se compra o quê e de quem , passa não só pela lógica de custo e benefício como pelos meandros das relações de poder engendradas pela atração. No atual momento em que a gestão econômica se encontra como nunca antes atrelada, em múltiplas mediações, à cultural, cabe a questão: como um recurso cultural pode colaborar nesse processo? Veremos que, como qualquer produto cultural, as animações japonesas respondem aos seus próprios fluxos e às necessidades de sua indústria e circulação, não estando sob o controle ou muito menos comprometida com os objetivos governamentais. Essa distância entre o que o promotor das ações de soft power deseja e as mobilizações que seus recursos de fato e autonomamente apresentam, consiste no grande desafio de manejo e de escolha dos meios mais efetivos, contextualmente, para obter determinados fins. Propõe-se aqui aspectos nodais para um recurso cultural mobilizado no intuito de colaborar com a soberania econômica nacional. Diferentemente dos pontos levantados em torno da hegemonia cultural, estes não constituem necessariamente condições interligadas, cada um deles é capaz, autonomamente, de contribuir para a soberania econômica do Estado. Exporemos estes pontos a seguir relacionando-os aos fluxos e mobilizações geradas em torno dos animês.

99 Proclamada na assembleia geral da ONU em 1974, como instrumento para o estabelecimento de uma nova Ordem Econômica Internacional após a Segunda Guerra Mundial. Para mais referências sobre a Carta e sobre a noção de soberania econômica consultar DOLZANE, Harley F. O papel da soberania econômica num contexto de globalização , e, MURTEIRA, Mário. Uma nova ordem econômica? . Ver bibliografia. 100 NOBLE, Claudio. Soberania econômica e a OMC. Disponível em: Consulta em 06/01/2013. 139

• competitividade econômica externa

A competitividade econômica externa de um recurso de soft power pode ser sintetizada como a capacidade de apelo ao gosto internacional-popular acrescida da capacidade de obter retorno financeiro. Isso pressupõe que o produto ou conteúdo, mais do que simples apelo ao consumo (que pode ocorrer por vias transversais e não lucrativas), tenha também apelo quanto a sua comercialização. Logicamente as manifestações culturais pop, por sua direta relação com o campo do entretenimento e do consumo, tem mais condições de oferecer este tipo de benefício do que manifestações culturais menos atreladas (ou indiretamente atreladas) ao mercado e ao mainstream. Por esse motivo os aspectos aqui elencados não podem ser considerados, todos, condicionais para que um mesmo recurso cultural contribua para a manutenção da soberania econômica, já que a dinâmica que envolve a cultura na mundialização não é homogênea, os midiapanoramas criados por diferentes manifestações culturais são de naturezas distintas. Esclarecida esta questão, podemos considerar que quando se trata de relações econômicas o objetivo não pode ser de outra natureza que não o lucro, e, desse modo, tem de ser considerados fatores como custos de produção, distribuição, entre outros. Iremos observar aqui justamente alguns aspectos sobre a competitividade dos animês no exterior, tendo em vista sua penetração no mercado global, e os problemas atuais que a indústria enfrenta nesse sentido. A indústria de animação japonesa sempre conviveu com os percalços da carência de recursos e a busca pelo barateamento dos custos de produção é uma constante. Algumas das características mais latentes dos animês, como a técnica de limited animation 101 , são fruto justamente da necessidade dos estúdios de lidar com orçamentos enxutos (SATO, 2009) e com a fragilidade de canais de financiamento, como foi visto no terceiro capítulo deste estudo. Quando a atividade começou a ganhar contornos de indústria na década de 1960, os profissionais eram treinados enquanto produziam, trabalhando extenuadamente em tarefas mais simples até adquirirem experiência para a realização de atividades mais complexas.

101 O processo de animação limitada,como já explorado no terceiro capítulo, tem algumas características que visam economizar custos no processo criativo. Através dela, com menos quadros por segundo em relação animação clássica (chamada animação em células, usa 24 ou mais quadros por segundo) busca-se transmitir a ilusão do movimento. Na animação japonesa, além da redução de quadros, reutiliza-se quadros com cenários, usa-se também cenários abstratos que podem ser repetidos diversas vezes. Há os loopings de animação, que é a repetição de todo um conjunto de quadros, e também utiliza-se a técnica de animar apenas parte dos pernosagens (só a boca, ou só o braço, etc), o que permite reaproveitar ao máximo quadros já desenhados. 140

Com a crescente demanda, cursos profissionalizantes para animadores começam a ser criados no país para suprir a indústria com profissionais qualificados, os quais eram necessários para ampliar o número de produções disponíveis no mercado. Porém, isto não se mostrou suficiente. Com a intensificação dos fluxos globais de capital e mão de obra, o deslocamento de etapas do processo de produção dessas animações para países onde a mão de obra é mais barata torna-se uma forte tendência no setor, tendo como resultado imediato não só a redução de custos dos estúdios japoneses como o aumento da competitividade financeira dos animês no exterior. Sato explica que:

Para atender a grande demanda de mão de obra especializada foram criadas no Japão as animê gakuins (faculdades de animação). Únicas no mundo, essas especializadas exigentes escolas técnicas [...] oferecem cursos de dois anos em período integral e prática em estúdio para futuros animadores. Mas mesmo a atividade do animê está sendo afetada pela globalização. Nos últimos anos as produtoras japonesas têm terceirizado cada vez mais seus trabalhos com estúdios na Coréia do Sul e em Taiwan, onde a mão de obra é mais barata. (2007, p.37)

Essa prática, apesar de ter contribuído num primeiro momento para o fortalecimento da indústria de animações no Japão e sua expansão exterior, acabou gerando um problema a médio prazo, que é a diminuição de profissionais capacitados de animação no país. A concorrência com a mão de obra mais barata do exterior, além de diminuir a demanda interna por profissionais também ajuda a puxar o preço dos salários dos animadores para baixo no Japão. De acordo com dados de 2008 da Japan Animation Creators Association o salário anual médio de um animador com até um ano de experiência é de apenas 23.870,00 R$ (o equivalente a menos de 2,000 mil reais por mês), muito abaixo do praticado em outros setores da indústria japonesa, o que tem levado muitos artistas a migrarem para o setor de jogos ou a buscarem trabalho em outros lugares, caracterizando uma fuga de potenciais talentos para o 141

exterior 102 . Outros fatores como a alta carga horária de trabalho (que pode chegar a 100 horas semanais) contribuem nesse sentido 103 . Com a terceirização de parte do serviço, mesmo os grandes estúdios congregam pouco animadores, como é o caso do famoso Studio Ghibli, um dos maiores estúdios de animação do país e que possui menos de 200 empregados. Já os estúdios de pequeno e médio porte contam com staffs bem mais reduzidos. As estimativas mostram que atualmente, apenas entre 4 a 5 mil artistas trabalham com animação no Japão, e o número de séries criadas caiu quase pela metade entre 2007 e 2010 104 . Esse panorama já havia sido identificado em 2005, no relatório da Organização Japonesa de Exportação e Comércio (JETRO): destacou-se que a terceirização provocou ainda outro fenômeno que foi a crescente qualificação da mão de obra estrangeira que agora oferece grande concorrência aos animês, sobretudo no interior da região asiática:

Moreover, South Korea, which previously served as a subcontractor for Japan, has been laying plans for a national policy to promote its domestic anime industry as a result of rapidly accumulating expertise in recent years. Almost all animation on South Korean television used to be from Japan, but now about 30% to 40% is produced locally. It is feared that the hollowing out of Japanese production sites and the concomitant increase in the competitiveness of other countries and regions is undermining the foundations of Japan’s anime industry. 105

Há ainda que considerar que, internamente, com o declínio nas taxas de natalidade 106 e a consequente diminuição do mercado infantil de animação, muitas produtoras têm se

102 Dados compilados em periódicos japoneses e no relatório de 2005 da Japan External Trade Organization. Os valores em Ienes são de 1.100.000 anuais (um milhão e cem mil yenes). Para exemplo, ver: ONDA, Yasuko. New initiative foster young anime talent. Daily Yomiuri Online [12 de Novembro de 2010]. Disponível em: Consulta em 03 de Janeiro de 2013.

103 HAYASHI, Yuka. Discontent Seeps Into Japan's Anime Studios. The Wall Street Journal [21 de Novembro de 2009]. Disponível em: Consulta em: 03 de Janeiro de 2013 104 NAGANO, Yuriko. Lines are being redrawn for Japan's Anime Industry. Los Angeles Times [19 de Agosto de 2010] (meio eletrônico). Disponível em: Consulta em 04/01/2013. 105 Japan Animation Industry Trends. JETRO: Japan Economic Monthly [Junho de 2005]. Disponível em: < http://www.jetro.go.jp/en/reports/market/pdf/2005_35_r.pdf> Consulta em Março de 2009. 106 Proporção de população idosa no Japão é a mais alta do mundo. UOL notícias/Reuters [30 de Junho de 2006]. Disponível em: < http://noticias.uol.com.br/ultnot/reuters/2006/06/30/ult729u58059.jhtm> Consulta em 05 de Janeiro de 2013. 142

concentrado nos títulos voltados para adolescentes e jovens adultos (os rankings de animês mais populares no Japão comprovam esta tendência, com a total prevalência dos títulos shounen e shoujo ). E são justamente estes títulos que encontram mais dificuldades de comercialização no Ocidente, posto que o público-alvo considerado pela maior parte das licenciantes ocidentais ainda é o infantil, a despeito da lacuna midiática para o público jovem, sobretudo no segmento de animações. A dificuldade das empresas japonesas em abraçar novos modelos de negócios online para aproveitar a imensa demanda que o animê possui mundialmente e que escapa das vias tradicionais de comercialização (a televisão e os cinemas, especialmente), também é um dos fatores que tem contribuído para este momento de instabilidade na indústria, apontam jornalistas como Roland Kelts e Takamasa Sakurai (correspondentes do respeitado periódico nipônico Daily Yomiuri online). Iniciativas como a do bem-sucedido portal Crunchyroll (fundado em 2006) 107 , que negocia e disponibiliza online centenas de animês, dramas coreanos e títulos de live-action, cobrando uma pequena mensalidade apenas para serviços premium (que incluem acesso permanente a qualquer conteúdo, posto que eles ficam disponíveis para exibição grátis apenas por um período determinado), exigiram para sua consolidação que o seu representante, Kun Gao, passasse cerca de 1 ano no Japão negociando as licenças e direitos autorais. Este modelo desenvolvido mostrou-se bastante eficiente, tanto que a TV Tokyo, a menor das cinco emissoras japonesas, investiu 750 mil dólares por uma participação no crunchyroll em 2010 108 . Yuji Nunokawa, presidente de outro conhecido estúdio de animação, a japonesa Co. , declarou em recente entrevista que: "Nós raramente fazemos um animê pensando no público-alvo no exterior. Nossas produções apenas acabam por se tornar hits fora do Japão [...] Até recentemente, as empresas de produção de anime tem concentrado-se apenas em conquistar um mercado [interno] de 100 milhões de pessoas. Mas, diante da diminuição do número de crianças e de contração possível do mercado interno, cada empresa está sentindo a pressão e virar seus olhos para o mercado global.". Para Nunokawa, o importante no presente momento é criar incentivos para os produtores que não estão presos às práticas tradicionais da

107 O projeto começou com o compartilhamento desses conteúdos ilegalmente, mas passou a comercialização formal na tentativa de estabelecer um novo modelo de negócios sustentável para fãs e produtoras de animês, doramas e filmes. Ver referência abaixo. 108 COHAN, Peter. Growth matters: japanese anime puts crunchyroll on the fast path. Daily Finance [16 de Abril de 2010]. Disponível em: < http://www.dailyfinance.com/2010/04/16/growth-matters-japanese-anime- puts-crunchyroll-on-the-fast-path/> Consulta em: 07/01/2013. 143

indústria, e que têm ideias mais flexíveis sobre estratégias voltadas para o exterior 109 . A falta de pessoal qualificado e experiente em questão de direito internacional foi também apontada, em relatório da JETRO, como uma das fragilidades desse setor da indústria japonesa para monitorar e reforçar os direitos de propriedade intelectual (NORRIS, 2008, p. 254). Grande parte da comercialização dos direitos de licenciamento, contratos e parcerias acontecem em feiras anuais como a Tokyo Anime Fair, um evento de 4 dias onde os dois primeiros são dedicados à fechar negócios e os demais são abertos à visitação ao público geral, oferecendo palestras, exposições, concursos, entre outras atrações. Mais recentemente, com a iniciativa do governo para a criação da All Nipon Entertaiments Works Co, propõe-se estabelecer novos canais de comunicação entre a indústria de conteúdos japonesa e possíveis parceiros e consumidores no exterior, com o devido suporte legal e de marketing. Algumas empresas japonesas têm buscado também desenvolver alternativas independentemente da ação governamental para promover suas animações no exterior. No fim de 2012, uma joint venture foi formada entre as companhias do grupo de mídia Yomiuri (que incluem a Yomiuri Telecasting Corporation, Yomiuri Tv-Enterprise Co., e ADEC Co.) e as empresas japonesas de animação Co., Tatsunoko Productions Co., Pierrot Co. e Quarkpro LCC e tem por objetivo criar um canal de distribuição de animês via streaming 110 para a América do Norte além da venda de produtos relacionados para este mercado. Apesar dos vários problemas na indústria, os números mostram que o Japão ainda é o maior provedor mundial de animações. Isto significa que, apesar dos percalços e do foco no mercado interno, a indústria japonesa de animação tem conseguido manter a competitividade dos seus produtos fora de suas fronteiras. No entanto, essa competitividade não retorna como um benefício econômico relevante, posto que do total da receita obtida com a comercialização de animês (TV, cinema e DVD's), um mercado avaliado em 2 bilhões de dólares 111 , apenas 10% provém das exportações, como destaca a pesquisa do Finpro/FinNode

109 SAKURAI, Takamasa. LOOKING EAST / Anime industry needs savvy producers to compete worldwide. Daily Yomuiri Online [6 de Julho de 2012]. Disponível em: < http://www.yomiuri.co.jp/dy/features/arts/T120619003017.htm> Consulta em: 18 de Dezembro de 2012. 110 A tecnologia de streaming se utiliza para tornar mais leve e rápido o download e a execução de áudio e vídeo na web, já que permite escutar e visualizar os arquivos enquanto se faz o download. Trata-se de uma tecnologia capaz de distribuir informação multimídia numa rede através de pacotes, executados seguidamente dando a impressão de uma visualização ao vivo. 111 PUTRA, Budi. How anime industry can rebound Back . The Japan Daily Press [17 de Abril de 2010]. Disponível em: . Consulta em 09/01/13 144

Japan, de 2010 112 . Essa discrepância indica a ineficiência das empresas japonesas em gerir uma demanda global para suas produções e explica, em parte, o desinteresse que muitos estúdios têm demonstrado com a exportação desses conteúdos. Há ainda a necessidade da invenção de novos modelos de negócio que consigam lidar com os desafios impostos pelo compartilhamento online e pelas novas dinâmicas tecnológicas. Não se trata de um problema especificamente japonês: a velocidade e a crescente facilidade com que se pode transferir e criar dados coloca em questão a viabilidade de antigos modelos de negócio e essas são questões que se impõe aos polos de produção de conteúdos em quaisquer lugares do mundo. Os estúdios de cinema americanos sofrem hoje com a pirataria online tanto quanto a indústria japonesa de animação, no entanto aqueles possuem canais de distribuição estruturados, lobistas experientes junto ao governo americano e negociadores com experiência em direito internacional e em mercado exterior para garantir o máximo benefício para suas indústrias mesmo em um momento de iminente reestruturação do segmento a nível global (Martel, 2010). O foco justamente global dessas majors do entretenimento as impele para a experimentação de novas estruturas de negócio que tentem dar conta das transformações em curso. Esse panorama sugere que as questões que se impõem à animação japonesa nos fluxos globais são sérias e exigem uma urgente reconfiguração do sistema de produção, bem como no de distribuição e gestão dos direitos de propriedade intelectual sem a qual a sua competitividade enquanto produto poderá ficar seriamente comprometida.

• atração de talentos e investimentos

A capacidade de atrair talentos é um dos aspectos que se aplicam a toda a gama de manifestações culturais, independente se relacionadas ao pop ou a aspectos mais tradicionais. Já em relação aos investimentos, o fator de retorno continua sendo preponderante. A capacidade de um recurso cultural de movimentar ambos é um bom indicador da sua potencialidade enquanto ferramenta de soft power. Apesar dos notórios problemas da indústria japonesa de animação, os artistas japoneses continuam sendo a referência de criatividade, talento e arrojo entre milhares fãs e

112 Disponível em: . Consulta em 04/01/2013. 145

jovens que desejam iniciar carreira como animadores ou ainda dubladores, quadrinistas, designer de games, entre outros. O estilo japonês de se fazer animação tornou-se um paradigma global apoiado por uma mística segundo a qual só os japoneses de fato conhecem a essência da animação. Este discurso encontra certa ressonância, uma vez que as atividades terceirizadas incluem funções mais simples (como a colorização e a criação de cenários), enquanto as atividades centrais (a construção dos personagens e roteiros) permanecem sob o controle dos japoneses. Esta espécie de divisão internacional do trabalho tem favorecido a multiplicação de cursos técnicos e de graduação, não só em animação como em outras atividades relacionadas ao mundo otaku 113 , como cursos específicos de cosplay 114 , de mangá, dublagem, gerência de negócios na indústria criativa, entre outros. A criação de tais cursos passa, logicamente, por uma tentativa de reestruturar internamente o mercado de animadores no Japão, multiplicando as oportunidades de capacitação e preenchendo a lacuna de profissionais completos, que dominem diferentes etapas da criação e gerenciamento das atividades relacionadas à produção e comercialização dos animês. Mas, de outro lado, elas tendem a atrair também talentos estrangeiros que buscam inteirar-se das técnicas japonesas na produção de sua cultura pop, bem como em outras áreas relacionadas, como a de tecnologia. Como destaca uma matéria de Outubro de 2012 do The Japan Daily Press :

Recruitment and liaison offices are sprouting up in various countries, for example, the University of Tokyo recently inaugurated an office in India, and the Doshisha University, a private university in Kyoto, have their presence in Britain, South Korea and Vietnam, among other countries. State-of- the-art technology, pop culture, manga and anime; basically everything Japan is being used to pull in the foreign students. 115

113 Diz-se dos fãs de cultura pop japonesa, sobretudo fora do Japão. No Japão, otaku refere-se mais amplamente a um conhecedor aficionado de um assunto específico. 114 é abreviacão de costume play ou ainda costume roleplay (ambos do inglês) que podem traduzir-se por "representação de personagem a caráter", "disfarce" ou "fantasia" e tem sido utilizado no original, como neologismo, conquanto ainda não convalidado no léxico português, para referir-se a atividade lúdica praticada principalmente (porém não exclusivamente) por jovens e que consiste em fantasiar-se e representar uma personalidade real ou personagem ficcional, seja de filmes, games, quadrinhos, livros, publicidade, etc. Os participantes dessa atividade são denominados cosplayers . Os cursos de Cosplay incluem matérias sobre maquiagem, figurino, representação, entre outros aspectos. Para mais informações consultar: Consulta em 09/01/2013. 115 "Escritórios de recrutamento e de ligação estão surgindo em vários países, por exemplo, a Universidade de Tóquio recentemente inaugurou um escritório na Índia, e a Universidade Doshisha, uma instituição privada em 146

Diferentemente dos sites das produtoras japonesas de animação, nem sempre fáceis de encontrar e raras vezes contendo informação em alguma língua que não o japonês, grande parte dos portais dessas escolas e universidades japonesas possuem informações em várias línguas (geralmente inglês, japonês, coreano, chinês, e algumas vezes em árabe) e, através deles, buscam ativamente atender alunos estrangeiros 116 . De acordo com Lam (2007), incentivar os alunos estrangeiros a estudar no Japão, de um modo geral, é também uma abordagem para investir em uma nova geração na esperança de que, como beneficiários do sistema educacional japonês, estes retornem para casa como embaixadores culturais, providos de uma visão mais cosmopolita e dispostos a construir pontes de amizade entre seus países e o Japão. Esta esperança, como pode-se notar, é investida de um valor não só diretamente econômico, mas fundamentalmente político. De outro lado, as parcerias entre as empresas japonesas com outras produtoras de animação garante uma injeção de capital e fôlego na indústria, movimentando a economia e reforçando a visibilidade dos animês globalmente. Os estúdios americanos Disney e o japonês Studio Ghibli, por exemplo, atuam conjuntamente há mais de uma década na adaptação, marketing, lançamento e distribuição das produções japonesas no mercado americano e mundial. O acordo inicial, fechado em 1996, previa o licenciamento de nove produções do Studio Ghibli. Porém, a parceria foi ampliada em anos seguintes, sendo que hoje o estúdio americano é responsável pela comercialização de 15 títulos, alguns deles co- financiados. Em dezembro de 2012, o Dream Link Enterteinment Inc., o maior estúdio do Japão em animações em flash , passou a receber investimentos (valores não divulgados) da empresa americana do Fenox Venture Capital, do Vale do Silício, na Califórnia, que estuda a possibilidade de criar jogos com os personagens da empresa japonesa, além de parques

Kyoto, têm a sua presença no Reino Unido, Coréia do Sul e Vietnã, entre outros países . O Estado-da-arte da tecnologia, a cultura pop, mangás e animês, basicamente tudo o que o Japão oferece está sendo usado para atrair os estudantes estrangeiros." Tradução livre. SETH, Radhika, Universities woo foreign students with lucrative courses. The Japan Daily Press [5 de Outubro de 2012]. Disponível em: ,http://japandailypress.com/universities- woo-foreign-students-with-lucrative-courses-0514556. Consulta em 06/01/2013.

116 Algumas das instituições japonesas que oferecem cursos de animação e outras temas da cena pop: 1) Toho Gakuen. Diponível em: < http://www.tohogakuen.ac.jp/en/> 2)Nihon Kogakuin College. Disponível em: 3)Tokyo Animation College. Disponível em: 4)Tokyo School of Anime. Disponível em: Para mais informações, ver: Todos os sites foram consultados em 08/01/2013. 147

temáticos 117 . Já em 2005, um relatório da Organização de Comércio Exterior (JETRO) divulgava que a coprodução e o cofinanciamento de animês por investidores estrangeiros revelava-se em crescimento (NORRIS, 2008, p. 254). Há ainda diversas agências de investimento japonesas para a captação de recursos estrangeiros que oferecem oportunidades para participações no segmento de conteúdos, como a Invest Fukuoka 118 . Já foi citado aqui que a All Nippon Entertaiment Works, criada pelo governo japonês sob o projeto Cool Japan em 2011, tem como objetivo fazer a mediação entre empresas e investidores estrangeiros e as produtoras de conteúdos japoneses buscando gerir os copyrights de forma mais eficiente e lucrativa para as empresas japonesas. Isso é crucial para esta indústria na medida em que a situação atual não se caracteriza necessariamente pela escassez de investimentos estrangeiros, mas pela falta de habilidade em geri-los. Um exemplo simples: ao vender os direitos de exibição ou adaptação de suas produções no exterior, as empresas japonesas não costumavam prever em contratos a participação nos lucros, e nem mesmo buscavam exportar os produtos relacionados (como brinquedos), deixando que fossem livremente fabricados e comercializados por outras empresas. A All Nippon pretende mudar esta situação, fazendo com que um fluxo maior de capital retorne ao país 119 .

• fomento de produtos e outras atividades da indústria

A capacidade que um recurso de soft power apresenta para fomentar outros segmentos da indústria e do comércio locais também é um fator relevante para a colaboração na obtenção da soberania econômica ante a situação de globalização. Muitas manifestações e produtos culturais não tem por objetivo (ou não conseguem) realizar lucros diretos significativos. As artes tradicionais performáticas, como o teatro Kabuki, algumas cerimônias sazonais, entre outras, são manifestações apoiadas com especial zelo pelo governo japonês, sobretudo por serem tombadas como patrimônio cultural da humanidade pela UNESCO. Essas manifestações dependem mais diretamente de políticas culturais que as fomentem, pois

117 MARTIN, Rick. Japanese has global potencial, receives silicon valley investiment. Yahoo Finance Singapore [13 de Dezembro de 2012]. Disponível em: < http://sg.finance.yahoo.com/news/japanese- animation-studio-global-potential-071055078.html> Consulta em 09/01/2013. 118 Ver: < http://www.investfk.jp/industry_09.html> Consulta em 09/01/2013

119 Para mais informações: MARUIAMA, Harunori. Japan Aims to squeeze more cash from Hollywwod. The Asashi Shimbum [03 de Novembro de 2011]. Disponível em: < http://ajw.asahi.com/article/cool_japan/culture/AJ2011110316443> Consulta em: 09/01/2013 148

o retorno financeiro não costuma ser relevante em comparação ao que é movimentado, por exemplo, pela indústria de games, animês, mangás ou pela música pop japonesa. No entanto, a capacidade de atrair turistas para o lado “mais oriental" do Japão certamente passa pela atratividade desses recursos do campo da tradição histórica. De outro lado, os produtos do pop também têm movimentado outras áreas da economia japonesa, inclusive o turismo, chamando atenção para a outra face da sociedade japonesa, mais cool , high tech e pop. De acordo com dados obtidos na pesquisa realizada pela FinNode/Finpro Japan (2010) 120 , o turismo tem a maior contribuição no setor de serviços da Indústria Criativa japonesa. No entanto, a participação dos turistas estrangeiros é de apenas 6% do total. Buscando aumentar esse total, o governo e as empresas japonesas têm buscado criar novas estratégias para atrair os turistas estrangeiros, que, uma vez estando no Japão, também movimentam toda uma cadeia de serviços como alimentação, transporte, vestuário, souvenires etc. Uma das áreas que apresenta grande potencial de atração de turistas é a cultura pop, sobretudo através dos animês e do chamado "turismo otaku ". Esse turismo otaku nasce das experiências de consumo em torno da cultura pop japonesa globalmente e, segundo dados do Finpro Japan, o fenômeno "otaku" é a mais promissora área de toda a indústria criativa japonesa para gerar benefícios que se expandem para outras áreas. Toda a mobilização em torno do consumo de animês e outros produtos do pop japonês faz com que os fãs busquem conhecer os locais que inspiraram as histórias que tanto admiram. De acordo com Issak "Aka-san", fundador da empresa de turismo Intermixi Tours, sediada em Los Angeles e que descobriu um lucrativo nicho de mercado no turismo otaku, esses fãs:

They save up and buy on a ‘need’ that most would define as a ‘want.’ They’ve watched the anime, read the manga, played the games, and seen some J-drama, and now they need to experience the land that birthed the media they have enjoyed so much. 121

120 ver nota de rodapé n. 93. 121 "Eles poupam e compram movidos por uma "necessidade" que a maioria poderia definir apenas como um "querer". Eles assistiram o animê, leram o mangá, jogaram os jogos, assistiram alguns J-drama, e agora eles precisam experimentar a terra que deu origem a mídia da qual gostaram tanto.". Tradução livre. GALBRAITH, Patrick W. Anime tourism experiences a boom despite the gloomy economy. Metropolis [24 de Setembro de 2009]. Disponível em: < http://metropolis.co.jp/arts/pop-life/intermixi/> Consulta em: 09/01/2013 149

Muitas cidades de distritos japoneses buscam beneficiar-se dessa demanda e investem em uma estrutura de atrações e serviços para contemplar o turismo de fãs. A prefeitura de Saitama, por exemplo, disponibilizou em seu website quatro curtas de animação (cada um contemplando uma estação do ano) para promover o turismo na cidade 122 . Não é a primeira iniciativa neste sentido, posto que Saitama já convive com o aumento dos turistas devido a popularidade do animê , ambientado em um santuário real da cidade. De acordo com a imprensa, a venda de lembranças com a imagem do animê ajudou a revitalizar o comércio local. A cidade aproveitou para criar um evento onde fãs tímidos pudessem se encontrar para conversar e fazer amizade, o que resultou num aumento de acessos no site da câmara de comércio e indústria da cidade de 500 para 10 mil, diariamente. A região de Ashikaga, em província de Tochigi, teve seu escritório de turismo inundado por telefonemas e pedidos de informação após a exibição do animê Yosuga no Sora em 2010, o qual se ambienta ali. Do mesmo modo, Kyoto também experimentou os resultados positivos do turismo otaku após a exibição das séries K-On e The Tatami Galaxy 123 . Populares títulos de mangás e animês hoje servem como temática para as atrações de parques e resorts no verão, ajudando a multiplicar o número de visitantes. O resort marinho Laguna Garamori, no distrito de Aichi (famoso pelo seu polo de produção automobilística), já hospedou atrações temáticas da série Naruto em duas ocasiões, a primeira delas em 2007, e a segunda em 2012, contemplando a total adaptação do parque para recriar o "mundo ninja de Naruto", atração que ficou aberta por quase todo o ano 124 . Em 2010 foi a vez da série One Piece definir as atrações e o visual do parque por três meses, com adaptação dos cardápios, exposições de arte, venda de artigos e DVDs especiais, performances, entre outras atrações 125 . O parque também realizou evento similar com a franquia Astro Boy em 2009 126 .

122 GREEN, Scott. VIDEO: Saitama unveils "four seasons" anime tourism Shorts. Crunchyroll, 02 de Abril de 2012. Disponível em: . Consulta em: 10/01/2013 123 HUGHES, Felicity. Anime fan pilgrimages help boost tourism. Japan Pulse/The Japan Times [22 de Outubro de 2010]. Disponível em: < http://blog.japantimes.co.jp/japan-pulse/anime-fan-pilgrimages-help-boost- tourism/> Consulta em: 09/01/2013. 124 LAGUNA GAMAGORI's 10th Year Anniversary Coincides with the 10th Year Anniversary of the NARUTO Television Anime for a Planned Special Event: "NARUTO - Memories of Chakra in Lagunasia". Business Wire, 06 de Fevereiro de 2012. Disponível em: < http://www.businesswire.com/news/home/20120205005003/en/LAGUNA-GAMAGORIs-10th-Year- Anniversary-Coincides-10th>. Consulta em 09/01/2013

125 Para mais informações consultar : Verão Japonês terá parque temático de One Piece. [redação]. Henshin [26 de Janeiro de 2010]. Disponível em: Consulta em 09/01/2013 150

Um outro exemplo: A emissora Fuji TV organiza já ha alguns anos um festival de verão em Odaiba, Tóquio, com diversas atrações inspiradas na cultura pop japonesa. Esta região já abriga em caráter permanente uma conhecida estátua em tamanho real (18 metros) do robô da série clássica Mobile Suit Gundam, a qual se tornou um cartão postal da região. No último festival organizado pela emissora um parque temático inspirado na série One Piece foi montado com diversas atrações, entre elas uma estátua de mais de 15 metros de altura representando uma das personagens, na qual os visitantes poderiam subir e tirar fotos. Ainda relacionado a este título, especificamente, há a opção de se fazer um cruzeiro a bordo de um navio que é uma réplica do usado na série (que trata de uma tripulação pirata), oferecida em um parque temático em Nagazaki. Essas atrações sazonais atraem muitos turistas e, de acordo com informações do Finpro Japan (2010), esses turistas fãs de animê tendem a visitar o Japão regularmente. Em uma iniciativa para manter um fluxo perene do turismo otaku, o Grupo Bandai, uma das majors do entretenimento japonesas, está investindo na construção de um parque temático permanente em Tóquio tendo como tema seus três títulos de maior sucesso: One Piece, Dragon Ball e Naruto 127 . O parque, previsto para ser inaugurado em 2013, terá mais de seis mil metros quadrados de área e compreenderá atrações e espaços específicos de cada título, lojas com produtos limitados e exclusivos, além de uma área denominada "área dos heróis", para outros personagens e títulos do grupo. O Grupo Bandai, também planeja a abertura de um outro parque temático dedicado a série Mobile Suit Gundam como forma de atrair os fãs de animês e mangás. Outro segmento que se beneficia do fluxo de turistas é a hotelaria, e este setor também tem criado iniciativas para aproveitar o potencial atrativo do pop como os quartos temáticos que oferecem ao hóspede a experiência de estar "dentro" do mundo do animê e do mangá. A indústria alimentícia japonesa, favorecida não só pelo aumento de clientes (turistas sobretudo) nos estabelecimentos do país, é promovida também no exterior através de animês e mangás. A presença tradicional dos bolos de arroz com algas, além dos caprichados bentôs (marmitas caseiras em que os alimentos compõem uma delicada decoração), sakê e sashimis,

One Piece terá parque temático no Japão . Jwave [22 de Fevereiro de 2010]. Disponível em: Consulta em 09/01/2013 126 Naruto anime theme park attraction to open in march . Anime News Network [06 de Fevereiro de 2012]. Disponível em: < http://www.animenewsnetwork.com/interest/2012-02-06/naruto-anime-theme-park-attraction- to-open-in-march>. Consulta em: 09/01/2013. 127 KOMATSU, Mikikazu. Shonen Jump Theme Park to open in Tokyo next . Crunchyroll, 17 de Dezembro de 2012. Disponível em: < http://www.crunchyroll.com/anime-news/2012/12/17/shonen-jump- theme-park-to-open-in-tokyo-next-summer>. Consulta em: 09/01/2013. 151

é tão corrente nos mais variados títulos de mangás e animês que acarreta na criação de uma familiaridade desses gêneros alimentícios a milhões de espectadores e leitores no mundo todo, sendo reforçada e reforçando uma determinada imagem encontrada no imaginário internacional-popular (ORTIZ, 1994) a respeito de um padrão alimentar nipônico. Em última instância, pode-se aqui levantar a hipótese de que este fator de familiaridade pode colaborar para uma crescente na demanda desses produtos e alimentos fora do Japão, favorecendo as exportações e as hibridações (CANCLINI, 2003) nos padrões alimentares a nível global. A moda é outro setor que estabelece estreitas relações com o universo de animês e mangás no Japão. A mundialmente famosa área de Harajuku, em Tóquio, é conhecida como uma das capitais da moda de rua, inspiração para diversos designers e estilistas, pela sua efervescente concentração de jovens que circulam trajados nos mais variados estilos e tribos. Há as famosas lolitas, os góticos, os grupos que utilizam um visual colegial, com os uniformes estudantis tradicionais de saias plissadas e meias compridas, os que se vestem inspirados em personagens de animês, mangás ou jogos, entre uma infinidade de estilos particulares e chamativos. A troca e adaptação de influências visuais e estéticas entre as ruas e os animês, nos cabelos, estampas, cores, modelos e acessórios, é uma constante e tem alimentado um amplo e lucrativo mercado de marcas e grifes no Japão e fora dele, ditando tendências e atraindo turistas. Como destaca Sato:

A indústria da moda ocidental mantém-se muito atualizada com o que ocorre em Tóquio e Osaka, bastante atenta ao que jovens japoneses simplesmente usam nas ruas, pois muito do que surge no Japão tem se transformado em tendência global. Basta lembrar que tendências recentes e ainda populares na moda feminina ocidental como sapatos e sandálias de plataformas altas e largas, e sobreposições de vestidos e saias com calças surgiram no final dos anos 90 no caótico mais cheio de propostas street fashion japonês, cada vez mais influenciado pela estética dos animês (2007, p.231).

Não menos importante para a promoção turística são os mais de 23 museus dedicados aos animês e mangás no país, como o Kyoto International Manga Museum e o Tokyo Anime Center, além da realização do concurso anual (e mundial) de cosplay, que tem etapas regionais organizadas em diversos países do mundo, entre eles o Brasil (que é vice-campeão mundial). 152

Sem poder negar o potencial desse turismo no Japão, recentemente o governo japonês criou folders de divulgação, roteiros de passeios, incorporando o turismo otaku à pasta das agências governamentais de promoção ao turismo, como podemos ver nas imagens abaixo, disponível no site da Organização Nacional de Turismo do Japão (JNTO).

Figura 21 Folder turístico (frente e verso) destacando locais e eventos relacionados aos animês no Japão

153

Estas são algumas iniciativas que mostram o potencial que o turismo otaku, uma demanda criada através do consumo de animês, mangás, games e outros elementos do pop japonês, tem de contribuir com a economia japonesa através do fomento de outras atividades econômicas, sobretudo no setor de serviços. Pode-se acrescentar também que o potencial mercado global para a compra de artigos relacionados a esses conteúdos, como roupas, brinquedos, artigos esportivos, material de papelaria e alimentos é uma realidade que também pode ser explorada pelas empresas japonesas, assim como já o fazem com eficácia os estúdios americanos Disney com seus produtos. Há que se destacar que os animês, especificamente, foram responsáveis pela abertura de um mercado mundial para os mangás que os inspiraram. Antes da popularização das animações japonesas no fim dos anos 1980 e sobretudo na década de 90, o consumo de mangás ficava circunscrito ao território nipônico. Na Europa e na América do Norte, em meados dos anos 80, os animês de sucesso costumavam ganhar a adaptação em quadrinhos "alternativos", redesenhados em estilo ocidental, bem como eram encontradas versões baratas as quais utilizavam imagens fotografadas diretamente da tela da TV, como explica Hirata (2012, p.34). A insatisfação dos fãs com o material impresso disponível e a demanda por produtos genuínos e de maior qualidade, incentivou editores europeus a publicarem os primeiros mangás traduzidos e adaptados ao público ocidental. Hirata aponta ainda que:

Na década de 1990, o grande salto rumo à publicação licenciada: graças à crescente popularização e variedade das séries animadas e à grande procura por produtos “derivados”, as editoras ocidentais decidiram dar uma chance ao mangá. Não esperavam um aumento no volume de vendas e nos lucros provenientes das séries encadernadas, que nos anos posteriores fariam muito mais que gerar receitas bilionárias no mercado editorial: reforçariam um movimento que tem nos fãs e admiradores da cultura japonesa a sua maior força, criando um fandom alimentado pelos produtos licenciados (HIRATA, 2012, p. 34)

Do mesmo modo, as séries de animês também colaboram para a indústria de games , como foi já mencionado no segundo capítulo deste estudo em relação à franquia Pokémon, que alcança o status de fenômeno global a partir de 1998 com a exibição de sua série de animê em canais de mais de 51 países e a exibição do primeiro longa metragem "Pokémon - O Filme: Mewtwo X Mew" em 33 países, já em 1999. Sato (2007) revela em seu estudo que a Nintendo (fabricante do jogo que deu origem ao mangá e posteriormente aos animês da 154

franquia) apesar da grande verba publicitária investida (50 milhões de dólares) para o lançamento dos jogos Pokémon fora do Japão em 1997 "contava com o animê para que o produto efetivamente caísse nas graças do público infantil" (2007, p.98). Alguns dos dados que podemos citar para comprovar o resultado dessa estratégia são a arrecadação de 176 milhões de dólares nas bilheterias mundiais com a exibição do primeiro filme da franquia, além de 2 bilhões e 400 milhões de unidades de card games (jogo de cartas colecionável) vendidos em diversos idiomas como o francês, inglês, português, espanhol, italiano, holandês e chinês. Destaca-se ainda que o game boy pocket (hardware portátil da Nintendo lançado em 1996), graças ao game software de Pokémon (que já vendeu mais de 56 milhões de unidades no mundo e é um apenas dos vários jogos da franquia atualmente), é comercializado hoje em mais de 70 países (SATO, 2007, p.100). Esses dados nos dão a dimensão de como os produtos culturais estabelecem relações de circulação, produção e consumo que implicam em outras esferas produtivas da economia. Esse processo de referenciamento mútuo entre animês, mangás, games, turismo, gastronomia e moda leva o consumidor a ir de um a outro estabelecendo ligações que refletem em fluxos de capital, saberes e práticas os quais apresentam-se fundamentais à nação na situação atual do capitalismo. Henry Jenkins (2008) identifica esses movimentos migratórios na realidade social e cultural do tempo presente, propondo que se tratam de processos de convergência:

Por convergência, refiro-me ao fluxo de conteúdo através de múltiplas plataformas de mídia, à cooperação entre múltiplos mercados midiáticos e ao comportamento migratório dos públicos dos meios de comunicação, que vão a quase qualquer parte em busca das experiências de entretenimento que desejam. (JENKINS, 2008, p. 29).

Da mesma forma que os consumidores de animês buscam os mangás que os inspiraram ou os jogos e filmes deles derivados, migrando entre diferentes plataformas de mídia, como propõe Jenkins, muitos desdobram suas experiências de consumo envolvendo-se em atividades como o cosplay, o fansubbing , buscando aprender a língua ou realizando cursos na área de animação, dublagem e tecnologia, conhecendo a culinária, fazendo turismo. Essas atividades mobilizam uma série de setores da economia e da sociedade japonesa, bem como de outras localidades através das empresas, instituições e indivíduos direta ou indiretamente envolvidos nestes processos. Os midiapanoramas criados em torno da produção e do consumo dessas animações, colocam em movimento não só os etnopanoramas e os 155

finançopanoramas aqui expostos, fundamentais para a gestão de uma soberania econômica nacional, mas também fluxos de símbolos e imagens, os quais são de suma importância para a questão da legitimidade. Discutiremos esses fluxos a seguir.

4.3.3 O animê e a legitimidade política A ideia de legitimidade em si pode ser entendida como um produto de soft power. Se recorrermos ao dicionário político, a legitimidade pode ser definida como sendo um atributo do Estado que consiste na presença, em uma parcela significativa da população, de um grau de consenso capaz de assegurar a obediência sem a necessidade de recorrer ao uso da força. Nesse sentido, todo poder busca alcançar consenso, de maneira que seja reconhecido como legítimo, transformando a obediência em adesão (a obediência relacionada à força da máquina estatal, enquanto que adesão pressupõe a assunção de uma autoridade baseada na percepção de justiça). Desse modo, a crença na legitimidade seria o elemento integrador na relação de poder que se verifica no âmbito do Estado 128 . Sem prejuízo, podemos expandir esta noção para um panorama onde os atores nacionais não são os únicos referenciais possíveis para a aplicabilidade da legitimação, onde processos que unem (e desunem) as pessoas para além das fronteiras nacionais redefinem a abrangência e as tonalidades dos processos de legitimação em escala global. Isto é dizer que, no contexto da situação de globalização, temos de ampliar este conceito para além das fronteiras nacionais. A legitimidade verifica-se importante não somente para as relações de poder estabelecidas no interior do Estado como também em relação a este e outros atores, nacionais, transnacionais e globais. Weber irá nos dizer em relação à política que , sob uma visão realista, ela é o campo das relações de poder, onde os diversos grupos humanos digladiam-se por sua obtenção na dúplice forma – poder de fato e poder legítimo. Para Weber todas as estruturas políticas usam a força, mas diferem no modo e na extensão como a empregam ou ameaçam empregar contra outras organizações políticas. Pode-se apreender, nesta perspectiva, que o que verdadeiramente está por trás da obtenção do poder é o uso da força, sendo vista a legitimidade deste poder adquirido como sendo a legitimidade da força empregada para obtê-

128 BOBBIO, Norberto, MATEUCCI, Nicola e PASQUINO, Gianfranco. Dicionário de Política. Brasília, Ed. UnB, 2002. 156

lo 129 . Como destaca Nye (2004), nas relações de poder, pode-se obter resultados desejados tanto através da coesão e do pagamento (o poder de obrigar) ou da atração (o poder de cooptar). Nesse sentido, o uso da atratividade também é uso de uma força, no entanto sua natureza e seus métodos são bastante distintos em extensão e modo, como propõe Weber. A legitimidade política é um fator determinante para as modernas democracias, sobretudo na situação de globalização, como discutimos no primeiro capítulo deste estudo. De acordo com Nye, uma mudança na natureza do poder nas relações globais e interestados se torna cada vez mais evidente, sobretudo após o atentado do 11 de Setembro aos Estados Unidos e do ataque ao Iraque. A legitimidade das ações de violência e coação torna-se muito mais difícil de ser sustentada em um contexto onde as tecnologias de comunicação oferecem meios para que uma parcela cada vez maior de indivíduos criem e compartilhem conteúdos, multipliquem as vozes de um debate e as facetas de qualquer história, antes contidas na malhas dos canais oficiais ou hegemônicos de informação. Do mesmo modo, o barateamento das tecnologias coloca ao acesso de um número crescente de instituições, Estados, e indivíduos ferramentas de intimidação e destruição que antes pretendiam-se sob o monopólio das forças armadas de um ou outro Estado apenas. Em um cenário onde muitos podem apelar para a resolução de conflitos através da violência, o melhor é que ninguém a use. Como uma tentativa de equilibrar e normatizar as relações de poder entre os Estados e as figuras não estatais que emergiam após o fim da Segunda guerra mundial é que surgiram os órgãos como a ONU, a OMC, entre outras. O equilíbrio dessas forças torna-se crescentemente tênue à medida que novos atores e instituições culturais, econômicas e ideológicas surgem matizando e pluralizando as mediações simbólicas e de legitimidade neste processo. A cultura, pela sua capacidade de criar (e fazer circular) experiências, símbolos e referenciais coletivos, é uma instância privilegiada para realização da legitimidade. Quando associada às mídias e à dimensão do consumo, as manifestações do campo cultural oferecem instrumentos com os quais as pessoas estabelecem vínculos, gostos, relações de aproximação e afastamento, criando imagens e conceitos que podem influir, contextualmente, na assunção da legitimidade política dos atores estatais.

129 PEREIRA, Ivanaldo. A legitimidade do poder político sob o ponto de vista jurídico em governos democráticos. Revista do Mestrado em direito, UCB. Disponível em: < http://portalrevistas.ucb.br/index.php/rvmd/article/viewFile/2620/1610> Consulta em: 10/01/2013 157

O animê como parte da cultura pop japonesa, em hipótese, tem o potencial de levar consigo em seus midiapanoramas mundializados elementos que podem contribuir para a obtenção da legitimidade política do Estado nipônico na situação de globalização. Elementos estes que propomos ser condicionais para um recurso cultural de soft power neste objetivo. Descreveremos estes elementos adiante, analisando a potencialidade dos animês para a realização de cada um deles.

• relacionar-se a valores percebidos como positivos

Um recurso de soft power no intuito de colaborar para a legitimidade nacional, independente do contexto onde é empregado, deve estar associado a valores positivos para aqueles que o consomem. Sendo um produto cultural associado a uma origem (destacamos essa condição quanto a hegemonia cultural e a reiteramos aqui), os valores positivos percebidos serão em alguma medida associados a sua matriz cultural, estendendo a dimensão da percepção positiva para outros setores da vida social, cultural, política e econômica da nação em questão. Não se trata de uma equação simétrica nem de uma fórmula pronta, unidirecional, como a "bala mágica", isso seria desconsiderar todas as instâncias de produção de sentido e intrincada relação com outras percepções já existentes sobre a produção cultural em questão ou seu país de origem. O que afirmamos aqui é que, uma determinada produção cultural, quando capaz de apelar ao gosto internacional-popular, pode transferir seus valores intrínsecos à sua origem referencial, sendo esse valores positivos ou negativos. No entanto, para fins de soft power, o ideal, logicamente, é que os valores percebidos como positivos superem os que venham a ser vistos como negativos. Mais uma vez frisamos a questão de que a observância desse fenômeno deve ser analisada não só em seu aspecto mundializado e hegemônico, como contextualmente enquanto se atualiza nas localidades e nos grupos de indivíduos. Como pondera Joseph Nye ao falar da cultura pop americana:

Popular culture can have contradictory effects on different groups within the same country. The videos that attract Iranian teenagers offend Iranian mullahs. Thus the repulsion of America popular culture may make it more difficult for the united states to obtain its preferred policy outcomes from the ruling group in the short term, while the attraction of 158

popular culture encourages desired change among younger people in the long term 130 . (NYE, 2004, p. 52).

Este trecho destaca ainda um outro aspecto importante a respeito da forma como atuam os recursos culturais de soft power, seus efeitos muitas vezes são observados a longo prazo e dependem de uma relação empática entre sujeito e conteúdo que estabelece fluxos de comunicação com outros aspectos da sociedade a qual o produto cultural se encontra referenciado. Desse modo, há que se considerar que para os objetivos de legitimidade política há sempre uma margem de incerteza, que depende dos próprios fluxos de comunicação e consumo do objeto e que escapam a qualquer mediação do Estado. Como destaca Nye, a própria ausência de controle ou regulamentação sobre a produção cultural e seus fluxos, pode ser considerada uma fonte se soft power. A liberdade de expressão e a autonomia do campo cultural em si são valores prezados nas sociedades democráticas atuais. Dito isto, cabe considerar, que valores os animês podem expressar aos seus consumidores? Não é nosso objetivo, para este estudo, validar respostas para esta questão. Entende-se que uma aproximação adequada dos aspectos intangíveis dos processos de consumo cultural e produção de sentido exige uma pesquisa em profundidade, a qual não nos interessa aqui. Podemos, contudo, levantar hipóteses através de dois métodos. O primeiro consiste em observar nas produções destinadas a duas das mais populares demografias (vimos, no final do terceiro capítulo, características das principais demografias)131 dessas animações suas características comuns mais latentes e à partir delas conjecturar valores representados. O segundo método observa essas animações tomadas em seu conjunto, independente dos gêneros, e observadas a partir do seu modo de produção e estilística, que também podem nos oferecer algumas informações nesse sentido. Os animês da demografia Shounen (para rapazes jovens), como já observado no terceiro capítulo, abordam assuntos bastante diversos e são um dos gêneros mais populares globalmente. Existem os de temática épicas, atuais, fantásticas, esportivas, escolares, etc. Dada a esta variedade, afirmar características comuns a todo um segmento significa deixar

130 " A cultura popular pode ter efeitos contraditórios sobre grupos diferentes dentro do mesmo país. Os vídeos que atraem adolescentes iranianos ofendem mulás iranianos. Assim, a repulsa da cultura pop americana pode tornar mais difícil para os Estados Unidos para obter resultados desejados na arena política com grupo dominante no curto prazo, enquanto a atração da cultura popular incentiva a mudança desejada entre as pessoas mais jovens no longo prazo." Tradução livre. 131 Demografia é o termo usado pelas indústrias de animação e quadrinhos no Japão para designar os públicos- alvo de cada produção, assim, produções direcionadas para garotos jovens são agrupadas em relação à demografia shounen. 159

várias outras de lado. Isso é valido para todas as demografias que serão aqui abordados e estamos cientes dessa lacuna. No entanto, buscando apoio nos estudos de Sonia Luyten, Paul Gravet e na observação prática das produções disponíveis em rede, observamos alguns elementos recorrentes presentes na construção dos personagens e roteiros dessas animações que já nos oferecem alguns pontos de reflexão. Nas produções shounen, como visto no terceiro capítulo deste estudo, elementos recorrentes são a determinação inabalável dos personagens, a busca pela superação, o companheirismo e a competitividade. Essas características quando agrupadas podem nos sugerir alguns valores pessoais como a integridade, a perseverança, a confiança e ainda o perfeccionismo. A busca pela melhora constante aliada à firmeza de caráter, que são típicas ao protagonista, sugerem uma lapidação pessoal, no sentido do comprometimento com o desenvolvimento de suas potencialidades emocionais e físicas. Esta hipótese parece encontrar escopo em fóruns de discussão sobre animês e mangás. Um exemplo pode ser verificado em uma enquete realizada pelo portal Japan Reference em 2007. Os usuários foram questionados sobre o porquê gostam de animês. Do total de respondentes, um terço (o maior índice da pesquisa) assinalou a alternativa "Porque o animê me dá motivação, inspiração e etc." 132 Outros títulos bastante populares nas televisões e na internet correspondem a demografia shoujo (para garotas jovens). Nos shoujo animê a temática escolar é bastante comum, e explora o dia a dia das meninas, suas experiências adolescentes em relação ao amor, a amizade e a construção da personalidade em meio aos erros e acertos das personagens. Suas protagonistas são mais nuançadas que nos títulos shounen, algumas são inseguras e infantis, outras determinadas e competitivas, mas todas são de algum modo inexperientes e inocentes, buscando situar-se entre a adolescência e a vida adulta. Independente do pano de fundo ser a escola, uma pensão, um templo, ou outro cenário o desenvolvimento dos sentimentos dos personagens, a beleza, o drama e seu amadurecimento na passagem da adolescência para a vida adulta são frequentes na maior parte dos roteiros. Podemos, a grosso modo, extrair desses roteiros valores que dizem respeito a honestidade, a

132 As alternativas dadas foram: 1) Porque o animê é mais realista que outras animações, como os cartoons (20%); 2) Porque os personagens de animês são mais graciosos e adoráveis (10%); 3) Porque o animê me dá motivação, inspiração, etc. (33,33%); 4) Porque os animês são mais populares que outras animações atualmente, então eu sigo o fluxo (3,33%); 5) Tenho outras razões (33,33%). O Total de participantes foi de 30 internautas, em 30 de agosto de 2007. Disponível em: < http://www.jref.com/forum/anime-manga-28/why-do-you-like- anime-33178/> Consulta em: 10/01/2013. 160

gentileza, a pureza e a perseverança, pois as personagens, apesar de todas as dificuldades que enfrentam, perseveram no processo de auto conhecimento, mesmo que aos tropeços. Logicamente, o modo como esses valores sublimados por grande parte dos animês compreendidos nas demografias shounen e shoujo são apreendidos pelo consumidor dependem das condições de produção de sentido específicas a cada um, contextualmente (esses aspectos recorrentes podem muito bem, ao invés de transmitir valores, degenerar em estereótipos de gênero, por exemplo). No entanto, em hipótese, essas características comuns a determinados tipos de produção, frisadas por otakus em eventos, nas redes sociais, em fóruns de discussão online, enquetes, e por autores como Sonia Luyten (2000), permitem a extrapolação de sentido para a associação com valores específicos, os quais acabamos de elencar. Outra forma de se pensar a questão dos valores nas animações japonesas, sendo esta talvez mais adequada para nosso propósito, é buscar analisar o animê em seu conjunto, enquanto técnica, estilo narrativo e estilístico singulares. Já foi discutido anteriormente que o processo de produção do animê moderno, bem como suas diretrizes estéticas e narrativas correspondem a um estilo particular, desenvolvido sob as condições sociais, econômicas e históricas do Japão pós Segunda Guerra mundial. O consumidor em seus fluxos de consumo e circulação dessas produções, ao se inteirar da variedade de títulos, temáticas, estilos e mídias relativas aos animês, acaba entrando em contato com a mística que envolve a produção dessas animações e que sugere liberdade criativa, inovação estética, capricho na construção de enredos e personagens, disciplina exigida pelo processo, tecnologia de transmitir significados, expressividade e movimento mesmo com a economia na produção, o perfeccionismo conseguido com dedicação extrema. Esses aspectos citados podem ser facilmente identificados na literatura sobre a animação japonesa, bem como entre as comunidades de fãs, e encontra reforço na própria configuração do mercado de trabalho japonês e na história de vida dos principais profissionais de animação. Exemplos não faltam: Eiichiro Oda, criador da série One Piece, só tira folga duas vezes por ano e dorme apenas três horas por dia para cumprir com seu trabalho 133 . Osamu Tezuka, considerado um ícone dos mangás e animês, dormia quatro horas por noite e desenvolveu um câncer no estômago creditado em parte ao ritmo de trabalho

133 TSUHA, Erika. One Piece: Eiichiro Oda revela que dorme poucas horas. ANMTV [30 de Novembro de 2011]. Disponível em: < http://www.anmtv.xpg.com.br/one-piece-eiichiro-oda-revela-que-dorme-poucas- horas/> Consulta em 10/01/2013 161

excessivo. No hospital recebia seus assistentes, dava instruções, orientava o andamento dos trabalhos; desenhou até quando seu corpo lhe permitiu, falecendo em 09 de fevereiro de 1989 (SATO, 2007, p.135-136). Essas "imagens" que pairam sobre a criação dos animês: tecnologia, criatividade, liberdade, inovação, disciplina, compõem por sua vez um conjunto de valores representados sob o produto animê que faz referência, ao mesmo tempo em que reforça, a ideia de uma mística nipônica, envolta em admiração e estranhamento. Esse conjunto de valores, que oscila entre uma poética oriental e ocidental, assinala para um imaginário positivo, que pressupõe um país que tem no trabalho e no comprometimento com a inovação e a qualidade o seu foco, que busca situar-se no equilíbrio entre a tradição e a modernidade, extraindo o melhor proveito de ambos. O ex Ministro das Relações Exteriores, Taro Aso (atual vice primeiro ministro), destaca justamente a importância das imagens de Japão que são criadas através do consumo de animês, mangás e outros produtos do pop japonês, em um discurso realizado em 2006:

If you sneak a look into stores in China addressing young geeky manga or anime fans, you will see that the shelves are crammed with every imaginable Japanese anime character [...] What kind of picture comes into your mind when you hear the name of Japan? Is it a bright and positive image? Hot? Cool? The more positive the image that comes to mind, the easier it will be in the long term for Japan to have its views conveyed. (ASO apud CHRISTENSEN, 2011). 134

A legitimidade se atualiza através desse conjunto de percepções, as quais ajudam a construir imagens de autoridade para o Japão, nas mais diversas áreas, sejam elas na manutenção das tradições ou na busca pela inovação. Discutiremos mais essa questão adiante.

134 "Se você der uma olhada nas lojas na China direcionadas ao público jovem geek , fã de quadrinhos ou animações, você verá que as prateleiras estão abarrotadas de cada personagem de anime japonês que se possa imaginar [...] Que tipo de imagem vêm a sua mente quando você ouve o nome do Japão? É uma imagem clara e positiva? Hot ? Cool ? Quanto mais positiva for essa imagem, mais fácil será a longo prazo para o Japão transmitir a sua mensagem" Tradução livre. CHRISTENSEN, Asger R. Cool Japan, Soft Power . Global Asia (jornal online da East Asia Foundation) [2011]. Disponível em: < http://www.globalasia.org/V6N1_Spring_2011/Asger_Rojle_Christensen.html> Consulta em 13 de Outubro de 2012.

162

• construir uma imagem da localidade de onde se origina como referência ou autoridade

A associação a valores positivos, por sua vez, capacita um recurso cultural a colaborar na construção de uma determinada imagem do seu local de origem como uma referência, seja ela estética, ética ou tecnológica. Vimos questão semelhante em relação à percepção da origem quanto a hegemonia cultural. Para fins de legitimidade política, esse vínculo é novamente indispensável, com o diferencial de que não basta apenas o link entre um determinado produto cultural e uma origem geográfica ou de grupo, mas que esse link ofereça condições de sentido capazes de embasar movimentos de legitimidade às políticas ou ações governamentais. Não se trata apenas de um fenômeno interno. Como já foi dito, os fenômenos se atualizam quando se reterritorializam, e assim como acontece em relação a hegemonia cultural, tantos os fluxos locais como globais estão intrincadamente relacionados. A construção de uma imagem nacional como referência, ou autoridade, passa pelos fluxos ideológicos relacionados a todo o conjunto de símbolos, objetos, práticas e conteúdos desterritorializados através da mídia e dos contatos humanos. Esses fluxos ideológicos, ou ideopanoramas, segundo Appadurai (1999):

[...] se compõem de elementos da mundividência do Iluminismo, que consiste de uma concatenação de ideias, de termos, de imagens, incluindo "a liberdade", o "bem-estar", os "direitos", a "soberania", a "representação", e o tema fundamental, a "democracia". (APPADURAI in FEATHERSTONE, 1999, p.316)

Appadurai explica que quando esse pensamento (que mantinha sua coerência interna amarrando os termos e as imagens em uma narrativa principal euroamericana) difunde-se pelo mundo, acaba fornecendo em lugar de uma narrativa coesa, uma sinopse política estruturada livremente "na qual os diversos estados nacionais, como parte da evolução, organizaram a sua cultura política em torno de 'palavras-chave'" (op. cit., 1999, p. 316). No caso japonês, com a reestruturação política do pós-guerra, a literatura e os estudos culturalistas nihonjinron forneceram as bases de uma narrativa nacional organizada em torno de palavras-chave como "perfeccionismo", "tradição", "equilíbrio" e "harmonia". Para Ortiz, a divulgação desses textos nihonjinron alimenta e consolida impressões do senso comum, uma espécie de "sociologia popular" que fornece as bases de uma interpretação não só 163

corrente no campo das ciências sociais como captando a imaginação do grande público (ORTIZ, 2000, p. 32). Como vimos, ao levantar hipóteses sobre a percepção de valores nas animações japonesas, a presença desses elementos-chave na imaginação do grande público (global) a respeito do Japão reflete também na percepção de suas produções, que dotam-se (por mais diversificadas, dinâmicas e até mesmo conflitivas que possam ser) da mística da tradição, da perfeição e do equilibrio, bem como, retroativamente, essas produções reforçam as bases de uma narrativa nacional ao criarem links diretos com uma origem (cultural, identitária e geográfica) na percepção do consumidor, além de atualizá-la acrescentando novas informações. Desse modo, a idealização da origem contribui na caracterização de seus produtos, que por sua vez caracterizam a origem dos produtos nos processos de fruição e consumo, reforçando as bases nacionais/regionais da cultura pop japonesa, mas também acrescentando novas nuances e facetas difusas uma vez constituintes de um país que transita entre tradição e modernidade. Assim, o potencial de um recurso cultural para fins de colaboração na legitimidade política nacional, através da criação da percepção de autoridade, não se subsume apenas no que ele pode dizer ou representar em relação à sua origem (origem percebida), mas passa também pela capacidade de recuperar elementos da memória internacional-popular sobre esta origem que possam colaborar em processos particulares onde a legitimação é fator fundamental para o sucesso da ação política. Retomando o ponto central de discussão para este tópico, entende-se que a legitimidade depende de como a imaginação mundial percebe o ator político, genericamente o Estado-nação, como autoridade ou referência em determinada questão. Ao tomarmos o animê como recurso para este fim, cabe investigar como ele pode colaborar para a criação de uma autoridade japonesa em determinadas questões. No caso do animê, tomemos como ponto de partida a observância do gênero mecha (contração de mechanical , do inglês, refere-se aos títulos voltados à tecnologia, sobretudo robôs, naves, ciborgues etc). Sabendo que os animês de ficção científica abriram as portas do Ocidente para as produções, como foi discutido no terceiro capítulo deste estudo, podemos indagar que contribuições essas animações trouxeram para a percepção do Japão como uma potência tecnológica desde o fim da década de 1980. Frisamos anteriormente que, num primeiro momento, é a imagem de um Japão emergindo enquanto potência econômica e tecnológica que atribui certa legitimidade às suas animações de ficção científica e robôs. 164

Porém, há que se considerar que a presença mundializada dessas produções através dos anos, pode realizar o processo inverso para novos consumidores. Os centros de tecnologia avançados, os ciborgues, robôs em pequena ou grande escala, os aparelhos holográficos, tudo isso paira sobre um novo imaginário internacional-popular do que seja o Japão e acresce uma nova e atualizada dimensão, possibilitando a criação de uma autoridade nipônica quando o assunto é tecnologia. A personagem animada Hatsune Miku é um exemplo recente e popular nesse sentido. Hatsune é uma cantora que faz turnês (de verdade) pelo Japão, projetada holograficamente, acompanhada de músicos reais. Ela surgiu para dar um "rosto" a uma voz também totalmente artificial, criada em 2007 por um software chamado Vocaloid. Esse software permite que o computador interprete músicas criadas pelos usuários, simulando uma voz real. O fato foi noticiado em jornais de todo o mundo e é acompanhado de perto nos blogs e fóruns de fãs de tecnologia. Um outro ponto que pode ser interessante para a análise diz respeito ao ambiente escolar. Como já dito, muitas produções, de distintas demografias, fazem do ambiente escolar seu pano de fundo. Escolas ginasiais, infantis, universidades, escolas de música: pode-se encontrar uma infinidade de títulos de animê que retratam o ambiente escolar no Japão, seus sistemas de avaliação e de ensino, a concorrência pelas grandes universidades, os espaços físicos. São quase sempre ambientes amplos, impecavelmente limpos, bem estruturados e bem equipados. A exigência pessoal no ambiente escolar costuma ser grande e vários títulos abordam essa questão educacional, mostrando o empenho e a superação que os personagens, alunos ou candidatos necessitam fazer para ingressarem ou manterem-se com boas notas. Os professores, via de regra, são autoridades respeitadas e a excelência (associada a uma grande competitividade) é um valor prezado acima de qualquer outro, sobretudo nos animês que se dedicam à ambientes de aprendizado específicos, como escolas de música, de moda, entre outras especialidades. Do mesmo modo como acontece em relação às animações voltadas à tecnologia, as animações com foco no ambiente escolar tendem, assim, a compor uma imagem de um país comprometido com a educação, que dispõe de boas escolas, com boa infraestrutura e alto nível de exigência, as quais inspiram disciplina, conhecimento, organização e outros valores que, associados ao senso comum de que os asiáticos são “inteligentes” e “mais esforçados” que a média dos outros alunos favorece a percepção do Japão como uma referência em educação (e não é necessário que o Japão promova essa imagem, o próprio cinema 165

americano, por exemplo, o faz à exaustão. A imagem do asiático "nerd", faz parte de um imaginário internacional-popular que afeta a percepção em relação à expertise do modelo educacional japonês). Outros fatores do cotidiano colaboram para reforçar essa autoridade, como a presença global da rede Kumon (método de ensino japonês presente hoje em 47 países), que oferecem cursos de matemática, japonês e outras línguas. Pode-se observar ainda que os animês, pela própria singularidade de sua produção e estética, podem contribuir para a percepção do Japão como um país criativo e inovador. O caráter híbrido dessas produções vai ao encontro da mística de que o Japão sempre adapta as influências estrangeiras criando algo novo (aspecto recorrente em boa parte da literatura sociológica sobre o Japão), assim como com a sua escrita, a sua cultura pop, as suas animações, promovendo sua própria concepção de gestão da produção. Um processo que é, em diferentes escalas, comum a todas as sociedades passa a ser visto como uma peculiaridade japonesa, um diferencial relativo à capacidade de inovação própria a um projeto de Estado-nação. Como dissemos antes, sendo um processo de mão dupla, as produções culturais também encarnam essa aura criativa, colaborando para a legitimação do Japão enquanto criador de tendências, seja na área tecnológica, quanto na moda, no entretenimento, no design, na arquitetura ou no campo científico. Há que recordar com Nye (2004) que essas instâncias de legitimação, mesmo quando pressupõem um apelo global a exemplo do que acabamos de discutir, devem ser analisadas contextualmente. Retomemos o exemplo das Forças de Autodefesa japonesas no Iraque: houve protestos e questões levantadas pela opinião pública japonesa em torno da legitimidade das ações governamentais no conflito no Oriente Médio: os japoneses acreditavam estar indo contra um princípio constitucional ao se envolverem no conflito do Iraque. Do mesmo modo a imprensa internacional viu com cautela o envio das tropas de reconstrução e ajuda humanitária ao Iraque, pois tratava-se abertamente de uma medida de apoio aos Estados Unidos e não havia um mandato da ONU legitimando essas ações. No entanto, a percepção dessa mesma ação governamental do Japão no Iraque teve inicialmente outro efeito, mais positivo. As Forças Armadas japonesas, concentradas do sudeste do Iraque, tiveram como objetivo levar uma mensagem de solidariedade e pacifismo, já presente em sua pasta política internacional desde o fim da Segunda Guerra. Os soldados japoneses puderam comunicar sua solidariedade ao povo iraquiano através das imagens já conhecidas mundialmente de um personagem de animê e mangá, que é um jogador de futebol, estampado nas caçambas dos caminhões. Além do apelo ao gosto local, esta 166

produção apresentava ainda a conveniência de fazer referências às competições esportivas, que também representam um ideal de confraternização e cultura de paz. No entanto, como discutimos no primeiro capítulo, o soft power como qualquer exercício de poder tem seus limites e fragilidades, e esse exemplo também nos ajuda a visualizar um deles em relação à legitimidade. A boa impressão causada pelas tropas japonesas e sua identificação a um símbolo midiático conhecido e significativo para os iraquianos (associada ainda a outros fatores, como a imersão dos soldados na cultura local, deixando a barba crescer e abdicando de comer carne de porco, por exemplo 135 ) criou um soft power que, sem uma contrapartida de fato não conseguiu sustentar-se com o passar do tempo. A perpetuação dos problemas os quais os iraquianos tinham expectativas que as tropas japonesas ajudassem a resolver: recuperação do sistema de distribuição de água, de energia e criação de empregos e revitalização da economia como um todo através da implantação de empresas japonesas, fez ofuscar a imagem criada inicialmente e abriu margem à críticas 136 . Assim, observa-se que as produções culturais, com ênfase para os recursos audiovisuais, têm a capacidade de compor fluxos de significados, conteúdos, imagens e ideologias. Produção culturais, portanto, podem influir nos processos de legitimação que envolvem ações políticas, colaborando ou dificultando sua obtenção, considerando o contexto dos indivíduos e as relações de poder envolvidas. Os animes, enquanto recursos de soft power japonês, apresentam potencialidades de colaborar para a construção de uma imagem de autoridade para o Japão em determinados aspectos, quando encontram por sua vez correspondências com outros fatores que sustentam a mesma imagem. Contudo, não estando sob o jugo do Estado, podem caminhar na direção oposta, quando associados, por exemplo, a violência e a perversão sexual (tendo-se em conta que esses são os dois temas mais polêmicos levantados com frequência em torno das animações japonesas no Ocidente). A conquista de uma imagem de autoridade relacionada a legitimidade deve ser observada, assim, em relação aos objetivos pretendidos pelo ator político, mas também em relação as condições de produção de sentido e associações possíveis com outros aspectos

135 Japanese soldiers in Iraq are advised to keep to Iraqi’s lifestyle. Pravda [05 de Fevereiro de 2004]. Disponível em: < http://english.pravda.ru/world/asia/05-02-2004/4776-iraq-0/> Consulta em: 12/12/2012

136 Para mais informações, ver: TAKEHARU, Watai. What Have Japan's Self-Defense Forces Accomplished in Iraq? The Asia-Pacific Journal: Japan Focus [15 de Dezembro de 2005]. Disponível em: . Consulta em: 10/12/2012. 167

sociais, econômicos e mesmo políticos que reforçam o fluxo de imagens produzidas em torno do consumo das animações japonesas. Vistas todas essas condições que se impõem aos recursos culturais na colaboração com a manutenção de uma hegemonia cultural, soberania econômica e legitimidade política nacionais na situação de globalização, podemos apreender como os animês enquanto conteúdos mundializados criam fluxos, tendências e práticas que influem nas três dimensões propostas, não necessariamente correspondendo às expectativas nacionais mas antes às suas próprias demandas e condições de produção, circulação e consumo. Observa-se que o Estado por sua vez, necessita oferecer condições que suportem as demandas e expectativas criadas em torno de suas produções culturais globalizadas, e que a gestão desses recursos exige uma estratégia global que, todavia, considere os contextos locais onde seu consumo se atualiza. A situação de globalização, ao mesmo tempo que impõem desafios estruturais a ideia de Estado nacional, faz emergir forças e tendências que oferecem novas configurações e formas de gestão possíveis, sendo que o campo da cultura adquire cada vez mais um papel fundamental nos projetos nacionais não apenas como o espaço de produção simbólica e material indispensável à coesão dos conjuntos humanos mas também como peça chave no desenvolvimento econômico e político.

168

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Vimos no decorrer deste estudo que os processos de mundialização da cultura e globalização da economia, possibilitados pelo advento de uma base material ancorada nas modernas tecnologias de comunicação, transporte e produção, faz desterritorializar capitais, técnicas, ideologias e produtos culturais que passam a circular através das fronteiras dos territórios e instituições. No contexto dessa situação globalizada, os animês deixam o território japonês para compor um universo cultural mundializado, tornando-se presentes no cotidiano de milhões de consumidores espalhados pelo globo. A existência desse universo comum, ou de uma cultura internacional popular, não implica, contudo, na anulação das diferenças regionais e étnicas e nem em um processo coeso que difunde as manifestações culturais igualmente entre os indivíduos e os espaços. As disputas travadas pela indústria do entretenimento na busca da produção de um mercado transnacional e as condições de consumo que se atualizam nas localidades estriam esse processo e impõem diferenças no trânsito de distintas manifestações culturais nos processos de mundialização. Os animês são produções criadas na conjunção das condições sociais, políticas e culturais japonesas e internacionais que se sucedem no decurso do século XX. Após a Segunda Guerra Mundial inicia-se o desenvolvimento do que entende-se atualmente por animê moderno, segmentado por demografias (públicos-alvo) e caracterizado por uma estética peculiar que torna-se um elemento de identificação do conjunto dessas produções. A atividade começa a tomar moldes industriais por volta dos anos 1960, acompanhando a consolidação de uma classe média japonesa e a popularização de novos meios de comunicação de massa, como a televisão. A carência de recursos econômicos é uma constante verificada em todo o processo de produção dessas animações, fator que influi decisivamente na sua técnica e estética, com a adoção de um determinado estilo de animação limitada e todo um conjunto de gags visuais que reforçam uma ideia de movimento e ação. Mesmo hoje, as dificuldades enfrentadas pela indústria de animações no Japão apontam que a fragilidade financeira do segmento permanece como um dos principais desafios aos produtores e artistas. Essa relação estreita entre a produção cultural e a autonomia financeira é característica das manifestações que se constituem na lógica da cultura pop, a qual assume-se como mercadoria e destina-se a grandes públicos: sua proposta é ser mainstream . 169

O pop, associa-se a uma cultura jovem e está intimamente relacionado à emergência das tecnologias de comunicação de massa como o cinema, a televisão, o rádio, e hoje difunde-se sobretudo através da internet. Assim, ao constituir-se nas áreas fronteiriças entre culturas hegemônicas e subalternas, o pop agrega, promove e cria sucessos audiovisuais e musicais, bem como astros e estrelas, operando na lógica de uma cultura voltada para o mercado. O consumo, como experiência construtiva através da qual os indivíduos afirmam uma subjetividade que se constitui simultaneamente no plano individual e coletivo, permite que o pop assuma um papel de destaque nos fluxos de mundialização da cultura no que se refere a divulgação e legitimação de estilos de vidas, paradigmas estéticos, valores, símbolos e práticas sociais. A cultura pop japonesa constituiu-se nos anos subsequentes à derrota na Segunda Guerra Mundial e é contemporânea da reestruturação do próprio país no pós-Guerra. Essas novas manifestações culturais, associadas aos meios de comunicação de massa e a uma condição urbana permeada por uma voga modernizante, tiveram grande influência da cultura pop americana, devido aos intensos contatos promovidos durante o período de ocupação estadunidense no país (1945 -1952). A economia japonesa tornou-se uma vitrine das benesses do capitalismo no leste asiático (o que se traduzia fundamental para os EUA no período da Guerra Fria) e o aparecimento de uma efervescente cultura pop japonesa acompanhou a tendência de consolidação das indústrias culturais e o desenvolvimento de novas tecnologias de comunicação de massa que se apresentava em outras nações industrializadas. Os animês, que eram comercializados fora do Japão de forma pontual e despretensiosa desde meados dos anos de1960, foram lançados a uma condição efetivamente mundializada na passagem da década de 1980 para a década de 1990. Primeiro, os animês chamaram a atenção do mundo com as séries e filmes voltados à ficção científica - acompanhando a vanguarda do movimento cyberpunk na produção cinematográfica live- action. E depois através de títulos com roteiros repletos de aventura, fantasia e ação que apresentavam uma concepção de personagem, roteiro e uma dinâmica de cena distintos em relação às demais animações difundidas até então. Séries como Dragon Ball , Sailor Moon e Cavaleiros do Zoodíaco encontraram espaço em uma lacuna mundial na produção audiovisual voltada para um púbico jovem, sobretudo no segmento de animações. 170

Um fator determinante na popularização dos animês no Ocidente, no entanto, foi produto não das formas legais de comercialização desses conteúdos, mas do trabalho colaborativo e subterrâneo dos fãs. Ao se apropriarem das tecnologias de edição de vídeo, os fãs teceram malhas autônomas de produção, circulação e difusão dessas animações, o que foi enormemente potencializado pela popularização da internet e da banda larga após 2001. Esse consumo subterrâneo, ao mesmo tempo em que promoveu os animês em nível global, estabeleceu desafios e lançou oportunidades ao mercado legal e às produtoras japonesas, que precisaram repensar as formas de sustentar e gerir sua produção. A observância de formação de uma singular produção de animação japonesa, seu papel na lógica da cultura pop daquele país e sua difusão pelo globo evidenciou um processo que transborda o tradicional domínio do cultural. O percurso e os panoramas que estabelecem-se em torno da produção e consumo dos animês evidenciam que a produção cultural, sobretudo na sua vertente pop, implica-se cada vez mais nas esferas econômicas e políticas na atualidade, criando processos de imbricação e disjunção que afetam-se mutuamente e interferem nas condições de gestão do Estado nacional na situação de globalização. Neste contexto, a esfera cultural passa a interessar aos Estados como contemporânea ferramenta de gestão das questões nacionais. A situação de globalização, conjunto dos fenômenos de mundialização e globalização (ORTIZ, 2007), é uma totalidade que permeia e articula as diversas partes que a constituem sem, contudo, anulá-las. Este viés tornou possível pensar e trabalhar, simultaneamente, com o comum e o diverso, a homogeneidade e a heterogeneidade, a tradição e a modernidade e, por fim, com a questão entre o global/mundial e o nacional, que se mostra fundamental para a compreensão desses processos. A realidade contemporânea é marcada não pela exclusão e pelas dicotomias, mas pela coexistência de diferentes temporalidades e conjuntos de unidades sociais, mesmo quando através de processos disjuntivos (APPADURAI, 2005) ou contraditórios. O que faz-se necessário é compreender as reconfigurações por que passam os Estados nacionais ante os fluxos que o atravessam e qual o papel da cultura nesse processo. Observou-se com Ortiz (1994) que a formação das nações exprime um primeiro movimento de desterritorialização, que deve ser entendido no conjunto maior de transformações promovidas pela modernidade, aqui entendida como o momento de transição da sociedade agrária para a industrial (o Estado, como máquina político-administrativa que detém o monopólio da força é bastante anterior). Os indivíduos, afrouxando os laços com as 171

localidades, reagrupam-se moral, mental e culturalmente no conjunto maior da nação, evidenciando o caráter de mobilidade e expansão da modernidade. A nação constitui-se assim como a primeira afirmação da mundialidade. A expansão da modernidade-mundo para além dos limites das nações e dos territórios irá relativizar as noções de dentro e fora, próprio e alheio, mobilizando fluxos que, se antes permitiram a formação das nações, agora lhes escapam ao controle e exigem reconfigurações. Os Estados-nação veem-se desafiados nesse contexto a repensar os modos de se afirmar em relação tanto a sua hegemonia, no plano da nação, quanto a sua soberania, no plano político- administrativo das competências do Estado. Este cenário de instabilidade das bases de gestão dos Estados nacionais e da constatação da falibilidade dos modelos de capital (físico em 1960, humano em 1980 e social a partir de 1990) até então utilizados no objetivo de promover melhorias sociopolíticas e econômicas, as quais se traduziriam por fim em um estado de bem-estar social, promoveu a adoção da cultura como contemporâneo recurso para estes fins. A utilização da cultura como recurso visa aumentar a participação dos Estados nos processos que os transcendem e os fragilizam não somente em relação à sua hegemonia e soberania, mas também, acrescentamos (com base nas evidencias surgidas em torno das práticas de produção e circulação da informação), em relação à legitimidade das suas ações. A gestão da cultura como recurso passa a ser uma questão capital para os Estados-nação. O Soft Power (NYE, 2004) é uma teoria de ação política que desenvolve-se nesta perspectiva. Ela caracteriza-se como uma estratégia de gestão do poder componente de uma abordagem dialética na qual o poder de atração ( soft power ) contrasta com o poder de coerção ( hard power ), ambos sintetizando-se no smart power (poder inteligente). A necessidade de cooptar em relação a coagir cresce de importância na situação globalizada, marcada pela multiplicidade de tecnopanoramas, midiapanoramas, finançopanoramas e idepanoramas (APPADURAI, 2005), onde as informações decuplicam-se através do uso ativo das tecnologias não apenas pelos conglomerados de mídia e canais oficiais como pelos indivíduos que se tornam também produtores. O uso da violência e de coerções realizadas através da economia, como sanções, também têm de ser repensados diante desse cenário em que as condições tecnológicas para a violência também se globalizam, e o multilateralismo sobreleva-se ao bilateralismo na lógica econômica globalizada. A legitimidade da ação política constrói-se caoticamente através de múltiplas mediações e platôs impostos pelas novas tecnologias de comunicação, tornando-se 172

muito mais complexa e matizada. Todos estes aspectos colaboram para a consideração de uma estratégia de gestão nacional que organize-se em torno do manejo das fontes de atratividade, sendo a cultura considerada como um de seus pilares. Diante da observação do trajeto dos animês enquanto produtos midiáticos e mundializados, e das necessidades que se impõem aos Estados-nação na situação de globalização, buscou-se neste trabalho propor uma forma de se analisar os recursos culturais para fins de colaboração da gestão nacional através de ações de Soft Power. Com base nos pontos que mais exigem uma reconfiguração dos Estados no cenário delineado (a hegemonia cultural, a soberania econômica e a legitimidade política), estabeleceram-se critérios que, de acordo com as evidências encontradas na pesquisa, traduzem a capacidade de colaboração de um recurso cultural para cada um desses aspectos. Em relação a hegemonia cultural, esses critérios foram: 1) visibilidade e acesso: apresentação de fluxos mundializados ou panoramas de amplo alcance, 2) apelo ao gosto: carga afetiva associada aos conteúdos, produtos e manifestações culturais, 3) identidade reconhecível: carga simbólica associada a uma origem geográfica (ou étnica, pode-se acrescentar) e ao segmento, e 4) capacidade de autopromoção. Em relação a soberania econômica, os critérios desenvolvidos dizem respeito a: 1) competitividade econômica externa, 2) atração de talentos e investimentos, e 3) fomento de outras atividades e setores da indústria. Já em relação a legitimidade política, os critérios consistem em: 1) relacionar-se a valores (percebidos pelo consumidor) como positivos, e 2) construir uma imagem da localidade originária como referência ou autoridade. Por fim, analisaram-se os fluxos autônomos apresentados pelos animês em seu processo de produção, circulação e consumo submetendo essas produções aos critérios propostos. Feito todo esse trajeto, recupera-se aqui a questão que é colocada no quarto capítulo deste estudo. Que potencial o animê apresenta em seus fluxos de produção e consumo para a colaboração na realização de uma hegemonia cultural, soberania econômica e legitimidade política japonesas no tempo presente? Observando os dados apontados na análise pode-se fazer algumas considerações. Em relação a colaboração para a realização de uma hegemonia cultural japonesa, os animês apresentam fluxos que os colocam em uma posição de destaque no maisntream global de conteúdos audiovisuais. Essas animações se mostram hegemônicas em seu segmento pelas vias legais, sendo as mais exibidas nos canais do mundo, mas é ainda pelas vias subalternas 173

de consumo que os animês demonstram seu poder. A mobilização dos fãs de forma espontânea faz circular e chegar a todos os cantos do planeta centenas de títulos e séries disponíveis no mercado japonês, a maioria dos quais que não encontram espaço no mercado legal fora do Japão. O trabalho dos fansubs (ou fansubbers ), de qualidade profissional ainda que amador, exige um processo colaborativo e organizado que não retorna agregado de valor financeiro, mas afetivo entre os consumidores. A capacidade que o animê demonstra de alcançar um público disperso e independente de estruturas legais de distribuição ou da promoção do Estado evidenciam seu apelo a um gosto internacional-popular. Os animês reforçam constantemente a ideia de uma origem, através primeiramente desse nome próprio que já a singulariza e a referencia em relação ao Japão, segundo através dos traços já presentes no imaginário coletivo mundial sobre o Japão que muitas vezes são resgatados nessas animações, como a imagem das cerejeiras, quimonos, o uso dos hashis (talheres que consistem em varetas), os nomes e por último, mas não menos importante, a existência de um paradigma estético que se tornou característico e distintivo. Há que se frisar que as capacidades de conexão de um produto com uma pressuposta origem geográfica (vistos os processos de hibridação que de fato constituem as produções culturais no mundo globalizado) também são facilitados com a profusão de informações disponíveis, sobretudo em rede, mas também nos canais de televisão, livros e outras publicações. A capacidade que os animês apresentam de promover os mangás, dramas e outros produtos do pop e da cultura tradicional japonesa, fomentam as convergências midiáticas (JENKINS, 2009) e as atividades gregárias de fãs, no espaço virtual e presencialmente. Essa capacidade indica seu grande potencial de colaboração para a realização da hegemonia cultural, tanto a nível de segmento quanto a nível de manutenção de um espaço de visibilidade para o Japão nos fluxos de mundialização. Já a capacidade demonstrada pelos animês de colaborar com a soberania econômica japonesa mostra-se mais relativa, sobretudo no sentido da obtenção de benefício financeiro direto. Isto se deve a problemas internos à indústria japonesa de animação, mas também reflete a dificuldade globalizada das indústrias de entretenimento de se organizarem financeiramente ante as novas condições tecnológicas, as quais propiciam a emergência dos sujeitos como produtores e distribuidores autônomos de conteúdos e facilitam as atividades de pirataria. Internamente, a estruturação precária da indústria de animação japonesa, caracterizada por pequenos estúdios, baixos salários para os artistas, ausência de plano de carreira, 174

diminuição da formação de mão de obra qualificada (devido à prática da terceirização de etapas de produção para localidades onde a mão de obra é mais barata) e ineficiência na gestão dos direitos de licenciamento a nível internacional, coloca sérias questões à viabilidade do setor. A diminuição do total de animações produzidas no país nos últimos anos deste início de século evidencia que uma reestruturação da cadeia de produção, apoiada em devidas medidas legislativas que garantam melhores condições de trabalho aos artistas e profissionais, faz-se urgente para a manutenção do status nipônico de maior provedor mundial de animações. Há que se considerar, contudo, que os animês apresentam a capacidade de atrair talentos e investimentos para o país. As parcerias entre produtoras japonesas de animação e investidores estrangeiros tem sofrido uma crescente desde 2005, como apontam as pesquisas da Organização de Comércio Exterior japonesa (JETRO) e foi verificada nos exemplos comentados na análise. De outro lado, cada vez mais instituições de ensino, incluindo grandes universidades, estão oferecendo cursos de formação e estudo na área do pop japonês, buscando atrair estudiosos, profissionais e fãs de todo o mundo. Os animês, sobretudo, demonstram grande potencial para o fomento de outros setores produtivos nacionais. Além de promover a abertura do mercado mundial para os mangás, outro forte braço da indústria criativa japonesa, os animês potencializam os lucros das empresas licenciantes de produtos correlatos, mobilizam todo um turismo otaku que revitaliza a economia de pequenas e grandes cidades pelo Japão, associa-se também e diretamente a indústria da moda jovem e urbana japonesa, a qual desfruta do status global de trendsetter, e de forma indireta promove inclusive o setor de alimentos. Diante do potencial, mas também da fragilidade econômica do setor de animês, o governo japonês começa a criar medidas que se destinam a garantir sua sobrevivência, ainda que de forma pontual e indireta. A criação da All Nippon Entertainments Works (agência destinada a fazer a mediação, promoção e comercialização dos direitos das produções da indústria de conteúdos japonesa no exterior) evidencia-se como uma iniciativa nesse sentido. Desse modo, a capacidade do animê de colaborar com a soberania econômica japonesa traduz-se ainda, grandemente, em termos de potencialidade, que para ser aproveitada de forma efetiva necessita de uma urgente reestruturação do setor, internamente, com o preparo das empresas na gestão da mão de obra e dos direitos de comercialização das produções fora do Japão, além de uma maior participação do Estado no regulamento das leis trabalhistas e fomento ao setor criativo da indústria. 175

Por fim, pode-se concluir sobre a capacidade de colaboração dos animês para a legitimidade política japonesa que esta é a mais intangível e sutil das categorias de análise, e deve ser considerada contextualmente, diferentemente do que pressupõe a soberania econômica ou mesmo a hegemonia cultural (que pode ser observada em relação a uma região específica, mas possui uma vocação global). A percepção dos valores e a associação que os produtos criam em relação a um referencial nacional irão depender de múltiplas mediações e experiências prévias e expectativas dos sujeitos envolvidos, além dos objetivos específicos das ações políticas em questão, como foi demonstrado. Sem desconsiderar esse fator histórico-contextual, é válido afirmar que enquanto recursos culturais, os animês promovem determinadas imagens de Japão, da sociedade e dos valores japoneses que podem ser percebidas não apenas nas animações em si, mas também em relação ao seu processo de produção. Essas imagens que pairam sobre o produto animê reforçam, implicam e reformulam concepções que já existem em um senso comum global que é difundido pelos meios de comunicação a respeito do Japão e de uma identidade japonesa. É próprio aos Estados nacionais, em seu processo de evolução, organizar sua cultura política em torno de palavras-chave (APPADURAI in FEATHERSTONE, 1999). São essas palavras-chave que difundem-se no senso comum e, num processo de retroalimentação, irão refletir na percepção da sua produção cultural, que por sua vez reformula e atualiza o imaginário internacional-popular reconstruindo imagens da nação para o mundo. Assim, pode-se identificar em relação a um imaginário internacional-popular, observado enquanto totalidade, que os animês colaboram na reafirmação e na reconstrução de imagens do Japão como referência em relação a questões específicas, como a expertise tecnológica, a excelência educacional, a valorização da tradição e a capacidade criativa e de inovação, sendo que esta encontra sua promoção através dos animês não apenas por estes constituírem-se como produção distinta de todas antes vistas pelos consumidores em termos de animação, mas pela própria dinâmica de segmentação e produção das animações, a qual denota liberdade criativa (posto que fora do Japão a animação tradicionalmente pertence ao terreno da infância), inventividade e arrojo. Considera-se, por fim, que os animês, como as produções mais destacadas da cultura pop japonesa globalmente, partilham com ela a condição de subcultura no seu país de origem. Principalmente na esfera de promoção governamental. A cultura pop, e todas as suas manifestações, surgem no contexto da experiência de modernização do país, experiência que se traduz em um mal-estar cultural e político para o 176

Japão no início deste século, pois traz consigo uma ideia inconveniente (e que lhe é contemporânea) de ocidentalização. Esse mal-estar moderno, que afeta a concepção de uma identidade nipônica singular, encontrará seu contraponto na proliferação de uma literatura que se presta a discutir a japonidade e define o “espírito japonês” e seu tradicionalismo cultural como o lócus de uma essência identitária. A reticência japonesa na promoção de seus produtos pop, apesar do constatado potencial como recurso cultural para gestão das questões nacionais, pode ser observada sob este prisma em último caso. A intensa produção de uma cultura pop aponta os modos como o país simultaneamente busca os processos de modernização da economia, além de novas formas de ação política no mundo globalizado, mas se debate com o a questão de ver-se também capturado numa espécie de experiência de ocidentalização no plano cultural. Outra questão influente é o modelo de política externa japonesa que tem vigorado desde o o fim da Segunda Guerra Mundial e que assenta-se na atuação política realizada através da economia. Tendo habituado-se a encontrar no desempenho econômico o fundamento da sua política externa, o governo japonês é hesitante na adoção dos animês e outras manifestações pop como recursos culturais de gestão nacional, os quais não têm no retorno financeiro direto seu maior benefício. A análise desenvolvida neste trabalho não objetiva esgotar o tema, nem em relação à análise dos animês como recursos culturais nem em relação aos novos usos da cultura nas sociedades contemporâneas. Buscou-se, ao contrário, contribuir através dos mapas precários (BARBERO, 2009) aqui desenvolvidos a respeito de um produto cultural que nos chega pelos fluxos midiáticos da mundialização, para a abertura dos debates em torno da sua apropriação enquanto ferramenta política no tempo presente. O entendimento dos mecanismos de produção e circulação cultural na atualidade exige uma ampliação do olhar para as esferas política e econômica, cada vez mais imbricadas, a fim de compor um panorama mais coeso de completo dos processos que envolvem a cultura e suas múltiplas abordagens nos dias atuais.

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Crédito das Imagens

Capítulo 1 Fig 1 Gráfico retirado do relatório Mastering tempo: creating long-term value amidst accelerating demand , produzido por Ernst & Young/Forum D'Avignon. 2012. Capítulo 2 Fig 2 Fotografia de Tóquio, autoria desconhecida. Imagem retirada do artigo Postwar Japan, 1952- 1989 , de autoria de Peter Frost. Disponível em: < http://aboutjapan.japansociety.org/content.cfm/postwar_japan_1952-1989> Capítulo 3 Fig 3 Imagem do filme Hakuja Den (1958), Toei Animation. Disponível em Fig 4 Imagem do akahon de Shin Takarajima, de Osamu Tezuka. Disponível em Fig 5 Imagem detalhe do akahon de Shin Takarajima, de Osamu Tezuka. Disponível em Fig 6 Imagens da série Tetsuwan Atomu (1963), Mushi Productions, Osamu Tezuka. Disponíveis em: (superior) . Inferior: < http://thiswastv.com/2013/01/15/review-astro-boy-uran-and-robot-school/> Fig 7 Imagem da série Pokémon (1997), Shogakukan-Shueisha Productions Co., Ltd, SoftX. Disponível em: < http://www.telegraph.co.uk/health/children_shealth/4946220/Cartoons-like- Pokemon-can-make-children-aggressive.html> Fig 8 Imagem da série Karekano (1998), , J.C.Staff, GANSIS, SoftX, TV Tokyo. Disponível em: < http://www.fanpop.com/clubs/kare-kano/images/6403085/title/kare-kano-photo> Fig 9 Imagem da série One Piece (1999), Toei Animation, Fuji TV, Shueisha. Disponível em: < http://onepiece.wikia.com/wiki/Enies_Lobby_Arc> Fig 10 Imagem da série Strawberry Panic! (2006), Studios, , Ichigo-sha, Lantis, Marvelous Entertainment, MOVIC, Optrum, Yomiko Advertising Inc. Disponível em: 184

Fig 11 Imagens da série Sekai Ichi Hatsukoi (2011), , AT-X, Dax Productions, , The Klockwokx Co., Ltd. Disponível em: Fig 12 Imagem da série Nodame Cantabile (2007), J.C. Staff. Disponível em: Fig 13 Imagem da série Monster (2004), Madhouse Studios, NTV, Shogakukan-Shueisha Productions Co., Ltd.. Diponível em: < http://revistagamerstyle.com/2010/07/02/resena-monster-anime-y-manga/> Fig 14 Imagem da OVA (Original Video Animation) Bible Black (2001), Museum Pictures. Disponível em: Fig 15 Imagem promocional da série Gintama (2006), Dentsu, Inc., Shueisha, , TV Tokyo. Disponível em: Fig 16 Capa do DVD do filme Chihiro no Kamikakushi (2001), Studio Ghibli. Disponível em: Fig 17 Imagem promocional da OAV Hellsing Ultimate (2006), GDH, Geneon Entertainment Inc., Geneon Entertaiment (USA) Inc., Satelight, Shonengahosha, Wild Geese. Disponível em: Fig 18 Imagem promocional da série NaNa (2006), Madhouse Studios, NaNa Production Team, NTV, Shueisha, VAP. Disponível em: Capítulo 4 Fig 19 Fotografia das forças de Auto-defesa japonesas no Iraque em frente a um caminhão de água estampado com o personagens da série Kyaputen Tsubasa (1983 - Tshuchida Productions), autoria desconhecida. Disponível em: < http://www.mofa.go.jp/announce/announce/2004/10/1026-2-l.html> Fig 20 Imagem retirada do documento Cool Japan Strategy (pdf), produzido pelo Ministério de Economia, Comércio e Indústria do Japão. Disponível em: . Fig 21 Folder promocional dos pontos turísticos relacionados aos animês no Japão (frente e verso). Imagem retirada da página oficial da Organização Nacional de Turismo do Japão (JNTO). Disponível em:

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Apêndice

Listagem dos fansubs em língua portuguesa ativos em 27/03/2012

1. PUNCH! Sub http://www.punchsub.com/ 2. OMDA Fansubs http://bt.omda-fansubs.com/ 3. Kanshin Fansubs http://kanshin.com.br/ 4. Mirai Fansub http://www.miraifansub.net/ 5. animesPLUS Fansub http://animesplus.com.br/tracker/ 6. MDAN Fansub http://www.mdan.org/ 7. Bakarayo-Fansub http://www.animeblade.com.br/fansub/info/402/ 8. Hacci Fansub http://www.hacchifansub.com.br/ 9. Kyun Fansub http://kyunfansub.com/ 10. PA Fansub http://pa-fansub.org/ 11. Heaven Fansub http://www.heavenfansub.com.br/ 12. Hyuusei Fansubs http://www.ryuusei-fansubs.com/ 13. e2 Fansub & Scanlator (aglutinador) http://e2fansub.com/index.php 14. Sakurai Fansub http://www.sakuraifansub.com/ 15. GYN Fansub http://www.gynfansub.com.br/ 16. Sakura Fansub http://sakurafansub.com/ 17. Dollars Fansub http://dollarsfansub.blogspot.com.br/ 18. Eternal Animes Fansub http://eternalanimes.org/ 19. Onegai Fansub http://onegai-fansub.com/ 20. Aya Fansub http://ayafansub.com/ 21. Yokai Fansub http://ya-fansub.com/ 22. Anime Fansub Brasil (aglutinador) http://www.afbr.org/ 23. Eros Fansub http://www.erosfansub.com/ 24. Evolution-Fansub http://www.evolution-fansub.net/p/projetos.html 25. START Fansub http://startfansub.wordpress.com/ 26. Perfect Zect Fansub http://www.tokufriends.net/perfectzect/ 27. Nadja Applefield Fansub http://nadja-applefield.zip.net/ 28. Suiren Fansub http://suirenfansub.com/?page_id=10 29. Gokigenyou Fansub http://www.gokigenyou.com.br/ 30. Fansub Anime Land http://www.fansubanimeland.com.br/ 31. Union Fansub http://www.union-fansub.com/ 32. F4AW Fansub http://f4aw.com/ 33. Shin Yuu Fansub http://www.shinyuufansub.com/animes.html 34. Akuma Fansub http://akumafansub.com/index.html 35. Ryo Dark Fansub http://www.ryodark-fansub.org/ 36. Silex-Fansub http://silexfansubs.com.br/ 37. Sharingan Fansub http://sharingansubs.awardspace.com/ 38. Shinsei-Subs http://www.shinsei-subs.net/ 186

39. morningspeeds Fansub http://morning.oversubs.org/ 40. Troyta Sub http://www.troyta.com.br/ 41. Madao Fansub http://blog.madaofansub.com/ 42. DragonSeven Fansub http://www.dragonseven.site50.net/ 43. Câncer Fansub http://cancersub.wordpress.com/ 44. Himitsu Shudan Fansub http://himitsu-shudan.site90.net/ 45. BAM! Fansub http://bamfansub.webs.com/himawari.htm 46. AnimaKai! Fansub http://www.animakai.com.br/ 47. Nojirito Fansub http://www.nojirito.com/ 48. Kyoshiro Fansub http://www.kyoshiro-fansub.com/ 49. Hinata Sou http://www.hinata.xpg.com.br/index2.php 50. Kyros Fansub http://www.kyrosfansub.com/ 51. ShaKaw Fansub http://shakaw.com.br/ 52. Bloody FanSub http://bloodyfansub.blogspot.com.br/ 53. Mew Project Fansub http://mewproject.ueuo.com/ 54. Avidown http://site.avidown.net/ 55. Avalon http://avalontracker.org/?page_id=466 56. Motto Fansub http://www.mottofansub.com/ 57. Aenianos Fansubber http://aenianos.com.br/ 58. Shiroki Tsubasa Fansub http://stfansub.wordpress.com/ 59. Animescenter http://www.animescenter.com/ 60. PT Fansub http://pt-fansub.blogspot.com.br/ 61. Otaku BR http://www.otakubr.com/tag/fansub/ 62. Clow Fansub http://www.clow-fansub.com/