PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC-SP

Danielle Morais Gaspar

Os documentários do IPES e a campanha ideológica: As práticas audiovisuais e a preparação do golpe de 1964

MESTRADO EM COMUNICAÇÃO E SEMIÓTICA

SÃO PAULO 2012

Danielle Morais Gaspar

Os documentários do IPES e a campanha ideológica: As práticas audiovisuais e a preparação do golpe de 1964

MESTRADO EM COMUNICAÇÃO E SEMIÓTICA

Dissertação apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, como exigência parcial para obtenção do título de MESTRE em Comunicação e Semiótica, sob orientação do Professor Dr. Amálio Pinheiro

SÃO PAULO 2012

Banca Examinadora

______

Dedicatória

Aos meus pais, Nicea e Marcelo, por acreditar em mim.

Ao André, por deixar minha vida sempre colorida.

Agradecimentos

Ao Amálio Pinheiro, pela honestidade de suas palavras nos momentos confusos. Pela ousadia de suas escolhas que, sem dúvida, irradiam em sua orientação frente aos caminhos da pesquisa. Contribuições valiosas que nos tiram da morosidade e nos provocam na investigação. Ao CNPq e a PUC-SP, pela bolsa de estudo que contribuiu para a realização desta pesquisa. Ao pesquisador Marcos Corrêa, pelo desapego com os materiais ipesianos por ele já estudados e que, tão gentilmente, foram entregues as minhas observações. Aos colegas do grupo de pesquisa „Comunicação e Cultura: Barroco e Mestiçagem’, por dividirem comigo suas experiências nesta trajetória. Aos parceiros dos corredores da PUC, Luis Fernando dos Reis Pereira, Julia Albano da Silva e Bernardo de Aguiar, por me impulsionarem nas horas em que a paralisia das palavras me consumia. À Krishna, irmã de coração, por sua cumplicidade de vida. Aos amigos Cello, Karla, Tata e Miro companheiros de sempre. E, por fim, ao charango Fellini, por me fazer sorrir. Ah, sim. E por tudo aquilo que não vi, mas senti.

"Como objeto de la ciencia, el hombre no puede tratarse como una cosa. Para investigar lo vivo, hay que participar en la vida" Vicente Romano

Resumo Entre 1962 e 1964, o IPES (Instituto de Pesquisa e Estudos Sociais) utilizou diversos veículos de comunicação para promover uma campanha ideológica materializada em um discurso que combatia a esquerda trabalhista representada por João Goulart. O objetivo da pesquisa é refletir sobre o processo de mediação dos documentários realizados pelo IPES, financiados pela elite industrial brasileira, para „alertar‟ e mobilizar o público sobre as „tendências comunistas‟ que associava ao governo. Partimos da hipótese de que as práticas audiovisuais, centradas na experiência do cinejornal, foram determinantes para reforçar um sistema de signos conservadores presente na sociedade, no intuito de torná-lo hegemônico e viabilizar a tomada ilegal do poder no golpe militar de 1964. É por este motivo que pesquisar os documentários do IPES exige pensar tanto o espaço da produção como o tempo do consumo, ambos articulados pela cotidianidade (usos e práticas) e pela especificidade do dispositivo tecnológico em questão. Nossa estratégia de investigação evita análises centradas nos aspectos de emissão/recepção por considerá-las inadequadas, devido sua simplificação binária, para dar conta de um cenário de múltiplas imbricações. Diante disso, a metodologia foi construída considerando que os documentários ipesianos se apropriaram das práticas audiovisuais para fortalecer determinadas temáticas e valores atuantes na sociedade na época que reduziram as instâncias da cultura ao imprinting (Morin), neste caso, institucional e ideológico. Para tanto, conceitos como semiosfera (Lotman), mediação (Martín-Barbero) e semiopragmática (Odin) também permearam este trabalho. Ao todo o IPES produziu 20 documentários dos quais 14 encontram-se restaurados e disponíveis para consulta no Arquivo Nacional, assim como os documentos administrativos. Valendo-se do decreto nº 21.240, de 1932, que obrigava as salas a veicularem produções nacionais antes das atrações principais, no caso, filmes longas-metragens de produção estrangeira e da rede de distribuição do produtor Jean Manzon os documentários foram exibidos nas salas de cinema de todo país. A pesquisa nos revela que a convergência de um eixo diacrônico, localizado nas matrizes culturais da prática do cinejornal e no contexto político- cultural, com um eixo sincrônico que relaciona as especificidades dos documentários com a sugestão de um determinado uso e trajeto de leitura foi determinante para reforçar um discurso pautado pela defesa da Nação. Ao potencializar signos conservadores atuantes na sociedade, os documentários do IPES ajudaram a institucionalizar um cenário de medo frente à „ameaça vermelha‟ que deflagrou nos anos de ditadura militar.

Palavras-chaves: Documentário; mediação; ditadura; imprinting.

Abstract

Among 1962 and 1964, the IPES (Instituto de Pesquisa e Estudos Sociais) used the media to promote an ideological campaign materialized in a fighting speech against the labor policy represented by Joao Goulart. The proposal of this research is to study the documentaries mediation process made by IPES, sponsor by the Brazilian industrial elite, in order to „alert‟ and mobilize the audience about the “communist tendencies” that linked to the . Focusing on the newsreel experience, we seek from the hypothesis that the audiovisual practices were decisive to strengthening a conservative signs system in this society, for the purpose of make it hegemonic and enable the military blow in 1964. It is for this reason that the study of IPES documentaries requires inquire the space production as well as the time and consumption production, both articulated in the everydayness (customs and practices), and the specific technological device in question. Our research strategy avoids analyzes solely focused on the aspects of emission/reception by considering them unsuitable due to its binary simplification in a scenario of multiple overlaps. Therefore, the methodology was built considering that the IPES documentaries used audiovisual practices to strengthen certain themes and values operating in society at the time. This dynamic reduced the culture to an imprinting (Morin), in this case, institutional and ideological. In this sense, concepts such as semiosphere (Lotman), mediation (Martín-Barbero) and semiopragmatic (Odin) are also in this study. Altogether the IPES produced 20 documentaries of which 14 are restored and available at Arquivo Nacional, as well as official documents. Taking advantage of a legal decree nº 21.240, 1932, which required cinemas to stream national productions before the main attractions, in this case, foreign production films and the Jean Manzon network distribution the documentaries had been exhibited all around the country. The research reveals that the convergence of a diachronic axis, located at the practice of newsreel and the political and cultural context, with a synchronic axis that relates the documentary specificities in a certain use was decisive to enhance a speech focus on Nation defense. By strengthening a conservative signs system in this society, the IPES documentaries helped to institutionalize a frightening backdrop against the “red menace” that triggered on years of military in .

Keywords: Documentary; mediation; dictatorship; imprinting

Sumário

INTRODUÇÃO 11

1. O CENÁRIO 14 1.1 O peso do Cenário 15 1.2 O Cenário em processo 24 1.3 A Campanha no Cenário 39 A Formação do IPES: estrutura, recrutamento e organização 43 Articulação e propagação no ambiente midiático 66

2. O OBJETO NO CENÁRIO 80 2.1 Em busca das práticas audiovisuais 81 Naturais e Cavação 87 Documento do real 91 A imagem (in) desejável 95 Cinejornal: seu caráter „educativo‟ 100 2.2 Os Filmes Ipesianos 106 As Marcas: quanto aos fatores externos 109 Os Sinais: quanto aos fatores internos 128

3. A CIRCULARIDADE DAS TEMÁTICAS E VALORES NOS DOCUMENTÁRIOS DO IPES 134 3.1 Documentários-Denúncia 141 3.2 Documentários-Institucionais 182 3.3 Documentários-Educação 202 3.4 Documentários-Confronto 215 3.5 Documentários-Corporativos 233

CONSIDERAÇÕES FINAIS 249 BIBLIOGRAFIA 258 ANEXOS 274

LISTA DE FIGURAS

Figura 01-02 Criando Homens Livres 130 Figura 03 Portos Paralíticos 131 Figura 04 A Vida Marítima 131 Figura 05-10 Portos Paralíticos 146 Figura 11-17 Uma Economia Estrangulada 153 Figura 18-28 A Vida Marítima 159 Figura 29-33 História de um Maquinista 171 Figura 34-41 Nordeste: Problema Número Um 176 Figura 42-50 O que é o IPES? 185 Figura 51-58 O IPES é o Seguinte 195 Figura 59-67 Criando Homens Livres 205 Figura 68-73 Deixem o Estudante Estudar 211 Figura 74-83 Que é a Democracia? 218 Figura 84-96 Depende de Mim 223 Figura 97-107 O Brasil Precisa de Você 228 Figura 108-114 A Boa Empresa 236 Figura 115-127 Conceito de Emprêsa 242

LISTA DE ANEXOS

Anexo 01 Achegas à Ação Psicológica s/d Fig.128-129 275 Anexo 02 O IPES e a governança paralela 30/07/85 Fig.130-133 277 Anexo 03 Manifesto/ Boletim UCF s.d/11/63 Fig.134-136 281 Anexo 04 Ata Reunião CE e CD 20/11/62 Fig.137-139 284 Anexo 05 Carta a Jean Manzon Films 14/12/61 Fig.140-143 287 Anexo 06 Carta ao IPES/ São Paulo 03/02/62 Fig.144-150 291 Anexo 07 Carta aos contribuintes 21/07/62 Fig.151-153 298 Anexo 08 Relatório de exibição 13/10/62 Fig.154-155 301

INTRODUÇÃO

Se o essencial de toda pesquisa é escolher um objeto de estudo que envolva, provoque, questione e mude sua maneira de se colocar no mundo, primeiro passo de uma longa jornada, posso dizer que esta etapa da cartilha foi realizada. Mas tal caminhada não começou precisamente ao ingressar na PUC. Minha inquietação para compreender a construção e produção de sentido na comunicação começou quando ainda cursava Jornalismo. Como aluna bolsista do programa PIBIC/CNPq de Iniciação Científica, durante três anos tive a oportunidade de analisar a revista CartaCapital, sob a perspectiva da Análise do Discurso. Perceber a autonomia editorial desta revista, conduzida por Mino Carta e recém-lançada na época, foi determinante para refletir sobre a complexidade do processo comunicacional. Paralelamente, o interesse de uma leitura menos estereotipada da ditadura militar brasileira sempre me intrigou. E com os referenciais estudados durante os anos de pesquisa, decidi, inclusive, trabalhar na produção independente de documentários, assim como dedicar-me à pesquisa científica com o recorte voltado aos estudos do audiovisual. O pontapé inicial já se fez presente no projeto de conclusão de curso. A pesquisa e produção do curta-metragem “Atrás de Portas Fechadas - A Mulher Militante na Ditadura Militar”, em parceria com Krishna Tavares, me fez refletir sobre uma busca menos impregnada pelos estereótipos da história oficial, em direção a um olhar e um recorte mais humanizado. Não estávamos em busca de grandes feitos, nem de grandes mulheres, era preciso revelar a mulher comum e descobri-la como sujeito de sua própria história. Neste caminho, orientei a atenção às contradições desse período. A ditadura, ao contrário do que a historiografia tanto postulou, mais gerou do que perseguiu segredos. Ideias, ações e comportamentos que não estavam de acordo com a ideologia do Estado eram reprimidos, punidos, banidos do corpo social pelos aparelhos estatais. Na época, o artigo “Uma História do Segredo?”, do historiador francês Gérard Vincent (1992), no qual propõe reconstruir a importância da História da Vida Privada, me despertou novamente para as fronteiras entre o dito e o não-dito, os pressupostos e os subentendidos, tão

11 postulados pela Análise do Discurso. Estava disposta a encontrar a história dos caminhos e não dos resultados. O primeiro contato com os documentários produzidos pelo IPES (Instituto de Pesquisa e Estudos Sociais) foi em uma mostra do Centro Cultural São Paulo, que relembrava os 40 anos do golpe. O conteúdo do discurso me despertou inúmeras reflexões. Aquela que mais me intrigou desde então está relacionada ao processo de significação, ou seja, à maneira pela qual o público em questão pôde apreender o sentido da linguagem audiovisual, no período de exibição dos curtas entre 1962 e 1964, e sobre os desdobramentos políticos frente a estas construções discursivas. O acervo do IPES, doado pelo general João José Baptista Tubino ao Arquivo Nacional (RJ) em 1972, já recebeu inúmeras visitas de pesquisadores. Mas foi apenas em 2000 que a jornalista Denise de Assis, com o apoio da FAPERJ, conseguiu não só publicar suas considerações sobre a relação do IPES com o cinema, mas também recuperar tecnicamente os filmes já deteriorados pela ação do tempo. Abriu-se, assim, uma janela para refletir sobre a influência de tais obras audiovisuais na consolidação de uma ideologia determinantemente direcionada pela elite conservadora brasileira. Ao escrever o projeto de pesquisa, percebi a importância de localizar a investigação no recorte latino-americano, no qual os processos de tradução são fundamentais. Contudo, ao me aproximar do objeto de estudo, foi possível perceber que tal tendência à tradução não se concretiza. Tratava-se, então, de partir em busca das evidências que potencializassem a manutenção de um modelo que visaria à simplificação das relações ao reforçar a lógica binária, de polarização, de oposições. Tais reflexões contribuíram na decisão de investigar o ambiente midiático em questão. Este recorte, que coloca a mediação como um dos personagens principais da comunicação, definitivamente deslocou minha exacerbada atenção das análises enclausuradas no processo de emissão e recepção, para investigar de que maneira as práticas audiovisuais foram determinantes para reforçar um sistema de signos conservadores, atuantes na sociedade da época. Dessa maneira, organizada em três abordagens distintas, a proposta metodológica parte em busca daquelas práticas que reduzem as instâncias da cultura ao imprinting, neste caso, institucional e ideológico. A exposição deste projeto não segue necessariamente uma sequência

12 cronológica, evocando uma trajetória retilínea e causal dos fatos. Pelo contrário, a proposta é de estabelecer – como uma espécie de marca d‟água – “um carácter de fricção que ressalte a noção de processo dentro de sua estrutura” 1. De maneira que, os três capítulos apresentados são apenas um norte para que possamos ancorar nossas reflexões. “O Cenário” (1) aborda os dispositivos culturais expostos nos fenômenos comunicacionais e apresenta o IPES ao investigar a campanha e a disseminação de seus ideais no ambiente midiático. Entende-se por “cenário” o sistema cultural. Uma abordagem que não está condicionada ao tempo de vida oficial do IPES ou mesmo a um resgate histórico-político do período em questão, mas sim segundo a qual a cultura é entendida como texto e a comunicação como processo semiótico. Já „O Objeto no Cenário‟ (2) concentra-se primeiramente em investigar na tradição das práticas audiovisuais o processo de significação, pautado pela experiência do cinejornal para, em seguida, localizar os documentários ipesianos na busca de elementos que possam evidenciar a sugestão de uma realidade desejada e premeditada. Dessa maneira, parte-se em busca da trajetória de produção e exibição dos documentários, assim como das escolhas inerentes aos filmes. Por fim, em “A Circularidade das temáticas e valores nos documentários do IPES” (3), a proposta é verificar no modelo estético, por meio da análise fílmica dos 14 documentários, a relação entre a temática escolhida do cenário político-social e os valores ideológicos que faziam parte da promoção de uma campanha em “defesa da nação” que combatia a esquerda trabalhista representada por João Goulart.

1 Proposta recorrente nos artigos escritos por Amálio Pinheiro e nas discussões sobre Comunicação, Cultura, Barroco e Mestiçagem, temas do grupo de estudos liderado por Pinheiro na PUC/SP. 13

1. O CENÁRIO

14

1.1 O peso do Cenário

Marcar o tempo por datas ou fatos, definindo um período ajustado ao que se quer problematizar, é certamente uma solução prática para construir uma análise e defender uma opinião. Percebe-se que, ao investigar os anos que antecederam a Ditadura Militar no Brasil2, optando-se por limitar este período a uma certa unidade para analisar os documentários ipesianos, corre-se o risco de trazer à tona apenas sua tendência dominante. Não é à toa que tais reflexões, que remetem ao discurso golpista nos documentários, podem ser encontradas em produções acadêmicas recentes em diversas universidades do país3. Afinal, trata-se de uma das mais importantes articulações promocionais de um projeto político alternativo à democracia populista, muito bem executado sob a bandeira anticomunista. Nesse sentido, analisar a importância da formação, organização, produção e divulgação desta campanha na elaboração dos documentários nos permitirá compreender como as práticas audiovisuais, potencializadas pela conjuntura política da época, intensificaram a construção de um cenário pautado pelo medo e pela ameaça comunista. É fundamental localizar o contexto histórico, político e social para mergulhar na análise dos documentários, mas daí a determinar um ponto de partida que remeta

2 O Golpe de Estado desencadeado em 31 março de 1964 instaura o regime militar no país. O plano político foi marcado pelo autoritarismo, supressão dos direitos constitucionais, perseguição política, prisão e tortura dos opositores, e pela imposição da censura prévia aos meios de comunicação. Na economia houve uma rápida diversificação e modernização da indústria e serviços, sustentada por mecanismos de concentração de renda, endividamento externo e abertura ao capital estrangeiro. “Durante grande parte do período, o regime busca legitimar-se pelo desempenho administrativo e econômico. A deposição do presidente João Goulart e o advento da ditadura resultam de intervenção militar apontada como iminente desde o governo democrático do presidente Vargas” (COUTO, 1998, p. 41). O Regime permanece até março de 1985 quando termina o governo do quinto presidente-general, João Baptista de Oliveira Figueiredo. Apesar das mobilizações populares que o país vivenciou pelo movimento das “Diretas Já”, a primeira eleição direta para a presidência da República ocorreu apenas em 1989. Sobre „Diretas Já‟ e „Movimento Sindical do ABC‟, ver RODRIGUES, 2003; MANFREDI, 1996, respectivamente. 3 São elas: CARDENUTO FILHO, Reinaldo. Discursos de intervenção: o cinema de propaganda ideológica para o CPC e o Ipês às vésperas do Golpe de 1964. 2008. Dissertação (Mestrado em Ciência da Comunicação) – ECA - Universidade de São Paulo, São Paulo. 2008. CORRÊA, Marcos. O Discurso golpista nos documentários de Jean-Manzon para o IPES (1962/1963). 2005. Dissertação (Mestrado em Multimeios) - Instituto de Artes - Universidade Estadual de Campinas, Campinas. 2005. DEUSDARÁ, Pâmella Passos. Vozes a favor do golpe! O Discurso anticomunista do IPES como materialidade de um projeto de classe. Dissertação (Mestrado em História) – PPGH/Universidade do Estado do , Rio de Janeiro. 2008. FULCHERBERGUER, Gabrielle Cristiane. Cinema e Comunicação Política: A ante-sala do Golpe Militar de 1964. Dissertação (Mestrado em Comunicação) - Universidade Paulista, São Paulo. 2008. 15 a uma origem4, há uma grande diferença. Dessa maneira, entende-se por cenário uma abordagem que não está presa à uma narrativa cronológica, isto é, centrada no elencar dos fatos que determinam uma sintaxe oficial deste tempo. Então, pergunto: como revisitar o passado? Como adentrar num tempo que se foi? As próprias questões guardam um grande equívoco. Tal tempo não desapareceu no passar das horas. Ele está presente, ora sorrateiro ora estridente, no agitar das ruas. Dito isto, toma-se aqui a semiótica da cultura5 como o fio condutor deste processo de investigação. “Complexificar significa também crer na poesia de uma cultura” (2008, p. 10), inspira-nos Edgar Morin. Entendida como texto, a cultura pode nos mostrar importantes aspectos. Contudo, discorrer sobre os documentários ipesianos na sua relação com os modos de vida e usos nos faz evidenciar o controle ideológico potencializado no processo semiótico. Os signos recorrentes deste material audiovisual estão encaixados em um sistema estruturado de tal maneira que fortalece os significados relacionados a valores conservadores. Todavia, tais significados não dependem de um texto cultural que sugere uma interação de elementos portadores de sentido, próprios dos processos de tradução, mas sim uma atuação por exclusão. Afinal, a manutenção da unidade é terra fértil aos processos ideológicos. No primeiro volume da série La semiosfera: Semiótica de la cultura y del texto6, Iuri Lotman problematiza alguns conceitos básicos da semiótica. De um lado, o signo como elemento primário e fundante de todo um sistema semiótico (Peirce e Morris) e, de outro, como fundamento da língua e da fala, compreendido como texto (Saussure). Lotman nos faz refletir:

4 Neste estudo, bane-se a ideia de origem como um princípio compreendido como marco ou estopim único e primeiro de fatos e acontecimentos. Em O Método, Edgar Morin mostra que a “aventura do conhecimento se enriquece na simplicidade (inimiga do simplismo) e na busca perpétua da complexidade, adversária declarada das doutrinas e das verdades que se recusam a comparecer diante do tribunal permanente da evolução”. Sobre complexidade, ver MORIN, 2008. 5 A Semiótica da Cultura despontou suas primeiras reflexões nos anos 1960, constituindo-se no Departamento de Semiótica da Universidade de Tártu, Estônia. Conhecida também como semiótica russa tornou-se disciplina teórica para os estudos sobre a diversidade dos fenômenos culturais. Os pesquisadores da Escola de Tártu-Moscou entendem a cultura como linguagem (texto). Neste sentido, as formas de expressão ultrapassam o ponto de vista social. Na verdade, localizam-se na cultura e abarcam todos os aspectos da vida. “El texto se presenta ante nosotros no como la realización de un mensaje en un solo linguaje cualquiera, sino como un complejo dispositivo que guarda variados códigos, capaz de transformar los mensajes recibidos y de generar nuevos mensajes”. (LOTMAN, 1996, p. 82) 6 Os três volumes da série reúnem a compilação dos artigos teóricos desenvolvidos por Iuri Lotman. Este, que leva o título “Acerca de la semiosfera”, foi originalmente publicado em 1984. 16

Mesmo com todas as diferenças entre estas abordagens, elas têm algo essencial em comum: a base é o elemento mais simples, como um átomo, e tudo o que se segue é considerado do ponto de vista da semelhança com ele. Assim, toma-se como base de análise o signo isolado e todos os fenômenos semióticos seguintes são considerados como uma sequência de signos.7 (LOTMAN, 1996, p. 21)

E vai adiante, ao refletir sobre o ato comunicacional em si. Deixar de lado as amarras que colocam emissor e receptor num universo à parte, centrando-se na troca de mensagem como estopim de um processo, certamente revela algo mais. Segundo ele, tal enfoque responde a uma conhecida regra do pensamento científico: ascender do simples ao complexo. Compreender o ato semiótico como um adensamento de pequenas partículas que vão gradualmente se complexificando reduzem o objeto a uma soma de objetos simples. São as rédeas de uma experiência normativa, ordenada, previsível e possível de ser mensurada e quantificada. A ideia de ordem e caos, causa e efeito, sincronia e diacronia, homem e natureza, espírito e corpo, operando como uma lógica binária8 de oposições conceituais, revela uma forma de conhecimento que se pretende utilitária e funcional. Reconhecida menos pela capacidade de compreender profundamente o real do que pelo desejo de dominar. Segundo Boaventura de Sousa Santos, um conhecimento baseado na formulação de leis tem como pressuposto a noção de ordem e estabilidade do mundo. “Um mundo que o racionalismo cartesiano torna cognoscível por via da sua decomposição nos elementos que o constituem”. (SANTOS, 1988, p. 51) Ao se pensar a comunicação rejeitando a linearidade do modelo informacional, não significa isolar o tema/objeto em um espaço à parte para analisá- lo. Pelo contrário. Seguindo a proposta de Martín-Barbero, o intuito é focalizar “o

7 Do original: “Sin embargo, con toda la diferencia existente entre estos enfoques, tienen algo esencial en común: se toma como base el elemento más simple, con carácter de átomo, y todo lo que sigue es considerado desde el punto de vista de la semejanza con él. Así, se toma como base del análisis el signo aislado, y todos los fenómenos semióticos siguientes son considerados como secuencias de signo”. 8 Trata-se de um sistema de linguagem numérica semelhante ao decimal. A diferença é que se usa apenas 0 e 1 ao invés de todos os algarismos de 0 a 9 para efetuar operações matemáticas. O desenvolvimento da informática se deu principalmente neste âmbito, no qual a função concretiza-se apenas entre duas opções ao criar diversas combinações a partir de 0 e 1. O que nos interessa nesta comparação é que 0 e 1 seriam os equivalentes numéricos aos polos ligado/desligado, verdadeiro/falso, certo/errado. Elementos que se colocam em constante oposição e que não elaboram suas regiões fronteiriças mais facilmente permeáveis. 17 lugar onde se articula o sentido que os processos econômicos e políticos tem para uma sociedade” (2008, p. 232). Essa proposta está justamente na tentativa de romper com abordagens teóricas fragmentárias e simplificadoras da comunicação. Ao afirmar que a mediação é onde se concede sentido ao processo de comunicação, Martín-Barbero propõe um deslocamento metodológico: dos meios às mediações.

Deixando de lado os mal-entendidos que isso provocou, vemos nessa reflexão um duplo mérito. O primeiro é o de ter exposto o determinismo mediático ou o mediacentrismo a que os estudos de comunicação estavam confinados, o que não quer dizer que o meio (medium) não tenha importância, pelo contrário, a cultura como perspectiva de análise permite perceber os meios em sua real multifacetada importância. O segundo mérito é o de ter descentralizado e pluralizado teoricamente a análise da comunicação, inserindo-a na ordem das práticas culturais. (LOPES, 2000, p. 128)

Segundo Maria Immacolata Vassallo de Lopes, o principal desafio que atravessa hoje os estudos latino-americanos está na tradução metodológica da teoria das mediações9. Neste sentido, a estratégia de investigação dos documentários não parte exclusivamente da análise da produção e da recepção para depois procurar entender suas imbricações. Parte sim das mediações, isto é, dos lugares de onde provêm os fatores que delimitam e configuram sua materialidade social e sua expressividade cultural. Investigar os documentários exige pensar tanto o espaço da produção como o tempo do consumo, ambos articulados pela cotidianidade (usos e práticas) e pela especificidade do dispositivo tecnológico em questão. Pode-se pensar mediação como uma espécie de estrutura incrustada nas práticas sociais e no cotidiano de vida das pessoas que, ao realizar-se através dessas práticas, traduz-se em múltiplas mediações. “A produção e reprodução social

9 Maria Immacolata Vassallo de Lopes defende que a adesão à perspectiva teórica das mediações se dá fundamentalmente porque ela constitui uma renovação dentro da tradição dos estudos da comunicação, mantendo com esta tanto pontos de permanência como pontos de ruptura. “Vemos um enorme grau de potencialidade teórica na proposta desse autor, na medida em que ela converge para as pistas renovadoras abertas por Gramsci (1978) para o entendimento da cultura como campo de lutas (teoria da hegemonia), por Bourdieu (1983) com a tradução de elementos de estrutura para o nível das práticas sócio-culturais (teoria do habitus) e por Giddens (1989) com a introdução da estratificação do self na ação reflexiva (teoria da estruturação). Todas essas pistas se movem no sentido do pensamento complexo e transdisciplinar, não reducionista e não doutrinário (Morin, 1986; Wallersteibn, 1996)”. Ver LOPES, 2000, p. 128. 18 do sentido envolvida nos processos culturais não é somente uma questão de significação, mas também e principalmente uma questão de poder” (LOPES, 2000, p. 125). A tentativa de evocar a atmosfera dos anos 1960 para localizar os curtas- metragens e aguçar sua complexidade se justifica na medida em que se pretende circunscrevê-los sob o ponto de vista de um continuum semiótico. Ou seja,

não existem por si só, em formas isoladas, sistemas unívocos que realmente funcionam. A separação destes está condicionada unicamente por uma necessidade heurística. Tomados separadamente, nenhum deles tem, na verdade, capacidade de trabalhar. Só funcionam submergidos em um continuum semiótico, completamente ocupado por formações semióticas de vários tipos e que ocorrem em vários níveis de organização.10 (LOTMAN, 1996, p. 22)

Ao localizar os documentários ipesianos sem preocupar-se em investigar o seu entorno, corre-se o risco de levantar seu potencial de denúncia, de constatação exclusivamente no discurso fílmico. Neste sentido, ao optar por uma perspectiva de abordagem que contextualiza os fenômenos, os acontecimentos, a dinâmica das coisas a partir das suas conexões, numa visão sistêmica, verifica-se que o potencial normativo deste material audiovisual está presente prioritariamente nas relações que o IPES estabelece com um público sensível aos valores conservadores e reacionários que defende. Na leitura de autores como Edgar Morin (1986) e Boaventura de Sousa Santos (2008), é possível perceber que se trata de uma proposta na contramão da tradição da ciência clássica, que se pautou pela disjunção e isolamento, isto é, por uma decomposição do mundo em pedaços. Neste sentido, Jorge Vieira nos faz refletir que:

Sistemas culturais, por exemplo, não podem ser reduzidos exclusivamente aos sistemas humanos que os contêm. A complexidade exige que possamos entender e modelar a interação entre coisas e processos de naturezas muitas vezes bem diversas, sob pena de não captação do que há de fundamental nesses sistemas. (2008, p. 25)

10 Do original: “no existen por sí solos en forma aisladas sistemas preciosos y funcionalmente unívocos que funcionan realmente. La separación de éstos está condicionada únicamente por una necessidad heurística. Tomado por separado, ninguno de ellos tiene, en realidad, capacidad de trabajar. Sólo funcionan estando submergidos en un continuum semiótico, completamente ocupado por formaciones semióticas de diversos tipos y que se hallan en diversos niveles de organización”. 19

Seria uma ruptura com este modo de pensar? Um momento de transição? Santos é taxativo: o paradigma dominante está em crise11. Quando se faz notar que as promessas da tal modernidade12 não se cumprem e, pelo contrário, se revelam em problemas, qual seria a alternativa? Por onde trilhar? Se os sintomas da crise da ciência moderna estão justamente em suas pretensões epistemológicas presentes em um modelo totalitário de extrema exclusão do outro, de outras formas de conhecimento, ressaltando uma verdade ao negar os modos de pensar dos saberes locais, seria possível encontrar outro caminho? Segundo o português:

a crise dos dualismos provoca um hiato que, embora se assemelhe a um fosso ou uma ausência de codificação, constitui na realidade um campo fértil do qual emergem códigos sintéticos. Em questão está a emergência do que designo por códigos barrocos em que as escalas e os tempos se misturam. (SANTOS, 2008, p. 69)

É exatamente na contramão desta tendência à tradução, própria de uma cultura barroca, que o IPES atua. Ao invés de promover a proliferação de elementos a partir de seu entrelaçamento, como em uma marchetaria13, os curtas ipesianos concretizam o dualismo. Isto é, a conclamação da estabilidade, da harmonia que se pauta pelo fortalecimento, neste caso, de signos conservadores. Dessa maneira,

11 Vale ressaltar que a crise deste modelo hegemônico decorre da relação de uma série de condições teóricas e sociais. No texto “Um Discurso sobre as Ciências”, da Oração de Sapiência proferida na abertura solene das aulas na Universidade de Coimbra no ano letivo de 1985/86, Boaventura de Sousa Santos destaca quatro condições teóricas que contribuíram para a crise do paradigma dominante. São elas: (1) a teoria da relatividade; (2) a mecânica quântica; (3) o questionamento do rigorismo matemático e (4) o avanço do conhecimento nas áreas da microfísica, química e biologia na segunda metade do século XX. 12 Aqui se faz necessário problematizar o uso da palavra modernidade. Seguiremos as reflexões expostas por Bruno Latour apresentada em "Jamais Fomos Modernos: ensaio de antropologia simétrica", assim como na exposição de suas ideias em entrevista "Por uma Antropologia do Centro" (Tradução de Renato Sztutman). Segundo o autor, a sociedade dita "moderna" nunca funcionou de acordo com a divisão que funda seus sistemas de representação do mundo. A radical separação entre natureza e cultura jamais ocorreu. Latour considera que, na prática, os assumidos modernos não pararam de criar objetos híbridos, que pertencem à natureza e à cultura ao mesmo tempo. É ainda importante ressaltar que o filósofo e antropólogo francês faz estas observações sob o ponto de vista do mundo ocidental europeu. Dessa maneira, problematizar a modernidade na América Latina, especificamente no Brasil, torna-se uma questão essencial. Quando, na verdade, ela se revela como uma justificativa para políticas desenvolvimentistas. 13 Termo recorrente nas obras de Severo Sarduy que sugere a analogia desta técnica com a cultura. Do dicionário, marchetar significa “fazer obra de marchetaria; embutir, tauxiar; matizar, colorir; realçar, ilustrar”. O que nos interessa aqui é compreender o ornamento resultante desta técnica que se funde em inúmeras combinações. Típicas de uma cultura barroca em que o hábito do encadeamento, do excesso e do exagero se revelam em movimento com as diversas conexões que elas próprias propiciam. Dessa maneira, não se trata da soma dos elementos, mas das combinações que sugerem. 20 fogem da tendência à crise, próprias de uma cultura que permite se reinventar constantemente. Contudo, reconhecer os caleidoscópios epistemológicos, que pressupõem inúmeras maneiras de se perceber o mundo, traz à tona a importância da relação entre cultura e sociedade. Ao problematizar a sociologia do conhecimento, Edgar Morin (2008) enfatiza que as sociedades só existem e as culturas só se formam, conservam, transmitem e desenvolvem através das interações cerebrais/espirituais entre os indivíduos. Ele parte da ideia de que a cultura contém um saber coletivo acumulado em memória social. Faz nos refletir que:

uma cultura abre e fecha as potencialidades bioantropológicas de conhecimento. Ela as abre e atualiza fornecendo aos indivíduos o seu saber acumulado, a sua linguagem, os seus paradigmas, a sua lógica, os seus esquemas, os seus métodos de aprendizagem, de investigação, de verificação, etc., mas, ao mesmo tempo, ela as fecha e inibe com as suas normas, regras, proibições, tabus, o seu etnocentrismo, a sua autosacralização, a sua ignorância de sua ignorância. Ainda aqui, o que abre o conhecimento é o que fecha o conhecimento. (MORIN, 2008, p. 20)

Cabe ressaltar que não se trata de sacralizar a cultura e indicá-la como uma espécie de chave-mestra. Pelo contrário. Ao assumir sua importância, Morin afirma sua estreita relação com o conhecimento. Todo o conhecimento, inclusive o científico, está enraizado em um contexto cultural. É quando cultura, sociedade e conhecimento, nesta perspectiva, tornam-se indissociáveis. Segundo o autor, a perpetuação dos modos de conhecimento e verdades estabelecidas obedece a processos culturais de reprodução. Desse modo, há um imprinting cultural e uma normalização que o impõe e o alimenta. Fazendo uma direta analogia ao investigar os documentários ipesianos, qual seria então a normalização que contribuiu para a potencialização de signos conservadores que beneficiaram os interesses da elite industrial do país? Nossa hipótese é que tais condições estavam presentes nas práticas do cinejornal e que, em interação com os processos de mediação, foram utilizadas assertivamente na tentativa de persuadir os espectadores. É importante destacar que este diálogo só seria possível com um público sensível aos valores defendidos pelo instituto, e que, de certa maneira, fossem consonantes com seu modo de vida. Edgar Morin considera que o imprinting cultural é, de certo modo, a matriz que estrutura o 21 conformismo14, ao banir toda ideia não consonante. “Ele determina a desatenção seletiva, que nos faz desconsiderar tudo aquilo que não concorde com as nossas crenças” (2008, p. 30). Porém, mesmo frente aos determinismos culturais (imprinting e normalização), há brechas, há porosidades, há desvios. São os locais distensionados pela regra, afrouxados pelo controle, que permitem a autonomia do pensamento, inclusive em situações em que se pressupõe pouco espaço para tal movimentação. Em um primeiro momento pode parecer antagônico, porém vale lembrar a percepção de Sartre sobre sua vivência durante os anos de atividade política na França durante a 2ª Guerra Mundial. “Nunca fomos tão livres como na ocupação alemã” (VINCENT, 1992, p. 160). Aqui não se trata de romantizar a militância ou até mesmo de fazer certo apologismo às escolhas de resistência. A questão em jogo é ressaltar que a complexidade reside, sobretudo, em situações de crise, de entropia15. A condição cultural do continente latino-americano, de partida mestiça16 e barroca17, implica relação estreita entre signo e coisa/objeto, natureza e cultura, alto e baixo, dentro e fora; não-disjunção; convivência das tensões. Por aqui, os tempos se misturam. Neste sentido, Pinheiro enfatiza:

14 “O conformismo cognitivo não é de modo algum uma marca de subcultura que afeta principalmente as camadas inferiores da sociedade. Ao contrário, os subcultivados sofrem um imprinting e uma normalização atenuados e há mais opiniões pessoais diante do balcão de um café do que em um coquetel literário (...) imprinting e normalização crescem em paralelo com a cultura”. (MORIN, 2008, p. 29-30) 15 Entende-se crise não apenas como aquela travada pela manutenção da ordem política e econômica, mas principalmente aquela compreendida no embate da diferença. Diferença que não exclui nem se harmoniza, mas “devora” e faz surgir aquilo que “devora em outra coisa. Neste sentido, na tentativa de nos expurgarmos da herança da ordem, da organização, da periodicidade, da previsibilidade e da simetria proposta pela ciência clássica, é interessante refletir sobre o conceito de entropia. Só há comunicação quando há informação. Leia-se desordem, caos, desequilíbrio, assimetria. Jorge Viera nos diz que quando “nos deparamos com uma realidade organizada, acima de qualquer critério de ordem; irregular e por vezes imprevisível, além de qualquer nível de periodicidade ou simetria; é, acima de tudo, uma realidade complexa”. (2006, p. 11) 16 "O termo mestiço aqui não remete a cor, mas a modos de estruturação barroco-mestiços que acarretam, pela confluência de materiais em mosaico, bordado e labirinto, outros métodos e modos de organização do pensamento. Tais modos não binários desconhecem o dilema entre identidade e oposição; a mestiçagem se constitui como uma trama relacional, conectiva, cujos componentes não remontam saudosa e solitariamente a instâncias aurorais perdidas, mas sim festejam o gozo sintático dessa tensão relacional que se mantém como relação móvel em suspensão. Aquilo que pretende permanecer como diferença, fora das texturas fronteiriças em trânsito, corre o risco de transformar-se em homogeneidade carrancuda, repetitiva e totalitária.” (PINHEIRO, 2007, p. 10) 17 Severo Sarduy faz uma aproximação interessante ao tratar sobre o termo. Diz: "Nesta distribuição brusca da luz, nesta ruptura nítida cujas fronteiras separam sem nuances autoridade do motivo e neutralidade indiferenciada do fundo, anuncia-se o zénite do barroco: o caravagismo. Contraste sem mediação entre zona de sombra e zona de luz. Supressão de toda a transição entre um termo e o outro, por uma justaposição abrupta dos contrários". (SARDUY, 1988, p. 27) 22

(...) desde as primeiras províncias, as trocas fronteiriças entre centro e periferias já propiciavam uma mobilidade de arabescos aos espaços e textos, anterior e conjuntamente aos mais variados e irregulares processos de modernização e contemporaneidade. (2007, p. 24)

Em outras palavras, trata-se das possibilidades de enfraquecimento dos determinismos culturais. Neste sentido, Morin destaca as sociedades que permitem experimentar-se distensionadas por uma constante norma e regulação, como o Brasil. Afinal, os determinismos culturais estão atenuados em função de suas características histórico-sociais que efervesceram em uma cultura em que as fronteiras são menos demarcadas. É neste momento que o IPES se revela como o contraponto, a materialização da norma. No contexto, ele se torna o dispositivo para o fortalecimento dos determinismos culturais a fim de garantir a manutenção do poder ao defender as tradições conservadoras fundadas na tríplice: Deus, Pátria e Família. Produzidos por encomenda e exibidos em circunstâncias específicas entre os anos de 1962–64, os curtas-metragens não são frutos de uma dinâmica em que a falta de controle oferecesse a opção de um caráter aberto e inacabado, que permitiria a autonomia e a criatividade das margens e das periferias. Nos documentários ipesianos o centro se impõe. É a exponenciação da norma. Na tentativa de invadir a margem, os filmes apresentam-se pautados pela propaganda ideológica financiada pela elite burguesa do país. Características como unidade, isolamento e ordem, a partir de uma relação dual com o mundo, se revelam como um modelo totalitário de extrema exclusão do outro. É desta maneira que o centro impõem-se como verdade universal ao negar outras formas de conhecimento. Assim, dado o peso do cenário, é hora de apresentá-lo em movimento, em interação.

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1.2 O Cenário em processo

Se nos anos 50, o Brasil vivia a euforia do crescimento econômico após a Segunda Guerra Mundial, o país também se apresentava com força total na política e na cultura. Embalado pela conquista do primeiro título mundial de futebol18, parecia que era chegado o momento da virada. Sim, o Brasil do “Zé Povinho” tinha jeito. Era hora de deixar de lado a insolência, a apatia e agir. Em 1956, Vinícius de Moraes já transformava em poesia o desejo dos artistas, intelectuais e militantes que a classe trabalhadora se conscientizasse de sua condição. O operário em construção apresenta, ao menos poeticamente, o processo de tomada de consciência de um trabalhador. Em um dos trechos, diz a letra:

E aprendeu a notar coisas A que não dava atenção: Notou que sua marmita Era o prato do patrão Que sua cerveja preta Era o uísque do patrão Que seu macacão de zuarte Era o terno do patrão Que o casebre onde morava Era a mansão do patrão Que seus dois pés andarilhos Eram as rodas do patrão Que a dureza do seu dia Era a noite do patrão Que sua imensa fadiga Era amiga do patrão (MORAES, 1998, p. 262)

O que faz o operário dizer “não” e “se fazer forte na sua resolução” é notar as diferenças entre “ele” e o “patrão”. Questionar as desigualdades e perceber sua exploração, sem dúvida, era um desejo que pouco a pouco ganhava espaço no cenário cultural. Isso não quer dizer necessariamente que ocorria uma comoção de classe e que este processo de conscientização se efetivou, apesar da movimentação sindical, das filiações partidárias, entre outras mobilizações. O que se pretende enfatizar é que romper com a alienação e tomar consciência fazia parte de uma euforia que contaminou fortemente naqueles anos, não só no Brasil, mas em grande

18 Copa do Mundo disputada na Suécia em 1958. 24 parte da América Latina19. A realidade do chão de fábrica condicionada à voz do trabalhador brasileiro estava longe de se concretizar, mas estava posta como denúncia pelos artistas e intelectuais engajados. No início da década de 60, tudo parecia novo. E talvez o fosse. O canto- falado do samba da Bossa - que já era nova - estourava mundo afora. As propostas do Cinema Novo20 já se traduziam em imagens em movimento e até tínhamos uma recém-fundada e planejadíssima cidade no Planalto Central: Brasília, a nova capital também estreava.21 No cenário internacional, eram tempos de Guerra Fria. Os nervos afrouxados pela pausa dos grandes conflitos não negavam a tensão do momento. Na virada da década de 1950-1960, Fidel Castro fazia a revolução cubana e o debate da esquerda esquentava ainda mais os rumos do país.22 Sim, era preciso se posicionar. O caloroso impasse sobre qual lado do muro escolher estava posto. E esta euforia vinha de muitos lados. O “novo é o povo”, enfatizavam, por exemplo, os artistas do Centro Popular de Cultura (CPC) da UNE. Redigido em março de 1962, o manifesto revela a necessidade de uma arte participante, que conduzisse ao processo de

19 O movimento musical latino-americano Nueva Canción que se desenvolveu primeiramente no cone sul (Argentina, Chile e Uruguai) durante as décadas de 1950 e 1960, mas também anos mais tarde com certa popularidade na América Central, é um exemplo importante deste engajamento cultural. A cantora argentina Mercedes Sosa e o grupo chileno Inti-Illimani cantavam a exploração do povo, reivindicavam sua força, defendiam sua causa. Carregados de crítica social, se colocavam em franca oposição durante os governos militares de diversos países da América do Sul nas décadas de 1970 e 1980. 20 Segundo José Mário Ortiz Ramos, o movimento do Cinema Novo caracteriza-se essencialmente pela perseguição constante de um enigmático „homem brasileiro‟. “Trata-se enfim da intricada questão da identidade nacional que atormenta os produtores culturais, a forma política específica que assumem as preocupações com um possível „nacionalismo cultural‟ no campo do cinema brasileiro”. Para aprofundamento ver (RAMOS, 1983, p. 13) 21 Projetada pelos arquitetos Lúcio Costa e Oscar Niemeyer, a inauguração de Brasília, em 21 de abril de 1960, marcava o governo do então presidente . O bordão que o elegeu, em 1956, "50 anos em 5", dialogava perfeitamente com a transferência da capital para o interior do país. O lema da campanha presidencial de Juscelino Kubitschek referia-se aos cinco pontos do Plano de Metas, seu projeto desenvolvimentista: energia, transportes, indústria de base, alimentação e educação. Construir Brasília representava dois ideais importantes: modernidade e integração nacional, assuntos que estavam em pauta. 22 Não há dúvidas de que a experiência cubana projetava-se sobre a América Latina. E o Brasil não era uma exceção. representava a fusão entre a possibilidade de transformação, a vontade participativa da população e a soberania nacional. Em 1960, Sartre que visitava o Brasil vindo diretamente da ilha revolucionária, constatava que “em toda parte no Brasil – na Bahia, no Rio, em São Paulo, em Araraquara – encontrei uma juventude arrebatada, cuja primeira pergunta era sempre: „e Cuba?‟ E apesar de todas as características que distinguem um país do outro, acabei compreendendo que falar aos brasileiros sobre a ilha rebelde cubana era falar deles próprios”. (SARTRE, 1960, p. 35) 25 conscientização, para usarmos a palavra mágica da época. Segundo Heloisa Buarque de Hollanda,

assumiram-se por ser povo, por ser parte integrante do povo, destacando seu exército no front cultural. Mais que isso, afirmavam: em nosso país e, em nossa época, fora da arte política não há arte popular. Através da opção pelo e pelo - sem dúvida uma dobradinha imbatível na época – redescobria-se o Brasil, nossa paisagem social que andava soterrada nos anos medíocres que se seguiram à Semana de Arte Moderna em 1922. (1980, p. 29, grifo do autor)

Soterrada? Pelo menos politicamente. O fato é que se destacava a conscientização política sobre os problemas e carências do povo brasileiro acirrando as disputas ideológicas entre os vários segmentos da população na cena cultural. Carlos Lyra, um dos fundadores do CPC, já se desgarrava dos bossa-novistas intensificando o debate. A Canção do Subdesenvolvido, composta em parceria com Chico de Assis, explicitava uma ideologia incômoda para setores mais conservadores. Dizia:

Embora pense, dance e cante como desenvolvido O povo brasileiro Não come como desenvolvido Não bebe como desenvolvido Vive menos, sofre mais Isso é muito importante Muito mais do que importante Pois difere os brasileiros dos demais Pela... personalidade, personalidade Personalidade sem igual Porém... subdesenvolvida, subdesenvolvida E essa é que é a vida nacional!23

Como muitos de sua época, Lyra entra para a turma dos dissidentes, dos engajados, ao compor em sintonia com uma realidade que já começava a dar sinais de inconstância política. Se por um lado, artistas como Zé Keti, João do Vale, Nelson Cavaquinho e Cartola iam para o asfalto (e para o CPC) mostrar que nem tudo eram flores no Brasil, na contramão, o samba deixava o apartamento de zona sul para voltar ao morro24. Samba este que, já havia invadido o “gosto” das classes médias,

23 Áudio e letra localizados no Portal dos Fóruns de EJA, em especial no segmento que discute Educação Popular. Disponível em: . Acessado em 1 jul. 2011. 24 Comentários do jornalista especializado em música Mauro Ferreira, sobre a trajetória biográfica de Carlos Lyra ao desafinar o coro formado pelos contentes com a estética cool do canto e da poesia 26 deslocando-se inclusive para seus respectivos bairros. Mas a iniciativa mostrou-se decepcionante. Segundo Heloisa Buarque de Hollanda, do encontro só iria mesmo vingar uma parceria de Lyra com Zé Keti, o Samba da Legalidade. A letra ganhava corpo político:

Dentro da legalidade Dentro da honestidade Ninguém tira o meu direito Quando querem anarquia Elimino a teimosia Mostrando todo o defeito Se o samba está errado Eu não vou ficar calado Consertando a melodia

Sou poeta popular Dentro da honestidade Ninguém pode me calar25

Apesar das inúmeras tentativas, a aproximação entre artistas/intelectuais e o “povo” – via ou não partidos políticos – sempre foi um dos pontos cruciais no que se refere à mobilização popular brasileira desde o início do século XX. Há inúmeros exemplos, basta lembrar a jornada de 25 mil quilômetros, percorrida pelo movimento da Coluna Prestes, entre os anos de 1925 e 1927, encabeçado por líderes tenentistas. Para o historiador Nelson Werneck Sodré:

apesar de sua invencibilidade frente às tropas do governo, a Coluna não chegou a atingir seus objetivos de provocar a rebelião popular generalizada no interior do país: o povo temia grandemente possíveis represálias. Desta forma, a Coluna não conseguiu derrubar o governo vigente. (SODRÉ, 1987, p. 127-129)

Este será também um dos pontos cruciais no balanço crítico desenvolvido por boa parte dos exilados no retorno após a anistia, em 1979. Um exemplo interessante é o relato de um dos comandantes das Forças Guerrilheiras do Araguaia26 sobre a

de João Gilberto e Cia. Disponível em: . Acessado em 20 ago. 2011. 25 Trata-se de uma evidente paródia à campanha da Legalidade, encabeçada por , em defesa da posse de João Goulart. Sobre o fato, o então governador gaúcho, se apropriando de uma cadeia de mais de 100 emissoras de rádio, conclamava a população a sair às ruas e defender a legalidade da posse após a renúncia de Jânio Quadros. HOLLANDA, Heloisa Buarque de. Descobertas, sonhos e desastres nos anos 60. Março de 2004. Disponível em: . Acessados em 15 ago. 2011. 26 A Guerrilha do Araguaia (1969-1974) ocorreu durante talvez o mais duro período da mais duradoura das ditaduras nacionais. Ao mesmo tempo, foi a época das alegrias da Copa do Mundo 27 pretensão que se tinha no planejamento de organização e combate. Segundo Ângelo Arroyo, conhecido como Joaquim, “pretendia-se iniciar a luta armada no país, aplicar a linha de massa revolucionária do Partido. (...) Começará no interior sob a forma de guerrilha e com a ampla participação das massas, se transformará pouco a pouco, em guerra popular, que será dura e prolongada” (2005, p. 61). Sem dúvida, a resistência do Araguaia contou com a adesão de alguns camponeses. Mas nada tão significativo a ponto de evocar um contingente expressivo27. Gaspari enfatiza:

Foi uma rebelião sem povo, num país onde as grandes revoltas populares não tiveram a participação da elite. A história brasileira registra confrontos armados sangrentos e duradouros entre o povo pobre e o poder. Nos maiores, ocorridos no sertão de Canudos e nas matas do Contestado, contaram-se em poucas dezenas os combatentes que sabiam ler e escrever. Nas matas perdidas do Araguaia, o PCdoB tornava-se a única – e derradeira – organização política brasileira a ir buscar na „violência das massas‟ a energia vital de seu projeto comunista. (2002, p. 406)

O fato é que, no início dos anos 1960, esta possível conexão com o “povo” - um tanto dispersa e pouco fortalecida - começava a causar certo desconforto. Mesmo que não fosse diretamente composto por artistas populares, trabalhadores rurais, operários (em proporção significativa), o coro reivindicatório pouco a pouco ia se tornando incômodo na cena cultural ao se associar à ação política. Nesse contexto, a esquerda brasileira desempenhou um papel importante, reforçando o debate em torno dos problemas brasileiros. Segundo Octavio Ianni (1971), a política formulada e posta em prática por Getúlio Vargas e desenvolvida por Jânio Quadros, San Tiago Dantas e João Goulart beneficiou-se amplamente da atuação de vanguarda e do respaldo popular garantido pela esquerda.

A “esquerda”, no fim das contas, certa ou errada, forte ou fraca, marxista ou não-marxista, católica ou simplesmente “liberal” representa o fermento da

de 1970, do aparecimento da TV em cores, das inéditas taxas de crescimento econômico e de um regime de pleno emprego. A maior parte dos efetivos do PCdoB era composta por estudantes secundaristas ou universitários, organizados em torno do braço juvenil do partido, a União da Juventude Patriótica (UJP), profissionais liberais e operários. 27 As operações de repressão à guerrilha tiveram início em 1972 e mobilizaram 25 mil soldados. Sobre a chegada dos militares à região, o extermínio dos guerrilheiros e a relação com a população local, Elio Gaspari comenta que "ao contrário do que sucedera no enfrentamento com a esquerda armada das cidades, no Araguaia as coisas começaram diferentes. Os militares comportaram-se como uma força de ocupação. O tamanho da mobilização e a conduta dos militares assustaram o povo (..) O Exército oferecia mil cruzeiros por "paulista" capturado. Era dinheiro suficiente para a compra de um pequeno pedaço de terra". (2002, p. 418-419) 28

renovação social e política, o impulso inconformado da juventude e da elite intelectual descomprometida com os interesses estabelecidos. (PEDREIRA, 1964 apud IANNI, 1971, p. 118)

Ainda no calor dos acontecimentos, em 1967 Ianni analisa as razões do colapso do populismo no Brasil e seus desdobramentos frente à trajetória autoritária que foi deflagrada no país a partir de 1964. Em sua investigação, defende a ideia de que a cultura política de esquerda no Brasil não conseguiu libertar-se da cultura da democracia populista. Segundo o autor, ela esteve sempre balizada pelas técnicas e pela ideologia da política de massas.28

Não se dedicou à análise da realidade, para perceber que a essência das massas trabalhistas e populistas é antes a consciência de massa que a consciência de classe, antes o princípio da mobilidade social que o princípio da contradição. Que ela deveria traçar um caminho próprio para atingir e exprimir a consciência de classe. Enquanto a esquerda permanecia ao nível da consciência e atuação das massas, nos moldes estabelecidos na democracia populista, ficava-se ao nível das reificações. Por isso, ela foi sempre surpreendida pelos golpes de Estado, pelas viradas bruscas, pelas oportunidades perdidas. Foi assim em 1945, com a deposição de Getúlio Vargas; em 1954, com o suicídio deste; em 1956-60, em face da habilidosa combinação da política de massas e do desenvolvimento internacionalista conduzido por Juscelino Kubitschek; em 1961, ante a renúncia de Jânio Quadros e o empolgar das massas por Brizola; em 1964, ante o Golpe de Estado. (1971, p. 114-115)

A relação entre cultura e política nos remete a uma discussão clássica sobre o popular e o nacional no Brasil. Renato Ortiz (1991) expõe duas tradições estabelecidas. De um lado, tendo Silvio Romero como um dos seus representantes, procurava estabelecer a nacionalidade brasileira do cruzamento do negro, do branco e do índio, na busca de uma identidade nacional.29 “Neste sentido, pode-se dizer que a cultura popular é um elemento simbólico que permite aos intelectuais tomarem consciência e expressar a situação do país que se encontram” (ORTIZ, 1983, p. 160). De outro, e a partir dos anos 1950, rompe-se com a perspectiva tradicionalista e conservadora que percebia a cultura popular unicamente do ponto de vista

28 Ianni é ainda mais enfático ao considerar que devido a esta aproximação a esquerda brasileira “nunca escapou do fascínio das fórmulas e do jargão dos clássicos do marxismo-leninismo. Era o deslumbramento retórico, igual ao das elites burguesas em relação aos ensinamentos dos pensadores europeus ou norte-americanos” (1971, p. 113). Para ele, a esquerda brasileira emaranhou-se nos conceitos, antes mesmo de emaranhar-se na prática. Para aprofundamento, ver (IANNI, 1971, p. 70) 29 Ver ROMERO, 1977. 29 folclórico. É neste momento que a cultura se transforma em ação política junto às classes subalternas.30 Ortiz localiza que:

O que se buscava, pois, através da cultura popular, era levar às classes populares uma consciência crítica dos problemas sociais. Movimento que caminhava ao lado da questão nacional, pois, de acordo com o pensamento dominante, a „autêntica‟ cultura brasileira se exprimiria na sua relação com o povo-nação. (1991, p. 162)

Desta forma, os grupos culturais podiam associar o fazer cultura ao fazer política. E no início dos anos 1960 não faltava assunto para se somar aos burburinhos das mudanças e das reivindicações no cenário cultural. Havia muito o que se discutir: a pílula anticoncepcional, a minissaia, a liberação sexual, a chegada do homem à Lua, a crise dos mísseis, a reforma agrária... Antes do golpe de 1964, percebe-se a convivência – mesmo que incômoda – das diferenças ideológicas. Maria Amélia de Almeida Telles, ex-presa política e integrante da Comissão de Direitos Humanos, traz um pouco de sua infância, pelos idos de 60:

Eu conheci a democracia. Eu, minha família, meu pai, nós éramos os comunistas de uma cidade, nós éramos pessoas não desejadas na cidade, mas ao mesmo tempo a gente exercia o direito de ir e vir, de se expressar, a gente explicava o que nós éramos. Entendeu? A cidade vivia uma contradição muito grande com a gente. Ao mesmo tempo que rejeitava porque nós éramos os comunistas, também não tinha como rejeitar porque aquelas meninas... (fala docemente ao se remeter a si mesma e sua irmã Criméia) (...) muita gente pedia ajuda e era a nossa ideia mesmo de tá participando, de tá colaborando, dando aula... A gente aprendeu isso de forma muito intensa, de forma muito vivida.31

Considerar essas microestruturas de participação no engendramento deste cenário é fundamental. O depoimento de Amélia revela um aspecto interessante. Mesmo com diferenças ideológicas pontuais, havia espaço para troca. A convivência não era apenas “socialmente aceita”. As relações aconteciam nas camadas culturais. Este afrouxamento das tensões de poder é uma tendência da cultura

30 A proposta de Paulo Freire, que buscava entender a educação popular orientando a sociedade brasileira a um projeto alternativo desraigado dos modelos ocidentais europeus, é um exemplo interessante deste modelo. O mesmo podemos dizer do teatro e do cinema realizados nesse período. “Não dizia o manifesto do cinema novo que a estética da fome, tematizando o subdesenvolvimento brasileiro, daria ao espectador a consciência de sua própria miséria?” (ORTIZ, 1991, p. 162) 31 Depoimento de Amelinha Telles concedido ao documentário "Atrás de Portas Fechadas: a mulher militante na Ditadura", em setembro de 2003. 30 mestiça. Fruto de uma sociedade na qual a tradução das tradições eram atividades necessárias para viver na nova terra. Segundo Santos (2008, p. 19), "tal mestiçagem está tão profundamente enraizada nas práticas sociais que acabou por ser considerada como fundamento de um ethos cultural tipicamente latino-americano". Dessa maneira, existir numa realidade mesclada é existir entre sistemas de valores muito distintos, "oscilando entre as culturas, mas pertencendo simultaneamente a todas" (GRUZINSKI, 2001, p. 27). Se para o autor as contradições latino-americanas apresentam-se como “dobras, avesso e direito de um mesmo tecido”, como compreendê-las? Talvez o ato de devorar alteridades esteja tão encrustado no impulso quase involuntário de nossa cultura que, muitas vezes, pode deixar de ser notada na expressão de suas múltiplas textualidades. Heloísa Buarque de Hollanda traz uma reflexão interessante sobre o período pré-golpe, ao deixar de lado os temas que marcaram a época. Fala-se do que intitula “descoberta do Outro”, fator decisivo nas formas de lutas e resistências culturais que desenharam os anos 60. A Europa vinha assistindo a uma inédita sucessão de guerras de descolonização32 que alteraram de forma definitiva o perfil não apenas econômico, mas sobretudo cultural do chamado Primeiro Mundo.

As guerras de descolonização naquele momento definiram mudanças significativas no que diz respeito aos súditos externos – ou aos “nativos” habitantes das ex-colônias – quanto em relação aos súditos internos destes países: os negros, as mulheres, as minorias. Este foi o momento no qual surgiram os “novos sujeitos da história”, ou, como se dizia na época, as identidades coletivas”. (HOLLANDA, 2004, p. 33, grifo da autora)

Seria um grande equívoco afirmar que esta “descoberta do Outro” foi importada, uma influência direta dos países desenvolvidos – só para aplicar uma das terminologias tão difundidas na época. No âmbito das práticas culturais não havia uma divisão, um corte abrupto. Nunca houve. A urgência do outro já estava posta na condição de partida33 mestiça. Se analisássemos apenas o cenário musical dos anos 1960 no Brasil, já haveria muito o que investigar sobre as interpenetrações

32 São elas: a independência de Gana (1957) e do Congo (1961), que faziam parte as colônias da Inglaterra e da Bélgica respectivamente; e das colônias francesas ao sul do Saara (1959) e Argélia (1962). 33 Trata-se do uso recorrente da expressão de partida, que Amalio Pinheiro usualmente adota para demonstrar o caráter mestiço e barroco “das paisagens culturais da América Latina.” (2009, p. 9) 31 recorrentes em nossa cultura. O samba-rock34, por exemplo, em movimento nos bailes da periferia de São Paulo, ainda não tinha nome. Porém, com pitadas de maxixe e giros do rock dos anos 1950, teciam um mosaico entre os objetos, espaços e pessoas. Pinheiro nos ajuda a compreender os meandros desta solaridade por aqui:

O caráter multiplicante, ramificante e fragmentário da cultura se dá aqui por uma proliferação dos processos civilizatórios fronteiriços junto a um grande enfraquecimento das noções binárias de centro e periferia (o que nos obriga a uma revisão e reconfiguração lógico-conceptual), não por uma glorificação da velocidade a partir do paradigma eurocêntrico de modernidade levado a cabo pelas tecnociências. (2009, p. 12)

Se a questão do “Outro” já estava posta na cultura e sua articulação não precisava adotar ações estratégicas, o mesmo não ocorria politicamente. “Vamos mobilizar o povo para o desenvolvimento, de modo que ele tenha plena consciência da sua missão e sinta que os frutos do progresso lhe pertencem”35, discursava João Goulart, em 1961. Ianni considera que nos anos que antecederam o golpe militar (1961-1964) “o povo brasileiro defrontava-se de modo cada vez mais premente com a necessidade de adotar uma opção drástica” (1971, p. 123). Se por um lado, o projeto de desenvolvimento econômico nacional, associado a uma política externa independente, não poderia realizar-se a não ser com o aprofundamento das rupturas estruturais internas e externas, por outro lado:

No bojo do próprio modelo getulista ou muito preso a ele, constituíra-se o modelo socialista. Ele estava presente nas organizações políticas, nos estilos de liderança e nas técnicas de ação que promoveram as campanhas do petróleo, pelo desenvolvimentismo nacional e atuaram na formulação da política externa independente, na sindicalização rural, na estabilização crescente da economia, nos movimentos de opinião pública, no florescimento cultural, etc. (IANNI, 1971, p. 123-124)

Em ambos os casos, o apelo ao “povo”, às “massas”, aos “trabalhadores”, às “classes laboriosas”, aos “humildes” evocava a participação popular. Intensificando uma proposta engajadora e de ação política de inclusão, certamente os primeiros

34 Sobre samba-rock, ver OLIVEIRA, Luciana Xavier de Oliveira. A Gênese do Samba-Rock: Por um Mapeamento Genealógico do Gênero. IX Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação da Região Nordeste, Salvador. Intercom – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação. Para mais informações, ver RODRIGUES, 2006. 35 GOULART, 1962 apud IANNI, 1971, p. 119. 32 anos da década de 1960 correspondem ao que talvez tenha sido “a mais intensa fermentação ideológica e política da história de um país que então desejava se conscientizar. Existia uma vontade ativa de participação e um sopro generoso de mudanças que agitava o país”. (STARLING, 1986, p. 19) Em 1960, cerca de 15 milhões de pessoas votaram nas eleições, aquela que seria a última consulta para presidente ante a ressaca de 29 anos que o país sofreria36. Na época correspondia a 20% dos brasileiros, já que analfabetos, soldados e jovens entre 16 e 18 anos não participavam. A disputa eleitoral se fazia nas ruas, praças, auditórios e parlamentos e recebiam a valiosa contribuição das atrações musicais e apresentações de artistas. “Apesar das dificuldades e das dimensões continentais do país, comícios, caravanas, visitas, passeatas marcavam um contato direto com os eleitores” (FEDERICO, 1982, p. 85). Os espaços invadidos pelas manifestações tinham uma importância ímpar, já que inexistia o horário eleitoral gratuito. O governo de Juscelino Kubistchek chega ao fim e Jânio Quadros recebe a faixa presidencial sem ter conseguido eleger Milton Campos, seu companheiro de chapa, como vice.37 O jingle em tom carnavalesco que prometia combater a corrupção no país dizia:

Varre, varre, varre, varre, varre vassourinha Varre, varre a bandalheira Que o povo já está cansado De sofrer desta maneira Jânio Quadros é a esperança Desse povo abandonado

Jânio Quadros é a certeza De um Brasil moralizado Alerta, meu irmão Vassoura, conterrâneo Vamos vencer com Jânio

Assim, elegeram-se ao mesmo tempo Jânio, com sua vassoura, e Jango, que, ao juízo dos seguidores do novo presidente, encarnava o lixo a ser varrido. Ao analisar o contexto, René Dreifuss comenta:

36 Em 1989, 82 milhões de pessoas estavam aptas a votar. No primeiro turno, 72 milhões comparecem às urnas. 37 Pela Constituição de 1946, a escolha do presidente e de seu vice não estava vinculada. 33

O veredicto das urnas mostrava que a população brasileira, quando consultada, apoiava uma combinação de reformas populares sociais, de desenvolvimento nacionalista e de austeridade e eficiência administrativas. Essa combinação de demandas estava longe da ordem econômica vislumbrada pelos interesses empresariais multinacionais e da noção de „progresso‟ internalizada pela classe média alta. (2008, p. 137)

Seu governo foi marcado por fatos controversos. Todos procuravam entender Jânio, o problema talvez seria que nem ele mesmo demonstrava uma postura clara e coerente frente aos rumos políticos. Ao assumir tinha o mesmo ímpeto que marcara sua gestão na prefeitura e no governo de São Paulo: exonerou os que haviam sido nomeados na administração direta e nas autarquias, proibiu novas contratações e abriu inquéritos contra o governo de Juscelino. Não contente, desfilou uma série de medidas destinadas a criar uma imagem de inovação dos costumes e de saneamento moral que ficariam famosas: “proibiu as rinhas de galos, as corridas de cavalos em dias úteis, os desfiles de misses com maiôs cavados e o uso de lança- perfumes nos bailes de carnaval”. (MARKUN; HAMILTON, 2001, p. 42) Talvez um dos fatos mais marcantes (e controversos) foi a Ordem do Cruzeiro do Sul concedida ao então Ministro da Economia de Cuba, Ernesto , ainda no seu primeiro ano de governo. Poucos dias antes, com rolos de arame farpado e blocos de pedra, começava-se a erguer um muro em Berlim separando a metade ocidental da cidade, controlada pela República Federal da Alemanha (RFA), da oriental, sob o controle soviético da República Democrática Alemã (RDA). O embargo à ilha cubana era declarado e a materialização da Guerra Fria estava mais clara do que nunca. No Brasil, o desdobramento político mergulhado na disputa ideológica ficava mais intenso, pautado pela Doutrina de Segurança Nacional38. Menos de uma semana após trocar cumprimentos com Che, Jango renuncia. Foram apenas 8 meses de gestão. Os motivos não serão aprofundados neste debate39, mas fato é

38 Esta que povoou os países do hemisfério sul, sobretudo após a II Guerra Mundial, visava conceber instrumentos idôneos capazes de enfrentar a infiltração marxista e o perigo comunista, nos marcos do alinhamento ocidental, [judeu] e cristão. (DELLASOPPA, 1998; HUGGINS, 1998 apud PRIORI, 2006) 39 Os jornalistas Paulo Markun e Duda Hamilton escrevem sobre o período no livro “1961: que as armas não falem”. Discutem a articulação política que pautou tal decisão de Jânio Quadros. Em uma das passagens mais significativas revelam uma conversa que Jânio Quadros Neto tinha com seu avô quando o comentarista do Jornal da Manchete, extinto canal de televisão - analisava a renúncia que completava trinta anos. Ao ser provocado se tinha a intenção de se tornar um ditador, 34 que a legitimidade da ocupação do cargo por João Goulart foi posta à prova pelos ministros militares. A reação liderada pelo governador do , Leonel Brizola, ao golpe dos militares para impedir a posse de João Goulart na Presidência da República, no dia 25 de agosto de 1961, ficou conhecida como campanha da Legalidade40. Durante 14 dias, um movimento de resistência, exigindo a posse do vice ganhou o cenário político. Do Palácio Piratini, sede do governo gaúcho, decidiam-se os caminhos da mobilização para garantir a volta de João Goulart, a fim de receber a faixa presidencial. Depois de uma manobra política, com direito a escala em Montevidéu, já que estava em missão oficial à , Goulart chega ao país. Assume o cargo de presidente, pelo menos em teoria. Na prática não poderia dar continuidade às suas decisões. Para solucionar a crise política, o Congresso aprovou a Emenda Constitucional nº 4 que garantiu a posse de Goulart, mas instituiu o regime parlamentarista no país. Previa-se, para o início de 1965, um plebiscito que decidiria sobre a continuidade do parlamentarismo. Dias depois, Goulart foi empossado com poderes limitados. Mas não era só este assunto que estava em pauta pelos idos de 1961. Pelo contrário, o forte tom nacionalista inflava os pulmões de um clamor verde-amarelo. Sim, evocava-se o cívico, o patriótico, em todas as esferas. As vitórias de Maria Esther Bueno no tênis e a consagração absoluta do Galo de Ouro Éder Jofre, unificando os títulos da NBA e da UEB (União Europeia de Boxe)41, deram o pontapé para a década de 1960 se tornar um período de grande exacerbação cívica. E o futebol não poderia ficar de fora. Era sempre assunto de primeira página e de

rebateu: "Absolutamente não! Poderia ter sido, mas não o quis. Se eu tivesse mandado os militares fecharem o Congresso, eles teriam obedecido. Charles de Gaule renunciou na França e o povo foi às ruas, exigir sua volta. A mesma coisa ocorreu com o Fidel Castro, em Cuba. Era isso o que eu esperava (...) Renunciei no Dia do Soldado porque quis sensibilizar os militares e conseguir apoio deles. Imaginei que, em primeiro lugar, o povo iria às ruas, seguido pelos militares, e os dois me chamariam de volta (...) Achei que voltaria de Santos para Brasília na glória.” (2001, p. 135-136 40 Sobre a Campanha da Legalidade, ver a pesquisa e reunião de documentos históricos na celebração de 50 anos do movimento. Disponível em . Acessado em 15 jan. 2012. 41 Até então a União Europeia de Boxe não reconhecia os campeões da americana NBA. No dia da luta, 18 de janeiro, o ginásio do Ibirapuera viu-se lotado. Segundo reportagem do jornal Folha de São Paulo (16/01/62), dias antes do evento já se confirmava a ocupação maciça das cadeiras do ginásio. “Até ontem, na galeria Prestes Maia e nas bilheterias do Ibirapuera, 15 milhões e 200 mil cruzeiros em ingressos para luta de 5.a feira, entre Éder Jofre e John Caldwell, haviam sido vendidos. Dessa importância, 2 milhões e 500 mil são relativos a vendas dos ingressos populares”. Disponível em: . Acessado em 15 ago. 2011. 35 destaque nas chamadas dos programas de rádio42, em especial, o radiojornalístico de grande audiência: Repórter ESSO43.

Terça-feira, 05 de junho de 1962. A chamada de capa do Jornal do Brasil44 anunciava que Pelé ficaria no banco no terceiro (e dramático) jogo da Copa do Mundo, no Chile, rumo às quartas de final. O receio escancara-se no abre da notícia: "Os jogadores da Espanha, mesmo os que não são espanhóis45, dizem que o Brasil está definitivamente desclassificado: têm a vitória por certa..." Amarildo, seu substituto na meia-esquerda, recebeu a difícil missão de fazer acontecer. Era preciso vencer para seguir adiante. No Caderno B, o assunto continua evocando mais do que o relato dos fatos. Os enviados especiais para cobrir o evento capricham na escolha das palavras: “um músculo sentiu e a dor varou-lhe o corpo, com a mesma intensidade com que a angústia trespassou 70 milhões de confiantes. (...) Até aquele instante a seleção brasileira impunha a um adversário teimoso uma implacável soberania”46. Pelé não voltaria mais a atuar e Amarildo o substitui até o fim do campeonato. Era a Copa em que Mané iria reinar no trono do rei. O Brasil levou a taça, mas o debate da soberania nacional aos 70 milhões continuava bem aceso.47

42 Veremos que esta tendência de destaque ao futebol mantém-se constante inclusive nos cinejornais. Dentre eles, destaca-se o Canal 100 (1959-1986) que possui o maior acervo cinematográfico do futebol brasileiro. Para mais detalhes, ver . 43 Com o slogan “Testemunha Ocular da História”, o início das transmissões (1941) foi marcada pela cobertura jornalística da Segunda Guerra Mundial (1939-1945). Apoiado pelo então presidente Getúlio Vargas e sob orientação do Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP), cessada a guerra a patrocinadora Esso determinou que o perfil progressivamente fosse modificado. Restringia- se o noticiário internacional a fatos relevantes com ênfase nas notícias locais e nacionais. Dessa maneira, o esporte, especialmente o futebol, passou a ocupar expressiva quota na seleção das noticias. Para mais informações, ver KLÖCKNER, Luciano. O Repórter Esso e Getúlio Vargas. II Encontro Nacional da Rede, Florianópolis, 2004. 44 "A grande esperança: Pelé deseja boa sorte a Amarildo". 45 Pela primeira vez a FIFA anuncia regras sobre a naturalização de jogadores. No próximo mundial, apenas um jogador naturalizado poderá jogar por uma seleção, caso jamais tivesse participado pela seleção de outro país em partidas oficiais. Mas na Copa de 1962 o argentino Di Stéfano e o húngaro Puskas marcavam presença na seleção espanhola. 46 Caderno B. "O Rei se curva ante a dor que o Brasil todo sentiu". Assinada pelos jornalistas enviados à cobertura do evento. São eles: Fernando Horácio, Carlos Lemos, Oldemário Touguinhó, Sandro Moreyra, Alberto Ferreira e Arthur Parahyba. 47 A questão da soberania nacional era tema recorrente na imprensa e no cenário político-cultural. Apesar de João Goulart ter sido empossado após a renúncia de Jânio Quadros, seu poder institucional era limitado até consulta popular prevista para 1965. A atmosfera da campanha da Legalidade para garantir a soberania nacional ainda estava em pauta e, cada vez mais, o debate se acirrava com a proximidade da ida às urnas. Além disso, outro aspecto interessante na esfera da economia brasileira localizava-se na busca da autonomia. Sair da condição de „subdesenvolvido‟ representava para a elite industrial e a classe média a soberania da nação. 36

Talvez as pernas de Garrincha já anunciassem o trilho incerto do país. A pressão era grande. João Goulart queria antecipar a consulta popular através do plebiscito o mais breve possível. Em 14 de setembro de 62, foi decretada Greve Geral Nacional dos Trabalhadores, mobilizada pela CGT (Comando Geral dos Trabalhadores). Pressionado, o Congresso aprova naquele mesmo dia a Lei Complementar nº 2, com o propósito de antecipar o plebiscito para 6 de janeiro de 196348. Com 9,5 milhões de votos contra 2 milhões, Goulart garante finalmente a presidência da República e recupera os poderes presidenciais. Só assumira depois de uma crise em que o país esteve perto de uma guerra civil, porque aceitara uma fórmula pela qual se fabricou um humilhante regime parlamentarista cuja essência residia em permitir que ocupasse a Presidência desde que não lhe fosse entregue o poder (GASPARI, 2002, p. 46). Sobre o período diz Samuel Wainer em suas memórias: “o Brasil era um país terrivelmente polarizado, mas tanto gente de direita quanto de esquerda continuava a apresentar-se como habitantes do centro, uma peculiaridade tropical”. (2000, p. 244) Após a desastrosa administração da presidência de Jânio Quadros e a ascensão de João Goulart, o acirramento ideológico ficava cada vez mais evidente. Sem dúvida, sua força derivava da máquina da previdência social e das alianças de esquerda. A organização dos movimentos sindicais, dos trabalhadores rurais, estudantes, intelectuais, militares e políticos serviram não apenas para apoiar, mas também para cobrar a realização do Programa de Reformas49. Se, por um lado, as tais reformas econômicas, sociais e políticas estimulavam o desenvolvimento industrial nacional e controlavam o capital estrangeiro no país, por outro contrariava os interesses da classe dominante em nome dos trabalhadores. “Assustadas com a ampla mobilização política das classes populares, passavam a enxergar o governo de Goulart decidido a destruir, desmoralizar e até

48 Para mais detalhes, ver em MELO, Demian. Os militares e o plebiscito de 1963. Usos do Passado 13º. Encontro Regional de História. Arquivo Público do Rio de Janeiro. Disponível em . Acessado em 30 mar. 2012. 49 Este conjunto de reformas estruturais abrangia questões delicadas na política brasileira. Dentre as iniciativas, tocava-se no nevrálgico ponto da reforma agrária e no acesso universal ao direito de voto estendido aos analfabetos. Sobre as reformas de base, ver em BANDEIRA, 2010. 37 prostituir tudo quanto neste país existe de organizado”50. Em função desse quadro, “a burguesia dominante se contrapõe à crescente participação política das massas, ao programa de reformas, à lei da remessa de lucros” (SIMÕES, 1985, p. 26). Com este objetivo a elite capitalista composta por empresários e militares-intelectuais se une através do IPES (Instituto de Pesquisa e Estudos Sociais)51 e do IBAD (Instituto Brasileiro de Ação Democrática)52, para promover uma campanha de desgaste do governo Goulart e do nacional-reformismo. Segundo Solange Simões,

essa campanha político-ideológica visava impedir a solidariedade das classes trabalhadoras, conter a sindicalização e mobilização dos camponeses, apoiar clivagens ideológicas de direita na estrutura eclesiástica, desagregar o movimento estudantil e bloquear as forças nacional-reformistas no Congresso e, ao mesmo tempo, mobilizar as classes médias como a „massa de manobra‟ da elite orgânica. (1985, p. 17)

Nessas circunstâncias, a bandeira nacionalista empunhada com entusiasmo gerou, como não poderia deixar de ser, uma violenta reação por parte dos grandes interesses econômicos contrariados em virtude do que se designava convulsão social (STARLING, 1986, p. 28). A luta nacionalista frente ao pavor comunista transformou-se em arma poderosa. É desta forma que se entende que os curtas ipesianos propostos à análise não foram fruto de uma ação isolada. Neste momento, é necessário circunscrevê-lo neste cenário de campanha.

50 A afirmativa de Eugênio Gudin, vice-presidente da Fundação Getúlio Vargas (1960-1976), pode ser encontrada em TOLEDO, Caio Navarro de. A Derrota Inglória de uma Política de Conciliações. Folha de São Paulo. São Paulo, p. 3, 1 de abr. de 1984. 51 "O Instituto de Pesquisa e Estudos Sociais (Ipês) tomou como sigla o nome da árvore originária das matas da Bahia e do Espírito Santo, primeiro porque, sem acento, Ipes resultava em um fonema sem imponência ou sonoridade. Segundo, por ser uma árvore símbolo do país, o que caía como luva no exacerbado espírito nacionalista do grupo fundador da instituição, criada com o propósito de desestabilizar o governo João Goulart, o qual acusavam de estar prestes a implantar o comunismo no Brasil. Outra razão, essa carregada de simbolismo, por ser o ipê uma árvore resistente e que para florir perde as folhas. Na teoria, era o que pretendiam: derrubar o poder para fazer florir uma "nova" sociedade à imagem e semelhança dos seus idealizadores. Burguesa e, acima de tudo, voltada para a defesa do capital" (ASSIS, 2001, p. 13). Nesta dissertação, adotaremos a contração das iniciais de cada palavra do instituto: IPES. 52 O IBAD (Instituto Brasileiro de Ação Democrática) era a entidade que canalizava fundos multinacionais para o IPES. Foi fechado após ser investigado pela mesma Comissão Parlamentar de Inquérito que inspecionou as atividades do Instituto de Pesquisa e Estudos Sociais e, no caso do IBAD, constatou irregularidades, como a captação de recursos estrangeiros sem autorização. Dentre as corporações que desviavam o dinheiro para o IBAD estão: Promotion S.A Texaco, Shell, Esso Brasileira, Standart Oil of New Jersey, Texas Oil Co, Gulf Oil, Bayer, Enila, Shering, Ciba, Gross, General Eletric, IBM, Remington Rand, AEG, Coty, Coca-Cola, Stanard Brands, Cia de Cigarros Souza Cruz, Belgo Mineira, U.S. Steel, Hanna Minig Corp. Bethlehem Stell, General Motors, Willys Overland e o IBEC. Sobre a relação IPES/IBAD, ver DREIFUSS, 2008, p. 437-500. 38

1.3 A Campanha no Cenário

No ano de 1962, a FERES (Fédération Internationale des Instituts Catholiques de Recherches Sociales et Socio-Religieuses) concluía um estudo sobre a América Latina. Este serviria aos bispos latino-americanos para compreender melhor os problemas do continente. “Apresentava um projeto de ação social para enfrentar a ameaça de outras revoluções no estilo cubano que seria posta em prática nos meios universitário, operário e camponês, visando a formação social dos leigos” (BOTAS, 1983, p.100). Segundo este estudo, a Igreja deveria assumir um projeto de reformas estruturais e intervir politicamente. A justificativa se mantinha devido ao descrédito e falência das instituições sociais que deveriam se manter firmes e esclarecer a população frente ao perigo vermelho. “Os cristãos deveriam assumir o papel de verdadeiros líderes sociais. Dever-se-iam utilizar para isso os meios de comunicação de massa: jornal, rádio e televisão”53. Mobilização era a palavra de ordem e vinha de muitas partes. Localizar a organização do IPES e suas respectivas estratégias no ambiente midiático requer ressaltar que diversos grupos políticos e sociais por toda América Latina estavam mergulhados na mesma vibração. Isto não quer dizer que se estruturavam da mesma forma nem que as decisões foram pautadas pelos mesmos interesses. O que se coloca é que havia um empenho maciço em se agrupar para conscientizar. Cinco anos após o golpe militar, Glycon Paiva define em circular para os membros do IPES, intitulada “Achegas à ação psicológica”, o que para o instituto conscientizar a opinião pública significava:

convencer ao indivíduo da rua que a responsabilidade do Brasil e do seu futuro depende principalmente dêle, do seu comportamento como produtor, como consumidor, como pai responsável e como cidadão ordeiro (...) cabe- lhe associar-se, aplaudir o govêrno, dêle discordar democraticamente,

53 Este estudo foi publicado por François Houtard sob o título L‟Eglise latino-americaine à l‟heure du Conclie. Na Introdução deste mesmo trabalho, ele justifica: “Nossa visão da situação latino- americana não deve ser pessimista. Entretanto, deve ser realista. Uma tomada de consciência realiza-se na América Latina. O Espírito Santo suscita novas iniciativas em toda parte. O problema não pode, contudo, ser deixado à sua simples evolução natural. Mas é também uma questão de tempo. Teremos nós o tempo de tomar consciência, de refletir e de verificar em seguida se esta tomada de consciência, se esta reflexão e esta realização não são organizadas rapidamente e de uma maneira eficaz? A experiência de Cuba poderá não ser a única que viverá a América Latina nos anos ou meses que seguem. Sem sermos alarmistas, não podemos, no entanto, esconder a nós mesmos as dimensões reais do problema”. (HOUTARD, 1963 apud BOTAS, 1983, p 107) 39

protestar, reivindicar, mas participar sempre. Mostrar-lhe que quando sente e se emociona associa-se e surge: Marcha da Família, Campeonatos internacionais de futebol etc.54

De uma forma geral, pode-se dizer que a insistência em manter as classes populares excluídas do jogo político começa a sofrer seus primeiros abalos já no início do século XX na América Latina55. Mesmo que discretamente, o fortalecimento de forças reformistas e nacionalistas passou a se contrapor à hegemonia caudilhista das elites, determinada a preservar a economia nacional tão atrelada aos interesses dos grandes centros capitalistas. Ao longo das décadas de 1960 e 1970, os diversos movimentos de transformação que surgiram em nações latino-americanas foram atacados pelo interesse das elites nacionais, apoiados pelos Estados Unidos que, após a Segunda Guerra Mundial, localizavam-se na dianteira do bloco capitalista. Nesse contexto, o quadro político e econômico brasileiro favorecia a legitimação de uma ação para preservar o país da “ameaça vermelha”. O presidente João Goulart era apontado como simpatizante do socialismo. Além disso, a economia do país estava em crise principalmente em função dos elevados índices de inflação. Não há dúvidas que a instauração de uma ditadura no maior país da América Latina contribuiu para que os demais países do cone sul tomassem rumo semelhante, mesmo que anos depois, como ocorreram no Chile e Uruguai, em 1973; e na Argentina, em 1976. Certamente, os fatores que desencadearam os golpes militares nos países citados circunscrevem-se dentro de sua especificidade política, social e cultural. O que se pretende, neste momento, é reconhecer a adesão de certos setores da população brasileira que identificaram-se com as temáticas e os valores conservadores que invadiram o ambiente midiático devido à enfática atuação da campanha ideológica do IPES. Segundo Ianni, a participação crescente da classe média no processo político brasileiro é um dado importante para explicar os aspectos do sucesso “popular” das reações antidemocráticas e, em especial, do golpe militar de 1964. “Foi uma ampla campanha de opinião pública, dirigida especialmente à classe média, que preparou

54 Anexo 01, Achegas à ação psicológica, p. 275. 55 O processo de independência das nações latino-americanas, ao longo do século XIX, deu origem a uma série de Estados independentes, em sua maioria influenciados pelo ideário iluminista. No entanto, a obtenção dessa soberania política não foi capaz de dar fim à dependência econômica que submetia tais países aos interesses das grandes potências econômicas da época. Sobre opressão e exploração do continente latino-americano, ver GALEANO, 1966. 40 as populações urbanas para aceitarem antecipadamente a derrubada do governo de João Goulart, a modificação drástica das instituições políticas e a reformulação completa da política econômica” (1971, p.130). Essa participação dos setores médios na política está relacionada com o aumento progressivo do número de seus membros na sociedade nacional devido à expansão do setor terciário.

De fato, a urbanização e a industrialização fazem multiplicar as oportunidades de ocupação no setor de serviços, comércio, burocracia pública civil e militar e etc. Em consequência, esses grupos sociais tornam- se importantes nas manobras políticas realizadas por determinados setores da classe dominante. Em boa parte, essas são as massas do ademarismo, janismo e lacerdismo. Ambicionam a ascensão social a qualquer preço. O seu universo cultural e mental está impregnado dos valores e padrões da classe dominante, os quais se difundem nos programas de televisão e cinema, nas revistas e jornais. Por isso, vê nas lutas e reivindicações do proletariado um perigo para as suas ambições. (IANNI, 1971, p. 130)

Para o cientista político Dreifuss56, o que ocorreu em abril de 1964 também não foi um golpe militar conspirativo, mas, sim, “o resultado de uma campanha política, ideológica e militar travada pela elite orgânica, centrada no complexo IPES/IBAD” (2008, p. 86). O conceito de campanha se estabelece na medida em que “a comunicação tem sido definida como um processo de influência intencional que ocorre na opinião pública, na imprensa, na oposição, nos legisladores, assim como em outros grupos e atores sociais”57. (BEAUDOUX, 2011, p. 82) Porém, é importante observar que a utilização da comunicação com o objetivo de controlar o fluxo de informação, assim como dirigir a opinião pública e seu comportamento, não é uma atividade exclusiva do século XX. Pelo contrário. Beaudoux, por exemplo, nos

56 Sua tese de doutorado, defendida em 1980 em Ciência Política na Universidade de Glasgow (Escócia), resultou em um de seus estudos de maior fôlego, publicado sob o título 1964. A Conquista do Estado: ação política, poder e golpe de classe. “Um dos grandes méritos da pesquisa de Dreifuss consiste, justamente, em revelar a estreita ligação entre o IPES e o IBAD. Lembre-se que, à época em que foi fundado (novembro de 1961, após a renúncia de Jânio e ascensão de Goulart à presidência), o IPES vinha marcado por inegável respeitabilidade. Suas propostas espelhavam o prestígio dos projetos da “Aliança para o Progresso”, a qual só seria desmascarada por Che Guevara em 1962, na Conferência de Punta del Este. Ao IBAD, estigmatizado desde o início, competia o “jogo sujo” da manipulação de recursos de fontes equívocas para financiar campanhas dos candidatos conservadores e “corrupções” de vários calibres. As evidências apresentadas por Dreifuss conseguem aproximar as duas entidades, o que a CPI do IBAD tentou em 1963, mas não logrou fazer”. Ver BENEVIDES, 2003, p. 255-261. 57 Do original: “la comunicación ha sido definida como el proceso de influencia intencional que se realiza sobre la opinión pública, la prensa, la oposición, los legisladores, así como otros grupos y actores sociales”. 41 remete a períodos em que a iconografia de propaganda poderia ser vista em templos, esculturas ou mesmo cunhada em moedas58.

Apesar de ter sofrido alterações substanciais ao longo do tempo, o que se manteve uma constante é que os propagandistas sempre usaram os meios de comunicação disponíveis e típicos de sua época e projetaram suas mensagens para garantir a melhor recepção possível. (2001, p. 38)59

No processo de investigação na área da comunicação, as teorias dão diferentes pesos para cada um dos elementos que fazem parte dela. Para os pesquisadores de Palo Alto60,

a complexidade da menor situação de interação é tal que é inútil querer reduzi-la a duas ou mais „variáveis‟ trabalhando de maneira linear. É em termos de nível de complexidade, de contextos múltiplos e sistemas circulares que é preciso conceber a pesquisa em comunicação. (WINKIN, 1981 apud MATTELART; MATTELART, 2008, p. 67)

Em outras palavras, é preciso considerar uma situação global de interações e não apenas estudá-las isoladamente. Em nossa pesquisa, veremos que a campanha ipesiana se apropriou dos veículos de comunicação de alcance nacional e regional – rádio, televisão, jornal e cinema –, que tradicionalmente tiveram suas práticas exploradas para tal finalidade na primeira metade do século XX com as guerras mundiais (1914-1918 e 1939-1945), no contexto internacional, e com as ações de Getúlio Vargas no Brasil (1930-1945 e 1951-1954). A utilização dos meios de comunicação de massa para difundir uma retórica baseada em um ponto de vista ideológico não era uma novidade. O que talvez fosse ao país era a maneira pela qual uma elite organizada estabeleceu como valores, de

58 Para aprofundamento sobre a utilização da propaganda ao longo dos séculos, ver BEAUDOUX, 2011, p. 37-79. 59 Do original: “Aunque sufrió sustanciales modificaciones a lo largo del tempo, lo que permaneció como una constante es que los propagandistas siempre utilizaron los medios de comunicación disponibles y propios de su era y disenãron sus mensajes de modo tal de asegurarse la mejor recepción posible”. 60 A escola de Palo Alto se refere a um conjunto de estudos desenvolvidos a partir dos anos 40 por um grupo interdisciplinar de teóricos norte-americanos, liderados por Gregory Bateson, Edward T. Hall e Paul Watzlawick. O grupo, também identificado como „colégio invisível‟, baseia-se em três hipóteses: “(1) A essência da comunicação reside em processos relacionais e interacionais (os elementos contam menos que as relações que se instauram entre eles); (2) Todo o comportamento humano possui um valor comunicativo (as relações, que se respondem e implicam mutuamente, podem ser concebidas como um vasto sistema de comunicação) e (3) É observando a sucessão de mensagens situadas no contexto horizontal (a sequência de mensagens sucessivas) e vertical (a relação entre os elementos e o sistema) que se compreende a visão circular de comunicação adotada por eles”. (MATTELART; MATTELART, 2008, p. 67) 42

“desejo de nação”, suas próprias convicções hegemônicas. Neste sentido, procuraremos primeiramente localizar a base e a formação do Instituto de Pesquisa e Estudos Sociais, assim como sua organização para, em seguida, investigar como a representação de suas crenças e valores foi articulada no ambiente midiático.

A Formação do IPES: estrutura, recrutamento e organização

Oficialmente, o IPES foi criado em 2 de fevereiro de 196261. Seu lançamento foi recebido favoravelmente por diversos órgãos da imprensa, tais como o Jornal do Brasil, O Globo, o Correio da Manhã e até mesmo o Última Hora62. Na página 4 do 1º Caderno do Jornal do Brasil63, sob o título „Industriais criam órgão para estudar e equalizar os problemas brasileiros‟, a reportagem aborda a importância do instituto como uma solução democrática em tempos de agitação. Em entrevista, o ex- Presidente do Banco do Brasil e então Presidente do IPES, João Batista Leopoldo Figueiredo, enfatiza que:

O IPES não pode concordar com os métodos terroristas empregados por movimentos tais como o Mac[64], pois em sua Declaração de Princípios, repudia os extremismos, tanto da direita quanto da esquerda. Nossa visão se manifestará através da palavra, e não de atos violentos, de acôrdo com o diálogo democrático. Para realizar as pesquisas a que se dispõe, o IPES recorrerá aos melhores técnicos nacionais, além de utilizar seus próprios recursos. Acentuando que “um dos perigos mais evidentes é a polarização esquerda-direita, presente hoje na vida brasileira”, Sr. Leopoldo Figueiredo frisou (...), durante o lançamento do IPES em São Paulo, que a nova entidade é um centro que significa equilíbrio.65

A Declaração de Princípios citada, um documento assinado “por quase 70 homens de êmpresa”, divulga os objetivos do órgão em quatro pontos específicos.

61 Segundo apresentação redigida por Glycon de Paiva, em 30 de julho de 1985. Anexo 02, O IPES e a governança paralela, p. 277. 62 Respectivamente, edições de 2 de fevereiro, 4 de fevereiro, 5 de fevereiro e 8 de fevereiro de 1962. 63 Aqui não se trata de analisar o Jornal do Brasil e revelar consonância com os fundamentos do IPES. O objetivo é verificá-lo neste ambiente midiático, como um exemplo, dentre tantos outros órgãos de imprensa. Neste sentido, é preciso considerar que o IPES mantinha relação estreita com as editorias dos principais jornais de circulação no país, como veremos mais adiante em “Articulação e propagação no ambiente midiático”. 64 Em referência ao Movimento Anticomunista conhecido como MAC. Assim como este, outros grupos paramilitares, como o Comando de Caça aos Comunistas (CCC), a Associação Anticomunista Brasileira (AAB) e a Frente Anticomunista (FAC), tiveram atuações determinantes principalmente durante o período da ditadura militar. 65 Jornal do Brasil, Caderno 1, p. 4, 2 de fev. de 1962. 43

São eles: 1) acelerar o desenvolvimento do país; 2) assegurar melhor distribuição da renda nacional; 3) elevar o padrão de vida do povo e, 4) preservar a unanimidade nacional mediante a integração de regiões menos desenvolvidas. Para o lançamento do IPES, foi publicado um documento chamado Definição de Atitude que, segundo o jornal, foi assinado por “alguns dos maiores industriais do Rio e de São Paulo”. A Definição de Atitude tem nove pontos, dos quais boa parte é transcrição da Encíclica Mater et Magistra66, de autoria do Papa João XXIII, e da ata da Aliança para o Progresso67. Interessante observar a preocupação que se tinha em remeter a tais influências na urgente constituição do IPES. Ambas, a Encíclica Mater et Magistra e a ata da Aliança para o Progresso, estão presentes nos livros e documentos publicados que definem o instituto. E de maneira mais incisiva, a encíclica também está presente na abertura dos filmes68. A reportagem preocupava-se ainda em enfatizar o compromisso ao qual os membros do instituto aderiram: “ver, julgar e agir, por meio de pesquisa objetiva e livre discussão”69, chegando “a conclusões e recomendações quanto a diretrizes das atividades nacionais”. Outra clara preocupação diz respeito à afirmação do IPES como um órgão apolítico ou, pelo menos, não-partidário. Segundo a publicação, o IPES não terá candidatos próprios nem fará campanha por candidatos, mas admite que a política é uma das mais sérias preocupações do organismo para as questões nacionais. No subtítulo da reportagem Órgão Apolítico, o entrevistado se manifesta: “Política será a ação do IPES ao interpretar a opinião individual e livre de seus

66 Considerada um marco importante da Doutrina Social da Igreja. Dentre as diversas questões que aborda, ressalta o posicionamento político e econômico firmado pela instituição. Para se ter uma ideia, no que tange à livre concorrência e à concentração de riquezas, a encíclica sugere um retorno da economia à ordem moral e a busca de um lucro subordinado às exigências do bem comum. Dessa maneira, condena veementemente as propostas socialistas e comunistas. Atividade econômica e a ordem jurídica deveriam se submeter aos “ditames da caridade e da justiça social”. 67 Em março de 1961 o presidente dos Estados Unidos, John Kennedy, propunha a Aliança para o Progresso. Um programa assistencial para a América Latina que mobilizaria os esforços e recursos das nações americanas contra as injustiças e desigualdades sociais do continente latino-americano. A Carta da Aliança para o Progresso foi assinada em Punta del Este, Uruguai, em agosto de 1961, por todos os membros da OEA (Organização dos Estados Americanos), com exceção de Cuba. Os países se comprometiam com os “princípios democráticos” e com o estabelecimento de programas nacionais de desenvolvimento fundamentados no conceito de autoajuda. (BOTAS, 1983, p. 10) 68 Veremos tal participação na abertura dos filmes no capítulo 2 desta dissertação. 69 Jornal do Brasil, Caderno 1, p. 40, 2 de fev. de 1962. Disponível em . Acessado em 15 dez. 2011. 44 associados e transmiti-la aos seus governantes, podendo então apoiar ou criticar as iniciativas governamentais e as atividades dos políticos”.70 Contudo, mesmo sob forma não institucionalizada, sua atuação já era bem expressiva ainda nos últimos meses de 61, ao menos no que se refere à sua base de formação. Desde então, o IPES ganhou sede em um dos principais prédios da Avenida Rio Branco, no Rio de Janeiro71, e, em São Paulo72, localizava-se estrategicamente no Centro. Até meados de 1962, as cidades de Belo Horizonte, Porto Alegre, , Recife e Belém também foram contempladas.73 A primeira diretoria era constituída por João Baptista Leopoldo Figueiredo, Guilherme Borghoff e Othn Alves Bardello Corrêa. Seus estatutos foram publicados no Diário Oficial do Estado de São Paulo, em 8 de dezembro de 1961. Outro documento, que valida sua existência antes mesmo de manifestar-se publicamente na imprensa, diz respeito à certidão emitida pelo 4º Registro de Títulos e Documentos de São Paulo. Ela “dá fé” de que os estatutos da instituição foram inscritos em 9 de dezembro de 1961, sob o n°. de ordem 8.484 no Livro “A” de pessoas jurídicas. No documento a Instituição é descrita como “sociedade civil sem fins lucrativos com tempo indeterminado, de caráter filantrópico e intuito educacional, e tendo, por finalidade a educação cultural, moral e cívica dos indivíduos”. (ASSIS, 2001, p. 21) Para compreender a formação do IPES é importante partir em busca, mesmo que brevemente, da condução política dos anos 50. Segundo Dreifuss, as sementes do Instituto de Pesquisa e Estudos Sociais (IPES), como também as do Instituto Brasileiro de Ação Democrática (IBAD), foram lançadas ainda na administração de Kubitschek (1956-1961), “Cujos excessos inflacionários e estilo populista gerou o descontentamento entre os membros do complexo IPES/IBAD e durante a

70 Idem. 71 Segundo registro da ata da Reunião Extraordinária do Comitê Executivo, em 18 de fevereiro de 1964, o endereço do instituto na capital carioca localizava-se no edifício Avenida Central, na avenida Rio Branco, número 157, 27º. andar. Ele ocupava 13 salas do andar e usava também salas no mesmo andar pertencentes à sua associada, a Conferência de Fretes Brasil-Estados Unidos- Canadá. 72 Em São Paulo, o IPES tinha sede na avenida Brigadeiro Luiz Antônio, 54, 16º. andar. Segundo registro na ata da Reunião Conjunta do Comitê Executivo Rio/São Paulo em abril de 1964. Havia outro na Rua Bahia, 131, no bairro de Higienópolis. 73 De que se tem registro, os endereços são: em Belo Horizonte, avenida Afonso Pena, 867, 11º andar; em Porto Alegre, edifício Palácio do Comércio, 4º andar; Curitiba, no edifício Asa, na rua Voluntários da Pátria. Política e Negócios, p. 30, São Paulo, 19 ago. 1963. 45 presidência de Jânio, em cujo zelo moralista, depositavam grandes esperanças” (2008, p. 174). Dreifuss acredita que o IPES desenvolveu uma dupla vida política desde o seu início. Se, por um lado, a sua face pública mostrava uma organização de “empresários e democratas para o progresso”74, com um número de técnicos que apoiavam a reforma moderada das instituições políticas e econômicas existentes, por outro coordenava uma sofisticada e multifacetária campanha política, ideológica e militar. Em 1985, 24 anos após sua criação, Glycon de Paiva75 comenta as razões da fundação do instituto:

A motivação de sua criação foi essencialmente a defesa da liberdade pessoal e da empresa, ameaçadas pelo plano de socialização dormente no seio do Governo de João Goulart. Juntaram-se no IPES, às dezenas, empresários do Rio e de São Paulo, em sucessivas reuniões diárias em busca de planos para fazer face ao mecanismo oficialmente instalado para tomada do poder, visando o fechamento do Congresso, a substituição da Constituição. O rádio e a televisão eram ocupados por Brizola, Jango e Aragão, e pelos pelegos, tudo organizado para a efetivação de um golpe contra a liberdade.76

Para o empresariado, parte da Igreja Católica e da oficialidade militar, as Reformas de Base alterariam as relações econômicas e sociais do país, ameaçando a tradição, a família e a propriedade77. Dessa maneira, a arregimentação ocorria da

74 Como eles mesmos se denominavam. É recorrente observar que, na maioria dos documentos, informes, panfletos, cartas e livros publicados, quando o objetivo é esclarecer ou convocar aqueles que fazem parte do IPES, verifica-se sempre a conotação elitista de empresários (como aqueles que sabem para onde o Brasil deve ser conduzido) e democratas (que abraça todos que defendem um regime anticomunista). No filme O IPES é o seguinte (1962), por exemplo, as primeiras frases do narrador são: “O IPES mostra que o empresário brasileiro deve atualizar o conceito de empresa na vida moderna, voltando-se aos altos interesses da coletividade (...) Para colaborar com a democracia e seu desenvolvimento é que se fundou o IPES: Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais”. 75 Glycon teve atuação significativa no IPES, inclusive, na tentativa de sobrevivência do instituto após o golpe militar. “Glycon foi designado responsável pela liquidação do IPES, do qual foi vice- presidente e o maior incentivador de suas atividades. Tanto que, dois anos antes de fechá-lo, por força da falta de recursos e doações, escreveu cartas apelando a todos os empresários que, no período que antecedeu ao golpe, injetaram dinheiro no IPES. Foi seu último esforço para manter de pé a instituição que ajudou a fundar junto com o general , em 1962” (ASSIS, 2001, p. 66). Com base em decisão de assembleia, o IPES encerra suas atividades em 29 de março de 1972. Foram 10 anos de atividade. 76 Segundo apresentação redigida por Glycon de Paiva, em 30 de julho de 1985. Anexo 02, O IPES e a governança paralela, p. 277. 77 Conhecida também pela sigla TFP, trata-se das bases do pensamento católico conservador. Apesar de ter exercido grande influência desde os anos 40, foi em 1960 que o então deputado federal Plínio Corrêa de Oliveira fundou oficialmente a Sociedade Brasileira de Defesa da Tradição, Família e Propriedade, com intensa penetração na sociedade até os dias de hoje. 46 seguinte forma: os fundadores do IPES organizavam e recrutavam um núcleo de 50 membros, cada um encarregado de trazer cinco outros, e eles, por sua vez, outros cinco. “Eles concordavam em conduzir tanto as operações públicas quanto as encobertas”. (ROWE, 1966 apud DREIFUSS, 2008, p. 176) Nacionalmente, o IPES era coordenado em três instâncias. O Conselho Orientador (CO) era responsável pela elaboração das diretrizes gerais que seriam executadas pelo Comitê Diretor Nacional (CDN) e Comitê Executivo Nacional (CEN)78. Seus respectivos membros escolhiam os diretores para compor o Conselho Orientador Nacional (CON) assim como o presidente do instituto e dois vice- presidentes. Era imprescindível que houvesse um representante do escritório da (GB) e outro de São Paulo. O CON era composto por 40 membros, que também participavam como membros dos Comitês Regionais de Direção, e tinham como especificidade eleger o Comitê Diretor Nacional (CDN). O CDN era composto por vinte membros: dez representantes do Comitê Diretor Regional do escritório da Guanabara e dez do escritório de São Paulo79. Reuniam-se semanalmente em caráter ordinário alternando-se entre os principais escritórios.

78 No golpe militar de 64, a gestão do Comitê Executivo Nacional do IPES era gerida pelos seguintes membros: Haroldo Poland (Pres. Comissão Diretora), João Baptista Leopoldo Figueiredo (Pres. Comitê Executivo), Glycon de Paiva Teixeira (Pres. Comitê Executivo/ Rio), Luis Carlos dos Santos Werneck (Secretário Comitê Executivo/SP), José Rubem Fonseca (Secretário Comitê Executivo/Rio), Heitor Herrera (Membro Comitê Executivo/Rio), José Roberto Whittacker Penteado (Coordenador Geral/ SP), Golbery do Couto e Silva (Chefe Grupo de Pesquisas/ Rio), Moacyr Gaya (Secretário Geral/ SP) e Liberato da Cunha Friedrich (Secretário Geral/ Rio). FUNDO INSTITUTO DE PESQUISA E ESTUDOS SOCIAIS. Arquivo Nacional/ CODES. Documentos privados. Código QL. Reunião Conjunta CE, 18 de fev. de 1964. 79 Percebe-se a preocupação em equalizar as forças de influência e ação entre os dois estados desde o início da fundação do IPES. Porém, tal parceria se manteria até meados de 64, registrada em ata. No registro, o presidente do Comitê Executivo Nacional, João Baptista Figueiredo, “fêz uma exposição das atividades e problemas do IPES/SP, em seguida, apresentou um estudo das vantagens e desvantagens de uma futura e eventual autonomia das duas secções, a paulista e a carioca. Mantidos, embora, os objetivos comuns e uma estreita cooperação em certos assuntos, tais como cursos, livros e outros”. Tal proposta não foi recebida com surpresa. Diplomaticamente administrada, porém sem nenhum entusiasmo. A preocupação gerava em torno da dependência financeira. “Somos menores do que São Paulo, pois arrecadamos um máximo mensal de 7 milhões, embora em condições e com ideias para 30 milhões(...)”, comenta o presidente do Comitê Executivo/Rio, Glycon de Paiva. Contudo, Figueiredo assegurou categoricamente que “jamais o IPES/São Paulo faltaria com o apoio financeiro. Tal auxílio não somente continuará, mas é intenção, aumentá-lo, pois pretende duplicar senão triplicar sua própria arrecadação”. Ainda em reunião, Figueiredo garantiu que se encontrava exausto e que os quadros, em breve, iriam ser renovados no IPES/São Paulo. Idem à nota anterior. 47

Como aponta Dreifuss (2008, p. 204-205), o Comitê Diretor Nacional era responsável inclusive pela elaboração da programação das atividades dos Grupos de Estudos e Ação. Eram no Comitê Diretor Nacional que se elaboravam as diretrizes políticas que seriam seguidas pelos GE, GTA e pelos Comitês Executivos (CE), tanto nacionais quanto regional. Um número pequeno de sócios, entre quatro e oito, formavam os CE regionais, e se reuniam diariamente em caráter ordinário. De fato, eram nos Comitês Executivos Regionais que as decisões do Conselho Orientador (CO) e do Comitê Diretor Nacional (CDN) eram executadas, fechando assim a cadeia80. Como mostra Dreifuss, já no início de 1962 uma estrutura organizacional de Grupos de Estudo e Ação se encontrava estabelecida, de acordo com o Plano de Ação. Os objetivos foram centrados em dez itens pontuais para que, posteriormente, as ações fossem colocadas em prática. Eram eles: (1) Publicação e Divulgação; (2) Educação; (3) Trabalho Sindical; (4) Assistência Social; (5) Atividades Econômicas; (6) Levantamento da Conjuntura; (7) Estudos; (8) Editorial; (9) Escritórios de Brasília e (10) Integração 81. O método definido pelo IPES para atingir os itens do Plano de Ação era a organização em grupos. Tais coletivos tinham como finalidade aplicar e elaborar as “estratégias e táticas” adotadas a nível nacional pelo Conselho Orientador, Comissões Diretora e Executiva (DREIFUSS, 2002, p. 184). Neles se decidiam tanto questões mais específicas sobre financiamento como também se determinavam os membros que iriam cumprir as tarefas indicadas hierarquicamente. Dessa maneira, o IPES possuía seis grupos de ação divididos entre os escritórios do Rio de Janeiro e São Paulo. São eles: o Grupo de Levantamento da Conjuntura (GLC), Grupo de Assessoria Parlamentar (GAP), o Grupo de Estudo e Doutrina (GED), o Grupo de Integração (GI), o Grupo de Levantamento de Conjuntura (GLC) e o Grupo de Publicação e Editorial (GPE)82. Apesar dos grupos trabalharem separadamente, o estudo das atas revela que a sistemática das reuniões das comissões nacionais e

80 Para mais informações sobre a estruturação do IPES, ver DREIFUSS, 2008, p. 174-225. 81 FUNDO INSTITUTO DE PESQUISA E ESTUDOS SOCIAIS. Arquivo Nacional/ CODES. Código QL. Reunião Comitê Executivo, 20 de março de 1962. 82 O objetivo aqui é fazer uma abordagem indicativa de tais grupos para, no próximo item, „Da Articulação a Disseminação no ambiente midiático‟, concentrar-se exclusivamente nos grupos de Publicações e Editorial (GPE) e Opinião Pública (GOP), uma vez que dentre suas atividades incluía- se a elaboração, produção e divulgação dos filmes que serão analisados. 48 regionais era direcionada de maneira que as atividades em andamento de cada grupo fossem compartilhadas. Encabeçado por Golbery do Couto e Silva, o Grupo de Levantamento da Conjuntura (GLC)83 tinha a responsabilidade de elaborar tais diretrizes a serem seguidas e fazer as avaliações políticas que seriam encaminhadas aos demais grupos. O GLC produzia relatórios de suas ações e fornecia avaliações semanais da situação política. Segundo Bandeira (2010), o IPES era uma entidade sofisticada e pretensamente científica. Publicou números da economia nacional elaborados pela análise de seus próprios membros, pois considerava que os números oficiais sofriam manipulação. Para tanto, criou grupos de estudo específicos sobre variados temas, desde educação até reforma agrária, comunismo e leis trabalhistas, entre tantos outros. Os dados oficiais do IPES, nas palavras de Glycon Paiva, revelam que a Instituição “estudou 23 reformas, preparou uma reforma da Constituição; publicou numerosos trabalhos (...) dificilmente se encontra ainda hoje, no acervo de fundamentos da legislação posterior a 1964, alguma coisa que não tivesse antes frutificado no IPES”.84 O IPES também se relacionava com outros institutos, fundações, universidades ou até mesmo remunerava profissionais específicos para auxiliar no levantamento de informações e estudos sobre os problemas da atualidade85. Além desta intensa produção, o GLC também se debruçava em verificar a produção diária da imprensa do país (um total de 14 mil unidades anuais), permitindo, assim, um sistemático acompanhamento da conjuntura política e econômica. Os números impressionam. Mensalmente, produzia-se, em média, 500 artigos de “uso prático”, que eram sugeridos à imprensa nacional para publicação ou até mesmo divulgado

83 Segundo Dreifuss, este grupo também era conhecido como Grupo de Pesquisa, com o objetivo de projetar uma imagem externa mais neutra. (2008, p. 202). 84 Segundo apresentação redigida por Glycon de Paiva, em 30 de julho de 1985. Anexo 02, O IPES e a governança paralela, p. 277. 85 Dentre os assuntos discutidos em plenário Rio-São Paulo, estava a espera do estudo realizado pela PUC sobre a consequência das eleições de outubro de 1962. FUNDO INSTITUTO DE PESQUISA E ESTUDOS SOCIAIS. Arquivo Nacional/ CODES. Documentos privados. Código QL. Comitê Executivo, 23 de nov. de 1962. O 5º item discutido em reunião geral revela que o Projeto IRESI está interessando “em fazer as pesquisas que o IPES precisar”. FUNDO INSTITUTO DE PESQUISA E ESTUDOS SOCIAIS. Arquivo Nacional/ CODES. Documentos privados. Código QL. Reunião Geral, 25 de set. de 1962. 49 em forma de palestras, seminários entre outros86. “Conforme seus próprios cálculos, o IPES gastava entre 200 e 300 mil dólares por ano nessa operação de levantamento de informações e rede de distribuição” (STEPAN, 1971 apud DREIFUSS, 2008, p. 204). Outro grupo que atuava fortemente, porém com ação restrita, era o Grupo de Assessoria Parlamentar (GAP). Citado nos documentos como “escritório de Brasília”, era liderado pelo banqueiro Jorge Oscar de Mello Flores. O objetivo principal era coordenar politicamente a campanha antigoulart na nova capital do país, ao estabelecer ligações com órgãos do governo e contatos com grupos políticos. Para tanto, a proposta do GAP era não só oferecer apoio e sugerir soluções para os problemas brasileiros, mas também ter um membro ipesiano atuando diretamente no Congresso. Segundo Dreifuss, ao final de 1962 o IPES praticamente controlava a Câmara dos Deputados e o Senado, principalmente por intermédio da ADEP (Ação Democrática Parlamentar).87 Responsável pela elaboração de estudos que se tornariam a base para teses e diretrizes, tanto em projetos de lei e ementas no Congresso como na orientação da campanha midiática, o Grupo de Estudo e Doutrina (GED) coordenava, ainda, as atividades dos membros do IPES em conferências, seminários, congressos e em mesas-redondas, onde se debatiam assuntos tão variados como sonegação de impostos e segurança nacional. As prioridades políticas para os estudos eram estabelecidas pelo Grupo de Levantamento da Conjuntura, em composição com o Grupo de Ação Parlamentar, o Executivo e Comitês diretores do IPES. Posteriormente, forneceria material para o Grupo de Levantamento de Conjuntura (GLC) e o Grupo de Publicação e Editorial (GPE), os quais veremos adiante.

86 As revistas eram O Cruzeiro, Manchete, Fatos e Fotos, Visão, Conjuntura Econômica, Boletim Cambial, Desenvolvimento e Conjuntura, APEC, Guanabara Industrial, Petrobras, Mensário Estatístico e outras de menor importância, segundo STEPAN, 1971, p. 103 apud DREIFUSS 2008. 87 Liderada pelo deputado João Mendes e apoiado pelo IBAD, a ADEP era o mais importante canal do IPES no Congresso. Constituída nos primeiros meses de 61, a ADEP era apoiada pela maioria do PSD, UDN, PSP e outros pequenos partidos. Seu principal intuito era criar uma forte oposição para bloquear as Reformas de Base propostas por Goulart. Na ata do IPES de 17 de maio de 1962, o escritório do GAP em Brasília foi estabelecido com o objetivo explícito de “ligar-se principalmente à seção da ADEP”. (DREIFUSS, 2008, p. 236) 50

Os position papers88 recebiam o olhar atento das lideranças do IPES do Rio de Janeiro e São Paulo para, em seguida, se tornarem a diretriz final. O GED ainda tinha como atribuição supervisionar a ação do IPES na mídia, preparando os argumentos para exposição e discussão, fornecendo linhas ideológicas e, de fato, “coordenando o material de propaganda relativo a figuras políticas importantes, sindicalistas, empresários e personalidades artísticas ou literárias, a ser usado nas apresentações de televisão e programas regulares de rádio” (DREIFUSS, 2008, p. 216). Contudo, eram os grupos de Publicações e Editorial (GPE) e Opinião Pública (GOP) que tinham por finalidade disseminar em materiais impressos (livros, panfletos, position papers, entre outros), visuais e sonoros (filmes, cartuns, programas de televisão e rádio), as diretrizes e crenças do instituto. Em primeiro plano, localizava-se o Grupo de Publicação e Editorial (GPE), que tinha a tarefa de elaborar e planejar todo o material gráfico que, inclusive, acompanhava a atividade de grupos como o GOP, GED, GAP e o de Integração. “Do GPE faziam parte proprietários e diretores de companhias editoriais como Gilbert Hubert Jr., da Editora Agir, o diretor da Reader‟s Digest Publications do Brasil, Tito Leite, e o proprietário da Editora Nacional, Otales Ferreira, entre outras” (CORRÊA, 2005, p. 23). Assim como o Grupo de Publicação e Editorial (GPE), o Grupo de Opinião Pública (GPO) era subordinado nacionalmente à coordenação de Golbery do Couto e Silva. Já as metas requeriam não só certa logística de divulgação em âmbito nacional, mas também um coletivo de trabalho direcionado a espalhar os ideais ipesianos e suas respectivas atividades.89 O IPES acreditava ser possível, e investiu

88 Como eram chamados os estudos realizados pelo Grupo de Estudo e Doutrina (GED). Diversos assuntos eram abordados e passavam pelas mãos rigorosas dos membros do Comitê Executivo. Os position papers eram sempre distribuídos entre o comitê para crítica e considerações. FUNDO INSTITUTO DE PESQUISA E ESTUDOS SOCIAIS. Arquivo Nacional/ CODES. Documentos privados. Código QL. Reunião do Comitê Executivo, 10 de julho de 1962. 89 Dentre algumas figuras desse grupo do Rio destacavam-se Nei Peixoto do Valle, José Luiz Moreira de Souza (proprietário da Denisson Propaganda), Glauco Carneiro (escritor e jornalista), José Rubem Fonseca (que lidava especificamente com editoriais de jornal e filmes), Hélio Gomide e o General Golbery. De São Paulo, sobressaíam Paulo Ayres Filho, que trabalhava em educação, “escolas sociais” e propaganda geral, e o associado do complexo IPES/IBAD, Geraldo Alonso, proprietário da Norton Propaganda. Eles contavam com a colaboração de Ennio Pesce, Flávio Galvão do O Estado de S. Paulo e Luiz Cássio dos Santos Werneck. Entre outros associados e pessoal ligado ao IPES (...) Silveira Lobo (Denisson Propaganda), Jorge Sampaio e Alves de Castro, do „Repórter Esso para todo o Brasil‟ da TV Tupi (...) Esse grupo de pessoas trabalhava no rádio e na televisão, juntamente com Arides Visconti e Antônio Peixoto do Valle, que, também, com 51 fortemente neste sentido, que por meio da imprensa falada e escrita poderia fazer chegar à população o resultado de suas pesquisas e estudos. Sobre „opinião pública‟, há uma discussão interessante do Comitê Executivo/Rio de Janeiro travada entre Gilberto Huber e Glycon de Paiva. Ao considerar que ela é “a base de tôda a engrenagem”, o assistente do IPES considera que a opinião pública não custa dinheiro. Já Glycon de Paiva discorda veementemente: “Para mim, opinião pública é dinheiro”90. De fato, sob a ótica ipesiana, a disseminação de suas diretrizes nos mais diversos veículos de comunicação exigia um investimento, fosse ele financeiro ou pessoal. O que podemos extrair deste diálogo é que, necessariamente, o IPES usufruiu de duas forças complementares: manifestações e condutas consonantes com uma abordagem anticomunista e investimentos diretos em espécie ou permuta. Para sua ação de propaganda, o Grupo de Opinião Pública também estava extremamente interessado em fortalecer os próprios membros ipesianos, bem como seus respectivos patrocinadores e associados. O GOP editava documentos, mantinha correspondências com políticos e empresários, realizava palestras e promovia encontros para fortalecer a unidade e a troca de informações. Editava-se um boletim que era distribuído internamente nas reuniões mensais. Uma espécie de prestação de contas aos contribuintes que incluía todas as atividades em curso.91 Além disso, havia uma variedade de material produzido cuja forma e conteúdo eram moldados para diferentes segmentos culturais e sociais. Pensava-se como orientar os trabalhadores de indústria, estudantes, militares, donas-de-casa, entre outros. Dentre as atividades elaboradas pelos grupos GOP e GPE, utilizados especialmente pelo Grupo de Integração (GI), destacam-se os documentários que desempenhavam, a princípio, uma dupla função: reforçar o vínculo com seus respectivos sócios e cativar novos membros. Como o próprio nome sugere, o Grupo de Integração (GI) tinha como objetivo “integrar pessoas e corporações dentro do espírito democrático do IPES e ao mesmo tempo angariar contribuições financeiras

Wilson Figueiredo (editor do Jornal do Brasil), havia formado uma equipe algum tempo antes do aparecimento formal do IPES. Essa equipe foi incorporada às unidades de doutrinação e propaganda do IPES e cobria as atividades da elite orgânica (DREIFUSS, 2008, p. 209). 90 FUNDO INSTITUTO DE PESQUISA E ESTUDOS SOCIAIS. Arquivo Nacional/ CODES. Código QL. Comitê Executivo 12 de junho de 1962. 91 FUNDO INSTITUTO DE PESQUISA E ESTUDOS SOCIAIS. Arquivo Nacional/ CODES. Código QL. Reunião Geral, 16 de outubro de 1962. 52 para as atividades do Instituto”.92 As atividades de recrutamento eram conduzidas tendo em vista o potencial econômico e as possibilidades políticas.93 Segundo Dreifuss, a dinâmica em busca de novos quadros para o IPES era intensa. De forma sistemática, para arregimentar novos contribuintes priorizavam-se as relações pessoais, e todos os contatos sociais que os membros tivessem eram imprescindíveis e deveriam ser ativados. Dessa maneira,

Até setembro de 1962, o IPES organizou 36 „mesas de integração‟, convidando 136 empresas e registrando uma média de 38 companhias por „mesa‟. Para suas reuniões, o Grupo de Integração convidou 476 empresas, incluindo as 136 participantes das „mesas de integração‟. Depois de estabelecer 1.000 contactos pessoais e mais de 3.000 por telefone, ele obtinha o apoio de mais de 30% das firmas que faziam parte do IPES. (DREIFUSS, 2008, p. 217)

Contudo, as contribuições não eram exclusivamente remetidas por empresas. A ajuda financeira vinha de muitas fontes, desde associações que desempenhavam atividades específicas para angariar fundos para a causa, em eventos regulares ou extraordinários, como também através de doações individuais. Por exemplo, a relação estreita que o IPES mantinha com a Escola Superior de Guerra (ESG), já que a ênfase no recrutamento de pessoas de confiança nos postos chaves contribuiu para que este enlace se intensificasse, também ajudou a engordar a conta corrente do instituto. Segundo Bandeira,

Houve uma intensa troca de informações entre o IPES e a ESG, expandindo os laços entre a elite civil e militar; membros importantes da ESG, como Heitor de Almeida Herrera e Golbery do Couto e Silva eram associados ao IPES, cuja influência transcendia a relação militar/intelectuais de direita, alastrando-se aos meios de comunicação e divulgação através de verbas concedidas e também pelo interesse de agências de publicidade, manipuladoras das contas das grandes empresas estrangeiras, que contribuíram com grandes somas para a atuação do IPES94. (2010, p. 66-67)

92 Carta do IPES a Oswaldo Tavares, 4 de dezembro de 1962, considerando a apresentação de um livrete sobre o IPES sendo produzido pelo Grupo de Integração (DREIFUSS, 2008, p. 236). 93 Em reunião, um dos assuntos tratados foi o aumento do quadro social ipesiano. Oswaldo Tavares Ferreira, diretor do Grupo de Integração, sugere que se organizem membros dispostos a ir à Associação Comercial em busca de mais contribuintes. FUNDO INSTITUTO DE PESQUISA E ESTUDOS SOCIAIS. Arquivo Nacional/ CODES. Documentos privados. Código QL. Comissão Diretora, 22 de outubro de 1963. 94 Bandeira exemplifica esta afirmação através dos números da Light & Power que, entre dezembro de 1961 a agosto de 1963, “doou” mensalmente a quantia de Cr$ 200.000,00. No final deste período a empresa computava a importância de Cr$ 7.318.178,20, distribuídos a entidades de cultura e 53

Não se sabe ao certo o volume e o fluxo de caixa do IPES, fruto direto das contribuições. Porém, como aponta Dreifuss, a participação de empresas transnacionais foi extremamente expressiva. “As americanas contribuiriam com mais ou menos 7 milhões anuais, com expectativa de alcançar 15 milhões. As britânicas participaram com 3,5 milhões. A perspectiva era de cerca de 20 milhões mensais”. (2008, p. 224)95 Os envolvimentos do capital estrangeiro e da empresa privada nos assuntos políticos foram de tamanho significado no contexto da época que induziu à criação de uma CPI. O IPES e o IBAD foram alvos de denúncia e chamados a prestar esclarecimento. No seu número 5, de 21 de abril de 1963, o jornal Brasil, Urgente96 informava que Paulo de Tarso preparava uma documentação sobre estes institutos através dos quais os grupos econômicos exerciam uma pressão política. Queria-se saber de onde vinha o amplo financiamento que mantinha ambos os institutos tão atuantes. Neste sentido, a Comissão Parlamentar de Inquérito solicitou a presença de Ivã Hasslocher, presidente do IBAD, e de João Baptista Leopoldo Figueiredo, do Comitê Executivo do IPES.97 Meses depois, o mesmo jornal noticiaria o depoimento de Figueiredo na Comissão Parlamentar de Inquérito. “Este negara o caráter político do IPES e nada informara sobre seus financiadores. Limitara-se a dizer, „entre

beneficência. A ADESG também obteve auxilio, recebeu Cr$ 1000.000,00 em dezembro de 1962. Por sua vez, a Konrad Adenauer Stiftung, órgão do Partido Democrata Cristão da, então, Alemanha Ocidental, além de colaborar com o IPES, prestou ajuda ao governador paulista através da Mannesmann e da Mercedes Benz. (Id. O autor baseia-se nos apontamentos de R.E. Spence, diretor de orçamento da COBAST holding da Brazilian Traction Light & Power). 95 Em referência ao registro de ata do Comitê Diretor de maio de 1962. Também não há especificação no original sobre qual é a moeda a que se refere. 96 Brasil, Urgente editava seu primeiro número em 17 de março de 1963 e se definia como “um jornal do povo a serviço da justiça social”. Com o apoio direto da Ação Católica, o posicionamento editorial do jornal se identificava com a política efetivada, no período, pelos organismos de esquerda. Para eles, a mobilização da opinião pública era de fundamental importância para a pressão parlamentar, visando a aprovação das leis de Reformas de Base. Até sua última edição, em 03 de abril de 64, Brasil, Urgente continuou inabalável em sua posição política. “Para ele, o fato de Goulart ter-se voltado para a Frente Popular significava o seu reconhecimento de que nenhuma outra entidade melhor interpreta o sentir geral do país”. (BOTAS, 1983, p. 307) 97 A constituição da comissão foi engendrada de tal maneira que o trabalho de investigação se tornou difícil. Ao analisar Brasil, Urgente, Botas comenta que apesar de ter à frente, “Paulo de Tarso, já então Ministro da Educação, o presidente da Comissão Especial de Inquérito era o pessedista Peracchi Barcelos, que confessara haver recebido ajuda financeira do IBAD. Para relator dos trabalhos foi escolhido um outro deputado ibadiano, Laerte Viera. Brasil, Urgente afirmava que ainda se estava longe de conhecer toda a extensão do inquérito. Porém o que se sabia “estarrecia toda a Nação”. (BOTAS, 1983, p. 102) 54 sorrisos‟, que o IPES tinha 500 sócios e que gastara em 1962 aproximadamente 200 milhões de cruzeiros”.98 De fato, Figueiredo não mencionou nenhuma empresa patrocinadora nem sequer algum membro. Em ata da Comissão Diretora de São Paulo, registra-se que:

O Sr. João Baptista Figueiredo explicou que, ao prestar depoimento perante a CPI, como presidente do IPES, declarara que não poderia fornecer, por decisão própria, as informações solicitadas e que são as relativas à apresentação das relações de empresas, firmas e pessoas que receberam recursos do IPES, dos associados (pessoas físicas e jurídicas) e das empresas e firmas com capital ou parte do capital estrangeiro que colaborariam com este Instituto.99

Por fim, foi proposto e aprovado por unanimidade em reunião que se registrasse em ata um voto de louvor a João Baptista Figueiredo pelo depoimento que prestou, perante a Comissão Parlamentar de Inquérito. A atuação do IPES revela o modo pelo qual a elite orgânica da burguesia multinacional e associada evoluiu de um limitado grupo de pressão para uma organização capaz de uma ação política, bem como o modo pelo qual ela se desenvolveu, da fase de projetar uma reforma para o estágio de articular um golpe de Estado. Não há dúvidas de que membros do IPES e IBAD aderiram não somente à teoria, mas também às ações do grupo. Segundo Dockhorn (2002, p. 90), mesmo antes de partir para o ataque ao governo, foram necessárias ações, no sentido de cooptar um maior número de simpatizantes dentro da própria classe produtora, principalmente no que se refere ao alto nível de politização e consciência de classe dos institutos fundados por estes grupos. Neste sentido, os interesses contrários à política de Goulart foram aglutinados em torno de grupos de ação política e, principalmente, ideológica, com o objetivo de representar seus anseios no interior da sociedade brasileira. “O ponto de convergência destes militantes estava nas relações que mantinham com o capital transnacional e associado” (DOCKHORN, 2002, p. 98-99). Dessa maneira, toda a atuação IPES/IBAD estava direcionada para a fusão dos militantes grupos antigovernistas que se encontravam dispersos.

98 Brasil, Urgente, n. 61, 4 de ago. de 1963. 99 FUNDO INSTITUTO DE PESQUISA E ESTUDOS SOCIAIS. Arquivo Nacional/ CODES. Código QL. Comissão Diretora, 08 de outubro de 1963. 55

Essa campanha político-ideológica visava impedir a solidariedade das classes trabalhadoras, conter a sindicalização e mobilização dos camponeses, apoiar clivagens ideológicas de direita na estrutura eclesiástica, desagregar o movimento estudantil e bloquear as forças nacional-reformistas no Congresso e, ao mesmo tempo, mobilizar as classes médias como a „massa de manobra‟ da elite orgânica. (SIMÕES, 1985, p. 26)

O IPES reuniu as mais diversas associações de classe, sindicatos comerciais e industriais100, grupos de pressão, escritórios de consultoria e anéis tecnoburocráticos101, ativistas militares e facções políticas de centro-direita.

Considerou-se até a necessidade de atrair organizações privadas tão diversas como o Rotary ou o Lyons Clube e o Centro Dom Vital, de leigos católicos, com o intuito de generalizar a específica mensagem multinacional e associada impregnada no núcleo do IPES e também proporcionar um ponto de encontro ideológico para a mobilização das classes dominantes. (DREIFUSS, 2008, p. 195)

Também ajudou a fundar, organizar e sobreviver financeiramente diversas organizações femininas que tiveram participação decisiva no desenrolar dos acontecimentos de 1964. Entidades como a CAMDE (Campanha da Mulher pela Democracia) no Rio de Janeiro, a UCF (União Cívica Feminina) e a MAF (Movimento de Arregimentação Feminina) em São Paulo, a LIMDE (Liga da Mulher Democrata) em Minas Gerais102, a ADF (Ação Democrática Feminina Gaúcha) no Rio Grande do Sul e a CDF (Cruzada Democrática Feminina) em Pernambuco estão intimamente ligadas ao IPES. Em entrevista à revista feminina Livro de Cabeceira da Mulher103, a presidente da CAMDE, Amélia Molina Bastos, conta como ocorreu a articulação para a urgente fundação da entidade carioca, em junho de 1962.

100 IPES CE Rio, 5 de fev. de 1962 e Ata do IPES, São Paulo, 28 de ago. de 1962. (DREIFUSS, 2008, p. 195) 101 IPES CD Rio, 1º de maio de 1962. (DREIFUSS, 2008, p. 195) 102 “Com o objetivo de criar um organismo feminino nos moldes da CAMDE e da UCF, a alta liderança do IPES/NOVOS CONFIDENTES havia acionado duas mulheres. A primeira, Ana Maria Bragança, era esposa do general Elcino Lopes Bragança e cunhada do general José Lopes Bragança, ambos da direção do NOVOS CONFIDENTES. A segunda se transformaria na principal dirigente do movimento feminino em Minas e na responsável pela ligação desse movimento com a articulação IPES-NOVOS CONFIDENTES: Lydia Magon Villar, a esposa de Aluízio Aragão Villar. Para mais informações sobre a LIMDE e IPES/NOVOS CONFIDENTES, ver STARLING, 1986, p. 158. 103 Sob o título Como e Onde Marcha a CAMDE103, depoimento concedido à repórter Stella M. Senra Pollonah. (AUTRAN, 1967) 56

Meu irmão104, antes, já tinha tentado me convencer a fundar uma entidade, mas eu não aceitava a ideia. Aí ele e o Glycon me contaram como os dois já estavam trabalhando em setores diferentes (o do meu irmão era o do levantamento da Opinião Pública) e como viam a necessidade de criar uma entidade, que, aliás, já tinha sido fundada em São Paulo. Então diziam: “é preciso que a mulher faça alguma coisa, porque uma vez que os comunistas estão no poder a coisa é muito séria. Eles não vão melhorar a situação dos desfavorecidos, porque prometem e não dão. Eles vão é tirar a liberdade, quem vai mandar e ter todas as prerrogativas é o Estado e tal”. Eu, como sou muito católica, pensei logo: Comunismo-ateísmo. Então, tenho de defender a igreja. E foi assim que me decidi. (POLLONAH apud AUTRAN, 1967, p. 16)

A CAMDE105 é um bom exemplo de como as demandas ipesianas conseguiam irradiar seu posicionamento político através desses braços „amigos‟. A ordem era reproduzir e enviar pelo correio – adquirindo o maior número de endereços de pessoas conhecidas que morassem em outros estados – todo o material impresso produzido pelo IPES. Para se ter uma ideia, na campanha quanto à provável escolha de San Thiago Dantas para primeiro-ministro, conseguiram distribuir 52 mil cartas por todo o país106. Arrebatando colegas e vizinhas, visitas aos jornais eram recorrentes. A pressão era para se posicionar contra as medidas tomadas no Congresso e para seguir o direcionamento político do IPES encaminhado às redações107. Para garantir esse espaço, as mulheres também arregaçaram as mangas junto aos anunciantes e conseguiram o compromisso de só publicarem propaganda nos jornais simpáticos a

104 Amélia Molina Bastos era professora primária e de família ligada ao serviço militar, como seu irmão, o general Antônio Mendonça Molina. Nesta mesma entrevista comenta que era também neta, sobrinha e mulher de general. Seu marido era o médico-general Virgílio Bastos. 105 “A sede da CAMDE era a Casa Paroquial da Igreja Nossa Senhora da Paz, embora as judias, espíritas e protestantes também fossem bem-vindas, desde que comungassem da mesma opinião. À princípio a ideia era fundar uma entidade em cada estado, mas sociólogos e antropólogos que colaboraram na concepção do movimento para o IPES concluíram que, se falhassem na conquista do poder, elas seriam um alvo fácil de perseguição em todo o país. Convencionou-se, então, que cada estado criaria uma sigla para designá-las”. Para mais detalhes, ver Mulheres: Por Deus e pela Família In ASSIS, 2001, p. 54. 106 Como vimos, a renúncia de Jânio provocou uma crise política gerada pelo veto dos militares à posse do vice João Goulart. Durante o breve regime parlamentarista, Francisco Clementino San Tiago Dantas tornou-se ministro de Relações Exteriores. Seguidor de uma política externa independente, Dantas reata relações com a União Soviética e discorda formalmente dos Estados Unidos, que pretendiam expulsar Cuba da Organização dos Estados Americanos. Em junho do mesmo ano, deixa o cargo. Com a renúncia de , Goulart encaminha ao Congresso seu nome para substitui-lo. Contudo, as forças conservadoras vetaram sua indicação. Com a volta do regime presidencialista, Dantas assume o Ministério da Fazenda, mas depois de alguns meses de trabalho é afastado por problemas de saúde. Cinco meses após o golpe morre de câncer de pulmão. 107 Veremos mais sobre a dinâmica das diretrizes ipesianas injetadas nas linhas editorial de diversos jornais em “Articulação e Propagação no ambiente midiático”. 57 elas. Segundo Denise Assis, graças ao boicote conseguido pelas militantes da CAMDE, o jornal Última Hora chegou a circular com minguadas quatro páginas. “Contávamos com o apoio dos diretores para a publicação das notícias produzidas por nós”, comemora Eudóxia em entrevista a jornalista (ASSIS, 2001, p. 55). Eram mulheres empenhadas e determinadas em garantir a moral cristã e os bons costumes. Há alguns episódios marcantes que demonstram o tom de quem está verdadeiramente na ativa. Atuações que vão desde um movimento expressivo, que impediu a atriz Norma Bengell, por ter sido filmada em nu frontal em Os Cafajestes 108 (1962), de entrar no estado de Minas Gerais, assim como a campanha contra o palavrão no teatro através de anúncios pagos nos principais jornais do país, em 1967109. Outro fato marcante, também ocorrido no período da ditatura militar, foi apoio incondicional para o recolhimento e apreensão da revista Realidade. Sucesso editorial da época, a edição de janeiro de 1967 era um especial sobre a mulher brasileira. Mais do que política, a censura era moral. Se por um lado evitava-se falar em eleição, democracia, esquerda e socialismo, temas como adultério, drogas, infidelidade, virgindade e aborto eram expurgados. Em entrevista à revista Bravo, o editor Roberto Civita relembra o impacto de Realidade no Brasil do regime militar e da revolução sexual:

A meu ver, aquela edição sobre a mulher brasileira foi confiscada por três razões. Uma era que tinha a foto de uma mulher dando à luz, que eu publiquei pequena e na dobra de uma página dupla. Me disseram: "Olha, vai dar encrenca", e eu respondi: "Não, a gente publica pequena e na margem". Deu encrenca, o cardeal ficou escandalizado, ligou para o governador, o

108 Dirigido por Ruy Guerra, Os Cafajestes foi rodado em 1961 e lançado, com grande escândalo, no ano seguinte. Sua trajetória comercial incluiu proibições, manifestações de ligas conservadoras, debates na imprensa e até mesmo censura. O filme conta a história do playboy Jandir (Jece Valadão) que, preocupado com a falta de dinheiro quando seu pai está a ponto de ir à falência, recruta um cúmplice, prometendo a este um carro se ele ajudar em seu esquema de chantagem. Eles atraem a amante do tio até uma praia deserta e a fotografam nua. Este filme ficou famoso por mostrar o primeiro nu frontal do cinema brasileiro. Em entrevista ao Programa Roda-Vida (TV Cultura), em 06/06/1988, Norma Bengell comenta suas impressões sobre o ocorrido: “O que é que levou essas pessoas, essas mulheres, não é? Eu tenho uma tese: eu acho que em 62 já era uma preparação do golpe militar de 64, então já estava baixando aí um moralismo barra-pesada. Isso é a minha tese”. Disponível em: . Acessado em 2 de jan. de 2012. 109 Em resposta à campanha da CAMDE contra o palavrão no palco, o ator Paulo Autran fez o seguinte comentário: “Essas piedosas senhoras da CAMDE deveriam preocupar-se mais com a melhor qualidade do teatro e preços mais baixos da cebola. Palavrão mesmo é fome e analfabetismo, latifúndio e desemprego”. (ASSIS, 2001, p. 56) 58

governador ligou para o juiz de menores, e o juiz apreendeu a revista. A segunda razão era porque havia uma pesquisa que dizia que de 30 a 40% das mulheres brasileiras da época já tinham feito aborto. Os censores disseram que isso constituía uma ofensa à honra da mulher brasileira110. Ofensa? Ora, mas era um fato! Só que ninguém queria saber do fato. Essa história de fato não interessava a mínima para os censores. E a terceira razão foi por causa da frase "eu me orgulho de ser mãe solteira". Havia um ensaio fotográfico lindo sobre a maternidade, com fotos de mães com bebês, e uma delas era uma prostituta. E eles ficaram absolutamente enlouquecidos com essa mistura de mãe com prostituta. Aí apreenderam a revista - tanto nas bancas quanto na gráfica. 111

A participação feminina através dessas organizações foi tão decisiva para a concretização e manutenção do Golpe de 64 que o próprio governo militar recém- instaurado reconheceu publicamente:

Sem as mulheres, afirmou um dos líderes do golpe, “nós nunca poderíamos ter impedido que o Brasil mergulhasse no comunismo. Enquanto muitos de nossos homens tinham que trabalhar às escondidas, as mulheres podiam trabalhar às claras, e como elas trabalharam”. (SIMÕES, 1985, p.37)

Em seu livro de memórias Voltando no Tempo, Eudóxia Ribeiro Dantas descreve: “De 1962 a 1964 passamos momentos de ansiedade e medo, porém lutando contra esse inimigo insidioso, colocado em postos-chaves do governo, na mídia, nas escolas, nas universidades” (DANTAS, 1998, p. 58). No trabalho de arregimentação já se sentia o tom bélico da empreitada. Um dos pontos estabelecidos para as militantes era nunca dizer que estavam combatendo exclusivamente o comunismo, mas sim trabalhando “em defesa da Democracia”.

110 É interessante notar que, durante as eleições presidenciais de 2010, o candidato tucano José Serra foi fortemente afetado por uma declaração feita pela ex-aluna de sua esposa Mônica Serra, Sheila Canevacci Ribeiro, que disse que ela teria cometido aborto durante os anos de ditadura. Apesar de ter oficialmente negado, nota-se que a discussão girou em torno de uma perspectiva moral. Ao invés dos candidatos mostrarem suas propostas e assumirem que se trata de uma questão de saúde pública, limitaram-se a reflexões e posicionamentos pautados pela superficialidade. O assunto ainda é tabu. No Brasil, o aborto é considerado crime, exceto em duas situações: de estupro e de risco de vida materno (Art. 128/ Código Penal). De acordo com as últimas estimativas do Ministério da Saúde, entre 729 mil e 1,25 milhão de mulheres se submetem ao procedimento anualmente no Brasil. Destas, pelo menos 250 morrem. Para mais informações, ver MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2009. 111 Entrevista concedida na ocasião do lançamento do livro Realidade Re-Vista. Civita comenta ainda sobre o endurecimento da repressão na redação. ”A censura, que começou a partir da edição especial sobre mulheres, foi mortal, principalmente quando colocaram um censor na redação. Toda lauda e toda foto tinha que ter um visto e um carimbo. Isso inibiu - e muito - os jornalistas”. Disponível em . Acessado em 2 de jan. de 2012. 59

Como nos mostra Cordeiro (2008), em março de 1967, às vésperas do I Congresso Sul Americano da Mulher em Defesa da Democracia, a CAMDE encaminhava ao IPES um pedido de doação de livros. “(...) foi decidido que o IPES enviaria toda a documentação disponível e que fosse solicitada ao general Xavier que, pelo Centro de Biblioteconomia, fosse tentada a obtenção de livros para o Congresso”112. Apoio logístico oferecido para o curso de formação de lideranças também é outro exemplo de como as entidades trabalhavam em consonância. “(...) sobre o curso de formação de liderança pleiteado pela CAMDE, a Esso prontificou- se em ministrá-lo, mas depende ainda, de melhor entendimento para esquematização final”113. Se após o golpe o apoio ipesiano era ocasional, basicamente restrito à infraestrutura para eventos e campanhas, livros, capacitação para cursos de atualização política, entre outras ajudas, durante os anos que antecederam a tomada do poder a contribuição era pontual. No período em questão, Maria Paula Caetano da Silva era secretária da União Cívica Feminina (UCF) e aponta que o papel desempenhado pelo IPES, principalmente no processo de estruturação das entidades femininas, foi fundamental.

O IPES foi quase que uma companhia de seguros que ajudava as entidades até elas terem recursos próprios pelas associações, pelo seu próprio trabalho. E a União Cívica, quando eu cheguei aqui, ela tinha uma ajuda do IPES. Depois não, porque as sócias começaram a contribuir. Durante a necessidade das campanhas, o IPES tinha as gráficas.... é como eu digo, uma operação de seguros. Mas eu nunca pertenci ao IPES, vim para ser secretária da União Cívica e depois que não precisaram mais de mim, eu fui para a COSIPA, em 65.114

Assim como o IPES, para se filiar às entidades femininas era imprescindível ser apresentado por alguém da diretoria e, é claro, contribuir mensalmente115. Porém, o alcance e a penetração que tais entidades conseguiam iam além dos seus contatos sociais da elite. A CAMDE, por exemplo, adquiriu mais visibilidade implantando-se em favelas e desenvolvendo ali um trabalho social, “ao mesmo

112 FUNDO INSTITUTO DE PESQUISA E ESTUDOS SOCIAIS. Arquivo Nacional/ CODES. Código QL. Reunião Comitê Diretor, 23 de março de 1967. 113 Idem. 114 Depoimento de Maria Paula Caetano da Silva, sócia-fundadora da UCF, concedido ao documentário "Atrás de Portas Fechadas: a mulher militante na Ditadura", em out. de 2003. 115 A contribuição da CAMDE era de Cr$ 200,00 por mês. (ASSIS, 2001) 60 tempo em que conquistava as lideranças femininas da comunidade para reproduzir seus conceitos” (ASSIS, 2001, p. 55). Autores como Dreifuss (2008) e Simões (1985) condicionam a participação dessas entidades femininas, que saíram do espaço privado para agir no público, à indução e instrumentalização por parte de seus maridos, irmãos ou padres. Assim, ao afirmar que as mulheres se organizaram porque manipuladas pelos homens, essa interpretação confirma que o lugar dos homens é na esfera pública e às mulheres destina-se o mundo privado. Assume-se aqui a proposta de Cordeiro (2008) que observa que este tipo de leitura reafirma uma visão de segmentos conservadores da sociedade.

Não se pode apenas constatar o que já está presente no discurso das mulheres, ou seja, o fato de elas se apresentarem como mães e o fato de que esta afirmação confirmava o conservadorismo de suas posições. É necessário que se entenda esse argumento – de elas se definirem publicamente como seres privados – como um elemento substantivo na construção das relações de gênero no país naquele momento. Mais que isso, é essencial compreender essa postura como um fator crucial na mobilização dessas mulheres, na medida em que representava muitas de suas demandas políticas, bem como os valores nos quais elas acreditavam. (CORDEIRO, 2008, p. 92)

O peso do discurso feminino conservador foi estrondoso. Ao se posicionarem como mães, esposas e donas-de-casa116, sentiam-se aptas a se posicionarem em defesa das instituições da Família, da Pátria e da Religião. O argumento de uma suposta ameaça comunista, que colocava em perigo seu patrimônio e sua posição social, torna-se central para explicar a organização destas mulheres para a manutenção da moralidade. “O comunismo é considerado pelo discurso conservador como um regime „estranho às instituições, às tradições e ao modo de vida ocidental e, nesse sentido, pode ser responsável pela destruição dessas matrizes”. (CORDEIRO, 2008, p. 82-83)

116 Apoio este perpetuado durante os anos iniciais que se seguiram ao golpe, como mostram alguns trechos do Manifesto da UCF direcionado às mulheres. “Mulher Brasileira, a UNIÃO CÍVICA FEMININA DE SÃO PAULO se dirige a você, Mulher Brasileira, que, como nós, foi até à Revolução, porque jurou defender a Democracia. A Revolução trouxe-nos paz para trabalhar (...) Chegou o momento de levantarmos da opinião pública um clamor imenso, reforçando a Revolução, para que ela possa agir e interpretar a causa nacional (...) Os brasileiros dignos cerraram fileiras. Vão construir um BRASIL NOVO que conta com você, Mulher Brasileira”. Anexo 03, Boletim da União Cívica Feminina, novembro de 1964, p. 281. 61

A manifestação mais contundente foi a tomada das ruas em diversas cidades do Brasil em repúdio ao momento que ficou conhecido como movimento de desagravo ao Rosário. Não há como comentar o impacto das marchas e sua projeção nacional sem antes destacar o comício da Central do Brasil, no dia 13 de março de 1964, no Rio de Janeiro. Neste comício, que reuniu cerca de 350 mil pessoas, Goulart anunciou algumas reformas, como a nacionalização de refinarias de petróleo e a desapropriação de terras para a reforma agrária. E criticou duramente o uso reacionário de terços e rosários na luta contra as Reformas de Base. Segundo Cordeiro, as palavras do presidente foram, possivelmente, uma resposta à atitude de um grupo de mulheres católicas que haviam impedido, com terços e rosários, o pronunciamento de Leonel Brizola, em Belo Horizonte, dias antes.117 Para muitos historiadores, a Marcha da Família com Deus pela Liberdade consagrou o apoio ao golpe militar de 64 que ocorreu menos de um mês após a primeira manifestação em São Paulo. De fato, o conservadorismo paulista deu o pontapé inicial e a atuação da União Cívica Feminina (UCF) foi determinante, já que conseguiram arregimentar rapidamente milhares de pessoas, indo às ruas para defender seus ideais pautados pelo slogan: “A família que reza unida permanece unida”.118 No dia 19 de março, dia de São José, padroeiro da Família, a Marcha reuniu cerca de 500 mil pessoas.119 Faixas ameaçadoras (“Tá chegando a hora de Jango ir embora”), nacionalistas (“Verde e amarelo, sem foice nem martelo”), políticas (“Comunismo,

117 Em um dos trechos mais enfáticos, dizia o presidente no Comício: “Ameaça à democracia é empulhar o povo brasileiro, é explorar os seus sentimentos cristãos, na mistificação de uma indústria do anticomunismo (...) Não podem ser levantados os rosários da fé contra o povo, que tem fé numa justiça social mais humana e na dignidade das suas esperanças (...) Os rosários não podem ser erguidos contra aqueles que reclamam a discriminação da propriedade da terra, hoje ainda em mãos de tão poucos, de tão pequena minoria.” Para acessar discurso na íntegra, disponível em . Acessado em 15 de nov. de 2011. 118 O slogan em questão é atribuído à Cruzada do Rosário em Família. Trata-se de uma organização católica que entrou em atividade no Brasil a partir do final de 1963, liderada pelo padre irlandês e ex-capelão norte-americano Patrick Peyton. Neste dia, o padre Patrick ajudou a realizar uma missa pela “salvação da democracia”. Para mais informações, ver verbete do Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil/ Fundação Getúlio Vargas. 119 Publicada em 20 de março de 1964, diz o abre da matéria “São Paulo parou ontem na defesa do regime”: A disposição de São Paulo e dos brasileiros de todos os recantos da pátria para defender a Constituição e os princípios democráticos, dentro do mesmo espírito que ditou a Revolução de 32, originou ontem o maior movimento cívico já observado em nosso Estado: a "Marcha da Família com Deus, pela Liberdade". Ver na íntegra o acervo online da Folha de São Paulo. Disponível em: . Acessado em 13 de ago. de 2011. 62 não; Democracia, sim”), polêmicas (“Queremos governo cristão”) e até divertidas (“Vermelho bom, só batom”)120 tomaram o centro de São Paulo. Maria Helena Souza Barros, participante ativa, revela os motivos de sua adesão à UCF e a atmosfera de sua participação na Marcha:

Na época, eu tinha três filhos, acabei tendo cinco e eu dizia que Brasil é esse que nós vamos ter. Já tínhamos exemplo de Cuba, do Che Guevara fazendo aquela desordem toda (...) Então aquilo me deixava muito preocupada. Aí, eu entrei na União Cívica diretamente e fortemente. Para fazer tudo que fosse possível. E nós começamos a fazer... muita coisa (...) Organizamos a Marcha da Família e eu disse eu vou com os meus filhos. Fiz eles passarem a noite fazendo cartazes e fui para a Marcha da Família e pensávamos que não ia dar certo. Mas a medida que ela pisou na avenida e começamos marchar foi uma apoteose. Todo mundo se agregou, inclusive os homens. Eu fico arrepiada, toda vez, eu fico arrepiada porque eu vivi este momento maravilhoso da minha vida... faria outra vez, muitas vezes. Talvez não Marchas de Família porque isso foi em uma hora muito própria. Agora são outras marchas, talvez terão outros nomes, mas a Família como célula- mater de uma nação não pode ser esquecida.121

Promovidas pela União Cívica Feminina (UCF) e pela Campanha da Mulher pela Democracia (CAMDE), ambas patrocinadas pelo Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais (IPES), as marchas irradiaram-se por todo o país122. E ganharam outros nomes, como a Marcha da Vitória, no Rio de Janeiro, apenas um dia após o

120 Frases observadas no arquivo iconográfico localizadas no Arquivo Público do Estado de São Paulo/ Acervo DEOPS (Departamento Estadual de Ordem Política e Social). 121 Depoimento de Maria Helena Souza Barros, concedido ao documentário "Atrás de Portas Fechadas: a mulher militante na Ditadura", em outubro de 2003. Diferentemente das militantes da CAMDE, as senhoras paulistas ainda hoje realizam suas atividades, mantém sua sede própria e alguns de seus quadros remanescentes dos anos 60 e 70. Encontram-se sazonalmente, em sua sede própria, na rua Sampaio Vidal, 135, São Paulo (SP). Para elas, portanto, sua atuação não está vinculada unicamente ao regime civil-militar, já que a UCF o precede, assim como sobrevive a ele. Campanhas contra as drogas, trânsito, fome, arrecadação de alimentos e, nos últimos anos, inclusão digital entraram em pauta. O mesmo não ocorre com a CAMDE, que teve suas atividades encerradas em 1974. 122 Em Araraquara (SP) e Assis (SP), 21/03; em Bandeirante (PR), 24/03; Santos (SP), 25/03; em Itapetininga (SP), 28/03; em Atibaia (SP), Ipauçu (SP) e Tatuí, 29/03; em São João da Boa Vista (SP), 01/04; em Londrina (PR), Rio de Janeiro (RJ) e São Carlos (SP), 02/04; em Uberlândia (MG), 03/04; em Rio Claro (SP), 04/04; em Barbacena (MG), Jaú (SP), Maceió (AL) e Pádua (RJ), 05/04; em Campinas (SP), 07/04; em Amparo (SP) e Franca (SP), em 08/04; em Mogi-Guaçu (SP) e Recife (PE), 09/04; em Passos (MG) e Presidente Prudente (SP), 11/04; em Taubaté (SP), Periqui (SP) e Botucatu (SP), 12/04; em Campos (RJ), 13/04; em Brasília (DF), Capivari (SP) e Lorena (SP), 15/04; em Dois Córregos (SP) e Lavras (MG), 16/04; em Conselheiro Lafaiete (MG), 18/04; em Indaiatuba (SP) e Santa Bárbara D‟Oeste (SP), 18/04; em Jacareí (SP), 19/04; em Formiga (MG), 21/04; em Teresina (PI), 22/04; em Cachoeira Paulista (SP), em 25/04; em Campos do Jordão (SP), 26/04; em Pains (MG) e São José dos Campos (SP), 01/05; em Aparecida (SP), Belo Horizonte (MG) e Goiânia (GO), 13/05; em Niterói (RJ), 15/05; em Caxias (RJ), em 07/06, em Magé (RJ), 08/06. Grupos de Estudos sobre a Ditadura/ Universidade Federal do Rio de Janeiro. Disponível em . Acessado em 2 de jan. de 2012. 63 golpe militar. A convocação da população era noticiada pelas rádios e jornais locais. Panfletos eram distribuídos. “Em Belo Horizonte, o empresário Antônio Luciano cedeu avião de sua propriedade para que fossem espalhados panfletos das marchas por toda a cidade”.123 Entre classificados e obituários, em 01 de abril de 1964 o Jornal do Brasil publica o anúncio em linhas garrafais:

Irmãos de tôdas as condições sociais e de todos os credos: venham para as ruas repudiar o comunismo totalitário e anti-humano. Marchemos lado a lado, com Deus e com o espírito dos nossos heróis da liberdade! Compareçam AMANHÃ, às 16 HORAS, saindo da Praça da Igreja da Candelária para a Esplanada do Castelo.124

Neste sentido, é importante destacar a mobilização dos grupos de pressão antigoulart que se associaram ao instituto na tarefa de intensificar a campanha anticomunista que se vendia como democrática e revolucionária. Afinal, o golpe de 64 foi noticiado pela imprensa como o dia da “Revolução”. Porém, é preciso entender a participação social na mobilização que levou ao golpe e ao consenso em torno do regime instaurado, a partir de um viés que não seja somente o da manipulação. Mesmo ao constatar que tais articulações eram evidentes no Plano de Ação do IPES, o que queremos, neste momento, é ressaltar a adesão social, tendo em vista a complexidade dos comportamentos coletivos. Ou seja, a campanha disseminada no ambiente midiático, que veremos a seguir, envolve necessariamente uma lógica simbólica que compreendia e organizava os valores que regem o cotidiano das pessoas. Dessa maneira, ao tentarmos varrer a reflexão centralizada unicamente na manipulação - seja pelos empresários do IPES, pelos militares ou mesmo pelos grupos de pressão - o que se deseja é investigar a força atuante das ideias no ambiente midiático. Nas palavras de Morin,

vivemos, em um universo de signos, símbolos, mensagens, figurações, imagens, ideias, que nos designam coisas, situações, fenômenos, problemas, mas que, por isso mesmo, são os mediadores necessários nas relações dos homens entre si, com a sociedade e com o mundo. (2008, p. 140)

123 Entrevista com D. Maria Vitor em 16-10-1982. (SIMÕES, 1985, p. 104) 124 Jornal do Brasil, 1º Caderno, p. 12, 1 de abr. de 1964. 64

Em defesa da existência da noosfera, o pesquisador enfatiza a importância de reconhecer a soberania e a dependência das ideias, assim como seu poder e a sua debilidade. O conceito foi primeiramente desenvolvido pelo filósofo francês Theilhard de Chardin (1881-1955). Para ele, assim como há a atmosfera, existe também a noosfera. Trata-se do mundo das ideias, formado por produtos culturais, pelo espírito, linguagens, teorias e conhecimentos. Para desenvolver sua pesquisa, Edgar Morin aprofunda o conceito de noosfera entrelaçando-o fortemente com a cultura. Para ele, “assim como as plantas produziram o oxigênio da atmosfera, agora indispensável à vida terrestre, as culturas humanas produziram símbolos, ideias, mitos, que se tornaram indispensáveis às nossas vidas sociais”. (2008, p. 140) Por isso é tão importante adotar o ponto de vista sistêmico nesta abordagem. Seria uma simplificação metodológica considerar exclusivamente a relação de poder sobre os veículos de comunicação a responsável por moldar a opinião pública rumo ao golpe militar. Afinal,

As representações, os símbolos, mitos, ideais, são englobados simultaneamente pelas noções de cultura e de Noosfera. Sob o ponto de vista da cultura, constituem a sua memória, os seus saberes, os seus programas, as suas crenças, os seus valores, as suas normas. Sob o ponto de vista da Noosfera, são entidades feitas de substância espiritual e dotadas de uma certa existência. (MORIN, 2008, p. 139)

Assim, ao considerar a vida das ideias, emerge uma realidade objetiva onde os nossos espíritos habitam (MORIN, 2008, p. 138). Saída das próprias interrogações que tecem a cultura de uma sociedade, a noosfera dispõe de relativa autonomia. Neste sentido, tendo em vista os sistemas de representação mental da sociedade, sua cultura, seus valores e tradições, certamente poderemos compreender melhor a dinâmica dos processos sociais do período ao localizar o ambiente midiático. É com este intuito que partimos a investigá-lo.

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Articulação e propagação no ambiente midiático

É imprescindível ressaltar a atividade ipesiana direcionada aos veículos de comunicação para compreendermos como tais discursos políticos de cunho conservador transitavam na cena midiática e social. Segundo Dreifuss, tais construções ideológicas significaram uma mobilização conjuntural para o golpe. Sobretudo quando a estratégia retórica se converteu em política e, em seguida, se transformou em ação militar. “Esse foi o estágio do „esforço positivo‟ com que vários escritórios de consultorias e anais burocrático-empresariais, associações de classe e grupos de ação formaram um centro político estratégico, o complexo IPES/IBAD”. (2008, p. 157) Apesar da importância das atividades dos demais grupos, vamos nos concentrar naquelas elaboradas por dois especificamente: o Grupo de Opinião Pública (GOP) e o Grupo de Publicação e Editorial (GPE). Como dito anteriormente, as atividades de elaboração e divulgação nos mais diversos veículos de comunicação tinham suas realizações determinadas por esses grupos. As unidades operacionais de ambos asseguravam que um eficiente programa de propaganda pudesse ressoar em uníssono. O intuito era colocar na rua as mensagens do Grupo de Doutrina do IPES. Neste sentido, formou-se uma comissão composta por ensaístas, escritores, personalidades literárias e outros intelectuais para que produzissem e assinassem artigos consonantes com as análises ideológicas feitas dentro do instituto. “Os mais importantes jornais, rádios e canais de televisão se engajaram nas propostas do grupo responsável por moldar a opinião pública” (ASSIS, 2001, p. 24). Silva é ainda mais contundente. Segundo o pesquisador, o IPES não só pressionava os órgãos de imprensa, mas também comprava seu silêncio e opinião. “Obrigava-os a alterar as suas linhas de ação, a renunciar aos seus princípios e a demitir todos os funcionários contrários à linha do gorilismo brasileiro, a todos apontando como comunistas” (1975, p. 253). Durante o período democrático, de 1945-64, a maioria dos jornais e revistas da grande imprensa alinhou-se, em momentos-chave, a posicionamentos antigetulistas que constituíram ações e opiniões golpistas. Embora não seja objetivo deste trabalho estudar especificamente as escolhas editoriais assumidas pela

66 imprensa nos anos que antecederam o golpe de 1964, nos parece de extrema importância ressaltá-las em processo de significação no campo dos fenômenos comunicacionais. Segundo Biroli, o dualismo entre getulistas e antigetulistas sobreviveu ao suicídio de Vargas. Quando o foco das críticas se voltou para Goulart, fundiram-se antigetulistas e anticomunistas. "Leia-se resistência à centralidade dos sindicatos na política, às mudanças sociais e à exposição de demandas dos trabalhadores; resistências, enfim, às transformações em curso, que poderiam reconfigurar os limites do debate público e da esfera política no Brasil" (BIROLI, 2009, p. 17). Um dos principais objetivos do Grupo de Opinião Pública (GOP) e de Publicação e Editorial (GPE) estava na divulgação da “verdade”. “Nossa tarefa é a de esclarecer a opinião pública, pois muita gente não sabe o que é democracia, principalmente os jovens, os estudantes e os operários”125. Pautados por essa “missão”, a ordem era colocar em prática o que o instituto compreendia como tal. Simplificava-se o contexto histórico-político-social e a campanha concretizava uma tendência maniqueísta que reduzia a discussão numa relação de causa e efeito, na qual os certos e os errados, os verdadeiros e os mentirosos, os democratas e os autoritários estavam na arena. Neste sentido, se antigetulistas e anticomunistas estavam entrincheirados para combater um suposto golpe de esquerda que se aproximava. Todos aqueles que não preenchessem tais características ou que não se posicionassem em defesa da democracia representavam a ameaça que se aproximava. Sim, “era preciso defender a liberdade, os valores da família e a pátria”. Esta simplificação estampada na campanha ipesiana reduz a complexidade e reforça os determinismos culturais (normalização e imprinting), ainda mais profundos que os determinismos sociológicos de situação, como a classe social e status profissional, por exemplo. Ou seja, mobilizar a opinião pública era convocar os cidadãos da nação para agirem como pais dignos e responsáveis, mães “de fé” e filhos estudiosos dispostos a crescer com o país, indiferentemente de sua condição social e sua situação profissional. A condição que unia a todos era a defesa da democracia alicerçada pela tradição cristã. Tiremos como base desta reflexão um pequeno trecho da locução do curta-metragem O que é o IPES.

125 Jornal do Brasil, Caderno 1, p. 4, 2 de fev. de 1962. 67

A omissão é um crime. Isolados, seremos esmagados. Somemos nossos esforços. Orientemo-nos num sentido único à ação dos democratas para que não sejamos vitimas do totalitarismo. E é justamente para coordenar o pensamento e a ação todos aqueles que não querem ficar de braços cruzados diante da catástrofe que nos ameaça, é necessário criarmos um organismo novo com uma mensagem nova para a nova realidade do Brasil de hoje. Temos uma finalidade básica: evitar que a difícil situação que o Brasil atravessa, venha comprometer nossas instituições democráticas e tradições cristãs.

Segundo Couto, os antecedentes evidenciam que o golpe de 1964 é um fenômeno complexo e polêmico. “Oferece gama de explicações e interpretações variável, conforme a visão, o ângulo de observação, os interesses e mesmo a formação de quem o analisa”. (1998, p. 52) Contudo, o que gostaríamos de destacar é esta característica de abordagem da campanha ipesiana ao minimizar a complexidade e inflar as disputas e os conflitos. Sugerindo, dessa maneira, uma atmosfera de ameaça e terror. Nos caminhos da investigação sobre a articulação e propagação do IPES no ambiente midiático, procuramos referências sobre a elaboração da própria imprensa sobre os anos que antecederam ao golpe militar. Nos deparamos com uma pesquisa que analisou diversas reportagens publicadas em jornais e revistas brasileiras entre 1984 e 2004126. Segundo Flávia Biroli, as significações sobrepõem-se apenas a discursos que vinculam a prática jornalística à defesa da democracia, tendo por base uma oposição simplista entre liberdade de imprensa e ditadura.127 Para a pesquisadora, pouco ou nada se diz sobre a crise como momento não determinado, em que decisões e posições diferenciadas puderam ou poderiam ter sido assumidas. Ancora-se, predominantemente, em um passado de embates – esvaziando a complexidade da crise que levou a 1964, na medida em que suprime conflitos e opções, apresentando as posições assumidas como “equívocos” superados por um processo supostamente homogêneo de abertura e democratização. (BIROLI, 2009, p. 291)

O que se revela, em ambos os casos, é uma propensão ao esvaziamento da complexidade. Dada as devidas características, tanto a campanha ipesiana como a exaltação dos veículos de comunicação em defesa da democracia legitimam uma

126 A data inicial de investigação do objeto de pesquisa é referente ao movimento das Diretas Já. O movimento era favorável à aprovação da Emenda Dante de Oliveira que garantiria eleições diretas para presidente naquele ano. Mesmo com intensa participação popular, a emenda não foi aprovada pela Câmara dos Deputados. 127 Para mais detalhes sobre a pesquisa de Flávia Biroli, ver BIROLI, 2009. 68 posição ideológica sob o mesmo parâmetro: a revelação da verdade. Atuam como detentoras das respostas com fórmulas mágicas e fáceis de serem executadas. Neste sentido, investigar a atuação do IPES no ambiente midiático significa também notar que suas estratégias persuasivas estão inseridas dentro de uma lógica estruturante do paradigma hegemônico.128 Ao transformar a realidade em uma relação dicotômica, o IPES sugeria uma leitura que simplificava os conflitos internacionais, as relações de poder, as condições de trabalho, o desenvolvimento econômico e a capacidade política do país. O balizamento era não só apresentado como científico, mas também o nome da organização proclamava-se como tal. Na campanha ipesiana, as pesquisas validavam os rumos incertos do país, os dados comprovavam a ineficiência dos transportes marítimos e ferroviários e os estudos corroboravam a melhora da qualidade de trabalho nas fábricas. Ao mesmo tempo em que exaltavam o exemplo de moralidade e bons costumes centrados na família: o pai (trabalhador digno) que volta para casa, a mulher (esposa dedicada) que o espera na porta de casa e o filho (estudante aplicado) que representava o futuro do país.129 Ao reforçar um sistema de signos conservadores presentes na sociedade, que pressupõe estruturas homogêneas nas quais as fronteiras tornam-se menos porosas, os processos de normalização que impõem um imprinting cultural (MORIN, 2008) foram potencializados na campanha ipesiana. Isto significa dizer que, neste caso, o IPES trabalhou arduamente na disseminação de suas temáticas e de seus valores pela manutenção das fronteiras rígidas dos determinismos culturais130. No país de 1960, apenas 30% da população vivia nas cidades. Existiam poucas estradas nacionais e a precariedade dos transportes e das telecomunicações dificultava a interação entre cidades e regiões do país. As estatísticas do Recenseamento Geral de 1960 revelam dados quanto às principais

128 Segundo Morin, é preciso manter vigilância contra nossas tendências ao idealismo (posse do real pela ideia), à racionalização (fechamento da verdade em um sistema coerente), à simplificação (redução e disjunção) e ao etnocentrismo. A sociologia complexa do conhecimento “convida-nos a permanecer conscientes de que o grande problema colocado, sob diversas formas e nos diversos tempos, é o desafio da complexidade de nosso mundo a conhecer”. (2008, p. 110-111) 129 Trata-se de uma breve descrição de cena do documentário Criando Homens Livres que será analisado no capítulo 3. 130 Para Morin, os determinismos culturais não impõem necessariamente ideias falsas. O interessante é deixar de lado a busca incessante pela “verdade” e deter-se nas bordas, nas fronteiras e nos laços que se afrouxam. 69 características dos domicílios (rurais e urbanos). Pela primeira vez indagou-se sobre a existência de algumas utilidades domésticas, como o rádio131 e a televisão. Segundo a pesquisa, 38,54% dos lares visitados tinham acesso ao rádio. Do mesmo modo se pode perceber que somente uma pequena parcela da população tinha acesso aos aparelhos de televisão - 4,6% do total -, e se passarmos ao quadro rural, o número de domicílios que possuíam aparelhos de televisão é inexpressivo. Os jornais, o rádio (com algumas exceções, como a Rádio Nacional do Rio de Janeiro) e a televisão funcionavam exclusivamente como veículos eminentemente locais. Para se ter uma ideia, as transmissões televisivas ainda se restringiam a apenas oito capitais: São Paulo, Rio de Janeiro, Belo Horizonte, Porto Alegre, Recife, Salvador, Fortaleza e Curitiba. O IPES conseguiu estabelecer uma sincronizada campanha no controle efetivo do ambiente midiático. Articulados pelos grupos de Opinião Pública (GOP) e Publicação e Editorial (GPE), do instituto saíram sugestões de pauta, apoio na produção de programas de televisão e rádio, indicação de entrevistados para os respectivos programas, produção de encartes em jornais e revistas132, campanhas específicas que corroboravam os ideais do instituto133, publicação de livros134,

131 Apesar de se observar a relação estreita entre a distribuição do fornecimento de energia elétrica e a existência de aparelhos de rádios, no texto original faz-se a ressalva que considera-se, inclusive, aqueles com carga de pilha. 132 Em reunião, comenta-se sobre a produção do encarte Aliança para o Progresso ser publicado na íntegra ou em pílulas em jornais e revistas de circulação e ainda sobre outra produção, a Cartilha para o Progresso: como se faz uma revolução sem sangue. Registros soltos, mas que revelam a intenção do grupo. Dois meses depois, registra-se em ata que o encarte custou Cr$ 7 milhões. FUNDO INSTITUTO DE PESQUISA E ESTUDOS SOCIAIS. Arquivo Nacional/ CODES. Documentos privados. Código QL. Reunião Comitê Executivo, 20 de mar. de 1962 e Reunião Comitê Executivo, 14 de maio de 1962, respectivamente. 133 Em reunião, comenta-se sobre o avanço da organização da Campanha Contra a Sonegação Fiscal, primeiramente idealizada pelo Grupo de Doutrina. FUNDO INSTITUTO DE PESQUISA E ESTUDOS SOCIAIS. Arquivo Nacional/ CODES. Documentos privados. Código QL. Reunião Geral, 11 de set. de 1962. 134 Em reunião, o coordenador do IPES/Guanabara, José Roberto Whittacker Penteado, comenta sobre a impressão do livro sobre “Reforma Agrária”. Neste mesmo encontro, decide-se o título da publicação: “Roteiro da Reforma Agrária Brasileira” foi a sugestão vencedora. Determinações quanto ao pagamento e publicação de demais livros constavam nas atas de reunião. “Pagar o autor do trabalho „O Presidencialismo que nos convém‟, dr. Carlos Henrique de Carvalho; Providenciar imediatamente a edição de 10 mil exemplares da publicação “Nossos Males e Seus Remédios” eram algumas das atribuições recorrentes. FUNDO INSTITUTO DE PESQUISA E ESTUDOS SOCIAIS. Arquivo Nacional/ CODES. Documentos privados. Código QL. Comitê Diretor, 19 de novembro de 1963 e Comitê Executivo, 19 de novembro de 1962, respectivamente. 70 folhetos135, cartilhas136, concurso de monografia137, filmes, entre tantas outras ações. Além disso, organizavam seminários e palestras em empresas, sindicatos e grêmios estudantis com o efetivo aparato gráfico e audiovisual à disposição na programação de tais eventos.138 A aproximação com editoras que facilitassem a publicação de suas demandas também era intensa. Em dezembro de 1962, a ata da Reunião do Comitê Científico registra a proposta da Editora Saraiva trazida por Edib Casseb. A proposta consistia em que a editora daria “ao Grupo de Doutrina a possibilidade de examinar as obras que publicassem, podendo eventualmente editar nossos folhetos e traduções. Têm também elementos para conseguir gratuitamente alguns minutos nas televisões”.139 Diversos jornalistas e editores estavam diretamente envolvidos no Grupo de Opinião Pública do IPES. Entre os membros diretos incluíam-se: J. Dantas (Diário de Notícias), Paulo Barbosa Lessa (TV Record e TV Paulista), Wilson Figueiredo (Jornal do Brasil, o Correio do Povo e O Globo do grupo Roberto Marinho, que também detinha o controle da Rádio Globo, de alcance nacional), Edmundo Monteiro (Diretor-Executivo dos Diários Associados da poderosa rede de Assis Chateaubriand) e “através de seu relacionamento especial com o grupo de Octavio Frias (Folha de S. Paulo) e grupo Mesquita (O Estado de S. Paulo, Jornal da Tarde e a Rádio Eldorado), ambos associados ao IPES”. (DREIFUSS, 2008, p. 250) Em reunião geral de 25/09/62, Paulo Ayres Filho enfatiza a urgência de aproximar-se às cúpulas dos jornais de maior divulgação de notícias de „interesse

135 Em reunião, o responsável pelo grupo de Publicação comenta detalhes a respeito da produção, pagamento e distribuição do folheto “Presidencialismo e Parlamentarismo”. Apesar do curto tempo de divulgação até o plebiscito, João Baptista Figueiredo considera ser importante para a promoção do IPES. Anexo 04, Reunião Comitê Diretor e Executivo, 20 de nov. de 1962, p. 284. 136 Sobre publicação de “Cadernos Democráticos”, em reunião pediu-se urgência absoluta na execução. FUNDO INSTITUTO DE PESQUISA E ESTUDOS SOCIAIS. Arquivo Nacional/ CODES. Documentos privados. Código QL. Resumo da Reunião Conjunta, s/d. 137 Aprovada a iniciativa do concurso de monografias que deveria explorar o “meio jornalístico e estudantil”. Tema sugerido ao Grupo de Estudos (que iria definir melhor a ideia): Inflação e Democratização do Capital. FUNDO INSTITUTO DE PESQUISA E ESTUDOS SOCIAIS. Arquivo Nacional/ CODES. Documentos privados. Código QL. Reunião do Comitê Executivo, 3 de julho de 1962. Na entrega dos prêmios aos vencedores do concurso, “foram batidas diversas chapas pelos fotógrafos de O Cruzeiro e Jornal do Brasil”. FUNDO INSTITUTO DE PESQUISA E ESTUDOS SOCIAIS. Arquivo Nacional/ CODES. Documentos privados. Código QL. Reunião do Comitê Executivo, 10 de outubro de 1962. 138 Sobre a participação do IPES na organização dos simpósios sobre “Planejamento”, patrocinado pela UNESCO, e “Inflação”, patrocinado pela CEPAL. FUNDO INSTITUTO DE PESQUISA E ESTUDOS SOCIAIS. Arquivo Nacional/ CODES. Documentos privados. Código QL. Reunião do Comitê Executivo, 11 de dezembro de 1962. 139 Idem. 71 democrático‟. Além disso, sugere que fossem feitos anúncios solicitando, inclusive, a contribuição de todos na nação. Ato que, publicamente, não foi levado adiante.140 Já no final de 1962 o Comitê Diretor mostrava urgência na publicação dos estudos – os position papers – na imprensa escrita. O discurso sobre a maneira com que o IPES iria se colocar frente à decisão de tal publicação é intensa, como registrado em ata. Sem ressalvas, todos concordam que as publicações deveriam ocorrer o mais breve possível. “Estamos no limiar da estatização comandada por Celso Furtado, a qual sairá dentro de 30 dias”, polemiza Dênio Nogueira, Membro do Grupo de Estudos do Rio de Janeiro.141 O esforço também se concentrava em otimizar artigos e matérias consonantes com os ideais ipesianos. Glycon de Paiva pede que o artigo do general Bley, de Belo Horizonte, seja republicado. “A tarefa dos 30 artigos ficou com Miguel Lins e serão pagos pela ANTÁRTICA”.142 Havia também uso de charges e cartoons. Conhecido como “Diálogo Democraticus”, o cartoon que defendia, em leve tom humorístico, a iniciativa privada, a produtividade e a pluralidade política podia ser facilmente encontrado em quatro jornais cariocas de ampla divulgação: „O Dia‟, „Luta Democrática‟, „Última Hora‟ e „O Globo‟. Segundo André de Séguin des Hons, que pesquisou a evolução dos diários cariocas entre 1945 e 1982, o surgimento de „O Dia‟ e „Última Hora‟ (junho de 1951), associado ao „Luta Democrática‟ (fevereiro de 1954), significou a "irrupção do grande jornalismo popular de caráter sensacionalista na imprensa brasileira. Juntos constituíram uma nova etapa na história da imprensa popular” (DES HONS, 1982, p. 67). Em 1960, as publicações que chegavam às ruas cariocas pela manhã tinham uma tiragem bem expressiva. O jornal „O Dia‟ era líder de vendas com 230 mil exemplares e o „Luta Democrática‟ conseguia a marca de 130 mil. À tarde, o jornal „O Globo‟ já tinha grande aceitação, 218 mil jornais distribuídos, e o „Última Hora‟ não ficava tão atrás: 117 mil.143 É interessante notar que jornais como „Última Hora‟, „O Dia‟ e o „Luta Democrática‟, ligados em suas raízes editoriais às bases de apoio popular, foram

140 FUNDO INSTITUTO DE PESQUISA E ESTUDOS SOCIAIS. Arquivo Nacional/ CODES. Código QL. Reunião Geral, 25 de setembro de 1962. 141 FUNDO INSTITUTO DE PESQUISA E ESTUDOS SOCIAIS. Arquivo Nacional/ CODES. Código QL. Comissão Diretora de 23 de novembro de 1962. 142 FUNDO INSTITUTO DE PESQUISA E ESTUDOS SOCIAIS. Arquivo Nacional/ CODES. Código QL. Comitê Executivo, 11 de junho de 1962. 143 Dados do Anuário de Imprensa, Rádio e Televisão (1958-1960). 72 permeáveis e, de certa maneira, ajudaram a intensificar a construção de uma atmosfera anticomunista. Ou seja, mesmo sendo considerados tabloides que apoiavam as reformas de base, concedia-se espaço em seus cadernos a tais cartoons que defendiam, a ferro e fogo, a “verdade”, a “liberdade” e a “democracia”144, bandeiras também levantadas por eles. A questão que fica em discussão é a respeito do significado de tais propostas. Se a ênfase em uma atitude reivindicatória forjara a identificação destes jornais com o público, então pode-se dizer que foi inegável o reforço midiático que estas publicações concederam na consolidação do golpe militar de 1964.145 A importância dos cartoons mostrava-se bem grande em um país onde boa parte da população tinha pouca habilidade de leitura da palavra escrita. Segundo os dados do Censo Demográfico do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), em 1960, quase 40% da população era considerada analfabeta.146 Para Dreifuss, esse fato foi devidamente percebido pelo IPES que incentivou a vasta divulgação de cartoons, folhetos e cartilhas ilustradas na imprensa para popularizar a sua linha de argumentação. Mas não era só na imprensa que a utilização da palavra associada a imagens foi determinante para atingir um público mais amplo.

144 Diferentemente de jornais de publicação partidária, como a Voz Operária, A Classe Operária e Imprensa Popular, que estavam vinculados ao PCB, ou mesmo jornais que apoiaram categoricamente partidos, como foi o caso de O Popular em relação ao Partido Socialista Brasileiro. 145 O golpe militar foi determinante na trajetória desses jornais. Mesmo dando ampla cobertura às greves no governo de João Goulart, „O Dia‟ noticiou o “triunfo” da “revolução” apoiando sua deposição. Liderado por Chagas Freitas, sua condução editorial ficou marcada pelo clientelismo. Em 1983, foi vendido ao jornalista Ary Carvalho. O Luta Democrática sofreu uma brusca queda de circulação, atingindo, em 1968, apenas 60 mil exemplares. Segundo DES HONS, isto pode ser explicado por uma confluência de fatores. “Além da hostilidade do regime militar, houve também nesse período aumento do preço do papel, perda do poder aquisitivo das classes populares e o desenvolvimento da televisão” (DES HONS, 1982, p. 187). Em 1970, o jornal foi arrendado a Raul Azêdo Netto, que o editou durante dois anos. Já o Última Hora passou a acumular dificuldades econômicas e sofrer censura, fruto da retaliação política e do endurecimento da ditadura. Arrasta-se até 1972 quando é vendido. Em suas memórias, Wainer relata o momento: “Quando saí do escritório de Maurício Alencar, a Última Hora já não era minha. A próxima edição seria rodada nas oficinas do Correio da Manhã, com outra linha editorial, outra equipe, outra alma”. (WAINER, 2000, p. 281) 146 Em 1960, a população brasileira era 40.233 de milhões de habitantes. Destes, 15.964 eram alfabetizados e 39,7 não tinham formação escolar para ler e escrever. Fonte: Mapa do Analfabetismo no Brasil/ Ministério da Educação/ INEP, 2003. Disponível em . Acessado em 15 de dez. de 2011. 73

Diversas empresas multinacionais publicavam coloridas e divertidas cartilhas de cunho ideológico.147 Contudo, o repertório cultural para identificar a manutenção dos valores em defesa da democracia contra o comunismo não se restringe exclusivamente à capacidade de leitura da população. Ao nos negarmos a uma análise que se fundamente apenas na manipulação da opinião pública através das estratégias do instituto, é preciso reconhecer que a comunicação não se estabelece entre aquele que informa e aquele que é informado. Conforme aponta Romano, é preciso considerar o homem como produto da comunicação; uma das condições para sua existência social. Neste sentido, compreende-se comunicação “como um processo de troca, de interação de informações e sentimentos que viabilizam a organização do homem perante a natureza e seu grupo”. (1993, p. 10) O rádio também desempenhou uma atuação significativa. A popularização dos aparelhos, através da importação de modelos com preços mais acessíveis, e a chegada do transístor, que deixava a comunicação ainda mais ágil, ao vivo nas ruas, permitindo inclusive receptores sem tomadas, fortalecia seu alcance nos anos 60. Mesmo com a chegada da televisão e atravessando uma fase em que vários artistas migravam para as telinhas, o vínculo com o rádio demonstrava possuir raízes profundas. As peculiaridades da cultura latino-americana, na qual a letra, tardiamente introduzida no continente, é invadida pelos signos da oralidade e pela eroticidade corporal, construiu fortes bases no dia-a-dia dos brasileiros.

Essa empatia e proximidade, ainda que imaginária, são estabelecidas graças à linguagem de um veículo que, reelabora signos de uma oralidade cuja situação comunicativa dava-se pela palavra oral, pela proximidade de corpos e pelo intermédio da voz performática. (SILVA, 1999, p. 42)

147 A revista Intercâmbio, publicação do Council for Latin America, comunicava em reportagem aos seus leitores e assinantes que empresas estavam usando cartoons para atingir os trabalhadores e as populações rurais. Citava uma comédia de 16 páginas da Caterpillar Tractor, que contava a estória dos esforços conjuntos de uma construção de estrada pelo governo e camponeses em um vilarejo da América Latina. “Aproveitando a oportunidade, ela inseria os objetivos da Aliança para o Progresso e fazia a propaganda da Caterpillar (apenas através do logotipo desenhado no equipamento de construção). Um milhão de cópias em português e espanhol foram distribuídas pela USIA (U.S.Infomation Agency), em 14 países – geralmente com a cooperação dos representantes locais da Caterpillar”. (DREIFUSS, 2008, p. 291) 74

De fato, o IPES não patrocinava abertamente programas de rádio. Seu empenho se manifestava pela indicação de temas e personalidades (nacionais e regionais), direcionadas a se posicionar sobre assuntos específicos pautados pelo IPES148. Nos editorias das rádios de cunho político anticomunista, suas sugestões eram sempre benvindas, como na Rádio Tupi de São Paulo.149 Contudo, a projeção do grupo de Estudo e Doutrina (GED) poderia ser conferida em função da estreita parceria que existia entre o IPES e o IBAD. Grande parte da campanha ideológica ecoada no rádio era patrocinada pela agência ibadiana Promotion S.A150, em nome da Adep. Os números são bem expressivos. Como aponta Rojas,

Em 1961, o IBAD apresentava programas de rádio em 34 das principais cidades. Em julho de 1962, ele tinha 51 programas em horários nobres durante a semana e transmissões especiais nos fins de semana. No auge de suas atividades, dispunha de mais de 80 apresentações semanais no rádio, para todo o país, nos horários especiais (...) financiava mais de 300 programas diários praticamente controlando o horário nobre das estações de rádio do país. (1965, p. 153)

Nos cálculos da pesquisa de Dreifuss, a Promotion S.A. patrocinou programas em televisão, muitos dos quais eram retransmitidos por várias emissoras de rádio, num total de 312 estações, como, por exemplo, os programas Congresso em Revista e A Semana em Revista. Uma rede radiofônica também foi criada para combater as propostas de João Goulart. Organizada principalmente por João Calmon (Diários Associados), Roberto Marinho (Rádio Globo) e Manoel Francisco Nascimento Brito (Rádio Jornal do Brasil), a Cadeia da Democracia entrava no ar exatamente no mesmo horário em que a carioca Rádio Mayrink Veiga.151 A Cadeia da Democracia conseguiu compreender mais de 100 estações em âmbito nacional.

148 A participação de figuras públicas para expressar “suas opiniões” também ocorria em programas de televisão. Em evidência, uma relação que reúne tais nomes, pode ser encontrada em DREIFUSS, 2008, p. 265. 149 IPES Relatório das atividades do IPES, São Paulo, 1963 conforme cita Blume (1968b apud 2008, p. 217). 150 Dirigida por Ivã Hasslocher, presidente do IBAD, a agência de publicidade Promotion S.A. financiava, inclusive, campanhas eleitorais “dos adeptos, de norte a sul do país, dos sindicais, parlamentares e estudantis”, ironiza Botas (1983, p. 102). Desempenhou papel importante na campanha ideológica articulada pelo complexo IPES/IBAD. 151 Fundada em 1926, Mayrink Veiga foi líder de audiência nos anos 30 até o surgimento da Rádio Nacional do Rio de Janeiro. Seu prestígio e credibilidade foram sempre sua marca registrada até ser fechada pelo presidente militar Castelo Branco, um ano após o golpe militar. Não é à toa que a Rádio Mayrink Veiga estava tão identificada com o projeto político de Goulart. Afinal, tinha entre seus sócios o ex-governador Leonel Brizola, líder da Frente de Mobilização Popular. 75

O IPES também procurava a ajuda de Raul Brunini da Rádio Mundial do Rio de Janeiro, emissora de grande audiência, e a de Alziro Zarur, político populista cristão de direita, que causava grande impacto nas favelas urbanas e com penetração nos setores de .152 O IPES fez amplo uso da televisão em sua campanha contra o governo, a esquerda e o trabalhismo. Apresentando programas semanais na maioria dos canais em nível nacional e regional, os esforços foram concentrados à medida que se aproximavam as eleições de outubro de 1962 para o legislativo. O IPES produziu 15 programas de televisão para três canais diferentes, o que lhe custou Cr$ 10 milhões.153 Nesses programas conhecidas figuras públicas da direita discutiam os assuntos de atualidade. Em 23/10/62, os presentes na Reunião Geral discutiam sobre a organização de participação de “convidados” em programas de televisão. Diz a ata:

Esta quinta-feira foi convidado o dr. Jamil Munhóz Bailão para falar sobre “Democratização do Capital”. Paulo Edmur está preparando o programa. Na semana próxima falará o Padre Godinho. Depois deverão ser convidados d. Carmem Prudente, que acaba de chegar de uma viagem à Rússia, e a seguir o presidente da Ordem dos Advogados.154

Uma verdadeira rede ecoava as diretrizes pautadas pelo Grupo de Estudo e Doutrina (GED) e articuladas pelos grupos de Opinião Pública (GOP) e Publicação e Editorial (GPE).

Somente no período compreendido entre julho e setembro de 1962, a Promotion patrocinou, em nome da Adep, em 13 emissoras de televisão do país, programas de meia hora de duração, duas vezes por semana, num total de 312 emissões, vendidas pelas estações ao preço de Cr$ 450 mil por cada meia hora, só em televisão os gastos são de Cr$ 140 milhões.155

152 IPES CD, 24 de julho de 1962, Dario de Almeida Magalhães e H.C. Polland. Foram pagos Cr$ 500 mil aos dois para “despesas”. (DREIFUSS, 2008, p. 270) 153 Gilbert Hubert Jr. se incumbiu de levantar os fundos, embora insistisse que sem transmissões de “assuntos políticos” ficaria impossibilitado de motivar os possíveis patrocinadores. O general Golbery retrucava que nas atuais circunstâncias não havia assunto relevante que não fosse político. A „premência‟ da situação política teria de ser levada aos futuros contribuintes por meio de uma bem organizada campanha dos Grupos de Opinião Pública e Integração. (DREIFUSS, 2008, p. 263) 154 FUNDO INSTITUTO DE PESQUISA E ESTUDOS SOCIAIS. Arquivo Nacional/ CODES. Código QL. Reunião Geral, 23 de outubro de 1962. 155 As sombras do IBAD: Uma tumultuada investigação sobre como angariar dinheiro para eleger adversários do Governo. Revista Veja, p. 6, 16 de mar. de 1977. 76

Diferentemente do rádio, para a televisão o IPES abria seu caixa com mais facilidade, a ponto das próprias emissoras procurarem o instituto para financiamentos de programas e/ou reportagens especiais. Em reunião geral de 25/09/62, o 6º item da pauta discutia sobre uma verba com tal fim.

As rádios e televisões Tupi e Difusora pedem o patrocínio do IPÊS para a reportagem a ser feita sôbre o Concílio Ecumênico. Preço Cr$ 2.500.000,00. João Baptista Figueiredo deseja saber se há conveniência, se o dispêndio compensa; se o IPÊS do Rio e do Rio Grande do Sul contribuiriam; se será possível o IPÊS fazer o comentário dos filmes ou pelo menos colaborar; se serão exibidos no Brasil inteiro. Flávio Galvão tratará do assunto.156

Além dos jornalistas já associados ao IPES, outros eram selecionados de Recife, Paraná, Rio de Janeiro, São Paulo e outros centros-chaves para cobrir os quatro cantos do País com as mensagens políticas de orientação ipesiana. Aos jornalistas era entregue um questionário fornecido pelo IPES sobre os “problemas da atualidade”: “Custo de Vida”, “Educação”, “Aliança para o Progresso” e “O que Você pensa sobre a posição de centro?” eram alguns temas cujas respostas, em linhas gerais, eram indicadas pelo instituto.

O IBAD preparou 50 perguntas e respostas estereotipadas que seriam reproduzidas em todos os Estados e em todas as emissoras de rádio e televisão. Por exemplo, respondendo a pergunta do entrevistador sobre a crescente ameaça comunista no Brasil, o entrevistado teria de dizer: A ameaça comunista está crescendo, principalmente devido à omissão das autoridades. Ele deveria então citar os casos da UNE, das Ligas Camponesas e dos pronunciamentos públicos do Governador Brizola. Deveria também falar da ação dos sindicatos, controlados pelos comunistas, e da infiltração vermelha em todos os principais setores de atividade do país.157

Dentre os programas diretamente relacionados estavam: Esta é a Notícia, Assim é a Democracia, Democracia em marcha, Julgue Você Mesmo, Estado do Rio em Foco e Conheça seu Candidato. Em 1977, a divulgação do relatório da CPI do IPES/IBAD pela revista Veja dirigida por Mino Carta aponta, inclusive, outras articulações do IPES, IBAD e Adep. Dentre elas, o financiamento da publicação do livro Assalto ao Parlamento (Cr$ 714 mil), de conteúdo ipesiano e pago pelo IBAD, e

156 FUNDO INSTITUTO DE PESQUISA E ESTUDOS SOCIAIS. Arquivo Nacional/ CODES. Código QL. Reunião Geral, 25 de setembro de 1962. 157 IPES CD Rio, 29 de maio de 1962. DÓRIA, João S. IBAD: conspiração internacional contra as reformas. Política e negócios. P, 10, São Paulo, 4 de nov., 1963. 77 a exigência de assinatura da Carta de Princípios da Adep aos candidatos auxiliados na campanha de 1962. Ainda segundo a publicação, a Adep apoiou oito candidatos a governador, 250 candidatos a deputado federal e 600 a estadual.158 Exibido pela TV Tupi, o programa Encontro de Democratas com a Nação foi ao ar poucas semanas antes da eleição de 62. Segundo Cardenuto, mantinha uma aparência legal ao promover debates com homens públicos, mas na verdade funcionava como estratégia em benefício de políticos conservadores (2008, p. 47). Ao pesquisar o IPES é impossível não esbarrar com recorrência na atuação do IBAD. Juntos, eles também financiavam e produziam outras séries na televisão, tais como Frente a Frente. Apresentações individuais de questões polêmicas também eram frequentes. A TV Cultura, então dirigida pelo grupo Diários Associados159, exibiu Que Pensa Você sobre a Reforma Agrária? e Problemas Nacionais, nos quais o entrevistado João Calmon era parceiro importante de Chateaubriand. Soma-se também a avaliação do governador de São Paulo Carvalho Pinto da Situação Política (exibido em 25 de outubro de 1963), a Reforma da Constituição e a Defesa da Democracia, por Herbert Levy (exibido em 2 de julho de 1963/ TV Tupi), que fundaria alguns meses depois o Notícias Populares, a transmissão do discurso do Almirante Sílvio Heck no lançamento da Frente Patriótica Civil Militar (exibido em 4 de agosto de 1964/ TV4) e até mesmo o discurso oposicionista de Mem de Sá depois da realização do Congresso de Reformas de Base (10 de fevereiro de 1963).160 As siglas do IPES/IBAD também aparecem associadas ao programa de Gilson Amado161 e a série de trinta semanas de programas transmitidas para Belo Horizonte, São Paulo, Recife, Salvador e Brasília162, chamada Capitães do Progresso. O nome do programa certamente vem inspirado da coleção de mesmo

158 As sombras do IBAD: Uma tumultuada investigação sobre como angariar dinheiro para eleger adversários do Governo. Revista Veja, p. 2-6. São Paulo, 16 de mar. de 1977. 159 Só em 1969 concretizou-se a transição da TV Cultura para a fundação paulista Padre Anchieta, destinada a ser uma emissora e rede de televisão pública de caráter educativo e cultural que ainda compreendia as Rádios Cultura AM e FM. 160 Para saber mais, ver „Guerra psicológica através do rádio e televisão‟ em DREIFUSS, 2008, p. 262-278. 161 FUNDO INSTITUTO DE PESQUISA E ESTUDOS SOCIAIS. Arquivo Nacional/ CODES. Código QL, Comitê Executivo, 11 de jun. de 1962. 162 Patrocinado financeiramente pela Fábrica de Geladeiras Cônsul e por Coco Serigy, entre outros. FUNDO INSTITUTO DE PESQUISA E ESTUDOS SOCIAIS. Arquivo Nacional/ CODES. Código QL. Comitê Executivo, 20 de mar. de 1962. 78 título publicada pela editora Difusão Pan-americana, a partir de meados dos anos 50. Assim como a série163, a cada programa um “capitão do progresso” era entrevistado sobre os assuntos pautados pelo IPES. Mas não era só nas ondas do rádio, nos programas de televisão ou mesmo nos jornais locais que o tom profético fazia repercutir as tensões das palavras. Dentre as inúmeras atividades produzidas pelo IPES, que incluíam também ações de distribuição de panfletos, publicação de livros e palestras em entidades e associações, o cinema foi um grande aliado. E este também era bem popular.

163 Apenas a título de referência, dentre as personalidades publicadas estavam: George Westinghouse, Theodore Roosevelt, Louis Agassiz, Albert Einstein, Graham Bell entre outros. 79

2. O OBJETO NO CENÁRIO

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2.1 Em busca das práticas audiovisuais

“Antes dessa história, porém, é preciso contar outra. A história de como se contam as histórias, como as imagens trabalham para contar histórias. Ou ainda: como as histórias conseguem ter seu lugar nas imagens” (AUMONT, 2004, p. 139). A citação acima nos faz refletir sobre o cinema como um espaço da representação que certamente não está fundado na apresentação pública dos irmãos Louis e Auguste Lumière, no Salon Indien do Gran-Café de , em 1895. Mesmo que se comemore a invenção do cinema a partir desta ocorrência, ela se inscreve apenas num ponto de vista simbólico. O interessante é refletir que a tradição do cinema está muito mais tramada ao tecido cultural do que uma data específica possa determinar. Na verdade, qualquer marco cronológico que se alega como inaugural para definir uma “história do cinema” será sempre arbitrário. Se atentarmos apenas para algumas décadas antes da virada do século XIX, podemos citar exemplos emblemáticos da busca pelo aparato da imagem em movimento. Em 1893, por exemplo, já era possível se aventurar em um quinetoscópio. Este dispositivo, patenteado por Thomas Alva Edison, possuía um visor através do qual se podia assistir, mediante a inserção de uma moeda, à exibição de uma pequena tira de filme com imagens em movimento e áudio. “Uma espécie de cinematógrafo em versão individual, porém explorado em salas públicas semelhantes às dos fliperamas” (MACHADO, 2005, p. 7). Havia também o mutoscópio – uma máquina que mostrava imagens fotográficas, só que impressas no papel. Um pequeno cartaz exibia uma frase que instigava a curiosidade daqueles dispostos a abrir mão de algumas moedas para saber “O que foi que o mordomo viu?” O mecanismo folheava estas fotos, dando a ilusão de movimento. Outros tantos registros que, mesmo antes da famosa exibição da “Chegada do Trem”, já despontavam em alguns lugares da Europa e dos Estados Unidos. Mas o cinema não pode ser reduzido apenas a máquinas de projeções, imagens animadas ou sessões públicas. Retomemos, então, nossa reflexão inicial sobre o espaço da representação ao questionar como as histórias conseguem ter seu lugar nas imagens. Daí é fácil romper com a obrigatoriedade de falar em cinema, como o compreendemos

81 atualmente, para partir em busca de uma investigação arqueológica desta mídia164, da experiência da imagem em movimento. Seja na tradição do teatro de sombras chinês ou mesmo nas imagens encontradas nas paredes de Altamira, cravadas em relevo nas rochas, o que está em jogo é a materialização do imaginário. No estudo das culturas pré-históricas, é inegável a importância que tais representações tinham para aquelas comunidades. Um sutil balançar das tochas ou do movimento do corpo desencadeava no observador uma experimentação visual contínua. Nesta interação, toda caverna parece se agitar em imagens animadas. Segundo Arlindo Machado, no século X, o matemático e astrônomo árabe Alhazen havia estudado procedimentos que hoje poderíamos chamar de cinematógrafos “enquanto Lucrécio, em De natura rerum, escrito por volta de 50 a.C., já se refere a uma espécie de dispositivo de análise/ síntese do movimento, capaz de desfilar seus fotogramas numa sala escura” (MACHADO, 2005, p. 9 ). Neste sentido, a alegoria de Platão não seria, então, uma sessão de cinema? Afinal, a metáfora da caverna descreve minuciosamente o mecanismo imaginário da sala escura de projeção. No livro “O olho interminável”, Jacques Aumont traz aproximações interessantes entre cinema e pintura. A relação que ele estabelece não está pautada por uma noção de descendência, muito menos de continuidade. O objetivo é analisar o lugar que o cinema ocupa, ao lado da pintura e com ela, na história da representação e, portanto, na história do visível. Para o autor, num primeiro momento, a narrativa é o ponto crucial em que a pintura e o cinema podem parecer irremediavelmente separados. Menos pelo movimento, que a pintura pode sempre imitar, do que pelo tempo. Ao considerar a narrativa como o emprego das percepções de acontecimento e de causalidade, Aumont entende que a pintura “não está bem armada para marcar diretamente a causalidade: é sempre verbalmente que será preciso extrair a causa

164 Inspira-se aqui na sugestão do professor pesquisador Siegfried Zielinsk ao propor uma investigação arqueológica das mídias. Longe de ser um mero mapeamento do passado para dimensionar o presente, a ideia central da arqueologia “é a possibilidade de reconsiderar as potencialidades do tempo, das quais as tecnologias transformadas em mídias são produtos imediatos. O tempo presente, assim concebido, não é nada mais que um estágio de algo em movimento. O objetivo elementar dessa concepção é a recuperação do fluxo continuado da história em sua conectividade com o presente. Se existe uma ideia germinadora da arqueologia, esta é, sem dúvida, a noção de interconectividade, de fluxo entre eventos, fenômenos, descobertas e, por que não?, mentalidades”. (MACHADO, 2002, p. 201-206) 82 potencial de um acontecimento pintado” (2004, p. 139). Diferentemente, na imagem fílmica, a causa é sempre imaginada ao mesmo tempo em que o acontecimento é percebido. Assim, por mais fragmentado que seja o filme, ele é sempre “retotalizado por seu espectador, que, ao menos tanto quanto na duração, o apreende na sequência, à custa da percepção incessantemente modificada de um conjunto” (2004, p. 140), É tudo junto e ao mesmo tempo. Este caráter da imagem fílmica levou o autor a refletir que ela dá lugar a um processo infinito de soma, de memória, que, por definição, fixa o tempo – em uma espécie de „espaço‟. Se, por um lado, a narrativa informa o espaço da representação, por outro ela faz vibrar em seu espectador certa percepção de espaço. O espaço é assim percebido, mas perceber não é um processo ingênuo. O espaço de que Aumont fala agora não é mais para o olho, mas para o espírito. E já que o espírito nunca está separado das raízes culturais, das grandes construções imaginárias que cada época privilegia e socializa, neste sentido, pode-se dizer que toda sociedade recebe as imagens em função de sua própria cultura, de seus valores e de suas imbricações morais. Eis o caráter que nos interessa. Assumida esta importante inflexão, voltemos, então, a localizar a deflagração da constituição do cinema ainda na virada do século. Será possível pensar em um espectador cinematográfico antes do aparato do cinema? De certo modo, sim. No que diz respeito à Europa, especificamente Paris, Vanessa Schwartz, em seu artigo “O gosto do público pela realidade na Paris fim-de-século”, revela que o cotidiano parisiense já estava fortemente identificado com o espetáculo. Segundo sua pesquisa, de certo modo a vida real era vivenciada como um show e, ao mesmo tempo, os shows tornavam-se cada vez mais parecidos com a vida.

O guia Cassell de Paris, de 1884, confirmava que muitos visitantes da capital francesa esperavam se divertir. Paris, no último terço do século XIX, havia se transformado no centro europeu da florescente indústria do entretenimento. Mas mais importante do que o prazer, talvez, o guia prometia que “há sempre algo para ser visto”. (SCHWARTZ, 2004, p. 337)

Neste sentido, ao localizar o cinema como um componente do gosto do público pela realidade, a pesquisadora traz à tona três exemplos populares de teatralização do real: as visitas ao necrotério, os museus de cera e os panoramas que ofereciam simulações, experimentações corporais e não meramente visuais. O 83 gosto pelo real estava assentado na indistinção da vida e da arte – no modo como a realidade era transformada em espetáculo (como no necrotério), ao mesmo tempo em que os espetáculos estavam obstinados a serem terrivelmente realistas. Assim, quando os irmãos Lumière mostraram pela primeira vez o seu cinematógrafo, pode-se considerar que o que se revela de mais intenso nesta ocorrência não é necessariamente o novo aparato tecnológico. Afinal, já era o tempo das invenções. A confiança positivista no progresso técnico e nas descobertas da ciência materializava-se com o advento da eletricidade e com o aumento da produção industrial pela mecanização e pela divisão do trabalho. O que se consagra é um modo de vida urbano fundado em uma cultura racionalista e de crença nas vantagens da dita modernidade.165 As primeiras imagens fotográficas em movimento surgiram em um contexto totalmente diferente das salas escuras, limpas e comportadas em que os cinemas se transformariam anos depois. Eram exibidas em feiras, circos, teatros de ilusionismo, parques de diversão, cafés e em todos os lugares onde houvesse espetáculos de variedades. Mas o principal local de exibição de filmes eram os vaudevilles.

Os vaudeviles tinham surgido a partir de teatros de variedades – com conotações exclusivamente eróticas – que, em geral funcionam anexos aos chamados “salões de curiosidades” (curio halls, que exibiam coisas como mulheres barbadas, anões, bichos de duas cabeças e outras aberrações) dos dime museums (museus cujas atrações custavam dez centavos). (COSTA, 2005, p. 40-41)

Nos Estados Unidos, além dos vaudeviles existiam também os nickelodeons, de nickel (cinco centavos de dólar), que era o preço do ingresso, e odeon, „teatro‟ em grego. Com cerca de 100 lugares, exibiam filmes continuamente para um fluxo constante de espectadores. Os primeiros filmes tinham herdado essa característica de serem atrações autônomas, que ora se encaixavam facilmente nas mais diferentes programações, ora eram projetados sequencialmente, um pot-pourri de estórias. Os primeiros anos de produção e exibição de filmes foram marcados por uma fronteira muito porosa entre ficção e realidade. Misturavam-se livremente filmes

165 Veremos adiante como esta urgência pelo progresso e avanço tecnológico ocorreu de modo distinto na América Latina e seu desajuste com os processos culturais do continente. 84 encenados e aqueles chamados de atualidades. Os filmes de atualidades não eram apenas registros do cotidiano, paisagens de países distantes, desfiles e o vai-e-vem das ruas, mas também encenações de acontecimentos recentes: as atualidades reconstituídas. Produzia-se de tudo: fatos de guerra, incêndios, terremotos, crimes e assassinatos que estampavam as manchetes dos jornais. “Não havia uma clara diferenciação no tratamento daquilo que tinha sido captado no calor da hora e o que tinha sido representado diante das câmeras por atores de teatro ou até parentes dos realizadores”. (COSTA, 2005, p. 192) Afinal, as encenações faziam parte tanto das ficções como das atualidades reconstituídas. A discussão entre ficção e realidade não estava posta. Talvez porque, nos primeiros anos, ela não precisava ser percebida. O que importava era a força de autenticidade conferida aos filmes. Assim como a fotografia que oferecia o poder máximo da prova – que fichava criminosos, fragmentava suas partes – o cinema também assumiu um caráter crível.

A possibilidade de fixar o movimento aumentou ainda mais a confiança na autenticidade dos filmes como documento (...). Convém, contudo, sublinhar que não se trata aqui tanto da fidelidade absoluta da reprodução, como da convicção emocional do espectador, a sua convicção na autenticidade daquilo que vê com seus próprios olhos. (LOTMAN, 1978, p. 27-28)

Essa interessante mistura ou indistinção – ao tentarmos assumir o desapego do olhar na época – desfaz a rigidez das fronteiras conceituais entre ficção e realidade. Este esquema oferece a confortável coerência histórica que as oposições binárias frequentemente fornecem, implicando também que estas tendências fossem evidentes desde o começo, isto é, que as categorias do fato e da ficção estivessem demarcadas e facilmente observáveis. (KEIL, 1991 apud COSTA, 2005, p. 195)

Não é esta categorização que importa, uma vez que se leve em conta suas inter-relações com um repertório cultural que se espalhava também por outros circuitos de informação. As reconstituições sempre procuravam abordar assuntos de grande apelo popular difundidos pela imprensa. Tais como “lutas de boxe, guerras imperialistas, execuções, rebeliões, crimes recentes, acontecimentos cívicos como coroamentos e funerais”. (COSTA, 2005, p. 197)

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Os filmes de atualidade ou pequenas gags166, iguais às que eram encenadas no circo ou nos vaudeviles, superavam em número os filmes de ficção tanto na Europa como nos Estados Unidos até, pelo menos, 1906. Ao citar a pesquisa de Paul Spehr nos registros da American Mutoscope and Biograph Company, Flávia Costa mostra que no período de 1900 a 1906, a Biograph tinha produzido mais filmes de atualidades do que de ficção (1.035 contra 774). O que é interessante observar é que, ao contrário do que a historiografia clássica do cinema postulou ao tentar demarcar a origem de duas tendências opostas – nas „vistas‟ dos irmãos Lumière (documentário) e nas estórias fantásticas de Georges Méliès (ficção) – a livre mistura entre artifício e realidade aparentemente não incomodava a audiência. Pelo contrário, constituía-se como um gosto bem popular. O fato é que mesmo tendo consciência do carácter irreal do que se desenrola diante de si, o espectador vive-o emocionalmente como um acontecimento real. Talvez esta seja a premissa que nos devora e nos torna, ao mesmo tempo, testemunhas e cúmplices. Se o cinema põe “o mundo ao alcance da mão”167, é a cultura que permite que este mundo aconteça. “Na medida em que identificamos as imagens do écran com a vida real, pomos as nossas projeções-identificações referentes à vida real em movimento”. (MORIN, 1997, p. 112) Neste sentido, existe um percurso que é mais importante que a autoria em si. Para Martín-Barbero, já não cabem mais estratégias do dominador, na qual tudo transcorre entre emissor-dominante e receptor-dominado. “A questão é rever o processo de comunicação que transcende o lugar da apropriação de sentido a partir dos seus usos”. (2008, p. 28) De tal maneira que localizar o Brasil e os filmes ipesianos neste cenário implica em investigar quais práticas audiovisuais redutoras se estabeleceram por aqui. Isto é, de que maneira contribuíram para potencializar as temáticas e os valores da campanha ipesiana direcionada ao cinema. Neste momento, a comunicação se torna questão de mediações mais do que de meios. É quando a problematização da cultura passa a ser o carro-chefe nesta investigação. Diz nos Lotman:

Do ponto de vista da semiótica, a cultura é uma inteligência coletiva e uma memória, isto é, um mecanismo supraindividual de conservação e

166 Piadas ou histórias engraçadas e curtas. 167 Citação atribuída a Georges Méliès. (MORIN, 1997, p. 115) 86

transmissão de certas comunicações (textos) e elaboração de outros novos. Neste sentido, o espaço da cultura pode ser definido como um espaço de memória comum, isto é, um espaço em que alguns textos comuns podem ser conservados e atualizados.168 (1996, p. 157)

O desafio que aqui se faz presente é esta costura que permite de um lado localizar o objeto de estudo dentro de sua específica circunstância, ou seja, contextualizando-o em sua dimensão histórico-política, mas também considerar a produtividade de formação de sentido em um processo de choque entre os textos que se conservam na memória da cultura e seus códigos.

Naturais e cavação

No Brasil, o primeiro registro de exibição foi para poucos. No dia 8 de julho de 1896, parte da elite carioca disposta a pagar pelos caríssimos ingressos assistiram naquela noite a oito projeções de “cenas pitorescas” do cotidiano de cidades da Europa. Tudo foi improvisado em uma sala alugada do Jornal do Commercio. Não tardou para que fossem rodados filmes por aqui. Os primeiros registros “Bailado de Crianças no Colégio, no Andaraí”, “Chegada do Trem em Petrópolis” e “Minha Terra Tem Palmeiras” são de 1897, apesar de sua autenticidade ainda ser posta em dúvida por alguns pesquisadores. A hipótese é de que poderiam se tratar de filmes estrangeiros cujos títulos foram mudados para atrair o público local. Polêmicas à parte, o que a minuciosa pesquisa de Maria Rita Galvão169 revela é sobre a importância desses primeiros registros que durante muito tempo foram deixados de lado. O tradicional desprezo pelas cavações [escreveu Bernardet] reflete-se em outro terreno. Os livros de história do cinema brasileiro são sempre histórias do filme de ficção. Com exceção de Maria Rita Galvão na sua Crônica do cinema paulistano e Paulo Emilio em Humberto Mauro..., os historiadores não reconhecem que o que sustentou a produção local não foi o filme de ficção. (...) A tendência dos historiadores foi aplicar ao Brasil, sem crítica,

168 Do original: “Desde el punto de vista de la semiótica, la cultura es una inteligencia colectiva y una memoria, esto es, un mecanismo supraindividual de conservación y transmisión de ciertos comunicados (textos) y de elaboración de otros nuevos. En este sentido, el espacio de la cultura puede ser definitivo como un espacio de cierta memoria común, esto es, un espacio dentro de cuyos límites algunos textos comunes pueden conservarse y ser actualizados”. 169 Publicação em três fascículos da série Filmografia Brasileira. Guia de Filmes produzidos no Brasil entre 1807-1910; 1911-1920 e 1921-1925, disponíveis para consulta na Cinemateca Brasileira. 87

um modelo de história elaborado para os países industrializados em que o filme de ficção é o sustentáculo da produção. Não é o que se deu no Brasil. (BERNARDET, 1979 apud SOUZA, 2003, p. 44)

Jean-Claude Bernardet, em “Historiografia clássica do cinema brasileiro” (1ª edição publicada em 1995), questiona os modos como a história do cinema brasileiro vinha, até então, sendo contada. O livro concretiza pontualmente suas reflexões que já estavam presentes em seus textos desde os anos 1970.170 Dentre os vários pontos de vista que aborda, vamos nos ater ao desinteresse pelo papel dos produtores de documentários e cinejornais desde suas primeiras manifestações. Os motivos se justificam dentro de um contexto político-cultural específico que não pode ser ignorado e visto como um erro de percurso. O interessante é problematizá-lo, como Bernardet o faz:

Não sejamos ingênuos. Não substituiremos essa visão mítica da história por uma verdade. Ela atendia a uma concepção de cinema brasileiro voltada com exclusividade para a produção, para a consolidação dos cineastas contemporâneos à elaboração deste discurso histórico, diante de sua produção e diante da sociedade, e para a consolidação dos cineastas como corporação, para opor-se ao mercado dominado pelo filme importado e valorizar as “coisas nossas”, e foi eficiente. Mas para compreender o que nos acontece hoje, para tentar traçar perspectivas, precisamos de outros mitos, de uma outra história. (BERNARDET, 2008, p. 41)

Dada às dimensões continentais do país, um restrito mercado de cinema começou a se formar no eixo Rio-São Paulo. Cabe notar que localizar o cinema brasileiro nestes primeiros anos limita-se à capital do país e, posteriormente - devido à influente participação da imigração italiana -, à cidade de São Paulo.171 “A

170 Ver BERNARDET, 1979a, 1979b. 171 A imigração italiana no Brasil teve como ápice o período entre 1880 e 1930. Embora tenha sido a região Sul a pioneira, foi a região Sudeste que recebeu a maioria dos imigrantes. Isto se deveu ao processo de expansão das lavouras de café, onde a mão-de-obra italiana foi a mais usada, do fim do século XIX ao início do século XX. Contudo, grande parcela desses imigrantes foi atraída pelos centros urbanos em vez do campo. Não trouxeram somente sua força de trabalho: junto a ela vieram sua cultura e ideologia. A intensa exploração nas fábricas nos primeiros anos do século XX propiciam a força e a importância da organização trabalhista anarquista, empenhando-se em denunciar a situação do proletariado. Influência que provinha de bases culturais europeias. Para isso, utilizou-se de meios que agregassem os membros da classe e atraíssem atenção. Desde panfletagem até a formação de sindicatos, escolas alternativas, centros de cultura, círculos de palestras, bailes, greves e principalmente a atividade cultural teatral. É neste contexto que o cinema surge na cena cultural paulistana. A partir de 1911, chegam a São Paulo imigrantes italianos que acabariam tomando conta do mercado nos próximos anos, em especial, Gilberto Rossi, consagrando-se o Rossi Atualidades, cinejornal de grande circulação. “As experiências do cinema mudo produzido em São Paulo no início do século XX, como uma forma de apropriação simbólica 88 ampliação de carioca para brasileiro expressa o prestígio cultural da capital e fundamentalmente o caráter nacionalista dessa história”. (BERNADET, 2008, p. 40) Tecnicamente, o principal entrave se resolveu quando o fornecimento de energia elétrica tornou-se mais estável devido à inauguração da Usina de Ribeirão das Lajes no Rio de Janeiro. Em 1908, a capital nacional já contava com 20 salas de cinema. As consagradas companhias já estavam distribuindo seu material por aqui: a alemã, Bioskop; a italiana, Cines; as francesas, Pathé e Gaumont; e as americanas Edison, Vitagraph e Biograph. Porém, apesar dos catálogos europeus e americanos já terem desembarcado no país, os exibidores também atuavam em outra frente: gravavam e produziam seus próprios materiais. Boa parte deles com suas próprias equipes de filmagem. Segundo Maria Rita Galvão, a produção se desenvolveu juntamente com a ampliação e consolidação de um restrito (mas significativo) circuito exibidor que se intensificaria a partir de 1907. Os “naturais” eram os chamados registros de inaugurações, apresentação de fábricas, chegadas de navios e personalidades internacionais nos portos brasileiros, políticos em discurso, festas comemorativas, campeonatos de futebol, empresários em ação, entre outros.172 Muitos registros eram claramente encomendados e ficaram conhecidos como “cavação”. O termo, resgatado por Maria Rita Galvão em Crônica do cinema paulistano, era muito usado na década de 20 e servia para designar pejorativamente filmes promocionais. A produção provinha, em grande parte, da iniciativa dos próprios donos das salas de cinema e gerava uma disputa ferrenha.173 Os filmes “cantados” são um excelente exemplo desta forte concorrência na filmagem de revistas musicais, como A Revista Portuguesa (1911) e O Guarany (1911). Ao vivo, os atores dublavam e

do espaço urbano pelos ítalo-paulistanos, encontram-se justamente na rica rede de trupes teatrais paulistanas” (SCHPUN, 2007, p. 72). Neste contexto, o cruzamento de práticas sociais urbanas torna-se o carro-chefe na sugestão da constituição e manutenção de um público espectador. Para aprofundamento, ver SCHPUN, 2007. 172 “A Chegada do Dr. Campos Sales a Petrópolis” (1898), “O Corpo de Bombeiros em Movimento” (1899), “As Festas da Penha” (1900), “Regatas em Botafogo” (1901), “Dança Baiana” (1901), “Botafogo, Campeão de Futebol” (1910), “Carnaval em Curitiba” (1910), entre tantos outros. Para catalogação completa, ver Cinemateca Brasileira, Guia de Filmes Produzidos no Brasil entre 1807- 1910; 1911-1920 e 1921-1925. Rio de Janeiro: Embrafilme, 1987. 173 Segundo Maria Rita Galvão, as produções do Cinematógrafo Rio Branco (de Alberto Moreira) e da Rede Serrador se destacavam no período silencioso e emplacavam boa bilheteria. Algumas dessas fitas foram apresentadas centenas de vezes, como A viúva alegre, em três versões realizadas por Antônio Leal, Cristóvão Auler e Francisco Serrador. (ARAÚJO apud MORETTIN, 2005) 89 improvisavam atrás da tela de exibição. As temáticas focalizavam diversos assuntos e acontecimentos políticos e sociais da época, como as sátiras dirigidas ao então presidente Nilo Peçanha em Paz e Amor (1910). Assim, o murmurinho das ruas também se fazia presente. Outra proposta era a reconstituição de crimes nos filmes “posados”. A crônica policial e a sátira política sempre foram fontes de inspiração e uma boa alternativa dos produtores e exibidores brasileiros às produções estrangeiras que dominavam o mercado. Assuntos extenuantemente discutidos nos jornais de circulação da época eram encenados para o cinema. Em 1908, Os Estranguladores ou Fé em Deus (Francisco Marzullo) atingiu a marca de 800 exibições no Rio de Janeiro. Contava a história de dois adolescentes assassinados pela quadrilha de Gerônimo Pegatto, o dono do barco da fé. Os supostos motivos e os detalhes do estrangulamento também foram apresentados no teatro. A esta altura, a crônica policial não só ganhava as páginas de jornal em tons sensacionalistas, mas espalhava-se aos “não- letrados” nos mais diversos textos culturais. Em São Paulo, um dos crimes mais emblemáticos que ganhou o noticiário foi aquele que ficou conhecido como o “crime da mala”. Além das páginas dos jornais e de um folhetim, a empresa de Francisco Serrador resolve contá-lo no cinema também. O Crime da mala (1908) reconstituía o assassinato de Elias Farhat por Miguel Traad, que esquartejou a vítima e tomou um navio com a intenção de jogar o cadáver ao mar, mas acabou preso. O filme apresenta o julgamento de Traad e registros do local do crime costurados com a reconstituição da trajetória dos acontecimentos. No mesmo ano, Noivado de Sangue, também distribuído com o título de Tragédia Paulista (Antonnio Leal, 1908), ganhou as telas de cinema. A história da professora que anavalhou o noivo em uma terça-feira de carnaval também era recontada e encenada. (GOMES, 1980, p. 32) Já nas primeiras décadas do século XX os pequenos proprietários de salas de cinema do Rio e São Paulo tiveram fôlego. Muito fôlego e autonomia de produção e exibição. Como mostra MORETTIN (2005), é considerável a bibliografia existente que nos aponta para o estabelecimento de uma volumosa filmografia do cinema brasileiro neste período, contudo essas obras não trazem recortes que permitam entender a produção dentro de um quadro mais amplo vinculado tanto à história

90 cultural quanto à do cinema, pensada como um processo que não se resume à identificação de filme e de diretores, muitas vezes restritos apenas a uma mera catalogação. Uma das lacunas mais comentadas pelos principais pesquisadores que constituíram a historiografia do cinema brasileiro e a avaliaram é a referente ao estudo dos documentários da primeira metade do século XX, notadamente os do período do cinema silencioso. Há uma conhecida e lamentada dificuldade em travar contato com as imagens produzidas, o que explica por que, até o momento, elas não tenham sido, de maneira geral, objeto de estudos voltados para o seu conteúdo e estilo. (MORETTIN, 2005, p. 125-126)

Os incêndios sucessivos nos depósitos de cinegrafistas, produtoras e arquivos de imagens praticamente destruíram a memória visual dos primeiros 60 anos do cinema no Brasil. Foi o que aconteceu com os pioneiros Alberto e Paulino Botelho (que em 1928 e 1932 perderam quase a totalidade de uma produção que vinha do começo do século XX), no Rio de Janeiro, ou Gilberto Rossi, em São Paulo. Na década de 1950, foi a vez dos arquivos da Divulgação Cinematográfica Bandeirante e da própria Cinemateca Brasileira. E quando os incêndios não se faziam presentes, apareciam as enchentes. Uma delas assolou o arquivo de Primo Carbonari, em São Paulo, uma coleção contendo cerca de 40 anos de atividades no cinema. O que nos faz mergulhar nas primeiras décadas do cinema no Brasil para conferir as especificidades dos documentários ipesianos anos depois diz respeito a dois aspectos recorrentes nas práticas audiovisuais. São eles: o registro como documento do real e a modulação de uma imagem (in)desejável.

Documento do real

O primeiro aspecto trata de localizar o cinema como um local da informação, associado a um repertório de amplas referências culturais e compartilhado pelos jornais, revistas ilustradas, folhetins, teatro e rádio. Era lá também que os espectadores se atualizavam. Desde os assuntos mais corriqueiros até aqueles de alcance nacional e internacional. O efeito realidade residia na capacidade dos espectadores de fazer conexões entre o que viam no cinema e as narrativas da 91 imprensa que já conheciam. Pouco a pouco, consolidava-se como o lugar da credibilidade, mesmo que os fatos e acontecimentos fossem dramatizados, sorrateiramente explorados antes da atração principal ou encomendados para serem exibidos “descaradamente” nas cavações. O que confere qualidade específica a este período é, justamente, a possibilidade de que este trânsito exista sem ter suas características balizadas naquilo que é puramente identificável como ficção - leia-se: invenção ou documentário; leia-se: verdade. Mesmo que a historiografia clássica tenha postulado radical separação, esta reflexão centra o olhar para este período de produção, compreendido a partir de seu específico contexto semiótico e cultural. A vontade de perpetuação da memória pela imagem cinematográfica, em registros que sugerem desde ocorrências políticas, como A Comemoração do 20º Aniversário da República (1909), colunas sociais Five O‟Clock Tea (1911), inaugurações como Nosso Progresso (1911), comemorações religiosas tais como Festas de São Benedicto (1911) e esportivas - Math Corinthians (1911)174, demonstra o esforço de ampliação do evento que tinha por palco as ruas da cidade. A tendência simplista que apresenta filmes documentários à referencialidade e à não-encenação pode ser facilmente desconstruída quando problematiza-se a representação da imagem como registro do real. Neste sentido, Jean-Louis Comolli comenta que: qualquer imagem é, portanto, ambivalente, não importa como ela foi obtida, ela sempre será, por um lado, ficção e, por outro, documento. É o regime discursivo que ela se encontra que definirá (ou não) qual dessas duas acepções (documental ou ficcional) deve afluir à superfície para completar o seu sentido e o sentido do discurso que ela serve. (COMOLLI apud REZENDE, 2000, p. 186)

Percebe-se que o documentário compreendido como um documento, uma prova do real, consegue ultrapassar tal postulação ao deixar de lado o isolamento do

174 Segundo os estudos de Maria Rita Galvão, o documentário „A Comemoração do 20º Aniversário da República‟ apresenta a celebração em Curitiba “na qual aparece a parada militar e o prédio da Associação Cívica”. „Five O‟Clock Tea‟ foi tirado - expressão utilizada nos registros dos jornais ao descrever um documentário - em 27 de setembro no Velódromo de São Paulo. Em “Nosso Progresso”, o filme apresenta as novas instalações do porto de Belém do Pará, “o principal escoadouro da borracha amazônica”. „Festas de São Benedicto‟ mostra a procissão ao sair do templo de Santo Antônio e percorrendo algumas ruas da cidade, registrado em São Luís do Maranhão. E, por fim, “Math Corinthians”, que diz respeito à reunião dos três encontros entre o time inglês Corinthians versus Brasileiros. Cinemateca Brasileira. Guia de Filmes Produzidos no Brasil entre 1807-1910 e 1911-1920. Rio de Janeiro: Embrafilme, 1987, p. 39, 45, 17, 14 e 16, respectivamente. 92 caráter fictício e documental de qualquer imagem. Ao assumir que documentário e ficção não são coisas totalmente separadas, revela-se que são as estratégias para mostrar um olhar sobre o mundo que os torna distintos. Equivocadamente, pode-se creditar apenas a produções mais recentes a habilidade de estabelecer relações entre ficção e não-ficção, tanto na captação quanto na montagem175. Grande descuido, o refinamento narrativo de Jean Rough, Dziga Vertov e John Grierson – só para citar alguns exemplos –, ainda nos idos das primeiras décadas do cinema, demonstra que tal fronteira é porosa e facilmente permeável. Não há dúvidas de que o caráter indicial da imagem confere a ela um valor próprio, mas não uma garantia de autenticidade plena. Inclusive em situações em que é dada à prática do documentário o peso da investigação científica. Os filmes antropológicos de Robert Flaherty, em especial, Nanook of the North (1922), são um exemplo emblemático que apresenta uma configuração dramática sobre uma realidade previamente estudada. O filme mostra a vida cotidiana de uma família de esquimós na Baía de Hudson, no Ártico canadense, em micronarrativas. Encenando situações adversas em que Nanook, o protagonista, precisa enfrentar a natureza, Flaherty selecionou não só personagens de acordo com sua fotogenia176, mas também reviveu rituais que não eram mais praticadas. Ao discutir o cinema documentário como o registro do real, Julieta Roitman divide conosco uma curiosa observação da palavra “documento” em castelhano. Na introdução do livro Andrés Di Tella: cine documental y archivo personal, Firbas e Monteiro (apud ROITMAN, 2006, p. 11) revelam que esta palavra só ganhou a conotação de prova ou testemunho, reino da razão, no fim do século XVIII, devido a uma exigência crescente de verdade. “Segundo eles, na época barroca, documento significava ensinamento ou conselho, termos que transitam no âmbito da intimidade, do ponto de vista subjetivo e, portanto, da possibilidade de fracasso” (ROITMAN, 2007, p. 46).

175 Apenas para localizar o Brasil neste comentário, refere-se à filmografia emblemática de Eduardo Coutinho que explora continuamente esta linha tênue entre ficção e realidade em seus documentários. Entre eles: Jogo de Cena (2007) e Moscou (2009). Assim como o projeto „Vídeo nas aldeias‟ que se propõe, inclusive, à retomada de práticas e rituais através da encenação. 176 A mulher de Nanook, por exemplo, foi selecionada dentre as demais da comunidade Inuik. Sua verdadeira mulher não está presente no filme. 93

Lotman (1978) também traz contribuições valiosas sobre o deslocamento do objeto da verdade em seu texto A ilusão de realidade. Para ele, a crença emocional do espectador na autenticidade que se desenrola no “écran” liga o cinema a um dos principais problemas da história da cultura. Na segunda metade do século XIX, o lugar do documento autêntico, como antítese da ficção romântica dos poetas, foi ocupado pela reportagem jornalística. Daí que, no desenvolvimento da civilização burguesa na Europa do século XIX, a reportagem jornalística conheceu o apogeu da sua importância cultural, ao que se seguiu um rápido declínio. “A expressão „mente como um repórter‟ provava que este gênero também abandonara a prateleira dos textos que não podiam deixar de ser verdadeiros e passara para a prateleira oposta”. Substitui-se, então, pela fotografia, que tinha simultaneamente as características do documento indiscutível e da autenticidade. Ela era antipolítica, anti-ideológica e, acima de tudo, não estava sujeita a interpretação. “Tornou-se assim o texto-documento mais digno de fé”. Neste sentido, a tradição da consagração da verdade contribuiu para que o cinema se contaminasse pela autenticidade da prova irrefutável. “A exatidão com a que a vida era reproduzida tinha atingido, ao que parece, o seu máximo”. (1978, p. 27) Certamente não há como o documentário escapar da ideia de ficção. Afinal, qualquer objeto já é um signo de outra coisa e, portanto, já está preso em um imaginário social. O fato é que as características da ficcionalidade são inerentes ao simples ato de começar a gravar. Mesmo que captada a esmo, uma imagem “bruta” é uma imagem construída em planos sucessivos que se ordenam mediante o olhar do espectador. Ainda na experiência da captação, há que se considerar que o processo de filmagem pode ao mesmo tempo registrar e influenciar. Alterar o instante captado a ponto de não significar mais uma representação direta do real. É quando a questão do autor e do ponto de vista entram em cena:

para chamarmos documentário a um determinado filme, não basta que o mesmo mostre apenas o que os irmãos Lumière nos mostraram: que o mundo pode chegar até nós pelo olhar da câmara. É absolutamente necessário que o autor das imagens exerça o seu ponto de vista sobre essas imagens. É necessário o confronto de um olhar: o olhar do documentarista, que se constitui como ponto de vista sobre determinado assunto. É também necessário que o resultado final – o documentário – seja o confronto entre os dois olhares: o da câmara e o do documentarista. Para além disso, o documentário deve pautar-se pela criatividade quanto à forma, como as suas

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imagens, sons, legendas ou quaisquer outros elementos que estão organizados. (PENAFRIA, 1999 apud TOMAIN, 2006, p. 73-74)

Bill Nichols defende a ideia de que o documentário floresce quando adquire voz própria. Essa voz pode defender uma causa, apresentar um argumento e transmitir um ponto de vista. O registro solto de “texto-documento”, para usar a expressão de Lotman, não dá necessariamente ao documentário essa voz. A concepção de voz está relacionada a uma lógica que dirige a organização do filme documentário. Dessa maneira, os elementos diegéticos que o compõem podem contribuir para que se faça o jogo do “efeito de verdade”.

Quando acreditamos em alguma coisa sem uma prova conclusiva de que essa crença seja válida, ela se torna fetichismo ou fé. Com frequência, o documentário convida-nos a acreditar piamente que „aquilo que vemos é o que estava lá‟. Esse ato de confiança, ou fé, pode derivar das capacidades indexadoras da imagem, sem ser plenamente justificado ou sustentado por ela. Para o cineasta gerar confiança, levar-nos a afastar a dúvida ou a incredulidade, pela transmissão de uma impressão de realidade, e portanto de autenticidade, corresponde mais às prioridades da retórica do que às exigências da ciência. É com algum risco que aceitamos como dogma o valor de evidência das imagens. (NICHOLS, 2008, p. 120)

A imagem (in)desejável

O segundo aspecto diz respeito à construção de uma imagem nacional pautada pela ideia de progresso e superação dos problemas sociais. Ao observar alguns filmes europeus ou mesmo norte-americanos, ainda nas primeiras décadas do século XX, é fácil constatar a força com que se toma o espetáculo cinematográfico como uma questão de orgulho nacional. Filmes como Cabiria (1914), de Giovanni Pastrone, O Nascimento de uma Nação (1915), de David Griffith, Metrópolis (1927), de Fritz Lang, Napoleón (1927), de Abel Gance, e Outubro (1927), de Sergei Eisenstein, constituem verdadeiras obras-monumento nacionais. Como Morettin nos aponta:

A seu modo, o cinema feito no Brasil nos anos 20 e no início dos anos 30 guarda nítida relação com uma tendência mundial a se fazer do cinema uma “vitrine”, um ponto de celebração das virtudes nacionais no concerto (ou desconcerto) das nações. (2005, p. 139)

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Em 1929, São Paulo Sinfonia de uma Metrópole177, de Adalberto Kemeny e Rudolf Rex Lustig, abarrotava na tela uma cidade que ora se ritmava pelo desempenho das fábricas e andar dos cidadãos para o trabalho, ora se silenciava no calar da noite. Contudo, tudo o que não correspondia ao ideal de trabalho dentro da ordem foi excluído da representação: violência urbana, miséria, movimentos sociais. Segundo o pesquisador Rubem Machado, o entendimento desses filmes poderia ser enriquecido com uma comparação a uma produção cultural mais conservadora, próxima dos círculos do poder. Para ele,

atas das sessões públicas dos mandatários e os „sermões encomendados‟ das cerimônias oficiais, um documento subscrito pelo empresariado ou o „Plano de Avenidas‟ de Prestes Maia, na interpretação daquela São Paulo cinematográfica, talvez rendesse paralelos mais profícuos que, digamos, um cotejamento com as Novelas Paulistanas de Alcântara Machado, escritas de 1924 a 1930. (MACHADO apud MORETTIN, 2005, p. 130)

Exigia-se excluir da tela todos os problemas sociais. Toda imagem que retratasse um país pobre, fraco e sem valor. Expurgava-se tudo que se considerava atrasado em prol do progresso. O país precisava ser visto como um modelo e não mais como um retrato do real. A necessidade da construção simbólica realizada pelo cinema para a consolidação da imagem nacional começava a se materializar para, finalmente, se concretizar com a política de Getúlio Vargas ainda durante o Governo Provisório, do qual falaremos adiante. O que estava em jogo era se adequar, galgar rumo a tal sonhada “modernidade”. Neste sentido, é imprescindível demarcar o desajuste da América Latina ao estudar o processo de incorporação à modernidade industrializada e ao mercado internacional. Na visão de Martín-Barbero, a intenção de "formar nações", no sentido “moderno” do termo, passará pelo estabelecimento de mercados nacionais e, estes, por sua vez, serão possíveis em virtude de seu ajuste às necessidades e exigências do mercado internacional.

177 O documentário fazia uma forte referência ao recém-lançado “Berlim, Sinfonia de uma Metrópole” (1927), de Walter Ruttmann. Ele propõe uma plataforma ampla de abordagem da cidade, exibindo um burguês solitário, os operários que caminham em grupo, pessoas que se acotovelam para pegar um lugar no bonde, símbolos da tal modernidade disponível na época. São Paulo, Sinfonia de uma metrópole trabalha no sentido de construir uma narrativa de apologia do desenvolvimentismo econômico ao revelar a cidade. Para mais detalhes, ver GATTI, 2000. 96

Desejava-se ser uma Nação a fim de obter uma identidade, mas tal obtenção implicava sua tradução para o discurso modernizador dos países hegemônicos, porque só nos termos desse discurso o esforço e os êxitos eram avaliáveis e validados como tais. (2008, p. 222)

Neste sentido, é interessante destacar que, muitas vezes, o descompasso entre o trazido pela imagem e o desejado se fazia presente. Filmes como Operações de Guerra (1925), de Luiz Thomaz Reis, traziam a exposição involuntária dos problemas sociais ou daquilo que se considerava atrasado, rural ou anti-higiênico. Ao registrar a campanha do Paraná contra os tenentes em 1924, o documentário revelava soldados marchando descalços, cansados e desgastados pelas operações militares. Na revista Selecta, de 10 de fevereiro de 1926, a crítica sugere que se este documentário fosse exibido em outras localidades seria preciso fazer uma revisão urgente “para que possam aquilatar quão vexatórios é, para nós, vermos nossos soldados marcharem descalços, com diversas formas de vestimentas”.178 Como nos aponta Morretin, ao autor da crítica pouco importava a situação real em que se encontram os soldados. “Desfiles em ruas vazias, aliado às vestimentas e às armas precárias não contribuíam para construir mentalmente a representação de uma instituição sólida, cuja tarefa é a de zelar pelo cumprimento da ordem em todo o país” (2005, p. 132). Mais do que celebrar o desejável, o que se solidificou foi a repudia à imagem do indesejável. Não estaríamos aqui nas bordas da propaganda? A construção de uma vontade que concretizasse o Brasil ideal, que representante “o que deveríamos ser” e não “aquilo que somos”, responde a uma preocupação que ganhou fôlego ao longo da trajetória brasileira no cinema.179 A grosso modo, a transição do cinema silencioso ao sonoro concretiza-se no Brasil no início da década de 1930. Porém, a tradição do “agrupamento” de registros já estava – pouco a pouco – sendo construída anos antes. Naturais e cavações ganhavam o carácter de revistas de notícias, sob os mais diversos nomes. Dentre as citadas na pesquisa de Maria Rita Galvão, entre os anos de 1897 a 1920, pode-se

178 Cinemateca Brasileira, Guia de Filmes Produzidos no Brasil entre 1921 e 1925. Rio de Janeiro: Embrafilme, 1987, p. 91. 179 Aliás esta tendência ideologizante ajudou a provocar, a partir dos anos 60, uma reação na produção de documentários vinculada ao Cinema Novo, classificada por Jean-Claude Bernardet como modelo sociológico. Colocava-se em discussão o locutor em relação à experiência registrada ao evidenciar o problema-tese a ser investigado. Como exemplo, ver análise do filme Viramundo (Geraldo Sarno, 1965) sobre a migração dos nordestinos em busca de trabalho na cidade de São Paulo em BERNADET, 2003. 97 observar uma intensa produção cinematográfica, porém, por vezes, descontínua. Bijou Jornal180, Gaumont Jornal181, Cinejornal Brasil182, Pathé Jornal183, Pará Filmes Jornal184, Recreio-Ideal185, Santa Maria Atualidades186, Fluminense Jornal187, Revista Brasil Cinema188, Odeon Jornal189, Brasil Ilustrado190, Rio Film, Rio Jornal, Paulista Cinejornal, Semana Paulista, Cine Paulista, Guanabara Jornal, A Semana Ilustrada, são algumas nas principais produções destinadas à composição do que se intitulava na época como “jornais cinematográficos” 191. De fato, os registros impressionam. Para se ter uma ideia da ativa produção no país, até 1935 existiram 51 empresas dedicadas à prática. Algumas de vida curta, outras que permaneceram significativamente durante anos em ação. Segundo a

180 Em 1910, a divulgação da primeira edição já antecipava ao público os assuntos que seriam tratados na sessão. “Este Bijou Journal tratará de coisas interessantes ocorridas durante a semana e exibirá também uma vista da célebre „árvore das lágrimas‟, do Ipiranga” (O Comércio de São Paulo, 26 set. 1910, p.3). Segundo a pesquisa de Maria Rita Galvão, o jornal semanal de Serrador, que seria apresentado todas as segundas-feiras, teve curta duração, não aguentando mais que três ou quatro semanas. Cinemateca Brasileira. Guia de Filmes Produzidos no Brasil entre 1897-1910. Rio de Janeiro: Embrafilme, 1987, p. 56. 181 Título da série de cinejornais exibidos semanalmente no cinema Pathé, Rio de Janeiro, iniciada em abril de 1910. 182 Nova tentativa de Francisco Serrador, em 1912. Neste ano, o Cinejornal Brasil conseguiu manter certa frequência e atingiu 33 edições. As apresentações poderiam ser conferidas no Radium e no Bijou, em São Paulo. Cinemateca Brasileira. Guia de Filmes Produzidos no Brasil entre 1911-1920. Rio de Janeiro: Embrafilme, 1987, p. 22. 183 Em 1912, há os primeiros dois registros que localizam assuntos específicos dentre os demais exibidos no cinejornal. Intitulado “Curandeiras Chinesas”, comentava a repercussão dos atendimentos em São Paulo. Dizia a sinopse do cinejornal: “Instalaram seu consultório no Salão do Jornal do Brasil, onde recebiam os enfermos (...), enfiavam-lhes nos olhos uns pauzinhos, extraíam vermes e davam o paciente como curado”. O outro registro dizia respeito aos voos dos aviadores Roland Garros, Barrier e Audemard no Jockey Club Rio de Janeiro durante as comemorações da Semana da Aviação. Idem, p. 29. 184 Exibidos nos cinemas Odeon e o Rio Branco de Joaquim Llopis, em Belém (1912). Idem. 185 Produção de Eduardo Hirtz, o Recreio-Ideal teve 21 edições no ano de 1912 em Porto Alegre. Idem. 186 Da produtora Guarani Fábrica de Fitas Cinematográficas (1913-1914), o Santa Maria Atualidades teve vida curta. Ao menos 12 edições, como informa uma das cartelas presentes na fita. Idem, p. 37. 187 Distribuído pela Pathé, a produção era de Gustavo Zieglitz. Em 1916, houve 15 edições. Idem, p. 48. 188 “A mais completa revista da atualidade, a mais interessante reportagem cinematográfica da vida paulista elegante. Reuniões sociais. Os pontos da elite. O Triângulo às quintas. O Parque Antártica às sextas. O Corso. O Skating. As silhuetas elegantes. As últimas criações de moda. As corridas. Os jogos de futebol. As nossas praias. Os chás elegantes. São Paulo chica em cinematografia”. Idem, p. 46. 189 Da Companhia Cinematográfica Brasileira, em 1916, há registro de exibições no Pathé, Irís e Espéria, em São Paulo. Idem, p. 50. 190 O título corresponde a 28 edições do cinejornal Brasil Ilustrado, produzido pela empresa Nacional Filmes. Idem, p. 52. 191 Termo frequentemente observado nas sinopses apresentadas aos jornais impressos para divulgar o conteúdo dos “jornais cinematográficos”. Idem. 98 proposta de Carlos Alberto Rabaça (1987), atribui-se o termo cinejornal aos noticiários destinados para o cinema e produzidos regularmente. “É geralmente um curta-metragem periódico exibido como complemento de filmes em circuito comercial, diz-se também „atualidades‟ ou „jornal da tela‟”. (1987, p. 131) O primeiro cinejornal, com regularidade, foi o Rossi Atualidades, produzido pela Rossi Film. Com subsídios do governo paulista de Washington Luiz, em 1921 inicia sua ativa participação. Em uma década de atividade, o Rossi Atualidades chega à marca de 227 edições. Seu pioneirismo abriu caminhos para o aparecimento de outras produtoras, intensificando a produção de cinejornais em São Paulo. Mais tarde, em 1933, surgia o primeiro cinejornal falado, A Voz do Brasil, uma coprodução das firmas Rossi e Rex, especializada em coberturas políticas.192 O tema da identidade nacional193 estava posto e o cinejornal poderia ser a tradução concreta de uma representação do que se desejava como nação. A busca pela imagem ideal e desejada para retratar o país se deflagra no movimento dos cinejornais e torna-se um projeto de Estado na política de Getúlio Vargas. O papel dos complementos cinematográficos foi fundamental no processo de integração. Imagens limpas, indicadoras de progresso e desenvolvimento. “Brancura, decência e ingenuidade caminham juntas na exigência de uma imagem cinematográfica que cristalize uma determinada visão de Brasil” (MORETTIN, 2005, p. 134). Tais características são fortemente percebidas nos documentários ipesianos décadas depois. Pautados pela ideologia da “segurança nacional”, utilizaram o audiovisual também como uma vitrine do progresso nacional em defesa da ameaça comunista. Neste sentido, a ideia de “integração nacional” é central, pois estabelece uma ponte entre os interesses dos empresários e dos militares. Ambos os setores veem vantagens na integração do território nacional194. A partir da década de 1930 o cinejornal potencializa sua função persuasiva, se consolidando como um forte instrumento de propaganda mediado por um Estado

192 Para mais informações, ver SAMPAIO, 1971. 193 Nesta pesquisa não iremos aprofundar a complexa temática da identidade nacional. Para mais detalhes, ver ORTIZ, 1991. 194 Ao comparar a ditadura militar ao Estado Novo, Renato Ortiz comenta que o que diferencia esses dois momentos é que em 1964 o regime militar se insere dentro de um quadro econômico distinto. “A relação que se estabelece, portanto, entre ele e os grupos empresariais é diferente, eu diria, mais orgânica, pois somente a partir da década de 60 esses grupos podem se assumir como portadores de um capitalismo que aos poucos de depreende de sua incipiência”. (1991, p. 117) 99 autoritário que regulava sua produção. Neste sentido, para perceber a influência de tal prática nas construções sígnicas dos documentários ipesianos, partimos em busca da trajetória que deflagrou seu uso como discurso do poder. O documentário deixa exclusivamente de captar a efemeridade do momento e, pouco a pouco, torna- se parte de um imaginário idealizado.

Cinejornal: seu caráter “educativo”

No dia 11 de outubro de 1962, o Cine Rian, em Copacabana, Rio de Janeiro, exibia o filme O Destino me persegue (The President`s Lady, 1953), dirigido por Henry Levin. No filme, Charlton Heston interpretava o papel de Andrew Jackson, presidente dos Estados Unidos entre os anos de 1928/1936, casado com uma ex- prostituta, interpretada por Susan Hayward. O longa-metragem hollywoodiano seguiu sua trajetória de exibição pelo país e solidificou, um pouco mais, a imagem das estrelas que o protagonizavam195. Entretanto, sua projeção cumpria uma função muito maior. Como era de praxe, todos os cinemas exibiam por conta do decreto nº 21.240 de 04 de abril de 1932196, um curta-metragem filmado, "revelado e copiado no país". Mesmo 30 anos após a assinatura do decreto, frequentadores do Cine Rian que compraram seus ingressos para o filme hollywoodiano assistiram também Nordeste: Problema número 1; um filme feito no Brasil, sob encomenda do Instituto de Pesquisa e Estudos Sociais, o IPES. O decreto que tornou obrigatória a exibição dos cinejornais em todo o território nacional foi assinada por Getúlio Vargas e sobreviveu até o fim da ditadura militar, em março de 1985. O decreto determinava a exibição de um filme educativo feito no Brasil e previa a produção de um cinejornal oficial: o Cine Jornal

195 Suposto cenário construído na dissertação de mestrado de Marcos Corrêa a partir de sua investigação sobre o discurso golpista de Jean Manzon para o IPES. (2005, p. 7) 196 Desde 1920, o meio cinematográfico brasileiro exigia do Estado uma política cultural atuante. Os produtores clamavam por intervenções no mercado nacional, na tentativa de criar mecanismos de competição com o cinema norte-americano que dominava as salas de exibição do país. Mas eles somente seriam atendidos 12 anos mais tarde, durante a vigência do Governo Provisório. Em 1932, era criada a obrigatoriedade da exibição de um filme nacional, mas que entraria em vigor apenas em 1934. 100

Brasileiro.197 A utilização do filme como veículo de transmissão de conhecimentos dentro de um projeto que previa o seu uso para fins educativos não é uma ocorrência isolada no Brasil. A escola britânica fundada por John Grierson ficou conhecida mundo afora e se tornou modelo de uma proposta clássica de “retratar o real”198. Sua produção tinha objetivos propagandísticos do Império Britânico e uma proposta educativa de formar cidadãos por meio do documentário, meta para a qual a televisão se apresentou como um excelente veículo anos depois. É possível traçar inúmeros paralelos entre o que se consagrou como uma cobertura jornalística clássica e o “modelo expositivo” de Grierson. Esta nomeação, proposta por Bill Nichols (2008), surge de uma tentativa de classificação que consiste, de modo geral, em reunir características comuns coletadas em filmes documentários de toda história que serviram como guia para as formas de registro e de representação.

A classificação proposta por Nichols decorre de sua concepção do documentário não enquanto um objeto dado e dotado de uma imanência, mas enquanto uma instituição constituída por práticas variadas e contraditórias, que interagem historicamente. (DA-RIN, 1995, p. 101)

Segundo Nichols, este modo agrupa fragmentos do mundo histórico numa estrutura bem mais retórica e argumentativa do que estética ou poética. “O modo expositivo dirige-se ao espectador diretamente, com legenda ou vozes que propõem uma perspectiva, expõem um argumento ou recontam a história”. (2008, p. 142) Uma de suas principais características é o desempenho de uma lógica informativa transmitida verbalmente. É o comentário – sinônimo da voz da autoridade, da credibilidade – que está no comando. O narrador não se apresenta no filme, não está inserido no contexto de sua captação, pelo contrário. Ele é onipresente e onipotente. Daí que a tradição da análise fílmica denomina este tipo de comentário como “voz de deus”. Nichols sugere voz over, ao observar em sua categorização, que as imagens desempenham um papel secundário, uma vez que elas ilustram, esclarecem, evocam ou contrapõem o que é dito. “O comentário voz over parece

197 A primeira edição ocorreu apenas anos depois, em 1938. 198 Com grande habilidade comercial, John Grierson estabeleceu uma base institucional para o que, no fim da década de 1920, tornou-se conhecido como cinema documentário. Grierson impulsionou o patrocínio governamental da produção de documentários na Inglaterra dos anos 1930 da mesma forma como Dziga Vertov fizera em toda década de 1920 na União Soviética e Pare Lorentz faria em meados da década seguinte nos Estados Unidos. Ver em NICHOLS, 2008. 101 literalmente „acima‟ da disputa; ele tem a capacidade de julgar ações no mundo histórico sem se envolver nelas”199. (2008, p. 144) O documentarismo britânico reivindica para si a intervenção do cineasta no material fílmico e não mais a reprodução de um registro exclusivamente in loco. Intervenção que, para Grierson, é ao mesmo tempo uma revelação e uma interpretação da realidade. Este tipo de abordagem se fez presente fortemente, em grande parte, dos jornais cinematográficos. O emblemático newsreel norte- americano The March of Time200, lançado em 1935, perdurou até 1951, quando o noticiário televisivo ganhava força. Assim como a importância dos noticeiros na guerra civil espanhola (1936-1939), deflagrando-o como instrumento político201. Mas foi, sem dúvida, na Segunda Guerra Mundial que os cinejornais mergulharam dentro de um grande esforço publicitário. Os governos dos Estados Unidos, Alemanha e Inglaterra investiram pesadamente naquilo que tinha se convertido em um hábito social e um meio de entretenimento, sobretudo para as classes trabalhadoras. Sobre a atuação do Ministério da Informação Britânico (MOI), a pesquisadora Virginia Garía Beaudoux comenta que:

Durante a guerra, a unidade MOI encarregada da produção de filmes realizou cerca de 2.000 curtas-metragens, mais de 3000 cinejornais e cerca de 400 longas-metragens. O celuloide foi classificado material de guerra e passou a sofrer controles rigorosos, razão pela qual a produção de todos os filmes necessitavam da aprovação prévia do governo. A MOI compreendeu, corretamente, que a maioria das pessoas que iam ao cinema buscavam entreter-se, de modo que os cinejornais eram eficazes apenas se projetados neste contexto202. (2011, p. 55)

199 Tais características se apresentam notoriamente nos documentários ipesianos, como veremos mais adiante em „O peso da voz‟. 200 Da empresa Time Inc., era produzido por Louis de Rochemont e distribuído pela 20th Century-Fox. A voz inconfundível de Westbrook Van Voorhis narrou acontecimentos de guerra, transições de governo, hábitos e costumes de um país que já projetava sua expansão imperialista. Para saber mais sobre o cinejornal norte-americano, ver o estudo de FIELDING, 1972. 201 Na pesquisa de Magí Crusells, revela-se inclusive a análise da produção dos cinejornais internacionais sobre o conflito. “Po lo que se refiere a los noticiários británicos (...) y estadounidenses (...) no transmitieron la idea de internacionalización del conflito espanõl, sino las consecuencias de los desastres de una lucha fratricida. Por regla general, las imágenes se centraron en lo espectacular y emotivo, mostrándose escenas de combates y bombardeos sin analizar las implicaciones internas y externas. Porque los gobiernos de estos países fueron fieles a la política del Comitê de no Intervención. En cambio, los noticiarios soviéticos (...), alemanes (...) e italianos ensalzaron, por afinidades ideológicas, la resistencia y las victorias del bando que apoyaban, el republicano o el nacional”. (CRUSELLS, 2000, p. 85-86) 202 Do original: “Durante la guerra, la unidad del MOI encargada de la producción cinematográfica realizo casi 2.000 cortometrajes, más de 3000 informativos y cerca de 400 largometrajes. El celuloide fue classificado como material vital de guerra y sufrió rigorosos controles, razón por la cual 102

Why We Fight (1942-1945), de Frank Capra, é outro exemplo de uma série de cinejornais que tinha como objetivo informar e legitimar a atuação norte-americana no front de batalha e garantir o esforço de todos os cidadãos no combate ao inimigo. Sobre a série, Nichols comenta:

Entre duas alternativas polarizadas na forma “mundo livre” contra “mundo escravizado”, quem não escolheria defender o mundo livre? O senso comum simplificou a resposta – para um público predominantemente branco, completamente impregnado da crença no “conjunto” dos valores norte-americanos. (2008, p. 146)

Muitos pesquisadores consideram tais materiais como filmes de propaganda203 a serviço de uma ideologia específica. Neste sentido é importante destacar que a utilização da propaganda como meio para controlar o fluxo de informação, assim como para dirigir a opinião pública e seu comportamento, é uma atividade que remonta a épocas muito antigas. Em sua pesquisa, Beaudoux ressalta que uma das primeiras iniciativas de utilizar a propaganda foi na Grécia antiga.

A partir de 750 a.C., as estruturas sociais tornaram-se mais complexas e diversificadas, as cidades-Estado começaram a competir entre si para estabelecer seu domínio comercial e cultural. Neste contexto, floresceu uma iconografia de propaganda evidente nos templos e esculturas monumentais que se transformaram em símbolos do poder do Estado.204 (2011, p. 39)

Embora sofrendo modificações substanciais ao longo do tempo, o que permanece como uma constante é que as propagandas sempre utilizaram não só os meios de comunicação disponíveis e próprios de sua era, mas também a cultura para orientar seu discurso. De tal maneira que sua utilização tende sempre a reduzi- la, simplificando assim as potencialidades da cultura. O que se revela aqui na produção do cinejornal brasileiro e nos filmes ipesianos é que estes estavam

la producción de todas las películas necesitaba contar com la previa aprobación gubernamental. El MOI comprendió, acertadamente, que la mayoría de la gente que concurría al cine lo hacía para entretenerse, por lo que los noticieros propagandísticos resultaban efectivos sólo si eran proyetactados em ese contexto”. 203 Dentre os mais emblemáticos, está a produção de Leni Riefenstahl para o partido nazista antes da Segunda Guerra. “O triunfo da vontade” (1934/35) e “Olympia” (1936-38). 204 Do original: “A partir del ano 750 a.C., las estructuras sociales se tornaron más complejas y diversas, las ciudades-Estado comenzaron a competir entre sí por establecer su dominio comercial y cultural. En ese contexto, floreció toda una iconografía de la propaganda que se puso de manifiesto en templos y esculturas monumentales que se transformaron em símbolos del poder del Estado”. 103 modulados por um conjunto de valores ideologicamente fincados na manutenção de uma proposta desenvolvimentista e contaminados pela sustentação da moralidade e pela preservação dos bons costumes. Potência Todo cinejornal brasileiro deveria ser referido na programação como “complemento nacional” e isto incluía não só para os oficiais, mas também para os oficiosos. A partir da década de 1930, a produção assumida pelos Botelho, Rossi, Carbonari e Jean Manzon sofreu forte competição com o próprio Estado. Mas a troca de benefícios entre os cineastas e o Estado rendeu o aparecimento sistemático de imagens consonantes com a proposta do Estado, pautadas por um discurso de soberania das Forças Armadas e consolidação da figura de um líder que a conduzisse. Embora o decreto fizesse referência direta à obrigatoriedade de exibição de filmes educativos no “complemento cinematográfico”, também deixava em aberto a possibilidade de incluir filmes de longa-metragem, desde que fossem nacionais. Esse caráter pedagógico que o Estado brasileiro pós-1930 atribuía ao cinema encontrou maior respaldo na criação do Instituto Nacional do Cinema Educativo, o INCE.205 Inspirada em modelos europeus de cinema educativo, como L`Union pour la Cinématographie Éducative e o Instituto LUCE da Itália fascista, as produções do regime priorizavam enredos baseados na literatura e na história brasileira. De 1937, dirigido por Humberto Mauro, O Descobrimento do Brasil surge como um exemplo de filme histórico para a época.206 Contudo, não era apenas na grande tela que o caráter educativo se perpetuava. No rádio, o programa obrigatório Hora do Brasil se fazia presente em cada canto do país aos primeiros acordes de O Guarani. Em substituição ao Departamento de Propaganda e Difusão Cultural (DPDC), foi criado o Departamento de Imprensa e Propaganda, conhecido como DIP. O ano de 1939 marcava então a concentração nas mãos do Estado Novo da propaganda oficial. Abrangia a imprensa, a literatura, o teatro, o esporte, a recreação, o rádio, o

205 Idealizado por Roquette Pinto, o INCE tinha como objetivo “promover e orientar a utilização da cinematografia, especialmente como processo auxiliar de ensino, e ainda como meio de educação popular”. (SIMIS, 1996, p. 34) 206 Humberto Mauro, mineiro de Cataguases, foi um dos principais nomes da cinematografia brasileira da época. Contratado para compor a equipe do INCE, sua colaboração rendeu uma produção de filmes ininterrupta por mais de 20 anos. Sobre o filme, ver MORETTIN, 2000, p. 65-74. 104 cinema e quaisquer outras manifestações culturais. Mas o DIP não passou de uma resposta brasileira a um processo que já vinha se desenvolvendo no cenário mundial. Desde os primeiros anos da década de 1930, o Estado atentara para a eficácia dos mass media para a legitimação de um regime que se pretendia totalitário.

Acreditava-se que por meio do uso sistemático destes mecanismos culturais era possível forjar uma identidade nacional na qual o povo se reconhecesse. Dessa maneira, o Estado não atuaria apenas como censor dessas atividades culturais, mas principalmente como produtor de sua própria imagem, apropriando-se dos mais diversos dispositivos de propaganda, e reunindo-os todos em um órgão espelhado no modelo nazi fascista. (TOMAIN, 2006, p. 128)

Retomando a reflexão de Martín-Barbero sobre o descompasso entre “estado” e “nação” e o modo desviado de irrupção política das massas na América Latina, é preciso lançar outro olhar em busca de investigar a memória comum reativada nos elementos da cultura. Segundo ele, se através do nacional-popular se fizeram ouvir no conjunto nacional reivindicações sociais e políticas das classes subalternas, foi num discurso de massa que o nacional-popular se fez reconhecível pelas maiorias (MARTÍN-BARBERO, 2008, p. 232). Nesta pesquisa, o que está em jogo é a tradição das práticas audiovisuais através das quais os meios adquirem materialidade. Sem dúvidas, foi durante os anos 1930 e 1940 que o Estado brasileiro voltou suas atenções para o filme de atualidade, servindo-lhe exclusivamente como instrumento de propaganda política. Neste cenário, surgem nomes (como os já citados Luiz Jatobá e Jean Manzon) que serão figuras determinantes na produção dos documentários ipesianos207. Se o pontapé inicial na produção dos cinejornais pelo próprio governo foi o DIP, sua extinção - em 1946 - não deflagrou um retrocesso do “complemento nacional”. Pelo contrário, mesmo antes do encerramento do departamento, a produção de cinejornais foi sendo gradualmente liberada para empresas privadas, que continuaram, entretanto, a seguir as orientações propagandísticas e institucionais do DIP (MACHADO, 2006, p. 11). Já na década de 1950, o noticiário cinematográfico lentamente começava a ser

207 Falaremos da ativa participação de ambos mais adiante em „A sintaxe oficial‟ e „O peso da voz`. 105 substituído pelo televisivo, que o superava em agilidade e instantaneidade. Mas entre essas mudanças ainda surgiria, em 1959, o Canal 100, que trazia uma inovação ao gênero, caracterizando-se por novas abordagens e pela introdução de tópicos variados como vida, ciência, criança, etc., além de destacar-se pela filmagem criativa de jogos de futebol.208 Os filmes ipesianos inserem-se, portanto, dentro de uma tradição já estabelecida, centrada na experiência do cinejornal. Percebê-la criticamente nos leva a localizá-los, primeiramente, em um projeto de campanha mergulhado em um ambiente midiático que também compreendia, como vimos, diversos dispositivos culturais – rádio, jornal e televisão209. Não bastava permear os editoriais dos complementos nacionais, era preciso ir além. A decisão de produzir documentários com a própria assinatura do IPES foi determinante. Assim, iniciou-se uma nova fase dentro do instituto: a produção de documentários. E foi neste embalo que os curtas ipesianos chegavam às salas de cinema.

2.2 Os Filmes Ipesianos

A filmografia do IPES é controversa. Fala-se, ao todo, na produção de 20 documentários entre os anos de 1962 e 1963. Porém, de que se tem registro, apenas 15 foram localizados, grande parte já recuperados tecnicamente210. São

208 Carlos Niemeyer, criador do Canal 100, começou a fazer cinema nos anos 50, produzindo com Jean Manzon alguns documentários sobre o Rio de Janeiro. Em 1958, fundou sua própria produtora, que mais tarde se especializou em cinejornal. Surgia o Canal 100, que de 1959 à 1986 produziu um cinejornal por semana, formando um importante acervo cinematográfico dos acontecimentos jornalísticos da época. 209 É interessante notar que tanto a produção de cinejornais quanto de documentários exibidos nas salas de cinema antes das atrações principais na América Latina era recorrente ainda na década de 1960. O caso da extensa produção cubana através do ICAIC, mais de 600 cinejornais catalogados, é um dos exemplos mais marcantes de sua notória influencia. O „cine-urgente‟ e o cine-ensayo documental, propostas de Santiago Alvarez, estavam a serviço de um discurso político direto e contundente. Ver VILLAÇA, 2010. 210 Catorze filmes estão armazenados no Arquivo Nacional, exceção de Asas da Democracia, pertencente ao acervo do MIS (Museu da Imagem e do Som/ SP). Ao que se registra, o seu acesso é apenas possível pela moviola. O acesso às obras, assim como aos documentos do IPES no Arquivo Nacional (RJ), se mostrou fácil e ágil na Coordenação de Documentos Audiovisuais e Cartográficos, Seção de Documentos Sonoros e de Imagens em Movimento. Contudo, conseguir uma cópia dos curtas - mesmo para o estudo acadêmico - não foi tarefa fácil. Gentilmente, o pesquisador Marco Corrêa concedeu-me uma cópia na íntegra dos documentários para que pudesse analisá-los. 106 eles: Portos Paralíticos, A Vida Marítima, Uma Economia Estrangulada, História de Um Maquinista, Nordeste: Problema número 1, O IPES é o seguinte, O que é o IPES?, Criando Homens Livres, Deixem o Estudante Estudar, Depende de Mim, Que é a Democracia?, O Brasil Precisa de Você, A Boa Empresa, Conceito de Empresa, O Brasil Precisa de Você e Asas da Democracia. Em média, os documentários têm entre 8 e 10 minutos de duração. Foram planejados para que estivessem em sintonia com a campanha e cumprissem os propósitos do instituto. Extremamente didáticos e expositivos, revelam fortemente as convicções ipesianas. Neste sentido, é fundamental entendê-los como uma expressão de valores, não só definidos por uma temática específica. Em outras palavras, é dizer que a maneira com que foram concebidos e, posteriormente, sua organização na montagem e exibição implicam significativamente neste desejo de persuasão em campanha. Com o exame dos filmes, o desencadear de som e imagens é moldado em função da retórica ideológica ipesiana. São conduzidos por um narrador, uma voz onipresente, que remete ao padrão estabelecido pelo documentarismo inglês quando o cinema se vincula ao Estado, como vimos, ainda nos anos 1930 e que se tornou referência para a prática de cinejornais. “Como convém a uma escola de propósitos didáticos, utilizava uma narração em off supostamente autorizada, mas quase sempre arrogante” (NICHOLS, 2005, p. 97). Este mergulho inicial forneceu subsídios para estabelecer alguns parâmetros sobre os materiais que lhe serviram de suporte. Partimos, então, à pergunta que nos norteia: como as práticas audiovisuais puderam orientar o espectador a um determinado olhar? A semiopragmática211, desenvolvida por Roger Odin, defende que uma obra audiovisual não possui um sentido em si, pois a produção de sentido advém da associação dos componentes de realização da obra com a leitura por parte do espectador. Neste sentido, não há comunicação no sentido de transmissão de uma mensagem de um emissor a um receptor, mas sim um duplo processo de produção de sentido que necessariamente deve levar em conta o movimento da leitura. Odin

211 Segundo o próprio autor, esta proposta tem por “ambição” articular uma abordagem semiológica e pragmática que, primeiramente, centra-se na análise do público construído pelo filme e, posteriormente, na produção de sentido pelo próprio público, que estabeleça relação direta com os estudos culturais e cognitivos. Ver ODIN, 2005, p. 29. 107 defende que, numa determinada sociedade, há vários modos de produção de sentidos ou efeitos, pelos quais a obra audiovisual nos conduz a um tipo de experiência bem particular. Neste sentido, tendo como referência que o movimento de recepção modifica a obra, pode-se considerar que existe um percurso na leitura que é mais importante que a autoria em si. Roger Odin acalorou tal discussão no seminário promovido pela UNICAMP, intitulado Do documentário à leitura documentarista: uma abordagem semio-pragmática212.

De fato, a interpretação evidenciada pela análise textual corresponde à de um público determinado: aquele constituído pelo analista. O erro da análise é entender que esse público é o público do filme, e que o texto o constrói. Ora, o texto está sendo construído pela leitura do público: atribuímos aos textos uma intencionalidade da qual somos a fonte. Existem tantos públicos construídos pelo texto quanto textos construídos pelos diferentes públicos. (ODIN, 2005, p. 32)

Tomemos, por exemplo, os documentários ipesianos vistos por um professor que pretende utilizar as obras para apresentar um assunto aos seus alunos na disciplina de história do Brasil, em uma sala de aula e para um público específico. Situação diferente, se exibido em um cineclube, no qual o debate poderá se centrar nas escolhas técnicas, no enquadramento do material filmado e na organização da montagem. Odin acredita que é preciso que nos restrinjamos a uma abordagem parcial do público. Na verdade, “uma abordagem duplamente parcial: que não abranja todo o público e que não pretenda dizer tudo sobre o público” (2005, p. 32). Como? Segundo o pesquisador, trata-se de determinar um “eixo de pertinência”, ou seja, investigar como um filme está sendo entendido. Em outras palavras, a questão é que o modo como a obra se apresenta - levando em conta tanto as imposições internas quanto externas do filme - é determinante. É deste conjunto, uma vez organizado em significantes, que resultará o texto fílmico. Trata-se então, de investigar aspectos que orientem o modo de colocar uma leitura documentarizante em ação. Buscar nas marcas de sua produção e exibição (fatores externos) e nos sinais de sua estruturação (fatores internos), informações que possam instruir a relação do público com os curtas. Exclusivamente em função de uma organização metodológica sugerida nos estudos audiovisuais de Roger

212 Seminário Do documentário à leitura documentarista: uma abordagem semiopragmática, Programa de Pós-graduação em Multimeios, UNICAMP, mar. 2003. 108

Odin, adotaremos a investigação dividida em “fatores externos” e “fatores internos”. Contudo, é imprescindível esclarecer que não se trata de analisá-los e perceber suas respectivas importâncias isoladamente. Aquilo que parece ser externo ao filme, na verdade, está entranhado em seus objetos. Do mesmo modo que, o que é inerente ao filme mantém uma relação profunda com o que está externo. Neste sentido, ambas as relações se perpetuam nas práticas audiovisuais que investigamos. O objetivo é partir em busca de elementos que possam evidenciar práticas que colaboraram na sugestão de uma realidade desejada e premeditada.

2.2.1 As marcas: quanto aos fatores externos

A insistência no papel das imposições externas e sua relação no processo comunicacional é essencial. “O espectador constrói o texto, porém sob a pressão de determinações que o tomam sem que frequentemente tenha consciência desse fato. O espectador não é livre nem individual: ele compartilha, com outros, algumas imposições”. (ODIN, 2005, p. 30) Dessa maneira, ao investigar como tais imposições se manifestam nos documentários poderemos perceber como sugerem um percurso ideológico de leitura do espectador. Então, vamos a elas:

Da encomenda à distribuição

Mergulhar nos arquivos do IPES em busca das ações do instituto especificamente direcionadas à produção de documentários nos leva a um mapeamento a partir dos comentários registrados nas atas dos comitês e dos grupos de ação; cartas aos produtores, associados e distribuidores; recibos de pagamento; comentários sobre os filmes e alguns recortes de jornal. Apesar do rigoroso sistema de funcionamento do instituto, o que se encontra são documentos de organização geral nos quais cada ação precisa ser pinçada neste repertório comum. Partiremos, então, da observação das leituras de tais documentos para elaborar um cenário de atuação ipesiana sobre os documentários.

109

A primeira referência enfática trata-se de uma carta dirigida à Jean Manzon Films que demonstra um contato entre a empresa e o instituto por meio do advogado e secretário do Comitê Executivo de São Paulo, Luiz Cássio dos Santos Werneck. Ela revela “os entendimentos verbais” que tiveram em reunião antes de 14 de dezembro de 1961 – data em que tal documento foi entregue em mãos à produtora213. O registro demonstra uma intensa preocupação em detalhar os assuntos que o IPES gostaria de abordar nas grandes telas. Solicitava-se um projeto para “a confecção de filmes de carácter documentário” com a sugestão de quatro séries. A Histórica tinha como objetivo demonstrar a formação étnica e geográfica de povos e países do leste europeu, além daqueles que estavam sob o regime comunista ou socialista, como o lado oriental de Berlim (Alemanha), Vietnã, Laos, Coréia e Cuba214. O intuito era estabelecer as diferenças entre os “regimes de força” que dominavam tais países ao traçar um paralelo com o regime e o sistema de vida do Brasil. A segunda sugestão de série, Descobrimentos e Conquistas, pretendia ressaltar o aspecto benéfico no qual os “descobridores levaram aos países desconhecidos, de selvagens e antropófagos, alguns dos benefícios da civilização, tal como o progresso” 215. Além disso, a sugestão era enfatizar o espírito de expansão através das grandes conquistas militares e estabelecer um confronto entre a vida anterior dos povos, seu apogeu e sua presença no cenário mundial, como nações livres e independentes. Já a terceira e a quarta séries, Social Positiva e Social Negativo, tinham o Brasil como ponto de partida. Segundo o registro, era preciso destacar de um lado a “progressão do povo brasileiro no sentido de obtenção de melhor nível de vida” e de outro o “descalabro reinante em setores que resulta, simplesmente, da péssima administração do dinheiro público, da demagogia, dos interesses eleitoreiros”216. De fato, o IPES respondia à perspectiva do desenvolvimento econômico pautado pelo sistema capitalista, em que os interesses pela concentração e controle do capital eram dominados por poucos. Herdeiros de uma tendência à unidade, a palavra mágica era “progresso”. Sair da condição de

213 Anexo 05, Carta a Jean Manzon Films. São Paulo, 14 dez. 1961, p. 287. 214 Os demais países citados foram: Hungria, Polônia, Romênia, Estônia, Letônia, Lituânia, Tchecoslováquia, Iugoslávia, Ucrânia, Mongólia, Geórgia, Tibet, Ilhas Kurilas e de Sacalina. Idem. 215 Idem. 216 Idem. 110 subdesenvolvido para alçar voo rumo a uma sociedade em que o modelo americano era o pódio a ser alcançado, era condição sine qua non. A prática de utilizar o cinema como aparelho pedagógico, como vimos, não era recente. Se desde os cinejornais oficiais de Vargas a questão da identidade nacional estava em pauta – além, é claro, de estar associada a outros dispositivos culturais – agora o que estava em discussão era a ideologia da segurança nacional. Manter a coesão para combater o inimigo foi, sem dúvida, o fio condutor das convicções ipesianas. Era preciso ter amor à pátria para defendê-la. Sem dúvida, o instituto percebia que a possibilidade de produzir documentários era uma oportunidade de educação moral e cívica.

A ideia principal é desenvolver a noção de civismo, a noção de Pátria, de obrigação social, de respeito e de dedicação ao país. De independência com relação a terceiros e de intransigente defêsa da Nação. Demonstrar que, o Patriotismo, nada tem a ver com o nacionalismo existente e que o Brasil somente poderá prosseguir em seu caminho de progresso e ascensão, dentro da liberdade, da democracia, do respeito aos direitos alheios.217

Estas eram as ideias básicas em que a produtora deveria se apoiar para apresentar, de forma mais contundente, um esboço de um programa de produção para “execução imediata”.218 Poucos meses depois, a resposta da Jean Manzon Films ao IPES organizava as sugestões de maneira distinta219. E a sistematização em quatro blocos de ação, proposta inicialmente como uma série, se desfez. Porém, o eixo editorial se manteve intacto. Logo nos primeiros parágrafos, a produtora exaltava a parceria e a cumplicidade da nova cliente.

Cumprindo a sua principal finalidade, é natural que o IPES depois de realizar pesquisas e equacionar os problemas que o preocupa promova ampla divulgação das soluções apontadas. O IPES é máquina. À serviço dessa máquina a técnica de nossos filmes documentários constitui o mais rápido veículo capaz de levantar com a máxima eficiência a opinião pública em favor das teses defendidas pelo IPES.220

217 Idem. 218 Idem. 219 Anexo 06, Carta ao IPES. São Paulo, 3 fev. 1962, p. 291. 220 Idem. 111

A Jean Manzon Films propôs a produção de 23 documentários e, a cada sugestão, um argumento para sua produção com diretrizes gerais para um possível roteiro. Como os únicos documentos disponíveis pertencem ao escritório do Rio de Janeiro e tendo em vista que o esforço cinematográfico ipesiano foi muito mais intenso em São Paulo, encontramos poucas referências. Assinado por Luiz Cássio dos Santos Werneck, cinco meses depois, um relatório se dirige a todos os contribuintes do IPES para justificar as despesas com a realização dos filmes:

(...) a melhor notícia é a de que já temos prontos, os 7 (sete) filmes documentários elaborados por Jean Manzon Films Ltda. E que abordam os seguintes temas:

1. Apresentação do IPES, seus princípios, seus propósitos e seus fundamentos; 2. A crise das ferrovias nacionais e o problema do estatismo; 3. A educação pelo voto, no sentido de melhorar o nível dos representantes do povo; 4. O problema do Nordeste e o papel que poderá ser desempenhado pela livre emprêsa; 5. O que o país espera da UNE; 6. A situação dos portos brasileiros; 7. Os problemas e o déficit da Marinha Mercante; 8. A real situação dos marítimos, dos portuários e dos estivadores.221

Sem dúvidas, a Jean Manzon Films foi uma das produtoras mais atuantes nas demandas ipesianas. A ela podemos creditar seguramente onze documentários, uma vez que seu nome encontra-se nos créditos iniciais das obras audiovisuais analisadas. São eles: O IPES é o seguinte, O que é o IPES?, Nordeste: Problema número 1, História de Um Maquinista, Deixem o Estudante Estudar, Uma Economia Estrangulada, Portos Paralíticos, Depende de Mim, Criando Homens Livres, Que é a Democracia? e O Brasil Precisa de Você. Entretanto, ela não foi a única produtora em ação. Este mesmo relatório aponta para um “contato experimental” com a empresa Produções Carlos Niemeyer Ltda., ou seja, o Canal 100. Segundo Werneck, a produtora já estaria filmando “um documentário sobre a Força Aérea Brasileira e é intenção encarregá-la de mais dois filmes, um sôbre a Marinha e outro, sôbre o Exército”222. No entanto, entre os documentários disponíveis para análise não há nenhum que aborde especificamente a FAB ou mesmo o Exército, apenas a

221 Anexo 07. Carta aos Contribuintes. São Paulo, 21 jul. 1962, p. 298. 222 Idem. 112

Marinha sob o título de A Vida Marítima, produzido pelo Canal 100. Contudo, em Reunião do Comitê Diretor, há uma referência clara sobre a possibilidade de acordo para o financiamento de tais documentários. Em ata, o registro diz que:

O dr. Luiz Cassio Werneck deseja saber se poderá encomendar ao Canal 100 os documentários sobre Marinha de Guerra e o Exército, já orçados em Cr$ 1.700,00 a serem pagos num prazo de 4 a 5 meses, poderá ainda propor um pagamento parcelado num prazo de 10 meses.223

Segundo Denise Assis, o Canal 100 e a Jean Manzon Films chegaram a realizar conjuntamente algumas produções. Apesar de Carlos Niemeyer negar a contribuição de filmes para o IPES, ele indica a possibilidade de alguns realizados por Jean Manzon levarem a assinatura de sua empresa, pois foram sócios. (ASSIS, 2001, p. 25) Entretanto, a informação que confirme a produção dos filmes acima mencionados não foi encontrada nos documentos do IPES. Neste momento, é possível apenas garantir que o filme A Boa Empresa pode ser creditados ao Canal 100, pois na cartela dos créditos no filme seu nome está presente. Já os documentários Conceito de Empresa e A Vida Marítima não possuem cartelas de créditos e durante a pesquisa aos registros não foi possível encontrar nenhuma ligação com a empresa produtora. Outra referência que indica a produção de mais obras está no registro da Comissão Diretora, em novembro de 1962, que celebrava um “total de onze (filmes), incluindo-se dois de Jorge Bhering de Matos”224, então presidente da Associação Comercial do Rio de Janeiro. Em sua pesquisa, Dreifuss ainda revela que o CONCLAP (Conselho das Classes Produtoras) também produziu alguns documentários e a organização Rearmamento Moral, sediada nos Estados Unidos, com a qual o complexo IPES/IBAD mantinha um estreito relacionamento, forneceu vários outros. E as contribuições internacionais continuaram inclusive após a tomada do poder. O Concil for Latin America, após o golpe de 64, patrocinou alguns filmes, entre eles, o conhecido “Sermão de Campinas” (que foi assistido por cerca de 13 mil brasileiros), “O Preço da Vida” (que documentava as contribuições da indústria farmacêutica internacional em prol da saúde e do bem-estar), “Terra Proibida” (que mostrava como o capital privado transformava a seca

223 Anexo 04, Reunião Comitê Diretor e Executivo, 20 nov. 1962, p. 284. 224 FUNDO INSTITUTO DE PESQUISA E ESTUDOS SOCIAIS. Arquivo Nacional/ CODES. Código QL. Comissão Diretora de 23 nov. 1962. 113

e árida região nordeste do Brasil em um abundante pomar) e “Esta é a Minha Vida” (a estória do progresso alcançado por um trabalhador sob a égide da empresa privada). (DREIFUSS, 2008, p. 291)

As produtoras Persin e Perin Produções e Denison Propaganda também são citadas no arquivo ipesiano. No livro caixa das atividades realizadas entre os anos de 1962 e 1963, há lançamentos de pagamentos pela realização de filmes de propaganda. De fato, é difícil precisar toda a produção. O conflito de informações a partir das observações das atas ipesianas é grande. E se intensifica na medida em que os documentários também tinham seus nomes aleatoriamente citados. Há que considerar, inclusive, que os títulos originais sofriam diversas alterações.225 Responsabilizavam-se pelas operações Luis Cássio dos Santos Werneck, no Rio de Janeiro, e Flávio Galvão, em São Paulo. Os registros das atas conferem a eles a função de responder pelo IPES às empresas contratadas na produção dos curtas, desde os assuntos de pagamento até o acompanhamento das produções. Contudo, não havia plena autonomia para decisões mais pontuais, como a aprovação dos filmes. Em reunião do Comitê Diretor, em agosto de 1962, há a notificação de que “6 filmes preparados por São Paulo estão prontos. Assistir amanhã no 'studio' de Jean Manzon. Hora a ser marcada por Jean Manzon. A melhor hora seria 18 horas. Falar também com Jorge Bhering de Mattos para saber se há semelhança com filmes da Conclap”226. Os documentários não eram necessariamente aprovados em primeira instância. Os filmes poderiam sofrer mudanças e adaptações de acordo com as considerações apontadas pelo Comitê Diretor, como foi o caso de Portos Paralíticos e Economia Estrangulada, que custaram ao IPES Cr$ 750 mil cruzeiros extras227. Há

225 “O IPES de São Paulo, por iniciativa própria, produziu alguns filmes, assim como uma série sobre problemas brasileiros, tais como „Reforma Eleitoral‟, „Reforma Agrária‟, „Estatismo‟ e „Livre Empresa‟. FUNDO INSTITUTO DE PESQUISA E ESTUDOS SOCIAIS. Arquivo Nacional/ CODES. Código QL. Comissão Diretora, 7 ago. 1962. Nenhum desses títulos corresponde às obras encontradas. Fica em aberto a discussão sobre se tais títulos remetem a novas obras, perdidas, ou se tiveram seus nomes alterados posteriormente para os filmes conhecidos. 226 FUNDO INSTITUTO DE PESQUISA E ESTUDOS SOCIAIS. Arquivo Nacional/ CODES. Código QL. Comitê Diretor. Rio de Janeiro, 07 ago. 1962. 227 FUNDO INSTITUTO DE PESQUISA E ESTUDOS SOCIAIS. Arquivo Nacional/ CODES. Código QL. Reunião Geral. São Paulo, 16 out. 1962. 114 também outra referência, realizada pelo Comitê Executivo paulistano, sobre modificações no filme Conceito de Empresa228. Nos registros pesquisados também há referências sobre aprovações de roteiro que demonstram novamente a intervenção direta do instituto. Relata Werneck: “Quanto aos filmes sôbre as n/F.F.A.A., os respectivos roteiros virão antes ao Rio para serem revistos”229. De maneira menos contundente, mas que reflete a mão firme ipesiana na produção dos documentários, Jean Manzon em carta esclarece: “Deixamos claro que antes de realizarmos os filmes, iremos recorrer à competência do IPES que, através de seus estudos orientará o rumo de nossos trabalhos”230. Assim, de acordo com a orientação do contratante, Manzon deveria adaptar sua narrativa com o objetivo de acrescentar, ao modelo de idealização estética, um inimigo que ameaçasse o projeto de nação. Se o IPES tinha a expectativa de gerar uma oposição ao nacional reformismo em prol da iniciativa privada, através da disseminação de seus complementos nacionais, a Jean Manzon Films era mais do que indicada. Era sua parceira ideal. Os documentários foram exibidos em um “sistema de cadeia”, por acordo feito com as empresas de distribuição e donos de cinemas ligados a Jean Manzon Films que garantia ao instituto:

(...) gratuitamente e com exclusividade a exibição dos documentários em todo o Brasil, pela rêde Luis Severiano Ribeiro Jr., U.C. B, e Atlântida, que atinge em média 15 milhões de expectadores, mediante o fornecimento, por V.Sas. de 19 (dezenove) cópias em 35mm231.

Desde 1956, a parceria entre o grupo Severiano Ribeiro232 e a Jean Manzon Films já se revelava poderosa. Manzon produzira complementos que o decreto de

228 FUNDO INSTITUTO DE PESQUISA E ESTUDOS SOCIAIS. Arquivo Nacional/ CODES. Código QL. Comitê Executivo. São Paulo, 4 abr. 1963. 229 FUNDO INSTITUTO DE PESQUISA E ESTUDOS SOCIAIS. Arquivo Nacional/ CODES. Código QL. Comissão Diretora de 23 nov. 1962. 230 Anexo 06, Carta ao IPES. São Paulo, 3 fev. 1962, p. 291. Há também outra referência que corrobora esta dinâmica. Em entrevista ao pesquisador Marcos Corrêa (2005, p. 34), em dezembro de 2004, Domício da Gama, ex-funcionário do IPES, esclareceu que Jean Manzon ficava a cargo da confecção inicial do roteiro e montagem. 231 Idem. Grifo do autor. 232 Em 1947, Luís Severiano Ribeiro Júnior adquiriu a produtora Companhia Cinematográfica Atlântida e, posteriormente, a distribuidora União Cinematográfica Brasileira (UCB). Tornou-se, assim, a maior rede de cinemas de todo o país. 115

1932 obrigava233, encomendados por empresas para sua publicidade234, e Luis Severiano garantia sua circulação. Mesmo com a produção regular de um cinejornal, a Atlântida de Luís Severiano “não possuía os contatos empresariais de Manzon e nem a qualidade técnica oferecida por seus filmes. Por outro lado, apesar de influente, o cineasta sozinho não conseguiria exibir as propagandas em uma cadeia tão poderosa como a Severiano Ribeiro” (CARDEDUTO, 2008, p. 69) Assim, ao negociar a produção de um curta com Jean Manzon, o empresário, neste caso o IPES, tinha a certeza de que seu filme estaria em mãos da melhor publicidade na maior rede de cinemas do Brasil. Periodicamente o IPES recebia informes que relatavam os circuitos de exibição, os filmes exibidos e os respectivos dias apresentados, assim como a quantidade de cópias disponíveis para deixá-los “no ar”235. As cópias eram orçadas separadas da produção dos filmes e da garantia de distribuição gratuita. O acordo inicial da Jean Manzon Films solicitava a verba de Cr$ 18.000,00 (dezoito mil cruzeiros) para cada cópia em 35mm236.

233 Sobre as circunstâncias e especificidades do decreto, informações já desenvolvidas no capítulo 1 desta dissertação. 234 Um exemplo interessante é o curta Como nasceu o primeiro carro no Brasil (1962), produzido para a Willys Overland. A ausência de rigidez e de controle por parte do Estado acabava por permitir a inclusão de publicidades pagas pelo setor privado entre os complementos nacionais de caráter educacional. A denúncia de que o empresário estaria deturpando a lei protecionista que torna obrigatória a exibição de complementos nacionais ao inserir “mais de 80% de matéria paga” foi alvo de denúncias. (Manzonbrás. Correio da Manhã, Rio de Janeiro, 15 ago. 1957). Mas, sem dúvida, nenhum processo ou investigação mais incisiva foi levada adiante. 235 Dois relatórios foram localizados. Sobre o filme Depende de Mim, a Jean Manzon Films revela que foram distribuídas 110 cópias nos seguintes circuitos: “Circuito José Luiz Andrade (Santos, Campinas, Piracicaba, Jundiaí, Araras, Limeira, Americana, Mogi das Cruzes, Catanduva, Ribeirão Preto, e ainda com penetração até Mato Grosso e Goiás); Circuito Emilio Peduti (Botucatu, Bauru, Londrina, Maringá, Apucarana e demais praças do norte do Paraná); Circuito de Curitiba (Cinemas Avenida, Rivoli, Ritz, Marabá, Lido, Palácio, Opera, Arlequim, São João, Marajó, Flórida, Glória, Guarani etc.); Circuito Verdi na Bahia (neste não há menção dos nomes dos cinemas, mas sugere 10 cópias); Circuito Serrador e Verdi São Paulo (30 cópias); Circuito Livio Bruni (Cinemas Pigalle e Windsor) e Cinema Metro (1 cópia)”. Em outro relatório ao IPES, há a descrição de quatro documentários com suas respectivas datas e cidades de exibição. “Criando Homens Livres (Itu – Diversos, 23 e 24/dez; Capital – Califórnia, 24 a 26/dez; Salto de Itu – Diversos, 25 e 26/dez; Jundiai – Diversos, 27 a 31/dez; São Pedro – Paroquial, 30 e 31/dez e Itapetininga – Diversos, 30 e 31/dez). O IPES é o Seguinte (Itatiba – Avenida, 28 e 29/dez; Itapira – Rádio, 29 e 30/dez; Pinhal – Eden, 23 e 24/dez; Andradas – Risso, 27 e 28/dez e Ribeirão Pires – Brasil, 29 e 30/dez. Nordeste: Problema Número 1(Utinga – Diversos, 28 e 30/dez; P. das Nações – Raf-Roxy, 28 e 31/dez e Catanduva – Diversos, 24 e 25/dez) e História de um Maquinista (São Roque – São José, 23 e 24/dez; pedreira – Ipê, 27 e 30/dez e Capital – D. Bosco, 27 e 30/dez)”. FUNDO INSTITUTO DE PESQUISA E ESTUDOS SOCIAIS. Arquivo Nacional/ CODES. Código QL. Distribuição do Filme Depende de Mim, s/d; FUNDO INSTITUTO DE PESQUISA E ESTUDOS SOCIAIS. Arquivo Nacional/ CODES. Código QL. Carta ao IPES. São Paulo, 22 dez. 1962, respectivamente. 236 Anexo 06, Carta ao IPES. São Paulo, 3 fev. 1962, p. 291. 116

A decisão pela opção e quantidade de cópias ficava a cargo do IPES. Percebe-se nos registros a urgência em “disseminá-los para formar a opinião pública”. Werneck acreditava que a vida útil de um filme era de 18 meses, tempo para atingir todo o território nacional. Trabalhava com a proposta de um esforço máximo de projeção e distribuição237. A Jean Manzon sabia desta necessidade e também propunha outros circuitos de exibição.

No intuito, porém, de melhor servir aos interêsses de V.Sas., informamo- lhes que o referido documentário também poderá ser exibido em mais 30 (trinta cinemas) desta Capital (Emprêsas Sul, Paulista e Serrador). Essa exibição na Capital [São Paulo] poderá ser feita de uma maneira maciça e completada em apenas duas semanas com grande impacto junto ao público. Para este circuito complementar, incluindo-se tôdas as despêsas necessárias será cobrado a importância de Cr$ 630.000,00 (seiscentos e trinta mil cruzeiros) o qual anexamos o recibo correspondente, para processamento.238

Assim como as despesas de publicação de livros, distribuição de panfletos e as demais atividades que integravam o Grupo de Publicação e Editorial (GPE), credita-se que grande parte do capital para o pagamento dos complementos vinha do apoio dos contribuintes ipesianos. Contudo, este repasse não era direto. Como dito no capítulo anterior, o IPES foi alvo de uma investigação principalmente em função das altas cifras movimentadas para manter a estrutura de seu trabalho. Nesta pesquisa, não vamos nos ater ao repasse de verba para os pagamentos, o que requereria uma investigação de fôlego nos livros caixas para estabelecer conexões seguras.239

237 Há momentos em que tal dedicação se intensificava ainda mais, como às vésperas do plebiscito de 1963. FUNDO INSTITUTO DE PESQUISA E ESTUDOS SOCIAIS. Arquivo Nacional/ CODES. Código QL. Comissão Diretora, 23 nov. 1962. 238 FUNDO INSTITUTO DE PESQUISA E ESTUDOS SOCIAIS. Arquivo Nacional/ CODES. Código QL. Carta ao IPES. Rio de Janeiro, 9 set. 1963. 239 Contudo, na leitura dos documentos no Arquivo Nacional, há duas informações interessantes que merecem destaque uma vez que sugerem a estreita relação do IPES com a iniciativa privada e com certas instituições públicas abertas à sua causa. A primeira diz respeito à solicitação da diretoria para que “Werneck [Luiz Cassio dos Santos Werneck, Secretário Comitê Executivo/ SP) se ponha em contato com David Monteiro sobre a possibilidade das empresas de publicidade patrocinar o filme [Conceito de empresa]”. A segunda revela a justificativa de solicitação de um novo orçamento a Jean Manzon Films “dependendo de verba especial”. Diz a ata: “João Baptista [João Baptista Figueiredo, Diretor do IPES] já conversou com o Secretário da Fazenda que está interessado no que versa sobre matéria tributária. A Secretaria tem uma verba para a publicidade e esclarecimento da população. Assim que houver um roteiro do filme, o secretário está interessado em voltar a conversar e talvez fazerem êles o filme”. Grifos nossos. FUNDO INSTITUTO DE PESQUISA E ESTUDOS SOCIAIS. Arquivo Nacional/ CODES. Código QL. Reunião Geral, 23 set. 1962 e FUNDO 117

Em contrapartida, é possível verificar a sugestão de Jean Manzon ao informar o valor de produção dos complementos. A proposta era estabelecer um vínculo com o novo cliente, com o objetivo de contemplar todos os complementos sugeridos. Neste sentido, Jean Manzon considera que:

Pela natureza e diversidade dos temas, pelas exigências técnicas e as responsabilidades artísticas que os mesmos envolvem, torna-se impossível para nós calcular o custo exato de cada filme proposto. Pelo exame realizado, chegamos à conclusão de que o preço médio de produção para cada filme será de Cr$ 2.000.000,00 (dois milhões de cruzeiros) sendo que alguns exigirão menores e outros maiores despesas.240

A concentração da produção dos complementos na empresa de Jean Manzon garantia uma única negociação que contemplava desde a encomenda até a distribuição. Sem dúvida, um conjunto de vantagens que facilitaria os propósitos ipesianos. A ordem era agir imediatamente. Em carta, Werneck já indicava, em dezembro de 1961: “Desejamos obter uma garantia de exibição imediata dos filmes (...) tendo em vista que VV.SS. já possuem, em seus arquivos, todos os elementos necessários”.241 Em poucos meses, o IPES já colocava em cartaz três títulos. Entre abril e maio de 1962, uma crítica severa ao modo como o governo geria o comércio marítimo já poderia ser vista em Portos Paralisados, A Vida Marítima e Uma Economia Estrangulada.

A exibição

Além de contar com a eficiente distribuição de Jean Manzon no circuito nacional, o IPES dedicou-se em otimizar seu alcance na tarefa de divulgá-los. Sendo assim, convocava-se a imprensa a apresentar em primeira mão os complementos que, em poucos dias, entrariam em cartaz. Em 31 de agosto de 1962, o jornal O

INSTITUTO DE PESQUISA E ESTUDOS SOCIAIS. Arquivo Nacional/ CODES. Código QL. Reunião Geral, 25 set. 1962, respectivamente. 240 Anexo 06, Carta ao IPES. São Paulo, 03 fev. 1962, p. 291. 241 Anexo 05, Carta a Jean Manzon Films, São Paulo, 14 dez. 1961, p. 287. 118

Estado de São Paulo registrava a pré-estreia de quatro documentários242 exclusivamente aos jornalistas.

Na cabina de projeção da Companhia Cinematográfica Jean Manzon, em sessão que o Instituto de Pesquisa e Estudos Sociais (IPÊS) organizou para um grupo de jornalistas, foram apresentados alguns dos curtas-metragens realizados para aquele Instituto pela equipe cinematográfica que funciona sob a orientação de Jean Manzon (...) Todos os quatro possuem tão evidentes méritos de realização e tal interesse, força e clareza na maneira pela qual tocam em alguns dos grandes problemas nacionais, que tornam mais do que justa a atenção que lhe dedicamos.

Outra estratégia executada pelo IPES, durante as primeiras semanas que os documentários entravam em cartaz, era a distribuição de ingressos aos associados e afins. Em 6 de fevereiro de 1963, o IPES pagou a quantia de Cr$ 9.900,00, equivalente a 55 ingressos, para que seus membros assistissem ao musical americano Flor de Lótus (1961), dirigido por Henry Coster, no cinema Rian.243 Dizia a carta-convite: “Nesta mesma sessão está programado um documentário de nossa produção, intitulado Portos Paralíticos. Para tal, estamos anexando à presente [Dona Gilda Ribeiro] dois ingressos para aquele cinema, válidos até o dia 17 de fevereiro”.244 O convite também levava um formulário sobre a percepção da reação do público. Os informantes deveriam preenchê-lo e encaminhá-lo ao IPES. Bem sucinto, além das informações básicas, como nome do filme, dia e local de exibição, a indicação era que escrevessem um comentário. Em 13 de outubro de 1962, escrevia o informante Luis Ramires sobre a produção Nordeste: Problema número 1: “As cenas mais chocantes de pobreza fez com que o expectador respirasse mais baixo e mais profundo”. Outro informante Geraldo Damasceno também registrava

242 São eles: O IPES é o Seguinte, História de um Maquinista, Nordeste: Problema Número 1 e Formando Homens Livres. Este último citado entende-se que deve trata-se do documentário Criando Homens Livres, título final presente na cartela da cópia analisada. FUNDO INSTITUTO DE PESQUISA E ESTUDOS SOCIAIS. Arquivo Nacional/ CODES. Código QL. Clipping, Recortes de Jornal. 243 FUNDO INSTITUTO DE PESQUISA E ESTUDOS SOCIAIS. Arquivo Nacional/ CODES. Código QL. Recibo de pagamento para exibição de Portos Paralíticos. Rio de Janeiro, 6 fev. 1963. 244 FUNDO INSTITUTO DE PESQUISA E ESTUDOS SOCIAIS. Arquivo Nacional/ CODES. Código QL. Carta-convite a Gilda Ribeiro. Rio de Janeiro, 7 fev. 1963. 119 suas impressões: “Sessão lotada. Houve uma certa reação de lástima quando focalizada a cena do enterro da criança. Causou mesmo forte impressão.”245 Apesar dos documentários ipesianos terem sido idealizados para serem apresentados nas sessões de cinema como complemento cinematográfico pautado pelo Decreto, eles também foram exibidos em outros locais. Além da instrução específica dos próprios quadros ipesianos, sua exibição se dava nas organizações subsidiárias e diretamente relacionadas aos associados, como a diretoria do Serviço Social da Indústria (SESI).246 Lugares tão exclusivos com o Monte Líbano e outros clubes sociais paulistas, o Lyons Club e a Escola de Polícia de São Paulo, também recebiam os documentários em suas sedes para exibição.247 Porém, a exibição dos documentários não visava apenas em atender às demandas mais próximas. Pelo contrário, havia um programa de exibição que se preocupava em otimizar sua veiculação. Em setembro de 1962, ficou acertado que Ricardo Cavalcanti de Albuquerque se encarregaria pessoalmente da exibição de fitas para a indústria, comércio e entidades diversas.248 Recomendava-se, inclusive, que os empresários associados comprassem cópias extras para que as produções pudessem circular mais livremente.249

Com o apoio de gerentes e proprietários, passavam-se filmes também aos trabalhadores nas fábricas localizadas nos centros industriais das grandes cidades. A fita principal era, geralmente, um faroeste americano, enxertada

245 Anexo 08. Relatório de exibição do documentário Nordeste: Problema Número 1. Cinema Palácio, 13 out. 1962, p. 301. 246 Nos registros das atas é possível notar a preocupação em otimizar a disseminação dos documentários por toda rede ipesiana. “João Baptista já falou com uma série de dirigentes de indústrias sobre as projeções. Vão dar resposta diretamente ao Werneck”. FUNDO INSTITUTO DE PESQUISA E ESTUDOS SOCIAIS. Arquivo Nacional/ CODES. Código QL. Reunião Geral, 11 set. 1962. 247 FUNDO INSTITUTO DE PESQUISA E ESTUDOS SOCIAIS. Arquivo Nacional/ CODES. Código QL. Reunião geral do IPES São Paulo, 25 set. 1962. 248 FUNDO INSTITUTO DE PESQUISA E ESTUDOS SOCIAIS. Arquivo Nacional/ CODES. Código QL. Reunião Geral, 09 out. 1962. 249 Relatório mostra a relação dos contribuintes na solicitação de 110 cópias dos filmes Depende de Mim e 17 cópias de Que é a Democracia?. Nesta relação, as empresas compradoras eventualmente identificadas com o nome dos respectivos proprietários são: Orquídea - Indústrias Químicas Reunidas S/A, Araripe Campos Rodrigues, Laboratório Torres S/A, Domingos Pires de Oliveira Dias, Jayme Torres, João Gonçalves, Serbemdix S/A, Rogério Giorgi, Rubens Maragliano, Cesaro Rivetti, Hermanogildo Martini, Álvaro Augusto Vidigal, Jockey Club de São Paulo, Indústrias Têxteis Calfat, Cia. de Negócios (CIE), Indiana Cia. de Seguros Gerais, Varguard Cia. de Seguros Gerais, Editora Abril, Cia. Imobiliária Parque da Mooca, Cerâmica São Caetano S/A, João Carlos Rodrigues. Sebrati S/A, Atílio Flosi e Willys-Overland do Brasil S/A. FUNDO INSTITUTO DE PESQUISA E ESTUDOS SOCIAIS. Arquivo Nacional/ CODES. Código QL. Reunião Geral, 30 out. 1962. 120

com um curta-metragem do IPES, que variava de um apelo para a harmonia social entre as classes a um comentário sobre a exploração dos estudantes com fins políticos. (DREIFUSS, 2008, p. 268)

Transitaram também em escritórios bancários, passando por salões de igrejas e inúmeras associações femininas, como a UCF e a CAMDE. Através da penetração do IPES nos grêmios estudantis, há registros de exibição nestes locais. Em reunião da Comissão Diretora, Luiz Cássio dos Santos Werneck comenta que “tem sido vaiados em alguns lugares, como na Faculdade de Medicina (SP) e aplaudidos em cinemas públicos.250 A televisão também os exibia, como era o caso do programa de atualidades populares de Silveira Sampaio.251 Colaborador ativo do instituto, também ajudou, como consultor, na escrita dos roteiros dos documentários ipesianos. Para tanto, foi necessário conseguir uma infraestrutura que atendesse inclusive às exigências para deslocamentos maiores. Ao observar as atas, é interessante notar que, aparte os encaminhamentos de produção dos documentários, os comentários para consolidar uma distribuição ampla eram recorrentes. Todos os esforços voltavam neste sentido.252 Idealizado por Oswaldo Tavares, Diretor do Grupo de Integração, o projeto de um „cinema ambulante‟ recebeu grandes contribuições financeiras para que saísse do papel. Mas a ideia de um cinema em deslocamento que visava adentrar nos mais longínquos lugares ou mesmo apresentar-se para um público específico vem de longe.

Nasceu talvez como decorrência do próprio cinema e se desenvolveu pelo mundo de várias formas com diferentes características. Certamente

250 FUNDO INSTITUTO DE PESQUISA E ESTUDOS SOCIAIS. Arquivo Nacional/ CODES. Código QL. Comissão Diretora, 23 nov. 1962. 251 Transmitido pela TV Paulista, o Programa Silveira Sampaio inaugurou o gênero talk-show na televisão brasileira e teve sua continuidade em programas apresentados por Ferreira Neto e Jô Soares, ambos, aliás, antigos colaboradores de Silveira Sampaio. Iniciava com uma crítica irônica sobre fatos políticos e econômicos. No decorrer do comentário, o apresentador era interrompido por um telefonema no qual ele simulava estar falando com o político comentado ou com um amigo que lhe contava mais novidades sobre o assunto e com quem trocava informações. Após essa crônica- editorial, o apresentador trazia os convidados para entrevistas, pessoas de qualquer segmento social: políticos, artistas, religiosos, esportistas, educadores e outros. A referência da exibição dos documentários no programa pode ser verificada na ata de reunião do Comitê Diretor, São Paulo, 8 de janeiro de 1963. Já sobre a atuação de Silveira Sampaio nas demandas dos roteiros, há registros nas reuniões do Comitê Executivo em 28 de agosto de 1962 e 8 de janeiro de 1963. 252 Sobre a devolução de um jipe, é sugerido a Flavio Galvão que “seja aproveitado no setôr de projeção de filmes”. FUNDO INSTITUTO DE PESQUISA E ESTUDOS SOCIAIS. Arquivo Nacional/ CODES. Código QL. Reunião Geral, 16 out. 1962. 121

contaminada pelas práticas ciganas e circenses do constante deslocamento. O cine-trem do grupo do cineasta Dziga Vertov, por exemplo, se deslocava em plena revolução russa levando o „cinema verdade‟ para as populações do campo. (CHAVAGNAC, 1982, p. 15)

No Brasil, a ideia de ir ao encontro de outros espectadores – fora do contexto da sala escura – também não era uma novidade. Há registros de que no Nordeste brasileiro dos anos 1920, circulou pelo sertão o pioneiro Cego Aderaldo, do repentista Aderaldo Ferreira de Araújo, com a novidade do seu cinema-mascate.253 Em reunião geral de outubro de 1962, João Baptista Figueiredo sugere e compra de um ônibus “que, com carroceria especial, serviria para esse trabalho de divulgação de filmes e realizações do IPES, como posto volante, nesta Capital e no interior, possivelmente”.254 Com aprovação total dos integrantes da reunião, registrou-se a urgência de encaminhamento para concretizar a proposta. Apoio necessário para os equipamentos de projeção, bem como montadoras que ajudavam no transporte e na logística, não faltou. O cinema ambulante ipesiano recebeu significativas contribuições para que saísse do papel. Em outra reunião, dois meses após a proposta, João Baptista Figueiredo lembrou sobre a verba que foi prometida ao IPES para a aquisição de um ônibus cine-biblioteca. “A Mercedes-Benz deverá ser consultada sôbre a possibilidade de fazer doação de chassis ou cobrar apenas o prêço de custo. A firma CAIO se comprometeu de fazer a carroceria, faltando apenas o equipamento”.255 Era fortemente recomendado que todas as empresas associadas contribuíssem para otimizar o empenho do IPES na divulgação de suas convicções políticas. A Mesbla S/A., por exemplo, ajudou com a aquisição de equipamentos de projeção e outras exigências.256 Apesar do esforço em receber diretamente os materiais necessários para colocar na estrada o cinema- ambulante, o IPES também utilizava seu caixa para adquiri-los.257 Assim, o IPES montava sessões de cinema em caminhões abertos e ônibus com chassis especiais,

253 Segundo CHAVAGNAC (1982), no Brasil a prática do cinema itinerante ainda é pouco documentada e estudada. Há registros de experiências mais recentes a partir dos anos 1970. 254 FUNDO INSTITUTO DE PESQUISA E ESTUDOS SOCIAIS. Arquivo Nacional/ CODES. Código QL. Reunião Geral, 09 out. 1962. 255 Anexo 04, Reunião Comitê Diretor e Executivo, 20 nov. 1962, p. 284. 256 IPES CE e Ch. Gr. São Paulo, 8 de janeiro de 1963. (DREIFUSS, 2008, p. 268) 257 Sobre a compra do projetor de cinema no valor de Cr$ 280 mil. FUNDO INSTITUTO DE PESQUISA E ESTUDOS SOCIAIS. Arquivo Nacional/ CODES. Código QL. Comitê Executivo, 29 out. 1962. 122 adentrando não só o interior, mas também a regiões mais carentes. E as sessões eram gratuitas. Ao considerar que as imposições externas são determinantes na tentativa de “compreender como os textos estão sendo construídos” (ODIN, 2005, p. 32), é fundamental notar a pressão destas determinações. Como vimos, as instâncias de produção, distribuição e exibição localizam os documentários como complementos nacionais dentro de uma tradição audiovisual específica. Isto é, dentro de uma linguagem que levava os filmes a parecer obras jornalísticas, objetivas, legitimadas pela função social que cumpriam. A questão gira em torno do valor do filme como verdade. O texto (entendido como filme) torna-se documento, prova de autenticidade. Não se trata de determinar o sentido do filme, mas reconhecer sua força de sugestão por meio das imposições de contexto. ”Notemos que nada obriga o público a seguir as indicações que lhe foram dadas pelo filme. No que diz respeito à escolha do(s) modos(s) de produção de sentido, o filme não tem muito peso diante das imposições de contexto.” (ODIN, 2005, p. 37) Na tentativa de deslocar o estudo da recepção de efeitos de sentido e reações para buscar sua investigação nas práticas audiovisuais, Martín-Barbero também é enfático ao considerar a comunicação a partir de seus usos. Para o pesquisador, o lugar onde “se liga a tomada” é determinante na mediação. Mesmo que a tradição audiovisual sugerisse, como vimos, uma leitura documentarizante, é a partir de seu uso que podemos enfatizar suas implicações. Há uma vivência cultural que impera nesta relação. Seja no cinema, nos salões de igrejas, nas reuniões de empresários, nas praças públicas, nos galpões das fábricas, nos grêmios estudantis, nos encontros de mulheres, são as competências culturais que nos fazem refletir que o uso não está unicamente relacionado à quantidade de vezes que determinado público é exposto a tais documentários, mas ao significado social desta relação. E este sim está relacionado com o local e as instruções dadas por ele em embate com o público que o recebe. Martín-Barbero atribui às competências culturais (que reúnem distintas modalidades de saber) uma potência que nos torna únicos e, ao mesmo tempo, universais. “Competência que vive na memória – narrativa gestual, auditiva – e também nos imaginários que alimentam o sujeito social”. (2008, p. 303) Certamente,

123 de um mesmo filme-projeção258 nascem diferentes filmes-textos, conforme os diversos públicos aos quais é exibido. A semiopragmática entende que um público é, em primeiro lugar, uma comunidade de fazer. “Chamo de público um conjunto de indivíduos reunidos pela construção de um sistema de modos de produção de sentido (isto é, um programa de produção textual)”. (ODIN, 2005, p. 37, grifo do autor) Sendo assim, ao localizar os fatores externos como parte importante da construção de um sistema que sugere o modo documentarizante, outra referência que merece atenção é observar a concentração de sua produção nas mãos de um nome. Além da estrutura de produção, exibição e distribuição que a Jean Manzon Films oferecia ao IPES, haveria outros motivos em torná-lo seu principal fornecedor? Talvez, ao investigar sua participação na composição dos documentários ipesianos poderemos, posteriormente, encontrar o que de específico em sua estrutura produtiva deixa vestígios nos filmes.

A sintaxe oficial

Fotógrafo francês radicado no Brasil, Jean Manzon já havia conquistado seu espaço no cenário brasileiro pelos idos dos anos 1960. Em seu currículo contabilizava a eficiente contribuição durante o governo da ditadura de Getúlio Vargas, quando trabalhou como diretor de fotografia e cinema no DIP. Colaborou com as revistas ilustradas dos Diários Associados e, especialmente, com a revista O Cruzeiro (1943-1952), ao realizar uma série de reportagens que introduziram no país as investigações de ensaio fotográfico. Em 1952, funda a empresa Jean Manzon Films; que depois se tornaria Jean Manzon Produções Cinematográficas, produzindo, ao longo de sua vida, cerca de 900 documentários259. Mas foi a partir da segunda metade dos anos 1950 que ganhou projeção nacional, quando passou a produzir documentários em torno do projeto

258 Em inglês, Image-Event. Odin (2005, p. 39) atribui esta formulação a Sol Worth. 259 Atualmente, o acervo pertence à empresa Cepar Cultural. Em 2007, o projeto Jean Manzon: Memórias do Brasil conseguiu restaurar grande parte de sua obra que, agora está acessível para consulta. Disponível em . Acessado em 02 fev. 2012. 124 desenvolvimentista da gestão de Juscelino Kubitschek. Tornou-se, não só o porta- voz cinematográfico da construção e inauguração de Brasília, mas também de um modelo de nação que mostrava grande simpatia pelo desenvolvimento industrial nacional. Segundo Cardenuto, a imprensa ajudou a criar e a difundir a imagem de um cineasta bandeirante, estrangeiro a adotar nossa pátria e a ser celebrado como o narrador das belezas naturais e do progresso brasileiro. (2008, p. 66) O discurso ufanista e otimista de seus filmes contribuiu para que os empresários vissem em Manzon a tradução de um modelo de país que tanto buscavam.260 No início dos anos 1960, transfere sua produtora do Rio de Janeiro para São Paulo, com o objetivo de ampliar seus negócios com o empresariado industrial. Sua consagração pela qualidade e refinamento técnico era o cartão de visitas para aqueles que buscavam relacionar à sua marca a beleza estética de seus filmes. Foi neste sentido que, associado à falta de fiscalização, o Decreto da obrigatoriedade da produção e exibição de filmes nacionais proporcionou, no mínimo, uma “discutível” brecha em sua aplicação. Manzon atribuía às publicidades encomendadas o carácter de complemento nacional. Retirava-se o nome da empresa dos créditos e oferecia um filme seguindo uma proposta educativa. Orientado pela tradição do modo expositivo, os documentários seguem uma lógica informativa transmitida verbalmente. Em uma inversão da ênfase tradicional do cinema, as imagens desempenham papel secundário na montagem (NICHOLS, 2005, p. 143). Neste sentido, a predominância do verbal261 enfatiza a impressão de objetividade e argumento bem embasado.

260 “A responsabilidade de mostrar os aspectos negativos deve ficar com os que querem destruir a sociedade, gente que por interesses políticos ou porque já nasceram assim – vendo tudo preto – só tem sentimentos destrutivos. Mas eu não sou assim, temos que ter esperança (…) sou a favor da livre iniciativa e posso argumentar que os regimes brasileiros nunca me prejudicaram. Fui amigo pessoal de todos os presidentes e nunca sofri nem no tempo de Getúlio Vargas”. (Profissão Otimista, Folha de São Paulo, 17 nov. 1977 apud CARDENUTO, 2008, p. 67) 261 Esta predominância também se fará presente na televisão. Uma reflexão interessante nos mostra Martín-Barbero (2008) sobre a atuação de tais práticas audiovisuais na América Latina. “Durante muito tempo se criticou a predominância do verbal na televisão latino-americanas como a melhor prova de seu subdesenvolvimento: era o rádio com imagens. Mas hoje, quando o desenvolvimento técnico da televisão em boa parte de nossos países torna impossível essa explicação, começamos a suspeitar de que a predominância do verbal na televisão se inscreve na necessidade de subordinar a lógica visual à lógica do contato, dado que é esta que articula o discurso televisivo sobre o eixo da relação estreita e a preeminência da palavra em culturas tão fortemente orais”. (2008, p. 296, grifo do autor) 125

Contudo, a qualidade estética captada, para os padrões nacionais da época, em composição com a habilidade dos enquadramentos fotográficos de Jean Manzon, era incontestável. E se tornou sinônimo da “marca Jean Manzon”. O jogo de luz e sombra nos enquadramentos de câmera proporcionava belíssimas imagens de um Brasil a ser desbravado. Seus trabalhos se destacavam por se aproximar da qualidade dos filmes estrangeiros. Manzon concretizava a imagem desejável de um país em pleno desenvolvimento. O produtor de propagandas privadas assinava peças afinadas a um discurso de exaltação nacional ao elogiar o empresário como o responsável pelo desenvolvimento brasileiro. Em sua investigação Cardenuto comenta que:

Nesses filmes, realizados principalmente da década de 60 em diante, a publicidade em torno de um produto vinha acompanhada de uma projeção ideológica na qual a iniciativa privada tornava-se a articuladora de um pacto social em benefício da classe popular. (2008, p. 71)

Sem dúvida, ao idealizar uma face heroica para a elite industrial, os documentários revelam o esforço na tentativa de legitimá-la socialmente como sujeito histórico. Mais do que investir em seus próprios interesses, a imagem da elite econômica nestas propagandas era representada assumindo um projeto nacional. Se o Estado não oferecia garantias econômicas, políticas ou sociais, a iniciativa privada assumia a responsabilidade da condução do país. “É como se o espectador fosse convidado a experimentar o futuro ideal dos liberais, no qual a harmonia social se concretizaria a partir do compromisso entre a elite econômica e a classe popular”, sugere Cardenuto (2008, p. 71). Não é à toa que o IPES se sentiu confortável em otimizar seus esforços com a contratação da Jean Manzon Films. Conhecido entre os empresários e de fácil acesso às instâncias do poder, a exemplo de Getúlio Vargas e Juscelino Kubitschek, Manzon materializava o “desejo de uma nação”. Mas daí a oferecer uma condução livre na criação dos complementos, era uma outra história. Afinal, o discurso dos documentários precisa de uma dose de discórdia262. Era preciso deixar evidente que

262 Em geral, as produções de Jean Manzon revelavam um Brasil em equilíbrio e em constante progresso. Tanto no período de Getúlio Vargas como no de Juscelino Kubistchek, o país era destacado sempre no trilho certo das conquistas e do desenvolvimento. O futuro da nação era visto com confiança e consequência natural dos esforços do governo. Neste sentido, não havia 126 o momento era de crise e não havia consenso estabelecido entre classes rumo ao tão sonhado progresso do país. No esforço de instaurar a desordem evidenciada pelo perigo comunista, Manzon deveria encaminhar sua narrativa contra um inimigo que ameaçasse o projeto de nação.263 Para Louzeiro, “o IPES tinha em Jean Manzon mais do que um aliado: era seu fiel seguidor” (2001, p. 31). Em sua pesquisa, Corrêa também atribui ao cineasta este caráter:

Manzon foi o que poderíamos considerar o „publicitário‟ das ideias defendidas pelo Instituto. Desse modo, não compreenderemos o discurso do IPÊS e o discurso de Jean Manzon em separado, mas sim a partir de uma simbiose impossível de ser discernida dada a convergência do pensamento de ambos. (2005, p.03)

O IPES sabia que ele atenderia seus propósitos, mas considerá-lo como seguidor do compromisso pautado pela Declaração de Princípios264 do instituto seria demasiado. Um episódio revelador nos leva a contrapor a tendência em considerar que Jean Manzon incorporava pessoalmente as orientações do IPES. Após o plebiscito de 1963, que rendeu a João Goulart a garantia de continuar exercendo o presidencialismo e comandando a nação, foi encomendado a Jean Manzon, com financiamento da Casa Civil da Presidência da República, o documentário Depende de Nós. Uma evidente resposta ao IPES que, às vésperas das eleições, em campanha, distribuiu em todo o circuito nacional o complemento Depende de Mim, também produzido por ele. “Manzon transferiu seu recorrente pacto, entre trabalhadores e empresários, para as mãos do Estado, divulgando as promessas do governo em promover a harmonia social e o desenvolvimento da nação. (CARNEDUTO, 2008, p. 74)

obstáculos a vencer. Exceto aqueles mediados pela “natureza exuberante de nossas florestas” que dificultavam o caminho das estradas e as doenças nos povos amazonenses causada pela malária. No filme, A Malária no Inferno Verde (Jean Manzon/ 1954), por exemplo, diz o locutor: “Para conquistar a Amazônia é preciso saneá-la. Ao lado do engenheiro que traçará as cidades, deve marchar o médico para as defender contra as doenças”. Disponível em . Acessado em 22 fev. 2012. 263 Como vimos, a presença do Comitê Diretor no direcionamento dos filmes era recorrente. Tanto na leitura dos roteiros, submetidos à aprovação, mas também nas solicitações de alterações na montagem e até mesmo regravações. 264 Discutimos o conteúdo da Declaração de Princípios, assim como da Definição de Atitude, no capítulo 1. 127

Mergulhado em um discurso em defesa da democracia, ambos os documentários se utilizaram do mesmo modelo, da mesma estética audiovisual. Jean Manzon aplicou a mesma fórmula para ideologias que, menos de um ano mais tarde, travariam um embate que culminou no golpe militar. Certamente este episódio não diminui a contribuição de Jean Manzon na materialização dos ideais ipesianos com a prática do “complemento-propaganda” e seu alcance nacional. Na verdade, este fato nos faz pensar que, apesar desta aparente ambiguidade, o cinema construiu seu discurso com base na continuidade de um imaginário, com memória narrativa, cênica e iconográfica pautadas pela tradição audiovisual, na proposta de uma imaginária sensibilidade nacional. Talvez esta fosse a sintaxe oficial que contaminava ambos os lados.

2.2.2 Os Sinais: quanto aos fatores internos

Buscaremos aqui as características presentes nos filmes ipesianos que possam instruir a relação com o público. Trata-se de investigar os sinais em sua estruturação que sugerem uma leitura documentarizante. Quais são eles? De que modo se manifestam nos filmes? Como contribuem para orientar o espectador ao sugerir seu lugar? Percebe-se a necessidade de buscar a intencionalidade materializada nos documentários ao evidenciar os aspectos comuns entre eles.

O peso da assinatura

O primeiro aspecto que nos chama a atenção é o uso recorrente de duas cartelas nos complementos cinematográficos encomendados pelo IPES. Na abertura dos documentários, após a apresentação dos créditos de produção surgem na tela ora a imagem da Carta Encíclica Mater et Magistra ora a cartela FILME REALIZADO SOB A DIREÇÃO DO INSTITUTO DE PESQUISAS E ESTUDOS SOCIAIS (IPÊS),

128 ou até mesmo as duas referências associadas.265 Neste sentido, vamos nos ater à função que elas cumprem no momento de apresentação dos documentários. Mesmo que indireta, a indicação de que os filmes foram pautados sob a égide da Carta Encíclica Mater et Magistra determina o lugar do complemento. O documento pontífice sugere um posicionamento político que valida uma condução social. “A encíclica confere um grande impulso ao compromisso social ao apontar os trabalhadores e os leigos, em geral, como protagonistas da ação pela transformação das estruturas injustas na esfera econômica e social”, comenta o historiador José Oscar Beozzo.266 Trata-se de considerar que a construção de um “mundo mais justo” estava condicionada à participação de “todos”, sobretudo das instituições civis nacionais e internacionais. Exigia-se respeito aos patrões dos trabalhadores que estavam em busca do progresso frente à promessa da igualdade.267 Não é à toa que a Mater et Magistra, que em português significa Mãe e Mestra, é considerada um marco importante da Doutrina Social da Igreja. A leitura dos “novos sinais dos tempos” revela o posicionamento da igreja frente aos embates da época. Mater et Magistra recomenda que:

Não se pode admitir de maneira alguma que os católicos adiram ao socialismo moderado: tanto porque ele foi construído sobre uma concepção da vida fechada no temporal, com o bem-estar como objetivo supremo da sociedade; como porque fomenta uma organização social da vida comum tendo a produção como fim único, não sem grave prejuízo da liberdade humana; como ainda porque lhe falta todo o princípio de verdadeira autoridade social.268

265 Na análise dos filmes foi possível verificar que ambas as referências estão presentes em Criando Homens Livres, Nordeste: Problema Número 1, História de um Maquinista e Deixem o Estudante Estudar. Em O IPES é o Seguinte, aparece apenas a referência da Carta Encíclica Mater et Magistra e em Conceito de empresa, O Brasil Precisa de Você, Uma Economia Estrangulada, Portos Paralíticos e A Vida Marítima nota-se exclusivamente a cartela que indica que os filmes foram realizados sob a direção do IPES. Já os documentários O que é o IPES, A Boa Empresa, Que é a Democracia? e Depende de Mim não apresentam nenhuma menção, pelo menos, nas cópias analisadas. 266 Para mais detalhes, ver entrevista na íntegra concedida à revista digital do Instituto Humanitas Unisinos. Disponível em . Acessado em 12 jan. 2012. 267 É interessante ressaltar que, após a apresentação pública da encíclica, em 15 de maio de 1961, instituições internacionais como a OIT (Organização Internacional do Trabalho) e a Organização das Nações Unidas para a Agricultura e a Alimentação manifestaram seu apoio a este documento pontífice. 268 Documento na íntegra disponível em . Acessado em 07 out. 2012. 129

Em tempos de Guerra Fria, o repúdio ao socialismo justificado pelo autoritarismo e pela supressão dos direitos, tais como a liberdade de expressão, era recorrente. O IPES se apropria do discurso eclesiástico ao apresentá-lo antes mesmo de sua própria referência nos filmes. A presença da imagem da Carta Encíclica Mater et Magistra na abertura e encerramento dos documentários confere, sobretudo, legitimidade ao instituto. Legitimidade esta que ultrapassa exclusivamente um posicionamento na análise do contexto político-social da época.

F i g . 01 F i g . 02

Pode-se dizer que, de certa maneira, os valores cristãos vão permear o ponto de vista dos documentários no que se refere à família, ao trabalho, à responsabilidade de cada indivíduo, à discussão do certo e errado; do bem e do mal. Tais construções sígnicas se efetuam no potencial persuasivo do filme centrados em uma postura dicotômica dos temas desenvolvidos. Como prova da intencionalidade, a imagem da Carta Encíclica Mater et Magistra legitima a vocação do instituto em agir em defesa da “democracia, da pátria e da família brasileira”. A outra referência que merece destaque é o letreiro que indica a direção do IPES ainda na abertura do filme. Pela ordem, vemos a Carta Encíclica Mater et Magistra, os créditos de captação, montagem e produção, o título do filme e, em seguida, a cartela FILME REALIZADO SOB A DIREÇÃO DO INSTITUTO DE PESQUISAS E ESTUDOS SOCIAIS (IPÊS). Orientada ao espectador, esta informação intensifica a autenticidade do filme na medida em que evidencia a assinatura de uma organização dita de pesquisa.

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F i g . 03 F i g . 04

A presença desta cartela está em sintonia com a preocupação do IPES em apresentar uma associação comprometida com os interesses gerais do país, disposta a investigar e propor soluções aos problemas brasileiros. O poder de sugestão que este letreiro confere é quanto à validade do que será apresentado. Tal proposta se estende ao longo dos documentários e intensifica a credibilidade das imagens apresentadas como provas da verdade. Neste sentido, dados e informações apresentados pelo comentário são oferecidas ao espectador sempre pelo crivo de um instituto de pesquisa. Ao investigar as consequências da seca em Nordeste: Problema Número Um, por exemplo, o narrador diz enfaticamente: “Em 1958, nada menos do que 100 mil nordestinos deixaram suas terras em busca de trabalho em São Paulo, Rio, Paraná, Goiás”. Já no filme A História de um Maquinista, a ironia surge no comentário tendo como pressuposto a informação legitimada pelo instituto. “E dizer que este mesmo povo contribui com impostos para que se cubra o déficit ferroviário da ordem de Cr$ 50 milhões de cruzeiros”. Neste caso, as informações intensificam o descaso do Estado com as ferrovias brasileiras. A utilização de fotos e imagens de arquivo269 de Adolf Hitler e Benito Mussolini, campos de concentração e cenas de destruição que nos remetem à Segunda Guerra Mundial, assim como registros da consagração da Revolução Cubana identificada na imagem de Fidel Castro, expostas em Depende de Mim, também conferem ao filme um poder de documento. Principalmente quando

269 O IPES recebia o apoio de fontes estrangeiras principalmente da embaixada americana. Nei Peixoto do Valle mantinha contato com Harry Stone, o representante da Motion Pictures, o qual também providenciava o „fornecimento de material básico‟ para os filmes. FUNDO INSTITUTO DE PESQUISA E ESTUDOS SOCIAIS. Arquivo Nacional/ CODES. Código QL. Comitê Executivo. Rio de Janeiro, 14 jun. 1962. 131 associadas a imagens de operários e trabalhadores brasileiros, conferindo a eles o futuro da nação, na tomada de sua escolha política. Assim como a encíclica, o letreiro cumpre a função de legitimar o filme, garanti-lo como prova. Endossar que as temáticas apresentadas são fruto de um estudo exclusivamente comprometido para o “bem da nação” que exaltava a iniciativa privada como a vanguarda do desenvolvimento brasileiro.

O peso da voz

Luiz Trismegisto Jatobá foi o escolhido por Jean Manzon para ser o narrador oficial dos documentários ipesianos. Dono de uma voz singular, Jatobá (1915-1982) se tornara uma das vozes mais célebres da época, marcando presença durante décadas, desde os programas de rádio do Estado Novo em Hora do Brasil, nos trailers de cinemas – quase sempre americanos –, e como correspondente brasileiro das notícias da Segunda Guerra Mundial pela CBS (Columbia Broadcasting System). O jornalista também trabalhou em diversas emissoras. Na TV Tupi, em 1950, foi o apresentador do primeiro noticiário televisivo do Brasil e também atuou na Rádio Nacional (1958-1960)270. A tradição da “voz de deus” fomentou a cultura do comentário com voz masculina profissionalmente treinada, cheia e suave em tom e timbre, que mostrou ser a marca de autenticidade do modo expositivo. Próxima a um estilo jornalístico que confere neutralidade e imparcialidade aos fatos narrados. Orientando-se pelas considerações de Nichols em relação ao audiovisual, este comentário serve para organizar a atenção e enfatizar alguns dos muitos significados de um fotograma. “Presume-se que o comentário seja de ordem superior à das imagens que o acompanham (...) Seguimos o conselho do documentário e vemos as imagens como comprovação ou demonstração do que é dito”. (2008, p. 143) Neste sentido, o comentário é distinto das imagens do mundo histórico que o acompanha, já que elas sustentam as afirmações básicas de um argumento geral ao invés de construir uma ideia nítida das particularidades de um determinado

270 Informações sobre a biografia de Jatobá estão disponíveis em . Acesso em 15 fev. 2012. 132 assunto/tema. Assim, a montagem serve menos para estabelecer um ritmo ou padrão formal do que manter a continuidade e o aprofundamento do argumento. Trata-se de uma montagem de evidência (NICHOLS, 2008, p. 144) na qual a retórica está fundamentalmente articulada por um narrador distante, oculto, onisciente e onipresente. Nos documentários ipesianos este distanciamento assume uma peculiaridade. Se por um lado, o dono da voz não se revela em imagem – isto é, seu corpo está afastado da cena – por outro, sua materialização notoriamente conhecida pelo timbre de sua voz se apresenta e ganha corpo. Jatobá era popular e carregava o crédito da “verdade” em sua trajetória profissional. Era a voz da credibilidade que oferecia uma característica marcante na formulação do comentário: dramaticidade. Se para NICHOLS (2008, p. 144), a voz nos documentários expositivos é marcada pelo tom da neutralidade e indiferença próprias de um tom oficial do narrador profissional, o que se apresenta nos filmes ipesianos é uma voz performática. Ela incorpora o texto, oferece vida, sugere o que deve ser observado pelo espectador. No Brasil, país em cuja cultura a introdução da escrita se deu tardiamente em relação à Europa, e que tem uma formação cultural resultante de etnias diversas, torna-se mais provável a subsistência e a reapropriação dos signos da oralidade, mesmo em um contexto intermediado pela interface da tela. Neste sentido, é possível dizer que nos documentários ipesianos a voz performática - própria da tradição oral - confere uma intervenção significante. A sugestão de uma leitura documentarizante se materializa nesta voz. Não é apenas um comentário articulado, mas carregado de afetos que fortalecem a relação com o espectador. Por outro lado, este determinado uso da voz performática nos filmes ipesianos restringe sua potencialidade. Ao se apropriar da riqueza da voz, a reduz para uma condução ideológica, milimetricamente incorporada no discurso da imagem. Esta redução oferece a ela uma apresentação pobre e inexpressiva frente às potencialidades de uma tradição na qual a voz é o carro-chefe das relações sociais.

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3. A CIRCULARIDADE DAS TEMÁTICAS E VALORES NOS DOCUMENTÁRIOS DO IPES

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Neste capítulo, nos dedicaremos a pesquisar a circularidade das temáticas e valores desenvolvidos nos 14 documentários do IPES por meio da análise fílmica. A proposta é verificar no modelo estético apresentado pelos filmes do IPES a relação entre a temática escolhida do cenário político-social e os valores ideológicos que faziam parte da promoção de uma campanha em “defesa da nação” que combatia a esquerda trabalhista representada por João Goulart. Cabe reforçar que o ponto de partida da análise é de caráter estético, naquilo que a estrutura das imagens e seu discurso têm de indicativo de uma postura ideológica assumida pelos realizadores. Para, em seguida, analisar a capacidade de tais produções na exaltação de um sistema de signos conservadores presentes na sociedade, que pressupõe estruturas exclusivamente homogêneas nas quais as fronteiras tornam-se menos porosas.

O filme é, pois, um simulacro, um traço externo da produção de significado a que nos propomos a cada dia, a cada momento. Não vemos uma imagem supostamente imutável e coerente, magicamente apresentada numa tela, mas a evidência de um ato historicamente enraizado de construir coisas significativas, comparáveis aos nossos próprios atos de compreensão historicamente situados. (NICHOLS, 2005, p. 63)

O exame dos filmes nos faz lembrar de que seu significado é produzido. Essa proeminência da ativa produção de significados por um sistema textual pôde fortalecer a campanha ipesiana em “defesa da nação” como algo produzido por códigos que se estendem além de nós mesmos. Isto é, além do público em si. Neste sentido, poderemos entender os documentários ipesianos como uma expressão de valores que ultrapassa a perspectiva de uma temática específica. Se o ponto central do documentário era, por exemplo, a questão do voto, de que maneira a construção fílmica apresenta as demandas e os desejos do instituto nas vésperas das eleições de 1963, discutida nos filmes Que é a Democracia? e Depende de Mim. O recorte proposto nos permitirá identificar quais valores o IPES potencializou para defender a ideia de desenvolvimento econômico, fincada na iniciativa privada, que combatesse os “inimigos da nação”. Um elemento que merece destaque e necessariamente permeia a análise dos documentários ipesianos é a trilha sonora. Esta que, em composição com os demais elementos do texto fílmico, imagens e comentário, tem uma atuação importante no poder de sugestão do discurso. A cada documentário era incorporado uma melodia 135 específica que dialogava com as imagens. Em A Vida Marítima, por exemplo, a trilha alegre e divertida intensifica as imagens de lazer, descanso e diversão da “boa gente do mar”. Já no filme O que é o IPES?, a trilha opta por tons mais intensos e de conclamação a fim de alertar a população sobre a necessidade de defender as instituições democráticas, a família e a igreja. A tensão é muito bem explorada melodicamente. Neste documentário, há um longo e único plano, de aproximadamente 20 segundos, em que vemos a Esplanada dos Ministérios, em Brasília, lentamente se aproximando do quadro. Ao consideramos que o objetivo da trilha é afirmar o ponto de vista do IPES e, dessa maneira, estar sempre em sintonia com o discurso do filme, nesse exemplo a composição dos três elementos (imagem, comentário e trilha) sugere que o perigo vermelho está se aproximando do Brasil. Para a época, a qualidade do áudio dos documentários produzidos pela Jean Manzon Films era imbatível e muito eficiente271. Não apenas no que se refere à trilha ou mesmo às condições sonoras presentes na narração, mas também na incorporação de sons específicos. Desde aqueles que indicam uma leitura diegética no filme, como as palmas dos trabalhadores na reunião do Sindicato dos Estivadores de Santos (A Vida Marítima) ou mesmo o apito do navio (Uma Economia Estrangulada) e o chacoalhar das bitolas do trem em movimento (História de um Maquinista) até outros que são agregados na composição do discurso e que não estão presentes no filme propriamente dito. Em O que é o IPES?, por exemplo, ao denunciar as atrocidades cometidas pelos regimes totalitários ouvimos tiros, explosões, gritos, ovação da população em apoio ao regimes e até mesmo o discurso de Adolf Hitler e Benito Mussolini em off. Neste sentido, é importante destacar a significativa atuação da trilha e da incorporação do som ao discurso do filme a fim de defender o ponto de vista do instituto. Dessa maneira, na análise fílmica consideramos importante demonstrar a atuação deste elemento no texto audiovisual exposto na decupagem. Outra característica percebida durante a análise fílmica, que permeia todas as produções, é o carácter “posado” na composição dos personagens e das ações no quadro. O posado, como o próprio nome indica, era algo montado, artificialmente

271 Segundo Denise de Assis (2001, p. 34), muitas mixagens eram realizadas fora do país, “provavelmente em estúdios instalados em ou em Paris”. Em geral, os curtas ipesianos já trabalhavam com som direto, outra novidade no início dos anos 1960. 136 organizado para conferir autenticidade sem, no entanto, esconder a estratégia que o produziu. O marujo dormindo, o comandante do navio atento ao mar, o pai voltando para casa depois do trabalho e sua família à espera no portão da casa, o cortejo fúnebre de uma criança vítima da seca no Nordeste, o estudante aplicado na biblioteca, o trabalhador no refeitório usufruindo dos benefícios da empresa, entre tantos outros exemplos. Percebe-se a busca por uma imagem ideal construída que atendesse diretamente à necessidade do roteiro e, por conseguinte, aos propósitos do instituto. Neste sentido, ao apresentar a temática por meio do comentário, vemos desfilar imagens encenadas para a câmera. O enquadramento dos personagens, dos objetos e dos ambientes que reforçam a proposta de uma cena construída acaba por descaracterizar as ações cotidianas. Se por um lado esta abordagem fílmica provoca certo distanciamento, uma vez que sua composição é resultado de um ensaio premeditado, por outro enfatiza uma aproximação idealizada das situações e dos eventos rotineiros explorados nos documentários. Na medida em que, nesta pesquisa, localizamos nossa argumentação na leitura documentarizante ressaltada pela prática cultural, atendida na tradição do cinejornal, é interessante apresentar a importância do caráter “posado” presente nos filmes ipesianos, que mais se aproxima de uma proposta ficcional. Os filmes em questão desenvolviam um tema pinçado a partir de um cenário, que de fato ocorresse e que supostamente devesse ser conhecido do público, como a dificuldade no transporte de cargas e pessoas, o problema da seca no Nordeste, a conscientização da importância do voto, os regimes totalitários, só para citar alguns. Além da própria reprodução dos fatos era necessário o registro dos locais em que o tema se desenrolava. Imagens dos portos, das estações de trem, de passageiros, das paisagens de terra árida, de Adolf Hitler e Benito Mussolini em associação com seus respectivos sons característicos. Enquanto máquinas e trens em ação reforçam a diegese, os discursos em off de Adolf Hitler e Benito Mussolini e ruídos de tiros e bombas adicionados na montagem enfatizam a condução do comentário. De certa maneira, a tomada do real, no caso, a filmagem dos espaços relacionados ao tema, conferia qualidade à fita ao responder ao anseio dos espectadores, já alimentado pelo ambiente midiático.

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O registro dos locais apresentando as temáticas interessava tanto pelo que conferia de elemento fílmico à narrativa cinematográfica – os cenários onde se desenrolava a trama – como pelo ponto de vista em que a filmagem consistia. Se de um lado “ver-se” na tela, reconhecer lugares e pessoas, conferia aos filmes um valor de documento, por outro, “posar” para a tela enfatizava os valores que o IPES desejava afirmar e instituir. Por exemplo, no título que dá nome ao filme Deixem o Estudante Estudar, já se faz presente a suposição dos “distúrbios” que os estudantes causavam. Segundo o argumento do filme, um estudante deveria dedicar todo seu tempo ao redor de livros, isolado do coletivo e dos grêmios estudantis que discutiam os caminhos políticos do país. Para o IPES, o estudante deveria – exclusivamente – estudar para contribuir com o progresso da nação após graduado. Este era seu compromisso, seu dever. Daí que a construção das imagens está fincada neste propósito. Vemos um estudante virando cautelosamente a página de seu livro, dedicando-se a suas anotações, chegando e saindo pacificamente da universidade, recebendo seu diploma, entre tantas outras cenas neste e nos demais filmes ipesianos que adotam a estratégia do “posado” para afirmar os valores defendidos pelo instituto. Dos documentários produzidos pelo IPES, a maior parte foi realizada em 1962, quando a fachada legalista ainda não sofrera abalos. As denúncias que desembocaram na investigação da Comissão Parlamentar de Inquérito que apontavam a ilegal utilização de verba pública pelo IPES e IBAD surgiram apenas um ano depois, em 1963. Entre os meses de abril e maio de 1962, conforme indicado nos documentos de censura272, estavam prontos os três primeiros documentários: Portos Paralíticos, A Vida Marítima e Uma Economia Estrangulada. A partir de um discurso predominantemente liberal, constrói-se uma severa crítica ao comércio marítimo na tentativa de fomentar a desarticulação do governo de João Goulart. A “culpa” pelo subdesenvolvimento era diretamente atribuída à péssima administração pública. Neste sentido, o elogio ao capital estrangeiro e à livre

272 Seguiremos a pesquisa de Reinaldo CARDENUTO (2008) que analisou os certificados de liberação de censura, documento governamental necessário na época para a exibição dos filmes, no Acervo Jean Manzon. Os documentos do IPES depositados no Arquivo Nacional não apresentam uma organização sistemática que possa nos nortear com segurança em tal trajetória. Dessa maneira, seguir as reflexões do pesquisador se revelou uma excelente opção na proposta de análise dos documentários. 138 concorrência era dado como único caminho para ultrapassar os obstáculos que perpetuavam o Brasil em sua condição econômica. O progresso da nação estaria exclusivamente condicionado à iniciativa privada sem interferência estatal. Dos seis documentários finalizados entre julho e agosto de 1962, dois possuem tom semelhante aos descritos anteriormente. São eles: História de um Maquinista e Nordeste: Problema Número Um. O primeiro confere à rede ferroviária o descaso do poder público ao denunciar as péssimas condições de transporte associada a acidentes, que não só levavam a descarrilamentos dos trens e prejuízo no transporte de produtos, mas também a vítimas fatais. Em Nordeste: Problema Número Um, a miséria do povo nordestino em função da seca era também atribuída à falta de investimentos do governo na região. E a solução imediata estaria depositada na atuação das empresas privadas que, por meio de incentivos estatais, levariam as soluções para a região. Neste sentido, iremos agrupar estes cinco documentários em um mesmo módulo de análise que denominaremos de Documentários-Denúncia. No mesmo período, julho e agosto de 1962, os documentários O IPES é o Seguinte e O que é o IPES revelam a preocupação do instituto na promoção de sua imagem pública. Ao divulgar as diretrizes e o comprometimento social das empresas e pessoas veiculadas na organização de pesquisa e estudos do IPES, o objetivo era afirmar a defesa de uma democracia liberal e “alertar” a população sobre os rumos da instabilidade política que o Brasil estava trilhando. Dessa maneira, intitularemos como Documentários-Institucionais a análise desses dois textos audiovisuais que reuniam os interesses particulares da elite industrial brasileira como fundamentais para o progresso da nação. Ainda neste período, o IPES finalizou os curtas Criando Homens Livres e Deixem o Estudante Estudar. Em ambos, o instituto atribui a perspectiva de desenvolvimento da nação à educação, tendo como base o conhecimento técnico para melhorar o nível dos profissionais no mercado de trabalho. A educação apresenta-se como uma instituição a serviço do liberalismo e como solução certeira para que o país alcançasse legitimação no âmbito internacional. Chamaremos as propostas desta fase de Documentários-Educação. O segundo semestre de 1962 também foi marcado por uma intensa preocupação com as eleições gerais que aconteceriam no ano seguinte, esta que

139 seria definitivamente a última consulta popular antes do golpe militar. Nos meses de agosto e setembro foram produzidos e finalizados os documentários Depende de Mim e Que é a Democracia? Apesar de não encontrar nenhum documento no Arquivo Nacional que pudesse localizar cronologicamente o filme O Brasil Precisa de Você, incluiremos este documentário nesta relação. Os três filmes apresentam estratégias semelhantes que potencializam o discurso de confronto. Pontualmente divididos em duas partes – a apresentação dos atos de crueldade dos “inimigos” e a convocação da população para agir em defesa do país – Depende de Mim, Que é a Democracia? e O Brasil Precisa de Você potencializam a presença de uma ameaça comunista no país273. Dessa maneira, na tentativa de sugerir uma realidade que concretizava o avanço iminente de um modelo comunista, próximo aos moldes totalitários do século XX, os documentários adquiriam um clamor de alerta e tensão. A estratégia era endurecer o discurso ao fazer uma relação direta entre os regimes totalitários, as vítimas da Segunda Guerra Mundial, a tragédia do Holocausto, as perseguições na União Soviética, a Revolução Cubana, entre outros exemplos apresentados nos filmes, e os “inimigos da nação” que rondavam o Brasil. O voto era a arma que os cidadãos tinham nas mãos para proteger o país. Segundo o IPES, era preciso se posicionar em defesa da pátria para evitar que as instituições democráticas do Brasil acabassem nas mãos dos “comunistas e demagogos”. Neste momento, é interessante notar o nítido abandono de um discurso legalista na composição dos filmes em direção a uma proposta urgente de ação. Trataremos estes curtas pelo nome de Documentários-Confronto. Por fim, em função da frustrante derrota nas urnas, os documentários ipesianos entram em uma nova fase. As últimas duas produções, A Boa Empresa e Conceito de Empresa, deixam de lado o tom agressivo em sintonia com um espírito golpista e centram-se na “arregimentação” corporativa. A expectativa de convocar mais aliados que sustentassem os propósitos do IPES foi o foco de discussão nestas últimas produções em 1963. Dessa forma, chamaremos esta fase de

273 A investigação de Reinado Cardenuto também não localizou nos arquivos do Acervo Jean Manzon o documento de liberação de censura referente ao documentário O Brasil Precisa de Você. Em função do tom de agressividade presente neste filme, ele também localiza esta produção em sintonia com os documentários Depende de Mim e Que é a Democracia? (2008, p. 65) 140

Documentários-Corporativos. Neste sentido, como demonstrado, dividiremos a análise em 5 momentos. Documentários-Denúncia; Documentários-Institucionais; Documentários-Educação; Documentários-Confronto e, por fim, Documentários-Corporativos. Utilizaremos as nomenclaturas PG (Plano Geral), PM (Plano Médio) e PD (Plano Detalhe) para objetivar o enquadramento do cinegrafista. Assim como os termos Zoom in e Zoom out (aproximação e distanciamento em relação à profundidade da tela) e Traveling (deslocamento da esquerda para direita ou vice-versa) para evidenciar os movimentos sugeridos na captação da imagem e manipulação destas na montagem.

3.1 Documentários-Denúncia

Quatro dos cinco documentários que fazem parte deste bloco localizam seu ponto de vista nas diferenças entre as iniciativas públicas e privadas. Esta distinção se revela não só na constituição das imagens, mas também na ênfase da narração que aponta ao espectador o aspecto a ser ressaltado na imagem exibida no filme. Em Portos Paralíticos, Uma Economia Estrangulada e História de um Maquinista, a denúncia se traduz na exploração de imagens que retratam a desorganização, o excesso, o despreparo, o descaso do poder público no transporte marítimo, fluvial e ferroviário. Imagens descuidadas e escuras potencializam os objetos exibidos na tela em sintonia com a narração que pesa em adjetivos. “Custos de serviços elevados, aparelhagem deficiente, canais de acesso obstruídos, barras difíceis, águas pouco profundas são os problemas” da Marinha Mercante nacional apresentados no documentário Portos Paralíticos, por exemplo. Em contraponto, as imagens de iniciativas privadas se consagram pela nitidez, pela manutenção da ordem, da organização, da limpeza, da eficiência. Já em A Vida Marítima, a denúncia se revela na crítica aos excessivos benefícios e privilégios desfrutados pela classe sindicalizada. A contradição se faz presente na relação entre as imagens e o comentário. Ao contrário dos demais documentários, que apresentam as péssimas condições de trabalho e infraestrutura como fio condutor da reflexão sobre o transporte de mercadorias e pessoas, em A

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Vida Marítima as imagens não oferecem qualquer indício de trabalho. E é sobre a exploração deste aspecto que o filme atua, uma vez que privilegia enfatizar a ideia de lazer, de bonança e garantia de aposentadoria. A denúncia se mostra presente no comentário. O tom é irônico e por vezes surgem provocações, ao sugerir que as constantes manifestações grevistas dos marítimos na década de 1960 não tinham fundamento. Veremos na análise que, para o IPES, a categoria usufrui excessivamente de benefícios, o que onera o transporte, aumenta o preço dos produtos e sacrifica toda a nação. Segundo o instituto, as reuniões do sindicato dos portuários de Santos, por exemplo, formam a retaguarda em defesa dos altos salários. “Taxas comuns e extraordinárias, taxas de horário e almoço, taxas noturnas, de insalubridade, de mal tempo, taxa de periculosidade. Desdobrando-se sempre, somando-se uma às outras acabam elevando o salário de um estivador a Cr$ 200 mil por mês”. É interessante notar a importância que o IPES creditou ao determinar que quatro das cinco primeiras produções localizassem o transporte nacional como um dos principais responsáveis pelo inexpressivo desenvolvimento econômico do Brasil. Se por um lado a política desenvolvimentista da gestão anterior de Juscelino Kubistchek direcionou os investimentos federais para a construção de rodovias, por outro deixou o transporte fluvial, marítimo e ferroviário desamparados de recursos. De acordo com o pensamento ipesiano, as consequências de tais descaminhos tornaram-se os obstáculos a serem superados. Infraestrutura e manutenção precária, frota sem renovação, portos mal gerenciados, armazéns lotados, equipamentos ultrapassados, burocracia, benefícios excessivos aos marítimos, controle do sindicato, só para citar alguns dos diversos exemplos presentes nestes documentários, responsabilizam ora a incapacidade do Estado na condução destes serviços ora o gerenciamento do sindicato que prejudica o transporte e eleva o preço dos produtos. O tom de denúncia sustentado pela enumeração das imagens e pelo comentário performático do narrador ocupa a maior parte dos filmes. É neste momento em que podemos observar que a temática fica apoiada na utilização dos valores ipesianos: a manutenção da ordem, da moralidade cristã, a defesa da pátria, da liberdade e da democracia, com o propósito de acusar a condução do Estado

142 que, segundo o IPES, apresentava tendências comunistas. De tal maneira que, após apontar os problemas específicos de cada temática, o filme apresenta uma solução prática que enfatiza a importância da iniciativa privada para resolver as dificuldades que assolam o sistema de transporte de cargas e pessoas, assim como otimizar o potencial do país no intuito de se aproximar dos países desenvolvidos. Contudo, no último documentário analisado neste bloco, Nordeste: Problema Número Um, a denúncia ocorre a partir de outra abordagem. Ela se revela condicionada às características geográficas e culturais do nordestino. Enquanto a situação de subsistência se perpetua devido às adversidades provocadas pela seca, o “meio de vida” aponta uma tradição que o IPES localiza como arcaica e primitiva. O cultivo e a venda do coco assim como os tapetes da rendeira são apresentados no filme como sintomáticos daquilo que precisa ser “superado” rumo ao progresso da nação. A proposta de denúncia é potencializada pelo comentário do narrador ao enfatizar a simplicidade e a “ignorância do povo” frente informações básicas de saúde, moradia, trabalho e estudo. Ao exigir que o governo conceda benefícios aos homens de negócios, como deduções no Imposto de Renda, o IPES apresenta tais empresários conscientes de sua potencialidade financeira para amenizar a “incalculável avalanche nacional que se avoluma na terra dramática de nossos irmãos nordestinos”. Neste sentido, o filme apresenta o papel do Estado como um mediador, um gerenciador de oportunidades incapaz de resolver os problemas que assolam a região. Em contrapartida, o filme sugere que os homens de negócios, seguros de sua ação social, podem levar a solução para combater a miséria na região. A seguir, segue a análise de Portos Paralíticos, Uma Economia Estrangulada, A Vida Marítima, História de um Maquinista e Nordeste: Problema Número Um.

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PORTOS PARALÍTICOS

Ficha técnica Duração: 8:17s Ano de produção: 1962 Narrador: Luiz Jatobá274 Imagem: John Reichenheim, Antônio Estevão, Arturo Usai e Paulo Ferreira Montagem: n/c275 Produção: Atlantida/ Jean Manzon Films Realização: Instituto de Pesquisa e Estudos Sociais

Como o próprio nome sugere, o filme localiza os problemas do transporte de mercadorias dos portos brasileiros. Obstáculos que, segundo o instituto, freiam o desenvolvimento da nação e “estrangulam o progresso”. Embora o filme aponte inúmeras situações que precisam ser superadas, desde equipamentos defasados, falta de espaço nos depósitos, até burocracia e taxas excessivas, entre tantos outros, parte de considerações superficiais. Isto é, há apenas um propósito quantitativo na denúncia. Não há citações diretas às suas causadoras. O comentário aponta tais dificuldades e as imagens reafirmam aquilo que está sendo mencionado pela voz. Esta dinâmica sugere uma enumeração de denúncias. Neste sentido, nos parece que Portos Paralíticos desencadeia mais uma retórica fundada na revelação de provas ao apontar os problemas dos portos brasileiros na tentativa de indicar o culpado da estagnação em que eles se encontram: o Estado. Segundo o instituto, a péssima administração do governo federal é responsável pela paralisia que contamina o funcionamento dos portos brasileiros. É possível identificar apenas dois portos no documentário: Manaus e Santos. Embora não seja citado no comentário, o porto de Manaus ocupa uma posição importante no discurso fílmico. Seguindo a dinâmica da montagem ipesiana em comprovar o que está dito no comentário por meio das imagens, o porto de Manaus simboliza o desleixo da administração estatal em deixar aquele que um dia foi símbolo do progresso em situação de negligência e descaso. Afinal, o porto de

274 Na apresentação inicial dos créditos na cópia deste curta não há menção à narração. Porém, a presença marcante da voz de Jatobá é reconhecível. Dessa maneira, creditamos a ele. 275 Na cópia analisada, não há referência do montador para a edição deste documentário. Dessa maneira, adotaremos a sigla n/c (nada consta), inclusive, na análise dos demais filmes quando a ficha técnica ficar incompleta. 144

Manaus era a porta de entrada e saída, responsável pela integração econômica com a Europa durante o ciclo da borracha276. O porto de Santos, por sua vez, é apresentado no comentário pelo narrador. Apesar de surgir como uma espécie de referência daquilo que o País tem de melhor sobre a situação portuária nos anos de 1960, mesmo assim carece de cuidados. Segundo o IPES, “até no porto de Santos, o maior e o melhor aparelhado, ocorrem frequentes congestionamentos que prejudicam o comércio e a indústria do Estado”. O comentário e as imagens em Portos Paralíticos buscam confrontar a perspectiva de desenvolvimento sob a administração do governo em contraponto com a iniciativa privada. Neste sentido, é possível destacar na análise fílmica a diferença de tratamento dado em cada um dos casos. De um lado a comprovação daquilo que deve ser banido na administração portuária – imagens escuras que sugerem a desordem e a sujeira – e de outro a potencialização do exemplo a ser seguido – imagens limpas e nítidas que apontam organização e eficiência por meio da iniciativa privada. O exemplo em questão é uma das principais contribuintes do IPES: a Cia. Docas de Santos277. Para melhor compreender o desenvolvimento do ponto de vista ipesiano no filme, dividiremos esta análise em duas sequências. Desde o primeiro momento, esta proposta nos pareceu óbvia, haja vista as características objetivas que aparecem na diferença entre estes dois blocos. Na primeira sequência, a abordagem de denúncia se estabelece na constatação da “realidade” dos portos brasileiros e, principalmente, na exaltação de um passado de glória e de um presente de descaso. “Portos brasileiros, portos paralíticos, por onde têm um passado recente foi fator

276 A extração da borracha proporcionou à região amazônica expansão comercial, atraindo riqueza e gerando transformações culturais e sociais. Foi neste período que as cidades de Manaus, Porto Velho e Belém se consagraram como centros de referência para seus respectivos estados. O ciclo da borracha viveu seu auge entre 1879 a 1912, tendo depois experimentado uma sobrevida entre 1942 e 1945 durante a II Guerra Mundial (1939-1945). Para atender a demanda da exportação da matéria-prima para o mercado europeu e o transporte de passageiros, em 1902 a empresa inglesa Manáos Harbour Limited inicia a construção do porto de Manaus. O direito à concessão durou até o inicio dos anos 1960 quando a administração do porto foi devolvida ao gerenciamento do governo federal. Sem dúvida, a construção do porto de Manaus simbolizava o progresso econômico de uma das regiões mais distantes do país. 277 A concessionária do porto de Santos era gerenciada por Cândido Guinle de Paula Machado, presidente da Companhia Docas de Santos e, assim como a empresa que administra, membro do IPES. 145

decisivo para o progresso e as regiões a que servem. De iniciativas pioneiras passaram de certo modo a estrangular o progresso e manter ilhadas as economias regionais”. É neste momento que o filme localiza o porto de Manaus, em referência ao gerenciamento da iniciativa pública, e o porto de Santos, fincado na iniciativa privada. Na sequência seguinte, a denúncia apresenta os problemas que assolam os portos brasileiros e responsabiliza o governo federal pelo abandono. A dinâmica em contrapor o descaso dos portos nacionais e as melhorias que poderiam ser atingidas com a iniciativa privada se intensifica neste segundo momento. A seguir, trataremos da primeira abordagem destacada: Sequência 1 Áudio Câmera Voz Trilha PG navios e barcos em alto-mar Portos brasileiros, portos paralíticos, por onde têm um instrumental. passado recente foi fator decisivo para o progresso e as regiões a que servem. Forte e PG Teatro Amazonas. Sugestão e exemplo de intensa. progresso e “iniciativa pioneira”.

De iniciativas pioneiras passaram de certo modo a estrangular o progresso e manter ilhadas as economias regionais. Por que um dos principais esteios da infraestrutura de nossa economia chegou até esta estagnação?

Mudança de trilha.

Lamento e comoção. F i g . 0 5

PG cais de um porto. Traveling. Eis o retrato portuário do norte. A produção destas regiões pessimamente servidas de portos não tem PM sacos de exportação que localizam o porto como desenvolver seu comércio de trocas com os de Manaus. PM portuários trabalhando. PM outros Estados. Nestes últimos decénios as condições locais frente ao porto vendendo produtos do comércio local se agravaram mais ainda. perecíveis.

Cais inacessíveis, navios ancorados em alto mar. Consequência da precariedade dos portos do Norte e do Nordeste.

No fim do País, embora os panoramas não sejam os mesmos, a situação está muito longe de ser de desafogo.

F i g . 0 6 A expansão do cais e todos os portos de grande movimento ficam muito aquém das necessidades. Até PD e PM trabalhadores carregando sacos no porto de Santos, o maior e o melhor aparelhado, pesados nas embarcações para transporte. ocorrem frequentes congestionamentos e que

prejudicam o comércio e a indústria do estado. PG, Plano aéreo Porto de Santos.

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A abertura está pontuada por uma sugestão de denúncia presente inclusive na característica da trilha que se revela desde a apresentação dos créditos. Ouve-se trompetes em tom grave. A melodia é vagarosa, mas intensa o suficiente a fim de sustentar a crítica exposta no comentário que virá repetidamente em diversos momentos nesta sequência: a constatação de que os portos brasileiros estão “estagnados, paralíticos”. O ponto de vista do filme, em busca de exemplificar a urgência da “péssima” situação em que se encontram os portos nacionais, inicia seu discurso localizando o Teatro Amazonas (fig. 05). Símbolo do ciclo da borracha, o teatro é posto como um exemplo pioneiro de uma cidade no meio da região amazônica que conseguiu se desenvolver economicamente por meio de seu porto. A imagem do Teatro Amazonas se destaca pela harmônica composição dos elementos visuais presentes no quadro. Sob a sombra de uma árvore, a câmera se posiciona e o enquadramento do teatro recebe a força solar, deixando-o em evidência. A comparação entre um passado glorioso e um presente decadente, sugerida no comentário, é enfatizada por uma mudança de trilha. Uma melodia lamentosa e triste ocupa o tempo em que a voz do comentário não se faz presente, até o fim desta sequência. Neste momento, localizamos uma das principais características de Portos Paralíticos, e que será vista também em Uma Economia Estrangulada e História de um Maquinista. Mesmo que pautada pelo comentário, a denúncia se faz presente na característica da composição das imagens. Há dois aspectos interessantes a destacar. Um diz respeito ao conteúdo do que é filmado e à maneira como tal objeto se comporta dentro do quadro. Na fig. 06, por exemplo, vemos sacos de grãos sendo jogados a esmo no campo. Ao descompromisso sugerido se soma ainda a poeira em movimento apontando um local sujo e mal cuidado. O outro aspecto que o dispositivo fílmico nos revela é a captação de imagens escuras, pouco nítidas e, muitas vezes, não posadas para a câmera278. O contraponto se revela quando o comentário localiza um porto sob o comando da iniciativa privada. “Até no porto de Santos (...) ocorrem frequentes congestionamentos e que prejudicam o comércio e a indústria do Estado. Mesmo que o comentário considere que problemas também chegam naquele que é o maior

278 Característica já comentada dos filmes assinados por Jean Manzon que apontam um cuidado idealizado na apresentação dos objetos, paisagens e personagens na composição de seus quadros. 147

e melhor aparelhado” porto do país, as imagens que se apresentam fazem o caminho oposto ao descuido mostrado anteriormente. A composição dos objetos no quadro intensifica as características de organização e limpeza, já a qualidade fílmica de captação é constituída por extrema nitidez e clareza nas imagens. Esta dinâmica estará presente e se intensificará ao longo do filme, como podemos perceber na fig. 07 da sequência seguinte. Sequência 2 Áudio Câmera Voz PG e PM mergulhador se aprontando para Os portos nacionais tem sua administração entregue Sugestão de submergir escafandro. Trabalhando. Cenas ao governo federal ou a concessões estaduais. Custos trilha se intercalam-se com PM de homens operando de serviços elevados, aparelhagem deficiente, canais mantém no em conjunto uma máquina pesada para fazê- de acesso obstruídos, barras difíceis, águas pouco mesmo tom. lo descer. profundas, eis os obstáculos dos problemas que Lamento e acrescentam à Marinha Mercante. comoção. PM comandante que sugere a observação para atracar no cais. PM navio se movimentando junto ao cais. PM navios parados. Em espera.

PG armazéns. Organizados, exemplo do que é A falta de espaço suficiente para embarques e preciso ser seguido. desembarques e a consequente espera dos navios, além de baixa produtividade dos serviços portuários causam o congestionamento dos portos. E têm um reflexo sobre o abastecimento e a elevação dos preços das mercadorias.

Além de nem sempre possuir equipamento adequado para as operações de carga e descarga, a quase totalidade de nossos portos encontra-se desprovida de F i g . 0 7 melhores instalações acessórias: combustíveis,

frigoríficos e carregadores mecânicos. PD produtos importados de vários países: Finlândia, Polônia, Estados Unidos, Hungria.

Traveling de armazém bem iluminado e organizado. Raros são os portos brasileiros que possuem PD documentos. PM funcionários trabalhando condições para a utilização de empilhadeiras em volta de muitos papéis. mecânicas. Poucos possuem armazéns bem iluminados e arejados como este. Só alguns dispõem de armazéns necessários ao trânsito rápido das cargas. Outros servem frequentemente como armazéns comuns de depósito, fugindo à finalidade de abrigar as mercadorias só por um tempo limitado.

A burocracia tão excessiva e os horários desconexos, as diferentes entidades ligadas ao trânsito de F i g . 0 8 mercadorias levantam uma bagagem ao bom

PG cais desorganizado. Traveling. funcionamento dos serviços portuários. 148

PD guindaste em funcionamento.

PG navios recebendo produtos. PM estivadores transportando mercadorias. Precariamente.

Às vezes os nossos grandes portos oferecem indescritíveis espetáculos de como se faz uma confusão. Os velhos guindastes embaraçam o trânsito de rio.

Que se espera para remediar a paralisia que emperra o sistema portuário brasileiro? Já não se sabe que

existe desde 1958 uma taxa de melhoramento dos portos? Quando as nossas pragas entrarão em pleno funcionamento? F i g . 0 9

No final do PG e PM navios internacionais. A lei que criou o Fundo Portuário Nacional atende às filme, a PD bandeira do Brasil, seguido de PG navios necessidades do momento. O que não é possível é sugestão da em alto-mar. cruzar os braços diante de um futuro tão angustiante. trilha Precisamos abrir novas perspectivas para encontrar enfatiza o uma solução, transformando os portos em alavancas potencial para o comércio. comercial marítimo da nação por O porto é o cartão de visitas da administração meio de uma brasileira. Deve falar algo em nome do orgulho melodia que nacional. É por isso que todos devem estar intensifica a empenhados em reorganizá-lo. Governo federal, solução administrações portuárias, sindicatos portuários proposta oferecendo aos navios que comerciam com o Brasil as F i g . 1 0 boas vindas de uma nação disciplinada, poderosa e pelo IPES. PG navios em alto-mar. moderna.

Este segundo momento proposto na divisão da análise de Portos Paralíticos inicia quanto o filme faz uma referência direta àquele que, segundo o instituto, é o responsável pela ineficiência do transporte de mercadorias: a administração pública. “Os portos nacionais tem sua administração entregue ao governo federal ou a concessões estaduais”. Diferentemente da sequência anterior, agora os problemas são apresentados no comentário. A voz atua em um ritmo crescente. Performática, ela tem desempenho dramatizado exposto no comentário a cada obstáculo que paralisa os portos nacionais. “Custos elevados, aparelhagem deficiente, canais de acesso obstruídos, barras difíceis, águas pouco profundas, eis os obstáculos dos problemas que acrescentam à Marinha Mercante”. Seguindo a dinâmica que revela na montagem a contraposição de “imagens descuidadas” (associadas à iniciativa pública) e “imagens cuidadas” (associadas à proposta de iniciativa privada), nesta segunda sequência a abordagem de denúncia 149 se debruça especificamente nos elementos que remetem à administração portuária propriamente dita. A burocracia, por exemplo, é abordada na intensa movimentação de papéis entre os funcionários da administração portuária. Assinaturas, dobras, envelopes e carimbos (fig. 08). A sugestão que se faz presente é da extrema organização e concentração dos funcionários. Em contrapartida, quando denunciada a confusa movimentação no carregamento e descarregamento no porto, vemos um longo plano de mercadorias sobrepostas e misturadas (fig. 09). Mais uma vez é possível notar a atuação pontuada pela voz na sugestão irônica ao dizer que os “nossos grandes portos oferecem indescritíveis espetáculos de como se faz uma confusão”. É interessante notar que apesar da denúncia estar sustentada em um discurso que evidencia trabalhadores em atuação, transportando sacos nas precárias embarcações, descarregando produtos nos armazéns, operando equipamentos ultrapassados, administrando papéis, entre tantos exemplos presentes no filme; em nenhum momento a denúncia esteve relacionada às condições de trabalho. Em Portos Paralíticos, marítimos e portuários se apresentam como meros coadjuvantes. Distantes da câmera, seus corpos são revelados ora pela força de trabalho na lida da estiva ora na execução específica de atividades que não pressupõem tanto vigor físico. O fato é que, em ambas as situações, não são valorizados e sequer reconhecidos como categoria. O aspecto social é deixado de lado, ao passo que a crítica centra-se na falta de recursos e infraestrutura necessária para que tais portos saiam do processo de estagnação econômica em que se encontram. Por fim, Portos Paralíticos enfatiza a importância do empenho de todos – governo federal, administrações e sindicatos portuários – para que os portos brasileiros tornem-se o “cartão de visitas do país. As boas vindas de uma nação disciplinada, poderosa e moderna” traduzem as diretrizes do IPES que projetam a defesa da nação em nome do orgulho nacional (fig. 10).

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UMA ECONOMIA ESTRANGULADA

Ficha técnica Duração: 8 min Ano de produção: 1962 Narrador: Luiz Jatobá279 Imagens: John Reichenheim, Antônio Estevão, Arturo Usai e Paulo Ferreira Montagem: n/c Produção: Atlantida/ Jean Manzon Films Realização: Instituto de Pesquisa e Estudos Sociais

Em carta assinada pela Jean Manzon Films, em resposta à solicitação do Instituto de Pesquisa e Estudos Sociais, encontramos a justificativa para a produção que tivesse o transporte marítimo como tema central.

O transporte marítimo é o mais econômico em todo o mundo. No Brasil é o mais oneroso porque o custo de frete é sobrecarregado por um rol de equipagem superior ao dobro das demais frotas estrangeiras. A ampliação da frota permitirá reduzir o número de tripulantes dos navios atuais, sem a diminuição dos salários e com a redução do frete. Além disso, o marítimo levará uma vida mais confortável nos navios modernos, bem aparelhados. Os produtos nacionais transportados por nossos navios precisam ser vendidos a preços mais elevados do que se fossem levados por navios estrangeiros. Na competição dos mercados o Brasil perde para outras nações. 280

São pontuações soltas, mas que dialogam com a preocupação do IPES ao ponto de investir na produção de três documentários imersos na mesma temática. Ao tratar sobre a dificuldade do transporte de cargas e pessoas nos corredores marítimos que “emperram” o progresso da nação, percebe-se a tentativa do instituto em localizar e aprofundar três aspectos distintos que este tema envolve. Em Portos Paralíticos, o argumento se fundamenta na desorganização no cais, em Uma Economia Estrangulada, na falta de manutenção e investimento na frota e, em A Vida Marítima281, na exacerbada proteção sindical que usufruem algumas categorias. Nota-se que perceber estas três produções neste recorte de abordagem nos faz refletir a respeito de uma iniciativa de produção de série282. Neste sentido,

279 Assim como no documentário Portos Paralíticos, em Uma Economia Estrangulada não há referência do narrador na cópia analisada. Seguiremos o mesmo encaminhamento do curta anterior a creditar a voz a Luiz Jatobá. 280 Anexo 06, Carta ao IPES. São Paulo, 03 fev. 1962, p. 291. 281 Documentário que será analisado no próximo item e que complementa a série de três filmes que tiveram o transporte marítimo como tema central. 282 Veremos esta mesma iniciativa em outras análises que serão expostas neste capítulo. Ao eleger a educação como tema central, o IPES produziu Criando Homens Livres e Deixem o Estudante 151 poderemos inclusive associar o filme História de um Maquinista a este conjunto de filmes que tem o tema “transporte” como fio condutor. No que diz respeito às escolhas estéticas que pautaram o discurso fílmico não há grandes diferenças entre Portos Paralíticos e Uma Economia Estrangulada. Em ambos, o ponto de vista do filme centra-se em localizar a denúncia sobre o transporte marítimo. As estratégias fílmicas são semelhantes. Imagens “descuidadas” que potencializam a denúncia presente no comentário em sintonia com uma trilha que molda sua melodia de acordo com o discurso. Por outro lado, em A Vida Marítima, a proposta de denúncia não se estabelece da mesma maneira. Como veremos na análise, ela se destaca pelo contraponto. Através do aspecto positivo sugerido nas imagens, o filme irá apontar o “excesso” das vantagens dos marítimos sindicalizados como um aspecto que não só onera o transporte de cargas, mas também destoa da realidade do país. Dessa maneira, na análise de Uma Economia Estrangulada vamos nos ater nas características que se aproximavam de Portos Paralíticos e se diferenciam de A Vida Marítima. Em Uma Economia Estrangulada, um aspecto intrigante está presente e percorre todo o filme. Trata-se da recorrente exaltação de um espírito patriótico e de um clamor de união para solucionar harmoniosamente a situação precária do transporte marítimo. Após a denúncia, o comentário reitera: “Já que todos concordam, renovemos nossa Marinha Mercante!” Esta dinâmica se repete cinco vezes ao longo do filme. Quatro se concentram na exploração das denúncias e, a última, se impõe no comentário final a fim de propor a solução para o problema. Neste sentido, dividimos a análise em dois momentos. O primeiro momento parte das acusações indicadas pelo ponto de vista do filme. São elas: precária infraestrutura, falta de manutenção, número insuficiente da frota e péssimas condições no transporte de pessoas. Já na segunda sequência buscaremos verificar de que maneira a solução apresentada em Uma Economia Estrangulada construiu seu discurso e concretiza os valores ipesianos.

Estudar que, nesta análise, estão localizados no bloco Documentários-Educação. No intuito de trabalhar a imagem do instituto, outras duas produções em série: O que é o IPES? e O IPES é o Seguinte, presentes no bloco Documentários-Institucionais. E, por fim, uma série direcionada ao meio empresarial, A Boa Empresa e Conceito de Empresa, que veremos no bloco Documentários- Corporativos. 152

Sequência 1 Áudio Câmera Voz PG e PM navios. A câmera “navega” entre eles. Trilha O problema focalizado é o seguinte; a nossa Marinha instrumental. PD navios vazios, sujos, abandonados. PM Mercante já foi uma das melhores do mundo. É, hoje Forte e mulheres secando roupas nos navios. em dia, uma das menos numerosas, menos eficiente e intensa. que mais pesa no orçamento da República.

Mudança de O prazo para a solução imediata. O espírito do trilha. momento é reunir harmoniosamente legisladores, Lamento e autoridades executivas, classes produtoras, dirigentes comoção. de empresas de navegação, sindicato e todo o povo a fim de que se possa firmar uma lúdica mensalidade contra o gasto sujo, o calhambeque, normas

F i g . 1 1 antieconômicas de trabalho, a desordem já que todos

PM menino ao barco. PG homem tomando concordam.

banho em banheira. PG menina sozinha em local escuro.

Renovemos a nossa Marinha Mercante!

Mantém trilha. F i g . 1 2 Certos estaleiros nossos significam técnicas navais Lamento e PG entre navios. PM embarcações. PG e PM antiquadas, desperdício de materiais e mão-de-obra, comoção. homens consertando navios. produtividade muito baixa.

Há navios tão velhos que seus reparos levam semanas, meses, anos. Depois de semanas, meses, anos voltam a navegar nesses párias dos mares para retornarem em pouco tempo quebrado aos estaleiros. Os rebocadores são raros.

Raros são os diques de reparos e ainda esses poucos possuem as soluções mínimas exigidas pela técnica.

É verdade, já que todos concordam: renovemos a nossa Marinha Mercante! F i g . 1 3

PG e PM homens nos rebocadores. A chamada falta de praça é a primeira e a mais PG navios saindo do porto. desastrosa consequência do número irrisório de navios, quer de cabotagem quer de longo curso. PM produtos embarcados e homens trabalhando.

Organizando a entrada de mercadorias; a Problemático e difícil, e disso sabe o nosso comércio, é colocação destas dentro do navio. A montagem o transporte de mercadorias por via marítima. Até 153

sugere a „precária‟ dinâmica de organizar a ontem, isto é, até o momento que o governo comprou carga. navios novos no Brasil a verdade era essa.

Os dois caçulas da nossa frota de passageiros possuíam o ônus 43 anos de idade quanto o limite de vida contábil de uma embarcação desse tipo é fixada em torno dos 20 anos.

Sim, renovemos a nossa Marinha Mercante, já que todos concordam.

F i g . 1 4

PG navios em alto-mar. PM passageiros: mães com filhos. A sugestão é de acomodação ruim para a viagem.

O tráfico de passageiros nos portos nacionais é feito a duras penas por um número diminuto de navios. O vovô da frota foi construído no tempo do Império. O número de passagens encontradas à venda é insignificante.

Mas, quem tem mais sorte? O que obteve passagem ou aquele que não encontrou um lugar no inenarrável F i g . 1 5 calhambeque. Esta é a dura realidade de alguns

PM marujos controlando o navio. setores da frota mercante de um País que possui 8 mil PM passageiros. Navios lotados. quilômetros de litoral.

Assim, já que todos concordam: renovemos a nossa Marinha Mercante!

O grave problema é o atraso sério na nossa vida econômica.

Um doloroso e absurdo estrangulamento de uma das mais genuínas fontes da riqueza e desenvolvimento, sem falar do próprio déficit da Marinha Mercante pago F i g . 1 6 pelo povo.

O filme inicia localizando o espectador sobre a situação em que se encontra a Marinha Mercante. O comentário sugere um passado de glória e um presente decadente. “É, hoje em dia, uma das menos numerosas, menos eficiente e que mais pesa no orçamento da República”. A denúncia de uma infraestrutura precária é enfatizada por imagens escuras e sujas. Na composição do quadro, não vemos trabalhadores, apenas pedaços dos navios vazios e desorganizados (fig. 11). Na continuação desta cena, revela-se um gato transitando por pedaços de madeiras à bordo. Sugere um clima de desolação e aponta a utilização deste espaço para 154 outros fins. Mulheres secam suas roupas e fazem do navio um local para fazer seu varal. Da mesma maneira, vemos um homem sozinho em uma banheira nas instalações do navio. O tom de abandono sugere a ocupação desses espaços por mulheres, homens e crianças (fig. 12). Em nenhum momento se remete à presença de trabalhadores em ação, como em Portos Paralíticos, ou mesmo usufruindo dos momentos de lazer explorados em A Vida Marítima. O comentário potencializa o tom pejorativo das imagens: desordem, “calhambeque”, e reúne elementos que reforçam a tese que irá percorrer todo o filme: “já que todos concordam. Renovemos nossa Marinha Mercante!” Não é à toa que o comentário parte do pressuposto de que toda a nação está em sintonia para arregimentar esforços no intuito de salvar a situação em que se encontra a Marinha Mercante. Trata-se de uma estratégia discursiva que indica ao espectador a exigência de um consenso pacífico que possibilite a unidade da nação para desenvolver-se economicamente. A segunda denúncia é a falta de manutenção e investimento na frota marítima. Diferentemente da primeira abordagem apresentada, vemos trabalhadores (fig. 13) utilizando instrumentos precários no reparo dos navios. “Há navios tão velhos que seus reparos levam semanas, meses, anos”. O empenho do trabalhador mostra-se vão, pois o destino desta antiga frota é “retornar em pouco tempo quebrado aos estaleiros”. É neste momento que a proposta cíclica do filme se estabelece ao retomar a conclamação do instituto: “É verdade, já que todos concordam: renovemos nossa Marinha Mercante!” Já a terceira denúncia desenvolvida em Uma Economia Estrangulada apresenta o número insuficiente da frota mesmo com a tímida aquisição do governo, assim como sugere que tal atitude foi ocasional e oportunista na tentativa de remediar a grave crise que a Marinha Mercante se depara. “Até ontem, isto é, até o momento que o governo comprou navios novos no Brasil, a verdade era essa”. É interessante notar que a denúncia se concretiza apenas no comentário, as imagens revelam trabalhadores (fig. 14). O ciclo se repete e a frase é resgatada novamente. A renovação da Marinha Mercante é a exaltação da verdade universal, “já que todos concordam”. Por fim, nesta dinâmica de enumeração de denúncias, o filme localiza as péssimas condições do transporte de passageiros (fig. 15-16). O descaso com mães e seus filhos, embarcações lotadas e precárias instalações para receber os

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passageiros, tudo pago pelo povo. Imagens “posadas” (fig. 15) e captadas no calor de uma viagem em uma embarcação qualquer (fig. 16) misturam-se. Reitera-se, então, o fio condutor de Uma Economia Estrangulada. “Assim, já que todos concordam: renovemos a nossa Marinha Mercante!” Este é o eixo de marcação de passagem entre as duas sequências. Sequência 2 Áudio Câmera Voz PG navio em alto-mar. Em destaque, o Sim, todos concordam: renovemos a nossa Marinha Mudança de Corcovado. Referência ao Rio de Janeiro. Mercante! trilha.

Que se incrementa a construção naval no país de maneira a substituir por unidades novas os barcos Triunfante. obsoletos e antieconômicos.

Que se estude seriamente as causas que levaram nossa Marinha Mercante, próspera e rendosa no princípio do século, a triste realidade atual.

Não basta construir novos navios, é preciso modernizar e racionalizar os nossos métodos visando baratear o custo de transporte marítimo em benefício F i g . 1 7 do bem-estar do nosso povo.

Em ambas as sequências, o filme se apresenta como aquele que tem autoridade para apontar o descaso com a Marinha Mercante, ao denunciar todas as dificuldades que ela enfrenta, assim como para propor a solução que irá resolver a crise. A perspectiva de revelação da “verdade” por meio da composição do comentário está em sintonia não só com a composição dos quadros apresentados (fig. 17), que sugere a soberania da embarcação em alto-mar, mas também com a sugestão triunfante de um tom melódico presente na trilha que aponta as exigências do IPES. Ao apresentar a solução, a voz do narrador assume a postura de uma explanação que mais se apresenta como um manifesto – “Que se incremente a construção naval [....]; que se estude seriamente as causas [...]” - do que um comentário solto em complemento às imagens. Neste momento, é interessante notar que no filme a voz do instituto personaliza a perspectiva do cidadão e faz uma sutil provocação à gerência do Estado. “Não basta construir novos navios, é preciso modernizar e racionalizar os nossos métodos visando baratear o custo de transporte marítimo em benefício do bem-estar do nosso povo”. A fig. 17 apresenta um aspecto até então inédito neste filme. Vemos a referência geográfica ao Rio de Janeiro ao fundo. A sugestão é de uma cidade 156 simbólica da nação, que potencializa o reconhecimento dos espectadores nos circuitos de cinema distribuídos por todo o Brasil através da rede oferecida por Jean Manzon. Trata-se de uma longa tomada que acompanha o percurso do navio em alto-mar, altivo e imponente. Uma metáfora do que a Marinha Mercante deveria se tornar, “já que todos concordam”.

A VIDA MARÍTIMA

Ficha técnica Duração: 9 min. Ano de produção: 1962 Narrador: Luiz Jatobá283 Imagem e Montagem: n/c Produção: Cineservice/ Jean Manzon Films284 Realização: Instituto de Pesquisa e Estudos Sociais

A Vida Marítima foi o último filme produzido pelo IPES que tinha como tema geral retratar o comércio de mercadorias por meio do transporte marítimo. Ao contrário da abordagem explorada nos documentários Portos Paralíticos e Uma Economia Estrangulada, que, ao retratar os problemas do transporte de mercadorias e pessoas, optam por um discurso que potencializa o descaso do Estado, em A Vida Marítima o ponto de vista centra-se na atuação do Instituto de Aposentadoria e Pensões dos Marítimos e do Sindicato dos Estivadores do Porto de Santos. Embora a denúncia da ação dos sindicatos e a apresentação das contribuições ao trabalhador sindicalizado ser o mote principal do filme, a primeira sequência preocupa-se em apresentar a boa vida da gente do mar. O desempenho do sindicato que, segundo a tese defendida pelo curta, garante tais vantagens, revela-se apenas em um segundo momento. Neste sentido, o objetivo é mostrar uma imagem extremamente positiva do trabalho dos marinheiros, portuários e estivadores: vida saudável, boa comida, bons salários, ótima aposentadoria – exemplos emblemáticos presentes na produção e montagem das imagens285. Mas é

283 Assim como nos documentários Portos Paralíticos e Uma Economia Estrangulada, em A Vida Marítima também não há referência do narrador na cópia analisada. Seguiremos o mesmo encaminhamento dos curtas anteriores ao creditar a voz a Luiz Jatobá. 284 Nos créditos iniciais, vemos a produção Cineservice. Além de A Vida Marítima, o único filme ipesiano que apresenta o nome Cineservice é Conceito de Empresa que, inclusive, relaciona tal produção com a empresa Jean Manzon Films. Desta maneira, acreditamos que tal filme seja de autoria de Manzon. 285 Em reunião do Comitê Diretor, registra-se o comentário sobre a importância de um filme que fizesse um “levantamento do Cais do Porto”. De tal maneira que esta estruturação diferenciada do 157 no comentário que podemos encontrar a exploração da denúncia, desta vez, sustentada por certa dose de ironia. Diferentemente de Portos Paralíticos e Uma Economia Estrangulada, nos quais a imagem era confirmada pela condução do comentário, aqui se revela o contrário. Aparentemente o filme nos permitiria refletir sobre os benefícios da profissão, mas o comentário trabalha a fim de denunciar os privilégios e as regalias da categoria. Esta era composta por estivadores, trabalhadores portuários e funcionários das administrações portuárias: a Cia. Docas de Santos286. O intuito é descaracterizar a péssima qualidade de trabalho que as manifestações da baixa oficialidade de marítimos e trabalhadores da estiva questionavam na época. Durante a década de 1960, a mobilização dos trabalhadores da estiva e da Marinha Mercante nacional resultou em um aumento das manifestações e greves que paralisaram as atividades dos portos nacionais e, particularmente, as atividades do porto de Santos287. Tais manifestações marcaram presença até às vésperas do Golpe Militar, quando diversos líderes foram perseguidos ou obrigados a atuar na clandestinidade contra o regime que se instaurou. Contudo, é importante ressaltar que a atuação do Sindicato dos Estivadores de Santos, sem dúvida, um dos principais do país, remonta sua intensa atividade desde sua fundação na década de 1930. Período em que os trabalhadores já se organizavam para ampliar as

filme pode ser resultado da direta interferência da solicitação ipesiana. FUNDO INSTITUTO DE PESQUISA E ESTUDOS SOCIAIS. Arquivo Nacional/ CODES. Código QL. Reunião Comitê Diretor, 12 fev. 1962. 286 Como dito na análise do filme Portos Paralíticos, a Cia. Docas de Santos era uma das principais contribuintes do instituto. 287 Em 2 de julho de 1960, 53 sindicatos decidiam pela paralisação total do porto de Santos, fato que se repetiria no dia 18 de outubro daquele mesmo ano com o movimento paredista do Sindicato dos Estivadores de Santos. No ano seguinte, duas novas paralisações abalariam o porto. Em 10 de fevereiro, em protesto contra as más condições de segurança no trabalho, que levaram à morte três portuários e feriram gravemente outros quinze, e em 05 de agosto, em protesto contra as ameaças de prisão feitas pelo comandante da Capitania dos Portos a jornalistas e dirigentes sindicais, que se encontravam com sua atenção voltada às reivindicações da classe portuária. A reivindicação pelo pagamento por produção seria o motivo principal da primeira grande greve no porto em 16 de março de 1962, organizada por empregados da Companhia Docas de Santos, com a colaboração de estivadores e outros trabalhadores do cais. Menos de dois meses depois, em 8 de maio, todos os sindicatos paralisariam não só o porto, mas toda a baixada santista. Nova greve geral ocorreu no dia 05 de julho. Novamente, em 23 de agosto de 1962, o porto voltava a paralisar, com os operadores das máquinas e motoristas da Companhia Docas de Santos reivindicando acréscimo referente ao pagamento do salário por produção. E, em 13 de setembro daquele mesmo ano, nova greve paralisaria a baixada durante cinco dias em protesto contra prisões de líderes sindicais. Essas manifestações prosseguiram até abril de 1964 quando o Golpe Militar coibiu definitivamente todas as reivindicações dos sindicatos ligados ao porto. (MENDES, 1992 apud CORRÊA, 2005, p. 94) 158

conquistas trabalhistas: garantir melhores salários e principalmente diminuir a jornada de trabalho. Para se ter uma ideia, o Instituto de Aposentadoria e Pensões dos Marítimos foi criado ainda em 1933 e foi a primeira classe de trabalhadores no Brasil a se beneficiar de um salário após anos de serviço. Com o projeto desenvolvimentista do governo de Juscelino Kubitscheck, o porto de Santos ampliou seu pátio de atividade. Concomitantemente, a exploração das rodovias associada à instalação das montadoras, a partir de 1957, em São Paulo, elevou ainda mais a dinâmica de trabalho do porto de Santos. Para Olga Rodrigues (1979), devido ao crescimento significativo da atividade portuária, o Sindicato dos Estivadores de Santos solidificou sua presença junto aos trabalhadores ao oferecer à crescente demanda dos serviços portuários um elemento essencial a suas atividades: mão-de-obra. Dessa maneira, o Sindicato conseguiu garantir aos sindicalizados salários e benefícios que eram criticados pelo IPES como “um mundo à parte da realidade brasileira”. No filme A Vida Marítima não há imagens que exploram o trabalho, mas sim que desautorizam qualquer ação reivindicatória da categoria na manutenção das taxas portuárias. Certamente, esta não é uma associação direta dada pelo discurso do filme. É possível compreender tal percepção mergulhada no contexto político da época, frente à força do Sindicato dos Estivadores de Santos e suas reinvindicações. No filme, o clamor do IPES está na comprovação de uma tese que sustenta o excesso dos privilégios que a classe trabalhadora usufruía. Em busca de sistematizarmos um estudo mais preciso, o curta foi organizado em três sequências: Sequência 1 Áudio Câmera Voz Trilha, PG navio em alto-mar, a câmera acompanha o instrumental, balanço. PG capitão olhando ao horizonte e suave e marujo em 2º plano ao leme. descontraída.

Para a tripulação a vida a bordo de um navio brasileiro é particularmente saudável.

F i g . 1 8

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PM partes externas do navio: a proa, a vela, a água sendo cortada pelo avanço do navio.

PM comandante ao fundo trabalhando. PD cap. O comandante é um só. Senhor absoluto do navio. Destaque.

Traveling para o marujo colocando almoço Mas em grande número são os comandados. A abastado à mesa para o comandante do navio. tripulação brasileira é numericamente o dobro da que PM marujo ao leme. faz o mesmo trabalho em navios de outras nações.

Corte para os trabalhadores na casa de máquinas no navio. Critério que onera o transporte, aumenta o preço dos produtos e sacrifica toda a nação. Marujos na piscina do navio, brincando com bolas e boias. Jogando damas, ping-pong, brincando. Sorrisos e risos. Muita alegria. Além de saudável, a vida a bordo é divertida nos Trilha momentos de ócio. instrumental, alegre e divertida. A boa gente do mar não perde tempo. Quando chega o momento de descanso, pois há muito as travessias oceânicas deixaram de ser a rude canseira cantada pelos poetas de séculos passados.

F i g . 1 9

PM marujos descansando. Fumando cigarro, dormindo.

Cozinha em movimentação. O cozinheiro preparando a comida. PD comida que parece De boa qualidade é o passa dia dos marinheiros. Um deliciosa. Um cachorro saudável pedindo e ajudante de cozinha recebe até 9 mil cruzeiros por mês latindo pela comida. Abundância. além de cama, comida e roupa lavada.

PD bússola e, em seguida, da mão do marinheiro que sugere sua condução. PG navio Tudo funciona perfeitamente. A mão firme do em alto-mar. marinheiro levará o navio a um porto seguro.

Marujos se arrumando na frente do espelho.

Na aproximação de terra, a marujada capricha na toalhete.

F i g . 2 0

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Desde o início a sugestão de uma atmosfera de tranquilidade que irá perdurar por todo o filme se estabelece. A abertura do documentário288, ainda nos créditos iniciais, apresenta uma embarcação em alto mar navegando em águas calmas (fig. 18). A trilha instrumental embala a tranquilidade indicada pelas imagens com uma melodia suave e descontraída. Este equilíbrio está garantido pela ordem e extrema eficiência daqueles que a executam e proporcionam ao “homem do mar” conforto, diversão e lazer. Vantagens que serão exploradas nas cenas seguintes. Contudo, pontuar a presença daquele que lidera a embarcação nos parece uma evidência essencial a ser destacada nesta abertura. Afinal, a manutenção da ordem para o progresso é um dos fundamentos ipesianos a fim de combater a instabilidade política. Neste sentido, o filme localiza a autoridade: o comandante, “senhor absoluto do navio”. Sua condução responsável está afinada ao desencadeamento das imagens que revelam não só o símbolo de seu posicionamento hierárquico no navio – seu cap –, mas também sua prontidão em serviço. O olhar fixo no horizonte até em noites escuras. A denúncia surge no comentário ao destacar o excessivo número da tripulação do país. Segundo o narrador, “o dobro da que faz o mesmo trabalho em navios de outras nações. Critério que onera o transporte, aumenta o preço dos produtos e sacrifica toda a nação”. Diferentemente da estratégia de montagem de Portos Paralíticos e Uma Economia Estrangulada, na qual as denúncias do comentário eram sempre reiteradas pelas imagens, em A Vida Marítima, a estratégia é menos emblemática. Trata-se de insinuar o excesso das vantagens e das regalias que “a boa gente do mar desfrutava”. Não há imagens que remetam a um cotidiano árduo ou que indiquem tensão. Os enquadramentos de marinheiros em navios equipados e acomodações confortáveis mais referenciam embarcações destinadas ao lazer (fig. 19-20) que veículos comerciais dirigidos ao transporte de mercadorias e ao comércio entre países. A presença dos banhos de piscina, do jogo de damas e ping-pong, do

288 A sequência inicial de A Vida Marítima reproduz as cenas finais de Uma Economia Estrangulada. Cena noturna em que o enquadramento revela o comandante (à direita, em primeiro plano) de prontidão e olhando atentamente o mar e seu auxiliar (à esquerda, em segundo plano) ao leme. É interessante observar também que ao longo da análise destes três documentários, que retratam o transporte marítimo de mercadorias e pessoas, diversas imagens são repetidas na montagem não só no mesmo filme, como no caso observado em Portos Paralíticos, mas também entre eles. 161 descanso e até mesmo a “autorização” concedida para desfrutar de sonhos fantasiosos – quando a montagem sugere que o marujo está sonhando com as mulheres dos pôsteres colados em sua cabine – nos mostram que a exacerbação das vantagens deixa de lado os problemas político-sociais do momento. Ainda nesta sequência alguns objetos que se fazem presentes tanto no quadro propriamente dito, como também representado no comentário, são localizados em situações que conferem certa brasilidade ao filme. Um marujo tocando violão, outro alimentando um papagaio, a brincadeira com cigarro na movimentação dos lábios e até as sobras de comida oferecidas ao cachorro (bonito e bem cuidado) a bordo são elementos visuais explorados pelo filme. Nesta mesma sintonia, o comentário também tenta aproximar o espectador desta cotidianidade pautada por hábitos, costumes e expressões presentes na cultura. “Além de cama, comida e roupa lavada, um ajudante de cozinha recebe até 9 mil cruzeiros por mês”. Trata-se de uma referência direta à expressão “casa, comida e roupa lavada” que sugere conforto e certamente a brincadeira com um elemento “decisivo de convencimento para o matrimônio”, neste caso, para a dedicação exclusiva à vida marítima. Se por um lado o filme revela a preocupação em agregar elementos à cena que potencializem ao espectador a veracidade daquele material, por outro, tais signos acabam por rotular os personagens apresentados. A proposta de filmar a “vida real” dos marujos é encenada, idealizada. É nesse pequeno detalhe que, para nós, o filme é revelador. A afirmação ideológica do IPES se apropria de elementos culturais e os inserem no corpo do texto audiovisual para corroborar as vantagens da profissão. Ao enfatizar a “boa vida”, os personagens revelam sua brasilidade. Neste momento, o filme não os apresenta como um trabalhador qualquer, distante da câmera. Em A Vida Marítima, mesmo que discreta, há uma sutil preocupação de aproximar esses marujos do espectador. Seus rostos, em plano detalhe, são mostrados, seus hábitos (fig. 20) são revelados. Diferentemente de Portos Paralíticos e Uma Economia Estrangulada, nos quais a exploração das imagens rementem exclusivamente à representação da força de trabalho. Ainda que notemos esta diferença entre os filmes, a ideia de coletivo se mantém mais intensa. E a projeção desta força do grupo será justificada nas próximas sequências no que

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se refere à “boa” aposentadoria, por meio do Instituto de Aposentadoria e Pensões dos Marítimos (Sequência 2), e a vigilância da qualidade das condições de trabalho exemplificada pelo Sindicato dos Estivadores de Santos (Sequência 3). Sequência 2

Áudio Câmera Voz Trilha Navio com trabalhadores marítimos se É da terra que o país subvenciona as empresas instrumental, aproximando do cais e desembarcando. marítimas estatais e é em terra que os homens do mar ritmo de defendem seus interesses e aspirações. trabalho, PD placa do Instituto, descendo em traveling conclamação. para um funcionário carregando bolos de Instituto de Aposentadoria dos Marítimos. Essa é a dinheiro. Equilibrando-os. casa que embala o marinheiro em Terra.

Livro caixa abre-se e mostra o dinheiro da O marítimo consegue aposentar-se muito novo, aposentadoria. homens de 40 a 45 anos entram mensalmente nas filas para receber seus proventos postos em sossego. PM mãos recebendo o dinheiro.

PG e PM funcionários recebendo dinheiro com muitas notas, muito volume. O marujo brasileiro tanto em terra quanto a bordo é um homem feliz. Sem maiores problemas. O aumento Rostos sorrindo. médio da classe dos marítimos elevou-se 1000% em 9 anos.

Muitos bem preferem receber através de um procurador. Ele também deve ser um homem feliz.

F i g . 2 1

PM procurador. Designado a receber e

distribuir os salários aos funcionários.

PD dinheiro embalado no jornal.

Os portuários, homens que trabalham nos cais e armazéns, também pertencem à vida marítima.

F i g . 2 2

PM trabalhadores dirigindo máquinas.

Atuação dos portuários. 163

E a vida marítima pertence igualmente aos estivadores, homens fortes que trabalham na carga e na descarga dos navios. Enquanto um grupo trabalha. O outro aguarda o seu turno.

F i g . 2 3 No sindicato dos estivadores dificilmente são admitidos novos membros. PM trabalhadores carregando sacos de grãos.

Atuação dos estivadores.

PG homens à espera de trabalho. PD mãos.

Por isso, quando é grande a demanda de mão de obra, é preciso apelar para os jovens não sindicalizados e apenas matriculados na Capitania dos Portos. Os “bagrinhos” como são chamados na gíria santista.

F i g . 2 41

Seguindo a proposta de denunciar as inúmeras vantagens usufruídas pelo trabalhador marítimo, como alimentação saudável, lazer e descanso, desenvolvidas na primeira sequência, neste momento o filme explora a possibilidade de aposentadoria precoce. Essa segunda sequência inicia com a apresentação do Instituto de Aposentadoria e Pensões dos Marítimos. O direito ao descanso, entre 40 e 45 anos, é potencializado pelo comentário que faz referência ao marítimo que consegue se aposentar “muito novo”. O elemento que se destaca na enumeração das cenas é a presença marcante da quantidade de notas de dinheiro. Organizadas em maços e distribuídas aos marítimos, o exagero torna-se caricato. É tanto volume destinado ao trabalhador que o tesoureiro quase se desequilibra em carregá-lo, se atrapalha ao contar os maços de notas e chega, inclusive, a embrulhá-lo em um jornal (fig. 22). A provocação do comentário que “o marujo brasileiro tanto em terra quanto a bordo é um homem feliz, sem maiores problemas” revela nas imagens de trabalhadores alegres e confiantes em fila recebendo suas volumosas contribuições. O quadro sugere mais uma alegoria de distribuição de dinheiro do que uma entrega 164

justa à sua dedicação de trabalho. A figura do procurador também é destacada neste contexto (fig.21). Homem de confiança, o comentário sugere que assim como os marítimos, ele “também deve ser um homem feliz”. Em seguida, o filme apresenta os demais trabalhadores que também fazem parte da “vida marítima”. Portuários e estivadores são inseridos neste contexto, valorizando-se, desta vez, o trabalho em terra no cais e armazéns. Localizamos aqui um breve momento em que o filme revela trabalhadores transportando sacos de mercadorias e operando máquinas. Embora estejam executando serviços que necessitam de extremo vigor físico na lida diária com a movimentação de mercadorias, portuários e estivadores são apenas apresentados no quadro (fig. 23). O enfoque é o coletivo. “Enquanto um grupo trabalha. O outro aguarda o seu turno”. Diferentemente de Portos Paralíticos e Uma Economia Estrangulada, não há imagens que denunciem condições ruins de trabalho ou até mesmo falta de infraestrutura no porto. Pelo contrário, são funções inclusive extremamente disputadas pelos “bagrinhos” – jovens não sindicalizados, mas matriculados na Capitania dos Portos – quando a procura por mão de obra aumenta. Vemos no quadro mãos estendidas com carteiras de trabalho em punho (fig. 24). Não há lugar para muitos e “no sindicato dos estivadores dificilmente são admitidos novos membros”. O comentário reforça a sugestão de uma categoria unida, forte, extremamente organizada e, acima de tudo, disposta a defender exclusivamente os seus direitos. Pensava-se no coletivo, mas um coletivo apenas da categoria e não no desenvolvimento e progresso da nação. Este momento apenas anuncia o direcionamento principal da última sequência do filme. Sequência 3 Áudio Câmera Voz Trilha PD placa do Sindicato dos Estivadores de instrumental, Santos.. ritmo de trabalho se impondo no trabalho dos estivadores. Sindicato dos Estivadores de Santos.

F i g . 2 5 A classe poderosa e altamente organizada é constituída de membros vitalícios. É ela que comanda a

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PD ficha de um estivador da matrícula da vida do porto conseguindo fixar salários, condições de Capitania dos Portos com foto e registro. PM trabalho, gratificações, taxas e tudo mais. carteira de trabalho entregue ao funcionário.

PG sindicalizados a caminho da Assembleia As reuniões da assembleia do Sindicato são de fato Geral. PG mesa que compõe o sindicato com reuniões, isto é, fazem a força da união de todos os bandeiras e, ao centro, o Presidente membros de uma classe. discursando. Câmera fixa “posada”. Ruptura.

Trilha instrumental em marcha, Aqui o comandante é outro. Trata-se do Presidente do conclamando Sindicato. Homem invariavelmente firme, corajoso e sindicalizados decidido e admirado calorosamente pelos à Assembleia sindicalizados. Geral.

Aplausos de F i g . 2 6 apoio. As reuniões formam a retaguarda de defesa dos altos PD presidente do sindicato em discurso. PG salários. sindicalizados e os aplausos de apoio.

Taxas comuns e extraordinárias, taxas de horário e almoço, taxas noturnas, de insalubridade, de mal tempo, taxa de periculosidade. Desdobrando-se sempre, somando-se uma as outras acabam elevando o salário de um estivador a 200 mil cruzeiros por mês.

O comércio e a indústria dependem desses homens.

F i g . 2 7 PG estivadores e portuários trabalhando em conjunto. Mostrando grande entrosamento e harmonia. A vida brasileira repousa sobre a estiva. PD muitas carteiras profissionais em uso. PD de uma carteira com a imagem de Nossa O bom andamento de quase todas as atividades Senhora da Aparecida. nacionais depende dos Portos.

A estiva é um mundo a parte da realidade brasileira. É preciso entendê-lo bem para entendê-la.

Sim, marítimos e portuários constituem um mundo à Trilha parte. Eles resolveram particularmente todos os seus instrumental, problemas. ritmo de trabalho mais F i g . 2 8 suave. PG trabalhadores no cais do porto ao final de um dia de trabalho.

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Esta terceira sequência inicia com a apresentação destacada do Sindicato dos Estivadores de Santos (fig. 25). Para o IPES, trata-se da “classe poderosa e altamente organizada constituída de membros vitalícios. É ela que comanda a vida do porto conseguindo fixar salários, condições de trabalho, gratificações, taxas e tudo mais”. A recorrente desaprovação dos benefícios da categoria, neste momento, orienta a exposição de um sindicato forte, em combate por suas “regalias”: “as reuniões formam a retaguarda de defesa dos altos salários”. A provocação presente no comentário, no que se refere ao poder de atuação do sindicato na reinvindicação de melhores salários e condições de trabalho, desautoriza as greves e manifestações recorrentes não só do período, mas tradicionalmente constantes, como já mencionamos. Assim como nos demais documentários sobre o transporte de mercadorias e pessoas, a apresentação dos personagens que compõem o filme reforçam modelos idealizados. Nesta sequência, destaca-se o presidente do sindicato. “Homem invariavelmente firme, corajoso e decidido e admirado calorosamente pelos sindicalizados”. O plano que o apresenta (fig. 26) sugere seu poder e sua influência com os trabalhadores sindicalizados do porto. Como vemos, o quadro localiza o presidente ao centro, único que está de pé, em destaque aos demais sentados à mesa. Ao fundo, vemos a bandeira do Brasil e do estado de São Paulo compondo harmonicamente o quadro. A influência mencionada acima pode ser percebida na dinâmica de montagem dos quadros. O “comandante” do sindicato discursa e o coletivo apoia (fig. 27). A valorização do poder do sindicato também pode ser notada na trilha que, em marcha, chama os sindicalizados à sala de reunião para a Assembleia Geral. Em seguida, podemos ouvir aplausos. Notória demonstração de apoio e credibilidade ao líder. Desta vez, o comentário mantém a estratégia de denúncia dos “excessos” localizando marítimos e portuários sob a tutela do sindicato. Esta característica de proteção sugere que os trabalhadores desfrutam de uma condição especial, destoada da realidade nacional. Marítimos e portuários não só “constituem um mundo à parte, mas também resolvem particularmente todos os seus problemas”. Para o IPES, aqueles que desempenham esta função aproveitam de privilégios que não condizem com o sacrifício que a nação deveria fazer para alcançar o tão desejado “progresso”.

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Por fim, como observado na primeira sequência, alguns objetos ou comentários incorporados à cena e que adicionam ao discurso fílmico referência a certa brasilidade também se fazem presentes neste último trecho. Gostaríamos de destacar um exemplo emblemático. Em plano detalhe, vemos diversas carteiras de trabalho dos marítimos e portuários. Uma especialmente se destaca: nela está presente a imagem de Nossa Senhora (fig. 28). Este caso, em particular, demarca a constante presença de símbolos que remetem aos valores cristãos defendidos pelo IPES e que permeiam todos os documentários. A bênção e a autorização dos propósitos do instituto também está presente neste filme tanto na abertura quanto no encerramento na referência da Carta Encíclica Mater et Magistra.

HISTÓRIA DE UM MAQUINISTA

Ficha técnica Duração: 9 minutos Ano de produção: 1962 Narrador: Luiz Jatobá Imagem: n/c Montagem: Floriano Peixoto, Ubirajara Dantas e Irene Soares Produção: Jean Manzon Films Realização: Instituto de Pesquisa e Estudos Sociais

Este filme apresenta uma característica peculiar que destoa do exercício da análise da maioria dos demais documentários ipesianos. Em História de um Maquinista o recorrente comentário em voz over (Nichols, 2008) que não revela o narrador é abandonado. Trata-se de um personagem, um maquinista-narrador289 que expõem suas angústias e preocupações sobre a rede ferroviária nacional, o único filme do instituto a explorar especificamente tal tema. História de um Maquinista segue a proposta do instituto de denunciar a administração sob a tutela federal e enaltecer o exemplo privado como a única alternativa para viabilizar economicamente o transporte e torná-lo mais seguro. Assim como em Uma Economia Estrangulada, aqui o discurso também se dedica ao transporte de pessoas. A malha ferroviária nacional, coordenada pelo Estado desde a criação da RFFSA (Rede Ferroviária Federal), em 16 de março de 1957,290 é

289 Tal característica é também desenvolvida no filme Deixem o Estudante Estudar que compõe o 3º. bloco desta análise. 290 A Rede Ferroviária Federal Sociedade Anônima (RFFSA) era uma sociedade de economia mista integrante da Administração Indireta do Governo Federal, vinculada funcionalmente ao Ministério 168 acusada de abandono e ineficiência. Sua indicação está exposta nas imagens da Central do Brasil, no Rio de Janeiro.291 Diferentemente de Portos Paralíticos, em que a denúncia às administrações portuárias é feita de maneira genérica, em História de um Maquinista percebe-se que o maquinista, protagonista do filme, conduz o ponto de vista identificando pontualmente os locais em que as dificuldades do transporte de passageiros são enfrentadas com maior recorrência. Para tanto, identifica as linhas do subúrbio do Rio de Janeiro, Mangueira, da Ciência, de Anchieta, Nova Iguaçu, como aquelas que “assinalavam pavorosas tragédias”. Aqui podemos identificar algumas características do docudrama. Na tentativa de reconstruir uma história baseada em fatos reais, como a tragédia do Méier292, o maquinista-narrador ressalta suas impressões pessoais no comentário: “Quantos mortos, quanta tragédia!” Segundo Santos (2009), a estrutura típica do docudrama é composta por fatos transformados em tramas, uso de locução, atores não conhecidos do grande público, mas parecidos fisicamente com as pessoas retratadas, intensa carga melodramática e com forte apelo moral. Em suas reflexões, ele nos aponta o docudrama

como sendo um formato híbrido resultante da fusão entre documentário e drama, mais especificamente melodrama, onde questões éticas e morais ganham destaque. Assim como o documentário, o docudrama busca reconstruir ou retratar fatos históricos. [...] constrói o discurso em uma relação híbrida com o melodrama clássico, na qual questões humanas, familiares, sentimentais, condutas das personalidades, catarses são postas em destaque. (ROSENTHAL, 1999 apud SANTOS, 2009, p. 2)

dos Transportes. Sob a lei n.º 3.115. A RFFSA unificou 18 ferrovias regionais. A ela caberia “administrar, explorar, conservar, reequipar, ampliar, melhorar e manter em tráfego as estradas de ferro a ela incorporadas”. Em 1992, a RFFSA foi incluída no Programa Nacional de Desestatização. Plano de governo de Itamar Franco (1992-1994), sob a coordenação do Ministro das Relações Exteriores Fernando Henrique Cardoso. Oficialmente, a RFFSA foi dissolvida em 1999. Ocasião em que, em seus dois mandatos como presidente da República (1995-2002), Fernando Henrique Cardoso deu continuidade ao processo de concessão a iniciativa privada. Inventariança da Extinta Rede Ferroviária. Disponível em: . Acessado em 19 fev. 2012. 291 A Estrada de Ferro Central do Brasil (EFCB) fazia parte do patrimônio incorporado a RFFSA em 1957. 292 Trata-se de um tradicional bairro na zona norte do Rio de Janeiro, palco de muitos acidentes de trem. Cortado pela estrada de ferro Central do Brasil, é possível ressaltar que a história do Méier se confunde com a dos trens. Para se ter uma ideia, o aniversário da sua estação ferroviária é utilizado como data de fundação do bairro: 13 de Maio de 1889. Neste curta, o narrador comenta sobre "um acidente ocorrido em maior de 1958, quando dois trens se chocaram, matando 130 pessoas e ferindo outras 200. Laudo da perícia concluiu pela culpa do maquinista de uma das composições e pelo controlador". Informação disponível em O Globo, sobre outro acidente ocorrido em 2007. Disponível em . Acessado 7 out. 2011. 169

De fato, o filme é conduzido pelas impressões pessoais de um maquinista experiente. A prova de sua autoridade se dá na revelação das imagens de denúncia sob a tutela de seus comentários a respeito da decadência da malha ferroviária nacional. Neste sentido, podemos destacar que o protagonista do filme é a representação do IPES como um personagem. Ao incorporar como pessoal o ponto de vista ipesiano, o protagonista não só denuncia as péssimas condições no transporte dos trens de passageiros, mas também indica a solução por meio da iniciativa privada. O contraponto é a Companhia Paulista de Estradas de Ferro. Empresa privada cuja administração “exemplar” havia sido entregue recentemente ao governo do estado de São Paulo. A estatização ocorreu em 1961, após as greves pela encampação, ocorridas em fevereiro de 1959, março de 1960 e junho de 1961. O movimento grevista exigia a retomada da administração pelo Estado, mesmo durante o prazo de concessão, por motivo de interesse público293. Segundo Zambello (2007), até os anos 1960 as ferrovias tinham importância estratégica na economia brasileira e os sindicatos ferroviários desempenhavam significativa função na organização de greves de caráter político e econômico. A presidência de Juscelino Kubitschek provocou grandes transformações na economia brasileira que, neste caso, priorizou o transporte rodoviário em detrimento do transporte ferroviário. Fator que contribuiu para que o investimento na manutenção e expansão da malha ficassem aquém das necessidades. Neste sentido, é interessante notar que o filme não traz referências sobre a opção federal pelo avanço desenvolvimentista pautado pela expansão das rodovias e do setor automobilístico, sequer sobre os movimentos pela encampação promovidos pelas organizações operárias. A dicotomia se mantém exclusivamente em expor as distintas qualidades e sugerir o “certeiro” declínio da Cia. Paulista incorporada nas palavras do maquinista: “agora já é difícil prever o seu futuro”. O propósito segue a fórmula ipesiana: denunciar a administração pública e engradecer a iniciativa privada. Em História de um Maquinista, dividiremos a análise em duas sequências que se mostraram bem pontuais. A primeira parte se dedica à exposição dos problemas

293 Para mais informações, ver ZAMBELLO, 2005. 170

enfrentados pela rede ferroviária nacional e a abordagem das tragédias citadas frente ao descaso das administrações públicas, para, em seguida, localizarmos a experiência particular associada à solução proposta pelo instituto. Sequência 1 Áudio Câmera Voz Trilha PG e PM trabalhadores nos trilhos. Colocando Eles contam uma história bastante lamentável. Os instrumental. os dormentes. descaminhos do sistema ferroviário. Fazer novas estradas, fizemos. Poucas, mal traçadas. Em geral, por Forte e PM maquinista: o narrador. meio de processos antiquados, lentos. Tão lentos. intensa

Fui anos e anos, um maquinista meio cansado. Amargurado com as catástrofes habituais das estradas de ferro.

A tragédia do Méier se deu porque o maquinista F i g . 2 9 entregou a direção do trem a um estranho. Quantos mortos, quanta tragédia! PD trem descarrilhado. PD corpos embaixo Funcionário dos trilhos. Eu reparava que a má qualidade do serviço se estendia diz: alô? Alô? a outros setores do mundo ferroviário. As coligações, Fala! PG e PM funcionário tentando se comunicar fator de segurança, eram abaixo de medíocres. por telefone. Neste Velhas e carcomidas máquinas a vapor sacolejavam momento, a pelas linhas, vagarosas, antieconômicas, sujando tudo, trilha começa PG trem em movimento. Revela-se o contato comprometendo todos os horários. Leitos de estrada a se colocar dele com os trilhos. A dificuldade e esboroavam-se pouco a pouco. Trilhos cediam ao peso em tom precariedade do sistema é colocada em do trem, trilhos apodreciam. Uma coisa triste de se ver. crescente evidência. E o perigo estava em todos os lugares.

PG multidão à espera do trem. As linhas de subúrbio também não satisfaziam as Sobe trilha, PM passageiros. Dificuldades de embarque. condições mínimas de conforto e segurança. Trens enfática tomados de assalto ao passageiro, carros absurdamente lotados.

Comboios entupidos, uma lástima. E dizer que este mesmo povo contribui com impostos ferroviários com a ordem de 50 bilhões de cruzeiros. Um pingente, uma fatalidade com a falta de carros. Era a criatura mais otimista do mundo.

Nunca me esqueci de Mangueira, da Ciência, de F i g . 3 0 Anchieta, Nova Iguaçu: nomes que assinalavam

pavorosas tragédias. Nunca me esqueci de que o PM maquinista conduzindo o trem. passageiro era a grande vítima do caos ferroviário.

Seria por falta de recurso que as nossas estradas se achavam em tão estado de ineficiência? Não creio.

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A culpa maior é o excesso de burocracia, da interferência política, do empreguismo, da irresponsabilidade, da inexistência, enfim, de uma política de transportes. O público pagava por isso. O país pagava pela desordem ferroviária.

F i g . 3 1

PG e PD passageiros em condições de insegurança durante a viagem.

O documentário se inicia com a apresentação do protagonista do filme. Primeiramente, ouvimos sua voz que revela a história que deseja contar: “os descaminhos do sistema ferroviário”. Para, em seguida, apresentar no quadro o personagem do filme. Vemos, em plano médio, um maquinista-narrador lendo jornal. Encostado à locomotiva, ele é caracterizado em um momento de pausa, de descanso. Diferentemente de Vida Marítima, em que o comandante do navio está representando em prontidão, uniforme impecável, em serviço, em História de um Maquinista a situação é inversa. Vemos um funcionário descuidado e cansado (fig. 29). A ação que se apresenta no quadro sob a indicação da voz o revela coçando a cabeça. Seu cap fica desalinhado e potencializa uma sugestão de desleixo e descaso. “Fui anos e anos, um maquinista meio cansado. Amargurado com as catástrofes habituais das estradas de terra”. Neste momento, o ponto de vista do filme se estabelece no discurso de denúncia exposto tanto no comentário do narrador-protagonista como nas imagens apresentadas. O primeiro aspecto significativamente explorado é a tragédia do Méier. Vemos os trens amassados devido ao impacto da colisão, detalhe de pedaços dos vagões de ferro retorcidos, corpo preso entre os trilhos e o vagão e até mesmo um braço pendurado. Potencializada pela dramaticidade da voz (“Quantos mortos, quanta tragédia!”) e pela lamentosa trilha instrumental, as imagens têm por objetivo oferecer a autenticidade necessária das provas que garantem o despreparo da rede ferroviária. Posteriormente, o filme explora as dificuldades de comunicação entre as estações. Vemos um funcionário tentando fazer contato ao telefone. Neste momento, percebemos um elemento sonoro diegético pouco comum nos filmes

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ipesianos, mas que aqui ganha força em sua composição. Ouvimos a voz do funcionário em sincronia com sua ação: Alô? Alô? Fala! As imagens mostram técnicas ultrapassadas de construção de estradas de ferro, velhas e carcomidas máquinas a vapor, dormentes corroídos, trilhos apodrecidos e equipamentos antieconômicos; problemas técnicos enfrentados pelo sistema ferroviário denunciado pelo maquinista experiente. Segundo ele, o perigo está “em todos os lugares”. Para ampliar o estado de descuido com as operações ferroviárias, a superlotação (fig. 30) e a precária segurança oferecida aos passageiros no embarque e desembarque nas estações também é destacada. É interessante ressaltar que na composição desta série de imagens localizadas no tumultuado acesso dos passageiros aos trens não se reconhece nenhum objeto ou personagem posado para o quadro. Neste momento, as imagens conquistam certa autonomia do comentário ao expor as dificuldades que os cidadãos enfrentam diariamente para se locomover na região metropolitana do Rio de Janeiro. Vemos passageiros entrando e saindo dos vagões por meio de janelas, se espreitando nas portas, empurrando e sendo esmagados para garantir a viagem, “pingentes” pendurados nas portas de trem294 (fig. 31) e “surfando” em cima dos vagões. Por fim, o maquinista é categórico e atribui a culpa “ao excesso da burocracia, da interferência política, do empreguismo, da irresponsabilidade, da inexistência, enfim de uma política de transportes”. Assim como nos filmes Portos Paralíticos, Uma Economia Estrangulada e A Vida Marítima, aqui também nota-se a manutenção de imagens “descuidadas” para materializar não só os riscos oferecidos pelo serviço à população, mas também denunciar o despreparo da administração pública. Sequência 2 Áudio Câmera Voz Revela-se o PM maquinista-narrador se aprontando. Limpa Aqui e ali, o parque ferroviário foi melhorando e eu som do trem seu rosto de suor, coloca seu cape, ajeita a melhorei também. A construção de novas linhas em gravata. férreas com a técnica moderna é imprescindível à movimento e economia brasileira. a trilha Câmera posicionada na frente do trem. PM continua a dos trilhos sendo consertados. Não tem sentido a desarticulação que hoje significa projetar uma em nosso sistema de transportes, marítimo, fluvial, atmosfera de PD objetos de uso ferroviários: semáforos de aéreo, ferroviário, rodoviário... É de todo necessário suspense e passagem, painel de controle, estação de entrosá-los economicamente. tragédia. força (longo plano).

294 Gíria carioca para aqueles que viajam suspensos nas portas do trem. No comentário, narrador- maquinista indica a dependência desses passageiros: Um pingente, uma fatalidade com a falta de carros. 173

Modernização de equipamentos, mecanização das operações ferroviárias, exigências igualmente inadiáveis.

Mas não basta o equipamento, talvez o mais importante seja antes de tudo o saneamento administrativo, o corte dos gastos inúteis... Enfim uma política patriótica, realista, capaz de rever por completo este problema nacional.

F i g . 3 2 PM maquinista-narrador subindo a bordo do trem. PM mulheres se acomodando nos assentos para a viagem. PM maquinista se preparando para a partida. PM mulheres acenando. Felizes. Mas eu lhes digo que até há pouco tempo, houve uma companhia exemplar no Brasil. A Companhia Paulista PD trilho com trem em movimento. de Estradas de Ferro. Aquela sim era um modelo para PM passageiros tranquilamente acomodados: a solução do problema ferroviário. Mas o governo de adultos conversando, bebês dormindo e São Paulo se viu obrigado a intentá-la e agora já é crianças lendo em seus respectivos assentos. difícil prever o seu futuro.

Boa qualidade do material rodante, bitola larga, manutenção esperada, rendimento financeiro, recursos técnicos, eis o que se espera do sistema ferroviário brasileiro. Economia para o transporte de cargas, segurança, rapidez e conforto para o transporte de passageiros, eis o único objetivo a ser alcançado.

Coordenando as linhas de todos os tipos de transporte F i g . 3 3 a fim de se obter substanciosa economia,

PG trem de carga em trânsito transportando aproveitando ao máximo os fatores geográficos, brita e madeira. deixando o campo aberto à iniciativa privada, o Brasil poderá estabelecer o verdadeiro planejamento nos PM maquinista conduzindo o trem e olhando transportes. O planejamento que consultará fixamente para frente. Atento ao caminho. exclusivamente o interesse nacional.

Contrapondo-se às imagens “descuidadas” expostas na sequência anterior, é notório perceber o zelo com que História de um Maquinista oferece na composição da imagem neste segundo momento. O ponto de vista centra-se em apresentar imagens de uma administração ferroviária considerada exemplar: a Cia. Paulista de Estradas de Ferro. A péssima infraestrutura das máquinas a vapor, a tímida e ultrapassada manutenção dos trilhos, a inexistência de equipamentos de sinalização, a dificuldade de comunicação, a lotação de passageiros, a desorganização no embarque e desembarque e os incômodos das viagens no interior dos vagões cedem lugar a equipamentos novos e modernos (fig. 32),

174 recolocação de dormentes, ajuste de semáforos, eficiência na comunicação, conforto na viagem (fig. 33) e segurança no percurso. Ao expor suas percepções pessoais frente às mudanças da rede ferroviária, sugeridas por sua experiência de trabalho ao longo dos anos, o maquinista-narrador se apresenta novamente no quadro. Desta vez, ele ajeita a gravata e seu cap. Com o cabelo arrumado, está pronto para o trabalho. Concentrado, assim como o comandante de Portos Paralíticos, conduz o trem rumo ao “progresso da nação”. Ao final, podemos perceber que o maquinista-narrador não é apenas o porta-voz das diretrizes econômicas ipesianas. Na verdade, ele concretiza em sua própria atuação os valores do instituto: “política patriótica, realista, capaz de rever por completo este problema nacional”. Ao considerar que uma atitude patriótica era adotar um modelo pautado pela iniciativa privada, o maquinista-narrador faz uma crítica ao governo de João Goulart que se colocava muito mais disposto a atender as causas trabalhistas, recorrentes no movimento grevista ferroviário, do que deixar o campo aberto à iniciativa privada.

NORDESTE: PROBLEMA NÚMERO UM

Ficha técnica Duração: 10 minutos Ano de produção: 1962 Narrador: Luiz Jatobá Imagem: n/c Montagem: Floriano Peixoto, Ubirajara Dantas e Irene Soares Produção: Jean Manzon Films Realização: Instituto de Pesquisa e Estudos Sociais

Em Nordeste: Problema Número Um, o documentário expõe os problemas dos nordestinos explorando a ocorrência da seca e da miséria na região. A solução estaria depositada nas iniciativas da esfera privada que deveriam receber benefícios do governo para investir no Nordeste. Neste sentido, a sugestão é que o Estado deveria ser uma espécie de articulador da solução para possibilitar que os “homens de negócio” – sensíveis ao compromisso social que cabe a eles – atuem. Para a análise, dividiremos Nordeste: Problema Número Um em duas partes. A primeira explora a denúncia dos problemas que os “irmãos nordestinos” enfrentam. A consonância entre comentário e imagem ocorre na medida em que o discurso é produzido para enfatizar a denúncia da pobreza e da miséria. Veremos 175

nesta sequência quais os elementos de que o filme se apropria a fim de explorar as dificuldades que assolariam a região. Ao enfatizar as tradições culturais do povo e a carência de informações básicas sobre moradia e trabalho, o IPES denuncia o que considera “atraso”. Em um segundo momento, o filme localiza a importância da oferta de trabalho para não só desenvolver a região e melhorar a condição de vida do povo, mas também conter a emigração ao sul à procura de oportunidades. Neste sentido, o contraponto se estabelece nas imagens e no comentário denunciando a ineficiência das iniciativas públicas ao sugerir outras propostas que fortificam o processo de industrialização do país. Tão necessário na consolidação dos ideais ipesianos. A fartura se revela na indicação de abundância de água otimizada nos vales úmidos da região. Por fim, o filme reitera o compromisso social do instituto. “Os industriais de todo o Brasil devem compreender a necessidade de aplicar recursos à grande „área-problema‟ do país”. Para tanto, é preciso que os estabelecimentos de crédito concedam “financiamento aos empreendedores locais”. Este é recado ipesiano na construção do filme. Sequência 1 Áudio Câmera Voz

Trilha PG homens navegando em sua jangada. Em O Nordeste, desesperada busca de alimentos. O instrumental árduo movimento, seguido de PD sobre a nordestino é o herói do cotidiano. em diálogo mesma composição coletiva. com o off. PM homem subindo em uma árvore para pegar Quando este coco. As condições de trabalho para a grande massa se cala, a nordestina são as mais precárias e mal remuneradas. musicalidade se intensifica e vice-versa. A grande área, problema do Brasil, hoje tristemente famosa em todas as nações do mundo, é uma responsabilidade nacional.

Uma responsabilidade dos poderes executivos, legislativos, de toda classe dirigente.

F i g . 34

PG cenas de trabalho. PM homens trabalhando no corte da cana de açúcar, organizando e A agricultura se arrasta penosamente. Para que o transportando. camponês, de pouca instrução, conseguisse plantar e colher satisfatoriamente, seria indispensável um PD mão de uma rendeira em seu trabalho. sistema de crédito agrícola supervisionado.

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A vida nordestina é elementar, áspera, fechada em si mesma, sem qualquer perspectiva do progresso social.

F i g . 35

PG casa no campo. PM casal e PG funeral de uma criança. Mortalidade infantil, alarmante no sertão nordestino. Em certas áreas, chega o índice espantoso de 70% de crianças mortas antes de atingir um ano de idade.

Este é o preço da subnutrição, da ignorância, da ausência das mínimas condições de higiene.

Muitas mães nordestinas curam ainda hoje no umbigo com uma mistura de teia de aranha e estrume de vaca.

F i g . 36

Nesta desoladora paisagem social é duro, muito duro permanecer. O nordestino emigra. Milhares e milhares de famílias descem anualmente para o sul.

Em 1958, nada menos do que 100 mil nordestinos deixaram suas terras em busca de trabalho em São F i g . 37 Paulo, Rio, Paraná, Goiás.

PG famílias caminhando por uma estrada de Alguns velhos ficam, sobrevivem e narram a gerações terra com seus pertences. novas, o sofrimento do passado e as desesperanças do futuro. PM mulheres com bebês no colo, crianças pequenas carregando malas e homens com seu gado.

PM homem velho desolado, sentado. Picando fumo. PG urubus nas árvores.

PM gado morto e, em seguida, urubus comendo sua carne.

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Na época das secas, o trabalho desaparece em vastas áreas e a morte assume o comando.

Então, é preciso matar a fome dos que não morreram.

F i g . 38

PG fila para pegar água. PG mulheres e crianças estendendo as mãos com suas latas.

É interessante ressaltar que Nordeste: Problema Número Um é o único filme produzido pelo IPES que localiza uma região específica do país. Desde os momentos iniciais do curta é possível destacar um aspecto na elaboração das imagens que irá permear todo o filme. A referência a um sertão cruel, duro e brutalizado, em composição com seus habitantes franzinos, fracos e tristes, potencializa o discurso de denúncia; objetivo maior da série de produções. Em contrapartida, o comentário sugere inúmeras vezes a “força de sua gente” frente às “desesperanças do futuro”. De tal maneira que o primeiro comentário de Nordeste: Problema Número Um retrata o nordestino como um “herói do cotidiano” na busca por alimentos. Sua força de trabalho é caracterizada na pesca por meio da jangada, no corte da cana-de- açúcar, no transporte do burro de carga, no recolhimento do coco (fig. 34), na atividade da rendeira (fig. 35) como imagens do atraso, sem qualquer perspectiva do progresso social. A tradição cultural dos habitantes na relação com o próprio corpo e a natureza é excluída do discurso. Não há nenhuma menção sobre suas tradições, suas técnicas próprias de trabalho, enfim, sobre suas características culturais. Segundo o discurso fílmico, a “vida nordestina é elementar, áspera, fechada em si mesma”. Ignora a rica tradição cultural desses lugares que não sofreram menos pressões dos ambientes sociais mais centrais e que, também por isso, acabaram por desenvolver processos muito próprios, específicos, de tradução cultural. É certo que o ponto de vista do filme, fincado na relação de progresso econômico, visa compreender a sociedade de modo hierárquico. Logo, a exclusão completa das tradições regionais do discurso fílmico reforça suas intenções ideológicas.

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Neste sentido, a denúncia caracterizada em Nordeste: Problema Número Um irá explorar a temática da morte. É neste momento que o comentário denuncia a “falta de informação” do nordestino. Ao garantir que “muitas mães nordestinas curam ainda hoje no umbigo com uma mistura de teia de aranha e estrume de vaca” como prova do atraso, a fala ganha um tom apelativo. E a construção da imagem segue a mesma proposta. Não é à toa que a encenação de um funeral, ao comentar os altos índices de mortalidade infantil no Nordeste, dramatiza a perda em composição com uma trilha lamentosa e sofrida. Crianças carregando o pequeno caixão (fig. 36), acompanhantes em fila com a cabeça baixa e pessoas na estrada tirando seus chapéus em solidariedade aos familiares, são alguns dos exemplos que vemos no quadro. A sugestão de cortejo ganha intensidade na medida em que tal encenação ocupa grande parte do espaço fílmico nesta primeira sequência. Há um intenso jogo de luz e sombra que sugere uma atmosfera épica em que certos elementos fílmicos reforçam sua potência de signo. Como vemos na chegada do cortejo ao cemitério em que o movimento da câmera termina ao localizar um símbolo cristão: a cruz (fig. 37). Própria da característica épica, o tom de tragédia desenvolvido no discurso provoca uma sugestão suscetível de compaixão. A temática da morte também é elaborada a partir dos animais. Entregues ao descaso, são apontados como vítimas da falta de comida. Um tom eloquente reforça a tragédia no quadro. Vemos o gado morto, moscas ao redor e urubus comem seus restos (fig. 38). Por fim, a primeira sequência ressalta um aspecto muito pertinente à região Sudeste do país, onde a cúpula ipesiana estava estabelecida e à partir de onde se articulou a Golpe Militar: a questão da migração. A fim de validar a autenticidade dos fatos apresentados, o comentário quantifica o volume de migrantes nordestinos. “Em 1958, nada menos do que 100 mil nordestinos deixaram suas terras em busca de trabalho”. No filme esta informação ganha força na medida em que a voz que a apresenta não só, como vimos, carrega seu potencial de credibilidade na autoria de Luiz Jatobá, mas também se materializada em um filme supostamente assinado por um instituto de pesquisa. Veremos a próxima sequência:

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Sequência 2 Áudio Câmera Voz Mudança PG de trabalhadores. Enfatiza-se a multidão à Para remediar a tragédia, o governo cria frentes de abrupta. espera de trabalho. PD rostos dos trabalho mantidas por alguns de seus órgãos, de Intensifica-se camponeses. nomes: PNEF295, DNER296. Elas admitindo os valentes o problema flagelados. Os empregadores eventuais cuidam um com o tom pouco da saúde dessas levas aglomeradas pelo de tragédia infortúnio. É preciso evitar as epidemias. sugerida pela trilha. De 1909 até hoje, foram construídos 700 açudes no A trilha volta nordeste. Mas nem 10% deles contam com as a ficar indispensáveis obras de irrigação das terras. tranquila e retoma a perspectiva F i g . 39 do inicial. Quem lá trabalha, o bravo homem nordestino, ajuda a PG e PM homens trabalhando nos açudes. redimir a região.

Pouquíssimas terras no nordeste recebem os benefícios da irrigação.

Um dos pontos da solução: intensificar o

F i g . 40 aproveitamento dos vales úmidos, que totalizam mais de 1 milhão de hectares. PG homens ao trabalho, mas desta vez o cenário é composto por máquinas que os Energia: outro aspecto da solução. Paulo Afonso foi o auxiliam. O uso da água começa, lentamente, primeiro passo, mas é preciso que a eletricidade a entrar em evidência nas imagens. chegue ao meio rural.

PD torres de eletricidade. PG e PM tratores e Em uma palavra: a racionalização da agricultura e a caminhões enfileirados na estrada. Revela-se, industrialização. Caminhos certos para a salvação do mais uma vez, o intenso uso da água. nordeste. PG tratores, máquinas manuseadas por funcionários. E é justo lembrar. O Decreto do artigo-lei que criou a Trilha SUDENE autoriza em terras de capital 100% nacional potencializa a deduziram em até 50% do seu imposto de renda a solução. para investimentos industriais no nordeste. A melodia cresce e Os industriais de todo o Brasil devem compreender a aponta as necessidade de aplicar recursos à grande área- soluções problema do país. propostas no comentário Os estabelecimentos de crédito devem conceder até a cenas financiamento aos empreendedores locais. finais do F i g . 41 filme. Só através da criação deliberada e racional da riqueza PG trem transportando cana-de-açúcar e o país deterá a incalculável avalanche nacional que se entregando o seu produto. PG fábrica e PG avoluma na terra dramática de nossos irmãos aérea de um plantio em cultivo. nordestinos.

295 Programa Nacional de Educação Fiscal. 296 Departamento Nacional de Estradas de Rodagem. 180

Antes mesmo de apresentar a solução máxima para os problemas dos “irmãos nordestinos”, o documentário preocupa-se em demonstrar as ineficientes iniciativas públicas tanto no comentário quanto nas imagens. Os “valentes flagelados” são representados no quadro cabisbaixos, tímidos. Sugere uma atitude passiva, indolente frente sua condição (fig. 39). Vemos um enorme grupo de homens à espera de trabalho nos açudes nos quais o governo concentra seus esforços para resolver o problema da falta da água. O contraponto da imagem se estabelece quando a sugestão do aproveitamento eficiente dos vales úmidos para garantir a irrigação e o investimento na industrialização da região é apresentada no comentário. Neste momento, a imagem do trabalhador nordestino revela jovens que desfrutam de vigor físico para atender as demandas exigidas. A ausência das marcas de sol tão exploradas nas rugas de seus rostos é substituída por um coletivo de homens trabalhando vigorosamente, enfileirados e sem camisas (fig. 40). Na montagem, os cortes entre as imagens tornam-se um pouco mais ágeis em comparação ao lento cortejo explorado na sequência anterior. Outra referência simbólica de Nordeste: Problema Número Um é a recorrente sugestão de abundância de dois elementos: a água (fig. 41) e o uso das máquinas. Representações do progresso da nação que iria banir o atraso do Nordeste. O encerramento do filme é a concretização cênica da inversa proposta apresentada em sua abertura. As mãos que antes eram destinadas ao cultivo de cana-de-açúcar, ao alcance do coco, ao carregamento do burro, aos trabalhos de rendeira, são destinadas à manipulação dos tratores e no apontamento de jatos de água, embora as últimas imagens sequer revelem a presença do homem na região. Máquinas trabalhando, planos aéreos de usinas e grandes áreas cultivadas ganham o quadro em sintonia com uma trilha que cresce com o propósito de solucionar todos os problemas enfrentados pelo Nordeste: a seca, a miséria, a pobreza, a falta de alimentos, de trabalho, enfim, a falta de perspectiva de vida que assola a região.

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3.2 Documentários-Institucionais

Os dois documentários que analisaremos a seguir, O que é o IPES? e O IPES é o Seguinte, são filmes promocionais. Produzidos entre julho e agosto de 1962, revelam uma clara preocupação do instituto em trabalhar sua imagem pública. É importante localizar tais filmes em consonância com a produção impressa do instituto materializada em cartilhas, folhetos e matérias jornalísticas produzidas no mesmo período no ambiente midiático, como vimos no capítulo “Articulação e propagação no ambiente midiático”. Sem dúvida, a divulgação das diretrizes do IPES, que reiterava o comprometimento social, não só das pessoas que pertenciam ao grupo, mas também das empresas relacionadas a ele, inclusive na produção audiovisual, estava atrelada ao propósito de contenção das instabilidades provocadas por confrontos de caráter político. Veremos que o ponto de vista dos filmes trabalha na sugestão de um clima de tensão pautado ora no exemplo dos regimes totalitários do século XX, como no caso de O que é o IPES?, ora no despreparo do Estado para desenvolver economicamente o país, como vemos em O IPES é o Seguinte; para, em seguida, informar ao espectador a existência do IPES, “a serviço da democracia”, assim como suas diretrizes e sua missão para com o povo brasileiro. Em ambos os curtas, a estratégia da montagem é a mesma. A abertura sempre sugere um clima de equilíbrio e tranquilidade no país. Em O que é o IPES?, por exemplo, o comentário explora a exuberante natureza “que dela emana todas as esperanças em um futuro de abundância, alegria e de luz”. Imagem e trilha reiteram este ambiente de paz. Já em O IPES é o Seguinte, o símbolo de um Brasil em perfeita harmonia se concretiza na capital federal. A demonstração de um grupo unido em defesa da nação frente ao “perigo vermelho” que rondava a capital reforça o caráter de vigilância do IPES. Segundo o comentário, é “para colaborar com a democracia e seu desenvolvimento que se fundou o IPES”. Dreifuss observa que o empenho em apresentar-se “entre o grande público” a serviço do país, ressalta a formação de um grupo cuja fachada se colocava como “um centro de discussões acadêmicas, comprometido em apresentar soluções aos problemas da nação” (2008, p. 176).

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Em seguida, os documentários concentram-se no esforço de construir um clima de insegurança que estaria “rondando” o país. Enquanto O que é o IPES? utiliza os regimes totalitários como emblemáticos exemplos antidemocráticos com que o Brasil corria o risco de se deparar, “O IPES é o Seguinte opta por exaltar a importância do instituto em combater a perigosa polarização de esquerda-direita que hoje tumultua a vida brasileira”. Sob a bandeira da liberdade e da democracia, o filme apresenta o IPES em uma pretensa posição de neutralidade que, frente aos interesses da nação, garantiria a transparência e o dever cívico de um grupo que, acima de tudo, “preconiza o equilíbrio”. Por fim, ambos os curtas encerram seu discurso exaltando o empenho do IPES na construção de uma saída pacífica seguindo as diretrizes apontadas por ele. “O IPES não pode ficar em palavras. É preciso agir ao mesmo tempo em que estuda a solução dos problemas básicos brasileiros”. Neste sentido, O que é o IPES? sugere a criação de estudos “para que o pensamento elaborado pelo IPES ganhe força na convicção da maioria do povo”. Já em O IPES é o Seguinte, o comentário enumera uma série de iniciativas urgentes no setor agrícola, na indústria e na educação técnica e profissional para “acelerar o desenvolvimento, assegurar melhor distribuição da renda, elevar o padrão de vida do povo, preservar a identidade nacional mediante a intervenção de regiões menos favorecidas deste país democrático, livre”. Sem dúvida, os conceitos de liberdade e democracia eram utilizados nestas produções fílmicas para reforçar o espírito democrático que o instituto defendia. Para Dreifuss:

O IPES desenvolveu uma dupla vida política. Aos olhos de simpatizantes e defensores, a face pública mostrava uma organização de “respeitáveis homens de negócio” e intelectuais [...] que apoiavam a reforma moderada das instituições políticas e econômicas existentes. Seu objetivo ostensivo era estudar “as reformas básicas propostas por João Goulart e a esquerda, sob o ponto de vista de um tecnoempresarial liberal”. [...] O lado encoberto coordenava uma sofisticada campanha política, ideológica e militar. [...] Algumas pessoas do grupo de fundadores consideravam que o IPES deveria ser uma organização inteiramente clandestina, mas foi argumentado que, em função da natureza das tarefas por vir, seria mais sensato operar também com o conhecimento do público. As operações secretas e discretas da burguesia eram executadas por forças-tarefa especializadas, unidades de ação, grupos com codinomes e subsidiários. (2008, p. 176)

Liberdade e democracia. Palavras tão recorrentes na campanha ipesiana e que, anos depois, se tornariam os gritos abafados pela repressão na ditadura militar. 183

O QUE É O IPÊS?

Ficha técnica Duração: 9 min. Ano de produção: 1962 Narrador: Luiz Jatobá297 Montagem e Imagem: n/c Produção: Jean Manzon Films Realização: Instituto de Pesquisa e Estudos Sociais

Uma característica peculiar de O que é o IPES? e que também pode ser percebida em O Brasil Precisa de Você298, é a utilização de fotografias na composição da montagem. Elas não servem apenas para apresentar as imagens nelas contidas, mas também são exploradas pelo movimento da câmera. Ou seja, o recorrente uso de zoom in e out para potencializar o detalhe no quadro, além do ritmo em que tal movimento se dá, potencializam a ênfase do ponto de vista do filme299. A análise está dividida em três sequências. A primeira tem como objetivo investigar o ponto de vista do filme que sugere inicialmente o equilíbrio da nação e, em seguida, o contraponto proposto ao exaltar os regimes totalitários como exemplos de atitudes antidemocráticas que geraram confronto, destruição e miséria ao povo. O tolhimento da liberdade praticada por países como Cuba, Alemanha e Rússia na consolidação de seus respectivos regimes políticos sugere ao espectador, “cidadãos brasileiros”, a urgência para se posicionar em “momentos difíceis”. Neste sentido, a segunda sequência apontada na análise localiza a estratégia fílmica em provocar o espectador a refletir sobre a situação do Brasil. “Sobre a crise econômica e social, desenvolve-se uma crise política e o governo está indeciso”. A constatação proposta pelo comentário é o ponto de partida para uma sucessão de questionamentos. Por fim, a terceira sequência elege o IPES como o defensor máximo do regime democrático. É interessante notar, neste último trecho, a

297 Assim como nos documentários Portos Paralíticos, Uma Economia Estrangulada e A Vida Marítima, em O que é o IPES? também não há referência do narrador na cópia analisada. Seguiremos o mesmo encaminhamento dos curtas anteriores a creditar a voz a Luiz Jatobá. 298 Este filme está analisado no item 3.4 Documentários-Confronto. 299 A utilização de fotografias em filmes era uma prática recorrente. Mas foi apenas em 1965 que o diretor cubano Santiago Alvarez apresentou o documentário NOW, para muitos considerado o primeiro videoclipe da história, que combina a canção de mesmo título do filme (proibida nos Estados Unidos) com uma sequência ininterrupta de imagens que denunciam a discriminação social nos EUA. 18 4

exaltação dos ideais liberais como exclusivos para a manutenção da ordem, associados aos valores cristãos, tão preconizados pelo instituto em sua produção fílmica. O retrato de uma família “feliz” está associado à aquisição de casa própria, carro e eletrodomésticos. A missão no filme constituía-se em “evitar que a difícil situação que o Brasil atravessa, venha comprometer nossas instituições democráticas e tradições cristãs”. Vamos às sequências: Sequência 1 Áudio Câmera Voz Trilha PG paisagem brasileira no Rio de Janeiro. instrumental Corte para PM de um menino na praia de Aquarela empinando uma pipa em forma de pássaro. do Brasil. PD céu que vai tornando-se cada vez mais nublado em associação com a mudança da melodia. (Marca de transição) A terra em tão maneira é graciosa que dela emana todas as esperanças em um futuro de abundância, alegria e de luz.

F i g . 42

Ruptura (Fotos) Revolução cubana e de Fidel Castro. brusca. (Fotos) Fidel Castro e Nikita Khrushchev abraçados. Nikita Khrushchev na Rússia. Em Trilha de posições enérgicas, vibrantes de pulso, gana e medo, guerra conclamação. Novamente PD céu. (Marca de e trevas. transição)

(Fotos) Adolf Hitler com seus generais. Zoom in Mortes, holocausto, campos de guerra, campos Discurso de de concentração, cruzes. Todas elas Hitler. sobrepostas com a suástica nazista. (SEM trilha)

Povo ovacionando em apoio. Não há Fidel Castro sem Batista que o preceda.

A verdade é que se queremos evitar as ideias é preciso impedir que as injustiças e o caos criem um clima favorável à sua gestação.

F i g . 43

Novamente PD de céu. (Marca de transição) 185

(Fotos) Brasil. PM crianças subnutridas.

Trilha de Por certo a história do século XX teria seguido suspense, caminhos diversos se as elites, dirigentes da Rússia, fria, em tivessem se preocupado com a não existência de uma alerta. classe média capaz de equilibrar a balança social.

F i g . 44 PG multidão nas ruas. (Fotos: COM A FOME NÃO SE BRINCA) Hitler não teria dominado a Alemanha e a conduzido através de crimes sem par na história com a horrível Kremlin, Moscou. Zoom out. Exibição dos matança dos judeus, a destruição total de uma guerra rostos das seguintes lideranças: Vladimir Lenin, insensata se as elites dirigentes alemãs tivessem Josef Stalin, Nikita Khrushchev, Adolf Hitler. compreendido a necessidade de tudo fazer para impedir o choque aberto violento entre a direita e a (Fotos) Holocausto e Adolf Hitler esquerda antes que fossem colocados diante da cumprimentando Josef Stalin. terrível opção: nazismo ou comunismo.

As primeiras imagens do filme O que é o IPES? localiza a cidade do Rio de Janeiro. Ao dedilhar de “Aquarela do Brasil”300, vemos um menino na praia empinando pipa em forma de pássaro (fig. 42). Trata-se de uma sutil metáfora da liberdade que o país, segundo o ponto de vista do filme, desfrutava. O céu límpido e claro em consonância com a sugestão de tranquilidade presente no comentário se torna nublado e a trilha muda bruscamente. Depois da exaltação de uma natureza exuberante e de um povo pacífico - discurso que também buscava caracterizar o conceito de liberdade que a nação cotidianamente gozaria, impera uma atmosfera de tensão. Há uma bruta ruptura com imagens de guerra, gritos e barulhos de bombas combinando com um enredo em tom de suspense e terror. De tal maneira que, é importante destacar, a estratégia em apresentar uma realidade harmônica

300 Composta em 1939 por Ary Barroso, “Aquarela do Brasil” foi originalmente gravada por Francisco Alves e lançada pela Odeon Records e, anos depois, pela cantora Aracy Cortes. Apesar da popularidade dos cantores, só iria ganhar destaque internacional em 1942, quando os Estúdios Disney a inclui no filme de animação Saludos Amigos (Alô, amigos), apresentando o personagem Zé Carioca. A partir de então, “Aquarela do Brasil” retorna com força total no cenário nacional na voz de Carmem Miranda. A canção, por exaltar as qualidades e a grandiosidade do país, marcou o início do movimento que ficaria conhecido como samba-exaltação. Este movimento, por ser de natureza extremamente ufanista, era visto por vários como sendo favorável à ditadura de Getúlio Vargas, o que gerou críticas a Barroso e à sua obra. Para mais detalhes, ver: OLINTO, 2003; VICENTE, 2012.

186 serve como parâmetro para apontar o tamanho do confronto que o filme apresentará a seguir. A partir de então o filme revela sequência de fotografias. Trata-se de um longo trecho em que vemos Adolf Hitler, Josef Stalin, Fidel Castro, Che Guevara e Nikita Khrushchev. Associadas a eles, imagens de revoltas, mortes, holocausto, cemitério, fome e desespero. Neste momento, a trilha adquire uma importância ímpar no discurso fílmico em que a movimentação das imagens fotográficas em aproximação (zoom in) e distanciamento (zoom out) busca os detalhes que dão ênfase a um clima de guerra em composição com outros sons (gritos, tiros e bombas) acrescentados à narrativa. Outro elemento fílmico que confere ao texto audiovisual um documento de autenticidade é o discurso de Adolf Hitler, em off. As imagens são as provas da verdade. Imagens dos campos de concentração, de soldados em conflito (fig. 43), entre tantas outras, sobrepostas pela suástica nazista. Em seguida, repete esta mesma proposta ao localizar a Rússia. Vemos o Kremlin e o rosto de Vladimir Lenin e Nikita Khrushchev no quadro. Entre estas duas sequências, o filme enxerta imagens brasileiras que localizam a miséria e a fome (fig. 44). A sugestão de que se trata de uma ocorrência no país é confirmada na apresentação de uma foto no quadro em que a montagem localiza um cartaz escrito em português: “COM A FOME NÃO SE BRINCA”. Sobretudo, o filme O que é o IPÊS? desconsidera a distinta trajetória política, econômica, social e cultural dos países citados, Cuba, Alemanha e Rússia. A eles apenas atribuem o desrespeito à democracia e à liberdade, comparando a ascensão do regime nazista com o comunista em função da inexpressiva atuação dos dirigentes destes países, que teriam deixado suas nações serem tomadas. “Hitler não teria dominado a Alemanha (...) se as elites dirigentes alemãs tivessem compreendido a necessidade de tudo fazer para impedir o choque aberto violento entre a direita e a esquerda antes que fossem colocados diante da terrível opção: nazismo ou comunismo”. O comentário também ressalta a miséria do povo cubano frente ao descaso de Fulgêncio Batista e a ausência de uma classe média na Rússia, que pudesse “equilibrar a balança social”, como exemplos sintomáticos do rumo que estes países tomaram.

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A solução estaria na existência de uma elite ativa disposta a combater as injustiças sociais e resolver os problemas da nação antes mesmo de uma tomada de poder que levasse o povo a sofrer todos os horrores expostos nas imagens. A estratégia desenvolvida no discurso do filme vai no sentido de revelar esta “constatação” ao espectador. Diferentemente de imagens posadas ou captadas especificamente nos espaços temáticos, como vimos em outras produções ipesianas, a essas imagens fotográficas está atrelado um caráter jornalístico. Uma narrativa fincada em um noticiário fotográfico em que o comentário apenas agrega ao discurso um poder de síntese ao final desta longa sequência. É neste contexto que o filme volta a localizar o Brasil. Trata-se de uma proposta direta em associar os momentos que antecederam a tomada de poder por regimes totalitários nos países citados com o período de instabilidade vivido pelo Brasil. É sobre a exploração das manifestações políticas e sociais da esquerda no início dos anos 1960 que se desenvolverá a sequência seguinte, antes mesmo de apresentar o IPES. Aliás, a revelação da existência de um grupo da elite “engajada”, disposta a solucionar os problemas do país, e organizada para não deixar que este caísse na mão dos “inimigos da nação” só ocorrerá nos últimos minutos do filme. Sequência 2 Áudio Câmera Voz Vemos na tela o mapa do Brasil com um ponto de interrogação no meio do território. E nós, para onde estamos sendo conduzidos?

O Brasil vive momentos difíceis. As manifestações populares tornam-se cada vez mais agressivas.

A inquietação atinge os meios rurais, os demagogos agitam a opinião pública enquanto a inflação desenfreada anula os menores esforços dos brasileiros.

Sobre a crise econômica e social, desenvolve-se uma crise política. F i g . 45

O governo está indeciso. Manchetes de jornais em destaque.

(Fotos) Tumulto e agitação nas ruas. Civis com armas.

As siglas de diversos partidos políticos se sobrepõem na tela. 188

Para onde irá o regime híbrido? Vencerão as instituições democráticas no entrechoque das ambições desenfreadas?

F i g . 46

Vemos um ponto de interrogação na tela. Tela Da crise ao caos, o país pode ser arrastado para uma escurece. crise inconciliável.

O que estaremos fazendo nós para impedir que se PG Esplanada dos Ministérios em Brasília. coloque diante do povo brasileiro a trágica opção (Zoom in). A sugestão é do “problema” entre a solução antidemocrática? chegando à capital do país.

“E nós, para onde estamos sendo conduzidos?” Este é o questionamento presente no comentário que inaugura a segunda sequência de O que é o IPES? em consonância com a produção gráfica que vemos no quadro (fig. 45). Percebe-se recorrentemente nos filmes ipesianos a utilização de propostas que se aproximam a conduções didáticas e meramente expositivas nas quais a imagem é uma tentativa de reprodução do comentário. Neste caso, vemos o mapa do Brasil e um ponto de interrogação no seu interior. Na sugestão do caos que vive a política brasileira, uma estratégia semelhante ocorre novamente, nesta sequência, quando vemos siglas de diversos partidos políticos (fig. 46) – sobrepondo-se uma sobre a outra – no quadro. Não é à toa que uma das marcantes características do documentário expositivo é a generalização e a argumentação abrangente e sua relação com o que está apresentado na tela. Segundo Nichols, nesta proposta de construção fílmica as imagens sustentam as afirmações básicas de um argumento geral em vez de construir uma ideia nítida de suas particularidades. “Nesse caso, o filme pode até aumentar nossa reserva de conhecimento, mas não desafia ou subverte as categorias que organizam esse conhecimento.” (2008, p. 144) Outro recurso presente na montagem desta sequência são as inúmeras imagens de manchetes de jornais e matérias de revista presentes na tela a fim de corroborar os “momentos difíceis” que o Brasil vivia. No material jornalístico apresentado, a movimentação da câmera busca, ora no plano detalhe das palavras ora nas fotos reproduzidas nos jornais, representações do tumulto das manifestações sociais. Revela-se a reivindicação nos rostos das pessoas 189 fotografadas em ação que, para o IPES, trata-se da incitação dos “demagogos”, longe de serem manifestações legitimadas pelos movimentos sociais no exercício da democracia. Em composição, o comentário se apoia na veracidade das imagens que conferem ao filme uma ideia de “prova do real”. A constatação indicada pelo filme é de que “as manifestações populares tornam-se cada vez mais agressivas. A inquietação atinge os meios rurais, os demagogos agitam a opinião pública enquanto a inflação desenfreada anula os menores esforços dos brasileiros”. Percebe-se aqui uma aproximação com a perspectiva desenvolvida na primeira sequência em ressaltar, a partir da autenticidade do documento, a sugestão de crise em que o Brasil se encontrava frente ao “regime híbrido” conduzido por João Goulart. Sobre esta tensão presente no ambiente midiático nos anos que antecederam o golpe militar, nos diz Paul Singer:

Se por um lado as atividades da esquerda cresciam a tal ponto que chegaram a assustar os movimentos de direita, as atividades desta última, especialmente aquelas veiculadas pelos meios de comunicação, se tornaram quase uma obsessão, pois quem lesse a imprensa, ouvisse o rádio ou assistisse televisão, especialmente um ano antes do golpe, teria a convicção do supremo poder atribuído à esquerda. (SINGER, 1997 apud CORRÊA, 2005, p. 143)

Este esforço na campanha ipesiana de mostrar o país à beira do caos, no qual o direito à liberdade e à democracia corria risco de ser banido por uma possível tomada de poder por parte da esquerda pode ser observado em O que é o IPES? em seu trecho final. Vemos novamente na tela um ponto de interrogação em consonância com o comentário que diz: “O que estaremos fazendo nós para impedir que se coloque diante do povo brasileiro a trágica opção entre a solução antidemocrática?” Em seguida, a tela escurece. A ausência de imagem invade o quadro e durante vários segundos ficamos órfãos dos comentários e das figuras na tela. Mesmo que a trilha se mantenha presente, a pausa destes dois elementos fundamentais do documentário expositivo sugere uma situação em que o espectador – tão acostumado à dinâmica de perguntas e respostas prontas – fica à deriva, sem orientação. Neste sentido, percebe-se a cuidadosa construção elaborada no discurso fílmico para finalmente apresentar o IPES.

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Sequência 3 Áudio Câmera Voz Trilha suave, (Fotos) Apresentando os personagens: Nós, os intelectuais; nós, os dirigentes de empresa; positiva, em médicos, empresários nos escritórios, homens nós, os homens com responsabilidade de comando. progresso de comércio, todos de terno e gravata. Nós que acreditamos na democracia e no regime da com livre iniciativa, não podemos ficar omissos enquanto a elevações de Para simbolizar a omissão: PM homem sentado situação se agrava dia-a-dia. entonação. na praia calmamente lendo jornal.

F i g . 47 Vemos na tela a frase: A OMISSÃO É UM CRIME OMISSÃO É CRIME!

PD mãos em cumprimento e bandeira do Brasil.

Vemos pessoas se movimentando nas ruas.

Vemos na tela a frase: ORGANISMO NOVO Vemos na tela a frase: MENSAGEM NOVA (Ambas em sincronia com as mesmas palavras Isolados, seremos esmagados. Somemos nossos em off). esforços.

PM mapa do Brasil e mãos depositando seus Orientemo-nos num sentido único à ação dos votos na urna. PM pessoas entrando e saindo democratas para que não sejamos vitimas do em sigilo para o voto. totalitarismo.

PM padre benzendo. E é justamente para coordenar o pensamento e a ação de todos aqueles que não querem ficar de braços cruzados diante da catástrofe que nos ameaça, é necessário criarmos um organismo novo com uma mensagem nova para a nova realidade do Brasil de hoje.

Temos uma finalidade básica: evitar que a difícil situação que o Brasil atravessa, venha comprometer nossas instituições democráticas e tradições cristãs.

F i g . 48

Vemos na tela: IPES

PG Palácio do Planalto. O Instituto de Pesquisa e Estudos Sociais tem essas PG trabalhador em trator. finalidades básicas. Seus objetivos são claros e Na tela comparação da moeda de US$ 1,00 e definidos. A ele caberá executar um plano que leve a do Cr$ 1,00. esses objetivos: Na tela: MORALIZAÇÃO. 191

- fortalecimento das instituições democráticas Na tela: AÇÃO. - superação do subdesenvolvimento - estabilização da moeda - moralização e eficiência da estrutura governamental. PM políticos e empresários reunidos. PG estudante, PM operário e PM trabalhador Mas o IPES não pode ficar em palavras. É preciso agir do campo. ao mesmo tempo em que estuda a solução dos problemas básicos brasileiros.

Na tela: Na política, na economia, nas finanças. Dar um DEMOCRACIA: - POLÍTICA conceito novo à democracia, dar um conceito novo ao - ECONOMIA desenvolvimento. Levar esses conceitos aos - SOCIAL estudantes, levar esses conceitos aos operários, levar Na tela: esses conceitos aos homens do campo. Composição de uma família feliz sugerindo a aquisição de carro, casa e eletrodomésticos. Democracia e política é inseparável de democracia, economia e social.

Desenvolvimento é elevação do nível de vida da população e dar um basta à inflação desenfreada, é multiplicar a poupança e os investimentos de todos os setores da economia. F i g . 49

PM homens trabalhando nas indústrias e no Trilha com campo com máquinas. entonação elevada e Mapa do Brasil sobreposto com uma moeda de final, término Cr$ 1,00 na região Sudeste. alto. (Fotos) Homens de terno e gravata sentados à É redistribuição da renda para diminuir as mesa trabalhando, discutindo e conversando. desigualdades geradoras de conflito. O correto equacionamento desses problemas é um desafio à Na tela: vemos a exposição do organograma capacidade dos responsáveis pelo destino do nosso do IPES país.

(Fotos) PD câmera de filmar, microfone, O IPES, portanto, além de nossa colaboração deverá fotógrafos reunidos, jornais e revistas sendo contar com uma excelente equipe técnica. Uma série impressos. de serviços terá que ser criada para que o pensamento elaborado pelo IPES ganhe força na convicção da maioria do povo. Para isso precisamos:

- propagar as soluções democráticas para o grande público - todos os problemas devem ser resolvidos dentro da democracia - incrementar as atividades educacionais em todos os níveis - colaborar com órgãos governamentais

F i g . 50 ...a isso se propõe o IPES. Cumprirá sua missão? Na tela: vemos IPES em bandeira fusão com bandeira do Brasil. Depende de nós: da minha e da sua colaboração. 192

A última sequência de O que é o IPES? se dedica a responder ao espectador a pergunta-título do filme. Para tanto, percebe-se uma estratégia persuasiva na construção retórica do comentário. A voz do narrador sugere, de partida, que o espectador está de acordo com a realidade constatada e apresentada. Ao utilizar recorrentemente a primeira pessoa do plural no texto301 de abertura desta sequência, o filme aponta enfaticamente o “grave erro” que pode cometer mesmo aqueles que acreditam na democracia. Para o IPES, a “omissão é um crime”. O quadro remete a uma situação de lazer e conforto. Um homem sentado na praia, sozinho, lendo o seu jornal, materializa uma ação de omissão e descanso com os rumos da nação (fig. 47). O discurso fílmico apresenta o IPES como um elemento ponderador das “tensões sociais”. Uma posição neutra, preocupada apenas em defender a liberdade e a democracia. Instâncias máximas que garantem a tranquilidade e o equilíbrio das forças no país apresentadas no início do filme. Com o objetivo de “coordenar o pensamento e a ação de todos aqueles que não querem ficar de braços cruzados diante da catástrofe que nos ameaça, é necessário criarmos um organismo novo com uma mensagem nova para a nova realidade do Brasil de hoje. A “defesa da nação” estava não só fundada na proposta de iniciativa privada que poderia melhorar o bem-estar da família (fig. 49) através da aquisição de casa própria, carro e eletrodoméstico302, mas também na manutenção dos “sagrados” valores cristãos (fig. 48). Em seguida, o ponto de vista do filme concentra-se em apresentar ao espectador a necessidade de criar estratégias, os “serviços”, para que “o pensamento elaborado pelo IPES ganhe força na convicção da maioria” do povo. Na fig. 50 vemos um dos exemplos presente no filme, com o objetivo de “propagar as soluções democráticas para o grande público”. Mais uma vez, o IPES se apresenta como o detentor da verdade naquele confuso período em que o país estaria imerso. É neste momento em que os valores defendidos pela elite e os interesses nacionais se fundem na “urgente defesa da democracia e da liberdade”. A

301 Refiro-me à passagem que diz: Nós, os intelectuais; nós, os dirigentes de empresa; nós, os homens com responsabilidade de comando. Nós que acreditamos na democracia e no regime da livre iniciativa, não podemos ficar omissos enquanto a situação se agrava dia-a-dia. 302 Semelhante à proposta estadunidense materializada nos anos 1920, conhecida como american way of life. Quando o acúmulo de capital e a estratégia de governo incentivaram massivamente a acumulação de bens de consumo. Carro, casa e eletrodomésticos se tornaram itens desejáveis da classe média, símbolos de status social. 193 cena final é uma fusão de uma bandeira com a sigla do IPES com a bandeira nacional. Nada mais eficiente do que se apropriar dos interesses da nação para se beneficiar das possíveis vantagens concedidas por um Estado que oferecesse mais subsídios à iniciativa privada. Sem dúvida o discurso fílmico de O que é o IPES? representa a tentativa de “fortalecer atitudes e pontos de vista tradicionais de direita e estimular percepções negativas do bloco popular nacional-reformista”. (DREIFUSS, 2008, p. 249)

O IPES É O SEGUINTE

Ficha técnica Duração: 9 min Ano de produção: 1962 Narrador: Luiz Jatobá Imagem: n/c Montagem: Floriano Peixoto/ Ubirajara Dantas/ Irene Soares Produção: Atlantida/ Jean Manzon Films Realização: Instituto de Pesquisa e Estudos Sociais

Assim como O que é o IPES?, em O IPES é o Seguinte percebe-se a construção do ponto de vista do filme na associação dos interesses e dos valores da elite aos interesses da nação. Neste sentido, ambos os filmes desenvolvem um discurso fincado na promoção da imagem pública ipesiana. Embora compondo uma estrutura de série, afinal os dois filmes foram não só produzidos no mesmo período como também seguem a mesma temática, O IPES é o Seguinte apresenta uma estratégia distinta a fim de construir o discurso ipesiano. Enquanto O que é o IPES? investe durante as duas primeiras sequências na sugestão de uma tensão social que precipitaria o banimento da democracia e da liberdade com base nos regimes totalitários do século XX, para, em seguida, apresentar a criação do instituto como solução, o filme O IPES é o Seguinte apresenta outra estrutura. Desde os momentos iniciais, o filme dedica-se exclusivamente a sugerir o IPES como um núcleo de vanguarda capaz de conduzir o progresso da nação dentro de uma “harmonia social”. Neste sentido, a análise será dividida em dois momentos. Na primeira sequência, vamos abordar a abertura que preconiza o equilíbrio e a ordem da nação, localizando a capital federal e uma breve sugestão de tensão frente às 194

“calamidades da inflação ou da deflação”, aproximando-se assim da estratégia elaborada por O que é o IPES?. Em seguida, apresenta ao espectador a existência do instituto, no intuito de “colaborar com a democracia e o desenvolvimento do país”. Como dito, diferentemente de O que é o IPES?, a sugestão da atuação do grupo ocorre já nos primeiros momentos do filme. De tal maneira que o desenvolvimento dos seus ideais e de suas respectivas soluções frente aos problemas da nação ocupam a maior parte do filme. O discurso fílmico, como veremos na segunda sequência, ressalta alguns dos pontos que exigiriam mais atenção e que estavam sendo explorados pelo ambiente midiático daquele período. São eles: reivindicação dos trabalhadores, o movimento estudantil, a desburocratização do Estado, a assistência básica aos cidadãos, reforma agrária, entre outros. Sequência 1 Áudio Câmera Voz Trilha suave PG Palácio do Planalto, em Brasília. Brasil, capital Brasília. País livre, democrático, cristão, PG Esplanada dos Ministérios e PG ruas da país em fase febril de desenvolvimento. capital federal. Para colaborar com a democracia e seu desenvolvimento que se fundou o IPES: Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais

O IPES deseja uma política econômica e fiscal sem as calamidades da inflação ou da deflação, a defesa do poder aquisitivo do povo.

F i g . 51 PD Pastas nomeadas sobre os temas que serão abordados.

A composição da abertura de O IPES é o Seguinte centra-se na apresentação positiva do país. Trilha, imagens e comentário sugerem que a capital federal comanda um “país livre, democrático e cristão”. Vemos o Palácio do Planalto, a Esplanada dos Ministérios e outras localidades representativas de Brasília (fig. 51). O enquadramento de tais imagens no quadro, captadas à noite, apresenta-se por meio de um eficiente efeito fotográfico, num jogo de luz e sombra. É neste clima harmônico que o comentário apresenta o IPES como aquele que veio para “colaborar com a democracia e com a defesa do poder aquisitivo do povo”. Mesmo sem uma referência direta no comentário, as imagens indicam a eficiência deste grupo sobre os mais diversos assuntos. Em detalhe, vemos pastas 195

nomeadas (Aumento de Arrecadação, Contas a Pagar, Plano de Classificação de Cargos e Planos de Obras), ressaltado os projetos que o IPES pretende defender. É interessante notar que a menção indireta a tais projetos econômicos reaparecem em diversos pontos, como veremos na sequência seguinte, ao longo do filme. Não há necessariamente uma condução linear do roteiro. Percebe-se que a recorrência destes assuntos desempenha mais uma função retórica, a fim de considerar a atual administração federal incapaz de assumir o projeto que visa os interesses da elite, camuflados como “interesse nacional”, do que uma montagem desorganizada e feita ao acaso. Sequência 2 Áudio Câmera Voz PD Organograma de gerenciamento de O IPES mostra que o empresário brasileiro deve empresa. atualizar o conceito de empresa na vida moderna, voltando-se aos altos interesses da coletividade. PM Homens conversando e ZOOM para um cartão em que se lê: BOLSA DE ESTUDOS Todos têm direito de acesso à cultura.

É esta que evita a segregação social, exalta o civismo e abre novos horizontes à humanidade.

A atividade privada deve estimular o desenvolvimento cultural do país, em ritmo que possa proporcionar a todos oportunidade de progresso.

F i g . 5 2 Auxiliar todas as categorias de cultura é também

combater a perigosa polarização de esquerda-direita PG e PM adultos estudando. PM professor em que hoje tumultua a vida brasileira. sala de aula. PG biblioteca. Alunos estudando calmamente. PG alunos deixando suas salas O IPES preconiza o equilíbrio. de aula. Escolas, multiplicação de escolas a fim de que o brasileiro aprenda a ver, julgar e agir. PG e PM funcionários pesquisando papéis em diversos arquivos. No imenso e complexo mundo administrativo, o IPES PD mãos busca cartelas. PM mulher mostra a necessidade da modernização dos métodos, datilografando. dos equipamentos indispensáveis à eficiência.

PG cofre. PM ouro sendo transportado. PD Desburocratizar ao máximo a máquina do Estado é cofre sendo lacrado. melhorar a vida cotidiana do contribuinte e é fazer a nação andar mais depressa. PG trabalhadores executando obras de encanamento; construindo casas e calçadas. No setor dos serviços públicos, os recursos atuais da PG casas prontas. técnica administrativa levam aos verdadeiros milagres de perfeição e rapidez.

196

O Brasil precisa de dinheiro. Por isso, a legislação tributária deve ser reformada exigindo mais daqueles que mais possuem. Punindo severamente a evasão de impostos, redistribuindo racionalmente a renda nacional.

A execução de programas de saneamento e de higiene e habitação destinados a defender o nosso potencial humano está a exigir alta prioridade. F i g . 5 3

Assistência médico-hospitalar não apenas nos PG enfermeira cuidando de uma criança. PG grandes centros, em todos os recantos. médicos se preparando para uma cirurgia. PD instrumentos cirúrgicos. „Alunos-médicos‟ observando seus „mestres-médicos‟.

PG e PM de diversas crianças estudando: pobres e ricos; brancos e negros. PG altar e PD Jesus Cristo. Outro imperativo nacional, solução definitiva e imediata do problema do analfabetismo, ampliando assim em grande escala todas as oportunidade de ensino.

A educação e a cultura devem adaptar-se às singularidades locais. Aqui e ali se exigem bibliotecas especializadas.

F i g . 54

Com o espirito e a letra da Mater Magister, o IPES PG adultos estudando. Sugerindo o combate deseja a maior cooperação técnica e econômica entre ao analfabetismo. PG jovens saindo os países mais adiantados e aqueles que se entusiasticamente de sala de aula. encontram a caminho do progresso.

PG jovens operando máquinas, microscópios. Um ensino técnico e profissional. Um ensino

compatível com a aptidão de cada um, um imenso programa que será criado.

Abrir caminho à juventude que atingiu graus de especialização.

F i g . 55 A industrialização progressiva acelera o desenvolvimento econômico e social. PM estudantes caminhando em canteiro de obras. A finalidade é, no menor prazo possível, aproximar o nível de vida do povo brasileiro dos níveis alcançados PG fábrica. PM operário em ação. pelos povos dos países mais desenvolvidos. 197

E que reine em cada fábrica uma perfeita harmonia!

A justa remuneração do trabalho corresponde a um interesse direto e profundo da sociedade.

F i g . 56

PD ponto de entrada e saída na fábrica. PM trabalhadores recebendo seus salários. PD dinheiro sendo contado.

PG parque de diversão. Pessoas comuns em momento de lazer. PG e PM de jogo de futebol. PM mãe e criança em cadeira de O IPES deseja no Brasil um clima de segurança, de balanço. Tranquilas. liberdade, a fim de que o povo possa satisfazer seus anseios de trabalho, teto, propriedade, escola, saúde, descanso, divertimento.

Para se assegurar a melhoria da produção agrícola, da valorização do homem do campo e o êxito da reforma agrária onde esta se depuser é indispensável estabelecer planos e condições que provoquem na agricultura um surto idêntico ao que se verificou nos últimos anos no setor industrial. F i g . 57

PG e PM adultos e jovens trabalhando na colheita. PG e PM máquinas controladas por O IPES deseja: acelerar o desenvolvimento, assegurar homens. melhor distribuição da renda, elevar o padrão de vida do povo, preservar a identidade nacional mediante a intervenção de regiões menos favorecidas deste país democrático, livre.

Brasil, capital Brasília.

F i g . 58

PG Brasília.

O primeiro assunto destacado pelo filme se refere à urgente necessidade do empresariado brasileiro em “atualizar o conceito de empresa na vida moderna voltando-se aos altos interesses da coletividade”. A relação entre empresa e trabalhador não é aprofundada. O que significa atender os interesses da coletividade? Qual o conceito de empresa na vida moderna que o filme sugere? Na 198 verdade, ele não apresenta. Trata-se de uma abordagem solta, vazia, recheada de frases e situações em que a trilha potencializa o quadro. Em um momento mais adiante, após o comentário reiterar a importância do ensino técnico para o desenvolvimento industrial do país, proclama-se: “E que reine em cada fábrica uma perfeita harmonia”. Embora note-se que o comentário propicia uma economia na análise, já que as argumentações são feitas de maneira sucinta e genérica, é importante ressaltar a quantidade de imagens representativas do trabalhador em ação. Seja na fábrica (fig. 56) ou mesmo dirigindo um trator (fig. 58). Nesta última figura, o contrapondo se dá após a sugestão de que as técnicas ultrapassadas na colheita do café e no plantio hortifrúti deveriam ser modernizadas. A sugestão do “moderno” é a presença da máquina do quadro, manipuladas por poucos. A necessidade de modernização pressupõe uma relação direta com a mão de obra pautada apenas pelos benefícios de uma “justa remuneração do trabalho. Interesse direto e profundo da sociedade”, validados pelo IPES. Apela-se para a valorização do trabalhador e da melhora de sua condição de vida a partir de frases de efeito. O caminho para viabilizar pauta-se na atuação do instituto de estudar os problemas. O segundo assunto presente diz respeito à “cultura do povo”. Para o instituto, cultura tinha relação direta com educação formal. Afinal, é “esta que evita a segregação social, exalta o civismo e abre novos horizontes a humanidade”. E a educação também devia ser de responsabilidade da atividade privada a fim de “estimular o desenvolvimento cultural do país, em ritmo que possa proporcionar a todos oportunidade de progresso”. No quadro, vemos a sugestão de ofertas de bolsas de estudo (fig. 52) e jovens comportados e concentrados nos seus livros na biblioteca. Longe de se aproximarem a uma conduta de protesto ligada ao movimento estudantil da época, O IPES é o Seguinte representa o estudante sereno e ordeiro. Aqui já encontramos alguns sinais da campanha de desarticulação do movimento estudantil promovida pelo IPES que, no texto audiovisual, poderemos verificar especificamente nos filmes Deixem o Estudante Estudar e Criando Homens Livres303. Para o IPES, investir na cultura “é também combater a perigosa polarização de esquerda-direita que hoje tumultua a vida brasileira”. A sugestão do discurso é de que só aqueles “desprovidos de cultura” podem se deixar levar por

303 Ambos os filmes são analisados no item 3.3 Documentários-Educação deste capítulo. 199

“influências negativas”. Estar a favor ou até mesmo sensível às reformas de João Goulart era reforçar um rótulo que investia na incapacidade intelectual daqueles que se posicionavam. Era preciso ampliar a “cultura ao povo” “a fim de que o brasileiro aprenda a ver, julgar e agir”.304 As imagens que remetem ao estudo básico estão fortemente associadas à educação tutelada pela igreja. Na fig. 54 vemos uma sala de meninas em que a professora é uma freira, em seguida o quadro apresenta o altar de uma igreja e a estátua de Jesus Cristo. A representação dos valores cristãos nas imagens em O IPES é o Seguinte demonstra que o instituto valorizava a associação do estudante “disciplinado” aos princípios da família cristã. No filme, os estudantes estão sempre inseridos no contexto específico de suas ações. Não há imagens que exploram suas atividades fora do contexto de estudo. Percebe-se também uma preocupação na composição do posado em apresentar estudantes brancos e negros ressaltando um dos argumentos de O IPES é o Seguinte: “os altos interesses da coletividade”. A composição do posado nas imagens sugere a inserção de ricos e pobres, brancos e negros, como outra constatação de um “país livre, democrático, cristão”. A ideia de cultura versus educação, segundo a perspectiva ipesiana, orienta a recorrente consagração de uma hierarquia. Alunos-médicos observam seus professores em uma sala cirúrgica (fig. 53), alunos de escolas profissionalizantes operando atentamente suas máquinas de acordo com o exemplificado pelos instrutores (fig. 55), entre tantas outras imagens de carácter posado que relacionam a educação formal com o estudante “ordeiro”. Essas propostas evidenciadas na análise fílmica estão tuteladas pelo “espírito e a letra da Mater Magister”. Segundo a perspectiva político-econômica do instituto, investir na educação era, inclusive, aumentar e otimizar a formação de mão de obra para a indústria. Afinal, “o IPES deseja a maior cooperação técnica e econômica [assim como o posicionamento da Mater Magister] entre os países mais adiantados e aqueles que se encontram a caminho do progresso”.

304 “Ver, julgar e agir”: trata-se dos três verbos de ordem explorados pelo IPES presente nos diversos meios de comunicação durante toda a campanha ipesiana até a tomada do poder pelos militares. No capítulo 2, vimos na reportagem do Jornal do Brasil um exemplo da presença desta diretriz do instituto desde a ocorrência de sua fundação. No documentário O IPES é o Seguinte, ela se mistura à proposta da multiplicação de escolas sem remeter-se diretamente ao valor de síntese que o instituto investia nela. 200

Outro assunto em destaque em O IPES é o Seguinte diz respeito ao bem- estar do cidadão a partir da garantia de suas necessidades básicas, que o Estado deveria proporcionar. Contudo, esta sugestão está presente no filme como uma consequência direta da manutenção de “um clima de segurança, de liberdade no Brasil a fim de que o povo possa satisfazer seus anseios de trabalho, teto, propriedade, escola, saúde, descanso, divertimento”. Neste sentido, a montagem prioriza no quadro a temática do lazer. Vemos uma família em um parque de diversão e um jogo de futebol. Há uma emblemática sequência que retrata um cidadão-trabalhador-jogador com seus amigos em um campo de futebol qualquer do Brasil (fig. 57). Dribles, chutes, gols e o público vibrando representam o esporte nacional. Por fim, o último assunto mencionado diz respeito à possibilidade de reforma agrária. O IPES se apresenta no discurso fílmico para “assegurar a melhoria da produção agrícola e da valorização do homem do campo”. O comentário enfatiza a concordância sobre a distribuição de terras aos camponeses “onde está se depuser” mediante o “indispensável estabelecimento de planos e condições que provoquem na agricultura um surto idêntico ao que se verificou nos últimos anos no setor industrial”. Embora trabalho, educação, direitos básicos dos cidadãos e agricultura sejam assuntos em destaque em O IPES é o Seguinte, eles são pautados a partir do ponto de vista ideológico do instituto. Ou seja, a construção de sua imagem pública, a partir da proposta deste filme, está emaranhada à apresentação dos assuntos, diferente do que ocorre no outro filme da série, O que é o IPES? Dessa maneira, é possível notar que a campanha contra as propostas presentes nas Reformas de Base - que preconizavam atender certas demandas trabalhistas, restringir as remessas de lucro do capital estrangeiro e modificar as condições da reforma agrária - e de desarticulação do movimento estudantil estão entre os valores do instituto materializados no discurso fílmico. Um filme de caráter ideológico que, em “defesa dos altos interesses da coletividade”, dissimulava um plano político que, anos mais tarde, viria a se concretizar.

201

3.3 Documentários-Educação

Criando Homens Livres e Deixem o Estudante Estudar completam o quadro de produções do IPES datadas entre julho e agosto de 1962. Em ambos, o objetivo é enfatizar o estudo como única alternativa para remediar os problemas e os empasses com os quais a juventude brasileira se deparava. Neste momento, percebemos a importância de discutir alguns dos aspectos presentes nos documentos localizados no Arquivo Nacional que revelam o pensamento ipesiano sobre o estudante e, principalmente, sobre a educação cívica que deveria ser incorporada à sua formação. “O analfabeto é um mutilado, perdido para ele próprio e para a sociedade”305. É desta maneira que o instituto sintetiza a importância da educação. Um peso para a sociedade, sinônimo de deficiência e incapaz de melhorar sua condição de vida. Percebe-se que a produção da série Documentários-Educação é a tentativa de materializar os valores ipesianos que entendem a educação formal como sinônimo da formação de um caráter idôneo. “O brasileiro representa o potencial humano da nação. Se ele for bem formado a sociedade será boa”306. Os documentos ipesianos revelam uma abordagem conservadora. Apesar do conteúdo a seguir não estar diretamente presente no roteiro dos filmes, sua conotação autoritária é substancial à pesquisa. O segundo item da carta dirigida ao IPES a partir da conversa entre Jean Manzon e Luis Cássio dos Santos Werneck, em fevereiro de 1962, relaciona os itens do que se entende a respeito da almejada formação cívica escolar. Segundo o instituto era preciso:

- proibir a cola que é o mais terrível processo de corrupção social - ensinar a criança a não mentir - não pedir para os filhos facilidade na escola - desde o Jardim da Infância até os cursos Universitários, ministrar aulas de moral cívica.

Como dito, o ponto de vista de Criando Homens Livres e Deixem o Estudante Estudar sugere que o progresso da nação está nas mãos da juventude do Brasil. Trata-se de um exemplo emblemático de normalização que atualiza a esperança do país por dias melhores. Neste sentido, o que é interessante destacar é que por meio

305 Anexo 06, Carta ao IPES. São Paulo, 3 fev. 1962, p. 291. 306 Idem. 202 desta ressignificação da importância da educação formal o IPES defende a promoção de uma postura cívica capaz de combater a “corrupção social”. Não é à toa que a disciplina de Educação Moral e Cívica foi incorporada no currículo escolar durante a ditadura militar. Mais precisamente num dos seus anos mais repressivos, com a promulgação do Ato Inconstitucional no. 5. A lei 869 de 12 de setembro de 1969 estabeleceu a disciplina em caráter obrigatório, e também como prática educativa, em todos os sistemas de ensino no Brasil. A disciplina tinha muitas finalidades, dentre elas o fortalecimento da unidade nacional e do sentimento de solidariedade humana, o aprimoramento do caráter, com apoio na moral, na dedicação à família e à comunidade e o preparo do cidadão para o exercício das atividades cívicas com fundamento na moral, no patriotismo e na ação construtiva, visando o bem comum. Características estas facilmente identificadas nos documentários analisados. Para o instituto os “atributos” cristãos de honestidade e bondade eram forjados nos bancos escolares. Neste sentido, o documento ainda aponta que era preciso:

Indicar ao estudante o caminho certo, mostrando que a sua melhor atividade para servir seu país é a dedicação ao estudo. Um mau aluno será amanhã um mau profissional, prejudicando criminosamente interesses da coletividade. Quanto custa para o Estado, para as famílias a formação de um técnico, de um profissional liberal. O aluno deve ter consciência do seu dever de aplicar-se nos estudos, pois do contrário estará sendo desonesto para com o Estado, para com a família, enfim com todos aqueles que com sacrifícios sustentam seus cursos.307

Esta simplificação nos oferece subsídios para dar o pontapé inicial ao analisar os curtas desta série. Afinal, trata-se de um discurso ideológico que destaca, inclusive, o preconceito frente às mudanças sociais com as quais a juventude se deparava nos anos de 1960. Beber, dançar, namorar, descobrir sua sexualidade, entre outras ações, foram representadas como caricaturas a serem abolidas. A caracterização do jovem por meio de estereótipos foi o modo pelo qual o discurso fílmico pôde repreender a “juventude transviada”. A solução? Pautada na educação, segundo, é claro, os valores e ideais ipesianos.

307 Idem. 203

CRIANDO HOMENS LIVRES

Ficha técnica Duração: 9:49 minutos Ano de produção: 1962 Narrador: Luiz Jatobá Imagem: n/c Montagem: Floriano Peixoto, Ubirajara Dantas e Irene Soares Produção: Atlantida/ Jean Manzon Films Realização: Instituto de Pesquisa e Estudos Sociais

O primeiro filme que será analisado nesta série é Criando Homens Livres. O título sugere duas conotações importantes que norteiam este documentário. A primeira é que o homem poderá desfrutar de sua liberdade em função de sua criação e, a segunda, instiga pelo busca dos responsáveis por criar homens livres. Ou seja, devido à estrutura gramatical do título, em função do sujeito indeterminado, provoca-se a busca por aquele que executaria tal ação. Segundo o discurso fílmico, “só a educação em todos os seus graus pode fazer uma juventude feliz, livre, capaz de assumir todas as responsabilidades”. Neste sentido, o IPES introduz não só uma noção “sagrada” da educação formal, que se revela no filme a partir de uma prática maniqueísta das ações da juventude e suas relações com o mundo exterior, mas também uma abordagem pragmática de educação, sugerindo a escola como instituição que prepara para o mercado de trabalho e para o liberalismo. Dividiremos Criando Homens Livres em duas sequências. A primeira dedica- se a revelar os problemas da “juventude transviada”. Há uma enumeração dos obstáculos que o jovem deve superar: desde sua condição social que reduz as oportunidades e o levam à criminalidade até “os casos graves de desajustamento moral entre as famílias ricas”. Para, em seguida, explorar a solução “corretiva”: a educação escolar para a formação de um homem livre que saberia trabalhar e votar bem. Atributos que, segundo o IPES, fariam do cidadão um homem livre. Sequência 1 Áudio Câmera Voz Trilha PG e PM família simples dormindo. PG jovem O que pode a sociedade brasileira esperar da miséria? instrumental. caminhando em uma favela e fumando. Mãe Que pode os mais favorecidos esperar deste jovem que Lenta, triste. correndo nos corredores da mesma favela. PG é abandonado ao seu destino? Que pode o Brasil jovens brigando. PD rosto de menino tombado esperar das favelas? Que podem os dirigentes esperar na briga. PM homem olhando a briga desses focos de vícios e crime? Que futuro teremos se descomprometidamente. PM crianças chorando a criatura humana for esquecida? Com quem e comendo com as mãos. PM homens tomando contaremos se as energias se corrompem? O que farão cachaça. PG e PM jovens jogando cartas. eles amanhã se nós lhes fechamos todas as portas? O Criança pedindo esmolas. que pode fazer ele, se não esmolar?

204

PD jornal:  NA CIDADE SEM ESCOLAS JOVENS Até quando essas manchetes serão habituais? ESCOLHEM O CRIME;  PREOCUPA O PAÍS O PROBLEMA DA JUVENTUDE TRANSVIADA.  PM jovem dançando e mascando chicletes. PM casal se beijando, dançando e bebendo. A culpa será da juventude dita transviada? Ou somos nós que não lhe oferecemos um caminho?

E entre as famílias ricas não existem casos graves de desajustamentos morais?

F i g . 59

PG e PM jovem em um carro de luxo.

Acendendo um cigarro.

PD revistas eróticas e jovem vendo-as.

F i g . 60

PG jovens roubando um carro. Este menino saberá votar amanhã? Saberá escolher os dirigentes da pátria?

Alguém já ensinou a esse jovem que os problemas não se resolvem desta maneira? Alguém lhe deu uma escola? Uma oportunidade? Um futuro?

A punição da forma da lei é uma solução para o problema social?

As cadeias que se multiplicam por todo o Brasil F i g . 61 impedem que eles continuem surgindo?

PG e PM jovens encaminhados a delegacia. Corredores de cadeia. PM criança atrás das grades, “encarando” o espectador.

F i g . 62 F i g . 63

205

A trilha Cenas do cotidiano de uma cadeia. Homens intensifica a presos, funcionários fechando portas. Solidão. Esta cena se repete milhares de vezes por dia. Em um sugestão de recanto qualquer de nossa terra, nasceu uma criança um lamento, PG médico fazendo um parto. Criança brasileira. O que devemos fazer para que ela possa certa nascendo e entregue à mãe. abrir os olhos em um mundo mais justo, mas digno, angústia. mais limpo?

O primeiro recurso utilizado na construção do discurso de Criando Homens Livres é a encenação. Desde a abertura, o filme localiza um menino pobre na favela. Vagando entre os barracos. A caracterização de seu caminhar sugere certa desocupação. Não há nada para fazer. Ele fuma e, sem motivo aparente, começa uma briga. O objetivo desta dramatização é sugerir ao espectador que a miséria dos centros urbanos leva o jovem, “abandonado ao seu destino”, a seguir o caminho da criminalidade. Afinal, o “que farão eles [os jovens] amanhã se nós lhes fechamos todas as portas?” A sugestão proposta nesta encenação é corroborada por fatos jornalísticos. Mais uma vez, vemos no quadro as manchetes de jornais a fim de dar um valor de documento à situação previamente construída. O menino que vemos, assim como o marinheiro, o estivador, o maquinista, o retirante, o sindicalizado, dentre os personagens retratados em Documentários-Denúncia, representa um jovem pobre com “potencial” para entrar no mundo da criminalidade. Referência esta que irá se confirmar na trajetória do curta (fig. 61). Nota-se novamente a proposta de dramatização para caracterizar o roubo do carro. “Alguém já ensinou a esse jovem que os problemas não se resolvem desta maneira? Alguém lhe deu uma escola?” A partir da constatação da falta de oportunidade revelada no comentário, o filme problematiza a eficiência da punição do delito deste jovem. A trilha intensifica a sugestão de desamparo ao vermos jovens conduzidos à delegacia, funcionários fechando as portas das cadeias e presos em solitárias. A construção fílmica de um futuro para esta juventude “sem esperança” tem seu ápice nas figs. 62-63. Atrás das grades, o menino olha para a câmera. Diferentemente das situações encenadas, quando a presença da câmera era propositalmente negada aos personagens presentes na ação, aqui a estratégica se inverte. Ao olhar para as lentes da câmera, o menino encara o espectador. E este encontro é sensivelmente explorado na sequência, já que este espaço imagético está apenas preenchido pela trilha. O narrador se cala. 206

Além da juventude levada para a criminalidade, outro aspecto explorado nesta primeira sequência está centrado na “moralidade e nos bons costumes”. Os “casos graves de desajustamento moral” são caricaturalmente representados na tela. Beber, dançar e fumar são indicadas como atitudes condenáveis. É interessante notar que a caracterização sugere sempre um exagero na encenação. O balançar do corpo da jovem faz sua cabeça, braços, tronco, quadril e pernas vibrarem ao mesmo tempo em que brinca com sua goma de mascar (fig. 59). A sexualidade também é reprimida, o namoro e a encenação da busca de um menino por uma revista na banca de jornal – que sugere uma publicação erótica ou, no mínimo, de mulheres de biquíni nas capas – é recriminada (fig. 60). Trata-se de uma representação moralista em que qualquer representação pública da sexualidade deve ser banida. A transição para a segunda sequência que revelará a educação como solução para os problemas da juventude se dá a partir da relação que o comentário estabelece com as imagens no quadro. “Esta cena se repete milhares de vezes por dia. Em um recanto qualquer de nossa terra, nasceu uma criança brasileira. O que devemos fazer para que ela possa abrir os olhos em um mundo mais justo, mais digno, mais limpo?” Vemos a clássica cena de uma criança nascendo e sendo entregue nos braços da mãe. Sequência 2 Áudio Câmera Voz Trilha muda PG jovens saindo da escola. Andando de Resposta: só a educação em todos os seus graus o tom. bicicletas. Indo para a escola. pode fazer uma juventude feliz, livre, capaz de assumir Suave. todas as responsabilidades.

Só a educação fará de cada jovem um eleitor esclarecido. Sim, porque um problema fundamental da democracia é educar para votar bem.

A escola é o próprio alicerce da liberdade sobre isso ninguém pode ter dúvidas. Somente multiplicando escolas, oportunidade de julgar bem o eleitor de amanhã saberá escolher sabiamente os dirigentes do Brasil. F i g . 64

PM crianças colocando uniformes,

aprendendo a escrever e arramar seus sapatos, respeitando o silêncio da sala de aula.

A felicidade de uma nação começa na infância. É na 207

família e nos bancos escolares que se inicia o processo de formação democrática da juventude.

Sobre isso podem estar certos os políticos, homens de imprensa, pais de famílias, todos nas escolas teóricas ou de aprendizado profissional é que é edificado um futuro livre de um Brasil desenvolvido. F i g . 65

PM crianças manipulando máquinas em Se para votar bem, é necessário favorecer a escolas técnicas. educação, o problema do Brasil é alterar para melhor esse panorama sombrio de 14 milhões de brasileiros em idade escolar apenas a metade chega a frequentar Trilha se PG e PM jovens deixando as escolas no final de seu turno. Cadernos na mão, folhas de aula aulas e aprender a ler. A porcentagem de quem atinge intensifica. distribuídas e grupos conversando a respeito os cursos superiores é ínfima e alarmante. Euforia, delas. felicidade. Assim quem chega a estudar no Brasil é um PG e PM alunos em sala de aula. Professores privilegiado. Tornar a escola um direito de todos é um na lousa. PM jovens em laboratório. dever de todas as classes e instituições responsáveis.

Menos de 20% dos brasileiros chegam a obter um grau de instrução que lhes permita discernir objetivamente dos nossos problemas políticos e sociais. Equivale dizer que o poder constituído no Brasil não represente nem 20% da opinião do povo.

Cada cidade é a pátria e para cada uma das cidades é F i g . 66 que se deve criar as melhores condições da

PG cidade pequena qualquer. (PAN) educação. Instruído o brasileiro votará bem e a Vemos um homem chegando em casa, sociedade conquistará a tranquilidade. O Brasil poderá cansado, ao anoitecer. Encontra sua esposa e desenvolver as suas riquezas. O povo terá o seu a abraça fortemente. padrão de vida elevado a níveis mais altos. Este é o prêmio das nações que constituíram escolas fazem PD Folha de votação e cédulas sendo homens livres e felizes. depositadas nas urnas.

Solução fácil e rápida. Sim, é pela instrução que o brasileiro poderá julgar corretamente quais são os governantes que devem dirigir os destinos do País.

A última etapa da educação é um gesto cívico à boca da urna. Um sim para a liberdade e democracia e não para a desordem e demagogia.

F i g . 6 7

Nesta segunda sequência, as imagens posadas preenchem todo o percurso do filme. Com o objetivo de sugerir a importância da formação desde os primeiros 208 anos escolares, a construção das imagens se desenvolve por meio de uma proposta enumerativa do cotidiano do aluno. Vemos crianças colocando uniformes, a caminho da escola, aprendendo a escrever, amarrando seus sapatos, respeitando o silêncio da sala de aula (fig. 65) e voltando para casa (fig. 64). Dos bancos escolares primários, o filme vai para a formação técnica (fig. 66), tendo como base o conhecimento especializado para melhorar o nível dos profissionais no mercado de trabalho. Ao anoitecer, um trabalhador volta para casa e é recebido por sua esposa. Todas as imagens remetem a uma atmosfera organizada. Os planos captados pela câmera são nítidos e reforçam a idealização da formação escolar, do mercado de trabalho e também do papel da mulher cuidando da casa, à espera do marido. Marcas ipesianas que reforçam valores conservadores. A projeção da família baseada na moralidade cristã é uma premissa que fundamenta principalmente os documentários em que se desenvolvem com maior ocorrência a temática de cunho social. Neste sentido, Nichols nos lembra que o documentário expositivo é o modo ideal para transmitir informações ou mobilizar apoio dentro de uma estrutura preexistente ao filme (2008, p. 144). Trata-se, então, da ocorrência de um imprinting que, neste caso, procura manter os valores conservadores potencializados na organização de um instituto disposto a defendê-los em todas as suas ações. Outro aspecto em destaque refere-se à relação que o filme estabelece entre educação e voto (fig. 67). No comentário, ao propor que a “escola é o próprio alicerce da liberdade [...] na família e nos bancos escolares que se inicia o processo de formação democrática da juventude”, o ponto de vista do filme desenvolve uma linha de raciocínio que localiza a consulta popular como a “última etapa da educação”. Por fim, em tom ufanista o comentário se apropria novamente do conceito de liberdade e democracia a fim de defender os interesses políticos: “Um sim para a liberdade e democracia e não para a desordem e demagogia”.

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DEIXEM O ESTUDANTE ESTUDAR

Ficha técnica Duração: 8:45 min. Ano de produção: 1962 Narrador: Luiz Jatobá Imagem: n/c Montagem: Floriano Peixoto/ Ubirajara Dantas/ Irene Soares Produção: Atlantida/ Jean Manzon Films Realização: Instituto de Pesquisa e Estudos Sociais

Em Deixem o Estudante Estudar, os ideais ipesianos estão personificados em um narrador-protagonista. Assim como em História de um Maquinista, o universitário – estudante experiente – é quem apresenta suas reflexões sobre o rumo da nação, propõe soluções e exemplifica, por meio de sua “história de vida”, como deve ser a postura de um aluno. A proposta do título também nos leva a refletir sobre sua implicação. Devido à estrutura gramatical, nos conduz a buscar quem ou quais as razões que impediriam o estudante de desempenhar sua função. Como veremos, trata-se de uma sugestão que permeia todo o filme. A tentativa de desarticulação do movimento estudantil ocorre na medida em que o narrador-protagonista sutilmente deixa entender que interferências externas prejudicam a vida de estudante. “A missão do estudante é cultural, patriótica, democrática. É o que eu, como universitário brasileiro, tinha a lhes dizer: deixem o estudante estudar!” A proposta de reproduzir o cotidiano de um estudante universitário aproxima- se das características do docudrama, também exploradas em História de um Maquinista. A análise de Deixem o Estudante Estudar está dividida em dois momentos. Inicialmente, o reconhecimento do narrador-protagonista do filme por meio da voz de Luiz Jatobá e sua reflexão sobre a situação do país. E, posteriormente, na concretização do “papel do estudante”. Isto é, na detalhista exemplificação do que, de fato, caracterizaria um estudante a serviço do país.

Sequência 1 Áudio Câmera Voz Trilha instrumental. PD olhos de um jovem. Várias horas por dia, mantenho as pestanas em cima Melodia dos livros. suave. Apresenta-se o personagem do filme.

PG diplomas entregues aos estudantes.

Durante todo 210 o filme, o tom Sou um estudante universitário e muitas vezes me sobe quando pergunto: quem é um estudante no Brasil? O que há a ausência significa o diploma que um estudante recebe depois de de longos anos de restrições e sacrifícios? comentário.

Como contemplo nossas grandes cidades? As realizações estupendas do homem brasileiro. Quando medito na complexidade da vida moderna, quando me faço consciência do grande avanço industrial dos F i g . 68 Plano aéreo de cidade e fábrica. PG estradas. últimos tempos e dos novos caminhos que interligam o PG interno de fábrica. PG de uma implosão. nosso território, quando penso, enfim, que o Brasil tem PG inúmeras obras. destino importante na comunidade mundial, eu digo a mim mesmo:

A responsabilidade da juventude é total, é a responsabilidade grave de quem vai herdar todo o patrimônio de uma nação. O que seria do futuro do Brasil se não conseguíssemos formar engenheiros na mais alta competência, capaz de concretizar o sonho da eletrificação do país?

O que seria da lavoura nesta época de agricultura rigorosamente científica se o técnico agrícola de amanhã não for um homem da mais absoluta F i g . 69 responsabilidade profissional? Todas as profissões PG construção de hidrelétricas. Abundância de devem proteger e criar condições favoráveis à vida. água. Plantio. Vemos um médico em uma cirurgia. Alunos acompanhando. Na era nuclear o mundo depende da ciência, da inteligência, do devotamento das novas gerações, de Vemos profissionais trabalhando em usina todas as formas culturais em permanente evolução. nuclear. PD máquinas e PM funcionários executando tarefas nelas.

O filme se inicia com a apresentação do narrador-protagonista (fig. 68) e sua reflexão sobre o exercício de ser um estudante. “Sou um estudante universitário e muitas vezes me pergunto: quem é um estudante no Brasil? O que significa o diploma que um estudante recebe depois de longos anos de restrições e sacrifícios?” Ao materializar o discurso ipesiano na voz do universitário, as reflexões iniciais são transferidas para o progresso da nação a partir de uma proposta liberal depositada no compromisso da juventude. “A responsabilidade da juventude é total, é a responsabilidade grave de quem vai herdar todo o patrimônio de uma nação. O que seria do futuro do Brasil se não conseguíssemos formar engenheiros na mais alta competência, capaz de concretizar o sonho da eletrificação do país?” (fig. 69) O filme se coloca como uma resposta direta do IPES, na tentativa de promover uma campanha para desarticular o movimento estudantil que, dentre os

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grupos que estavam se radicalizando durante o início da década de 1960, era um dos que mais se destacava.308 “O movimento estudantil [participou], intensamente, de todo o processo de radicalização das lutas populares nesse período, mas não como um movimento de massa e, sim, por meio de seus setores militantes, de „vanguarda‟, organizados, de direção.” (FILHO, 1997 apud CORREA, p. 109) Uma perspectiva interessante que merece destaque é o relativo aumento da proporção universitária do país nos centros urbanos mesmo que esta ainda estivesse muito aquém da demanda nacional. Como aponta o autor, em função do processo de industrialização do país, estudantes representantes da classe média tinham a possibilidade, mesmo que tímida, de receber seu diploma universitário.

Se for certo que a participação estudantil nas manifestações sociais do período esteve condicionada à presença do militante, ou, num outro sentido, uma ação não-massificada como indica Martins Filho, a campanha de desarticulação desse movimento movida pela cúpula ipesiana usou dessa característica de fragilidade do movimento para miná-lo definitivamente. (FILHO, 1997 apud CORREA, p. 109)

A necessidade de se contrapor ao movimento estudantil se revela no filme na exaltação de um estudante ordeiro e orientado por seu dever cívico na construção da nação. A ele estaria negado participação política sobre os rumos que o país poderia tomar. “Supremo desprezo por tudo que seja externo, agitação social, perturbadora da serenidade necessária para a seriedade do estudo”. E é sobre um modelo de conduta que dignifique os sacrifícios da família e justifique suas horas de estudo a próxima sequência: Sequência 2 Áudio Câmera Voz

Mantém-se a Vemos a entrada de uma universidade. Mas qual é a força mais típica das universidades? De mesma Estudantes nos corredores e entrando em sala minha parte, posso dizer o seguinte: aquilo que se proposta da de aula. chama espírito de universitário é a energia mais sequência dinâmica da vida estudantil, maior compreensão dos inicial. Na biblioteca rodeado de livros. problemas juntos de professores e alunos. Melhor adaptação ao regime das universidades.

O estudante é um estudante, que só tem

308 Neste período, dois eventos marcaram a expressiva atuação política do movimento estudantil. Trata-se do Primeiro Seminário da Reforma Universitária, ocorrido em 1961 na cidade de Salvador, e a encampada nacional “Greve por um terço”, promovida em 1962 pela União Nacional dos Estudantes (UNE) e pela União Metropolitana dos Estudantes (UME). 212

compromissos com os livros, consigo mesmo e com o futuro da sociedade brasileira. Manobras de baixa política, por exemplo, nada têm a ver com o espírito universitário. O imprescindível é desdobrar as possibilidades a fim de que todos possam atingir o nível cultural compatível com suas aptidões. É ainda imprescindível criar bibliotecas, baratear o livro didático, criar o maior número de bolsas de estudo, renovar os métodos rotineiros, reaparelhar as faculdades, melhores salários para os professores. Mais ação, menos burocracia. F i g . 70

É nos bancos universitários que o homem tem a Vemos novamente professores e alunos em possibilidade de receber uma solução definitiva. O sala de aula. esforço individual deve acompanhar esforçadamente o PD laboratório. Alunos no microscópio, esforço coletivo. A mentalidade do “salve-se quem analisando e anotando. puder” deve desaparecer para sempre em nossas universidades.

A formação de um bom profissional exige uma soma de sacrifícios. Não apenas dos pobres estudantes e de sua família, e de toda a coletividade que paga os impostos através dos quais se mantêm as universidades.

Estudando em velhas e tranquilas cidades ou em cidades modernas, os universitários do Brasil são sempre os herdeiros dos aspectos típicos da nossa F i g . 71 cultura. Os cidadãos mais conscientes do estilo

Vemos uma cidade tranquila, em Minas brasileiro de viver. Aqueles que têm a obrigação de Gerais.309 Vemos novamente alunos conhecer a fundo nossos problemas a fim de dar a estudando. Analisando pedras em bancada de estes soluções nacionais. Isentas de influências laboratório de pesquisa. PG inúmeros alunos estranhas e inassimiláveis. Fugir a isso é cair no caos nos corredores das universidades. ideológico.

PM estudante caminhando nas ruas com seus Este deve ser o espírito do estudante: sentido livros embaixo do braço. PD estudando em profundo de responsabilidade científica. Abertura para seu quarto. tudo quanto há de verdadeiramente importante pelo destino nacional. Supremo desprezo por tudo que seja externo, agitação social, perturbadora da serenidade necessária para a seriedade do estudo.

O estudante já começa o dia enfrentando dificuldades. A condução é cara e difícil. O preço dos livros está pela hora da morte. As horas disponíveis para estudo, quantos estudantes trabalham... são muitas vezes escassas. São muitos os tropeços para que ele possa cumprir dignamente sua função, essencial para o futuro do País. F i g . 72

PG Brasília. PD diplomas sendo entregues a

universitários.

309 Acredita-se ser Ouro Preto. Um detalhe na etiqueta da análise da pedra pesquisada pelo personagem está catalogada. Contudo, é importante ressaltar que o documentário não faz menção direta à cidade. O importante era que fosse distante para que o aluno ficasse concentrado apenas em seus estudos para “não cair no caos ideológico”, como sugere o narrador. 213

Também o poder público está hoje confiante da renovação educacional, pois não basta receber um diploma. Simples ponto de partida da integração de novas gerações universitárias na comunidade brasileira.

O espírito universitário se confunde, em última análise, com o próprio espírito de brasilidade. A missão do estudante é cultural, patriótica, democrática. É o que eu, como universitário brasileiro, tinha a lhes dizer: deixem o estudante estudar! F i g . 73

Nesta segunda sequência, observa-se que o papel do estudante universitário na sociedade é o fio condutor do texto e das imagens, de forma que a necessidade de investir no ensino “criando bibliotecas e barateando livros didáticos”, por exemplo, é uma solução para ajudar a conter os estudantes frente às questões políticas. Os estudantes devem manter-se concentrados nos estudos. Afinal, “manobras de baixa política, por exemplo, nada tem a ver com o espírito universitário”. Inicialmente, localizamos uma intensa preocupação no encadeamento das imagens em representar atitudes que concretizem o modelo de estudante defendido pelo instituto. Estudantes na biblioteca estudando, se dedicando ao estudo em espaços coletivos (fig. 70), nos laboratórios de pesquisa anotando suas observações (fig. 71), só para citar algumas das situações desenvolvidas no filme. Em seguida, o discurso busca explorar imagens que concretizem os “sacrifícios” que o estudante faz para conseguir seu diploma. Pagamento do transporte, dos livros e as horas destinadas ao estudo (fig. 72), segundo o comentário, “são os tropeços para que ele possa cumprir dignamente sua função”. A característica do posado é recorrente, inclusive no encerramento no filme. Quando a proposta final se concretiza no recebimento do diploma (fig. 73), o estudante cumpriu sua “missão cultural, patriótica, democrática”. É neste momento que o narrador-protagonista novamente reitera ao espectador de quem é a voz do filme. Para não só intensificar a autenticidade do que foi apresentado, mas para também sugerir que o estudante brasileiro sofre de pressões que podem desvirtuá-lo de sua missão.

214

3.4 Documentários-Confronto

A elaboração do ponto de vista dos filmes que compõem esta série foi construída para “denunciar” a iminência de um golpe comunista no Brasil. Diferentemente dos documentários analisados nas séries anteriores – Documentários-Denúncia, Documentários-Institucionais e Documentários-Educação, que têm a intenção de localizar problemas de temáticas específicas e a partir deles construir contrapontos com a visão do instituto –, aqui verificamos que, apesar dessa maneira de construir o discurso fílmico se conservar em alguma medida, Documentários-Confronto se apropria exclusivamente de um conjunto de elementos externos que não se relaciona diretamente com a temática, para propor a defesa da nação através do voto310. Os documentos de liberação de censura localizam a produção de O que é a Democracia? e Depende de Mim no segundo semestre de 1962, entre os meses de agosto e setembro. A sugestão evidente é de que tais documentários foram utilizados de maneira intensiva antes daquela que seria a última consulta popular ocorrida em outubro do mesmo ano. Nos filmes, a ideia era identificar os “amigos do totalitarismo”. “Miséria, exploração, doença e ignorância são os melhores aliados do totalitarismo. Então, como combater esses males?”311, questionava-se o IPES. Naquele momento, a construção do discurso nos filmes revela a intenção do instituto em sugerir que o voto não era apenas a escolha direta de um candidato, mas destinava-se à manutenção do exercício democrático. O IPES identificava as disputas eleitorais como um problema a ser resolvido. Sobre a possível produção de documentários que abordassem o tema, vê-se o registro elaborado no item 12 do documento, já no início de 1962. “Problema eleitoral: o que representa o voto; o seu inestimável valor no regime democrático. Despertar a consciência do eleitor, mostrando sua responsabilidade na escolha dos

310No filme O que é o IPES? podemos conferir uma abordagem parecida ao destacar a exploração exacerbada de imagens que misturam os líderes; Adolf Hitler, Benito Mussolini, Fidel Castro, Che Guevara e Nikita Khrushchev; que revelavam fatos marcantes; o Holocausto, a construção do muro de Berlim, a Revolução Cubana, por exemplo; que apresenta alguns países que foram incorporados à União Soviética, como a Tchecoslováquia e Hungria. Contudo, esta construção fílmica não está a serviço da sugestão do voto como forma de proteger a democracia do “perigo comunista”. 311 Anexo 06, Carta ao IPES. São Paulo, 3 fev. 1962, p. 291. 215 candidatos”312. É neste sentido que, O que é a Democracia? e Depende de Mim apresentam o voto como a solução máxima da defesa da democracia diante dos perigos do totalitarismo que rondariam o Brasil. “Aqui nas urnas, o brasileiro defende a liberdade e o regime democrático”. Para tanto, ambos os filmes dedicam grande parte de seu roteiro a apresentar um discurso sensacionalista que, por vezes, sugere uma aproximação entre comunismo e nazismo para fazer a propaganda dos ideais do instituto. Já a estratégia fílmica de O Brasil Precisa de Você é uma mistura de algumas referências identificadas no exercício da análise dos outros curtas. Não só a exploração exacerbada de imagens documentais em movimento, como vistas em Que é a Democracia? e Depende de Mim, mas também a utilização de manchetes de jornais e recursos de zoom in e zoom out para potencializar o detalhe das fotos, como verificamos em O que é o IPES?. O comentário de O Brasil Precisa de Você aborda desde a “missão” do instituto, a omissão dos empresários, até o papel do estudante, a miséria do povo, os conflitos sociais entre tantos outros assuntos recorrente no material audiovisual do IPES. Trata-se de um verdadeiro pot-pourri de argumentos conclamando à revolução através do voto. O apelo para a manutenção da democracia concretiza o esforço de desmobilizar a esquerda brasileira de suposta tendência comunista. Sem dúvida, o discurso dos filmes da série Documentários-Confronto afirma uma postura mais agressiva do IPES na consolidação de um apelo sensacionista e anticomunista. Até então, as denúncias eram associadas à ineficiência do governo federal, em menção à gestão de João Goulart. Agora, a provocação dos filmes colocavam em dúvida seu comprometimento com a democracia, acusando-o de abrir as portas para o totalitarismo.

QUE É A DEMOCRACIA?

Ficha técnica Duração: 9 min. Ano de produção: 1962 Narrador: Reynaldo Dias Leme Imagem: n/c Montagem: Floriano Peixoto, Ubirajara Dantas e Irene Soares Produção: Atlantida/ Jean Manzon Films Realização: Instituto de Pesquisa e Estudos Sociais

312 Idem. 216

Na investigação dos documentos no Arquivo Nacional, encontramos uma passagem interessante que evidencia o imaginário do IPES sobre a questão do voto.

O brasileiro, por absoluta falta de orientação, sempre votou em homens, jamais em ideias. Daí o sucesso dos caudilhos, dos líderes messiânicos, homens de formação reconhecidamente antidemocrática. É preciso mostrar que os homens desaparecem, os líderes passam e as ideias continuam. Exemplo típico é o que nos oferece a igreja católica. Muitos papas passaram por elas sem que isso alterasse a doutrina religiosa ou abalasse a fé popular.313

Neste sentido é interessante destacar que tanto a sugestão de combate ao personalismo quanto ao voto de cabresto não aparecem em Que é a Democracia?. Muito menos a comparação com a doutrina da igreja que, segundo a perspectiva do instituto, se manteria intacta, indiferente do papa que a conduz. Contudo, esta abordagem reducionista dos fatos e dos acontecimentos, apresentando relações lineares de causa e efeito, tende a simplificá-los ao máximo. Próprias de um modelo balizado pela lógica binária. Podemos notar esse padrão de pensamento no filme. Assim, o objetivo de Que é a Democracia? é enfatizar a urgente necessidade de “unidade democrática da nação” por meio da sugestão do voto. Daí que o tom agressivo será concretizado no filme a partir da utilização de imagens de arquivo que remetem à Segunda Guerra Mundial, assim como a incorporação de registros “contemporâneos” que exploram a tensão da Guerra Fria, como a construção do muro de Berlim. Mais uma vez, destacamos aqui a potencialização do discurso na perspectiva de “revelação da verdade” a partir dos documentos do “real”. Dividido em duas partes distintas - o problema e a solução - Que é a Democracia? segue os demais filmes ipesianos na organização de seu espaço fílmico. Na parte inicial, procuraremos investigar de que maneira as denúncias dos regimes totalitários desenvolvidos se constroem ao relacionar-se com a realidade brasileira. Para, em seguida, partir em busca da resposta à pergunta-título do filme, que enfoca a importância do voto na visão do documentário. Sequência 1 Áudio Câmera Voz

Trilha Vemos homem entrando na cabine para votar. instrumental. PD cédula. Intensa, forte

313 Idem. 217

As vésperas de mais um pleito eleitoral no Brasil Trilha muda o sempre cabe perguntar mais uma vez: o que tom defendemos com o voto? O que é democracia?

F i g . 74 Democracia é o contrário da loucura ideológica e PM Adolf Hitler discursando. Cenas de política que levou Hitler e Benito Mussolini à guerra destruição e guerra. mais destruidora de toda a História. O nazi-fascismo era o inimigo da democracia.

Hoje a democracia sofre uma nova ameaça: o comunismo. Os habitantes de Berlim oriental buscam a liberdade, procuram fugir de um regime totalitário, um regime contrário à democracia. F i g . 75

PD pessoas caminhando, famílias com malas. Estes refugiados chegam de um país onde não se pode PM rostos de pessoas: idosos, mulheres e votar, onde o povo não pode escolher seus próprios crianças. PM homens lendo jornais. dirigentes, onde nega-se de maneira primária e brutal a Informando-se dos rumos do país. PG soldados democracia. em prontidão. PM tanques e caminhões do exército. Onde se bloqueia o direito de ir e vir, onde a imprensa é exclusiva propriedade do governo falecem os princípios democráticos. Erguem-se alambrados hostis à liberdade popular.

Onde os tanques e as metralhadoras sufocam sangrentamente o direito de opinião, a democracia Ouve-se a ficou (*)314 . Esmagada ficou a dignidade elementar da sugestão de criatura humana. vaias em F i g . 76 consonância com a PG soldados e multidão. Onde o povo arrasta as forças da opressão e proclama imagem. o direito a liberdade. Onde as armas não conseguem silenciar de todo a voz dos homens. A democracia canta o hino de esperança e de bravura.

Onde se levanta o muro entre a liberdade e a tirania acontece isso, o fanatismo oficial do autoelogio. A economia baseada no trabalho exaustivo, o descaso Ouve-se a total pelo indivíduo, a dissolução da família, a paralisia marcação de da inteligência, o falseamento da educação, o tambores na espezinhamento do homem. trilha. F i g . 77 Mas onde existe a bota da opressão sempre existirá Enfatizando o também a voz que protesta. A voz que exprime

314 Durante a decupagem não foi possível compreender esta passagem do comentário. 218 conflito Construção do muro (Travelling). PM altivamente sua fé nos direitos fundamentais do sugerido nas trabalhadores colocando os blocos, arames homem, na dignidade da pessoa humana, na igualdade cenas. farpado. PD placas de alerta em alemão. de direitos para homens e mulheres de todos os países.

Assim, a antidemocracia é isto: uma cerca que não se pode transpor, uma cerca farpada a separar o homem da sua liberdade, a separar o homem de viver uma vida digna, feliz.

F i g . 78

As imagens iniciais desta sequência apresentam ao espectador o momento do voto. Vemos a sombra de uma pessoa em uma cabine de votação (fig. 74). O comentário localiza o espectador que “às vésperas de mais um pleito eleitoral no Brasil sempre cabe perguntar mais uma vez: o que defendemos com o voto?” A partir de então, Que é a Democracia? se dedica a construir uma representação quase caricatural dos “inimigos da nação”. Adolf Hitler é o escolhido (fig. 75). A construção das imagens e do comentário estabelece uma estreita relação entre o nazismo e o comunismo em função da construção do muro de Berlim no pós-guerra. “Hoje a democracia sofre uma nova ameaça: o comunismo. Os habitantes de Berlim oriental buscam a liberdade, procuram fugir de um regime totalitário, um regime contrário à democracia”. O filme explora na montagem a atitude do “povo” diante das “forças da opressão”. O objetivo é idealizar um “povo” que não se deixa calar, vai às ruas para lutar por seus direitos. Intercalam-se imagens de soldados armados em prontidão (fig. 76) com pessoas em protesto (fig. 77). Esta dinâmica ainda recebe na montagem um áudio que sugere que a multidão age contra a atitude repressiva da polícia. Ouvimos vaias e, posteriormente, fortes tambores na trilha, indicando e exacerbando o conflito. É neste momento que a atitude das pessoas é indicada como um exemplo a ser seguido pelo comentário: “onde existe a bota da opressão sempre existirá também a voz que protesta”. Esta estratégia que reforça uma abordagem didática é recorrente. Outro exemplo de Que é a Democracia? é a exposição da construção do muro e da colocação dos arames farpados (fig. 78) em sintonia com a performance da voz que garante: “a antidemocracia é isto: uma cerca 219

que não se pode transpor, uma cerca farpada a separar o homem da sua liberdade, a separar o homem de viver uma vida digna, feliz”. Sequência 2 Áudio Câmera Voz

Trilha Corte para o Brasil, Rio de Janeiro. Plano instrumental. aéreo do Corcovado. Intensa, Brasil, terra da liberdade. forte. Exalta a imagem Esta luminosidade, esta transparência são essenciais em tom alto. ao homem brasileiro, pois neste ambiente de liberdade o nosso povo construiu as suas cidades e se afirmou como civilização.

O sentimento da liberdade brasileira tem a idade das primeiras gerações que nasceram de nossa terra. F i g . 79 O povo não recebeu de graça a liberdade, mas o povo PG Salvador, elevador Lacerda, baiana e a conquistou pouco a pouco. pelourinho.

No Império e no inicio da República a soberania do povo brasileiro se afirmava através de uma patriótica e justa política exterior.

F i g . 80

Mudança Homens como Barão do Rio Branco nos ensinaram a abrupta. PM homem assinando papéis. Há uma virtude de ver acima do horizonte visual das pessoas e Tom triste. sugestão de retratar o personagem Barão do dos partidos. Rio Branco citado no comentário. Protegendo a boa imigração, mantendo relação com PD passaportes. PD funcionário organizando todos os povos de boa vontade, o Brasil se fez maleta de correio internacional. conhecer em todo o mundo como um país de inabalável formação democrática.

Aqui, como em todas as democracias, as Forças Armadas existem não para a opressão totalitária, mas para a defesa dos sagrados direitos dos civis. Exército, Marinha, Aeronáutica, escolas de ordem, legalidade de democracia, virtudes sobre as quais se estabelece a liberdade e se desenvolve o progresso.

O que promete a democracia? Eles prometem tudo F i g . 81 que as gerações podem fazer livre e espontaneamente. Prometem livre escolha de ensino PD menino aprendendo a escrever. PD e religião para os seus filhos, garantia dos direitos professoras com seus alunos. PD meninos adquiridos de greve, de mudar de emprego ou aprendendo um ofício: lixando madeira, propriedade. Só a democracia impede que o povo lidando com couro, etc. PD jovens na mesma fique à mercê da vontade de um só homem ou de um perspectiva de aprendizado técnico. só partido político.

PD olhos. 220

A democracia promete o desenvolvimento livre e poderoso dos nossos templos industriais e comerciais com todos os benefícios recorrentes da expansão da riqueza nacional.

Abra os olhos! Veja claramente, examine no elenco de candidatos aqueles que podem – de fato – trabalhar pelo Brasil sem qualquer quebra da liberdade, dos direitos democráticos. F i g . 82

PM em sigilo na urna. Aqui nas urnas começa a democracia.

Aqui nas urnas o brasileiro defende a liberdade e o regime democrático.

Quanto melhor o eleitor se incumbisse da responsabilidade de votar, melhor será a democracia. Melhor e mais próspero será o Brasil.

F i g . 83 Mais livre e mais feliz será o seu povo.

PD das cédulas sendo depositados na urna.

A segunda sequência localiza o Brasil para fazer o contraponto do filme. A transição, a partir de um plano aéreo, explora a beleza da “cidade maravilhosa”. Vemos a estátua do Cristo Redentor e o Corcovado ao fundo (fig. 79). O contraste do discurso do filme se revela também na trilha e na voz. A melodia sugere uma atmosfera tranquila em associação com a dramaticidade do narrador que consagra a democracia no país ao dizer: “Brasil, terra da liberdade. Esta luminosidade, esta transparência são essenciais ao homem brasileiro, pois neste ambiente de liberdade o nosso povo construiu as suas cidades e se afirmou como civilização”. As características de “luminosidade” e “transparência” se concretizam na proposta estética na captação da imagem. As paisagens urbanas se revelam solares devido à potencialidade do contraste preto e branco. Além do Rio de Janeiro, Que é a Democracia? também apresenta a cidade de Salvador. A baiana (fig. 80), o elevador Lacerda e o pelourinho preenchem o quadro. É possível notar a escolha de elementos simbólicos para enfatizar a “soberania do povo brasileiro através de uma patriótica e justa política exterior” que, segundo o comentário, é representada por “homens como Barão do Rio Branco”. O discurso do filme reforça a condução da nação por homens da “elite” dotados do compromisso

221 de desenvolvimento do país, sem, ao menos, apresentar quais foram exatamente essas contribuições. O que importa é a atitude patriótica. Outro ponto importante a ser destacado nesta passagem é que a sugestão de que a democracia sempre esteve presente no Brasil. Não há nenhuma menção sobre a escravidão, a exploração dos indígenas ou sequer sugestão de conflitos sociais. Apenas um comentário solto que diz: “O povo não recebeu de graça a liberdade, mas o povo a conquistou pouco a pouco”. O tom panfletário é crescente. Ao apresentar as Forças Armadas, por exemplo, as imagens são “posadas” e o comentário enfatiza que o significado de sua existência é “para os sagrados direitos dos civis” (fig. 81). Que é a Democracia? recorre a uma proposta que mistura frases de efeito e imagens “posadas”. De fato, a elaboração da resposta da pergunta-título não se concretiza, apenas a sua representação simbólica sob o ponto de vista ipesiano é aprofundada. Se, por um lado, “a democracia promete o desenvolvimento livre e poderoso dos nossos templos industriais e comerciais”, por outro a manutenção de sua vigília ao escolher aqueles candidatos “que podem – de fato – trabalhar pelo Brasil sem qualquer quebra da liberdade e dos direitos democráticos” é urgente. “Abram os olhos!” (fig. 82). Imagens e comentário reforçam o exercício democrático (fig. 83) como solução para evitar as consequências de um regime que poderia ser instaurado pelos “inimigos” da nação.

DEPENDE DE MIM

Ficha técnica Duração:830 Ano de produção: 1962 Narrador: Reynaldo Dias Leme 315 Imagem: n/c Montagem: Floriano Peixoto, Ubirajara Dantas e Irene Soares Produção: Atlantida/ Jean Manzon Films Realização: Instituto de Pesquisa e Estudos Sociais

315 Em Depende de Mim, o nome do narrador não aparece nos créditos iniciais do filme. Contudo, a partir da investigação desta pesquisa, pode-se sugerir que seja a voz do locutor Reynaldo Dias Leme. Situação que também irá se repetir no filme Conceito de Empresa. O registo de seu nome nas cartelas se faz recorrente em Que é a Democracia? Percebe-se que Luiz Jatobá e Reynaldo Dias Leme atendiam a empresa de Jean Manzon e de Carlos Niemeyer. 222

Para defender os valores conservadores difundidos amplamente em toda a campanha ipesiana sobre família e religião, assim como a manutenção da “harmonia” das relações sociais no Brasil, Depende de Mim é composto ora por imagens de arquivo ora pela captação “posada”. Na primeira sequência, o curta localiza a revolta popular contra as políticas impostas pelo governo da República Popular da Hungria e pela União Soviética, em 1956, para, em seguida, realizar uma comparação com a situação brasileira. A sugestão observada na análise é a enfática responsabilidade do “povo” sobre os rumos da nação. É neste sentido que o título do filme torna-se não só a síntese do discurso, mas também é incorporado de maneira recorrente ao comentário e às imagens. Isto é, a frase “Depende de Mim” é utilizada para apresentar as propostas do instituto no discurso fílmico em sintonia com as imagens apresentadas no quadro, como veremos na segunda parte da análise.

Sequência 1 Áudio Câmera Voz Trilha Cenas de destruição. Soldados e povo Na Hungria, em 1956, o povo juntou armas para lutar instrumental ocupando as ruas. contra a opressão autoritária. Até quando viveremos no forte e intensa Brasil sem conhecer e atacar os ideais imperialistas? Até quando teremos que escutar (*)316 Eles, os civis líderes, tiveram que bater contra a tirania. O que faremos nós, brasileiros, a fim de preservar em paz a democracia?

Eles hastearam bandeiras proibidas e baniram os líderes(*)317 E nós? Até quando viveremos tranquilamente com as nossas ideias?

F i g . 84

Destruição de símbolos. PM bandeiras em fogo.

Eles tiveram que buscar seus líderes democratas no Ouve-se sons cárcere da prepotência. Reprimiram tanto os de tiros. estrangeiros a abrir fogo contra a população. Eles, por amor à liberdade, tiveram que enfrentar um agressor poderoso em luta terrivelmente desigual. E a nossa pátria? Do que depende a nossa pátria?

Eles preferiram a morte à tirania. E nós que preço pagaremos pela liberdade? F i g . 85

316 Durante a decupagem não foi possível compreender esta passagem do comentário. 317 Idem. 223

PG homem armado. Confronto nas ruas. A tirania em toda a parte conduz à morte, ao horror, impiedosa e maciça. E de quem depende? De quem PG pessoas correndo com vítimas em meio ao depende a democracia? De quem depende a justiça? fogo cruzado. PM homem morto caído no chão. De quem depende a segurança de nossos filhos? De quem depende a sua?

A primeira sequência do filme Depende de Mim é invadida por uma montagem que, exclusivamente, se apropria de imagens de arquivo. O comentário apresenta a Hungria como exemplo de um país em que o povo “lutou contra a opressão autoritária”. As imagens, estrategicamente montadas, revelam cenas de confronto, pessoas se protegendo do fogo-cruzado, vítimas fatais deixadas pelas ruas, a tomada de tanques de guerra por civis (fig. 84) e, principalmente, a exploração da destruição dos símbolos. Bandeiras são queimadas, assim como estátuas e a estrela, referência direta à União Soviética, é derrubada do alto do prédio (fig. 85). O comentário pouco se faz presente. A invasão das imagens de conflito em associação com uma trilha instrumental de melodia forte e invadida por sons de tiros e bombas compõem aproximadamente 1 minuto do documentário sem a voz performática do narrador. De maneira que, quando ela volta ao filme, sugere ao espectador o questionamento sobre os rumos do Brasil. Nota-se aqui, mais uma vez, uma estratégia de abordagem em que, a partir da citação de um exemplo internacional, tem-se uma comparação com a situação brasileira. A aproximação dessas duas realidades se materializa apenas no comentário: “E nós? Até quando viveremos tranquilamente com as nossas ideias? [...] E a nossa pátria? Do que depende a nossa pátria? [...] De quem depende a democracia? De quem depende a justiça? De quem depende a segurança de nossos filhos? De quem depende a sua?”. O tom provocativo se aproxima de uma sensacionalismo ao exaltar a segurança da pátria e da família. Sem dúvida, a primeira sequência representa um aleta contra a aproximação iminente de um golpe comunista no país.

Sequência 2 Áudio Câmera Voz

Trilha PD Folha de votação instrumental A liberdade depende do meu voto. O meu voto suave depende de minha consciência.

224

A democracia depende de mim. Tudo depende de mim. É pelo voto democrático que dependerá o Brasil.

F i g . 86

PD mãos colocando votos na urna. PG pedreiro, tintureiro, barbeiro, carpinteiro, De mim, o ajudante de pedreiro, depende a liberdade. metalúrgico. De mim, tintureiro, depende a paz social no Brasil dentro do princípio democrático. De mim, sapateiro, do meu voto depende a segurança. De mim, barbeiro, depende a justiça. De mim, carpinteiro, depende a liberdade que todos tem de escolher qualquer emprego. De mim, metalúrgico, depende os direitos do homem brasileiro. A boa aplicação do dinheiro público F i g . 87 F i g . 88 depende de mim, meu voto.

A liberdade de culto, o desenvolvimento industrial, o nível de vida dependem de nós, homens de todas as profissões, brasileiros de todos os municípios. F i g . 89 F i g . 90 PM homem discursando e público atento. De nós depende o fogo que move o futuro, a liberdade. Nós que sabemos fazer, nós que protegemos a vida, nós que temos responsabilidade, nós saberemos votar democraticamente.

O exercício de nossa vontade depende a maneira F i g . 91 F i g . 92 certa de lutar contra os problemas brasileiros. Empenhado em sacrifício, o Brasil avança para os seus objetivos. A plena posse de todos os seus (*)318 só a democracia permitirá a liberdade dessa massa para o progresso coletivo e isso depende de mim.

O Brasil estende sempre mais e intensamente os F i g . 93 F i g . 94 PG habitação e PG casal de mãos dadas. padrões da vida moderna por todo seu vasto território. E isso depende de mim.

O Brasil realiza pacificamente a revalorização do homem que trabalha, reconhecendo seu direito a uma vida feliz.

Deus criou o homem para usufruir dos frutos da terra e de seu próprio trabalho.

Dentro da democracia o Brasil acabará uma ordem agrícola mais justa e mais produtiva. Pelas sementes F i g . 95 que conhece a árvore, pela semente do voto, dependerá o crescimento democrático.

318 Idem. 225

PG cultivo da terra, plantação de café.

Getúlio Vargas disse “amigos serão todos que me seguirem na defesa do Brasil e parentes todos que pertencem à grande família cristã que o comunismo pretende destruir”.

Sim, eleitor, a liberdade democrática depende de seu voto. A tradição cristã brasileira depende de seu voto, a hora é de decisão consciente, o futuro do Brasil F i g . 96 depende de seu voto. PG Brasília.

Nesta segunda sequência percebe-se o início da dinâmica do comentário “depende de mim” que irá permear toda continuidade do filme. O primeiro item apresentado, relacionado a esta responsabilidade, é a manutenção da liberdade por meio do voto. Afinal, trata-se do mote defendido na série Documentários-Confronto. A exaltação do “exercício da democracia” e de sua garantia são explorados nas imagens. Na fig. 86, por exemplo, percebe-se que a elaboração do quadro é constituída a partir da sombra do eleitor, portador da cédula de votação, e “etiquetado” com o símbolo do Brasil no pano que destaca a divisória e a transparência. Outra construção enfática nesta sequência está no encerramento de Depende de Mim. Quando, em plano detalhe, destaca-se no quadro a cédula de votação sendo depositada na urna (fig. 96). A projeção da responsabilidade é elaborada no discurso em primeira pessoa. Há um trecho significativo do comentário que revela a estratégia persuasiva na incorporação do “outro” na voz. “De mim, o ajudante de pedreiro, depende a liberdade. De mim, tintureiro, depende a paz social no Brasil dentro do princípio democrático. De mim, sapateiro, do meu voto depende a segurança. De mim, barbeiro, depende a justiça. De mim, carpinteiro, depende a liberdade que todos tem de escolher qualquer emprego. De mim, metalúrgico, depende(m) os direitos do homem brasileiro. A boa aplicação do dinheiro público depende de mim, meu voto”. A intenção de fazer com que o espectador se identifique com os trabalhadores também está presente na abordagem das imagens, como vemos nas figs. 87-94,

226 pedreiro, tintureiro, barbeiro, carpinteiro, metalúrgico, médico, maquinista319, entre tantos outros, apresentam-se “posados” à câmera. Ainda desenvolvido na estratégia do “posado”, Depende de Mim apresenta um modelo de família, por meio da sugestão da aquisição da casa própria, carro e da exaltação de harmonia e felicidade com estas conquistas. Vemos um casal caminhar sob uma ponte de mão dadas, conversando (fig. 95). O comentário destaca “seu direito a uma vida feliz”. Daí que, ao enaltecer o signo “família”, Depende de Mim aproxima esta abordagem na passagem seguinte quando localiza uma nostálgica relação do homem com a terra e com Deus. Segundo o filme, apenas através da democracia brasileira é possível garantir “uma ordem agrícola mais justa”. É interessante notar a riqueza de elementos simbólicos diretamente relacionados ao signo cristão presentes no comentário. Desde a conotação bíblica, em que a frase é completada pela ideologia ipesiana, até a incorporação de elementos ligados às tradicionais elites brasileiras de supervalorização da relação com a terra. “Deus criou o homem para usufruir dos frutos da terra e de seu próprio trabalho. Dentro da democracia o Brasil acabará uma ordem agrícola mais justa e mais produtiva. Pelas sementes que conhece a árvore, pela semente do voto, dependerá o crescimento democrático”. Por fim, em uma tentativa que se aproxima de um vale-tudo ideológico, Depende de Mim traz as palavras de Getúlio Vargas concretizadas na performance do narrador que potencializa a necessidade da defesa do país para garantir a “grande família cristã que o comunismo pretende destruir”.

O BRASIL PRECISA DE VOCÊ

Ficha técnica Duração: 9 minutos Ano de produção: 1962 Imagem: n/c Montagem: n/c Narrador: n/c Produção: Jean Manzon Films Realização: Instituto de Pesquisa e Estudos Sociais

319 Percebemos aqui que trata-se do mesmo personagem apresentado no filme História de um Maquinista. 227

Assim como o filme O que é o IPES?, O Brasil Precisa de Você se apropria de imagens fotográficas para construir seu discurso. Esta é uma das características mais marcantes na elaboração fílmica com o intuito de explorar a denúncia dos regimes totalitários. Há uma apresentação exacerbada de fotos em que vemos Adolf Hitler, Benito Mussolini, Fidel Castro, Che Guevara, Josef Stalin e Nikita Khrushchev misturadas. O filme se revela como uma demonstração explicita de construção de um discurso ideológico que pretendia associar o contexto internacional a uma realidade que se aproximava do Brasil. Dessa maneira, a primeira sequência irá apresentar em tom sensacionalista as “terríveis consequências” dos regimes totalitários, cujo o Brasil estava correndo de se tornar mais um exemplo. Afinal, a sugestão era de que o país estava na iminência de sofrer um golpe de esquerda caso nada fosse feito. É neste sentido que, a sequência seguinte, o IPES é apresentado como uma das soluções para a garantia da manutenção da democracia. Sequência 1 Áudio Câmera Voz Trilha PD chamadas de jornais: instrumental  IPES prestará grande serviço à paz social; Em 1962, foi fundado o IPES.  Soluções democráticas para os problemas do País: lançado o IPES;  IPES defende reformas. Seu objetivo: apontar soluções democráticas para os problemas brasileiros.

F i g . 97 Quando a democracia não encontra meios para Cartela: O BRASIL PRECISA DE VOCÊ superar os seus problemas, está em perigo, ameaçada pelas ditaduras, como está acontecendo Cartela: UMA PRODUÇÃO DO INSTITUTO DE no mundo inteiro. PESQUISAS E ESTUDOS SOCIAIS (IPÊS) (Fotos) Benito Mussolini com seu exército. Rodeado de tanques. PD botas de exército em marcha, corpos. Violência.

Sem trilha. A ditadura fascista de Mussolini trouxe guerra e F i g . 98 F i g . 99 Discurso de miséria à Itália. 228

Benito (Fotos) Hitler aparece em discurso, em contato Mussolini. com a multidão, com seu exército.

Ovação da (Fotos) Campos de concentração da 2ª Guerra multidão. Mundial. Corpos empilhados, PD rostos. Hitler provocou o conflito mais terrível que a humanidade já assistiu. As ambições imperialistas do Terceiro Reich resultaram na morte de milhões de Discurso de seres humanos nos campos de batalha e de Hitler. concentração.

Ovação da F i g 1 0 0 F i g . 1 0 1 multidão, (Fotos) Construção do muro de Berlim, dos em apoio. soldados em prontidão. Pessoas acenando a Uma Alemanha dividida com seu povo separado pelo outras que ficaram do outro lado do muro, na murro da intolerância foi a herança deixada pelo Volta trilha. tentativa de entregar a estes seus bebês. PD nazismo. homem morto preso ao muro.

(Fotos) Josef Stalin. Pessoas em confronto, carros destruídos, tanques nas ruas, vítimas carregadas. O tom da A ascensão de Nikita Khrushchev. melodia se intensifica. Assassinando milhares de cidadãos russos que se Sugere um opunham à ditadura, esmagando o anseio de confronto. liberdade e autodeterminação dos povos, o regime soviético cometeu crimes que estarreceram o mundo.

Na Itália, na Alemanha, na União Soviética, em Cuba, F i g . 1 0 2 na China, a história foi sempre a mesma. Em ambientes de injustiças sociais, o extremismo da (Fotos) Militares chineses marchando. direita e a esquerda se radicalizando, destruindo a (Fotos) Camponeses no cultivo de arroz, puxando democracia ante a passividade da maioria dos o arado, trabalhando sob a vigília de um homem democratas. armado.

(Fotos) Fidel Castro em discurso, com os demais

companheiros de luta, Che Guevara e Camilo, da

festividade em função da vitória. Ouve-se o hino da A Revolução Cubana só foi possível porque os Civis no paredão e armas apontadas contra eles. Internacional democratas se omitiram diante da ditadura de Batista Corpos ao chão. Foto de Nikita Khrushchev em cantada em permitindo que se criasse o clima que facilitou um abraço a Fidel Castro. coro. novo ditador: Fidel Castro.

Diferentemente de Que é a Democracia? e Depende de Mim, o filme O Brasil Precisa de Você traz em sua abertura uma referência direta ao instituto. Ao mostrar o título de uma matéria jornalística no quadro (fig. 97) e o comentário que indica o objetivo do IPES em “apontar soluções democráticas para os problemas brasileiros”, o filme apresenta ao espectador brevemente sua resposta para combater “o que está acontecendo no mundo inteiro”. Como dito, a estratégia fílmica de O Brasil 229

Precisa de Você está sustentada na exploração de imagens fotográficas. Além de trazer consigo uma forte sugestão de autenticidade, a maneira pela qual o filme incorpora as fotos na montagem potencializa ainda mais sua força de denúncia. Elas se apresentam em corte seco, uma enumeração e, de acordo com o tom caloroso do discurso, a montagem opta em trabalhar com zoom in, direcionando o detalhe da cena e, em zoom out, mostrando ao espectador a magnitude da ocorrência. Vemos o exemplo das figuras 98-99 e 100-101. O apelo de ambas no quadro fortalece os ataques violentos da ditadura de Benito Mussolini e do Holocausto promovido por Adolf Hitler durante a Segunda Guerra Mundial. Pessoas mortas nas ruas, corpos nus e fracos, corpos empilhados nos campos de concentração. É importante notar que a segunda abordagem de ambas as figuras citadas, ou seja, as figs. 99 e 101, remetem às cenas anteriores: as figs. 98 e 100. Neste momento, a montagem não aplica o recurso de zoom in, de aproximação. O jovem rapaz que se apresentava no quadro distanciado e ao lado de outro homem, agora tem seu rosto inexpressivo e apático pela morte em destaque no filme. Assim como a montagem busca o detalhe do rosto da mulher assassinada no campo de concentração que antes se misturava aos demais corpos. Isolados tornam-se mais fortes, já que, ao identificar suas características físicas no quadro, promovem uma aproximação com o espectador. A transição é feita em corte seco para apresentar os closes do homem e da mulher. Não há dúvidas que o ponto de vista do filme visa ressaltar a violência dos regimes totalitários. Aqui, o que se faz notar é que a estratégia de montagem reúne não só estas fortes imagens, mas também trabalha a melodia para potencializar a dramaticidade do discurso em sintonia com a performance da voz. Outro aspecto explorado nas imagens é a apresentação dos “inimigos da nação” em situações que ora apresentam sua força através da gestualidade corporal presente na foto ora através de maneira caricatural, como vemos na foto de Nikita Khrushchev (fig. 102). A sugestão de uma espécie de delinquência e de loucura a partir de seu rosto contorcido e língua para fora exemplifica a sugestão do discurso de O Brasil Precisa de Você ao apresentar os “inimigos da nação”.

230

Sequência 2 Áudio Câmera Off

Trilha em O IPES considera essencial a sobrevivência da crescente democracia no Brasil, a superação do ritmo, em subdesenvolvimento, a estabilização da moeda, a diálogo elevação do nível de vida da população, a com o redistribuição da renda nacional visando diminuir corte e a as desigualdades geradoras de conflitos. evolução das imagens.

F i g . 1 0 3

(Fotos) Progresso: hidrelétricas, homens trabalhando nos altos postes de energia, redes de distribuição, arando a terra com tratores, carros nas rodovias, o porto em trabalho, navios se deslocando, usinas, máquinas, prédios. Estudos efetuados pelo IPES revelaram a (Fotos) Cartilhas do IPES: necessidade de reformas estruturais imediatas.

 O QUE É O IPÊS; Mudança de trilha.  REFORMA CONSTITUCIONAL;

 DEMOCRATIZAÇÃO DO CAPITAL; Um novo conceito de democracia precisa ser  O PRESIDENCIALISMO QUE NOS CONVÉM. levado aos estudantes, aos operários, aos homens do campo. Para atender suas finalidades, o IPES PM estudantes, operários, camponeses, médicos, precisa de você e sua colaboração. e empresários em reunião.

Mudança Muitos estão de braços cruzados, esquecidos que de trilha. a democracia não pode ser defendida por comodistas. Ouve-se um Aonde nos levará a miséria do povo? dedilhar de F i g . 1 0 4 F i g . 1 0 5 violão, bem calmo e (Fotos) Brasília: Palácio do Planalto, Ministérios, lamentoso. bandeira do Brasil hasteada, Palácio da Justiça.

(Fotos) Miséria, pobreza e desespero. PM senhora

de rosto sofrido, outra descalça, outra chorando,

outra pedindo por comida. PM homens, crianças. Mudança O corte segue o ritmo da música. As mesmas de trilha. imagens em zoom. (Longo trecho) Intensa, E a inflação? forte, de impacto. Aonde seremos levados pela demagogia e ação social?

F i g . 1 0 6 F i g . 1 0 7 231

PD Jornal: “Governo emitirá mais 120 bilhões” Aonde nos levarão as crises? O descalabro Trilha administrativo, a desordem? acentua-se PD Notas brasileiras mostrando alguns dirigentes: com Getúlio Vargas, D. Pedro, D. João, entre outros. batidas de percussão. (Fotos) Manifestação. PD participantes discutindo com a polícia e de rostos apreensivos. Em outra foto é possível ler o cartaz da manifestação que diz: “Ferroviários exigem Reforma agrária para defesa dos camponeses”. PD mãos ao alto, acorrentadas, em aplausos, em movimento.

PD palavras de jornal: COLAPSO, GREVE e Aonde nos levará a omissão das chamadas elites? LUTA. (Fotos) de conflito. Lojas invadidas, saqueadas, objetos quebrados. Polícia, ao fundo, O tempo é pouco. reprimindo a ação. O Brasil não pode esperar mais.

Nesta segunda sequência, O Brasil Precisa de Você apresenta a solução para evitar as tragédias identificadas anteriormente. Vemos na tela uma cartilha produzida pela campanha ipesiana. “Como se faz uma revolução sem sangue” é o título do material impresso (fig. 103). A evidente sugestão do filme é que o IPES, por meio dos seus “estudos que revelam a necessidade de reformas estruturais imediatas”, garantiria os rumos certos da nação sem que o Brasil fosse assolado pelas tragédias apresentadas. De tal maneira que o mesmo uso anterior da fotografia (figs. 104-105 e figs. 106-107) é explorado, só que, desta vez, o comentário localiza as pessoas no Brasil. No homem revela-se um rosto atento no meio da multidão que se reúne em protesto. Já a senhora tem seus olhos colocados em primeiro plano na cena. Estes são apenas alguns exemplos que vão se intensificando ao final do filme. Há uma crescente busca em demonstrar as tensões sociais por meio de fotos que remetem a trabalhadores em greve ou em conflito com a polícia. E o comentário provoca, sugerindo que há pouco tempo para se mobilizar. De fato, o discurso de O Brasil Precisa de Você remete a um tom extremamente agressivo que, em certos momentos, beira a um confronto direto entre a polícia e os representantes da esquerda que, nesta segunda sequência, faz menção àqueles presentes nos conflitos e nas manifestações sociais.

232

3.5 Documentários-Corporativos

Esta última série marca a mudança de estratégia na produção dos documentários ipesianos. A Boa Empresa e Conceito de Empresa deixam de lado o tom agressivo dos filmes analisados em Documentários-Confronto para adotar uma proposta menos incisiva, porém não menos ideológica. Agora, o espírito golpista volta-se diretamente para o meio empresarial na expectativa de convocá-lo para um conflito que, na perspectiva ipesiana, já estaria se consolidando no Brasil. Diferente dos filmes analisados em Documentários-Confronto, nos quais as cenas de guerra e destruição estão localizadas fora do Brasil, no contexto da Segunda Guerra e no pós-guerra, em A Boa Empresa e Conceito de Empresa elas são incorporadas no discurso fílmico como parte integrante da realidade brasileira. Desta maneira podemos perceber que a construção de denúncia contra uma esquerda atuante no país se concretiza no comentário e nas imagens. Se por um lado, em A Boa Empresa, a culpa é apontada, ainda que indiretamente, no comentário, pois indica a suposta manipulação dos demagogos a influenciar os trabalhadores, por outro, é intensamente explorada em todo o discurso fílmico de Conceito de Empresa. Trata-se da consolidação de um imaginário anticomunista que deve ser intenso para assegurar a paz social. Comentário e imagens anunciam que “o perigo atravessou fronteiras e manipula as decisões no campo político”. A ação sugerida no filme é urgente: “Não amanhã. É hoje que você pode pensar em sua campanha de divulgação. Assim como a propaganda aumenta o número de suas vendas, aprenda a vendar igualmente a utilidade social de sua empresa. Propague a sua verdade de maneira racional e bem orientada. Leve a compreensão ao homem do povo, o valor da sua empresa para a comunidade brasileira”. Em ambos os filmes, o ponto de vista está centrado na “arregimentação” corporativa, já que a maneira pela qual o comentário se dá sugere um diálogo com o espectador-empresário. Apesar de não encontrar nenhum documento que referencie a exibição destes filmes exclusivamente nas localidades em que a campanha do instituto estabelecia um corpo a corpo com os empresários, como vimos no capítulo 2, há de se considerar que a sua montagem foi idealizada com tal

233 propósito. Só para se ter uma ideia da ativa relação que já existia com o empresariado, mesmo que os filmes tenham sido produzidos e finalizados no primeiro semestre de 1963, Dreifuss nos apresenta uma síntese do trabalho do Setor de Ação Empresarial que compunha o Grupo de Integração (GI) até setembro de 1962:

O IPES organizou 36 “mesas de integração”, convidando 136 empresas e registrando uma média de 38 companhias por “mesa”. Para suas reuniões, o Grupo de Integração convidou 476 empresas, incluindo as 136 participantes das “mesas de integração”. Depois de estabelecer 1.000 contatos pessoais e mais de 3.000 por telefone, ele obtinha o apoio de mais de 30% das firmas. (2008, p. 217)

Se por um lado, havia a expectativa de convocar mais aliados no intuito de equilibrar os gastos em função do volume de material produzido, por outro se via a necessidade de fortificar a estrutura, inclusive ideologicamente. Neste sentido, veremos que no filme A Boa Empresa a denúncia do comentário aponta que aqueles empresários que exploram o empregador com baixos salários, escassez de benefícios e falta de oportunidade de crescimento abrem “brechas perigosas nas relações empregado-empregador”. Segundo o IPES, para que a relação entre empregados e empregadores garanta a prática da “democracia social”, ela precisa oferecer: “integração dos trabalhadores nas empresas, remuneração justa e crescente e acesso aos postos mais altos da direção”320. O filme promove a participação ativa do empresariado a fim de promover o equilíbrio social e conter o “avanço da esquerda”. Dessa maneira, “a empresa, assim concebida, transformou- se na verdadeira comunidade humana onde todos são livres recebendo a remuneração digna pela sua atividade”. Embora o filme Conceito de Empresa apresente uma proposta discursiva semelhante, percebe-se que o tom sobre a responsabilidade dos rumos do país está direcionado ao descaso e à omissão daqueles “chefes de empresa” que não adotam uma posição ativa para defender a nação contra os “demagogos”. O discurso elaborado pelo filme é enfático sobre a suposta neutralidade e/ou passividade do empresariado. “Entrar na fogueira, ele não entra. Este [empresário], sem dúvida alguma, é o grande errado. E enquanto ele não faz nada, a demagogia

320 Anexo 06, Carta ao IPES. São Paulo, 3 fev. 1962, p. 291. 234 faz tudo”. Documentários-Corporativos concretiza a atuação do IPES na promoção de uma campanha ideológica direcionada ao empresariado, disposta a combater a esquerda trabalhista. A construção fílmica se apropria de um imaginário anticomunista para potencializar signos conservadores atuantes na sociedade. Tais ocorrências serão apresentadas nas análises a seguir.

A BOA EMPRESA

Ficha técnica Duração:10 minutos Ano de produção: 1963 Narrador: Luiz Jatobá321 Fotografia: Jorge Aguiar e Hélio Couto (Assistente) Montagem: n/c Direção: Moisés Kendler e Oswaldo Corrêa Produção: Carlos Niemeyer/ Canal 100 Realização: Instituto de Pesquisa e Estudos Sociais

Único documentário assinado por Carlos Niemeyer, A Boa Empresa é fiel à identidade das produções fílmicas ipesianas. A elaboração da imagem “posada”, a apresentação de personagens que caracterizam o coletivo (o trabalhador, o padre, o empresário, a esposa), assim como o destaque às manchetes de jornais que “comprovam” a situação preocupante em que o país estava mergulhado, são alguns dos principais exemplos que reforçam a concretização de uma identidade fílmica ipesiana, a partir das tradições audiovisuais recorrentes da época. Desde o inicio do filme percebe-se a intenção de estabelecer um discurso direto com o empresário-espectador. Em sua pesquisa, Dreifuss revela a constante busca da cúpula ipesiana em reforçar os laços com “seus pares de classe”.

O IPES incitava os empresários a se envolverem politicamente, cumprindo suas responsabilidades públicas, e proclamava que “as necessidades básicas do homem, tais como alimentação, abrigo e saúde, podem ser satisfeitas de melhor forma em um sistema de empresa privada [...] Na opinião do IPES, o Estado deveria intervir na economia apenas para preservar o mercado livre do monopólio, promover desenvolvimento econômico e contribuir para a paz social. (2008, p. 214)

321 Assim como nos documentários Portos Paralíticos, Uma Economia Estrangulada, A Vida Marítima e O que é o IPES?, em A Boa Empresa também não há referência ao narrador na cópia analisada. Seguiremos o mesmo encaminhamento dos curtas anteriores a creditar a voz a Luiz Jatobá. 235

Agora esta aproximação também ocorria de maneira mais contundente na produção dos filmes. A sugestão de uma atmosfera política instável seria responsabilidade da atuação dos “chefes de empresa”, fundamentada ora na omissão frente aos “descaminhos políticos da nação” ora pela prática de baixos salários e péssimas condições de trabalho que supostamente levariam os operários a “lutar” por modificações, se aproximando das propostas comunistas. A análise está dividida em dois momentos. Primeiramente, nos preocuparemos em apresentar a construção do discurso pautado por uma sugestão de realidade preocupante na relação entre empregado-empregador, para, posteriormente, identificar as estratégicas fílmicas que garantiriam a paz social a partir da conduta ativa do empresário consciente de seu compromisso social.

Sequência 1 Áudio Câmera Voz Trilha Cena urbana. Travelling Zoom in em uma casa instrumental simples. PM mulher fazendo uma marmita. PG da música jovem saindo de casa. “Samba em Prelúdio”, de PG fábrica. Cenas revelam funcionários Baden Powell trabalhando, operando diversas máquinas sem Antigamente, os operários sem desfrutar do respeito nenhuma proteção, com roupas sujas. dos patrões não participavam da empresa, como Mudança aliados que são de seus dirigentes. abrupta de melodia E hoje, nas empresas deslocadas da realidade, as, más condições de trabalho e a remuneração (*)322 ainda comprometem a saúde do operário. Vítima de uma mensalidade de que o capital não é um instrumento de bem-estar coletivo abrindo brecha perigosa nas relações empregado-empregador alimentada por uma minoria de maus empresários.

F i g . 1 0 8

PD manchetes de vários jornais sobrepostas a Melodia se imagens de agitação e manifestação social. intensifica. Sugere medo.

Desespero, morte, análises vindas muitas vezes da incompreensão do desconhecimento dos direitos do trabalhador, que esquecido e sem orientação segura, envolvia-se em greves.

Algumas políticas que acabavam por causar prejuízos e angústias a toda coletividade. F i g . 1 0 9

322 Durante a decupagem não foi possível compreender sobre a que tipo de remuneração o comentário se refere. 236

PG mesma fábrica só que de portas fechadas. PD cadeado. PD máquinas paradas, fábricas Melodia vazias. conduz à sugestão de PG e PM padre se aproximando dos medo para trabalhadores. uma perspectiva A igreja católica deu o primeiro passo para eliminar as de redenção. injustiças sociais procurando um contato direto com os Coro sacro. operários e seus problemas, proporcionou-lhes uma nova visão de sua vida profissional, mostrando-lhes a possibilidade de um envolvimento pacífico. Livre de agitações e violências.

Desde Leão XIII e sua voz ergue-se alto por seus representantes em todo o mundo, definindo perfeitamente os princípios cristãos que devem orientar F i g . 1 1 0 uma boa empresa.

PG Vaticano.

A primeira estratégia adotada por A Boa Empresa é o desenvolvimento da encenação. O filme localiza a esposa de um trabalhador preparando sua marmita para enfrentar um longo dia de trabalho. Neste momento, reconhecemos a trilha do filme. Diferentemente da maioria das produções, em A Boa Empresa, esta dramatização é acompanhada pelos acordes de “Samba em Prelúdio”. Composta por Baden Powell e Vinícius de Moraes, em 1962, trata-se de uma letra de amor que conquistou os adeptos da Bossa Nova, representados pela classe média burguesa, nas vozes de Geraldo Vandré e Ana Lúcia323. Seu caminho até a fábrica tenta idealizar a tarefa cotidiana deste trabalhador em composição com uma melodia lamentosa. Talvez “Samba em Prelúdio” concretizasse aquilo que, aos olhos da campanha ipesiana, estava por ocorrer: a tomada do poder pelos “demagogos” vermelhos. Neste sentido, a proposta de prelúdio da música remete à busca, no filme, dos elementos que validariam aquilo que se anuncia. Em seguida, o filme apresenta trabalhadores na fábrica. Concentrados em seu ofício, a câmera os revela isolados no quadro. Roupas e mãos sujas, desprovidos de qualquer item de segurança (fig. 108), o comentário destaca as “más condições de trabalho e a remuneração que as empresas deslocadas da realidade

323 Interessante notar que a menção à mesma voz que conquistou grande sucesso com Samba em Prelúdio incorporadas no discurso fílmico ipesiano seria, anos depois, símbolo de denúncia do regime militar. Geraldo Vandré participou de um dos momentos mais emblemáticos do Festival de Musical Popular Brasileira, entre os anos de 1965 e 1969. A repercussão do descontentamento do público ao 2º lugar da música Pra não dizer que não falei das flores fez dela um dos hinos da resistência à repressão. 237 oferecem aos funcionários. Estes maus empresários são diretamente responsáveis pela brecha perigosa nas relações empregado-empregador”. Neste momento, a tela ganha imagens de manchetes de vários jornais em composição com imagens de agitação e manifestação social. A trilha descarta a canção e explora uma melodia de suspense. Nota-se aqui um recurso de sobreposição das imagens na montagem (fig. 109). Enquanto vemos diversos jornais, misturados com o efeito de transparência, noticiando o conflito de multidões, o filme oferece um movimento na leitura que aponta a “indiscutível” realidade dos fatos. A imprensa é entendida como símbolo da verdade. E é através da composição das imagens que se apresenta o valor dos meios de comunicação. Esta ideia está pressuposta no filme, já que o comentário segue outro direcionamento. Concentra-se na crítica, mesmo que indireta, ao governo. “Algumas políticas acabavam por causar prejuízos e angústias a toda coletividade”. A fim de concretizar tais prejuízos, o filme elege alguns elementos imagéticos na tentativa de traduzir para o “chefe de empresa” as consequências de greve, denunciadas nos jornais. Vemos a mesma fábrica apresentada no início desta sequência. Ela está vazia. Máquinas paradas, portas e cadeados fechados. Uma enumeração de imagens nas quais enfatiza a ausência do trabalhador em relação à dinâmica tão bem explorada pela reprodução do som do tintilar das engrenagens. Sem operários, a máquinas perdem sua “vivacidade”. O exemplo da igreja e as instruções que ela sugere como princípios cristãos de uma “boa empresa” é a última estratégia do filme a fim de convencer o empresário-espectador da preocupante realidade. Um tanto quanto deslocado, o filme encena uma conversa com um padre na fábrica, que já conhecemos na imagem. Não são os fiéis que se deslocam à igreja, pelo contrário (fig. 110). O comentário sugere a pioneira atitude da igreja. É preciso segui-la. “A igreja católica deu o primeiro passo para eliminar as injustiças sociais procurando um contato direto com os operários e seus problemas, proporcionou-lhes uma nova visão de sua vida profissional, mostrando-lhes a possibilidade de um envolvimento pacífico”. A interferência de um padre nas relações entre empregador-empregadores é desenvolvida no quadro como um sinal, um sintoma das tensões sociais. Sua sugestão no filme justifica a ação. Afinal, como veremos na próxima sequência,

238

“industriais dotados de visão moderna e empreendedora, inspiraram-se no ensinamento da igreja, adotando medidas que marcaram o inicio de uma nova empresa”. Sequência 2 Áudio Câmera Voz Melodia em PG “Homens de negócio” em reunião. De terno Cientes das deformações que colocavam-no à margem tom suave e e gravata, são apresentados no quadro da justa valorização do trabalho, industriais dotados de feliz. conversando, discutindo. Estão entre papéis. visão moderna e empreendedora, inspiraram-se no ensinamento da igreja, adotando medidas que PD mãos em trabalho. PG de máquinas marcaram o inicio de uma nova empresa.

E os resultados revelaram-se surpreendentes. Trabalhando em lugares apropriados que não mais colocam em perigo a segurança, o operário produz mais e em menos tempo, o que representa um aumento de produtividade.

E, portanto, maiores lucros para a empresa.

F i g . 1 1 1

Cenas de refeitório de fábrica. Homens e mulheres. PG jogo de bilhar, damas, dominó e As boas relações entre operário e patrão se viram ping-pong. PG trabalhador sendo atendido por restauradas, pois agora a assistência depende além do médico. PG tratamento dentário. simples horário de serviço procurando atender o trabalhador em suas múltiplas necessidades.

A recreação é também fator de importância para integrar socialmente o operário, que sadio física e mentalmente, redobra sua disposição atingindo com facilidade maiores níveis de rendimento.

F i g . 1 1 3

PGF i g . 1 trabalhadores 1 2 deixando a fábrica. PD O operário e sua família têm hoje as portas abertas aos batendo o ponto em um final dia de serviço. PG Apito de métodos mais modernos da ciência médica que lhes cenas de rua, homens caminhando, se fábrica. proporcionam mais uma garantia para o seu bem-estar. despedindo e voltando para casa.

Agora, ao final de um dia de trabalho, o operário pode PG família (mãe e duas filhas pequenas) no sentir a segurança de quem realmente participa dos portão de casa, à espera. Intercalando-se, as frutos de um esforço comum mantendo assim a duas crianças correm de encontro ao pai. iniciativa privada na vanguarda do nosso progresso

econômico-social.

A empresa, assim concebida, transformou-se na verdadeira comunidade humana onde todos são livres recebendo a remuneração digna pela sua atividade.

F i g . 1 1 4

239

A segunda sequência de A Boa Empresa impressiona a exaltação que se estabelece no discurso no qual se afirma simbolicamente o desenvolvimento do país pelo uso das máquinas. Aproximadamente os 1m40s iniciais deste trecho são dedicados a um verdadeiro “desfile” de imagens (fig. 111). O comentário se coloca apenas para orientar o empresário-espectador que tais referências na tela são exemplos daqueles empresários “dotados de visão moderna e empreendedora, inspiraram-se no ensinamento da igreja, adotando medidas que marcaram o inicio de uma nova empresa”. O endossamento da igreja é, mais uma vez, explorado na sugestão de uma conduta abençoada pelos princípios cristãos. Daí que os benefícios oferecidos ao trabalhador apresentados pelo filme mais se aproximam de uma perspectiva de valor para assegurar a paz social, do que uma relação de trabalho. As vantagens não estão apenas na oportunidade que este funcionário pode obter ao usufruir de assistência médica (fig. 112), atendimento dentário (fig. 113), entre tanto outros exemplos em A Boa Empresa. O que o discurso fílmico apresenta com mais intensidade é o valor da vida (cuidado da saúde e segurança no trabalho), bem- estar (lazer), da cumplicidade (“boas relações entre operário e patrão”) e família. Afinal, “sadio física e mentalmente [o funcionário] redobra sua disposição atingindo com facilidade maiores níveis de rendimento”. A conduta ativa do empresário consciente de seu compromisso social se concretiza na exaltação de um coletivo de funcionários felizes. Não vemos mais imagens de conflito. Trabalhadores batem o ponto e deixam seu trabalho calmamente. O ponto alto de A Boa Empresa é o reencontro do “pai trabalhador” com sua esposa e filhas após um longo dia de trabalho. A consagração da família como “célula mater da nação” fortalece o dever do empresário, responsável por proporcionar aos seus funcionários as condições que garantam a paz social. A elaboração minuciosa da cena é composta por uma riqueza de referências que potencializam o signo “família” nos moldes do ideal ipesiano. Neste sentido, vale a descrição da cena. Vemos uma multidão saindo às ruas. Trabalhadores despedem-se entre si e a câmera localiza um homem. Ainda está de dia. Seu caminho parece mais um dia ensolarado do que um cair de noite. Sozinho, ele anda feliz sem preocupações. Em seguida, o filme localiza uma mulher na porta de casa

240 com duas crianças pequenas. Elas estão bem arrumadas para recebê-lo. A mãe ajeita o vestido das meninas que saem correndo em sua direção. Todos se abraçam e caminham para casa. A dramaticidade confere à cena uma sugestão épica que mais se assemelha ao retorno de um “herói de guerra” do que à volta de um dia qualquer de trabalho. O “posado” é a estratégia fílmica que materializa os valores conservadores. Não há dúvidas que, ao potencializar tais signos, a campanha ipesiana foi eficaz na arregimentação de um público que estava sensível aos mesmos princípios morais.

CONCEITO DE EMPRÊSA

Ficha técnica Duração:16 minutos Ano de produção: 1963 Narrador: Reynaldo Dias Leme324 Imagem e Montagem: n/c Produção: Cineservice/ Jean Manzon Films Realização: Instituto de Pesquisa e Estudos Sociais

Um dos filmes mais longos produzidos pelo IPES, Conceito de Empresa dura 16 minutos e é também o último curta da Jean Manzon Films. Assim como A Boa Empresa, desde o início o curta se dirige ao empresário-espectador. “Eu convido você, que é chefe de empresa, a olhar para a realidade brasileira”. Ao longo do filme, esta suposta estratégia de diálogo é utilizada como um recurso retórico para não só denunciar a “irresponsável” neutralidade de alguns “chefes de empresa”, mas também para instrui-los a participar da campanha ipesiana. Ao identificar o inimigo e a possível existência de uma campanha ideológica a fim de desmoralizar a iniciativa privada, Conceito de Empresa convoca os empresários- espectadores a unirem-se. Segundo o filme, esta coesão nacional só seria possível por meio da utilização dos veículos de comunicação - jornal, rádio, televisão e cinema. Dividiremos a análise em dois momentos. A primeira sequência se apresenta na investigação da estratégia fílmica mediante o questionamento da atuação do

324 Assim como no filme Depende de Mim, em Conceito de Empresa o nome do narrador não aparece nos créditos iniciais do filme. Contudo, a partir da investigação desta pesquisa pode-se sugerir que seja a voz do locutor Reynaldo Dias Leme. 2 41

empresário-espectador para, em seguida, analisar de que maneira a sugestão de uma atuação urgente do empresariado se concretiza no filme. Contudo, há alguns elementos contundentes presentes em ambas as partes e se faz oportuno identificá-los no filme. A partir da exploração de um imaginário anticomunista, que se apropria de valores democráticos (igualdade de direitos) e liberais (defesa da iniciativa privada), a sugestão de um sentimento cristão, de cuidado para com o próximo, se apresenta como justificativa para uma atuação mais incisiva. Este outro é o “povo”, os funcionários, empregados, mais especificadamente. O comentário sugere que o empresário-espectador desempenhe uma postura “fraterna”. “Fale ao homem simples, uma linguagem simples. Mostre que você está trabalhando para o bem da comunidade, a grandeza sempre maior do nosso Brasil”. Veremos, então, as partes que compõem a análise: Sequência 1 Áudio Câmera Voz PG, PM e PD cultivo de café, trigo, algodão. Eu convido você que é chefe de empresa a olhar para Trilha a realidade brasileira. Veja, até pouco tempo, o Brasil instrumental vivia da monocultura. O Brasil é um país suave. essencialmente agrícola, repetiam-se todos Intensifica-se monotonamente, nossos horizontes estavam limitados apenas nos à exploração da lavoura. momentos em que o Ninguém acreditava, apesar de nossas incalculáveis comentário se verbas de matéria-prima, ninguém acreditava em nosso ausenta. destino industrial. No entanto, o surto industrial chegou até nós como uma força milagrosa transformando por F i g . 1 1 5 completo os dados da realidade econômica e social da nação.

PG fábricas, máquinas trabalhando, homens Você, chefe de empresa, está atrás dessa porta, operando-as. Planos aéreos das fábricas. recolhido ao seu trabalho. Muito bem: eu gostaria de

fazer uma pergunta um pouco tanto impertinente: O Plano aéreo paisagem urbana. PD palavra que pensam de você todos aqueles que trabalham ao DIRETORIA. PM empresário. PM secretárias. seu redor?

Será que o conhecem verdadeiramente? Será que conhecem verdadeiramente o papel de sua empresa no nosso meio social? O que pensam de você aqueles que o conhecem apenas de nome?

Eles pensam, chefe de empresa, aquilo que os demagogos os induzem a pensar. Você, chefe de empresa, não tem comunicação com a massa.

F i g . 1 1 6

PM “demagogos” nas ruas.

242

Os agitadores, ahh, estes comparecem sempre onde se encontra o povo. Você acha, diante disso, que pode, continuar distante, desinteressado.

E na hora de votar, em quem ele estarão? Com você ou com o demagogo?

F i g . 1 1 7 Saiba você que os inquéritos de opinião pública são alarmantes. Para o povo, o chefe de empresa é um PD boca falando à multidão. PD olhos. PD grande gozador da vida, o grande tubarão. ouvido. Para o povo, você é o responsável pelo desgaste PD cédulas de votação. inflacionário. Para o povo, você é o responsável pelas PM mulher fazendo pesquisa. greves. Para o povo, você é o responsável pelas crises de abastecimento. Para o povo, você é o responsável PD dinheiro. PD fábricas. PD armazéns. PD pela vida cara. feira livre. Se o feirante furta, você é o responsável. Ah, para o povo, você é o responsável pelo custo de vida, manobras autistas, pelas mentiras comerciais, pelo leite que falta, por tudo.

Quando alguém olha para uma mercadoria inacessível, pensa logo em você.

F i g . 1 1 8

PD cartazes sugerindo o aumento da inflação. Será você, na opinião da massa, o responsável pelos PG pai e menino em frente a uma vitrine. crimes? O responsável pelo racionamento de energia? O responsável pelo analfabetismo? Pois, saiba que o PD manchetes de jornalismo: acusam de responsável até pela seca, pela miséria do - PADEIRO ASSALTADO Nordeste. - MULHER APANHOU NA PRAÇA JOÃO MENDES -DERRUBADO POR UMA „CAPOEIRA‟: LEVANTOU-SE PARA MATAR. Sim, o chefe de empresa se transforma aos poucos no PM sala sem luz. PM escola. PM êxodo rural. Judas de todo o Brasil, no grande culpado de todas as PG homem de negócios entrando no seu carro pragas. conduzido por um motorista. “Empresários omissos”. De uma coisa, veja se é o seu caso, você pode ser realmente responsável por parte disso: de omitir-se, de lavar as mãos, de ser indiferente.

Mesmo que os demagogos o poupem, não se iluda. Pois o seu dia chegará. Eles não querem apenas a estatização das grandes empresas, pouco a pouco, o coro demagógico há de abraçar todas as indústrias. Todas elas serão vítimas de intrigas e calúnias. Aos poucos, estas importantes engrenagens da comunidade serão atingidas, pois eles – os demagogos – dividem os homens de empresa entre bons e maus a fim de derrotar taticamente os adversários. Ah, não se F i g . 1 1 9 iluda! Na guerra deles, contra a livre iniciativa, vale tudo. 243

PG cenas de empresas, indústrias, comércio, E eis que se reúnem chefe de empresas, companheiros estradas, hidrelétrica, aeroporto. de sentimentos e ideias, mas este, este não quis nada com a reunião. Entrar na fogueira, ele não entra. Este, sem dúvida alguma, é o grande errado. E enquanto ele PG homens em reunião, “chefes de empresas”. não faz nada, a demagogia faz tudo, a caricatura do homem de empresa é divulgada por todos os meios. O PG cédulas de votação nas ruas, disputa pelo que sabem do homem de empresa os estudantes? voto. Serão a favor do homem de empresa?

PG empresa. PM sala da diretoria. A propaganda conta a verdade a respeito do trabalho e da utilidade nacional do homem de empresa? Ou está em chuvas fartas a discórdia?

A estratégia percebida na abordagem de Conceito de Empresa, nesta primeira sequência, se estabelece em um propósito de questionamento sobre o dever cívico do empresário. Neste sentido, o comentário apresenta a “evolução” do país devido ao processo de industrialização “como uma força milagrosa que transformou por completo os dados da realidade econômica e social da nação”. O potencial agrícola brasileiro baseado na monocultura (fig. 115) é apresentado como um exemplo dos “limitados horizontes”. Dessa maneira, é interessante notar que imagens e comentário intensificam a morosidade como característica de um modelo de país que precisa ser “superado”. Esta perspectiva se revela no contraponto que o filme estabelece ao valorizar a presença da dinâmica das máquinas devido ao “surto industrial”. Trata-se de enfatizar a importância de um modelo de progresso vinculado à industrialização mediante a atuação do empresariado. É neste sentido que o filme irá novamente localizar nas imagens (fig. 116) e no comentário o empresário-espectador, questionando-o. A estrutura das perguntas caracteriza uma proposta formal de aproximação que potencializa o vínculo com o empresário-espectador a partir de uma condução “respeitosa”. A prolixidade das palavras e da dramaticidade da voz reforçam os laços “comuns” entre o narrador do filme que, inclusive, se apresenta em primeira pessoa, e o empresário-espectador. “Eu gostaria de fazer uma pergunta um pouco tanto impertinente: o que pensam de você todos aqueles que trabalham ao seu redor? Será que o conhecem verdadeiramente? Será que conhecem verdadeiramente o papel de sua empresa no nosso meio social? O que pensam de você aqueles que o conhecem apenas de nome?” A resposta para esta construção ideológica é direta e pede sua imediata atuação. “Os agitadores, ahh, estes comparecem sempre onde se encontra o povo. Você acha, diante disso que pode continuar distante, desinteressado”. 244

A denúncia dos “demagogos”, em imagem e comentário, está presente em ambas as sequências a fim de potencializar a captação do apoio do empresário- espectador pelas ideias do IPES. Nesta primeira parte, tal ação se manifesta por meio da estratégia do “posado” à câmera (fig. 117), mas na sequência seguinte a denúncia indica o “demagogo” por meio da utilização de imagens documentais, supostamente reais. Trata-se da construção mais incisiva de denúncia da campanha fílmica ipesiana ao acusar o ex-presidente Jânio Quadros e sua continuidade. Ele compõe a tela. Na montagem, a produção de um efeito em negativo revela a figura de Jânio Quadros no palanque, em discurso. (fig. 121). Este recurso é usado com o empresário-espectador em uma tentativa didática de explicar que o IPES garante a “verdadeira” percepção dos fatos. O discurso nesta primeira sequência reforça a suposta influência que “demagogos” sobre o pensamento do povo. Segundo o comentário, para o “povo” o empresário é o principal responsável pelo “desgaste inflacionário, pelas greves, pelas crises de abastecimento, pela vida cara, pelo leite que falta”. A dramaticidade da voz e o conteúdo do comentário apresentam-se em tom sensacionalista. A apelação se materializada no “exagero” da composição das imagens “posadas” como, por exemplo, na vibração do corpo do “demagogo” (fig. 117). Há uma passagem emblemática que reforça os elementos simbólicos que caracterizam esta proposta didática que tende a simplificar a complexidade das relações econômicas. Vemos uma feira livre e um feirante pesando o produto escolhido pela dona de casa (fig. 118) e o comentário diz: “se o feirante furta, você [o empresário-espectador] é o responsável”. Daí que, com o propósito de atribuir toda a responsabilidade das “mazelas da nação” ao empresário-espectador, o filme revela manchetes de jornais: “PADEIRO É ASSALTADO”, “MULHER APANHOU NA PRAÇA JOÃO MENDES” “DERRUBADO POR UMA „CAPOEIRA‟: LEVANTOU-SE PARA MATAR”, e se apropria de um signo cristão para compará-lo com o suposto pensamento do “povo”. A materialização da traição de Judas, aquele que foi “instigado pelo diabo”, se revela no comentário. “Sim, o chefe de empresa se transforma aos poucos no Judas de todo o Brasil, no grande culpado de todas as pragas”. Percebe-se também a composição de elementos proféticos no comentário, “mesmo que os

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demagogos o poupem, não se iluda, pois, o seu dia chegará”, assim como a potencialização de uma visão de mundo maniqueísta, “dividem os homens de empresa entre bons e maus”. Estratégicas típicas de uma proposta de pensamento que reforça valores conservadores. Neste sentido, percebe-se uma estratégia de doutrinação que o IPES rigorosamente se empenhou em realizar. Como propósito final desta primeira sequência, que visa insinuar ao empresário-espectador que sua suposta neutralidade torna-o “mau” frente aos princípios cristãos e, quiçá, torna-o um Judas, é que o filme faz a ligação para a próxima sequência: exemplificar a conduta do “bom empresário” e pontua todas as atitudes que ele deve desempenhar. Sequência 2 Áudio Câmera Voz PG empresa. PM sala da diretoria. Eis agora uma empresa organizada, eficiente, elas Trilha cumprem suas obrigações financeiras, pagam instrumental zelosamente impostos, expandem suas atividades, mantém a mantem monetariamente protegido seus funcionários. mesma Basta? Não chefe de empresa é pouco. A simples proposta da organização de modo algum basta contra a mentira. sequência anterior. As empresas, naturalmente, se previnem contra Intensifica-se adversidades. Todos os tipos de seguros podem ser apenas nos feitos, mas há um seguro do qual raríssimas empresas momentos em se dão ao luxo de cuidar: o seguro da própria que o F i g . 1 2 0 sobrevivência, o seguro contra um sinistro pior que o comentário se fogo: a mentira. PD anúncios que dizem: ausenta. - TROQUE O INCERTO PELO SEGURO! - MAS SEUS BENS ESTARÃO GARANTIDOS PM Jânio discursando (recurso em negativo)

É em negativo que a demagogia apresenta a sua imagem e com que furor.

E pensando em sua imagem, em negativo, eles escolhem e decidem.

Pois você trabalha no escuro, você trabalha por um Brasil no mais perigoso silêncio.

F i g . 1 2 1 O que resulta do contraste entre (*)325 deles e o silêncio

PM Homem saindo de uma cabine de votação. dos homens de empresa resulta a desordem. Resulta PG multidão nas ruas. em proporções cada vez mais diabólicas, o inferno social. PD mãos trabalhando (recurso em negativo) Homem de empresa desperte. A divulgar o que PG manifestações sociais. (Travelling). PM significa para o Brasil, o seu trabalho, o seu esforço. Você que paga impostos, você que é por isso mesmo

325 Durante a decupagem não foi possível compreender essa passagem do comentário. 246

soldados transportados por caminhões, uma das peças fundamentais de todas as grandes caminhando nas ruas e preparando armas. obras públicas construídas no Brasil.

- Mostre que dos homens de empresa dependem as obras públicas de grande vulto, como o abastecimento de água. - Mostre que dos homens da livre iniciativa depende um vasto planejamento da eletrificação do Brasil. F i g . 1 2 2 F i g . 1 2 3 Mostre que dos homens da livre iniciativa, depende um serviço burocrático. O pagamento do funcionalismo, PG conflito, destruição. PM mendigos nas ruas. das aposentadorias, das pensões. PM homem rodando em círculo na cadeia. - Mostre que dos homens da livre iniciativa, depende direta ou indiretamente grandes hospitais, laboratórios, PD máquinas trabalhando. maternidades. Plano aéreo. PG indústrias. PG torres de - Mostre que dos homens da livre iniciativa, depende a energia. PG funcionários trabalhando. PG escolarização do Brasil. enfermeiros, médicos. PG alunos, escola. PG - Mostre que dos homens da livre iniciativa, depende a trens de carga. exploração dinâmica das riquezas nacionais.

PD Mapa do Brasil sobreposto por capas de Não amanhã. É hoje que você pode pensar em sua revistas: Visão, Manchete, Seleções, entre campanha de divulgação. Assim, como a propaganda outras. PD Televisão, em desenho. aumenta o número de suas vendas, aprende a vender igualmente a utilidade social de sua empresa. Propague a sua verdade de maneira racional e bem orientada. Leve a compreensão do homem do povo, o valor da sua empresa para a comunidade brasileira.

Utilize as armas de seu adversário: a imprensa, as F i g . 1 2 4 F i g . 1 2 5 palestras de esclarecimento, as gravações, o rádio, a televisão. Utilize a força mais eficiente e direta da propaganda moderna: o cinema.

Pois as empresas sobreviverão livremente à medida que o povo tomar conhecimento da utilidade social de nossas grandes e pequenas indústrias. É preciso urgentemente e trabalhamos todos não só para a F i g . 1 2 6 F i g . 1 2 7 produção, mas para uma era da democracia PM pessoas nas ruas lendo os jornais e nas assegurada, para uma era de paz social e de confiança palestras. Rádio, televisão e cinema. na livre empresa.

PG empresa. Máquinas trabalhando Chegou a hora inadiável de salvar os valores da vida dinamicamente. livre. Eles ficarão ao seu lado, se você falar, se você explicar, se você dirigir-se a eles em uma linguagem PD rostos de trabalhadores. Inúmeros. Homens direta. Não subestime sua influência financeira ou sua e mulheres trabalhando, mas no quarto estão influência junto às autoridades, mostre ao povo as presentes apenas um por vez. imagens adequadas, transmita ao operário e ao

homem do campo, a sua mensagem. PG mulheres e homes caminhado. Nós nos repetimos no final deste filme, faça a PG cidade, prédios, menção de progresso. propaganda de imagem. Fale ao homem simples, uma linguagem simples. Mostre que você está trabalhando para o bem da comunidade, a grandeza sempre maior do nosso Brasil.

Como dito na análise da sequência anterior, a sugestão da empresa perfeita é o primeiro ponto explorado (fig. 120). Adotando a mesma estratégia de apresentar 247 no quadro manchetes de jornais que autorizariam uma “verdade” dos fatos, vemos também no quadro a utilização dos próprios anúncios de publicidade impressos encomendados para a campanha do IPES, nas mãos de um “chefe de empresa”. O discurso do filme reforça a urgência de uma atuação enérgica por parte do empresário-espectador. A sugestão da construção do comentário é de um embate direto com aquele com quem se fala. “Você que precisa lutar pela demonstração agressiva da extraordinária utilidade social de sua empresa”. Esta demonstração agressiva é apresentada no curta por uma enumeração de itens em que a ordem “Mostre” repete-se diversas vezes. Em contrapartida, as imagens apresentadas neste momento do filme sugerem que o impasse sobre o rumo do Brasil está posto nas ruas das cidades. Diferentemente de Documentários-Confronto, o “perigo” não está mais fora do território nacional. O encadeamento das imagens de pessoas correndo (fig. 122) em confronto com a polícia armada, tanques do exército nas ruas e o carregamento de armas (fig. 123), construído na montagem, sugere a ocorrência de um “grave” conflito com o cidadão no país. Em nenhum momento o filme localiza ou, ao menos, sugere o propósito daquela manifestação. A estratégia de Conceito de Empresa se estabelece em uma montagem que tem por objetivo tornar uma situação de confronto em um fato supostamente recorrente em todo o país. Para tanto, o empresário-espectador deveria se unir para “propagar a sua verdade. Não amanhã. É hoje que você pode pensar em sua campanha de divulgação”. Neste sentido, os veículos de comunicação (figs. 124-127) deveriam se tornar instrumentos de ação na defesa dos ideais do IPES. O tom performático do narrador potencializa o discurso: “Utilize as armas de seu adversário: a imprensa, as gravações, o rádio, a televisão. Utilize a força mais eficiente e direta da propaganda moderna: o cinema”. É interessante notar a ênfase que concede à produção de filmes ao apresentar o cinema como símbolo da propaganda moderna. Se, por um lado, a função de Conceito de Empresa era otimizar a arregimentação corporativa e fortalecer a classe do empresariado em busca de novos adeptos, por outro lado, este filme também era uma resposta às contribuições das empresas ao IPES. O fortalecimento da campanha se justifica no discurso do filme, ao supervalorizar, como estratégia, a manipulação dos meios de comunicação.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

Desde o início da pesquisa, nos pareceu coerente investigar de que maneira as práticas audiovisuais foram determinantes para reforçar um sistema de signos conservadores já atuantes na sociedade. Para tanto, conceber a produção fílmica do IPES como campanha ideológica concretizada em um discurso que combatia a esquerda trabalhista era fundamental. Neste sentido localizamos os filmes do IPES não como frutos de processos culturais complexos, de uma tradição barroca e mestiça própria da América Latina, mas sim como instrumentos de normalização da sociedade. Esta reflexão foi essencial para encontrar os fatores que delimitam e configuram tal função normativa, ou seja, um ambiente midiático contaminado pela campanha promovida pelo IPES nos diversos veículos de comunicação só faz sentido quando contextualizada no cenário político, econômico e cultural. De tal maneira que investigar os filmes ipesianos nos exigiu pesquisar tanto o contexto e o tempo da produção como o contexto e o tempo do consumo, ambos articulados pela cotidianidade (usos e práticas) e pela especificidade do dispositivo tecnológico em questão, o cinema. Assim chegamos aos mecanismos através dos quais a produção procurava reduzir as instâncias da cultura ao imprinting para, posteriormente, investigar por meio da análise fílmica as temáticas e valores que contribuíram para reforçar o determinismo cultural. Valendo-se do decreto nº 21.240, de 1932, que obrigava as salas a veicularem produções nacionais antes das atrações principais, os filmes foram exibidos nos cinemas de todo o país entre os anos de 1962 e 1964. Entrar no cinema “pela mão” do cinejornal confere às produções do IPES um caráter de documento, de prova do real. Mesmo tratando-se de um filme de propaganda ideológica, o fato é que, ao assumir o lugar dos complementos nacionais, o espectador exigia dos filmes um compromisso com a realidade. E este “acordo” estava sedimentado pela tradição das práticas audiovisuais no Brasil. Além do que, a conotação do cinema como um local da informação, associado a um repertório de amplas referências culturais compartilhado por jornais, revistas, folhetins, teatro e

249 rádio, potencializava um discurso que preponderantemente era balizado pela autenticidade de suas imagens em movimento. Como vimos, desde as propostas de filmes de “cavação” no Brasil foi estabelecido um modelo disposto a banir imagens indesejáveis, em consonância com uma proposta política que visava celebrar as “virtudes da nação”. O caráter “posado” nos filmes de atualidades já era uma prática recorrente, não só nas estratégias fílmicas norte-americanas e europeias, sistematicamente utilizadas nas campanhas de apoio às duas guerras mundiais, mas também no discurso fílmico produzido com grande empenho a partir dos anos em que Getúlio Vargas criou o DIP (Departamento de Imprensa e Propaganda), em 1939. É quando a construção de uma representação de “Brasil ideal” ganhou fôlego e concretizou um projeto político de cinema “educativo”. O tema da identidade nacional estava posto e o cinejornal se tornava um modelo eficiente do que se desejava como nação. Ao localizar que os filmes ipesianos inserem-se, portanto, dentro de uma tradição já estabelecida, centrada na experiência do cinejornal, é possível conferir a eles um caráter documentarizante. Esta prerrogativa, identificada durante a pesquisa, se estabelece também ao observar os aspectos que orientam o modo de colocar uma leitura documentarizante em ação. Para Odin (2005), é apenas no movimento de leitura que se torna possível identificar nas marcas de sua produção e exibição, e nos sinais de sua estruturação, informações que possam instruir a relação do público com os curtas. Contudo, este diálogo só seria possível com um público sensível aos valores defendidos pelo instituto, e que, de certa maneira, fosse consonante com seu modo de vida. Afinal, os filmes ipesianos, identificados na proposta de Nichols (2008) como documentários expositivos, são um modo ideal para transmitir informações ou mobilizar apoio dentro de uma estrutura preexistente ao filme. Ao partir em busca de elementos que colaboraram na sugestão de uma realidade desejada e premeditada, localizamos o poder de instrução conferido ao IPES no processo de encomenda e distribuição dos filmes em cadeia nacional, assim como a incorporação das características estéticas da experiência cinematográfica de Jean Manzon. Tais marcas contribuíram para a construção de uma identidade audiovisual própria de uma sintaxe oficial promovida pelo IPES. Da

250 mesma maneira, determinados sinais presentes em sua estruturação fílmica dialogaram com fatores externos e também potencializaram a instrução documentarizante de tais curtas. Identificamos esses elementos na utilização de cartelas na abertura e no encerramento do material fílmico que “garantem” um instituto comprometido com os interesses gerais do país, disposto a investigar e propor soluções aos problemas brasileiros. Além disso, a incorporação de um narrador cuja voz fazia referência às coberturas de guerra e aos radiojornais oferecia também a garantia da “verdade” ao agregar o valor simbólico de sua credibilidade construído por anos de carreira. Ou seja, trata-se da incorporação de elementos que materializam a intencionalidade do IPES. Sem dúvida, a análise dos 14 documentários contribuiu para identificar as temáticas e valores ipesianos que já se apresentavam em seu projeto de campanha. Quanto aos temas, destaca-se a crítica ao gerenciamento federal sobre a condução dos transportes marítimos, fluvial e ferroviários e sua respectiva interferência sindical; a denúncia das frentes de trabalho ineficientes e o desolamento da região Nordeste do Brasil; a exaltação da formação técnica e a “preservação” da vida de estudantes distantes das discussões políticas do país; a importância da consciência sobre o voto; a denúncia dos regimes totalitários; a “harmonia” entre patrões e empregados e, sobretudo, a sugestão do IPES como articulador de reformas políticas, econômicas e sociais para o progresso do Brasil, vinculadas à iniciativa privada. Em geral, os documentários têm como fio condutor a exaltação da identidade nacional. Papel que os complementos cinematográficos já desempenhavam no processo de integração nacional na exibição de imagens limpas, indicadoras de progresso e desenvolvimento. Elementos estéticos também encontrados nos filmes ipesianos anos depois. Na busca pela unidade, compreendida como facilitadora teórica e em contraste com a tendência mestiça e barroca do país, os documentários, potencializados pela conjuntura política da época, intensificaram a construção de um cenário pautado pelo medo e pela ameaça comunista, apresentando no discurso fílmico a possibilidade da tomada do poder pela esquerda. Os signos recorrentes deste material audiovisual estão encaixados em um sistema estruturado de tal maneira que fortalecem significados conservadores e reacionários.

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Segundo Morin (2008), a perpetuação dos modos de conhecimento e de verdades estabelecidas obedecem a processos culturais de reprodução. A reprodução ipesiana, que tem como prerrogativa a manutenção normativa sem troca, tem como propósito banir toda ideia não consonante. Neste sentido, se o IPES tinha a expectativa de gerar uma oposição ao nacional reformismo em prol da iniciativa privada, através da disseminação de seus ideais nos veículos de comunicação, inclusive no cinema, ela se materializava dentro de uma lógica de denúncia maniqueísta na adoção de um imaginário anticomunista. De maneira que sua dinâmica se estabelece em um modelo totalitário de extrema exclusão do outro, de outras formas de conhecimento, ao exaltar suas verdades como universais. Neste sentido, investigar a atuação dos documentários no ambiente midiático significa também notar que suas estratégias persuasivas estão inseridas dentro de uma lógica estruturante do paradigma hegemônico. Ao transformar a realidade em uma relação dicotômica, o IPES sugeria uma leitura que simplifica os conflitos internacionais, as relações de poder, as condições de trabalho, o desenvolvimento econômico e, sem dúvida, a capacidade política do país, a partir de uma lógica de ordem e caos, causa e efeito, problema e solução, operando numa lógica binária de oposições conceituais. Esta simplificação, estampada nos documentários ipesianos, reduz a complexidade e reforça os determinismos culturais (normalização e imprinting), ainda mais profundos que os determinismos sociológicos de situação, como a classe social e o status profissional, por exemplo. Ou seja, mobilizar a opinião pública era convocar os cidadãos da nação para agirem como pais dignos e responsáveis, mães “de fé” e filhos estudiosos, todos dispostos a crescer com o país, indiferentemente de sua condição social ou profissional. A condição que unia a todos era a defesa da democracia alicerçada pela tradição cristã. Quando investigamos a cronologia de produção dos documentários, percebe- se um acirramento das propostas do instituto na exploração deste imaginário anticomunista, que se apropria de valores democráticos (igualdade de direitos) e liberais (defesa da iniciativa privada), no intuito de tornar seu discurso hegemônico e viabilizar a tomada ilegal do poder no golpe militar de 1964. A sugestão de um sentimento cristão, de cuidado para com o próximo, se apresenta como justificativa

252 para uma atuação mais incisiva em “defesa da nação”. Não é à toa que os valores de família e liberdade, alimentados por uma missão cívica, foram determinantes nos movimentos que antecederam o golpe. As manifestações da Marcha da Família com Deus pela Liberdade e o incidente que ficou conhecido como movimento de desagravo ao Rosário por João Goulart são exemplos típicos da potencialização de tais valores pela campanha promovida pelo IPES no ambiente midiático. Sem dúvida, ao estudar com mais proximidade a articulação e a disseminação da campanha ipesiana entre os anos de 1962-1964, é possível perceber que os anos de repressão que se seguiram após o golpe militar foram produto de um projeto político que desestruturou a democracia populista e impôs o que Ianni determina como a ditadura da burguesia.

Sob a proteção militar, instaurou-se a “doutrina da interdependência”, como orientação política, econômica, militar e cultural [...] A ditadura da burguesia desenvolve-se e consolida-se, em nome de uma concepção arbitrária de estabilidade social e segurança interna para combater qualquer manifestação da vida democrática, e permanece no plano das aparências, insensível aos reais problemas sociais. (1971, p. 211-213)

A mobilização dos grupos de pressão antigoulart, que resultou na “ditadura da burguesia”, responde a uma tradição do dualismo entre getulistas e antigetulistas que, segundo Biroli (2009, p. 17), sobreviveu ao suicídio de Getúlio Vargas. Desta forma, se antigetulistas e anticomunistas estavam entrincheirados para combater um suposto golpe de esquerda que se aproximava, todos aqueles que não preenchessem tais características ou que não se posicionassem em “defesa da democracia e da moralidade cristã” representavam uma ameaça a ser expurgada. Neste sentido, é possível notar que apesar das represálias e das perseguições atuarem de forma mais intensa após a tomada do poder e, sobretudo, com o decreto do AI-5, em 1969, já desempenhavam significativa presença às vésperas do golpe. Segundo Dreifuss,

A ação do complexo IPES/IBAD foi também responsável por estimular, entre os militares, grupos favoráveis ao golpe [...] Muitos desses oficiais eram conhecidos oponentes do regime de João Goulart, fazendo parte do grupo de coronéis e majores que publicou o manifesto anti-Getúlio Vargas, em 1954, e sendo também membros da Cruzada Democrática, o agrupamento

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político de oficiais de centro-direita que disputou as eleições no Clube Militar. (2008, p. 383, 386)

O comando civil-militar do IPES dentro das Forças Armadas visava a neutralização do dispositivo popular de João Goulart e a minimização do apoio militar a diretrizes políticas socialistas. Com a tomada do poder, o objetivo centra-se então na intensiva destruição das organizações, lideranças e ideologias que se desenvolveram durante a vigência do populismo, sob a bandeira que se vendia como “democrática e revolucionária”. De braços dados com as Forças Armadas, o golpe de 1964 foi resultado de uma lógica simbólica que envolvia e organizava valores ideológicos e repressivos que regiam o cotidiano de seus integrantes. Daí que esta união potencializou atitudes antidemocráticas e subversivas do Estado, como a cassação de mandatos, suspensão dos direitos políticos e das garantias individuais - ao permitir que o habeas corpus perdesse a sua aplicação legal -, a censura aos meios de comunicação, o sequestro de cidadãos e a institucionalização da tortura. Ianni é ainda mais enfático ao localizar que a militarização do poder político invadiu, inclusive, os espaços sociais ao adotar estratégias normativas em nome da pátria. Nas suas reflexões, publicadas já no período em que as denúncias de tortura no Brasil ganhavam corpo no exterior, com o Manifesto de Linhares (MG)326 e as revelações do presídio de Ilha das Flores327 (RJ), o que se destaca é a continuidade de um projeto político que desde 1962 estava sendo implementado. Sob o signo da unidade nacional, os adjetivos “nacional” e “popular” são utilizados como suportes de imagens unificadoras, tanto no plano do discurso político e ideológico quanto no plano das experiências e práticas sociais. “Vítimas do maniqueísmo inerente à sua concepção do processo político, os governantes e os grupos econômicos que eles servem estão criando instituições, símbolos e atitudes fascistas”. (IANNI, 1971, p. 212) De fato, a concretização destas normalizações, determinadas por grupos

326 Segundo o projeto Documentos Revelados, trata-se da primeira denúncia de torturas que saiu do Presídio de Linhares, em Juiz de Fora (MG), escrita e assinada por Angelo Pezzuti, presos do Colina (Comandos de Libertação Nacional) e da corrente de dissidência do PCB. 327 Enviada clandestinamente ao exterior, a denúncia foi primeiramente publicada no The New York Review of Books, em 26 de fevereiro de 1970, v. 14, n. 4. Título original: Torture in Brazil. Texto na íntegra disponível em . Acessado em 30 abr. 2012. 254 conservadores e reacionários, ganhou mais visibilidade durante os anos de ditadura com a exaltação do “civismo”. Tal manifestação pode ser percebida não só nos decretos de leis (Instituição dos Símbolos Nacionais: Bandeira, Hino, Armas e Selo328, e a obrigatoriedade do hino nacional nas escolas públicas e privadas uma vez por semana) e no projeto de reforma educacional que ficou conhecido como acordo MEC/USAID, mas também na propaganda do Estado. Os adesivos de “Brasil, ame-o ou deixe-o”, estampavam objetos e janelas de automóveis. O jingle “Pra Frente Brasil”, tema da Copa do Mundo de 1970, que empurraria a seleção à conquista do tricampeonato, proclama a unidade: “Noventa milhões em ação”. Neste sentido, é interessante destacar a utilização do material ipesiano nos projetos políticos que se seguiram após a instalação do regime ditatorial. Desde intervenções menos pontuais, como demonstrado pela pesquisadora Maria Inez Salgado de Souza (1981) a respeito dos estudos do IPES sobre educação servirem de baliza no projeto de reforma educacional promovido pelo governo militar, até implicações diretas que Dreifuss (2008) identifica sobre o fornecimento de dossiês, gravações de grampos telefônicos e documentos ao recém-criado SNI (Serviço Nacional de Informações) meses após o golpe. Por outro lado, no plano das práticas culturais e sociais, o que se verificou foi uma tendência a certo afrouxamento das fronteiras, reiterando a característica mestiça do país, mesmo em anos de ditadura. O avanço da mulher no mercado de trabalho e nas cadeiras escolares, a busca por prazer e autonomia, dentre tantas outras conquistas, sem dúvida interferiram diretamente no conceito hegemônico de família utilizado pelo IPES. Neste sentido, as reflexões de Napolitano (1998) sobre a intensidade da profusão que a ideia de democracia ganhou na sociedade durante os anos de chumbo e, de certa maneira, em seu legado, são valiosas.

Em seus diversos matizes, a parte da sociedade comprometida com a democracia não só lutou contra um Estado autoritário, mas foi obrigada a encarar os valores autoritários presentes nas relações sociais como um todo. Nesse sentido, tentou lutar pela superação do autoritarismo a partir das relações cotidianas e contra estruturas muito enraizadas. Podemos dizer que, durante a luta contra um regime autoritário, a sociedade civil percebeu que o autoritarismo não é só um fenômeno do Estado, mas está presente nas relações de trabalho, nas relações familiares, nas relações entre os diversos segmentos e os grupos sociais. Ao lutar pela democracia,

328 Lei nº 5.700, de 1º de setembro de 1971. 255

a sociedade brasileira percebeu que deveria democratizar suas estruturas mais profundas. (1998, p. 100)

Apesar da censura, o cenário musical e o cinema, por exemplo, também tiveram que se reinventar. Se por um lado a denúncia política era abafada pela repressão, outros dispositivos eram acionados para driblar a censura moral e ideológica. Não há dúvidas de que tal busca mereceria outra pesquisa, mas aqui nosso propósito é reiterar a maneira pela qual valores conservadores e reacionários, forjados nos princípios da família, da liberdade e da democracia, tornaram-se mecanismos de potencialização do determinismo cultural. Neste sentido é importante destacar a investigação dos processos de mediação no ambiente midiático. Quais são os usos e as práticas do que é midiatizado? Quais as traduções realizadas pela inteligência coletiva em relação a tais informações? Não há fronteiras rígidas ao considerar que o passado está presente como signo, fruto de uma memória social. A experiência e a cooperação possibilitam trocas e a construção do conhecimento. Constrói-se, então, sua Umwelt329, seu entorno. É por isso que a forma pela qual o sujeito interage e se integra na sociedade passa pela sua percepção do entorno. E não há dúvidas de que esta percepção é influenciada pelos processos de trocas simbólicas. Romano (2004, p. 59) indica que “na comunicação não interessam somente os aspectos quantitativos, os valores das trocas, mas também os qualitativos, os valores de uso [...] que afetam a vida”. O homem é um ser de relações e, portanto, constitui sua identidade a partir da diversidade de percepções, do conhecimento e de sua atuação. Na relação com o entorno há o movimento de incorporação e identificação com o mesmo. A questão aqui proposta é que levar em conta os vínculos históricos mais profundos, onde reinam as bases da cultura, é buscar também respostas para a atualidade e, por que não?, projeções futuras. Quando nos damos conta que tais valores conservadores e reacionários, vez por outra, são reativados desde as mais íntimas relações de poder nos ambientes familiares até nas propostas políticas ainda hoje justificadas em defesa da família e da moralidade, percebemos que compreender o processo que

329 Conceito desenvolvido pelo biólogo e filósofo Jakob von Uexküll (1864-1944). A teoria postula que mente e mundo são inseparáveis, já que ela é capaz de interpretar o mundo para o organismo, para o corpo. 256 levou o Brasil à ditadura militar vai além da discussão da Lei da Anistia, da importância da Comissão da Verdade e da abertura dos arquivos. Trata-se de compreender as forças mediadoras dos valores que regem a cultura do país.

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268

DOCUMENTOS

 Documentos, registros e atas: FUNDO INSTITUTO DE PESQUISA E ESTUDOS SOCIAIS. Arquivo Nacional/ CODES – Rio de Janeiro

 Filmes ipesianos: Coordenação de Documentos Audiovisuais e Cartográficos - Seção de Documentos Sonoros e de Imagens em Movimento/Arquivo Nacional – Rio de Janeiro

269

FILMOGRAFIA

PORTOS PARALÍTICOS

Ficha técnica Duração: 8:17s Ano de produção: 1962 Narrador: Luiz Jatobá Imagem: John Reichenheim, Antônio Estevão, Arturo Usai e Paulo Ferreira Montagem: n/c Produção: Atlantida/ Jean Manzon Films Realização: Instituto de Pesquisa e Estudos Sociais

UMA ECONOMIA ESTRANGULADA

Ficha técnica Duração: 8 min Ano de produção: 1962 Narrador: Luiz Jatobá Imagens: John Reichenheim, Antônio Estevão, Arturo Usai e Paulo Ferreira Montagem: n/c Produção: Atlantida/ Jean Manzon Films Realização: Instituto de Pesquisa e Estudos Sociais

A VIDA MARÍTIMA

Ficha técnica Duração: 9 min. Ano de produção: 1962 Narrador: Luiz Jatobá Imagem e Montagem: n/c Produção: Cineservice/ Jean Manzon Films Realização: Instituto de Pesquisa e Estudos Sociais

HISTÓRIA DE UM MAQUINISTA

Ficha técnica Duração: 9 minutos Ano de produção: 1962 Narrador: Luiz Jatobá Imagem: n/c Montagem: Floriano Peixoto, Ubirajara Dantas e Irene Soares Produção: Jean Manzon Films Realização: Instituto de Pesquisa e Estudos Sociais 270

NORDESTE: PROBLEMA NÚMERO UM

Ficha técnica Duração: 10 minutos Ano de produção: 1962 Narrador: Luiz Jatobá Imagem: n/c Montagem: Floriano Peixoto, Ubirajara Dantas e Irene Soares Produção: Jean Manzon Films Realização: Instituto de Pesquisa e Estudos Sociais

O QUE É O IPÊS?

Ficha técnica Duração: 9 min. Ano de produção: 1962 Narrador: Luiz Jatobá Montagem e Imagem: n/c Produção: Jean Manzon Films Realização: Instituto de Pesquisa e Estudos Sociais

O IPES É O SEGUINTE

Ficha técnica Duração: 9 min Ano de produção: 1962 Narrador: Luiz Jatobá Imagem: n/c Montagem: Floriano Peixoto/ Ubirajara Dantas/ Irene Soares Produção: Atlantida/ Jean Manzon Films Realização: Instituto de Pesquisa e Estudos Sociais

CRIANDO HOMENS LIVRES

Ficha técnica Duração: 9:49 minutos Ano de produção: 1962 Narrador: Luiz Jatobá Imagem: n/c Montagem: Floriano Peixoto, Ubirajara Dantas e Irene Soares Produção: Atlantida/ Jean Manzon Films Realização: Instituto de Pesquisa e Estudos Sociais

271

DEIXEM O ESTUDANTE ESTUDAR

Ficha técnica Duração: 8:45 min. Ano de produção: 1962 Narrador: Luiz Jatobá Imagem: n/c Montagem: Floriano Peixoto/ Ubirajara Dantas/ Irene Soares Produção: Atlantida/ Jean Manzon Films Realização: Instituto de Pesquisa e Estudos Sociais

QUE É A DEMOCRACIA?

Ficha técnica Duração: 9 min. Ano de produção: 1962 Narrador: Reynaldo Dias Leme Imagem: n/c Montagem: Floriano Peixoto, Ubirajara Dantas e Irene Soares Produção: Atlantida/ Jean Manzon Films Realização: Instituto de Pesquisa e Estudos Sociais

DEPENDE DE MIM

Ficha técnica Duração:830 Ano de produção: 1962 Narrador: Reynaldo Dias Leme Imagem: n/c Montagem: Floriano Peixoto, Ubirajara Dantas e Irene Soares Produção: Atlantida/ Jean Manzon Films Realização: Instituto de Pesquisa e Estudos Sociais

O BRASIL PRECISA DE VOCÊ

Ficha técnica Duração: 9 minutos Ano de produção: 1962 Imagem: n/c Montagem: n/c Narrador: n/c Produção: Jean Manzon Films Realização: Instituto de Pesquisa e Estudos Sociais

272

A BOA EMPRESA

Ficha técnica Duração:10 minutos Ano de produção: 1963 Narrador: Luiz Jatobá Fotografia: Jorge Aguiar e Hélio Couto (Assistente) Montagem: n/c Direção: Moisés Kendler e Oswaldo Corrêa Produção: Carlos Niemeyer/ Canal 100 Realização: Instituto de Pesquisa e Estudos Sociais

CONCEITO DE EMPRÊSA

Ficha técnica Duração:16 minutos Ano de produção: 1963 Narrador: Reynaldo Dias Leme Imagem e Montagem: n/c Produção: Cineservice/ Jean Manzon Films Realização: Instituto de Pesquisa e Estudos Sociais

273

ANEXOS

274

Anexo 01 Achegas a ação psicológica

Fig.128 275

Anexo 01 Achegas a ação psicológica (cont.)

Fig. 129 276

Anexo 02 O IPES e a governança paralela

Fig. 130

277

Anexo 02 O IPES e a governança paralela (cont.)

Fig. 131 278

Anexo 02 O IPES e a governança paralela (cont.)

Fig. 132

279

Anexo 02 O IPES e a governança paralela (final)

Fig. 133 280

Anexo 03 Manifesto/ Boletim UCF, s.d/11/63.

Fig. 134 281

Anexo 03 Manifesto/ Boletim UCF, s.d/11/63 (cont.).

Fig. 135 282

Anexo 03 Manifesto/ Boletim UCF, s.d/11/63 (final).

Fig. 136 283

Anexo 04 Ata Reunião CE e CD, 20/11/62.

Fig. 137 284

Anexo 04 Ata Reunião CE e CD, 20/11/62 (cont.).

Fig. 138 285

Anexo 04 Ata Reunião CE e CD, 20/11/62 (final).

Fig. 139 286

Anexo 05 Carta a Jean Manzon Films/ 1961

Fig. 140 287

Anexo 05 Carta a Jean Manzon Films/ 1961 (cont.)

Fig. 141 288

Anexo 05 Carta a Jean Manzon Films/ 1961 (cont.)

Fig. 142 289

Anexo 05 Carta a Jean Manzon Films/ 1961 (final)

Fig. 143 290

Anexo 06 Carta ao IPÊS/ São Paulo

Fig. 144 291

Anexo 06 Carta ao IPÊS/ São Paulo (cont.)

Fig. 145 292

Anexo 06 Carta ao IPÊS/ São Paulo (cont.)

Fig. 146 293

Anexo 06 Carta ao IPÊS/ São Paulo (cont.)

Fig. 147 294

Anexo 06 Carta ao IPÊS/ São Paulo (cont.)

Fig. 148 295

Anexo 06 Carta ao IPÊS/ São Paulo (cont.)

Fig. 149 296

Anexo 06 Carta ao IPÊS/ São Paulo (final)

Fig. 150 297

Anexo 07 Carta aos contribuintes

Fig. 151 298

Anexo 07 Carta aos contribuintes (cont.)

Fig. 152 299

Anexo 07 Carta aos contribuintes do IPÊS (final)

Fig. 153 300

Anexo 08 Relatório de exibição do documentário Nordeste problema número um

Fig. 154 301

Anexo 08 Relatório de exibição do documentário Nordeste problema número um (cont.)

Fig. 155 302