Murilo Mendes Em Portugal Writing the Journey, Opening Windows: Murilo Mendes in Portugal

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Murilo Mendes Em Portugal Writing the Journey, Opening Windows: Murilo Mendes in Portugal Escrever a viagem, abrir janelas: Murilo Mendes em Portugal Writing the journey, opening windows: Murilo Mendes in Portugal Aline Leão do Nascimento Universidade Federal de São Paulo DOI https://doi.org/10.37508/rcl.2020.n44a407 Resumo Janelas verdes (1970), de Murilo Mendes, obra fundada na sua experiência de viagem em Portugal, abre-se, de muitos modos, ao diálogo com a cul- tura portuguesa. A leitura prosseguirá demonstrando que a comunicação entre Murilo e os portugueses, em Janelas verdes, aparece incorporada por meio da citação e da biografia, em que a informação biográfica e ima- ginação se intercambiam na figuração do outro, de modo a constituir o caráter híbrido e também arquivístico do texto, já que se coloca como lu- gar de memória, via de comunicação entre o passado e o presente. Palavras-chave: viagem; citação; biografia; arquivo. Abstract Janelas verdes (1960-1970), by Murilo Mendes, written based on his expe- rience of traveling through Portugal, presents, in various ways, the dialo- gue with Portuguese culture. The reading will continue showing that the communication between Murilo and the Portuguese is incorporated in Janelas verdes through quotation and biography, in which the biographi- cal information and imagination are amalgamated in the figuration of the other, in order to constitute the hybrid and archival character of the text, since it is placed as a place of memory and a way of communication Convergência Lusíada, Rio de janeiro, v.31, n. 44, p.234-254, jun-dez 2020 234 ESCREVER A VIAGEM, ABRIR JANELAS: MURILO MENDES EM PORTUGAL between the past and the present. Keywords: travel; citation; biography; archive. Escrever, abrir janelas O artigo visa apresentar alguns dos muitos diálogos estabelecidos entre Murilo Mendes e a cultura portuguesa manifestados de dife- rentes modos em Janelas verdes, obra fundada nas viagens do escri- tor em Portugal. Escrita em meados de 1960-1970, quando Murilo já residia na Europa, a obra só foi publicada, postumamente, pela pri- meira vez, em 1989 em Portugal.1 Seu texto apresenta-se organizado em dois setores. No “Setor 1”, Murilo trata dos espaços portugue- ses por ele transitados. No “Setor 2”, o autor compila alguns relatos biográficos sobre personalidades portuguesas. Cada setor2 contém uma série de conjunto de fragmentos intitulados ora pelo nome dos lugares, ora pelo nome das pessoas, e subdivide-se em blocos demar- cados por A, B, C, D, E. No interior dos textos, os fragmentos que for- mam os conjuntos, em pequenas porções, aparecem separados por 1 A publicação da primeira edição da obra em caráter parcial, contando apenas com o setor 1 destinado aos lugares de Portugal, ocorreu por intermédio da Ga- leria 111 em Lisboa, em 1989. Trata-se de uma edição considerada de luxo, em que cada capítulo é acompanhado de duas serigrafias originais da artista portu- guesa Vieira da Silva. A tiragem foi a de 250 exemplares. Antes, em 1980, alguns textos de Janelas verdes, saíram na coletânea de prosa organizada pelo autor e publicada postumamente, Transístor. A segunda edição completa, contendo os dois setores, compõe a Poesia completa e prosa do autor, publicada pela Nova Aguilar, em 1994. Em 2003, Janelas verdes ganha uma terceira edição, autônoma e integral, publicada pela editora portuguesa Quasi Edições. 2 Está na etimologia da palavra setor o sentido que atravessa estruturalmente o texto “janelístico”, já que setor, vem do latim, sector, “o que corta”. Os cortes textuais, além de performarem o ponto de vista móvel do viajante, geram frag- mentos que se justapõem, resultando na montagem. Convergência Lusíada, Rio de janeiro, v.31, n. 44, p.234-254, jun-dez 2020 235 ALINE LEÃO DO NASCIMENTO uma marca gráfica.3 A leitura demonstrará, com alguns exemplos pinçados da obra, que a comunicação entre Murilo Mendes e os portugueses aparece, em Janelas verdes, incorporada em procedimentos como o da citação. A construção do olhar sobre a paisagem no “Setor 1” do livro, dedicado aos lugares portugueses, passa pela citação de outros textos, índi- ce do diálogo que se dá entre a experiência pessoal e a experiência do outro. Neste sentido, tomo como exemplo desta relação, dentre muitas, a interlocução entre Murilo Mendes e Jaime Cortesão, sogro e companheiro de viagem, que aparece em alguns momentos do li- vro. Além da citação, o gesto que se abre ao outro é incorporado no procedimento de biografar presente no “Setor 2” da obra, destinado aos perfis de personalidades portuguesas, em que dados biográficos e imaginação se intercambiam na figuração do outro. Desse modo, é sobre o contar com o outro, presentificando-o por meio da citação, e o contar sobre o outro, um exercício biográfico, que este trabalho pretende discorrer. As vias de comunicação e interlocução entre Murilo e os portugueses, presentes em Janelas verdes, constituem a extraterritorialidade da sua prosa de viagem, uma vez que levam o texto a deslocar-se continuamente. Como explica Guimarães (1993), a prosa muriliana é extraterritorial porque estabelece trânsito livre entre temas, gêneros, linguagens, constituindo a condição fronteiri- 3 Como nota Luciana Stegagno Picchio no prefácio à primeira edição completa e autônoma de que faço uso neste trabalho e como demonstram os manuscritos que integram o volume da terceira edição de que faço uso, Murilo em seu pro- cesso de revisão cogitava incluir como introito a “Microdefinição do autor”, tex- to que depois passou a fazer parte de Poliedro. Entre os setores 1 e 2, um “inter- médio poético” de murilogramas a Camões, Antero de Quental, Cesário Verde, António Nobre, Fernando Pessoa e Maria da Saudade Cortesão. Posteriormen- te, os murilogramas passaram a integrar Convergência, livro de poesia. Deste modo, o volume deixado por Murilo para ser publicado é o que se mantém na edição de 2003, contendo dois setores, “Notas do Autor” e “Glossário Mínimo”. Convergência Lusíada, Rio de janeiro, v.31, n. 44, p.234-254, jun-dez 2020 236 ESCREVER A VIAGEM, ABRIR JANELAS: MURILO MENDES EM PORTUGAL ça da sua produção. Esta extraterritorialidade encena uma abertura do texto a múltiplas referências, uma espécie de campo expandido que funciona como um receptor de influências que derivam de di- versas fontes, línguas e gêneros caros a Murilo. É sabido que o próprio texto que se vincula à categoria de literatura de viagem é, por sua vez, bastante híbrido. A hibridez, do ponto de vista do texto viático, se constitui, sobretudo, em decorrência de um processo de incorporação de muitas fontes históricas, antropológi- cas e culturais pelo olhar do viajante. O escritor viajante movimenta aquilo que viu, ouviu, imaginou. A própria experiência diante da paisagem é uma construção. Segundo Michel Collot, a experiência da paisagem resulta da “interação entre o local, sua percepção e sua representação” (2013, p. 18) ou seja, é “produto do encontro entre o mundo e um ponto de vista”, cuja visão que se tem, através desse movimento trajectual, por sua vez, não tende a uma totalidade, mas é reconstituída à base de fragmentos (COLLOT, 2013, p. 21). O pensa- mento sobre a paisagem é pensamento-paisagem, porque incorpora à sua configuração a multiplicidade que constitui essa experiência, pondo-a à mostra no horizonte do texto, comunicando-a. “Abrindo o povo tantas janelas, quer dizer (suponho) que é arejado, que ama a vida, a comunicação” (MENDES, 2003, p. 17). Desse modo, tendo como premissa a ideia de que o espaço da obra é lugar em que as janelas metaforizam instâncias de comunicação com o outro, este artigo visa recuperar alguns momentos em que esse diálogo se ma- Convergência Lusíada, Rio de janeiro, v.31, n. 44, p.234-254, jun-dez 2020 237 ALINE LEÃO DO NASCIMENTO nifesta, de modo que se constitua a “Janelópolis” muriliana.4 Um dado contextual de natureza política nos permite inscrever a ima- gem da janela como instância de arejamento diante de um cenário em que, como diz Manuel Alegre, “Portugal viveu fechado sobre si mesmo” (2002, p. 34). A ditadura de Salazar provocou um longo en- clausuramento. Murilo, em Roma, em uma das cartas endereçadas à Virgínia, sua irmã, por volta de 1970, revela-se constantemente amargurado, quando diz que Em Portugal passam-se também coisas terríveis — assassinatos e prisões de artistas e escritores. A imprensa aí não grita?... Devem saber de alguma coisa, pelo menos. As notícias que nos chegam da situação brasileira também são inquietantes [Roma, 25/03/1962] (THOMPSON, 2009, p. 162). Em Roma, as notícias de ao redor do país e do além-mar chegam e geram um clima de enclausuramento angustiante no poeta. “Não se sabe para que lado se virar”, e por isso Para desabafar um pouco, escrevo em todos os momentos li- vres. Terminei Janelas Verdes, escrito em chave de “humour”. Segue amanhã para Lisboa, onde deverá sair dentro de alguns meses. Saudade acha que os leitores portugueses vão cair para trás. Mas Lisboa está habituada a terremotos [Roma, 22/05/1970] (THOMPSON, 2009, p. 162). 4 Em “Guimarães”, o primeiro conjunto da série de textos do setor dedicado aos lugares, Murilo introduz a imagem das janelas como índice de comunicação e harmonia. “Debruçar-se à janela voltando a ser uma ocupação instrutiva, Gui- marães serviria de modelo a outras cidades futuras; provavelmente se fundará uma Janelópolis universal, traduzindo abertura para a invenção, a liberdade, a convivência e a paz definitiva; com muitas janelas verdes, além de vermelhas, brancas, azuis, dialogando-se” (MENDES, 2003, p. 20). Convergência Lusíada, Rio de janeiro, v.31, n. 44, p.234-254, jun-dez 2020 238 ESCREVER A VIAGEM, ABRIR JANELAS: MURILO MENDES EM PORTUGAL Uma quase prosa sobre Portugal Nos idos de 1969, Murilo, em correspondência para Laís Corrêa, diz: Terminei meu último livro, “Janelas Verdes”, quase todo em prosa (temas portugueses).
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